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Hildegarda de Bingen

Projeto Uma Filósofa por Mês

Ingrid Meurer
Doutoranda em Filosofia - UFSC

Maio 2020

HILDEGARDA DE BINGEN 1
Hildegarda de Bingen
Uma breve introdução

Quem é Hildegarda de Bingen?


Hildegarda de Bingen1 (1098-1179) é uma filósofa, monja beneditina e escritora,
conhecida entre os católicos como Santa Hildegarda. Possivelmente, é assim
como muitos e muitas a conhecem. Hildegarda foi canonizada oito séculos após
seu falecimento. Ela viveu uma vida religiosa desde muito cedo. Aos oito anos
de idade, em 1106, foi entregue como dízimo no Mosteiro de Disibodenberg, na
Alemanha.

1 Este é o seu nome traduzido para o português. Era comum que, na época, nomes de pessoa fossem formados
por seu prenome em conjunto com a cidade de onde vinha. Bingen am Rhein é uma cidade na Alemanha, que
se localiza às margens do rio Reno, e foi onde Hildegarda viveu. Por este motivo, em obras estrangeiras podemos
encontrar seu nome como Hildegard of Bingen (em inglês) ou Hildegard von Bingen (alemão).

HILDEGARDA DE BINGEN 2
Recentemente, Santa Hildegarda recebeu o título Doutora da Igreja, em 2012,
por nomeação do Papa Bento XVI. Sua canonização veio por ocasião de
mesma data. É também mística2, teóloga, pensadora, médica, pregadora,
poetisa, musicalista, dramaturga, compositora e escritora. Ela escreveu, ademais,
a primeira obra de medicina da Alemanha3. A respeito de suas obras,
“Hildegarda foi autora de uma compacta trilogia que combina doutrina e ética
cristãs com cosmologia; uma enciclopédia resumida de medicina e de ciência
natural; uma correspondência que compreende diversas centenas de cartas a
pessoas de todos os níveis sociais; duas vidas de santos; inúmeros escritos
ocasionais; e, especialmente, uma requintada coleção de músicas que inclui
setenta canções litúrgicas e o primeiro drama alegórico de fundo moral”4.

Hildegarda nasceu em 1098, a última filha dos dez filhos do casal Hildebert e
Mechtild5. Escritores relatam que sua família era da nobreza6 e tinha contatos
políticos: “nascida de nobre família de Bermersheim, perto de Alzey, ela gozava
as inestimáveis vantagens da riqueza, do nascimento ilustre, da pertença a uma
grande e bem-articulada família e do fácil acesso aos detentores do poder
político e eclesiástico”7. O local de residência da família era em Bermersheim,
na Alemanha, apesar de não poderem dar uma localização exata do seu local de
estabelecimento. Costa e Costa (2019) destacam que “como era costume entre
as famílias nobres da época, em 1º de novembro de 1106, dia de Todos os
Santos, quando tinha apenas oito anos de idade, Hildegard foi confiada como
oblata à abadessa e ex-condessa Jutta (Judite), filha do Conde Stephen de
Sponheim, esposo de Sophia, no mosteiro das beneditinas de Disibodenberg”8.
Há discussão sobre o que significaria este dízimo e se foi por esta razão que a

2 Newman (2015, p. 35) observa que “embora Hildegarda seja frequentemente classificada como mística, ela
pode ser mais precisamente identificada como visionária e profetisa. As definições clássicas de misticismo
enfatizam a união da alma com Deus e todo o sistema de disciplinas ascéticas e contemplativas que visam
facilitar aquela união”.
3 Interessante notar que “é por seus trabalhos sobre medicina que ela começa agora a conquistar o
reconhecimento público. Trabalhos singulares para a época, pois são os únicos tratados de medicina - ou do que
chamamos de ciências naturais - escritos no Ocidente no século XII […]” (Pernoud, 1996, p. 7).
4 Newman, 2015, p. 21.
5 Cf. Costa e Costa, 2019, p. 48.
6 Flanagan (2001, p. 22) escreve que seus pais eram “ricos e engajados em negócios mundanos”.
7 Newman, 2015, p. 23.
8 Costa e Costa, 2019, p. 48.

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jovem foi entregue para a vida no mosteiro. Sua dedicação à vida religiosa,
iniciada na infância, se devia aos votos privados de seus pais, e não a uma
cerimônia pública9. O que se sabe é que a família de Hildegarda e de Jutta eram
próximas10, e que seus pais teriam discutido sobre a possibilidade de Hildegarda
ser encaminhada aos cuidados de Jutta. Esta preocupação teria se dado em
função do estado de saúde de Hildegarda, que desde pequena encontrava-se
doente, algumas vezes por dias, algumas vezes por meses. Não havia o desejo,
ademais, de confiá-la, sendo tão nova e relativamente frágil, a um mosteiro
maior e mais impessoal.

Flanagan (2001) destaca que a escolha do mosteiro era realizada em função de


motivos como a sua localização, ou seja, sua proximidade com o local de
habitação da família. Não se desejava perder o contato com a família, eis porque
eram raros os casos em que aqueles destinados à vida religiosa eram enviados
para locais mais distantes, como outros países. Em Bermersheim, haviam pelo
menos dois mosteiros. E na época, próximo dali, havia o mosteiro de
Disibodenberg, que estava sendo novamente fundado. Jutta, após recusar todas
as propostas de casamento, decidiu ir viver no mosteiro, optando por uma vida
reclusa, ao invés de ir para um convento de mulheres11. Uma cela foi construída
para ela por ordem de seu pai em Disibodenberg.

