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ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO

Livre Adaptação teatral do livro homônimo de


Gilberto Freyre
por
Newton Moreno
2a
. versão
( Seqüência montada para o espetáculo )

julho de 2005

Morto procura vivo, vivo procura morto


Numa rua encantada de estórias de assombração
Índice

Os contadores e Minervina

A Cozinha
Entrevistador encontra Rosa
Apresentação de Ataulfo

Entrada público na Rua do Encantamento


Reza Véio & Resposta
Mergulhão
O Holandês
Boca-de-ouro
Entrevistador encontra Véia
O Lobisomem
Entrevistador encontra Véio
Branca Dias
Papa-figo
Menino Feliz
Mula
Velho Suassuna & Preta Tonha
Velha Branca
Entrevistador & casa
O fantasma que migrou

Frei Caneca. Cena do conto de fardas.

Entrevistador encontra Seu Antônio


Ataulfo encontra Zefa
Entrevistador encontra Zé Caninha
Ninho
Morta Forrozeira
Dança com a morte
A Brincadeira
Morto-carregando-o-vivo
Minervina & Rua. Anunciação da morte de Bem-vinda.
Bem-vinda. Os velórios
B.O.
Rua do Encantamento
Entrevistador encontra Ataulfo
(Hamlet encontra Espectro)

]
1.Contadores & Minervina.

Às 20h30, quando a bilheteria abre, o público é encaminhado para os fundos da casa. Enquanto esperam
o começo da peça, alguns moradores/contadores vêm conversar com eles. Entram aos poucos. Cada um
tem estórias preparadas durante o processo de ensaio. Advertem das coisas ‘estranhas’ que acontecem
‘lá dentro’, ‘naquele lugar’, ‘ali’, ‘nesta vizinhança’. Seguem nesta recepção até a bilheteria fechar às
21hs. Então, a casa se comunica com todos com efeito de luz até black-out. No black-out, à luz da lua,
Jaqueline coordena a roda e incita Ernestinho a contar a ‘estória do bicho’. Ele foge. Jaqueline segue.
Neste momento, entra a esbaforida Minervina. Quer dizer algo e não consegue, aponta para a casa. Três
contadores relacionam-se com ela. Véia, Nelo e Seu Antônio. De repente, a porta da cozinha se abre e
uma voz chama :
“Ô mulher, entre, venha logo.”
Minervina entra e conduz público para dentro da casa.

2. A Cozinha

A peça começa pela cozinha do casarão,


Rosa transita entre panelas fumegantes.
A negra ouve seu programa de rádio favorito
“O que o mundo esconde”
enquanto prepara tacho de doce de banana,
adoçando-os com suas vozes graves e cravos.
Desmilingue-se de afeto, como se fossem derreter-se para dentro do doce.
Ataulfo a observa em cima do armário.
De fora, Maria anuncia sua chegada.
Entra cantando e trazendo bananas

Maria ( Batendo na janela do lado de fora )


Rosa, banana chegou.

Maria entra em cena, dançando e cantando.


Rosa continua cozinhando, vagarosa e desconfiada.

Maria
Rosa, banana chegou. Avia, Rosa que o doce é para hoje.
( Continua dançando e cantando )

Rosa ( começa a tirar os fiapo da banana )


Tas é animadinha!

Maria
Oxe, eu sou muito animadinha, minha filha. Eu nasci animadinha. Lá de onde eu venho, o povo é mais
animado. O povo daqui é muito amuado. Oxe, tu tira o fiapo da banana?
Oxe, isso é antigo, Rosa. Lá de onde eu venho, não se tira o fiapo do doce, não. E o doce fica ótimo com
fiapo. Coisa mais atrasada. Oxe, tirar o fiapo. Que atraso. Oie, depois eu te ensino como é que se faz doce
lá de onde eu venho. Ta certo?

Rosa
Tu não sente saudade não desse lugar de onde tu veio, não?

Maria
Posso ligar o rádio?
( Liga sem esperar resposta )

Liga o rádio. Sintonizam um xote.


Dança pela cozinha, mexe na saia de Rosa.
São interrompidas por uma notícia de última hora.
Rádio
‘Recife, 1933.
Rádio Jornal do Commercio.
Interrompemos nossa programação, senhoras e senhores, para ouvir o último pronunciamento do
governante da nação alemã.’

Segue o pronunciamento em língua indecifrável para as negras.


Adolf Hitler brada sua fúria ariana.
As negras assustam-se com aquele idioma agressivo.

Rosa
Espia, Maria.

Maria
Ele engoliu uma onça braba.

Rosa
Desliga tu.

Maria
Vai tu.

Rosa
Oxe, vai tu.

Aproximam-se com medo do rádio e desligam.


Passado o susto, retornam aos doces, imitando Hitler e divertindo-se.
Até que...

( Barulho do nego )

Maria
Quem está aí ?

Rosa
Oie, oie, oie...

Maria
Que foi, Rosa?

Rosa
Ele voltou.
( Barulho do nego. Olhando para um canto vazio da cozinha)

Maria
O neguinho?

Rosa
Esse neguinho num aprende. num é para bolir no doce.
Saia daí, meu filho, saia. Venha cá, venha.

Maria
É esse o mesmo que balança a rede da sinhá?

Rosa
Ele apronta muito na casa, Josefa.
Já disse para tu:
Nessa casa, nenhuma porta se abre sozinha.
( Porta se abre).
Fecha essa porta que vai apagar o fogo, menino.
( Porta se fecha )

Maria
Como é que ele é mesmo?

Rosa
Nego, oxe. preto.

Maria
( Surpresa )
E a alma é escura tumém?

Rosa
Num inxiste essa estória de preto de alma branca.
( Barulho do nego. Para o neguinho )
Pára.

Nego se cala. Maria assustada num canto da cozinha.

Rosa
Ele se foi. ( Sádica ) Oie, oie, oie, tu tás com medo, é?

Maria
Eu? Não. É que de onde eu venho não tem essas coisa atrasada.

Rosa
Pois vá se acostumando, Maria. Essas coisa atrasada vem sempre por aqui.

Maria ( Assustada )
E é?

Rosa
Vou te contar uma história. Há mai ou meno um ano esse neguinho deu um sumiço daqui de casa.
Foi uma melancolia na vida dessa muié,
Ela inté ismagreceu de saudade do nego.
Apoi quando deu o feu, minha fia, o neguinho voltou
e eu trabalhei que nem uma camela
da festa que sinhá deu po mó da volta do neguinho.

Maria
E é?

Rosa
Oie, oie, oie, às veze eu vejo um pé. Só um pé. Às veze, eu vejo uma mão.
Às veze, eu vejo uma perna, às veze, eu vejo um umbigo.
É, às veze, eu vejo assim, às veze, eu vejo de outro jeito.
Oie, às veze, eu não vejo... eu sinto.

Maria
Sente o que ?

Rosa
( Depois de uma concentração rápida )
Uma presença. Sabe uma presença?
Assim, um frio no calor.
Tu tava tão animadinha, tas é quietinha agora.
Tu tas com medo, é?

Maria
Eu não.
( Barulho do nego. Maria se esconde debaixo da mesa, gritando. )

Maria
O que ele tá fazeno ?’

Rosa
Besteira.
Já viu nego perto de um tacho de doce fazer coisa que preste ?
( Barulho do nego)
larga esse doce, moleque.
num põe na boca.

Maria
Eu é que não como doce que alma penada pôs a boca.
Doce com baba de fantasma.

Rosa
Oie, ele ta do teu lado aí embaixo.

( Barulho do nego. Maria sobe em cima de um banco.


Rosa agacha-se para falar com ele perto da mesa. Barulho segue até Maria sair da cena. )

Rosa
Oie, oie, oie, faça isso não, meu fio. Escute, deixe ela quieta, deixe. Sim, ela é ajeitadinha, sim, mas não
está acostumada com agrado de sombra feito tu.
Dê uns diazinho pra ela, dê.
Deixe ela quieta e eu dou um pedaço do doce mais rapadura para tu.
Onde tu vai?
( rindo )
ai, nego enxerido

Maria
do que ocê tá rindo?

Rosa ( rindo mais. gargalha nem consegue falar direito )


ocê num vai querer saber.

Maria
fala, rosa. ele tá perto d’eu de novo?

Rosa
oie,oie,oie, ele tá dano um beijo no cê.

Maria
ai me larga, alma sebosa. vai-te. vai-te.
( sai pinotando de pavor da cozinha, balançando sua colher de pau contra o zombeteiro fantasma)

Rosa
Espia, ele levantano tua saia.

Maria
Eu vou embora dessa casa.

Maria vai embora. Rosa Sai atrás da outra mucama.

Rosa
Leva os teu cagado, mulé.

Mucama1volta e senta no banco do nego.


Conversa mais ele.

Rosa
Oie, oie, oie, tu és danado, nego.
Tu fica tucaiando o doce que eu vou falar coma sinhá.

3.Entrevistador encontra Rosa

Entrevistador bate na porta do lado de fora da cozinha. Rosa vem atender. Conversam à beira da porta.

Rosa
Diga, moço.
Entrevistador
Boa noite.
A senhora conhece estórias de assombração?

Olhando para dentro da cozinha, Rosa pede para o neguinho sumir.

Rosa
Mas isso muito é fácil você fazer isso, meu filho.
Entrevistador
Diga onde é que eu vou, como é que eu faço? Porque não é fácil não.
Rosa
Oxente, povo mais sem imaginação. Olhe, faça assim, vá falar com seu Ninho. Tá vendo essa rua? O
senhor segue vai em frente, em frente, em frente, em frente, em frente, em frente até dar uma dor.
Pronto. Quando der uma dor , Seu Ninho mora do lado.
Entrevistador
Até dar uma dor?
Rosa
E apoi. Vá, meu filho vá. Vá. ( Já do lado de dentro da casa, fora da cozinha ) Ô Minervina, tu conhece
alguém para trabalhar na casa de Sinha. Num pára uma empregada nessa casa, mulé.

4. Apresentação Ataulfo

Descendo do armário.

ATAULFO
( Ri. Desce e vem beliscar o doce. Voz no rádio. )

Os mistérios que se prendem à História do Recife são muitos:


sem eles o passado recifense tomaria o frio aspecto de uma história natural.
E pobre do homem ou da cidade cuja história seja só a história natural.
É que em outros lugares recorre-se ao sobrenatural principalmente para ver o futuro;
enquanto em Recife o sobrenatural é uma perseguição do passado.
Suas assombrações vêm sendo, mais que suas revoluções, parte do seu modo de ser cidade com alguma
coisa de cidade onde o mundo não é só dos homens.
Grande parte dessas sugestões terá sido simples crendice, superstição, histeria até.
Outra parte, porém, não se deixa facilmente explicar pelo simplismo cientificista:
retém seu mistério.

MINERVINA (Na rua )


Dona Zefa.

