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ANEXO I

Lista de textos, disponíveis no site praia.itamaraty.gov.br:

CONCURSO DE HISTÓRIA EM QUADRINHOS / BANDA DESENHADA

Brasil & PALOP

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Angola
Nós chorámos pelo cão tinhoso (Ondjaki)
Brasil
Olhos d’água (Conceição Evaristo)
Assalto(Carlos Drummond de Andrade)
O homem nu(Fernando Sabino)
Cabo Verde
Menos um (Teixeira de Souza)
Secreto Compasso (Fátima Bettencourt)
O Vulcão (G. T. Didial)
Guiné Bissau
O hóspede (Andrea Fernandes)
Moçambique
Xicandarinha na lenha do mundo(Calane da Silva)
São Tomé e Príncipe
Divina, a menina da açucrinha (Olinda Beja)

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ANGOLA

NÓS CHORÁMOS PELO CÃO TINHOSO1


ONDJAKI

Foi no tempo da oitava classe, na aula de português.

Eu já tinha lido esse texto dois anos antes mas daquela vez a estória me parecia mais bem
contada com detalhes que atrapalhavam uma pessoa só de ler ainda em leitura silenciosa

1 Texto extraído de “Os da minha rua”. Lisboa: Editorial Caminho, 2007.


- como a camarada professora de português tinha mandado. Era um texto muito conhecido
em Luanda: "Nós matámos o Cão Tinhoso".

Eu lembrava-me de tudo: do Ginho, da pressão de ar, da Isaura e das feridas penduradas


do Cão Tinhoso. Nunca me esqueci disso: um cão com feridas penduradas. Os olhos do
cão. Os olhos da Isaura. E agora de repente me aparecia tudo ali de novo. Fiquei
atrapalhado.

A camarada professora selecionou uns tantos para a leitura integral do texto. Assim queria
dizer que íamos ler o texto todo de rajada. Para não demorar muito, ela escolheu os que
liam melhor. Nós, os da minha turma da oitava, éramos cinquenta e dois. Eu era o número
cinquenta e um. Embora noutras turmas tentassem arranjar alcunhas para os colegas,
aquela era a minha primeira turma onde ninguém tinha escapado de ser alcunhado. E
alguns eram nomes de estiga violenta.

Muitos eram nomes de animais: havia o Serpente, o Cabrito, o Pacaça, a Barata-da-


Sibéria, a Joana Voa-Voa, a Gazela, e o Jacó, que era eu. Deve ser porque eu mesmo
falava muito nessa altura. Havia o É-tê, o Agostinho-Neto, a Scubidú e mesmo alguns
professores também não escapavam da nossa lista. Por acaso a camarada professora de
português era bem porreira e nunca chegámos a lhe alcunhar.

Os outros começaram a ler a parte deles. No início, o texto ainda está naquela parte que
na prova perguntam qual é e uma pessoa diz que é só introdução. Os nomes dos
personagens, a situação assim no geral, e a maka do cão. Mas depois o texto ficava duro:
tinham dado ordem num grupo de miúdos para bondar o Cão Tinhoso. Os miúdos tinham
ficado contentes com essa ordem assim muito adulta, só uma menina chamada Isaura
afinal queria dar proteção ao cão. O cão se chamava Cão Tinhoso e tinha feridas
penduradas, eu sei que já falei isto, mas eu gosto muito do Cão Tinhoso.

Na sexta classe eu também tinha gostado bué dele e eu sabia que aquele texto era duro de
ler. Mas nunca pensei que umas lágrimas pudessem ficar tão pesadas dentro duma pessoa.
Se calhar é porque uma pessoa na oitava classe já cresceu um bocadinho mais, a voz já
está mais grossa, já ficamos toda hora a olhar as cuecas das meninas "entaladas na
gaveta", queremos beijos na boca mais demorados e na dança de slow ficamos todos
agarrados até os pais e os primos das moças virem perguntar se estamos com frio mesmo
assim em Luanda a fazer tanto calor. Se calhar é isso, eu estava mais crescido na maneira
de ler o texto, porque comecei a pensar que aquele grupo que lhes mandaram matar o Cão
Tinhoso com tiros de pressão de ar, era como o grupo que tinha sido escolhido para ler o
texto.

Não quero dar essa responsabilidade na camarada professora de português, mas foi isso
que eu pensei na minha cabeça cheia de pensamentos tristes: se essa professora nos manda
ler este texto outra vez, a Isaura vai chorar bué, o Cão Tinhoso vai sofrer mais outra vez
e vão rebolar no chão a rir do Ginho que tem medo de disparar por causa dos olhos do
Cão Tinhoso.
O meu pensamento afinal não estava muito longe do que foi acontecendo na minha sala
de aulas, no tempo da oitava classe, turma dois, na escola Mutu Ya Kevela, no ano de mil
novecentos e noventa: quando a Scubidú leu a segunda parte do texto, os que tinham
começado a rir só para estigar os outros, começaram a sentir o peso do texto. As palavras
já não eram lidas com rapidez de dizer quem era o mais rápido da turma a despachar um
parágrafo. Não. Uma pessoa afinal e de repente tinha medo do próximo parágrafo,
escolhia bem a voz de falar a voz dos personagens, olhava para a porta da sala como se
alguém fosse disparar uma pressão de ar a qualquer momento. Era assim na oitava classe:
ninguém lia o texto do Cão Tinhoso sem ter medo de chegar ao fim. Ninguém admitia
isso, eu sei, ninguém nunca disse, mas bastava estar atento à voz de quem lia e aos olhos
de quem escutava.

O céu ficou carregado de nuvens escurecidas. Olhei lá para fora à espera de uma trovoada
que trouxesse uma chuva de meia-hora. Mas nada.

Na terceira parte até a camarada professora começou a engolir cuspe seco na garganta
bonita que ela tinha, os rapazes mexeram os pés com nervoso miudinho, algumas meninas
começaram a ficar de olhos molhados. O Olavo avisou: "quem chorar é maricas então!"
e os rapazes todos ficaram com essa responsabilidade de fazer uma cara como se nada
daquilo estivesse a ser lido.

Um silêncio muito estranho invadiu a sala quando o Cabrito se sentou. A camarada


professora não disse nada. Ficou a olhar para mim. Respirei fundo.

Levantei-me e toda a turma estava também com os olhos pendurados em mim. Uns
tinham-se virado para trás para ver bem a minha cara, outros fungavam do nariz tipo
constipação de cacimbo. A Aina e a Rafaela que eram muito branquinhas estavam com
as bochechas todas vermelhas e os olhos também, o Olavo ameaçou-me devagar com o
dedo dele a apontar para mim. Engoli também um cuspe seco porque eu já tinha aprendido
há muito tempo a ler um parágrafo depressa antes de o ler em voz alta: era aquela parte
do texto em que os miúdos já não têm pena do Cão Tinhoso e querem lhe matar a qualquer
momento. Mas o Ginho não queria. A Isaura não queria.

A camarada professora levantou-se, veio devagar para perto de mim, ficou quietinha.
Como se quisesse me dizer alguma coisa com o corpo dela ali tão perto. Aliás, ela já tinha
dito, ao me escolher para ser o último a fechar o texto, e eu estava vaidoso dessa escolha,
o último normalmente era o que lia já mesmo bem. Mas naquele dia, com aquele texto,
ela não sabia que em vez de me estar a premiar, estava a me castigar nessa
responsabilidade de falar do Cão Tinhoso sem chorar.

- Camarada professora - interrompi numa dificuldade de falar. - Não tocou para a saída?

Ela mandou-me continuar. Voltei ao texto. Um peso me atrapalhava a voz e eu nem podia
só fazer uma pausa de olhar as nuvens porque tinha que estar atento ao texto e às lágrimas.
Só depois o sino tocou.
Os olhos do Ginho. Os olhos da Isaura. A mira da pressão de ar nos olhos do Cão Tinhoso
com as feridas dele penduradas. Os olhos do Olavo. Os olhos da camarada professora nos
meus olhos. Os meus olhos nos olhos da Isaura nos olhos do Cão Tinhoso.

Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da sala de aulas.
Fechei o livro.

Olhei as nuvens.

Na oitava classe, era proibido chorar à frente dos outros rapazes.


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BRASIL

OLHOS D’ÁGUA2
CONCEIÇÃO EVARISTO

Uma noite, há vários anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de
minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada, custei a reconhecer o
quarto da nova casa em que estava morando e não conseguia me lembrar como havia
chegado até ali. E a insistente pergunta martelando, martelando... De que cor eram os
olhos de minha mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer.
Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha
mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se
transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusatório. Então, eu não
sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?

Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias
dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de
minha mãe, aprendi a conhecê-la. Decifrava seu silêncio nas horas de dificuldades, como
também sabia reconhecer, em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele
momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam
seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários
detalhes do seu corpo. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... Da verruga
que se perdia no meio da cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca,
alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava e o passa-
passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas,
descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo dela. Pensamos que fosse
carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs, aflita, querendo livrar a boneca-mãe
daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso
engano. A mãe riu tanto, das lágrimas escorrerem. Mas de que cor eram os olhos dela?

Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia


nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas até bem
grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam roupas antes
dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de
minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da
panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado
desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome,
pareciam bochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as
línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nos dias de parco ou

2Textoextraído de “Contos do mar sem fim”: antologia afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas;
Guiné-Bissau: Ku si Mon; Angola: Chá de Caxinde, 2010, pp. 171-175.
nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira
preferida era aquela em que mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono,
um pequeno banquinho de madeira. Felizes colhíamos flores cultivadas em um pequeno
pedaço de terra que circundava o nosso barraco. Aquelas flores eram depois solenemente
distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora.
Postávamo-nos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em
volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria, de uma maneira triste e
com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? Eu sabia, desde
aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a
nossa fome se distraía.

Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na
soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as artes das nuvens do céu. Umas
viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia
aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço, que ia até o
céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma
de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos
sonhos se esvaecessem também. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama,
agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com olhos alagados de pranto
balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre
nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo
me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os
olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava,
chovia! Então, por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?

E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora
de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para
mim e para minha família: ela e minhas irmãs que tinham ficado para trás. Mas eu nunca
esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas
de minhas tias e todas as mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu
entoava cantos de louvor a todas as nossas ancestrais, que desde a África vinham arando
a terra da vida com suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas
senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de
minha mãe?

E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos
de minha mãe, naquele momento resolvi deixar tudo e, no outro dia, voltar à cidade em
que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para
nunca mais esquecer a cor de seus olhos.

E assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual,
em que a oferenda aos Orixás deveria ser a descoberta da cor dos olhos de minha mãe.
E quanto, após longos dias de viagens para chegar à minha terra, pude contemplar
extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?

Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas que eu
me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então
compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e
prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água.
Águas de mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla
a vida apenas pela superfície. Sim, águas de mamãe Oxum.

Abracei a mãe, encostei meu rosto ao dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se
misturarem às minhas.

Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos
de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de um são o espelho dos olhos da
outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas
estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando
intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão
baixinho como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e
encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando,
sussurrando, minha filha falou:

— Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?


ASSALTO3
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Na feira, a gorda senhora protestou a altos brados contra o preço do chuchu:

– Isto é um assalto!

Houve um rebuliço. Os que estavam perto fugiram. Alguém, correndo, foi chamar o
guarda. Um minuto depois, a rua inteira, atravancada, mas provida de admirável serviço
de comunicação espontânea, sabia que se estava perpetrando um assalto ao banco. Mas
que banco? Havia banco naquela rua? Evidente que sim, pois do contrário como poderia
ser assaltado?

– Um assalto! Um assalto! – a senhora continuava a exclamar, e quem não tinha escutado


escutou, multiplicando a notícia. Aquela voz subindo do mar de barracas e legumes era
como a própria sirena policial, documentando, por seu uivo, a ocorrência grave, que
fatalmente se estaria consumando ali, na claridade do dia, sem que ninguém pudesse
evitá-la.

Moleques de carrinho corriam em todas as direções, atropelando-se uns aos outros.


Queriam salvar as mercadorias que transportavam. Não era o instinto de propriedade que
os impelia. Sentiam-se responsáveis pelo transporte. E no atropelo da fuga, pacotes
rasgavam-se, melancias rolavam, tomates esborrachavam-se no asfalto. Se a fruta cai no
chão, já não é de ninguém; é de qualquer um, inclusive do transportador. Em ocasiões de
assalto, quem é que vai reclamar da penca de bananas meio amassadas?

