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ARTIGO ORIGINAL

UM OLHAR SOBRE A AUTONOMIA:


PERCEPÇÕES DE ENFERMEIRAS SOBRE
SUAS PRÁTICAS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA
A LOOK AT AUTONOMY: NURSES’ PERCEPTIONS ABOUT THEIR PRACTICES IN PRIMARY CARE
UNA MIRADA A LA AUTONOMÍA: PERCEPCIONES DE LOS ENFERMEROS SOBRE SUS PRÁCTICAS EN LA ATENCIÓN
PRIMARIA
Welington Serra Lazarini1 (https://orcid.org/0000-0003-2798-7223)
Maira Ardisson Doriguetto1 (https://orcid.org/0000-0002-8431-8694)
Luiza Santos Busatto1 (https://orcid.org/0000-0002-7394-1528)
Gerson Luiz Marinho2 (https://orcid.org/0000-0002-2430-3896)
Sheila Aparecida Ferreira Lachtim3 (https://orcid.org/0000-0002-3323-5776)
Francisco Carlos Félix Lana3 (https://orcid.org/0000-0001-9043-3181)
Ana Lucia de Moraes Horta4 (https://orcid.org/0000-0001-5643-3321)

Descritores
Autonomia profissional; Atenção RESUMO
Objetivo: Analisar a percepção de enfermeiras sobre a autonomia no exercício de suas práticas no contexto da atenção
primária à saúde; Enfermagem de
primária à saúde.
atenção primária; Enfermeiras de Métodos: Estudo descritivo de abordagem qualitativa que analisou 108 entrevistas realizadas com enfermeiras(os)
saúde da família das quatro capitais da região sudeste do Brasil. As entrevistas, guiadas por roteiro semiestruturado, foram gravadas e
transcritas. Os dados produzidos foram tratados e explorados com auxílio do software NVIVO®.
Descriptors Resultados: A maior parte das participantes eram mulheres, brancas, residiam na mesma cidade onde trabalham, graduaram-
Professional autonomy; Primary se em instituições privadas. Foram organizadas duas categorias: repercussões da autonomia e seus desdobramentos para
a resolutividade das necessidades em saúde dos usuários; e (des)conhecimento sobre a regulamentação das práticas da
health care; Primary care nursing;
enfermeira: desafios para a autonomia.
Family nurse practitioners Conclusão: As enfermeiras compreendem a importância da autonomia para suas práticas, mas enfrentam interferências
no cotidiano do trabalho, tanto por parte da gestão, da estrutura dos serviços ou da necessidade do uso de protocolos que
Descriptores garantam o exercício de sua atividade profissional de modo autônomo.
Autonomía profesional; Atención
primaria de salud; Enfermería de ABSTRACT
Objective: To analyze nurses’ perception of autonomy to exercise their practices in the context of primary health care.
atención primaria; Enfermeras de Methods: A descriptive study with a qualitative approach that analyzed 108 interviews carried out with nurses from the
familia four capitals of the southeastern region of Brazil. The interviews, guided by a semi-structured script, were recorded and
transcribed. The data produced were processed and explored with the help of the NVIVO® software.
Submetido Results: Most of the participants were women, white, lived in the same city where they work, and graduated from private
20 de agosto de 2022 institutions. Two categories were organized: repercussions of autonomy and its consequences for solving users’ health
needs; and (lack of) knowledge about the regulation of nursing practices: challenges for autonomy.
Aceito Conclusion: Nurses understand the importance of autonomy for their practices, but they face interference in their daily
31 de março de 2023 work, either by management, the structure of services or the need for protocols that guarantee the exercise of their
professional activity.
Conflitos de interesse:
nada a declarar. RESUMEN
Objetivo: Analizar la percepción de autonomía de los enfermeros para ejercer sus prácticas en el contexto de la atención
Autor Correspondente
primaria de salud.
Welington Serra Lazarini
Métodos: Estudio descriptivo con enfoque cualitativo que analizó 108 entrevistas realizadas con enfermeros de las
E-mail: welingtonsl@hotmail.com
cuatro capitales de la región sureste de Brasil. Las entrevistas, guiadas por un guión semiestructurado, fueron grabadas y
Editor Associado (Avaliação pelos pares): transcritas. Los datos producidos fueron procesados y explorados con la ayuda del software NVIVO®.
Ana Lúcia Queiroz Bezerra Resultados: La mayoría de los participantes eran mujeres, de raza blanca, vivían en la misma ciudad donde trabajan y
(https://orcid.org/0000-0002-6439-9829) egresaron de instituciones privadas. Se organizaron dos categorías: repercusiones de la autonomía y sus consecuencias
Escola de Enfermagem, Universidade para la solución de las necesidades de salud de los usuarios; y (falta de) conocimiento sobre la regulación de las prácticas
Federal de Goiás. Goiânia, GO, Brasil de enfermería: desafíos para la autonomía.
Conclusión: Los enfermeros comprenden la importancia de la autonomía para sus prácticas, pero enfrentan interferencias
en su trabajo diario, ya sea por parte de la dirección, la estructura de los servicios o la necesidad de protocolos que
garanticen el ejercicio de su actividad profesional.

