Você está na página 1de 63

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ

CAMPUS I CURITIBA
ESCOLA DE MÚSICA E BELAS ARTES DO PARANÁ
DAIANA MARSAL DAMIANI

A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: UM


ESTUDO DE CASO DO MOINHO ANACONDA

CURITIBA
2023
DAIANA MARSAL DAMIANI

A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: UM


ESTUDO DE CASO DO MOINHO ANACONDA

Trabalho de Qualificação do curso superior de


Bacharelado em Museologia da Universidade
Estadual do Paraná - Campus I Curitiba - Escola de
Música e Belas Artes do Paraná.
Professor orientador: André Fabrício Silva

CURITIBA
2023
AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa não é fruto de um esforço solitário; ela representa a


colaboração de várias pessoas que contribuíram significativamente para o seu
desenvolvimento.
Em primeiro lugar, expresso minha profunda gratidão à minha mãe, Roseni
Marsal Damiani, que me incentivou e apoiou incondicionalmente, mesmo sem nem
compreender direito o que era a Museologia, mas sempre ao meu lado em todos os
momentos.
Também quero estender meus agradecimentos ao meu orientador, André
Fabrício, por embarcar nesta aventura que foi pesquisar sobre Patrimônio Industrial,
sendo uma área complexa e pouco explorada na Museologia. Agradeço à Patrícia
Gaulier e a Iaskara Florenzano por concordarem em fazer parte da banca e
preciarem minha pesquisa. Um agradecimento especial à Gustavo Cesar Pereira por
todas às vezes que precisei de auxílio e liguei aos prantos querendo desistir, me
incentivando e me levando para comer sushi porque eu estava triste.
Ao Museu Paranaense, em particular ao setor de história, tanto aos membros
antigos quanto e aos novos, expresso minha gratidão por tornarem minhas tardes
divertidas e calorosas. Gostaria de destacar meu agradecimento especial a Felipe
Vilas Bôas, por dedicar seu tempo para corrigir meus textos e me ouvir falando por
mais de 1 ano sobre farinha. À Amanda Cristina Nery Venancio da Silva, por tornar
os dias alegres e me mandar vídeos de gatinhos, e a Gabriella Perazza, por abraçar
minhas ideias, tirar as fotos e realizar entrevistas comigo, mesmo eu transferindo
todo o meu azar para ela.
A Anaconda moinho por ter me permitido pesquisar em seus depósitos
arquivos e ter acreditado no meu projeto.
Por último, mas não menos importante, agradeço à Thais Alexandre da Silva
e Eduardo França, que, mesmo à distância, escolheram apoiar todas as minhas
ideias e suportaram meus surtos durante a graduação.
RESUMO

O propósito desta pesquisa consistiu em examinar a relevância do patrimônio


industrial na cidade de Curitiba, utilizando a fábrica Anaconda Moinho S/A como
estudo de caso. O trabalho foi conduzido por meio de uma abordagem qualitativa
exploratória, visando analisar a história da formação da cidade de Curitiba por meio
de documentos e bibliografias. O objetivo era compreender o processo de
desindustrialização e suas consequências, a fim de discutir a importância da
preservação dos espaços de natureza industrial remanescentes e levantar questões
relacionadas à identidade e memória dos trabalhadores operários. Para
complementação das informações coletadas, foram realizadas entrevistas com os
trabalhadores do Moinho Anaconda, buscando compreender as experiências fabris e
os processos de sociabilização que influenciam a formação da identidade vinculada
ao patrimônio industrial.

Palavras-chave: Preservação, Memória do trabalho, Patrimônio industrial,


Identidade, Anaconda Moinho
RESUMEN

El propósito de esta investigación fue examinar la relevancia del patrimonio industrial


en la ciudad de Curitiba, utilizando la fábrica Anaconda Moinho S/A como estudio de
caso. El trabajo se llevó a cabo mediante un enfoque cualitativo exploratorio, con el
objetivo de analizar la historia de la formación de la ciudad de Curitiba a través de
documentos y bibliografías. El objetivo era comprender el proceso de
desindustrialización y sus consecuencias, con el fin de discutir la importancia de
preservar los espacios industriales remanentes y plantear cuestiones relacionadas
con la identidad y la memoria de los trabajadores obreros. Para complementar la
información recopilada, se llevaron a cabo entrevistas con los trabajadores del
Moinho Anaconda, con la intención de comprender las experiencias fabriles y los
procesos de sociabilización que influyen en la formación de la identidad ligada al
patrimonio industrial.

Palabras clave: Preservación, Memoria del trabajo, Patrimonio industrial, Identidad,


Molino Anaconda
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...........................................................................................................07
1.PATRIMÔNIO e PRESERVAÇÃO .........................................................................10
1.1 NOÇÕES PATRIMONIAIS.........................................................................10
1.2 PATRIMÔNIO INDUSTRIAL ......................................................................13
2. A CIDADE DE CURITIBA ......................................................................................18
2.1 A CIDADE INDUSTRIAL DE CURITIBA ....................................................27
3. ANACONDA MOINHO ...........................................................................................30
3.1 MEMÓRIAS DOS TRABALHADORES ......................................................32
CONCLUSÃO ............................................................................................................42
REFERÊNCIAS ...............................................................................................44
ANEXOS ..........................................................................................................47
ENTREVISTAS .....................................................................................47
ENTREVISTADO 1 ...............................................................................47
ENTREVISTADO 2 ..............................................................................51
FOTOS EXTRAS ANACONDA MOINHO .............................................55
7

INTRODUÇÃO

O diálogo em torno do patrimônio industrial dentro do campo da museologia é


uma área que vem gradualmente conquistando maior visibilidade. No entanto,
quando comparado a outras temáticas, ainda recebe menos atenção. A preservação
destes espaços de natureza industrial revela-se de suma importância para a
salvaguarda da memória e a história local, bem como a história dos indivíduos que
vivem e trabalham nesses ambientes.
Segundo a constituição brasileira de 1988, no Artigo 216, o patrimônio é
entendido como todos os bens (...) “de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.”, dentro da área
que engloba o patrimônio, temos uma categoria específica chamada de Patrimônio
Industrial que:

(…) compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor


histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios
englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de
processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção,
transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas
estruturas e infra-estruturas, assim como os locais onde se desenvolveram
atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais
de culto ou de educação (CARTA DE NIZHNY TAGIL, 2003).

Essa definição ocorrida em 2003 com a Carta de Nizhny Tagil, mesmo que
tardia em comparação a outros patrimônios foi de extrema importância, pois
estabelece o que exatamente era o patrimônio industrial e a sua importância, dando
uma facilidade para o poder público identificar esses bens e preservá-los. Porém, a
falta de investimentos em leis e políticas públicas faz com que a grande maioria
delas desapareça.
Segundo o dicionário Aurélio Buarque de Holanda preservar é ((...))
“defender, proteger, resguardar, manter livre de perigo, dano e conservar.”
(FERREIRA, 2004). É através da preservação que se exerce a cidadania e ajuda a
manter a história de um povo ou cultura. Quando se preserva somente um tipo de
espaço relacionado a somente a um grupo de pessoas, pode-se construir uma
narrativa histórica que engloba somente uma visão da realidade, podendo assim
excluir indivíduos, tirando sua importância na construção da história.
8

Se pensarmos sobre os bens tombados pela Prefeitura da cidade de Curitiba,


é notável a falta de locais patrimoniais ligados aos trabalhadores. Geralmente são
espaços que pertenciam a pessoas da elite social e não necessariamente
desempenharam um papel crucial na formação da cidade. Mas, se o objetivo da
preservação através do tombamento1 é preservar locais que de alguma forma são
importantes e ajudaram o desenvolvimento da região, porque tombar a casa de um
barão, e não um espaço de cunho industrial que desenvolveu economicamente e
socialmente a cidade?
Segundo Hugues de Varine no livro Museologia Social:

O cidadão é um ser político, ou seja, ele é responsável, individual e


coletivamente, por seu presente e por seu futuro. Para isso, precisa
reconhecer, respeitar e utilizar o patrimônio que o define em sua diferença e o
inscreve numa continuidade.Um Patrimônio é uma coisa herdada, enriquecida
e transformada, transmitida.É importante para o passado: ele materializa a
genealogia do indivíduo e da comunidade. É importante para o presente, pois
alimenta a cultura viva da qual ele é a fundação. É importante para o futuro
no que ele constitui um recurso a ser gerido e explorado (VARINE, 2000,
p.12).

A não preservação desses espaços associados aos trabalhadores está


nitidamente ligada a questões de exclusão social que :

São processos de vulnerabilidade, fragilização ou precariedade e até ruptura


dos vínculos sociais em cinco dimensões da existência humana em
sociedade: ocupacionais e de rendimentos; familiares e sociais proximais;
políticas ou de cidadania; culturais; e, no mundo da vida onde se inserem os
aspectos relacionados com a saúde (ESCOREL, 1999, p. 75).

A negação do protagonismo dos trabalhadores na formação de riquezas na


cidade de Curitiba e a não participação do usufruto da riqueza gerado por eles
próprios é extremamente problemática e explica a ausência de espaços ligados à
memória dos trabalhadores na cidade, já que dentre os mais de 60 2 bens tombados
em âmbito estadual em Curitiba somente 3 estão associados aos trabalhadores,
porém de forma desmembrada e não são tão acessíveis aos mesmos.

1
“O tombamento é o instrumento de reconhecimento e proteção do patrimônio cultural mais
conhecido, e pode ser feito pela administração federal, estadual e municipal. Em âmbito federal, o
tombamento foi instituído pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, o primeiro instrumento
legal de proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro e o primeiro das Américas, e cujos preceitos
fundamentais se mantêm atuais e em uso até os nossos dias.”
2
https://www.patrimoniocultural.pr.gov.br/Curitiba
9

O patrimônio é uma expressão vívida da identidade de uma sociedade, no


entanto ao longo da história, essa representação nem sempre foi inclusiva, muitas
vezes negligenciando a memória e a contribuição do trabalhador comum. Essa
dinâmica reflete a influência de ideias conservadoras e sua transformação ao longo
do tempo.
Dessa forma, busca-se explorar dinâmicas relacionadas à preservação,
identidade e patrimônio industrial, com o objetivo de destacar as problemáticas
decorrentes da destruição desses espaços. Esses locais possuem características
tanto materiais quanto imateriais que revelam aspectos significativos da história de
Curitiba, sendo pontos de referência para trabalhadores, moradores e transeuntes. A
análise visa compreender as interconexões e relações entre esses elementos, e
como influenciam a narrativa histórica das pessoas e da cidade.
No primeiro capítulo, é apresentada uma breve introdução às noções de
patrimônio, com foco especial no patrimônio industrial. Destacam-se suas
características e importância, proporcionando um entendimento mais profundo de
sua potencialidade. O capítulo subsequente concentra-se na história de Curitiba,
abordando o período industrial do início do século XIX até o final do século XX. São
levantadas questões estruturais relacionadas à formação da identidade do Estado, o
desenvolvimento da cidade, o processo de urbanização e a influência dos principais
planos diretores urbanos. O objetivo é compreender como o processo de
desindustrialização impacta a percepção atual da cidade.
No terceiro e último capítulo, baseado em duas entrevistas realizadas com
trabalhadores da fábrica Anaconda Moinho Industrial, busca-se analisar as relações
desses trabalhadores com a fábrica. Essas entrevistas têm o propósito de
complementar as referências teóricas sobre a fábrica, uma vez que o processo de
pesquisa enfrentou lacunas históricas significativas devido a mudanças
administrativas e à ausência de uma organização de memória institucional. Essa
abordagem visa preencher essas lacunas e proporcionar uma compreensão mais
completa das dinâmicas entre os trabalhadores e a fábrica no contexto da
preservação e identidade do patrimônio industrial em Curitiba.
10

1. PATRIMÔNIO e PRESERVAÇÃO

1.1 NOÇÕES PATRIMONIAIS

Ao longo da história, o conceito de patrimônio tem sido ambíguo e abrangeu


diversos significados. Sua origem remonta ao latim e está relacionada ao conjunto
de bens ligados ao "Pater famílias", o chefe familiar de estatuto maior na Roma
antiga, em que esses bens eram transmitidos de geração em geração. Atualmente, o
conceito de patrimônio é definido pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional) como um (...) "Conjunto de todos os bens materiais e imateriais
que, pelo seu valor, são considerados de interesse relevante para a conservação da
identidade e da cultura de um povo.” (IPHAN GOVERNO FEDERAL, 2007). Apesar
da definição oficial, não há um consenso absoluto sobre o que realmente constitui o
patrimônio. O conceito associado ao patrimônio por um longo período é de grandes
monumentos ou bens que possuem um padrão estético específico para cada cultura.
Portanto, podemos compreender o patrimônio como uma construção social, uma vez
que sua definição requer certo consenso por parte da comunidade. Dessa forma,
segundo Llorenç Prats, é importante considerar duas questões cruciais:

La primera de ellas es que la construcción social de la realidad no se puede


entender en ningún caso sin la intervención, más o menos directa, de una
hegemonía social y cultural (del tipo que sea). La segunda es que la
invención de la realidad no se refiere única y exclusivamente a elementos
(creados ex nihilo o transformados en un alto grado) sino también a
composiciones, cuyos elementos pueden haber sido extraídos inalterados de
la realidad, pero cuya ubicación en un nuevo contexto contribuye a crear otra
realidad, con otro sentido (PRATS, 1997, p. 20).

