Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
questões audiovisuais
FILMES DE COMENTÁRIO
Diretores de Contagem, cidade industrial em Minas Gerais, renovam o cinema brasileiro
TIAGO COELHO
Os diretores de Contagem: eles rechaçam a ideia de que sejam “representantes” das pessoas da periferia. “Nós falamos com
essas pessoas, não em nome delas”, diz Maurílio Martins ILUSTRAÇÃO: VITO QUINTANS_2020
Q
uando Gabriel Martins chegou à Rua Imbuia, em Contagem, cidade
vizinha a Belo Horizonte, acenou para um velhinho branco que
descansava numa cadeira de balanço na entrada de uma pequena
loja de móveis usados. “Ô, Seu Delardino!”, disse o rapaz negro, de 32
anos, cabelo black, indo até o homem para cumprimentá-lo. “Como vai o
senhor? Bom demais?” Delardino balançou a cabeça positivamente e
perguntou: “E os filmes?” “Estão indo, logo sai mais um.”
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 1/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
“O ritmo melhorou muito”, disse Maurílio, “mas acho que o pai demora a
reagir ao resultado do jogo.” André concorda: “Ele podia atirar a
churrasqueira assim que o David Luiz aparece chorando. Daria um efeito
de humor maior. A demora com que o pai reage diminui um pouco o
efeito.”
Gabriel ouvia atento. “Já tentei algumas versões, mas é difícil de achar o
ponto certo do humor.”
A
rua onde fica a casa de Maurílio costuma servir de locação aos
filmes realizados por ele e seus amigos. É um lugar como outros do
bairro Jardim Laguna, de casas modestas, em que o improviso é
parceiro da engenharia. Algumas residências são térreas, com
puxadinhos; outras tomam a forma de pequenos sobrados, que crescem
conforme o otimismo da economia. Muitas são bem-acabadas, mas há as
que continuam com os tijolos aparentes. Quase todas têm muros altos, de
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 3/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
cimento liso ou batido, que praticamente encostam nas casas, sem dar
nenhum ou quase nenhum espaço para os jardins. Às vezes, a gente acha
que uma casa continua na outra, de tão próximas e parecidas. Mas a
pintura da fachada cuida de distingui-las – a verde da branca, a amarela
da azul.
C
ontagem é a terceira cidade mais populosa e o terceiro PIB de
Minas Gerais, superada (nos dois itens) apenas por Belo Horizonte
e Uberlândia. Não fossem as placas de sinalização, quem vai para lá
pela primeira vez, vindo do Centro da capital mineira, teria alguma
dificuldade para saber onde termina uma cidade e começa a outra. Com a
expansão econômica e populacional, elas acabaram envolvidas nesse todo
contínuo que é a Região Metropolitana de Belo Horizonte.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 4/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
Hoje, muita coisa mudou: Contagem é uma cidade próspera, com uma
classe média numerosa, grandes supermercados e shopping centers
(onde foram instalados os primeiros cinemas, no final do século XX). E
essa cidade na periferia da capital tem também sua própria periferia,
onde vive a maioria da população, em bairros sem planejamento,
afetados pela poluição e com serviços públicos deficientes.
Mas o contexto social em que foram criados é parecido. Todos são filhos
de trabalhadores da classe média baixa que ofereceram aos filhos as
chances que não puderam ter. O pai de André é um metalúrgico
aposentado e trabalhou na fábrica da Fiat em Betim, cidade vizinha. O de
Gabriel é superintendente de uma cooperativa de crédito. Sua mãe é
costureira. O pai de Maurílio era marceneiro, e a mãe, dona de casa.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 5/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
N
a juventude, estudar em Belo Horizonte significava para os
contagenses estar mais próximo dos eventos culturais e das
videolocadoras com melhores acervos. “Um dia fui fazer meu
cadastro na maior locadora de BH. Dias depois, voltei para saber se tinha
sido aprovado, mas fui recusado. Foi uma decepção muito grande.