– Olha o assalto! Tem um assalto ali adiante!

O ônibus na rua transversal parou para assuntar. Passageiros ergueram-se, puseram o


nariz para fora. Não se via nada. O motorista desceu, desceu o trocador, um passageiro
advertiu:

– No que você vai a fim de ver o assalto, eles assaltam sua caixa.

Ele nem escutou. Então os passageiros também acharam de bom alvitre abandonar o
veículo, na ânsia de saber, que vem movendo o homem, desde a idade da pedra até a idade
do módulo lunar.

Outros ônibus pararam, a rua entupiu.

Melhor. Todas as ruas estão bloqueadas. Assim eles não podem dar no pé.

3Texto extraído “70 historinhas/Carlos Drummond de Andrade”, 1ª ed. São Paulo: Companhia

das Letras, 2016.


– É uma mulher que chefia o bando.

– Já sei. A tal dondoca loura.

– A loura assalta em São Paulo. Aqui é a morena.

– Uma gorda. Está de metralhadora. Eu vi.

– Minha Nossa Senhora, o mundo está virado!

– Vai ver que está caçando é marido.

– Não brinca numa hora dessas. Olha aí sangue escorrendo!

– Sangue nada, tomate.

Na confusão, circularam notícias diversas. O assalto fora a uma joalheria, as vitrinas


tinham sido esmigalhadas a bala. E havia joias pelo chão, braceletes, relógios. O que os
bandidos não levaram, na pressa, era agora objeto de saque popular. Morreram no mínimo
duas pessoas, e três estavam gravemente feridas.

Barracas derrubadas assinalavam o ímpeto da convulsão coletiva. Era preciso abrir


caminho a todo custo. No rumo do assalto, para ver, e no rumo contrário, para escapar.
Os grupos divergentes chocavam-se, e às vezes trocavam de direção: quem fugia dava
marcha à ré, quem queria espiar era arrastado pela massa oposta. Os edifícios de
apartamentos tinham fechado suas portas, logo que o primeiro foi invadido por pessoas
que pretendiam, ao mesmo tempo, salvar o pelo e contemplar lá de cima. Janelas e balcões
apinhados de moradores, que gritavam:

– Pega! Pega! Correu pra lá!

– Olha ela ali!

– Eles entraram na Kombi ali adiante!

– É um mascarado! Não, são dois mascarados!

Ouviu-se nitidamente o pipocar de uma metralhadora, a pequena distância. Foi um deitar-


no-chão geral, e como não havia espaço, uns caíam por cima de outros. Cessou o ruído.
Voltou. Que assalto era esse, dilatado no tempo, repetido, confuso?

– Olha o diabo daquele escurinho tocando matraca! E a gente com dor de barriga,
pensando que era metralhadora!
Caíram em cima do garoto, que soverteu na multidão. A senhora gorda apareceu, muito
vermelha, protestando sempre:

– É um assalto! Chuchu por aquele preço é um verdadeiro assalto!

O HOMEM NU4
FERNANDO SABINO

Ao acordar, disse para a mulher:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com
a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a
nenhum.

— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.

— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as


minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz
barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu
pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas
a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água
a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente
nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até
o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo,
não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si
fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando


ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de
súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da
televisão. Bateu com o nó dos dedos:

— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir
lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!

4 Texto extraído de “O homem nu”. Rio de Janeiro: Editora Fernando Sabino, 1960, p. 65.
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse,
e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho
de pão:

— Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá
de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido,
embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na
escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o
botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando
a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa
com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo,
podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo
levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro
pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime
do Terror!

— Isso é que não — repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a


parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava.
Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o
elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou
descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia
em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma
cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.

Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o


embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O padeiro está nu!


E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

— Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um tarado!

— Olha, que horror!

— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como
um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos
depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.


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CABO VERDE

MENOS UM5
TEIXEIRA DE SOUZA

Por trás da casa estava-se melhor. Não havia tanto calor. Àquela hora, depois do meio-
dia, havia sempre um bocado de sombra. O meu avô contava casos do mar, a vizinhança
vinha catar piolhos, os homens fumavam e as enxadas criavam ferrugem. Era já tarde e a
respeito da chuva, nada. O céu andava escancarado. O mundo, seco como a lenha. Nem
um borrifo para apagar a poeira do chão. Os animais, destripados. Tudo como se viesse
um redemoinho e varresse os campos.

As pessoas crescidas achavam que o meu avô estava virando leve de cabeça.

— Esta madrugada vi a estrela de Alva sair mesmo do fundo da Cova-Tina. É um sinal


sagrado. A estrela está prometendo uma tina de água.

Toda a gente torcia o pescoço para o meu avô. Eu sentia raiva da gente grande, que só
pensava era na chuva. Quando ele contava as coisas mais bonitas deste mundo é que
paravam de estar calados para lhe perguntar quando chovia. Quando Deus quisesse. Que
é que o meu avô podia dizer da chuva? Ali sisudos a fumar, aquela gente não tinha coração
para ouvir as coisas do mar. Só sabiam dizer que as pessoas, quando chegavam à idade
do meu avô, começavam a avariar o juízo. Então, porque lhe perguntavam pelo tempo?

— Depois de amanhã é a lua nova.

— Não, a chuva há de vir. E não tarda. Em setembro, quando o vento começa de


madrugada, serena depois e torna a começar de tarde, do sudoeste, os navios que estão
fundeados no porto da vila saem todos para fora, porque é raro não cair refrega forte.
Costuma vir acompanhada de chuva. Devemos estar debaixo do signo de setembro. É
muito certo. Costuma acontecer assim. Se assim for, não deve tardar que não tenhamos
isto tudo alagado.

— Amém, boca de anjão!

Ainda por cima faziam troça dele. Destorciam o cachaço, cuspiam negro e continuavam
fumando.

— Eduardo, já foste mudar a cabra?

5Texto extraído de “Contra mar e vento”, 4ª ed. Praia: ACL Editora, 2017, pp. 09-16.
Respondi que era tudo a mesma coisa — não havia palha em nenhum lugar. Mas a minha
mãe não queria perceber. Que só sabia era estar ao pé da conversa da gente grande e a
respeito de trabalhar, nada. A cabra andava com a barriga pregada às costas. Que havia
de fazer?

O mar lá em baixo era um lago de azeite e a ilha Brava parecia um porco grande a derreter-
se num tanque. A cabra, assim que me via, punha-se a berrar. Metia-me raiva aquele
bicho. Puxava-a pela corda aos esticões. Queria levá-la para outro lugar, mas ela fincava
os pés no chão e não andava. A minha gente também não me compreendia. Tratavam mal
o meu avô só porque era velho e estava virando leve da cabeça.

Ele não ligava importância. Mas eu ficava com aquilo aqui na garganta como um nó.
Tinha prometido fazer-me um navio se chovesse. Que me estragava com mimos em vez
de me dar bons conselhos. Eu sabia que, se chovesse, prantavam-me de riba dum cutelo
a guardar corvos. Uma noite sonhei que tinha chovido e eu estava sobre um monte a atirar
pedradas aos corvos com a funda. A água subia, subia e havia milhares e milhares de
corvos à roda da minha cabeça. Já não tinha forças para estalar funda. A água dava-me
pelo pescoço. Gritava mas os corvos tinham feito uma sombra negra sobre mim. Apupava
para os espantar e eles riam-se às gargalhadas, mostrando, os dentes. A água cercava-me
por todas as bandas e o meu destino era morrer afogado.

— Eduardo, ó Eduardo! — a minha mãe acordou-me. Levantei-me para ir tratar da cabra.


O sol não tinha nascido ainda. Os campos tinham uma tristeza tão grande que naquela
manhã desejei que chovesse. Ó Nossa Senhora do Socorro, mande chuva. Era o dia 5 de
agosto. A minha mãe embrulhou duas velas no xaile e partiu com Jack, meu irmão mais
velho, para a capela de Nossa Senhora do Socorro. Não me quiseram levar. Já sabia de
véspera que não ia. O meu casaco não podia levar mais remedos. Às vezes enganava-me
e enfiava o braço por um buraco qualquer. Para vestir o casaco, só com um mapa à frente,
dizia o meu avô.

Certa manhã, os meus tios e os meus primos partiram para o Norte. O Jack chegou da vila
com uma carta da minha madrinha.

Brava, 4 de setembro de 1933.

Cumadre Mariana

Recebi sua carta fiquei cismado em tudo que cumadre manda mi contar toda a noite que
não dormi só a pensar na tristeza da nossa terra dois anos sem chover nem sei como há
de ser. Aqui na Brava de Cova-Rodela para cima o milho está crescido só nas baixadas
é que se não cai mais uma chuva não sei como há de ser de meio dia o milho começa a
enrolar folha. Cumadre Mariana pensei que cumadre podia deixar Eduardo vir para
nossa companhia sempre é uma ajuda a gente não tem vida muito remediado mas sempre
vamos ajudando companheiro com fé em Deus e ajuda de Nossenhora até que uma luz
entra melhor na nossa vida. Manuel está na fachina na Santa Barba. José panhou lista
de soldado ficou limpo graças a Deus. Mando 15 milréis para cumadre prevenir qualquer
coisa que é de nascidade de viage de meu afilhado. Rebocador vem fim de oitubro.
Cumprimentos para Nhô Morgado cumprimentos para nha Rosa para tio Jilormo
cumprimentos destes meninos para todas famílias bênção para meu afilhado Eduardo
cumprimentos para Jack.

Nada mais desta sua cumadre que muito estima. Maria Júlia Delgado.

A minha mãe ficou com os olhos rasos de água quando Jack acabou de ler a carta. Meu
avô perguntou pela data da carta e ficou a esgravatar o cachimbo. Fiquei a pensar que ia
saltar da água do mar, mas não disse a ninguém que tinha ficado contente. À hora em que
a gente se sentava atrás da casa, falaram muito da minha viagem, mas a mim não me
perguntavam se queria ir, se queria ficar. Estava assente. Ia partir para a Brava no fim de
outubro. Perguntei ao meu avô se embarcar no rebocador era o mesmo que viajar em
navio à vela. Só achava que andar no mar era em navio à vela como aqueles em que a
gente vai para a América.

— Andar no vapor é melhor porque a gente não tem que estar à espera de vento. Cá em
terra devia haver uma maneira de o milho nascer sem chuva. Andei uma vez num navio
de baleia que se chamava Rotterdam. Pois esse navio vi-o alguns anos depois em New
Bedford e já tinha motor. Marinheiro que nunca apanhou os temporais das Bermudas num
navio à vela, não pode ser nunca bom marinheiro.

Eu também queria ser marinheiro do mar largo. Até pensava que podia vir a ser capitão
de longo curso. Era questão de estudar!

Estávamos já a fechar a porta quando ouvimos uma voz no quintal. “Eh nhô Morgado”.
Era Mateus Dereda. Estava uma noite escura. Só se ouviam os grilos. Trr... Trr... Mateus
Dereda trazia um porco. Não havia quem tivesse mais paciência para andar com os
porcos. Quando se cansavam, ele deitava-se ao lado deles e esperava.

— Eu quero o jazigo esta noite, Nhô Morgado.

— Ó homem, você entre. Sacos não faltam para a gente encostar a cabeça.

— Nhô Morgado, o povo está desanimado, o mundo está feito. Se não chove, não sei o
que será feito de nós todos.

— Deus não dorme. Não há de deixar morrer os seus filhos de fome.

Mas Deus estava dormindo mesmo. Só o meu avô não desanimava. Falaram um bocado.
Que no Sul o povo já andava a comer jinguilani. Bem fizeram os meus tios que partiram
para o Norte.

Quando os galos cantaram a primeira vez, Mateus Dereda acordou e foi-se embora. Que
o povo do Sul já andava a comer jinguilani.
Lá estava arrombado o mesmo bocado da parede. A figueira-do-paraíso tinha uns
figuinhos muito miúdos ainda. Já não os comia. Fui à ribeira. Era a última vez. E se eu
não me despedisse de ninguém? Ia-me custar. Tinham a cara de quem não ia chorar. A
minha mãe estava na cozinha e arranjava-me um gole de café para tomar antes de partir.