O caráter do patrimônio é de representação simbólica identitária de uma


realidade que legitima valores e ideias de quem o "constrói", que em conjunto com
outros elementos adquirem um caráter sagrado e essencial que não pode ser
perdido.
A concepção moderna do patrimônio, como um bem comum da sociedade,
começou a se desenvolver a partir do século XVIII, influenciada principalmente pela
Revolução Francesa. Nesse período, a busca por um governo que representasse o
povo e uma identidade nacional levou à destruição e vandalismo de diversos
monumentos e obras de arte associadas à nobreza e ao clero. Nesse momento que
11

aparece o debate por parte de acadêmicos argumentando que, mesmo que alguns
desses objetos representassem ou tivessem associações a nobreza, possuíam um
caráter maior do que sua representação, pois alguns contavam sobre a história da
França e de seu povo (CHOAY, 2001).
Mesmo com as transformações geradas pela Revolução Francesa sobre a
preservação de patrimônio, os processos de patrimonialização em sua maioria não
foram de comum acordo, o que resultou na construção de uma memória seletiva
sobre esses espaços institucionalizados, onde não englobava grupos excluídos
socialmente e menos privilegiados. Um exemplo disso foi o acontecimento da
Primeira Comissão de Monumentos Históricos na França em 1837, órgão
responsável por identificar possíveis bens patrimoniais, que privilegiavam bens
ligados a instâncias de poder, como palácios, catedrais e fortes, que possuíam
valores artísticos, históricos e técnicos específicos. Essa abordagem, embora com
boas intenções, mostrou-se imprecisa em relação ao verdadeiro entendimento do
que é patrimônio, deixando de considerar aspectos mais amplos e inclusivos.
Consequentemente, esse processo levou à “(...)elitização de bens conservados; de
um entendimento de identidade restritivo; do distanciamento da população em
relação às razões, normas e condições para a proteção do patrimônio.” (ZANIRATO,
2018, p. 15).
Conforme apontado pelo antropólogo Llorenç Prats, o processo pelo qual um
bem se torna patrimônio envolve uma dinâmica de "ativação", onde as instituições
de ordem social, como o Estado e a Sociedade, desempenham o papel de
ativadores. São essas instituições que estabelecem medidas de proteção e
institucionalizam o bem, retirando-o de seu contexto original e inserindo-o em outro
contexto, de acordo com seus interesses (PRATS, 1997). Esse processo de ativação
pode ser dividido em dois tipos principais: 1.Ativação estatal: nesse caso, o Estado,
junto com autoridades relevantes, institucionaliza o bem como patrimônio com base
em fatores históricos, artísticos e sociais. Um exemplo disso é o Palácio de
Versalhes, que foi tombado como patrimônio da humanidade pela UNESCO em
1979; 2.Ativação ligada à identidade: nesse cenário, a institucionalização do
patrimônio não necessariamente passa pelo Estado, mas é reivindicada por um
grupo com base em elementos de identidade. Um exemplo desse tipo de ativação foi
vista na cidade Saint-Étienne na França, no bairro Du Soleil, onde o grupo de
12

moradores preservou partes da antiga mineradora de carvão que prosperou no final


do século XVIII (ZANIRATO, 2018, p. 24).
No primeiro caso, para facilitar esse processo de ativação são invocados
referentes de identidade: dados do passado e uma série de informes que visam
articular a legitimação, na espera que haja o reconhecimento, por um grupo ou pela
sociedade, aquilo que se constituirá patrimônio (PRATS, 1997). No entanto, nem
todos os bens possuem naturalmente esses referentes de identidade e, em algumas
situações, esses referentes são impostos para criar uma identidade artificial,
resultando em um sentimento de não pertencimento e falta de reconhecimento em
relação a esses bens. Por vezes, pode ser proposital que sejam desconhecidos da
comunidade, pois não se questiona aquilo que não se conhece ou não se
compreende. Essa ação torna-se contraditória, uma vez que a própria ideia do
patrimônio implica em bens que pertencem e têm valor para a sociedade na
totalidade, levando-nos a refletir que muitos dos bens institucionalizados pelos
estados até a metade do século XX, na verdade só evidenciam um tipo de narrativa
ligado ao poder expresso em símbolos construídos por agentes pertencentes a eles.
A primeira conferência com o objetivo de criar parâmetros para proteção de
bens patrimônios ocorreu em outubro de 1931 e resultou na “Carta de Atenas” que
elencou ações em relação da preservação desses bens já que muitos eram
abandonados no sentido de seus usos, e ficavam à mercê de vandalismos e agentes
naturais de degradação. O abandono desses espaços se dá pela linha do
pensamento instaurado logo após a Revolução francesa de que os bens vistos como
monumentos não podiam ser utilizados, mais apreciados para garantir sua
integridade (CHOAY, 2001). A configuração dessa carta foi de extrema importância.
No entanto, ainda não definiu claramente o que poderia ser considerado patrimônio,
mantendo a abordagem voltada principalmente ao patrimônio monumental e
artístico, que muitas vezes estava associado à elite social.
A ampliação do entendimento sobre o patrimônio teve um marco significativo
após a Segunda Guerra Mundial, com a criação da UNESCO em 1946. Durante o
conflito, não apenas monumentos foram perdidos, mas também saberes e
paisagens naturais. A necessidade de preservar e valorizar não apenas os aspectos
materiais, mas também os imateriais e naturais, levou a grandes mudanças na
concepção de cultura, arte e história. A cultura passa a ser vista como bem de
acesso a todos e é deixado o referencial do patrimônio somente como monumento.
13

Esse entendimento vai ser melhor expressado na Convenção do Patrimônio Mundial


de 1972, na qual se considerou patrimônio as obras do homem e da natureza e a
importância de integrar esse patrimônio na vida coletiva e sua proteção nos
programas de planificação geral (UNESCO, 1972).
O patrimônio esteve historicamente focado na ideia de monumentalidade,
com políticas patrimoniais orientadas para a preservação desses bens físicos. A
introdução de outras perspectivas de narrativas patrimoniais foram fundamentais
para inclusão do patrimônio industrial, suscitando a reflexão inclusiva e dinâmica do
patrimônio ligado a narrativas mais amplas socialmente, que incluem atividades de
ofício e trazem representação.

1.2 PATRIMÔNIO INDUSTRIAL

O surgimento do patrimônio industrial se dá por consequência da Revolução


industrial, processo que trouxe marcantes mudanças econômicas, sociais e
tecnológicas que teve origem na Grã-Bretanha no final do século XVIII e se estende
até os dias atuais. Revolução essa que se deu graças ao processo de mecanização
gerada por máquinas a vapor. O termo "patrimônio industrial" emergiu nos meados
dos anos 1970, coincidindo com a ampliação do conceito de patrimônio. Embora sua
definição tenha ocorrido tardiamente, a preservação de objetos e saberes de cunho
industrial já era uma realidade no final do século XIX e início do século XX, porém
através de descrições e guarda de documentos ligados à memória institucional
(GOULARTE; VIEIRA, 2019).
A Carta de Veneza, no Artigo 1°, diz que “A noção de monumento histórico
compreende a criação arquitetônica Isolada, bem como o sítio urbano ou rural que
dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um
acontecimento histórico”. Na referência feita, a incorporação de "sítios urbanos"
pode sutilmente insinuar uma associação potencial com os complexos fabris, que,
ao longo do tempo, poderia ganhar importância histórica e se enquadrar dentro dos
termos de monumentos históricos inseridos em sítios urbanos.
Ao contrário de países como a Grã-Bretanha, que procurou já em 1962
identificar e inventariar seus patrimônios industriais criando um órgão próprio para
isso: o “Industrial Monuments Survey” e no ano seguinte em 1963 criando o NRIM,
responsável por criar parâmetros de preservação desses espaços. O Brasil não
14

possui nenhum tipo de inventário ou órgão dedicado a essa finalidade. Essa lacuna
dificulta o monitoramento adequado desses bens e a falta de conhecimento sobre
esses espaços representa uma enorme perda para a nação, já que “(...)devemos
considerar que ela inclui o repertório tecnológico e as relações entre os homens e
seu ambiente, assim como o conhecimento compartilhado de processos industriais
que se concretizam em relações sociais” (CERDA; BONAFÉ, 1995) Influenciam nos
nossos comportamentos ainda hoje, ajudando a entender as dinâmicas e atividades
dos grupos ligados a esses bens.
No entanto, o Brasil se destacou como pioneiro no reconhecimento do
patrimônio industrial, em contraste com outros países da América Latina por meio do
SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), instituição criada em
1938 com o objetivo de identificar e preservar o patrimônio brasileiro. Em um ato
inovador, no mesmo ano de seu surgimento tombou a Fábrica de Ferro Patriótica de
São Julião, em Minas Gerais, antes mesmo da própria UNESCO reconhecer, em
1978,3 a "Wieliczka Salt Mine", na Polônia, como patrimônio industrial mundial. No
entanto, apesar desse pioneirismo, passaram-se mais de 30 anos até que outro
espaço fabril fosse tombado: a "Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema", em
1968. Desde então, poucos espaços de cunho industrial foram devidamente
identificados e protegidos no Brasil. Dos 1187 bens patrimoniais tombados pelo
IPHAN4 (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), apenas 34 são
patrimônios industriais. Essa discrepância entre o número de bens patrimoniais
tombados e a representatividade dos espaços industriais evidencia a necessidade
de maior reconhecimento e valorização do patrimônio industrial brasileiro. Espaços
esses que são testemunhos valiosos da história da industrialização e do
desenvolvimento do país.
A definição e a importância do patrimônio industrial somente se consolidaram
em 2003 com a carta de Nizhny Tagil onde (...) “estabelecia a importância
fundamental de todos os edifícios e estruturas construídos para as atividades
industriais, os processos e as ferramentas utilizados e a paisagem em que se
inscrevem.” (CARTA DE NIZHNY TAGIL, 2003).
Essa carta reconheceu oficialmente a relevância histórica e cultural dos sítios
industriais, consolidando-os como elementos essenciais do patrimônio cultural da

3
Primeira fábrica tombada pela UNESCO.
4
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/126
15

humanidade. No entanto, mesmo com essa definição, a conscientização sobre a


preservação do patrimônio industrial ainda ocorre de forma lenta e muitas vezes
negligente, devido à complexidade envolvida na preservação desses espaços,
questões políticas, especulações imobiliárias e desinteresse, fatores que dificultam a
proteção adequada desses locais.
A preservação do patrimônio industrial é uma tarefa complexa, principalmente
devido à diversidade de suportes que compõem esse patrimônio. Para que um bem
seja compreendido e reconhecido como patrimônio industrial, é essencial que sua
integridade seja mantida. A integridade envolve a conservação dos elementos
físicos, históricos e culturais que compõem esse patrimônio, garantindo que sua
essência e significado sejam preservados ao longo do tempo, pois preservar
somente os edifícios fabris, sem a compreensão dos usos que tiveram e das
atividades ali desenvolvidas, não tem sentido, pois ela só é compreendida na
totalidade interligada a várias outras estruturas e etapas da produção
(MENEGUELLO, 2011). Devido a sua complexidade e falta de critérios de
valorização por parte dos órgãos oficiais de preservação que relutam em atribuir um
valor a esse tipo de bem, diversos espaços de caráter patrimonial industrial vem
sendo destruídos ou descaracterizados, causando uma enorme perda histórica e
social, como foi o caso do Frigorífico AMPLO S.A em Minas Gerais, no qual o prédio
foi reutilizado como campus universitário, porém todos os materiais presentes
relacionados com o Frigorífico dentro do prédio foram descartados sem nenhum tipo
de adendo ou levantamento de pesquisa (GOULARTE; VIEIRA, 2019, p. 47). O
surgimento da arqueologia Industrial terá um importante papel na preservação do
patrimônio industrial, já que não se estudava a ligação dos diferentes suportes que
estão englobados dentro do patrimônio industrial, o que poderia trazer uma
perspectiva incompleta sobre esse patrimônio já que não abarcavam todas as
relações dos suportes entre si, não entendendo sua complexidade e dependência de
componentes que o compõem. É em 1950 que surge na Inglaterra o termo
arqueologia Industrial, uma área que buscava entender as ligações e interligações
sobre esse ambiente e seus diferentes suportes e como eles mudaram e mudam a
sociedade até os dias de hoje. Mas, seu recebimento no meio acadêmico não foi
bem-visto, uma vez que ainda se tinha o entendimento de uma arqueologia voltada a
questões antropológicas e históricas tradicionais, sofrendo assim de enorme recusa
16

tanto pelos arqueólogos quanto por acadêmicos de outras áreas. Seu papel no
estudo do patrimônio industrial é fundamental já que:

(…) é um método interdisciplinar que estuda todos os vestígios, materiais e


imateriais, os documentos, os artefactos, a estratigrafia e as estruturas, as
implantações humanas e as paisagens naturais e urbanas, criadas para ou
por processos industriais. A arqueologia industrial utiliza os métodos de
investigação mais adequados para aumentar a compreensão do passado e
do presente industrial (CARTA DE NIZHNY TAGIL, 2003).

