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ARQUITETURA FERROVIÁRIA A VILA FERROVIÁRIA DE SÃO CARLOS:


COLONINHA FEPASA

Conference Paper · April 2011

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Elaine Jardim
Centro Universitário Central Paulista
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ARQUITETURA FERROVIÁRIA
A VILA FERROVIÁRIA DE SÃO CARLOS: COLONINHA FEPASA

Elaine Jardim1

Resumo

Este artigo trata da inserção no patrimônio industrial da Vila dos Ferroviários


do município de São Carlos, a Coloninha FEPASA, empreendida pela Companhia
Paulista de Estradas de Ferro, a partir de 1884, no período correspondente ao
desenvolvimento econômico, social e urbano proporcionado pela expansão cafeeira
em direção ao oeste paulista. No contexto paulista, a economia cafeeira constituiu-
se em elemento propulsor capaz de criar as condições econômicas e de infra-
estrutura necessárias ao processo de industrialização e o consequente
desenvolvimento urbano tanto da capital quanto das demais cidades pertencentes
às regiões produtoras de café.

Palavras-chave: Patrimônio industrial. Arquitetura industrial. Arquitetura


ferroviária. Vila operária. Vila ferroviária.

Abstract

This paper is about the insertion in the industrial patrimony of the Railway
Men Village from São Carlos city, the Coloninha FEPASA, undertaken by Companhia
Paulista de Estradas de Ferro, from 1884, in the corresponding period of economic,
social and urban provided by the coffee expansion to the west of São Paulo State.
In São Paulo context, the coffee economy was constituted in propulsive element
capable of creating the economic conditions and infrastructure needed to the
industrialization process and consequent urban development of the capital city as
much as the other cities belonging to the coffee producer zone.

Keywords: Industrial Patrimony, Industrial Architecture. Railroad Architecture.


Workers Village, Railroad Men Village.
Introdução

Em meados do século XIX, enquanto a Europa vivia sob as ações e as


consequências da Segunda Revolução Industrial, o Brasil empreendia esforços para
superar seu passado colonial e ingressar no mundo moderno como país
independente, capitalista, civilizado, alinhado aos grandes centros europeus, capaz
de assumir sua posição na nova divisão internacional do trabalho. Baseado ainda
em uma economia agrária e mineradora com vistas à exportação, com utilização de
mão-de-obra escrava, o Brasil percebeu na implantação das ferrovias tanto a
solução dos problemas de escoamento da produção quanto o estabelecimento de
um marco civilizatório. Tendo em vista o seu caráter simbólico, a ferrovia foi
considerada sinônimo de modernidade, de eficiência, de velocidade. Adjetivos
positivistas que vinham ao encontro dos anseios da elite brasileira e, no contexto
do presente estudo, dos cafeicultores paulistas.

De acordo com Neves (1984:17), “Os líderes da cafeicultura paulista eram


homens abertos ao progresso do século, dispostos a tentar todas as novidades da
tecnologia que, neste século das luzes, pela Revolução Industrial, despertavam a
Inglaterra, França e Estados Unidos”. Dessa forma, a ferrovia se constituiu como o
principal meio de comunicação, na medida em que encurtou distâncias, favoreceu a
exploração de novas áreas do território e possibilitou a rápida troca de informações
e mercadorias entre as regiões produtoras, os centros urbanos e os portos
exportadores.

Entretanto, a chegada da ferrovia desencadeou uma série de mudanças


associadas ao avanço territorial e econômico da cafeicultura. A proibição do
emprego de mão-de-obra escrava na construção e na operação das linhas, bem
como as dificuldades encontradas para a adaptação dos escravos ao cultivo do café,
somada às pressões internacionais para o fim do sistema escravocrata, precipitou
medidas para a substituição do trabalho escravo pela mão-de-obra livre suprida por
imigrantes europeus. Por sua vez, os imigrantes representaram fundamental
importância no momento em que o capital acumulado pelo café iniciou sua
migração para as atividades industriais, na medida em que se constituíram em
operários ou proprietários de pequenas e médias oficinas que se converteram em
fábricas.