O rebocador apitou. Ouvi-o clarinho. O coração virou-me do tamanho dum grão de milho.
Uma passarinha pôs-se a cantar: “Passarinha de pena azul, se a nova é boa, canta três
vezes”. Só cantou duas vezes. Adelino tinha morrido debaixo do guindaste do rebocador.
A primeira vez que o vapor foi à ilha fez logo aquela desgraça. Ele tinha a cabeça
enrodilhada num saco larau, ensopado em sangue. A sola dos pés era mais branca que a
cal da parede. Credo!

O céu estava muito baixo. Até caía uma morrinha de chuva. A minha mãe disse: “Se
chover, pode nascer palha para os animais”. Fui ver a nossa cabra. Quando assomei no
cimo do cutelo, ela pôs-se a berrar. Mastigava monduro seco. E se eu a levasse comigo?
Com certeza a minha madrinha não se zangava. Bom, mas se chovesse, podia fazer falta
à minha gente. Que já era hora de eu e Jack partirmos. Fiquei sem saber que havia de
fazer. Jack perguntou-me se não me despedia. Tinha um nó na garganta. Não podia falar.
O meu avô estendeu-me a mão para beijar. Disse-me umas coisas que não ouvi. Só senti
os ossos duros dele na minha boca. Tinha os olhos a boiar de água. A minha mãe apertou-
me muito que até pensei que já não me largava. Jack tinha um sorriso torto no canto da
boca. Ria-se de mim por eu estar a chorar? Não, a cara dele não era de troça.

Olhei para trás. Minha mãe e meu avô, lá estavam no alto da nossa casa. Ela acenava-me
com um lencinho branco. Eu tinha os olhos tão cheios de água que tropecei numa pedra.
Jack disse-me que não chorasse. Mas não podia. O nó na garganta apertava cada vez mais.
O rebocador apitou. Devia estar a pedir a carga. Jack ia silencioso a meu lado.

— Ouvi dizer que o Governo vai abrir estradas. Vou ver se assento o meu nome nas Obras
Públicas.

Jack era alegre, mas ultimamente só falava em trabalho. Tinha-se tornado como a gente
grande que só falava na chuva. O nosso avô era o único que contava coisas bonitas. Mas
aquilo era da idade...

A lancha estava cheia de gente bem vestida. Sentaram-me ao lado duma mulher muito
branca. Ela ria-se e abria a boca como fazem os pardais novos. Devia ser portuguesa de
Lisboa.

“Agora, agora”, gritavam os braçais. Vi o meu irmão botar a mão à popa para ajudar a
empurrar. Veio uma onda e fez a lancha boiar. Os braçais berraram, disseram alguns
nomes feios. Os homens da proa meteram os remos na água. Jack largou a popa e vi-lhe
a boca torta. Depois, ele ficou lá longe, na areia, com o braço levantado a acenar-me com
o boné.
O rebocador afinal era muito grande. No mar parecia tão pequeno! E não era branco,
branco. O casco era mesmo bastante sujo. Lá dentro então era uma porcaria. A 3ª classe
estava cheia de porcos e bosta de vaca. O guindaste não parava. Se aquilo escapasse,
matava uma pessoa. Adelino tinha morrido assim. Uns homens de camisola enturrada
saíam de dentro do vapor com a cara preta de carvão. Enchiam baldes de carvão e
sumiam-se por uma escada. O guindaste não parava. Trazia seis e mais sacos de purgueira,
um homem puxava por uma manivela e aquilo descia para dentro do porão. Ou era do
barulho do guindaste, ou cheiro da 3ª classe, comecei a ficar mareado. O vapor rebentou-
me o apito mesmo ao pé dos ouvidos. Levei a mão às orelhas. O apito mexia com a gente
cá por dentro. Vi muitos lenços brancos na praia. O vapor começou a tremer. Tinha
começado a andar. O hélice foi deixando atrás uma esteira branca. Encostei a cabeça a
um ferro. Ia vomitar. Veio um daqueles homens de camisola e botou-me a mão ao toutiço:
“Vai vomitar para o mar, seu porcalhão.” Senti o gosto do café que tinha tomado em casa.
SECRETO COMPASSO6
FÁTIMA BETTENCOURT

Mãe de família ocupadíssima e exigente, minha mãe nunca tivera muitapaciência para
empregadas domésticas. Salvo uma ou outra que demoravaanos e se transformava em
mais um membro da família, perdi a conta dequantas passaram pela nossa casa. Uma
porque não era fiel, outra porquedescuidava no asseio, outra porque tinha maneiras
grosseiras —um péssimoexemplo para os meninos — elas faziam da nossa casa uma sala
de trânsitode pouca dura. Até que apareceu Augusta, bonita e alegre, sempre com
umacantiga nos lábios e um sorriso nos olhos.

Recordo como agora dia em que ela apodou à nossa casa, levadapor uma comadre
fornecedora de hortaliças, que garantia as qualidades e a cabeça sossegada da moça, na
opinião dela ferida apenas de um únicodefeito: só parava de cantar quando dormia.

A meninada lá de casa adoptou-a sem restrições ainda que o olhar sabedor da minha mãe
se tivesse pousado um pouco mais demoradamentena sua ligeira bluzinha vermelha
decotada até ao início dos seios redondose na saia florida que apertava num franzido a
cintura estreita e descia atéa um palmo acima do joelho. Toda ela era energia pura, os pés
descalçosnão paravam quietos, com os braços roliços abraçava o próprio busto
numvisível esforço para se conter. Irradiava dela uma chama que na época eunão soube
compreender mas agora não me surpreende que se mantivesse
acesa e nítida nas minhas lembranças de muitos anos atrás.

O longo olhar da minha mãe mediu-a, pesou o nosso entusiasmo eAugusta começou a
partir daí a temperar os nossos dias com a sua cantigacristalina enquanto lavava a louça
e a roupa, passava a ferro, cuchia o milhoou estendia as camas.

Minha mãe, meio desconfiada de tanta alegria de viver, resmungavacontra o conteúdo


duvidoso de algumas músicas da sua preferência. Atéque um dia ela não apareceu no
trabalho e mandou uma prima avisar deque estava passando mal por causa da gravidez.

Gravidez!? — Estranhou minha mãe e comentou:Logo vi que havia mouro na costa! Bem
que sempre embirrei com aquelacantiga que ela não tirava da boca "esse frio cum tem na
corp ê só bô sô q'ta trame ele". Imaginem uma cantiga destas com o calor que tem feito!

Passaram-se meses e um belo dia Augusta apareceu lá em casa com umbebé na ilharga.
Vinha magra, esquálida, perdida a alegria natural, muda esoturna. Vinha sofrida,
maltratada e só. O filho ali presente na sua ilharga nãoatenuava aquela solidão. Os
meninos da casa, todos nós a adorávamos, era nossa companheira de todas as traquinices,

6Texto extraído de “Elas contam” de Ondina Ferreira. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e
do Livro, 2008, pp. 167-170.
cúmplices de todas as pirraças,ela adorava meu irmãozinho codé, dera até o seu nome ao
filho.

Assim que a vimos meio envergonhada à porta, começámos, em coro, a pedir que
fosse de novo recebida. Minha mãe que não, que não tinha juízo, dali a nada se tinha
meteria noutra encrenca e nós já com o bebé ao colo pedindo, insistindo, puxando a
Augusta para dentro de casa, vencíamos pouco a poucoa resistência da minha mãe. Ela
também, de abaixo da aparente severidade, estava condoída da moça que além de tudo se
via que passava fome. Vira muita gente morrer de fome nas Costas do Norte de Santo
Antão nas crisesde quarenta e guardara para sempre as imagens. Essa recordação deu
oimpulso final a nosso favor e Augusta ficou conosco mais o bebé, automaticamente
adoptado pelos meninos da casa.

Com o passar dos dias a moça foi recuperando a alegria natural tentandoesquecer o
sumiço do "pai-de-filho" que nem nome dera ao anjinho de Cristo.Começou a andar mais
ligeira, a brincar com o filho e com todos e um diacomeçou também timidamente, a
resmungar a primeira cantiga.

Minha mãe assistia feliz ao renascer da rapariga e dizia enquanto amirava de soslaio:

— Parece que finalmente esta menina já tomou juízo. Agora o que elatem que fazer é
criar o seu menino aqui sossegada e pronto. Parece que jánão quer nada com homens.
Pelo menos a cantiga que repete todo o diasanto e "oh Mari Giralda quem qu'ê pai de bô
fidje?"

Eu achava que ela ainda não tinha esquecido o desgosto, mas na sensata opinião da minha
mãe era melhor mesmo não esquecer.

Um dia, porém, Augusta saiu para o quintal com um braçado de roupa para lavar e
deparou com o dia mais lindo e radioso que já vira, o céu límpido e azul,mais parecia mar
que céu. Ela olhou, sorriu e soltou a sua coladeira provocante:

"É mim que pô pé num tchon frio


ante d'atarde num bonhe de chuver."

Dentro de casa minha mãe parou de bater o bolo, quase se engana no fermento, sempre
tão rigorosa nos temperos, esquece se já pôs a nozmoscada, atrapalha-se toda com a colher
de pau no ar. Que cantiga eraaquela? Recentíssima com certeza mas, "meu Deus!" esta
gente já nãosabe o que há-de inventar para pôr nestas coladeiras, uma verdadeira
poucavergonha! Oiçam, oiçam isto:"chão frio", "banho de chuveiro", "um c ata na idade
d’amdjer”... Francamente, o que querem dizer com isso? Fatalidade...Maternidade...
Realmente é demais!

À medida que Augusta se entregava ao ritmo quente da coladeira, minhamãe lentamente


ia compreendendo o sentido das palavras e a disposição daempregada, muito semelhante
à do tempo de "esse frio cum tem na corp" demá memória e piores resultados. Pela certa
vinha aí mau tempo, vaticinouminha mãe, muito dada a pressentimentos, enquanto no
quintal as notassoltas da garganta de Augusta enchiam de calor a manhã luminosa.

Infelizmente tivemos que dar razão à minha mãe. Os seus piores pressentimentos se
justificaram plenamente. Algum tempo depois Augusta sumiude novo. O que se passou
até hoje não sabemos direito pois o homemque arranjou levou-a para Santo Antão e pô-
la a trabalhar na estrada ondeapanhou uma tuberculose.

Descobrimo-la no Hospital de São Vicente já na fase final da doençae todos os nossos


cuidados foram em vão. Acabou morrendo, deixando o primeiro filho pois o segundo se
fora por conta de uma diarreia ao sol e aovento nas estradas do Porto Novo. A minha mãe
tomou conta do garoto ecriou. É um dos meus irmãos adoptivos. Vive na Suécia, dedica-
se à músicanas horas livres, um gosto que certamente apanhou quando boiava no útero
materno.
O VULCÃO7
G. T. DIDIAL

Quando o vulcão entrou em atividade, o homem pescava,no seu pequeno bote, ao largo
da costa. Nesse dia, embora o marestivesse calmo e tudo levasse a crer que o tempo se
conservariabom, ele não se afastou muito da praia, uma vez que estava só:o seu
companheiro habitual adoecera e não pôde acompanhá-lo.

Do ponto onde se encontrava, ele seguiu, aterrorizado, o vomitar de lavas sobre as encostas
cultivadas. Foram-se alastrandocom incrível rapidez, tal era a sua abundância, pelas
povoaçõesem redor e a planície que se estendia a partir do sopé do vulcãoem direção ao
mar. O pavor e a surpresa mantiveram-no paradoali, no pequeno bote, e incapaz de tomar
qualquer decisão.

Habituara-se desde miúdo a olhar para o vulcão da sua ilhacomo uma espécie de relíquia
ou vestígio dum acontecimento extraordinário do passado, qualquer coisa por certo tenebrosa
masque não voltaria a acontecer. Na verdade, por uma espécie de desconcertante ou desenvolta
convicção, a gente da ilha acreditava dehá muito que o vulcão estava extinto para sempre. E
aí estava eledando provas subitamente duma grande vitalidade. A surpresapara o
pescador não podia ser maior.

Ele conseguia distinguir do seu posto de observação a sua pequena casa, que lhe custara
meses a construir, ajudado por doisvizinhos: as lavas, fumegantes, já se aproximavam dela;
em torno,algumas casas de colmo ou de madeira e folha de flandres, ardiam
completamente e as lavas tinham atingido o telhado de outras que começavam já a arder.

Ele tinha-se aproximado, entretanto, da praia para ver melhor, mas não se atreveu a descer à
terra e certificar-se do estado da sua casa. Nada havia decerto a recuperar. Deixara-se ficar no
bote varado sobre o areal, a observar. Havia algumas horas apenas que a erupção durava, mas a
vista do homem abarcava já um inferno de chamas, de fumo e de destroços de casas, árvores, de
animais que se iam amontoando.