ATAULFO ( Dirige-se para a porta e abre para entrada na Rua )


Pois se o Recife Antigo teve uma rua chamada do Encantamento

5.Entrada público na Rua do Encantamento

Público é conduzido para o corredor da casa. Este espaço está vestido de uma rua. As portas das casas,
lamparinas, placas com nome de ruas, poste.
Bancos estão ao largo deste espaço. Enquanto sentam, ouvem grilos e cigarras e o assobio de Ataulfo
que atravessa saudoso o lugar.
Quando público se senta, Ataulfo pára o assobio. Após pausa.

6. Reza Véio

De uma das portas, ouvimos a reza :

VÉIO ( off )
“Se a morte vir em buscar
em vez de ter medo dela
primeiro eu pergunto a ela:
‘Quem foi que mandou chamar?’
E se ela me falar:
‘Foi Deus do céu verdadeiro’

TODOS ( off )
“E se ela me falar foi Deus do céu verdadeiro.”

Após pausa.

7. MERGULHÃO

VÉIO
Eita.

Entrada de todos os contadores brincando o mergulhão.


Relação de suspensão, contato com público
E, em seguida, cada uma sua vez, dizem uma frase de sua trajetória no espetáculo.
Saem aos poucos, sempre brincando até ficar uma preta.

PRETA
Eita.

8. O HOLANDÊS.

O contador veste-se de holandês. Monta o holandês ruivo de barbas longas e ornado rubramente sob a
pele alvíssima. Preta, do outro, lado da cena percebe o holandês que caminha em sua direção.

HOLANDÊS
No começo dessas terras, quando ninguém se entendia.
O diabo vinha do mar.
( O próximo texto dele traduzido para o holandês).

PRETA
O Demo, mainha! O Demo !

HOLANDÊS
A primeira vez que a preta de leite viu um branco invasor desmaiou do medo daquilo que desconhecia.
Pensou ver o demo.
Pensou certo.

PRETA
A sombra dele tem chifre.

HOLANDÊS
Não estava acostumado à cor rubra da espécime européia.
Correu o rumor da aparição do diabo dos brancos com toda sua vermelhidão
E toda sua inhaca de enxofre, de breu
E de banhos mal tomados de mês em mês.
A invasão trouxe calvinistas e judeus
Dos quais gente mais devota da Virgem e amiga dos santos
Devia se afastar benzendo-se.
A invasão trouxe outro cheiro de macho. ( Demo trepado no teto )

ATOR
A sombra dele tem rabo.

HOLANDÊS (Demo solta no chão )


O primeiro demo chegou disfarçando-se de deus
Saltava em terra escorregando em índia nua, atolando o pé em carne.
Uma espécie de sadismo do branco e de masoquismo da índia ou da negra terá predominado nas
relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas ao seu
domínio.
O furor femeeiro do branco se terá exercido sobre vítimas nem sempre confraternizantes no gozo;
Através da submissão do pretinho muleque, seu companheiro de brinquedos e chamado de
Leva-pancadas, iniciou-se o menino branco no amor físico
O menino branco na sua condição de senhor
Cercado de escravos e animais dóceis, induzindo-o a bestialidade e ao sadismo.
Sadismo transformado no gosto de mandar dar surra , arrancar dente de negro ladrão de cana,
No gosto do mando violento ou perverso,
Ou no simples gosto pelo mando, característico de todo brasileiro
Nascido ou criado em casa-grande ou engenho.
Tira a roupa.

Ator/atriz deixa cair roupa.

HOLANDÊS
O que o grosso do que se pode chamar ‘povo brasileiro’ ainda goza
É a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático.

PRETA
A sombra dele tem cheiro.

Agarra a preta/pretoe beija-a(o)

PRETA ( derretido de tesão )


O demo, mainha.

Roçam línguas e beijam-se.


Saem.
9. BOCA-DE-OURO
Entram dois contadores, assustados, contam o que acabaram de ver.

1
Um acontecimento periclitante
2
Um fato epistemológico
1
Nós vimo um mal-assombro que é primo-írmão do demo.
2
...semelhante ao demo.
1
Não, deixe eu contar: o senhor vai confudir tudinho, vai me empaia e eu vou esquecer alguma coisa
importante.
2
Não, eu vou lembrar de tudo
É simples assim:
Agente se adicidiu sair na noite, sempre gozando o silêncio morno da meia-noite recifense, o ar bom da
madrugada que dá para cidade seu melhor encanto.
Quem sabe não encontraríamos alguma dona bonita?
1
Alguma iaiá afoita de cabelos e desejos soltos?
2
Mas quem ou o que agente encontrou foi um tipo acapadoçado, chapéu caído sobre os olhos, panamá
desabado sobre o rosto e que foi logo pedindo fogo.
‘Ei! Tu!
1
‘Eu?’
2
‘Tem fogo aí?’
Agente estranhou a cor da figura que à luz de um lampião parecia roxa:
1
...um roxo de pessoa inchada.
2
Um roxo de pessoa inchada.
1
Funestro! Foi quando eu cutuquei tu e
Aí eu disse : “Hum”
2
Não, quem disse “Hum” fui eu.
1
Primeiro foi o senhor, mas eu logo depois disse:
“Hum, hum”
2
Não tinha ponta de cigarro, talvez tivesse fósforos ( foisfo).
Procuramo em vão uma caixa nos bolsos e ia remexer outro bolso quando...
1
Ele deu um gaitada. Assim ó
1dá uma gargalhada.
2
Não foi assim. Foi assim ó.
2 dá uma gargalhada
1
Não foi assim. Já disse.
Foi assim ó.
1 dá uma gargalhada.
Risada de Washington dentro de uma casa.

2
O tipo funestro encheu de repente, e sem quê nem para quê, o silêncio morno da madrugada com
medonha gargalhada.
E deixou ver... aqui... ( Aponta o próprio rosto ) ... muitas coisas.
1
Muitas coisas
2
Um rosto de defunto já meio podre e comido de bicho, abrilhantado por uma dentadura toda de ouro,
encravada em bocaça que fedia
1
...como penico de cortiço...
2
...como penico de cortiço.
1 e 2 juntos
Era o boca-de-ouro.
2
Nós ficamo fuça a fuça com o Boca-de-ouro,
1
mais um passo e nóis dava um beijo nele
2
e quase morremo sufocados pela catinga de defunto do monstro.
Corremo com toda a força de nossas canelas/cambitos azeitadas pelo suor do medo.
1
os passo pareciam de ladrão.
2
Até que cansados fomo afrouxando a carreira
1.
Mas quando ia parando, quem dá o bote de novo com a gaitada de demônio zombeteiro a escancarar o
rosto inchado de defunto e a deixar ver dentes arreganhadamente de ouro?
1e2
Boca-de-ouro.
2
O fantasma roxo e amarelo.
Aí não resistimo, caímo guenzo, desmaiado na calçada.
Do medo e do fedor.
E ali ficamo
1
até ser socorrido pelo preto do leite que, madrugador, foi o primeiro a ouvir a estória
2
e, falador como ninguém, avexou-se a espalha o caso.

Alguém abre uma porta. Risada de Washington . Som do rádio.

1
é ele
2
Num venha não que você se acaba, bichano.

Risada do Washington. Barulho atrás da porta. Entrevistador entra aos poucos. Joga luz sobre eles.

Entrevistador
Boa Noite. ( Os dois saem correndo)

10. ENTREVISTADOR ENCONTRA VÉIA & WASHINGTON


Entrevistador e Véia varrendo a calçada.

Entrevistador
Bom noite, dizem que é por aqui que aparece o lobisomem.
( Silêncio da mulher )
Senhora, eu...
Véia
Falo disso não, moço. ( Entrando na casa )
Entrevistador
Dizem que por aqui...
Véia ( Na porta da casa )
Porque o senhor ta falando dessa coisa? Quem fala, chama para junto de si. Ou ta amigado com esses
bicho. O
senhor tem parte com essas coisa?
Entrevistador
Não, senhora. É que me disseram que aparece lobisomem por aqui.
Véia
E o senhor com isso? O senhor nem é daqui. Num quero saber. ( Ameaçando-o com a vassoura ). Vá
simbora, vá. Vá,senão eu chamo Washington para lhe pegar.
Entrevistador
Desculpe
Véia
Washington , tem um homem de magia aqui fora. Ô Washington, venha cá.
Entrevistador ( Voltando)
A senhora sabe se a casa de Ninho tá perto?
Washington ( off )
Ouviu Dona Véia falar não? Saia daqui seu filho do Cafute.

11. LOBISOMEM

Erenestinho e Jaqueline no escuro, negociam. Jaqueline quer que Ernestinho conte


Em troca, lhe oferece um beijo. Ataulfo aponta lua/balão.
Ernestinho se encaminha para cadeira.

ERNESTINHO
Não quero contar.
JAQUELINE
Conta, Ernestinho. Olha, eu te dou um beijo como aquele da Igreja.
ERNESTINHO ( Voz já da besta )
Um beijo? Como o da Igreja
JAQUELINE
Melhor que aquele. De língua.
ENRESTINHO
Eu vou contar... mas só desta vez...
JAQUELINE
Conta, só tem agente aqui.
ERNESTINHO
Eu vou contar.
(Senta-se )
O que se sabe é que há quase trinta anos, Josefina Minha-Fé, hoje negra velha mas ainda bonita,
conheceu, ainda meninota, um lobisomem. ( lua )
“Era um horror menino”
Dizia ela na sua voz rouca de mulher um tanto homem na fala e em certos modos, mas não nas formas e
nos dengos.
Tomava forma de cão danado, mas tinha alguma coisa de porco. ( lua ). Toda noite de Sexta-feira estava
nos ermos, cumprindo seu fado de encruzilhadas. Atacando com furor dos danados a mulher, o menino e
mesmo o homem que encontrasse sozinho e incauto em lugar deserto.,
mas atacando especialmente as mulheres virgens.
Até que um dia atacou o lube a própria Josefina, que era então negrota gorda e redonda de seus treze
anos. E não se chamava ainda Minha-Fé, ao contrário havia quem a chamasse “Meu Amor” e até “Meus
pecados” – Josefina Meus Pecados – arranhando com a malícia das palavras sua virgindade de moleca de
mucambo.
Nesta noite, saíra Josefina para comprar azeite de lamparina para os santos.
Os santos estavam naquela noite sem azeite para sua luz
Não se lembrou a negrota descuidada de que era noite de Sexta-feira e noite escura. Chuvosa, até. ( Lua )
Tão despreocupada foi Josefina, caminhando da casa, ao pé do sobrado de lordes
que nem pensou em lobisomem a se espojar em encruzilhadas. E assombração parecia a Josefina, já
menina-moça, conversa de negra velha e feia, de que negra nova e bonita não devia fazer caso.
Josefina sabia que era bonita além de negra em flor.
Segui assim Josefina para a venda, quando sentiu de repente que junto dela parava um não-sei-que de
alvacento ou amarelento; um não-sei-que horrível; alguma coisa de que não pôde ver a forma; nem se
tinha olhos de gente ou de bicho.
Só viu que era uma mancha que fedia
e se agarrava como um grude nojento ao seu corpo. Mas um grude com dentes duros e pontudos de lobo.
Um lobo com a gula de comer viva e nua a menina inteira depois de estraçalhar-lhe o vestido.
Ela gritava em desespero.
“Me acudam. Minha madrinha, me socorra. Minha Nossa Senhora da Saúde, minha fé. Minha Madrinha !
Minha Fé! Minha Fé !”( Lua )
Foi o que salvou Josefina.
Ter gritado pela Nossa Senhora da Saúde, da qual o lobisomem tinha mais medo do que o próprio Nosso
Senhor.
Josefina, minha-fé. Josefina, meus-pecados.
( Ernestinho pula para cima de Jaqueline para fora de cena.
Baixo,fora de cena.

