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Notas Sobre um

Escândalo
Nita Abrams
Inglaterra, 1914

Uma missão mais que secreta

Depois de um envolvimento romântico que


terminou em escândalo, Serena se refugia na casa de
campo de seus tios. A condessa de Bassington nunca
desistiu de encontrar um novo pretendente para a
sobrinha, e fica esperançosa quando o charmoso
Julien Clermont chega a Boulton Park, interessado
na famosa coleção de borboletas do conde. Julien
logo demonstra interesse também pela linda
hóspede, porém Serena vê o visitante com
desconfiança. Ele não tem o perfil de um
pesquisador naturalista, e além disso, seria
coincidência demais que documentos oficiais
importantes, confiados ao conde, tenham começado
a desaparecer justamente depois da chegada de
Julien...

Título Original: The Spy's


Kiss

Disponibilização: Marina
Digitalização: Marina
Revisão: Aline
Formatação: Edina

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Capítulo I
Julien Clermont seguia a cavalo para ir visitar o conde de Bassington, dois
dias após receber o convite.
Ao se aproximar do muro de pedra que protegia o parque de Bassington, ele
puxou as rédeas ao notar o portão enferrujado. Desmontou, abriu-o, tornou a montar
e guiou o cavalo bosque acima.
Ao pé da colina, um homem baixo e franzino, empunhando uma pistola, se
pôs no caminho. Julien tentou controlar o cavalo e se lembrar em qual dos bolsos
guardara a carta do conde.
Notou a mão trêmula que segurava a arma, os olhos muito azuis que
revelavam um misto de emoção e pavor. Era um garoto, percebeu. O pequeno
visconde, o filho de onze anos de lorde Bassington, sem dúvida.
— Parado! — rosnou o menino.
— A arma está carregada? — indagou Julien.
— Claro que sim!
— Deixe-me ver. Eu a devolvo, prometo. O garoto cedeu.
— Uma Manton. — Julien examinou a arma. Apontou a pistola para as
árvores e puxou o gatilho. O estrondo fez o cavalo relinchar e provocou uma
revoada de pássaros.
— Foi assim que percebeu que eu me aproximava? Por causa dos pássaros?
— O senhor disse que ia devolver a arma!
— Pronto. — Julien a estendeu na direção dele.
— Mas agora não está mais carregada!
— Eu não manteria minha palavra se estivesse. Do jeito que você tremia, essa
coisa podia disparar a qualquer momento e até matar meu cavalo.
Nesse momento, Julien ouviu vozes ao longe:
— Simon! Está aí? — alguém indagou.
— A culpa é sua! — resmungou o menino. — Eles jamais teriam me
encontrado se não houvesse disparado a arma!
— Quem são eles?
—Meu tutor, Royce, e Bates, o cavalariço. Ei!—exclamou, quando Julien
tornou a pegar a pistola. — Não vai ficar com ela, vai? É do meu pai!
No segundo seguinte, um velho cavalariço e um rapaz loiro aproximaram-se a
cavalo. Ao ver que a situação parecia sob controle, o rapaz saltou da montaria.
—Não tem consideração por sua mãe? Ela está em pânico! Estamos à sua
procura há mais de uma hora. A pobre quase morreu ao ouvir o tiro!
— Com licença, senhor... — Julien interferiu.
— Royce — completou o preceptor, tenso.
— Sr. Royce, seu pupilo me viu em dificuldades com a montaria e tentou me
ajudar. Eu cavalgava pela estrada, ao sul do parque, e vi um suspeito abrir o portão
da propriedade. Gritei, e ele tentou se esconder no bosque. Atirou em mim quando

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tentei segui-lo. Meu cavalo se assustou e, se o jovem não tivesse segurado as rédeas,
eu teria caído.
— Isso é verdade? — o rapaz virou-se para o garoto.
— Está me chamando de mentiroso? — O tom de Julien era incisivo.
— Quem é o senhor, afinal? — exigiu Royce, desconfiado. — Percebeu que
também invadiu a propriedade?
Com um suspiro, Julien buscou a carta no bolso da casaca.
— Sinto desapontá-lo, senhor, mas o conde me aguarda para que eu examine
a coleção de borboletas do pai dele. — Exibiu a mensagem selada com o escudo da
família. — Meu nome é Julien Clermont.
Fez-se um silêncio constrangido.
— É o senhor quem vai estudar a coleção? — O garoto foi o primeiro a
quebrá-lo, espantado. — Pensei que fosse outro velho corcunda.
— Simon! — repreendeu-o o tutor.
— Ora, eles são sempre assim — defendeu-se o menino.
— Só quero ver a cara de Serena quando souber que vai ser responsável pelo
senhor.
— Já chega! — Royce tomou o garoto pelo braço e virou-se para Julien: — De
fato, o conde o aguarda, sr. Clermont. Espero que perdoe a indiscrição do visconde.
Siga-me e eu o levarei até os estábulos — declarou enquanto ajeitava o menino sobre
o lombo do cavalo.
Ciente de que o cavalariço percebera o volume em um de seus bolsos, Julien
decidiu retirar a pistola e entregá-la a ele.
— Estava com o garoto. Aconselhe-o a mantê-la bem escondida.
— Bom seria se conseguisse. Não há trancas nesta casa que resistam a Simon.
— Por que ele não está na escola?
— É muito frágil fisicamente — explicou Royce.
Serena examinava uma jarra de óleo de coco, na destilaria, quando uma criada
se aproximou.
— Perdão, senhorita, sua tia mandou avisar que há um cavalheiro aqui para
olhar as borboletas. Quer que o acompanhe até a biblioteca e explique como estão
catalogadas.
— O sr. Royce não pode fazer isso?
— Está com Simon. A condessa pede que a senhorita o receba, pois ele vai
trabalhar com os espécimes que estão nos armários, e o sr. Royce não tem as chaves.
Serena tirou o avental com um suspiro.
— Que hora para ter de pajear mais um cientista!
— Sua tia disse para que não demore a trocar de roupa... — a criada a alertou,
enquanto a acompanhava pelo corredor.
— Por que eu iria trocar de roupa?
— Não sei. Só sei que ela está na sala de visitas com o cavalheiro.

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— Na sala de visitas? — estranhou Serena. Sua tia nunca dera tanta atenção a
um cientista a ponto de recebê-lo em sua sala predileta. — Lucy, o que está
acontecendo? Quem é esse cientista, afinal?
— Não sei, senhorita. Só sei que é jovem, elegante... e não parece ser casado.
— Ah! E aposto que está tão interessado nas borboletas quanto vocês.
A condessa de Bassington verificou os arranjos de flores frescas sobre as
mesas laterais ao sofá. Que sorte ter passado pela biblioteca quando Pritchett
conduzira o rapaz até lá. E que bom que havia notado o alfinete de rubi, o corte fino
da casaca e o anel de ouro, apesar das roupas encharcadas e das botas cheias de
lama!
A porta se abriu nesse instante e o conde entrou.
— Por que mandou me chamar? — ele indagou.
— Preciso de você! Bassington fez uma careta.
— Serena não pode ajudá-la?
A condessa examinou a casaca meio amassada e a mancha de tinta no punho
branco.
— Você estava trabalhando—concluiu, em tom de acusação.
— Às vezes isso é necessário, meu amor — ironizou lorde Bassington. —
Sobretudo em meio a uma guerra.
— Pensei que Royce se sairia melhor como seu secretário do que como tutor
de Simon.
— Royce é útil. Mas não posso confiar a ele essa tarefa especificamente.
— George! — a condessa chamou ao ver o marido dar-lhe as costas. — O
jovem que escreveu sobre as borboletas, o tal sr. Clermont, acabou de chegar. E está
usando um belo anel.
— Como assim, Clara? O que o anel do sujeito tem a ver com as borboletas?
Bem... o rapaz foi recomendado pelo jovem Derring; parece que estudaram juntos.
Volto daqui a pouco.
—Eu pedi a Tuckett que o acompanhasse até um dos quartos de hóspedes. O
pobre estava encharcado por causa da chuva. Já deve estar voltando, portanto vá se
ajeitar! Ah, querido, eu ia me esquecendo. Bates disse que alguém tentou entrar na
propriedade, o sr. Clermont procurou detê-lo e quase levou um tiro!
— E por que Bates não me disse nada?
— Porque você pediu a ele para não ser incomodado, ora! Desgostoso,
Bassington bateu em retirada.
— Bom dia. Mandou me chamar, tia Clara? — indagou Serena entrando na
sala.
— Sim, querida. Há uma pessoa que veio para avaliar a coleção de borboletas.
Eu gostaria que você o acompanhasse até a biblioteca.
—Não quer que eu troque de roupa? Estava na destilaria...
Um sinal de trégua, concluiu a condessa. Desde que a única filha da irmã
falecida viera morar com eles, havia oito anos, prometera a si mesma ter paciência

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com a garota, respeitar suas escolhas e refrear a vontade de aconselhá-la todo o
tempo.
— Não é necessário. O sr. Clermont deve trabalhar com as peças mais antigas
do conde e, provavelmente, elas estão em mísero estado.
A porta foi aberta para a entrada de um lacaio e do mordomo.
— O sr. Clermont, senhora — anunciou este último.
— Ah, sr. Clermont — saudou-o e estendeu a mão para ele beijar. — Vejo que
Tuckett o ajudou a ficar mais apresentável. — Buscou o anel de ouro furtivamente. A
marca mais clara no dedo anular era a prova de que não havia imaginado coisas. Por
que ele o tirara?
— Perdoe-me ter dado tanto trabalho, lady Bassington. Devia ter adiado
minha visita até que o tempo melhorasse.
—Bobagem. Nesta época do ano, no condado de Oxford, teria de esperar
semanas por uma manhã menos chuvosa. — Fez um sinal para que Serena se
aproximasse. — Sr. Clermont... minha sobrinha, srta. Allen.
Ele curvou-se em uma mesura, e a condessa sorriu, satisfeita, ao perceber o
brilho de admiração nos olhos escuros de Serena.
— E um prazer — Julien declarou. — Ouvi dizer que é a guardiã das coleções
do conde de Bassington, srta. Allen. Espero que não se importe em me assistir por
algumas horas. Assim que eu me ambientar, prometo não mais incomodá-la.
— E qual é seu interesse nas borboletas, sr. Clermont? — indagou ela.
— Na verdade, tenho mais interesse nas mariposas. Sobretudo nas descritas
por Hübner. Mas essas são asiáticas, e sua coleção, me parece, possui mais espécimes
africanos e provenientes da América do Sul.
Por que Serena parecia tão chocada?, perguntou-se lady Bassington. Alguém
bateu na porta.
— Perdoe-me a intromissão, condessa — Pritchett desculpou-se. —Mas o
conde encontra-se na companhia do sr. Googe e deseja falar com o sr. Clermont tão
logo for possível.
— O comissário está aqui?! — exclamou ela, perplexa. — Para quê? E o que o
sr. Clermont tem a ver com is... Ah! — Lembrou-se do incidente com o intruso. —
Deve ser sobre o tal homem que invadiu a propriedade. Sei que é desagradável, sr.
Clermont, mas é melhor que acompanhe o mordomo e minha sobrinha.
Serena estudou Julien Clermont, enquanto o chefe de polícia repassava suas
anotações sobre o que, supostamente, havia ocorrido pela manhã.
Estava curiosa. Tudo indicava que se tratava de mais um dos planos da tia
para arranjar-lhe um pretendente. O tal sr. Clermont não devia entender patavina de
borboletas. E se desejava cortejá-la, ela descobriria agora mesmo.
Seu círculo de admiradores, até agora, não incluíra homens bonitos como ele.
Normalmente, via-se às voltas com viúvos ricos, de meia-idade, dispostos a fazer
vista grossa quanto a seu dote mínimo e seu turbulento passado. O que o sr.
Clermont tinha em mente, afinal? Estaria tão bem de vida a ponto de não se importar
com nada disso?

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O olhar de Clermont a capturou e Serena recusou-se a virar o rosto. Ele sorriu,
depois tornou a se concentrar no que dizia o comissário.
— Gostaria que me confirmasse apenas mais alguns itens, sr. Clermont —
solicitou o policial. — O indivíduo suspeito usava uma casaca listrada, enveredou
pelo bosque e, em seguida, atirou contra a sua pessoa. Com que tipo de arma?
— Um rifle Blunderbuss, imagino.
Serena, que ouvira o tiro claramente pela janela da destilaria, franziu a testa.
— Blunderbuss — Googe tomou nota. Em seguida, virou-se para Bassington:
— Farei uma visita a Purvis e o filho. Os dois andaram reclamando do seu guarda,
que montou armadilhas do lado deles da cerca. Vai ver o confundiram com o sr.
Clermont e tentaram assustá-lo.
O conde assentiu, depois despediu-se de Googe, que saiu.
— Então, é colega do jovem Derring — Bassington dirigiu-se a Clermont, por
fim.
— Estudamos juntos, sim, senhor.
— Pretende visitá-lo, já que está aqui?
— Não, a menos que precise ficar mais do que planejei. Encontrei Philip em
Londres e ele me contou que a irmã, Maria, está para dar à luz.
— Ah, eu havia me esquecido disso.
Uma batida na porta desviou a atenção geral para a entrada de Pritchett.
—Com minhas desculpas, milorde—declarou o mordomo.
— O comissário Googe pede que o sr. Clermont venha confirmar o local do
disparo, uma vez que Bates não se recorda ao certo.
— Pritchett vai levá-lo à biblioteca, depois, sr. Clermont
— declarou Bassington, antes que Julien saísse acompanhado pelo mordomo.
— E, Serena, providencie as chaves dos armários, por favor. Pobre rapaz. Cansado
da viagem, alvo de um disparo, e agora obrigado a agüentar Googe. Está aqui há
mais de uma hora e ainda não viu sequer um espécime das borboletas.
Ela não replicou até ter certeza de que não havia mais nenhum criado na sala.
— Titio, sei muito bem que não esqueceu sobre Maria. Até foi se despedir da
sra. Derring na semana passada com tia Clara. E eu o ouvi dizer que era uma sorte o
bebê não nascer em meio àquelas nevascas do mês passado.
O conde fingiu remexer os papéis sobre a escrivaninha.
— Estava testando o sr. Clermont, não estava?
— Bobagem.
— E mais um pretendente meu, não é? Queria se certificar de que ele conhece,
mesmo, os Derring.
— Serena, eu não me arriscaria a receber nenhum jovem, não importa quão
bem relacionado, que viesse com a desculpa de estar interessado nas borboletas
apenas para cortejá-la.
— E se isso for idéia da tia Clara?
— Não creio. Ela apenas quis receber o convidado mais formalmente.

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— Imagino que eu também deva me preparar para um almoço mais formal, já
que a primeira parte do plano de titia não deu certo... Melhor eu trocar de roupa —
completou, aborrecida.
O conde sorriu, satisfeito.
— Sua tia ficará contente.
Para Serena, o interesse de seus tios no tal sr. Clermont era muito suspeito. E a
história mal contada por ele, mais ainda. Tinha certeza de que havia sido Simon
quem dera o tiro e não entendia o motivo de Clermont protegê-lo. A menos que
pretendesse ganhar as simpatias da família.
Ela moveu-se devagar ao longo do corredor, depois olhou ao redor e correu
para a estufa.
Não havia ninguém lá, notou, aliviada, assim não arriscaria ser apanhada
espionando o convidado dos tios por trás da laranjeira. Através da parede
envidraçada, tinha uma visão perfeita dos jardins e da porta que dava para a ala
oposta da mansão.
Alguns minutos mais tarde, duas figuras emergiram. O comissário Googe
tentava acompanhar as largas passadas de Clermont. Atrás deles, correndo em meio
à garoa fina, veio Pritchett, com um guarda-chuva.
Serena, então, dirigiu-se aos aposentos da governanta, em busca das chaves
dos armários, as quais, desde o último incidente com Simon, ficavam com a sra.
Fletcher, por questão de segurança, e só eram entregues a ela ou ao conde.
— Pensei que não viesse! — exclamou a mulher, tensa, e tirou o chaveiro do
cinto.
— O almoço já vai ser servido? — Serena perguntou.
— O banquete, quer dizer — ironizou a governanta. — Ande logo —
emendou.
— Volto já... —Assim que descobrir o que há na bolsa do sr. Clermont, Serena
completou para si mesma.
Entrou na biblioteca. Precisava saber por que ele estava pondo a casa em
polvorosa com sua presença.
Lucy tinha razão, entretanto. Tudo o que conseguiu espiar dentro do alforje
foi a parafernália científica de costume. O único objeto suspeito era um bloco de
anotações quase intacto, constatou. Normalmente, os estudiosos traziam extensas
anotações sobre os espécimes, a fim de compará-las com os itens da coleção de
Boulton Park.
Um papel dobrado ao meio chamou a atenção de Serena. Era uma aquarela.
Uma borboleta roxa, igual às duas que havia na coleção de Bassington.
— Pretendia desfazer minha mala? — O comentário irônico fez Serena dar um
pulo.
Girou o corpo, os olhos arregalados, e deparou com Julien Clermont a fitá-la.
Combateu o calor que lhe subiu à face e ensaiou um sorriso.
— Bonita aquarela... Foi o senhor quem fez?
— Não.

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— Tem mais delas no bloco?
—Eu bem que tento fazer os esboços, mas acabo desistindo e arranco as
folhas. — Julien tirou o caderno da bolsa e mostrou as rebarbas de papel no centro.
— Quem fez, então?
— Uma conhecida minha — ele respondeu. — Neta de Mendes da Costa.
— Mesmo? — Serena ficou impressionada. Da Costa fora um dos fundadores
dos Aurelianos e membro da Sociedade Real. — Pensei que sua esposa o ajudasse
com as pesquisas.
— Não sou casado, srta. Allen. Ela abriu um sorriso encantador.
—Também já escapei por um triz da condição—comentou. — Deve concordar
que não é fácil preservar a independência com parentes tão bem-intencionados...
Ao vê-lo sorrir, Serena prendeu o ar. Não se tratava de nenhum tolo. E era
muito, muito bonito.
— E quanto à senhorita? Tem real interesse pelas borboletas ou quer apenas
ajudar o conde?
— Sou uma amadora. — Ela fingiu escolher uma das chaves do molho,
apanhou os livros que colocara sobre a mesa e rumou para a porta da outra sala. —
Meu primo Simon também parece disposto a aprender tudo o que puder sobre be-
souros, porém os prefere vivos...
Sorrindo, Julien segurou a porta para Serena, que passou por ele rapidamente.
— Por falar em Simon, foi ele quem disparou a arma, não foi? — ela
perguntou. — Não me pareceu o tiro de um rifle.
Pela primeira vez desde o momento em que o conhecera, Clermont pareceu
desconcertado.
— Vai manter isso em segredo? — indagou ele, por fim.
— Eu sabia! — Serena suspirou, aborrecida.
— Não foi Simon. Fui eu quem fez o disparo.
— O senhor?
— Sim. Simon "pegou emprestada" uma das pistolas de seu tio. Consegui
tomá-la dele e resolvi descarregá-la antes que seu primo pudesse causar algum
acidente.
— Compreendo. E o que fez com a arma?
— Eu a entreguei a Bates. Como é esse tal de Purvis? — quis saber. — O
vizinho que o chefe de polícia mencionou?
Serena fez um muxoxo.
— Baixinho, gordo, cabelos escuros. Julien ergueu as sobrancelhas,
preocupado.
— Melhor eu acompanhar as investigações do sr. Googe. Afinal, descrevi o
"intruso" exatamente assim.
— Vou mantê-lo informado. Por quanto tempo vai ficar por aqui? — ela
indagou de modo casual, virando-se para os armários.
— Três ou quatro dias — respondeu Julien, distraído com a impressionante
coleção de insetos por detrás das portas envidraçadas.

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— Pronto. Todos os armários vão ficar destrancados, exceto estes dois. —
Serena caminhou para as portas próximas à janela. — Vou ter que fechá-los outra
vez antes do almoço.
— E a coleção Drury?
— Exatamente. — Serena apontou as plaquetas de cobre numeradas sobre as
portas. — Com exceção desta coleção, todas as outras estão registradas nestes livros,
por espécime ou data de aquisição. Infelizmente, a compilação Drury não tem
registro, pois o último conde adoeceu antes de fazê-lo.
— Não existe nenhuma anotação dele?
— Não sei, mas podemos checar. — Serena retornou ao ambiente da
biblioteca e tocou a sineta para chamar o mordomo.
Tão logo Pritchett lhe obedeceu e saiu em busca dos diários, Julien tornou a se
concentrar nela.
— Fico muito grato pela sua assistência, srta. Allen.
—Se precisar de algo, é só tocar a sineta. Receio que minha tia o aguarde para
um almoço formal.
Com uma delicada mesura, ela deixou a biblioteca.
Perto do final do dia, as incertezas de Serena só haviam se multiplicado. Se
Julien Clermont tinha algum interesse nela, sabia disfarçá-lo como ninguém. Quando
retornara com as chaves, quase duas horas após deixá-lo sozinho com as coleções,
havia-o encontrado absorvido pelos diários.
Tampouco tinha adulado o conde durante o almoço. Demonstrara modos
impecáveis à mesa e não havia se mostrado muito preocupado com política.
— Insetos são muito mais interessantes — ele dissera, sorrindo.
—Sobretudo os mortos—tinha comentado Charles Barrett, outro convidado
de última hora e amigo da família, provocando risos.
A condessa, por sua vez, continuou a considerar Clermont uma visita
extremamente importante, lembrou Serena, intrigada. Fizera-o sentar-se à sua
direita, o que, com a chegada de Charles, violava o protocolo. Também a obrigara a
sentar-se ao lado do tio, o que contrariava todas as suas suspeitas. Quando Clermont
recusara o convite para o jantar, lady Bassington tinha insistido para que ele viesse
na noite seguinte, o que o havia deixado sem saída.
Os esforços tinham sido todos de sua tia e não de Clermont, concluiu Serena,
confusa.
O mais curioso, contudo, foi o comportamento de Charles Barrett. Antes de
seguir para Londres, veio ao encontro dela na destilaria.
— Perdoe-me a interrupção, Serena. O que sabe sobre o sr. Clermont?
—Quase nada, sr. Barrett. Chegou hoje e está trabalhando na coleção Drury.
— Seu tio comentou que ele é amigo do jovem Philip Derring.
— Sim, parece conhecer bem a família.
—Acha mesmo que esse sr. Clermont está interessado nas borboletas?

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— Ele entende alguma coisa do assunto. — Como podia revelar suas
suspeitas? Ainda não tinha nenhuma prova de que Clermont desconhecia o
complexo mundo dos insetos.
— Ainda assim, há algo errado — Barrett disse.
— Tem razão. Mas acredito que minha tia o tenha convidado apenas para
apresentá-lo a mim.
—Eu não havia pensado nessa possibilidade. Mas se notar algo estranho,
melhor comunicar a seu tio. Eu mesmo vou investigar Clermont.
Serena havia concordado com Barrett, ensimesmada. Tinha sido um dia
estranho. Tanto que simulara uma dor de cabeça e não descera para o jantar.
Agora, estava sentada na cama, com um livro, ainda que não houvesse lido
mais do que umas poucas linhas. De repente, franziu o cenho. Se nenhum intruso
invadira a propriedade, como admitira Clermont, então, por que razão ele tinha
vindo pelos fundos?

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Capítulo II
Anoitecia quando Julien retornou à estalagem após deixar Boulton Park. A
tensão e a ansiedade haviam tomado conta dele, sobretudo depois de ter passado a
tarde tentando decifrar a caligrafia do antigo conde, enquanto fingia lidar com as
bandejas repletas de borboletas.
Uma vez dentro da hospedaria, foi saudado por Budge, o dono, que prometeu
enviar uma garrafa de vinho para o quarto.
No andar de cima, Vernon, seu velho criado, perguntou-lhe:
— Ele estava em casa?
— Estava. — Julien respondeu.
— E?
—Achou mesmo que eu ia me entregar assim, de repente? Não sou tão
imbecil. A sobrinha suspeitou de alguma coisa... — Recordou a figura esguia, os
cabelos castanho-avermelha-dos, os olhos cinzentos. — Ela é meio temperamental,
pelo visto. — E adorável, completou para si mesmo.
— Então, pretende continuar com as visitas.
— Já fui longe demais para desistir agora.
Julien partiu para Boulton Park pouco antes das nove, na manhã seguinte. A
viagem, com Tempestade, sua égua adquirida no dia anterior, foi muito difícil.
Enquanto ele estava ansioso para chegar à residência de Bassington, o animal tentou
jogá-lo contra um muro de pedra, parou de súbito várias vezes, querendo arremessá-
lo para fora da sela, e empinou diante de um porco-espinho.
Este último incidente foi testemunhado por Serena, que se encontrava sentada
do lado de fora da mansão.
— Bom dia, sr. Clermont — ela o saudou, mal ocultando seu divertimento. —
Não esperava vê-lo tão cedo. Muito menos montado em Tempestade.
— Já conhece minha amiga? — Julien apeou e conduziu a montaria até
próximo de Serena, que se levantou e acariciou o pescoço da égua.
— A maioria das pessoas por aqui conhece Tempestade. Nosso vizinho, sir
Reginald, a comprou há alguns anos. Quando se deu conta do temperamento dela,
tentou vendê-la, mas só mesmo uma baia próxima daqui concordou em ficar com
Tempestade. Costuma alugá-la apenas para cavaleiros jovens e rebeldes.
— Uma descrição na qual me encaixo perfeitamente — disse ele, rindo.
— O senhor a controlou muito bem.
O comentário o pegou de surpresa. Sabia ser bom cavaleiro, mas não esperava
pelo elogio.
— Eu diria mais — prosseguiu Serena. — Ajudou-me a dirimir uma dúvida.
— Que dúvida?
— Se o portão dos fundos havia sido trancado novamente. Meu tio ficou de
pedir a Bates que fizesse isso, mas, pelo visto, ele não teve tempo.

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Julien notou o desafio no olhar dela e amaldiçoou a decisão de haver tomado
o mesmo atalho do dia anterior. E tudo porque resolvera compensar o tempo
perdido com Tempestade.
— Ainda está destrancado — concordou, tranqüilo. — Por isso mesmo resolvi
cortar caminho. Espero que não se importem de eu ter tomado tal liberdade.
Serena esboçou um sorriso que não lhe ocultou as suspeitas.
—As moças bonitas de condado de Oxford costumam passear sozinhas? —
Julien arriscou, na esperança de que o galanteio fosse abalá-la de alguma forma; ou
ao menos distraí-la de seus pensamentos. — Se é assim, eu deveria ficar mais tempo
por aqui.
Serena não se constrangeu, tampouco pareceu satisfeita.
— Minha tia prefere que eu saia acompanhada. Mas como nem sempre há
criados disponíveis, ela não se importa que eu faça minhas caminhadas sem
companhia. Normalmente, costuma ser seguro por aqui.
Ele fingiu não notar o sarcasmo.
— Quer dizer que, se eu optar por este caminho amanhã, terei o prazer de
reencontrá-la.
— Amanhã o portão estará trancado — Serena lembrou, desarmando-o por
completo.
Julien encerrou o trabalho com os diários mais cedo naquele dia. Por mais que
a condessa insistisse que o jantar seria informal, sentiu-se na obrigação de retornar à
estalagem, tomar um banho e trocar de roupa. Aceitara, não sem constrangimento,
que a luxuosa carruagem da família fosse buscá-lo, e agora, às oito em ponto, seguia
Pritchett até o salão principal da mansão.
Respirou fundo e tratou de se concentrar nas apresentações. Conhecidos da
redondeza, em sua maioria, explicou lady Bassington. Os últimos dois convivas a
surgirem foram Serena e Royce, o secretário.
— Que bom que todos chegaram!—A condessa fez um sinal para o lacaio que,
imediatamente, abriu as portas da sala de jantar.— Sr. Clermont? — chamou, e ele
percebeu que fora escolhido para escoltá-la até a mesa. Lady Bassington parecia
convencida da condição social superior de Julien. Apresentara a maioria dos
convidados a ele em vez do contrário, fizera-o sentar-se do seu lado direito e lhe
oferecia todos os pratos em primeiro lugar. Tal fato não passou despercebido dos
outros, que não o pouparam de olhares enviesados durante a refeição. O que faria se
alguém se dirigisse a ele pelo título? Devia ignorar? Explicar a situação? Levara dois
meses para impedir que Vernon o utilizasse, e não tinha sido uma tarefa fácil.
Sentiu-se mais à vontade após o jantar, durante o breve intervalo em que os
homens se reuniram para degustar um vinho do Porto e cigarros. Na volta para a
sala de estar, entretanto, as mulheres pareciam mais alertas do que nunca. Aliviado,
notou que a condessa havia reservado um lugar para ele ao lado da sobrinha.
Melhor o gavião do que os urubus, pensou, e Julien rumou para o sofá.
— Está muito elegante esta noite, srta. Allen.

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— O senhor também. — Serena correu os olhos pelo traje dele, tão fino quanto
os dos outros homens.
— Posso? -— Julien pediu licença, porém não esperou pela resposta para
acomodar-se ao lado dela. — Como sua tia conseguiu reunir tanta gente em uma só
tarde?
Serena abriu um sorriso cínico.
— Disse que teria um convidado especial e deixou no ar o verdadeiro motivo
da sua visita. Aliás, qual o verdadeiro motivo da sua visita?
— Consultar os documentos do conde e examinar algumas das espécies que
ele comprou dos Drury — respondeu. — O que a faz pensar outra coisa?
Serena o fitou calmamente.
— Em primeiro lugar, não se comporta como um colecionador. Não há
nenhum esboço no seu caderno, só para citar um exemplo. E os diários que está
lendo são de 1780, uma década antes de o pai de meu tio começar a se corresponder
com Drury. Em segundo lugar, minha tia Clara tem se comportado de modo muito
estranho em relação ao senhor. Como se fosse um duque ou algo do gênero. Em
terceiro, não explicou muito bem o que fazia nos fundos da propriedade, quando
mentiu para proteger meu primo.
— E impressão minha ou está sugerindo que sou algum tipo de criminoso? —
contra-atacou, frio.
— Ainda não respondeu às minhas perguntas.
— Muito bem, vamos lá. — Julien elaborava uma réplica tão verdadeira
quanto lhe era possível. — Penso que já expliquei por que não há desenhos no meu
bloco. Em relação aos diários, consultei vários volumes diferentes, mas os últimos
retratavam algumas viagens de lorde Bassington que me pareceram interessantes.
Quanto ao tratamento que me é dispensado por sua tia Clara, confesso que não sei.
Ela deve ter superestimado alguns dos meus parentescos, apenas isso. E entrei pelos
fundos, ontem, porque notei que o portão estava aberto e pretendia chegar à mansão
antes que a chuva desabasse. — Respirou fundo. — Agora, permita que eu lhe faça
uma pergunta apenas: se apanhasse uma criança de onze anos em uma situação de
perigo, iria condená-la a uma punição muito severa?
Serena baixou os longos cílios.
— Provavelmente, não — concedeu. — Embora, se o senhor conhecesse
Simon melhor, talvez não o tivesse protegido dessa forma.
—A meu ver, esse menino deveria estar na escola—Julien sugeriu, sério.
— Deveria mesmo. Mas minha tia não pensa assim. E, para ser sincera, eu
também sentiria falta dele.
— De qualquer modo, não precisa se preocupar com os meus propósitos, srta.
Allen, já que amanhã será meu último dia em Boulton Park.
— Mesmo? — Serena o fitou, surpresa.
— Tenho outros compromissos em Londres.