Antes de Hildegarda passar a viver no mosteiro, não há muita informação sobre


sua infância, e geralmente se comenta apenas sobre sua família e sobre as suas
visões, iniciadas aos três anos de idade. Isto (de que haveriam visões), ressalta-se,
é uma interpretação, que aparece de forma recorrente na literatura sobre ela e
na própria forma como Hildegarda fala dessas experiências, porém alerta-se que
há interpretações divergentes, algumas salientando que “suas visões” seriam na

9 Cf. Flanagan (2001, pp. 22ss).


10“A família de Jutta era intimamente ligada à de Hildegarda, e sua conversão apresentou a oportunidade ideal
para que os pais de Hildegarda, Hildebert e Mechthild, realizassem um gesto piedoso. Eles ofereceram a Deus,
como dízimo, sua filhinha de oito anos de idade, a última de dez filhos, colocando-no no eremitério de
Jutta” (Newman, 2015, p. 23).
11 A partir do que se compreende do texto de Flanagan, grande parte da diferença entre a vida no claustro e a
vida no convento de mulheres estaria no seu grau de liberdade, principalmente de ir e vir. No primeiro caso, ela
teria que viver dentro de sua cela, até sua morte. Há discussão, no entanto se a vida de clausura de Jutta
aconteceu de fato desta forma, e geralmente os autores se posicionam no sentido de que estas regras não eram
tão rígidas como esta ideia original e de que as regras que a privavam de sua liberdade foram sendo relaxadas.
No segundo caso, então, ela teria mais liberdade, também por ser um convento de mulheres e não um mosteiro
duplo, como era em Disibodenberg.

HILDEGARDA DE BINGEN 4
verdade sintomas de problemas de saúde. No entanto, neste período, Hildegarda
teria passado boa parte de seu tempo em casa junto com seus irmãos, os servos
que trabalhavam em sua casa - já que sua família era da nobreza, e de
cuidadores. É possível que não tenha recebido nenhum tipo de educação formal
em casa, pois não se tinha o costume de educar crianças, seja meninos ou
meninas, menores de sete anos. Sua educação deve ter sido uma instrução
informal, oral sobre literatura e algumas noções básicas de religião. A princípio,
era vivida rodeada de pessoas, também por causa da “natureza comunitária da
sociedade medieval”12.

Jutta ficou a cargo de sua educação, bem como o monge Volmar13, que mais
tarde passou a ser seu amigo e secretário. Hildegarda aprendeu a ler com Jutta,
e era comum na época que se começasse a partir do Saltério, ou seja, do livro
dos Salmos. Segundo Flanagan (2001), os cantos beneditinos tiveram, da mesma
forma, grande influência sobre ela. Conforme Pernoud (1996, p. 14),
“Hildegarda declarou mais tarde [ou seja, na sua vida adulta,] que se aprendera
o texto do saltério, do Evangelho e dos principais livros do Antigo e do Novo
Testamento, não lhe ensinaram a interpretação das palavras, nem a divisão das
sílabas, nem o estudo de caso e tempos. Jutta teria negligenciado um pouco a
gramática, dando atenção principalmente aos textos”. Costa e Costa (2019, p.
57) relatam que “seus principais biógrafos dizem que ela não frequentou uma
escola regular, e que sua formação não passou de pequenos conhecimentos
adquiridos no mosteiro, sob a instrução de Jutta”. No entanto, pode-se
argumentar que isto na verdade reflete a humildade14 de Hildegarda, é “uma
declaração de sua própria incapacidade”, ou seja, um dos elementos típicos do
profetismo. Outros autores de história medieval, contudo, “reconhecem que nos
seus escritos há um vasto conhecimento dos textos mais lidos nas Escolas de
Teologia e nas Universidade de seu tempo”15. Santucci16 assinala que “em suas
obras, contrariamente à sua pretensão de ser ignorante, Hildegarda provou ter

12 Flanagan (2001, p. 25).


13Cf. Costa e Costa (2019, p. 50), “o monge Volmar […] [foi] seu primeiro confessor-copista e biógrafo que
conviveu com ela por mais de trinta anos”.
14 Fala-se em humildade no sentido como ela própria se dizia humilde, simples e indouta, com uma conotação
teológica; ela é humilde perante Deus.
15 Zamboni apud Costa e Costa, 2019, p. 58.
16 Santucci apud Costa e Costa, 2019, p. 59.

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um bom conhecimento não só da Bíblia, mas também dos autores latinos, da
filosofia neoplatônica e ciências naturais, como em ‘Causae et Curae’, uma
espécie de manual prática da medicina e da farmacologia, sobre temas médicos,
filosóficos e astrológicos, como em ‘Physica’, sobre as propriedades das plantas,
pedras e animais”. Quanto a sua proximidade com o monge Volmar, ela passou
a se desenvolver a partir da sua relação de aluna que tinha para com ele. Mais
tarde, como Hildegarda vivia com problemas de saúde e ela conversava com
Jutta, Jutta buscou apoio e conselhos em Volmar. “Esse monge não tarda a se
tornar o conselheiro, depois o assistente e o amigo de Hildegarda, durante quase
trinta anos. E ainda vai fazer as vezes de secretário quando […] a necessidade o
exigir”17.

Hildegarda tornou-se monja aos quinze anos de idade, após fazer os votos
religiosos. Tal cerimônia demandava a presença do bispo; neste caso, foi o Bispo
Otto de Bamberg. Após receber o véu e o anel, passou a ser monja e a viver em
regime ascético, juntamente com Jutta. Jutta, como colocado, vivia de forma
reclusa, e esta passou a ser condição da vida de Hildegarda. Autores sugerem
que Hildegarda, antes disso, teria ficado enclausurada com Jutta, uma vez que,
enquanto anacoreta, tinha que ficar em sua cela até sua morte. É feita uma
comparação, a respeito desta cerimônia de enclausuramento das religiosas, com
a cerimônia de enterro (burial). O primeiro era um ritual litúrgico solene,
realizado pelo bispo, no qual eram empregados hinos e “respostas do serviço
funerário”, e era costume que se fizessem louvores à alma, tal qual acontecia em
enterros 18. Por um lado, o enclausuramento representava uma morte, a morte
de um tipo de vida em relação a outro, uma ruptura com o passado em direção
a um novo futuro, mais próximo de Deus. Acreditava-se que a vida ascética era
o caminho mais seguro para se levar em direção ao crescimento da alma (no
sentido de se desenvolver as virtudes) e à Salvação. Por outro lado, realizava-se
esta cerimônia para garantir que a alma do religioso enclausurado estivesse a
salvo, já que podia acontecer que, vivendo em clausura, viesse a falecer antes de
poder receber as preces e os louvores. Assim, as semelhanças não são
coincidências entre ambas, mas sim são revestidas de uma simbologia religiosa e
dotadas de preocupações quanto ao espírito.