1
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.
2
Escola de Enfermagem Ana Nery, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
3
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
4
Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Como citar:
Lazarini WS, Doriguetto MA, Busatto LS, Marinho GL, Lachtim SA, Lana FC, et al. Um olhar sobre a autonomia:
percepções de enfermeiras sobre suas práticas na atenção primária. Enferm Foco. 2024;15(Supl 1):e-202407SUPL1.

DOI: https://doi.org/10.21675/2357-707X.2024.v15.e-202407SUPL1

Enferm Foco. 2024;15(Supl 1):e-202407SUPL1 1


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Lazarini WS, Doriguetto MA, Busatto LS, Marinho GL, Lachtim SA, Lana FC, et al.

INTRODUÇÃO À luz desse contexto, este estudo tem por objetivo ana-
A Atenção Primária à Saúde (APS) destaca-se no âmbito do lisar a percepção de enfermeiras sobre a autonomia no
Sistema Único de Saúde por ser considerada a coordena- exercício de suas práticas no contexto da atenção primária
dora do cuidado no funcionamento das Redes de Atenção à saúde.
e, portanto, o contato preferencial dos usuários.(1) Seus
serviços caracterizam-se por um conjunto de ações no MÉTODOS
âmbito individual e coletivo, que abrangem a promoção e a Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo e explora-
proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, tório, que é parte da pesquisa multicêntrica denominada
o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a ma- “Práticas de Enfermagem no Contexto da Atenção Primária
nutenção da saúde. Nesse sentido, o bom funcionamento
(1)
à Saúde (APS): Estudo Nacional de Métodos Mistos”, pro-
da APS objetiva superar o modelo hegemônico e promover posta pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e
uma assistência ampliada e integral à população. (2,3)
conduzida pelo Núcleo de Estudos de Saúde Pública/
Dentre os diversos campos profissionais que atuam Universidade de Brasília (NESP/UnB).(11)
no cotidiano dos serviços de saúde, a Enfermagem, repre- O cenário examinado neste artigo contemplou as quatro
senta hoje mais de 50% da força de trabalho do Sistema capitais da região sudeste do Brasil, a saber: Belo Horizonte
Único de Saúde, configurando-se assim em um dos pilares (MG), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Vitória (ES). No
para a prática do cuidado. Em virtude das competências e Total, foram entrevistadas 27 enfermeiras de cada cidade,
habilidades desenvolvidas, as ações da enfermeira veem totalizando 108 participantes do estudo.
sendo decisivas no processo saúde-doença-cuidado ao Para participar da pesquisa, as enfermeiras deveriam
considerar os determinantes sociais da saúde, iniquidades ter, no mínimo, três anos de atuação na APS, desenvolven-
e condições crônicas, entre outros fatores que permeiam do atividades nesse âmbito, quer seja na assistência, como
o bem-estar da população. (4)
Para tal, destaca-se o perfil nas equipes de saúde da família ou unidas básicas, quer seja