14
— Não estarei em casa amanhã — revelou ela, algo desapontada. O anúncio
da partida dele, como Julien suspeitara, havia lhe diminuído as suspeitas. — Prometi
passar o dia com uma amiga.
Philip Derring estranhou ser parado por Charles Barrett do lado de fora do
clube. Os dois homens mal se conheciam. O pedido ansioso de Barrett para que ele o
acompanhasse em um drinque foi ainda mais inusitado, uma vez que católicos
normalmente não eram aceitos no White's.
— Acabei de conhecer um amigo seu em Boulton Park — explicou Charles,
assim que o atendente lhes trouxe o ponche. —Um jovem educado, chamado
Clermont... Gostaria que me falasse mais a respeito dele. Deu-me a impressão de
estar interessado na srta. Allen e, o senhor sabe, eu sempre tive muito apreço pela
moça, já que a conheço desde menina.
— Julien cortejando Serena? — O jovem Derring pareceu chocado por um
instante. — Ah, não. Agora, me lembro. Ele foi lá apenas para olhar as borboletas.
Até me pediu uma carta de recomendação há algumas semanas.
— Então, ele é mesmo cientista?
— Não, não. — Derring sorveu a bebida. — E mais um curioso, embora seja
tão culto e bem informado a respeito de certos assuntos que passaria tranqüilamente
por um especialista.
A resposta deixou Barrett ainda mais intranqüilo.
— Há quanto tempo o conhece?
—Há quinze anos ou mais. Estudamos juntos, depois passamos um ano
dividindo alojamentos na Itália. Quando retornamos, Julien teve um
desentendimento qualquer com a família e partiu para o Canadá, onde ficou por
algum tempo. Ele é meio naturalista. Inclusive, visitou mais alguém aqui, em
Londres, ligado àquele clube de caçadores de borboletas que o pai de Bassington
patrocinava...
— Os Aurelianos.
— Esse mesmo. — Deu outro gole. — Julien foi bem recebido em Boulton
Park? Fui eu quem lhe sugeriu ir até lá, quando soube do interesse dele pelos insetos.
— Lady Bassington, sem dúvida, se empenhou para isso. Derring sorriu.
— O homem é um terror com as mulheres.
— Por isso ficou tão preocupado quando comentei que Clermont me pareceu
interessado na srta. Allen? — lembrou Barrett. — E algum cafajeste, por acaso?
O sorriso de Derring desapareceu.
— Julien Clermont é um dos meus melhores amigos. Eu jamais poria sua
conduta em dúvida. Se me surpreendi, foi porque ele me jurou de pés juntos que
jamais se casará.
— Muitos dizem isso.
— Julien falou a sério. E tem seus motivos. Barrett tornou a encher a taça
devagar.
— Como assim?

15
— Não é filho legítimo — explicou Derring. — Os avós o receberam, mas o
tolo não se sente no direito de aceitar a posição que lhe conferiram, muito menos de
pleitear a mão de uma moça bem-nascida. A família que o criou é extremamente
tradicional. Talvez até demais para que Julien se interesse pela filha de um
comerciante.
— Verdade? — Barrett curvou-se para a frente, interessado.
— Sabe manter segredo? Julien me mata se souber que eu lhe disse algo.
— Tem minha palavra.
Derring entornou o líquido da taça de uma só vez.
— Ele foi criado na realeza.
Quando Julien retornou de sua cavalgada matinal, encontrou Vernon
arrumando as malas.
— Acertou as contas com o proprietário?
— Sim, senhor. E quanto à égua? Deu muito trabalho desta vez?
— Nada impossível de se lidar. Mas terá uma nova chance quando eu for até
Boulton Park após o café.
Vernon se afastou com mais uma mala, a qual foi empilhada junto às outras,
próximas da saída.
— Vou sair — Julien anunciou de repente. — A que horas chega a carruagem?
— Ao meio-dia — respondeu Vernon.
— Diga a Budge para pedir que não me esperem caso eu não consiga chegar a
tempo.
— Vai demorar muito? — quis saber o criado, aborrecido.
— Se lady Bassington me convidar para o almoço, prometo recusá-lo — ele o
tranqüilizou. — Mas se algo mais me atrasar, não me espere. Passo a noite em
Twyford.
Não havia lama, mas, em compensação, o solo estava congelado e
Tempestade seguiu derrapando para longe do vilarejo. Quando chegou ao portão de
ferro, Julien guiou a égua para lá. Devia estar destrancado, apesar do que dissera
Serena, pois ele concedera a Bates mais um pequeno agrado, a fim de que ele
demorasse algumas horas para consertar a tranca.
Conduziu a égua até a picada que subia em direção à casa e a açoitou de leve
nos flancos. O animal arrancou colina acima.
Faziam uma curva, bem debaixo de um barranco, quando aconteceu.
Tempestade relinchou, algo atingiu Julien no rosto e, no segundo seguinte, era
arremessado ao solo.
Foi Simon quem encontrou Julien durante um passeio na companhia de
seucocker spaniel. Em determinado momento, o cachorro desapareceu bosque
adentro e o obrigou a segui-lo. Foi então que o garoto deparou com Bandit abanando
o rabo ao lado de um corpo caído no meio da trilha.
— Sr. Clermont! — Simon exclamou com um misto de horror e entusiasmo. —
Serena! — saiu gritando em direção à casa. — Serena!

16
A uma certa altura, já próximo da mansão, o menino a viu erguer a cabeça.
Passou a agitar os braços e gritou a plenos pulmões:
— E o homem das borboletas! Acho que está ferido! Percebeu quando a prima
arregalou os olhos e disse algo, porém não esperou mais, temendo que Clermont
estivesse à beira da morte, correu de volta para o bosque.
Julien continuava imóvel, porém respirando. Simon ajoelhou-se e tentou
descobrir onde ele se ferira. Em vários lugares, pelo visto. Tinha um corte profundo
no rosto, como se tivesse sido atingido por um chicote, e um ferimento na lateral da
cabeça. Também havia sangue no colarinho. E ele estava de bruços, sobre o braço
esquerdo.
— Santo Deus... — Serena não demorou a surgir, quase sem fôlego.
— Ainda bem que chegou! Acha que ele está morrendo? Ela curvou-se sobre o
corpo inerte e tomou-lhe o pulso.
— Creio que não — arriscou, aflita. — Deve ter batido a cabeça e perdido os
sentidos. Precisamos dar um jeito de levá-lo para casa logo, as mãos dele estão
congeladas! Empreste-me seu casaco — ordenou, antes de cobrir os ombros de
Julien. — Simon, corra até o estábulo. Peça aos homens que tragam algo que sirva de
maca, vamos! O menino deu dois passos e parou.
— É Bates! Está vindo para cá!
Serena olhou colina acima. O lacaio se aproximava a cavalo, puxando outra
montaria.
— Tia Clara deve ter ficado preocupada com você e pediu que ele viesse à sua
procura.
Os dois gritaram e acenaram, até serem localizados pelo homem.
Mal chegou ao local do acidente, Bates saltou do cavalo.
— O que foi isso?
— Parece que Tempestade finalmente venceu a batalha contra o sr. Clermont
— declarou Serena, erguendo-se.
— Não foi Tempestade! — concluiu Simon, apontando em direção à curva.—
Olhem ali... Ele deve ter passado por aquele galho!
— Fratura ou torção no pulso, cortes, uma pancada na cabeça... — disse o
médico. — Ele está bem machucado, mas nada muito sério. Vai se recuperar logo.
Serena concordou em silêncio. Julien dormia, agora, depois da dose de
láudano ministrada pela sra. Digby, antes da chegada do médico. Mesmo sob o
efeito da droga, movia-se vez ou outra e estava extremamente pálido.
O dr. Wall afastou a flanela do camisolão emprestado por Pritchett e expôs o
torso ferido sem dar a mínima para o embaraço de Serena.
Antes de virar o rosto, porém, ela pôde avistar a corrente de ouro, de onde
pendia um anel.
— A senhorita o conhece? — indagou o médico e o cobriu outra vez, sem lhe
dar chance de ver a joia de perto.

17
— O sr. Clermont é amigo dos Derring. Veio analisar a coleção de meu tio. Tia
Clara deve conhecer bem a família dele. Não tem ideia de como ela ficou mortificada
quando o viu chegar nesse estado.
— Ele deve permanecer em repouso absoluto por três dias. E não pode
caminhar muito por uma semana.
Serena acompanhou o médico até a antessala.
—Ah, srta. Allen... — Ele entregou-lhe um papel dobrado. — Se ele tiver
febre, basta ministrar este pó misturado a um pouco de água morna ou chá. E mande
me chamar caso haja necessidade.
O mordomo se aproximou.
— Eu saio sozinho, não se preocupe. Estou acostumado com a casa. — E,
antes que pudessem dizer mais alguma coisa, o médico rumou para o vestíbulo.
— O sr. Bates retornou do vilarejo, srta. Allen. — O mordomo a informou. —
Parece que o criado do sr. Clermont partiu no final da manhã.
— Droga! — Serena deixou escapar, baixinho. Tinha esperanças de que o
lacaio pudesse cuidar de Clermont a maior parte do tempo. Agora, só mesmo ela e a
sra. Digby para dar conta do recado.
A notícia que George Piers, quinto conde Bassington, recebeu da esposa, tão
logo pisou em casa, de que seu convidado fora vítima de um acidente, o
surpreendeu, mas não o abalou.
Agora, entretanto, parecia prestes a ter um colapso nervoso. Seu secretário
particular tentava tranquilizá-lo, o que não era uma tarefa fácil.
— Talvez esteja equivocado, milorde. Olhei todos os papéis, nas duas mesas e
não encontrei nada. E também não há registro no meu caderno sobre essa carta.
— Claro que não há registro! — replicou o conde. — Era uma mensagem
particular, eu mesmo a guardei ontem! As instruções do ministro foram claras:
ninguém mais estava autorizado a ler essa carta, nem mesmo você!
Ao notar a expressão do rapaz, lorde Bassington soltou um suspiro.
— Talvez eu tenha me enganado e guardado a carta em outro lugar.
— Talvez devêssemos procurar nos aposentos de Simon antes de falarmos
com a sra. Fletcher — arriscou Royce.
— Farei isso eu mesmo — rosnou o conde.—E se descobrir que esse menino
mexeu nos meus papéis, vou lhe aplicar um bom corretivo, tenha ele saúde frágil ou
não! — Dirigiu-se à porta, mas estacou, voltando-se para o assistente.—Comentou
algo com o comissário Googe a respeito dessas cartas quando ele esteve aqui?
— Claro que não — respondeu Royce.
Serena entrou no quarto de Julien, no final daquela tarde, e fez a sra. Digby
descer para o jantar.
— Srta. Allen... — Julien a reconheceu por fim, após um instante de confusão.
— Olá.
— Onde estou? O que aconteceu?
— Não se lembra quando foi jogado para fora do cavalo? Encontramos o
senhor no alto da colina. Está em Boulton Park.

18
Ele atirou longe as cobertas e tentou colocar as pernas para fora da cama.
— Onde estão minhas roupas? — Cambaleou ao se pôr em pé e sentir uma
dor lancinante no tornozelo enfaixado. Percebeu as canelas deixadas à mostra pelo
camisolão de Pritchett, as bandagens no pulso, e apoiou-se em um dos espaldares
para não cair.
— Suas roupas estavam imundas de lama e precisamos removê-las—explicou
Serena, tentando não olhar na direção dele. — Precisa se deitar! O médico disse que
tem de ficar em repouso absoluto por três dias e não pode caminhar muito por, pelo
menos, uma semana. Mandamos uma mensagem para seu criado em Burford Arms,
mas parece que ouve algum mal-entendido.
— Uma semana?! — desesperou-se Julien. — Impossível!
Por favor, srta. Allen, preciso das minhas roupas. Posso mandar lavá-las na
estalagem. Que horas são?
—As ordens do dr. Wall foram muito claras, sr. Clermont. Não vai retornar à
hospedaria tão cedo. — Ao ver a frustração no rosto bonito, ela adotou um tom mais
suave. — Pense bem e coloque-se no lugar de meu tio. O senhor sofreu um acidente
dentro das terras dele. O conde se sente responsável pelo seu bem-estar.
Julien tornou a se deitar, resignado. ^
Serena o ajudou com as cobertas.
— Como se sente? Está com febre?
— Acho que não.
Sem pedir licença, ela tocou-lhe a fronte.
— Sinto desapontá-lo, mas está febril, sim. Não se preocupe. O dr. Wall
deixou um medicamento. — Serena serviu uma xícara de chá.
— Um dos criados da casa poderia ir até a estalagem e chamar meu lacaio. Ele
pode cuidar de mim muito bem e lhe poupar esse trabalho.
— Seu criado foi para a cidade, sr. Clermont. Por ordens suas, me parece.
Julien soltou um gemido de desânimo. Serena desenrolou o pequeno pacote
que lhe fora entregue pelo médico e o despejou na bebida quente.
— Pronto. Tome todo o chá com o remédio.
— Que remédio?
— Não é nenhum sedativo. Pelo cheiro, deve ser marroio-branco.
Ele engoliu a bebida com uma careta.
— Vamos mandar chamar seu criado, claro, se isso o faz se sentir mais à
vontade.
— Não precisará se dar o trabalho — ironizou Julien. — Quando Vernon se
der conta de que não fui ao encontro dele, em Londres, virá correndo, achando que
fui sequestrado, morto ou que me envolvi em alguma briga de cassino.
— Cassino? — Serena zombou. — No condado de Oxford? Julien sorriu de
volta.
—Em se tratando da minha pessoa, Vernon é sempre pessimista.
Julien passou as horas seguintes em mísero estado. Não bastassem suas
atribulações físicas, uma série de imagens lhe povoava a mente cada vez que

19
cochilava. Vernon em Londres, preocupado. Vernon tratando-o com aquela
deferência, que beirava a idolatria, na presença dos moradores de Boulton Park.
Depois os cuidados frios de Serena Allen. Lady Bassington de-bruçando-se sobre ele,
aflita, e agitando-se feito um pássaro assustado.
Na segunda noite passada na residência de lorde Bassington, sentia-se muito
melhor e conseguiu dormir profundamente.
Um forte barulho no meio da noite, entretanto, o despertou. Demorou a
perceber que viera da lareira. Quando acordou de vez, viu-se outra vez em um
estado deplorável: a dor de cabeça havia voltado; a dor no braço, agora, subia até o
ombro e ele sentia o estômago revirar. Tentou se sentar e não conseguiu. Quando
desabou de novo sobre o travesseiro, percebeu que os lençóis estavam encharcados.
Começou a tremer desçontroladamente.
Uma figura estranha surgiu do nada e tentou lhe tirar as cobertas. Julien as
tomou de volta, alegando frio. Sentiu as bandagens do pulso apertadas, a pele
inchada e quente. Arrancou-as com um só puxão e enfiou-se sob as cobertas tre-
mendo dos pés à cabeça.
Tocou o lençol sob o travesseiro e viu-se tomado por nova onda de ansiedade.
A pistola! Onde estaria a pistola?
Pediu por ela em voz alta e, em seguida, ouviu mais barulho: a porta se
abrindo, vozes alarmadas. Permaneceu imóvel dessa vez, sentindo a pulsação latejar
nos ouvidos.
Sua lucidez retornou aos poucos. A estranha era a sra. Digby, que tentara
ajudá-lo com as cobertas, e não tomá-las. As bandagens tinham sido colocadas para
manter a tala do pulso no lugar. A arma encontrava-se no alforje, junto àquela égua
infeliz, lembrou. Encontrava-se no condado de Oxford.
— Sra. Digby — chamou, envergonhado.
A velha enfermeira veio correndo.
— Peço que me desculpe... Acho que tive um pesadelo. Ela correu os olhos
pelas cobertas úmidas, pelo rosto abatido e sorriu, complacente.
— O que teve, meu filho, foi um pico de febre.
Julien ouviu passos apressados atrás da porta ainda fechada. Pouco depois,
Serena surgiu, descalça. Usava cami-so}a e um penhoar desamarrado, vestido às
pressas. Os cabelos pendiam-lhe, soltos, quase até a cintura.
Ao vê-lo sentado na cama, corou no mesmo instante. Devia estar com raiva,
imaginou Julien, ou morta de vergonha. Ele podia até estar delirando, mas o fato era
que nunca na vida tinha visto mulher mais bonita. A camisola semitransparen-te
cobria-lhe o corpo esguio tal qual as vestes de uma estátua grega. A luz das velas, o
rosto perfeito e de pele aveludada parecia uma pintura.
— Fique quietinho — ordenou a sra. Digby, enquanto lhe reatava as
bandagens em torno do pulso.
Mas nem precisaria ter feito tal pedido. Julien estava hipnotizado.
— Ele já está melhor, srta. Allen — ouviu a enfermeira dizer. — Perdoe-me ter
mandado chamá-la no meio da noite, mas o sr. Clermont me deu um belo susto!

20
Serena fechou o penhoar, caminhou até a cama e examinou as cobertas,
tentando ignorar o par de olhos ainda fixos nela.
— Temos de trocar estes lençóis — falou. Depois deixou o quarto e trocou
algumas palavras com alguém do lado de fora.—Emily disse ter ouvido um estrondo
— Serena comentou na volta, acompanhada pela jovem criada.
— Foi na lareira — informou Julien, feliz por não ter sido uma alucinação. —
Parecia uma porta.
— Aquele pestinha — concluiu a sra. Digby. — Aposto que... — Interrompeu-
se diante do olhar de Serena. Em seguida, deixou o quarto resmungando algo
ininteligível, certamente dirigido a Simon.
A cama de Julien foi trocada em minutos e uma bacia com água morna
colocada na mesa de apoio. Serena esperou que Julien tomasse mais uma dose do
remédio do dr. Wall e, aliviada, percebeu que o médico devia ter ministrado alguma
coisa diferente dessa vez, pois o paciente adormeceu em seguida.
Apenas várias horas depois, com a claridade, Julien conseguiu abrir os olhos.
Os primeiros raios de sol banhavam o quarto, e Serena olhava pela janela. Virou-se
ao ouvir o ruído das cobertas.
— Durma mais um pouco — ela sugeriu.
— Tenho alternativa? — rebateu Julien, com mais agressividade do que
Serena merecia. Em seguida, suspirou, arrependido. — Desculpe.
Ela abriu um sorriso.

21
Capítulo III
Bassington rumou para o corredor que levava aos aposentos de Clermont e
encontrou a sobrinha sentada no vestíbulo em frente ao quarto. Estava com olheiras
e bordava uma toalha de linho com gestos lentos.
— A sra. Digby me contou que o rapaz está melhor, é verdade? — indagou,
preocupado. — Gostaria de conversar com ele por alguns minutos.
— Na verdade, o sr. Clermont delirou de febre esta madrugada. — Abriu a
porta e fez um sinal para que o tio se aproximasse.
Julien encontrava-se recostado nos travesseiros, sorvendo uma bebida quente.
Ao avistar o conde, deixou de lado a caneca e passou a se desculpar pelo incômodo.
— Eu é quem deveria me desculpar, Clermont — disse Bassington. — Sinto-
me mortificado em saber que um convidado meu sofreu um acidente nas minhas
terras. Já mandei cortar o galho que o feriu. E, por favor, fique à vontade em Boulton
Park.
— Obrigado, mas...
— Já basta de conversa — interveio Serena, autoritária. Julien observou,
divertido, ela acompanhar o conde até a saída e fechar a porta do vestíbulo.
— Titio, eu...
— Passou a noite toda acordada? — ele a interrompeu.
— Eu e a sra. Digby nos revezamos — Serena explicou, surpresa com o tom
ríspido de Bassington.
— Eu quero que alguma criada lhe faça companhia, para que não fique a sós
com o rapaz.
— Pelo amor de Deus, titio! O pobre mal podia se sentar! E esta noite não virei
mais do que duas vezes. Ele parece muito melhor, agora.
— Ainda assim — prosseguiu Bassington —, peça à sra. Fletcher que dispense
uma das criadas de suas funções, amanhã, para que ela passe a noite em vigília.
Bem, você ia me perguntar alguma coisa?
— Sim. Queria saber se é normal os homens dormirem com pistolas debaixo
do travesseiro.
— Claro que não. Mas por que a pergunta?
— Porque, aparentemente, o sr. Clermont faz isso. Foi o que deu a entender
durante a febre.
— Estranho. Philip me contou que ele morou no Canadá por vários anos.
Talvez tenha adquirido o hábito por lá... Vá descansar agora, minha filha.
— Tenho boas notícias — anunciou Serena ao visitar seu paciente mais tarde.
— Vai me libertar do cárcere? — Clermont gracejou.
— Ainda não.
— E Tempestade... apareceu? — ele perguntou pela décima vez em dois dias.

22
— Acertou desta vez. E suas coisas já estão aqui. — Serena fez sinal para o
lacaio que aguardava à porta. — Obrigada, Hubert—agradeceu ao vê-lo depositar o
alforje na mesa de apoio.
Ao perceber que ela se aproximava da bolsa, Clermont pareceu alarmado:
— Não precisa se incomodar, meu lacaio pode arrumar minhas coisas depois.
— Ah, por falar nisso — Serena se voltou com um sorriso —, seu criado estará
aqui pela manhã com sua bagagem. Imagino como vai ficar feliz em ter suas roupas
de volta... além disto. — Retirou a pistola do alforje e a exibiu.
Ela entregou-lhe a pequena arma prateada.
— Fiz papel de idiota ontem à noite, não fiz? A pobre sra. Digby deve ter
ficado apavorada.
Serena o observou checar a pistola e guardá-la junto ao colchão.
— Está com medo de alguma coisa? Julien ensaiou um sorriso.
— Por que estaria? Foi só um acidente.
— Não foi só um acidente. Podia ter morrido. Estive pensando... Acha que eu
devia contar a meu tio sobre aquela história do tiro da semana passada?
— Sim e não. Acho, realmente, que ele deveria saber a verdade. Mas não
penso que a senhorita seja a pessoa certa para fazer isso.
— Quem, então? O senhor?
— Claro que não.
— Então, quem? Royce suspeita do que aconteceu, mas não creio que vá
levantar a hipótese.
— Simon.
Serena sentou-se na cadeira próxima à cama.
— Essa solução nem sequer me ocorreu — admitiu, pen-sativa.
— Ele não é confiável?
— Não é isso. Pelo menos não no sentido que diz. Simon inventa histórias,
finge passar mal, remexe armários, apronta mil coisas... Mas, na minha opinião, é o
modo que tem de gastar energia.
— Devia estar na escola, isso sim — opinou Julien.
— Minha tia acha que ele tem a saúde frágil.
— E quanto a seu tio?
— Delega a tia Clara todos os poderes referentes à casa.
— E o dr. Wall? Serena abriu um sorriso.
— O doutor é meu cúmplice nessa empreitada de tornar Simon um menino
normal aos olhos da família. Mas não vai ser fácil.
— Por falar no dr. Wall — o rosto de Julien se iluminou de repente —, ele me
prometeu que, quando Vernon voltasse, me autorizaria a retornar à estalagem.
— Verdade? — Serena o fitou. — Que bom.
— Sua tia está insistindo para que eu fique. Como convidado, não como
paciente. Mas eu posso recusar o convite se a senhorita não me quiser mais aqui.
Serena umedeceu os lábios, tensa.

23
— Pensei que estava ansioso por partir. Há poucos minutos me perguntou se
eu iria libertá-lo do "cárcere".
— Há uma grande diferença entre ficar confinado em um quarto, tomando
caldos e chás amargos, e permanecer em Boulton Park como convidado de honra do
conde e da condessa de Bassington.
— Ainda terá de repousar por muitos dias e continuar a dieta.
Julien gemeu.
— O que eu não daria por um bom pedaço de pão fresco ou de queijo. Ou
então uma maçã, um cacho de uva... — Os olhos dele brilhavam. — Há uva aqui?
—Não tenho certeza.—Serena sorriu.—Se eu a conseguir para o senhor... vai
ficar?
— Por quê? Quer que eu fique?
Ela não soube responder. Até porque não tinha certeza de poder encontrar
uva naquela época do ano.
— Acho que podia ser uma boa companhia para Simon — reencontrou a voz,
por fim.
— Se ele não me apontar mais nenhuma arma — Julien brincou. — E se não
bagunçar minhas coisas.
— Tem muitas coisas de valor?
— Tenho, sim, srta. Allen. Por acaso está interessada no meu poder
aquisitivo?
Serena desviou o olhar, mortificada. Dessa vez ele tinha ido longe demais.
— Não quero que se aproveite da hospitalidade de minha tia, só isso — ela
rebateu, na defensiva. — Tia Clara é bastante ingênua. Possui um coração de ouro...
e eu devo muito a ela.
— Srta. Allen, olhe para mim.
Serena obedeceu, e os olhos castanhos mantiveram os dela cativos.
— Não vim até aqui para extorquir sua família. Não vim para roubar-lhes as
joias, tampouco para cortejá-la. Acredite ou não, estou aqui para analisar as viagens
e as pesquisas do antigo conde de Bassington. — Julien esboçou um sorriso ao vê-la
corar. — Apesar de que um flerte discreto não seria má idéia nas circunstâncias.
Serena o fulminou com o olhar.
— Não estou interessada em nenhum flerte discreto.
— Eu imaginei. Discrição não é o seu forte.
— Quer saber? Eu preferia quando estava delirando! — informou, sem
delicadeza, antes de erguer-se de um salto e rumar para a porta. Parou sob o batente
para encará-lo mais uma vez. — Fique se quiser!
A porta do quarto de Julien encontrava-se recostada, após a saída da sra.
Digby, e, em algum lugar, ele ouviu um relógio bater meia-noite.
Com um sorriso, pensou em aproveitar a vida sem Vernon. De alguma forma,
era uma bênção não estar às voltas com a bajulação do velho criado. Até mesmo a
hostilidade contida da srta. Allen era um alento.

24
Mais um pouco e uma de suas enfermeiras particulares viria vê-lo. Qual seria
melhor nas circunstâncias? A gentil e insossa sra. Digby ou a curvilínea e mal-
humorada srta. Allen?
Um ruído, tal qual uma porta se fechando, o fez aguçar os ouvidos. O tempo
passou, entretanto, e tudo o que Julien conseguiu escutar foram mais batidas secas
atrás da chaminé.
Foi então que ouviu outro barulho, dessa vez seguido por um estranho odor
de lã molhada. Silêncio. Depois, passos.
Julien abriu os olhos, agora acostumados à escuridão, e percebeu o
movimento do outro lado do quarto. Deslizou a mão para debaixo do travesseiro e
empunhou a pistola.
— Parado aí! — Armou o gatilho. — Não se mova ou eu atiro!
Uma exclamação abafada se fez ouvir próxima à janela.
— Visconde de Ogbourne? — Julien baixou a arma. — Pode acender a vela à
sua direita, por favor?
Um segundo depois, a claridade revelava o rosto assustado de Simon.
— Não vai contar a ninguém, vai? — o garoto indagou, ansioso. — Eu não
queria incomodá-lo. Só pretendia subir sem ser visto.
—Então, o barulho que escutei na chaminé, na outra noite, também era você?
— Era. Não sei abrir a tranca muito bem e forço demais. A porta sempre se
abre de repente e bate contra a parede. Uma droga.
— Que tranca?
— A da porta de ferro, na parede da chaminé. A maior parte das chaminés
desta casa tem uma portinhola assim. Dá para sair por elas, entrar em um espaço
entre a chaminé e a parede externa e subir para o andar superior.
— Por que não usa as escadas como todo mundo?
— Para a sra. Digby não me apanhar.
—Mas por onde anda quando está fora do quarto?—Julien bateu na cama
para que ele se sentasse a seu lado. Agora, sabia de onde vinha o cheiro de lã
molhada. As roupas de Simon estavam encharcadas.
— Lá fora. Eu odeio ficar deitado quando não estou com sono. Por isso
descobri esse jeito de sair do quarto quando estou com vontade de dar uma
caminhada.
— Caminhada? A meia-noite? Em pleno inverno?
— Andar faz bem para a saúde.
— Devia estar na escola, garoto.
— Minha mãe disse que a escola não seria boa para mim. Contou que há
dezenas de alunos em um só dormitório, não há comida especial para quem tem
saúde delicada, e a gente precisa fazer tudo o que eles mandam.
— Pode ser que as escolas sejam rígidas hoje em dia — admitiu Julien —, mas
o resto é bobagem.
Simon digeriu a informação por um instante. Depois desviou os olhos para a
pistola de prata sobre a cama.