17 Pernoud, 1996, p. 14.


18 Cf. Flanagan (2001, p. 31).

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Pergunta-se: como era a vida nas celas? A princípio, seguia-se a regra beneditina
de enclausuramento. Se as monjas de Disibodenberg seguiam de fato esta regra,
a ordem de seu dia era dada pela prática regular da Opus Dei19, com possíveis
alterações. Seria complicado para as anacoretas 20 realizarem esta prática porque
não se havia como marcar o tempo. O tempo, na época, era marcado pela luz
do dia (nascer e por do sol) e pela noite. A Opus Dei era organizada em
“horas”, que podiam ser mais ou menos longas conforme a estação do ano.
Todavia, poderia haver sinos nas proximidades do mosteiro que serviam para
sinalizar as horas. “A regra beneditina prescrevia oração e trabalho para seus
seguidores”21. A concepção de trabalho foi mudando com o passar dos séculos.
O trabalho manual, em favor do mosteiro, foi decaindo, uma vez que servos e
inquilinos faziam esses trabalhos, geralmente. Nota-se que neste contexto
histórico era normal que fossem favorecidas crianças provenientes de famílias
abastadas para viverem nos mosteiros, bem como a existência de servos.
Os trabalhos que passaram a ganhar cada vez mais importância, realizados por
monjas e monges, eram os trabalhos artísticos e intelectuais, como a escrita e
produção de livros. Outros trabalhos realizados mais exclusivamente por monjas
eram os de costura e de cópias de manuscritos.

A regra beneditina prescrevia ainda normas de vestimenta e de alimentação.


Quanto ao primeiro aspecto, elas eram direcionadas aos homens, em que
relatava-se até mesmo quais roupas deveriam ser usadas. Aplicadas às mulheres,
estas regras sofreram alteração, conservando, no entanto, as orientações
relativas a uma forma modesta de se vestir, nada que pudesse levar à ostentação
ou a luxúria. Sobre a alimentação, Godfrey22 assinala que Hildegarda foi criada
numa dieta frugal e era vestida de forma simples. Conforme a regra beneditina,
eram tomadas duas refeições no verão e uma no inverno, por dia, consistindo
em dois pratos quentes seguidos de vegetais, frutas ou pão. Nenhuma carne de

19Do latim, Opus Dei significa obra de Deus, e é uma locação utilizada por São Benedito e que foi empregada
pelo monasticismo ocidental. Designa a celebração coral (de salmodiar, cantar) do ofício divino que é o conjunto
dos ritos e preces que formam a liturgia monástica. Se a organização das horas de oração existiam no judaísmo e
no cristianismo antigo, foi São Benedito que criou esta “obra de Deus”, esse conjunto de leituras (das Escrituras
e dos Pais da Igreja), orações, cantos, gestos, procissões e cerimônias que pontuavam os dias de monge,
formando a estrutura de sua vida e contribuindo para seu desenvolvimento espiritual. A regra beneditina,
portanto, prescrevia trabalho, oração e leitura aos membros eclesiásticos.
20 No inglês, anchorite, ou no feminino anchoress, significa pessoa religiosa que vive em reclusão.
21 Flanagan (2001, p. 33).
22 No texto de Flanagan (2001), capítulo 2, p. 34. Godfrey, ou Gottfried, foi um dos de seus biógrafos.

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animal quadrúpede como boi ou porco podia ser consumida, com exceção no
caso dos doentes ou depauperados, regra que está presente em escritos do
Antigo Testamento. Os pratos eram criados a partir de feijões, ovos, peixe ou
queijo e a dieta variava conforme o ano litúrgico. Estas regras eram
diferenciadas levando em conta necessidades distintas das crianças e dos idosos.
Destaca-se que, desde já, todas essas regras teriam influenciado sobremaneira os
escritos de Hildegarda sobre a saúde humana, como veremos em postagens
próximas sobre as obras Causae et Curae e Physica. Sobre as roupas, como dito,
seguia-se a regra beneditina na sua ideia geral: evitar ostentação e materiais
caros (como seda ou peles), ou seja, roupas que poderiam levar à vaidade. Eram
usados mantos de lã, em vez de peles.

Flanagan (2001, p. 36) assinala que nos seus oito primeiros anos de vida
religiosa, isto é, até se tornar monja, Hildegarda viveu entre situações
paradoxais. Ela vivia no silêncio, mas também próxima de Jutta. Era uma vida
simples em termos de habitação e de alimentação, mas era segura. Tinha
possibilidade de desenvolvimento intelectual, mas sempre ligado à cultura
beneditina, por estar no mosteiro. Neste sentido, sua educação deve ter sido
possível, já que mais tarde ela assumiu o cargo de Jutta, após seu falecimento,
cargo que exigia certa instrução. A educação com estes fins, ou seja, que servisse
para funções religiosas, não estava proibida, mesmo para mulheres.

Então, desde seus quinze anos Hildegarda era membro do mosteiro de


Disibodenberg, enquanto monja. Este mosteiro era duplo, querendo dizer que
abrigava tanto monges como monjas. O número de mulheres presentes, ressalta
Flanagan (2001), deveria ser bem menor do que o número de homens. Seu
espaço físico também comparativamente menor. E esta parte das monjas era
subordinada à dos monges. Em vários momentos, como será visto adiante,
Hildegarda tinha que recorrer aos seus superiores, todos homens, para obter
autorização para realizar suas atividades e exercer funções administrativas. Nota
Bynum que “havia restrições biológicas que afetavam os papeis das mulheres no
período medieval - limitações das quais Hildegarda, com sua aguda curiosidade
médica, estava bem cônscia. Contudo, nenhum teórico moderno interpretaria
as opções ou opiniões religiosas das mulheres como determinadas
biologicamente. Havia, no entanto, condicionamentos institucionais e
educacionais, não radicados na biologia, que eram constantes ao longo da Idade

HILDEGARDA DE BINGEN 8
Média tardia. Mulheres estavam proibidas de exercer o ministério sacerdotal e,
de modo crescente, de exercer funções tais como pregadoras e conselheiras
espirituais”23. Nesse sentido, é notável a forma como Hildegarda utilizou dos
seus conhecimentos políticos e estratégicos para conseguir realizar o que
desejava.

