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Ivone Salgado e Diógenes Sousa | A Companhia Antarctica Paulista em São Paulo: memória e patrimônio edificado

A Companhia Antarctica Paulista em São


Paulo: memória e patrimônio edificado
The Company Antarctica Paulista in São Paulo:
memory and built heritage
Ivone Salgado* e Diógenes Sousa**

Resumo Abstract
O presente artigo tem por objetivo apresentar uma The purpose of this article is to present a dis-
discussão sobre patrimônio industrial e memória, cussion on industrial heritage, memory and
com estudo de caso de uma cervejaria, a Com- preservation, with a case study of a brewery,
panhia Antarctica Paulista, que ainda hoje guarda Companhia Antarctica Paulista, which still
um patrimônio edificado na cidade de São Pau- houses a patrimony built in the city of São Pau-
lo. No final do século XIX, um complexo fabril foi lo. At the end of the 19th century, a manufac-
montado no bairro da Mooca, cujos remanescen- turing complex was set up in the Mooca neigh-
tes foram catalogados e tombados pelo Conselho borhood, its remnants were already cataloged
Municipal de Preservação do Patrimônio Históri- and registered by the CONPRESP, in 2007, in a
co, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo process opened in 2007 and finalized in 2016,
- CONPRESP, em um processo aberto em 2007 from a survey of remaining building equity. This
*Arquiteta pela FAU USP 1998 e entre 2004 a 2007. e finalizado em 2016, a partir de um levantamento beverage factory played an important role in
(1979); Doutora pelo Insti- Coordenadora de Área (Ar-
do patrimônio edificado. Essa fábrica de bebidas the urbanization of the city of São Paulo, in a
desempenhou um papel importante na urbaniza- dimension that goes beyond the limits of the
tut d’Urbanisme de Paris – quitetura e Urbanismo) da
ção da capital paulista, em uma dimensão que ex- factory itself. The analysis of the memory of an
Université Paris XII – (1985); Diretoria Científica da FA- trapola os próprios limites da fábrica. A análise da employee of this factory allows to understand
Pós-Doutorado no Istituto PESP entre 2001 e 2008 memória de um funcionário dessa fábrica permite the daily life of the factory life and can help in
Universitario di Architectu- **Mestre em Urbanismo, Pon- compreender o cotidiano da vida fabril e pode au- the valuation of this heritage.
ra di Venezia – IUAV (2008). tificia Universidade Catolica de xiliar na valoração deste patrimônio.
Professora Titular da Pós- Campinas (2017). Historiador Keywords: Industrial Heritage. Brewery industry.
Graduação em Urbanismo – pela UNIFESP – EFLCH (2014), Palavras-chave: Patrimônio industrial. Indústria Urbanization. Industrialization. Industrial memory.
PUC Campinas desde 1997, Mestrado em Urbanismo pela cervejeira. Urbanização. Industrialização. Memó-
coordenadora entre 1997 a PUC Campinas (2017) ria industrial.

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Introdução

O estudo da industrialização cervejeira na da Penha. (SIRIANI, 2003, p.128-129). A instala-


América Latina, com destaque para a Argentina e ção da fábrica da família Boemer data de 1873,
o Brasil, ocorrido na virada do século XIX para o sendo que a matéria prima para a produção da
XX, insere-se no contexto do processo de urbani- cerveja era adquirida de terceiros, de outra fábri-
zação e revela a ligação intrínseca entre indústria, ca existente também no bairro da Penha.
ferrovia e imigração.
Os remanescentes do complexo industrial da
A imigração alemã para a Argentina e para o Bra- Companhia Antarctica Paulista, instalado no
sil propiciou que alguns imigrantes, fomentado- bairro da Mooca, em São Paulo, a partir de 1892,
res de pequenas indústrias de cerveja, instalas- contemplam uma discussão sobre história, me-
sem-se nos grandes centros urbanos, como São mória e patrimônio.
Paulo e Buenos Aires, no último quartel do século
XIX, iniciando nestes centros urbanos o processo As origens de tal complexo se dão num contexto
industrial de fabricação da cerveja. temporal em que a cidade de São Paulo passava
por diversas alterações urbanísticas em meados
A partir da década de 1850, assistimos ao au- do século XIX. Entre tais alterações, a presença
mento do número de imigrantes alemães em São dos imigrantes – neste caso, os alemães - tem
Paulo, muitos destes voltados a ofícios ligados à um papel significativo na compreensão desse
indústria (SIRIANI, 2003, p.128). Entre eles, Jorge processo. Em 1868, Louis Bücher, filho de uma
Seckler, com sua tipografia e oficina de encader- família de cervejeiros alemães, instalou-se na ci-
nação; Theodoro Reichert, Bernardo Diederick- dade de São Paulo e abriu sua pequena cerveja-
sen e Libório Goldschmidt, com uma fábrica de ria utilizando-se de milho, arroz e outros cereais.
vinho; George Greiner, com uma fábrica de vidro, Anos mais tarde, em 1882, Bücher associava-se
na vila de Santo Amaro; e João e Carlos Boemer, a Joaquim Salles, proprietário de um matadouro
com uma fábrica de vinho e cerveja, na Freguesia cujo terreno ficava nas proximidades do bairro da

