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08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro

EDIÇÃO 163 | ABRIL_2020

questões audiovisuais

FILMES DE COMENTÁRIO
Diretores de Contagem, cidade industrial em Minas Gerais, renovam o cinema brasileiro
TIAGO COELHO

Os diretores de Contagem: eles rechaçam a ideia de que sejam “representantes” das pessoas da periferia. “Nós falamos com
essas pessoas, não em nome delas”, diz Maurílio Martins ILUSTRAÇÃO: VITO QUINTANS_2020

Q
uando Gabriel Martins chegou à Rua Imbuia, em Contagem, cidade
vizinha a Belo Horizonte, acenou para um velhinho branco que
descansava numa cadeira de balanço na entrada de uma pequena
loja de móveis usados. “Ô, Seu Delardino!”, disse o rapaz negro, de 32
anos, cabelo black, indo até o homem para cumprimentá-lo. “Como vai o
senhor? Bom demais?” Delardino balançou a cabeça positivamente e
perguntou: “E os filmes?” “Estão indo, logo sai mais um.”

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Gabriel seguiu pela rua, passou diante de mercadinhos, igrejas


evangélicas e entrou na casa de Maurílio Martins, com quem não tem
nenhum parentesco, apesar do sobrenome. É uma casa térrea, de muro
alto, desmembrada de uma residência maior e contígua, onde vive a mãe
do amigo. Na cozinha do conjugado pequeno e confortável, Maurílio, um
rapaz branco de 41 anos, fazia um café. “Trouxe o filme, Gabito?”, ele
perguntou. Gabriel enfiou a mão no bolso e sacou de lá um pen drive.
Pouco depois, chegou André Novais Oliveira, um negro de 36 anos, alto e
corpulento. Muito à vontade, André sentou-se numa cadeira diante da
tevê e tirou o tênis. “Vamos assistir?”, disse Gabriel, ajustando o pen
drive na tevê de 43 polegadas.

O início do filme era assim:

Música instrumental orquestrada sobre uma imagem de Marte. A câmera


se afasta lentamente até revelar o cocuruto de um garoto negro, de pouco
mais de 10 anos, diante da tela do computador, assistindo a um vídeo
sobre o planeta vermelho. A mãe o chama. Ele atravessa a casa, rumo ao
quintal. Sua família está ali, sentada em cadeiras diante de uma tevê
antiga, de tubo. Alguns vestem verde e amarelo, outros, a camisa azul
royal do Cruzeiro. O garoto do computador se junta aos familiares para
assistir à partida do Brasil contra a Alemanha na Copa do Mundo. É
terça-feira, 8 de julho de 2014. O jogo começa. Estão todos animados, até
que a Seleção Brasileira toma um gol. Toma o segundo gol. A família se
assusta. “Tem que pensar positivo”, diz o garoto. Elipse de tempo: a
partida terminou. No quintal, estão todos macambúzios por causa da
goleada da Alemanha – 7 a 1. O pai se levanta com uma expressão mal-
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humorada no rosto e vai limpar a churrasqueira, fazendo muito barulho.


Na tevê, aparece o jogador David Luiz, choroso. O pai vê aquilo e, de
repente, arremessa a churrasqueira na televisão. A família grita. O pai
continua: pega o que sobrou do aparelho e lança no meio da rua. Entra o
letreiro, com o título do filme: Marte Um. Corte. Aparece a mão negra de
uma mulher, passando o café para a família. Um letreiro informa o novo
tempo da ação: 1º de janeiro de 2019 – data da posse de Jair Messias
Bolsonaro. Essa sequência inicial do filme escrito e dirigido por Gabriel
Martins dura cerca de dez minutos.

“O ritmo melhorou muito”, disse Maurílio, “mas acho que o pai demora a
reagir ao resultado do jogo.” André concorda: “Ele podia atirar a
churrasqueira assim que o David Luiz aparece chorando. Daria um efeito
de humor maior. A demora com que o pai reage diminui um pouco o
efeito.”

Gabriel ouvia atento. “Já tentei algumas versões, mas é difícil de achar o
ponto certo do humor.”

“Quando o jogo ainda está em 2 a 0, podia surgir um vizinho gritando:


‘Vamos virar, Brasil!’”, sugeriu André. Os três riem. “É, está faltando o
grito da vizinhança, buzina, morteiro. A algazarra que o povo faz”, disse
Maurílio. “Sim, vai rolar, falta ainda acertar a trilha”, ponderou Gabriel.
“Tirei fora muitas imagens documentais que mostravam o que aconteceu
no Brasil entre a Copa e a eleição do Bolsonaro. Não cabiam. O filme
segue outro caminho. Vai por um caminho mais doido”, explicou Gabriel.
“Eu tenho aprendido como roteirista a não dar tudo de uma vez, mas ir
revelando aos poucos.”

A
rua onde fica a casa de Maurílio costuma servir de locação aos
filmes realizados por ele e seus amigos. É um lugar como outros do
bairro Jardim Laguna, de casas modestas, em que o improviso é
parceiro da engenharia. Algumas residências são térreas, com
puxadinhos; outras tomam a forma de pequenos sobrados, que crescem
conforme o otimismo da economia. Muitas são bem-acabadas, mas há as
que continuam com os tijolos aparentes. Quase todas têm muros altos, de

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cimento liso ou batido, que praticamente encostam nas casas, sem dar
nenhum ou quase nenhum espaço para os jardins. Às vezes, a gente acha
que uma casa continua na outra, de tão próximas e parecidas. Mas a
pintura da fachada cuida de distingui-las – a verde da branca, a amarela
da azul.