Quando Disibodenberg foi novamente fundado no século XII, não havia a


intenção de ser um mosteiro duplo. Também se deve lembrar que foram feitas
mudanças no espaço físico, como a construção de uma nova igreja e outros
prédios, como a enfermaria. Tudo isso mostra que é possível que a vida de
clausura tenha sido mais um ideal do que uma realidade24. Exemplo disso seria
a relação de Hildegarda com Volmar, que além de ser um dos responsáveis por
sua educação, por ser seu professor, era seu secretário. Outros exemplos são as
atividades que Hildegarda passou a desenvolver em anos posteriores, como o
recebimento de visitas que buscavam ajuda espiritual ou médica, o cuidado com
doentes, o estudo de peixes, plantas e pedras, entre outros, e suas peregrinações
com vistas a pregações.

Há discussão sobre o contexto histórico e político da época. Hildegarda relata


ao seu biógrafo Godfrey25 que no período em que nasceu o poder eclesiástico
encontrava-se afastado do ideal da Igreja, e ela comentava que havia muita
depravação por parte dos religiosos. Essa era uma de suas intenções: através de
suas pregações e suas cartas, recomendar ou até mesmo exigir a correção moral
dos homens, seja na Igreja ou no contexto político, como podemos ver nas suas
cobranças ao Imperador Frederico I, conhecido como Frederico Barbarossa.
Nesse contexto de uma certa divisão e decadência moral na vida eclesiástica,
aconteciam em paralelo diversas marchas e peregrinações de cunho religioso.
Nas palavras de Pernoud (1996, p. 9), “espontaneamente, multidões se
mobilizaram ao apelo do papa na catedral de Clermont, no dia da festa de
inverno de são Martinho, 18 de novembro de 1095. Urbano II havia exortado
os cristãos a socorrer seus irmãos do Oriente e a reconquistar Jerusalém, a
Cidade Santa”. Nesse ímpeto, muitos judeus e cristãos foram perseguidos. E

23 Bynum, 2015, p. 13.


24 Cf. Flanagan (2001, p. 39).
25 Cf. Flanagan (2001), capítulo 2.

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estes movimentos não tiveram a presença direta de rei, imperador ou algum
chefe de estado, ao contrário das Cruzadas, no século XVII. Outro elemento
destacado por Pernoud é que haviam muitas construções ou reformas sendo
feitas em diversas cidades europeias. Havia o desejo de construir, de renovar e
de melhorar a paisagem urbana, além de se querer expandir as principais
cidades. São construídos castelos, mosteiros e prédios de diversos tipos. Era uma
época efervescente e de muitas mudanças.

Desde cedo, se relata que tinha visões26, daí que seja considerada uma profetisa.
Hildegarda relata: “aos três anos vi uma luz tão grande que minha alma tremeu;
mas, dada a minha idade infantil, nada pude dizer desta visão”27. Estas
experiências, interpretadas como sendo visões divinas, seguiram nos anos
seguintes, e a partir do momento em que conseguiu se expressar a respeito,
percebeu que outras crianças ou até mesmo adultos não compreendiam e/ou
não tinham experiências semelhantes. Era frequente que ela sentisse mal estar
ou sofresse alterações de humor nestes períodos, inclusive que ela tivesse
chorado diversas vezes. Por não ser compreendida e até mesmo por não saber o
que fazer nestas situações, mas principalmente pelo primeiro caso, Hildegarda
passou a não compartilhar o que via, a guardar para si mesma - ela foi
escondendo “a natureza e a extensão dos seus dons”28. Desde pequena, seus
problemas de saúde a deixaram muito vulnerável e incapaz de se movimentar e
exercer suas atividades por determinado período de tempo, e alguns
comentadores sugerem que suas visões - no qual ela afirmava que via uma luz
muito forte - eram na verdade sintomas de algum tipo de doença crônica que
afetaria seu campo visual. As possibilidades mais cotadas seriam de enxaqueca
ou migrânea com aura. “Charles Singer e, mais recentemente, Oliver Sacks
concluíram que a abadessa sofria de ‘escotoma cintilante’, uma forma de
enxaqueca” 29. Mais tarde, passando a falar de suas visões, Hildegarda vai se
referir a esta luz como “reflexo da Luz vivente” 30. Estas experiências fizeram
26Novamente, salienta-se que utilizamos este termo já que é usado na literatura, mas que no entanto é somente
uma de suas diferentes interpretações. Por exemplo, para Bynum (2015, p. 18), “as visões de Hildegarda são, na
verdade, uma única visão: um manual e uma summa da doutrina cristã”.
27Cirlot apud Costa e Costa, 2019, p. 53. Possivelmente esta informação veio a ser dada por seus familiares
posteriormente, dada a sua tenra idade.
28 Flanagan, 2001, p. 25.
29 Newman, 2015, p. 25.
30 Cf. Costa e Costa, 2019, p. 53.

HILDEGARDA DE BINGEN 10
com que ela visse que desde nova era uma menina diferente das outras. Para
Bynum (2015, p. 12), “Hildegarda era uma vidente profética, cujas visões
tinham conteúdo político e estavam baseadas em uma experiência física de luz e
dor”.