25
— Não é uma arma muito boa — comentou, com escárnio, e a apanhou sem
pedir permissão.
— Errado — replicou Julien, e tomou a arma das mãos do garoto.—Matei um
urso com ela, no Canadá, há alguns anos.
Simon o fitou, impressionado.
— Devia voltar para o seu quarto agora. — Julien o empurrou de leve. —
Deixo você atirar com ela assim que sua prima permitir que eu saia daqui.
— E pensar que eu jurava que o senhor seria uma boa influência para ele. — A
voz veio da porta.
Os dois congelaram feito estátuas. Serena cruzou os braços diante do peito.
Simon deslizou para trás da mesa, na defensiva.
— Por onde andou? — ela exigiu do primo. — Sorte sua eu ter escutado a voz
do sr. Clermont e adivinhado que você estava aqui. A sra. Digby está desesperada
atrás de você! — Franziu a testa ao avistar a fuligem e os pedaços de folha grudados
nas botinas. — Esteve no bosque secreto?
Simon fez que sim com a cabeça.
— Pois então tire já essas roupas molhadas e se enrole aqui! — Serena
entregou-lhe o xale que usava. — Vou distraí-la e pegar sua camisola. Deixe as
roupas aqui mesmo, depois eu cuido delas. — Virou-se para Julien e o fulminou com
o olhar. — Quanto ao senhor, devia estar descansando, e não entretendo pirralhos
com armas!—Julien abriu a boca para se defender, mas, antes de fazê-lo, ela havia
dado meia-volta e batido em retirada.
Simon livrou-se da casaca, das botinas e das meias molhadas.
— Onde é o bosque secreto? — Julien indagou, intrigado.
— Depois de um túnel que sai do celeiro. Dá direto para o meio do bosque.
Todo mundo reclama só porque tenho de me arrastar por um trecho estreito e fico
sujo de lama.
No segundo seguinte, Serena retornou com a camisola do garoto.
— Depressa! — Ela o empurrou, aflita. — A sra. Digby já está na cozinha.
Pode ir pelo sótão para cortar caminho.
Simon obedeceu de imediato, mas parou à porta.
— Falava sério, senhor, a respeito da arma?
— Claro que sim.
Sorrindo de orelha a orelha, o menino desapareceu. —Acabou de
recompensá-lo por ter aprontado mais uma — ralhou Serena, enquanto juntava o
monte de roupas molhadas. —E a senhorita o protegeu, como sempre—volveu
Julien. Ela soltou um suspiro.
—Tem razão. E ainda não sugeri a Simon que conte a meu tio sobre o tiro no
bosque. — Para surpresa dele, sentou-se na beirada da cama com as roupas sujas
embrulhadas sobre o colo. — Receio que isso requeira mais coragem do que tenho na
verdade.
Deixá-la prosseguir com o desabafo foi uma tentação para Julien. Talvez
pudesse obter mais alguma informação sobre Bassington. Mas tentação maior foi

26
observar Serena à luz bruxuleante da vela, a trança avermelhada pendendo sobre
um ombro, os olhos cinzentos sombreados por longos cílios, cintilando na
penumbra.
Incapaz de resistir, tocou-a nas mãos.
Serena o fitou, assustada, porém não fez menção de se afastar.
Ele ousou ainda mais. Levou a mão dela aos lábios e depositou um beijo na
palma macia, depois outro na pele sensível do pulso. Atento, percebeu que, apesar
de ofegante, nem por um segundo Serena resistiu à carícia. Fitou-a e aproximou o
rosto, ao mesmo tempo em que passava o braço pela cintura delgada e a puxava
gentilmente para si.
Controlou a respiração ao pousar o olhar nos lábios cheios.
Por um instante, Serena continuou paralisada. Até que pulou da cama e voou
porta afora.
Charles Barrett examinava a correspondência sobre a mesa do café, e sua
esposa bebericava uma caneca de chocolate quente.
Barrett terminou de ler a carta do conde de Bassington: as negociações com o
czar continuavam; e haviam tido um incidente com Julien Clermont.
Na carta anterior, Bassington garantira que seu visitante partiria no dia
seguinte, o que o deixara aliviado. Afinal, não haviam conseguido muitas
informações sobre o tal rapaz. Entretanto, o homem continuava lá, dentro da casa!
Barrett praguejou baixinho e tocou a sineta.
— Pois não, senhor. — Um lacaio apareceu à frente dele.
— Crosswell ainda está aqui?
— Sim, senhor. Peço a ele que venha vê-lo?
— Agora mesmo. — O rapaz bateu em retirada e Barrett lançou um olhar de
desculpas à mulher. — Importa-se, querida? Gostaria de terminar meu café na sua
companhia, mas o assunto é extremamente entediante.
— Claro que não — volveu a sra. Barrett, já acostumada aos assuntos
confidenciais da profissão do marido. — Já terminei meu desjejum há tempos. Bom
dia, Crosswell.
—Bom dia, senhora.—O jovem secretário fez uma mesura ao entrar e segurou
a porta para ela, cortês.
— E de Bassington — Barrett entregou-lhe a carta. — Lembra-se do tal
Clermont? Aquele que mandei você investigar e depois desisti? Termine a
investigação. Parece que houve um acidente, e agora o rapaz está hospedado em
Boulton Park, paparicado pela condessa e pela srta. Allen. Isso não está me
cheirando bem.
— Na verdade, eu não interrompi as investigações — revelou Crosswell. —
Fiquei curioso. Como conhecia uma pessoa que estudou com os Derring, fiz algumas
perguntas. Clermont não é inglês. E francês.
— Francês?!

27
— Meu amigo o conhece, senhor. Havia muitos alunos imigrantes em Old
Hall depois da Revolução. Durante o Terror, na França, as escolas católicas foram
fechadas por um bom tempo, como deve saber.
— Está querendo me dizer que há um francês em Boulton Park neste exato
momento? Um francês que fala inglês perfeitamente e não contou a ninguém suas
origens?
— Sim.
— Maldição! — explodiu Barrett, esmurrando a mesa. Tocou a sineta e, uma
vez diante do lacaio, ordenou que encontrassem Philip Derring em algum lugar
próximo a Mount Street. — É urgente!
— E se não conseguirem localizar Derring? — indagou Crosswell.
—Chamaremos os soldados da cavalaria — decidiu Barrett.
O breve descanso que Julien teve de Vernon terminou às dez e meia do quarto
dia em Boulton Park. Uma batida familiar soou na porta e o valete marchou quarto
adentro, seguido por dois outros lacaios, os quais ele fez depositar um enorme baú
próximo ao armário.
— O que é isso? — perguntou Julien.
— Tomei a liberdade de comprar-lhe um baú maior. Vernon parecia ter
trazido tudo o que havia no armário.
— Trouxe todas as minhas camisas?
— Não tenho certeza de quanto tempo pretende ficar.
—E quanto a esses livros? Boulton Park deve ter a melhor biblioteca da
Inglaterra!
— Convalescentes apreciam variedade.
— Não sou nenhum inválido!
— Não foi o que a srta. Allen me disse — rebateu Vernon. — Ela, inclusive,
me fez assegurar que seguirei todas as instruções médicas.
Julien devia ter imaginado que aqueles dois fariam um belo par. Recostou a
cabeça no travesseiro e observou o criado desfazer o baú e ajeitar tudo no armário.
Ao ver as duas escovas sobre o aparador, Julien enrijeceu. Eram as únicas coisas,
além do anel, que possuíam o monograma de sua família.
— Tire isso daqui já! — ordenou, áspero.
— Mas, senhor, não temos outras escovas.
— Então cuide para que fiquem fora da vista.
— Sim, senhor. Quer dizer, então, que ainda não teve chance de discutir suas
preocupações com lorde Bassington?
— Não são o tipo de coisa que se pode discutir deitado na cama e com
bandagens suficientes para se parecer com uma múmia. Achei melhor esperar um
pouco.
Serena espiou dentro do quarto com cuidado, depois de ter batido várias
vezes na porta sem obter resposta. Pensou que fosse encontrar seu paciente deitado e
dormindo. Por um segundo, imaginou que adentrara o cômodo errado. Flores fres-

28
cas tinham sido colocadas sobre o consolo da lareira e sobre a mesa de apoio. As
poltronas foram posicionadas próximas à cama, e o fogo ardia sem esfumaçar.
As bandagens tinham sido reajustadas, os cabelos aparados, a barba feita. Em
vez do camisolão grosseiro de Pritchett, Clermont usava um fino traje de dormir, de
seda pura. E estava sentado à pequena mesa com Simon, ambos tão concentrados em
uma engenhoca de madeira e metal que nem sequer notaram a presença dela.
Serena notou também o candelabro, o pequeno espelho oval, os livros
empilhados em uma das prateleiras. Um dos volumes encontrava-se aberto sobre a
cama e ela se aproximou, curiosa. Era um dos diários do quarto conde.
Caracas, 15 de julho. A temperatura continua amena, quase quente, porém o
capitão está impaciente para partir antes da tempestade. George e Charles também
anseiam voltar para casa, uma vez que nenhum dos dois tem idade para uma
empreitada científica destas. Charles provou ser um viajante pouco entusiasmado.
George, porém, parece satisfeito em ter conhecido o Novo Mundo e já se dispôs a me
acompanhar, no próximo ano, à Rússia...
Serena olhou a capa do livro: 1783. George era seu tio, e Charles, o primo dele.
Ambos com cerca de vinte anos na época.
Talvez o antigo conde houvesse se arrependido de estimular o filho a fazer
aquelas viagens. Tio George passara mais tempo fora do país do que em casa, após
aquela expedição ao Caribe. Por várias vezes tinha sido dado como morto, apenas
para ressurgir nos momentos em que o primo dele, Charles Piers, já começava a se
preparar para assumir seu título.
Passados alguns anos, George havia se casado com Clara, a filha de um
amigo, com quem tivera Simon, e decidira finalmente estabelecer-se para explorar os
diversos e valiosos contatos que agora possuía ao redor do mundo como consultor
não-oficial do governo.
Um ruído estridente, do outro lado do aposento, a fez voltar-se na direção dos
dois, que continuavam entretidos com o estranho aparelho.
— Posso perguntar o que é isso? — Serena indagou, e ambos se viraram,
surpresos.
— Olhe, Serena! — Simon pulou de excitação. — E uma máquina de fazer
lentes! Dá para cortar o vidro, e o sr. Clermont vai me ajudar a fazer um telescópio!
Ela observou o aparelho, intrigada.
— Eu não sabia que também entendia de lentes.
— Não sou nenhum especialista — disse Clermont, sorrindo. — Meu avô me
ensinou e eu aproveito meu pouco talento para estudar os espécimes.
— Ele era inventor?
Por um segundo, Julien pareceu alarmado. Em seguida, sorriu e negou com
um gesto de cabeça.
— Talvez um pouco excêntrico, só isso. Melhor parar de girar o disco, Simon,
ou vai cortar demais desse lado — aconselhou ele, atento.
—Mas eu queria terminar hoje! Tenho outras lições daqui a pouco. Posso vir
depois da aula, então?

29
— Simon!
— Claro que pode. — Julien ignorou o protesto de Serena. — Mas só se falar
com seu pai. Foi esse o trato.
O menino torceu os lábios, porém deixou o quarto sem mais reclamações.
— Que trato foi esse? — perguntou Serena, preocupada. Pactos com Simon
não costumavam ser uma boa idéia.
— Eu disse a seu primo que se ele contar ao pai sobre o tiro da semana
passada, vou ensiná-lo a construir um telescópio.
— Mas isso não tem cabimento! O senhor tem suas coisas para fazer e...
— Srta. Allen, não posso fazer muita coisa enquanto estiver confinado a esta
cama. E a companhia de Simon é uma ótima distração.
— Acha, mesmo, que ele vai confessar tudo a meu tio?
— Acho. Simon me deu sua palavra. Está genuinamente entusiasmado com o
telescópio.
— Quer apostar? — desafiou Serena, algo enciumada com a ascendência de
Julien sobre o primo.
— Com certeza! Um guinéu contra uma galinha que ele estará aqui à esta
hora, amanhã mesmo.
— Quer que eu aposte uma galinha? — ela zombou, incrédula.
— Assada, claro. Com molho. — Os olhos dele cintilaram. — E cogumelos.
Adoro cogumelos.
— Feito — disse Serena, estendendo a mão, que Julien apertou prontamente.
— O dr. Wall já o havia liberado da dieta a partir de amanhã — emendou, triunfante.
Ele comprimiu os lábios, fingindo-se injustiçado.
— Está bem. Mas se Simon falar com o pai hoje, vou querer a galinha para o
jantar. E o jantar tem de ser de gala.
— Acho mais provável que fique um guinéu mais pobre.
Às sete e meia da noite, Serena chegou ao aposento com um lindo vestido
verde esmeralda, e com a sra. Digby como dama de companhia.
Vernon provara ser mais do que eficiente. Clermont também se encontrava
formalmente vestido, e a pequena mesa redonda fora posta para dois com as
melhores louças, pratarias e cristais da casa. A sra. Digby, contente por participar do
evento, providenciara uma bandeja de chá e a deixara próxima à lareira. Usava seu
melhor traje dominical, embora a roupa escura a fizesse lembrar um corvo
encarapitado na cadeira, a um canto.
— Quer dizer que venci a aposta — ironizou Julien, tão logo a viu entrar.
— Pois é. Dez minutos depois que Simon deixou o quarto. Ele se levantou e
ofereceu-lhe a cadeira.
— O conde ficou muito zangado?
— Não devia estar em pé — lembrou Serena, embora Clermont lhe parecesse
saudável e mais bonito do que nunca. Incomodada, tratou de dar continuidade ao
outro assunto num tom mais baixo, para que a conversa não chegasse aos ouvidos
da enfermeira: — Meu tio ficou mais satisfeito do que aborrecido, já que Simon

30
"tomou a iniciativa" de confessar. Porém o puniu mesmo assim. Até bateu nele com a
vara algumas vezes. Minha tia ficou horrorizada...
Dois lacaios surgiram trazendo a galinha, um prato de cogumelos e uma jarra
com vinho. Assim que saíram e Vernon passou a servir o jantar, Julien retomou o
tema.
—Viu Simon depois que... — Parou quando o valete ergueu a tampa de prata
que cobria o prato. Havia apenas uma galinha.
— Qual pedaço prefere, srta. Allen? — indagou Vernon.
— Mas só há uma galinha — protestou Julien, tentando disfarçar a decepção
na voz.
E pequena, ainda por cima, Serena completou em pensamento, divertida. A
menor que ela encontrara.
—Como foi o senhor o responsável por minha tia dispensar o jantar e por meu
tio se trancar no escritório, achei justo esse tamanho — declarou, séria.
Ele lançou mais um olhar decepcionado para o prato, porém nada disse
enquanto observava Vernon servi-lo com a ave e uns poucos cogumelos. Até provar
do vinho... e engasgar.
— O que aconteceu com o vinho do conde?!
— Pus um pouco de água — Serena informou.—Para não ficar muito forte
para o senhor —justificou, em seu tom de enfermeira mais preocupado. — Prefere o
chá?
Julien pareceu ainda mais enjoado do que ao provar a bebida. Então seus
olhos se estreitaram para fitá-la.
— Fez de propósito — concluiu.
Serena ainda tentou disfarçar o sorriso, mas não conseguiu. Por um segundo,
ele continuou a encará-la, atônito, até que um sorriso curvou seus lábios.
— O que eu fiz para merecer isso, srta. Allen?
Ela riu, por fim, sentindo-se estranhamente de bem com a vida.

31
Capítulo IV

A casa foi reformada há dez anos — explicou Serena. — Agora, duas alas se
estendem para os jardins, ao fundo. Esta, por exemplo, é ocupada inteiramente pelo
conservatório.
Julien assentiu e seguiu ao longo das laranjeiras. Apesar da dor de cabeça que
ainda o acometia cada vez que se levantava, era maravilhoso estar em pé e fora do
quarto onde ficara confinado por quase quatro dias. O fato de Serena ter se oferecido
para acompanhá-lo por um passeio pela mansão fora uma agradável surpresa.
— As plantas mais raras ficam em uma estufa especial, adaptada para
espécies tropicais. Se o dr. Wall o deixar sair amanhã, eu o levarei até lá.
— Seria muita gentileza:— agradeceu Julien, preocupado. Não havia
pesquisado muito as plantas. Tomara não despertasse ainda mais suspeitas nela.
Talvez devesse passar o resto daquela tarde na biblioteca refrescando a memória
sobre as preferências do antigo conde. Afinal, alguém que professava interesse por
borboletas teria ao menos algum conhecimento sobre as plantas que as alimentavam.
—A outra ala — Serena apontou o lado oposto da mansão — abriga a
biblioteca e mais coleções no andar superior, além do escritório de meu tio e das
salas de visitas do andar de baixo. As duas alas são interligadas, neste nível, por uma
série de corredores em frente à casa e por esta galeria, nos fundos.
Julien a seguiu pelo cômodo largo e observou as janelas altas e as paredes
forradas de retratos.
— Ancestrais? — quis saber.
— Sim. Mas não meus... de Simon. Eu sou do lado da família de tia Clara.
Venha aqui. — Serena apontou o retrato de uma criança.
— Simon?
— Isso mesmo. Agora, veja este. — Mostrou um outro, onde duas mulheres
encontravam-se sentadas no gramado, cercadas por árvores. Os cabelos elaborados e
saias amplas sugeriam uma data do século anterior. Havia também dois meninos ao
lado delas.
— Quem são? — indagou Julien.
— Meu tio e o primo dele.
Julien enrijeceu e olhou o retrato outra vez. Os olhos escuros do garoto mais
alto pareceram sorrir de volta para ele, zombeteiros, o rosto familiar emoldurado por
cabelos quase brancos de tão loiros.
Incomodado, obrigou-se a desviar o olhar.
— E quanto ao cientista, o quarto conde?
— Aqui.
O homem não era exatamente bonito. Após um momento, Julien percebeu
que sua aparente feiura podia não ser verdadeira: o nariz assimétrico, por exemplo,
parecia ter sido quebrado.

32
Voltou-se para Serena.
— O conde tinha gosto por lutas? Ela riu, divertida.
— Dizem que era um tanto insensato quando jovem. Já ouvi muitas histórias
sobre esse nariz. Todas envolvendo incursões noturnas aos aposentos de mulheres
casadas.
— Então Simon herdou o espírito aventureiro do avô — concluiu Julien,
rindo.
— Verdade. Uma juventude transviada parece ser a especialidade dos Piers —
concordou Serena. — Parece difícil de acreditar, mas meu tio também não era
nenhum santo quando moço. Pior ainda era o primo dele. Dizem que as aventuras
de Charles muitas vezes obrigavam a família a deixar o país. Ele morreu no
continente europeu, há pouco tempo. Um verdadeiro mistério. Uma série de diários
desapareceu, inclusive.
— Pois eu sei onde eles estão! — a voz abafada de Simon soou por detrás da
parede.
Serena e Julien entreolharam-se, surpresos. No instante seguinte, a almofada
de uma das paredes de madeira se abriu para a passagem do menino.
— Simon! — exclamou Serena, indignada. — Que coisa feia ficar ouvindo a
conversa dos outros! Ainda mais desse jeito!
—Eu não espionei vocês. Só estava passando pelo corredor externo e ouvi
você comentar sobre os diários de tio Charles. E não me venha com sermões, Serena,
você mesmo usa essas passagens!
— Não como você — ela retorquiu, tensa. — E pelo estado das suas roupas,
não usou só as passagens secretas, mas também as chaminés!
— E daí? — ele deu de ombros.
— Deixe-me adivinhar: simulou uma dor de cabeça para não ter de fazer as
aulas do dia. Portanto devia estar na cama, debaixo das cobertas, não aqui.
— Nada disso. Royce não pôde me dar aulas hoje porque chegou um cientista
para estudar as borboletas. Um de verdade.
Julien abriu a boca para protestar, porém Serena o fez por ele.
— Simon! Como pode ser tão malcriado? Estava nos espionando, sim! E agora
nos interrompe e ainda insulta o nosso convidado!
O menino corou.
— Você sabe tão bem quanto eu que ele não entende nada de borboletas.
— Por que pensa assim? — quis saber Julien.
— Primeiro, porque se veste muito bem e tem uma bela arma. Além disso, foi
um dos poucos que conseguiram montar Tempestade.
— E o que há de mais nisso? — Julien riu.
Simon torceu os lábios num sorriso cínico.
—Venham comigo. Vou lhes mostrar uma coisa. — Correu para o final da
galeria e abriu uma porta. — Silêncio! — pediu, enquanto eles passavam. — Ele está
lá no fim, na outra sala. Podem vê-lo daqui se forem devagarinho.

33
A galeria levava a uma pequena saleta que, por sua vez, conduzia até um
cômodo mais amplo, depois de uma porta dupla. No lado oposto, Julien avistou um
senhor em pé, aparentemente distraído com uma gravura na parede adjacente à
porta do escritório de Bassington. Carregava uma maleta de couro surrada, e os
bolsos da velha casaca estavam cheios. Naquele momento, a porta do escritório se
abriu e Royce se fez presente para acompanhar o visitante. Estavam muito distantes
para ouvir quando o homem se apresentou, mas perceberam a tensão do velho ao
acompanhar o secretário do conde.
— Esse sim é um cientista de verdade — declarou Simon.
Julien percebeu quando Serena lançou um olhar significativo na direção do
escritório do tio, e depois na dele. Serena não era nenhuma tola. Sabia que a última
pessoa que Julien queria encontrar em Boulton Park era um verdadeiro especialista
em borboletas.
Bassington estava com os cotovelos plantados sobre a escrivaninha, surpreso
com o homem sentado do outro lado da mesa.
— Estranho — começou, aborrecido. — Barrett não me disse nada a respeito
na semana passada.
— Porque não era tão urgente. — Meyer estudou seu anfitrião. — Vossa
Excelência ainda não estava às voltas com o aborrecimento de um convidado ter
sofrido um acidente dentro da sua propriedade.
Bassington recostou-se na cadeira. Então era isso. O homem diante dele fora
enviado apenas para verificar as credenciais de Julien Clermont, nada mais.
— Não quero ofender o senhor, mas se eu soubesse que Barrett pretendia
envolver mais gente nisso tudo, eu não teria aceitado sua ajuda. E ainda estou
inclinado a recusá-la, apesar das circunstâncias em que, de fato, me encontro, e dos
seus esforços para vir até aqui. Não creio que a sua presença vá ser de grande valia.
Ao contrário. Como poderia ajudar na questão?
— Seu pai recebeu Manuel Mendes da Costa neste mesmo escritório, creio eu
— observou o outro. — E o nome Meyer não é assim tão desconhecido nos círculos
de zoologia. Um dos meus primos publicou uma monografia acerca das enguias
bálticas. Em latim.
— Desculpe-me, mas isso nada tem a ver com o nosso propósito — rosnou o
conde.
Meyer curvou-se sobre a mesa para falar em voz baixa: —Está me dizendo,
em resumo, que não sei nada a respeito da missão da Comissão Especial, do seu
atual dilema ou, em última instância, das borboletas. — Fulminou o conde com o
olhar. — Sinto dizer, milorde, mas não tenho intenção nenhuma de partir. Se insistir,
imagino que, mais cedo ou mais tarde, será obrigado a abrir mão de seu posto como
presidente da comissão.
Um silêncio pesado se fez na saleta, enquanto o sangue subia às faces de
Bassington.
— Isso é chantagem! — explodiu ele, furioso.

34
— Isso é a guerra — corrigiu Meyer. — Pediu para presidir a comissão,
Bassington, pois acredita no plano de Castlereagh para uma aliança em separado
com os russos. Quer se justificar perante o ministro, não é? Como pode, se está sob
investigação por tráfico de documentos depois do desaparecimento de vários deles?
Ainda mais agora, que abriga em sua própria casa um exilado francês, o qual pode
muito bem ser um espião.
— Que exilado francês? Meyer suspirou.
— Julien Clermont. Bassington deixou cair o queixo.
— Ele é francês?
— Não apenas francês, o que já seria suspeito por si só, mas também alguém
que fala inglês fluentemente, sem nenhum sotaque. E que não chegou a revelar a
própria nacionalidade.
O conde tentou se recordar se Philip Derring a mencionara em sua carta de
apresentação. Provavelmente não, ou ele teria notado.
— O sr. Clermont é um velho amigo do filho de nosso vizinho e veio para
Boulton Park muito bem recomendado — rebateu, tenso.
— Vai arriscar o sucesso das negociações acreditando que a presença dele
nada tem a ver com os últimos acontecimentos? O memorando desaparecido, por
exemplo...
Bassington pensou em interrompê-lo, mas não o fez.
— O tal intruso no bosque, o acidente... — prosseguiu Meyer:—Charles ficou
preocupado com o tal Clermont e veio até mim. Eu lhe garanto, milorde, não está
mais ansioso para se ver livre de mim do que eu para deixar esta casa. Apesar disso,
já me hospedei nas redondezas.
Bassington limpou a garganta, pouco à vontade.
— Talvez seja melhor que se hospede aqui.
— No momento, creio que seja mais conveniente eu ficar onde estou —
respondeu Meyer. — Mas agradeço seu gentil convite — concluiu, em um tom bem
diferente do que usara até então.
Só nesse momento, o conde se deu conta de que havia um lacaio parado à
porta. O rapaz curvou-se, pedindo licença.
— Milorde, lady Bassington o aguarda na saleta.
— Sim, sim — lembrou-se, aborrecido. — Acompanhe o sr. Meyer até a saída,
Hubert. — Virou-se para o falso cientista: — Espero o senhor amanhã, às dez horas.
Podemos explorar a mansão e as redondezas. Compreendo que esteja ansioso para
se concentrar nas coleções de meu pai, mas há várias coisas dele espalhadas pela
casa que também podem despertar sua curiosidade. Não há de querer nos visitar
apenas para estudar insetos...
Um sorriso cínico brincou nos lábios de Meyer.
— Com certeza. — Fez uma mesura e seguiu o criado. Tão logo a porta se
fechou, o conde praguejou baixinho.
Em seguida, colocou a carta de White sob o mata-borrão, à vista de qualquer
um. Assim, na certa, em poucas horas, toda a casa saberia da visita do sr. Meyer, o

35
que lhe pouparia explicações. Clara aceitaria o cientista sem delongas. Simon
dificilmente teria interesse em mais um cientista. E a perspicaz Serena estaria
ocupada demais com seu suposto paciente para reparar na estranha presença do
homem. Tornou a suspirar. Não sabia com o que se preocupar mais: com a
possibilidade de Clermont não ser, de fato, um naturalista amigo dos Derring, ou
com a hipótese de que o acidente sofrido pelo jovem, na verdade, tivesse sido
forjado.
Uma leve batida na porta, no final daquela tarde, fez Serena soltar um
gemido. Antes que pudesse responder ou sair da poltrona próxima à lareira, onde
lia, Simon colocou a cabeça para dentro do quarto. Em seguida, entrou, sem esperar
por licença, e passou a chave na porta.
— Está sozinha?—Voltou-se para ela, os olhos brilhando.
— Parece que sim...
—Serena, você não vai acreditar! Eu queria ter lhe contado antes, mas Royce
me obrigou a subir e terminar uma lição. Eu estava errado! O homem que vimos lá
embaixo não é cientista coisa nenhuma!
— O que é então? — Serena franziu a testa.
— Algum detetive, policial, sei lá! — declarou o menino, teatral.—Enviado de
Londres para investigar o sr. Clermont! Acha que devo avisá-lo? Imagine! Passar-se
por cientista para investigar alguém? O tal sr. Meyer, acho, nem é velho e curvado
como parecia. Quando ficou zangado com meu pai, endireitou o corpo e até mudou
de voz.
Serena se ajeitou melhor na poltrona, intrigada.
— Por que ele investigaria o sr. Clermont?
— Parece que sir Charles acha que ele é um espião! Só sei que Clermont é
francês mesmo, isso eu ouvi bem. Sir Charles e meu pai estão escrevendo para os
russos, e Clermont pode estar aqui para impedi-los de fazer isso. Sir Charles está
preocupado porque Clermont fala inglês fluente e nunca disse de onde era.
— Escute aqui, seu monstrinho. — Serena se ergueu e levou as mãos à cintura.
—Estava escondido debaixo da mesa de seu pai outra vez, não estava?
— Ninguém me viu! — defendeu-se Simon. — E eu não estava debaixo da
mesa, mas atrás da lareira. E você ainda não respondeu à minha pergunta: conto ao
sr. Clermont o que ouvi?
Ela tornou a se sentar, pasmada.
— Antes não houvesse contado a mim o que ouviu!
— Mas, Serena, Clermont não sabe que está sendo espionado!
— Clermont também pode ser espião, se é que você ouviu bem! — lembrou
ela, tensa. Na verdade, as notícias de Simon eram a confirmação de todas as suas
suspeitas.
— Não é, não! — retorquiu o menino, aparentemente tão decepcionado
quanto Serena. — Eu sei que não.
— Tem certeza? Pensei ter ouvido você jurar que o tal sr. Meyer é cientista.