Os filmes de Maurílio, André e Gabriel são feitos nessas ruas comuns,


com a participação de pessoas que vivem nelas suas vidas comuns, como
Seu Delardino. É em Contagem que os diretores vivem ou viveram, e
trabalham. Maurílio ainda mora lá, mas Gabriel e André, que passaram
grande parte da vida na cidade, se mudaram há dois anos para Belo
Horizonte. Foi também lá que cresceu o diretor Affonso Uchôa, de 36
anos, e o produtor de cinema Thiago Macêdo Correia, de 35 anos.

Com sensibilidade incomum para narrar a vida na periferia de uma


metrópole e produções de baixo orçamento, em que uns diretores
cooperam com os outros, eles transformaram Contagem no novo centro
criativo do cinema brasileiro, chamando a atenção da crítica brasileira e
internacional com filmes como Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans,
e Temporada, de André Novais Oliveira. O primeiro foi escolhido melhor
filme do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2017. O
segundo ganhou, no ano seguinte, cinco prêmios no mesmo festival
(inclusive o de melhor filme), e foi um dos destaques, em 2019, da mostra
New Directors/New Films, do Lincoln Center, em Nova York.

C
ontagem é a terceira cidade mais populosa e o terceiro PIB de
Minas Gerais, superada (nos dois itens) apenas por Belo Horizonte
e Uberlândia. Não fossem as placas de sinalização, quem vai para lá
pela primeira vez, vindo do Centro da capital mineira, teria alguma
dificuldade para saber onde termina uma cidade e começa a outra. Com a
expansão econômica e populacional, elas acabaram envolvidas nesse todo
contínuo que é a Região Metropolitana de Belo Horizonte.

No passado, enquanto a capital concentrava o poder político, o


funcionalismo público, as universidades, a classe média, a elite cultural, o
comércio de melhor qualidade e as atividades de lazer, Contagem reunia

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as indústrias, milhares de operários, os trabalhadores em situação


precária e os que, embora estivessem empregados em Belo Horizonte,
não tinham recursos para morar lá. A produção incessante constituía a
razão de ser da cidade industrial, e as chaminés das fábricas, em
funcionamento perpétuo, não deixavam que ninguém se esquecesse
disso.

Hoje, muita coisa mudou: Contagem é uma cidade próspera, com uma
classe média numerosa, grandes supermercados e shopping centers
(onde foram instalados os primeiros cinemas, no final do século XX). E
essa cidade na periferia da capital tem também sua própria periferia,
onde vive a maioria da população, em bairros sem planejamento,
afetados pela poluição e com serviços públicos deficientes.

Maurílio, Gabriel, André, Affonso e Thiago são de bairros diferentes e,


até a idade adulta, nunca tinham se cruzado. “Contagem é grande. Os
bairros se desenvolveram no entorno das indústrias como ilhas, sem
planejamento e integração de transporte de uma região para outra. Faz
todo sentido que a gente tenha crescido na mesma cidade sem se
conhecer”, disse Affonso.

Mas o contexto social em que foram criados é parecido. Todos são filhos
de trabalhadores da classe média baixa que ofereceram aos filhos as
chances que não puderam ter. O pai de André é um metalúrgico
aposentado e trabalhou na fábrica da Fiat em Betim, cidade vizinha. O de
Gabriel é superintendente de uma cooperativa de crédito. Sua mãe é
costureira. O pai de Maurílio era marceneiro, e a mãe, dona de casa.

Os meninos cresceram na frente da tevê, vendo filmes hollywoodianos.


Vez ou outra iam à capital para assistir blockbusters. Exceto Maurílio,
cuja mãe era evangélica da Congregação Cristã e, por isso, não permitia
televisão em casa. Ele só podia saber das atrações do cinema pelo jornal
que o pai comprava diariamente.

De acordo com as possibilidades financeiras de cada família, todos foram


estimulados à vida cultural. “Minha mãe me levou uma vez à Mostra de
Cinema de Tiradentes [cidade histórica no sudeste de Minas]”, contou
Gabriel. “Lembro que assisti Bicho de Sete Cabeças. Fiquei vidrado. Lá eu

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descobri duas coisas que eu não sabia que existiam: curta-metragem e


cinema brasileiro. Eu tinha uns 13 anos, e depois dessa experiência nunca
mais desejei fazer outra coisa da vida que não fosse cinema.” Na
adolescência, os cinco rapazes se associaram a videolocadoras do seu
bairro – foi quando tiveram a chance de descobrir os melhores filmes.

Na periferia, quando o dinheiro é curto, dá-se um jeito. “É um lugar de


pouco investimento cultural do Estado. Mas sempre rola um disco
emprestado, um DVD pirateado, uma revista em quadrinhos ou um livro
repassado. O mundo letrado era o mundo que meus pais não podiam
acessar, mas queriam que os filhos pudessem”, disse Affonso, que nasceu
em São Paulo, depois que o pai mineiro e a mãe piauiense migraram para
lá em busca de emprego, no início dos anos 1980. Quando o desemprego
bateu à porta, a família usou o dinheiro da indenização do pai para
comprar um lote em Contagem e um caminhão.

N
a juventude, estudar em Belo Horizonte significava para os
contagenses estar mais próximo dos eventos culturais e das
videolocadoras com melhores acervos. “Um dia fui fazer meu
cadastro na maior locadora de BH. Dias depois, voltei para saber se tinha
sido aprovado, mas fui recusado. Foi uma decepção muito grande.
Nunca entendi por que recusaram”, lembrou Maurílio. “Eu trabalhei
nessa locadora. Tinha um acervo incrível”, disse André. “Eu assistia às
fitas que os clientes não pegavam. Muitos clássicos: Chaplin, Billy
Wilder… Um dos critérios para negar era o endereço. Dependendo de
onde você morasse, eles não aprovavam.” Os dois nunca se encontraram
na locadora.