Ernestinho
Eu não gosto de contar.

12. ENTREVISTADOR ENCONTRA VÉIO

Entrevistador e Véio na porta da casa dele.

Entrevistador
Boa noite!
Véio ( Aniimadíssimo, rindo muito sempre)
É o senhor que atrás de malassombro,é?
Entrevistador
O senhor conhece alguma?
Véio
Achou, meu fio. Conheço.Venha, sente. Ceuça é que sabe contar, mas ela faltou hoje. Ontem mesmo ela
contou uma... tão boa, mas tão boa, olhe eu me arrepiei todinha, menino, como era mesmo? ( Fazendo um
esforço ) lembro não, rapaz. Eu lembro da sensação porque era tão boa, tão boa, Mas ela é que sabe. Olhe
tinha uma, menino era ótima essa. A da menina... como era, meu Deus? Esqueci. A menina fazia uns
negócio e o povo...esqueci ( Ri ) Olhe, mas era ótima. No dia que ela me contou, eu não dormi de noite de
tão boa, tão boa que era a estória. Mas tem outra, tem a da mulé...a mulé usava um manto... Esqueci
( Ri ) .Se aperrei não. Tem mias uma. Era meia-noite. Era meia-noite. Era ... Esqueci ( Não ri . Tempo. )
Ceuça sabe contar Que azar que o senhor tem, quem sabe faltou hoje. É Ceuça. Ceuça é quem sabe.
Entrevistador
O Senhor conhece seu Ninho?
Véio
É por aí? Já tá doendo? Então, siga, homê.

13. CENA DE BRANCA DIAS

Entra uma lavadeira com bacia cheia de água na cabeça. Entoa canto judaico. Outras lavadeiras entram
com ela.

LAVADEIRA
Das estórias de tesouro que tá escondido, de botija que e o povo recebe em sonho, a que o povo mais
comenta é a de Branca Dias.
Branca Dias era judia num tempo velho, num daqueles tempo em que é muito difícil ser judeu.
Apoi lá em Portugal, foi caboetada à Inquisição pela própria mãe e pela irmã.

“Mãe
É ela, é a judia que eu pari. É ela.
Branca
Ela me tirou a fala e me lançou maldições. Ela me tem ódio.
Mãe
É ela, é a judia que eu pari.
Branca ( em hebraico )
Ela me tirou a fala e me lançou maldições. Ela me tem ódio.
Mãe
Tá vendo? É ela.”

LAVADEIRA
Branca gritou em sua língua esquisita e eles tufe! Prenderam ela..
Mandaram Branca para dois anos de prisão
E fizeram ela usar o hábito da Igreja,
Condenaram Branca a Jesus.
Anos depois, já no Brasil, junto com o marido Diogo Fernandes,
Ela mais ele enricaram
e foi tanta da riqueza que ela teve que esconder muito de seu tesouro.
Só que num lugar de mais difícil de ser achado.

Abre porta de um dos quartos. Quarto-rio.


A música surge junto com o efeito do azul fundo do rio que vem do quarto.
Personagem Zé canta a música/ Cantam todos de dentro dos quartos..

Música
‘O sobrado de mamãe é debaixo d’água
O sobrado de mamãe é debaixo d’água
Debaixo d’água, por cima da areia
Tem ouro, tem prata
Tem diamante que nos alumeia
Tem ouro, tem prata
Tem diamante que nos alumeia.’
Cantiga para Janaína
Domínio público

LAVADEIRA
No fundo riacho, dizem, o fantasma de Branca vigia/espia sua prata.
“Minha Prata! Minha prata!
Prata que batizou o riacho.
Nome dado pelo povo de tanta prata escondida pela judia.
A lua não fazia frente.
No Brasil, Branca não renegou sua crença, não
Rezava às escondida..
Acoitava em seu engenho para os cristão de fachada.
Dizem que assim foi até sua morte.
Mas, morta, Branca ainda foi perseguida
( no Brasil e lá em Portugal )
e denunciada por ex-alunas,
dentre elas, uma mestiça :

“Aluna ( Manca )
Ela fez isso, sim. Isso que o senhor tá dizendo ela fez.
Ela cuspiu, mais de uma vez, a hóstia ao sair da missa.
Eu vi. Eu vi.
Nunca olhava de frente para um crucifixo. Nunca.
Nunca estava alegre em missa
Ai de quem dissesse “Graças a Deus” ou algo assim.
E fazia uma careta esquisita quando alguém falava o nome de Jesus.
Ela guardava os sábados como melhor dia da semana
Punha até um ‘toura’ em cima da cama nos sábados.
E comia um cumê que eu nunca vi por essas terras.
Ah!
( confidenciando )
E eu a vi arrotando durante a leitura do evangelho.”
Branca foi condenada na sepultura.
Ossos e restos desenterrados da Igreja e jogados na praça, na vista do povo.
Que pisou no que restou de Branca/da bichinha
Porco, cachorro, cristão, até falso cristão
Pisou nela.
Nem morto é fácil ser judeu. ( Saindo )

OUTRA LAVADEIRA
E ninguém sonhou com o dinheiro dela, não?

LAVADEIRA
Inté hoje ninguém recebeu visita de Branca em sonho.
Judeu ou gentio, português ou brasileiro.
Seu dinheiro, sem credo ou pátria, ornamenta o escuro das águas do riacho.

BRANCA ( fora de cena )


“Minha Prata”

NEGRINHA ( fora de cena )


Isso não são hora, iaiá
De moça fidalga sair para o mato.

ATAULFO ( Olhando-se no espelho )


Nas águas dos rios, dos riachos, dos açudes eram também reveladoras do futuro das pessoas que se
debruçassem sobre elas.
O que visse ou deixasse de ver nas águas era o futuro.
A crença principal era a de que a pessoa que, na noite de São João, não conseguisse ver na água a
própria imagem ou cabeça podia estar certa de morte próxima.

IAIÁ (carregando à força uma negrinha que se agarrava ao chão )

NEGRINHA (Com as unhas cravadas no chão)


Largo não, iaiá. Num dou mais um passo.
IAIÁ (tentando arrastá-la)
Negra frouxa, o açude está logo ali.
NEGRINHA
Se sua mãe, iaiá, sabe que a iaiá veio.
Ela me tira o couro e põe no batente da casa para todo mundo limpar os pé.
IAIÁ
Como se ela já não fizesse isto.
É hoje, meu São João, que eu vejo nas águas deste açude
a imagem de meu marido.
NEGRINHA
A iaiá é linda, vai arranjar companheiro bonito.
Vamos embora.
Num confie em água mal-assombrada.
Confie nos seus encanto
IAIÁ
Já estou quase com vinte anos de encanto, Luzia.
Todos me apontam na rua.
NEGRINHA
E se ela aparecer.
Ela veve por aqui botando sentindo na prata.
IAIÁ
Vamos, Luzia.
NEGRINHA (safando-se)
Não! A iaiá tem que ir sozinha
É que nem botija
Só quem recebeu o aviso pode abrir o buraco
IAIÁ (largando a negra)
Tem razão.
Espera um pouco, Luzia.

A negrinha que acompanha ao longe a caminhada da iaiá.

IAIÁ
Oxente, onde estou eu?
Não vejo meu rosto, nem rosto de ninguém.
Quero uma resposta.
Quero um rosto.
Quero um marido.
BRANCA
Minha prata!
NEGRINHA
Num se debruce mais, Iaiá!
IAIÁ
Quero um rosto!
( iaiá joga-se no riacho. Na sequência , Branca. )
Ai!
Me acuda, Luzia !
Me acuda que ela quer me levar!
NEGRINHA
É Branca.
Já vou, iaiá, já vou.
( negra sai correndo pro outro lado )

A iaiá é puxada para o quarto, a porta se fecha, escurecendo o rio.

NEGRINHA
Como é que eu vou explicar isto para sinhá?
14. CENA DO PAPA-FIGO

Preto velho entra em cena, põe um banco.


Mulher sinhá, bem vestida e sisuda, de buço avantajado.
O homem branco era um risco amarelo de gente.
Murcho, ressecado para dentro, um maracujá moribundo.
Sua fraca respiração, seu olhar fixo e lento, sua boca seca davam-lhe aspecto fantasmagórico.
Homem branco murmura algo.

SINHÁ
Acho que o senhor foi avisado de nossa visita. Meu filho...
PRETO
Sinhá num tem precisão de explicar suas mazelas.
Nem de pedir ajuda.
Que eu sei que é muito difícil para sinhá e para ioio pedir qualquer coisa para um preto.
SINHÁ
Ele vive guardado no quarto mais alto do sobrado.
Só entramos eu e meu marido.
O senhor é o primeiro negro que põe os olhos no meu filho.
Nós temos prata para ajudar o senhor.
PRETO
Dinheiro para dar cor de saúde para seu fio, cor de gente viva.

Preto se aprochegou e sentiu-lhe o hálito. A Sinhá tampou boca e nariz com o lenço. Preto baixou-lhe os
panos do rosto, sem revelar seu rosto enrugado.

PRETO
Para tratar de gente com lepr...
SINHÁ
Não diga. Esta palavra não se diz em nossa presença.
Em minha casa, arranquei a palavra da boca de criados teimosos junto com a língua deles. Entendeu?
PRETO
Sim, sinhá.
Ioiô fica bom, comendo figo de menino.
( Figo, no português do negro, queria dizer fígado )

SINHÁ
O Que?
PRETO
Figo (E apontou a região no próprio corpo)
SINHÁ
Ah!

Homem branco murmura algo.

SINHÁ
De bezerro?
PRETO
Não, de menino-gente.
SINHÁ
Gente viva? ( São ouvidas risadas dentro das casas )
PRETO
Mais ou menos. Vou ter que matar para ioio poder comer, né ?

Homem branco murmura algo no ouvido da sinhá.

