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PROVA FINAL

questões audiovisuais

FILMES DE COMENTÁRIO
Diretores de Contagem, cidade industrial em Minas Gerais, renovam o cinema brasileiro

TIAGO COELHO

Q
uando Gabriel Martins che- anos, diante da tela do computador, assis- concorda: “Ele podia atirar a churras- mente encostam nas casas, sem dar
gou à Rua Imbuia, em Con- tindo a um vídeo sobre o planeta verme- queira assim que o David Luiz aparece nenhum ou quase nenhum espaço
tagem, cidade vizinha a Belo lho. A mãe o chama. Ele atravessa a casa, chorando. Daria um efeito de humor para os jardins. Às vezes, a gente acha
Horizonte, acenou para um rumo ao quintal. Sua família está ali, maior. A demora com que o pai reage que uma casa continua na outra, de
velhinho branco que descan- sentada em cadeiras diante de uma tevê diminui um pouco o efeito.” tão próximas e parecidas. Mas a pintu-
sava numa cadeira de balanço na entrada antiga, de tubo. Alguns vestem verde e Gabriel ouvia atento. “Já tentei algu- ra da fachada cuida de distingui-las – a
de uma pequena loja de móveis usados. amarelo, outros, a camisa azul royal do mas versões, mas é difícil de achar o pon- verde da branca, a amarela da azul.
“Ô, Seu Delardino!”, disse o rapaz ne- Cruzeiro. O garoto do computador se to certo do humor.” Os filmes de Maurílio, André e Ga-
gro, de 32 anos, cabelo black, indo até junta aos familiares para assistir à partida “Quando o jogo ainda está em 2 a 0, briel são feitos nessas ruas comuns, com
o homem para cumprimentá-lo. “Como do Brasil contra a Alemanha na Copa do podia surgir um vizinho gritando: ‘Vamos a participação de pessoas que vivem ne-
vai o senhor? Bom demais?” Delardino Mundo. É terça-feira, 8 de julho de 2014. virar, Brasil!’”, sugeriu André. Os três las suas vidas comuns, como Seu Delar-
balançou a cabeça positivamente e per- O jogo começa. Estão todos animados, riem. “É, está faltando o grito da vizinhan- dino. É em Contagem que os diretores
guntou: “E os filmes?” “Estão indo, até que a Seleção Brasileira toma um gol. ça, buzina, morteiro. A algazarra que o vivem ou viveram, e trabalham. Maurílio
logo sai mais um.” Toma o segundo gol. A família se assusta. povo faz”, disse Maurílio. “Sim, vai rolar, ainda mora lá, mas Gabriel e André, que
Gabriel seguiu pela rua, passou dian- “Tem que pensar positivo”, diz o garoto. falta ainda acertar a trilha”, ponderou Ga- passaram grande parte da vida na ci-
te de mercadinhos, igrejas evangélicas Elipse de tempo: a partida terminou. No briel. “Tirei fora muitas imagens docu- dade, se mudaram há dois anos para
e entrou na casa de Maurílio Martins, quintal, estão todos macambúzios por mentais que mostravam o que aconteceu Belo Horizonte. Foi também lá que cres-
com quem não tem nenhum parentesco, causa da goleada da Alemanha – 7 a 1. no Brasil entre a Copa e a eleição do Bol- ceu o diretor Affonso Uchôa, de 36 anos,
apesar do sobrenome. É uma casa térrea, O pai se levanta com uma expressão sonaro. Não cabiam. O filme segue outro e o produtor de cinema Thiago Macêdo
de muro alto, desmembrada de uma re- mal-humorada no rosto e vai limpar a caminho. Vai por um caminho mais doi- Correia, de 35 anos.
sidência maior e contígua, onde vive a churrasqueira, fazendo muito barulho. do”, explicou Gabriel. “Eu tenho apren- Com sensibilidade incomum para
mãe do amigo. Na cozinha do conjuga- Na tevê, aparece o jogador David Luiz, dido como roteirista a não dar tudo de narrar a vida na periferia de uma metró-
do pequeno e confortável, Maurílio, um choroso. O pai vê aquilo e, de repente, uma vez, mas ir revelando aos poucos.” pole e produções de baixo orçamento, em
rapaz branco de 41 anos, fazia um café. arremessa a churrasqueira na televisão. que uns diretores cooperam com os ou-

A
“Trouxe o filme, Gabito?”, ele pergun- A família grita. O pai continua: pega o rua onde fica a casa de Maurílio tros, eles transformaram Contagem no
tou. Gabriel enfiou a mão no bolso e que sobrou do aparelho e lança no meio da costuma servir de locação aos fil- novo centro criativo do cinema brasileiro,
sacou de lá um pen drive. Pouco depois, rua. Entra o letreiro, com o título do fil- mes realizados por ele e seus ami- chamando a atenção da crítica brasilei-
chegou André Novais Oliveira, um ne- me: Marte Um. Corte. Aparece a mão ne- gos. É um lugar como outros do bairro ra e internacional com filmes como Ará-
gro de 36 anos, alto e corpulento. Muito gra de uma mulher, passando o café para Jardim Laguna, de casas modestas­­, em bia, de Affonso Uchôa e João Dumans,
à vontade, André sentou-se numa cadei- a família. Um letreiro informa o novo que o improviso é parceiro da engenha­ e Temporada, de André Novais Oliveira.
ra diante da tevê e tirou o tênis. “Vamos tempo da ação: 1º de janeiro de 2019 – ria. Algumas residências são térreas, O primeiro foi escolhido melhor filme do
assistir?”, disse Gabriel, ajustando o pen data da posse de Jair Messias Bolsonaro. com puxadinhos; outras tomam a for- 50º Festival de Brasília do Cinema Brasi-
drive na tevê de 43 polegadas. Essa sequência inicial do filme escrito e ma de pequenos sobrados, que cres- leiro, em 2017. O segundo ganhou, no
O início do filme era assim: dirigido por Gabriel Martins dura cer- cem conforme o otimismo da econo- ano seguinte, cinco prêmios no mesmo
Música instrumental orquestrada so- ca de dez minutos. mia. Muitas são bem-acabadas, mas há festival (inclusive o de melhor filme), e foi
bre uma imagem de Marte. A câmera se “O ritmo melhorou muito”, disse as que continuam com os tijolos apa- um dos destaques, em 2019, da mostra
afasta lentamente até revelar o cocuruto Maurílio, “mas acho que o pai demora rentes. Quase todas têm muros altos, New Directors/New Films, do Lincoln
de um garoto negro, de pouco mais de 10 a reagir ao resultado do jogo.” André de cimento liso ou batido, que pratica- Center, em Nova York.