A partir da concretização da arqueologia Industrial como uma área foi possível


desenvolver estudos mais abrangentes e completos sobre o patrimônio, porém a
concretização da área não acaba com o problema da falta de conhecimento sobre o
patrimônio industrial. Se avaliarmos os currículos universitários de diversas
universidades, o patrimônio industrial em sua maioria não é discutido, poucas ofertam
como uma matéria, e quando ofertadas são em cursos muito específicos como
arquitetura e urbanismo. Na Museologia dentre as principais universidades do Brasil que
ofertam o curso (UNIRIO5,UFMG6,UFBA7) nenhuma oferece a matéria sobre patrimônio
industrial tanto como matéria eletiva quanto optativa. A falta de estudos na área acarreta
ainda mais o desaparecimento desses espaços já que por vezes ele passa em
totalmente desconhecimento pelas pessoas.
De acordo com os conceitos chaves da Museologia, Preservar “significa proteger
uma coisa ou um conjunto de coisas de diferentes perigos, tais como a destruição, a
degradação, a dissociação ou mesmo o roubo; essa proteção é assegurada
especialmente pela reunião, o inventário, o acondicionamento, a segurança e a
reparação.” (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 79). Mas para haver a preservação é
preciso que haja reconhecimento pela comunidade tanto acadêmica como regional, mas
como se sucederá isso se o assunto ainda tem pouquíssima valoração e voz?
Um importante movimento no Brasil para valorização e reconhecimento do
patrimônio industrial teve origem em 1998 com um grupo da Escola de Sociologia e
Política da Universidade de Campinas, que resultou na elaboração da Carta de
Campinas. Esse documento buscou descrever os desafios relacionados à proteção dos
patrimônios industriais, além de apontar mudanças pontuais que deveriam ocorrer
dentro das instituições governamentais para o efetivo reconhecimento e preservação

5
https://drive.google.com/file/d/13qrxpDMoqf9_3inHJEMbiAAYIQcyWAxz/view
6
https://ufmg.br/cursos/graduacao/2348/87378
7
https://www.museologia.ffch.ufba.br/sites/museologia.ffch.ufba.br/files/curriculo_do_curso_de_museo
logia_0.pdf
17

desse patrimônio. Ela representou um esforço significativo para sensibilizar a


sociedade e as autoridades sobre a importância dos espaços industriais para a
história e a identidade cultural do Brasil. Elenca 3 pontos interessantes:

1.Os testemunhos materiais das atividades produtivas (máquinas,


ferramentas, moldes, modelos e protótipos, instalações agrícolas e
industriais, oficinas e edificações pertinentes) desaparecem por serem
preteridos pelos Conselhos de Tombamento.

2.O tombamento de bens culturais edificados obedece frequentemente a


critérios estéticos, resultando na conservação de edificações oficiais e
particulares, fartamente decoradas e demonstradoras da riqueza de seus
construtores. Em contrapartida, as construções utilitárias, que aliam a
simplicidade e a funcionalidade ao despojamento decorativo, são por isso
frequentemente negligenciadas.

3.Edificações utilitárias eventualmente tombadas veem-se privadas de seus


equipamentos (caldeiras, carretões, forjas, fornalhas, guindastes,
laboratórios, máquinas e pilões de café. marombas, moendas, moinhos,
monjolos, noras, rodas-d'água, cisternas Decauville, menotrilhos Lartigues e
outros) pois esses bens dificilmente são contemplados no processo de
tombamento.

Analisando os pontos é possível ver que as problemáticas permanecem as


mesmas e o entendimento do patrimônio industrial como algo valioso é fugaz. Outro
ponto a se considerar é que dependendo da constituição social da região onde se
encontra ele vai ter maior ou menor relevância como o caso da cidade de Curitiba
onde não se dá tamanha importância ao assunto decorrente da conjuntura da
formação da cidade. Tema que será discutido mais adiante no próximo capítulo.
18

2. A CIDADE DE CURITIBA

A cidade de Curitiba começa a se formar no início do século XVII, decorrente


de expedições bandeirantes à procura de ouro, em uma vila fixada na região entre o
bairro Atuba e o Bacacheri. Posteriormente, com a não descoberta do ouro, a vila
mudou-se para a região da atual Praça Tiradentes, chamada na época de Praça
Dom Pedro II e hoje reconhecida como marco inicial da construção da capital do
Estado do Paraná. Em 1693, o pequeno povoado recebe o título oficial de “Vila
Nossa Senhora da Luz dos Pinhais”, que mais tarde viria a se chamar e ser
conhecida por Curitiba. Os primeiros relatos sobre a cidade vem de quando ainda
era uma vila caracterizada por campos e pequenas propriedades agrícolas, como é
possível perceber no relato de Auguste de Saint-Hilaire em 1820.

Curitiba mostra-se tão deserta, no meio da semana, quanto a maioria das


outras cidades do interior do Brasil. Ali, como em inúmeros outros lugares,
quase todos os seus habitantes são agricultores que só vêm à cidade nos
domingos e dias santos, trazidos pelo dever de assistir à missa (SAINT-
HILAIRE, 1978, p. 71).

Figura 1: Panorama de Curitiba, 1888, Carlos Hubenthal, aquarela.

Fonte: Acervo do Museu Paranaense

Essa característica rural vai ser predominante nas cidades do interior do


Brasil, até o final do século XIX. A cidade começa a se desenvolver em decorrência
das atividades do tropeirismo. É nesse período que vão se ter as primeiras
mudanças significativas na cidade, decorrente dos códigos de posturas, que
19

regulamentam a cidade em caráter urbano e social, regulamentados pelos


fazendeiros, que vão dominar as políticas do estado do Paraná até metade do
século XIX. Mesmo tendo esse poder, propriamente a criação de gado não era a
principal fonte econômica do estado, sendo a agricultura de subsistência. O quadro
geral da cidade, baseava-se em pequenos comércios varejistas e artesãos. A
cidade, mesmos que de ponto de passagem para os tropeiros, não via crescimento,
já que as estruturas úteis como bancos, cartórios, ou até mesmo compradores de
gado se encontravam em São Paulo. Outro ponto a ser mencionado é que esse tipo
de atividade não gerava empregos, o que fazia com que somente uma parcela muito
pequena da população tivesse ligada a esse tipo de produção.
Por volta de 1830, surge uma nova atividade e grupo social que impactará em
questões econômicas da cidade: a erva-mate. Diferentemente do tropeirismo, a erva
foi capaz de criar ligações múltiplas de trabalhos com as pessoas da cidade, o que
gerava incômodo pelos políticos tropeiros, tendo como consequência em seu início
um boicote sobre a produção de maneira desastrosa, já que os mesmos não se
enquadraram perante as muitas leis e regulamentos previstos na época, de controle
de “qualidade”, em decorrência de que a erva-mate vinha misturada a outras
plantas, e de que a produção estimulava a mão de obra livre (PEREIRA, 2021). Os
senhores de gado queriam manter a continuidade dos valores do século passado,
que se passava em exploração de mão de obra escrava e reduto sobre o controle da
rede de abastecimento alimentar. Na época, tinham-se quantidades mínimas de
compra e venda de alimentos com preços pré-estipulados para com o consumidor,
como pode ser observado na figura abaixo.
20

Figura 2: trecho do jornal “ A República ”, Curitiba 7 de dezembro de 1889

Fonte: Hemeroteca Digital

Esse fato gerou muitas intrigas entre os setores, já que os fazendeiros da


época tinham poder políticos e estipulavam a quantidade, preço e tempo de
produção que a erva-mate deveria seguir (PEREIRA, 2021). Mas, diferente do que
se esperava, a regulamentação da economia ervateira foi promulgada por esses
próprios senhores, devido ao impacto que ela causava na região. Onde a produção
de mate surgia, provocava imediatamente um crescimento populacional que
contribua para o processo de urbanização. Deve-se atentar que o conceito de
urbanização empregado no início do desenvolvimento da cidade tem um caráter
sobre surgimentos de construções e aumento populacional, o conceito que
conhecemos hoje é:

A urbanização é o processo de transformação de uma sociedade, região ou


território de rural para urbano, que evoca mudanças sociais, econômicas e
culturais, e não representa somente o crescimento da população das cidades,
mas o aumento dessa em relação aos habitantes do campo (IBGE, 2011).

Dessa forma, só poderá ser empregado para se referir às mudanças da


cidade, no início do século XX.
A modernidade chega a Curitiba a partir da construção da estrada de ferro
com a Ferrovia Paranaguá – Curitiba, inaugurada em 1885. Foi a partir desse
empreendimento que houve maior facilidade de importação e exportação de
produtos que contribuíram para o surgimento de novas atividades econômicas de
suporte à erva-mate, como a produção madeireira e seus derivados. Os mesmos
21

deram o pontapé para a industrialização da cidade, em decorrência da proximidade


com as linhas férreas e rios que permitiam descarte dos resíduos industriais
(FLORENZANO, 2021). E também pelo incentivo ao surgimento de técnicas de
mecanização no processo de produção da erva mate.

Figura 3: Ponte Preta do lado da estação Ferroviária, R. João Negrão, 1914

Fonte: Acervo do Museu Paranaense

Os primeiros engenhos de mate surgem no litoral do estado, por Francisco


Alzagaray em Paranaguá na metade do século XIX, com soques movidos por uma
espécie de moinho de água, que expandirá o uso da tração hidráulica na produção
do mate. Mesmo não sendo inovador, pois esse sistema já era utilizado em outras
regiões do Brasil para outras produções, o Paraná terá uma peculiaridade referente
à utilização desses processos de produção, que desde do seu início utilizavam-se de
mão de obra livre assalariada, iniciando, de modo primitivo, uma concepção de
como serão as fábricas (PEREIRA, 2021).
As mudanças estruturais na cidade podem já ser vistas no início da década
de 1880, pois a indústria de erva-mate tinha necessidade em relação com a cidade,
já que os trabalhadores e muitas instituições fabris (mesmo que primitivas) se
encontravam nas áreas urbanas. Desse modo, ela acabou por propiciar a criação de
instituições públicas e privadas de auxílio a essas necessidades. Como
consequência, a cidade começou a crescer de maneira desenfreada e já no início do
século XX as mudanças são visíveis a todos que passavam, como relata Nestor
Victor:
22

Quando eu fui para Curitiba, em 1885, nossa capital já tinha proporções


avantajadas e entre os exemplares da sua construção, aí já quase que
completamente à feição germánica, encontravam-se vários prédios
importantes. Já era grande a diferença entre tal edificação e a daminha
retardatária Paranaguá, quer pela massa total, quer pelo valor de tantos dos
seus espécimes. Delineava-se desde esse tempo uma linda cidade, bem
diversa daquela de que fala o engenheiro Taulois, da qual, dizia ele, "
somente duas ruas se contam em ângulo reto, a da Assembléia (hoje Dr.
Muricy) e a do Comércio (hoje Marechal Deodoro), afastando-se todas as
outras mais ou menos dessa disposição". Em 1900 escrevia o Dr. Sebastião
Paraná que Curitiba contava com 3.100 prédios, fora os dos arredores, e
calculava ter 35.000 habitantes em todo o município (VICTOR, 1912).

Mesmo com um desenvolvimento gerado pela indústria, a cidade permanecia


com os mesmo problemas estruturais de uma vila, que vão se perpetuar até a
criação dos primeiros planos urbanísticos da cidade.

Figura 4, 5 : Inundação em Curitiba, 11 de fevereiro de 1947

Fonte: Acervo do Museu Paranaense

Com o crescimento econômico do Mate nacionalmente e internacionalmente,


mais engenhos foram surgindo em Curitiba, o que aumentou o número de pessoas
ligadas a essa indústria e seus suportes (PEREIRA, 2021), o que acabou com a
agricultura de subsistência, pois ela não conseguia atender a crescente demanda da
região. A transformação ocorrida resultou na diminuição do poder político dos
latifundiários, que anteriormente sustentavam predominantemente a agricultura de
subsistência e a ineficaz produção de trigo até meados do século XX.
Como consequência desse crescimento surgiu a uma necessidade do estado
do Paraná pela busca de uma identidade regional. Ele era visto pelo restante do
Brasil como algo sem importância, como nas palavras de Brasil Pinheiro Machado
(...) “não tem um traço delles alguma coisa notável” (apud PEREIRA, 1997),
23

característica que se estende pela cidade de Curitiba mesmo com seu


desenvolvimento industrial, ainda caracterizada por ser uma cidade de passagem
pelas tropas de gado. É então que surge no final do século XIX um movimento no
estado, com força principalmente em Curitiba e Campos Gerais, que buscava
construir uma identidade e um sentimento de pertencimento territorial para o povo, “
O Paranismo“. Era caracterizado por exaltar a natureza territorial, o progresso
através do trabalho, e a justiça, pautado sobre o desenvolvimento do estado,
sobretudo apoiado pelos intelectuais da época, que criaram símbolos, mitos e
discursos que colocavam o estado com características particulares que o
diferenciavam do resto Brasil (PEREIRA, 1997).
A principal base dessa construção eram os imigrantes, na verdade, o estado
realizou uma verdadeira campanha nos anos 1880 e 1930 para atrair imigrantes ao
estado, criando um discurso de que somente no Paraná se veriam misto de etnias
que conseguiriam viver pacificamente num mesmo lugar. O grande impasse foi que
os imigrantes que aqui escolheram residir não tinham pretensão de se enquadrar
dentro dos costumes brasileiros, para se adaptar a tal, o movimento então se definiu
que “Paranista é todo aquele que tem pelo Paraná uma afeição sincera, e que
notavelmente a demonstrar em qualquer manifestação de atividade útil à
coletividade paranaense”, (PEREIRA, 1997). O problema é que a criação dessa
identidade, criava um discurso que excluía a participação dos negros escravizados
na construção do Paraná, referindo se ao mesmo como “Terra Europeia”. O ponto é
que essas pessoas existiam e foram primordiais para construção do estado e para a
luta com o trabalho fabril, construindo sindicatos e sociedade operárias, já que
transitavam em peso por esses espaços.
O reflexo desse processo de imigração vai contribuir para que as primeiras
fábricas que surgiram na cidade fora do eixo erva-mate fossem sobretudo negócios
familiares, administrados por imigrantes europeus que vinham ao estado para
solucionar problemas de demografia e mão de obra de subsistência. Essas fábricas
eram voltadas para produção alimentícia e têxtil, vinculado à agricultura que
contratavam, sobretudo, imigrantes europeus (BOSCHILIA, 2010). A prática
migratória para os grupos europeus vinha acompanhada de uma expectativa de
melhoria de vida. Em sua maioria, agricultores que não conseguiam se sustentar no
meio rural, em decorrência de grandes latifundiários que acabaram por expulsar os
pequenos produtores, e pela recusa de se proletarizar nas fábricas das cidades.
24

Quando chegavam ao Brasil, muitos se frustraram com a realidade em que eram


recebidos. Os pedaços de terra não ofereciam estruturas básicas para recebê-los.
Muitos acabavam por vender ou abandonar seu pedaço de terra e voltar ao seu
país. Os que ficavam em solo brasileiro e continuavam nas colônias tinham uma
realidade difícil, levando muitos a migrarem novamente agora para as cidades,
sujeitando-se à realidade das fábricas que queriam evitar (NADALIN, 2001).
A maioria dos trabalhadores residiam em vilas operárias nas proximidades
das fábricas, como a Vila Pimpão localizada no bairro Portão, e a Vila Iguaçu no
bairro Rebouças, bairros industriais de Curitiba até meados do século XX. As vilas
eram frequentemente administradas pelas próprias empresas, e os que não residiam
nas vilas, viviam em ocupações periféricas localizadas nas bordas da cidade,
atualmente na região dos bairros Cajuru, Pinheirinho e Boqueirão. Em 1955, com a
implementação das linhas de ônibus para o transporte público na capital, as fábricas
passaram a contratar trabalhadores de regiões mais distantes, mesmo na época
algumas fábricas ofereciam serviços de fretagem de ônibus para os funcionários,
como o caso da Fábrica de Fitas Venske (BOSCHILIA, 2010).