Inicialmente o desenvolvimento industrial se concentrou na capital, mas


processos semelhantes ocorreram em todos os municípios paulistas. As atividades
industriais desenvolveram-se em ambiente urbano, principalmente nas áreas de
entorno das ferrovias, intensificando e diversificando a vida das cidades que
precisaram ser aparelhadas para atender as novas demandas por produtos,
serviços e moradia. Conforme descreveu Argollo Ferrão, São Paulo modernizava-se
2
por meio da infra-estrutura física, comercial e financeira que se montava para o complexo
cafeeiro: infra-estrutura de transportes – estradas de ferro e portos, destacando-se as obras do
Porto de Santos e a construção das ferrovias paulistas; bancos e comércio voltados para o
mercado interno e externo – casas comissárias, a Bolsa do Café, em Santos; comunicações –
correios, telégrafos, telefone; energia elétrica; enfim, o ambiente construído de São Paulo passa
a refletir o vigor do ciclo econômico do café, realimentando-o na medida em que atende as suas
necessidades. (ARGOLLO, 2004:28)

As profundas mudanças ocorridas no ambiente urbano paulista modificaram


definitivamente o modo como as pessoas se relacionavam com as cidades. A partir
de então, à cidade colonial sobrepõe-se a cidade moderna. Segundo Lima (1977),
estabeleceu-se uma relação entre modernidade, progresso e crescimento urbano,
com a introdução de padrões de ocupação determinados pela diferenciação social e
pela adoção de uma abordagem técnica dos problemas urbanos associados à figura
do poder público. No que se refere ao desenvolvimento urbano das cidades do
interior paulista, a ferrovia teve papel ainda mais determinante, na medida em que
constituiu-se em elemento gerador de muitas cidades. No caso de São Carlos, a
chegada da ferrovia foi fundamental para o processo de desenvolvimento urbano.

Oficialmente fundada em 1854, a cidade desenvolveu-se em função da


cafeicultura e apresentou um crescimento relativamente acentuado se comparado
com outras cidades da região, fundadas em período anterior ao café. Contudo, é a
partir da chegada da ferrovia, em 1884, que o município se desenvolveu de forma
mais acentuada. Gradativamente, a arquitetura colonial passou a ser substituída
pela arquitetura eclética, com a adoção de novos materiais e técnicas construtivas,
bem como a adesão às políticas sanitaristas importadas da Europa.

Nesse período, São Carlos viveu a situação de expansão urbana para além do
eixo central, no entorno da primeira capela, com o surgimento dos cinco primeiros
bairros afastados do centro e a expansão da área central em sentido sudoeste, em
função da localização da Estação Ferroviária Central. A nova região formada no
entorno do Largo da Estação foi ocupada por casas comerciais, hotéis, pensões e
demais atividades relacionadas com a ferrovia. Esta também foi a região escolhida
para habitação pelos funcionários da ferrovia e por outros trabalhadores que dela
dependiam para as suas atividades.

Para atender a esta nova demanda por habitação, em 1893, a expansão


urbana atingiu a primeira área além-trilhos dando origem ao Bairro da Vila Prado,
que foi ocupado predominantemente por funcionários da ferrovia. A Companhia
Paulista de Estradas de Ferro incentivava a ocupação da área por meio da doação
de materiais para construção. Contudo, a ação mais efetiva da Companhia Paulista
para a manutenção dos seus empregados junto aos seus postos de trabalho, deu-se
por meio da construção de Vilas Ferroviárias, Casas-padrão e Casas-de-turma.

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A Companhia Paulista e a habitação ferroviária

Diferentemente do que ocorreu na Europa, onde as vilas operárias se


desenvolveram em função do processo de industrialização, no contexto de
expansão urbana da cidade industrial, no Brasil, a construção de vilas segundo o
modelo europeu deu-se em virtude da implantação das ferrovias que se
anteciparam ao processo de industrialização. Entretanto, é importante destacar
que, no caso brasileiro, o modelo de moradia destinada aos trabalhadores, segundo
o mesmo critério de vigilância e manutenção do trabalhador junto ao seu posto de
trabalho, remonta ao período colonial com a antiga senzala, depois tornada colônia
para os imigrantes. Justificando, portanto, a presença de algumas características
desse período adaptadas para a construção da moradia operário-ferroviária
(BONDUKI,2004;BLAY,1985;CORREIA,2008).