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Água Branca, zona oeste de São Paulo, e tinha o continuasse ativa. Uma das credoras da compa-
nome de Antarctica. nhia era a própria empresa de Zerrenner e von
Bülow, que providenciou o pagamento da dívi-
Posteriormente, surgiu a possibilidade de su- da em ações e permitiu aos dois empresários o
cesso numa nova empreitada, uma vez que Sal- controle majoritário da fábrica. Adam Ditrik von
les possuía em seu matadouro uma máquina Bülow morreu em 1923, com 80 anos, deixando
de gelo, pois permitiria a fabricação da cerveja. seu filho Carl Adolf como seu representante no
Da associação entre Bücher e Salles, surgiu em comando da empresa. Em 1929, a sociedade dos
1888, na Água Branca, a “Antarctica Paulista – Zerrenner e dos Bülow operava com importação,
Fábrica de Gelo e Cervejaria”, sob direção de bebidas e exportação de café (MARSON, 2012).
Louis Bücher (Figura 1). O primeiro anúncio da
Antarctica datava de março de 1889, no antigo Ainda nos primeiros anos de sua formação, de
jornal “A Província de São Paulo” (atual O Estado acordo com Bandeira Junior, “a Antarctica criou
Figura 1. Fachada da Antarctica Paulistano bairro da Água de São Paulo): “Cerveja Antarctica em garrafa e um parque e também uma vila operária com 24
Branca em São Paulo. Fonte: <http://acervo.estadao.com. em barril - encontra-se à venda no depósito da casas para operários e moradias para geren-
br/noticias/acervo,como-era-sao-paulo-sem-parque-antarti- fábrica à Rua Boa Vista, 50”. tes, a “Village da Antarctica”, com uma área de
ca,9339,0.htm> Acesso em: 13 out. 2016. 6000m2, artisticamente construídas, formando
Com boa localização, junto a duas estradas de um agradável e vistoso conjunto no bairro da
ferro, a Inglesa e a Sorocabana, o edifício fabril Água Branca” (BANDEIRA, 1901, p.35).
compunha um conjunto industrial com câmaras
frigorificas e espaço para o fabrico de latas, sal-
O complexo fabril da Antarctica no Bairro da
sicharia e presunto, maquinário para a produção
de gelo e, mais afastadas, escritórios e moradias Mooca
de empregados (Figura 2).
Em 1904, a Antarctica adquiriu o controle acio-
Em 1891, a Companhia Antarctica Paulista tor- nário da Cervejaria Bavaria, sua concorrente em
nou-se uma sociedade anônima com mais de São Paulo, por 3700 contos, e passou a atuar
cinquenta acionistas e capital inicial de 2245 na produção de bebidas no bairro da Mooca, na
contos de réis (SANTOS, 2004), dentre os quais também chamada Avenida Bavaria, ao mesmo
podemos citar: João Carlos Antonio Zerrenner, tempo em que firmaria com a Companhia Cer-
alemão, e Adam Ditrik von Bülow, dinamarquês. vejaria Brahma um acordo para regular e fixar
Ambos eram proprietários da exportadora e cor- os preços de venda e volume por todo o país.
Figura 2. Detalhe do mapa de São Paulo de 1905 em que é retora de café Zerrenner, Bülow e Cia., e impor- A sede da fábrica foi transferida para este bair-
possível visualizar os distritos de Água Branca, Perdizes, Pal- taram equipamentos alemães modernos para a ro, no mesmo ano, na zona leste de São Paulo,
meiras e Barra Funda, o Parque Antártica, a Fábrica de Vidros cervejaria, aumentando, assim, sua produção. permanecendo até a criação da AmBev, fruto de
Santa Marina e a Fábrica de Cerveja Antarctica, ambas servi- sua fusão com a Cervejaria Brahma, no início dos
das pelas ferrovias São Paulo Railway e Estrada de Ferro Soro- Em 1893, com a desvalorização da moeda bra- anos 2000 (Figura 3).
cabana. Fonte: <http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_de-
sileira, a Antarctica esteve próxima da falência,
mografico/img/mapas/1905.jpg> Acesso em: 05 nov. 2016.
sendo necessária a intervenção econômica de No ano de 1954, a prefeitura alterou o nome do
Zerrenner e von Bülow, a fim de que a empresa logradouro Bavaria, que prevalece até os dias