Maurílio e Affonso foram os primeiros a entrar para a universidade.


Maurílio passou no vestibular de pedagogia, e Affonso, no de jornalismo,
ambos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na mesma
época, Gabriel vasculhava a internet em busca de um lugar para estudar
cinema – pois não havia curso superior nessa área em Belo Horizonte no
início dos anos 2000. Deparou com a Escola Livre de Cinema, a única na
capital que oferecia aulas teóricas e práticas, e a oportunidade de fazer
alguns curtas. Gabriel pediu à mãe que o matriculasse. André descobriu o

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curso na mesma época e conseguiu uma bolsa para estudar lá. O mesmo
aconteceu com Thiago, que, em troca de uma bolsa, precisou trabalhar na
secretaria da escola. Foi lá que Gabriel, André e Thiago se conheceram,
em 2003. Estavam todos na mesma sala de aula.

Depois do curso de cinema, André fez história na Pontifícia Universidade


Católica de Minas Gerais (PUC-MG), também com bolsa de estudos.
Gabriel cogitou prestar vestibular para a USP, mas desistiu quando o
Centro Universitário Una inaugurou um curso de cinema em Belo
Horizonte. A novidade também atraiu Maurílio, que desistiu do curso de
pedagogia e se transferiu para a Una com uma bolsa do Programa
Universidade para Todos (Prouni).

Na primeira semana de aula, em 2006, os alunos do curso de cinema da


Una se apresentaram na classe aos professores e colegas. Foi quando
Maurílio descobriu que seu colega também era de Contagem. “Sou do
bairro Milanez”, disse Gabriel. “E eu sou de Laguna”, respondeu
Maurílio. “Foi a primeira vez na vida que encontrei alguém de onde eu
morava que se interessava por cinema”, contou Maurílio, que no final
daquela mesma semana foi visitar Gabriel no bairro vizinho. “Trocamos
muitas ideias, e eu falei do plano de montar uma produtora.”

Foi o primeiro curta-metragem de Gabriel, Filme de Sábado, realizado em


2008, que acabou reunindo os amigos. O filme é sobre um garoto que
tenta quebrar o marasmo de um sábado nublado na periferia, recorrendo
aos recursos do cinema para criar uma praia ensolarada em seu quintal.
Além de chamar Maurílio para cuidar da fotografia, Gabriel convidou
para integrar a equipe os antigos companheiros da Escola Livre de
Cinema: André cuidou do som, e Thiago, da produção. O filme custou
500 reais, que foram bancados pelo próprio diretor.

No ano seguinte, Gabriel, Maurílio, André e Thiago criaram a produtora


Filmes de Plástico, nome que surgiu de um brainstorming e não tem
nenhum significado especial. “A gente era tão ferrado de dinheiro que
sentava num bar e dividia duas empadinhas por quatro. Todos nós
trabalhávamos em outras funções para pagar as contas. O cinema era
algo importante e necessário para a gente, mas a gente tinha que fazer
outras coisas, de fato, pra ganhar dinheiro.”

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Quando Thiago estava na Escola Livre de Cinema, tinha ouvido falar do


Filme em Minas, um edital com verbas da Secretaria de Cultura de Minas
Gerais e do Fundo Setorial do Audiovisual do governo federal. “Alguns
colegas diziam que só ganhava o Filme em Minas a mesma panelinha.”
Quando abriu o edital de 2009, Gabriel inscreveu o roteiro do curta Dona
Sônia Pediu uma Arma para o Seu Vizinho Alcides. “Eu pensava: ‘O.k., o
projeto é bom, mas o Gabriel é só um estudante. Nunca vai acontecer’”,
disse Thiago. “Mas ganhamos 2 mil reais para produzi-lo.”

Os estudantes frequentavam quase todas os programas culturais voltados


para o cinema e desenvolveram uma intensa cinefilia. “Era uma Belo
Horizonte que não existe mais. A prefeitura criou muitos festivais e
eventos entre o final dos anos 1990 e o começo dos anos 2000. Sair de
Contagem para estudar na capital era ter acesso a tudo isso, muitas vezes
de graça”, disse Affonso, que só conheceu os outros quatro contagenses
mais tarde, no Cine Humberto Mauro, o principal ponto de encontro dos
cinéfilos em Belo Horizonte.

Os rapazes também exercitavam a crítica de cinema, escrevendo para o


site Revista Eletrônica Filmes Polvo, editado por Rafael Ciccarini Nunes,
então professor da Escola Livre de Cinema e hoje reitor do Centro
Universitário de Belo Horizonte. Depois das aulas, Nunes tinha o hábito
de se reunir com os alunos no bar da Escola Livre para conversar sobre
filmes. “Me lembro do André encantado pelo neorrealismo italiano, que
dialoga muito com o cinema que ele faz hoje. O Gabriel e o Maurílio
tinham uma predileção pelo bom cinema americano autoral. Nos filmes
deles, estabelecem um diálogo interessante entre um cinema comercial e
um cinema de gênero com código autoral”, disse o professor.

