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Representações da mulher negra objetificada e hipersexualizada

em narrativas de Chimamanda Adichie


Representations of the objectified and hypersexualized black woman in Chimamanda
Adichie’s narratives

RESUMO

Propomos a análise de momentos-chave de dois romances de Chimamanda Ngozi


Adichie – Meio sol amarelo (2008) e Americanah (2014) – e dois contos – “Jumping
Monkey Hill” (2017) e “No seu pescoço” (2017) –, de modo a analisar criticamente as
situações em que as personagens femininas, em posições subalternizadas, são vistas
como menos que seres humanos e colocadas em condição de objeto. O objetivo central
é examinar os impactos da objetificação e da hipersexualização das personagens
representadas na obra ficcional de Chimamanda Adichie. Voltamos nossa atenção para
os estudos culturais pós-coloniais, que agem como ponto de partida da pesquisa e
focam na análise das relações interculturais, além das relações de poder e dominação
desenvolvidas a partir do contato entre grupos de diferentes origens e práticas. De
fato, com a ampliação desses estudos contra-hegemônicos, uma trajetória de ruptura
dos paradigmas historicamente consolidados é delineada. As histórias adichieanas
se inserem nesse contexto e contam com representações das experiências vividas,
complementando estudos antropológicos que se propõem a analisar como se dão as
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relações da mulher negra com a sociedade contemporânea. Logo, conceitos como os
de Hall (2005), Bhabha (2013) e Fanon (2008) são basilares, assim como os de Davis
(2016) e Lugones (2014). Concluímos que o conjunto da obra adichieana contribui
para a pertinência da literatura como motivação para questionamentos e veículos de
militâncias política, social, sexual e cultural. Adichie está situada em um grupo de
autores contemporâneos que escolhem o engajamento pela literatura, para favorecer
a saída do Outro do âmbito exclusivamente acadêmico para alcançar maior número
de interessados nas temáticas abordadas pela autora.

Palavras-chave: Literatura nigeriana. Pós-colonial. Mulher negra. Chimamanda


Ngozi Adichie.

ABSTRACT

We propose the analysis of key moments of two novels by Chimamanda Ngozi Adichie
– Half of a Yellow Sun (2006) and Americanah (2013) – and two short stories – “Jumping
Monkey Hill” (2009) and “The thing around your neck” (2009) – in order to critically
analyze situations in which female characters, in subalternized positions, are seen

Luana Caetano Thibes


Doutoranda em Letras - Universidade Estadual de Santa Cruz/Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
E-mail: luanacthibes@gmail.com
Isaías Francisco de Carvalho
Prof. Dr. da Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail: isaiasfcarvalho@gmail.com

ISSN: 1807 - 8214


Revista Ártemis, vol. XXXII nº 1; jul-dez, 2021. pp. 172-188
as less than human beings and placed in the condition of objects. The main goal
is to examine the impacts of the characters objectification and hypersexualization
represented in the fictional work of Chimamanda Adichie. We turn our attention
to postcolonial cultural studies, which act as a starting point for the research and
focus on the analysis of intercultural relations, in addition to the relations of power
and domination developed from the contact among groups of different origins
and practices. In fact, with the expansion of postcolonial studies, among others
that promote the voice of the marginalized, a trajectory of rupture of historically
consolidated paradigms is outlined. Adichiean stories are inserted in this context and
have representations of lived experiences, complementing anthropological studies that
propose to analyze how black women’s relations with contemporary society take place.
Therefore, concepts such as those by Hall (2005), Bhabha (2013) and Fanon (2008) are
fundamental, as well as those of Davis (2016) and Lugones (2014). We conclude that the
whole of the Adichiean work contributes to the relevance of literature as a motivation
for questioning and vehicles of political, social, sexual and cultural activism. Adichie is
situated in a group of contemporary authors who choose to engage through literature.
Thus, debates about the condition of the Other leave the exclusively academic scope
to reach other spheres, reaching those most interested in the themes addressed by
the author.

Keywords: Nigerian literature. Postcolonial. Black woman. Chimamanda Ngozi


Adichie.

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Introdução

As transformações nos arranjos e símbolos sociais, em termos de empoderamento


de minorias, já há algum tempo podem ser notadas nas representações culturais,
políticas e literárias em níveis nacional e internacional. É o caso de múltiplas
narrativas contemporâneas que mesclam ilustrações de personagens ficcionais e reais,
frequentemente inseridos em contextos verídicos, atuais ou passados. Geralmente,
tais narrativas trabalham suas representações de forma a borrar as fronteiras entre
literatura, história e antropologia, analisando aspectos sociais e culturais, ratificando
ou subvertendo estudos antropológicos, a depender da intenção do autor. A partir da
leitura e análise de tais obras literárias, um determinado indivíduo pode, por exemplo,
traçar paralelos entre ficção e realidade, desenvolvendo seu pensamento crítico.
A autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie busca representar o lugar da
mulher africana nigeriana nos contextos histórico e contemporâneo em grande parte
dos romances e contos publicados até o presente. Chimamanda tem, até o momento,
três romances publicados – Hibisco roxo ([2003] 2011), Meio sol amarelo ([2006] 2008)
e Americanah ([2013] 2014) –, além de uma compilação de contos – No seu pescoço
([2009] 2017) – e diversos outros contos publicados em múltiplas plataformas. Além
disso, Adichie escreveu poemas, peças teatrais e ensaios ao longo de sua carreira.
Seus trabalhos têm como característica priorizar o olhar da mulher negra nigeriana,