Figura 6 : Planta Vila Pimpão, SEM DATA.

Fonte: Acervo do Museu Paranaense


25

Figura 7: Avenida Presidente Getúlio Vargas, entre as fábricas da Mate Leão Júnior e a Brahma, no
bairro Rebouças - 1949

Fonte: Acervo Casa da Memória

Os operários das fábricas eram predominantemente do sexo masculino,


embora houvesse uma presença significativa de mulheres, especialmente em
fábricas com características alimentícias e têxteis. O perfil dessas trabalhadoras era
frequentemente composto por mulheres imigrantes, menores de idade e
provenientes de famílias de baixa renda. O emprego era encarado quase como um
"rito de passagem" de curto prazo para arrecadar fundos para o enxoval de
casamento (BOSCHILIA, 2010). Muitas delas abandonavam o trabalho nas fábricas
ao se casarem, sendo que apenas uma parcela muito pequena continuava,
geralmente para complementar a renda familiar. Esta realidade contrastava com a
experiência das mulheres negras, muitas das quais trabalhavam até em dois turnos,
em diferentes fábricas, a fim de sustentar suas famílias (BOSCHILIA, 2010).
No início, para esses trabalhadores imigrantes o trabalho era visto como algo
semestral e exaustivo, muitos trabalhavam metade do ano nas fábricas para
conseguir uma renda suficiente para bancar pequenas regalias, fruto de sua vida
anterior na Europa e no restante do ano se acomodavam se dedicando à agricultura
de subsistência (PEREIRA, 2021). Realidade essa muito diferente dos trabalhadores
brasileiros e ex- escravizados, no qual se mantinham ainda vinculados à agricultura
de abastecimento, trabalhos nos latifúndios e atividades ligadas ao artesanato, e se
26

colocavam dentro do espaço fabril em turnos em que os imigrantes não se


sujeitavam (BOSCHILIA, 2010).
Com a decadência do setor erva mateiro em 1930, a economia curitibana
entra em crise e surge uma nova matéria em potencial: a indústria madeireira. As
duas atividades propiciaram o desenvolvimento de uma elite social econômica que
influenciam políticas comerciais até os dias de hoje. Este processo industrial
acelerou de maneira indevida o crescimento urbano da cidade, que em 1920
contava com mais de 90 mil habitantes, distribuído em uma cidade com quase
nenhuma estrutura urbana, para atender às demandas.
Em 1930 surgem as primeiras tentativas de organização da cidade através da
criação de planos urbanísticos, o primeiro deles hierarquizava a mesma em 3 zonas
estruturais que delimitavam o que poderia ou não ser construído, eram elas: Zona I -
destinada ao comércio e residências da elite social; Zona II - designada as fábricas e
moradias de operários padronizadas (vilas); e Zona III - designada a moradias
operárias sem padronização e pequenos sitiantes (FLORENZANO, 2021).

Figura 8: Vista aérea cidade de Curitiba década de 1940

Fonte: Acervo Paulo José Costa


27

A partir de 1940 a cidade teve que passar por uma nova remodelação
decorrente do aumento populacional que passava de 140 mil habitantes, que gerava
superlotação de algumas zonas. Assim sendo, em 1943 é instaurado o primeiro
plano diretor da cidade, o “Plano Agache" que organizava as funções e edificações
urbanas a fim de estimular o desenvolvimento da capital, categorizando as áreas por
centros setorizados. O plano, em suprassumo, oficializava alguns bairros como
centros industriais, como o caso do Rebouças que desde o século XIX vinha
abrigando as indústrias da cidade, mas propunha a saída de diversas fábricas do
local, pois eram incompatíveis com vizinhança (BARZ et al.,1997). A verdade é que
com o crescimento da elite curitibana, as fábricas foram vistas como empecilhos,
pois manchavam a imagem da cidade, com suas vilas operárias e chaminés. Desse
modo, muitas fábricas foram obrigadas a se retirarem por questões econômicas e
espaciais, o que iniciou o processo de desindustrialização da cidade, deixando
inúmeros estruturas abandonadas e trabalhadores desempregados.
Com o constante crescimento populacional e a necessidade de se criar novos
Planos Urbanísticos, iniciou-se em 1964, a criação do plano preliminar de urbanismo
pelo então órgão então criado em 1965 o IPPUC,8 que propunha melhor
estruturação das zonas e recomendava a transferência dos bairros industriais para o
sul da cidade, premeditando o surgimento da Cidade Industrial de Curitiba
(OLIVEIRA, 2001).

2.1 A CIDADE INDUSTRIAL DE CURITIBA

A região onde se compreende atualmente o CIC era uma zona rural com
poucos habitantes, espalhados por algumas colônias polonesas e inúmeras
chácaras. As únicas fábricas por ali ainda eram as barricadas de suporte ao mate.
Nos anos 60, a região ainda era um imenso vazio, porém já em 1962 a CODEPAR9
manifestava interesse em industrializar a área.
Como consequência do Plano Agache, muitas pessoas saíram da região
central, e foram morar nas redondezas, inclusive no CIC, que gerou a construção de
8
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, que cabe a ele orientar, fiscalizar e
implementar os planos diretores da cidade. https://ippuc.org.br/o-ippuc
9
A Companhia de Desenvolvimento do Paraná (CODEPAR) foi um organismo governamental criado
em 1962 com a finalidade de promover o desenvolvimento econômico do estado.
28

diversas favelas. Em decorrência disso, em 1966 o governo inaugurou o primeiro


conjunto habitacional do país, a “Vila Nossa Senhora da Luz”, com expectativas de
alocar essas pessoas, para servirem de mão-de-obra às indústrias que viriam para a
região futuramente (FENIANOS, 2001). Embora houvesse esse projeto, morar na
Vila Nossa Senhora da Luz nessa época e até atualmente é um desafio. Faltava
tudo: não tinha postos de saúde, saneamento básico, asfalto e, em algumas casas,
nem luz havia. Quando chovia a região virava um lamaçal sem tamanho. Como não
havia abastecimento de água, a população fazia fila nos inúmeros poços que havia
nas pracinhas da vila (FENIANOS, 2001).
Em 1973 mesmo com todas essas problemáticas, surge a CIC, fruto do Plano
Preliminar que já em 1965 realizou várias transformações na região como
desapropriação de terras, aberturas de rua, canalização de rios e construções de
conjuntos habitacionais, além de instalações de complexo de transportes como os
ônibus, já que os trens deixavam de passar pela região para transporte público,
sendo usado somente para veículo industrial de carga e descarga. Com as
transformações estruturais, emergiram numerosos problemas sociais, destacando-se
especialmente a pobreza e a violência, que se perpetuam até os dias atuais
(FENIANOS, 2001).

Figura 9: Construção do CIC, SEM DATA

Fonte: Acervo do Museu Paranaense

A ideia inicial era formar uma região onde pudessem agrupar e segregar
todas as indústrias da cidade e seus trabalhadores, fomentando o desenvolvimento
29

da mesma enquanto atraía novas fábricas para a região com o intuito de se fazer
gerar um polo industrial no estado do Paraná, ao mesmo tempo que transformava a
cidade de Curitiba em rota turística, jogando todos os problemas urbanos e
estruturais para as margens da cidade e região metropolitana. Porém, mesmo com
várias concessões fiscais e terrenos vendidos abaixo do valor de mercado, as
fábricas ficavam pouco tempos, decorrente de faltas de estruturas urbanas, o que
levou as dívidas fiscais exorbitantes pagas até hoje (OLIVEIRA, 2001).
Quando o país entra em crise em 1980, decorrente do aumento das taxas de
câmbio e endividamento externo e as empresas estrangeiras começam a comprar
as pequenas empresas nacionais instaladas na região, muitas fábricas são
abandonadas, levando a região a precarização, pois não havia lugares para se
trabalhar na região e as expectativas que no início do projeto eram gerar 30.000
empregos caem pela metade, fazendo com que a região tenha uma superpopulação,
tornando-se a região mais habitada de Curitiba e sem nenhuma estrutura urbana
para acomodar essas pessoas, fazendo com que hoje o CIC de uma grande
promessa vire uma das áreas mais pobres da cidade.
O processo de desindustrialização pode ser definido como sendo uma
redução persistente da participação do emprego industrial no emprego total de um
país ou região (Rowthorn e Ramaswany, 1999). Não causa somente uma perda
histórica para as cidades, mas afetam as relações e os ambientes em que as
pessoas transitam, principalmente para com a vida dos trabalhadores que
frequentam esses espaços, que são afetados de maneira econômica, social e
política, pois o espaço do trabalho também é um espaço de sociabilidade que evoca
sentimentos de memória e constroem identidades a partir dessas relações, desse
modo a perda desse patrimônio causa um apagamento de uma página da nossa
história, que gera danos irreversíveis (KÜHL, 2022).
Como se evidencia na análise, as fábricas e indústrias sempre
desempenharam um papel crucial na configuração da cidade. Contudo, com o atual
processo de transformação que vem desde do início do século XX, grande parte da
memória industrial de Curitiba está se dissipando, especialmente devido à ausência
de políticas efetivas de preservação desse patrimônio. Dada a relevância desse
contexto, especialmente nas investigações relacionadas ao Patrimônio Industrial,
propõe-se uma análise da fábrica Anaconda, com ênfase na preservação da
memória dos trabalhadores.
30

3. ANACONDA MOINHO

Os moinhos surgem no Brasil na segunda metade do século XVIII no Rio


Grande do Sul em conjunto com a cultura do trigo. Porém, as tentativas de se
cultivar a plantar começaram no século XVI na época da colônia. A semente, ainda
que de baixa qualidade, conseguia produzir grãos férteis que supriram as
demandas, até começo do século XIX, quando a ferrugem devastou plantações.
Ainda que com as baixas na produção, o estado do Rio Grande do Sul era o maior e
praticamente único produtor brasileiro de trigo, porém não conseguia concorrer no
mercado externo (ABITRIGO, 2016).
Esse desenvolvimento só foi possível graças aos investimentos do Estado
Novo implantado por Getúlio Vargas que determinou que os pães e derivados
deveriam ser produzidos com apenas 70% de farinha de trigo e os outros 30% com
qualquer outro tipo de farinha. Gerando uma redução na importação de trigo, que
consequentemente aumentou a produção nacional, já que os mesmos eram
obrigados a comprar trigo nacional. Em 1941, quando Argentina e Brasil fizeram um
acordo que reduzia por dez anos a obrigatoriedade da mistura na farinha,
diminuíram-se as lavouras e muitos moinhos fecharam. Quando voltou ao poder em
1951, Getúlio promulgou uma lei que os moinhos só poderiam importar trigo se já
tivessem comprado uma cota estipulada por moinho de trigo nacional, que havia tido
redução de preço, o que gerou aumento no número de moinhos novamente. Quando
a ditadura chega no país, a importação de trigo passa a ser exclusivamente do
Banco do Central do Brasil, responsável por comprar o cereal dos produtores e
revendê-lo aos moinhos, o que fez com que o trigo subisse de preço e as empresas
não lucrassem com as vendas, gerando o fechamento de diversos moinhos. Em
1990 quando foi revogado o Decreto-Lei 21010 havia apenas 178 dos quase 500
iniciais (ABITRIGO, 2016).
A Anaconda Moinho nasceu em São Paulo em 1951, nesse contexto, fruto da
sociedade entre "Dias Martins & Cia” e da empresa inglesa “Robinson Engineers and
Millers”. A Dias Martins — formada em 1929 inicialmente por imigrantes
portugueses, sendo eles Alberto Dias, João Dias, João Martins e José Pereira
Mendes Júnior — era comércio de secos e molhados. A firma liderava o comércio

10
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-210-27-fevereiro-1967-375790-
publicacaooriginal-1-pe.html
31

por atacado na região de São Paulo e Paraná, já que não haviam mercados e
possuíam o sistema de atacado (COMENDADOR).
A Dias Martins no início tinha uma participação de 25% do capital total da
Anaconda e após algum tempo assumiu a administração, adquirindo toda a
participação, sendo proprietária de 100% do capital da "Anaconda Industrial e
Agrícola de Cereais S/A". Em 09 de fevereiro de 1959, o Sr. João Martins desliga-se
da sociedade e assume o Moinho de Trigo Anaconda, que tinha sido adquirido pela
"Dias Martins S/A" alguns anos antes.

