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A Light e a utilização dos recursos hídricos da Bacia do Alto Tietê para a

geração de energia elétrica*

Antonio Augusto da Costa Faria

A partir da década de 1870, impulsionada pela riqueza da produção e exportação do café, a


cidade de São Paulo cresceu vertiginosamente. Em 1872 tinha 31.385 habitantes; 18 anos depois,
em 1890, sua população dobrou para 64.934 habitantes. Em 10 anos, no entanto, sua população
quase quintuplicou, passando para 239.820 habitantes em 1900. A riqueza originada no café
circulava e se diversificava em múltiplos empreendimentos: no comércio, na indústria, na atividade
bancária e também em empreendimentos voltados para a infra-estrutura como as estradas de ferro,
as empresas de produção e distribuição de energia elétrica e de transporte urbano de passageiros.
Lentamente, em um processo conhecido como substituição de importações, São Paulo começava
também a transformar-se numa cidade industrial. A Primeira Grande Guerra (1914-1918), quando
nos foi vedado o acesso ao mercado europeu, acelerou intensamente esse processo.
Em 1867 era inaugurada a primeira estrada de ferro de São Paulo, a Santos a Jundiaí,
popularmente conhecida como A Inglesa. O surgimento das ferrovias, ligadas diretamente à
exportação do café, teve vários efeitos sobre a cidade, como sua reestruturação espacial e a criação
de novos empregos, por exemplo. Mas há uma conseqüência que vários autores gostam de realçar:
com as ferrovias, os fazendeiros de maiores recursos transferiram sua residência para a capital, uma
vez que era agora possível ir às propriedades rurais de forma mais rápida e confortável. O rápido
processo de urbanização da cidade observada a partir de 1870 seria resultado, em parte, da
transferência dos fazendeiros para a capital. Pierre Monbeig, no entanto, percebe que, nesse
movimento de fazendeiros, há muito mais do que simplesmente a transferência de residências:

“A classe social em plena ascensão tinha necessidades novas. Para os fazendeiros, o mais
urgente foi deixar a residência rural e permanecer longamente na cidade. A instalação
temporária urbana se torna permanente. Isso era preciso antes de mais nada para poder
tratar de novos negócios comerciais e financeiros. O antigo plantador de cana podia viver
em suas terras e se contentar com relações de vizinhança com seus pares. O grande
plantador de café se vê na obrigação de supervisionar de perto o comércio de seu produto
mantendo contatos freqüentes com intermediários e exportadores. Às vezes, ele mesmo funda
uma casa de comércio ou dela participa como sócio. Ele associa o comércio à produção.
Para organizar e administrar as empresas ferroviárias, para constituir companhias de
colonização e imigração, para se associar aos novos bancos, para tratar de seus interesses
de classe e se enfronhar nas questões políticas crescentemente complexas e decisivas, o
fazendeiro não podia agir sozinho, nem permanecer na sua plantação. A formação de
empresas capitalistas e as necessidades de sua gestão não eram compatíveis com o tipo de
vida tradicional; elas exigiam uma convivência urbana. Elas foram um fator de urbanização
da classe dominante e, por conseqüência, elas são uma das causas do desenvolvimento da
capital dos fazendeiros.”1

Esta penetrante citação de Monbeig coloca o essencial desse novo momento: com a ferrovia,
São Paulo se torna não só a capital dos fazendeiros – no sentido de seu domicílio permanente –
mas também a capital do capital dos fazendeiros.2
Na transformação da cidade de São Paulo é preciso considerar ainda a imigração. Se a
maioria dos imigrantes dirigia-se para as plantações de café, uma parte também significativa
permanecia na cidade. Muitos, desiludidos com o trabalho das fazendas, procuravam fixar-se na
capital em busca de melhores oportunidades. Foram esses homens e mulheres os primeiros
A Light e a utilização dos recursos hídricos da Bacia do Alto Tietê para a geração de energia elétrica

operários das fábricas que começavam a aparecer; muitos deles montaram seus próprios negócios,
seja no comércio ou na indústria. Cheios de esperança, foram também os responsáveis pela pujança
e diversificação econômica da cidade.