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levantando diversos questionamentos em narrativas representantes de diferentes
momentos históricos do país e do mundo.
Chimamanda vem realizando a divulgação de parte da cultura nigeriana através
de suas obras narrativas e de suas palestras, bem como em seus posicionamentos,
abordando assuntos relevantes no contexto local (da cultura nigeriana) e global.
Exemplos de esferas de sua atuação incluem questões acerca dos obstáculos para
o desenvolvimento de países ainda submetidos a outras culturas colonizadoras e
neocolonizadoras e temáticas em torno dos movimentos migratórios e a participação
da mulher na sociedade contemporânea, sendo esse último tópico, o principal alvo
deste artigo.
Diante disso, propomos a análise de momentos-chave de dois romances de
Chimamanda – Meio sol amarelo (2008), que apresenta duas irmãs com personalidades
distintas residindo na Nigéria sexista dos anos sessenta, e Americanah (2014), que
narra os processos migratórios de entrada e saída de indivíduos no país – e dois
contos – “Jumping Monkey Hill” (2017), ambientado em um workshop na África do Sul,
contexto em que uma autora é assediada pelo anfitrião do evento, e “No seu pescoço”
(2017), ambientado em sua maior parte nos Estados Unidos, país em que a protagonista
passa por situações de assédio e fetichização –, de modo a analisar criticamente as
situações em que as personagens femininas, em posições subalternizadas, são vistas
como menos que seres humanos e colocadas em condição de objeto.
O objetivo central deste artigo é examinar os impactos da objetificação e da
174 hipersexualização das personagens representadas na obra ficcional de Chimamanda
Adichie. Nossa intenção é observar os momentos em que as mulheres são colocadas
em posição inferior e entendidas como menos donas de seus próprios corpos, nos
contextos apresentados pela autora, num cenário que prioriza os padrões impostos pela
hegemonia eurocêntrica ao mesmo tempo que fetichiza o Outro. Mais especificamente,
objetivamos evidenciar aspectos da perspectiva da mulher africana-nigeriana a partir
do corpus delimitado: até que ponto o corpo feminino é seu mesmo e em que momento
passa a ser entendido como coletivo ou como objeto de desejo dos olhos alheios;
observar possíveis diferenças entre a interpretação do corpo da mulher negra versus
o corpo da mulher branca; e verificar de que forma a dominação territorial durante os
períodos de invasão Europeia influenciou na noção do corpo da mulher negra africana
como algo a ser governado por terceiros.

Fundamentos da pesquisa

Com o intuito de ampliar a discussão em torno das representações femininas


adichieanas que vem ganhando expressividade na última década no Brasil e no mundo,
direcionamos o olhar inicialmente para pesquisas sobre a obra de Chimamanda Ngozi
Adichie focadas em temáticas como pós-colonialidade, descolonização, imigração,
questões de gênero, violência e identidade, além de questões linguísticas em torno