de vínculo e aproximação da enfermeira com a comunidade na gestão dos serviços. Não participaram da seleção en-
em que está inserida pelo trabalho na APS, um diferencial fermeiras preceptoras, sem vínculo com o serviço ou que
na busca pelo cuidado integral e um atendimento mais per- estivessem de licença.
sonalizado ao indivíduo. (5)
Como o período da coleta de dados ocorreu entre no-
A busca por uma APS mais qualificada e resolutiva, com vembro de 2020 a junho de 2021, a maior parte das entre-
foco na equidade e integralidade, vem abrindo espaço para vistas ocorreu de modo remoto, por meio de videoconfe-
a discussão acerca da autonomia da enfermeira. A auto- rência, em virtude da epidemia da covid-19. Desse modo, os
nomia profissional pressupõe a liberdade para tomada de pesquisadores entravam em contato com as enfermeiras
decisões independentes, pautadas em evidências científi- que atuavam na atenção primária dos referidos municípios,
cas, tanto no campo específico como no multiprofissional. a partir da listagem com os nomes e os contatos telefôni-
Além da dimensão técnica, envolve também a política, rela- cos disponibilizados pelas secretarias municipais de saúde.
cionada às relações de poder entre grupos profissionais. (6,7)
Nesse momento, os objetivos do estudo eram apresen-
Na prática, a autonomia da enfermeira é regulamentada tados aos profissionais e, caso eles estivessem de acordo,
por dispositivos legais nos âmbitos federal, estadual e mu- era feito um agendamento para a entrevista, considerando
nicipal, à exemplo da Política Nacional de Atenção Básica, o melhor dia e horário para o entrevistado.
protocolos, Lei 7.498/86 que regulamenta o exercício pro-
(8)
No dia da entrevista, o Termo de Consentimento Livre
fissional, Resoluções do Conselho Federal de Enfermagem e Esclarecido era lido antes de se proceder a conversa.
(Cofen), entre outros. Entretanto, ainda existem conflitos Confirmado o aceite, as enfermeiras eram orientadas so-
no que diz respeito ao trabalho prescrito na teoria e o re- bre a dinâmica e estrutura do roteiro. O primeiro bloco era
alizado na prática da enfermeira, motivados principalmen- composto por questões a respeito de caracterização socio-
te por divergências históricas entre o modelo assistencial econômica (Bloco I) e formação profissional (Bloco II). Em
biomédico e o processo de trabalho realizado pelas profis- seguida, as questões semiestruturadas versavam sobre as
sionais.(6) Sendo assim, a criação e implantação de proto- práticas das enfermeiras que atuam na APS. Concomitante
colos, ou outros dispositivos legais, no cotidiano de traba- ao processo de coleta de dados foram ocorrendo as trans-
lho da enfermeira vem se mostrando como caminho para crições das entrevistas, processo esse que contou com
proporcionar maior autonomia e segurança profissional na treinamento prévio dos componentes da equipe, como alu-
assistência.(9,10) nos de graduação, pós-graduandos e professores.