Figura 10: Mapa da região onde se localiza a Anaconda Moinho, na imagem é possível visualizar
além da fábrica a rodoferroviária de Curitiba, 2023

Fonte: Google Maps

A construção do moinho em Curitiba iniciou em 1948 e se perpetuou até


1958, com a empresa já em funcionamento. Ele surge decorrente da necessidade de
mecanizar a produção de trigo que havia aumentado no estado do Paraná a partir da
década de 1930.11 Localizada na região do Capanema, atual Jardim Botânico, a
empresa inaugurou em 9 de agosto de 1957, na rua Engenheiro Leão Sounis n° 320
11
Em 1928, quando entra como secretário da agricultura do Paraná Romário Martins, é que
aumentaram os estudos e investimentos na área de triticale, descobrindo inclusive que o melhor trigo
para plantação no estado era de origem mexicana, o Barbetta, fazendo com que fosse cultivado no
estado em maior escala, e que tivesse melhor qualidade, já que todas as outras sementes tinham
problemas com a ferrugem. Nesse período, começaram a surgir os moinhos de trigo na cidade de
Curitiba, inclusive a Anaconda, o estado já em 1980, vira o maior produtor de trigo do país.
32

Jardim Botânico, porém a finalização do moinho e a data de inauguração na


imprensa oficial ocorreu em 27 de novembro de 1958. Quando inaugurou,
trabalhavam na empresa 115 empregados, incluindo administrativos, aos quais a
empresa prestava assistência médica gratuita, bem como aos seus familiares e
ainda possuía a União Recreativa Anaconda, um clube social, que congregava os
empregados da firma e seus familiares (BUSSE, 1962).

Figura 11: Anaconda Moinho, 1960

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda

3.1 MEMÓRIAS DOS TRABALHADORES

Sendo a fábrica uma das mais antigas da cidade e ainda estando em


atividade no mesmo local, pretendesse analisar a memória industrial a partir dos
depoimentos de trabalhadores, para levantar questões sobre memória e
identidade.Com esse propósito, foram conduzidas duas entrevistas, uma com um
homem e outra com uma mulher que acumularam 40 e 30 anos de experiência na
empresa, respectivamente. Designaremos o homem como Entrevistado 1 e a mulher
como Entrevistada 2, facilitando a compreensão dos relatos. A análise buscou
33

examinar as interações de ambos com o ambiente, a empresa e os colegas de


trabalho, com o objetivo de compreender a importância da preservação desse
espaço como patrimônio industrial e também como um criador de identidade na
perspectiva operária moageira.
A empresa possuía uma relação paternalista, típica da época do Governo
Vargas, que se baseava na ideia de criação de uma grande “família corporativa”,
fato esse perceptível nas falas dos entrevistados. Esse sistema formado
subentendia-se como uma “parceira” no qual os direitos eram mantidos pelo Estado,
que impedia que os trabalhadores entrassem em conflitos com os patrões, tirando
sua autonomia, já que os sindicatos que começam a surgir na década de 1930 só
poderiam funcionar através de aprovação governamental (LOPES, 1997). Desse
modo, os contrários às ideias do governo eram barrados. Como consequência
dessas ações, surgiu nesse período um trabalhador, de certo modo, acomodado,
que possuía uma relação fraternal e obediente ao patrão, pois não gerava conflito, o
trabalhador “modelo”, que possuía moral por obedecer. Esse sistema vai perdurar
até a 2° geração de ‘patrões’ da fábrica, como relatam ambos os entrevistados. Essa
mudança pode ser entendida primeiro pela abertura da empresa a novos sócios, e,
segundo, pela mudança estrutural fabril decorrente do pós-ditadura, que fortaleceu
movimentos sindicais, já que com a retirada de direitos e baixos salários os
sindicatos deixam seu perfil da Era Vargas de passivos e acomodados para se
tornarem ativos para com a luta do trabalhador, mudando o perfil do trabalhador
modelo, que vai contestar e se impor, em que, por consequência, a convivência
diária desses grupos foi se diluindo. Apesar disso, essa relação paternalista ainda é
percebida nas falas dos entrevistados, como na entrevistada 2, onde é perceptível o
sentimento de dependência emocional com o espaço de trabalho, já que foi seu e
único emprego.

Anaconda foi a única empresa em que trabalhei, meu primeiro emprego,


estou lá a 30 anos. Todas as experiências profissionais adquiri nessa
empresa, trabalhando em diversos setores. E tudo que conquistei
materialmente falando também foi através desse trabalho. Se ela sumisse,
seria como uma grande parte do que vive sumisse também . Ficaria em luto,
entristecida (ENTREVISTADA 2).

Sendo o entrevistado 1 o mais antigo da fábrica atualmente, é possível


entender que esse status de “família corporativa” era um ponto importante para além
34

do fornecimento de moradia, pois a empresa sediava terrenos em volta da fábrica


para seus funcionários, tinham como prioridade morar na mesma encarregados,
eletricistas e mecânicos, porém em meados dos anos 90 a empresa começou a
retirar os funcionários e moradores do entorno, comprando terrenos com o intuito de
expandir os pátios de caminhão. Para ele, morar do lado da fábrica era vantagem,
pois quando teve de deixar o imóvel no final dos anos 90 já estava melhor
estruturado economicamente, o que fez com que pudesse ter uma qualidade de vida
melhor. Essas “regalias” passavam a sensação de proteção e segurança aos
trabalhadores que acabam por permanecer no ambiente por comodidade.

(...) quando eu entrei na Anaconda meu propósito era trabalhar no máximo 3


anos, esse era meu propósito, mais dai vai aparecendo as oportunidades e
você vai gostando do trabalho, criando vínculo, e isso vai te segurando
(Entrevistado 1, 2023).

É perceptível que as relações de sociabilidade12, mesmo que dentro de


associações formais, geram relações afetivas que perduram mesmo com a
inexistência das mesmas, percebendo-se que um dos pontos importantes para
criação de identidades são essas interações entre grupos e dentro dos grupos
criados por esses espaços de lazer e convivência, mesmo que forçados, como o
ambiente de trabalho. A convivência dentro dos espaços de sociabilidade é bastante
lembrada e repetidamente marcada nas falas dos entrevistados, que sempre
mencionam as horas de almoço e as confraternizações vividas de uma maneira
terna. Até mesmo fazem piadas sobre os colegas e superiores, comentando sobre
situações inusitadas vividas dentro da fábrica, como relata o entrevistado 2.

(...) o pátio era tudo de areia e pedra, aqui onde é o salão de jogos era uma
cancha de vôlei, a gente jogava vôlei na hora do almoço, aí onde era a casa
de cola, tinha um espaço onde a gente jogava malha. Nessa época não tinha
almoço nem refeitório, trazia marmita, essas marmitas ficavam… tinha um
negócio com água, você trazia sua marmitinha e elas ficavam em banho
maria, as vezes você ia ver tinha roubado seu ovo, seu bife, porque o pessoal
roubava a carne do outro (Entrevistado 2, 2023)

12
Entendia como interações entre os grupos associados formais e informais que podem vir a criar
ligações associativas afetivas ou não, que transpassam espaço e tempo (DORÉ; RIBEIRO, 2019)
35

Figura 12: Trabalhadoras da fábrica no intervalo, SEM DATA

Fonte: Acervo particular entrevistada 2

O trabalho pode ser percebido então como é: um elemento importante na


constituição da identidade em nossa sociedade. Podendo ser visto como uma ação
afirmadora da existência humana, ele inclui o indivíduo como agente participativo na
construção do ser social, desenhando trajetórias de vida e características individuais
(MORAES, 2009).
Ambos os entrevistados ingressaram na empresa em cargos baixos — sendo
também seus primeiros empregos — em que desenvolveram suas percepções
iniciais com o mercado de trabalho. A partir dos relatos, fica perceptível que o
investimento oferecido aos funcionários e a promessa de poder crescer no ambiente
de trabalho motivou as questões de permanência, configurando um fator de
estabilidade. A empresa fornecia recursos para estudos profissionalizantes na área
não só para os funcionários, mas para a comunidade ao entorno, criando um
sentimento de pertencimento e fazendo com que essas pessoas criassem uma
espécie de enraizamento, em que existia a possibilidade de se ter várias pessoas da
mesma família trabalhando no mesmo lugar, fortalecendo essa relação ‘familiar’
entre os funcionários e a empresa onde os mesmos passam considerar a fábrica
36

como sua segunda família. Esse ideia pode ser entendida dentro da fala do
entrevistado 1, quando menciona sobre sua família.

Minha família, se não fosse a empresa eu não teria a família que eu tenho
hoje, minha esposa eu conheci aqui, minha primeira esposa. Eu tenho uma
boa relação com a empresa sempre tive, com a 1 e 2 geração dos donos, a
primeira não tinha muito vínculo da segunda eu já tinha, a 3° eu não conheço
muito. A empresa faz parte da minha história de vida, eu já sai em revista
reportagem por causa da anaconda, você se sente parte da empresa, se eu
não gostasse do trabalho e não tivesse uma relação boa com as pessoas, eu
acho que não estaria pelo salário. O salário é ruim? não, o salário é bom, mas
não é o suficiente, o ambiente de trabalho, o relacionamento com as pessoas
acabava se tornando uma outra família. eu tenho uma relação muito boa com
a empresa e com minha equipe (...) (Entrevistado 1, 2023).

Para Joel Candau, a identidade é o reconhecimento de si. Identidade e


memórias são dissonantes e andam juntas, pois é através da memória que se
constitui um reconhecimento de si, entendendo se como indivíduo, pois:

Se a memória é "geradora" de identidade, no sentido que participa de sua


construção, essa identidade, por outro lado, molda predisposições que vão
levar os indivíduos a "incorporar" certos aspectos particulares do passado
(CANDAU, 2011).

De certo modo, pode ser entendido que a memória social caracteriza a


coletividade, que tem como referência, marcos sociais, ou seja, fatos,
acontecimentos, percebidos pelo grupo e que produzem recordações que podem ser
compartilhadas por vários indivíduos. Os marcos sociais são compartilhados pelo
grupo e servem como evocadores, mas cada indivíduo produz representações,
pessoais ou individuais, a partir desses marcos. Desse modo essas configurações
de memória se caracterizam por dar unidade ao indivíduo (CANDU, 2011).
Mesmo hoje, em que essas relações sociais, entre os trabalhadores, e
patrões da fábrica não tenham mais tanta profundidade, ela é usada como uma
forma de identidade individual que adentra uma memória coletiva. Se hoje a
Anaconda desaparecesse, seria a morte de uma comunidade, de uma identidade de
trabalhadores operários, pois não haveriam mais referências materiais e imateriais
de suas próprias histórias. Quando perguntado aos entrevistados como se sentiriam
se a empresa simplesmente sumisse, há uma relação de luto. Frases como: “se ela
sumisse, seria como se uma grande parte do que vivi sumisse também”
(Entrevistado 2, 2023) e “como perder um ente querido, alguma coisa morreu”
37

(Entrevistado 1, 2023), demonstram sentimentos de afetividade ligado ao espaço


fabril, em que a mesma deixa de ser somente um espaço físico e vira um elemento
participativo atuante na vida dessas pessoas.
O patrimônio industrial está intimamente relacionado às memórias e histórias
dos locais e das mudanças sociais, desse modo ela sempre estará ligada à
identidade local.(TICCIH, 2003). Pois a mesma é o agente protagonista para que
essas relações aconteçam, desse modo preservá-la, não está ligada somente a
história da empresa, mas sim a histórias das pessoas e de processos de
transformação que de alguma forma estão ligadas a ela, sendo funcionários ou não,
pois ela é o plano de fundo de muitas outras relações. A preservação do patrimônio
tem o poder de recuperar identidades, mas também de construir outras, a partir da
sua relação com a comunidade. Mesmo o entrevistado 1 não entendendo conceitos
teóricos aqui apresentados, quando questionado se ele acha que pela saída das
pessoas da região a história da fábrica ia se perder ele disse.

Hoje a Anaconda presta um trabalho voluntário para o colégio de brando aqui


do lado, acho que isso traz um pouco… continua um pouco a história, esse
alunos vêm visitar a Anaconda, e a gente conta um parte dessa história pra
esses alunos, e eles são curiosos enchem a gente de pergunta, e eles
acabam levando essa historias pra casa, e acabam criando essa relação
ainda com o bairro, pois esse pessoal que estuda no colégio é do bairro,
mora no jardim botânico, nas torres, o capanema de antigamente . a partir do
momento que se perder esse vínculo com os alunos, aí sim essa história vai
se perdendo (Entrevistado 1, 2023).

Na fala é possível perceber que as relações com a comunidade perpetuam e


constroem novas narrativas. De acordo com informações internas da empresa,
existem funcionários que enquanto adolescentes participaram desses projetos
sociais e hoje trabalham na mesma, validando como as interações da fábrica com o
entorno reforçam processos identitários.
38

Figura 13 e 14: Projetos realizados com a comunidade entorno da fábrica.

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda.

Essa formação de identidade é criada através das memórias sociais, definidas


por um conjunto de lembranças reconhecidas por determinado grupo
(HALBWACHS, 1990) entre essas interações sociais dos próprios operários, do
espaço e da empresa. Em virtude disso, pode-se entender que as memórias são
formadas pelas relações de grupos que acontecem num determinado ambiente,
sendo a partir disso que se dará significado à cultura material, transformando-a em
patrimônio.
As técnicas de produção também definem as relações desses trabalhadores.
Antes mesmo das perguntas sobre tal serem realizadas, ambos de forma
espontânea contam sobre as máquinas e os processos de produção antes mesmo
das suas trajetórias de vida e empresa.