Um acontecimento importante de ser mencionado foi por ocasião do


falecimento de Jutta. “Em 22 de dezembro de 1136 Jutta faleceu, fato que levou
Hildegarda a tornar-se abadessa do mosteiro das beneditinas de Disibodenberg.
Cinco anos depois, em 1141, aos quarenta e três anos de idade, Hildegarda teve
sua primeira grande experiência mística e/ou visionária (seguidas de outras, das
quais resultaram várias obras) […], momento em recebeu - como diz ela - “o
encargo de Deus” para escrever e pregar, o que implicaria uma mudança radical
de vida, ou seja, sair da vida de reclusão e iniciar uma vida pública de
peregrinação/pregação”31. Esta experiência, assim outras de suas visões, foram
descritas quase que exaustivamente no livro Scito vias Domini - Scivias.
Segundo Hildegarda, então, ela teria recebido o pedido ou incentivo divino de
divulgar suas visões e pregar a palavra. No Scivias32, Hildegarda relata: “e mais
uma vez ouvi a voz do céu dizendo-me: ‘Fala, portanto, destas maravilhas e,
sendo assim instruída, escreve-as e fala”.

Para escrever sobre suas visões, Hildegarda precisou de autorização da Igreja.


Costa e Costa (2019, p. 55), descrevem o processo: “Primeiro, em carta,
recorreu a São Bernardo de Claraval, que a encorajou. Mas, como ela
continuou em dúvida, por intermédio de seu Bispo Henrique de Mogüncia, o
caso foi levado ao Papa Eugênio III, que em 1147-8, durante o Sínodo de
Tréveris, encarregou uma comissão de teólogos, dentre os quais Bernardo de
Claraval, Alberto de Couni, bispo de Verdun, para examinar relatos de suas
visões e, depois de um parecer favorável, autorizou que ela escrevesse suas
experiências místicas. A partir de então, ou seja, tendo recebido o aval da Igreja,
Hildegarda assumiu sua missão como uma verdadeira profetisa”.

Como afirmado anteriormente, o falecimento de Jutta fez com que o cargo de


abadessa ficasse disponível. Por votação, Hildegarda foi escolhida para suceder
Jutta. Este cargo, notam comentadores, exigia conhecimento, instrução,
31 Costa e Costa, 2019, p. 51.
32 Hildegarda de Bingen, 2015, p. 95.

HILDEGARDA DE BINGEN 11
habilidades e, de certa maneira, alguma experiência, já que ela deveria ter
conhecimento sobre o funcionamento da Igreja, do mosteiro, de suas cerimônias
e regras. Hildegarda, não seria, portanto, tão indouta quanto ela sugeria.

O episódio seguinte de sua vida em que teve que pedir autorização foi quando
ela decidiu sair do mosteiro de Disibodenberg e ir para Rupertsberg fundar um
novo mosteiro, sobre as ruínas de um mosteiro, em região próxima. Segundo
Hildegarda, isso se deu após uma de suas visões no qual lhe fôra indicado agir
dessa maneira e, inclusive o local para a construção. Assim, Hildegarda teria
que sair do mosteiro duplo de Disibodenberg e ir para um novo local, junto com
suas monjas, para construir um novo mosteiro de mulheres. Desde o começo no
local anterior, a fama de Jutta e sua pupila (a jovem Hildegarda) e, mais tarde,
de Hildegarda enquanto profetisa, conselheira e médica, levou ao crescimento
do número de anacoretas mulheres, o que mudou a organização das atividades e
suas possibilidades. Sugere-se que com este crescimento elas puderam ter mais
autonomia e realizar mais tarefas do que antes. O espaço físico foi se tornando
restrito para o número de pessoas33, apesar desta não ser a única razão pela qual
Hildegarda partiu para construir um novo mosteiro.

O abade apresentou resistência a este plano e várias de suas monjas não


concordaram com a ideia, algumas queriam ficar no mosteiro original e outras
seguiram Hildegarda, mas não tinham interesse em ajudar diretamente na obra,
na sua construção. Todavia, isto não impediu seus planos, e nisto teve a
companhia de dezoito monjas e do monge Volmar. Elas partiram para
“Rupertsberg, próximo a Bingen, com a finalidade de revitalizar o antigo
mosteiro de Monte Rupert, construído no passado sobre a tumba de São
Rupert”34. Com várias doações e ajuda recebida, Hildegarda reconstruiu o
mosteiro de Rupertsberg no período de três anos, em 1165. Nesta ocasião,
Hildegarda ainda não havia terminado de escrever o Scivias.

Uma de suas estratégias, ou como assim é interpretado por comentadores, para


ser ouvida por meio de seus escritos, foi sua humildade, ou seja, sua consistente

33“Em 1165 Hildegarda funda um novo mosteiro. Na certa o número de religiosas começava a exceder a
capacidade de acomodação do convento de Bingen. Sem mudar de região, é do outro lado do Reno, acima de
Rüdesheim, que será aberto esse novo estabelecimento, o de Eibingen” (Pernoud, 1996, p. 48).
34 Siccardi apud Costa e Costa, 2019, p. 56.

HILDEGARDA DE BINGEN 12
afirmação de se dizer pequena, simples, ignorante, “uma simples ou indouta
mulher”. Poderia, na verdade, ser interpretada como parte de sua sagacidade e
isto servia a seus propósitos. A humildade é mais um elemento típico do
profetismo, dizer que Deus fala através dela e ela é uma humilde serva que
apenas recebe e divulga suas mensagens. “Afora as controvérsias se Hildegarda
era culta ou inculta intelectualmente, o certo é que ela declara insistentemente
que ‘o conhecimento profético não tem origem nela […]’”35. Relata Hildegarda,
ademais, que além de ser apenas uma mensageira das palavras de Deus,
mensagens que vinham sob a forma de um “chama ardente”, era não
acrescentava suas próprias ideias ou palavras, nem mudava seu conteúdo; de
maneira que o resultado da anotação de suas visões, seria o mais próximo
possível do que ela de fato viu.

Outro fato, que poderia contribuir para a autenticidade do relato de suas visões,
era que Hildegarda, quando as recebia, estava em nível consciente, desperta,
atenta, sem estar sob influência de êxtase ou em estado onírico e sem a
influência de substâncias indutoras de tais estados. Sentia através da sua
racionalidade e de seus sentidos, mas não somente, pois assinala que via e sentia
com os olhos da alma. Ela descreve estas experiências em especial do livro
Scivias.