A erupção aumentava de hora para hora. Agora as alvas estendiam-se para o ocidente da ilha. O
homem remou para o meio da enseada. Resolveu passar a noite no mar e aguardar até ao dia
seguinte. De manhã verificou que as coisas tinham piorado: as lavas continuavam a
alastrar-se pela ilha, cada vez mais abundantes; dir-se-ia que se haviam transformado
em autênticaschamas que varriam o sul da ilha. O homem teve então a triste impressão
de que a erupção iria continuar por muito tempo, talvezvários dias. Decidiu remar em
torno da ilha, explorando a costa,em busca dum sítio onde pudesse atracar, nas
vizinhanças tantoquanto possível duma horta não atingida pelas lavas e onde pudesse
procurar com que se manter no mar durante o tempo quedurasse a erupção. Por quê
aguardar assim no mar, nesse pequenobote? Ele não o saberia explicar a si próprio. Era
uma decisão insólita, mas tomou-a rapidamente, sem grandes hesitações nem angústias
maiores do que as que ele já vivia. Não bastará afirmar, sem dúvida, que a santa

7 Texto extraído de “Contos de Macaronésia”. Vol. 1. Mindelo: Ilhéu Editora, 1992, pp. 127-135.
padroeira da ilha lhe aparecera em sonhos durante essa primeira noite passada no mar,
noite de vigíliaentrecortada de raros minutos de sono sobressaltado e que lhe fizera
saber que a erupção iria durar vinte dias e vinte noites e quefosse à terra, do lado norte
da ilha, junto à falésia de Diogo, queesconde o vale de Gatim, e colhesse, nessa ribeira
verdejante e ricaem quase tudo, o que lhe fosse necessário para passar vinte diase vinte
noites no bote, longe da ilha que se incendiava e se cobriade fumo e de ruínas. Não
cabe acreditar no significado ou na importância desse sonho; o próprio pescador,
homem que os pés bem assentes no chão, não lhe prestou nenhuma atenção. A erupção
duraria vinte dias e vinte noites, mas se ele remou, no segundo dia, contornando a ilha,
até à falésia de Diogo, é porqueadmitiu, pela observação minuciosa que vinha fazendo
do desenrolar da erupção, que a parte setentrional da ilha devia estar ainda intacta e,
como homem conhecedor da sua terra, que a percorriaamiúde duma ponta a outra, sabia
que ao norte ficavam os valesmais férteis, os regadios mais bem cuidados e mais
produtivos.

Não teve dificuldades em penetrar no vale de Gatim. O deslumbramento que então se


apoderou dele foi tão intenso quantofugaz. Havia pelo menos cinco anos que lá não
tinha estado e ovale mostrava-se mais farto e mais rico do que a recordação, quedele
guardava, lho descrevia. Porém, o fumo que avistava, subindodo outro lado e as chamas
que se desprendiam do vulcão e quepodia ver também dali, do fundo da ribeira,
lembraram-lhe comprontidão a razão da sua viagem e que importava escolher semtardar
os víveres de que necessitava e fazer-se de novo ao mar.

Cedo improvisou uma espécie de carreta para levar aquilo deque precisava até ao bote
deixado sobre o areal na base da falésia.E assim foi transportando sobretudo o que
podia ser comido semprévia cozedura: mandioca, batata doce, tomates, cenouras,
canade açúcar, ovos (duma capoeira das redondezas) e sobretudo fruta:mangas,
papaias, ananases, bananas, goiabas, romãs, e muitos cocos para substituir a água que
não pôde embarcar porque não dispunha de vasilhas. Num fogão de três pedras que
improvisou sobre um ponto abrigado da encosta do vale, assou quatro galinhas,três
patos e dois leitões. Deixou arrefecer toda essa carne eembrulhou-a cuidadosamente
em várias camadas de folhas de bananeira e guardou-a debaixo do banco da popa e do
da proa dobarco.

Trabalhou de manhã até à noite na ribeira. De vez emquando o vento soprava com força
e trazia dos locais da erupçãopesadas ondas de fumo que o obrigavam a tossir e a parar
o trabalho durante algum tempo para respirar. Não era apenas ofumo; então, o calor
também incomodava e, a certa altura, Passou a trabalhar de tronco nu. Já tinha
embarcado a carne, os frutos, os ovos e os cocos, quando se lembrou de que precisaria
de peixe e dum pouco de vinho. Andou, pois, pelas encostas de derredor à procura de
videiras, até descobrir alguns cachos deuvasnão muito maduras que esmagou
aplicadamente para recolher cm folhas de inhame transformadas em recipiente.
Ocorreu-lhe que valeria a pena levar também consigo alguma água recolhida do mesmo
modo, mas renunciou a essa ideia. Sabia que, no mar, bebia muito pouca água, ao
contrário dos outros pescadores, que conhecia, que nunca iam à pesca sem uma grande
provisão de água.
Mas ao logo desse dia de trabalho, a tristeza que o invadia era sobretudo devida à casa
destruída. Vivera toda a vida só, nessa casa, sem nenhuma mulher, o que provocava os
comentários mais diversos da parte dos amigos e companheiros, mas ter uma casa, a
que se recolhia, após o trabalho, ou onde se fechava aos domingos e nos dias e nos
dias, em que por uma razão ou outra decidia não ir à pesca, constituía para ele a
suprema riqueza, a maior satisfação da sua vida. O homem não dá amiúde um valor
desmedidoàs coisas que atestam o seu vínculo a um lugar, a uma cidade, a um país.
Porém, como crescerá ele se esse nexo é destruído, se opacto se perde e ele deve
recomeçar ou reconstruir a primitiva intensidade? Quem lhe dará de beber do mel que
outrora pendia dasua alma? Em verdade, a casa é um invólucro privilegiado dospasmos,
da autenticidade, da glória benéfica, neutra, e ninguém,pode vender impunemente a
sua saciedade. Ela aprendeu muitocedo a curar o homem e ele sabe que a salvação
conhece as suasempenas. Como se não alegrará ele com todo o sinal que ela põeem
seus receios, seu ardor, e as fábulas que ela estende pelas suasferidas?

O pescador pensa na sua casa e o seu coração é levado pelaságuas. Quando, após a
catástrofe, for preciso procurar um abrigoe construir depois uma outra casa, nenhum
esquecimento poderá reconciliá-lo com a desgraça: o que um homem acumula com os
anos à flor da pele é, em geral, insubstituível e não se paga com duas voltas do espírito,
mesmo que a carne suba muito alto e for testemunha da repetição e das dádivas: há
também óbolos que não reparam senão as quimeras ou a facilidade. A ilha era um
carvão ardente, mas o pescador preocupava-se apenas com a sua casa. E na sua
amargura, ele ardia mais do que a sua pobre ilha. Assou no fogão de três pedras alguns
peixes, que havia pescado na véspera, estripou outros e estendeu-os sobre o tampo do
banco da popa sobre uma larga folha de bananeira e decidiu descansar à sombra duma
mangueira antes de partir. Anoitecia. Pensava dormir algumas horas antes de se afastar
no bote para o mar largo. Todavia, poucos minutos depois de assim se ter deitado, uma
onda de fumo quase o sufocava e fê-lo deitaro bote ao mar. Remou durante algum
tempo para o largo, mas sem se afastar demasiado da costa. Quando escolheu o sítio,
que lhe pareceu mais adequado para lançar a âncora e passar noo tempo que durasse a
erupção, uma preocupação que o vinhaacicatando, desde a altura em que preparava as
carnes, se fez sentir mais intensamente: precisava absolutamente de arranjar algumsal.
Examinou o fundo do bote, que era bastante achatado,perguntando-se se uma fina
toalha de água do mar evaporando-secom o sol não lhe forneceria ao fim de alguns dias
o pouco desal de que precisaria. E, então, admirou-se de que, sendo isso possível,
nunca tivesse observado sinais nenhuns de sal no fundo do bote. «Talvez seja devido
ao facto de que nunca seque suficientemente uma vez que está permanentemente em
contacto com aágua ou talvez seja porque, ao fim e ao cabo, quando arrastamoso bote,
à tardinha, deixamos escorrer ou enxugar toda ou quasetoda a água do mar do fundo
do bote», admitiu.

E, assim, se debateu entre o cepticismo e a necessidade, atéque se decidiu a tentar:


«afinal não perco nada com isso, ou seforma sal ou não se forma; nada custa tentar».
De manhã,quando o sol já ia alto, uniu as duas mãos em concha, encheu-asvárias vezes
de água do mar que foi atirando em toalha para ocavername do bote, na zona mais
exposta ao sol. A verdade é quea carne assada duma das galinhas que comera sem sal,
pouco antes, ao pequeno almoço, soubera-lhe mal. E ele gostava muito decarne de
galinha.

Desse seu pequeno bote, ancorado ao largo da costa, o homem foi seguindo ao longo
dos dias o deflagrar das lavas sobre a ilha, que elas iam queimando, devorando
inexoravelmente. Dessa espécie de casa flutuante sobre o mar em que vivia, ele não
conseguia descortinar um ponto na ilha que não fumegasse, não fosse pasto de chamas,
que não estivesse coberto de fumo e de destroços.

Ao décimo dia, ele ainda não tinha conseguido obter sal com a sua espécie de salina
portátil, improvisada. Desde o terceiro dia que resolvera alimentar-se sobretudo dos
frutos que tinha embarcado. Ensaiara um ou outro dos peixes que secavam sobre a popa
do bote: «são talvez mais comestíveis assim, quase secos, sem sal», mas teve náuseas
e atribuiu-as ao facto de os peixes não estarem suficientemente secos. Decidiu adotar
outra técnica. Pescou, estripou três grandes peixes, cortou-os em largos bocadosque
deixou, mergulhados, na água do mar uma noite inteira. Demanhã estendeu-os sobre a
folha de bananeira na popa do bote.«Não estarão secos pelo menos antes duma semana,
mas ainda tenho felizmente bastantes ovos. Não percebo como é que esses estrangeiros
conseguem comer arenques crus com alho ou cebola...»

Ao décimo sexto dia, ele sentiu-se bastante alquebrado de seter abstido, durante tantos
dias, de carne na sua alimentação. Nãose resignava a comer sem sal. Mas a verdade é
que não se sentiamuito bem desde a véspera, com o sol ardente que fizera e quenesse
dia também punha reverberações tão intensas sobre o marque lhe faziam doer os olhos
e pareciam provocar-lhe tonturas.Mais duma vez ele tivera que espargir água do mar
pela cabeçae o rosto. Deixara-se adormecer com a cabeça encostada à popado bote, por
volta do meio-dia, mas o calor era tão forte queacordou pouco tempo depois. Não lhe
apetecia pescar até porquenão tinha feito outra coisa durante os doze primeiros dias e
acumulara tanto peixe que tivera que deitar ao mar parte do que pescara. Pôs-se de
cócoras à altura da borda do bote observando umbando de peixes voadores e um
cardume de tainhas que passavamem grande remoinho. Mas o calor sufocava-o.
Despiu-se, atirou-seao mar e nadou durante longos minutos. Depois, estendeu-se no
fundo do bote e fechou os olhos. Passado algum tempo (sonhava? era do sol?), viu
sobre um dos pequenos tabuleiros da salina que improvisara nas costelas do bote para
os lados da proa, uma ténue película branca de cristais finos e alvíssimos. Levantou-
se de repelão, sobressaltado. Mas com o movimento que fez para verificar se era de
facto sal, desequibibrou o barco que mergulhou grande parte da proa no mar: por pouco
que se não afundou. O sítio que pedira a sua averiguação tinha sido inundado pela água
que entrou: impossível saber se se tratava de alucinação ou, seefectivamente, se
formara algum sal com esse sol abrasadodurava havia dois dias. Sentou-se desanimado
e, para se ocupar, levantou a âncora e remou longamente em torno do mesmo
sítio,interrompendo-se, de longe em longe, apenas para sorver a águadum dos 3 cocos
que lhe restavam. Mas era difícil afastar o pensamento do sal e da sua casa. E, então,
pela segunda vez, desdeque se encontrava na sua habitação flutuante, pensou no
destinodas coisas e no valor da alegria.
A décima nona noite foi bastante agitada. O nordeste pusera-se a soprar com certa
intensidade, o mar encrespou-se e o botedançou durante muito tempo sobre as ondas.
O homem teve quelevantar a âncora e aproximar-se da costa. Mas de madrugada
foiacordado de novo pelo furor da tempestade. O vento uivava maisforte; sobre a praia
desfaziam-se ondas enormes cujo remoinho,no recuo, fazia oscilar perigosamente o
pequeno bote. Mais umavez ele teve que levantar a âncora, e durante horas remou
atravésdo mar agitado, o corpo fustigado pelo vento e fazendo face a arremetidas
sucessivas das vagas que ameaçavam fazer voltar a frágilembarcação ou afundá-la.
Cada vez que ela desaparecia na concavidade duma onda, outra onda a acometia pela
popa ou pelaproa, despejando grandes quantidades de água, pelo que ela já estava cheia
até a metade e o homem não tinha com que a esvaziar. Com a alva começou a chuviscar.
Ele sentiu-se imensamente fatigado. A meio da manhã, os chuviscos transformaram-se
em grossas bátegas de chuva que caiam pesadamente sobre o mar e ailha, que, em
breve, se pôs a fumegar mais intensamente. Choveu abundantemente durante todo o
dia. O homem não conseguia já distinguir as chamas da as chamas, a que se habituara,
sobre a ilha. A boca dovulcão parecia arrefecer sob a chuva. Não se avistavam já os
grossos rolos de fumo ou de lava desprendendo-se impetuosamente do seu cume:
apenas um ligeiro fio de fumo, rasteiro e esfarrapado, parecia tapar a cratera. Dir-se-
ia que a catástrofe chegara ao seu termo. Era o vigésimo dia.