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Para o processo de categorização dos dados utilizou-se fazer que tá dentro da minha… do meu dever profissio-
o software NVIVO . A categoria “Autonomia”, contou ain-
®
nal e o que não está, então eu, já tem tempo que não
da com duas subcategorias, sendo elas “Resolutividade” e trabalho mais com essa de eu fazer e outro assinar não,
“Regulamentação”. A fim de preservar a identidade das par- tá dentro da minha competência do meu atendimento
ticipantes da pesquisa, elas serão identificadas de acordo que eu vou fazer, o que não está eu vou passar para
com as iniciais “ENF” (enfermeira), seguido de “SE” (sudeste) o médico fazer, sobre a competência dele ou qualquer
e somado a uma numeração (ordem de entrevista). outro profissional, né? Isso hoje pra mim tá muito cla-
Destaca-se que para a redação deste artigo foram con- ro. (ENF_SE_01)
siderados os Critérios Consolidados para Relatar Pesquisa [...] têm determinadas atividades que depende só
Qualitativa (COREQ). da gente mesmo... igual preventivo, eu não dependo de
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa nenhum profissional... eu planejo a minha agenda em
da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de cima do que eu vejo como prioridade, mulheres que
Brasília, sob CAAE: 20814619.2.0000.0030. têm muito tempo que não fazem, e aí, abro a agenda
e atendo... agora, uma puericultura, alguns atendimen-
RESULTADOS tos de puericultura a gente depende porque algumas
Das 108 profissionais que participaram do estudo, cerca de coisas, alguns exames, a gente não pode passar, algu-
88% são do sexo feminino, confirmando o perfil majorita- mas vitaminas, a gente não pode passar, então, a gente
riamente feminino que compõe o campo da enfermagem. acaba ficando amarrado... no pré-natal, a gente abre
Em relação a raça/cor, 78,7% da amostra se identificou o pré-natal, mas você não pode pedir uma ultrassom
como branca ou parda, ao passo que 19,4% se referiram de primeira vez, então, você também fica amarrado ao
como pretas. Sobre a renda familiar, mais da metade das profissional médico. (ENF_SE_116)
entrevistadas (52,8%), informaram que ganham mais de 9
mil reais mensais. No tocante a formação, 53,7% das parti- Outro elemento que atravessa diretamente a autono-
cipantes mencionaram que se graduaram em enfermagem mia na percepção das entrevistadas é a estrutura da rede
no ensino privado. Quanto ao tempo de atuação na atenção de serviços. Segundo as enfermeiras, serviços mais estru-
primária a saúde, a média foi de 13 anos de atuação, ao pas- turados contribuem para a autonomia e, consequentemen-
so que o tempo médio de lotação na unidade de saúde atual te, são estruturantes para a resolutividade.
é de 7 anos de inserção.
A partir da caracterização das participantes da pes- O laboratório da prefeitura é excepcional, ele faz mil
quisa, foram desenvolvidas 2 categorias de análise: (1) exames e o enfermeiro solicita os exames discutidos em
Repercussões da autonomia e seus desdobramentos para atendimentos compartilhados, os exames são realiza-
a resolutividade das necessidades em saúde dos usuários; dos com todo o respeito em nome do enfermeiro, sabe?
e (2) (Des) Conhecimento sobre a regulamentação das prá- (ENF_SE_03)
ticas da enfermeira: desafios para a autonomia. Então, nossa agenda hoje é planejada pela direto-
ra... a gente consegue fazer algumas intervenções, eu
1. Repercussões da autonomia e seus consigo com diálogo fazer algumas intervenções e al-
desdobramentos para a resolutividade das gumas modificações, mas o planejamento vem da dire-
necessidades em saúde dos usuários tora, mas a gente tem a possibilidade de intervir nesse
A análise das entrevistas mostrou que os participantes do planejamento. (ENF_SE_120)
estudo entendem que, o exercício da autonomia, ou a falta
dela, possui relação direta com a resolutividade dos pro- Em relação ao público atendido, os dados demonstra-
blemas de emanam no cotidiano dos serviços. Nesse senti- ram que as enfermeiras se sentem com mais autonomia
do, algumas falas apontam que a autonomia é circunscrita durante a abordagem aos pacientes que apresentam con-
a algumas situações específica e que a sua realização ou dições crônicas ou grupos específicos de acompanhamen-
não está ancorada na compreensão das suas atribuições to no território, do que em relação aos pacientes acometi-
profissionais. dos com alguma queixa aguda.