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atuais, para Avenida Presidente Wilson. Tal de- as portas internas de madeira; a cobertura, que
nominação foi oficializada através do Decreto nº conta com lanternim de veneziana, é feita em
2.688, de 20 de setembro daquele ano (processo
chapas de Eternit sobre caibros e ripas de ma-
administrativo nº 89.145/45).
deira repousadas sobre estruturas de concreto
A fundação da Cervejaria Bavaria no bairro da armado (CONPRESP, Processo de Tombamen-
Mooca, iniciada em 1892, deu-se com a instala- to no. 2007-0.162.626-3, p.34).
ção no bairro de um conjunto fabril que possuía
um depósito de cevada de tijolo aparente (com- Em 1909, novos equipamentos foram acrescen-
posto de três módulos verticais), um edifício de tados à fábrica e, dois anos depois, foi inaugura-
adegas e uma chaminé com aproximadamente da uma nova sede em Ribeirão Preto, ainda sob
50 metros de altura (Figura 4). O complexo pos- controle da Zerrenner, Bülow & Cia. Na década
suía, inclusive, um conjunto de casas para seus de 20, a empresa alemã respondia por 75% do
operários. Ao longo dos anos, o patrimônio in- capital da fábrica. Já em 1930, juntamente a Bra-
Figura 3. Detalhe do mapa de São Paulo de 1905, em que dustrial ali implantado foi sendo modificado. hma, a Cia Antarctica já havia conseguido elimi-
é possível visualizar o complexo fabril da Mooca inaugurada
nar quase todas as concorrentes do mercado
no bairro em 1892, servido pela ferrovia São Paulo Railway,
O relatório feito para o CONPRESP – Conselho brasileiro de cerveja.
com destaque para a fábrica da Cervejaria Bavaria, posterior-
Municipal de Preservação do Patrimônio Históri-
mente, Companhia Antarctica Paulista. Fonte: <http://smdu.
prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/img/mapas/1905.
co, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo Para um maior entendimento das questões rela-
jpg> Acesso em: 05 nov. 2016 - CONPRESP, em 2007, solicitando o tombamen- cionadas ao patrimônio industrial, cabe aqui rela-
to do complexo remanescente, contém a descri- tar as origens da Cervejaria Bavaria, importante
ção atual deste patrimônio: fábrica no início do século XX.

O edifício mais alto do conjunto (35 a 40 me- A Bavaria foi fundada, conforme dito anteriormen-
tros), que corresponderia ao corpo principal te, em outubro de 1892, por Henrique Stupakoff
e Companhia, no local acima indicado, em uma
das adegas, foi construído em estrutura de
área de 23 mil metros quadrados, composta pelo
concreto, calculado pela Companhia Construc- edifício principal - de cinco pavimentos - dividido
tora em Cimento Armado em 1923, empresa em seções na antiga Avenida Bavaria, atual Ave-
inicialmente fundada pelo alemão Riedlinger nida Presidente Wilson. Nas instalações da fábri-
ca haviam dois poços artesanais que forneciam
encampada pela grande empresa alemã Wayss
água para a fabricação do gelo e da cerveja, com
& Freitag possuía, na época, filiais em numero- uma profundidade de 130 metros, e uma capaci-
sos países. Já existia no local uma adega, mas, dade de 250 mil litros. Muitas vezes a população
grande parte do edifício, tal como vemos hoje, ali se abastecia, quando havia falta d´água. No
processo de fabricação da cerveja, para resfriar
foi ampliado verticalmente em 1923. Segundo
os canos pelos quais passa o amoníaco na má-
Figura 4. Detalhes da fachada do Edifício da Companhia o projeto e o seu memorial anexo de 1923, as quina de gelo é usada água do rio Tamanduateí.
Antarctica Paulista, na Avenida Presidente Wilson, bairro da paredes de alvenaria são duplas, isoladas com
Mooca. Fonte: LINGUITTE, 1959, p.40.
corticite; as esquadrias externas são de ferro e O prédio não tem estylo; é, porém, alto, vasto,

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vistoso e todo construído de tijolos. Em frente podiam ser carregadas nos seus depósitos. Havia
fica-lhe o escriptorio, em bonito chalet, e nos também iluminação a luz elétrica, produzida por
dois dínamos e uma bateria de acumuladores que
fundos passa-lhe a Estrada de Ferro Ingleza,
fornecia luz durante o dia nas adegas.
com a qual tem communicação. A fábrica ocu-
pa uma extensão de 250 metros de frente por Seus produtos foram agraciados com a medalha de
100 metros de fundos e o escriptorio e mais ouro na Exposição Columbiana de Chicago, em 1893.
dependências uma extensão de 80 metros por
Memória e patrimônio industrial em São Paulo
120. A parte mais alta do edifício tem 30 me-
tros e a chaminé 36. O edifício principal, de cin- Em 2003, fora redigido um documento no TIC-
co pavimentos, é dividido em tantas secções, CIH (The International Committee for the Conser-
quantas são as phases do fabrico. As machinas vation of the Industrial Heritage) sobre o conceito
de patrimônio industrial, conhecida como a Carta
productoras do gelo, elemento essencial ao fa-
de Nizhny Tagil:
brico, conforme as prescripções da sciencia,
para a temperatura em diferentes gráus, são do O patrimônio industrial compreende os ves-
systema Linde, sendo, uma da força de 80 ca- tígios da cultura industrial que possuem valor
vallos, outra da, de 150 e mais uma da de 300 histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou
cavallos, cada uma com 2 compressores, que científico. Estes vestígios englobam edifícios e
servem para resfriar 2 camaras de fermentação maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais
de 520 metros quadrados; uma ante câmara e de tratamento e de refinação, entrepostos e
12 camaras adegas, com 2.025 metros quadra- armazéns, centros de produção, transmissão e
dos. (PINTO, 1900, p.216). utilização de energia, meios de transporte e to-
das as suas estruturas e infra-estruturas, assim
A água dos poços não servia somente para a fa-
como os locais onde se desenvolveram ativida-
bricação da cerveja, mas, também, para o fabrico
do gelo que era produzido em grande quantidade e des sociais relacionadas com a indústria, tais
que era vendido na cidade, em Santos e no interior. como habitações, locais de culto ou de educa-
ção (KÜHL,2010, p. 25).
A Bavaria possuía um desvio da linha inglesa que
possibilitava transportar de Santos para os depó- A cidade de São Paulo passa por um desacele-
sitos da fábrica todos os produtos importados, ramento de sua atividade industrial, desde as úl-
principalmente, cevada, garrafas, carvão e os ma- timas décadas do século XX, constituindo assim
quinismos, cujos volumes eram muitas vezes de um vasto campo de análise das questões funcio-
um peso excessivo. Além disso, um gerador, que a nais e da preservação do patrimônio industrial.
fábrica mandou construir, dividia o desvio em cin- Muitos desses edifícios estão tombados ou em
co partes, nas quais as respectivas mercadorias processo de análise pelo órgão de proteção muni-