SINHÁ
Pode ser branco?
PRETO
Figo branco?
SINHÁ
Não, de gente branca.
PRETO
Pode, mas se quiser se curar para sempre e logo, é mió comer um figo de carne escura. Tem mais ferro. É
mais forte.

Homem branco murmura algo no ouvido da sinhá.

SINHÁ
O senhor consegue?
PRETO
Sim, sinhá.
SINHÁ
E trata?
PRETO
Sim, sinhá. Ponho no saco e tempero para o ioiô
SINHÁ
Sem fazer sujeira, entendeu?
Olhe, vou lhe dar dinheiro farto. Sem economias.
( Sinhá oferece dinheiro )
PRETO
Pouco velho, né Sinhá?
SINHÁ ( Dá um pouco mais de dinheiro )
Basta?
PRETO
Menino branco dá um trabalho.
( Sinhá entrega todo o saco. Preto agarra-lhe a mão. )
SINHÁ
Deixe, no lugar do fígado, uma boa quantia, para a família tratar do enterro.
( Sai )
PRETO ( Divertindo-se )
Naquele dia mesmo, eu lhe servi um figo.
Comeu com apetite de saúde.
Ele devorou que nem besta fera, anunciando o lobisomem leproso que hibernava dentro dele.
Disse-lhe que o figo veio de menino branco, de olho azul, cabelo de anjo.
Coitado, num soube que pertencia a um negro retinto.
( segredando )
O mais escuro que consegui encontrar.
O sangue do ioio engrossaria, ficaria mais puro e forte com o novo figo.
Pureza de sangue contaminado de cor africana.
Figo de Bastião.
Mês depois soube que o barão dava festas em seu sobrado.
Curou-se, mas de modo sinistro.

Sai rindo. Segue risada de criança..


15. CENA DO MENINO-FELIZ

Atrás de uma das cortinas, sai Sinhá e vai a casa de Sinhá 2, bate à porta.

SINHÁ
Ele voltou.
SINHÁ
O menino?

Seguem até a casa de Sinhá 1.

SINHÁ 1
Olha lá!
SINHÁ 2
É ele ?
SINHÁ 1
Aparece todo fim-de-semana.
SINHÁ 2
E o que ele faz ?
SINHÁ 1
Nada. Sorri.
SINHÁ 2
Sorri ?
SINHÁ 1
Brinca e sorri.
SINHÁ 2
Que estranho.
SINHÁ 1
Pois é, quando o vi da primeira vez, pensei que fosse amigo do Donato.
Donato!!
SINHÁ 2
Ele te ouviu.
Parece gente, só que sorri demais.
SINHÁ 1
Foi aí que eu comecei a desconfiar. Sorri muito.
SINHÁ 2
E nunca falta?
SINHÁ 1
Nunca, principalmente se tem visita na casa. Donato!
DONATO
Que foi, Sinhá?
SINHÁ 1
Entra lá.
DONATO ( Agarrando-se na saia dela )
Ai ! De novo? Eu tenho medo dele, Sinhá.
SINHÁ 1
Ele não faz mal nenhum.
Ele só quer brincar, você brinca com ele e ele vai embora. Ele num ofende não.
Entra.
DONATO
Eu não quero.
SINHÁ 1 ( jogando-o dentro da casa com a ajuda de Sinhá 2. )
Entra.
DONATO
O que eu faço, Sinhá?
SINHÁ 1
Jogue pião, meu filho. Brinque de cavalinho. Só um pouco.
DONATO
Sinhá, ele quer me tocar.
SINHÁ 1
Deixa, amor, ele é bonzinho.
DONATO
Ai, que frio ! Socorro !!!!!!! ( Sai correndo )
SINHÁ 1
Donato ! Volte aqui. Licença, filha. Vou te bater, menino.

Sinhá 2 ouve risada do menino. Ele joga algum brinquedo/carro. Sinhá 2 devolve. (Um pião)

SINHÁ 2 ( Saindo )
Que arrepio !

16. A MULA-SEM-CABEÇA

Relinchos de cavalo. Sinos.


Entram em cena três mulheres, seu rosto não se vê.
Está coberto.

MULA
Ponho fogo pela vagina e ventas
Cavalgo nua pela noite do meu desejo
Às mulheres puras, os altares das igrejas
Às mulheres como eu, as camas das sacristias.
O padre tem meu amor e me retribui
Mas tem medo, me esconde na madrugada
Pulo cercas, arraso plantações, vôo
Cavalgo léguas para me sentir viva
Cortaram-me a cabeça porque baixei os olhos
E vi que sou mulher acima dos pés
Abaixo do umbigo
Ali começa minha história
Ali, onde minha boca grita
“Quero ele.”
Minha cabeça descansa em casa
Ao lado do sono preguiçoso de meu marido.
Mula sem cabeça. Mula de padre.

Relincho.

O amante me amaldiçoa sete vezes


Antes da missa. E eu fujo
Mas o padre... o padre.
Cevou várias barregãs na mesma paróquia
E quando todas se encantam ao mesmo tempo em mulas
A espanadarem areia pelas campinas
Num tropel de assombrar os cristãos mais valentes
O povo nem se assusta
Já sabe : “Lá vão as mulas do Padre.”
E ele nunca as amaldiçoou
Nas décadas que foi vigário na cidade.

Sinos.

Quando eu me aproximo
Os sinos tocam sozinhos
Os padres bebem todo o vinho
A hóstia desaparece da mão do sacristão e
As saias pagam fogo.
Se seu ventre começar a falar consigo
São meus passos
Que me arranquem cabeça e outros membros
Mas eu volto
Voando sob minhas patas
Para Recife, cidade religiosa, temente
Cheia de igrejas e, graças ao bom Deus,
cheia de padres.

Galopa e abre as portas de outro cômodo com as patas.

17. CENA DO VELHO SUASSUNA & PRETA TONHA

Preto entra cauteloso. Chama por um espírito.


Narra, aponta as rubricas, toca o atabaque e interpreta o velho fantasma.
Pode carregar correntes ou grilhões.

PRETO
Veío, cê tá aí, véio?
Costuma vagar um fantasma de velho, alto e muito branco: a alma do Visconde de Suassuna a pedir
perdão pros escravo que maltratara. Vem, véio.
Fantasma tão branco a ponto de parecer todinho ele um lençol que andasse sozinho.
Também pedia missa.
Missa para sua pobre alma de fidalgo arrependido dos seus pecados contra os negro.
E não foram pouco.
Espalharam a lenda de que o jardim inteiro de sua casa era um cemitério de negros justiçados pelo
Visconde.
( Toque. Entra a negra )
Vem, véio. Ela chegou
‘Como ela é? ‘.
É um negra bem posta, com um lampião.
Anda assustada, afoita, como quem espera uma assombração.
Tá Tremendo inteira, véio, a carne samba sobre os seus ossos.

NEGRA
Morro de medo do breu.
Anoitece e aí me dá aqueles medo de África.
Quanto mais eu fecho os olhos, mais eu ouço uns grito de senzala no meio do negrume. (Pausa.
Constata.)
PRETO
‘Nevinha’
NEGRA
É noite de velho Suassuna.
PRETO
‘Nevinha’
NEGRA
‘Sou eu’
PRETO
‘Perdão’

NEGRA
‘Sou eu’
PRETO
A negra tá se urinando toda, velho.
( negra se urina )
‘Dá tua mãe, provei a carne; do teu pai, vendi o couro.
Os dois viraram adubo no meu quintal de rosas.’
NEGRA
‘Sou eu’
PRETO
‘Três missas’
Não. Quatro. Peça quatro, home, quatro que aí já somam as 150.
‘Mande-me rezar quatro missa.’
NEGRA
‘Me deixe, sinhozinho. Me bata, não. No tronco não.’
PRETO
A negra esquecia a alforria, a lei áurea tudo. Naquela momento, gemia como no tronco, gemia como
seu pai e sua mãe, gemia como um idioma africano.

O velho desce ao seu pé para dar um beijo frio que quase congela seu dedão.

NEGRA
‘Ai meu Deus.’
PRETO
‘Num gosto desse negócio de beijar o pé. Assusta a bichinha.’
Sai, sai , velho.
A negra corre em disparada, deixando seu rastro de urina na noite morna.
(O velho Suassuna pega as rosas e distribui para algumas moças )
O visconde gosta de oferecer às pastoras rosas como não há iguais na cidade.
Rosas cultivadas em seu quintal.
Rosas avermelhadas a sangue de negro.

ATAULFO (Montando a rede )


CONTADOR
Não raro, iaiás finas, abastadas, famílias assobradadas, também eram perseguidas pelos fantasmas do
tempo da senzala.
Só que as coitadas eram às vezes açoitadas à noite por escravas saudosas dos cachos da sinhazinha, a
preparar-lhes o penteado.

Fora de cena.

SINHÁ 1
Largue meu cabelo, Carlota.
SINHÁ 2
Por que achas que vivo grudada a teus cachos? Não são de prata, muito menos de rapagotes.
SINHÁ 1
A estas horas da noite, vives a acariciá-los, acordando-me .
SINHÁ 2
Ai que estás insuportável. Vai dormir na varanda.
SINHÁ 1
Vou. E só assim me livro de tuas cantigas.

Sinhá 1 entra em cena. Sinhá 1 põe-se a dormir e roncar pesadamente.

ATAULFO ( Balançando a rede )


Por muito tempo, o sono foi farto.
A consciência, espantosamente, não lhe atormentava.
Até que...

PRETA (cantando, ainda no escuro.)


Sodade da Iaiá faceira
Que me punha no tronco
Me cortava os peito
Me punha fucinheira

SINHÁ1
Quem está aí ?
(Silêncio. Volta a dormir.)

PRETA
Sodade da iaiá, minha flor
Que me queimou o rosto
Cortou minha língua
Para não falar com ioiô

SINHÁ
Carlota, é você?
Não gosto destas troças, Carlota.

PRETA
No meu tempo de viva, mãe dizia que tinha as visage que voltava para assombrar os sinhozinho.
Pois num é que uns branco perderam o juízo e se jogaram
No meio do canavial ?
Outros definharam aos poucos porque não conseguiram ter mais nenhuma noite de sono.
(Preta puxa o pé da Sinhá)

SINHÁ
Me larga o pé, Carlota. Carlota?

PRETA
Sodade da iaiá faceira
Que vendeu o meu filho
Que me tostou no sol
Uma semana inteira

SINHÁ 1
Preta Tonha!
( Vendo-a )
Ai, meu Jesus.

PRETA (Sempre cantando e sorrindo)


Sodade de iaiá amiga
Vou voltar toda noite
Para lhe arrumar os cabelos
E beijar os seus pés
Para nanar sua insônia
Com as minha cantiga

SINHÁ 1
Num fui eu, Tonha. Foi o ioiô.
Num fui eu Tonha.