[...] hoje a gente tem um sistema que faz tudo, e as- [...] o atendimento ao agudo o tempo todo eu pre-
sim...eu não tenho muita propriedade do que eu posso ciso do médico, na maior parte das vezes eu preciso,

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até porque… a gente perdeu um pouco de autonomia de Na saúde da mulher por exemplo a gente faz consul-
liberar o paciente com queixa sem uma avaliação mé- ta de pré-natal, então a gente solicita alguns exames,
dica. Então no atendimento de demanda espontânea prescreve sulfato ferroso, prescreve ácido fólico con-
ao paciente com uma queixa aguda, é… eu faço nor- forme protocolo, no atendimento às pessoas com feri-
malmente a primeira escuta, eu verifico sinais vitais, das a gente prescreve as coberturas especiais, então
colho as informações ali e tal, discuto com o médico conforme o protocolo nos respalda em relação a isso,
e ele toma a conduta ou ele atende novamente o pa- as consultas com hipertenso e diabéticos também, a
ciente, ele toma conduta individual com ele mesmo, lá gente pode solicitar alguns exames, então a gente se-
no consultório ou então a gente faz esse atendimento gue o protocolo mesmo municipal, em relação a essas
compartilhado. (ENF_SE_03) questões. (ENF_SE_75)
[...] Existem as consultas que são agendadas, que é [...] a gente faz de acordo com os protocolos da pre-
a consulta que eu agendo para mim, então o pacien- feitura, algumas solicitações de sorologia, testes rápi-
te vem e aqui, por exemplo, vem para a coleta de pre- dos também a gente tem autonomia para fazer, para
ventivo, quem vai coletar o preventivo sou eu, eu que IST, ou detectar uma gravidez. Pode solicitar para o
vou fazer a requisição, vou fazer a coleta, vou dar os diabético glicohemoglobina, a glicose em jejum, hemo-
encaminhamentos necessários, vou fazer toda a par- grama, é... a sorologia já falei, né? No pré-natal também
te dele, vou resolver a vida dele. É triste, os que vêm a gente faz a solicitação desses exames, para a mulher
chamados demandas espontâneas, do acolhimento. a gente tem autonomia para pedir a mamografia. E no
Nem todos que vêm do acolhimento nós conseguimos pré-natal a gente tem autonomia para pedir o ultras-
resolver sozinhos, principalmente, relacionados aos som, são esses. (ENF_SE_79)
anticoncepcionais, atrasos, tem anticoncepcional que [...] eu como enfermeira da Estratégia de Saúde da
o enfermeiro não autorize, não prescreve. Então assim, Família no município de Vitória eu considero sim que eu
na demanda do acolhimento tem muitas coisas que de- tenho autonomia porque, além das portarias e resolu-
pende de outros profissionais. (ENF_SE_135) ções do próprio conselho que me respaldam ao exer-
cício legal da minha profissão, o município de Vitória
Por fim, as enfermeiras relataram ainda que a construção também tem protocolos e leis, portarias que endossam
da autonomia é prejudicada por meio de diversos agentes ex- essa prática. (ENF_SE_110)
ternos, que, em alguma medida, interferem nesse processo.
Todavia, as participantes do estudo referem que há um
[...] sempre tive muita autonomia em tudo que eu fiz descompasso entre o que está posto no exercício profis-
quando você tem conhecimento, né? você consegue sional e a ausência de protocolos locais que ratifiquem as
deslanchar o seu trabalho, nunca tive dificuldade em ações. Ou seja, determinadas atividades que não possuem
relação a autonomia não...Sabe? nos meus atendimen- normativa estabelecida em protocolo local, passam a não
tos, nas minhas orientações. Hoje, assim um pouco me- ser realizadas, como determinados procedimentos, ou soli-
nos, porque eu dependo de outras, porque dependo de citados, no caso de exames para determinados grupos.
espaço, né? Eu dependo de outras questões… que me
limita muito. (ENF_SE_74) [...] tem coisas que sai dos protocolos os atendimen-
tos de protocolo, né? Porque a gente não vê só o pa-
2. (Des) Conhecimento sobre a regulamentação das ciente como protocolo a gente vê paciente humaniza-
práticas da enfermeira: desafios para a autonomia do, cuidado. Então assim...protocolo fala às vezes que
No que tange a regulamentação das práticas da enfermei- a gente tem que fazer uma visita domiciliar por semana,
ra, muitas participantes do estudo mencionaram o uso de às vezes a gente faz seis, e a gente precisa de acolher
protocolos, sejam eles municipais, estaduais, federais, ou esse paciente também no seu domicílio, então às vezes
mesmo aqueles produzidos pelas entidades que represen- o protocolo fala que eu tenho que atender duas crian-
tam a categoria, como respaldo técnico para subsidiar as ças de bolsa família tem dia que eu atendo 12, eu sei
suas atividades. que a mãe não pode levar que ela trabalha o único dia
que ela pode é naquele dia, então eu acolho todo mun-
Sim, a gente segue o protocolo municipal. Tem o pro- do acolhe, por que? Senão eu perco aquela mãe [...].
tocolo que nos respalda em relação a essas questões. (ENF_SE_81)

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DISCUSSÃO na atenção primária, muitos serviços ainda reproduzem