Quando,ao crepúsculo, a chuva parou, o homem quase teve a certeza de que a erupção
tinha também terminado. O bote estava inundado de água, água do mar e da chuva, em
que o resto dos seus víveres boiavam quase todos. Não podia pensar em passar a noite
nessa casa lacustre tornada inabitável pelo temporal.Resolveu esperar a maré-baixa
para se dirigir para os lados da falésia de Diogo. Poderia talvez dormir sobre o areal,
ao pé da falésia. Ela teria protegido esse ponto da praia contra a invasão daslavas.

Ao meio da noite, quando a lua estava já escancarada nocéu, ele pôde verificar que a
maré tinha baixado bastante e remouà procura da falésia. Pôs os pés em terra e,
enquanto arrastava obote, notou, a poucos metros, sob a falésia, algo que, no
escuro,parecia um corpo jazendo no areal. Aproximou-se com cuidado.Era uma mulher.
«Morreu asfixiada com o fumo e as emanações.Mas como pôde chegar até aqui através
desta ilha incendiada?»

Então, ouviu um respirar ruidoso e apercebeu-se de que afinal a mulher não estava
morta. Abanou-a. Ela acordou, sentou-secalmamente sobre as pernas, compôs o vestido
e olhou para o homem que a interrogava com os olhos.

Como te chamas? — perguntou, por fim. E, intrigadocom um objeto que parecia um


pequeno frasco, que a mulher retirara, entretanto, de entre os seios, sob o vestido,
acrescentou:— Que tens aí?

— Chamo-me Eva — disse ela. E mostrando o frasco: — É sal. É tudo que consegui
salvar da minha casa que ardeu. Não é impossível encontrar de comer entre os
escombros da ilha, mas eu não conseguiria comer muitos dias sem sal.
E o homem deu-se conta de que já conhecia a voz e odessa mulher: ela aparecera-lhe
vinte dias antes em sonho e tinhaficado convencido (por que seria?) de que tinha
sonhado com a santa padroeira da ilha. Sentou-se ao lado dela em silêncio e sentiu que
jamais, ao longo do que lhe restasse de vida, estaria em paz com as coisas, nunca mais
a aquiescência vigiaria humildemente a sua vida. Retirou das mãos da mulher o frasco,
tomou alguns cristais de sal entre o polegar e o índice, pô-los na boca e deixou-os
derreter sob a língua. A primeira vez que provou desse modo do sal fora pelo seu
baptismo católico, aos seis anos. Masesse sal, que se desfazia lentamente em sua boca,
despertava nele uma sensação diferente: era como se ele fosse apenas um volume de
advertência viva e o sal nele penetrasse para oouvir e prestar contas à mulher que aí
estava a seu lado parasubstituir o deus a que ele acabava de renunciar. O perdão eradum
sal muito mais fraco.
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GUINÉ-BISSAU

O HÓSPEDE8
ANDREA FERNANDES

Quinta Milgostos conheceu Hospers numa festa de mandjuandade em Belém, em meados


dos anos oitenta. Gast Hospers era tocador de djembé, falava um espanhol saclatado que
aprendera nos barcos e viera acompanhar um colega de tambor para animar o evento, que
festejava a chegada do processo de liberalização. Quinta Milgostos, à maneira dela,
aderira ao processo em corpo e alma muito antes de ele ser anunciado, o que ela traduzia
numa divisa muito sua:

— A liberdade é livre, e na variedade está o gosto.

Mulher emancipada, com duas filhas crescidas e emigradas em Lisboa, Quinta Milgostos
era altamente dona do seu nariz e dos outros atributos admiráveis que Deus lhe dera. Na
festa, não obstante ter reparado logo à entrada em Hospers e no seu ar de cachorro sem
dono, no cabelo fino comprido e na mochila desconjuntada, fingiu não dar por ele, mas
mal começaram os tambores ela desatou a dançar.

Quinta tinha olhos e corpo de veludo e dançava como ninguém. Hospers foi tocando
tambor, e a certa altura já tocava só para ela, espantado por haver no mundo uma tal força
da natureza feita mulher.

Após muitas horas de dança e muitas horas de tambor, Hospers e Quinta acabaram
sentados lado a lado na mesa dos comes e bebes, a conversar e a rir. Já entrada a noite,
quando viu que a sala começava a esvaziar-se, subitamente Hospers pôs-se sério e olhou
para Quinta direto nos olhos.

— Muher, io te quiero — declarou em tom solene, tomado de paixão e achando-a a


mulher mais bela do mundo.

Quinta Milgostos achou-lhe graça e lançou uma gargalhada para o céu enquanto no íntimo
calculava os danos e perdas. Depois levantou-se e disse:

— Vamos.

8Textoextraído de “Contos do mar sem fim”: antologia afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas;
Guiné-Bissau: Ku si Mon; Angola: Chá de Caxinde, 2010, pp. 83-87.
E sem esperar pela resposta, pegou nele e levou-o para casa mais a mochila e o tambor.

Nessa noite, aconchegado entre os peitos macios de Quinta, Hospers contou-lhe que
nascera em Amsterdão no mesmo dia que os aliados desembarcaram na Normandia, o
que levou a mãe a mostra-lo com orgulho até ao seis de junho do ano seguinte como um
fetiche glorioso, Hospers exibido publicamente desde a ponta da cabeça de penugem loira
até ao interior mais profundo das fraldas feitas de retalhos de lençóis velhos. Um fetiche
ranhoso e permanentemente constipado — os tempos eram duros, a vida era difícil — que
aos dez anos vendia tulipas pelas ruas à beira dos canais e que sonhava com seu
marinheiro para correr mundo.

— Até desembarcar nas tuas pétalas macias — sussurrou deslizando o rosto pela pele de
veludo, mas Quinta não o ouviu porque adormecera antes de a história chegar a meio.

Quando Hospers acordou, poucas horas depois, viu o divino corpo de veludo enfiar-se
rapidamente num vestido afeteré e a amarrar à cabeça um lenço com as pontas para cima.

— Onde vais, tulipa minha? — perguntou enrolado nos lençóis, já a sentir a falta das
pétalas macias.

— Trabalhar dê. Ninguém me paga para ficar a dormir. — respondeu Quinta, que ganhava
a vida menos mal a vender legumes caros no mercado. — Fica à vontade até eu voltar,
logo se vê.

Hospers ficou à vontade, tão à vontade que daí a uma semana as vizinhas diziam ao vê-
lo passar:

— Aí vai ospri, o homem da Quinta Milgostos.

Hospers chegara a Dakar como tripulante do navio mercante Veracruz e no último dia do
ano tivera uma folga para descer à cidade. No café Ponty conheceu um rapaz que o
convidou a uma festa na praia em Toubab Dialaw e foi lá que descobriu os tambores,
quando assistiu ao espetáculo de oito djembés a tocarem em simultâneo a noite inteira,
rodeados de uma multidão eufórica que bebia ponche e dançava na areia à luz do luar. À
meia-noite assistiram todos juntos aos fogos de artifício coloridos lá ao fundo no porto,
abraçaram-se em todas as línguas porque era a passagem de ano e, já de madrugada os
músicos deixaram Hospers tocar djembé. Foi uma noite inesquecível. Quando acordou
estendido na areia, eram três da tarde e o navio Veracruz tinha zarpado ao meio-dia.

Sem vontade embarcar em mais barco nenhum, Hospers dedicou-se a tocar djembé em
Toubab Dialaw até que os turistas foram embora, chegaram as primeiras chuvas e um dia,
embarcado num sept-places com um colega, veio parar à Guiné.

Quinta Milgostos não esperava milagres, mas deparou-se com um prodígio. Hospers
enchia-a de atenções, levava-a a passear à noite, massajava-lhe as pernas e os ombros
cansados quando chegava do trabalho, tratava-lhe do cabelo e das unhas dos pés, tocava
tambor só para ela dançar, satisfazia-lhe os mil gostos e ainda outros que ela nem sabia
que pudessem existir, e nunca houve nada que conseguisse fazê-lo zangar. Durante um
glorioso mês e meio Quinta viveu a paixão da sua vida.

Tanto e tão bem amada foi, que um dia sentiu medo.

— Isto não pode ser. É demasiado bom para ser verdade.

E foi consultar um muru de cabeça misteriosa. O homem, que era vidente mesmo, pediu
a Quinta que se mantivesse quieta e em silêncio, e procedeu a concentrar-se de olhos
fechados. Daí a pouco começaram a vir as imagens. Primeiro viu desenhar-se na sua
mente uma figura de pele branca e cabelo liso comprido. Logo veio um sentimento de
solidão. Acompanhado de um marulhar de ondas chegou-lhe o eco de línguas estranhas e
incompreensíveis que se entrecruzavam e pareciam estender-se entre si. A seguir, em
flashes sucessivos, distinguiu mar, areia e as contorções de uma larga silhueta escura que
ora ostentava no cimo uma multidão de cabeças, ora à luz de explosões coloridas se
fragmentava em silhuetas mais pequenas, cada uma com a sua cabeça, que de volta no
escuro fundiam-se novamente na silhueta única anterior, com muitas cabeças a subirem
e a descerem.

Os elementos pareceram-lhe conclusivos.

— Um iran entrou na tua casa, um hóspede-serpente que veio do mar. Está apaixonado
por ti. Pode dar-te muita sabura, mas um dia terás que pagar — sentenciou.

No entanto, acrescentou o muru perante a expressão desvairada de Quinta, pelo fato de


ela ser inocente, não ter feito contrato algum e desconhecer a verdadeira identidade do
hóspede até este preciso momento em que ele, muru, lha revelara, nada de mau lhe
aconteceria e nada teria que vir a pagar em retribuição se se desfizesse do hóspede naquele
mesmo dia.

— Se assim fizeres, ficarás limpa como konosaba de sexta-feira — concluiu.

Quinta abandonou a consulta do muru feita em pedaços, uns de pânico e desconcerto,


outros de alerta face ao perigo e urgência da decisão. Pensar, tinha que pensar. Para dar-
se tempo, percorreu a pé os dois quilômetros de regresso, medindo os prós e os contras,
afastando as dúvidas e recebendo-as de volta como bumerangues. Por fim, exauta mas
decidida, foi com o ventre apertado que programou o engano.

Mostrando um ar de desolação que não precisou fingir, ao chegar em casa disse a Hospers
que ele devia partir imediatamente, que não podia ficar mais a viver com ela porque
acabava de receber a notícia de que uma das suas filhas adoecera em Lisboa e que as duas
chegariam no dia seguinte para ficar em casa durante o tempo que fosse necessário.
Hospers disse que o sentia muito, que compreendia a sua preocupação e que era com
imensa pena que lhe obedecia. Iria por algum tempo para Ziguinchor, talvez para
Conacry. Para evitar o desencontro deixava-lhe números de telefone e moradas onde o
poderia contatar, porque ela era o amor da sua vida e na mesma hora que Quinta o
chamasse de volta ele regressaria para ficarem juntos de novo.