A Light

Quando a canadense The São Paulo Tramway, Light and Power Company Limited, a Light,
instalou-se em São Paulo, em 1899, a cidade estava, portanto, ávida de energia. Como observou
Flávio Saes, “é inegável, portanto, que, ao se instalar em São Paulo em 1899, a Light encontrava
uma economia em processo de rápida expansão. Se a produção e o comércio de café eram o
elemento germinal desse crescimento, é certo que os principais resultados concentraram-se agora na
economia da cidade de São Paulo: incremento populacional, diversificação das atividades
comerciais, fortalecimento de instituições bancárias e multiplicação do número de estabelecimentos
industriais são índices seguros da transformação por que passa a capital do Estado no começo do
século XX. Em suma, o núcleo urbano de São Paulo constituía base suficientemente ampla e
crescente para o desenvolvimento das atividades produtivas da Light em suas duas vertentes
fundamentais: o transporte urbano movido a tração elétrica e a produção/distribuição de eletricidade
(para iluminação pública e doméstica e uso industrial)”3.
A disputa pelo fornecimento de energia elétrica para São Paulo, no entanto, começou bem
antes do advento da Light. Já em 1886 era organizada a Empresa Paulista de Eletricidade, que
iniciou suas atividades de fornecimento em dezembro de 1888. A Paulista de Eletricidade, porém,
não sobreviveu às necessidades de investimento vultuoso e foi absorvida, antes da chegada da
Light, pela Companhia Água e Luz de São Paulo. A Ligth recebeu inicialmente a concessão para
explorar o serviço de transportes urbanos e, logo depois, para gerar e distribuir energia elétrica para
a capital e seus subúrbios. Para iniciar o serviço de bondes dentro dos prazos contratuais a empresa
teve que instalar uma primeira usina termoelétrica na Rua São Caetano com capacidade de apenas 1
MW. No dia 7 de maio de 1900, antes do prazo fixado, foi inaugurada a primeira linha de bonde
elétrico, com destino ao bairro da Barra Funda.
Já antevendo a grande capacidade da empresa de estabelecer relacionamentos profícuos com
os principais políticos de São Paulo, Rodrigues Alves, presidente do Estado e futuro presidente da
República, acionou os dínamos da usina da Rua São Caetano. Logo depois, sai do depósito de
carros da Alameda Barão de Limeira um bonde que, dirigido pelo próprio superintendente da
companhia, Robert Brown, era ocupado por passageiros ilustres como o presidente do Estado, o
vice-presidente Domingos de Morais, o prefeito Antônio Prado, secretários de Governo, senadores,
deputados, vereadores e representantes do comércio, da indústria e da imprensa.
A viação urbana e a produção e distribuição de energia elétrica tiveram ao longo do tempo
pesos diferentes na formação da renda da Light. É evidente que os ganhos resultantes da associação
das duas atividades devem ter sido substanciais. “Ainda assim, sustenta Flávio Saes, parece-nos
que, de início, a viação urbana constituiu-se na atividade principal e a distribuição de eletricidade
foi um subproduto da primeira. Esta hipótese é sugerida pelos dados referentes à receita do grupo
Light em São Paulo, separada por sua origem (viação e eletricidade). Apesar da possível imprecisão
dos dados eles servem para confirmar a hipótese anterior: a receita da viação urbana é de três a
cinco vezes superior à da eletricidade. Entretanto, para a política de longo prazo da empresa, o
fornecimento de energia elétrica ganharia importância decisiva. O elemento crucial capaz de definir
tal mudança seria o consumo industrial de energia, crescente, por um lado pela própria
multiplicação do número de estabelecimentos industriais; por outro lado, o consumo industrial
também tenderia a crescer pela progressiva substituição do vapor por energia elétrica na indústria.
Os censos de 1907 e 1920 apresentam dados comparativos para a indústria brasileira confirmadores
de tal tendência. Esses dados, embora não sejam estritamente comparáveis, indicam o crescimento
da proporção de uso de energia elétrica na indústria de 4,29% para 47,3%, dado suficientemente
expressivo para dispensar qualquer comentário”4.

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A Light e a utilização dos recursos hídricos da Bacia do Alto Tietê para a geração de energia elétrica