ATAULFO
( A Preta vai abraçar a sinhá, enquanto Ataulfo fala )
Depois desta noite, Tonha voltou todas as outras.
A Sinhá criou uma olheira tão grande que nenhum rapaz lhe desejava.
Não havia pó europeu, urucum nativo que lhe mascarasse a marca das insônias.
Trocou a noite pelo dia, a companhia dos passeios diurnos aos açudes, quermesses, saraus, pela
cama, exaurida das visitas noturnas da fiel negra Tonha.
Até que enlouqueceu.
Perdeu o juízo e se jogou no canavial.

Outras pretas aparecem e cantam e dançam juntas este coco de roda.


Formam um círculo, a branca no meio.
Preta sai carregando a sinhá nos braços.
Passam a sinhá de colo a colo até sumirem com ela dentro do canavial.
“Sodade da Iaiá faceira
Que me punha no tronco
Me cortava os peito
Me punha fucinheira

Sodade da iaiá, minha flor


Que me queimou o rosto
Cortou minha língua
Para não falar com ioiô

Sodade da iaiá faceira


Que vendeu o meu filho
Que me tostou no sol
Uma semana inteira

Sodade de iaiá amiga


Vou voltar toda noite
Para lhe arrumar os cabelos
E beijar os seus pés
Para nanar sua insônia
Com as minha cantiga.”
18. VELHA BRANCA E O BODE VERMELHO

CONTADOR
(Entra puxando a cadeira. Sem pressa alguma.)

Morava na casa com três parentas pobres certa velhinha que conheci já muito velha e com fama de muito
rica.
Mas que possuía apenas alguma fortuna em ouro e em terras, além de algumas vacas e cabras de leite.
Quando eu e meus irmãos a conhecemos, teria talvez seus oitenta e tantos anos, mas seu tamanho era o de
uma menina de oito.
Era quase cega e andava, como se diz pitorescamente em Pernambuco, engomando, isto é, arrastando os
pés à maneira dos ferros de engomar sobre o macio das roupas ou dos panos. Assim ó.
( Entra Boneca da Velha. )
Era branca, branquíssima como coberta toda de neve: toda e não apenas o cabelo. A pele muito branca.
Tinha uma voz fanhosa, mas autoritária: voz meio do outro mundo, meio deste.
As mãozinhas, duas plumas brancas que quando faziam festa a um rosto de menino já pareciam mãos de
fantasmas.
O ouro, conservava-o a velhinha menos em moedas do tempo do rei velho, seu Senhor, do que em jóias,
medalhas, trancelins do tempo da Colônia.
E essas jóias nem as usava a velhinha nem deixava as sobrinhas – cá entre nós, verdadeiras marias-
borralheiras, tão brancas quanto ela – as usassem.
Eram jóias de suas santas e dos seus santos.
Às sobrinhas, negava tudo.
As coitadas se esgotavam em costurar para fora e em fazer doces para as negras venderem.
E a velha tinha um quartinho repleto de santos e santas.
Dizem que quarto melhor que os das sobrinhas.
Principalmente, do seu, só seu, puramente seu, Menino Jesus:
BONECA
“Imagem rara do Salvador do Mundo quando criança
CONTADOR
e quase do tamanho de um menino de verdade.
Imagem que me veio de Portugal e cujos cabelos são, com efeito, cabelos de meninozinho louro que
morrera anjo.
(Segredando.)
Os cabelos eram de um tio-avô meu.”
CONTADOR
Cabelos humanos em Jesus sagrado.
BONECA
“Meu menino Jesus só mostro a quem me agrada.”
CONTADOR
Não era qualquer curioso que entrava no quarto do santo.
A chave guardava-a como o objeto mais precioso que a acompanhava no mundo.
Mais de uma vez vi-a tomar seu chá ou comer seu beiju acariciando a chave.
Chave não de cofre, mas de santuário.
BONECA
“Deste santuário.”
( Pára à beira da porta. )
“Vocês vão entrar, mas antes rezemos todos antes de ver o meu menino.”

Põe todos para rezar. No meio da reza, ouve barulho vindo de dentro do quartinho. Abre a porta com
urgência e depara-se com suas três sobrinhas rindo, cobertas com as jóias dos santos.
Belo santuário, com santos e santas e uma imagem coberta ao centro.

BONECA
“Suas hereges! Ô renca de rapariga tinhosa. Já não disse para num encostar essas mãos ensebadas de
miséria nos meus santos! ”
MARIA 1
“Tia, nóis tava só limpando...”
MARIA 2
“...Para ficar mais brilhoso...”
MARIA 3
“...Para chamar a atenção de Jesus.”
BONECA
“Mentira.
Tavam era se esfregando no ouro que não lhes pertence.
Antes disto limpem o chão para apagar o cheiro mundano que vocês deixaram.”

Mulheres ajoelham-se e limpam o chão.


Tia chama uma delas.

MARIA 1
“Que foi, tia?”
BONECA
“Deixa eu ver embaixo da saia.”
MARIA 1
“Mais tia...”
BONECA
“Abra as pernas”

Maria 1 abre as pernas e cai um trancelim.

BONECA
“Tu num me endoida não.
Volte para lida, sua murrinha.”

A tia limpa na saia a jóia e deposita-a numa das santas.

BONECA
“Perdoe-me, minha santa.”
( Em seguida, descobre o Menino Jesus, todo coberto de jóias )
“Como vai meu galego de ouro ?”
CONTADOR
Agora, um dos prazeres da iaiá velha, e já tão cega que dos seus olhos se podia dizer, com o poeta, que
eram olhos que tinham passado às pontas dos seus dedos, era levantar com muito mistério o vestidinho
todo de rendas finas e cheio de fitas azuis do seu Menino Jesus, para que nós outros, meninos de carne,
víssemos que ao do céu, ali adorado, mimado e festejado como Menino Jesus nenhum o foi mais em terra,
não faltava piroca: uma piroquinha cor-de-rosa. Uma piroquinha em que as pontas dos dedos da velha
tocavam com a leveza de plumas, fazendo-lhes doce festa.
BONECA
“Olha a pitoca santa do menino Jesus.”
( Diverte-se velha )
CONTADOR
Um dia...

MARIA 1 ( acendendo uma luz vermelha sobre a platéia )


Bééé.
BONECA
“Vixe, Maria”
MARIA 2 ( acendendo uma luz vermelha sobre a platéia )
Bééé.
BONECA
“É balido do demo.”
MARIA 3 ( acendendo uma luz vermelha sobre a platéia )
Bééé.
BONECA
Tem um bode dentro de casa.

A luz incide sob a platéia sempre manipulada pela sobrinhas.


CONTADOR ( Tremendo inteiro )
Um dia, apareceu-lhe às fuças um bode vermelho ou encarnado ou escarlate, como o bicho do apocalipse.
A velha gritara e todos vieram acudi-la, mas só quem enxergava o terrível bode era a velha
BONECA
Eu vi!
CONTADOR
quase cega.
Eu vi!
CONTADOR
Desesperava-se a velha.
Naquela tarde, acenderam-se velas.
Velas que arderam a noite inteira.
Queimou-se incenso. Cantou-se ladainha. Rezou-se contra o maligno.
Missas foram encomendadas pela velha ao convento inteiro.

Ajoelham-se as velhas e as sobrinhas em frente ao altar e começam a rezar.


No meio das rezas, ouvem-de as sobrinhas, entre uma prece e outra.

MARIA 1
“...Tudo para o menino e nada para nós...”
MARIA 2
“...é cozer e fazer doce numa casa tão cheia de ouro e pedra preciosa...”
MARIA 3
“... Tudo, porém, adorno de santo. Ô velha tão crua...”

CONTADOR ( Enquanto as sobrinhas continuam a reza )


Quem sabe, se Deus, o Pai, desaprovando o culto não digo excessivo, mas exclusivo, a imagem de seu
Divino Filho, e a negligência da tia pela sorte daquelas três sobrinha pálidas, também filhas de Deus,
embora simples pessoas da terra, não permitiu ao maligno aparecer naquela santa casa, só para sacolejar o
coração da velha sinhá e abrandá-lo ?
Durante os anos que ainda viveu a velhinha, cada dia mais devota do seu menino Jesus sobrecarregado de
ouro, embora menos esquecida das suas três sobrinhas vestidas de chita, não voltou nenhum bode
misteriosamente escarlate
Durante esse resto frio de vida a velhinha não fez senão definhar e secar.
Secou tanto que ao morrer não precisou de caixão maior que caixão de menina.
( As Marias fecham a porta do quarto, encerrando a reza. )

MARIA 1
Duas de suas sobrinhas morreram, logo depois dela.
A casa foi ficando a mais triste das casas da estrada já chamada então dos Aflitos.
A velha afinal, não era rica : apenas remediada. Rico era só o Menino Deus.
O seu rico menino de mulher sem filho, de velha sem neto, de tia desdenhosa de sobrinhas apenas
mulheres.
Até hoje não se explica a aparição de bode misterioso em casa tão sossegada e tão temente a Deus.
Talvez um alarme saído do próprio subconsciente, para que a velha dividisse ainda em vida o ouro
inutilmente rico com as sobrinhas terrivelmente pobres.
Mas isto é uma reflexão de homem de hoje : destes dias pós-marxistas e pós-freudianos que
atravessamos.

Maria 1 tira das roupas íntimas alguma jóia e sai.


Bode, sobrinhas e menino-jesus fazem a festa.

19.ENTREVISTADOR & A CASA

Passagem do entrevistador sozinho. Casa brinca de suspirar em sua caminhada.

20. FANTASMA QUE MIGROU


Um velhinho caminhando com dificuldade.
O contador o acompanha.

VELHINHO
Cadê Zito?
Eu vim buscar Zito para dar um cheiro
Antes de dormir.

ATAULFO
Aceso de saudade latejante e suada,
Ele recupera um pouco de sua terra em sonho
E recebe no sono
O beijo dos que morreram longe.
Sonho misterioso como a morte
Onde eles vêm se despedir
Na distância e no tempo
O que fica é um vulto
Uma aparição de lembrança
Um fantasma fio de memória

VELHINHO
Zito gosta que dê um cheiro nele antes de ir dormir
Antes de ir dormir, eu preciso encontrar Zito.

O contador o leva até


uma família, pai, mãe e filho estão vestidos de roupa de domingo.
Estão em frente a um orelhão.
O pai disca, a mãe arruma o filho.
Alguém atende do outro lado.
Imediatamente, cantam “parabéns para você” via Embratel.
A mãe tira um bolo de aniversário da sacola.
Sucedem-se nos comentários ao telefone.

PAI
Voinha, Soninha fez um bolo pro senhor.
MÃE
Olhe, aqui no sul, está chovendo e aí?
FILHO
Eu tenho quatro anos e a senhora? Mande um beijo para voinho.

O fone volta ao pai.


A euforia vai diminuindo.
Percebem no rosto do pai que algo sério está lhe sendo dito.

PAI
Vô Pedro?

O velhinho/avô beija-o.

AVÔ
Pronto.