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cipal da cidade de São Paulo (Conselho Municipal ponto de vista preservacionista? Transformar o
de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e uso da edificação em museu ou centro cultural é
Ambiental da Cidade de São Paulo - CONPRESP). a melhor alternativa? Como as empresas podem
Faz parte desse rol de conjuntos fabris, a Com- reconhecer o valor de seu patrimônio edificado e
panhia Antarctica Paulista, cujo processo de tom- de fato o preservá-lo?
bamento iniciou-se no ano de 2007, sob o núme-
ro 2007-0.162.678-6 e finalizado em 2016 com a São perguntas que aparecem à medida que o
resolução 19, também realizada pelo CONPRESP. campo disciplinar do patrimônio se consolida
como importante instrumento de análise. Torna-
A princípio, a Antarctica está inserida no mesmo -se importante examinar a particularidade de
contexto de grande parte dos conjuntos fabris, cada caso, pormenorizadamente, com critérios
isto é, em estado de deterioração e abandono baseados nas diversas cartas patrimoniais, colo-
devido à perda de função. No caso específico cando o patrimônio edificado e industrial no con-
da cervejaria, suas atividades foram transferidas texto da territorialidade urbana e na sua relação
para o edifício em frente às instalações antigas, com a própria cidade.
quando da junção com a Brahma, resultando na
AmBev (Companhia de Bebidas das Américas). Procurando responder à questão de como as
empresas podem reconhecer o valor de seu pa-
Trata-se aqui de um exemplo de mudança eco- trimônio edificado e de fato preservá-lo, é possí-
nômica pelo qual a cidade de São Paulo passou, vel antes afirmar que uma fábrica é muito mais do
reverberando nas questões concernentes ao pró- que um simples aparato industrial, é uma peça
prio patrimônio edificado. importante na concepção de nossa sociedade.

A perda do uso industrial deriva de uma com- Segundo Françoise Choay, as indústrias fazem
plexa conjuntura, envolvendo aspectos políti- parte de uma categoria de edificações que preci-
cos, sociais, culturais e, sobretudo, econômi- sam ser analisadas, estudadas e preservadas, não
cos, decorrentes da evolução urbana da capital só por suas características arquitetônicas, mas
paulista. Entretanto, dois momentos foram de- pela importância das sociabilidades ali impostas.
cisivos: a mudança da implantação das indús- “A arquitetura é a única, entre as artes maiores,
trias dos eixos ferroviários para os rodoviários cujo uso faz parte de sua essência e mantém uma
na década de 1950 e a mudança do perfil eco- relação complexa com suas finalidades estética e
nômico da cidade de São Paulo de embasa- simbólica” (CHOAY, 2001, p.230).
mento industrial para serviços a partir da dé-
cada de 1980, em decorrência das alterações Estudar a Companhia Antarctica Paulista é, so-
mundiais do processo produtivo. (RODRIGUES bretudo, referenciar-se ao patrimônio industrial
& CAMARGO, 2010, p.152). da cidade de São Paulo, constituído de um rico
acervo que evidencia o desenvolvimento econô-
A preservação e o restauro do patrimônio sus- mico e urbano da capital paulista alicerçado em
citam importantes questões, algumas são: como remanescentes de estimado valor cultural, mui-
avaliar a importância de uma edificação sob o tos já bastante modificados.

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Nessa análise, o estudo da memória pode reve- que operação intelectual e laicizante, demanda
lar aspectos desse cotidiano e dessa sociedade, análise e discurso crítico. A memória instala a
enfim, desse momento histórico.
lembrança no sagrado, a história a liberta, e a

Segundo Le Goff, em sua obra História e Me- torna sempre prosaica. A memória emerge de
mória, a memória pode ser apresentada como, um grupo que ela une […] há tantas memórias
“propriedade de conservar certas informações, quantos grupos existem; que ela é, por nature-
remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de
za, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e in-
funções psíquicas, graças às quais o homem
pode atualizar impressões ou informações pas- dividualizada. A história, ao contrário, pertence
sadas, ou que ele representa como passadas”. E a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação
também, “a memória é um elemento essencial do para o universal. A história só se liga às conti-
que se costuma chamar identidade, individual ou
nuidades temporais, às evoluções e às relações
coletiva, cuja busca é uma das atividades funda-
mentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, das coisas. A memória é um absoluto e a his-
na febre e na angústia” (LE GOFF, 2012, p.476). tória só conhece o relativo (NORA, 1993, p.9).