A luta pelo monopólio. Quando a Light se instalou na Capital paulista já existiam na cidade
outras empresas voltadas para a prestação de serviços de utilidade pública, tais como o transporte
coletivo por meio de carros a tração animal, a iluminação a gás ou a termoeletricidade, a
distribuição de água potável e a coleta de esgotos. Entre essas empresas, a maioria de capital
nacional, destacavam-se a Companhia Viação Paulista e a Companhia Água e Luz do Estado de São
Paulo. O monopólio dos transportes estava praticamente na mãos da Viação Paulista, cujos bondes
puxados por burros eram os únicos a cruzar as principais ruas da cidade. Além dela havia apenas
outras duas empresas: a que transportava passageiros entre a Ponte Grande e o bairro de Santana,
também por meio de tração animal, e a Companhia Carris de Ferro de São Paulo a Santo Amaro,
uma pequena companhia de trens, concessionária estadual, que fazia a ligação entre a Capital e o
então município independente de Santo Amaro, empregando pequenas locomotivas a vapor.
Depois de uma árdua batalha travada nos tribunais, mas que envolveu também pressões
políticas e econômicas, a Light, em abril de 1901, adquiriu o controle da Viação Paulista,
solicitando imediatamente à Câmara Municipal a incorporação de todas as ruas até então ocupadas
pela rival à sua concessão. Em julho de 1901 a Câmara aprovou as bases dessa incorporação, sendo
assinado, nesse mesmo mês, um novo contrato com a prefeitura, para transporte de passageiros e
cargas, com duração de 40 anos.
Em março de 1900 a Light adquiriu a Companhia Carris de Ferro e em maio de 1907
incorporaria a pequena empresa que fazia o transporte entre Ponte Grande e Santana. Conquistava
assim, por várias décadas, o monopólio do transporte coletivo sobre trilhos na cada vez mais
próspera Capital paulista.
A absorção da Companhia de Água e Luz deu-se de maneira amigável. A empresa distribuía
luz elétrica exclusivamente no centro da cidade e sua situação era precária pois poucos particulares
requeriam luz elétrica para suas casas, as máquinas e os demais materiais, como cabos e fios
importados, tinham altos custos e era grande a dificuldade em conseguir empréstimos. A Light
adquiriu a maioria das ações da Água e Luz e assumiu seu controle. Em dezembro de 1908 a
empresa foi liquidada, ficando a Light a detentora também do monopólio da geração e distribuição
de energia elétrica na Capital.
Um bom negócio. Quais as razões que levaram a empresa canadense a investir pesadamente
no Brasil? Um artigo publicado no jornal Globe de Toronto, Canadá, em 1º de março de 1902,
explica as razões: “O país é notadamente livre de tendências revolucionárias, as quais estamos tão
acostumados a ver como um fato normal no âmbito sul-americano, mas que na verdade corresponde
mais à realidade dos países da América Central. No Brasil é tão difícil haver qualquer distúrbio da
lei e da ordem como em qualquer país civilizado da Europa, e o capital está seguro (...) A
Constituição protege expressamente as pessoas, direitos e propriedades de estrangeiros, e tem sido
uma característica de sua administração uma orientação política inteligente e honrada para com os
estrangeiros que investem nessa República”. Sobre a cidade de São Paulo diz o artigo: “Já se tornou
um sólido centro fabril e de moagem, mas seu desenvolvimento a este respeito é dificultado pelo
alto custo da energia a vapor, a única força até agora disponível para as fábricas (...) É claro que
uma tal comunidade tem recursos para utilização de eletricidade para diversos fins, desde que seja
provida de uma produção a baixo custo”. Na conclusão o jornalista comenta a essência, o grande
objetivo da presença da Light no Brasil: “Não devemos, no entanto, deixar de apreciar o
empreendimento de nossos compatriotas que correram o risco de tal aventura, mas sim congratulá-
los se trouxerem para nosso país, como eles dizem, um rico retorno”5.
Usina de Parnaíba e Reservatório Guarapiranga. A primeira usina hidroelétrica da Ligth no
Brasil foi a usina de Parnaíba, implantada em Santana de Parnaíba, no rio Tietê. Inaugurada em
1901, sua potência inicial era de 2 MW, e em 1912 atingiu sua potência máxima de 16 MW. Como
ressaltou Edgard de Souza6 essa usina foi “a pedra fundamental” da implantação da Ligth em São
Paulo. Em 1899, quando adquiriu a concessão para operar o transporte urbano de passageiros por
meio de bondes elétricos, a Light se comprometeu a implantar esse serviço no prazo de dois anos.
Daí a inauguração às pressas da usina provisória da rua São Caetano. “Essa usina termoelétrica não
podia, no entanto, com sua modesta capacidade geradora de 1.000 kW, garantir o fornecimento da