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da escrita da autora. Ao consultar o levantamento bibliográfico do website The
Chimamanda Ngozi Adichie Website, mantido pela Université de Liège (Bélgica) e
referenciado como fonte segura de informações biográficas pelo próprio website
mantido por Adichie, observa-se que a quantidade de livros, artigos e dissertações sobre
as obras sofreu um crescimento exponencial nos últimos anos, com a popularização
midiática da autora.
Pesquisas como a de Kivai (2010), que explora a voz feminina e as mudanças nas
relações entre gêneros no contexto nigeriano nos romances Hibisco roxo e Meio sol
amarelo; a de Koskei (2014), sobre a experiência da imigrante africana no Ocidente no
romance Americanah; a de Krishnan (2016), que aborda o fetiche em torno do exótico
pós-colonial em Meio sol amarelo; e a de Sandwith (2016), que observa a narrativa
Hibisco roxo através das representações do corpo no romance, podem ser encontradas
em um levantamento inicial de pesquisas sobre a autora.
Assim como pesquisas no âmbito nacional, como a de Braga (2019), que faz uma
leitura mais abrangente das obras de Chimamanda, ao mesmo tempo que foca nos
aspectos pós-coloniais e diaspóricos das narrativas; a de Morais (2017) e a de Moraes
e Correia (2020), que tratam de questões de gênero e identidade no livro de contos
No seu pescoço; e a de Marcelo (2017), que se propõe a analisar a representação da
Nigéria no século XX, a utilizando como contraponto ao livro O mundo se despedaça,
de Chinua Achebe. Destacamos também as pesquisas que dão notoriedade à relevância
de Adichie no quadro de escritoras negras contemporâneas, como a de Teotônio (2013)
e a de Campos (2018), que fazem um estudo comparativo entre Hibisco roxo e O sétimo 175
juramento, de Paulina Chiziane, e a de Alves e Souza (2018), que estabelece um diálogo
com o conceito de escrevivência, de Conceição Evaristo.
Esses estudos servem como ponto de partida para a presente pesquisa, que
tem o intuito de analisar excertos das obras adichieanas a partir de conceitos como
o de objetificação e o de fetichização, assim como aprofundar-se mais nas questões
de gênero que atravessam as narrativas analisadas. Destacamos pesquisadoras que
dedicaram seu trabalho às questões de gênero, observando a relação da mulher com
o corpo e, mais especificamente, da relação da mulher negra com seu corpo e de seu
corpo com a sociedade. Nomes como o de Beauvoir (2019), Davis (2016) e Lugones
(2014) merecem espaço aqui, uma vez que discorrem sobre o encadeamento entre
mulher, raça e sociedade.
De acordo com Lugones (2014, p. 935, grifos da autora), “[...] se mulher e negro
são termos para categorias homogêneas, atomizadas e separáveis, então sua intersecção
mostra-nos a ausência das mulheres negras – e não sua presença”. Assim, embora as
personagens de Adichie estejam longe de serem consideradas personagens silenciadas,
a combinação de exclusões em que elas são tidas como parte certamente tem peso
significativo em suas vidas. Tendo como exemplo o romance Americanah (2014), as
personagens negras, já em posição subalternizada por serem membros de dois grupos
minoritários, podem ser elencadas a partir do nível de subalternidade em que se
encontram (THIBES; CARVALHO, 2013), quando observadas outras características
consideradas excludentes no contexto estadunidense. Desse modo, a combinação de

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elementos pode delimitar os níveis de subalternidade, como é o caso da personagem
Aisha, do Senegal, que é mulher, negra, sem estudos e africana. Não domina a língua
inglesa perfeitamente, procura um bom casamento, trabalha trançando os cabelos de
outras negras e é vista como inferior pela própria protagonista do romance, mulher,
negra e africana.

‘Moro em Princeton.’
‘Princeton.’ Aisha ficou em silêncio por um segundo. ‘Você é
estudante?’
‘Eu tinha uma bolsa até pouco tempo atrás’, disse Ifemelu, sabendo
que Aisha não ia saber o que era uma bolsa. Naquele raro momento
em que a mulher pareceu intimidada, Ifemelu sentiu um prazer
perverso. Sim, Princeton. Sim, o tipo de lugar que, para Aisha, só
poderia existir na imaginação [...] (ADICHIE, 2014, p. 23-24).

Salientamos que grande parte das personagens criadas por Chimamanda


Adichie são pertencentes ao grupo étnico igbo – o mesmo da autora – e, devido a
essa particularidade em suas obras, aplicamos os conceitos de gênero levando em
conta o contexto das personagens. De acordo com Chimamanda (2017), no manifesto
Para educar crianças feministas, a própria comunidade igbo se organiza de forma a
reforçar a submissão feminina, ao afirmar que “[...] a cultura igbo também ensina que
uma mulher não pode fazer certas coisas porque é mulher [...]” (ADICHIE, 2017, p. 51).
176
Entretanto, a autora também afirma que:

[...] uma família com dupla fonte de renda constitui a verdadeira


tradição igbo, não só porque as mães plantavam e comercializavam
antes do colonialismo britânico, mas também porque o comércio
era uma atividade exclusivamente feminina em algumas partes da
Igbolândia (ADICHIE, 2017, p. 15).

Voltamos nossa atenção para os estudos culturais pós-coloniais, que agem como
ponto de partida da pesquisa e focam na análise das relações interculturais, além
das relações de poder e dominação desenvolvidas a partir do contato entre grupos de
diferentes origens e práticas. Logo, conceitos como os de Hall (2005), Bhabha (2013)
e Fanon (2008) servem como base para a análise.
Ao discorrer sobre o conceito de cultura nacional, Hall (2005, p. 59) afirma
que: “A maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por
um longo processo de conquista violenta – isto é, pela supressão forçada da diferença
cultural”. É o caso da Nigéria, por exemplo, país de origem da maioria das personagens
adichieanos, que sofrem com o reflexo de uma unificação violenta1, além dos impactos
culturais do imaginário ocidental quanto à figura do Africano, de forma geral.
1 Após a Segunda Guerra Mundial, com a publicação de novas Constituições, a Nigéria proclamou
sua independência em 1960. No entanto, devido aos anos de colonização e às políticas constituídas
no processo de independência, o país encontrava-se fragmentado por disputas políticas enraizadas