Outra atividade exercida por Hildegarda, além do ato de escrever as suas visões,
era escrever livros de diversos assuntos. Religiosos da época, como assinalado,
realizavam trabalhos, principalmente os trabalhos intelectuais. Nesse sentido, ela
se interessava e se debruçava sobre assuntos teológicos, filosóficos (como as
virtudes morais), médicos (como o tratamento e cura de males do corpo) e sobre
a natureza e suas propriedades. Dentre as suas obras, que serão detalhadas a
seguir, encontram-se Physica e Causae et Curae. Estas obras foram
desmembradas, sendo no original uma só: Liber subtilitatum diversum
naturarum creaturarum (Livro das sutilezas das diversas naturezas da criação),
escrita entre 1151-1158. Para alguns, sua visão religiosa influenciou muito suas
noções de doenças e tratamentos, a exemplo da regra beneditina, que prescrevia
a moderação e o equilíbrio acima de tudo. Para outros, Hildegarda, apesar de
ser também teóloga, escreveu obras de medicina e biologia a partir de uma
perspectiva mais laica e científica. Alguns consideram que seus escritos foram

35 Costa e Costa, 2019, p. 61.

HILDEGARDA DE BINGEN 13
precursores de escritos modernos de medicina; alguns, ainda, salientam que ela
teria sido uma das primeiras médicas da Alemanha. Assim, independentemente
dessas características, certo é que ela tinha conhecimento dessas matérias, uma
vez que, entre outras razões, nesta época da Idade Média, era comum que nos
mosteiros houvesse uma enfermaria e que se tratassem doentes. Estas
enfermarias funcionavam como hospitais.

Afora todas estas atividades, mais ao final de sua vida, após mais algumas de
suas vivências conhecidas como visões, Hildegarda saiu em peregrinação para
pregar. Newman (2015, p. 22) evidencia a grande coragem de Hildegarda, ao
ressaltar a “ousadia requerida para dar início à sua carreira como pregadora
pública da reforma monástica e clerical. A missão levou-a a empreender quatro
longos turnos de pregação, começando com a idade de sessenta anos; falou
principalmente para comunidades monásticas, mas, quando necessário, dirigia-
se ao clero e aos leigos, juntos, em praças públicas. Entrementes, ela continuava
a guiar e administrar os dois conventos de freiras que fundara, os primeiros,
apesar da forte oposição da parte de seu abade”36. Isto, em conjunto com suas
cartas, em que dava conselhos e realizava críticas a seus destinatários, evidencia
seu caráter político. “Marcial Maçaneiro conclui que ‘Hildegarda é uma mulher
política’. Ela está presente à sua época. Não fez do mosteiro um refúgio, mas
sim uma fortaleza de batalha. Dali ela profere sermões, parte em viagem e envia
centenas de cartas”37.

Hildegarda também se posicionava acerca de certas práticas eclesiásticas, sendo


ainda favorável à reforma. Newman (2015), assim, sublinha que ela era,
igualmente, uma reformadora gregoriana. Conforme Bynum, “abadessa
beneditina, Hildegarda defendia uma vida monástica de obediência e de oração
comunitária - não o ascetismo extravagante e individualista de algumas
mulheres medievais posteriores. Defensora da reforma gregoriana, Hildegarda
pleiteava em favor da pureza e do poder clericais, e defendia que mulheres não
deveriam exercer o ministério sacerdotal, embora ela (virtualmente sozinha
entre as mulheres medievais) tivesse empreendido missões de pregação com
aprovação eclesiástica. Autorizada a escrever por ordem de Deus (como o eram
muitas outras mulheres medievais), Hildegarda dominava seus confessores,
36 Newman, 2015, p. 22.
37 Costa e Costa, 2019, p. 70.

HILDEGARDA DE BINGEN 14
escribas e ilustradores de um modo incomum a santas […]”38. Mesmo com suas
considerações quanto às mulheres, depreende-se que “leitores atentos
descobrirão que Hildegarda conduz seus ouvintes não a uma consideração da
mulher, mas a uma consideração da humanidade. Ela medita […] sobre o lugar
da pessoa humana (homo) em um plano divino que parte da criação, passando
pela encarnação do Cristo até o último julgamento e a redenção final”39.

Deste modo, conclui-se que Hildegarda de Bingen, além de ser uma importante
filósofa, monja e teóloga, era uma mulher a frente de seu tempo, que deixou
inúmeras obras fundamentais até mesmo nos dias atuais. Mais sobre seu
contexto histórico e sua importância no contexto atual será comentado em
postagens próximas. A seguir, falamos brevemente sobre suas obras artísticas e
obras escritas, que também serão retomadas em breve neste projeto.

Quais são as suas obras?


Além das obras de teologia, medicina e filosofia (livros), temos acesso hoje a
outras obras de Hildegarda, que são suas obras artísticas. Estas obras consistem
em iluminuras, músicas e até mesmo peças de teatro.

Sobre as primeiras, autores têm comentado, com exceção de um ou outro


estudioso, que suas iluminuras teriam sido feitas por algum artista da época, no
próprio mosteiro. “A literatura recente tem apresentado a abadessa como sendo,
ela mesma, uma pintora, mas não há nenhuma comprovação medieval em favor
de tal hipótese, e se fosse verdade, tanto Hildegarda quanto seus biógrafos
certamente teriam mencionado tão notável feito. Dadas as particularidades da
obra, porém, parece provável que o artista (ou artistas) carecia de treino formal,
e trabalhou sob a supervisão pessoal da visionária”40. Assim como alguns de seus
escritos teriam participação, na sua confecção, de copistas ou secretários (a
exemplo de Volmar ou de Richardis), Hildegarda teria ditado suas visões para
serem compiladas na forma de livros, as quais vinham acompanhadas de
iluminuras. As iluminuras, portanto, serviam tanto para ilustrar as suas visões
como para dar um sentido visual ao seu pensamento como um todo. Cada parte

38 Bynum, 2015, p. 11.


39 Bynum, 2015, p. 17.
40 Newman, 2015, p. 50.

HILDEGARDA DE BINGEN 15
de cada iluminura parece ter um significado próprio. Sobre isto, mais será
trazido em postagem próxima.
Nesse sentido, é notável não apenas seu conhecimento analítico e prático -
expresso em noções de medicina e de filosofia -, mas também seu senso estético
e artístico.