Nunca entendi por que recusaram”, lembrou Maurílio. “Eu trabalhei
nessa locadora. Tinha um acervo incrível”, disse André. “Eu assistia às
fitas que os clientes não pegavam. Muitos clássicos: Chaplin, Billy
Wilder… Um dos critérios para negar era o endereço. Dependendo de
onde você morasse, eles não aprovavam.” Os dois nunca se encontraram
na locadora.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 6/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
curso na mesma época e conseguiu uma bolsa para estudar lá. O mesmo
aconteceu com Thiago, que, em troca de uma bolsa, precisou trabalhar na
secretaria da escola. Foi lá que Gabriel, André e Thiago se conheceram,
em 2003. Estavam todos na mesma sala de aula.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 7/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
Em 2010, André fez seu primeiro curta, Fantasmas, com um plano único e
fixo, a câmera apontada para uma esquina em Contagem, enquanto o
espectador ouve a conversa de dois amigos, um deles à espreita de algo
naquela encruzilhada. O desfecho é bastante inesperado. “Me lembro da
recepção de Fantasmas na Mostra de Tiradentes. Ao mesmo tempo que
gerava fascínio, gerava estranheza para alguns espectadores mais
tradicionais. Alguns disseram: ‘Parece amador.’ Não entenderam nada.
Rolou um boca a boca enorme”, disse Nunes. “A gente fez Fantasmas
porque o Gabriel comprou uma câmera digital em 2009. Foi nosso
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ É 8/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
Filmado com câmera digital, precisou ser convertido para película para a
exibição no Festival de Brasília daquele ano. A tecnologia digital
beneficiou bastante a turma de Contagem, pois, além de mais barata,
demanda equipes menores. Mas, nas salas de exibição e nos festivais,
perdurou por algum tempo a separação rígida entre o cinema em película
e o digital. As obras filmadas com esta tecnologia eram exibidas em
sessões vespertinas, atraíam pouco público e não tinham quase nenhuma
repercussão.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 9/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
E
carreira no cinema, Affonso Uchôa seguiu por outros caminhos.
“Fui o primeiro da minha rua a entrar para a universidade pública.
Tive acesso a coisas que meus amigos de infância não puderam ter.
E por isso nos afastamos. Alguns se casaram cedo, outros foram
presos ou mortos. Rolava quase uma esperança coletiva entre as pessoas
do bairro quando elas me viam: ‘Olha o filho do caminhoneiro indo para
a faculdade’”, disse Affonso. “Eu pensava: se fui brindado com a chance
de trilhar novos caminhos, teria que esquecer a periferia. Passei a me
sentir periférico nos lugares que frequentava em Belo Horizonte e
distante da vivência dos meus amigos de Contagem.”
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 10/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
O
escritório da Filmes de Plástico ocupa uma sala de cerca de 30 m2
no último andar de um prédio modernista na Rua dos Carijós, no
Centro de Belo Horizonte. Atualmente trabalham ali apenas os
quatros fundadores: Maurílio Martins, Gabriel Martins, André Novais
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 11/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 12/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 13/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
A primeira vez que Gabriel assistiu a Sem Essa, Aranha, de Sganzerla, ele
ainda era estudante e achou um filme difícil e estranho, mas fascinante.
“O Luiz Gonzaga tocando sanfona num bordel, as pessoas comendo,
dançando. Aquilo tudo era bizarro. Uma imagem de Brasil, de cinema
brasileiro, que custei a entender. Não sabia que era possível contar
histórias daquele jeito.” Foi assim que ele descobriu que os filmes não
precisavam explicar tudo didaticamente e poderiam deixar as imagens
falar por si mesmas. “Nem tudo precisa ser entendido como uma relação
de causa e consequência. Mas pode ser sentido pela atmosfera criada em
cada cena. Você pode oferecer elementos que, juntos, formam um
sentido.”