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Bhabha (2013) investiga essa figura do Africano ao falar sobre o estereótipo do
nativo, visto como exacerbadamente sexual e bestial. O teórico descreve:

[...] o estereótipo do nativo fixado nas fronteiras deslizantes entre


barbárie e civilidade; o medo e desejo insaciáveis pelo negro: ‘Nossas
mulheres estão à mercê dos pretos... Sabe Deus como eles fazem
amor’; o profundo medo cultural do negro figurado no tremor
psíquico da sexualidade ocidental [...] (BHABHA, 2013, p. 78-79).

O estudioso continua sua análise ao questionar a presença negra na história,


que teve sua imagem relacionada ao estereótipo de primitivismo, ao mesmo tempo que
ainda ocupa um lugar de deslocamento. Para Bhabha (2013, p. 80), “os olhos do homem
branco destroçam o corpo do homem negro e nesse ato de violência epistemológica
seu próprio quadro de referência é transgredido, seu campo de visão perturbado”. A
partir do olhar do homem branco, observam-se momentos de “destroçamento” do
corpo negro em diversas cenas narrativas de Adichie, principalmente em situações em
que a mulher negra está à mercê do olhar do homem branco. Certamente, há também
o destroçamento do corpo da mulher pelo olhar do homem negro, em um nível em
que a misoginia e a objetificação não estão ligadas diretamente a aspectos raciais.
Diversas histórias de Adichie colocam o corpo da mulher negra em evidência,
explicitando a objetificação e a hipersexualização da negra africana em ambientes
domésticos e estrangeiros. Dois momentos podem ilustrar o exercício de apresentação 177
de tais problemáticas nas obras da autora. O primeiro, no conto “Jumping Mokey
Hill”, em que a protagonista se incomoda com o olhar lascivo do estrangeiro branco
organizador de um workshop para autores, afirmando: “Edward está sempre olhando
para o meu corpo” (ADICHIE, 2017, p. 119). O segundo, no romance Americanah, em que
o namorado branco da protagonista revela seu fetiche sexual baseado na personagem-
título do filme Foxy Brown, de 1974, conhecido pela representação estereotipada e
hipersexualizada da mulher negra, ao pedir no momento da relação sexual: “Que tal
você fingir que é a Foxy Brown?” (ADICHIE, 2014, p. 213). Ambos, entre outros, revelam
a preocupação da autora em narrar situações que podem facilmente ser interpretadas
como elogiosas, quando na verdade ocultam uma problemática maior.
Em Peles negras, máscaras brancas (2008), Fanon discorre sobre a objetificação
do corpo negro, ao afirmar que “[...] no mundo branco, o homem de cor encontra
dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é
unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em
torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas.” (FANON, 2008, p. 104).

em diferenças étnicas. De acordo com Oliveira (2014), “[...] poucos anos depois da independência, em
1966, dois golpes militares sucessivos ocorreram e, no ano seguinte, eclodiu a Guerra de Biafra, mais
conhecida como Guerra Civil Nigeriana (OLIVEIRA, 2014, p. 230). A Guerra de Biafra “[...] foi o primeiro
conflito de grandes proporções em que os dois lados eram comandados exclusivamente por generais e
oficiais africanos, ainda que ambos contassem com apoio de conselheiros e armamentos das potências
ocidentais. Ao final de quase três anos de combate, o governo federal nigeriano conseguiu derrotar os
secessionistas, pondo fim ao conflito em 1970” (OLIVEIRA, 2014, p. 230-231).

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Essa dificuldade apresentada por Fanon é consequência do próprio esforço branco de
objetificar o corpo negro, fazendo com que o homem de cor se esforce para avançar
“[...] num corpo a corpo com a própria negrura ou com a própria brancura, em pleno
drama narcisista, cada um enclausurado na sua particularidade, embora, de tempos
em tempos, com alguns vislumbres, ameaçados contudo pelas origens” (FANON,
2008, p. 56). Assim, nesse movimento de busca identitária, o homem de cor – e nesse
contexto de análise, a mulher de cor – procura dominar o próprio corpo, negando a
condição objetificada para assumir seu lugar de sujeito. Nessas hierarquizações de
objetificação, a mulher negra é duplamente violentada, portanto, pelos aspectos de
gênero e de raça.