(...) quando eu entrei a empresa trabalhava com 2 diagramas de moagem, e


¼ que estava instalado, mais não estava em funcionamento. eu entrei em
meados de 1983 tava com 3 diagramas, 89 rodou o quarto diagrama,
capacidade de 1000 toneladas de 4 diagrama de moagem, mais
devagarzinho foi tirando os diagrama ( Entrevistado 1, 2023).

(...) quando eu entrei aqui, eu entrei trabalhando na produção, no


empacotamento de 5 kilos, trabalhei durante 6 meses, tinha mais de 200
mulheres naquele setor, tinha diversas máquinas e era tudo manual, eu sou
do tempo em que os pacotinhos não eram colados, existia uma máquina de
costura, com agulha e fio que passava, na ‘boca’ do fardinho e costurava (
Entrevistado 2, 2023).

Esses processos são marcados por enfadonhas memórias de práticas


inexistentes atualmente, decorrente da automatização de todas as etapas de
produção. Essa transformação não mudou somente as ferramentas de produção,
mas também a vida dos trabalhadores, já que reduziram o número de funcionários
39

pela metade: dos 400 funcionários existentes no início da década de 90, restam
apenas 200, sobretudo do sexo masculino, para carga de descarga de farinha.
Processos que só permanecem na memória dos trabalhadores mais antigos, visto
que a empresa não tem registro dessas práticas.
As mulheres enfrentaram os impactos mais significativos durante o processo
de mecanização e desindustrialização na região. À medida que a empresa passou a
investir em maquinaria, as mulheres foram rapidamente excluídas. O processo de
automação não visava apenas reduzir os custos com mão de obra, mas também
garantir um maior controle sobre o produto final, pois os funcionários tinham contato
direto com o produto. É crucial observar que até o final da década de 90, não havia
fiscalização nas fábricas em relação ao trabalho de menores de idade. Como
resultado, as fábricas estavam repletas de meninas que trabalhavam por longas
horas, sem a proteção de normas e leis trabalhistas. A entrevistada 2 relata que,
com a automação, fez com que praticamente todas as mulheres fossem
dispensadas, e ela própria quase foi uma delas. Permaneceu apenas por possuir
conhecimento no sistema como explica no trecho:

(...) por exemplo, hoje tem uma balança que mede exatamente a quantidade
de trigo com o peso correto, antes não, tinha que ter uma menina que abria o
pacote. Imagina um tubo que caia do teto, daí tinha uma menina que ficava
na tua frente, uma abria o pacote, outra enchia outra pesava, daí tinha um
corredorzinho tipo vibratório, uma arrumava esse pacote no vibrador que ia
balançando até chegar na costura e a outra jogava na boca, tipo um
escorregador, que descia aqui pra baixo e caia nos vagões e caminhões, em
uma máquina tinha 10 meninas, devia ter umas 10 máquinas assim, era
assim que a gente trabalhava, na hora de colocar e pesar não tinha luva era
com a mão, a gente enfiava a mão no pacote. Aí pelos anos 2000 que
começaram a robotizar tudo, daí eles começaram a dispensar, foi por causa
da tecnologia a tecnologia tirou a mão de obra (ENTREVISTADA 2, 2023)

Atualmente, a empresa tem em torno de 20 funcionários mulheres, sendo 10


na área de limpeza e as outras 10 divididas em setores administrativos, sendo o
número pouco significativo, em relação ao início de seu surgimento.
40

Figura 15: Linha de produção de mulheres Anaconda, anos 90

Fonte: Livro Eduardo Fenianos

A fábrica, em seus primeiros anos, assim como todas as da região, operavam


com sistemas precários no que diz respeito às condições de trabalho. Os
funcionários não dispunham de equipamentos de segurança, uma vez que não
existiam leis que regulamentassem essa questão. Vale ressaltar que o entrevistado
1 perdeu os dedos da mão direita devido a um acidente de trabalho, evidenciando os
desafios enfrentados pelos trabalhadores fabris na época. Esse tipo de acidente era
comum e não se distinguia das condições nas fábricas durante os estágios iniciais
da industrialização em Curitiba, que podem ser vistas no livro de Roseli Boschilia
onde a mesma afirma que somente em uma fábrica, foram registrados mais de 400
casos.

13
Nos registros da empresa (Fiat Lux) foram notificados, durante o período de
duas décadas, mais de quatrocentos casos de acidentes ocorridos dentro da
fábrica. No entanto, ao que parece, a freqüência dos mesmos era bem
maior.[(...)] Dentre os mais frequentes, são citados aqueles provocados pelas
máquinas automáticas que atingiam membros superiores (dedos, mãos e
braços) e abdômen. Aparecem muitos registros de queimaduras e ferimentos
nos dedos, principalmente o polegar e o indicador, muitas vezes com
esmagamento e perda de unha. Nos outros dedos e antebraço são comuns
os cortes com contusão (BOSCHILIA, 2010).

13
Fábrica de Fósforos localizada próximo a rodoferroviária de Curitiba.
41

Nesse contexto, o marco identitário da Anaconda transcende as mudanças


estritamente dentro de sua estrutura fabril, estendendo-se à decadência da região.
Atualmente, como o único moinho em operação e uma das poucas empresas a
resistir no centro de Curitiba, a Anaconda destaca-se em meio ao processo de
desindustrialização regional. Este cenário não apenas testemunha as
transformações na empresa, mas também assinala a trajetória de um tempo e uma
comunidade que enfrentaram a marginalização pela sociedade curitibana. Os
trabalhos fabris, por vezes rotulados como "sujos", eram ocupações que poucas
pessoas estavam dispostas a assumir (BOSCHILIA, 2010). A maioria dos
trabalhadores da fábrica provinha de origens humildes, sujeitando-se a essas
ocupações por falta de oportunidades em outras esferas econômicas, seja devido à
limitação educacional ou à escassez de oportunidades.
Ao vivenciar todas as transformações urbanas e culturais desde a fundação
da cidade, a Anaconda emerge como um ponto de referência, representando uma
Curitiba que já não existe mais, mas que desempenhou um papel fundamental na
moldagem da cidade contemporânea. Essa importância ressoa tanto para aqueles
que transitam pela região quanto para aqueles que interagem com a fábrica de
maneira voluntária (através de trabalho ou projetos) ou involuntária (como
moradores).
42

CONCLUSÃO

A pesquisa foi caracterizada pela instabilidade das informações,


especialmente aquelas relacionadas à empresa em questão. Com a saída dos
fundadores e dos sócios majoritários, aliada à ausência de uma organização da
memória institucional, surgiram contradições entre as informações fornecidas por
diferentes fontes. Um exemplo disso é a discrepância nas datas de inauguração da
fábrica, com cada fonte apresentando uma informação distinta. Além disso, as
fotografias existentes estão dispersas entre os trabalhadores e divididas entre as
duas filiais, armazenadas em depósitos.
Diante desse cenário, tornou-se imperativo realizar entrevistas e conversas
informais, embora não estejam transcritas neste documento. Essas interações
complementam as referências bibliográficas provenientes de órgãos ligados à
indústria do trigo, como a CONAB e a Abitrigo.
A empresa em questão não possui um sistema eficaz de organização da
memória institucional, resultando na dependência exclusiva da memória dos
trabalhadores mais antigos para acessar processos e técnicas. Assim, a
preservação do patrimônio industrial não se limita à arquitetura ou à história da
empresa, mas abrange todas as relações que ela estabelece com o espaço, as
pessoas e os métodos de produção. Isso permite compreender as transformações
territoriais, sociais e econômicas que impactam o entorno, fornecendo percepções
sobre as posições e desafios futuros da sociedade, como evidenciado pela
participação das mulheres no ambiente fabril e a precarização do trabalho.
É crucial destacar que nenhum desses processos possui registro escrito,
sendo acessíveis apenas por meio da história oral. Apesar das limitações
associadas à subjetividade, a história oral desempenha um papel fundamental para
entender as transformações ocorridas dentro desse espaço.
O patrimônio industrial oferece a oportunidade de narrar as histórias de
indivíduos que não ocupam posições destacadas na elite social e econômica, mas
que desempenham papéis essenciais em sua construção. Além disso, fortalece
identidades e constrói novas narrativas a partir das relações entre as pessoas dentro
e fora desse ambiente. Mesmo que Curitiba tenha evoluído para uma cidade
turística, é crucial lembrar que sua formação está profundamente enraizada na
43

indústria. Ignorar esse passado resulta na supressão de uma parte significativa da


história, deixando lacunas impossíveis de preencher e compreender isoladamente.
Como menciona o entrevistado 1, as coisas se perdem com o tempo e os
ciclos terminam.

(...) eu tenho 40 anos (empresa) mais sei que estou no final do meu
ciclo aqui dentro da Anaconda, começa e você não sabe quando vai
terminar, mais uma hora vai ter que terminar [(...)] pretendo trabalhar
mais uns dois anos, eu ia sair agora em 2023, mais como saiu nosso
gerente industrial, o diretor pediu pra mim ficar mais um pouco, dai eu
vou ficar mais uns 3 anos (ENTREVISTADO1, 2023).

Quando o ciclo desses funcionários antigos chegar ao fim, não restarão mais
registros desses processos e narrativas. Até mesmo os residentes do bairro já não
são os mesmos; a maioria se retirou. Atualmente, o que se observa são apenas
edifícios e terrenos vazios, testemunhando vestígios do que um dia foi uma das
áreas mais importantes da cidade. Esses locais carecem de pesquisa e estudos
para evitar que essas histórias sejam esquecidas, transformando-se apenas em
ruínas.
44

REFERÊNCIAS

Carta de Nizhny Tagil sobre o patrimônio industrial, TICCIH, 2003. Disponível em:
www.ticcih.org. Acesso em 24 de set. 2022.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Unesp, 2001.

ESCOREL, S. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro: Fiocruz,


1999.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: [s. n.], 1990. 189 p.

KÜHL, Beatriz Mugayar. Algumas questões relativas ao patrimônio industrial e à sua


preservação. IPHAN, São Paulo, 2004. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/algumas_questoes_relativas_ao_patrim
onio.pdf. Acesso em: 4 out. 2022.

GOVERNO FEDERAL (org.). Quadro histórico dos dispositivos Constitucionais Art.


216. [S. l.]: Câmara dos Deputados Centro de Documentação e Informação, 1988.
64p. Disponível em:
file:///C:/Users/educativo.samp/Downloads/quadro_historico_%20art216.pdf. Acesso
em: 11 nov. 2022.Acesso em: 11 nov. 2022.

PRATS, Llorenç. (1997). Antropologia y patrimonio. Ariel.

ZANIRATO, Silvia Helena (2018). Patrimônio e identidade. Revista CPC , 13 (25), 7–


33. https://doi.org/10.11606/issn.1980-4466.v13i25p7-33

RAUTENBERG, M. Patrimônio, continuidade ou ruptura no uso e nas


representações dos lugares? Jornades Nacionals de Patrimoni Etnològic, 2010.
Disponível em:
<http://www20.gencat.cat/docs/CulturaDepartament/CULTURA_POPULAR_nova_w
eb/05_Publicacions_i_recursos/02_recursos_i_documents/01_documents_jornades/
documents/arxiu/SD_JNE_01.pdf>.

CARTA DE VENEZA – Carta Internacional sobre conservação e restauração de


monumentos e sítios, maio de 1964. In:
http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=236

CARTA DE CAMPINAS - Declaração do GEHT em defesa das construções e


instalações utilitárias, 29 de janeiro de 1998, In: http://sosmonuments.
upc.es/brasil/carta.htm

GOULARTE, Daniela Vieira; VIEIRA, Sidney Gonçalves. REFLEXÕES ACERCA DA


RELAÇÃO ENTRE O PATRIMÔNIO INDUSTRIAL E A MUSEOLOGIA. ANAIS DA
SEMANA DOS MUSEUS DA UFPEL, [S. l.], p. 43-51, 2019. Disponível em:
https://repositorio.ufpel.edu.br/bitstream/handle/prefix/7027/Rela%C3%A7%C3%B5e
s_acerca_da_rela%C3%A7%C3%A3o_entre_o_patrim%C3%B4nio_industrial_e_a_
museologia.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 7 jul. 2023.
45

IPHAN GOVERNO FEDERAL (Paraná). Instituto do patrimônio histórico e artístico


Nacional. Preservação do Patrimônio Cultural. IPHAN, CURITIBA, p. 28, 2007.

DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François (org.). Conceitos-chave de Museologia.


[S. l.]: ICOM, 2013.

VARINE, Hugues de. Museologia Social. In: PORTO ALEGRE, Prefeitura Municipal
De (org.). Porto Alegre: [s.n.], 2000. 136 p.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da


língua portuguesa. 3 Curitiba: Editora Positivo, 2004, 2120p.

CERDÀ, Manuel; BONAFÉ, Mario García (1995). “Arqueologia Industrial”. In:


BERROCAL, Paloma (coord.). Enciclopédia Valenciana de Arqueologia Industrial.
Associació Valenciana d’Arqueologia Industrial. Valencia, Espanha: Edicions Alfons
El Magnànim e Institució Valeciana d’estudis i investigació.

FLORENZANO, Iaskara S. Um olhar sobre o patrimônio do Rebouças. 1. ed. [S. l.: s.


n.], 2022.240 p.

COMENDADOR João Martins: Livro Memórias da minha aldeia- Bairrada ou


Barrada. 1. ed.Portugal: [s. n.]. 49 p. v. 15.

OLIVEIRA, Dennison. Urbanização e industrialização no Paraná Coleção História do


Paraná textos introdutórios. 2. ed. eletrônica Curitiba: Sociedade de Amigos do
Museu Paranaense, 2001.