Na medida em que a cafeicultura se expandia em direção ao oeste paulista, a


ferrovia estendia-se na mesma direção, acelerando o processo de desenvolvimento
urbano das localidades por onde passava e, em muitos casos, sendo responsável
direta pela criação de cidades. No Estado de São Paulo, entre 1900 e 1930,
surgiram cerca de 120 cidades ao longo dos trilhos e, nesse mesmo período, a
população passou de 2 milhões para 7 milhões de habitantes (MATTOS, 2002:116-
117). No caso da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, segundo Moraes
(2002:101), até 1945 foram construídas 1612 unidades habitacionais, ao longo de
2.072km de trilhos, distribuídas entre vilas ferroviárias, casas-padrão e casas-de-
turma, de acordo com as necessidades da ferrovia e as peculiaridades de cada
região onde foram implantadas.

Em áreas onde não existiam núcleos urbanos nas proximidades ou era


necessária a manutenção de um grande número de funcionários disponíveis 24
horas por dia, como era o caso de áreas de entroncamento, pátios de manobra,
armazéns e oficinas, foram construídas as vilas ferroviárias. Além da construção de
moradias, as vilas foram dotadas de infra-estrutura complexa e equipamentos de
uso coletivo, tais como: escolas, creches, praças, campo de futebol, igreja,
armazém, restaurante e serviços de saúde. Outro tipo de habitação, as casas-
padrão, foi construído de forma integrada ao tecido urbano, aproveitando a infra-
estrutura disponibilizada pelo município. Por último, encontramos a habitação do
tipo casas-de-turma, construídas junto às estações ou ao longo da via férrea, em
pontos estratégicos, de tal forma que os trabalhadores pudessem se deslocar
rapidamente para a execução dos trabalhos de manutenção.

No caso de São Carlos, ao longo do trecho de ferrovia que corta o município,


a cada 7 km foram construídos grupos de casas-de-turma, de tal modo que os
trabalhadores pudessem se deslocar 3,5 km em um sentido ou outro para a
4
execução dos trabalhos de manutenção. A Coloninha FEPASA obedece à
conformação de casas-de-turma, implantada no entorno da Estação Hipódromo e
da Subestação de Energia Elétrica, totalizando 42 edificações construídas em
diferentes períodos da história da ferrovia.

A Coloninha FEPASA

A Coloninha FEPASA encontra-se localizada às margens da ferrovia, distante


cerca de 3 km ao sul da Estação Ferroviária Central (Figura 01) e apresenta um
conjunto arquitetônico composto por habitações e instalações empreendidas pela
Companhia Paulista de Estradas de Ferro, ao longo das diferentes fases da história
da ferrovia. As edificações encontradas permitem-nos a análise dos exemplares da
arquitetura ferroviária desde o seu período inicial, em 1884, passando pela fase de
eletrificação da linha, entre 1920 e 1928, pelo período de declínio das ferrovias,
iniciado após a Segunda Guerra e intensificado a partir da década de 1950,
atingindo os dias atuais de abandono e indefinição quanto a sua destinação e
preservação.

Figura 01: Mapa do Município de São Carlos com a localização da área da Coloninha FEPASA
Fonte: Elaborabo pela autora a partir de imagem do Google Maps (acesso em 15-10-2009)

O grupo mais antigo de casas apresenta indícios de ter sido construído entre
as últimas décadas do século XIX e o início do século XX. Segundo o relato de
alguns moradores, remanescentes ferroviários e seus descendentes, as construções
foram iniciadas em 1903, mesmo período da construção da Estação ferroviária
Central, inaugurada em 1908. Contudo, não foram encontrados registros oficiais
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que comprovem a data da construção dessas edificações. Portanto, adotamos como
referência o período entre 1884 e 1928, correspondente à chegada da ferrovia e a
conclusão do processo de eletrificação da linha. A área conta ainda com edificações
de madeira de diferentes tipologias, casas de alvenaria de tijolo aparente, casas de
alvenaria de tijolo revestidas de argamassa, correspondendo a 30 edificações
originalmente destinadas à habitação, bem como outras 12 edificações destinadas à
subestação de energia elétrica, às oficinas, aos laboratórios, ao almoxarifado, ao
silo, à estação e às demais instalações ferroviárias.