Objetificação e hipersexualização em Chimamanda

O romance adichieano Americanah se organiza de forma a exemplificar de forma


mais direta a questão de gênero somada à questão de raça. Ao retratar a mudança
de uma jovem universitária nigeriana para os Estados Unidos, a história acompanha
suas descobertas sobre raça, enquanto toma conhecimento da realidade de ser uma
migrante negra. A partir do olhar de Ifemelu, a protagonista, o leitor tem acesso ao
processo de migração, quais os possíveis motivos que fazem uma jovem enxergar
os Estados Unidos da América como principal destino para melhores condições de
178 vida, como a personagem passa a se ver enquanto mulher negra e quais mecanismos
de resistência à hegemonia ocidental ela desenvolve ao longo de sua estadia no país
estadunidense (THIBES; SANTOS, 2017, p. 471). Por meio da relação entre Ifemelu e
seu namorado branco, Curt, podemos observar a figura masculina que acredita ter
boas intenções, mas parece alheia à sua visão estereotipada da própria namorada,
categorizando-a como “algo a ser experimentado”.

Curt nunca tinha transado com uma negra; ele disse isso para ela
após sua primeira vez, em sua cobertura em Baltimore, jogando a
cabeça num gesto em que caçoava de si mesmo, como se isso fosse
algo que devesse ter feito havia muito tempo, mas que sempre
deixara para depois (ADICHIE, 2014, p. 212).

O olhar do homem branco (e do homem negro) sobre a mulher negra pode


ser analisado, por exemplo, a partir da teoria de Lugones, que defende a ideia de um
feminismo descolonial. A pesquisadora discorre sobre o olhar dos europeus brancos
burgueses que se entendiam como civilizados, comparando-se com os colonizados,
julgados como tendo personalidades “[...] bestiais e portanto não gendradas,
promíscuas, grotescamente sexuais e pecaminosas.” (LUGONES, 2014, p. 936-937).
Essa visão do colonizado como bestial e promíscuo estendeu-se, historicamente, por

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todo o período de colonização e, consequentemente, de escravização no continente
africano e nos continentes para onde os escravizados foram levados.
Ifemelu, migrante nigeriana, ouve comentários sobre sua aparência ao interagir
com um homem branco, mesmo sem ter nenhuma intimidade com ele, que ainda a
compara com “mulheres africanas” no geral, ignorando sua nacionalidade ou grupo
étnico. Ao afirmar que: “‘As mulheres africanas são lindas, principalmente as etíopes’”
(ADICHIE, 2014, p. 185), esse homem apaga não só parte da identidade de Ifemelu,
como também seu controle sobre o próprio corpo, ao ser coagida a aceitar o comentário
como elogio, mesmo não se sentindo elogiada.
Assim como a protagonista, que ocupa um lugar intermediário nos níveis de
subalternidade que rotulam e categorizam a mulher negra na sociedade estadunidense
(THIBES; CARVALHO, 2013), existem outras personagens femininas colocadas em
posição de objeto. É o caso da empregada de Kosi e Obinze na Nigéria, apresentada
brevemente em Americanah, que carrega consigo um valor simbólico e de representação
da violência para seu silenciamento e invisibilização.

A mala da menina estava no chão, aberta, com as roupas espalhadas.


Kosi estava postada ao lado, segurando com as pontas dos dedos
um pacote de camisinhas.
‘Para que isso? Hein? Você veio para minha casa para ser uma
prostituta?’
A menina olhou para baixo primeiro, em silêncio, e depois encarou
Kosi e disse baixinho: ‘No meu último emprego, o marido da
179
senhora estava sempre me forçando’[...].
‘O último patrão a estuprava, por isso ela decidiu se proteger dessa
vez’, disse Obinze (ADICHIE, 2014, p. 42).

Em poucas linhas, essa cena apresenta diversos problemas enfrentados pela


mulher negra e pobre. Em primeiro lugar, a invasão de privacidade exercida pela patroa,
exigindo revirar seus pertences antes de aceitá-la como funcionária. Em segundo lugar,
o julgamento que uma mulher faz da outra, ao se deparar com camisinhas, ilustrando
o discurso veiculado de que mulheres sexualmente ativas têm caráter duvidoso.
Em terceiro lugar, a conformidade da empregada doméstica diante do estupro. A
mulher retratada na cena acima certamente foi condicionada a aceitar situações
constrangedoras diversas, e nem passa por sua cabeça levantar a voz para dizer não.
Ao discorrer sobre a formação feminina desde a infância, Beauvoir (2019, p.
44) afirma:

É uma estranha experiência, para um indivíduo que se sente como


sujeito, autonomia, transcendência, como um absoluto, descobrir
em si, a título de essência dada, a inferioridade: é uma estranha
experiência para quem, para si, se arvora em Um, ser revelado a
si mesmo como alteridade. É o que acontece à menina quando,
fazendo o aprendizado do mundo, nele se percebe mulher. A esfera

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a que pertence é cercada por todos os lados, limitada, dominada
pelo universo masculino: por mais alto que se eleve, por mais longe
que se aventura, haverá sempre um teto acima de sua cabeça, muros
que lhe barrarão o caminho.