Em 2010, André fez seu primeiro curta, Fantasmas, com um plano único e
fixo, a câmera apontada para uma esquina em Contagem, enquanto o
espectador ouve a conversa de dois amigos, um deles à espreita de algo
naquela encruzilhada. O desfecho é bastante inesperado. “Me lembro da
recepção de Fantasmas na Mostra de Tiradentes. Ao mesmo tempo que
gerava fascínio, gerava estranheza para alguns espectadores mais
tradicionais. Alguns disseram: ‘Parece amador.’ Não entenderam nada.
Rolou um boca a boca enorme”, disse Nunes. “A gente fez Fantasmas
porque o Gabriel comprou uma câmera digital em 2009. Foi nosso

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primeiro filme num grande festival. Teve uma exibição catártica. É um


dos filmes mais celebrados da produtora”, afirmou Maurílio.

Chamou-se justamente Contagem o primeiro curta-metragem (de dezoito


minutos) feito a quatro mãos por Gabriel e Maurílio, também em 2010. O
filme fala dos sonhos e anseios de dois casais que se cruzam na
vizinhança, em eventos inesperados. A rua onde vive Maurílio é a
principal locação do filme.

Filmado com câmera digital, precisou ser convertido para película para a
exibição no Festival de Brasília daquele ano. A tecnologia digital
beneficiou bastante a turma de Contagem, pois, além de mais barata,
demanda equipes menores. Mas, nas salas de exibição e nos festivais,
perdurou por algum tempo a separação rígida entre o cinema em película
e o digital. As obras filmadas com esta tecnologia eram exibidas em
sessões vespertinas, atraíam pouco público e não tinham quase nenhuma
repercussão.

Além de ganhar o prêmio de melhor direção na categoria curta-metragem


do 43º Festival de Brasília, Contagem teve um espectador ilustre na
plateia que, após a exibição, anunciou em sua página no Facebook: “Na
segunda noite da sessão competitiva da 43ª edição do Festival de Brasília,
a descoberta de uma pérola do curta-metragem recente, que anuncia de
forma retumbante o nascimento de um novo ciclo deflagrador: o de
Contagem.” A postagem era do cineasta veterano Carlos Reichenbach,
que quarenta anos antes havia integrado um coletivo em São Paulo – o da
Boca do Lixo – que produzia filmes de baixo orçamento. “A partir desses
dois curtas, nossos filmes passaram a receber um tratamento diferente
nos festivais”, disse Maurílio.

Nove curtas depois, o grupo de Contagem já havia se tornado um


habitué de festivais, no Brasil e no mundo, como os de Cannes e Roterdã.
A turma decidiu, então, enfrentar a realização de um longa. O primeiro
foi Ela Volta na Quinta, dirigido por André, em 2014.

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nquanto os quatro jovens da Filmes de Plástico trilhavam juntos a

E
carreira no cinema, Affonso Uchôa seguiu por outros caminhos.
“Fui o primeiro da minha rua a entrar para a universidade pública.
Tive acesso a coisas que meus amigos de infância não puderam ter.
E por isso nos afastamos. Alguns se casaram cedo, outros foram
presos ou mortos. Rolava quase uma esperança coletiva entre as pessoas
do bairro quando elas me viam: ‘Olha o filho do caminhoneiro indo para
a faculdade’”, disse Affonso. “Eu pensava: se fui brindado com a chance
de trilhar novos caminhos, teria que esquecer a periferia. Passei a me
sentir periférico nos lugares que frequentava em Belo Horizonte e
distante da vivência dos meus amigos de Contagem.”

O primeiro filme dirigido por Affonso foi Mulher à Tarde, lançado em


2010, um registro poético sobre a solidão e o vazio de três mulheres que
remetia à estética dos filmes de Godard e Bergman, diretores de que ele
tanto gostava. Durante a filmagem, enquanto a equipe comia à mesa,
Affonso viu um técnico de eletricidade, Paulo Sérgio de Oliveira, um
rapaz negro, pegar seu prato e ir para um canto afastado. O diretor o
chamou para ficar junto com a equipe. “Ele respondeu que, em filmagens
publicitárias que ele trabalhava, a equipe técnica comia separado”,
contou. “Ali eu percebi que aquela hierarquia na filmagem reproduzia a
violência. Paulinho era o único de toda a equipe que já tinha ido ao bairro
Nacional, onde eu moro. Era aquele o lugar reservado no cinema às
pessoas que vinham de onde eu vim?” Affonso decidiu repensar a sua
prática de cinema e o lugar que as pessoas de origem pobre ocupavam
em seus filmes.

Em 2014, lançou A Vizinhança do Tigre, um filme no limiar entre a ficção


e o documentário sobre a rotina de jovens negros e pobres do seu bairro e
como eles deixam seus registros no mundo através do rap e da pichação.
Foi a oportunidade de ele rever as relações sociais por trás da câmera.
“Não adiantava chegar lá com caminhão de luz, equipe de cem pessoas,
orçamento milionário e forçar aqueles garotos a um esquema pré-
moldado. Também não queria submetê-los a uma ideia previamente
escrita.”

Affonso passou um ano com os jovens, observando a rotina deles, seus


desejos e frustrações. Só depois escreveu um argumento sobre cada

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personagem. As cenas reencenavam situações que havia testemunhado,


sem se prender a um roteiro. “Dava indicações de direção com tramas e
curvas dramáticas que eram discutidas com eles.” A Vizinhança do Tigre
ganhou em 2016 o prêmio de melhor filme do júri e da crítica na Mostra
de Cinema de Tiradentes, um festival que se caracteriza por privilegiar as
produções independentes, autorais e abertas a experimentações formais.