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Vito Quintans_2020

Os diretores de Contagem: eles rechaçam a ideia de que sejam “representantes” das pessoas da periferia. “Nós falamos com essas pessoas, não em nome delas”, diz Maurílio Martins

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pouco investimento cultural do Estado. respondeu Maurílio. “Foi a primeira


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Mas sempre rola um disco emprestado, vez na vida que encontrei alguém de
um dvd pirateado, uma revista em qua- onde eu morava que se interessava por
drinhos ou um livro repassado. O mun- cinema”, contou Maurílio, que no fi-
do letrado era o mundo que meus pais nal daquela mesma semana foi visitar
não podiam acessar, mas queriam que os Gabriel no bairro vizinho. “Trocamos
filhos pudessem”, disse Affonso, que muitas ideias, e eu falei do plano de
nasceu em São Paulo, depois que o pai montar uma produtora.”
mineiro e a mãe piauiense migraram Foi o primeiro curta-metragem de
para lá em busca de emprego, no início Gabriel, Filme de Sábado, realizado em
dos anos 1980. Quando o desemprego 2008, que acabou reunindo os amigos.
bateu à porta, a família usou o dinheiro O filme é sobre um garoto que tenta que-
da indenização do pai para comprar um brar o marasmo de um sábado nublado
lote em Contagem e um caminhão. na periferia, recorrendo aos recursos do
cinema para criar uma praia ensolarada

N
a juventude, estudar em Belo Hori- em seu quintal. Além de chamar Maurí-
zonte significava para os contagen- lio para cuidar da fotografia, Gabriel con-
ses estar mais próximo dos eventos vidou para integrar a equipe os antigos
culturais e das videolocadoras com me- companheiros da Escola Livre de Cine-
lhores acervos. “Um dia fui fazer meu ma: André cuidou do som, e Thiago, da
cadastro na maior locadora de bh. Dias produção. O filme custou 500 reais, que
depois, voltei para saber se tinha sido foram bancados pelo próprio diretor.
aprovado, mas fui recusado. Foi uma de- No ano seguinte, Gabriel, Maurílio,
cepção muito grande. Nunca entendi André e Thiago criaram a produtora Fil-
por que recusaram”, lembrou Maurílio. mes de Plástico, nome que surgiu de um
“Eu trabalhei nessa locadora. Tinha um brainstorming e não tem nenhum signifi-
acervo incrível”, disse André. “Eu assistia cado especial. “A gente era tão ferrado de
às fitas que os clientes não pegavam. dinheiro que sentava num bar e dividia
Muitos clássicos: Chaplin, Billy Wilder... duas empadinhas por quatro. Todos nós
Um dos critérios para negar era o endere- trabalhávamos em outras funções para
ço. Dependendo de onde você morasse, pagar as contas. O cinema era algo impor-