36
— É diferente. — Simon fez um muxoxo. — Nunca falei com esse homem,
mas já conversei muito com o sr. Clermont.
— Então, por que ele não nos contou que é francês?
—Você lhe perguntou a nacionalidade?—volveu o garoto, com sua lógica
infantil.
Serena disfarçou e olhou o relógio de parede.
— Preciso me aprontar para o jantar. Jure que não vai contar isso a ninguém,
sobretudo ao sr. Clermont, até eu descobrir alguma coisa.
Simon pareceu hesitar por um instante, e ela o tocou no ombro.
— Escute aqui, isto é muito sério. Precisa prometer!
— Está bem, eu prometo.
Serena tocou a sineta. Algo lhe dizia que aquela seria uma longa noite.
Clermont era esperado para jantar com os outros, pela primeira vez desde o
acidente, e ela não sabia como poderia agir naturalmente depois do que Simon lhe
contara. Se conseguisse se sair bem no jantar, ainda tinha a missão de convencer o
primo a guardar o segredo mais tentador que ele já descobrira até então.
E, acima de tudo, começava a desconfiar de que o primo não era a única
pessoa tentada a avisar Julien Clermont.
Meyer ouviu a porta se abrir atrás dele, mas nem sequer se deu ao trabalho de
virar-se.
— Alguém o viu? — indagou, em espanhol.
— No, senor — respondeu o homem moreno, livrando-se da casaca ensopada.
Sentou-se do outro lado da mesa e passou a mexer nas botinas cobertas de lama.
— Descobriu alguma coisa sobre o francês?
— Pelo que ouvi dos criados, o homem parece ter conquistado a casa toda, até
mesmo as criadas. Os anfitriões estão chocados com o acidente que ele sofreu. O
menino jura que Clermont pode cavalgar qualquer coisa que ande sobre quatro
patas. Parece que dominou a égua mais arisca da redondeza em questão de horas.
— Há quanto tempo está aqui?
— Uma semana, pelo menos.
— Então estava em Boulton Park quando desapareceu o primeiro memorando
— refletiu Meyer.
— Clermont também demonstra ter um especial interesse na sobrinha de
Bassington, a tal srta. Allen.
— Mais um motivo para crermos que ele está interessado em tudo, em
Boulton Park... menos em borboletas.
— Não acredito que estou fazendo isso! — murmurou Serena enquanto se
movia pela casa às escuras.
O jantar fora um pesadelo. Cada sílaba pronunciada por Clermont fizera soar
um alarme dentro dela. Aquilo era sotaque francês?
Os quinze minutos que passara na saleta, aguardando o retorno dos homens,
tinham parecido uma eternidade. Seu tio estava confrontando Clermont? Aquela

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história não poderia terminar em violência? Haveria soldados já a caminho, vindos
da guarnição de Wallingford?
Quando o conde e seu convidado reapareceram, conversando amigavelmente,
Serena estava tão tensa que se pôs em pé de um salto, atraindo os olhares.
Assim que todos se recolheram para seus aposentos, ela partiu em busca de
Simon, determinada a fazê-lo repetir cada palavra da conversa que ouvira. Mas,
como de costume, o primo já havia engabelado a sra. Digby. Pouco antes, a
enfermeira comunicara à condessa que o menino não se sentia muito bem e tinha
decidido se deitar mais cedo. A mesma velha conversa, pensou Serena, notando a
porta trancada do quarto do primo.
Bateu de leve, mas não obteve resposta.
Foi nesse momento que ela decidiu enfrentar Clermont. Diria estar atrás de
Simon, resolveu, no caminho, o que não era mentira.
E foi justamente com o garoto que deparou ao espiar pela porta entreaberta
do quarto de Clermont. De costas para ela, Simon conversava em voz baixa com
Julien, o qual escutava tudo com extrema atenção e um leve franzido na testa.
— Simon!
O menino girou o corpo, assustado.
— Você prometeu — Serena lembrou, tensa, desejando sentir-se ultrajada em
vez de aliviada.
—Eu não contei nada—defendeu-se ele.—Eu só estava...
— Contou o quê? — Clermont sentou-se na cama.
Com uma pontada no estômago, Serena viu que ele não estava vestido. Nem
mesmo com o camisolão de seda, que jazia ao pé da cama. As cobertas tinham
escorregado até a cintura estreita, deixando à mostra o dorso moreno e impres-
sionantemente musculoso para quem se dizia cientista. Constrangida, ela fitou o
chão.
— Perdoe-me por não poder me levantar — Clermont se desculpou. —
Importa-se de apanhar meu robe sobre a cadeira, Simon?
Serena não ousou erguer a cabeça novamente, até que o percebeu em pé.
— Quem vai presidir a reunião? — indagou Julien, cínico.
— Serena — decidiu Simon, de pronto.
— Só vim até aqui atrás dele — ela explicou, tensa. — Simon não voltará a
incomodá-lo, eu prometo.
—Ele não me incomodou em nada, eu nem estava dormindo.
Serena notou a vela acesa sobre a mesa de apoio e o livro aberto. A penumbra,
porém, não permitiu que identificasse o título.
— Fabricius no Hábitat das Mariposas Tropicais — recitou Clermont,
perspicaz. — Da biblioteca de seu tio... Simon veio até aqui se desculpar.
— Desculpar pelo quê? — Serena virou-se para o primo, ressabiada.
— Por ter me comparado ao senhor que seu tio recebeu no escritório esta
tarde.

38
— É verdade — confirmou o garoto. — E já disse que ele entende de
borboletas tanto quanto o sr. Meyer—completou, olhando bem nos olhos de
Clermont.
Serena sentiu o peito se apertar. Subestimara a capacidade do primo. Simon
havia cumprido a promessa, todavia, só mesmo se Clermont fosse um completo
imbecil não entenderia a mensagem contida naquele olhar. A frase, dita daquela
maneira, devia ser suficiente para colocá-lo em alerta.
— O que prometeu não me contar? — Clermont voltou-se para o garoto.
Simon arregalou os olhos.
— Que... que sabemos que o senhor é francês.
— Não sabiam que eu sou francês? Philip não informou seu pai na carta?
Serena observou o rosto dele, atenta. Clermont parecia genuinamente
surpreso. Talvez não fosse nenhum espião, afinal.
— Não! — indignou-se Simon. — O senhor não tem nenhum sotaque.
— Porque moro na Inglaterra desde os seis anos. Fugi da França quando
começaram a decapitar todo mundo. Mas por que isso é tão importante?
— Porque Serena odeia os franceses. Ela fechou os olhos, querendo sumir.
— Simon! — exclamou com toda a autoridade que conseguiu reunir nas
circunstâncias.
Foi Clermont quem rompeu o pesado silêncio que se instalou:
— Sua prima não gosta de mim, sendo eu francês ou não. —Lançou um olhar
melancólico na direção dela.—Um ponto negativo a mais ou a menos não deve fazer
diferença.
Serena caminhou até a porta.
— Boa noite, cavalheiros — despediu-se, seca.
— Por que ela não gosta dos franceses, Simon? — indagou Julien.
— Não posso contar. Ao menos não agora.
— Simon... E se eu quiser conversar com alguém a respeito da srta. Allen?
Não sua mãe, mas outra pessoa que a conheça bem?
— A sra. Digby, que adora uma fofoca. Bem, eu preciso ir.
— Simon! — Clermont tornou a chamá-lo antes que ele desaparecesse porta
afora, e o menino se voltou. — Obrigado por ter vindo se desculpar.
— De nada. Aliás, está enganado quanto a Serena. Ela gosta muito do
senhor...
Julien digeriu a informação, pensativo. Assim que o garoto deixou o quarto,
livrou-se do robe, enfiou-se sob as cobertas e retomou a leitura que havia
interrompido. Não de Fabri-cius, como alegara anteriormente, mas do diário que
havia escondido em meio às antigas páginas do livro, e que continha a informação
mais preciosa que pudera encontrar desde que pusera os pés em Boulton Park. Algo
que, para os demais, não devia significar muita coisa, mas que, para ele, era o
verdadeiro motivo de ter vindo até ali.

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Serena retornava de sua caminhada matinal de péssimo humor. Seguiu colina
abaixo e rumou para o portão de ferro pelo qual Clermont dissera ter entrado na
propriedade. Às escondidas, na certa.
Uma outra pessoa também devia ter suspeitado disso, concluiu ao avistar a
carruagem do tal Meyer abandonada no meio da estrada, lá embaixo, enquanto o
próprio examinava a tranca do portão. Serena recuou de imediato para detrás de
uma árvore.
— Droga! — praguejou e tornou a subir a colina.
A visão da estufa a irritou ainda mais. Tinha planejado levar Clermont até lá
quando ele estivesse bom. Ela entendia muito mais de plantas do que de insetos e
fazê-lo excursionar pelo lugar era uma chance de investigá-lo.
Nos últimos dois dias, entretanto, já quase tivera a certeza de ele ser um
impostor. Primeiro aquele conhecimento todo acerca de lentes de aumento. Serena
conhecia bem aquele olhar de satisfação de alguém que venerava a própria profis-
são. Como os Aurelianos quando vinham ver as borboletas. Na biblioteca, Clermont
se mostrara cortês, interessado, bem informado; mas não de todo absorvido, como
com aquela geringonça. Decididamente, não eram as borboletas que ele buscava em
Boulton Park.
Tão logo vestiu roupas secas e deixou o quarto, foi informada que o sr. Meyer
a aguardava e que, com a ausência de Royce, ela mesma deveria orientá-lo na sala
das coleções.
— Mas... e quanto ao sr. Clermont?—perguntou ao lacaio, preocupada.
— Também usará a biblioteca, senhorita. Já foi apresentado ao sr. Meyer.
Meyer se mostrou cortês, atento e muito mais convincente como especialista
do que Clermont. O confronto entre os dois pseudocientistas seria, no mínimo,
interessante.
E não demorou a acontecer. Quando já estavam no fim da excursão pelas salas
principais, passinhos apressados soaram perto dali e, alerta, Serena reconheceu a
aproximação de Simon por trás das paredes.
— Serena! — chamou o menino. — Está sozinha aí? Percebendo que Meyer se
encontrava distraído com as aquarelas, ela abriu rapidamente a porta falsa.
— Precisa vir sempre pelo corredor dos criados? — ralhou, num cochicho.—
As visitas podem se assustar ouvindo vozes atrás das paredes! Ainda estou com o sr.
Meyer.
Nesse instante, o homem virou-se para eles e fitou o garoto, surpreso. Mais
surpreso ainda ficou quando Clermont saiu da passagem estreita, logo atrás de
Simon.
—Eu mostrei minhas passagens secretas para o sr. Clermont — explicou o
menino. Em seguida, caminhou até Meyer. — Quer ver também?
— Simon! — Serena tentou sorrir, sem graça. — Não incomode os convidados
com essa bobagem!
— Não havia me mostrado esta sala, srta. Allen — queixou-se Clermont e
juntou-se ao outro homem. — Ora, ora, se não são gravuras de Harris...

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— Isso mesmo — ela concordou. — Algumas das originais do livro.
— Bonito trabalho.
— Conhece o artista pessoalmente? — indagou Meyer, em um tom educado.
Clermont sorriu.
— Que eu saiba, Moses Harris, autor de O Aureliano, faleceu quando eu era
ainda garoto.
Ponto para Clermont, refletiu Serena.
Meyer estreitou o olhar para verificar a data na aquarela.
— Ah! Que bobagem a minha. Espero que a srta. Allen não imagine que sou
velho demais...
Ela forçou um sorriso. Na verdade, só estava pensando quanto odiava gente
mentirosa.
— O que mais aprecio em Harris é o modo como retrata os espécimes —
observou Clermont. — Como esta vanessa, por exemplo.
— Verdade. Note os cacos de louça chinesa no chão — complementou Meyer.
— O hábitat preferido da borboleta.
Ponto para Meyer.
Cansado da conversa, Simon cutucou Clermont.
— E a minha lição de tiro? O senhor prometeu, lembra? Por isso viemos até
aqui: para pedir a Serena.
Clermont ergueu as sobrancelhas para ela, que suspirou, resignada.
— Meia hora no máximo.
Não que a perspectiva lhe fosse agradável. Mas qualquer coisa era melhor do
que testemunhar aquele duelo ridículo.

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Capítulo V
O ambiente aquecido e úmido da estufa lembrava os primeiros dias de
primavera. Clermont caminhou pelo corredor central. Tocou uma ou outra planta e
verificou as etiquetas dos brotos. Disfarçadamente, Serena tratou de trancar a porta
de entrada com a chave cedida pela sra. Fletcher. Verdade que as paredes eram de
vidro, mas as espécies exóticas, altas e de folhagem densa, como o bambu e o papiro,
sempre garantiam alguma privacidade.
— É um encontro, srta. Allen? — A voz de Julien soou atrás dela, fazendo-a
pular. — Posso ter esperança de que ontem à noite não era à procura de Simon que
estava?
Serena girou o corpo e deparou com um par de olhos castanhos fixos nos dela.
— Eu queria conversar com o senhor em particular — disse, tensa.
— Muito bem. Que tal ali, próximo ao bambu?
Não havia onde pudessem se sentar, portanto Serena cruzou as mãos diante
do corpo e ousou encará-lo. Emoldurado pelo verde da estufa, Clermont lhe
pareceu... quase selvagem. E com uma aparência tão perturbadora que nem sequer
parecia estar ainda convalescendo. Uma folha roçou o pescoço dele, que a segurou
para examiná-la, atento.
— Se não me engano, esta é uma...
— Não venha me dizer que tipo de planta é, sr. Clermont — interrompeu-o
Serena, todo seu autocontrole desaparecendo. — Não queira nomear as orquídeas ou
qualquer espécie desta estufa, pois sei que fez bem sua lição de casa. Eu não o trouxe
até a estufa para exibir as plantas, e sim porque tenho algo a lhe dizer.
Clermont a fitou daquele modo que a perturbara desde o primeiro dia, no
escritório do tio. Não na defensiva, não com ansiedade. Apenas com interesse... e
mais alguma coisa.
Sentiu o coração bater na garganta. Era ele o intruso, e não ela. Então, por que
parecia tão calmo enquanto ela, que não fizera nada de errado, tremia dos pés à
cabeça?
— Estou à sua disposição, srta. Allen. O que deseja? Serena respirou fundo.
— Sei que é um impostor. Clermont prendeu o ar, surpreso.
— Palavra meio forte, não acha?
— Deixe-me colocar em outras, então: seu interesse por borboletas não me
parece genuíno.
— Já me disse isso antes. E uma pena que pense assim, pois realmente me
interesso pelo assunto.
— Não mais do que eu.
Julien cruzou os braços diante do peito.
— Não gosta de borboletas, srta. Allen?
—Não gosto nem desgosto. São bonitas, porém não passam de vermes com
asas, se olhar de perto. Mas não é esse o ponto — retomou o assunto, compenetrada.

42
— Depois que o vi às voltas com o seu aparelho de fazer lentes, percebi o que real-
mente o interessa. Com certeza, não foi pelas borboletas que veio até Boulton Park.
Julien tentou objetar, porém Serena ergueu a mão em um protesto.
— O que quero dizer é que não sei por qual motivo está aqui, ou por que se
fez passar por um Aureliano. Até ontem, sua pretensão me parecia inofensiva.
Imaginei até que minha tia o tivesse persuadido a tentar me cortejar, ou, talvez, que
o senhor quisesse se aproximar do conde por algum motivo. De qualquer modo, sua
estratégia não deu certo: eu e meu tio não costumamos ter muita consideração com
mentirosos.
Clermont cerrou o maxilar, porém não falou nada.
— Uma vez me disse que, se eu lhe pedisse para partir, o senhor o faria —
prosseguiu Serena.:— Pois estou pedindo agora que honre com a sua palavra.
— Quer que eu vá embora?
— Quero.
A expressão no rosto dele era inescrutável.
— Mesmo que uma das hipóteses que citou para a minha vinda até Boulton
Park esteja correta?
— Principalmente se uma delas estiver correta — retor-quiu ela, o coração aos
saltos.
— Francês e mentiroso — Clermont refletiu em voz alta e avançou um passo.
— Dois pontos contra mim — concluiu com um sorriso triste. — Já que é assim,
melhor tentar compensar isso.
— Co-como assim? — indagou Serena, a voz sumindo aos poucos, conforme
ele se aproximava, curvava-se sobre ela e a beijava apaixonadamente.
Há muito tempo não era beijada. Já havia até se esquecido de como podia ser.
O gosto de outra boca, a mão firme em suas costas, o toque inebriante e algo áspero
contra sua pele sensível. Por um segundo, as lembranças mesclaram-se com a
sensação, e uma doce nostalgia brotou de Serena.
Então tudo mudou. Julien a envolveu pela cintura e colou o corpo no dela, ao
mesmo tempo em que seus lábios tornavam-se mais exigentes. Serena se deixou
abraçar, sentindo o coração dele bater contra o próprio peito. Não conseguia nem
sequer discernir por onde deslizavam as mãos quentes, agora, tal era a ânsia com
que lhe percorriam as costas, os cabelos, os ombros, os braços...
— Não! — conseguiu dizer e o empurrou com força.
— Serena — Clermont não mais sorria. — Eu...
— Não!
Ele parou, tampouco tentou impedi-la de destrancar a porta com mãos
trêmulas. Em seguida, ela disparou jardim afora e correu para dentro da casa.
Clermont a observou fugir em meio aos canteiros floridos. Tinha sido um erro,
pensou. Um grave erro.
— Sr. Meyer... Entre. — Bassington pousou o jornal, que Meyer já tinha lido:
Napoleão, dizia a manchete, aceitaria os termos de paz em vinte e quatro horas.

43
A alegre saudação do conde, entretanto, era tão falsa quanto a notícia. Assim
que Pritchett despediu-se com uma me-sura, Bassington se pôs em pé.
— E então?
— Clermont é um camarada frio — suspirou Meyer. — Acho melhor
mudarmos de tática.
— E o que sugere? Arrastá-lo até o celeiro e arrancar dele uma confissão? Dar
uma busca em seus aposentos?
— A primeira alternativa está fora de cogitação, e a segunda eu já pus em
prática.
O conde ficou chocado.
— Deu busca nas coisas dele aqui, na minha casa?!
— Dei — respondeu Meyer. — Não foi fácil. O criado do homem parece mais
um cão-de-guarda. Rodrigo, meu assistente, teve de esperar por duas horas para
entrar no quarto. Mas valeu a pena.. Dê uma olhada nisto. — Retirou do bolso um
pedaço de cera cinza.
Bassington examinou o material, notando, assombrado, o escudo estampado
na massa dura.
— Onde o conseguiu?
— E um molde tirado de uma escova que estava guardada no baú. O sr.
Clermont é francês realmente.
—Ora, a tal escova pode ter sido comprada do dono original — objetou o
conde. — Muitos nobres franceses atravessaram dificuldades depois de fugir da
República.
— Pode ser — disse Meyer. — Mas, pense, milorde. De acordo com a sra.
Digby, Clermont usa um sinete na corrente que tem ao redor do pescoço. Além dela,
somente lady Bassington e o mordomo o viram em um suposto anel.
— E minha mulher o trata como um nobre... — completou Bassington. Tornou
a examinar o molde do timbre. — Isto explica tudo. Eu devia ter perguntado a Clara
quem ela imaginava que ele fosse. Mas estava ocupado com outras coisas.
— Que pareciam mais importantes do que uma possível ligação do sr.
Clermont com a nobreza exilada? Clermont é um espião francês.
— Espião? De uma família como esta? — O conde exibiu o escudo. — Não
seja ridículo. Encontrou mais alguma coisa? Algo que possa provar o que diz?
— Não — suspirou o agente.
— Posso perguntar, então, sr. Meyer, por que deseja continuar esta
investigação? Não encontrou nada além do fato de o sr. Clermont pertencer,
possivelmente, a uma família exilada da França.
— Família que pode apoiar Bonaparte. Várias delas mudaram de lado por
dinheiro, brigas de família... — lembrou Meyer. — Clermont não seria o único
aristocrata francês a lutar por Napoleão. Pode ter simulado o acidente na colina para
poder se hospedar aqui.
— Está louco?! — explodiu o conde. — O homem quase morreu! Fazer tal
acusação sem provas concretas, sr. Meyer, é um ultraje!

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—Pois, para mim, isso é perfeitamente possível: Clermont soube, de alguma
maneira, do seu envolvimento nas negociações da Inglaterra com a Rússia. Armou
um plano para explorar a amizade dele com Philip Derring e ter acesso à sua casa
como naturalista. Quando os poucos dias de visita se mostraram insuficientes, forjou
um acidente dentro da sua propriedade, de modo que pudesse ser acolhido aqui e
ter livre acesso a tudo que lhe interessa.
A expressão do conde ainda era de incredulidade.
— Está acusando o sr. Clermont, sem que ele tenha qualquer chance de
defesa, de um crime infame; o que o fará ficar sob vigilância!
— Correto — admitiu Meyer. — Porém Vossa Excelência e a condessa não se
verão envolvidos em um escândalo.
— Está sugerindo que eu sacrifique a reputação de um homem
potencialmente inocente para preservar a minha?
Meyer ergueu as sobrancelhas falsas e grisalhas.
— No momento, julgo que o potencial de inocência do sr. Clermont seja muito
pequeno.
—Muito bem — suspirou o conde, exasperado.—Vou para Londres e, de
agora em diante, trabalharei apenas pessoalmente com Barrett. Com uma condição.
— Qual é? — Meyer estreitou os olhos.
— Vamos resolver este assunto com Clermont agora mesmo.
— Como pretende resolver isso agora?
— Perguntando ao homem quem ele é. — O conde rumou para as portas e as
escancarou.
— Mas...
— Pritchett! — chamou. O mordomo se aproximou.
— Onde está o sr. Clermont? — indagou Bassington.
— Na biblioteca, milorde. Com Simon. O conde lançou um olhar a Meyer.
— Melhor irmos até lá.
Bassington abriu uma das portas falsas, na parede, e começou a subir uma
escada estreita, seguido por Meyer.
— Há uma passagem, a menos de dez metros, que o levará a uma das saletas
— o conde comunicou, em voz baixa. — Saia com cuidado e poderá entrar na
biblioteca como se estivesse vindo do andar superior.
Meyer atravessou a ante-sala deserta e rumou para a biblioteca, já ensaiando
seu disfarce de idoso. As portas estavam fechadas, porém não trancadas. Escutou a
voz entusiasmada do garoto, depois a de Clermont. Em seguida, uma de mulher. A
srta. Allen encontrava-se presente.
Abriu a porta e deparou com os três debruçados sobre a máquina de fazer
lentes. Serena foi a primeira a perceber sua entrada.
Meyer assumiu a postura de cientista e estreitou os olhos, fingindo não
enxergar muito bem. Instantaneamente, captou a expressão ressabiada do menino e
o aparente interesse de Clermont.
— Boa tarde, sr. Meyer — saudou ele.

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— Espero não estar atrapalhando.
— De maneira alguma.
— Precisa ir mesmo? — Simon perguntou a Julien.
— Infelizmente.—Ele desenroscou mais uma peça da máquina e a guardou na
maleta.
— Mas... e o meu telescópio?
— Simon! Não tem modos? — Serena ralhou, sem graça, ainda que se sentisse
imensamente aliviada com a partida de Julien Clermont. Mais ainda depois do que
acontecera na estufa...
— Suas lentes estão prontas. O tubo e o refrator, eu envio de Londres —
comunicou Clermont.
Meyer olhou as peças e a maleta sobre a mesa.
— Está desmontando o aparelho? — indagou.
— Ele vai embora — informou Simon, genuinamente decepcionado.
— Não me diga — lastimou Meyer. — É sempre uma pena não poder contar
com a companhia de um colega.
Uma batida na porta fez com que todos se voltassem.
— Com licença — pediu um lacaio. — Sua Excelência não se encontra em seu
escritório, mas creio que deverá retornar em breve. Quer que eu o aguarde lá e veja
se pode recebê-lo?
— Seria bom — suspirou Julien. — E a condessa?
— Estará na sala principal em quarenta e cinco minutos.
— Obrigado.
— Ela vai insistir para o senhor ficar — disse Simon. — Ou pedir que volte
depois de visitar seu avô. Mas o senhor não vai voltar, vai?
— Talvez nos encontremos em Londres — contemporizou Julien.
— Serena e eu nunca mais fomos a Londres. Clermont fitou-os.
— Por que não?
— Não gosto muito da capital — ela se apressou em responder, antes que o
primo pudesse dar uma explicação mais reveladora. — Além disso, Simon não
combina muito com Londres.
Julien sorriu.
— Aprontou alguma por lá?
— Abri o cofre que há embaixo da catedral de Saint Paul, junto com os meus
amigos Ned e Jamie Barrett — revelou o menino com uma ponta de orgulho.—O
sacristão deu o maior grito quando nos encontrou.
O lacaio reapareceu, abrindo a porta para Bassington, e Julien endireitou o
corpo.
— Senhor — cumprimentou, preocupado. — Seu criado deve ter me
compreendido mal. Pedi que me recebesse no escritório quando tivesse tempo.
Jamais tive a intenção de perturbar seus afazeres.
— Mandou um lacaio à minha procura? — O conde franziu a testa.

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— Eu sinto muito, mas esta manhã meu avô mandou me chamar para
tratarmos de um assunto urgente.
Bassington circundou a mesa, sem tirar o olhar dele.
— Eu soube que"às vezes usa um anel com monograma — revelou, de súbito.
— Posso vê-lo?
Lady Bassington notara mesmo o anel, concluiu Julien, alarmado.
— Seria este? — Desamarrou o lenço de seda do pescoço e retirou uma
corrente de ouro com o anel pendurado. Em suspense, Serena observou o tio
examinar o escudo trabalhado em ouro branco.
— Então, é mesmo um Conde — anunciou.
— De certa forma.
O nome Conde não lhe era estranho, notou Serena. E havia algo assustador
nele que ela não entendia exatamente por quê.
— Imaginei que a geração mais nova dos Conde estivesse extinta — confessou
o conde.
— Ainda restam alguns — esclareceu Julien. — A maior parte dos meus
parentes teve o bom senso de deixar a França com as famílias antes que iniciassem o
massacre.
Bassington o observou em silêncio.
— Nunca mais voltou à França?
Clermont negou com um gesto de cabeça. —Sábia decisão. Principalmente
considerando o que aconteceu com seu primo em segundo grau...
— Primo em primeiro grau — corrigiu Julien.
— Então, seu avô é Louis-Joseph de Bourbon-Condé? O príncipe?!
— Isso mesmo — confirmou Clermont.
O avô dele era príncipe? Serena estava chocada. Agora, sabia por que aquele
nome lhe era familiar. Os Conde eram de um dos ramos da família real francesa.
Dizia-se que eles tinham mais direito ao trono do país do que o atual candidato, Luís
de Bourbon. O homem que ela havia afrontado, repreendido e acusado de mentiroso
era descendente de Luís XF7!
— Se é assim, permitiremos que parta imediatamente — suspirou o conde,
constrangido. — A condessa vai sentir muito, sem dúvida.
Clermont curvou-se em um agradecimento e comunicou que se despediria de
lady Bassington em alguns minutos, para agradecer-lhe pessoalmente a
hospitalidade.
— Também gostaria de lhe pedir desculpas por todo o transtorno que lhe
causei, Excelência.
—Não se preocupe com isso, meu jovem.—O conde parecia genuinamente
consternado. — Sou eu quem lhe deve desculpas. Imagine. O neto de um Bourbon-
Condé em Boulton Park. Não recebeu metade do tratamento que merece. — Deu um
tapinha nos ombros de Clermont e lançou um olhar enviesado na direção de Meyer.
Virou-se para sair, mas retornou no mesmo instante. — Aliás, irei a Londres em

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alguns dias. Se conseguir convencer minha esposa e minha sobrinha a me acom-
panharem, há alguma chance de nos encontrarmos lá?
Clermont inclinou a cabeça de leve.
— Seria um imenso prazer.
A conversa do conde com Meyer, logo depois, foi bem menos cordial.
Bassington estava furioso.
— O senhor me fez passar por um imbecil! Confrontei o descendente de uma
das mais nobres famílias francesas!

—A ideia foi sua. Eu já estava satisfeito por Vossa Excelência ter decidido
levar os documentos para sir Charles, em Londres. Aliás, uma decisão que espero
tenha mantido.
— Claro que sim! — Bassington bufou. — Presumo que não vá fazer nenhuma
objeção caso eu receba o rapaz em minha residência na capital, agora que essa sua
suspeita absurda não existe mais.
Meyer ergueu as sobrancelhas.
— Quem disse que não? As origens do sr. Clermont não provam
absolutamente nada. Acho, inclusive, que uma pessoa inocente teria ficado ultrajada
ao ser confrontada da maneira que foi. Receba-o em Londres, se quiser. Mas não
deixe os documentos em sua casa.
— É melhor que eu entregue mesmo essas malditas cartas a Barrett —
declarou o conde. — Afinal, é ele quem cuida de todas as anotações.
Meyer não fez comentário.
Bassington olhou pela janela, ainda chocado com as últimas revelações.
— Um conde — murmurou. — Clara tinha razão. Talvez eu possa convencer
minha sobrinha a nos acompanhar. Ou o senhor e o coronel White também têm
objeções ao aparente interesse do sr. Clermont por ela?
Meyer não se deu ao trabalho de responder. Era óbvio que aqueles dois se
sentiam atraídos.
Então Serena tivera mesmo uma desilusão amorosa, meditou Julien, enquanto
a carruagem deslizava pela London Road. Havia sido a sra. Digby a lhe revelar.
Obviamente, o tal oficial francês se divertira com a sobrinha do conde e depois tinha
desaparecido.
Devia ter sido um escândalo. Não era à toa que Serena evitava ir a Londres.
Orgulhosa como era, odiava ser alvo de especulações.
Julien sabia bem o que ela sentia. Em seus anos de exílio, passara a vida
ouvindo maledicências sobre seus compatriotas, ainda que estas fossem produto do
sofrimento e da dor causados pela guerra. Tanto que, quando Simon havia co-
mentado que a prima detestava os franceses, ele tinha imaginado que Serena perdera
alguém em alguma batalha.
— Importa-se em me dizer se a sua empreitada foi bem-sucedida? — Vernon
interrompeu seus pensamentos.

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— Sim — respondeu Julien, em um tom que não encorajava mais perguntas.
Até porque ela havia sido bem-sucedida em parte. Com muito sacrifício, conseguira,
através dos diários do quarto conde, ter uma noção de quando o filho dele estivera
fora do país. E, claro, também uma referência ao dinheiro.
— Falou com Sua Excelência? — persistiu Vernon. Julien lançou-lhe um olhar
enviesado.
— Isso só pode significar "não" — resignou-se o criado.
— Se isso o deixa mais tranqüilo, saiba que espero resolver o assunto em uma
ou duas semanas, assim que estivermos em Londres.
Tudo o que ele precisava saber agora era o nome do banqueiro do conde.
Já era tarde quando a carruagem parou na frente da residência de Julien, na
Brook Street. Surpreso, ele notou uma luz bruxuleando na janela da sala.
Vernon também reparou na luz e franziu o cenho antes de abrir a porta,
cauteloso. Haviam dispensado todos os criados antes da viagem.
Um jovem alto, de barba por fazer, surgiu diante deles com uma pistola.
— Derry! — exclamou Julien, chocado. — O que faz aqui? Sabia que eu iria
voltar esta noite?
— Não — suspirou Philip, aliviado. — Sei que só tem três quartos, mas vai ter
de me dar abrigo por enquanto. Estou me escondendo. O Ministério das Relações
Exteriores mandou aqueles malditos soldados da cavalaria atrás de mim por causa
da sua excursãozinha a Boulton Park.
— Os Dragões? Atrás de você? Mas, que diabo...
— Diabo, não: Charles Barrett.
Com esforço, Julien recordou-se do cavalheiro que fizera parte do primeiro
jantar em Boulton Park. Não conseguia imaginar como Charles, Philip e os Dragões
pudessem estar conectados; muito menos o que ele mesmo tinha a ver com aquilo.
— Vou levar suas coisas para cima, senhor — anunciou Vernon e retirou-se,
discreto.
— E providencie algo para comermos... Estou morto de fome. Não fizemos
nenhuma parada — Julien explicou ao amigo.
— Eu mesmo não sei o que é ar puro há mais de uma semana — declarou
Philip.
Julien fitou-o.
—Vamos nos sentar—disse, conduzindo-o de volta à sala. Julien recostou-se
na poltrona com um suspiro. — O que aconteceu, afinal?
— Começou há dez dias — respondeu Derring —, quando Charles Barrett me
parou no meio da rua e me convidou para um drinque no White's.
Dez dias?, refletiu Julien. Devia ter sido um dia depois de Charles ter jantado
em Boulton Park.
— Ele foi muito direto — prosseguiu Philip. — Queria informações sobre
você. Há quanto tempo nos conhecíamos, se é mesmo naturalista ou se apenas
tentava cortejar Serena.
— E o que você lhe disse?