O avô dá um sorriso e sai.


O pai desliga o telefone e senta-se no chão.
Família ao seu redor.

FILHO
Voinho acabou?

AVÔ
Zito gostava de comer macaxeira com charque.

ATAULFO
No rosto do povo moreno que veio comigo para cá.
Já vi meu pai num açougue,
Voinha num caixa de loja,
Tia Tonha na feira.
Estão todos conosco e ausentes.
As cidades navegando conosco.

CONTADORES ( Entram todos. Dizem para o público )


Toda vez que eu volto pra terra onde nasci, vou direto ao cemitério.
Venho ver os que se foram e eu, distante, não pude me despedir.
Venho abraçar mármores e pedras.
É estranho vê-los pelos retratos das lápides.
Ver como o tempo se alojou em suas peles e pelos.
Depois vou me aquecer com os vivos, os que ainda estão aqui.
E contar os fios de cabelos brancos em suas cabeças, sobrancelhas, mãos.
Conto também as dobras de suas carnes.
O número sempre aumenta.
Dá para fazer um mapa da evolução.
Talvez na minha volta eles sejam fotos na lápide com cabelos brancos e rugas da minha ausência.
Eu choro muito. Convulsivo. Eu moro longe.
Adianto as lágrimas.

AVÔ
Zito subia na jaqueira...

21. CIRANDA DO CONTO DE FARDAS

Acordes da ciranda
Que vai se formando aos poucos com todos os Contadores.

CONTADOR
(ao microfone/megafone)
Boa noite,
O ano é 1970.
A cidade é Recife.
Muitos aqui não me conhecem.
Eu já morri, viu?
E meu nome é Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo Caneca.
Frei Caneca.

Começam a dançar.
Frei Caneca circula ao redor da ciranda, interferindo com seus comentários.
O público pode ser convidado a participar.

FREI
Vou lhes contar um conto de fardas.
Um triste conto de fardas numa cidade chamada Recife,
Num país chamado Brasil.
Nos anos 70, muita gente começou a sumir,
A desaparecer mesmo.
E ninguém
Principalmente a guarda do Rei
Sabia do destino dos desaparecidos.
Eles sumiam nas esquinas, nos subúrbios, nas faculdades.
Eram descendentes daqueles pernambucanos/brasileiros
Que gostavam de gritar.
Gente da Guerra dos Mascates,
da Batalha dos Guararapes,
Da Conspiração Suassuna, da Revolução de 17,
Da Confederação do Equador,
Da Revolução Praiera,
Da Campanha Abolicionista, do Clube do Cupim
Do Quilombo dos Palmares.

Desse povo abusado com a mania de perguntar


“Por que?”
Gente como eu
Que gritei pela boca/com a voz de Deus
Mas fiz a pergunta errada
E desapareci.
E desapareceu uma parte do território pernambucano
Como castigo.
Terras que, hoje são baianas, e
o estado das Alagoas.
já foram, um dia, comarca de São Francisco, seara pernambucana.
Tudo castigo do Rei.

Mas, olhe eu aqui desviando...


Vamos voltar aos anos 70
Era uma época de fardas
Onde o rei era tirano e soberano
E só se vestia verde.
Nesta época,
Surgiu também a perna cabeluda.
Uma perna masculina e muito cabeluda
Uma perna, perna!
Solta pelo espaço
que atacava marmanjos e violentava moçoilas.

Metade dos cirandeiros levantam a perna da calça,


revelando uma meia cumprida e cabeluda.
Ficam com a perna de fora.
A perna que marca o passo da ciranda.

CONTADOR
Muita gente estropiada e machucada
Deu entrada nos hospitais de Recife, dizendo
MÚSICO MACHUCADO
“Fui agredido por uma perna cabeluda”
CONTADOR
“ E como ela era?”
MÚSICO MACHUCADO
“Era uma perna e era cabeluda.”
CONTADOR
Era tudo que se sabia.
Tempos fantasiosos, congestionado de tanto monstro.
Feios como os anos que seguiriam.
Antes do silencioso massacre,
a perna,
mágica figura,
salvou umas meninas descabaçadas misteriosamente do dia para a noite.
“Quem fez mal a tu, Zuleika?”
MÚSICA GRÁVIDA
“Mainha, rapaz, foi a perna cabeluda.”
CONTADOR
E tem pai que acreditava.
MÚSICO PAI
“Minha fia, prenha da perna cabeluda...ô desgraça”
CONTADOR
Os relatos se seguiam
A rádio anunciava as agressões
As da perna, é claro.
A pernabucana agredia e espancava
Mas enquanto algumas mães reclamavam dos ferimentos de seus filhos,
Obra da perna mal-assombrada;
Outras pediam ao Rei que encontrasse seus filhos,
Sumidos sem deixar vestígio algum.
Quer dizer, dizem que os ouviam gritar, um pouco antes de desaparecerem:
‘Liberdade’
Tanto sumiço
Seria obra da perna
Ou do seu duplo, o Rei?
Diziam, à época, que antes de sumir
Estranho ritual acontecia com filhos revolucionários.
Fios metálicos animados com cargas elétricas nasciam de seus orifícios e pipocavam-lhe as carnes
Queriam arrancar da memória, nomes e esconderijos mágicos.
Suspendiam-lhes do chão, paus voadores.
Arrancavam sons de seus ossos com baquetas de ferro.
Rasgavam-lhe os sexos com espadas
Dragões cuspiam fogo e marcavam sua pele
Dizem os que retornaram desta jornada fantástica
E foram poucos.
( Caindo no chão de joelhos )
Dizem que quando eu morri,
Nossa Senhora veio me buscar.

Entra Mulher.

MULHER
Meu nome é Aparecida
Fui uma das que se foram na década de 70.
Ele, o carrasco da torre do Rei malvado,
arrancou minhas vestes
e jogou eletricidade para dentro de mim
comigo desapareceram :
( Aqui devem ser adicionados os nomes
de todos os desaparecidos políticos em Recife.
Os nomes não foram liberados ainda pelo movimento
Tortura Nunca Mais.
Estamos em negociação).

Os cirandeiros continuam sua dança.


Frei grita ao megafone repetida vezes : “Liberdade”
Acende-se a luz negra, incandescendo as pernas/meias.
A sala parecia preenchida por pernas cabeludas azuladas
Enquanto Maria diz os nomes.
Aos poucos vão desaparecendo até ficar uma única perna
A música acaba.

CONTADOR
No final do conto,
Ficou claro que
Sua majestade não é a nação.
Meu nome é Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo Caneca.
Morto em 1825 por homens de fardas.
Eu circulo pela cidade que eu amo
Para ensinar meu povo a gritar.
Porque quem não é visto, não é lembrado.
Pronto!

Brincante interrompe a festa. Pede dinheiro ao público. Encaminha-os de volta para a rua
Sob a condição de deixar um dinheiro no chapéu. Quete. Outros músicos conduzem o público até o outro
ambiente. Servem comida ou bebida. Avisam do Forró do Gabeira. Müsica já está rolando.
Luzes já estão mais abertas. E Seu Antônio tenta vender até a chegada do Entrevistador.

22. ENTREVISTADOR ENCONTRA SEU ANTÔNIO

Entrevistador e Seu Antônio na rua. Rua mais iluminada. Som de rádio na casa de Zefa.

Seu Antônio
Olhe o trancelinho, dez real.
Entrevistador
O senhor não sabe mesmo?
Seu Antônio
Moço, eu sei, mas compre um negocinho que eu lhe conto uma estória. Olhe, para sua dama, que
trancelinho bonito.
Entrevistador
Qual a que o senhor sabe?
Seu Antônio
Oxente, a que o senhor quiser e seu dinheiro me inspirar. Quer ouvir qual? A da vassoura varredeira? Eu
lhe conto. Vá embora não, vá embora não. Que aperreio desse povo paulista. Eu conheço uma tuia de
história, mas é que dinheiro me deixa com a memória melhor, mais criativo, mais saidinho, mais sortido
de estória.
Entrevistador
O senhor sabe se aqui é caminho para casa de Ninho?
Seu Antônio
Tu vai ver Ninho, é? Ninho sabe estória, mas duvido que ele cobre mais barato que eu. Tu vai, mas o
preço que ele fizer, eu faço menos.
Moço, vá não. Olhe eu lhe conto por cinco. Por cinco real, moço. Que aperreio desse povo paulista. Cinco
real, um fantasma e mais um trancelinho, quer não?

23.ATAULFO ENCONTRA ZEFA

ATAULFO
Dona Zefa vivera cinquenta anos mais seu Ataulfo.
Como fêmea, viveu só quinze.
Depois se abusou do cheiro dele e num queria mais conversa de mulé com homem.
Olhava para ele e num sentia apetite nenhum para aquelas coisa,
pensava logo em comer um feijão com arroz, um pãozinho assado,
tudo menos sexo.
Seu Ataulfo tentava, mas nada dela se permitir pro lado dele.
Foi assim até seu último suspiro, ele tentando tocar-lhe o bico do seio murcho no meio de tantos tubos e
soros.
Morreu a um passo de eriçar-lhe a mama.
Dona Zefa enterrava com ele qualquer possibilidade de prazer.
Casar de novo?
Nunca.
Agora era esperar o fim.
Foi morar no quarto dos fundos da casa da filha. Melhor assim.
Tinha privacidade depois de cinqüenta anos.
Quer dizer, achava que tinha.
Pois, toda vez que entrava no banho, ouvia assovio elogioso.
Elogioso ou sarcástico, para mulher nos quase oitenta anos.
Quem a estaria espiando?
Olhava pelo basculhante e nada
Olhava pela fechadura e nada.
Um dia, encontrou uma rosa na cama.
( Entra rosa micro em balão micro flutuando ).
Vermelha como na primeira noite que dormira com Ataulfo.
Eriçou-lhe o bico do peito a leve lembrança
Eriçou-lhe o outro bico quando pensou que Ataulfo pudesse estar ali.
“Ataulfo, é você ?”
As pistas se seguiam.
O travesseiro amassado, a toalha azul ao lado da rosa, mais rosas e rosas, o chinelo dele fora do armário.
Ele voltara.
Teve medo e uma sensação gostosa no baixo ventre.
Foi então que lembrou: a sensação era A fêmea.
A presença dele a excitava, como nunca em vida.
A iminência do anoitecer já lhe umedecia todas as partes baixas.
Naquela idade, meu Deus.
Vestia-se sensual para ele.
A filha reparou que a mãe não saía mais do quarto.
Os bicos eriçaram de um tanto que parecia que erguiam o seio alguns centímetros.
O genro notificou :
“Pobre de tua mãe. Morre de saudades do marido. Todas as noites agora
ouço-a gritar :
‘Ataulfo, Ataulfo’”.
O amor e seus mistérios de coisa do outro mundo.