Em 2018, Affonso lançou o terceiro longa-metragem, Arábia, codirigido


por João Dumans, um road movie sobre um homem que deixa Contagem
e percorre o interior rural-industrial de Minas Gerais, pulando de um
emprego para outro – a jornada permite aos diretores refletir sobre o
mundo do trabalho precário. Arábia também ganhou o prêmio de melhor
filme da Mostra de Cinema de Tiradentes naquele mesmo ano.

“Era tão improvável uma cena de cinema em Contagem que ela


aconteceu”, disse o professor Rafael Ciccarini Nunes. “Esses meninos
transitaram no centro da cinefilia de Belo Horizonte. São inteligentes,
cultos, bem informados sobre cinema, mas sem a afetação do intelectual
clássico. Terem surgido num espaço periférico sem tradição
cinematográfica, sem mercado, foi uma libertação criativa para eles. Eles
jamais se deixaram tolher pela tradição cinéfila da capital. Sempre que
necessário, mandaram um foda-se para ela.”

“O movimento que surge aqui, em Contagem, e em outras periferias,


como Ceilândia, em Brasília, com o Adirley Queirós, não tem vínculo
com uma tradição ou com alguma ONG que tenha vindo nos ensinar
algo”, disse Maurílio. “Isso nos deu liberdade para fazer do nosso jeito.
Deve ser foda para o pessoal da periferia do Rio, cidade que é sede da
tevê e do espetáculo, produzir arte tendo que se adaptar ao espetáculo:
essa coisa meio Regina Casé, em que a periferia tem que parecer legal e
divertida para ser valorizada.”

O
escritório da Filmes de Plástico ocupa uma sala de cerca de 30 m2
no último andar de um prédio modernista na Rua dos Carijós, no
Centro de Belo Horizonte. Atualmente trabalham ali apenas os
quatros fundadores: Maurílio Martins, Gabriel Martins, André Novais

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Oliveira e Thiago Macêdo Correia. Da janela da produtora, avista-se a


Avenida Afonso Pena, a Praça Sete de Setembro e, bem ao fundo, a Serra
do Curral.

Maurílio apontou para o prédio do Cine Theatro Brasil Vallourec, uma


construção art déco, restaurada e modernizada. “Acho que o primeiro
filme que vi no cinema foi ali, A Princesa Xuxa e os Trapalhões. Tinha 11
anos. Meus irmãos me levaram”, disse ele, que é o caçula da família de
sete irmãos. Em setembro do ano passado, naquele mesmo cinema, os
quatro foram homenageados pelos dez anos da produtora, durante a
Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte. “Minha mãe tem
muito orgulho do que faço. Mas para ela não faria diferença se eu
trabalhasse num escritório e ganhasse dois salários mínimos, já estaria
ótimo se eu não me metesse com criminalidade.”

Gabriel e Maurílio tinham chegado havia pouco de uma viagem à França


e à Holanda, onde exibiram No Coração do Mundo, o filme mais recente
deles. “Em Roterdã, os espectadores nos perguntaram muito sobre o
Bolsonaro”, contou Gabriel, durante um almoço no Laranjinha,
restaurante self-service de comida caseira a poucas quadras da
produtora. “Não me importo em responder”, disse ele. “O problema é só
ter que falar disso. No Coração do Mundo e Temporada foram
finalizados antes da eleição de Bolsonaro. Sequer imaginávamos que ele
seria eleito. Isso limita outras discussões que gostaríamos de ter sobre a
estética, a técnica, a narrativa, o roteiro, a direção, o trabalho dos atores.”
Maurílio entrou na conversa: “Lá fora é até mais compreensível que
tenham curiosidade, difícil é entender por que a gente tem que falar sobre
isso o tempo todo no Brasil.”

Preferiram mudar de assunto e falar sobre o cineasta negro Charles


Burnett, norte-americano com quem os mineiros têm várias afinidades,
como retratar de maneira íntima e afetuosa o cotidiano de famílias negras
de periferias pobres. “O Burnett é um esteta. Matador de Ovelhas é um
primor do cinema, um absurdo de bonito. Nosso cinema também é
estético e vejo isso ser pouco evocado nos debates que frequentamos. Não
nos é dado o direito de falar sobre a beleza do nosso cinema. A gente tem
que falar dos aspectos sociais de nossa vivência”, disse Maurílio, de
alguma forma voltando ao começo da conversa.

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Temporada, de André Novais Oliveira, lançado em 2018, descreve um


rito de passagem: o da personagem Juliana, interpretada por Grace Passô,
que resolve deixar para trás uma relação abusiva e reconstruir a vida. Ela
se muda para Contagem, onde passa a trabalhar como agente de saúde
pública para controlar endemias, como a dengue. No Coração do Mundo,
de Gabriel e Maurílio Martins, lançado em 2019, é um filme coral, com
vários personagens que se entrecruzam em Contagem, todos eles
tentando superar a dureza de seus cotidianos para levar uma vida
melhor. O “coração do mundo”, ao qual o título se refere, é o lugar onde
está o desejo de cada um. E cada um faz o que pode para realizar esse
desejo – por meio do afeto, do trabalho ou do crime.

A prestigiosa revista francesa Cahiers du Cinéma se entusiasmou com os


dois filmes, sobre os quais escreveu em duas edições seguidas. Na edição
de novembro de 2019, o crítico Ariel Schweitzer analisou assim
Temporada: “Numa época em que o presidente de extrema direita Jair
Bolsonaro reivindica que o cinema brasileiro celebre ‘os grandes heróis
da nossa história’, a atenção prestada por André Novais Oliveira aos anti-
heróis da realidade vale como resposta à fantasia de voltar às névoas
pegajosas do patriotismo.” E Schweitzer conclui: “É todo um fio de
ternura que percorre o filme, imprimindo um tom poético no centro de
uma luta diária pela sobrevivência e a dignidade, o que faz dele um
tratado sobre a gentileza como arma política.”