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energia elétrica necessária para os planos de expansão das linhas de bondes, da iluminação pública e
doméstica e de utilização industrial da nova forma de energia, acalentados pela empresa. Para
viabilizar esses planos, a Light não podia prescindir da localização e aproveitamento de uma fonte
de força hidráulica apropriada nas proximidades da Capital paulista”7.
A Usina Parnaíba foi a primeira hidroelétrica de grande porte, para os padrões da época,
implantada no Brasil. Sua construção “enfrentou e venceu dificuldades dificilmente imagináveis
pelas gerações atuais, acostumadas às realizações da engenharia moderna. Num prazo curto de um
ano e nove meses, superou o problema da distância até São Paulo, a falta de modernos meios de
transporte e comunicação, as estradas primitivas, o peso das peças transportadas, a escassez de
engenheiros e operários qualificados e a necessidade de importar o maquinário e até mesmo o
cimento requerido para as edificações. Por todos esses motivos, a Usina Hidroelétrica de Parnaíba
ocupa lugar destacado na trajetória da Light e também na história da energia e da industrialização
do país”8.
Para poder operá-la a empresa teve que regularizar a vazão do rio Tietê. Como era
impossível criar um grande reservatório em Parnaíba sem afetar a cidade de São Paulo, a Light
implantou em 1908 um reservatório no rio Guarapiranga (194.000.000 m3) com a função de
regularizar as vazões do Rio Tietê e manter as condições operativas da Usina de Parnaíba.
Enquanto procurava definir outras possibilidades de geração de energia hidroelétrica e em
razão da demanda, a Light viu-se obrigada a instalar outra usina termoelétrica. Construída na rua
Paula Souza, e gerando 5 MW, foi posta em serviço em 1912, tendo sua capacidade duplicada em
1924.
Itupararanga. A pressão da demanda fez com que a Light inaugurasse em 1914 a usina de
Itupararanga no rio Sorocaba, afluente do rio Tietê, com potência inicial de 30 MW. Em 1974,
quando a usina foi vendida para a Companhia Brasileira de Alumínio, ela produzia 61 MW.
A Grande Estiagem. Nos anos de 1924 e 1925 uma grande estiagem precipitou uma crise
energética que já se pronunciava diante do crescimento da demanda. Em 1925 a Light foi obrigada
a construir às pressas mais uma usina no rio Tietê, a usina de Rasgão, acrescentando mais 22 MW
ao sistema. Esse acréscimo de potência foi apenas um paliativo para uma crise ainda não resolvida.
A estiagem desses anos provocou um grande impacto na população, como deixa claro esta
crônica de Afonso Schmidt:

“O transeunte olhava as praças, as avenidas, as ruas estreitas e sentia que faltava alguma
coisa. Os prédios ainda estavam iluminados. Homens e mulheres se acotovelavam nos pontos
de bondes e de ônibus; mostravam pressa de regressar aos bairros. A escuridão vinha vindo,
vinha vindo, e ninguém queria ser alcançado pelas suas mãos de sombra. A noite era
silenciosa e fria. Tinha botas de sete léguas e caminhava pisando nos telhados. As sereias
ficaram aflitas e botaram a boca no mundo. Os sinos viraram cambalhotas nas torres das
igrejas. Em Parnaíba, um moço de boné puxou uma alavanca de ferro com pega-mão de
borracha, e metade das lâmpadas elétricas da cidade se apagou, ficando como taças foscas,
esvaziadas de luz. E a escuridão começou a devorar a Capital; engoliu o Martinelli, a
‘Light’, o Matarazzo, o Saldanha Marinho, todas as pontas de São Paulo que entram pelo
céu. Mastigou as praças e as ruas. A gente começou a ver uma janela aqui, outra não se sabe
onde; um homem correndo pelo viaduto, outro encostado no portal de um banco.9”

O Projeto da Serra.

Foi nessa conjuntura de crescimento de demanda, agravada pela estiagem, que mais uma vez
os engenheiros da Light voltaram a pensar na reversão dos rios da bacia do Alto Tietê, cogitada pela
primeira vez em 1913. Nesse ano, baseada em anteprojeto de engenheiros liderados por Walter
Charnley, a “canadense” chegou a comprar as terras envoltórias à cachoeira de Itapanhaú, na
vertente marítima da Serra do Mar, próximo a Mogi das Cruzes. A proposta era inverter as águas do
Tietê através de um canal de 1.700 metros que as jogaria no Ribeirão Grande, um dos formadores

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A Light e a utilização dos recursos hídricos da Bacia do Alto Tietê para a geração de energia elétrica