Ainda de acordo com Beauvoir (2019, p. 44), “Essa situação não é única. É
também a que os negros da América do Norte conhecem, parcialmente integrados numa
civilização que os considera, entretanto, como casta inferior”. Assim, é importante
notar a intersecção da questão de gênero com as questões de raça e/ou etnia nas vidas
das personagens de Adichie, visto que são integrantes de mais de uma minoria social.
Em sua pesquisa sobre a relação das mulheres com raça e classe, Davis (2016)
traça o percurso da mulher negra no contexto estadunidense desde a época da
escravidão até os tempos atuais, de modo a compreender a posição subalterna da
mulher negra na sociedade ocidental. Ao investigar as raízes da posição da mulher
negra nos Estados Unidos, a autora relata a experiência da escravizada nas lavouras
e em outros contextos, em comparação à experiência masculina:

Mas as mulheres também sofriam de forma diferente, porque


eram vítimas de abuso sexual e outros maus-tratos bárbaros que só
poderiam ser infligidos a elas. A postura dos senhores em relação às
escravas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-
las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de
180 gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas
de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas
exclusivamente à sua condição de fêmeas (DAVIS, 2016, p. 25).

A teórica prossegue descrevendo a evolução do olhar sobre a mulher negra


nas décadas seguintes e mostrando de que forma as mudanças nas leis em torno do
trabalho escravo influenciaram a noção do corpo da mulher escravizada. De acordo
com a autora, devido à abolição do tráfico internacional de mão de obra escrava, o
corpo feminino passou a ser valorizado por sua capacidade reprodutiva. Dessa forma,
a mulher escravizada, que já era vista como propriedade, perdeu ainda mais o poder
de voz sobre o próprio corpo, sendo tratada como objeto.
Ao avançar para a situação da mulher negra nos dias atuais, Davis aborda as
diversas situações de abuso sexual a que uma mulher pode ser submetida. A autora
aponta:

Há o drama diário do racismo representado pelos incontáveis


e anônimos enfrentamentos entre as mulheres negras e seus
abusadores brancos – homens convencidos de que seus atos são
naturais. Essas agressões têm sido ideologicamente sancionadas
por políticos, intelectuais e jornalistas, bem como por literatos que
com frequência retratam as mulheres negras como promíscuas
e imorais. Até mesmo a extraordinária escritora Gertrude Stein

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descreveu uma de suas personagens negras como possuidora da
‘simples e promíscua imoralidade do povo negro’ (DAVIS, 2016,
p. 175).

Ainda no contexto estadunidense, o conto “No seu pescoço” apresenta muitas


similaridades com o romance Americanah, ao narrar a história de uma jovem imigrante
nigeriana que acredita ter “ganhado a loteria do visto americano”, e passa por uma
jornada de autoconhecimento a partir do olhar ocidental. A personagem central do
conto, Akunna, também se envolve com um homem branco, em um relacionamento
que é percebido como “anormal” por terceiros. E seu relacionamento com o homem
branco também parece partir do imaginário ocidental em relação à mulher africana.
Embora nesse conto o namorado branco demonstre ter uma visão mais ampla do que
é a África, sua romantização da pobreza dos países considerados periféricos (ou em
desenvolvimento) serve como alerta para Akunna, que age com cautela inicialmente.
A narrativa, escrita em segunda pessoa, pontua a percepção da protagonista, que
afirma: “Você tentou desdenhá-lo [...], pois os brancos que gostavam demais da África
e os que gostavam de menos eram iguais – condescendentes” (ADICHIE, 2017, p. 130).
No entanto, antes de envolver-se com o namorado branco, Akunna passa pela
situação de assédio sexual que a faz aventurar-se no interior estadunidense sozinha.
O assédio parte de um homem negro, considerado seu tio e seu anfitrião inicial no
país americano.
181
Até que seu tio entrou no porão apertado onde você dormia ao
lado de caixas e embalagens velhas e puxou-a com força para perto
dele, apertando sua bunda, soltando gemidos. Ele não era seu tio
de verdade; na verdade, ele era irmão do marido da irmã de seu pai,
não parente de sangue. Depois que você o empurrou para longe, ele
se sentou na sua cama – a casa era dele, afinal de contas –, sorriu e
disse que você não era mais criança, já tinha vinte e dois anos. Se
você deixasse, ele faria muitas coisas por você. As mulheres espertas
faziam isso o tempo todo. Como você achava que aquelas mulheres
com bons salários em Lagos conseguiam aqueles empregos? E até
as mulheres em Nova York? (ADICHIE, 2017, p. 127).