Quinta Milgostos nunca o chamou, nunca mais tentou saber dele. Mordeu-se toda de
saudades durante mais de vinte anos, e o que é mais, a dúvida não parou de roer-lhe a
alma pelo resto dos seus dias.
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MOÇAMBIQUE

XICANDARINHA NA LENHA DO MUNDO9


CALANE DA SILVA

Primeiro foi a carapinha branca que despontou ali atrás do portão de zinco. Relâmpago
de emoção nos nossos olhos. Corremos.

— Mamã! E o tio Dinasse! É o tio Dinasse, mamã. A mamã, lá atrás da casa, certamente
nem ouvia. Corpo curvado para duas pranchas de madeira, rebentava as mãos e o
panarício na água e sabão, esfregando. Para brilhar, como ela sempre dizia, quando nos
mandava repetir uma selha cheia de roupa e que só pelo tempo que demorávamos sabia
se estava bem ou mal lavada.

— Tio Dinasse chegou, mamã! Tio Dinasse chegou! Agora, eu, Mário e Carlitos, os mais
novos dos cinco, já cercávamos e baralhávamos o caminhar um tanto lento e cansado do
tio Dinasse. Mamã apareceu na esquina da casa, sorriso feito e mãos gotejando sobre o
vestido molhado.

— Hoyo Hoyo Makwêju (1) — virando-se depois para nós— vão buscar uma cadeira
para o tio, depressa!Zaragata. Todos queríamos transportar a cadeira. Mamã ameaçou-
nos lá de longe debaixo da sombra da abacateira para onde encaminhara o tio Dinasse.
Mesmo ao lado, o barril de água dava mais frescura ao lugar.
Era manhã de dezembro, sábado e estava quente. Tio Dinasse tirou um lenço branco,
imaculado, limpou o rosto e sentou-se. Ao seu lado pusemos também a maleta e um
grande embrulho envolto em papel de caqui que ajudáramos a carregar logo ele entrara.
O embrulho era grande, só agora é que reparávamos bem no tamanho. Que seria?

À volta do tio e da mamã a curiosidade explodia-nos na boca. Porém, começara o


cumprimento tradicional, bem à maneira de Salamanga.O tio tinha chegado há uma
semana das minas. A doença do peito estava a piorar. Tinha até baixado ao hospital uma
vez lá no Transvaal. Ele agora já não tinha forças para continuar a trabalhar.
Também os brancos disseram que estava acabado e que era melhor ficar na terra. A
machamba, perto do rio Maputo, dava bem, problemas só com cheias e às vezes
gafanhotos. Os filhos estavam crescidos e o mais velho fora trabalhar para Durban.

9Texto extraído de “Xicandarinha na lenha do mundo”. Maputo: Associação dos Escritores


Moçambicanos, 1987. Disponível em http://contosdeaula.blogspot.com/2009/05/xicandarinha-
na-lenha-do-mundo.html. Acesso em 04/04/2018.
Rebeca, a mais nova, já estava uma mulher, ajudava a mãe em casa e no campo e qualquer
dia ia casar.

— Está aí, mana! E vocês aqui como estão? Agora era a vez de a mamã cumprimentar —
contando a sua história. O Silva, o papá, andava muito doente, mesmo nesta hora não
estava ali porque fora ao hospital tirar análises. A vida estava difícil.
Cinco filhos e o mais velho só tinha doze anos. Mas tinha sorte, gostavam de estudar. O
dinheiro da reforma do Silva é que era muito pouco e ainda por cima tinha de mandar
uma parte para Portugal. O que valia era a banca de peixe e camarão no bazar da Baixa,
que sempre dava alguma coisa. Começara também a vender ximatana (2) e xicalabiça.
Era uma grande ajuda, mas o Silva andava muito preocupado com complicações que isso
podia trazer com a polícia. Eram proibidas as nossas bebidas. Mas os fregueses bebiam
lá atrás da casa, no quintal. O pior, mesmo, era o barulho que faziam, pois do outro lado
do caniço era o muro da casa de D. Lucinda, muito bisbilhoteira e capaz de alertar a
polícia. Mas o problema principal era realmente a doença do velho.

— Se ele morrer, que vai ser de mim e das crianças? Irrequietos, não aguentávamos mais
a curiosidade. Que é que o tio tinha trazido desta vez da África do Sul? No ano passado
fora um corte de fazenda. Tínhamos feito calças para o Natal, e desta vez?
Mamã e o tio já dialogavam normalmente. Terminara o cumprimento. O tio dizia qualquer
coisa sobre casar com brancos e ainda por cima velhos e a mamã argumentava: "Se tivesse
sido lobolada por aquele Jorge que está preso, que seria de mim?"

Finalmente as mãos do tio Dinasse dirigiram-se para o grande embrulho forrado de caqui.
— Mana, desta vez trouxe uma lembrança para toda a família. Era a minha última viagem
e quis comprar uma coisa para durar muito e que fosse bastante útil a vocês todos.

Primeiro começou a aparecer uma pega enorme de cor preta, baça. Como aquilo era
grande! Que seria? Depois um corpo bojudo de metal brilhante começou a emergir
daquele papel castanho.

— Mamã! É uma xicandari...iiinha! — gritou o Carlitos, o benjamim da casa e aquele que


mais tinha assimilado o nosso luso-ronga suburbano. Era de facto uma chaleira enorme,
de alumínio pesado. Nunca tínhamos visto nada igual A mamã não se continha de
contente.

— Para quê gastar tanto dinheiro, mano?! O tio explicava que a chaleira era de mais de
10 litros. Agora não faltaria água quente para todos em casa. Até o papá que gostava de
mergulhar os pés numa bacia nunca mais pediria para aquecer mais água. A chaleira era
enorme, dava para tudo. — Esta xicandarinha não vou conseguir levantar, mamã! — dizia
o Carilitos.

— Xícandarinha, não! Chaleira, meu burro! — ripostava a mamã que, falando com o tio
Dinasse em ronga, só nos autorizava o diálogo em português e correto!
IA sombra da abacateira já tinha mudado c o papá não vinha Tio Dinasse almoçou
conosco tainha frita com arroz "fogado". Ele não bebia, só ucanhi, uma vez por ano, para
patlhar (4) com a família a fertilidade da terra das próximas colheitas.
A xicandarinha estava ali, grande, brilhante e convidativa. íamos inaugurar? O fogareiro
a carvão era muito pequeno para ela. Melhor seria arrumar três tijolos para um fogão de
lenha improvisado no chão. A lenha suja muito, mas que fazer?
A mamã concordou. O papá havia de perder aquele espetáculo do lume lambendo pela
primeira vez o corpo da chaleira gigante. Rápido, o fumo brotou forte e espesso antes da
chama. Mamã tinha os olhos húmidos.
— Se calhar o Silva baixou, Dinasse! O lume rompeu a fumarada. Gritámos de alegria.
Neste momento, a Guida e o Eduardo, que tinham estado em casa da tia Cecília,
chegaram. Mudos de emoção contemplavam, também o espetáculo. "É nossa?" "É
nossa?" — suas vozes em simultâneo bebiam o brilho e as chamas. — Não viram o pai?
— era a mamã com fumo nos olhos.

Tio Dinasse alvitrou que era muito cedo. De qualquer maneira, se baixasse, havia de
avisar. Ele, aliás, tinha de ir andando. Havia uma gasolina para a Catembe às cinco e
queria chegar a casa ainda naquele dia. O último machimbombo para Bela Vista, partia
às 18 do Guachene. Bocados de negro de fumo começaram a pincelar fortemente o corpo
brilhante e gordo da xicandarinha. Havia certamente um pouco de madeira xilati (5) no
meio da lenha para fazer aquele fumo danado.

— Fica para tomar chá, mano! A água vai ferver já, não enchemos a chaleira. Guida!! Vai
pôr a mesa do chá. Tira as chávenas novas do armário da sala, ouviste?! Raul! Vai
comprar bolos ali na pastelaria do Alto-Maé, depressa! Tio Dinasse elogiou a nossa
rapidez. Em pouco tempo chá e bolos estavam na mesa. Mas bonito, bonito de verdade,
foi quando a água da xicandarinha começou a encher o bule. A mamã agarrava a chaleira
com força. Parecia a água a sair da torneira da casa da D. Lucinda. O bule ficou cheio
num instante. Água para toda a vida, não havia dúvida. Tomámos chá, orgulhosos e
felizes. Tio Dinasse esquivava-se bondoso, aos nossos agradecimentos.

O papá chegou depois de o tio Dinasse já ter saído. — Queriam que eu baixasse hoje.
Neguei. Disseram para baixar na segunda-feira. Mas segunda é dia 22 e eu quero passar
as festas convosco. Sempre passei o Natal e Ano Novo em casa com a família. Este ano
vou passar também. O quê! Chaleira nova? Mas destas não há cá!
— Foi o tio Dinasse que trouxe, papá! Foi o tio Dinasse! Nossa cortina espessa de vozes
escondeu a angústia da mamã sacudida pelas palavras do velho. Uma xicandarinha imensa
de dor fervia dentro dela.

— Que será de mim, se este homem me morre?! De novo cheia, a xicandarinha prestava-
se ao segundo baptismo de água e fogo. Os olhos do papá e da mamã lacrimejavam por
dentro o lume da vida.— Puxa! Esta xicandarinha não fica limpa! Este fumo sujo pegou
e não sai. Era a semana do Mário na lavagem da louça. A mamã, que chegara há pouco
do bazar, comandou: — Tira cinza aí do fogareiro, junta com areia e esfrega! Quero ver
essa chaleira limpa e brilhante como veio!
Mário mordeu um olhar cinzento sobre a mamã, já agarrada às panelas do almoço.
Segunda-feira era um dia horrível! Sobretudo para o Mário, que entrava às 13 a ainda não
tinha feito os deveres. A cinza à mistura com areia escorria pelos seus dedos frenéticos.
Junto à escada de três lanços, seu lugar preferido, o grande Boby, fiel da casa há muitos
anos, assistia bonacheirão ao fervilhar doméstico. Ultimamente o Boby andava triste à
medida que a doença do papá piorava. Pressentia tudo e tinha um afeto especial pelo dono.
Já uma vez salvara o velho de um ataque dos mabandido (6), não muito longe de casa.

Mário acabou de lavar. Na base é que o negro-de-fumo não cedia, nem mesmo esfregando
com palha de coco. A xicandarinha do tio Dinasse era verdadeiramente espetacular. O
problema era lavá-la todos os dias, que, aí, a mamã não transigia.
No Natal e Ano Novo ela não parou de trabalhar. Foram as festas mais felizes que
tivemos, estas de 53 para 54. O papá até parecia que tinha melhorado. Dera-nos mesmo
dinheiro para comprarmos foguetes — ma'pachão — como nós dizíamos. À meia-noite
foi o próprio velho que iniciou o foguetório, aliás como fazia todos os anos, rebentando
a bomba de um escudo. Ribombava que nem um canhão. Mas, deste lado da cidade
inflamável, para lá dos foguetes, eram sobretudo as latas e tambores que davam som à
viragem do ano. Cedo descobrimos que a pólvora tinha a mesma cor da cinza.

Naquela noite o papá brindou de uma maneira esquisita: "Tenham juízo, este é o último
ano que estou convosco, não sei se chegarei a fevereiro".
O rosto da mamã pareceu repentinamente golpeado. Lágrimas, a que o reflexo da luz na
cortina vermelha dava cor de sangue, começaram a lavar sua face negra.
Papá aligeirou logo o ambiente contando uma anedota. Contudo, nos nossos peitos aflitos
começaram a explodir corações de pólvora, cinza e areia.
(...)

Já era a segunda vez que enchíamos a xicandarinha para o chá. Umas cinquenta pessoas
espalhavam-se pelo quintal. As mulheres em esteiras e os homens em bancos compridos
arranjados à pressa com tijolos e enormes pranchas de madeira. Servíamos chá e bolachas.
Conversava-se em voz baixa, lamentando a mamã e o nosso destino.

Era a cerimónia do sétimo dia do papá. Tal como ele previa, não chegara a fevereiro. No
dia 30 de madrugada mergulhou na grande água do silêncio. Dois dias antes da morte
ainda falou, mas zangado. D. Lucinda, a vizinha, entrara na enfermaria perguntando se
ele queria um padre para se confessar. O velho maçónico pô-la aos berros fora da sala,
para espanto de outros doentes.
Naquela madrugada de luto e quando os gritos lancinantes da mamã se transformavam
cm dolorido lamento, o velho Boby, companheiro fiel, escavou um pequeno buraco junto
à escada e deitou-se de um modo estranho. Quando ao meio da manhã queríamos sacudi-
lo do lugar vimos, com espanto, que ele não se mexia. Estava morto.