do Itapanhaú. Essa idéia jamais se concretizou e dez anos depois o engenheiro norte-americano Asa
W. K. Billings, contratado pela Light, encarregou o engenheiro F. S. Hyde de fazer um
levantamento das possibilidades de outras inversões para a vertente marítima da Serra do Mar.
Os estudos de Hyde levaram-no a optar pela inversão das águas do rio Grande (nome do rio
Pinheiros entre a nascente e a foz do rio Guarapiranga) para o leito do rio das Pedras, contribuinte
do rio Cubatão. Sobre a proposta de Hyde, Edgard de Souza disse que “comparada com a diversão
pelo Itapanhaú, apresenta este plano, conhecido como Projeto da Serra, reais vantagens, entre
outras, maior queda, possibilidade de maior armazenamento de água, grande facilidade de
transporte pela construção de desvio ferroviário, menor distância de transmissão a São Paulo, usina
situada entre as duas maiores cidades do Estado de São Paulo, a capital e o importante porto de
Santos. (...) Este projeto reúne quatro condições favoráveis dentro do território paulista e de difícil
consórcio: grande altura de queda, grande descarga, grande reserva de águas e grande proximidade
dos centros de consumo. Além disso, certas condições locais também favoreceram o seu
estabelecimento. Tal é o fato de coincidir a localização de enorme zona inundada em terras um
tanto impróprias à agricultura, quase desabitadas, embora próximas à Capital, e portanto, de
reduzido valor. Se se tratasse de zona agrícola, como as do interior do Estado, o custo aquisitivo
poderia ser tão elevado que tornaria o plano financeiramente inexequível. Outra condição
extremamente favorável é a do regime pluviométrico, porquanto os ventos do Atlântico, carregados
de umidade, produzem abundante precipitação nas cumeadas da Serra e no planalto adjacente em
quantidade raramente excedida em qualquer outra região, chegando às vezes, a precipitação anual, a
ultrapassar seis metros ”10.
Billings endossou imediatamente a proposta de Hyde, iniciando o detalhamento do projeto.
Em janeiro de 1925 a maioria das terras necessárias na região da Serra do Mar já haviam sido
adquiridas. Em 1926 era inaugurada a primeira usina de Cubatão, a externa, que, em 1950, com
suas 8 unidades geradoras em funcionamento, e aproveitando um desnível maior que 700 metros,
produzia 460 MW. Em 1952 a Light iniciou a construção da segunda usina de Cubatão, a usina
subterrânea, concluída em 1954. Em 1956 as quatro primeiras unidades geradoras já estavam em
funcionamento e em 1961 foi colocado em operação o último grupo gerador, elevando sua potência
para 420 MW. O Projeto da Serra estava concluído, encerrando um ciclo de obras que durou 35
anos, gerando 880 MW.
Em 1964 a usina de Cubatão recebeu o nome de usina Henry Borden em homenagem ao
executivo canadense que presidiu o grupo Light entre 1946 e 1965.
Para armazenar a água que acionaria as turbinas da usina de Henry Borden a Light construiu
dois reservatórios, o reservatório do rio das Pedras (1926, 26.650.000 m3) e o reservatório do rio
Grande (1927, 1.210.000.000 m3). Em 1949, este último seria rebatizado como reservatório Billings
em homenagem ao criador do sistema.
Mas o fato é que para gerar esses 880 MW a Light utilizava-se da totalidade dos recursos
hídricos da bacia do Alto Tietê, ou seja, o sistema foi concebido para, em condições normais,
reverter para a produção de energia até 270 m3/s das águas da bacia situada a montante da barragem
de Pirapora, ficando liberada, para as necessidades hídricas à jusante, apenas 1 m3/s.
Logo depois de inaugurar a primeira usina de Cubatão a Light colocava em funcionamento,
em 1928, a usina de Porto Góis, no rio Tietê, junto à cidade de Salto, gerando 11 MW. Na década
de 1930 a Light cuidou de canalizar o rio Pinheiros, que corria em meandros até desaguar no Tietê.
Em 1939 inaugurava a Usina Elevatória de Pedreira, na barragem do rio Grande, a
aproximadamente 25 km da foz do rio Pinheiros revertendo as águas da represa Guarapiranga para a
represa Billings. A Light instalou em Pedreira bombas-turbinas, isto é, que podem funcionar como
moto-bombas ou como turbo-geradores. A capacidade de reversão da Elevatória de Pedreira é de
270 m3/s. Em 1940 a Light inaugurava a Usina Elevatória de Traição a cerca de 9,5 km de foz do
rio Pinheiros, também pelo sistema moto-bombas, com uma capacidade de reversão de 280 m3/s.
Em 1952, a Usina de Parnaíba, que em 1949 passou a chamar-se Edgard de Souza, foi
desativada e transformada também em usina elevatória de águas, passando a integrar o sistema de
aproveitamento hidroelétrico em Henry Borden. Para que cumpra de maneira mais eficiente sua