BOSCHILIA, Roseli. Entre Fitas, Bolachas e Caixas de Fósforos: A mulher no


espaço fabril curitibano (1940-1960). Curitiba: Artes e Textos, 2010. 204 p.

CANDAU , Joël. Memória e Identidade. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2011. 224 p.

PEREIRA , Magnus Roberto de Mello. Semeando Iras Rumo Ao Progresso:


Ordenamento Jurídico e Econômico da Sociedade Paranaense (1829 - 1889). 2. ed.
atual. Curitiba: UFPR, 2021. 337 p.

VICTOR, Nestor. A Terra do Futuro. 2. ed. atual. Curitiba: Farol do Saber, 1996.
308p.

PEREIRA, Luis Fernando Lopes. Paranismo: O Paraná Inventado: Cultura e


imaginário no Paraná da I República. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1997. 196 p.

FENIANOS, Eduardo. Cidade Industrial: Trabalho e Lazer. Curitiba: Univer Cidade,


2001. 54 p. v. 27.

NADALIN, Sérgio Odilon. Paraná: Ocupação do Território, População e Migrações.


Curitiba: SEED, 2001. 107 p.
46

ABITRIGO. Do grão ao pão: Farinha de trigo: história da moagem no Brasil. São


Paulo: Origem, 2016. 200 p.

MORAES, Ana Beatryce Tedesco. Identidade e trabalho: um relato sobre as


produções científicas brasileiras. In: XV Encontro Nacional da Associação Brasileira
de Psicologia Social. Maceió, 2009. Disponível em:
https://www.abrapso.org.br/siteprincipal/images/Anais_XVENABRAPSO/365.%20ide
ntidade%20e%20trabalho.pdf. Acesso em: 11 nov. 2023.

BUSSE, Ibis Rodrigues. Silos na paisagem paranaense. Anaconda industrial e


agrícola de cereais S.A. Correio dos ferroviários da rede de viação Paraná- Santa
Catarina, [s. l.], v. 7, n. XVI, 1962.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Curitiba e à província de Santa Catarina.


São Paulo: Itatiaia, 1978. 209 p. (Coleção Reconquista do Brasil; 9).

BERNARDES, LYSIA MARIA CAVALCANTI. Crescimento da população no estado


do Paraná: Comparação entre os recenseamentos de 1920-1940. REVISTA
BRASILEIRA DE GEOGRAFIA, [S. l.], p. 97-106, 1 jun. 1951.Disponível em:
https://www.rbg.ibge.gov.br/index.php/rbg/article/view/1366/1051/. Acesso em: 02
set. 2023.

SILVA, José Alderir. A desindustrialização na região Sul. Caderno Metrópole , São


Paulo, v. 21, p. 531-550, 1 ago. 2019. DOI https://doi.org/10.1590/2236-9996.2019-
4508. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cm/a/PrD48x7krdkjL4y4ZfhbbDD/.
Acesso em: 21 jun. 2023.

NETO, Aroldo Antonio de Oliveira; SANTOS, Candice Mello Romero (org.). A cultura
do trigo. 1. ed. São Paulo: CONAB, 2017. 218 p. Disponível em:
https://www.conab.gov.br/uploads/arquivos/17_04_25_11_40_00_a_cultura_do_trigo
_versao_digital_final.pdf. Acesso em: 7 nov. 2023.

DORÉ, Andréa; RIBEIRO, Carlos (org.). O que é sociabilidade?. 1. ed. São Paulo:
Intermeios, 2019. 236 p.

IBGE. Coordenação de Geografia (org.). Áreas urbanizadas do Brasil. 1. ed. Rio de


Janeiro: IBGE, 2017. 28 p. v. 44.

LOPES, José Sérgio Leite (coord.). Cultura e identidade operária: Aspectos da


cultura da classe trabalhadora.. Rio de Janeiro: MARCO ZERO, 1997. 228 p.

ECKERT, Cornelia. Memória e Identidade: Ritmos e Ressonâncias da Duração de


uma Comunidade de Trabalho: Mineiros do Carvão (La Grand-Combe). Cadernos de
Antropologia. ed. [S. l.]: PPGAs, 1993. 84 p. v. 11

FENIANOS, Eduardo. Jardim Botânico. Curitiba: Univer Cidade, 2001. 54 p. v. 23.

INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE CURITIBA. Memória


da Curitiba urbana 7: planejamento urbano, concepção e prática. Curitiba, PR:
IPPUC, 1991. 320 p. (Depoimento Ed. FTD), 7).
47

ANEXOS
ENTREVISTAS

ENTREVISTADO 1

Quando você entrou na fábrica ela tinha quantos anos de funcionamento?

25 anos, quando eu entrei a empresa trabalhava com 2 diagramas de moagem, e ¼


que estava instalado, mas não estava em funcionamento. Eu entrei em meados de
1983, estava com 3 diagramas, 89 rodou o quarto diagrama, capacidade de 1000
toneladas de 4 diagramas de moagem, mais devagarzinho foi tirando os diagramas.

Você entrou aqui quando? Você lembra?

31/08/1983

Como você entrou aqui? Como você veio parar aqui?

Me trouxeram lá do meio do mato, eu sou do interior, nasci e me criei no campo,


com 18 anos resolvi vir pra cidade, já tinha familiares aqui tudo, vim pra São José
dos Pinhais. Comecei a trabalhar aqui no Karina na esquina, trabalhei 30 dias no
Karina trabalhava até 3 horas da manhã e vinha pra fila procurar emprego na
Anaconda, cara chato né todo mundo conhece o cara chato, todo o dia eu tava na
fila. Um certo dia o encarregado falou assim pra mim, “todo dia eu passo e você tá
aqui, vou arrumar uma vaga pra você pra trabalhar na fábrica”, o rh chegava 8 horas
e dispensava todo mundo, “aqui não tem vaga”, ai esse cara arrumou uma vaga pra
mim na fábrica e comecei trabalhando no turno dele ainda. A empresa mudou muito
, se você pegar a empresa até 1995, o primeiro diagrama automatizado que a gente
teve, foi em 1988, para trás era todo mecânico.

Quando você entra, você trabalhava fazendo exatamente o que?

Auxiliar de limpeza, limpava máquina, varria chão e daí foi indo, e o que eu sempre
falo quando a pessoa tem vontade e determinação as pessoas enxergam aí começa
a dar oportunidade, vira encarregado, auxiliar já com nível superior, aí tem os dois
lados, a empresa dá a oportunidade, em contra partida você tem que procurar
ualificação e assim vai indo. Quando eu entrei na Anaconda meu propósito era
trabalhar 2 no máximo 3 anos, esse era meu propósito, mais dai vai aparecendo as
oportunidades e você vai gostando do trabalho, criando vínculo, e isso vai te
segurando.

Você lembra como era a região aqui?

Só tinha o prédio da ambiental, os prédios azul, o prédio 1 e 2, não tinha nenhum


prédio, o Cristo Rei aqui não tinha nada.
48

Quando você mudou pra cá tinham casas aqui na frente, o senhor chegou a
morar nelas?

Morei. Morei aqui na frente, aqui do lado, aqui antigamente era Capanema não era
Jardim Botânico morei 14 anos aqui na região.

O senhor mudou porque?

Desmancharam as casas para fazer construção e estacionamento dos caminhões, a


empresa não era estendida até lá no fundo onde é hoje, ela vinha até uma área , o
resto era tudo residências, a empresa foi comprando e expandido o pátio.

Hoje você não mora mais aqui perto, você saiu contra a sua vontade? E qual a
sensação de ter morado aqui por 14 anos e ter sido removido?

Não. O ser humano tem que se adaptar a todas as situações, não era da minha
vontade mas você sabe que as coisas mudam, eu tenho 40 anos de empresa mais
sei que estou no final do meu ciclo aqui dentro da Anaconda. Começa e você não
sabe que vai terminar, mais uma hora vai ter que terminar, e a gente vai ter que
aprender a conviver com isso e faz parte da rotina. O fato de eu ter me mudado
daqui e ido para o Capão do Imbuia a princípio agora já estou em Colombo, a gente
se adapta, uma coisa que eu prego muito na minha equipe é você ser flexível, ser
adaptável, porque tudo se torna mais fácil, tudo mais resistente fica difícil, difícil de
trabalhar de comandar uma equipe, produzir o ser humano tem que estar se
moldando.

E os vizinhos que você tinha aqui, todos trabalhavam na Anaconda?

Uma parte sim a outra não, aquela época você tinha encarregado, mecânico e
eletricista que era prioridade de morar próximo a empresa, mas tinha muita gente
que era morador antigo (antes da fabrica abrir) mas não trabalhava no moinho.

Então antes você só atravessa a rua e vinha trabalhar, depois ficou muito
distante?

Sim. Ficou muito distante mas… tudo se adapta.

Você sente falta de morar aqui?

Não, to bem tranquilo. minha esposa fala assim que eu sou muito dado com todo
mundo, ”eu moro tanto tempo aqui, e não falo com ninguém, já você fala com todo
mundo”. Eu cumprimento todo mundo da rua, mesmo que eu não conheça eu dou
“Bom dia e Boa tarde” é normal é uma coisa minha.

Quando eu estava com a entrevistada n° 2 no faturamento/fiscal, ela falou que


quando ela entrou aqui era muita mulher, a mão de obra era feminina. Como
que era?

Antigamente não se tinha a lei trabalhista de hoje, que não pode contratar menores
49

para trabalhar,então você tinha em torno de 280 meninas a mais velha tinha 15
anos, 13, 14 anos, aquele monte de molecada, como elas não tinham filhos o índice
de falta era menor, quase todas tinham seus namoradinhos aqui na fábrica. Era
bacana a fábrica exigia muita mão de obra das meninas.

Para que exatamente?

Para envase. Você via no primeiro andar onde é o envase hoje, era fila de
empacotadora, cada boca tinha 10 meninas, uma vinha abrindo o pacote, outra
botava enchia outra direcionava para a esteira, outra vazia a dobra do pacote , outra
assava a fitinha, e outra vinha cortando e costurando, era muita menina.

Você sabe até que ano durou?

Não, não me lembro, mas acho que foi em torno dos anos 90, 93 foi depois da
automatização, que acabou a mão de obra feminina. Diminui a mão de obra
feminina, aí automatizou foram compradas as máquinas Italianas, foi em torno de
96, eu fui pra Itália 99 eu tive na Itália visitando as fábricas da Technip, na época
estavam vindo duas maquinas para ser instalada. Eu fiz meu curso de moagem na
Itália.

Foi a empresa que pagou?

Foi empresa, 90 dias na Itália, numa cidade chamada Clémont região da Lombardia,
entre Milão e Parma, 90 dias fazendo curso de moagem, e nos finais de semana eu
turistava.

Depois disso ficou só homens?

Basicamente homens e um núcleo muito pequeno de mulheres pra parte da limpeza,


hoje tem em torno de 10 meninas na área da limpeza, mesmo a mão de obra
masculina foi reduzindo, pois foi comprando mais máquinas e mais máquinas, um
grupo que era em torno de uns 450 funcionários hoje chega a uns 200 funcionário.
Geralmente chega máquina nova, e fica os funcionários antigos, mas para atender
essa demanda de máquinas novas, automatizadas, todo mundo teve que buscar
qualificação, porque se não se qualificasse não ficava na empresa ou se qualifica ou
fica fora do mercado.

Tem umas fotos que a gente achou lá no depósito, que era de futebol, lá tem
vários troféus, você lembra do que era mais ou menos?

A gente jogava muito bola, a gente fazia festival, tinha um cara que era o técnico da
Anaconda e era o chefe do empacotamento, ele fazia entrevista e perguntava “Você
joga bola? Jogo. Tá Bom então tá contratado” era assim. A gente era bom, abria
festival, às vezes fazia abertura e fechamento de festival, tinham festival de 8 á 10
times, aí eles falavam assim a gente dá o almoço pra vocês e o troféu se ganha o
jogo. Tinha um campo ali na entrada de Pontal do sul, hoje tem um condomínio, mas
antes era um campo de futebol, era um campo gigante, fizemos vários jogos lá, a
gente parou de jogar porque faleceu o dono do restaurante. A gente levava 2 ônibus,
50

um com jogador e o outro com a torcida, a torcida era o pessoal que trabalhava na
empresa e a família participava junto.

Como eram as confraternizações?

Era no pátio da empresa, aí começou a ter desavenças, por causa da bebida. Só


teve um ano que não teve, daí os funcionários fizeram uma vaquinha e a gente fez
em uma chácara lá em Almirante Tamandaré, foi a única fez que fizemos fora e não
teve participação da empresa, depois a empresa começou a alugar chacaras, mas
antes era tudo aqui no pátio. hoje nem pode por causa das iso, era bem livre, não
tinha segurança do trabalho.

Qual importância da anaconda pra cidade curitiba na sua opinião?

Eu acho que se o moinho não tivesse uma importância tão grande pra história da
cidade ele não tava aqui, porque se você for ver tem rua que não cruza de um lado
pro outro por causa da empresa,

E pra você qual a importância dela além do trabalho?

Minha família, se não fosse a empresa eu não teria a família que eu tenho hoje,
minha esposa eu conheci aqui, minha primeira esposa, eu tenho uma boa relação
com a empresa sempre tive, com a 1 e 2 geração dos donos, a primeira não tinha
muito vínculo da segunda “filhos” eu já tinha, a 3° eu não conheço muito. A empresa
faz parte da minha história de vida, eu já sai em revista reportagem por causa da
Anaconda, você sente parte da empresa, se eu não gostasse do trabalho e não
tivesse uma relação boa com as pessoas, eu acho que não estaria pelo salário, o
salário é ruim/ não, o salário é bom, mas não é o suficiente, o ambiente de trabalho
o relacionamento com as pessoas acabava se tornando uma outra família. eu tenho
uma relação muito boa com a empresa e com minha equipe, e procuro sempre falar
com a minha equipe que não se pode entrar no âmbito da discussão para chegar
num ponto de atrito.