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— Apenas que você não tem planos de se casar tão cedo. Vernon surgiu na
sala com uma bandeja de comida.
—Falou algo sobre meu título? Contou a ele quem era meu avô?
— Claro que não.
Por um momento, Julien imaginou se Philip contara a lady Bassington quem
ele era, na verdade. Havia uma ponta de culpa na expressão do rapaz, como nos
velhos tempos de escola.
Mas a culpa devia ser dele mesmo, por ter esquecido de tirar aquele maldito
anel.
De qualquer modo, havia se preocupado com esse detalhe à toa. Bassington
não reagira tão mal assim ao fato de ele ser um Conde. Ou o conde era um mestre
em dissimulação, o que achava pouco provável, ou sua antiga teoria estava correta:
Barrington desconhecia o nome da vítima que havia feito.
Philip continuou tagarelando.
— ...foi então que LeSueur veio me procurar alguns dias depois, no clube. Ele
trabalha para um velho militar, um tal de coronel White. Parece que Bassington e
Barrett estão envolvidos com o coronel em umas manobras diplomáticas delicadas, e
Barrett não gostou de saber que havia um francês hospedado em Boulton Park.
Pediu a White para investigar, e LeSueur foi chamado para me fazer umas perguntas
"extra-oficiais". Eu lhe disse que estaria íivre na tarde seguinte e que bastava ele me
mandar uma mensagem. Foi então que decidi me esconder aqui. Já ouvi falar muito
dos amigos de White... Ser torturado para revelar contatos bonapartistas não estava
nos meus planos.
Julien já não ouvia mais nada. Os acontecimentos no condado de Oxford
começavam a fazer sentido. Na ocasião, o alerta de Simon sobre "cientistas de
verdade" só o fizera ter mais cautela com Meyer. Este devia ser algum agente da
Bow Street.
— O que foi? — indagou Derring ao ver a expressão do amigo.
— Barrett acha que sou um espião — deduziu Julien.
— Não creio que seja uma boa idéia — resmungou Philip, enquanto seguiam
um soldado por um estreito corredor. — Se quer alegar inocência, por que não vai
atrás de Barrett?
— Ninguém atendeu na casa dele. E eu quero resolver isso logo.
— Como sabe que Meyer veio a Londres? Ele ainda estava no condado de
Oxford quando você partiu, não estava?
— Aposto quanto quiser que Meyer veio atrás de mim.
— E se ele for mesmo um naturalista e eu me enganei a respeito de LeSueur?
—Meyer não é naturalista coisa nenhuma. Tenho certeza. Uma fonte, em
Boulton Park, me garantiu que ele só estava lá para me vigiar. — Ainda que a maior
parte das pessoas não considerasse um menino de onze anos uma fonte fidedigna,
refletiu Julien.
O soldado abriu a porta de uma saleta.

50
— Queiram aguardar aqui, cavalheiros. Eu os informarei assim que o capitão
chegar. — Em seguida, retirou-se.
Passaram-se cinco minutos. Dez. Até que, por fim, ouviram passos no
corredor.
A porta foi aberta e um homem jovem, sem dúvida o tal LeSueur, entrou na
sala. Encaixava-se perfeitamente na descrição de Derring, exceto por uma
característica marcante que Philip não mencionara: uma profunda cicatriz no rosto.
— Olá, meu amigo — saudou Derring, pouco à vontade.
— Por onde andou? Devia ter ido ao meu encontro em Whitehall há quatro
dias, e não aqui — lembrou LeSueur, visivelmente irritado. — E quem é este? Não se
permite a entrada de civis neste andar.
— Sou amigo do sr. Derring — disse Julien, frio. — Fui eu quem pediu a ele
que me trouxesse aqui, pois procuro um companheiro seu de nome Meyer. Fui
insultado e exijo explicações.
LeSueur estreitou o olhar.
— Ainda não me disse seu nome.
— Julien Clermont.
O homem empalideceu.
— Norris! — chamou, e o soldado surgiu outra vez.
— Acompanhe este senhor até a saída — ordenou.
O soldado tocou Julien no braço, e este esquivou-se do contato.
— Exijo falar com Meyer. A lei britânica dá direito a um homem de confrontar
quem o acusa.
— Eu sou Meyer.
Os olhares se voltaram para o jovem capitão que acabara de entrar no recinto,
pelo outro lado.
— James Roth Meyer — ele se apresentou. — Ouvi o que disse e imagino que
esteja à procura de meu pai... Posso acompanhá-los até a saída.
Abriu a porta e indicou uma escada.
Clermont e Philip acompanharam o oficial, resignados.
— Vai desafiá-lo para um duelo? — arriscou o rapaz. — Sei quanto meu pai
pode ser irritante, às vezes.
— Como posso desafiá-lo? Tem idade para ser meu avô — contestou Julien.
— Ele só tem quarenta e quatro anos. Não costumo me meter nos assuntos de
meu pai, mas, se quer um conselho, fique longe do conde de Bassington. Ao menos
pelas próximas duas semanas.
Julien sentiu-se enrijecer.
— Pode me dizer por quê?
— Não.
— Então, provavelmente, não seguirei sua recomendação — declarou, antes
de fazer uma mesura. — Tenha um bom dia, capitão.

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James Meyer lembrou-se da conversa que havia tido com o pai na noite
anterior. Nathan Meyer não costumava se enganar. Algo em Clermont, entretanto,
lhe dizia que dessa vez isso tinha acontecido.

52
Capítulo VI
Rowley, o mordomo de Londres, entrou na sala com uma bandeja com dois
cartões de visita e, com um só olhar, informou Serena de que as visitas eram para
ela.
— Faça-os entrar, Rowley! — Lady Bassingtpn ordenou com entusiasmo.
— Deixe-me adivinhar — suspirou Serena. — É o sr. Clermont.
— E Philip Derring!
Serena sorriu. Não via Philip havia quase um ano.
— Sr. Clermont e sr. Derring — anunciou Rowley.
— Philip! — saudou Serena, pondo-se na ponta dos pés para beijá-lo no rosto.
— Como vai?
—Muito bem, e você? Fiquei feliz em saber que estava em Londres.
— Alguma notícia da sua irmã?
— Ainda não.
—O primeiro filho sempre atrasa—comentou a condessa. — Não se preocupe,
querido, logo teremos boas novas. Sentem-se! Vou pedir algo para bebermos.
— Receio não podermos ficar por muito tempo — alertou Clermont
polidamente. — Na verdade, vim convidar a srta. Allen e o visconde de Ogbourne
para me acompanharem, esta tarde, à uma exposição de espécimes na Somerset
House. Se não estiver muito cansada da viagem, claro — acrescentou, dirigindo-se a
Serena pela primeira vez.
— Tenho certeza de que Simon também apreciará o passeio — ela respondeu.
Dez minutos depois, quando os dois rapazes já tinham deixado a casa, Serena
subiu as escadas e escreveu uma mensagem para Clermont: fora acometida de uma
"terrível dor de cabeça" e, infelizmente, não poderia acompanhá-lo no passeio
daquela tarde. E acrescentou que Simon, provavelmente, também não poderia ir à
exposição.
—Prontinho, sr. Clermont—disse, em voz alta, enquanto selava a nota. —
Pensou que fosse me encurralar fazendo o convite na frente da minha tia?
A Somerset House era a sede de três sociedades reais, além de várias agências
governamentais importantes. Estava repleta de carcaças de pássaros e animais
empalhados. Serena observou o entusiasmo de Simon e disfarçou uma careta. Con-
seguira se livrar de Clermont, mas não da astúcia do primo.
— Sua traidora! — Ele irrompera no quarto dela, sem se importar com sua
suposta indisposição. — Nem ia me contar sobre o convite do sr. Clermont, ia?
A indignação do garoto era tanta que Serena se rendeu.
— Podemos ir amanhã.
— Não, senhorita, vamos hoje! Ou conto para minha mãe que enganou o sr.
Clermont.
Agora, Simon pulava de vitrine em vitrine, de sala em sala. Exausta, Serena se
acomodou em um dos bancos.

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—Ora, ora...—Uma voz masculina e familiar soou à frente dela. — Mas que
surpresa!
Serena ergueu a cabeça. Clermont havia ido até lá mesmo sem eles.
— Fico feliz em ver que se recuperou da sua indisposição — ele declarou.
— O que está fazendo aqui? — Serena indagou incoerentemente.
Julien se sentou ao seu lado.
— O que eu estou fazendo aqui?
— Simon me obrigou a vir — ela se defendeu. — Eu não tinha intenção
alguma de sair de casa.
— Percebi. — Julien retirou um papel dobrado do bolso, e Serena reconheceu
a nota que havia enviado.
— Quer isto de volta? — perguntou Julien. Já não havia sarcasmo em seus
olhos.
Ela apanhou o papel, mortificada.
— Onde está Simon? — ele quis saber, enquanto a observava picar a
mensagem.
— Da última vez em que o vi, estava na sala dos ursos... Acho que lhe devo
desculpas — murmurou Serena, por fim.
Julien a fitou, surpreso.
— Não. Sou eu quem lhe deve desculpas.
— Porquê?
Julien estudou o rosto bonito por vários segundos, e o olhar dele a aqueceu
por inteiro.
— Porque não fui justo ao usar sua tia para obrigá-la a aceitar meu convite.
Venha. — Ergueu-se. — Vou responder melhor à sua pergunta.
— Que pergunta? — Serena se levantou sorrindo e passou o braço pelo dele.
Quando Julien devolveu o sorriso, ela sentiu um calor esquisito se espalhar
por seu corpo.
— O que estou fazendo aqui — ele esclareceu e a conduziu até uma das salas
repleta de aves. — Olhe.
A princípio Serena não compreendeu. Alguns dos pássaros eram lindos,
verdade, sobretudo um ganso cuja plumagem do pescoço era prata e azul. O
restante, porém, lhe parecia comum demais. Somente quando passou a ler as
etiquetas, percebeu o que todos tinham em comum: doados por L.F.J.B.C.
Tocou uma das pequenas placas, confusa.
— Louis-François Julien de Bourbon-Condé — traduziu Julien. — Os
espécimes eram meus.
— Seus? — Serena entreabriu os lábios, perplexa. — Então, é mesmo um
naturalista e minhas suspeitas eram infundadas? — disse Serena, em choque.
— Não se aflija, srta. Allen. Paz bem em não confiar nas aparências...
A conquista dos Bassington, refletiu Julien, tinha sido uma operação social
delicada. Simon fora seu melhor pretexto, e a máquina de fazer lentes, uma jogada

54
de mestre. Já havia se encontrado com o garoto duas vezes para iniciarem juntos o
telescópio, e uma terceira visita tinha sido agendada para terminar o trabalho.
Mais importante do que Simon, porém, era Serena Allen. Ela era a resposta
para qualquer cético que pudesse se perguntar por que um solteiro rico atuaria como
preceptor de um garotinho mimado de onze anos. E a relutância de Serena em
aceitar suas atenções era outro presente dos céus, pois só fazia aumentar a insistência
do conde e da condessa para que Julien freqüentasse a casa. Lady Bassington vivia
con-vidando-o a se juntar a ela, e à sobrinha, para vários programas. Naquela noite,
por exemplo, ele e Philip haviam jantado na mansão, depois acompanhado a
condessa e a srta. Allen a um concerto.
Na sala de concertos, Julien tinha a perturbadora consciência da presença de
Serena, da tensão nos ombros pequenos e do modo como ela segurava com força o
programa do espetáculo, o qual às vezes fingia ler.
Mesmo quando ele se obrigava a olhar para a frente, captava, com o canto dos
olhos, a imagem do gracioso perfil.
Tentou se concentrar no próprio programa, mas Serena não lhe saía da cabeça.
Não conseguia parar de pensar na última vez em que a tivera nos braços, na estufa.
Respirou fundo e tentou afastar o pensamento. Só precisava de mais alguns
dias. Apenas mais alguns dias, já que iria ao banco na sexta-feira.
Incluiria Derry em sua lista, para abrandar um pouco o golpe... Mas Philip
jamais o perdoaria. Assim como Simon. Ou a condessa, que olhava a sobrinha,
radiante, a cada dois segundos.
O teatro encontrava-se lotado, e Julien não teve chance de falar com Derring
no intervalo da apresentação. O máximo que conseguiu fazer foi trazer bebidas para
as mulheres.
Sentou-se ao lado do amigo na segunda parte do concerto. Mas nas duas
vezes em que tentou lhe cochichar algo no ouvido, foi impedido por olhares de
reprovação, inclusive de Serena.
Mais tarde, ao final do espetáculo, segurou Philip pelo braço.
— Derring, escute — disse baixinho. — Preciso de um favor.
— Pode pedir! — volveu Derring com o bom humor de costume. — Melhor
ainda, vamos para casa tomar um licor e conversamos por lá.
— Não, Derry — Julien recusou prontamente. — Preciso deixar o país em
breve.
O sorriso do rapaz desapareceu.
— Algum problema?
— Não posso dizer muita coisa agora... É o seguinte — suspirou. — A srta.
Allen e a condessa têm sido muito gentis e eu não consigo imaginar um modo de
partir sem ofendê-las.
Derring ficou em silêncio por um instante.
— Quer que eu me informe até que ponto criou expectativas... É isso?
— Exatamente.

55
— Quer que eu prepare Serena. Que dê a entender que ela deveria tomar
cuidado para não sofrer outra vez.
— Droga! — Julien estava consternado. — Serena não me encorajou muito,
mas...
— Pois então! Você mesmo disse que ela sempre o rejeitou!
— Não completamente — confessou Julien, melancólico. Ainda podia sentir o
sabor dos lábios de Serena, a boca quente e úmida, o corpo esguio e receptivo contra
o dele... Lembrou-se do modo como os olhos dela cintilaram com as lágrimas
contidas, no banco da exposição.
— Seu idiota! — explodiu Philip, zangado. — Então eu tinha razão. Pensa que
não a percebi tentando não olhar para você durante o espetáculo? Pensa que não
notei o modo como você olhava para ela? Sabe há quanto tempo Serena não vinha
NOTAS SOBRE UM ESCÂNDALO
56
a Londres, Julien? Sabe há quanto tempo ela não aparecia em público nem
aceitava convites para passeios e festas, como essa que lady Barrett vai dar daqui a
dois dias? Cinco anos! Clermont manteve-se em silêncio.
— Depois que aquele infeliz a abandonou um mês antes do casamento, Serena
se escondeu em Boulton Park. Ninguém, com o mínimo de sensibilidade, deixou de
notar o motivo de ela, de repente, resolver se abrir outra vez para o mundo. A esta
altura, já deve haver apostas sobre quando será anunciado o noivado de vocês... E
agora, me pede para prepará-la para um novo abandono. — Philip apontou um
dedo para o amigo. — Não ouse fazer isso, Clermont! Não dou a mínima para o que
pretende; se os homens de White planejam assassiná-lo, nem mesmo se os
monarquistas lhe prometeram o trono da França! Se partir sem dar a Serena uma
desculpa decente, eu mesmo mato você.
— Isso não seria muito difícil — volveu Julien, com ironia. — Basta explicar
que sou bastardo.
— Ela não sabe disso? — Philip o fitou, surpreso.
— Acho que nem Bassington sabe. Até dei a entender, em algumas ocasiões.
Mas esse não é o tipo de coisa que se sai anunciando por aí.
— Mas que droga, Clermont, você não é um bastardo qualquer! — refletiu
Derring, pouco à vontade. — A realeza tem seus privilégios!
— Vai me ajudar com Serena ou não? Philip considerou a questão em silêncio.
— O que quer que eu faça? — suspirou, por fim. Julien não respondeu de
pronto. Queria apenas que aquele
tormento tivesse fim.
Em uma sala de Harland Place, Charles Barrett e um convidado postavam-se
próximos a uma janela. Do lado de fora, entre a residência de Barrett e a vizinha, dos
Bassington, havia uma passagem estreita.
— Acha que há algo errado? — indagou o convidado, um oficial de bigode
grande e branco. — Normalmente, ele é muito pontual.

56
Barrett ergueu a mão, aguçou os ouvidos e, em meio ao barulho da chuva, lá
fora, pôde ouvir passos rápidos, seguidos por uma leve batida na porta.
O oficial pressionou um lado da parede estofada sob o vão da janela. Com um
clique, toda a parede, incluindo a janela, se abriu.
Uma figura alta, de casaco negro, entrou pingando. Livrou-se do chapéu e
tratou de empurrar a passagem secreta para o devido lugar.
— Boa noite, coronel. Barrett... — cumprimentou Nathan Meyer.
— Vamos para o escritório — orientou o anfitrião. — A lareira está acesa e já
deixei ordens para que não nos perturbem.
Os três cruzaram uma porta e adentraram uma sala maior. Pilhas de papel
encontravam-se sobre uma mesa, um mapa desenrolado sobre outra.
Charles fez um sinal para que os outros homens se acomodassem nas
poltronas perto da lareira e puxou uma cadeira para si próprio.
— Não o vejo há alguns dias, Meyer.
— Tenho me mantido discreto.
— Está evitando o sr. Clermont?
— Você e James podem achar graça nisso tudo, mas eu não — rebateu. — Ou
o homem é inocente, ou é muito perigoso. Bassington se recusa a acreditar que um
Conde possa espionar para Napoleão. Mas já lhes ocorreu que os Conde podem
achar nossas negociações com o czar úteis?
—Os Conde são nossos aliados—rebateu White.—Depois que Napoleão se
render, o príncipe vai escoltar o rei até Paris como o maior representante dos
exilados políticos!
— Os austríacos também são nossos aliados — lembrou Barrett, sério.
Meyer soltou um longo suspiro.
— Em um momento, estou convencido de que Clermont é um tolo, uma
figura quixotesca, e, no seguinte, tenho a impressão de que é uma raposa. Quando
me lembro do tal acidente que ele pode ter forjado para se hospedar em Boulton
Park, de como representou bem seu papel de naturalista, de como corteja a srta.
Allen...
Barrett ergueu as sobrancelhas.
— Minha esposa acredita piamente que Clermont está interessado na
sobrinha do conde. Ela e a condessa até armaram planos para unir os dois.
— Isso explica o convite que recebi esta manhã? — perguntou White.
— Certamente — Barrett respondeu. — Eu o adicionei à lista, coronel, depois
que descobri que minha mulher e lady Bassington decidiram dar um baile aqui em
casa. Lógico que Clermont será o convidado de honra. E nem preciso dizer que
trancarei esta sala. — Ergueu-se, tenso. — Não achei nada nos diários — suspirou. —
Essa história está me enlouquecendo. Aqui estamos nós, com os documentos mais
detalhados sobre os movimentos da corte do czar nos últimos dez anos, e ainda não
conseguimos identificar quem é o agente que serve a Áustria. — Tocou os volumes
sobre a mesa. — Vou mantê-los aqui e dar mais uma olhada antes de devolvê-los...
Se é que Bassington vai querê-los de volta. Não mostrou muito interesse em estudá-

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los e não sei se posso condená-lo por isso. Quem gostaria de ver as provas de que
um parente ganhou a vida esmiuçando os segredos mais sórdidos da aristocracia
russa para depois chantageá-la?
— Pelo menos, no fim, Charles Piers fez alguma coisa decente — lembrou
White.
— Verdade — concordou Barrett. — Infelizmente, seu nobre fim não teve
registro. A última nota descreve apenas uma noite com duas mulheres casadas... que
se manterão respeitáveis se esses diários não forem publicados um dia. — Suspirou
profundamente. — Talvez seja melhor queimá-los. Bassington teria pesadelos por
uma semana se lesse o que eu li.
— Não é justo! — reclamou Simon, olhando, emburrado, para o vestido de
cetim, colocado sobre a cama, que Serena usaria no baile daquela noite.
— Simon — ela suspirou. — Meninos de onze anos não podem frequentar
festas assim.
— Mas posso brincar com o telescópio! O sr. Clermont prometeu trazê-lo para
mim esta tarde.
— Espere mais uns dez dias — pediu Serena. — Ned e Jamie vão estar em
casa, de folga da escola, e ficarão felizes da vida em subir ao telhado com você.
— Dez dias?! — Simon afundou na poltrona e fitou o chão. — Serena — disse,
com voz sumida. — Sabe quando quer muito uma coisa e tem a impressão de que, se
não fizer logo, não vai conseguir depois?
Era um dos argumentos mais razoáveis que ela ouvia do primo em muito
tempo.
— Está bem — suspirou, vencida. — Podemos ir ao parque lá pelas seis e
meia, antes do baile, que tal? A festa só começará às nove.
— Sério? — O rosto do menino se iluminou. — Serena, você é demais!
Julien Clermont conseguira uma carta de apresentação com Royce e chegou
no horário marcado ao Hewitfs Bank.
— Sr. Clermont?
— Sr. Hewitt — Julien o cumprimentou com a cabeça. — Obrigado por me
receber. Agradeço também em nome de lorde Bassington pela cortesia que, mais
uma vez, presta a ele.
Na verdade, quando Bassington descobrisse que Julien estivera ali, ficaria
furioso. Mas seria tarde demais.
— Sente-se, por favor — ofereceu o banqueiro.
Julien acomodou-se na cadeira em frente à mesa, e o homem o estudou por
um instante.
— Em que posso servi-lo? Aparentemente, é um assunto confidencial.
—Royce me garantiu que o senhor é uma pessoa reservada com os assuntos
de seus clientes.
— Sem dúvida.
Julien apanhou um papel dobrado no bolso da casaca.
— Reconhece isto?

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Hewitt olhou o papel.
— E uma ordem de pagamento do banco, assinada por mim e endereçada a
mademoiselle DeLis, no Convento do Sagrado Coração, em Lausanne.
Julien respirou fundo.
— O conde foi muito gentil comigo. No entanto não permitiu que eu lhe
devolvesse a quantia enviada à srta. DeLis — elaborou. Sou um homem rico, sr.
Hewitt. Mesmo que não fosse, isso afetaria minha honra, pois se trata de uma
parenta minha. Na verdade, não penso que lorde Bassington esteja no direito de me
negar isso. Os pagamentos foram autorizados pelo último conde, não foram?
O homem remexeu-se na poltrona, pouco à vontade. Aquilo só significava
uma coisa, observou Julien. Estava certo.
— Estou lhe pedindo, como um favor pessoal, que me forneça o total
desembolsado por Bassington. Sei que este foi apenas um dos pagamentos.
— Isso seria muito irregular, sr. Clermont. Compreendo que goza da total
confiança do conde, mas eu não posso lhe fornecer informações sobre a conta de
outro cliente.
— Minha alternativa, então — começou Julien —, é, arbitrariamente, imaginar
cerca de dez pagamentos iguais a esse. E depositar essa quantia aqui no banco, em
nome de lorde Bassington.
Era uma soma e tanto. Julien sabia que qualquer banqueiro ficaria perplexo
com uma atitude como aquela.
— Não é direito de um devedor saber quanto ele deve? — insistiu, arguto.
— Encara isso como um débito? — Hewitt o encarou. — Normalmente, as
pessoas considerariam esses pagamentos justiça feita, e não caridade...
— Não penso assim.
— Muito bem. — Hewitt tocou a sineta sobre a mesa e ordenou ao assistente
que fosse buscar uma pasta.
Julien tentou ocultar a ansiedade. Estava prestes a colocar os olhos em
documentos altamente confidenciais de mais de trinta anos.
— É este o total — declarou o banqueiro, assim que examinou os documentos
arquivados e escreveu a quantia em um pedaço de papel.
Duas mil libras, leu Julien. Duas mil libras por uma vida humana.
Após meses de esforços, finalmente tinha a prova de que necessitava:
Bassington era o homem.
Retirou do bolso uma ordem de pagamento em branco da própria conta,
preencheu-a com o mesmo valor e a assinou. O gesto era por puro orgulho. Podia
enviar o dinheiro na semana seguinte, quando já estivesse longe dali. Mas quando
aquele plano se formara em sua cabeça, havia decidido que o preço por manipular
Hewitt e obrigá-lo a trair a confiança do conde era firmar de uma vez o
compromisso.
—Vou providenciar o depósito na conta de lorde Bassington hoje mesmo —
garantiu o banqueiro e guardou o papel em um dos livros-caixa. — Quer que eu
envie uma cópia da transação para Bassington?

59
— Não será necessário — descartou Julien. — Eu mesmo direi a ele. Na
verdade, vou ao encontro do conde esta tarde.
Bassington tocou a sineta pela quarta vez. Onde estava o maldito lacaio? E
quanto a Rowley? Não queria sair da sala e deixar as cartas sem nenhuma proteção.
Havia o suficiente ali para acabar com o Tratado de Castlereagh... Além do mais,
prometera a Barrett que não deixaria ninguém pôr os olhos naqueles papéis.
Também não podia descer até a cozinha com uma pasta atolada de documentos
confidenciais debaixo do braço.
Ao perceber alguém à porta, girou o corpo, furioso:
— Onde diabos se meteu?
Mas não era o lacaio. Era Simon, com um tubo de madeira debaixo do braço,
provavelmente o tão decantado telescópio. Atrás dele vinham Royce, Serena e Julien
Clermont.
— Perdoe-nos, senhor — desculpou-se o tutor, com o rosto vermelho. — Não
pretendíamos incomodá-lo.
— Não, não. — Suspirou Bassington. — Eu é que peço perdão. Pensei que
fosse Hubert, pois estou tocando a sineta há mais de dez minutos e ele ainda não deu
as caras.—Olhou para o filho. — É o seu telescópio novo?
— E, sim! — Simon o entregou ao pai, radiante.
O conde o levou aos olhos e mirou a paisagem além da janela.
— Muito bom! — surpreendeu-se.
— Tem duas lentes! — regozijou-se o menino. — Serena e o sr. Clermont vão
testá-lo comigo agora mesmo.
— Verdade? Aonde pretendem ir?
— A srta. Allen sugeriu a catedral de St. Paul — disse Royce, hesitante. —
Achei melhor pedir sua permissão primeiro, depois do que aconteceu no ano
passado...
— Permissão para quê? — a voz da condessa soou logo atrás deles.
Simon olhou a mãe, ressabiado.
— Quero testar meu telescópio na cúpula da catedral. — Tomou-a pela mão,
numa súplica. —Vou tomar cuidado, mamãe, eu juro!
Lady Bassington o fitou horrorizada. Antes que pudesse abrir a boca para
negar, entretanto, o conde se adiantou:
— Podem ir.
Ela fulminou o marido com o olhar, depois suspirou profundamente.
— Se o sr. Clermont vai acompanhá-lo, creio que não há tanto problema.
— Serena pode ir também?
— Eu não a aconselharia a subir quinhentos degraus até o topo da catedral
algumas horas antes de um baile...
— Quinhentos degraus? — Serena arregalou os olhos.
— Quinhentos e trinta e quatro, para ser mais exato — confirmou Julien.
Ela se virou para o primo, aborrecida.
— Se é assim, sua mãe tem razão, Simon.

60
— Posso acompanhar os cavalheiros — Royce sorriu. — Alguém tem qúe
carregar o tripé e os acessórios.
— Por falar nisso — lembrou Bassington —, onde estão os criados desta casa?
— Emprestei todos a Sara, querido. Os dela não dariam conta de um evento
tão importante quanto p desta noite.
— Mas não era apenas um jantar dançante?
— Não exatamente. Primeiro haverá um baile e depois o jantar.
Bassington estreitou o olhar.
— Quantos foram convidados desta vez, posso saber?
— Poucos. Uns cem.
O conde correu a mão pelo rosto. Tinha imaginado no máximo vinte pessoas.
Planejara pedir licença após o jantar e voltar para casa a fim de terminar o serviço. O
prazo para responder ao czar estava se esgotando. Precisava dar cabo de sua missão
imediatamente. Em vez disso, ele e Barrett estariam presos a mais um dos eventos
sociais inventados por lady Bassington!
Não foi exatamente com surpresa que se viu de novo interrompido, pouco
tempo depois, por Clermont. Tinha percebido os olhares que ele trocara com sua
sobrinha momentos antes.
— Perdoe-me, senhor — desculpou-se Julien. — Tinha a intenção de lhe
escrever e pedir que me recebesse amanhã à noite, mas me ocorreu que poderia não
receber a mensagem, já que não tem nenhum criado à disposição, hoje.
—Verdade.—Bassington ia dizer "entre", mas lembrou-se dos documentos
espalhados sobre a mesa. Ergueu-se, então, e caminhou ao encontro de Julien na
antessala. — Então deseja falar comigo amanhã. Algo pessoal?
Clermont fez que sim com a cabeça.
— Não quer jantar conosco? — ofereceu.
Julien assentiu em silêncio, estranhamente pálido. O conde lembrou-se do dia
em que fora pedir a mão de Clara a lorde Bell e sorriu. Definitivamente, Serena havia
conseguido abalar as sólidas estruturas de Julien Clermont.
Satisfeito, observou-o sair após uma mesura. Clara ficaria radiante.