Já Pierre Nora nos apresenta inúmeras diferenças: O complexo fabril da Antarctica na Mooca
descrito pelo memorialista
A memória é a vida, sempre carregada por gru-
pos vivos e, nesse sentido, ela está em perma- A obra de um memorialista que relatou o cotidiano
nente evolução, aberta à dialética da lembrança da fábrica e sua relação com a cervejaria revela
aspectos do cotidiano da fábrica na Mooca. O se-
e do esquecimento, inconsciente de suas de-
nhor Hedemir Linguitte, funcionário da Companhia
formações sucessivas, vulnerável a todos os Antarctica entre 1928-1958, designou assim o seu
Figura 5. Capa da obra produzida por Hedemir Linguitte após
usos e manipulações, susceptível de longas la- relato: Fragmentos, episódios, memorização, evo-
três décadas como funcionário da Companhia Antarctica
tências e de repentinas revitalizações. A história cação e cenas da vida antarcticana – 1928-1958:
Paulista. Fonte: LINGUITTE, 1959, p.1.
sofrimentos, percalços, desenganos, alegrias,
é a reconstrução sempre problemática e incom-
consolos e satisfações decorrentes de 30 anos de
pleta do que não existe mais. A memória é um lida funcional, Companhia Antarctica Paulista In-
fenômeno sempre atual, um elo vivido no eter- dústria Brasileira de Bebidas e Conexos.
no presente; a história, uma representação do
Trata-se de um compêndio de memórias escrito
passado. Porque é afetiva e mágica, a memória
pelo funcionário formado por 207 páginas datilo-
não se acomoda a detalhes que a confortam; grafadas e diversas imagens que relatam desde
ela se alimenta de lembranças vagas, teles- a origem da fábrica até a chegada de sua apo-
cópicas, globais ou flutuantes, particulares ou sentadoria, texto escrito de forma deveras ro-
mantizada na maioria das vezes, o que denota a
simbólicas, sensível a todas as transferências,
devoção e dedicação destinadas ao exercício de
cenas, censuras ou projeções. A história, por- sua função.

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O velho funcionário, falecido em 2005, também Uma coleção de imagens sobre a empresa, des-
deixou escrito um relato acerca do bairro da Pe- de fotos sobre o edifício da sede e suas insta-
nha, em que residiu durante parte da sua vida, em lações lindeiras até o quadro da diretoria, pas-
uma localidade vizinha ao bairro da Mooca, sede sando pelas ilustrações acerca dos diferentes
da Antarctica. No livro, ele informava que percorria tipos de bebidas fabricadas pela Antarctica ao
diariamente a pé, os quatro quilômetros de distân- longo do período em que o autor escreveu sua
cia entre a sua residência e o local de emprego. memória, agrega um valor inestimável à obra,
fazendo dela uma importante fonte de pesquisa,
O relato das memórias de Hedemir começa com não somente no âmbito da memória, mas para
uma série de agradecimentos a todo quadro dire- a própria compreensão do patrimônio, neste
tivo e societário da fábrica, abordando posterior- caso, industrial. O relato é pautado por fortes
mente sua admissão como funcionário, em 21 de questões afetivas, o que permeia a maneira de
julho de 1928, com apenas 13 anos de idade, para escrever do autor.
exercer a função de contínuo, na fábrica em que o
pai e o tio já trabalhavam. Detalhes de sua admis- São informações trazidas ao leitor com riqueza
são como provar a vestimenta da empresa eram re- de detalhes do funcionário o qual se tornou me-
latados com o vigor romântico que lhe era peculiar: morialista por devoção e que fazia questão de
ressaltar um consumo maior de refrigerante que
...que alegria a minha quando, ostentando, pela água, enaltecendo a qualidade dos produtos fa-
bricados pela empresa.
primeira vez, meu uniforme antarticano, per-
corria as instalações da Empresa, com certo E ele conseguiu, nas suas memórias, traduzir o
orgulho, como se o mundo, para mim, fosse sentimento que o motivava a trabalhar na empre-
todo aquele uniforme. Eu não seguia o exemplo sa durante trinta anos.
de outros meus colegas, que traziam de casa
Partindo dessa leitura, entendemos de suma im-
roupa “civil”, usando o uniforme somente no re- portância a utilização da memória como fonte
cinto da Empresa. Eu fazia questão cerrada de de pesquisa. No caso da história do senhor He-
levar para casa, todos os dias, meu uniforme, demir, foi possível obter um olhar diferente so-
bre um patrimônio industrial e também sobre a
para que todo mundo visse e soubesse que eu
própria maneira de relacionar o indivíduo e seu
trabalhava na Antarctica, santa ingenuidade, local de trabalho.
santa vaidade (LINGUITTE, 1959, p.2).
O material produzido pelo memorialista Hedemir
A relação entre o senhor Hedemir e os diretores da Linguitte sobre o complexo fabril da Antarctica
Antarctica também estava presente em seus relatos na Mooca faz parte do acervo doado por sua fa-
descritivos, desde a vestimenta até o comporta- mília ao Movimento Cultural Penha, uma Organi-
mento dos fundadores da empresa, o Comendador zação Não Governamental, localizada na cidade
Antônio Zerrenner e o senhor von Bulow, que, por de São Paulo, que atua na área de patrimônio e
vezes, faziam visitas rotineiras às instalações fabris. memória local.