A partir do mapeamento da área, foi possível analisar as edificações quanto as


suas características arquitetônicas, as técnicas e os materiais construtivos
empregados, estado de conservação e intervenções sofridas. Em seguida, foi
elaborado um mapa de implantação (Figura 02) e a classificação das tipologias em
grupos distintos, de acordo com o período de construção, características
arquitetônicas, materiais utilizados e tipo de ocupação.

Figura 02: Mapa de implantação das edificações da Coloninha FEPASA.


Fonte: Elaborabo pela autora a partir de imagem do Google Maps (acesso em 15-10-2009)

De acordo com o mapa (Figura 02), observamos que o Grupo I é formado por
uma habitação isolada, destinada ao mestre-de-linha (1), três habitações
geminadas destinada aos trabalhadores de linha (2) e a Estação Ferroviária do
Hipódromo (3), construídas durante o período de implantação da ferrovia, entre
1884 e 1920. O primeiro ponto a ser observado é a diferenciação quanto à
implantação da casa do mestre-de-linha em relação às casas dos demais
funcionários.

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Enquanto a primeira habitação foi implantada em posição topograficamente
mais elevada, isolada no centro do lote e mais afastada da via férrea, as outras três
moradias foram implantadas de forma geminada, no alinhamento da via férrea e
próximas da Estação Hipódromo, deixando clara a questão da hierarquia funcional
transferida para a vida privada dos funcionários, conforme descrito por Correia
(2004) e Moreira (2007). Analisando as imagens a seguir, percebemos ainda
diferenças quanto às características arquitetônicas das duas tipologias (Figura 03).

(A) Fachada da casa do mestre-de-linha – Implantação 1

(B) Habitações geminadas – Implantação 2

Figura 03: (A) Fachada da casa do mestre-de-linha (B) Habitações geminadas


Fonte: Levantamento da autora
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A casa do mestre-de-linha apresenta certa imponência por meio da presença
de alguns ornamentos, acesso lateral, jardim frontal e cobertura em quatro águas
com beiral em cimalha. As demais casas apresentam configuração geminada,
ausência de ornamentos, acesso frontal e cobertura em duas águas paralelas à via
férrea. Quanto ao programa, também podemos notar diferenças consideráveis
entre as duas tipologias (Figura 04). Enquanto a casa do mestre-de-linha apresenta
programa mais complexo, as casas geminadas apresentam um programa mínimo.
Contudo, aqui é importante destacar uma nova divisão hierárquica na tipologia
geminada, com duas casas iguais, servidas com dois dormitórios e cozinha, e uma
casa servida com três dormitórios, sala e cozinha. As duas tipologias apresentam
banheiros afastados do corpo da habitação; contudo, na tipologia geminada o
banheiro é de uso coletivo.

Figura 04: Planta da casa do mestre-de-linha (A) e das casas geminadas (B).
Fonte: Levantamento da autora

As habitações do Grupo II foram construídas em madeira, segundo o método


tradicional, apoiadas em alicerce de alvenaria, piso de cimento vermelho, estrutura
em madeira e vedação com tábuas de 10 cm fixadas no sentido vertical,
originalmente montadas ao longo da Estrada de Ferro do Dourado, criada em 1899
e desativada em 1966 (Mattos, 1974). Entre 1966 e 1968, as casas pré-fabricadas
foram transferidas para a área da Coloninha FEPASA. Neste grupo, encontramos
três tipologias distintas (Figura 05). Duas casas isoladas, com acesso lateral,
telhado de quatro águas e implantadas no alinhamento da via férrea (4); quatro
casas isoladas, com partido em “T”, cobertura composta por dois telhados em duas
águas, acesso frontal e alinhadas duas a duas de cada lado de uma rua interna (5)
e; três casas geminadas (6), com acesso frontal, telhado em duas águas e
implantadas no alinhamento com a rua externa.