61
Capítulo VII

Serena aguardou que os outros casais tomassem seus lugares, com a sensação
de que o destino lhe pregava mais uma peça. Como a sobrinha obediente que era,
havia dito sim a todos os caprichos da tia.
Tinha até gostado do vestido que ela sugerira para o baile. Mais do que isso:
havia gostado da imagem que vira no espelho: dos cabelos semipresos, dos cachos
em torno do rosto, das jóias delicadas adornando o colo alvo sobre o decote discreto
do vestido de cetim azul.
Agora, ali estava ela, em meio aos casais que lotavam o enorme salão de baile
dos Barrett, com Clermont à sua frente.
Julien Clermont, a praga de sua existência... E o homem mais bonito da festa.
Não bastasse a elegância das calças cinza, da camisa im-pecavelmente branca
e da casaca de gala acompanhando a cor da calça, trajava um colete de cetim azul, do
tom exato do vestido dela.
Podia imaginar o comentário dos convidados. Formavam o par perfeito.
Clermont, maldito fosse, parecia imensamente à vontade com a situação.
A orquestra começou a tocar os primeiros acordes. Julien se curvou, Serena
fez o mesmo, e dirigiram-se para o centro do salão, separando-se, então, para
executar o primeiro passo.
— Se vai ficar me olhando desse jeito — Clermont cochichou —, melhor fazer
o mesmo com Royce e Philip quando chegar a vez deles.
Ela esboçou um sorrisinho falso e se afastou, já nos braços de outro
convidado.
Não demorou muito até que voltassem a se encoritrar em meio à dança.
— Precisa saber — falou Julien, enquanto Serena girava em torno dele. —
Você tem o sorriso mais bonito que já vi. Embora eu não o tenha visto muitas vezes.
Terminada a dança, ele a conduziu para a lateral do salão.
— Preciso falar com você — murmurou. — Dança comigo mais tarde?
Alguma música em que possamos conversar sem tantas interrupções?
— Já me comprometi a dançar com outro cavalheiro — disse Serena.
Era mentira. Se Clermont achava que ela iria dançar \aáa valsa com ele, devia
estar sonhando!
Por um segundo, pensou ver uma ponta de decepção nos olhos escuros. Ou
estava imaginando coisas?
— Posso acompanhá-la no jantar, então?—arriscou Julien. Serena desviou o
olhar para a condessa, que os observava,
radiante. Se dissesse não, a tia daria um jeito de envenenar qualquer outro
acompanhante.
— Tudo bem — concordou com um suspiro.

62
— Nos encontramos mais tarde, então — Julien declarou. —Agora, é melhor
você fazer companhia a Derring. —Apontou-o com a cabeça, depois se afastou.
Philip, de fato, abria caminho entre os convidados e se aproximava, sério.
Serena passou o braço pelo dele.
— Por que essa cara?
— Não é nada.
Caminharam em silêncio para um canto menos agitado do salão.
— Está apaixonada por Clermont? — Philip indagou, sem rodeios.
— O quê? — Ela o fitou, surpresa.
— Está apaixonada por Julien Clermont? — ele repetiu, impaciente.
— Philip!
— Ele lhe fez alguma proposta de casamento ou insinuou algum
compromisso?
Serena tentou rir, sem vontade.
— Por que isso ago...
— Escute — Philip a interrompeu, tenso. — Julien é meu amigo, mas eu
preciso dizer: não confie nele. Não se envolva muito, Serena — aconselhou,
constrangido.
— Está com ciúme?
— Claro que não, apenas preocupado. — Philip baixou os olhos. — Com
vocês dois.
Ela o observou com atenção.
— Nunca confiei muito no sr. Clermont — confessou. — Isso o deixa mais
tranquilo?
— Melhor assim.
Agora que os músicos pousavam os instrumentos para o intervalo do jantar,
Clermont poderia, finalmente, ir ao encontro de Serena.
Não foi difícil localizá-la. Era mais alta do que a maioria das mulheres
presentes no baile. Viu que ela conversava com Royce e se aproximou, discreto.
Visivelmente aborrecido com alguma coisa, o rapaz fez uma mesura e se afastou a
passos largos.
Ao vê-lo, Serena ensaiou um sorriso sem graça. Os cachos castanhos
adornavam-lhe o rosto e a tornavam ainda mais feminina.
—Acabei de levar uma bronca—confessou, entre surpresa e constrangida.
— Simon?
—Adivinhou. Ele sumiu outra vez. Parece que a sra. Digby está em polvorosa.
— Royce foi até lá, mas, antes, fez questão de deixar claro que Simon é assim
também por minha causa.
— Não posso negar que seu primo é uma criança mimada — comentou
Clermont, conduzindo-a pelo braço até a escadaria. — Mas creio que a maior parcela
de culpa caiba à condessa, à sra. Digby e ao próprio Royce. Se pensar, você é a única
que não tem nenhuma responsabilidade oficial pelo garoto.

63
— Sou a única a quem ele escuta... às vezes — emendou Serena. Soltou um
gemido ao avistar uma verdadeira multidão se acomodando para o jantar. — Não sei
se estou com tanta fome assim.
— Nem eu — concordou Julien. — Que tal irmos a outro lugar?
Ela fez meia-volta e, decidida, o fez atravessar o salão já semivazio em direção
a uma sala lateral.
— Por aqui — orientou e abriu uma porta que ele nem sequer notara.
— Outra passagem secreta?
— E apenas um corredor para a criadagem. Já vai se acostumar com a
penumbra.
Logo à frente, a escuridão cedia para um facho azulado. Era a luz da lua,
Julien percebeu, surpreso, ao vê-la abrir mais uma porta e sair para uma espécie de
varanda. Estavam nos fundos da mansão.
Correu os olhos pelo extenso pátio entremeado de canteiros. Outros casais
também se esgueiravam à procura de um pouco de privacidade.
Estava frio lá fora. Sem pensar duas vezes, ele se livrou da casaca e cobriu os
ombros de Serena.
— Que lugar estranho para uma sacada.
— Não é bem uma sacada. É o topo de uma escadaria. — Ela apontou os
degraus de ferro que desciam em direção à cozinha. — Os criados só a utilizam caso
precisem chegar à copa mais rápido.
O silêncio se instalou entre eles.
— E então, sr. Clermont? — Serena o quebrou. — Espero que nossa conversa
não leve muito tempo. Não dou mais do que alguns minutos para minha tia notar
nossa ausência.
Julien tinha vi ndo ao baile com apenas um propósito: cumprir a promessa
que fizera a Philip. Mas o que poderia dizer a ela? No fundo, não havia muito a falar.
Nada, ou quase nada, tinha acontecido entre eles.
Na verdade, se alguém os visse ali, aí sim o desastre estaria feito.
— Julien? — chamou Serena, usando seu nome pela primeira vez.
Ele a fitou, aturdido. O belo rosto, à luz do luar, parecia uma pintura. Como
se num sonho, viu-se erguendo a mão para acariciá-lo. Serena tentou recuar, porém
o espaço era mínimo.
— O que quer de mim? — ela indagou, com voz sumida. Julien estreitou o
olhar ao mirar os lábios cheios.
—Nada que você não queira também—murmurou e aproximou o rosto do de
Serena, como se atraído por um ímã.
— A-Acho melhor voltarmos. — Ela procurou a maçaneta, mas não havia
nenhuma.
— Parece que estamos trancados aqui.
— Não pode ser! — Serena buscou o portão da escada e o sacudiu. Estava
trancado também. Virou-se para Julien, então, o rosto ainda mais pálido ao luar. —
O que vamos fazer?

64
— Não sei — respondeu. Ele tornou a fitá-la e viu-se, mais uma vez,
hipnotizado pela beleza de Serena. O melhor, concluiu, era relaxar e parar de tentar
evitar o inevitável. — Só sei que quero isto...
Nem por um momento, o ar gelado que soprava em cima do telhado dos
Barrett representou um empecilho para Simon. A experiência não podia se mostrar
melhor. O garoto podia ouvir a música fluindo pelas janelas e portas abertas, e as
lentes do telescópio eram tão possantes que, mesmo a distância, conseguia avistar a
fivela dos sapatos dos homens!
Simon ergueu o telescópio devagar. O que significava aquela luz no quarto de
hóspedes? Era possível que a enfermeira já tivesse descoberto sua fuga?, pensou, em
pânico. Tinha prometido aos pais que não haveria outros episódios como o da
catedral de Saint Paul!
Moveu o aparelho, tentando encontrar uma maneira de voltar para lá sem ser
visto, agora que todos os criados da casa utilizavam a mesma passagem que ele
usara. Caminhou até a borda do telhado plano e, com cuidado, olhou para baixo.
Logo abaixo dele havia uma plataforma, onde um casal parecia prestes a se beijar!
Considerava a hipótese de assistir à cena ou procurar outra saída quando
percebeu:
— Serena!
Ela recuou com um salto e o homem olhou para cima, assustado. Era o sr.
Clermont, claro, constatou Simon, nem um pouco surpreso. Fez uma careta
esperando pela bronca, mas, em vez disso, o francês pareceu extremamente aliviado.
—Simon! Graças a Deus!—exclamou.—Pode nos ajudar? Estamos trancados
aqui!
— E só baterem na porta — falou o menino. — Ou então descerem pela
escada e entrarem de novo pela cozinha.
— Não é tão simples assim.
— Entendi. — Simon torceu o nariz. Era óbvio que os dois pombinhos
namoravam escondido e Serena não podia ser pega naquela situação, mesmo que
fosse se casar com Clermont. — Não dá para sair daqui agora, os lacaios estão
usando o corredor. E logo vão passar por aí...
A expressão de Serena foi de puro desespero.
— Consegue passar por essa janela? — Clermont indagou.
— Claro! Mas tem que segurar meu telescópio antes.
— Então ande logo! Serena segura o telescópio e eu pego você.
Simon obedeceu prontamente, mais preocupado com o aparelho do que com a
própria segurança. Em poucos segundos, estava em pé ao lado dos dois.
— Pronto — suspirou Julien e desarrumou os cabelos do menino
carinhosamente. —Alguma vez já sonhou em resgatar uma dama do perigo?
Simon sorriu, enigmático.
—Então, chegou a hora — declarou Clermont, após lançar um olhar divertido
para Serena.

65
Após descer correndo as escadas dos fundos, com Serena logo atrás dele,
chamando-o em voz alta a ponto de atrair a atenção de todos os criados que
circulavam pelo local, Simon ziguezagueou pelo pátio, tentando escapar de vários
voluntários dispostos a ajudar sua prima. Enquanto isso, Julien, carregando a valise
de couro do telescópio na mão direita, feito uma bandeja, misturou-se aos lacaios
rapidamente e dobrou a esquina da casa, utilizando a passagem lateral que Simon
descrevera.
Agora se encontrava em um corredor estreito e deserto, que não tinha idéia de
aonde iria dar. Também não sabia o que poderia fazer se o garoto não conseguisse
distrair os criados e estes viessem atrás dele.
Após alguns instantes sem chegar a lugar nenhum, Julien começou a ficar
tenso. Mais ainda quando escutou um barulho atrás de si e pensou ver sombras se
movendo mais adiante.
— Desculpe! — O cochicho exagerado de Simon quase o matou de susto. —
Precisei dar a volta no jardim.
— Aonde vamos? Parece ter gente no final deste corredor!
— Claro que tem. E a frente da casa. Devem ser os cocheiros.
— Que boa notícia! — ironizou Julien. — E como espera que eu me explique,
saindo da lateral da casa para o meio dos convidados?
— Eu já falei — Simon revirou os olhos. — Vou fazê-lo entrar por uma
passagem secreta, assim pode chegar à biblioteca.
Mesmo no escuro, Julien percebeu quando Simon retirou uma pequena faca
do bolso e a passou por uma fresta entre a janela e a parede lateral. Ao perceber a
grade de ferro, fechou os olhos por um segundo, perguntando-se como se deixara
convencer a entrar naquele buraco por um menino de onze anos.
— Abaixe-se! — ordenou Simon, e ele obedeceu, temendo o que viria em
seguida. Para sua surpresa, a janela se abriu junto com a parede.
— Pronto. Esta saleta fica ao lado do escritório de sir Charles, que é ali — o
garoto apontou uma porta na parede oposta. — Pode ir tranquilo. Ninguém usa esta
parte da casa em dia de festa. Quando, sair do escritório, vire à esquerda. A porta da
biblioteca é a maior. Ande logo! Preciso voltar e fingir que Serena me apanhou!
Julien tratou de se mover, porém Simon o segurou pela manga.
— E o meu telescópio?
— Aí, no seu pé — cochichou Clermont. Depois sorriu. — Obrigado!
— Tudo bem, mas não conte a ninguém sobre esta porta. Ned Barrett me
pediu sigilo absoluto!
— Pode deixar — garantiu Julien.
Pouco depois, escutou os passos apressados do garoto e um alvoroço na
entrada da copa. O visconde de Ogbourne havia sido apanhado em mais uma de
suas peraltices.
Do lado de fora da casa, o luar ainda proporcionava alguma visão. Lá dentro,
depois de fechada a entrada secreta, o breu era total. Teria de confiar na orientação
de Simon, concluiu Julien.

66
Na sala adjacente, havia alguma iluminação vindo da parte debaixo da porta
dupla, do outro lado. Agora, conseguia discernir alguns dos móveis: uma mesa, a
estante, a linha da lareira. Caminhou com mais confiança e colou o ouvido na porta.
Satisfeito com o silêncio, tentou abri-la, sem sucesso.
Praguejou baixinho. Estava preso outra vez.
Examinou o resto da sala. Havia uma janela, mas, assim como as outras da
casa, era gradeada. Agora, pelo menos, podia contar com a luz do luar. Examinou a
escrivaninha entulhada de papéis, os livros nas prateleiras. Tinha de haver outra
saída ou uma maneira de abrir a porta.
Passos pesados soaram do lado de fora e a luz sob a entrada tornou-se mais
intensa. Quando uma chave girou na porta, Julien já havia se escondido atrás das
pesadas cortinas. Percebeu o cheiro de vela e ouviu vozes. Mais de uma pessoa tinha
entrado ali, concluiu, ouvindo que mexiam nos papéis.
— Aqui está — anunciou alguém. Charles, sem dúvida.
— Vamos precisar disto na segunda de manhã — concordou outra voz, mais
grave. — Melhor guardar no cofre com os outros documentos, ainda que não tenha
nada muito revelador — aconselhou uma terceira.
— A sala fica trancada o tempo todo.
— Mesmo assim, convém colocar no cofre.
— Está bem — suspirou Barrett. — E quanto aos diários de Piers?
— Não são tão importantes como as cartas.
A luz fraca se afastou acompanhada dos passos. Ao escutar um ruído
metálico do outro lado da sala ampla, Julien se deu conta de que os homens se
encontravam fora de seu caminho.
— Maldição! — praguejou Barrett. — Este mecanismo nunca mais foi o
mesmo desde que o filho de Bassington tentou abrir o cofre.
Julien divisou a porta de entrada semi-aberta e não pensou duas vezes.
Aproveitou a penumbra e deslizou para fora da cortina o mais rápido que pôde
rumo à liberdade.
— No fim, creio que deu tudo certo, não acha, querida? — indagou o conde ao
sentar-se pesadamente na velha poltrona.
— Claro que não — respondeu lady Bassington.
— Diz isso por causa do incidente com Simon?
— Desta vez tem minha permissão para lhe dar umas boas palmadas — disse
ela e rumou para a penteadeira. — Imagine! Fugir de Serena pelo pátio, na frente de
todos os criados! O pobre Royce já tinha até desistido de procurá-lo. Viu o estado em
que surgiu, duas horas depois? Pálido, tenso...
— Clara, não posso culpar Royce pelo que aconteceu esta noite, mas talvez
seja melhor que ele não seja mais o tutor de Simon.
— Está pensando em demiti-lo?
— Não exatamente. Eu o manteria como meu secretário... e mandaria Simon
para a escola.
Pela primeira vez, ela pareceu considerar a hipótese.

67
— Sei que se preocupa com a saúde dele, querida. Mas, pense bem.
Ultimamente, Simon cansou de fugir de casa, com qualquer tempo, e não teve uma
só febre.
Lady Barrington respirou fundo. A noite tinha corrido às mil maravilhas.
Serena estivera linda em seu vestido azul, e combinando com Clermont, como ela
planejara. E ele parecera gostar da situação, o que havia acabado com seus temores.
Apesar da expressão fechada da sobrinha, notara como ela não tinha tirado os
olhos de Clermont cada vez que se afastavam durante a dança. E ele também parecia
encantado com ela. Então, não vira o modo como havia ficado quando Serena havia
saído de braços dados com Philip? Alguém precisava dar um empurrão definitivo
naquele relacionamento.
E Simon conseguira estragar tudo.
— Para onde mandaria Simon?
O conde tossiu de leve, como sempre fazia quando estava nervoso.
— Winchester, claro.
— Acha mesmo que isso seria bom para ele?
— Por que não? Os Piers sempre mandaram os filhos para Winchester.
— Então, providencie a ida de Simon para Winchester — decidiu, ainda que
com um nó na garganta.
O conde se levantou e caminhou até ela.
— Está mesmo magoada com nosso filho, não é, querida? Pelo visto, ele
arruinou sua noite. Não fique assim. No máximo, Simon conseguiu arrancar boas
risadas dos convidados.
— E acha isso engraçado? — ela explodiu. — Não foi só a minha noite que ele
arruinou, George, e sim a de Serena! Pela primeira vez em muito tempo, ela
concordou em se expor, em se divertir, em ser cortejada por um rapaz de classe... E
Simon estragou tudo! Sabe muito bem que minha sobrinha é capaz de passar os
próximos cinco anos enfurnada nesta casa. — Deixou escapar um soluço. — Sou a
pior mãe do mundo! Não consigo fazer aqueles dois se comportarem, por mais que
eu tente!
O conde sentou-se ao lado dela no banco da penteadeira e a abraçou,
carinhoso.
— Talvez se sinta melhor em saber que Clermont pediu para conversar
comigo em particular amanhã à noite. E também que ele depositou uma quantia
enorme em meu nome esta tarde, no banco — completou Bassington, em voz baixa.
— Clermont vai propor casamento? Oh, George! — As lágrimas da condessa
correram soltas. Abraçou o marido, tomada por uma estranha felicidade: por Serena
e por si própria, talvez. Não era um fracasso total, como chegara a imaginar.
No dia seguinte, todos na casa sabiam que Julien Clermont viria naquela noite
para pedir a mão da srta. Serena Allen.
Todos menos Serena. Quando ela se levantou e desceu para o café, notou que
os criados a olhavam de modo diferente, mas concluiu que devia ser pelo ocorrido

68
com Simon, na noite anterior. Não encontrou a tia, o que também era curioso. Talvez
a condessa ainda estivesse descansando por causa do baile.
Era melhor ir atrás do primo.
—Dietrich—Serena chamou um dos lacaios. — Viu Simon hoje?
— Não, senhorita — respondeu o rapaz.
Ela subiu para o quarto, onde tocou a sineta. Surpresa, viu-se atendida por
uma jovem que nem sequer conhecia.
— Onde está Emily?
— Desculpe, senhorita, mas a condessa pediu que Emily a acompanhasse esta
manhã e deixou ordens para que eu a atendesse.
— Então vá chamar Rowley, por favor.
O velho mordomo apareceu e informou que Simon se encontrava com o
conde na sala de leitura havia algum tempo.
Claro, lembrou-se Serena, consternada. O primo devia estar prestando contas
de suas "traquinagens" da noite anterior. Comprimiu os lábios, sentindo-se muito
mal, pois o garoto estava pagando pelo erro dela, e não era justo.
Depois de dispensar Rowley, Serena dirigiu-se à sala de leitura. As portas
continuavam fechadas, mas podia ouvir a voz do tio. Ele não parecia zangado.
Também não ouvia Simon reclamar ou chorar.
Depois do que lhe pareceu uma eternidade, finalmente Serena ouviu a voz do
primo. Em seguida, a porta se abriu e Simon deixou a sala sério, um pouco pálido
até. Teria apanhado antes de ela chegar?
O conde surgiu logo atrás dele e, ao vê-la, abriu um largo sorriso.
— Serena, minha querida — saudou-a com um beijo no rosto. — Espero que o
comportamento do seu primo não a tenha aborrecido, ontem.
Ela não se lembrava da última vez em que o tio a havia tratado com tanto
carinho.
— Estou preocupada com Simon. Espero que não tenha sido muito duro com
ele.
— Duro, eu? Não. Tivemos uma longa conversa. Não é mesmo, meu filho?
Simon assentiu em silêncio, os olhos fixos no chão.
— Muito bem — prosseguiu o conde com um suspiro. — Preciso retornar ao
trabalho. Barrett e eu teremos uma reunião hoje à tarde.
Ao ver o primo se afastar em silêncio, Serena foi atrás dele.
— Posso entrar? — pediu quando chegaram ao quarto. O menino deu de
ombros.
Uma vez fechada a porta, ele se virou para ela, visivelmente transtornado.
— Oh, Simon! — gemeu Serena, condoída. — Eu sinto muito, foi tudo minha
culpa! Seu pai bateu.em você?
O garoto se sentou na beirada da cama.
— Ele nem me tocou. Disse que vai me mandar para a escola.
— Verdade?
— Mas isso até que não foi tão ruim. Não me importo de ir para a escola.

69
— Então, o que foi? — Serena apertou as mãos, nervosa. — Ele não vai lhe
tirar o telescópio, vai?
— Não. Mas foi horrível. Eu até preferia que tivesse me batido — confessou o
garoto. — Em vez disso, meu pai disse que sou herdeiro dele, que estou crescendo e
por isso vou ter muitas responsabilidades. Contou que o sr. Clermont abriu os olhos
dele para as coisas boas que eu sei fazer. Também falou que tem vergonha quando
finjo estar doente para enganar minha mãe. Contou coisas sobre o primo Charles...
que eu não lhe contaria nem que pudesse. Disse que às vezes eu lembro o primo dele
e fica com medo de que eu fique igual a ele.
— Com certeza você se parece com Charles, Simon. Mas se parecer com
alguém fisicamente não quer dizer que tenha de ser exatamente como a pessoa.
— Ele não falou sobre aparência — declarou Simon, des-gostoso. — Falou
sobre o meu caráter.
— Pois eu acho que você tem muito bom caráter — disse Serena. — Olhe só o
que fez por mim ontem à noite... Se faz travessuras de vez em quando, é porque fica
muito tempo ocioso.
— Ele disse a mesma coisa. Por isso quer que eu vá para a escola. Droga! —
exclamou o menino, os olhos cheios de lágrimas.
Serena sentou-se ao lado do primo e passou o braço pelos ombros pequenos.
Simon lutou contra as lágrimas e ergueu a cabeça para fitá-la.
— Quando você se casar, posso morar com você, Serena? Isto é, nas férias da
escola?
— Não vou me casar tão cedo, seu bobinho. Vá pedir desculpas à sua mãe
agora. Será melhor assim.
— Não vai se casar com o sr. Clermont? — Simon parecia chocado.
— Claro que não. Por quê... — Ela se lembrou da cena que ele testemunhara
na noite anterior e corou. — Nem sempre um homem e uma mulher se casam depois
de trocarem um beijo, Simon — explicou.
— Não quer se casar com o sr. Clermont? Você não gosta dele?
Aquela era a segunda vez, em menos de vinte e quatro horas, que alguém lhe
perguntava se amava Julien Clermont. De alguma forma, a resposta que dera a
Philip agora não lhe parecia de todo sincera, notou, sentindo-se enrijecer.
— Não é bem assim — contemporizou. — O sr. Clermont nunca mostrou
interesse em se casar comigo, Simon. Tem tentado apenas ser uma boa companhia.
— Então, por que ele virá esta noite para pedir sua mão para meu pai?

70
Capítulo VIII
Pouco depois das oito e meia, Julien foi conduzido até a mesma saleta onde
Simon recebera sua sentença, naquela tarde.
Se soubesse disso, não teria ficado mais nervoso do que já se encontrava. Para
um homem que havia se abrigado sob um chão de tábuas em meio ao Terror, na
França, que duelara com um assassino e atirara em um urso a poucos metros de
distância, no Canadá, encontrava-se estranhamente abalado com aquela reunião. De
nada adiantava dizer a si mesmo que a sorte estava lançada, que aquela visita ao
banco o fizera chegar a um ponto sem volta.
Sentou-se, tenso, na poltrona que o conde apontava.
— E então, sr. Clermont — começou Bassington alegremente. — Não vou
fingir que não sei por que veio até aqui esta noite... E se eu estou muito feliz que
queira entrar para a família, imagine a condessa!
Julien entreabriu os lábios, em choque.
— Então... sabe por que vim aqui?
— O sr. Hewitt me informou a respeito da sua visita ao banco. — Bassington
sorriu, satisfeito. — Não era necessário fazer o que fez, mas compreendo que um
jovem tenha seu orgulho.
Julien engoliu em seco.
— Não acha que vai ser um escândalo?
— Por quê?
— Porque não sou legítimo — disse, sem rodeios. O conde soltou uma risada.
— Só Deus sabe quantos Conde deve haver por aí, meu rapaz. Um bisneto de
Luís XIV não precisa corar por causa de suas origens.
Julien sentiu a cabeça rodar. Bassington havia descoberto quem ele era, estava
preparado para reconhecê-lo. Um sonho que ele alimentara desde os dez anos
começava a se tornar realidade. Ensaiou um sorriso, tentando demonstrar sua dis-
posição.
— Quer algo para beber? — o conde indagou.
— Não, obrigado — Precisava se manter sóbrio, absorver tudo aquilo com a
mente limpa.
Bassington se ergueu e apanhou um dos cálices sobre uma bandeja de prata.
— Aliás, quem é seu pai? — perguntou. — O duque de Bourbon?
O sonho que Julien julgava realizado explodiu em mil pedaços. Se o conde
não se dera conta da verdade, então por que o recebera tão efusivamente, afirmando
saber o motivo de ele estar ali? Não tinha mais condições de pensar, no entanto.
Precisava responder.
— Você é meu pai — disse. Bassington voltou-se lentamente.
— Como disse?
— Você é meu pai — repetiu Julien.
— Mas... você é um Conde! Julien respirou fundo.

71
— Minha mãe era Louise-Aline de Bourbon-Condé. Devia conhecê-la apenas
como Aline DeLis.
O conde franziu a testa.
— Não me recordo de ninguém com esse nome.
A velha amargura tornou a assaltar Julien. A mesma vontade de ferir como
tinha sido ferido. Aquele momento fora a razão de todas as suas manobras, de todas
as mentiras.
O pai dele podia ter se transformado em alguém respeitável, mas, trinta anos
antes, havia sido o tipo de homem que nem sequer se lembrava de uma menina a
quem havia seduzido e abandonado. Talvez fosse desagradável, porém não injusto,
que o bom homem de hoje em dia pagasse pelos pecados cometidos na juventude.
Na verdade, pensou Julien, o maior capricho em seu plano de vingança era
testemunhar como o nobre conde de agora reagiria ao conhecer o filho que
desprezara quando moço. Ergueu-se.
—Vou refrescar sua memória, então — declarou, amargo. — Minha mãe era
loira, de olhos verdes. Era a mais jovem da sua família e muito voluntariosa, pelo
que me contaram. Quando tinha dezessete anos foi mandada para a escola de um
convento, próxima a Beauvais, que detestou. Poucos meses depois de chegar lá,
fugiu com a ajuda de um criado. O homem tinha prometido levá-la até Amiens, para
que ela pedisse ajuda à família de um primo... Mas o criado a abandonou na
primeira estalagem pelo caminho: um lugar horrível, local de parada da estrada que
levava a Paris.—Respirou fundo. — Quando ela percebeu que havia cometido um
erro, engoliu o próprio orgulho e pediu ao dono da hospedaria que a levasse de
volta ao convento. Mas alguns homens que ouviram a conversa tiveram outra idéia...
Em meio ao assédio e sabe-se lá mais o que, ela viu um rapaz bem vestido na entrada
da estalagem e percebeu que se tratava de alguém diferente dos demais. Pediu
socorro, e ele a livrou dos marginais, levou-a para outro lugar, deu-lhe comida,
bebida e a confortou, prometendo devolvê-la às freiras. — Julien fez uma pausa,
melancólico. — Ela se apaixonou perdidamente por ele. Era um lorde inglês, ficou
sabendo depois. Poucos quilômetros antes de chegarem ao convento, ele a
surpreendeu ao pedi-la em casamento. Ela aceitou, claro, mas escondeu seu nome
verdadeiro, temendo que a família pudesse tentar impedi-la de se casar com um
desconhecido. Não revelou sua verdadeira identidade nem mesmo depois de ficar
noiva dele.
Bassington ouvia a tudo como se em transe.
— O jovem não se casou com ela. — prosseguiu Julien. — Em vez disso, a
persuadiu a ficar com ele em um vilarejo perto da costa, enquanto aguardava pelo
dinheiro que havia mandado buscar na Inglaterra. Um dia, simplesmente desa-
pareceu... sem saber que eu já estava dentro dela — acrescentou, amargo.— Depois
de usar todo o dinheiro que o jovem lhe havia dado, minha mãe conseguiu,
finalmente, retornar ao convento. Eu nasci lá. Logo depois, ela foi convenientemente
enviada para outro convento, e minha tia me levou para a casa de meu avô, onde fui
criado por uma ama-seca. Quando eu era grande o suficiente para compreender o

72
que havia se passado, ela me disse que minha mãe tinha morrido, que eu a havia
matado, e que eu era a encarnação do pecado daluxúria. Minha mãe não estava
morta, na verdade. Morreu pouco antes de eu descobrir para onde ela havia ido, por
isso jamais a conheci.
O conde continuava impassível.
— Quando eu tinha cinco anos — prosseguiu Julien —, meu avô me
reconheceu como neto e me contemplou com um de seus títulos. Passou várias
propriedades para o meu nome, muitas das quais foram confiscadas após a
Revolução, mas também me deu uma boa quantia em dinheiro, referente ao dote de
minha mãe. Esse dinheiro, e somente esse dinheiro, foi que me dispus a usar até
agora. Tive a sorte de fazer bons investimentos após terminar os estudos. Portanto
pode ficar tranquilo. Não vim até aqui para exigir o que seria meu de direito. Na
verdade, depositei na sua conta, esta tarde, cada centavo dos pagamentos que
mandou fazer à minha mãe, na Suíça.
— Que pagamentos? — O conde finalmente reencontrou a voz.
— Os pagamentos que o sr. Hewitt me confirmou quando visitei o banco,
ontem. Seis, totalizando pouco menos de duas mil libras, que foram enviados à srta.
DeLis, no convento de Lausanne. Ainda tem coragem de negar?
Bassington avançou um passo na direção dele.
— Nunca ouvi falar dessa moça na vida.
Julien retirou o comprovante do bolso e o depositou ao lado do cálice de licor
intocado.
— Autorizado por seu pai. Hewitt me confirmou.
O conde fitou o papel, boquiaberto, depois se sentou na poltrona.
— Eu juro: não fui santo quando jovem, mas nunca... até onde sei, tive outro
filho além de Simon. E, certamente, me lembraria do episódio que me contou. Eu
jamais confundiria uma dama com as jovens com as quais costumava me divertir na
Fran...—parou e o fitou nos olhos.—Quando você nasceu?
— No verão de 1885. Bassington respirou fundo, aliviado.
— E tudo um lamentável mal-entendido, Clermont. Não posso ser seu pai.
Em 1885, e no ano anterior, eu estava nas índias Ocidentais.
Julien soltou uma risada seca.
— Acha mesmo que vou acreditar nisso?
— Está insinuando que estou mentindo?
— Claro que sim! Então eu não acreditaria no conteúdo da carta que minha
mãe me deixou antes de morrer? Ela foi muito clara: meu pai era o filho do conde de
Bassington. Quantos filhos tinha seu pai? Vi muito bem aquele retrato seu, quando
menino, em Boulton Park. Podia ser eu mesmo. Como explica isso? E quanto a
Hewitt? Está acusando seu próprio banqueiro de uma farsa? A troco de quê seu pai
iria mandar dinheiro para minha mãe?
— Não tenho a mínima ideia! — rosnou o conde, tão transtornado quanto
Julien. — Como ousa entrar aqui e me fazer todas essas acusações? Aliás, que
estranha coincidência vir estudar borboletas na minha casa, em Boulton Park! Qual o

73
seu jogo, afinal, seu salafrário? O que quer de mim? Talvez seja melhor eu chamar o
comissário!
— O que eu quero de você? — rebateu Julien, gelado. — Quero que saiba que
tipo de filho teve. No que me transformei vivendo como um bastardo ou como "a
encarnação do pecado", como já disse meu avô. Por isso, imaginei que gostaria de
saber que seu filho é do tipo que consegue manipular, enganar e entrar em qualquer
lugar — acrescentou com amargura.
— O acidente que sofri veio muito a calhar. Pude investigar meu passado
morando na sua casa e lendo os diários de seu pai. Falei com os criados, com seu
filho, com sua sobrinha. Algo desprezível... Mas não tanto quanto o que fez com
minha mãe, lorde Bassington. — Encarou-o, os olhos faiscando. — Quer saber da
maior ironia nisso tudo? Comecei a gostar de você. Passei a admirá-lo. Gostei da sua
família: da minha família. Quando entrei aqui, agora, pensei até em dizer que o
perdoava.
— Fora daqui! — gritou Bassington, tropeçando até a parede para tocar a
sineta.
Julien apanhou o comprovante de cima da mesa, pálido.
— Seu tataravô era um homem rico, membro da guarda real, elevado à
nobreza por um Stewart. O meu era um dos reis mais poderosos da Europa. Ainda
assim, eu estava disposto a aceitá-lo como pai, apesar do tratamento que dispensou à
minha mãe. Se prefere não me reconhecer como filho, é direito seu. Mas, confesso, eu
não esperava isso de você.
—Fora!—repetiu Bassington, implacável, puxando a corda da sineta repetidas
vezes. — Serena não vai perder nada ficando sem você. Eu mesmo lhe direi isso!
Ao ouvir o nome dela, Julien sentiu-se regelar. A frase dita por Bassington,
alguns momentos antes, passou a ecoar na cabeça dele, num tormento:
...estou muito feliz que queira entrar para a família...
— Onde estão esses malditos lacaios?! — Bassington esmurrou a parede,
transtornado.
— Espere! — Julien ergueu a mão. — Por que me tratou tão bem quando
entrei aqui? — indagou, receoso.
A resposta, contudo, já emergia dentro dele, irônica, cruel.
— Pensei que tivesse vindo pedir a mão de minha sobrinha
— confessou o conde com uma risada amarga. — Não precisa fingir mais. Sua
intenção é mais do que óbvia agora: para alguém da sua natureza, ferir Serena só
acrescentaria mais um pouco de tempero à sua receita de vingança. Embora eu custe
a acreditar, agora sei que não hesitaria em tornar minha família a maior vítima do
seu ódio, Mas não se deixe enganar, Clermont. Só não o processo por respeito à
minha esposa.
— Serena também acha que vim até aqui por causa dela? — quis saber Julien.
—Claro que sim.—O conde observou a palidez de Clermont, desconfiado.
— Posso falar com ela um minuto? Só por um instante! Para me desculpar!
— Nunca!