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Pelos meandros da fábrica sagem se engalanava toda e que a fricção das


ferraduras dos animais nos paralelepípedos, fazia
De acordo com Linguitte, a fábrica possuía sec- com que fagulhas vermelhas e rápidas, se levan-
ções como “Expedição”, local em que as bebidas tassem, a medida que os gritos dos cocheiros se
eram retiradas, com uma recepção para tirar nota faziam ouvir (LINGUITTE, 1959, p.16).
dos pedidos recebidos por telefone, tanto para
clientes particulares, quanto para negociantes e Havia os veículos dos distribuidores de bebidas
revendedores. na cor verde e os de gelo na cor branca, ambos
percorrendo a cidade partindo do Pátio Central
Uma vez anotado os pedidos, estes se dirigiam rumo aos depósitos da Antarctica, nos bairros
de Vila Mariana, Água Branca e na Rua Anhanga-
ao “Setor de Veículos e Animais”, outrora chama-
baú (Figura 6). O transporte também era feito pela
do de “Secção das Cocheiras”, que carregava os Secção de Despachos por via ferroviária, aprovei-
veículos com cerveja, refrigerante, gelo ou cho- tando-se do desvio da linha férrea da São Paulo
pe, passando pelo Pátio Central para, com o aval Railway que passava na parte de trás da fábrica.
do fiscal, dirigir-se ao determinado destino. Ca-
Figura 6. No pátio central da fábrica da Antarctica na Mooca bia ao jovem Hedemir, neste período, a função de Em novembro de 1928, o contínuo Hedemir pas-
ficavam veículos de tração animal e mecânica para o trans- “contínuo”, uma espécie de office-boy, percorrer sou a atuar no setor de “Expedição de Móveis”,
porte das mercadorias produzidas na fábrica. Fonte: LIN- o Pátio Central levando os pedidos expedidos à localizado no edifício demolido em 1955 e que
GUITTE, 1959, p.18. Secção de Veículos e Animais (Figura 5). serviu de local para um novo conjunto de escri-
tórios. Tal setor era responsável pela fabricação
Afora as repartições ditas anteriormente, o com- de móveis e utensílios que seriam vendidos à
plexo fabril da Antarctica possuía a Fábrica de clientela, tais como: balcões de mármore, me-
cerveja, de refrigerantes e de licores, a Reparti- sas e cadeiras, biombos, tapa-vento, luminosos,
ção de Máquinas, o Escritório Central, a Caixa estrados, instalações para água e chope, entre
Geral, a Caixa Auxiliar, a Repartição de Oficinas e outros (LINGUITTE, 1959, p.23). Contudo, a ge-
a Secção dos Inspetores da Praça. ladeira de nome “Perfeita” era um dos produtos
desta secção que mais chamava a atenção dos
Nas primeiras décadas do século passado, o consumidores (Figura 7).
transporte de mercadorias da fábrica era feito por
veículos de tração animal, ao passo que, paula- No Escritório das Oficinas movimentavam-se ou-
tinamente, foram sendo incorporados à tropa os tras secções ligadas a ele, com as funções de
chamados Ford “bigode” e Chevrolet, caminhões marcenaria, carpintaria, funilaria, tapeçaria, sela-
que permitiam percorrer maiores distâncias e ria e pintura, porém, em 1931, uma má notícia
com maior capacidade de carga. Aos olhos do vinda da administração deveras entristeceu o se-
Figura 7. Modelo de veículo Chevrolet destinado ao trans- então contínuo Hedemir, nhor Hedemir. Como decorrência da crise econô-
porte de gelo no complexo fabril da Antarctica na Mooca.
mica mundial de 1929, a Companhia Antarctica,
Hedemir Linguitte deu a seguinte legenda à foto: “Chevrolet” ao toque de largar, que se fazia ouvir no Pátio assim como diversas outras empresas, teve que
modelo 1925, pertencente ao grupo dos veículos pioneiros do Central, às 6 e às 6:30 horas, os caminhões, de-
progresso antarticano, mostrando o seu motorista – Giácomo
reduzir seu quadro de funcionários, a fim de dimi-
monstrando garbo, beleza e majestade, ganha- nuir o impacto causado nas contas da empresa.
Rossini”. Fonte: LINGUITTE, 1959, p.17.
vam a Avenida Presidente Wilson que, à sua pas- Sendo assim, os funcionários com menor tempo

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de serviço foram os escolhidos e, dentre eles, es- suas preces, em ação de graças, ao céu, não fo-
tava o então jovem Hedemir: ram poucas, presumo (LINGUITTE, 1959, p.58).