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Figura 05: Casas de madeira – Implantação 5
Fonte: Levantamento da autora

O Grupo III corresponde às casas dos engenheiros (Figura 06) as quais foram
construídas entre os anos de 1920 e 1928, período correspondente ao processo de
eletrificação da linha e da construção da subestação de energia elétrica, do
almoxarifado e das oficinas. Neste caso, foi adotado o estilo industrial inglês, com
alvenaria de tijolos aparente e presença de alpendre. A casa do engenheiro-chefe
(8) apresenta volumetria composta de dois retângulos formando um “T”, telhado de
quatro águas intercaladas por um outro de três águas, que se unem em duas
águas-furtadas. A este conjunto se une um alpendre de duas águas, também
formando duas águas-furtadas. A cobertura de telha francesa apresenta beiral com
acabamento em estuque. A casa do engenheiro-residente (12) apresenta
volumetria retangular, telhado em duas águas, cobertura em telha francesa,
alpendre e segue o mesmo estilo industrial inglês com tijolos aparentes e ausência
de ornamentos.

As casas ocupam posição de destaque, apresentam implantação centralizada


no lote, com as fachadas principais voltadas para os trilhos e topograficamente
elevadas em relação à via férrea. Entretanto, não foi possível verificar o interior das
casas para a realização de uma análise quanto ao seu programa de necessidades,
possivelmente mais completo que as demais habitações encontradas no local.

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Figura 06: Casa de engenheiro – Implantação 12
Fonte: Levantamento da autora

Quanto ao Grupo IV, este é formado por edificações não habitacionais,


correspondendo à ruína do edifício da Subestação de Energia Elétrica (11), o
conjunto de oficinas, laboratórios e almoxarifado (14), bem como as demais
instalações anexas: silo (7), reservatório de água (9), torre de transmissão de
energia elétrica (10), obelisco (13) e instalações diversas (16). Contudo, por
ocasião da realização do mapeamento da área, verificamos que, atualmente, parte
destas edificações foi invadida e está sendo utilizada como habitação para
moradores sem-teto. Devido ao avançado estado de degradação e
descaracterização, este grupo é o que apresenta maior risco com relação a sua
preservação.

O Grupo V corresponde ao conjunto de oito casas construídas para habitação


dos eletricistas (15), responsáveis tanto pela manutenção da subestação quanto
pela manutenção das instalações elétricas da via férrea. As casas estão dispostas
em fila e geminadas duas a duas. O telhado em duas águas apresenta a cumeeira
alinhada paralelamente à via férrea e cobertura em telha capa-canal. Possuem
generosos afastamentos frontal e lateral e indicam a antiga presença de amplos
jardins (Figura 07). Embora pertençam ao mesmo período das casas dos
engenheiros (Figura 06), construídas em estilo industrial inglês, para as moradias
dos eletricistas foi mantido o estilo eclético nas fachadas.

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Figura 07: Casas dos eletricistas – Implantação 15
Fonte: Levantamento da autora

Estas casas apresentam um programa mais completo em relação às casas dos


grupos I e II. Cada moradia apresenta três dormitórios, sala e cozinha (Figura 08).
Outro dado importante é a aproximação do banheiro ao corpo principal da casa.
Enquanto as tipologias dos grupos I e II apresentam banheiro na área externa,
afastado do corpo da casa, aqui o banheiro aparece como elemento anexo, ainda
externo, mas ligado com casa por meio de área coberta e próximo da cozinha,
demonstrando a concentração das áreas molhadas em um mesmo setor da
habitação.

Figura 08: Planta da casa do eletricista – Implantação 15


Fonte: Levantamento da autora
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De um modo geral, o levantamento realizado permitiu-nos confirmar a relação
existente entre o nível de especialização do funcionário, o status que a sua função
exercia no cenário da empresa e o grau de qualificação da sua habitação.
Independentemente do período em que estas habitações foram construídas, da
adequação exigida pela legislação sanitária, das técnicas e dos materiais
construtivos empregados, o padrão hierárquico repete-se em todas elas. Da mesma
forma, podemos verificar a especialização dos espaços de acordo com a sua função
e a preocupação moralizante e civilizatória imposta por meio da adoção do padrão
de três dormitórios em cada uma das habitações, possibilitando a separação dos
moradores de acordo com o sexo e a idade, assim como foi descrito por Correia
(2004), Moreira (2007), Moraes (2002) Bonduki (2004) e Blay (1985).