Numa mesa próxima havia uma mulher negra por volta dos 50 anos que
bebia cerveja com uma jovem e um homem branco com cabelos presos
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 14/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
N
o computador, Maurílio mostrou as imagens de um vídeo caseiro,
feito em VHS em 1990, com um jogo de futebol promovido pelo
dono de um bar na vizinhança. O vídeo faz parte de seu próximo
filme, Laguna, uma ficção em que o diretor e seu amigo Leo,
interpretando a si próprios, assistem a esse vídeo antigo, do tempo em
que eram crianças, e o comentam.
Depois, Maurílio pegou uma foto sua quando tinha cerca de 11 anos. A
imagem mostra um menino magro e loiro, cercado de outras treze
crianças, negras e brancas. Todas estão vestidas com roupas de festa. À
frente dele, aparece um menino negro, impecavelmente vestido, com
uma camisa de manga comprida e gravata-borboleta. Do lado direito, um
garoto branco, com camisa e a calça bem cortadas (a mãe dele era
costureira, contou Maurílio), mas calçando um par de chinelos gastos.
“Tá vendo? A diversidade racial e social, antes de fazer parte dos filmes,
faz parte de nossa vivência. Fazer filmes com pessoas do nosso bairro é
natural para a gente. É uma busca inconsciente de ver pessoas que a
gente sempre quis ver no cinema.”
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 15/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
O
filme No Coração do Mundo foi feito com 700 mil reais. Arábia
custou 650 mil reais. A produção dos filmes do grupo de Contagem
é de baixo orçamento, o que significa, hoje, que os gastos com a
realização não ultrapassam cerca de 1,5 milhão de reais. É um valor bem
mais baixo que o gasto, por exemplo, em Bacurau, de Kleber Mendonça
Filho e Juliano Dornelles – 7,7 milhões de reais.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 16/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
Nenhum dos diretores de Contagem vive apenas com o que ganha nos
filmes, nas funções de diretor, produtor ou roteirista – e às vezes ator. “É
uma vida instável. Ano passado foi bem difícil. Tive que pegar muito
trabalho fora. Fiz vídeos, clipes e até filmagem de festa de aniversário”,
disse Gabriel, que é casado e espera um filho.
Eles têm conversado muito sobre produzir séries para tevê ou streaming,
mas sabem que furar o bloqueio dessas mídias é mais um desafio que
precisam enfrentar. “No cinema, não temos que provar mais nada para
ninguém. Mas sabemos que na coprodução com tevê e streaming
predomina um feudo de grandes produtoras”, disse Maurílio.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 17/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
A
revista Cahiers du Cinéma observou que Temporada mostra
pessoas comuns que fogem dos “cânones da beleza aos quais o
público brasileiro está acostumado, principalmente nas novelas”. Os
protagonistas dos filmes do grupo de Contagem são frequentemente
negros. “Além de ser uma decisão nossa de questionar politicamente a
ausência de negros no cinema brasileiro, a gente também considera uma
quebra de expectativas”, disse Gabriel. “Estamos contando histórias que
não foram contadas sobre pessoas que não costumam ser vistas em
filmes, para além dos que difundem clichês sobre a violência e a
pobreza.”
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 18/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 19/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
enganaram a gente a vida toda. Estou cansado, quero ir para casa. […]
Queria que a gente abandonasse tudo e deixasse as máquinas
queimando. […] Queria chamar todo mundo. Chamar os forneiros, os
eletricistas, os soldadores e os encarregados – os homens e as mulheres. E
dizer no ouvido de cada um: ‘Vamos para casa. Nós somos um bando de
cavalos velhos.’”
Apesar do desencanto, não se pode dizer que o cinema dos mineiros seja
essencialmente pessimista, pois boa parte dos personagens acaba
encontrando forças e meios de levar a vida adiante, ao tomar um
caminho diferente. “Há um discurso vindo desses filmes de que a vida
será alguma coisa construída pelas próprias pessoas. Em qualquer
contexto, elas se reconstroem. Se o mundo industrial não muda a vida
socioeconômica, as pessoas mudam sua atitude diante do mundo”, disse
Heffner.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 20/21
08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 21/21