74
O lacaio surgiu à porta nesse instante e arregalou os olhos ao ouvir o patrão
rosnar:
— De hoje em diante, está proibido de pisar nesta casa. Eu o proíbo até de
olhar para minha sobrinha! Aliás, eu o proíbo de fazer contato com qualquer
membro desta família! Ouviu bem?!
Clermont comprimiu os lábios.
— Mostre a saída ao sr. Clermont — ordenou o conde ao perceber a presença
do criado. — E diga a Rowley para instruir os outros empregados: este senhor não
deve se aproximar de Boulton Park em nenhuma circunstância!
— Sim, milorde — aquiesceu Hubert em voz baixa. Nem por uma vez, fitou
Clermont nos olhos enquanto o conduziu até a porta e entregou-lhe a casaca e o
chapéu.
A porta se fechou atrás de Julien com um baque. Ele permaneceu na entrada,
apertando as luvas em uma das mãos.
— Idiota! — praguejou contra si mesmo.
No final daquela tarde, a condessa finalmente informou Serena sobre a visita
de Clermont e sua provável proposta. Conforme havia combinado com Simon,
Serena fingiu surpresa, o que não foi difícil, uma vez que continuava em choque com
a notícia. Por que aquilo, depois de tudo o que haviam conseguido evitar na noite
anterior? E como Clermont ousava conversar com seu tio antes mesmo de saber se
ela aceitaria uma proposta de casamento?
Desde o momento em que Simon lhe contara o que estava prestes a acontecer,
Serena ficara no quarto, andando de um lado para outro, sem saber o que pensar
nem como agir.
Aquilo era uma afronta, um disparate!, raciocinava; para em seguida parar,
confusa. Clermont havia agendado a visita antes do baile, contara sua tia. Ele já tinha
a proposta em mente antes de ficarem presos no fundo da casa dos Barrett?
O jantar foi servido mais cedo e os pratos removidos com uma rapidez que a
deixou atônita. Antes das oito, Rowley bateu na porta.
— Ele já chegou, senhora — informou o mordomo, com indisfarçada emoção.
Em seguida, cumprimentou Serena, sorridente, e se retirou.
Lady Bassington virou-se para ela, radiante.
— Ah, minha querida! Quero ser a primeira a lhe desejar felicidades! —
Segurou-a pelas mãos. — Isto está além do que imaginei: um rapaz bonito, culto e
membro de uma das famílias mais importantes da Europa!
Aquilo estava mesmo acontecendo?, pensou Serena.
—Vamos indo, querida. Seu tio não vai monopolizá-lo mais do que alguns
minutos.
Uma vez na sala de estar, Serena sentou-se em uma poltrona, os ombros
tensos. O que diria quando Clermont surgisse e ficassem a sós? Iria beijá-la com o
mesmo ardor da noite anterior?, perguntou-se, sentindo o coração disparar dentro
do peito com a lembrança de como ele a tomara nos braços.

75
Reprimiu um sorriso. Devia contar a Julien que o levara de propósito para o
canto mais deserto da mansão dos Barrett?
As imagens e sensações se sucediam em sua mente e Serena não se deu conta
da passagem do tempo. Só percebeu a ansiedade da tia quando esta lançou um olhar
para o relógio de parede, visivelmente preocupada.
Sentiu o peito se apertar ao lembrar-se das palavras de Philip, perguntando se
estava apaixonada... Deveria se casar com Julien Clermont?
Quando encontrou outra vez o olhar da tia, a condessa ensaiou um sorriso
nervoso.
— É típico de George começar a falar de política e investimentos nas horas
mais impróprias. Não se preocupe, querida.
Foi nesse momento que ouviram o tumulto. O escritório do conde ficava no
andar de baixo, porém as vozes ecoaram até a sala de estar, inconfundíveis.
Assustada, Serena segurou-se na poltrona. Lady Bassington estava lívida.
Durante cinco minutos, ambas permaneceram imóveis, sem saber o que
pensar. Os gritos tinham cessado, mas, pouco depois, perceberam a porta da frente
ser aberta e fechada em seguida.
Não demorou até ouvirem passos na escada. A condessa se levantou antes
mesmo da entrada de Rowley.
— Sua Excelência deseja lhe falar... em particular — comunicou com voz
grave.
Serena percebeu que o mordomo evitara olhar para ela.
— Com sua licença, tia Clara — pediu com voz fraca. Passou pelos dois,
rígida, depois caminhou para o quarto e sentou-se na beirada da cama.
Quando seu tio chegou, Serena ouviu tudo o que ele tinha a dizer.
Tão logo o conde saiu, ela se levantou e trancou a porta. Livrou-se do vestido,
dos sapatos novos, soltou e escovou os cabelos. Em seguida, vestiu a camisola e foi
para a cama.
Ouviu a tia bater na porta, mas não respondeu. Continuou abraçada aos
joelhos, sob a coberta, feito um animal ferido, pensando no que o tio acabara de
contar e perguntando-se por que estava naquele estado, se nunca tinha confiado em
Julien Clermont.
Julien fitou o nada. Se Bassington era mesmo seu pai, a resistência dele em
assumi-lo descartava qualquer obrigação que pudesse ter para com o conde. Se não
era seu pai, tal obrigação nem sequer existia. De qualquer modo, não estava disposto
a lhe obedecer em se tratando de Serena. Aliás, não sairia de Londres enquanto não
pudesse falar com ela. Precisava dizer quanto sentia por tudo aquilo. Precisava
explicar como e por que havia tomado uma atitude que agora lhe parecia tão
insensata.
O remorso acabou por sobrepujar a razão, e Julien rumou de volta para
Manchester Square, menos de seis horas após ter discutido com o conde. Não se
surpreendeu ao deparar com uma sentinela na entrada.

76
As aventuras na companhia de Simon, entretanto, acabaram por lhe render
uma solução para o problema. Sem pensar duas vezes, recuou em direção à casa dos
Barrett e, certi-ficando-se de que não era visto, tomou a passagem estreita que
ladeava a casa. Dali escalou a parede de pedra e saltou para os fundos da
propriedade dos Bassington. Deslizou ao longo da amurada até a casa, ocultando-se
por detrás das árvores, abriu uma das janelas do primeiro pavimento e entrou.
Logo depois, encontrava-se em um dos corredores escuros que Simon
costumava usar, no terceiro andar, embora não soubesse, ao certo, qual deles levava
ao quarto de Serena. Procurou luz sob as portas, parando vez ou outra para escutar
vozes, sem sucesso.
O melhor seria apelar para o menino mais uma vez, concluiu. Ao menos sabia
onde era o quarto dele.
Simon dormia ao lado uma lamparina acesa. Julien colocou a mão sobre a
boca do garoto.
— Simon!
Os olhos azuis se abriram de leve. Um segundo depois, o menino cravou os
dentes na palma da mão dele.
— Está maluco?! — Julien tirou a mão com uma careta de dor.
— Seu desgraçado! Mentiroso! Vou matá-lo! — Simon disse. Parecia
realmente transtornado, mas não chegou a gritar, o que era um bom sinal.
— Preciso falar com Serena! Tem que me ajudar!
— Quando eu crescer vou matar o senhor!
— Daqui a dez anos, se ainda estiver com tanta raiva de mim, pode vir à
minha procura — anuiu Clermont. — Tem todo o direito de estar assim. O que eu fiz
foi desprezível.
Simon piscou, confuso.
— É mesmo um espião?
— Não sou espião coisa nenhuma. Tive um problema com seu pai, mas
escolhi a pior forma de tentar resolvê-lo.
— Foi por isso que me deu o telescópio? — perguntou o menino, a voz cheia
de mágoa. — Para conseguir entrar aqui?
Julien engoliu em seco. Se sua culpa era tão devastadora diante de uma
criança, o que não sentiria quando Serena lhe perguntasse por que havia flertado
com ela?
— Não foi bem assim — contemporizou. — Mas não vejo por que você
acreditaria em mim.
— Não acredito mesmo — concordou Simon, embora sem muita convicção. —
Por que quer ver Serena?
—Para pedir desculpas. Preciso saber qual é o quarto dela. Simon hesitou
apenas um segundo.
— Quarta porta à direita. Mas deve estar fechada. Serena costuma se trancar
quando está triste. — Saltou da cama e, para surpresa de Julien, enfiou-se debaixo
dela. Ouviu-se um ruído de tacos e, pouco depois, ele reaparecia com o rosto

77
afogueado, trazendo consigo uma pequena caixa. Dentro dela, havia um saco de
feltro repleto de chaves de todos os tipos e tamanhos. — E esta — anunciou, após
checar uma a uma.
Julien sorriu.
— Está desperdiçando seu talento trancado nesta casa.
— Serena também quer matá-lo — alertou o garoto.
— Eu já imaginava — Julien respirou fundo. — De qualquer modo, obrigado
pela ajuda.
Serena não conseguia dormir nem chorar. Assim, levantou-se, vestiu um xale,
afastou as cortinas e sentou-se ao lado da janela para fitar o luar que banhava os
telhados das casas.
Só então passou a relembrar tudo o que havia vivido com Julien Clermont. Se
fosse honesta, admitiria que aquela sensação de perda não era pelo que ele tinha
feito naquela noite, na noite anterior ou dias antes. Era, sim, por sua própria
estupidez. Bastara um beijo, meia dúzia de olhares, e ela baixara completamente a
guarda. Agora, temia não vê-lo nunca mais. Gostaria de ter tido a chance de lhe
dizer que não estava magoada com ele, por mais que isso fosse justificável, e sim
com ela mesma.
Mal chegou a essa conclusão, ouviu o barulho da chave. Simon? Olhou para a
porta, mas a luz fraca da lamparina não foi suficiente para que discernisse quem
poderia estar à sua procura àquela hora. Por um instante, não ouviu mais nada e,
intimamente, soube que não se tratava de seu primo.
Os passos firmes confirmaram suas suspeitas.
— Ainda não está dormindo — murmurou Clermont.
— Ainda não está morto — Serena rebateu, amarga. — Se eu fosse homem,
isso não demoraria a acontecer.
Julien ajoelhou-se ao lado dela.
—Simon me falou a mesma coisa. E eu bem que mereceria. Fui um canalha, e
o que fiz, em parte por ignorância, só tornou as coisas ainda piores.
— Canalha? — Ela riu, sem vontade. — Tem idéia do que aconteceu esta
noite?
— De nada adiantaria eu lhe pedir perdão? — arriscou Julien. — Confessar
que estava tão concentrado nos meus próprios problemas que em nenhum momento
me ocorreu o que os outros ou você poderiam pensar da minha visita?
Serena o encarou, os olhos cinza tomados de dor.
— Você invadiu a propriedade de meu tio, mexeu em documentos
confidenciais e se aproveitou daquele acidente para conseguir ficar aqui.
— Verdade.
—Ainda tentou conquistar Simon e a mim só para se manter próximo da
família.
— A princípio... sim.
— Como pode me pedir desculpas depois de tudo isso que acabou de
confessar?

78
— Porque meus crimes têm uma justificativa. Por mais inadequada que ela
possa parecer. A humilhação que você sofreu esta noite foi resultado da minha
negligência. Não foi intencional.
— Achou mesmo que eu estava ansiosa para dizer "sim" a essa proposta de
casamento? — Serena tentou ser irônica, sem sucesso.
— Quando saí daqui cheio de remorso, no começo da noite, imaginei você me
esperando na sala, pronta para correr para os meus braços — confessou Julien.—
Depois caí na realidade e concluí que o mais provável seria você estar indignada por
eu ter ido falar com seu tio sem nem sequer consultá-la sobre minhas intenções.
Aquela última descrição se encaixava tão bem no que realmente acontecera
que Serena até prendeu a respiração.
— Mesmo que você quisesse recusar, Serena, o que aconteceu aqui esta noite
deve ter sido um golpe. Quando penso, mal posso acreditar na minha estupidez.
Convivi com você e Simon dias a fio: fomos a concertos, exposições, dançamos
juntos. Philip me alertou que você podia sofrer quando eu fosse embora, e não lhe
dei ouvidos. Tentava me convencer de que os meus problemas não iriam atingi-la.
No fim, feri a mim mesmo. E acabei magoando você e Simon... Tem todo o direito de
querer me ver morto. — Como se para comprovar o que dizia, Julien lhe entregou a
pistola que carregava na cintura. — Use-a, se quiser.
Serena mirou os lábios benfeitos e, por algum motivo, pareceu-lhe errado ele
estar ajoelhado diante dela. Escorregou cadeira abaixo e se pôs junto de Julien,
ignorando o xale que caiu, expondo a transparência da camisola. Ergueu a mão e
tocou-o no peito, no pescoço. Ele fechou os olhos e pendeu a cabeça de leve,
acariciando a mão dela com o rosto.
— Se me matasse, a tortura seria menor — disse, rouco. A resposta de Serena
foi mergulhar as mãos nos cabelos e beijá-lo nos lábios, lenta, de forma
enlouquecedora. Julien não ousou abrir os olhos, temendo despertar de um sonho.
Moveu a boca contra a de Serena, seguidamente, em investidas firmes e ao mesmo
tempo suaves, depois a puxou para si. Ao perceber que ela tentava livrá-lo da casaca,
abriu os olhos, mal acreditando no que se passava sob a claridade que vinha da
janela. Serena encontrou o olhar dele com o coração aos saltos. Não havia mais
nenhuma barreira.
Julien passou a explorar o corpo de Serena, devagar. Afastou os cabelos
longos, acariciou a pele alva de seu pescoço, as curvas delicadas dos seios. Tornou a
beijá-la, e ela o abraçou com ânsia, como se pudesse, com isso, afastar todas as
dúvidas. Ele retribuiu o abraço, ao mesmo tempo em que erguia o tecido fino da
camisola, acariciava-lhe as pernas e as coxas, beijava-a no pescoço, nos seios. Não
disseram uma só palavra, ainda que suas respirações entrecortadas destoassem do
silêncio da casa.
Tombaram sobre o tapete, os corpos entrelaçados. Por um segundo, Serena
teve consciência da reação quase selvagem do próprio corpo. Sentia a pele arder com
uma urgência que desconhecia; queria as mãos de Julien sobre os seios, sobre as
costas. Qualquer obstáculo entre eles, material ou não, já não parecia mais

79
intransponível. Num impulso, ela ergueu-se de leve, fitou os olhos castanhos,
semicerrados de desejo, e livrou-se da camisola.
— Serena! — sussurrou Julien, enfeitiçado. — Tem ideia de quanto é
maravilhosa?
A resposta dela foi curvar-se sobre ele e permitir que os cabelos longos o
acariciassem, num convite. Livrou-o do lenço de seda com ânsia e tentava abrir os
botões da camisa branca quando Julien a deteve, o peito ainda arfando.
— Serena... não podemos... Eu não posso fazer isso! Não vou arruiná-la!
Ela soltou uma risada fraca.
— Já estou arruinada há muito tempo.
Ele se ergueu sobre um cotovelo e tocou-a na face, os lábios apertados em
uma linha fina.
— Não está arruinada coisa nenhuma. Seja lá o que for que tenha lhe
acontecido, você era apenas uma menina. O que está acontecendo aqui é muito
diferente. Não vou arriscar, Serena, nem por você, nem por mim... nem por um filho.
Pois eu não gostaria que ele crescesse sem um pai, como eu cresci.
Serena o fitou, confusa. Então endireitou o corpo, em choque. Julien era um
bastardo?
Como não tinha desconfiado? Por isso tentara se aproximar dela: casando-se
com a sobrinha de um conde, poderia reforçar sua condição de nobre.
Quis sentir raiva, esmurrá-lo no peito, mas foi tomada por um estranho vazio.
Afastou-se dele, sentindo-se impotente, irremediavelmente fraca.
Sem se levantar, vestiu a camisola. Então abraçou os joelhos e chorou como
havia muito tempo não fazia.
— Serena... — chamou Julien, agoniado.
Sem obter resposta, ele se ergueu e a tomou nos braços. Levou-a até a cama e
deitou-se com ela, acariciando-a e beijando-a nos cabelos até que os soluços foram se
tornando mais espaçados. Abraçou-a, tentando protegê-la de alguma forma.
Serena não se opôs. Ocultou o rosto na curva do ombro largo e o abraçou de
volta, com medo de que Julien partisse sem dizer adeus.

80
Capítulo IX
O céu começava a clarear quando Julien sentiu Serena se mover junto dele.
— Está acordada?
Ela estremeceu ao percebê-lo se afastar.
— Estou.
— Preciso ir. Não demora muito e algum criado vai entrar aqui para reavivar
o fogo.
Ao observá-la, Julien quase se arrependeu da decisão que tomara na noite
anterior. Serena era estonteante.
— Você não é um espião? — ela quis saber. — Não estava tentando obter
informações do governo?
— Claro que não! — Julien riu.
— Então, por que armou tudo para entrar aqui?
— Seu tio não lhe contou nada? Serena negou com um gesto de cabeça.
— Disse apenas que você tinha inventado uma história absurda para mascarar
suas verdadeiras intenções.
— Ele é meu pai, Serena.
Ao vê-la enrijecer, tomou-lhe a mão.
— O conde nega, mas eu tenho provas. Por isso vim para Boulton Park.
Apenas para fazê-lo pagar pelo que fez à minha mãe.
Ela franziu a testa, confusa.
— Que provas pode ter?
— Minha mãe me escreveu uma carta antes de morrer. Disse que meu pai era
herdeiro dos Bassington, na época em que o quarto conde ainda era vivo. Tenho
ordens de pagamento que foram enviadas a ela no convento, autorizadas por esse
conde. Tenho um retrato meu, aos oito anos, que é como uma cópia daquele retrato
de seu tio, quando ele era criança, em Boulton Park. — Soltou uma risada seca. —
Ele diz que nessa época estava nas índias Ocidentais e que não poderia ter gerado
um filho em 1784, na França. Serena o tocou no braço.
—Mas ele estava nas índias Ocidentais — confirmou, tensa. — Coughlin, um
dos criados de Boulton Park, foi contratado lá. Na ocasião, foi acusado de ter
roubado um peixe, e meu tio praticamente o resgatou das mãos do patrão, que
queria matá-lo por isso, e o trouxe para a Inglaterra. E isso já vai fazer trinta anos.
Coughlin não se cansa de repetir essa história.
— Minhas provas são mais contundentes, Serena — Julien disse com
veemência. — Mas isso não vem ao caso agora. — Levantou-se, apanhou a casaca
jogada no chão e a vestiu. — Eu sinto muito — murmurou. — Sinto por tudo. Sei que
isso parece pouco, nas circunstâncias, mas não posso fazer mais nada. Você merece
ser feliz, Serena, e tenho fé de que vai conseguir. — Apanhou o xale e o passou pelos
ombros dela. — Adeus — disse, baixinho. — Vou me lembrar de você toda vez que
vir uma borboleta — tentou sorrir, sem muito sucesso.

81
Ela fez o mesmo.
Clermont deixou o quarto silenciosamente, atravessou os corredores desertos,
o jardim ainda às escuras e retomou a passagem lateral da casa dos Barrett,
perguntando-se como pudera levar adiante seu plano de vingança, depois de seu
caminho ter cruzado o de Serena Allen.
Meia hora depois, ainda deitada e sonolenta, Serena continuava a pensar nas
contradições entre a versão de Julien e a de seu tio, dividida entre a veemência do
primeiro e a certeza de que o conde não havia ido à França, trinta anos antes. Quem
estava mentindo, afinal? O conde? A mãe de Julien? Hewitt? Coughlin?
Tentou imaginar como era o tio na idade de Julien. Afinal, vira apenas aquele
retrato na parede da sala...
Abriu os olhos e sentou-se de um salto. O menino do retrato, de olhos escuros
e cabelos claros: parecia uma cópia de Julien... mas não era o conde de Bassington.
Ao ouvir a campainha tocar no andar de baixo, Julien deduziu que devia ser
um dos porteiros que haviam chamado para ajudar com as malas. Em vez do tom
grave que esperava, escutou uma voz familiar. A dona daquela voz, pensou, alar-
mado, deveria estar na cama, onde ele a deixara sozinha, mas em segurança.
Voou escadaria abaixo. Caso Serena tivesse vindo até ali para lhe pedir que a
levasse com ele, não saberia o que dizer.
Serena não estava sozinha, e sim com uma dama de companhia.
— O que está fazendo aqui?—Julien indagou, controlado.
— Vim lhe devolver uma coisa. — Ela retirou a pistola de prata de dentro da
pequena bolsa. — Emily—voltou-se para a jovem acompanhante —, espere por mim
aqui. Preciso conversar em particular com o sr. Clermont.
Sem alternativa, ele a conduziu até a sala de estar.
— Pelo amor de Deus, Serena — começou, em voz baixa —, quer ser obrigada
a ir para um convento como minha mãe?
— Emily não vai dizer nada a ninguém. Eu lhe disse que meu tio a demitira se
soubesse que ela me acompanhou até aqui.
— E quanto à arma? Alguém a viu no seu quarto?
— Encontrei-a logo depois que você saiu. Disse a Emily que Simon a havia
tomado de você e que, portanto, eu precisava vir devolvê-la.
— Podia ter pedido a um lacaio para fazer isso.
— Não, não podia — contrapôs Serena, tranquila. — Porque não poderia
escrever o que vim lhe dizer. Achei que devia ouvir pessoalmente.
— O que é? — perguntou Julien, tenso. Serena não podia ficar ali. Alguém
podia vê-la saindo da casa dele. Por mais que fantasiasse passar o resto da vida
visitando-a no meio da noite para amá-la, uma despedida romântica, àquela altura
dos acontecimentos, não valia o risco que ela corria.
Serena o puxou para o canto mais afastado da sala, para longe da entrada e
dos criados, e o fitou no fundo dos olhos.

82
— Meu tio não é seu pai — declarou com firmeza. — Você é um Piers,
realmente, Julien, mas não é filho do meu tio. O menino no retrato, o de cabelos
claros e olhos escuros... pensou que fosse meu tio, não pensou?
Ele assentiu em silêncio.
— Meu tio era o menor deles. Tinha os cabelos castanhos antes de ficar
grisalho. O irmão dele, Charles, era o mais alto, apesar de mais novo. Charles Piers
esteve na França em 1784, Julien. Foi obrigado a deixar a Inglaterra na juventude e
passou quase a vida toda no continente. Quando morreu, há pouco tempo, os diários
dele foram enviados a meu tio e, pelo que ouvi dizer, seu conteúdo é chocante. Tanto
que nunca pudemos pôr os olhos neles. Aparentemente, Charles dizia a todo mundo
que era herdeiro do conde de Bassington, como se meu tio, o primeiro na linha de
sucessão, pudesse morrer a qualquer momento... O antigo conde vivia pagando
pelas encrencas em que o filho mais novo se metia, tendo até que subornar policiais
para que ele não fosse preso.
Julien achou que fazia sentido. Os pagamentos enviados à França, dos quais
Bassington jurava nunca ter ouvido falar, podiam tem sido feitos pelo chefe da
família Piers.
— Eu sinto muito — prosseguiu Serena, diante do silêncio pesado dele. — O
caráter de Charles não era dos melhores.
— Tal pai, tal filho, então. — Ele baixou os olhos.
— Não diga isso! — Ela o segurou pelo braço. — Tentei falar com meu tio
agora de manhã, para lhe explicar que, de certa forma, você tinha razão. Tem seus
direitos. Não tirou essa história do nada. Mas, no instante em que toquei no seu
nome, ele se recusou a dar continuidade à conversa.—Serena apertou os lábios. —
Precisa partir. O conde quer mandar prendê-lo, Julien.
— Não está aqui! — Barrett sacudiu a cabeça, incrédulo. Bassington remexeu
os papéis do dossiê sobre a escrivaninha.
— Mas eu a vi — falou Nathan Meyer.
— Têm certeza?
— Absoluta. — Barrett correu os dedos pelos cabelos já ralos. — Juntei todas
as cartas e todas as respostas em um só pacote e coloquei no cofre, vocês viram.
Depois tranquei o escritório e saímos. Ele continuava trancado esta manhã e não
percebi nada errado até abrir o cofre e dar pela falta da primeira carta.
Meyer se levantou, caminhou até a porta e se ajoelhou para examinar a
fechadura. Fez o mesmo com a porta da sala ao lado.
— Não há sinal de arrombamento. Quem da casa tem as chaves daqui,
Barrett?
— Ninguém! E, desde a chegada dessas cartas, as duas únicas chaves ficam
comigo o tempo todo.
— Eu tenho a chave do cofre, mas não das portas — lembrou Bassington.
— E onde ela está?
— Bem aqui.—O conde deu um tapinha no bolso da casaca.

83
— Droga!—praguejou Meyer e sentou-se ao lado de Barrett. — Que hora para
mais um mistério!
—Quem pegou essa carta?—perguntou-se Barrett, transtornado.
— Eu já lhe disse quem foi — rosnou Bassington. — Só pode ter sido aquele
maldito francês! Eu devia ter mandado prendê-lo ontem à noite.
— O coronel White já mandou que o vigiassem — lembrou Barrett. — Um
lacaio o viu por aqui no dia do baile. Mas o que Clermont, ou outra pessoa, poderia
querer com esse documento?
— Vendê-lo — respondeu Meyer. — A carta valeria uma fortuna para
Napoleão.
— Não é prova nenhuma — rebateu Bassington. — A primeira carta,
especificamente, não estava assinada.
— E daí? — Barrett fez um gesto impaciente. — Temos outras com a mesma
caligrafia e a assinatura.
— Nós as temos — lembrou Bassington. — Já as contei, estão todas aqui. Uma
carta sem assinatura não pode fazer mais estragos do que os rumores que já correm
por aí. O que os aliados desse vilão podem fazer? Comparar a carta com amostras de
caligrafia de todos os homens da corte russa suspeitos de agirem como
intermediários? E, devo acrescentar, nosso agente é um dos menos implicados. Até
onde sabemos, somente meu primo Charles descobriu sua identidade... e morreu
para manter o segredo.
—Alguém mais sabe que essa carta sumiu, Barrett? Além de nós três e White?
Charles pensou por alguns instantes.
— Pedi a Crosswell, meu secretário, para se certificar se alguém foi visto
rondando a casa ontem à noite, mas eu não disse por quê. O que está imaginando?
— Que o ladrão não chegou a ler a carta toda. Nem sequer deve ter percebido
que não estava assinada. Leu o primeiro parágrafo, que já é comprometedor, claro, e
tratou de fugir, achando ter tirado a sorte grande.
— E? — exigiu Bassington, impaciente.
— Se não souber que demos pela falta da carta — refletiu Meyer —, pode
querer voltar para pegar mais.
A bagagem estava pronta. Julien também deveria estar na hospedaria,
descansando no quarto que alugara para passar a noite. Em vez disso, porém,
encontrava-se do outro lado de Londres, segurando a gola da casaca contra a chuva
gelada, os olhos fixos na passagem estreita entre a casa de Charles e a de lorde
Bassington.
Naquela manhã, embora ainda atormentado pelo sofrimento que impingira a
Serena e Simon, pensara estar curado da obsessão que havia governado sua vida até
então. Depois de ver frustrada a empreitada a que se propusera, decidira colocar
uma pedra no assunto.
E então Serena tinha vindo lhe apontar um novo, e desagradável, candidato
ao papel de pai dele.