O excerto evidenciado revela que a noção do corpo feminino negro enquanto


algo a ser usado, aproveitado, tocado sem consentimento, não parte apenas de
homens brancos – ocupantes da posição hierárquica superior no sistema patriarcal
historicamente reforçado pelo ocidente –, mas também de homens negros, que podem
reproduzir atos de violência.
São diversos os momentos em que Adichie narra situações de assédio vividas
por suas personagens, vítimas tanto de homens brancos quanto de homens negros.
Retomamos aqui a situação apresentada no conto “Jumping Monkey Hill”, em que
Ujunwa, uma escritora nigeriana, se sente desconfortável com o olhar do organizador

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britânico do workshop para autores africanos. A personagem, no entanto, se vê na
situação em que escolhe entender os comentários assediadores do organizador como
piadas, para não se indispor com o grupo.

No começo, Ujunwa tentou não notar que Edward muitas vezes


observava o seu corpo, que seus olhos nunca ficavam fixos em seu
rosto, mas sempre um pouco mais pra baixo. [...] Os participantes
estavam sentados no terraço e, depois que ele distribuiu os papéis,
Ujunwa viu que todos os lugares sob os guarda-sóis estavam
ocupados.
‘Eu não me importo de sentar no sol’, disse ela, já se levantando.
‘Quer que eu levante para você, Edward?’
‘Gostaria muito que você se deitasse para mim.’ O momento foi
úmido, espesso; [...] Edward sorria. Só o ugandês e o tanzaniano
tinham escutado. Então o ugandês riu. E Ujunwa riu, porque era
engraçado e espirituoso, ela disse a si mesma, se você parasse para
pensar (ADICHIE, 2017, p. 116).

Observa-se, assim, o drama vivido por mulheres negras que se calam frente
aos abusos sofridos por terceiros, visto que a própria sociedade endossa o discurso da
mulher negra como exacerbadamente sexual e promíscua. Assim como o desconforto
em relação ao gênero, que silencia a mulher que não quer ser vista como inconveniente
182 e “problematizadora”, existe também um desconforto em relação à raça, o qual, no
contexto analisado, não cogita a possibilidade de dissociação. Ao discorrer sobre a
própria experiência enquanto mulher negra, hooks sente-se “invisível” em situações
de racismo e misoginia. Para seus colegas, “o racismo que se manifesta nas interações
do dia a dia [...] é apenas um desconforto a ser evitado, não algo a ser confrontado
e desafiado” (hooks, 2019, p. 129). Para Ujunwa, ser complacente com uma situação
de assédio parece o caminho mais fácil para evitar uma situação considerada
desconfortável para o grupo. Entretanto, o silêncio machuca, e a conclusão do conto
é aflitiva, quando narra:

Havia outras coisas que Ujunwa queria dizer, mas não disse. Havia
lágrimas brotando em seus olhos, mas ela não deixou que caíssem.
Estava ansiosa para ligar para a mãe e, enquanto caminhava na
direção de seu bangalô, perguntou-se se este final, num conto,
seria considerado plausível (ADICHIE, 2017, p. 124).

Em Meio sol amarelo, as personagens femininas são representadas como cientes


dessa condição de silenciamento, dominadas pelo universo masculino. As situações a
que as gêmeas Olanna e Kainene são submetidas, mesmo sendo filhas de um “Chefe”,
um homem que detém poder na Nigéria, demonstram que a posição considerada
privilegiada na sociedade nigeriana não as protege de ter seus corpos rebaixados ao
lugar de objeto. Através das experiências das personagens, temos acesso aos novos ricos

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nigerianos, pessoas que lucraram com o processo de colonização e/ou com a guerra da
independência, e encontram-se em situação confortável em uma nação que ainda tenta
se reerguer. Olanna é retratada como a irmã mais socialmente engajada e, enquanto
questionadora do status quo, exprime certo constrangimento quanto a sua condição
financeira e social privilegiada, principalmente devido a formação universitária que
a permitiu engajar-se em discussões e causas sociais (THIBES, 2018, p. 67).
Kainene, por sua vez, manifesta um posicionamento que aparenta ser mais
tolerante quanto à sua posição na sociedade nigeriana e o que é esperado dela enquanto
mulher participante ativa desse grupo. No entanto, a personagem revela o cinismo com
que trata a situação subalternizada em que se encontra, postura essa enfatizada ao
longo de toda a história. Kainene é a gêmea que, ao mesmo tempo que parece aceitar
mais seu papel feminino na sociedade nigeriana, tece críticas mais assertivas quanto
ao que se espera da mulher em uma família tradicional nigeriana. Em circunstâncias
de discussão de negócios, por exemplo, seus pais as submetem à posição de “parte da
transação”, ou como Kainene observa, “pedaços de carne”.

‘Já esteve no mercado de Balogun?’ perguntou ela. ‘Eles põem os


nacos de carne em cima do balcão e você é que aperta e cutuca até
escolher o que quer. Minha irmã e eu somos carne. Estamos aqui
para que os solteiros adequados se aproximem’ (ADICHIE, 2008,
p. 74).