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nova função a usina é elevada em 6 metros. Finalmente, em 1955 era inaugurado o reservatório de
Pirapora, represando as águas do trecho do rio Tietê entre essa barragem e a barragem de Edgard
de Souza, recebendo também as águas do rio Juqueri, afluente do Tietê.
O reservatório Billings, é o mais volumoso manancial da Região Metropolitana de São
Paulo, e sua construção, como se viu, teve como principal objetivo a geração de energia elétrica na
usina Henry Borden, em Cubatão. Possui, aqui incluído o reservatório do rio das Pedras, uma área
de drenagem de aproximadamente 560 km2 e recebe a contribuição dos rios Grande, Pequeno,
Bororé, Capivari, Cocaia, Taquacetuba, além dos rios Pinheiros e Tietê por meio de reversão.
Além da geração de energia elétrica o reservatório contempla ainda outros usos: lazer, pesca,
abastecimento industrial, recepção de efluentes domésticos e industriais. Até o momento, o único
ponto de captação de água para consumo na Billings está no braço do rio Grande, isolado do corpo
da represa em dezembro de 1981, e onde se localiza a Estação de Tratamento de Água Rio Grande,
da Sabesp.
O sistema hidroenergético da Light11, como se viu, foi concebido para derivar para a
produção de energia a quase totalidade das águas da bacia do Alto Tietê. Nessa operação a água do
reservatório de Pirapora era racalcada pela Usina Elevatória de Edgard de Souza. As águas do Tietê
à montante e à jusante da foz do canal do rio Pinheiros, assim como as águas do canal do rio
Pinheiros eram sucessivamente recalcadas pela Usina de Traição e de Pedreira para o reservatório
Billings e daí conduzidas para o reservatório do rio das Pedras através da barragem reguladora
(Summit Control) e do canal de ligação, sendo finalmente lançadas serra abaixo para movimentar as
turbinas dos geradores da usina Henry Borden.

Billings

Como inexistissem sistemas de tratamento de esgotos e de efluentes industriais, a Billings


transformou-se desde o final da década de 1930 na grande cloaca da Região Metropolitana de São
Paulo. As condições sanitárias da Billings ficaram tão deterioradas que em 1976 as autoridades
tiveram que mudar as regras operacionais do sistema. Provisoriamente, 50% das águas eram
descarregadas rio abaixo a partir de Edgard de Souza e os outros 50% eram recalcados para o
reservatório. Além disso, o turbinamento da usina de Henry Borden era mantido no mínimo de
modo a garantir o máximo armazenamento possível para assegurar a diluição dos esgotos. Essa
operação, chamada de Operação Saneamento, foi retomada a partir de 1983 visando estabelecer
uma regra operacional adequada ao sistema hídrico da bacia do Alto Tietê.
Em razão das condições de degradação da Billings, com exceção do braço do rio Grande,
separado do corpo principal do reservatório, e produzindo 4 m3/s de água de qualidade razoável
para a região do ABC, nem uma gota sequer de água foi ou é retirada da Billings com o objetivo de
abastecimento público.
Por pressão da população do ABC os deputados constituintes que elaboraram a
Constituição do Estado de São Paulo de 1989, seguindo uma tradição brasileira de tudo resolver por
meio de leis e decretos, no artigo 46 das Disposições Transitórias estabeleceram que “no prazo de
três anos, a contar da promulgação desta Constituição, ficam os Poderes Públicos Estadual e
Municipal obrigados a tomar medidas eficazes para impedir o bombeamento de águas servidas,
dejetos e de outras substâncias poluentes para a represa Billings”.
No dia 4 de setembro de 1992, portanto um mês e um dia antes de completar-se o prazo
estabelecido nas Disposições Transitórias da Constituição, as secretarias do Meio Ambiente e de
Energia e Saneamento publicavam a Resolução Conjunta SMA-SES 3 que no seu artigo primeiro
suspendia “por tempo indeterminado, o bombeamento das águas do rio Pinheiros para a represa
Billings”. A mesma Resolução estabelecia as exceções em que poderia ser retomado o
bombeamento: controle de cheias; queda da cota na tomada d’água da usina Henry Borden a níveis
insuficientes para assegurar o fornecimento de energia elétrica em situações emergenciais;
formação de espumas surfactantes no rio, a jusante de Edgard de Souza, que venham a estravasar o
espelho d’água; formação de “bloom” de algas nos corpos hídricos da Região Metropolitana de São

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A Light e a utilização dos recursos hídricos da Bacia do Alto Tietê para a geração de energia elétrica