Entra Ataulfo vestido de paletó com chumaço no nariz e Dona Zefa vestida de camisola.
Jogam em cena balão que flutua com roa vermelha pendurada.
Ataulfo a sopra até Zefa
Dançam agarradinhos. Ataulfo abre a cortina, ela entra. Sorriso de malícia.

Música
“Veja só, que tolice nós dois
brigarmos tanto assim
se depois vamos nós a sorrir
trocar de bem enfim
Para que maltratarmos o amor?
O amor não se maltrata não
Para que se essa gente o que quer
É ver nossa separação
Brigo eu, você briga também
Por coisas tão banais
E o amor, em momentos assim,
Morre um pouquinho mais
e ao morrer então é que se vê
que quem morreu
fui eu e foi você,
pois sem amor, estamos sós
morremos nós...’
‘Brigas’
de Altemar Dutra.

24. ENTREVISTADOR ENCONTRA ZÉ CANINHA

Entrevistador e Zé Caninha.

Zé Caninha
Deixe de ser leso.Olhe eu resolvo o problema desse povo todinho que diz que ver assombração. Meu
cunhado vivia com essas estória. É um vulto daqui, é um vulto acolá. Vulto na hora do mijo, vulto na hora
da reza. Até na hora do amorzinho gostoso, o vulto tava lá. Tudo na vida desse homem era vulto. Mandei
ele no oculista para fazer exame de vista e ele tinha era vista cansada e via mancha embaçada no canto
dos olho.
Desde desse dia só acredito em quem diz que vê fantasma se usar óculos.
Pode acreditar : o problema desse povo que vê fantasma é falta de visão.
Entrevistador
O senhor conhece Seu Ninho?
Zé caninha (Inaudível )
Ele mora aí
Entrevistador
É o que?
ZÉ Caninha
Aí, leso, tá sentado na frente.

25. ENTREVISTADOR ENCONTRA NINHO

Entrevistador bate à porta. Barulho de Televisão ligada que segue até o fim da cena.

ENTREVISTADOR
Dá licença. Seu Ninho. Ô de casa !
NINHO
Noite.
ENTREVISTADOR
O Senhor é Seu Ninho?
NINHO
Oxe, que pergunta é essa?
ENTREVISTADOR
Então, seu Ninhô, eu vim falar com o senhor sobre as estória que o senhor contava.
NINHO
Das assombração?
ENTREVISTADOR
Sim, senhor. ( Foto )
NINHO
Ô Maria, o moço da TV chegou.
ENTREVISTADOR
Não, seu Ninho, isto é só um gravador. E a câmara digital.
MARIA
É retrato, homê.
ENTREVISTADOR
Nós estamos fazendo um trabalho para uma peça de teatro.
NINHO
Sei, sei. O senhor conhece o Fagundes ?
O das novela das oito. E o outro...?
Ô Maria, como é o nome do moço das novela que você gosta ?
MARIA ( em off )
Assunção.
NINHO
Assunção.
ENTREVISTADOR
Acho que não.
NINHO
Ah! Mas eu sei, este teatro eu vejo a propaganda na televisão.
ENTREVISTADOR
Me disseram que o senhor conta estórias muito bem.
NINHO
Contava, meu filho. Tá gravano ?
ENTREVISTADOR
Sim, está.
NINHO
Tá bom com essa roupa ?
Tiro o chapéu ?
ENTREVISTADOR
O senhor está ótimo.
NINHO ( Olhando fixamente para a câmara )
Olhe, eu vi umas visagem na minha juventude.
Mas hoje em dia ninguém ninguém mais se interessa.
ENTREVISTADOR
Posso desligar a televisão... o som atrapalha...
NINHO
Maria, pode desligar a Televisão um tiquinho ?
MARIA
Eu vou baixar.
NINHO
Sim, o senhor preguntou ?
ENTREVISTADOR
pelas suas estórias..
NINHO
Sim, olhe... o senhor é de São Paulo, é ?
ENTREVISTADOR
Moro lá.
NINHO
Sim, mas menino morro de vontade de conhecer São Paulo.
Olhe, para vivência é melhor lá, né não ?
Ô, Minerva, vá chamar Biu de Rosa e diga que o homem da televisão chegou.
ENTREVISTADOR
Num é televisão
NINHO
Sim, eu compreendi ao senhor. Vá dizer a ela, vá.
ENTREVISTADOR
Os antigo contava as estória para ficar amigo da noite.
Minervina se lascava todinha, desabava de onde ela tivesse para me ouvir contando.
Antigamente o povo todo daqui ficava sentado ao meu redor, entende ?
Tudo esperando preu contar um causo.
Hoje em dia, meu filho, ao meu redor só muriçoca.
ENTREVISTADOR
E o senhor lembra alguma ?
NINHO
Eu contava tanta mentira pra mainha, tanta da mentira, que quando ela me viu contando estória
para assustar meus primo ela disse :
“Pronto, Ninho, isso dá certinho para tu. Mentiroso como tu é.”
Pois eu vou lhe contar uma estória.
Uma quente.
História de mulher.
Tá preparado ?
ENTREVISTADOR
Estou.
NINHO
Vou contar uma estória aqui para quem nunca riu, ri agora.
Para quem nunca riu, ri agora.
Pois Dona Rogaciana, como o nome já diz, era temente a Jesus.
Quando seu marido, seu bastião, faleceu.
Dona Rogaciana se descabelou todinha de chorar.
Pense numa mulher descabelada, eu digo ela.
Os vizinho acudiram a pobre coitada.
Ela era correta, sabe? Correta demais, a coitadinha, e na hora de vestir o morto, ela tremia.
A vista já tava turva e juízo prejudicado de tanto choro.
Pois olhe, a danada penou sem o marido dela por uma semana
Uma semana, só uma semana, sabe por que?
Porque depois disto, ele voltou a aparecer.
Voltou, voltou.
Tô lhe dizendo a você.
No começo aparecia pra ela sem falar.
Só resmungava como fazia em vida
Fazia aquelas careta, aquelas muganga de velho chato.
Porque o bicho era ranzinza, ô cabra tinhoso.
E Dona Rogaciana naquele desespero, sem entender o que ele queria, morta de medo daquela aparição.
Depois, o velho aparecia e apontava o armário.
Ela abria, desinfetava, jogava incenso, mirra, flor de jasmim.
E ele continuava a aparecer e apontar para o armário.
Chamou a médium, sua vizinha, mulher dos espiritismo.
Para lhe pedir ajuda, para perguntar a ele o que aconteceu.
Era noite escura, meu filho, escura.
Pense numa noite escura, eu digo aquela.
Vou contar uma estória aqui para quem nunca riu, ri agora.
Essa medium entrou no quarto e pôs a vista no armário.
“Que é que tu guarda aqui, Ciana ?”
“O resto das roupa dele.”
A médium revirou a gaveta toda, pegou camisa, pijama, mijador, meia, quando agarrou-se à cueca do
velho, começou a tremer.
Tremeu-se toda que o móvel balançava mais ela.
Daqui a pouco a casa inteira.
Rogaciana gritou : “Que foi, Rosa ?”
No que ela perguntou para vizinha, ouviu a voz do marido, saindo da boca da fêmea.
“Mulé, tu me deixaste prejudicado.”
“Tião ? Que foi Tião, que foi que fiz ?”
Ela, já chorando muito, de novo.
“Tu num me adornasse direito pros anjos, mulé.
Tu se esqueceu de minha ceroula.
Tu me mandaste para os altos sem cueca.
E agora eles me disseram que eu num posso entrar.”
A viúva se jogava no chão e pedia perdão.
Ela gritava :
“Eu me esqueci de cueca. Eu me esqueci da cueca.”
E o velho :
“Quando tu morrer, tu carrega contigo minha cueca.”
Disse isto e se foi.
E num voltou mais.
Pronto, deste dia em diante, Rogaciana rezava para morrer logo
para remediar o mal que fizera.
E levar a cueca pro marido.
Ela custou ainda, durou uns três ano.
Quando ela se foi, a neta disse na hora de vesti-la :
“Não esqueçamos o soutien de voinha.
Voinha, tem que ir completa. Sem faltar nada.
O voinha, a senhora vai completa, viu ?”
Olhe, Rogaciana foi enterrada com um soutien novo, uma calcinha nova e na mão, escondida pelas flores
uma cueca que carregava para o marido.
( Rindo de se acabar )
Contei uma estória aqui para quem nunca riu, ri agora.
MARIA ri de dentro da casa.
NINHO
Tu ouviu, Maria ? Maria ?
MARIA
Oi, homem.
NINHO
Tu ouviu ? Eu contando a estória de Dona Rogaciana.
MARIA
Não homem, eu tô me mijando com aquele homem da televisão,.
Vem ver.
NINHO
É aquele da barriga grande. Venha, venha ver. E eu conheci Dona Rogaciana, viu ?
Entrevistador
O senhor me mostra?
Ninho
O que?
Entrevistador.
Uma assombração. O senhor vê, não vê?
Ninho
Vejo, meu fio. O tempo todo.
Entrevistador
Eu quero ver.
Ninho
Tem certeza? ( Olha para o público ) Eu lhe mostro, mas depois do jornal. ( entrevistador sai )

26.CENA DA MORTA FORROZEIRA

Contador está arrumando os cabelos.


Ouve-se a banda de forró afinar os instrumentos.

CONTADOR
No forró do Gabeira
Pus reparo numa morena
Que esticava os olho
para as pareia no salão.
Balançava as canela
Sentada na cadeira
E, no lugar onde sentou,
Dava para sentir o fogo
E ver a fumaça
Fugindo pela rabeira.
Me aproximei:
‘Boa noite, donzela.’
Silêncio dela.
‘Quer dançar?’
‘Dançar ? Quero.
Ai que saudade.’

Entra em cena outro contador agarrado a uma boneca.


Destas que grudam os pés no sapato do dançarino e ficam à mercê de sua condução. Evoluem pelo salão.
CONTADOR
Agarrou-se em mim num pulo
E era ela quem me conduzia.
Quase empurrando meus passo
As mão dela era fria como uma gia.
Tinha um cheiro de bote-mais-pra-lá
Mas eu me enterrava em seus peito
Para quem pegou amor feito eu,
Até catinga de bode é cheiro.
CONTADOR
‘Olhe, butei os oio em tu
E num quero outro horizonte’.
MOÇA
‘Suas palavras são bonita
Mas prefiro seu quadril
Deixe as parte baixa
Conduzir a conversação.
Ai que saudade !’
CONTADOR
A moça repetia o tempo todo:
“ai que saudade!”
MOÇA
’Ai que saudade!’
CONTADOR
De repente, mudou de texto.
MOÇA
“Olhe, está ficando tarde.”
CONTADOR
Então eu lhe deixo em casa
É meu caminho para cidade
MOÇA
Tu nem sabe onde eu moro.
CONTADOR
Para o norte?
MOÇA
Eu vou noutra direção.
Eu vou pro sul.
CONTADOR
Eu vou pro norte
Do sul
Quase chegando
No centro...
Faz mal não
Eu lhe dou um bigu
MOÇA
Quanta gentileza.
Ai que saudade!
CONTADOR
Era madrugada
Dei-lhe o casaco para vestir
A moça deu um suspiro
‘Ai que saudade’
MOÇA
Mas daqui o senhor não passa
Quero que mainha lhe veja não
Mainha é muito da braba.
Mainha é uma danada.
CONTADOR
Ó minha flor da madrugada,
Eu lhe vejo amanhã?
MOÇA
Já tô com...
JUNTOS
...saudade.
CONTADOR
Sapecou-me um beijo frio
Mas butou fogo dentro de mim.
E foi dizendo saudade a
té sumir no breu
E no final quem disse
‘Ai que saudade’ fui eu
Mas o sol veio numa carrera.