Na edição de dezembro de 2019, o mesmo crítico escreveu sobre No


Coração do Mundo: “O que parece de início um drama social se
transforma em um thriller de tirar o fôlego, sem perder de vista sua
função social e seu objetivo político. Descreve minuciosamente a
preparação do roubo e, em seguida, sua execução – que se acredita
inicialmente que será bem-sucedida, mas termina em um banho de
sangue. Desilusão e euforia. A desilusão serve como metáfora para a
frustração da classe média brasileira emergente e já completamente
abandonada pelo novo regime da extrema direita.”

O cinema norte-americano dominou a formação inicial dos cineastas


contagenses, mas eles logo descobriram os filmes de arte e o cinema
brasileiro, que foi o elemento definidor da estética do grupo – em
particular a obra de quatro diretores: Leon Hirszman, Rogério Sganzerla,

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Eduardo Coutinho e Carlos Reichenbach. “Ao entrarem em contato com


esses cineastas, eles descobriram o cinema simples”, disse Hernani
Heffner, pesquisador de cinema e conservador-chefe da Cinemateca do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ).

A primeira vez que Gabriel assistiu a Sem Essa, Aranha, de Sganzerla, ele
ainda era estudante e achou um filme difícil e estranho, mas fascinante.
“O Luiz Gonzaga tocando sanfona num bordel, as pessoas comendo,
dançando. Aquilo tudo era bizarro. Uma imagem de Brasil, de cinema
brasileiro, que custei a entender. Não sabia que era possível contar
histórias daquele jeito.” Foi assim que ele descobriu que os filmes não
precisavam explicar tudo didaticamente e poderiam deixar as imagens
falar por si mesmas. “Nem tudo precisa ser entendido como uma relação
de causa e consequência. Mas pode ser sentido pela atmosfera criada em
cada cena. Você pode oferecer elementos que, juntos, formam um
sentido.”

Maurílio lembrou de uma cena que lhe causou grande impressão no


documentário Boca de Lixo (1993), de Eduardo Coutinho: a jovem
catadora de um lixão na periferia do Rio canta uma canção romântica de
Leandro e Leonardo. “Aparentemente não tem nada a ver com a
narrativa. Mas é um jogo emocional que se estabelece entre os
envolvidos: o diretor, a personagem e o público. É tão bem executado que
não tem quem não chore”, descreveu. Uma cena em que os pais de André
dançam em seu filme Ela Volta na Quinta é devedora dessa sequência de
Coutinho. “A gente não tem pudor em querer emocionar”, continuou
Maurílio. “Existe uma certa intelectualidade que acha que um filme, para
ser intelectualizado, não pode ser emocional. Vai se foder, sabe?”

Enquanto arrematava um copo de cerveja no Mineirinho, um bar a


poucas quadras da produtora, Gabriel disse: “No livro Cinema de
Invenção, o crítico Jairo Ferreira diz que cada pessoa nova que você filma
está inventando algo novo. Achei que isso tem muito a ver com o que a
gente faz, de estarmos falando de lugares e pessoas que não foram
filmados. Olha em volta desse bar, por exemplo.”

Numa mesa próxima havia uma mulher negra por volta dos 50 anos que
bebia cerveja com uma jovem e um homem branco com cabelos presos

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num rabo de cavalo e uma camisa do time de basquete Chicago Bulls.


Eles riam alto. A tevê estava ligada, mas com o volume baixo. Nas caixas
de som do bar reverberava bem alto um pagode. “Acho que cinema
brasileiro é meio que se lançar no abismo”, refletiu Gabriel. “É enxergar o
que pode ter de Brasil nisso que estamos vendo nesse bar. Não tenho
muita certeza do que essa cena diz. Se eu tivesse certeza, faria um filme
muito ruim.”

N
o computador, Maurílio mostrou as imagens de um vídeo caseiro,
feito em VHS em 1990, com um jogo de futebol promovido pelo
dono de um bar na vizinhança. O vídeo faz parte de seu próximo
filme, Laguna, uma ficção em que o diretor e seu amigo Leo,
interpretando a si próprios, assistem a esse vídeo antigo, do tempo em
que eram crianças, e o comentam.

Leo, um rapaz negro que também mora em Contagem, iria atuar em No


Coração do Mundo, mas foi preso pouco antes das filmagens por
receptação de mercadoria roubada. Agora, está livre e vai estrelar
Laguna.

“Olha ali, sou eu e o Leo bem pequenos no meio da bagunça”, disse


Maurílio, apontando para a tela do computador. “Era um torneio de
futebol, mas também um motivo para fazer festa. Está vendo aquele ali?
É o Pé-de-urso. Morreu há uns vinte anos. Assassinaram.”

Depois, Maurílio pegou uma foto sua quando tinha cerca de 11 anos. A
imagem mostra um menino magro e loiro, cercado de outras treze
crianças, negras e brancas. Todas estão vestidas com roupas de festa. À
frente dele, aparece um menino negro, impecavelmente vestido, com
uma camisa de manga comprida e gravata-borboleta. Do lado direito, um
garoto branco, com camisa e a calça bem cortadas (a mãe dele era
costureira, contou Maurílio), mas calçando um par de chinelos gastos.
“Tá vendo? A diversidade racial e social, antes de fazer parte dos filmes,
faz parte de nossa vivência. Fazer filmes com pessoas do nosso bairro é
natural para a gente. É uma busca inconsciente de ver pessoas que a
gente sempre quis ver no cinema.”