Fumo nas mangas curtas das nossas camisas. Luto rigoroso para a mamã. Tal como a
xicandarinha, fumo e fogo lambia-nos a vida. Poucos, muito poucos ajudaram a mamã
neste transe, nem mesmo seus parentes mais próximos e bem providos. Algumas honrosas
exceções como sempre. Ana Barnabé, quase tísica e muito pobre, é que trouxe qualquer
coisa para ajudar nas despesas dos primeiros dias. Tia Gumende, essa, foi inexcedível.
Também viúva e com muitos filhos, não hesitou: "Vais com as tuas crianças para minha
casa. Eu tenho de estar em Ressano Garcia e assim tomas também conta da minha
família". Estávamos acostumados à antiga casa.

— Mamã! É preciso irmos morar mais lá para baixo? Nós ajudamos a mamã a trabalhar
para pagar a renda! — nossas vozes interrogavam ansiosas e inocentes.
Macerada mas vigorosa, mamã respondeu: "É lá onde vamos vencer a vida". Nada mais
disse.

A mudança para Minkhokweni foi rápida. Júlia, a bonita Júlia, corpo para muitos amores
à noite e de dia esforçada ajudante no pilão de milho e meixoeira para xicalabiça, foi
incansável no vaivém da mudança. No último carregamento e sobre a enorme xidjumba
(7) que Júlia transportava à cabeça lá ia a nossa xicandarinha a caminho do sul das nossas
vidas. Erecta, asa e bico agressi-vos, qual pássaro metálico, a chaleira, já mais curtida
pelo fogo e fumo, ia desafiar novas lenhas sem medo dos caçadores da vida.Com mão de
ferro, a mamã guiar-nos-ia serena e irredutivelmente contra os pântanos traiçoeiros de
Minkhokweni. (...)

Rodopio grande nas areias de Minkhokweni. Nós e a vida. Ladeira enorme coberta de
pamas (8) e piteiras (9) onde, depois das chuvas de novembro, também despontavam
malmequeres. Rodopio nosso e da mamã. Madrugada nas bancas do bazar, em casa venda
de xicalabiça e ximantana até altas horas. Naquele dia dois dos mabandido mais famosos
em todo o Minkhokweni bebiam. N'Wa-manarro e Julião.

O primeiro, grande e musculoso, recém-saído do calabouço, ganhara a alcunha pelos


costumados e certeiros três socos que derrubavam qualquer gigante. O segundo, Julião de
seu nome próprio, mais baixo e magro, era esguio e rapidíssimo no contra-ataque.
Músculos de aço, cabeçada demoníaca. Chuvisca. No arejado barracão construído ao
fundo do quintal, os bebedores intrépidos provocam direta e indiretamente os dois
inevitáveis contendores. O ceptro de maior brigão e a quem as mulheres temiam e se
entregavam continuava nas mãos de NTWa-manarro.
Rodopiou um desejo de violência nas mãos nervosas dos dois mabandido. Mamã advertiu
que não queria confusão dentro de casa. Pancadaria só lá fora. Em vão. O álcool não res-
peita palavras. Entretanto, no meio do barracão, em lume brando, a xicandarinha. Agora,
o seu corpo enorme e enegrecido, apesar da cinza e areia da lavagem quotidiana, ostenta
já uma asa desengonçada pelo uso. Arquejante naquela madrugada fria de junho, a
xicandarinha ferve a sua água indiferente ao fogo humano mais forte que a circunda.

— Ha I Kine Júlio (10) — disse N'Wamanarro, quando Dindinde, viola querido em todo
o bairro, desafiava uma marrabenta, ritmo recente e alucinante a dardejar caniços acesos
de desejo nas ancas voluptuosas das mulheres. Foi o pretexto para Julião, nervoso e
expectante. Júlia era bonita. Seu corpo ainda jovem devia ser mais saboroso que massala
(11) madura. Rodopiou um impulso irresistível no peito do Julião. "Quem dança com ela
sou eu!". Com o seu braço de aço afasta a reboliça anca de Júlia que ondulava
provocantemente em N'Wamanarro. Violento, o grande combate começava.
A mamã, força e coragem memoráveis, antevê o perigo de uma morte violenta acontecida
em casa. Empurra demolidora os dois brigões, exigindo aos berros que larguem os
sinistros canivetes de ponta-e-mola. Consegue, ninguém sabe como.
Mas o combate a soco e cabeçada continua para durar. Duas joelhadas tremendas de Julião
derrubam o gigante que cai estrepitosamente sobre a nossa xicandarinha.

Mas água quente não queima corpo a ferver. Gritámos e incitámos os nossos fregueses a
ajudarem-nos a empurrar os dois belicosos para fora do quintal. Sacudidos pelo recente
exemplo da mamã, xibalos e djimizanas (12) uniram-se no esforço para os tirar.

Quando a claridade começou a despontar por detrás dos eucaliptos do "compound" de


magaízas "Mann Jorge" e já quase a 100 metros da nossa casa, N'Wamanarro caiu
desfalecido junto a uma enorme pama. Julião, bem esmurrado mas feliz, olha vitorioso
para a pequena multidão que o admira. A partir daquele momento os mabandido tinham
outro chefe.

No quintal da nossa casa, no meio do barracão, a xicandarinha não ficou incólume desta
noite de rodopio. Mais amolgada, tinha a asa solta. O funileiro ficava longe e era caro.
Arames grossos, bem virados a alicate, recolocaram a asa partida. Muleta feia, mas
funcional.

Ósculos de fogo em nós. Viajámos sonâmbulos entre o trabalho e os livros. Eduardo, o


mais velho, aleijado de uma perna por uma injeção mal dada em criança, é atacado pela
zona, nome estranho a rotular uma doença provocada por sono a menos e "stress" (13),
conforme afirmavam alguns médicos da época. Pouco depois é a mamã que cai de cama
com a mesma doença.

Agora são os nossos olhos que ardem mesmo sem o fumo subindo do fogão da
xicandarinha. Coitada da nossa chaleira! Corpo marcado, sofrido, mas sempre
imprescindível. Ah! Grande tio Dinasse, pouco durou para saborear de novo o chá da sua
oferta.

Morávamos em nova casa. Desta vez nossa, nossa mesmo, construída em frente à da
maravilhosa tia Gumende. Para a erguer, tivemos de abrir à catanada um terreno então
impenetrável de piteiras e micaias. Piores foram as cobras, bem venenosas, a disputar o
espaço. Uma até mordeu a mamã. Apavorados e estupefatos vimos a nossa velha apenas
a espremer a mão mordida e ir lavá-la com sabão. Nada lhe aconteceu. Estava vacinada
contra os ofídios. Poderosos e milenares antídotos, estas vacinas fabricadas pelos nossos
nhangas (14)!

Infalíveis contra cobras, doenças várias e até espíritos malignos da nossa ancestralidade
ronga. Depois da zona veio o tifo. Só a mamã é que apanhou e sobreviveu. Em casa a
vida não parou neste intervalo de corpos doentes. Apenas uma vez abrandámos, remoídos
de angústia. Tinham-nos roubado a xicandarinha!
Desengonçada, já velha mas sempre operacional, ela ainda causava inveja pelo seu
tamanho e resistência. Quem nos roubara?
Metade de Minkhokweni conhecia a xicandarinha. O alerta foi geral. Fregueses habituais,
vizinhos, prostitutas e mabandido prometeram averiguar. Nossos amigos das futeboladas
de fím-de-tarde, desde o Babá, mulherengo mas sempre prestável, até aos Leong, filhos
do cantineiro chinês do bairro, foram devidamente avisados.
Ao fim do terceiro dia a boa nova chegou. A xicandarinha fora finalmente descoberta.
Júlia, a incansável Júlia, rosto já a enrugar prematuramente, boca queimada a álcool e
mulala, descobriu a xicandarinha em casa de Ximatana. Assim chamado por preferir esta
bebida mais reservada a mulheres, Ximatana era estivador-carregador nas horas vagas,
pois em tempo inteiro ocupava-se especialmente da visita às "barras" (15), copo na mão,
sempre sequioso, roubando amiúde para sustentar o vício.
O pessoal queria castigá-lo severamente. Não deixámos. Dois meses sem poder beber em
nossa casa era um bom castigo. Castigo grande para Ximatana que deixaria de saborear
uma bebida melhor fabricada e, sobretudo, a possibilidade de beber fiado quando na bolsa
lhe escasseassem as quinhentas. (...)

Tal como a xicandarinha, resistente mas envelhecida, a mamã buscava mais forças no
próprio trabalho depois de cada internamento no hospital ou dos últimos recursos dos
nossos nhangas. A Guida começou a namorar às escondidas. Com um maguerre, como
diziam os vizinhos, referindo-se ao operário branco rondando o quintal e procurando
espaço para meter a mão na mulata jeitosa. Certo dia mamã não esteve com
contemplações. Avisada das investidas do intruso, mandou encher a xícandarinha.
Retirando a tampa larga quando fervia e segurando firme a chaleira pelo gargalo e base
com um saco de serapilheira sincronizou bem a passagem do conquistador. A água saltou
e ouviu-se um grito surpreso e dolorido do outro lado do quintal. Alvo atingido. A
xicandarinha mais uma vez funcionara em pleno. Também era uma arma, estava provado.

Mas de nada valeu esta guerra particular da mamã. A água quente da xicandarinha só fez
ferver mais o coração apaixonado do operário que após dois anos de muitas peripécias
acabou por casar com a mana mulata dos seus olhos.
Em casa as noites continuavam agitadas. Num sábado luarento a situação explodiu a ferro
e fogo. O quintal estava apinhado de gente bebendo. Num canto xibalos entoavam
canções e danças de Inhambane ao compasso de um bandilhado com dedos exímios por
um velho tocador. Mais próximo do zinco da casa, um gira-discos a pilha lançava para o
ar o som trepidante de um novo ritmo, a madjuba.
De repente uma patrulha a cavalo irrompe pela porta derrubando parte do quintal de
caniço. Gera-se, confusão, susto e ódio entre aquela centena de farristas bêbados de
sábado.

Nas mãos da policia montada brilham espadas. Tentam arregimentar as pessoas num
canto para depois as prender. Já passava das nove horas. Começa uma luta encarniçada
pela fuga. Homens e cavalos engalfinham-se furando o caniço à cabeçada e coice. Alguns
polícias caem dos cavalos mas, temerários, aventuram-se a pé em perseguição dos
fugitivos. Azar. Vários foram atirados de repente para o meio das piteiras.

Dentro do quintal a batalha continuava. Um dos cavalos, esporeado à toa por um polícia
enraivecido, derruba a cozinha. Os cascos ferrados da besta rebentam panelas de barro,
quebram tachos e amolgam a nossa xicandarinha. Stefana, pequeno gigante empurra-
zorras do C. F. M., escoiceado, sevícia o cavalo que o maltratou. O polícia estatela-se.
Ouvem-se dois tiros. A batalha ganha sangue. Stefana escapa de uma morte certa por
milagre, aliás, por nervosismo do polícia desvairado. Mas uma das balas ainda lhe furou
de raspão um dos braços. As pessoas, mesmo espadeiradas, não se queriam deixar
prender. De cerca de uma centena que eram, a polícia só conseguiu arrebanhar umas
quinze. Foi com elas que fomos parar à esquadra.

A situação desta vez era grave. Houvera confronto, inadmissível para os polícias.
Todavia, uma boa estrela brilhou bem na altura na esquadra da polícia montada. Já de
madrugada e quando os processos estavam a crescer na mesa dos guardas de serviço,
apareceu um velho comissário da polícia que era um antigo amigo do papá. Noutros
tempos houve qualquer favor que o pai lhe fez aquando funcionário da Alfândega,
recordou-se depois a mamã. O comissário lá nos safou de apuros em memória do velho.
A nós e aos restantes presos. Afinal... Todos trabalhavam e não tinham sido presos na rua
depois das nove...! Quando se quer, as leis moldam-se ao sabor dos chefes...

De regresso a casa, já manhã alta, o dia revelou cruamente os estragos. Quintal e cozinha
derrubados, animais mortos na capoeira escangalhada. Quando erguemos as chapas
derrubadas da cozinha os nossos olhos pararam. No meio dos tachos destruídos, a nossa
escoiceada xicandarinha mostrava bem visíveis, ao meio do seu bojo enegrecido, dois
furos de bala. Um grande silêncio cresceu em nós. Agora também as balas.