C
ontagem é a terceira cidade mais como ilhas, sem planejamento e inte- eles não aprovavam.” Os dois nunca se tante e necessário para a gente, mas a
populosa e o terceiro pib de Minas gração de transporte de uma região encontraram na locadora. gente tinha que fazer outras coisas, de
Gerais, superada (nos dois itens) para outra. Faz todo sentido que a gente Maurílio e Affonso foram os primei- fato, pra ganhar dinheiro.”
apenas por Belo Horizonte e Uberlân- tenha crescido na mesma cidade sem se ros a entrar para a universidade. Maurí- Quando Thiago estava na Escola Li-
dia. Não fossem as placas de sinaliza- conhecer”, disse Affonso. lio passou no vestibular de pedagogia, e vre de Cinema, tinha ouvido falar do
ção, quem vai para lá pela primeira vez, Mas o contexto social em que foram Affonso, no de jornalismo, ambos na Filme em Minas, um edital com verbas
vindo do Centro da capital mineira, te- criados é parecido. Todos são filhos de Universidade Federal de Minas Gerais da Secretaria de Cultura de Minas Ge-
ria alguma dificuldade para saber onde trabalhadores da classe média baixa (ufmg). Na mesma época, Gabriel vas- rais e do Fundo Setorial do Audiovisual
termina uma cidade e começa a outra. que ofereceram aos filhos as chances que culhava a internet em busca de um lu- do governo federal. “Alguns colegas di-
Com a expansão econômica e popula- não puderam ter. O pai de André é um gar para estudar cinema – pois não havia ziam que só ganhava o Filme em Mi-
cional, elas acabaram envolvidas nesse metalúrgico aposentado e trabalhou na curso superior nessa área em Belo Hori- nas a mesma panelinha.” Quando abriu
todo contínuo que é a Região Metropo- fábrica da Fiat em Betim, cidade vizi- zonte no início dos anos 2000. Deparou o edital de 2009, Gabriel inscreveu o
litana de Belo Horizonte. nha. O de Gabriel é superintendente de com a Escola Livre de Cinema, a única roteiro do curta Dona Sônia Pediu uma
No passado, enquanto a capital con- uma cooperativa de crédito. Sua mãe é na capital que oferecia aulas teóricas e Arma para o Seu Vizinho Alcides. “Eu
centrava o poder político, o funcionalismo costureira. O pai de Maurílio era marce- práticas, e a oportunidade de fazer al- pensava: ‘O.k., o projeto é bom, mas o
público, as universidades, a classe média, neiro, e a mãe, dona de casa. guns curtas. Gabriel pediu à mãe que o Gabriel é só um estudante. Nunca vai
a elite cultural, o comércio de me­­lhor Os meninos cresceram na frente da matriculasse. André descobriu o curso acontecer’”, disse Thiago. “Mas ganha-
qualidade e as atividades de lazer, Con­ tevê, vendo filmes hollywoodianos. na mesma época e conseguiu uma bolsa mos 2 mil reais para produzi-lo.”
tagem reunia as indústrias, milhares de Vez ou outra iam à capital para assistir para estudar lá. O mesmo aconteceu Os estudantes frequentavam quase
operários, os trabalhadores em situação blockbusters. Exceto Maurílio, cuja com Thiago, que, em troca de uma bol- todas os programas culturais voltados
precária e os que, embora estivessem mãe era evangélica da Congregação sa, precisou trabalhar na secretaria da para o cinema e desenvolveram uma
empregados em Belo Horizonte, não ti- Cristã e, por isso, não permitia televi- escola. Foi lá que Gabriel, André e Thia- intensa cinefilia. “Era uma Belo Hori-
nham recursos para morar lá. A produção são em casa. Ele só podia saber das go se conheceram, em 2003. Estavam zonte que não existe mais. A prefeitura
incessante constituía a razão de ser da cida­ atrações do cinema pelo jornal que o todos na mesma sala de aula. criou muitos festivais e eventos entre o
de industrial, e as chaminés das fábricas, pai comprava diariamente. Depois do curso de cinema, André final dos anos 1990 e o começo dos anos
em funcionamento perpétuo, não deixa- De acordo com as possibilidades fi- fez história na Pontifícia Universidade 2000. Sair de Contagem para estudar na
vam que ninguém se esquecesse disso. nanceiras de cada família, todos foram Católica de Minas Gerais (puc-mg), capital era ter acesso a tudo isso, muitas
Hoje, muita coisa mudou: Conta- estimulados à vida cultural. “Minha mãe também com bolsa de estudos. Gabriel vezes de graça”, disse Affonso, que só co-
gem é uma cidade próspera, com uma me levou uma vez à Mostra de Cinema cogitou prestar vestibular para a usp, nheceu os outros quatro contagenses
classe média numerosa, grandes super- de Tiradentes [cidade histórica no sudeste mas desistiu quando o Centro Univer- mais tarde, no Cine Humberto Mauro,
mercados e shopping centers (onde fo- de Minas]”, contou Gabriel. “Lembro sitário Una inaugurou um curso de ci- o principal ponto de encontro dos ciné-
ram instalados os primeiros cinemas, que assisti Bicho de Sete Cabeças. Fiquei nema em Belo Horizonte. A novidade filos em Belo Horizonte.
no final do século xx). E essa cidade na vidrado. Lá eu descobri duas coisas que também atraiu Maurílio, que desistiu Os rapazes também exercitavam a
periferia da capital tem também sua eu não sabia que existiam: curta-metra- do curso de pedagogia e se transferiu crítica de cinema, escrevendo para o site
própria periferia, onde vive a maioria gem e cinema brasileiro. Eu tinha uns para a Una com uma bolsa do Progra- Revista Eletrônica Filmes Polvo, editado
da população, em bairros sem planeja- 13 anos, e depois dessa expe­riência nunca ma Universidade para Todos (Prouni). por Rafael Ciccarini Nunes, então pro-
mento, afetados pela poluição e com mais desejei fazer outra coisa da vida que Na primeira semana de aula, em fessor da Escola Livre de Cinema e hoje
serviços públicos deficientes. não fosse cinema.” Na adolescência, os 2006, os alunos do curso de cinema da reitor do Centro Universitário de Belo
Maurílio, Gabriel, André, Affonso e cinco rapazes se associaram a videoloca- Una se apresentaram na classe aos pro- Horizonte. Depois das aulas, Nunes ti-
Thiago são de bairros diferentes e, até a doras do seu bairro – foi quando tiveram fessores e colegas. Foi quando Maurílio nha o hábito de se reunir com os alunos
idade adulta, nunca tinham se cruzado. a chance de descobrir os melhores filmes. descobriu que seu colega também era de no bar da Escola Livre para conversar
“Contagem é grande. Os bairros se de- Na periferia, quando o dinheiro é Contagem. “Sou do bairro Milanez”, sobre filmes. “Me lembro do André en-
senvolveram no entorno das indústrias curto, dá-se um jeito. “É um lugar de disse Gabriel. “E eu sou de Laguna”, cantado pelo neorrealismo italiano, que

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dialoga muito com o cinema que ele faz nquanto os quatro jovens da Filmes