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Assim que algum diretor do grupo tem a ideia de um filme, o passo


seguinte é pensar nas pessoas que poderiam viver os personagens.
Podem ser atores profissionais, como Grace Passô ou Karine Teles, ou
alguma pessoa que eles conheçam e cuja personalidade combina com a
do personagem. Ela Volta na Quinta, dirigido por André, é sobre a crise
que atinge o casamento de um casal de aposentados. O casal foi
interpretado pelos pais do diretor, Maria José Novais Oliveira e Norberto
Novais Oliveira. E o próprio realizador e seus irmãos interpretaram os
filhos.

“Meus pais tomaram um susto quando eu propus que fizessem o filme”,


disse André. “A ideia partiu do relacionamento deles, que tinha passado
por uma crise tempos atrás, mas também porque eu já vi o mesmo
acontecendo com outras famílias. Então eu não via muito sentido fazer
com outras pessoas que não eles. Tive o cuidado de formar uma equipe
pequena e usar uma câmera menorzinha para não assustar a mãe e o pai.
Era o primeiro filme deles.”

Os contagenses não trabalham com preparadores de elenco. Os próprios


diretores orientam os atores. E os diálogos são escritos pensando nos
intérpretes e deixando espaço para o improviso. “As pessoas que atuam
transformam nosso filme para melhor, trazem espontaneidade”, disse
Gabriel. “E a gente está sempre aberto para essa contribuição. Por isso
que dá sempre certo.”

O
filme No Coração do Mundo foi feito com 700 mil reais. Arábia
custou 650 mil reais. A produção dos filmes do grupo de Contagem
é de baixo orçamento, o que significa, hoje, que os gastos com a
realização não ultrapassam cerca de 1,5 milhão de reais. É um valor bem
mais baixo que o gasto, por exemplo, em Bacurau, de Kleber Mendonça
Filho e Juliano Dornelles – 7,7 milhões de reais.

Quando estavam fazendo No Coração do Mundo, Gabriel e Maurílio


decidiram abrir mão de parte do cachê como diretores para que
pudessem contratar o serviço de um estúdio de Porto Alegre para a
finalização de som. “Não foi papo de pobre coitado que abre mão do

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salário”, disse Maurílio, “mas um investimento que traz retornos.” O


filme, assim como Temporada, é elogiado pelo cuidado técnico. Para o
pesquisador Hernani Heffner, “sem decência técnica não se vai longe no
cinema.” Os festivais europeus prezam a qualidade de acabamento.
“Você pode assumir uma estética terceiro-mundista da precariedade.
Mas, ao fazer essa escolha, estará alijado do circuito internacional.”

Nenhum dos diretores de Contagem vive apenas com o que ganha nos
filmes, nas funções de diretor, produtor ou roteirista – e às vezes ator. “É
uma vida instável. Ano passado foi bem difícil. Tive que pegar muito
trabalho fora. Fiz vídeos, clipes e até filmagem de festa de aniversário”,
disse Gabriel, que é casado e espera um filho.

“Não consigo viver apenas como diretor”, afirmou Affonso. “Viro


profissional de cinema. Faço curadoria da mostra de cinema Curta
Circuito, que é meu ganha-pão fixo, além de trabalhos como montador.
Meus filmes são baratos. Meu primeiro longa custou 80 mil reais. O que é
grave é não ter sequer esperança.”

Eles têm conversado muito sobre produzir séries para tevê ou streaming,
mas sabem que furar o bloqueio dessas mídias é mais um desafio que
precisam enfrentar. “No cinema, não temos que provar mais nada para
ninguém. Mas sabemos que na coprodução com tevê e streaming
predomina um feudo de grandes produtoras”, disse Maurílio.

A retomada do cinema brasileiro, a partir dos anos 1990, aconteceu graças


a políticas públicas federais de fomento, que reativaram a produção após
o presidente Fernando Collor decretar o fim da Embrafilme. Foram esses
incentivos que permitiram o aumento progressivo do número de longas-
metragens brasileiros: 186 longas-metragens durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), período em que foi criada a
Ancine (Agência Nacional do Cinema), 511 durante o de Luiz Inácio Lula
da Silva (2003-10), quando foi lançado o Fundo Setorial do Audiovisual, e
888 durante os de Dilma Rousseff e Michel Temer (2011-17) – a Ancine só
tem registros dos longas até 2017.

Desde que assumiu a Presidência em 2019, Jair Bolsonaro tem tomado


medidas que preocupam produtores de cinema. Afirmou que criaria

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mecanismos para impor um “filtro” cultural para filmes produzidos com


dinheiro público, dando a entender que privilegiaria produções com
valores conservadores. No ano passado, travou por mais de sete meses a
aprovação de um documento para que o Fundo Setorial do Audiovisual
injetasse 724 milhões de reais, causando insegurança no setor.

“A decisão é grave e afeta diretamente a continuidade dos trabalhos das


produtoras”, disse Thiago Macêdo Correia, diretor de produção da
Filmes de Plástico. “A política cultural do atual governo impede que
surjam novos talentos. O cenário em que começamos era favorável. Sinto
que não conseguiríamos fazer tudo o que fizemos se estivéssemos
começando agora.” Para Affonso, negros, transexuais e periféricos que
fazem audiovisual ou os filmes em que eles são mostrados correm risco
de desaparecer. “É um projeto de aniquilação da diferença.”