Paulo e Médio Tietê, comprometendo sua qualidade para fins de abastecimento público; ocorrência
de intrusão salina ou queda de nível na Bacia do rio Cubatão, de molde a comprometer o
funcionamento das indústrias que dela captam água para o processo produtivo. Esta última exceção
foi suprimida na Resolução SEE-SMA-SRHSO 1, de 13 de março de 1996, na pressuposição de que
as indústrias de Cubatão deveriam ou economizar água no processo produtivo ou ir buscá-la em
outros mananciais. As águas da Billings não mais poderiam ser usadas para afastar as águas
salgadas que adentram o rio Cubatão.
A proibição de bombear as águas poluídas do Tietê e do Pinheiros para a Billings teve o
claro objetivo de recuperar o reservatório para atividades de lazer, náuticas e, acima de tudo, para
que ele pudesse servir de manancial de abastecimento público. Mas quando a Sabesp anunciou a
interligação do braço rio Taquacetuba, um dos rios formadores da Billings, com o reservatório
Guarapiranga, prevendo, na sua etapa final, uma captação de 4 m3/s, imediatamente um grupo de
sanitaristas se manifestou12 contra essa proposta alegando que o reservatório, com exceção do braço
segmentado do rio Grande, ainda não pode ser utilizado para abastecimento público em razão do
comprometimento das águas do seu corpo central pelo bombeamento durante cinco décadas das
águas poluídas dos rios Tietê e Pinheiros.
A proposta da Sabesp se deveu ao fato de que o volume de água ofertado pelos sistemas
produtores da Cantareira, Alto e Baixo Cotia, Alto Tietê, Rio Claro, Rio Grande e Ribeirão da
Estiva, é de 59 m3/s contra uma demanda de 69 m3/s13, déficit esse agravado em razão de se
perderem, segundo a própria Sabesp, 22% da água tratada em vazamentos visíveis e invisíveis, o
que eqüivale a aproximadamente 13 m3/s. Trata-se, portanto, de saber onde ir buscar água em
quantidade e qualidade para atender a população.
Antes de reverter o braço Taquacetuba para a Guarapiranga os referidos sanitaristas sugerem
algumas medidas que poderiam reduzir esse déficit de 10 m3/s de água para abastecimento público,
reproduzidos a seguir:

• Plena utilização do Sistema do Alto Tietê, que tem uma ociosidade de 5 m3/s. Além disso,
em conseqüência de pendências judiciais relativas à desapropriação da indústria Manikraft, o
reservatório de Taiaçupeba não pode ser completamente enchido, perdendo-se quase 1 m3/s de água
para abastecimento.

• Sistemático e permanente programa educacional orientado ao comedimento do consumo


de água, destacando-se os benefícios econômicos e ambientais desses procedimentos.

• Eficaz programa de controle e redução de perdas de água.

• Estímulo ao uso de equipamentos de baixo consumo de água, especialmente nos


programas habitacionais executados ou financiados pelos órgãos públicos.

• Estímulo ao uso de sistemas alternativos de águas não necessariamente potáveis,


particularmente a oriunda de mananciais subterrâneos.

Os sanitaristas acrescentam que “é conveniente recordar que, embora a supressão do


bombeamento tenha reduzido a carga de contaminação instantânea afluente ao reservatório Billings,
não se pode olvidar possuir o seu leito de fundo sedimentos acumulados ao longo dos anos. Nesses
sedimentos remanescem contaminantes da mais variada toxicidade, biopersistência ambiental e
capacidade de bioacumulação oriundos da Região Metropolitana de São Paulo. Ainda segundo
esses sanitaristas “levantamentos preliminares da qualidade do reservatório Billings, incluindo o
braço do rio Taquacetuba, têm indicado a presença de valores intoleráveis de parâmetros
indicadores de neurotoxicidade, carcinogenicidade, mutagenicidade e teratogenicida nas águas deste
reservatório, indicando, consequentemente, a necessidade de estudos mais aprofundados para

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A Light e a utilização dos recursos hídricos da Bacia do Alto Tietê para a geração de energia elétrica

melhor aquilatar os riscos e os reflexos potenciais da utilização desta água à saúde pública e da
dispersão das substâncias químicas nos ambientes aquáticos”.
O alerta desses sanitaristas, e a discussão que se seguiu, como foi dito, foi publicado na
revista do Instituto de Engenharia. Apesar da importância dessa discussão para a saúde pública ela
ficou restrita a uma meia dúzia de especialistas da Sabesp, da Cetesb e da Faculdade de Saúde
Pública da Universidade de São Paulo, inclusive porque foi travada numa linguagem
essencialmente técnica. A grande imprensa ignorou o assunto e os ambientalistas também, já que
não se trata de nenhum animal em extinção ou ecossistema, mas da saúde da população, no caso
entre 3,5 e 4 milhões de pessoas. Ambientalista que se preza, especialmente se morar no lado sul da
cidade, bebe água mineral.
Em 29 de agosto de 1997 a Secretaria do Meio Ambiente-SMA concedia a Licença Prévia
para a Primeira Etapa do Sistema Produtor Taquacetuba-Guarapiranga (Licença Prévia nº 000113).
No item III do Anexo da Licença Prévia (Exigências a serem cumpridas durante a operação do
Sistema Produtor Taquacetuba-Guarapiranga) a SMA demonstra toda a sua preocupação com
relação à qualidade da água captada na Billings e revertida para a Guarapiranga exigindo o
“monitoramento da qualidade da água bruta e tratada pelas ETAs do Alto da Boa Vista e Theodoro
Ramos tanto dos parâmetros de potabilidade quanto daqueles relativos aos potenciais de toxicidade,
mutagenicidade, carcinogenicidade e teratogenicidade”, ressaltando que o “monitoramento deverá
ser mantido continuamente durante a operação dos sistema de modo a permitir a imediata
paralização da transposição da água do Braço Taquacetuba caso sejam detectados eventos que
coloquem em risco a saúde pública”. As licenças de Instalação para a adutora e para a estação
elevatória foram concedidas em novembro 1997, mas não consta que a Sabesp tenha cumprido as
exigências que lhe permitirão obter a licença de Operação. O fato é que até o momento, com o
abastecimento público agravado devido à estiagem, a Sabesp ainda não conclui o projeto de
interligação do braço Taquacetuba com a Guarapiranga.
Todos esses cuidados da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo demonstram
que o assunto precisa ser mais debatido e os dados relativos à qualidade da água do Braço
Taquacetuba e também do corpo da Billings precisam ser conhecidos pela população. Trata-se, em
resumo, de um sério problema de saúde pública.