A respeito das músicas, Costa e Costa (2019, pp. 79-80) escrevem que ela
chegou “a compor setenta e sete canções litúrgicas (antífonas, responsórios,
sequências, hinos, um Kyrie eleison e um Alleluia) para uso do mosteiro, que estão
reunidas na obra Symphonia harmoniae caelestium revelationum (Sinfonia da harmonia das
revelações celestiais - 1140-50), muito embora, a exemplo do ato de escrever, diz
ela, nunca tenha estudado música”.

Quanto ao teatro, podemos ver uma representação no filme Vision - Vision aus
dem Leben der Hildegard von Bingen, da diretora Margarethe von Trotta. O
tema era o das virtudes e relata o esforço necessário para afastar as más
disposições do espírito, representadas na figura do diabo. É uma representação
“de um de seus dramas musicados intitulado Ordo virtutum (A ordem das virtudes), de
1150, que é um conjunto de 14 peças musicais em forma de um pequeno drama
sacro musicado ou peça teatral (daí ser comum a tradução livre ‘O Drama das
Virtudes’), como uma síntese didática da trilogia Scivias (Conhece os caminhos do
Senhor), Liber vitae meritorium (Livro dos méritos da vida) e Liber divinorum operum (Livro
das divinas obras), descrevendo de forma dramático-musicada a origem, o estado
de natureza decaída e o destino final do homem”41.

Outra criação excepcional de Hildegarda, que figurará em postagem próxima,


assim como suas obras artísticas, é a Linguagem Ignota. Em resumo, foi uma
língua desenvolvida por ela, baseada em alemão arcaico e seus conhecimentos
de latim. Devemos lembrar aqui que ela não possuía um conhecimento de latim
completo, e inclusive, ao ditar ou falar de algumas de suas visões, lhe faltava
vocabulário, o que, no entanto, não impediu que ela pudesse se expressar. O
nome desta língua tem sua origem etimológica semelhante ao verbo ignorar - do
latim, ignoti significa ignorante -, possivelmente, uma vez que autores destacam
que ignota queria se referir a algo secreto, ou então, desconhecido. Não se
descarta a hipótese de que poderia ter alguma relação com igneus (em latim,

41 Costa e Costa, 2019, p. 82.

HILDEGARDA DE BINGEN 16
fogo). Relata-se que anjos falariam em línguas de fogo, daí sua possível relação
com o termo. Consistia em pouco mais de mil termos inventados, formada por
um alfabeto ou um certo tipo criado de letras, no qual cada terma possuía um
significado metafórico ou alegórico. Esta língua serviria para ela se comunicar
com outras religiosas e mais tarde teria sido tornada pública.

Quais são suas obras escritas?


Suas obras são as seguintes42:
1. Scivias (Scito vias Domini), escrita entre 1141 e 1151.
2. Liber vitae meritorious (Livro dos méritos da vida), escrita entre 1158 e 1163.
3. Liber divinorium operum (Livro das divinas obras), escrita entre 1163-1174.
4. Epístolas, escritas entre 1146-1179.
5. Liber subtilitatum diversum naturarum creaturarum (Livro das sutilezas das
diversas naturezas da criação), escrita entre 1151-1158.
5.1. Physica ou Liber simplicis medicinae (Física ou Livro de medicina simples);
5.2. Liber causae et curae ou Liber compositae medicinae (Livro das causas e
curas ou Livro da medicina composta).
6. Sancti Disibodi (Vida de São Disibodo), escrita em 1170.
7. Vita Sancti Ruperti (Vida de São Ruperto), escrita entre 1170 e 1173.
8. Outras obras exegéticas: “Explanatio regulae S. Benedicti (Explanação da regra de São
Bento - 1053-65); Explanatio symboli Sancti Athanasii (Explanação do símbolo de Santo
Atanásio - 1065); Expositiones Evangeliorum (Exposições dos Evangelhos), sobre o ano
litúrgico; Solutiones XXXVIII quaestionum (Respostas a 38 questões - 1178), sobre
problemas teológicos propostos pelos monges cisternienses de Villers de
Brabante”43.

1. Esta foi a primeira obra teológica de sua autoria, no qual ela descreve suas
visões. A respeito desta obra escreve Newman (2015, p. 44): “primícias do
labor profético de Hildegarda, esse livro levou dez anos para ser composto
(1141-1151) e, durante o tempo de sua vida, permaneceu a mais conhecida
de suas obras. A aprovação do Papa Eugênio III garantiu-lhe celebridade
instantânea, o que é atribuído em grande parte, pelos especialistas

42 Para indicação das obras com seus manuscritos, ver Flanagan (2001, pp. 225-7).
43 Costa e Costa, 2019, p. 78.

HILDEGARDA DE BINGEN 17
modernos, às esplêndidas ilustrações que adornam um manuscrito primitivo.
Os Scivias resultaram diretamente do chamado profético de Hildegarda e
foram endereçados a uma audiência largamente clerical e monástica, mais
especificamente aos indolentes teólogos masculinos”. “Nela são expostas, de
forma ordenada e profética, 26 visões, dividias em três livros: o primeiro (seis
visões), sobre o Criador (o Luminoso), a criação e a entrada do mal no
mundo; o segundo (sete visões), sobre o Redentor e a redenção; e o terceiro
(treze visões), trata da história da salvação. Ou seja, uma história da criação
do homem, de sua queda e de sua redenção e salvação. Além do caráter
teológico, nas entrelinhas a obra traz reflexões filosóficas acerca do universo
e do homem: sobre a origem do cosmo, sobre o macrocosmo e o
microcosmo, sobre a estrutura do ser humano, etc. Os principais temas
tratados no Scivias foram retratados pela própria Hildegarda, em forma de
iluminuras, cujo objetivo é não só ilustrar o livro, mas também exercer a
função pedagógica de reforçar as ideias […]”44. Alguns autores salientam
que não era a própria Hildegarda “quem escrevia suas obras, mas um
copista ou secretário, que anotava os relatos de suas visões, as quais eram
ditadas, ‘provavelmente’ em alemão medieval (ou arcaico), para que fossem
passadas para o latim eclesiástico da época por seus copistas. O primeiro
deles foi Volmar, que, ao falecer, entre 1170 e 1173, foi substituído por
Gottfried, que iniciou sua primeira biografia, mas, três anos depois, faleceu,
em 1176, ficando em seu lugar Guibert de Gembloux, que continuou o
referido escrito”45.
2. “É um tratado de teologia moral, em seis livros, em que se estabelece a
oposição entre o bem e o mal, expondo trinta e cinco virtudes e vícios
correspondentes a cada uma delas […]. [São] temas já tratados no Scivias.
Por isso o Liber vitae meritorium (Livro dos méritos da vida) é considerado
um complemento ou aprofundamento do Scivias”46.
3. Aqui “além de tratar de temas como a Trindade, a Criação e a Redenção,
Hildegarda faz uma estreita relação entre o homem (antropologia) e o
universo (cosmologia), colocando o homem como centro do cosmos. Dessa
concepção antropológico-cósmica, nasce sua famosa iluminura, […]