183
O apontamento da personagem exterioriza seu desconforto com a situação de
objetivação a qual é forçada a tomar parte, ao mesmo tempo em que suas ações estão
em acordo com o que a posição social de seus pais exige das irmãs. Para Kainene,
posicionar-se estrategicamente em um contexto que a objetifica parece mais vantajoso,
pois assim a mulher talvez possa alcançar seus objetivos de forma mais viável. Uma
estratégia de sobrevivência.
Enquanto isso, Olanna é descrita como a irmã mais insatisfeita com as situações
a que é submetida, mas exibe, simultaneamente, comportamento complacente com
as circunstâncias em que se encontra. Como, por exemplo, no momento em que seus
pais tentam aproximá-la de um pretendente, que é descrito como um dos homens
poderosos que acreditam ter direito a qualquer mulher que escolham como objeto de
admiração, apenas por sua posição influente (THIBES, 2018, p. 68), como a relatada
no excerto a seguir:

Por uns instantes, Olanna não fez nada, o corpo frouxo ao lado
dele. Estava acostumada com isso, com ser agarrada por homens
embebidos em nuvens de direitos, recendendo a colônia, que
presumiam, por serem poderosos e acharem-na bonita, que eles
se pertenciam (ADICHIE, 2008, p. 45, grifo nosso).

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Apontamos para o trecho “estava acostumada com isso” devido à familiaridade
dessa expressão para o universo feminino, espaço em que, historicamente, mulheres
normalizaram comportamentos abusivos apenas por terem se acostumado a eles. A
personagem parece entender como as negociações entre os “homens-grandes” podem
desenrolar-se independente da vontade de todos os envolvidos. De acordo com Lugones
(2014), “Pode-se começar a observar o vínculo entre, por um lado, a introdução colonial
do conceito moderno instrumental da natureza como central para o capitalismo e,
por outro, a introdução colonial do conceito moderno de gênero” (LUGONES, 2014,
p. 938). Logo, ao negociar a afeição de sua filha em troca de parceria nos negócios, os
pais de Olanna demonstram o quanto foram impactados pelos modelos econômico
e de gênero ocidentais, que, somados a alguns costumes igbo narrados por autores
nigerianos sobre as tradições matrimoniais do grupo étnico, tornam a mulher uma
moeda de troca poderosa.

Considerações finais

Devido à necessidade de dar continuidade ao diálogo estabelecido com grupos


minoritários – em especial com a mulher negra – sobre meios de alienação hegemônica
e sobre de que forma isso influencia na aceitação identitária e no empoderamento de
pessoas pertencentes a mais de uma minoria, consideramos que este artigo representa
184 mais um passo a ser dado em direção aos caminhos para a desconstrução de preceitos
determinados autoritariamente. Além disso, em virtude da possibilidade de associação
entre cultura, literatura e identidade, a partir da análise das representações no corpus
que ilustram a relação da mulher negra com o olhar de terceiros, além da relação da
negra com sua própria individualidade, este artigo almejou expandir o alcance de
divulgação de literaturas pós-coloniais, em especial a nigeriana, compreendendo a
importância da ampla promoção de obras que se prestam a questionar organizações
socioculturais vigentes.
Com a ampliação dos estudos pós-coloniais, entre outros que promovem a
voz do marginalizado, uma trajetória de ruptura dos paradigmas historicamente
consolidados é delineada. Apontamos para a importância das representações ficcionais
contemporâneas como fonte de aprendizado e conhecimento de mundo. É o caso
das obras de Chimamanda, que se inserem no contexto pós-colonial e contam
com representações condizentes às experiências vividas, complementando estudos
antropológicos que se propõem a analisar como se dão as relações da mulher negra
com a sociedade contemporânea.
A partir das considerações em torno das representações da mulher negra
que está submetida à uma posição objetificada e hipersexualizada, esperamos dar
continuidade aos estudos em torno da fortuna crítica de Chimamanda Ngozi Adichie,
voltando nosso olhar futuramente para os momentos de ruptura que agem como
catalisadores para atos de contra posicionamento das personagens em relação à

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imposição hegemônica para a atuação da mulher na sociedade ocidental. Destacamos,
também, a possibilidade de estabelecer um diálogo com obras de autoras negras
brasileiras, como Conceição Evaristo e suas Ana Davenga, Duzu-Querença, Natalina,
Luamanda, Cida etc., personagens representadas no livro de contos Olhos d’água
(2016) que proporcionam a alternativa de um paralelo entre narrativas. Com isso,
acreditamos que o conjunto da obra adichieana contribui para a pertinência da
literatura como motivação para questionamentos e veículo de militância política, social,
sexual, cultural etc. Adichie está situada em um grupo de autores contemporâneos
que escolhem o engajamento pela literatura. Dessa forma, debates acerca da condição
do Outro deixam o âmbito exclusivamente acadêmico para alcançar outras esferas,
atingindo os maiores interessados nas temáticas abordadas pela autora.

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