Notas
1
Citado por Saes, Flávio Azevedo Marques de. “O campo da economia”. In: Cadernos de História de São Paulo, 1.
Os campos do conhecimento e o conhecimento da cidade. São Paulo: Museu Paulista da Universidade de São Paulo,
1992. Pags. 30/31.
2
Cf. Saes, F.A.M. Op. Cit. Pag. 31.
3
Saes, F.A.M. “Café, indústria e eletricidade em São Paulo”. In: História & Energia: a chegada da Light. São Paulo:
Patrimônio Histórico/Eletropaulo, 1986. Pag. 27.
4
Saes, F.A.M. Op. Cit. Pags. 28/29.
5
Citado em A cidade da Light: 1899-1930. V1. São Paulo: Superintendência de Comunicação/Departamento de
Patrimônio/Eletropaulo, 1990. 2v. Pags. 170/171.
6
Souza, Edgard de. História da Light. Primeiros 50 Anos. São Paulo: Eletropaulo, 1982. Pag. 55. Edgard de Souza,
engenheiro, nascido em Campinas em 1876, foi o único brasileiro, até os anos cinqüenta, a ocupar um cargo de diretor
no poderoso conglomerado canadense Brazilian Traction. Em 1949 deu seu nome à Usina de Parnaíba.
7
Cf. “A Usina de Parnaíba”. In: História & Energia: a chegada da Light. Pag. 54.
8
Cf. idem, ibidem. Pag. 54.
9
Citado por Maranhão, Ricardo. “Introdução”, In: Souza, Edgard de. Op. Cit. Pags. 8/9.
10
Souza, Edgard de. Op. Cit. Pags. 102/103.
11
Quem quiser mais informações sobre o sistema montado pela Light e herdado pela Eletropaulo recomendo o leitura
do texto do Engº Reynaldo Maffei “O Sistema Eletroenergético da Eletropaulo”. In: Engenharia (Revista do Instituto
de Engenharia), nº 457, 1986. Pags. 14/24.
12
O debate foi travado nas páginas de Engenharia: “Interligação Braço do Rio Taquacetuba, na Billings, com o
reservatório do Guarapiranga: alternativas de produção e risco à saúde pública”. 31/3 a 15/5 de 1997, nº 520. Assinam
esse primeiro artigo Antonio Carlos Kussama, Aristides de Almeida Rocha, Ben-Hur Lutenbarck Batalha, Ismar Ferrari,

8
A Light e a utilização dos recursos hídricos da Bacia do Alto Tietê para a geração de energia elétrica

Mauro Garcia e Noemi Yamaguishi Tomita. O líder desse grupo era o falecido Ben-Hur Batalha, que, com certeza,
também redigiu o artigo. A resposta da Sabesp foi assinada por Orlando Zuliani Cassettari, que na época era vice-
presidente metropolitano de produção da empresa: “Interligação do Taquacetuba. Reservatório Guarapiranga: o futuro é
agora. A tecnologia e gestão a serviço da Saúde Pública”. Nº 522, Julho/Agosto de 1997. A réplica dos sanitaristas
apareceu no Nº 523 da revista, Setembro/Outubro de 1997: “Interligação do Braço Taquacetuba/Billings. Reservatório
Guarapiranga: replicando em defesa da Saúde Pública”. Não assina a réplica Aristides de Almeida Rocha, No entanto,
dois outros nomes assinam este artigo final do debate: Luiz Roberto Tommasi e Rinaldo Augusto Orlandi.
13
Esses dados, não necessariamente atuais, foram citados pelos sanitaristas no artigo que abriu o debate.

* Notas Ambientais nº 24, junho de 2000

Antonio Augusto da Costa Faria é formado em História (USP), técnico da Secretaria do


Meio Ambiente do Estado de São Paulo e professor de História Ambiental do curso de Tecnologia
em Gestão Ambiental do SENAC.

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