44 Costa e Costa, 2019, p. 64.


45Costa e Costa, 2019, pp. 60-1. Este último, Guibert de Gembloux, como ressaltado por Newman (2015, p.
34), era um monge belga.
46 Costa e Costa, 2019, pp. 65-6.

HILDEGARDA DE BINGEN 18
denominada ‘A Roda do Firmamento’, na qual o homem é colocado no
centro do universo, em perfeita harmonia com o universo e com Deus”47.
4. As epístolas escritas por Hildegarda, que foram certa de 400, foram
“dirigidas a papas, cardeais, bispos, abades e abadessas, reis e imperadores,
monges e monjas, homens e mulheres de todas as classes sociais, os quais
tinham grande admiração e respeito para como seus conselhos”48. Nestas
cartas, Hildegarda não apenas dava conselhos a quem lhe requeria, mas
também criticava seus erros e comportamentos, e sugeria como poderiam
melhorar, através do seu retorno ao Evangelho e a Igreja e da prática
voltada à elevação das suas virtudes morais.
5. É uma obra longa de ciências naturais, nas quais Hildegarda se afasta um
pouco da teologia; apresenta um caráter mais científico. “Não obstante,
continue o caráter teológico das obras anteriores, qual seja: fazer a
interrelação entre o mundo vegetal/animal/mineral e o homem, buscando
nas qualidades escondidas daqueles a cura dos males deste; estabelecer uma
correspondia entre o macrocosmo e o microcosmo, entre o corpo e a alma,
entre o homem e Deus. Após a morte de Hildegarda esta obra foi dividida
em duas: o Physica ou Liber simplicis medicinae (Física ou Livro de
medicina simples) e o Liber causae et curae ou Liber compositae medicinae
(Livro das causas e curas ou Livro da medicina composta) 49”.
5.1. “É um tratado de medicina naturalista, em nove tomos ou seções, que
tratam das diversas classes de entes naturais que podem ser utilizados com
fins terapêuticos”50, dentre as quais estão: as plantas, os quatro elementos (o
seco, o húmido, o frio e o calor) na sua integração com os quatro humores (a
linfa, o sangue, a bílis amarela e a bílis negra), as árvores, as pedras, os
peixes, as aves, os animais terrestres, outros animais (os répteis) e os metais.
5.2. Este livro “está dividido em cinco seções, que tratam das causas das
enfermidades, seus remédios, o funcionamento interno do corpo humano e
sua relação com o cosmo, dentro de uma visão terapêutica de totalidade”51.
“Para Hildegarda, a enfermidade não é senão uma degeneração da vida

47 Costa e Costa, 2019, p. 66.


48 Costa e Costa, 2019, p. 68.
49 Costa e Costa, 2019, p. 71.
50 Costa e Costa, 2019, p. 71.
51 Costa e Costa, 2019, p. 73.

HILDEGARDA DE BINGEN 19
humana, um déficit de força vital ou do que ela chama de
‘viriditas’ (vigor)”52.
6. Esta obra menor era uma biografia do Santo Disibodo, e foi “escrita a
pedido do abade Hellenger, de Disibodenberg, louvando a vocação precoce
de São Disibodo e sua humildade, comparando-o a São João Batista”53.
7. Esta obra foi “produzida certamente para celebrar o santo patrono do
mosteiro que Hildegarda reconstruiu sobre as ruínas de um edifício anterior
que honrava o local da tumba do santo”54.

Referências
BYNUM, Caroline Walker. Prefácio. In: Scivias (Scito vias Domini):
conhece os caminhos do Senhor. SANTA HILDEGARDA. Tradução: Paulo
Ferreira Valério. São Paulo: Paulus, 2015; pp. 9-19. (Coleção Amantes do
Mistério).

COSTA, Marcos Roberto Nunes; COSTA, Rafael Ferreira. Mulheres


Intelectuais na Idade Média: entre a Medicina, a História, a Poesia, a
Dramaturgia, a Filosofia, a Teologia e a Mística. Porto Alegre: Editora Fi, 2019.

FLANAGAN, Sabina. Hildegard of Bingen: a visionary life. London and


New York: Routledge, 2001.

NEWMAN, Barbara J. Introdução. In: Scivias (Scito vias Domini): conhece


os caminhos do Senhor. SANTA HILDEGARDA. Tradução: Paulo Ferreira
Valério. São Paulo: Paulus, 2015; pp. 21-90. (Coleção Amantes do Mistério).

PERNOUD, Régine. Hildegard de Bingen: a consciência inspirada do


século XII. Tradução: Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

52 Ibidem, p. 74.
53 Ibidem, p. 78.
54 Ibidem, p. 78.

HILDEGARDA DE BINGEN 20
SANTA HILDEGARDA. Scivias (Scito vias Domini): conhece os
caminhos do Senhor. Tradução: Paulo Ferreira Valério. São Paulo: Paulus,
2015. (Coleção Amantes do Mistério).

HILDEGARDA DE BINGEN 21

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