O trabalho desenvolvido pela enfermeira é de fundamental essa lógica de pensar sua organização e processo de traba-
importância para viabilização de uma atenção primária for- lho em grupos de risco, centrado em queixas pontuais dos
te e robusta. Todavia, faz-se necessário que as práticas de- usuários e focados na doença.(15) Esse arcabouço estrutural
senvolvidas pela categoria sejam realizadas em condições despreza a integralidade das ações e não pauta sua condu-
condizentes a qualidade do serviço que se espera. (12)
ta a partir do diagnóstico do território.
Nesse sentido, os relatos obtidos nesse estudo reve- O resultado disso aponta para um subaproveitamento
lam que as enfermeiras compreendem que ter autonomia dos profissionais de saúde, entre elas a enfermagem, e a
para a realização das suas atividades é extremamente ne- baixa resolutividades dos problemas da população.(16) Além
cessário, uma vez que, em tese, a organização do serviço disso, reduz o rol de atividades das enfermeiras há algumas
nesse nível de atenção deveria ser estruturada a partir das atividades, que se reproduzem nas agendas semanalmente,
necessidades em saúde dos sujeitos. Logo, enfermeiros e até mesmo nos mesmos dias e horários, não abrindo espa-
enfermeiras também devem ter autonomia para realizar os ço a outras possibilidades e estratégias de cuidado, como
seus planejamentos, agenda semanal, visitas domiciliares, é o caso do telemonitoramento, largamente utilizado em
prescrição de medicamentos e exames, dentre tantas ou- vários serviços do país durante o período mais crítico da
tras atividades. (13)
pandemia da Covid-19.(17)
Esse rol de ações que compõe o processo de traba- Outro dado importante observado no estudo foram as
lho da enfermeira, segundo as participantes do estudo, só inúmeras menções aos protocolos, sejam eles de enfer-
pode ser desenvolvido porque está posto na lei que garante magem ou não, quer sejam da própria secretaria de saúde
o exercício legal da profissão. Assim, apropriar-se da lei do onde estão lotados ou outras instituições reconhecidas.
exercício profissional torna-se vital para o desenvolvimen- Esses instrumentos aparecem nas falas como avalizadores
to da autonomia. da ação da enfermeira nos diversos serviços. É a partir de-
Por outro lado, os dados apontam que em muitos servi- les que as trabalhadoras se sentem aptas a realizarem ou
ços as enfermeiras possuem essa autonomia “regulada”. É não determinado procedimento.
o caso de algumas unidades em que os diretores assumem Os protocolos são instrumento potentes para os ser-
o papel de configurar a agenda dos profissionais, conforme viços de saúde. Sua construção geralmente está ancorada
os seus critérios. Tal conduta é extremamente grave, pois em outros documentos de instâncias superiores, tais como
retira do trabalhador o protagonismo sobre a sua prática, secretarias estaduais, ministério da saúde, bem como con-
relegando o mesmo a mero expectador daquilo que será sensos de sociedades científicas ou resultados de pes-
pautado pela chefia imediata. (14)
Além disso, essa atitude quisas científicas sobre o tema. O objetivo do protocolo é
colabora para a repetição da mesma agenda semanal, que orientar e padronizar algumas condutas na instituição em
não leva em conta as necessidades do território, o que re- que é proposta, utilizando uma linguagem rápida e de fácil
baixa a qualidade dos serviços prestados pela unidade. acesso.
Entre aquelas que referem ter autonomia em suas prá- Embora os protocolos sejam de grande valia, torna-se
ticas, percebe-se que, geralmente, ela está posta somente um risco pautar as ações da equipe de enfermagem so-
em alguns tipos de atendimento ou determinados grupos, mente na presença desses instrumentos, uma vez que fere
mas não integralmente em todas as atividades. As ações a autonomia dos trabalhadores. Em primeiro lugar, não há
que envolvem a saúde da mulher, como o pré-natal e a co- protocolo para reger todas as situações que emanam do
leta de preventivo, a solicitação de exames para determi- cotidiano dos serviços de saúde e que precisam da assis-
nados grupos, como hipertensos e diabéticos, a puericul- tência de enfermagem. Segundo, é a lei do exercício pro-
tura e o cuidado com as lesões de pele, são referidas pelas fissional que valida sua ação é e sobre ela que se apoio a
enfermeiras como aquelas em que a autonomia é maior. autonomia da categoria.(10)
Entretanto, em outras atividades, como o atendimento a Cabe ressaltar ainda que a análise das entrevistas mos-
usuários do serviço com queixas agudas, reclamam da “fal- trou que a estrutura dos equipamentos de saúde interfere
ta de autonomia” para um atendimento mais efetivo. de modo relevante na autonomia das práticas de enfer-
Esse quadro justifica-se historicamente pelo enfoque magem. Enfermeiras alocadas cuja em unidades de saúde
prioritário em ações de saúde pública dirigidas para o ciclo com estrutura precarizada e/ou limitação de espaço para
materno-infantil. Assim, mesmo com o advento do Sistema o desenvolvimento das suas ações, relataram sentir menos
Único de Saúde e o reordenamento da assistência centrada autonomia em seu processo de trabalho.