Entram o pai e a mãe dançando forró.


A mãe com o lenço na mão, chorando.

CONTADOR
Vim sua fia encontrar
MÃE
Deixe de sua brincadeira
Minha fia já se foi.
CONTADOR
Mas eu forrozei mais ela
No forró de seu Gabeira
E num é por querer me gabar
Forrozamo a noite inteira
MÃE
Apois, veja a foto de Sabrina
No dia de sua formatura.
É terceira da esquerda pra direita
Com uma perna fina e a outra dura
CONTADOR
É ela mesma.
Espie coisa mais linda
Caso com sua menina
PAI
Essa já se foi, meu chefe
Pegue a cria mais novinha,
Saninha.
(Saninha aparece, dançando forró)
CONTADOR
Oxente, eu peguei amor foi por Sabrina.
(Saninha sai de cena, dançando)
PAI
Home, vais casar então na cova
Sabrina, está descansando
No colo de Nossa Senhora
CONTADOR
Já vi pai inventar mentira
Para cuidar de moça-donzela
Mas enterrar a pobrezinha ?
Deixe eu ficar mais ela
MÃE
Eu num sou mentirosa
Vou levá-lo ao cemitério.
Quando tu ver a sepultura
Tu vai me levar a sério

Saem dançando. Entra moça carregando lápide. Pisca para os homens do público.
CONTADOR
Bem de fronte da cova
Meu coração quase parou
Aquela que eu amo tanto
Quase junto me levou
Do susto, ao ver na lápide
O sorriso do meu amor.
Foi com ela que dancei
A prova é meu agasalho
Largado na catacumba
Ensopado de orvalho
Olhe, de hoje em diante
Eu num danço nem amarrado.
Ai que saudade.

O forró ganha a cena.

MOÇA
O forró do nordestino
Todo o Brasil conhece
Tem aqueles que falece
Mas é tão cabra da peste
Que volta pare rebolar
Um forrozinho agreste

27.DANÇA COM A MORTE


Cantador reaparece dançando com uma boneca da morte.
Saem rodopiando no salão, levantando poeira
Forró acelera.
Quando a poeira baixa, entra outro brincante.

28.BRINCADEIRA

Festa com o público.


Sequência de músicas e mergulhão até entrada da figura do morto-carregando-o-vivo.

29.MINERVINA E ANUNCIAÇÃO MORTE DE BEM-VINDA.

Minervina bate a porta com força, interrompendo a brincadeira.

MINERVINA
Dona Bem-vinda morreu!

30. RUA DO ENCANTAMENTO

Moradores/brincantes dirigem-se às suas casas espalhando a notícia. Rumor de casa em casa. Chamam
por Nelo.
31.BEM-VINDA & os velórios.

NELO
Outra que teve um confronte com o cafute foi Bem-vinda.
Dona Bem-vinda era uma mulher danada de indecisa.
Morava do lado de uma Igreja, vizinha dos santos.
Um dia, ela decidiu morrer, ou decidiram por ela... ao que parece.

Entram três carpideiras e põem-se rezar.


Uma das carpideiras acende a vela e arruma nas mãos da defunta.
Volta ao grupo e continua a cantoria.
De repente, a defunta espirra e apaga a vela.
Elas fazem de conta que não viram
Menos a primeira carpideira que pôs a vela.

CARPIDEIRA1 (baixo)
Ela espirrou.
CARPIDEIRA 2
De vez quando, eles faz isso.
CARPIDEIRA 3
É saudade rápida.

As duas continuam o canto.


A carpideira acende a vela de novo.
Volta ao grupo.
A defunta espirra de novo.

CARPIDEIRA1
Saúde

As outras duas a recriminam.

BEM-VINDA (levantando-se)
Obrigada, fia.(depois de pequena pausa)
Mas, olhe, eu sou alérgica a cravo.

As carpideiras aproximam-se assustadas.

CARPIDEIRA1
A senhora voltou?
BEM-VINDA
Menina, eu fui no inferno.
Vi tanto do sofrimento.
Gente imprensada em gente, um congestionamento danado.
Uma catinga da mulesta
Um povo feio e surrado
Um povo troncho mesmo.
E só encontrei que eu não queria,
Mas sabe que estava lá.
Lembra de Adamastorzinho?
Todo engarranchado com uma gorda fedorenta.
Sim, e até religioso eu vi
Padre Hans, Padre Giacomo, Padre Souza
Tudo com a batina flamejante.
E, de repente,
O demo.
Sangrando fogo
E mijando pedra
Dois metros de calor
Ele me pediu um beijo.
Foi se aproximando aquele macho em chamas
E eu sentindo um formigamento,
Uma coceira intensa, eu espirrei
E de repente acordei aqui.
CARPIDEIRA
Foi meu cravo que lhe trouxe de volta.
BEM-VINDA
Foi não.
É que não era ainda o dia.

NELO
O povo correu para casa de Dona Bem-vinda
Na intenção de aprender o inferno.
Ela já tinha se tornado uma assombração,
Uma morta-viva,
Uma viva-morta.
‘Olhe, lá vai a mulher que o diabo não quis.’
Todos curiosos em ver a velhinha que voltou do Inferno.
Tinha até gente querendo saber notícias dos familiares,
Crente que eles estavam junto do cafute.
Veio uma excursão de Tuparetama, de Petrolina, de Afogados da Ingazeira.
Mas quando chegaram, chegaram pro funeral
apois ela já tinha morrido de novo.
Chamaram o médico
E ele firme: ‘morreu’.
CARPIDEIRA1
Nem precisou desmontar o caixão.
Só troquei as flores.

NELO
As outras duas carpideiras pedem silêncio.
A carpideira 1 lança olhares duvidosos para o caixão.
Espera talvez outra recaída de Bem-vinda.
Desta vez, o velório estava lotado.
As mães mandavam os meninos checar a respiração,
Fazer cócegas, contar piada à beira do caixão
E nada
Apostas rolavam que talvez ela voltasse de novo.
O tempo passando, o receituário de reza se esgotando.
Decidiram fechar o caixão.
Tomaram o sentido do cemitério
Quando ouviram alguém bater na porta.
(Pausa)
Do caixão.

BEM-VINDA
Menina, abra que eu to morrendo sufocada.
NELO
Foi uma correria.
Restaram as duas: a carpideira e Bem-vinda.
CARPIDEIRA
Porque a senhora não desisti logo desse negócio de morrer.
Não tá vendo que eles não querem a senhora lá embaixo.
BEM-VINDA
Abra que eu lhe conto tudo.

Carpideira abre.
BEM-VINDA
Mulher, desta vez eu vi Jesus.
Eu vi Jesus, mulher.
Olhe, fui no Paraíso.
Me suspenderam
Era tanto do anjo e as peninha alvinha.
As pessoas tudo sorrindo e tudo com dente e tudo com roupa alinhada.
E eles me conheciam
Me chamando pelo nome:
‘Bem-vinda’ para cá, ‘Bem-vinda’ para lá
Eles me conheciam!
Mas eu num reconheci muita gente daqui por lá não.
Nem o falecido eu vi.
Foi quando veio o clarão
Era ele.
Eu quase toquei em Jesus.
Me arrepio toda só de falar.
Só podia de ser Jesus
Um homem garboso brilhando e sorrindo.
Parecia o sol em forma de gente.
Que homem lindo
Dois metros de luz
Pisquei a vista para ele.
Me deu um sufocamento tão grande
Faltou-me o ar
E de repente
Eu acordei aqui.
CARPIDEIRA 1
Ainda não era o dia.
BEM-VINDA
E apoi.

NELO
Agora, Bem-vinda virou uma assombração-celebridade.
Todos curiosos em ver a velhinha que voltou do Paraíso.
Tinha gente querendo saber notícias dos familiares,
Crente que eles estavam junto do Senhor.
“A velhinha que piscou para Jesus”.
Bom, pode ser difícil de crer,
Mas teve uma terceira vez.
Chamaram o médico, da capital desta vez
E ele firme: ‘morreu’.
As carpideiras cantavam uma oitava abaixo, incrédulas.
Só a carpideira 1 entoava alto e firme seu canto.
E as horas ficando gordas
E a espera!
A carpideira depositou cravos e nenhum espirro
Gente desaforada sacudia o corpo da mulher e nada.
Cerraram a porta e nenhuma batida
Levaram o esquife até o cemitério e alguns moradores gritavam seu nome
“Dona Bem-vinda, acorde.”
E nada.
Tiveram dúvida se enterravam ou não
Decidiram cantar de novo e repetiram o velório todinho no cemitério mesmo
Viraram o dia, revezaram as carpideiras
Menos a número 1.
Esta ficou firme.
O corpo com cheiro travoso,
enviezado das tripas gastas.
E levaram um susto,
Quando Bem-vinda soltou um gemido.
Mas foi só o fogo fátuo a vazar.
Talvez o adeus.
Desta terceira vez
Ela se foi.
Mas para onde?
Teria ela tido a graça de Jesus
Ou o beijo fogoso do cafute
ou estariam os dois a duelar por sua alma?
Nunca mais Dona Bem-vinda para esclarecer os mistérios.
Nunca mais o transporte, o correio
Nunca mais a epifania
A cidade ficou com cara de pergunta
E agora?
Uma expressão de ponto de interrogação
E agora?
E a carpideira sempre que pudia acorria ao cemitério a visitar o túmulo dela.
Baixava-se rente à lápide a sussurrar:
CARPIDEIRA 1
‘Bem-vinda, onde tu tá ?
Bem-vinda, e agora ?’

32.RUA DO ENCANTAMENTO

Ainda no black-ou , a rua sustenta um silêncio. Grilos e cigarras seguem. De repente, o assobio do
Ataulfo volta.

33.ENTREVISTADOR ENCONTRA ATAULFO

Entrevistador acende a luz, flagra Ataulfo abrindo porta da frente. Ataulfo volta dirige-lhe um sorriso.
Segue assobiando. Entrevistador vai atrás dele.
Grilos e cigarras diminuem aos poucos.

Ou
HAMLET ENCONTRA ESPECTRO

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