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hoje. O Gabriel e o Maurílio tinham de Plástico trilhavam juntos a car-
uma predileção pelo bom cinema ame- reira no cinema, Affonso Uchôa
ricano autoral. Nos filmes deles, estabe- seguiu por outros caminhos. “Fui o pri-
lecem um diálogo interessante entre um meiro da minha rua a entrar para a uni-
cinema comercial e um cinema de gêne- versidade pública. Tive acesso a coisas
ro com código autoral”, disse o professor. que meus amigos de infância não pude-
Em 2010, André fez seu primeiro ram ter. E por isso nos afastamos. Alguns
curta, Fantasmas, com um plano único se casaram cedo, outros foram presos ou
e fixo, a câmera apontada para uma es- mortos. Rolava quase uma esperança co-
quina em Contagem, enquanto o espec- letiva entre as pessoas do bairro quando
tador ouve a conversa de dois amigos, elas me viam: ‘Olha o filho do caminho-
um deles à espreita de algo naquela en- neiro indo para a faculdade’”, disse Affon-
cruzilhada. O desfecho é bastante ines- so. “Eu pensava: se fui brindado com a
perado. “Me lembro da recepção de chance de trilhar novos caminhos, teria
Fantasmas na Mostra de Tiradentes. Ao que esquecer a periferia. Passei a me sen-
mesmo tempo que gerava fascínio, gera- tir periférico nos lugares que frequentava
va estranheza para alguns espectadores em Belo Horizonte e distante da vivência
mais tradicionais. Alguns disseram: ‘Pa- dos meus amigos de Contagem.”
rece amador.’ Não entenderam nada. O primeiro filme dirigido por Affonso
Rolou um boca a boca enorme”, disse foi Mulher à Tarde, lançado em 2010, um
Nunes. “A gente fez Fantasmas porque registro poético sobre a solidão e o vazio
o Gabriel comprou uma câmera digital de três mulheres que remetia à estética
em 2009. Foi nosso primeiro filme num dos filmes de Godard e Bergman, dire-
grande festival. Teve uma exibição ca- tores de que ele tanto gostava. Durante
tártica. É um dos filmes mais celebrados a filmagem, enquanto a equipe comia à
da produtora”, afirmou Maurílio. mesa, Affonso viu um técnico de eletrici-
Chamou-se justamente Contagem o dade, Paulo Sérgio de Oliveira, um rapaz
primeiro curta-metragem (de dezoito mi- negro, pegar seu prato e ir para um canto
nutos) feito a quatro mãos por Gabriel afastado. O diretor o chamou para ficar
e Maurílio, também em 2010. O filme junto com a equipe. “Ele respondeu que,
fala dos sonhos e anseios de dois casais em filmagens publicitárias que ele traba- o interior rural-industrial de Minas Ge- da Afonso Pena, a Praça Sete de Setembro
que se cruzam na vizinhança, em even- lhava, a equipe técnica comia separado”, rais, pulando de um emprego para ou- e, bem ao fundo, a Serra do Curral.
tos inesperados. A rua onde vive Maurílio contou. “Ali eu percebi que aquela hierar- tro – a jornada permite aos diretores Maurílio apontou para o prédio do
é a principal locação do filme. quia na filmagem reproduzia a violência. refletir sobre o mundo do trabalho pre- Cine Theatro Brasil Vallourec, uma cons-
Filmado com câmera digital, precisou Paulinho era o único de toda a equipe que cário. Arábia também ganhou o prêmio trução art déco, restaurada e moderniza-
ser convertido para película para a exibi- já tinha ido ao bairro Nacional, onde eu de melhor filme da Mostra de Cinema de da. “Acho que o primeiro filme que vi no
ção no Festival de Brasília daquele ano. moro. Era aquele o lugar reservado no ci- Tiradentes naquele mesmo ano. cinema foi ali, A Princesa Xuxa e os Trapa-
A tecnologia digital beneficiou bastante a nema às pessoas que vinham de onde eu “Era tão improvável uma cena de cine- lhões. Tinha 11 anos. Meus irmãos me
turma de Contagem, pois, além de mais vim?” Affonso decidiu repensar a sua prá- ma em Contagem que ela aconteceu”, levaram”, disse ele, que é o caçula da fa-
barata, demanda equipes menores. Mas, tica de cinema e o lugar que as pessoas de disse o professor Rafael Ciccarini Nunes. mília de sete irmãos. Em setembro do ano
nas salas de exibição e nos festivais, per- origem pobre ocupavam em seus filmes. “Esses meninos transitaram no centro da passado, naquele mesmo cinema, os qua-
durou por algum tempo a separação rígi- Em 2014, lançou A Vizinhança do Ti- cinefilia de Belo Horizonte. São inteligen- tro foram homenageados pelos dez anos
da entre o cinema em película e o digital. gre, um filme no limiar entre a ficção e o tes, cultos, bem informados sobre cinema, da produtora, durante a Mostra Interna-
As obras filmadas com esta tecnologia documentário sobre a rotina de jovens mas sem a afetação do intelectual clássico. cional de Cinema de Belo Horizonte.
eram exibidas em sessões vespertinas, negros e pobres do seu bairro e como eles Terem surgido num espaço periférico sem “Minha mãe tem muito orgulho do que
atraíam pouco público e não tinham qua- deixam seus registros no mundo atra- tradição cinematográfica, sem mercado, faço. Mas para ela não faria diferença se
se nenhuma repercussão. vés do rap e da pichação. Foi a oportu- foi uma libertação criativa para eles. Eles eu trabalhasse num escritório e ganhas-
Além de ganhar o prêmio de melhor nidade de ele rever as relações sociais por jamais se deixaram tolher pela tradição se dois salários mínimos, já estaria ótimo se
direção na categoria curta-metragem do trás da câmera. “Não adiantava chegar lá cinéfila da capital. Sempre que necessá- eu não me metesse com criminalidade.”
43º Festival de Brasília, Contagem teve com caminhão de luz, equipe de cem rio, mandaram um foda-se para ela.” Gabriel e Maurílio tinham chegado
um espectador ilustre na plateia que, pessoas, orçamento milionário e forçar “O movimento que surge aqui, em havia pouco de uma viagem à França e
após a exibição, anunciou em sua página aqueles garotos a um esquema pré-mol- Contagem, e em outras periferias, co­ à Holanda, onde exibiram No Coração do
no Facebook: “Na segunda noite da ses- dado. Também não queria submetê-los a mo Ceilândia, em Brasília, com o Adirley Mundo, o filme mais recente deles. “Em
são competitiva da 43ª edição do Festival uma ideia previamente escrita.” Queirós, não tem vínculo com uma tradi- Roterdã, os espectadores nos pergunta-
de Brasília, a descoberta de uma pérola Affonso passou um ano com os jo- ção ou com alguma ong que tenha vindo ram muito sobre o Bolsonaro”, contou
do curta-metragem recente, que anun- vens, observando a rotina deles, seus de- nos ensinar algo”, disse Maurílio. “Isso nos Gabriel, durante um almoço no Laran-
cia de forma retumbante o nascimento sejos e frustrações. Só depois escreveu deu liberdade para fazer do nosso jeito. jinha, restaurante self-service de comida
de um novo ciclo deflagrador: o de Con- um argumento sobre cada personagem. Deve ser foda para o pessoal da periferia caseira a poucas quadras da produtora.
tagem.” A postagem era do cineasta vete- As cenas reencenavam situações que ha- do Rio, cidade que é sede da tevê e do es- “Não me importo em responder”, disse
rano Carlos Reichenbach, que quarenta via testemunhado, sem se prender a um petáculo, produzir arte tendo que se adap- ele. “O problema é só ter que falar disso.
anos antes havia integrado um coletivo roteiro. “Dava indicações de direção com tar ao espetáculo: essa coisa meio Regina No Coração do Mundo e Temporada fo-
em São Paulo – o da Boca do Lixo – que tramas e curvas dramáticas que eram dis- Casé, em que a periferia tem que parecer ram finalizados antes da eleição de Bol-
produzia filmes de baixo orçamento. cutidas com eles.” A Vizinhança do Tigre legal e divertida para ser valorizada.” sonaro. Sequer imaginávamos que ele
“A partir desses dois curtas, nossos filmes ganhou em 2016 o prêmio de melhor seria eleito. Isso limita outras discussões