A
revista Cahiers du Cinéma observou que Temporada mostra
pessoas comuns que fogem dos “cânones da beleza aos quais o
público brasileiro está acostumado, principalmente nas novelas”. Os
protagonistas dos filmes do grupo de Contagem são frequentemente
negros. “Além de ser uma decisão nossa de questionar politicamente a
ausência de negros no cinema brasileiro, a gente também considera uma
quebra de expectativas”, disse Gabriel. “Estamos contando histórias que
não foram contadas sobre pessoas que não costumam ser vistas em
filmes, para além dos que difundem clichês sobre a violência e a
pobreza.”

A representação da periferia ganhou nova dimensão no audiovisual


brasileiro depois dos filmes da turma de Contagem. “A periferia no
Cinema Novo e no chamado Cinema da Retomada, por melhores que
fossem as intenções, era vista conforme as preocupações da classe média
sobre aquele espaço: a violência e a pobreza”, afirmou o crítico de cinema
José Geraldo Couto. “Os filmes de Contagem tratam a periferia e seus
personagens com grande generosidade estética e humana. É um
enriquecimento da sensibilidade sobre o cotidiano dos mais pobres.”

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Affonso sempre se incomodou com o modo como o cinema brasileiro


tratou e trata os lugares de onde ele vem. “Os personagens periféricos no
cinema e na tevê acabam virando figuras simbólicas, sem
particularidades. Como se não tivessem direito à individualidade”, disse
o diretor. Maurílio acrescentou: “Ou demonizam ou santificam, quando
as vivências na periferia são diversas e complexas. Meu vizinho da frente,
o Seu Delardino, por exemplo, é da Igreja Presbiteriana e votou no
Bolsonaro. Minha família, da Congregação Cristã, votou no Fernando
Haddad. Na rua de cima tem uma casa em que vivem várias travestis. Ali
na frente, há uma igreja evangélica composta só de haitianos. Essas
características dão a dinâmica das nossas vidas e enriquecem nossos
filmes.”

Os diretores, porém, rechaçam a ideia de que sejam “representantes” das


populações que vivem na periferia das grandes cidades. “A gente não
representa ninguém. O que fazemos é apresentar essas pessoas. Eu não
represento nem minha família, que é heterogênea, quanto mais as
pessoas que vivem em nosso bairro”, afirmou Maurílio. “Muitas pessoas
do lugar onde moramos podem até não gostar ou se identificar com o
cinema que a gente faz. É um cinema que apresenta esse lugar e essa
geografia, um jeito de falar, uma maneira de viver. Mas nós falamos com
essas pessoas, não em nome delas.”

O trabalho, em muitos filmes brasileiros recentes, tem função narrativa


acessória, mas não é assim para os diretores de Contagem. As agruras
cotidianas dos trabalhadores são um tema central para eles, que já
exerceram várias atividades. André, por exemplo, chegou a trabalhar
como agente público de endemias, a mesma profissão da protagonista de
Temporada. O trabalho precário e o desemprego também são questões
fortes de seus filmes, afinal Contagem está frontalmente afetada pela
desindustrialização em curso.

Em sua jornada pelo interior de Minas em busca de emprego, o


protagonista de Arábia faz uma viagem de autoconhecimento e
descoberta da realidade social. Enquanto opera uma caldeira onde
explodem labaredas de fogo, ele reflete: “Não tenho força para trabalhar.
Respiro rapidamente. Meu coração é uma bomba de sangue. Queria
puxar meus colegas pelo braço e dizer para eles que acordei. Que

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enganaram a gente a vida toda. Estou cansado, quero ir para casa. […]
Queria que a gente abandonasse tudo e deixasse as máquinas
queimando. […] Queria chamar todo mundo. Chamar os forneiros, os
eletricistas, os soldadores e os encarregados – os homens e as mulheres. E
dizer no ouvido de cada um: ‘Vamos para casa. Nós somos um bando de
cavalos velhos.’”

Apesar do desencanto, não se pode dizer que o cinema dos mineiros seja
essencialmente pessimista, pois boa parte dos personagens acaba
encontrando forças e meios de levar a vida adiante, ao tomar um
caminho diferente. “Há um discurso vindo desses filmes de que a vida
será alguma coisa construída pelas próprias pessoas. Em qualquer
contexto, elas se reconstroem. Se o mundo industrial não muda a vida
socioeconômica, as pessoas mudam sua atitude diante do mundo”, disse
Heffner.

Não se pode negar o valor documental do trabalho da turma de


Contagem, mas os diretores reagem um pouco irritados quando seus
filmes são comparados a documentários. “Mesmo que a gente assuma um
tom realista, nossos filmes são sempre ficcionais”, disse André. “Um
crítico de cinema, Juliano Gomes, disse que associar o cinema negro e da
periferia ao documentário era como negar nosso direito de fabular. Como
se a nossa única possibilidade fosse o documentário.” Maurílio fez coro.
“A gente altera os espaços que filma o tempo todo: com trabalho de arte,
com posicionamento de câmera, figurino que é pensado e criado para os
personagens. Há um trabalho de recomposição desse espaço tão bem
feito que pode levar a crer que é documental, mas não é.”

Certa vez, Gabriel, Maurílio e André filmavam no bairro Jardim Laguna


quando um homem bêbado se aproximou da equipe e perguntou o que
estavam fazendo. Eles responderam que era cinema.

O bêbado disse: “Vocês estão fazendo cinema de comentário?”

Os diretores estranharam e sorriram. Conversa vai, conversa vem,


deduziram que o homem quis dizer “cinema documentário”.

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A expressão vingou entre os diretores de Contagem. Agora, quando


querem definir seus filmes, eles não encontram fórmula melhor que esta:
cinema de comentário.

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