Que poderia fazer, repito? Deixar meu local de Tendo completado seus 18 anos, Hedemir passou
trabalho, onde, durante, quase trinta e seis me- a ocupar a função de auxiliar de escritório, na se-
ses o tempo passara célere para mim, onde eu
ção de consumo, vinculado ao escritório central
da fábrica, em 1933. Em outubro de 1939, nascia
nadara em um mar de felicidade, felicidade essa, Hedemar, o primeiro filho de Hedemir. A Antarctica
porém, supersonicamente breve. Acabara-se tinha como costume presentear as mães grávidas
para mim o que era bom. Adeus, meus uniformes com duas garrafas de Malzbier Progresso, cerveja
de contínuo. Adeus, meus deliciosos refrigeran-
que, segundo a fábrica, possuía propriedades be-
néficas tanto para a saúde da lactante quanto para
tes e, especialmente, meu “Guaraná Champag- a criança que estava por vir.
ne”. Adeus, amigos e colegas. Adeus, “Secção
de Expedição”. Adeus, velhas chaminés antarti- Até o ano de 1942, os funcionários da Antarctica
canas, que, de manhã a noite, expeliam fumaça,
na Mooca tomavam suas refeições fora da fábri-
Figura 8. A descrição de um desenho da geladeira Perfeita
ca. Todavia, nesta data, alterar-se-ia o cotidiano
fumaça do progresso e do ganha-pão de cente- fabril com a criação de um refeitório na própria fá-
feita por Hedemir Linguitte: “Perfeita”, a geladeira mais famo-
sa de seu tempo, fabricada com requintes de maior carinho nas e centenas de bocas da Empresa do bairro brica. Foram feitos dois salões, um destinado aos
por parte da Companhia Antarctica Paulista. Fonte: LINGUIT- da Mooca (LINGUITTE, 1959, p.55). empregados e outro para uso dos operários, além
TE, 1959, p.24. da construção de duas cozinhas para preparo das
O recesso sem emprego do senhor Hedemir lhe refeições. Um desses salões ficava em um local
rendeu infindáveis horas de tristeza e melancolia, que era destinado para dormitório de funcionários
contudo, sobre forte insistência de seu pai, que solteiros que residiam longe do local de trabalho.
mantivera seu emprego na fábrica incólume, já No refeitório de empregados havia inclusive ser-
no ano seguinte, em fevereiro de 1932, conse- viço de garçom. Esse novo ponto para refeições,
guiu a readmissão de seu filho junto ao quadro de fez com que o senhor Hedemir e outros funcioná-
funcionários, causando enorme furor no coração rios deixassem de frequentar a pensão da Dona
do autor dessas memórias: Francisca Sheer, na avenida Presidente Wilson, na
hora do almoço, de maneira que a senhora foi aos
Dizer da satisfação sentida por mim, seria tarefa poucos perdendo a sua clientela.
difícil, neste papel. Dizer da felicidade que inun-
No ano de 1956, o senhor Hedemir foi transferi-
dava o coração de meu progenitor, mais difícil do para a biblioteca que havia sido instalada no
ainda. Meu pai transpirava alegria por todos os edifício recém-construído. Era uma nova dinâmi-
poros. Tornou-se eufórico, transformou-se. Afi- ca de trabalho, que, em certa medida, corrobora
com o estilo em que ele escreveu suas memórias,
nal, seus pedidos não tinham sido em vão. De-
provavelmente, pelo contato mais próximo a di-
saparecera seu pessimismo. Era outro homem. versas obras literárias que compunham o acer-
Seu filho voltava a labutar na Empresa. Por certo, vo da biblioteca. Mais tarde, já em 1957, outro

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fato marcante trouxe ao funcionário uma enorme trias e Bebidas, em Marília (SP) e, no ano posterior,
satisfação em trabalhar naquela empresa, era a constituiu a DUBAR S.A – Indústria e Comércio de
admissão de seu filho: Bebidas. Em 1957, adquiriu em Campinas (SP) a
antiga Fábrica de Cerveja e Gelo Columbia.
...meu coração de antarticano, em 9 de abril de
1957, dilatou-se de alegria quando meu filho Nos anos 60, a Antarctica adquiriu o controle
acionário da Cervejaria Bohemia em 1961, e, em
Hedemar, meu sucessor moral na Antarctica,
1967, marchou rumo às regiões norte e nordes-
ingressara em seus serviços, na parte técnica, te para criar a IPEBA – Indústria Pernambucana
a fim de seguir, se sua vocação assim o ditasse, de Bebidas Antarctica, com apoio da SUDENE.
a função de técnico em fabricação de cervejas, Adquiriu no norte a Cervejaria Manaus e, conco-
mitantemente no sul, a Cervejaria Polar, em 1972.
devendo, em consequência, passar por diver-
sos estágios na Empresa, e, depois, fazer um Em 1973, inaugurou a Companhia Sulina de Be-
curso adequado (LINGUITTE, 1959, p.193). bidas Antarctica, em Joinville (SC), com unidades
em Ponta Grossa (PR) e Curitiba (PR). Na região
Com a aposentadoria cada vez mais próxima, nordeste, criou a INORBE – atual Indústria de
sentiu a necessidade de relatar sua dedicação Bebidas Antarctica do Nordeste S.A., acionista
pela empresa e pôs-se a escrever o livro de me- majoritária da Companhia Itacolomy de Cervejas,
mórias, justificando seu intento: em Pirapora (MG). Além disso, promoveu uma
fusão com a Cervejaria Níger S.A., criando em
...a composição deste volume, como já foi dito Ribeirão Preto, a Cervejaria Antarctica Níger S.A.
no seu princípio, foi, antes de mais nada – e
Ao longo dos anos a Antarctica construiu novas
isso salta aos olhos de qualquer leigo – obra de filiais em diversos estados brasileiros, partindo
um sentimentalista, de um colaborador feliz e para o mercado externo em 1979, com expor-
jubiloso da Antarctica, que, em comemoração tação para Europa, Estados Unidos e Ásia. Em
1993, concebeu a fábrica de Jaguariúna, região
de três décadas de lida funcional, quis memo-
de Campinas que, em 1995, recebeu os equipa-
rizar fatos e acontecimentos relacionados à mentos provenientes da fábrica da Mooca, sendo
empresa, bem como fazer alusão à sua gente esta desativada.
(LINGUITTE, 1959, p.208).
Conclusão
Antarctica além da Mooca
O propósito deste artigo foi trazer à tona mais
Ao longo da década de 1950, a cervejaria se ex- um elemento que compõe a miríade de assuntos
pandiu e criou outras empresas subsidiárias. Na acerca do patrimônio industrial como pano de
cidade de Jaguaré, interior paulista, em 1954, a Cia fundo para uma abordagem sobre o que repre-
Antarctica abriu sua própria malteria, adquirindo senta a história da urbanização de uma cidade
no ano seguinte a Cervejaria Alta Paulista Indús- como São Paulo.