O
passaram a receber um tratamento dife- filme do júri e da crítica na Mostra de escritório da Filmes de Plástico ocu- que gostaríamos de ter sobre a estética, a
rente nos festivais”, disse Maurílio. Cinema de Tiradentes, um festival que pa uma sala de cerca de 30 m2 no técnica, a narrativa, o roteiro, a direção,
Nove curtas depois, o grupo de Conta- se caracteriza por privilegiar as produ- último andar de um prédio moder- o trabalho dos atores.” Maurílio entrou
gem já havia se tornado um habitué de ções independentes, autorais e abertas a nista na Rua dos Carijós, no Centro de na conversa: “Lá fora é até mais com-
festivais, no Brasil e no mundo, como os experimentações formais. Belo Horizonte. Atualmente trabalham preensível que tenham curiosidade, difí-
de Cannes e Roterdã. A turma decidiu, Em 2018, Affonso lançou o terceiro ali apenas os quatros fundadores: Maurí- cil é entender por que a gente tem que
então, enfrentar a realização de um longa. longa-metragem, Arábia, codirigido por lio Martins, Gabriel Martins, André No- falar sobre isso o tempo todo no Brasil.”
O primeiro foi Ela Volta na Quinta, diri- João Dumans, um road movie sobre um vais Oliveira e Thiago Macêdo Correia. Preferiram mudar de assunto e falar
gido por André, em 2014. homem que deixa Contagem e percorre Da janela da produtora, avista-se a Aveni- sobre o cineasta negro Charles Burnett,