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Essa realidade que se apresenta em vários pontos do da pesquisa exaltam a importância da autonomia nas suas
país denuncia o projeto de sucateamento dos serviços de ações, ancoradas no que está posto na legislação.
saúde. A destruição das políticas sociais, particularmente Entretanto, alguns entraves têm dificultado o desenvolvi-
de saúde nesse caso, traz consequências nocivas para toda mento dessa autonomia. A falta de governabilidade sobre a
população brasileira, ao negar o acesso a um sistema de própria atividade, a reprodução de uma agenda semanal não
qualidade. (18)
Além ferir a autonomia das profissionais de sintonizada com a realidade do território, a restrição de al-
saúde, entre elas as enfermeiras, o descaso com as instala- gumas práticas ao que está posto nos protocolos e as con-
ções dos serviços públicos de saúde, sobretudo na atenção dições estruturais dos equipamentos, são alguns dos fatores
primária, submetem os trabalhadores a locais insalubres, que tem interferido negativamente no potencial dos trabalhos
com poucos recursos, o que contribui para a desmotiva- de enfermeiros e enfermeiras que atuam na atenção primária.
ção dos profissionais e interfere na qualidade dos serviços Desse modo, faz-se necessário ampliar o debate sobre
prestados. (19-21)
as condições de trabalho das enfermeiras e enfermeiros
Em virtude do contexto da pandemia de Covid-19, a que atuam na atenção primaria no país, de modo a poten-
maior parte das entrevistas foram realizadas de modo re- cializar sua autonomia, qualificar suas práticas e contribuir
moto. Ainda que esta modalidade de coleta seja permitida, com o fortalecimento e robustez desse nível de atenção e,
entende-se que o momento presencial é fundamental para consequentemente, com o Sistema Único de Saúde.
capturar situações da realidade em um dado momento his-
tórico, que são relevantes para o objetivo da pesquisa. Agradecimento
A pesquisa mostrou que o desenvolvimento da autonomia A pesquisa multicêntrica “Práticas de Enfermagem no
é fundamental para o exercício das práticas da enfermeira na Contexto da Atenção Primária à Saúde (APS): Estudo Nacional
atenção primária. Todavia, existem muitos atravessamentos de Métodos Mistos” foi financiada pelo Conselho Federal de
que cerceiam esse processo, como interferência da gestão, Enfermagem (Cofen), com gestão de recursos pela Fundação
as instalações dos serviços de saúde e a necessidade de pro- de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (FINATEC).
tocolos para avalizarem ações que já estão regulamentadas
na lei do exercício profissional e conferem o direito ao profis- Contribuições
sional de enfermagem de exercê-las. Concepção e/ou desenho do estudo: Marinho GL, Lachtim
SAF, Lana FCF, Horta ALM; Coleta, análise e interpreta-
CONCLUSÃO ção dos dados: Lazarini WS, Doriguetto MA, Busatto LS;
Esse estudo buscou compreender as percepções das en- Redação e/ou revisão crítica do manuscrito: Lazarini WS,
fermeiras que atuam na atenção primária da região su- Doriguetto MA, Busatto LS; Aprovação da versão final a ser
deste do país, sobre a autonomia para a realização de suas publicada: Lazarini WS, Doriguetto MA, Busatto LS, Marinho
práticas. Os resultaram mostraram que as participantes GL, Lachtim SAF, Lana FCF, Horta ALM.

REFERÊNCIAS

1. Mendonça MH, Matta GC, Gondim R, Giovanella L. Atenção primária 6. Pereira JG, Oliveira MA. Autonomia da enfermeira na Atenção
à saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Fiocruz; Primária: das práticas colaborativas à prática avançada. Acta Paul
2018. Enferm. 2018;31(6):627-35.

2. Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, 7. Melo CM, Florentino TC, Mascarenhas NB, Macedo KS, Silva MC,
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reflexões. Esc Anna Nery. 2016;20(4):e20160085.
3. Sarti TD, Lazarini WS, Fontenelle LF, Almeida AP. Organização da
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