Você acha que o que a gente tá fazendo hoje é importante?

Querendo ou não todo mundo que tá nesse bairro, trabalhando ou não fez parte da
história da Anaconda, os campos de futebol, atrai filhos de pessoas que se juntava
com funcionários, tinha essa relação… acho que não consegui responder a sua
pergunta, mas sim.

Acho que a saída dos funcionários do entorno traz uma lacuna, a fábrica agora
ta isolada, se for pensar , as residências que tem aqui são muito pontuais,
você acha que essa história vai se perder?

Hoje a anaconda presta um trabalho voluntário para o colégio de Hildebrando aqui


do lado, acho que isso traz um pouco… continua um pouco a história, esse alunos
vem visitar a Anaconda, e a gente conta um parte dessa história pra esses alunos, e
eles são curiosos enchem a gente de pergunta, e eles acabam levando essa
historias pra casa, e acabando criando essa relação ainda com o bairro, pois esse
pessoal que estuda no colégio é do bairro, mora no Jardim Botânico, nas Torres, o
51

Capanema de antigamente. A partir do momento que se perder esse vínculo com os


alunos, aí sim essa história vai se perdendo.

E sobre as outras fábricas que tinham na cidade de Curitiba e as histórias que


se perderam, você acha que essas histórias deveriam ser preservadas para
relação com a história de Curitiba?

Tinha que ter um estudo pra não deixar essas histórias se perder, porque se for
olhar, eu desde o tempo que eu estou na Anaconda, as empresas ao redor muitas
acabaram ou foram embora, Mate leão, Mate real, Fiat lux que é uma multinacional
que toca, não tem mais essa relação, são histórias que vão se perdendo se
perdendo e com o tempo ninguém fala mais. O problema é de se destruir um lugar, e
não se construir em outro lugar, por exemplo se a Anaconda fosse destruída, mas
não realocada em nenhum lugar, pra história da cidade isso seria uma perda, vai se
perder ninguém vai lembrar que tinha uma Anaconda aqui, que tinha um prédio
histórico um prédio velho, não a curto e médio prazo, mas a longo vai se perder.

Se a Anaconda simplesmente sumisse como você se sentiria?

Complicado, querendo ou não é como perder um ente querido, alguma coisa


morreu. Eu fui muito pouco, mais fui no moinho paranaense, querendo ou não fez
alterações mas manteve o prédio, e toda vez que eu passo na frente eu lembro que
eu ia levar máquinas antigas, desmontadas, e a gente levava lá, subia lá em cima
pra ver como era o prédio. Como eu disse eu comecei aqui como auxiliar de limpeza
depois de 8 meses, recebi um carguinho de sub-encarregado de um setor e aí fui
destacando, aí teve uma festa aqui e chegou um cara e disse “Ce trabalha bem, é
um bom funcionário, ano que vem eu vou fazer um curso na Itália se você cortar o
cabelo” (piada interna) o próximo que vai, vai ser você , era o Carlos Alberto o filho
do Gerente da empresa, aí ele foi pra Itália fez o curso e depois fui eu, na época eu
era o encarregado de turmas, depois virei moleiro júnior comandando turno, virava
turno, daí um dia aparece a oportunidade de eu vir pra de manhã, pra assumir
liderança dos turnos, daí eu fiz um outro curso de moleiro sênior em Fortaleza com
professores da universidade de Kansas nos Estados unidos, e hoje eu sou gerente
de produção, e pretendo trabalhar mais uns dois anos, eu ia sair agora em 2023,
mais como saiu nosso gerente industrial, o diretor pediu pra mim ficar mais um
pouco, dai eu vou ficar mais uns 3 anos. A relação é boa, tô preparando meu
cantinho pra descansar.

ENTREVISTADO 2

Você entrou aqui quando você lembra?Como que era?

25/10/1993, era tudo muito diferente, não existiam prédios, não tinham os barracões
de embalagens, aqui eram todas casas quem morava eram geralmente os
encarregados, moravam tudo em volta desse muro aqui, que a própria Anaconda
fornecida, eles nem pagavam aluguel, eram ruas de barro, não tinha asfalto, o pátio
era tudo de areia e pedra, aqui onde é o salão de jogos era uma cancha de vôlei, a
gente jogava vôlei na hora do almoço, aí onde era a casa de cola, tinha um espaço
onde a gente jogava malha. Nessa época não tinha almoço nem refeitório, trazia
marmita, essas marmitas ficavam… tinha um negócio com água, você trazia sua
52

marmitinha e elas ficavam em banho maria, as vezes você ia ver tinha roubado seu
ovo, seu bife, porque o pessoal roubava a carne do outro, ou às vezes porque
borbulhava muito, se você trouxesse num tupperware a tampa abria e você ia ver e
tua marmita tava cheia de água, a gente tinha uma hora e meia de almoço. Quando
eu entrei aqui, eu entrei trabalhando na produção, no empacotamento de 5 kilos,
trabalhei durante 6 meses, tinha mais de 200 mulheres naquele setor, tinha diversas
máquinas e era tudo manual, eu sou do tempo em que os pacotinhos não eram
colados, existia uma máquina de costura, com agulha e fio que passava, na ‘boca’
do fardinho e costurava, tem umas no mercado que você puxa e descostura eu sou
daquela época.
Não existia ISO nem DPF, não tinha nada, não tinha computador, quando entrei pra
trabalhar na época eu tinha curso de datilografia e curso de computador eu comecei
a fazer o MSDOS um cursinho, foi por isso que eles me deram a oportunidade de
trabalhar no administrativo. Eu trabalhei no faturamento durante 5 anos, não existia
Windows era o MSDOS tela verde e preta tudo por comando. As notas fiscais na
época não eram assim, não existia Danfe nem nada, era tudo nota de papel de via
carbonada, a gente colava num papel de formulário contínuo e colava na
impressora, passava o dia inteiro, um dia colando nota naquele papel e outro dia a
gente usava, era engraçado, acabou de faturar não tinha o que fazer, a gente ficava
colando nota no papel que no outro dia a gente tinha que usar ela. A mão da gente
ficava tudo cheio de carbono, boleto era de 5 vias tinha que fazer tudo na mão, era
bem trabalhoso, o gerente da época era o seu Costa era portugues, a gente quase
não entendia o que ele falava, era brabo, um dois anos depois ele saiu e entrou seu
Cravo, era português também ficou pouco tempo, depois entrou o Conrado, e o seu
Paulo e agora estamos com o Max. Eu já trabalhei em vários setores também,
empacotamento, faturamento, depois fui pro controle de embalagens, insumos fazia
todo o controle de estoque disso, depois fui pro setor de compras trabalhei 10 anos,
depois eu vim pro fiscal, depois contabilidade, ajudei a Dalete(antiga gerente
administrativa) uma época onde ela me ensinou algumas coisas. Daí surgiu uma
vaga nos contas a pagar que era o caixa da Anaconda, trabalhei uns 4, 5 anos e daí
surgiu uma vaga na central, mais eu já tinha trabalhado na central quando eles
compraram o SAP, é que antigamente era outro sistema o MICROSIGA, não existia
esse setor, “Central de recebimentos”, quem incluía as notas fiscais era o setor de
compras e tinha uma pessoa a Rosângela (antiga funcionária do financeiro) que
incluia o frete, não existia um setor que fazia toda a digitação, depois que eles
abriram esse setor que a gente começou a trabalhar, daí eu fui pro contas a pagar
porque o menino pediu a conta. Depois a Anaconda resolveu centralizar todos os
departamentos contábeis e financeiros lá em São Paulo, a parte financeira daqui
fechou, tanto é que todas as meninas que trabalhavam no setor financeiro foram
desligadas da empresa, quase que eu fui junto, eu só não fui porque na época
surgiu uma vaga que era o Fábio que trabalhava aqui como encarregado ele foi
desligado, e surgiu a oportunidade de eu entrar aqui pra trabalhar e eu estou nesse
setor desde 2015.

Você lembra quando foi que começaram a ser desligadas as mulheres?

As mulheres saíram, a partir do momento que a Anaconda começou a investir nos


equipamentos, maquinários automáticos. Antigamente não tinha, era tudo manual,
por exemplo hoje tem uma balança que mede exatamente a quantidade de trigo com
o peso correto, antes não, tinha que ter uma menina que abria o pacote, imagina um
53

tubo que caia do teto, daí tinha uma menina que ficava na tua frente, uma abria o
pacote, outra enchia outra pesava, daí tinha um corredorzinho tipo vibratório, uma
arrumava esse pacote no vibrador que ia balançando até chegar na costura e a
outra jogava na boca, tipo um escorregador, que descia pra baixo e caia nos vagões
e caminhões, em uma máquina tinha 10 meninas, devia ter umas 10 máquinas
assim, era assim que a gente trabalhava, na hora de colocar e pesar não tinha luva
era com a mão, a gente enfiava a mão no pacote. Aí pelos anos 2000 que
começaram a robotizar tudo, daí eles começaram a dispensar, foi por causa da
tecnologia, a tecnologia tirou a mão de obra.

Você lembra mais ou menos quantos funcionários tinha?

Em torno de uns 400, 300 eram mulheres, era muito mais mulher, tinha uma fila para
bater ponto, a fila dos homens era rapidinho a das mulheres era uma fila enorme
que dava lá embaixo. Cada um tinha um cartão de papel com seu nome e os dias,
daí a gente passava o cartão batia e carimbava, o ponto também era um lugar de
paquera, várias vezes você saia e tinha um bilhetinho com clipes grudado e bala, um
recadinho grudado no seu ponto, muitos casamentos aconteceram assim na
anaconda, teve muitos casamentos na Anaconda. A gente também dormia na
grama, na hora do almoço só via gente de macacão branco dormindo na grama.

Como eram as confraternizações?

As festas de final de ano eram bem legais, a gente vazia tudo aqui na Anaconda, e
tudo eram os funcionários que preparam, pegavam tijolos e faziam churrasqueira, ali
no carregamento. Comprava carne fazia churrasco, o pessoal da risotolândia fazia o
arroz a salada pão, daí a gente que decorava tudo, passava a sexta feira inteira
lavando pátio, lavando mesa, ai eles contratavam uma dupla sertaneja qualquer e
tocava e a gente dançava o dia inteiro, o forro era de baixo do carregamento, la
virava o salão de festa, e tinha Papai Noel.

Você lembra quando começou a ocorrer as mudanças estruturais como


asfalto?

Foi nos 2000, 2008 na realidade todos os prédios são novos tirando o moinho e a
casinha de madeira. E que antigamente era tudo por trem, então não tinha
caminhões, era tudo trem, ele passava dentro da Anaconda e descarregava o trigo e
era bastante nota, era uma nota por vagão a gente sofria, era bem trabalhoso.
Quando entrei aqui fazia fila de pessoas lá fora, porque ela só vendia no dinheiro na
época,então tinha o caixa, e fazia fila lá fora pra comprar farinha, tinha pegar e fazer
nota tudo na mão. agora diminui bastante o número de funcionário acho que tá nos
230. também não tinha fardo de farinha era só pacote de 1 e 5 kilos depois que eles
compraram a máquina de strass, mas antes só vendia por unidade.

Se a anaconda simplesmente sumisse como você se sentiria, qual a


importância dela pra você ?

Anaconda foi a única empresa em que trabalhei, meu primeiro emprego, estou lá a
30 anos. Todas as experiências profissionais adquiri nessa empresa, trabalhando
em diversos setores. E tudo que conquistei materialmente falando também foi
54

através desse trabalho. Se ela sumisse, seria como uma grande parte do que vive
sumisse também . Ficaria em luto, entristecida.

A anaconda já investiu em você profissionalmente?

Já pagaram vários cursos para mim relacionados a área fiscal.

Qual a importância da anaconda pra cidade Curitiba na sua opinião?

Ter em uma empresa que produz produtos de alta qualidade, que atende as
necessidades do mercado, e por estar a tanto tempo, já se tornou uma referência,
faz parte da história. Além de oferecer emprego em diversas áreas.
55

FOTOS EXTRAS ANACONDA MOINHO


Título: Confraternização final de ano, 1994

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda

Título: Confraternização final de ano, trabalhadores dançando, 1994

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda


56

Título: Confraternização final de ano, churrasco no carregamento, 1994

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda

Título: Confraternização final de ano, distribuição de brinquedos filhos dos funcionários, 1994

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda


57

Título: Time de futebol da empresa Anaconda Moinho, 1994

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda

Título: Troféu de ganhador time de futebol da empresa Anaconda Moinho, 1994

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda


58

Título: Antigo maquinário do Moinho Anaconda, SEM DATA

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda

Título: Antigo interior da Fábrica Anaconda Moinho, SEM DATA

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda


59

Título: Protótipo massa de bolo Anaconda Sadia, SEM DATA

Fonte: Acervo do Moinho Anaconda

Título: Antigo piso da Fábrica Anaconda Moinho, 2023

Fonte: Fotos visita técnica Moinho Anaconda, fotógrafa Gabriella Perazza


60

Título: Interior da Fábrica Anaconda Moinho, 2023

Fonte: Fotos visita técnica Moinho Anaconda, fotógrafa Gabriella Perazza

Título: Área externa Fábrica Anaconda Moinho SILOS, 2023

Fonte: Fotos visita técnica Moinho Anaconda, fotógrafa Gabriella Perazza


61

Título: Área externa Fábrica Anaconda Moinho, trilhos do antigo trem que passava por
dentro da fábrica, 2023

Fonte: Fotos visita técnica Moinho Anaconda, fotógrafa Gabriella Perazza

Você também pode gostar