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era bizarro. Uma imagem de Brasil, de “Olha ali, sou eu e o Leo bem peque-
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cinema brasileiro, que custei a entender. nos no meio da bagunça”, disse Maurí-
Não sabia que era possível contar histórias lio, apontando para a tela do computador.
daquele jeito.” Foi assim que ele descobriu “Era um torneio de futebol, mas tam-
que os filmes não precisavam explicar bém um motivo para fazer festa. Está
tudo didaticamente e poderiam deixar as vendo aquele ali? É o Pé-de-urso. Mor-
imagens falar por si mesmas. “Nem tudo reu há uns vinte anos. Assassinaram.”
precisa ser entendido como uma relação Depois, Maurílio pegou uma foto sua
de causa e consequência. Mas pode ser quando tinha cerca de 11 anos. A imagem
sentido pela atmosfera criada em cada mostra um menino magro e loiro, cercado
cena. Você pode oferecer elementos que, de outras treze crianças, negras e brancas.
juntos, formam um sentido.” Todas estão vestidas com roupas de festa.
Maurílio lembrou de uma cena que À frente dele, aparece um menino negro,
lhe causou grande impressão no docu- impecavelmente vestido, com uma cami-
mentário Boca de Lixo (1993), de Eduar- sa de manga comprida e gravata-borbole-
do Coutinho: a jovem catadora de um ta. Do lado direito, um garoto branco,
lixão na periferia do Rio canta uma can- com camisa e a calça bem cortadas (a mãe
ção romântica de Leandro e Leonardo. dele era costureira, contou Maurílio), mas
“Aparentemente não tem nada a ver com calçando um par de chinelos gastos. “Tá
a narrativa. Mas é um jogo emocional vendo? A diversidade racial e social, antes
que se estabelece entre os envolvidos: o de fazer parte dos filmes, faz parte de nos-
diretor, a personagem e o público. É tão sa vivência. Fazer filmes com pessoas do
bem executado que não tem quem não nosso bairro é natural para a gente. É uma
chore”, descreveu. Uma cena em que os busca inconsciente de ver pessoas que a
pais de André dançam em seu filme Ela gente sempre quis ver no cinema.”
Volta na Quinta é devedora dessa se­ Assim que algum diretor do grupo tem
quência de Coutinho. “A gente não tem a ideia de um filme, o passo seguinte é
pudor em querer emocionar”, continuou pensar nas pessoas que poderiam viver
Maurílio. “Existe uma certa intelectua- os personagens. Podem ser atores profis-
lidade que acha que um filme, para ser sionais, como Grace Passô ou Karine
norte-americano com quem os mineiros realidade vale como resposta à fantasia intelectualizado, não pode ser emocio- Teles, ou alguma pessoa que eles conhe-
têm várias afinidades, como retratar de de voltar às névoas pegajosas do patrio- nal. Vai se foder, sabe?” çam e cuja personalidade combina com
maneira íntima e afetuosa o cotidiano tismo.” E Schweitzer conclui: “É todo Enquanto arrematava um copo de cer- a do personagem. Ela Volta na Quinta,
de famílias negras de periferias pobres. um fio de ternura que percorre o filme, veja no Mineirinho, um bar a poucas dirigido por André, é sobre a crise que
“O Burnett é um esteta. Matador de imprimindo um tom poético no centro quadras da produtora, Gabriel disse: “No atinge o casamento de um casal de apo-
Ovelhas é um primor do cinema, um de uma luta diária pela sobrevivência e livro Cinema de Invenção, o crítico Jairo sentados. O casal foi interpretado pelos
absurdo de bonito. Nosso cinema tam- a dignidade, o que faz dele um tratado Ferreira diz que cada pessoa nova que pais do diretor, Maria José Novais Oli-
bém é estético e vejo isso ser pouco evo- sobre a gentileza como arma política.” você filma está inventando algo novo. veira e Norberto Novais Oliveira. E o
cado nos debates que frequentamos. Na edição de dezembro de 2019, o Achei que isso tem muito a ver com o que próprio realizador e seus irmãos interpre-
Não nos é dado o direito de falar sobre a mesmo crítico escreveu sobre No Cora- a gente faz, de estarmos falando de luga- taram os filhos.
beleza do nosso cinema. A gente tem ção do Mundo: “O que parece de início res e pessoas que não foram filmados. “Meus pais tomaram um susto quan-
que falar dos aspectos sociais de nossa um drama social se transforma em um Olha em volta desse bar, por exemplo.” do eu propus que fizessem o filme”, disse
vivência”, disse Maurílio, de alguma for- thriller de tirar o fôlego, sem perder de Numa mesa próxima havia uma mu- André. “A ideia partiu do relacionamento
ma voltando ao começo da conversa. vista sua função social e seu objetivo lher negra por volta dos 50 anos que be- deles, que tinha passado por uma crise
Temporada, de André Novais Oliveira, político. Descreve minuciosamente a bia cerveja com uma jovem e um homem tempos atrás, mas também porque eu já
lançado em 2018, descreve um rito de pas- preparação do roubo e, em seguida, sua branco com cabelos presos num rabo de vi o mesmo acontecendo com outras fa-
sagem: o da personagem Juliana, interpre- execução – que se acredita inicialmen- cavalo e uma camisa do time de basque- mílias. Então eu não via muito sentido
tada por Grace Passô, que resolve deixar te que será bem-sucedida, mas termina te Chicago Bulls. Eles riam alto. A tevê fazer com outras pessoas que não eles.
para trás uma relação abusiva e recons- em um banho de sangue. Desilusão e estava ligada, mas com o volume baixo. Tive o cuidado de formar uma equipe
truir a vida. Ela se muda para Contagem, euforia. A desilusão serve como metá- Nas caixas de som do bar reverberava pequena e usar uma câmera menorzi-
onde passa a trabalhar como agente de fora para a frustração da classe média bem alto um pagode. “Acho que cinema nha para não assustar a mãe e o pai. Era
saúde pública para controlar endemias, brasileira emergente e já completamen- brasileiro é meio que se lançar no abis- o primeiro filme deles.”
como a dengue. No Coração do Mundo, te abandonada pelo novo regime da mo”, refletiu Gabriel. “É enxergar o que Os contagenses não trabalham com
de Gabriel e Maurílio Martins, lançado extrema direita.” pode ter de Brasil nisso que estamos ven- preparadores de elenco. Os próprios di-
em 2019, é um filme coral, com vários O cinema norte-americano dominou do nesse bar. Não tenho muita certeza do retores orientam os atores. E os diálogos
personagens que se entrecruzam em a formação inicial dos cineastas conta- que essa cena diz. Se eu tivesse certeza, são escritos pensando nos intérpretes e
Contagem, todos eles tentando superar a genses, mas eles logo descobriram os faria um filme muito ruim.” deixando espaço para o improviso. “As
dureza de seus cotidianos para levar uma filmes de arte e o cinema brasileiro, que pessoas que atuam transformam nosso

N
vida melhor. O “coração do mundo”, ao foi o elemento definidor da estética do o computador, Maurílio mostrou filme para melhor, trazem espontanei-
qual o título se refere, é o lugar onde está grupo – em particular a obra de quatro as imagens de um vídeo caseiro, dade”, disse Gabriel. “E a gente está
o desejo de cada um. E cada um faz o que diretores: Leon Hirszman, Rogério feito em vhs em 1990, com um sempre aberto para essa contribuição.
pode para realizar esse desejo – por meio Sganzerla, Eduardo Coutinho e Carlos jogo de futebol promovido pelo dono de Por isso que dá sempre certo.”
do afeto, do trabalho ou do crime. Reichenbach. “Ao entrarem em contato um bar na vizinhança. O vídeo faz parte