Considerações finais

Das mudanças causadas pela Revolução Industrial européia, interessaram-nos


aquelas que dizem respeito à vida privada, ao indivíduo, à família e ao novo modo
de morar, a forma como se processou, da fábrica para a habitação, a transferência
da divisão funcional hierarquizada e disciplinada do sistema produtivo capitalista.
No caso das habitações empreendidas pela Companhia Paulista de Estradas de
Ferro, esta transferência fica clara no texto introdutório ao Álbum Comemorativo do
Cinquentenário da empresa (1918), com o destaque sobre a importância da ordem
mantida na estrada, a regularidade dos horários, a boa administração, a rigorosa
limpeza e o conforto dos carros e das estações. Em seguida, destaca a qualidade
das moradias oferecidas aos seus funcionários como lugares salubres, construções
sólidas, confortáveis e de agradável aspecto. Estabelecendo assim a relação entre
os princípios sanitários, a ordem, a disciplina e o conforto às questões estéticas.

No contexto brasileiro, o modelo de habitação operária também encontrou


aqui as experiências da habitação escrava, promovendo a transição entre o modelo
habitacional colonial e rural e o modelo habitacional eclético e urbano. De tal forma
que encontramos nas tipologias estudadas elementos arquitetônicos pertencentes
aos dois momentos (CORREIA, 2008). O telhado de duas águas com beiral, o uso
de telhas capa-canal e cumeeira perpendicular à via são características comuns às
habitações coloniais. Contudo, dormitórios em número suficiente para separar os
moradores por sexo e idade, aberturas em todos os cômodos com o uso de janela
veneziana/vidro e a presença de recuos laterais e frontais com pequenos jardins,
mesmo para as habitações construídas muito próximas da via férrea, exemplificam
as preocupações quanto às questões sanitárias e morais que norteavam o
pensamento construtivo eclético.

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No que se refere especificamente à habitação ferroviária, percebemos ainda a
sua relação com a história do desenvolvimento, apogeu e decadência das ferrovias
no Brasil. O modo de produção ferroviário, que viveu seu apogeu entre o final do
século XIX e o início do século XX, a partir da década de 1930 passou a enfrentar
os problemas causados pela crise do café e pela Segunda Guerra, que dificultaram
a expansão ferroviária para outras áreas agrícolas. Na década de 1950, o
transporte rodoviário ganha força com a implantação da indústria automobilística
brasileira e o transporte ferroviário perde seu status de símbolo de eficiência e
modernidade para os automóveis e caminhões.

No mesmo período, teve início o processo de estatização e unificação das


companhias ferroviárias pelo Governo do Estado, concluído em 1970 com a criação
da FEPASA - Ferrovias Paulistas S/A, que acabou por acelerar o processo de
descaracterização e sucateamento das ferrovias. Em 1998, a FEPASA passa para o
controle da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), que por sua vez foi extinta em
2007. A partir de então, todo o patrimônio ferroviário do estado de São Paulo
passou para o controle da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), órgão
responsável pelo processo de inventariança da RFFSA (DENIT, 2009).

Embora a via férrea tenha sido terceirizada e continue em atividade, grande


parte do patrimônio da FEPASA (máquinas, locomotivas, vagões, instalações
ferroviárias e habitações) encontra-se sem destinação certa até que seja concluído
o processo de inventariança da RFFSA. Tal situação tem agravado o processo de
descaracterização e de degradação desse patrimônio. No que se refere às
habitações, esta situação é ainda mais grave, de tal forma que podemos afirmar
que as vilas ferroviárias seguiram o mesmo movimento de apogeu e queda das
companhias ferroviárias (MORAIS, 2002:89-101).

No caso específico da Coloninha FEPASA, a manutenção desse patrimônio e a


preservação de sua função habitacional dão-se pela permanência de remanescentes
ferroviários e seus descendentes ou mesmo pela ação de moradores não
ferroviários caracterizados como invasores. Em uma espécie de resistência pacífica,
defendem um patrimônio e uma história de vida – das suas próprias vidas – que se
funde e se confunde com a história da Companhia Paulista.

1: JARDIM, Elaine: Graduanda em Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Central Paulista – UNICEP. Programa Voluntário de
Iniciação Científica CENIP/PROVIC, concluído em dezembro de 2010, sob a orientação do Prof. Ms. Ralf José Castanheira Flôres. E-mail:
elaineajardim@gmail.com, telefones 55 (16) 3361-4572 ou 55 (16) 9796-2992.

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