A xicandarinha só poderia ferver água com menos de metade da sua capacidade. Osculada
por outro fogo que não o da lenha, não a quisemos, contudo, pôr fora de combate.
Continuaria a funcionar. Era preciso moderar, mas não parar.
Há dois dias que as chuvas não paravam. Torrenciais, pareciam uma cortina de chumbo
líquido caindo devastadoras. Chuvas de fome, estas de dezembro a janeiro, meses que em
casa sempre pressagiaram doenças e morte. As águas, em correntes impetuosas,
juntavam-se na zona alta da Malanga e galgavam medonhas até Minkhokweni. Iniciámos
um dique protetor à volta da casa. Suor e sangue estavam ali naquelas paredes de madeira
e zinco. Não deixaríamos que fossem engolidas de qualquer maneira!

No terceiro dia a situação agravou-se. A rádio anunciou que se tratava de uma depressão
denominada "Claude". Um vazio opressivo pairava em toda a casa, agora silente de
fregueses. Aliás, desde as últimas confusões, moderámos as vendas, ao mesmo tempo que
adoptámos uma táctica de vigilância de modo a despovoarmos o quintal ao primeiro
alerta, refreando assim o ímpeto policial. Mas a água caindo violenta sobre o telhado, que
rangia aos golpes de vento, aumentava-nos a tensão pela impotência perante a natureza.

— Nhandayeyoooô...! (16) Nhandayeyoooô...! gritavam vozes pedindo socorro no meio


da noite. Também cercados, nada podíamos fazer. Já sobre o caniço do nosso quintal e
do outro lado das piteiras, as águas em fúria rasgavam a terra mole, abrindo gretas de
vários metros de profundidade, arrastando toneladas de lodo e areia para lá da ladeira,
cobrindo a Rua das Estâncias, saltando sobre o longo muro gradeado dos C.F.M.,
assoreando, inundando e inutilizando as linhas férreas. A chuva continuava a cair sobre o
nosso silêncio. A rádio falava já em grandes catástrofes no campo. Os gritos de
"Nhandayeyô! Nhandayeyô!" tolhiam-nos de angústia.

Finalmente no quinto dia as chuvas amainaram. Investigando cautelosamente, respirámos


de alívio ao ver a sapata de cimento da casa incólume, mas à beira do abismo cavado
pelas águas. Igual sorte não teve o quintal e a enorme cozinha com despensa que tínhamos
construído em substituição da outra. Desapareceram engolidas pela enxurrada na noite do
último dia da depressão tropical. A desgraça tocou a todos. Vizinhos nossos tiveram pior
sorte, perdendo teto e haveres.
Os velhos do lugar, abanando as cabeças de carapinha alva, afirmavam condoídos que era
uma grande desgraça, para logo a seguir pressagiar convictos:
— A natureza veio avisar que muito sangue e fogo vão correr na nossa terra, muita gente
vai morrer!

Solidariedade foi enorme entre os pobres e remediados de Minkhokweni na reparação dos


estragos. Porém, os tratores da Câmara Municipal apenas apareceram na Rua das
Estâncias para desassorear a estrada. Para os nossos lados só surgiram meses depois, mas
sob a pressão e mando dos abutres das negociatas com terrenos e prédios de rendimento,
unhas afiadas para novos espaços.

— Mas onde ficou a xicandarinha? — perguntou o Carlitos, já a tentar abrir um caminho


de travessia pela enorme vala pluvial. Guardada num canto da nova cozinha acabou
também por ser devorada pelas águas em convulsão. Ninguém mais a viu. Mesmo depois
de os tratores terem terraplanado toda aquela zona, ela não apareceu. As águas sepultaram
definitivamente a nossa xicandarinha no chão revolto de Minkhok-weni. Xicandarinha de
fumo e fogo, xicandarinha de água e vida, xicandarinha pássaro e arma, xicandarinha de
sangue e balas, a nossa xicandarinha libertou-se da lenha do mundo oxidando-se nas
mesmas areias onde apodrecem os homens.

Olhámo-nos apreensivos. A mamã, meditativa, apenas nos disse o mesmo que meses
depois nos lembraria quando um senhor de fato e gravata, título de propriedade numa
mão e autorização camarária noutra, nos intimava a desmantelar a nossa casa do seu
terreno.
— A xicandarinha não tinha braços nem cabeça para se defender e lutar. Nós temos, meus
filhos. Coragem. Amanhã começaremos nova vida.

Glossário:
(1) Bem vindo, irmão!
(2) bebida fermentada, tipo cerveja, que é consumida principalmente por mulheres;
(3) bebida tradicional mais alcoólica do que ximatana;
(4) invocar os mortos, pedir a benção;
(5) árvore de grande porte, cuja madeira arde com dificuldade;
(6) neologismo, baseado no português bandido e no prefixo ronga ma (que indica plural);
(7) trouxa;
(8)árvore de grande porte;
(9) variedade de cacto;
(10) vamos dançar, Júlia!
(11) Fruta saborosa e bastante aromática, de casca grossa e rija, e que tem dentro sementes
envolvidas por uma camada cremosa sumarenta;
(12) estivadores do cais;
(13) tensão;
(14) curandeiros;
(15) balcão ou estabelecimento de venda de bebidas;
(16) Socorro!
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SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

DIVINA, A MENINA DA AÇUCRINHA10


OLINDA BEJA

Conhecemo-nos há muitos anos. Mais de quinze. Ela magrinha, pequenina, franzina,


olhos vivos, gaiatos e no rosto aquele sorriso tão peculiar das nossas crianças. Trazia na
cabeça uma caixa de plástico retangular, de um branco transparente. Sentava-se no degrau
da Padaria Miguel Bernardo e sorrindo sempre abria a caixa de onde ia tirando pratos
cheios de açucarinha.

“é minha avó que faz... compra tia, compra! É barato tia...”

Foi assim o nosso primeiro encontro. Com sorrisos, alegria e a gratidão da compra. Num
gesto mágico estendeu-me a mão pequenina como ela disse-me quase em segredo
qualquer coisa que não percebi muito bem. Então ela repetiu pausadamente, mas já em
tom de ordem “tia pode dar-me um livro”?! Tia escreve, tia dá!”

Achei graça. Fiquei perplexa. Aquela criança tão magrinha, tão franzina, que depois da
escola vinha de S. Marçal a pé para a cidade para ajudar a avó estava ali a pedir-me um
livro. A pedir, não, a implorar. Agitava-se toda. Dava saltinhos qual suim-suim a debicar
uma flor, e depois arrematava numa graça “gosto muito de ler... muito!” Assim a nossa
amizade nasceu num perfeito estado de irmandade cultural. Tinha ali na minha frente uma
leitora com dez anos. Era a minha segunda alegria com crianças que dão tudo para se
deliciarem com as páginas dos livros que vamos escrevendo para elas. A primeira foi no
Príncipe em julho de noventa e três. Também ela uma menina. Eu estava na capital, Santo
António, onde iria apresentar o meu primeiro romance e meu terceiro livro a ser editado.
Como toda a gente nas ilhas, às seis da manhã já me passeava na marginal sob uma brisa
apetecível que vinha das margens do rio Papagaio e deixava aquele ar doce do tempo da
gravana. De repente, apercebi-me que uma criança me seguia, alguns passos atrás.
Vestidinho branco com folhinhos cheios de renda, sandália de tiras e a cabeça cheia de
trancinhas pequeninas que lhe davam um ar angelical num rosto que mais parecia uma
pintura. Parava quando eu parava e quando nos olhávamos sorria. Sempre sorria. Resolvi
perguntar-lhe se me queria dizer alguma coisa. E a resposta não se fez esperar “é que eu
sei que a senhora vai dar livros mas só quem tiver muita sorte é que apanha um. E vai vir
gente importante que minha mãe disse”. Diferente de Divina, mas com a mesma avidez
de ter um livro nas mãos. E teve. No final da apresentação da obra e perante as mais altas
individualidades do país, naquela grande sala da então Casa do Sporting, pedi licença e
chamei aquela menina em primeiro lugar. Após um leve burburinho fez-se silêncio depois
de eu ter contado o sucedido da manhã. A menina levantou-se. Quase a medo. Disse-me

10Texto extraído de “Chá do príncipe (Fyá Xalela)”. Lisboa: Rosa de porcelana, 2017, pp. 57-60.
o nome. Baixinho, muito baixinho. Pus-lhe a dedicatória e ela apertou o livro contra o
peito no meio de uma grande salva de palmas. Que não foi para mim mas para ela.

“vou lê-lo todo” disse-me à saída com um sorriso de vitória. Como se tivesse recebido
um tesouro.

Todos os dias Divina estava à minha espera à porta da padaria. Como quem espera um
presente do céu. Eu comprava a açucarinha e vinha a pergunta esperada “e o livro tia
traz”? Tia tem Pingo de Chuva que eu sei!”. Depois Divina ia-me contanto que vivia com
avó em S. Marçal, que a mãe tinha ido para Luanda, que gostava muito da escola, que
queria estudar muito, muito... Por isso ajudava a avó. Para continuar a escola. A escola e
o Liceu – garantiu num sorriso.

Que estudasse sempre e muito — pedi-lhe — só com estudos seria uma grande mulher.

No dia em que lhe ofereci “Pingos de Chuva”, saltou de alegria, mostrou-o aos
amiguinhos da açucrinha, cantou, rodopiou...

No ano seguinte já não a encontrei. Perguntei por ela. Os meninos da açucarinha nada me
souberam dizer. Fui a S. Marçal. Pouco ou nada consegui de verídico. Uns diziam que ela
e a avó tinham ido viver para o Cruzeiro, outros que foram para Santa Margarida para
casa de uma tia. Perdi-lhe o rasto e fiquei triste.

Ontem viajei para o Príncipe. Livros e mais livros na bagagem. Como sempre cheguei
cedo ao aeroporto. É um vício que me deleita ver quem chega e ver quem parte. Talvez
seja herança no sangue daquele gosto antigo do “Dia de São Navio” que se transformou
em “Dia de Santo Avião” em que toda a gente ia e vai ainda pendurar-se na rede mesmo
que não espere ninguém.

A fila para o check-in era enorme. Dá gosto ver nacionais e estrangeiros a viajar, uns a
procurar lá fora o paraíso que têm aqui mas que, infelizmente, não sabem, outros que o
vieram aqui procurar e partem deslumbrados por o terem encontrado.

Um grupo de polícias vigia e dá esclarecimentos. Todos jovens, elegantes, fardas azuis,


botas pretas... quando passo uma jovem polícia fala em surdina com os colegas que me
olham e me cumprimentam. Correspondo e a jovem dirige-se a mim com um sorriso
rasgado como quem encontra um parente há muito procurado. Há na realidade uma
alegria indizível no seu rosto que eu não percebo bem mais quando me diz numa euforia

“Tia vê... estudei muito muito como tia dizia, fiz 12º ano e entrei para a Polícia... Trabalho
aqui no aeroporto!”

Fiquei perplexa, abri-lhe os braços e os nossos olhos encheram-se de lágrimas. Era ela,
Divina, a menina da açucrinha, a menina que eu perdera de vista e agora reencontrava.
Por um acaso do destino. Contou-me que se mudou com a avó para a Madalena mas
voltou a São Marçal para acabar os estudos no Liceu. Trabalhou muito, estudou até de
noite, vendeu doce, fruta, fez muito sacrifício mas conseguiu.

“Trabalhei muito tia... muito! Foi dimais”!

Ainda vive em São Marçal, disse-me, e é mãe de um rapazinho. E guarda religiosamente


o livro “Pingos de chuva”.

“Está lá tia... no armário do meu quarto! Quando me apetece ler vou buscá-lo e fico a
saber nossa História!”

Antes de entrar na sala de embarque trocamos contatos, trocamos abraços, promessas de


mais reencontros. Mas que serão regados com vinho de palma e sumos da terra... só da
terra! Em troca prometi-lhe todos os meus livros! Mais beijos, mais abraços, mais
sorrisos...

Tal como a menina do Príncipe que hoje, mulher feita, é figura de destaque no mundo da
Literatura e no mundo da moda, também Divina preencheu o meu orgulho de ir
espalhando amor e tecendo laços de cultura pelos caminhos insulares da minha vida
dupla.

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