O
A prestigiosa revista francesa Cahiers com esses cineastas, eles descobriram o de seu próximo filme, Laguna, uma fic- filme No Coração do Mundo foi
du Cinéma se entusiasmou com os dois cinema simples”, disse Hernani Heffner, ção em que o diretor e seu amigo Leo, feito com 700 mil reais. Arábia
filmes, sobre os quais escreveu em duas pesquisador de cinema e conservador-­ interpretando a si próprios, assistem a custou 650 mil reais. A produção
edições seguidas. Na edição de novem- chefe da Cinemateca do Museu de Arte esse vídeo antigo, do tempo em que eram dos filmes do grupo de Contagem é de
bro de 2019, o crítico Ariel Schweitzer Moderna do Rio de Janeiro (mam-rj). crianças, e o comentam. baixo orçamento, o que significa, hoje,
analisou assim Temporada: “Numa épo- A primeira vez que Gabriel assistiu a Leo, um rapaz negro que também que os gastos com a realização não ul-
ca em que o presidente de extrema direi- Sem Essa, Aranha, de Sganzerla, ele ain- mora em Contagem, iria atuar em No trapassam cerca de 1,5 milhão de reais.
ta Jair Bolsonaro reivindica que o cinema da era estudante e achou um filme difícil Coração do Mundo, mas foi preso pouco É um valor bem mais baixo que o gasto,
brasileiro celebre ‘os grandes heróis da e estranho, mas fascinante. “O Luiz Gon- antes das filmagens por receptação de por exemplo, em Bacurau, de Kleber
nossa história’, a atenção prestada por zaga tocando sanfona num bordel, as pes- mercadoria roubada. Agora, está livre e Mendonça Filho e Juliano Dornelles –
André Novais Oliveira aos anti-heróis da soas comendo, dançando. Aquilo tudo vai estrelar Laguna. 7,7 milhões de reais.

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PROVA FINAL

Quando estavam fazendo No Coração “A decisão é grave e afeta diretamente

HUGLEIKUR DAGSSON
do Mundo, Gabriel e Maurílio decidiram a continuidade dos trabalhos das produ-
abrir mão de parte do cachê como direto- toras”, disse Thiago Macêdo Correia, di-
res para que pudessem contratar o serviço retor de produção da Filmes de Plástico.
de um estúdio de Porto Alegre para a fi- “A política cultural do atual governo im-
nalização de som. “Não foi papo de pobre pede que surjam novos talentos. O ce-
coitado que abre mão do salário”, disse nário em que começamos era favorável.
Maurílio, “mas um investimento que traz Sinto que não conseguiríamos fazer tudo
retornos.” O filme, assim como Tempora- o que fizemos se estivéssemos começan-
da, é elogiado pelo cuidado técnico. Para do agora.” Para Affonso, negros, transe­
o pesquisador Hernani Heffner, “sem de- xuais e periféricos que fazem audiovisual
cência técnica não se vai longe no cine- ou os filmes em que eles são mostrados
ma.” Os festivais europeus prezam a correm risco de desaparecer. “É um pro-
qualidade de acabamento. “Você pode jeto de aniquilação da diferença.”
assumir uma estética terceiro-mundista da