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O patrimônio que envolve uma cervejaria dispensa processo de industrialização da capital paulis-
uma relação que ultrapassa os muros da fábrica e tana; testemunhando, assim, a ocupação e a
que traz a reboque outro elemento presente tan- construção de conjuntos arquitetônicos e sua
to na urbanização paulistana e, por conseguinte, relação com a ferrovia e a paisagem urbana da
na história da Companhia Antarctica Paulista: a várzea dos rios da cidade, o que reflete, tam-
presença ativa da imigração alemã, corroborando bém, a história da indústria da cerveja no Brasil
para nosso entendimento sobre a implantação da e sua importância para a memória social da ci-
cerveja na rotina do indivíduo latino-americano. dade de São Paulo.
Uma vez que esse processo, também, foi con-
comitante em cidades como o Rio de Janeiro e Referências:
Buenos Aires, sobretudo com a utilização da fer-
rovia como principal método de escoamento da BANDEIRA Junior, Antonio Francisco. A indús-
produção cervejeira, promovendo a ocupação de tria no Estado de São Paulo, 1901. São Paulo:
áreas distantes do centro dessas cidades naquele Typ do Diario Official, 1901.
momento, incluindo São Paulo, na guinada do sé-
culo XIX e no início do século XX. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio.
São Paulo: UNESP, 2001.
Com um enfoque na história das cidades, foi pos-
sível depreender que o campo de pesquisa sobre PREFEITURA DE SÃO PAULO. Conselho Munici-
a história das cervejarias é muito vasto e, dentro pal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cul-
de uma epistemologia interdisciplinar, abre cami- tural e Ambiental da Cidade de São Paulo. Reso-
nho para novas discussões. Ainda neste esforço de lução no. 19 / CONPRESP / 2016. Disponível em
compreender o papel da indústria cervejeira, lan- <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/
çamos mão do uso de algumas memórias vividas Re1916TombamentoedificacoesAntigaFabri-
por um funcionário que dedicou três décadas de caAntarcticaPDF_1473786946.pdf>. Acesso em:
sua vida ao trabalho fabril, dentro da área adminis- 23 fev. 2016.
trativa, que percorria os setores da fábrica e relatou
esse cotidiano na figura de um memorialista. PREFEITURA DE SÃO PAULO. Conselho Muni-
cipal de Preservação do Patrimônio Histórico,
O estudo acerca do patrimônio industrial, tendo Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo.
um complexo fabril cervejeiro como objeto de pes- Processo Administrativo no. 2007-0.162.626-
quisa, está contido no extenso arcabouço teórico 3. Disponível em <http://simprocservicos.prefei-
do qual o Urbanismo faz parte como disciplina. tura.sp.gov.br/Forms/DadosCadastrais.aspx>.
Acesso em 23 fev. 2016.
Nota-se que a Antarctica, desde sua criação,
em São Paulo, como um abatedouro suíno in- KUHL, Beatriz Mugayar. Patrimônio industrial:
serido em uma área rural lindeira a duas linhas algumas questões em aberto. Arq Urb número
férreas (passando para produtora de gelo e, 3, 2010. Disponível em: <http://www.usjt.br/arq.
posteriormente, de bebidas) contribui para o urb/numero_03/3arqurb3-beatriz.pdf>. Acesso
estudo de instalações fabris e de armazéns no em: 25 fev. 2016.

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Ivone Salgado e Diógenes Sousa | A Companhia Antarctica Paulista em São Paulo: memória e patrimônio edificado

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campi- NORA, Pierre. Entre Memória e História: a pro-
nas: Editora UNICAMP, 2012. blemática dos lugares, In: Projeto História. São
Paulo: PUC, n. 10, p. 07-28, dez. 1993.
LINGUITTE, Hedemir. Fragmentos, episódios,
memorização, evocação e cenas da vida an- PINTO, Alfredo Moreira. A Cidade de São Paulo
tarcticana – 1928-1958: sofrimentos, percalços, em 1900. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1900.
desenganos, alegrias, consolos e satisfações
decorrentes de 30 anos de lida funcional. Com- RODRIGUES, Angela Rösch. CAMARGO, Môni-
panhia Antarctica Paulista Indústria Brasileira de ca Junqueira de. O uso na preservação arquite-
Bebidas e Conexos. São Paulo, 1959. tônica do patrimônio industrial da cidade de São
Paulo. Revista CPC USP, São Paulo, n. 10, p.
MARSON, Michel Deliberali. Origens dos em- 41-65, maio/out. 2010.
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mentos em São Paulo, 1870-1900. Nova Eco- SANTOS, Sergio de Paula. Os primórdios da
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2012. Disponível em <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103635 SIRIANI, Silvia Cristina Lambert. Uma São Paulo
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em 17 out. 2016. cos. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003.

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