A
precariedade. Mas, ao fazer essa escolha, revista Cahiers du Cinéma observou
estará alijado do circuito internacional.” que Temporada mostra pessoas co-
Nenhum dos diretores de Contagem muns que fogem dos “cânones da
vive apenas com o que ganha nos fil- beleza aos quais o público brasileiro está
mes, nas funções de diretor, produtor ou acostumado, principalmente nas nove-
roteirista – e às vezes ator. “É uma vida las”. Os protagonistas dos filmes do grupo
instável. Ano passado foi bem difícil. de Contagem são frequentemente negros.
Tive que pegar muito trabalho fora. Fiz “Além de ser uma decisão nossa de ques-
vídeos, clipes e até filmagem de festa de tionar politicamente a ausência de negros
aniversário”, disse Gabriel, que é casado no cinema brasileiro, a gente também
e espera um filho. considera uma quebra de expectativas”,
“Não consigo viver apenas como dire- disse Gabriel. “Estamos contando histó-
tor”, afirmou Affonso. “Viro profissional rias que não foram contadas sobre pessoas
de cinema. Faço curadoria da mostra de que não costumam ser vistas em filmes,
cinema Curta Circuito, que é meu ga- para além dos que difundem clichês so-
nha-pão fixo, além de trabalhos como bre a violência e a pobreza.” moramos podem até não gostar ou se tomar um caminho diferente. “Há um
montador. Meus filmes são baratos. Meu A representação da periferia ganhou identificar com o cinema que a gente faz. discurso vindo desses filmes de que a
primeiro longa custou 80 mil reais. O que nova dimensão no audiovisual brasileiro É um cinema que apresenta esse lugar e vida será alguma coisa construída pelas
é grave é não ter sequer esperança.” depois dos filmes da turma de Contagem. essa geografia, um jeito de falar, uma ma- próprias pessoas. Em qualquer contexto,
Eles têm conversado muito sobre “A periferia no Cinema Novo e no chama- neira de viver. Mas nós falamos com essas elas se reconstroem. Se o mundo indus-
produzir séries para tevê ou streaming, do Cinema da Retomada, por melhores pessoas, não em nome delas.” trial não muda a vida socioeconômica,
mas sabem que furar o bloqueio dessas que fossem as intenções, era vista confor- O trabalho, em muitos filmes brasi- as pessoas mudam sua atitude diante do
mídias é mais um desafio que precisam me as preocupações da classe média sobre leiros recentes, tem função narrativa mundo”, disse Heffner.
enfrentar. “No cinema, não temos que aquele espaço: a violência e a pobreza”, acessória, mas não é assim para os di- Não se pode negar o valor documental
provar mais nada para ninguém. Mas afirmou o crítico de cinema José Geraldo retores de Contagem. As agruras coti- do trabalho da turma de Contagem, mas
sabemos que na coprodução com tevê e Couto. “Os filmes de Contagem tratam a dianas dos trabalhadores são um tema os diretores reagem um pouco irritados
streaming predomina um feudo de periferia e seus personagens com grande central para eles, que já exerceram vá- quando seus filmes são comparados a do-
grandes produtoras”, disse Maurílio. generosidade estética e humana. É um rias atividades. André, por exemplo, che- cumentários. “Mesmo que a gente assuma
A retomada do cinema brasileiro, a enriquecimento da sensibilidade sobre o gou a trabalhar como agente público de um tom realista, nossos filmes são sempre
partir dos anos 1990, aconteceu graças cotidiano dos mais pobres.” endemias, a mesma profissão da pro- ficcionais”, disse André. “Um crítico de
a políticas públicas federais de fomento, Affonso sempre se incomodou com o tagonista de Temporada. O trabalho cinema, Juliano Gomes, disse que associar
que reativaram a produção após o presi- modo como o cinema brasileiro tratou e precário e o desemprego também são o cinema negro e da periferia ao docu-
dente Fernando Collor decretar o fim trata os lugares de onde ele vem. “Os per- questões fortes de seus filmes, afinal mentário era como negar nosso direito de
da Embrafilme. Foram esses incentivos sonagens periféricos no cinema e na tevê Contagem está frontalmente afetada fabular. Como se a nossa única possibili-
que permitiram o aumento progressivo acabam virando figuras simbólicas, sem pela desindustrialização em curso. dade fosse o documentário.” Maurílio fez
do número de longas-metragens brasi- particularidades. Como se não tives- Em sua jornada pelo interior de Minas coro. “A gente altera os espaços que filma
leiros: 186 longas-metragens durante o sem direito à individualidade”, disse o em busca de emprego, o protagonista de o tempo todo: com trabalho de arte, com
governo de Fernando Henrique Car- diretor. Maurílio acrescentou: “Ou demo- Arábia faz uma viagem de autoconheci- posicionamento de câmera, figurino que é
doso (1995-2002), período em que foi nizam ou santificam, quando as vivên- mento e descoberta da realidade social. pensado e criado para os personagens. Há
criada a Ancine (Agência Nacional do cias na periferia são diversas e complexas. Enquanto opera uma caldeira onde explo- um trabalho de recomposição desse espa-
Cinema), 511 durante o de Luiz Inácio Meu vizinho da frente, o Seu Delardino, dem labaredas de fogo, ele reflete: “Não ço tão bem feito que pode levar a crer que
Lula da Silva (2003-10), quando foi lan- por exemplo, é da Igreja Presbiteriana e tenho força para trabalhar. Respiro rapida- é documental, mas não é.”
çado o Fundo Setorial do Audiovisual, e votou no Bolsonaro. Minha família, da mente. Meu coração é uma bomba de Certa vez, Gabriel, Maurílio e An-
888 durante os de Dilma Rousseff e Mi- Congregação Cristã, votou no Fernando sangue. Queria puxar meus colegas pelo dré filmavam no bairro Jardim Laguna
chel Temer (2011-17) – a Ancine só tem Haddad. Na rua de cima tem uma casa braço e dizer para eles que acordei. Que quando um homem bêbado se aproxi-
registros dos longas até 2017. em que vivem várias travestis. Ali na enganaram a gente a vida toda. Estou can- mou da equipe e perguntou o que esta-
Desde que assumiu a Presidência frente, há uma igreja evangélica com- sado, quero ir para casa. [...] Queria que a vam fazendo. Eles responderam que
em 2019, Jair Bolsonaro tem tomado posta só de haitianos. Essas característi- gente abandonasse tudo e deixasse as má- era cinema.
medidas que preocupam produtores de cas dão a dinâmica das nossas vidas e quinas queimando. [...] Queria chamar O bêbado disse: “Vocês estão fazen-
cinema. Afirmou que criaria mecanis- enriquecem nossos filmes.” todo mundo. Chamar os forneiros, os ele- do cinema de comentário?”
mos para impor um “filtro” cultural Os diretores, porém, rechaçam a ideia tricistas, os soldadores e os encarregados – Os diretores estranharam e sorriram.
para filmes produzidos com dinheiro de que sejam “representantes” das popula- os homens e as mulheres. E dizer no Conversa vai, conversa vem, deduziram
público, dando a entender que privile- ções que vivem na periferia das grandes ouvido de cada um: ‘Vamos para casa. que o homem quis dizer “cinema docu-
giaria produções com valores conserva- cidades. “A gente não representa ninguém. Nós somos um bando de cavalos velhos.’” mentário”.
dores. No ano passado, travou por mais O que fazemos é apresentar essas pessoas. Apesar do desencanto, não se pode A expressão vingou entre os direto-
de sete meses a aprovação de um docu- Eu não represento nem minha família, dizer que o cinema dos mineiros seja res de Contagem. Agora, quando querem
mento para que o Fundo Setorial do que é heterogênea, quanto mais as pes- essencialmente pessimista, pois boa par- definir seus filmes, eles não encon-
Audiovisual injetasse 724 milhões de soas que vivem em nosso bairro”, afirmou te dos personagens acaba encontrando tram fórmula melhor que esta: cine-
reais, causando insegurança no setor. Maurílio. “Muitas pessoas do lugar onde forças e meios de levar a vida adiante, ao ma de comentário. J

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