84
Agora sentia a cabeça rodar outra vez, perguntando-se quem tinha sido
Charles Piers. Passara a tarde tentando se lembrar de cada detalhe que havia obtido
sobre o homem em Boulton Park. E, na hora do jantar, continuara ruminando a
respeito do conteúdo dos tais diários que Simon afirmara ter visto no escritório de
Barrett. Não valeria a pena tentar abrir a passagem secreta com uma faca, como o
menino tinha feito? E se encontrasse informações sobre a mãe dele nos diários? E se
Charles, por pior que tivesse sido, a houvesse amado de verdade?
Julien olhou para o beco. Estava deserto. Moveu-se devagar e cruzou a frente
da casa de Barrett. Depois desapareceu na passagem entre as duas residências.
Quase passou da pequena janela, porém retornou ao reconhecer as vidraças.
Não havia nenhuma luz nas janelas próximas ou mais para o fundo da casa. Já
passava da meia-noite do domingo.
Tateou a parede molhada em busca da fissura revelada por Simon e
introduziu nela um canivete. A passagem se abriu.
Como na outra noite, o lugar estava deserto e às escuras. Julien saltou para
dentro e, dessa vez, deixou a passagem aberta. Abriu a porta do escritório. A
escuridão era total, constatou, mas estava preparado. Retirou uma pequena lam-
parina do bolso e a acendeu.
Foi nesse instante que sentiu o cano frio de uma arma no pescoço.
— Não se mova! — rosnou uma voz grave. — Podem vir, rapazes... Eu o
peguei.
A porta para o corredor se abriu e duas grandes lanternas se aproximaram,
inundando o escritório com sua luz.
Julien piscou, aturdido. Diante dele estavam Barrett, Meyer e LeSueur.
Nem por um momento ocorreu-lhe indagar por que estava sendo preso por
um oficial militar, por que seu cárcere era na velha Torre, em um lugar sem janelas,
que, obviamente, tinha sido usado como escritório, pois ainda conservava uma
escrivaninha e uma cadeira, e onde um catre e uma latrina pareciam ter sido
improvisados. Estava exausto, faminto e sujo.
Quando duas sentinelas destrancaram a porta e o conduziram escada abaixo,
ainda esperava ser levado à presença de um magistrado. Provavelmente, seria
multado, ou deportado, embora a maior pena, em sua mente, fosse a decepção dos
que gostavam dele: desde Vernon até Serena Allen.
O primeiro indício de que estava equivocado se deu quando os guardas
abriram a porta do que Julien imaginara ser uma sala de julgamento. Em vez disso,
foi atirado em uma espécie de sala de reuniões. Havia uma mesa comprida com
cadeiras em ambos os lados. A esquerda, deparou com três homens: LeSueur, o
jovem Meyer e um senhor de bigodes, o qual se recordava ter visto no baile. A
direita, Charles Barrett e Nathan Meyer. Não havia nenhum juiz. Tampouco um
lugar onde pudesse se sentar.
— Coronel White?—Barrett dirigiu-se ao velho de bigodes.
— Pode começar, Barrett. Afinal, ele foi pego na sua casa.

85
— Muito bem, sr. Clermont — disse Charles. — Não vejo razão para delongas.
A carta não se encontrava em seu poder e nem na bagagem que deixou na
hospedaria. Mas é um homem inteligente e tenho certeza de que vai colaborar
conosco.
— Carta? — Julien lançou um olhar para LeSueur, depois tornou a se
concentrar em Barrett. — Que carta?
— Não perca tempo, Clermont — irritou-se o tal coronel, e Julien reconheceu
a voz, por fim. A mesma que ouvira na companhia de Barrett, no escritório dele, no
dia do baile. — Poderíamos mandar executá-lo agora mesmo. Tem contra si provas
suficientes para cinco enforcamentos.
— Por invasão de privacidade?
O cérebro de Julien se pôs a funcionar. Coronéis não convocavam tribunais na
Torre para interrogar criminosos. A resignação e o desespero deram lugar à raiva.
— Isso é coisa sua, não é, Meyer? Vgcê os convenceu de que sou espião ou
algo do gênero! Fez Bassington se voltar contra mim, por isso ele não me deu
ouvidos outro dia. Não dei muita atenção ao assunto, mas você continuou me perse-
guindo e agora armou esta farsa para tentar acabar comigo.
Pelo canto dos olhos, Julien percebeu LeSueur segurar o -jovem Meyer, que
ameaçara se levantar da cadeira.
— Não pode acusar o sr. Meyer de nada à esta altura — declarou Barrett. —
Bassington já nos contou tudo sobre o seu estratagema de se passar por naturalista
para entrar em Boulton Park. Além do mais, foi visto perto do meu escritório, na
noite do baile, e também no dia seguinte, rondando a minha casa. No domingo de
manhã, dei falta da carta que estava dentro do cofre... Não queira alegar inocência.
— Pode parecer mentira, mas sou inocente de ter roubado qualquer
documento! Não nego ter arranjado um modo de ficar na casa do conde. Para falar a
verdade, estou profundamente arrependido disso... Mas eu tive meus motivos.
— Como soube da passagem secreta para o escritório?
— Eu... — Julien se deteve, incapaz de envolver Simon na trama. — Vi uma
pessoa utilizá-la.
— Quem? E o que estava procurando lá?
— Não posso dizer. Trata-se de um assunto pessoal. Um problema de família
relacionado à minha visita a Boulton Park.
— Problema de família. No meu escritório — Barrett bufou. — O que foi fazer
em Boulton Park, Clermont?
— Não posso dizer. Mas lorde Bassington já sabe do que se trata.
White dirigiu-se a Barrett:
— Falou para Bassington vir hoje?
— Falei, mas ele se recusou a comparecer. Pareceu-me bastante abalado, assim
como a condessa. No entanto me deu uma versão dos fatos que não corresponde à
do sr. Clermont. — Virou-se para Julien: — Nega que invadiu meu escritório
também no sábado à noite?
— Nego, claro!

86
— Pois um facheiro o viu sair da passagem que ladeia minha casa e que leva
ao meu escritório. E o sr. Meyer o viu se aproximar do mesmo lugar, ontem à noite, e
invadir minha propriedade. Ainda tem coragem de negar que estava à procura da
carta?
— Não sei coisa nenhuma sobre essa carta!
— Por onde andou, então, durante duas horas?
Julien não conseguiu pensar em nenhuma resposta. Jamais diria a verdade.
— Fui dar um passeio.
— No meio da noite. E escolheu passar pelo corredor que separa minha casa
da de Bassington. E por um lugar muito distante da sua hospedaria ou de qualquer
outra fonte de diversão!
— Isso mesmo — concordou Julien, rezando para que Barrett não o fizesse
descrever sua verdadeira rota.
— Alguém o viu enquanto "passeava"? Alguém, além do facheiro e do
guarda?
— Não.
White deu um tapa na mesa.
— Acha que somos imbecis, sr. Clermont? Tem idéia das conseqüências deste
depoimento? Está sendo acusado de um crime!
Barrett lançou um olhar a LeSueur. O jovem oficial se ergueu e abriu a porta,
fazendo um sinal para os dois guardas. Julien se viu carregado, então, três lances de
escadas abaixo da sala, em direção a um calabouço.
LeSueur manteve Julien cativo pelo que lhe pareceu uma eternidade: faminto,
sedento e morto de cansaço. Até que uma batida na porta revelou o jovem Meyer.
— Eu devia matá-lo por insultar meu pai, Clermont.
—Não acho que vão lhe dar esse prazer — ironizou Julien.
— Nem eu — Meyer o fitou nos olhos. — Apesar de eu acreditar que não
roubou aquela carta.
— E não roubei mesmo. Bom seria se a sua opinião fosse levada em conta. /
— Então, aonde esteve entre três e cinco da madrugada naquela noite?
Julien silenciou.
—"Passeando"—repetiu Meyer, inconformado. Suspirou, então. — Vou
mandar que lhe tragam algo para comer.
Meia hora depois, quando Julien terminava a refeição, dois guardas
reapareceram, acompanhados de um barbeiro de meia idade.
Alimentado, e razoavelmente limpo, Julien sentou-se no catre e considerou
suas opções. Não podia pedir que Serena testemunhasse em seu favor. Podia
escrever a Bassington e implorar que ele contasse toda a verdade, mas a chance do
conde concordar era ínfima. Melhor seria sentar e esperar por um milagre.
Ou deitar-se no catre duro, como decidiu fazer, e dormir.
Depois de duas tentativas mal-sucedidas de conversar com o tio, Serena
decidiu abordá-lo assim que ele voltasse do clube, naquela noite.
— Agora não, Serena — foi a resposta do conde.

87
— Perdão, titio, mas eu insisto. E muito importante.
— Se é sobre o sr. Clermont, eu já disse que o assunto está encerrado.
Ela se pôs entre Bassington e a escadaria.
— Nunca pensei que fosse tão injusto — declarou. O conde a conduziu pelo
braço até uma sala.
Serena se preparou para um sermão, contudo o que viu no rosto do conde foi
tristeza.
— Acredite, Serena, o sr. Clermont não é para você. É um jovem
inescrupuloso e perigoso. Mas não quero ser injusto, como diz. Eu a escutarei, se for
breve.
— Eu fui vê-lo ontem de manhã — ela confessou, sem rodeios. — Levei uma
dama de companhia — acrescentou ao vê-lo empalidecer. — Ele ficou zangado e
disse que eu não deveria ter ido até lá.
— Ao menos lhe restou um pouco de bom senso.
— Só fiz isso porque o proibiu de pisar aqui, titio, e eu precisava vê-lo.
— Por que essa necessidade depois da maneira como Clermont a insultou?
— Ele não me insultou. Ao menos não intencionalmente. O sr. Clermont me
contou por que quis conversar com o senhor.
O sangue subiu ao rosto de Bassington.
— Maldito! — exclamou, transtornado. — Como ousou repetir uma mentira
dessas para você?
— Titio, espere! — Serena o tocou no braço. — Deixe-me terminar. Eu disse a
Clermont que o senhor não é o pai dele... A princípio, ele não acreditou, claro. Mas
considere a questão sob o ponto de vista de Julien: a mãe dele mencionou o nome
Bassington. Depois ele descobre que é extremamente parecido com seu filho e com
outros da família. Hewitt lhe confirma que seu pai enviava pagamentos à mãe dele...
— Bobagem! — retorquiu o conde, nervoso. — Quando percebeu que era um
pouco parecido com Simon, decidiu me extorquir, isso sim!
— "Um pouco parecido"? — Serena cruzou os braços. — Tio George, ainda
não percebeu? Quem, quando jovem, queria ser o herdeiro dos Piers? Quem esteve
na França no ano anterior ao do nascimento de Clermont?
— Meu primo Charles.
— Como ele era? Não tinha cabelos claros e olhos escuros como os de Julien?
—Não é impossível—admitiu Bassington.—Na verdade, é bem provável...
Confesso que não havia pensado nisso.
— Converse com o sr. Hewitt — pediu Serena, ansiosa. — E tudo que lhe
peço. Se Julien for mesmo filho de Charles, então ele é de fato um Piers e teve suas
razões para fazer o que fez.
— Não, Serena — o conde negou com veemência. — Melhor esquecermos esse
assunto. Eu sinto muito, mas, mesmo que você estiver certa, a família não estaria
disposta a recebê-lo mais do que esteve para receber o pai dele. Pelo visto, Clermont
não herdou do pai apenas a aparência. Esqueça o rapaz, minha filha. Para o seu
próprio bem.

88
Na terceira manhã passada na Torre,'segundo os cálculos de Julien, um dos
guardas praticamente o atirou escada abaixo, fazendo-o estatelar-se no chão, depois
de mais um interrogatório. A pancada na cabeça, entretanto, pareceu ajudar sua
mente a funcionar.
Sempre tivera orgulho da própria independência em relação aos familiares da
mãe. Afinal, eles o haviam tratado com desprezo. Tanto que resolvera, havia muito
tempo, aproveitar dos Conde o mínimo que lhe era de direito.
Agora, contudo, já não tinha certeza de estar agindo como devia. Mesmo que
o considerassem culpado de haver roubado a tal carta, teriam coragem de executar o
neto do membro mais respeitado e influente da família real francesa?
Pensava em uma maneira de contactar o avô, quando a porta foi aberta mais
uma vez.
— Visita — anunciou o guarda. E Bassington adentrou a cela.
Julien se levantou, lívido.
— Posso ficar a sós com ele um minuto? — o conde dirigiu-se ao guarda, que
fechou a porta. — Está ferido... Eles o maltrataram?
Julien tocou o inchaço próximo ao ouvido direito.
— Não foi nada.
Houve um longo silêncio. Bassington caminhou pela cela. Por fim acomodou-
se na única cadeira disponível e encarou Julien.
— Creio que fui precipitado em descartar as provas que me ofereceu naquela
noite — declarou. — Minha sobrinha me contou que conversou com você a respeito
do assunto, no domingo... A pedido dela, fui ver Hewitt no banco e, pelo visto,
Serena tinha mesmo razão. Você é filho de meu primo Charles.
Então era verdade. Julien foi tomado por um imenso vazio. Não desejava ser
filho da ovelha negra da família. Preferia ser filho do homem honrado à sua frente,
por mais teimoso, irascível e arrogante que ele pudesse ser.
— Charles foi uma grande provação para meu pai — continuou o conde.—
Receio não ter dado ouvidos às reclamações dele, na época, pois, no fundo, sempre
gostei do meu primo. Naquele tempo, Charles era um exemplo de audácia para
mim. Acredite: nunca imaginei que Charles pudesse ter deixado um filho na França.
Julien precisou engolir o nó na garganta para responder.
— Eu acredito.
— Agora que sei que é meu parente, sinto-me responsável por você, de
alguma forma. Achei que era meu dever vir até aqui.
Seguiu-se outro infindável silêncio.
— Foi você quem roubou aquela carta?
— Não — respondeu Julien. — Acredita em mim?
— Não sei. Mas isso não faria diferença. O caso, agora, está nas mãos de
White. Há algo que eu possa fazer por você?
— perguntou o conde. — Roupas, livros, esse tipo de coisa?
— Se puder avisar meu criado, eu agradeço. Mas não precisa lhe dizer a
verdade. Diga-lhe apenas que precisei sair da cidade.

89
— Vou pedir a Rowley que vá atrás dele.
Julien concordou, tenso, depois tornou a encarar o conde. —Também gostaria
que pedisse desculpas, em meu nome, à condessa e à srta. Allen.
— Claro. — Bassington pareceu ainda menos à vontade.
— Mais alguma coisa? — Levantou-se e bateu na porta. A chave girou na
tranca logo depois.
— Sim — arriscou Julien. — Os diários de meu pai. Gostaria de ler o que ele
escreveu no ano em que conheceu minha mãe.
O conde respirou fundo.
— Tem certeza de que quer lê-los? — Bassington pareceu inseguro e quase
gentil. — Já ouvi tantas histórias sobre Charles que...
— Preciso saber — Julien insistiu, tenso. Fitou o conde nos olhos. — Quando
pensei que você fosse meu pai, tentei descobrir o máximo possível a seu respeito. Li
seus ensaios, seus discursos, devorei os boletins da Sociedade Real, explorei sua casa
em Londres... Tudo em vão. — Suspirou. — De qualquer modo, a idéia de vingança
não faz mais sentido. Não posso me vingar de um homem que já está morto. Eu só
queria entender como tudo havia acontecido.
— Não o julgue de modo tão duro — Bassington aconselhou. — Com certeza,
nos diários, Charles vai descrever a si próprio como a pior das criaturas. Ele sempre
se viu assim. Mas ninguém pode ser tão mau. Eu mesmo preferi não ler os escritos
dele e me lembrar de Charles como alguém que se sacrificou pelo país. Na verdade,
seu pai morreu protegendo o autor dessa carta que desapareceu. Por isso espero que
esteja falando a verdade quando diz que não foi você quem a roubou.

90
Capítulo X
Senhorita, por favor! Não me envolva nisso outra vez!—implorou Emily. —
Vamos para casa antes que alguém nos veja.
— Não estamos fazendo nada errado. O Cavalo Branco é uma hospedaria
muito respeitável.
— Srta. Serena! Não pode ir à procura de um homem em um lugar público!
— Por isso você está comigo.
— Mas, senhorita, pelo que nos disseram, somente as malas do sr. Clermont
estão na estalagem. Eleja partiu há dias!
— Então há muito menos com o que se preocupar — concluiu Serena e
conduziu a moça direto para a entrada da hospedaria. — Vá até o balcão e pergunte
por ele.
A moça obedeceu e retornou um minuto depois.
— Ele não está mais aqui e não deixou nenhum endereço. Podemos ir, agora?
Serena apertou os lábios.
— Srta. Allen! — Um senhor de meia-idade veio ao encontro delas. —
Podemos conversar por um minuto?
Emily a fitou, aterrorizada.
— Estamos perdidas! Já nos reconheceram.
— Não seja boba, é o criado do sr. Clermont!
— Com mil perdões, srta. Allen — disse Vernon. — Espero que me desculpe a
indiscrição. Eu não o faria em outras circunstâncias, mas preciso saber: tem alguma
notícia do sr. Clermont?
Serena ficou chocada.
— Também não sabe onde ele está?
— Não o vejo desde a manhã do domingo. Deveríamos ter partido para
Portsmouth na segunda bem cedo. Esta manhã, recebi uma mensagem de seu tio
dizendo que o sr. Clermont precisou partir às pressas para algum lugar... Mas sem
levar nenhuma bagagem? Sem me deixar nenhum dinheiro? Senhorita, ele nunca fez
isso. Já estive em Boulton Park e também fui à procura do avô do sr. Clermont, sem
sucesso.
— A bagagem dele ficou?
— O que sobrou dela — Vernon aproximou-se e baixou a voz. — Os Dragões
estiveram aqui... Não sei o que procuravam, mas, seja lá o que for, parecem não ter
encontrado. O fato é que destruíram quase tudo.
Serena empalideceu. Os soldados do governo normalmente tinham a missão
de caçar fugitivos, traidores ou espiões. Sem dizer que se lembrava muito bem de ter
ouvido seu tio ameaçá-lo.
Meio tonta, murmurou uma desculpa para Vernon e rumou para a porta,
acompanhada de Emily. Em menos de vinte minutos, as duas chegaram à

91
Manchester Square. No instante em que Rowley abriu a porta, Serena correu para o
escritório do conde e abriu a porta sem pedir licença.
— Onde está Julien, titio? — indagou. — O que aconteceu com ele? Por que
revistaram a bagagem de Clermont?
Bassington pareceu congelar no lugar.
— Não ouse mentir para mim! — prosseguiu Serena. — Não me venha com
essa história de que Julien precisou partir, pois acabei de falar com o criado dele. O
senhor mandou prendê-lo, não é isso?
O conde pousou a caneta.
— Como encontrou o lacaio de Clermont?
—Fui até a hospedaria dele. O sr. Vernon me viu no saguão e veio ao meu
encontro.
— Serena...
— Sei que uma moça decente não faz esse tipo de coisa! — defendeu-se ela,
com os olhos cheios de lágrimas. — Mas levei Emily comigo.
Bassington a tomou pelo braço.
— Sente-se, querida. Está muito nervosa.
Serena se esquivou e, angustiada, fitou a expressão do tio. Não precisava
ouvir mais nada. Nas últimas horas, percebera as idas e vindas dele, a presença
freqüente de Barrett, as conversas veladas.
— Conhecerá outra pessoa, Serena, você vai ver.
Ela não respondeu e deixou o escritório. Subiu correndo a escadaria e foi para
os aposentos do primo. Encontrou-o estudando latim.
— Simon...
O menino ergueu a cabeça.
— Preciso de você — disse Serena.
Quando lhe trouxeram um padre, Julien soube que estava realmente em
apuros.
— Sinto encontrá-lo aqui, meu filho — o sacerdote declarou. — Diga-me: há
quanto tempo não vai à missa?
Julien baixou os olhos.
— Há uns oito anos.
— Então, também não se confessa há todo esse tempo.
— Acha que eu devo me confessar agora?
— Nunca é tarde para aliviar a alma. Se estiver disposto, sou todo ouvidos.
Não era uma má ideia. Precisava desabafar com alguém, refletiu Julien.
Passou a falar lentamente. Contou a respeito da desgraça da mãe, dos sentimentos
desencontrados que nutria pelo avô, da promessa, que fizera quando menino, de se
vingar do pai. Falou também do método que havia empregado para enganar a todos
e permanecer em Boulton Park, de como quase seduzira Serena, da decepção de
descobrir que o pai era um marginalizado. E, finalmente, da recusa em admitir tudo
aquilo para escapar à prisão.
Ao término do relato, o padre o fitou, pensativo.

92
— De tudo o que me contou, do que se arrepende mais?
— Do que causei a Serena — respondeu Julien, surpreendendo a si mesmo.—
Não do pecado carnal propriamente dito, mas do compromisso implícito nele. Da
promessa que fiz sem palavras e da qual não posso me redimir.
— Terminou sua confissão? Julien esboçou um sorriso triste.
— Acho que confessei metade dos sete pecados capitais.
— Mas o pior deles foi o orgulho. Devia ter contado tudo no momento em que
foi preso. Agora, receio que seja tarde demais. Precisamos rezar para que a justiça
prevaleça, apesar dos seus erros.
— E quanto a minha penitência? — perguntou Julien. O padre olhou ao redor.
— Já está pagando pelos seus pecados. — Levantou-se.— Fique com Deus.
— E então? — exigiu o coronel White, sem paciência. Estava no andar de
baixo da cela de Clermont, na companhia de Barrett e Nathan Meyer, cujo filho
caminhava de um lado para outro da saleta, tenso.
O major Drayton livrou-se da batina e a jogou sobre uma cadeira.
— O homem é inocente. Estava mesmo atrás dos diários, no domingo à noite,
e em companhia da srta. Allen entre as três e as cinco da madrugada de sábado. Não
admitiu nada porque a está protegendo... Aliás, o avô dele deve ser um tirano. Não
era à toa que estava à procura do pai.
— Meus parabéns — Meyer disse ao filho, embora não soasse nem um pouco
satisfeito. —Você estava certo nas suas suposições.
O rapaz comprimiu os lábios e bateu em retirada.
— Por que essas caras, agora? — Drayton olhou ao redor. — Pensei que
fossem ficar aliviados.
— Primeiro, porque se ele não roubou a carta, precisamos saber quem foi —
justificou Barrett. — O ladrão pode voltar em busca de mais documentos, e não
pretendo passar o resto da vida cercado por guardas. Segundo, porque perdemos
quatro dias com essa história. Mas, obrigado, de qualquer maneira, Drayton. —
Voltou-se para White: — Está pensando o mesmo que eu?
— Estou — o coronel admitiu com um suspiro. — Detesto esse tipo de coisa,
mas não temos alternativas. Amanhã? Se o príncipe desconfiar do paradeiro do neto,
estamos perdidos.
— Já estaremos perdidos quando meu filho souber disso — revelou Meyer. —
Talvez devêssemos resolver a coisa antes do meio-dia.
No dia seguinte, o padre foi de novo à cela de Julien.
— Precisamos conversar — disse, estranhamente tenso. —O coronel me pediu
para prepará-lo. Estarão aqui por volta do meio-dia...
— Vão me enforcar?
— Não. Será com um pelotão.
— Tenho tempo de escrever uma carta ou duas?
— Se for breve... sim.
Julien respirou fundo ao tomar papel e a caneta de pena das mãos do guarda.
Sentou-se e escreveu ao avô. Disse apenas que circunstâncias o impediriam de vê-lo,

93
mas que lhe devotava seu eterno respeito. Escreveu outra mensagem a Derring,
agradecendo pela amizade e solicitando que este providenciasse uma nova função
para Vernon. A carta para Bassington foi a mais longa... e a mais difícil:

Milorde,
Quando estiver de posse desta, terei sido executado publicamente, e não lhe será mais
possível ocultar minha prisão e sentença. Como um último favor, imploro não apenas que me
permita expressar meu profundo arrependimento a Vossa Excelência e à condessa, mas
também à sua sobrinha, a quem tanto estimo.
Seu criado, Julien Clermont

Para Serena, escreveu duas linhas e assinou apenas com as iniciais. Em


seguida, dobrou as folhas e as entregou ao padre.
— Estou pronto — Julien declarou.
Pelo terceiro dia consecutivo, Serena permanecia trancada no quarto. Havia
dito à tia que não se sentia bem, o que era verdade: andava agoniada, febril e com
vertigens. Quanto ao tio, não o encontrava havia dois dias.
Ouviu uma batida na porta e, ao deparar com Simon, in-dagou:
— Conseguiu descobrir alguma coisa? Ele foi preso mesmo?
— Ainda não sei. Os criados também não sabem de nada. Mas conversei com
os lacaios de Barrett Eles contaram que ultimamente sir Charles não sai da Torre.
— Da Torre?! — Serena empalideceu. Nova batida na porta.
— Entre! — Serena gritou. Rowley obedeceu prontamente.
— Há um rapaz lá embaixo, srta. Serena. Trouxe-lhe uma mensagem.
— Mensagem? — Virou-se para o primo: — Melhor voltar para o seu quarto,
Simon.
Enquanto seguia para a sala, a cabeça de Serena fervilhava. Seria um recado
de Julien? Impossível. Seu tio havia sido muito claro ao orientar os criados para não
lhe entregarem nenhuma correspondência dele.
O rapaz que a aguardava, conversando com a condessa, trajava uniforme
militar.
— Srta. Allen?
Ela aquiesceu em silêncio.
— Trago-lhe uma mensagem. Gostaria de conversar em particular com a
senhorita, se for possível.
Serena apontou a saleta adjacente, após lançar um olhar preocupado para a
tia.
— Quem é o senhor? — indagou, sem rodeios, assim que se afastaram dos
demais. — Quem o mandou até aqui?
— Não importa agora — volveu ele, nervoso. — Preciso saber apenas uma
coisa. Desculpe-me se não posso poupar seus sentimentos, mas... Julien Clermont
esteve com a senhorita antes do alvorecer do domingo?
Serena empalideceu.

94
— Sim — ela respondeu, sabendo que já não podia ocultar mais nada.
—Estaria disposta a confirmar isso diante de um tribunal? Não garanto que
seu testemunho não seja público, mas farei o que puder.
Serena empalideceu. Julien tinha sido preso!
— Sim — disse. — O sr. Clermont esteve mesmo comigo. Pelo canto dos
olhos, percebeu a tia se levantar da cadeira. —Viria comigo agora? Julien Clermont
está na iminência de ser executado, acusado de algo que não fez, porque não quis
comprometê-la, senhorita.
Lady Bassington soltou uma exclamação abafada.
O oficial tomou Serena pela mão e a puxou em direção à saída.
A visão de várias carruagens congestionando a rua, o oficial praguejou
baixinho. Tomou as rédeas das mãos do lacaio que lhe segurava a montaria e virou-
sé para Serena:
— Eu vou na frente, senhorita. Tem até o meio-dia para chegar lá.
Royce surgiu na porta da casa, afobado.
— O que está acontecendo?
— Faça-me um grande favor — pediu-lhe o oficial —, leve a srta. Allen para a
Torre... agora! — Montou o garanhão e saiu em disparada.
A condessa segurou Serena pelo braço.
— Irei com você. Vou pedir a carru...
— Não há tempo, titia. — Ela girou o corpo e correu rua abaixo, obrigando
Royce e a condessa a segui-la, atarantados. — De quem é aquele coche do outro lado
da rua? — gritou
— De Lady Wallace! — respondeu a tia.
— Royce, dirija, por favor! — pediu Serena. — Se eu não chegar à Torre até o
meio-dia, vão executar o sr. Clermont!
Ele atravessou a rua e segurou o lacaio da vizinha pelo braço.
— É uma questão de vida ou morte, amigo.
— Desculpe, senhor, mas não tenho perm... — O homem se calou ao ver a
pistola apontada para ele.
No momento seguinte, rumavam para a Oxford Street, com Royce abrindo
caminho aos gritos pelas ruas da cidade.
Mal estacionaram em frente à Torre, Serena saltou do co-che e passou por três
guardas sem pedir licença, ignorando os avisos e protestos.
Estacou, agoniada, diante do enorme edifício de paredes de pedra. Para onde
devia ir?
Nesse momento, o jovem oficial se juntou a ela e a puxou para dentro do
edifício.
Lá dentro, uma pequena multidão formada por soldados, oficiais de várias
patentes e alguns civis, aguardava, agitada. Serena reconheceu seu tio e Charles. De
uma porta saíram mais dois soldados. Com eles estava Julien Clermont, vestindo
apenas calças escuras e uma camisa branca. Um padre caminhava ao lado dele.
A multidão se afastou para que um pelotão de soldados formasse uma linha.

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Serena tentou gritar, mas a voz não saiu.
O jovem oficial seguia adiante dela, pedindo passagem.
Os soldados ergueram os rifles.
— Não! — ela conseguiu gritar, enfim, ao mesmo tempo em que as armas
dispararam.
Serena sentiu as pernas dobrarem e se viu amparada pelo oficial. Poucos
metros adiante, avistou o corpo caído junto à parede de pedra, o sangue banhando a
camisa branca.
LeSueur irrompeu pela porta do escritório de White pouco depois do meio-
dia. Meyer ergueu a cabeça.
— Como foi?
— Um horror. Sorte de vocês Barrett ter decidido que não deviam estar
presentes.
— James conseguiu trazer a srta. Allen e os outros?
— Sim. Royce, o secretário do conde, deve ter conduzido o coche feito um
louco. Chegaram até mais cedo do que deviam e precisamos trazer Clermont antes
de o relógio começar a bater. A srta. Allen ficou abalada, claro, assim como a con-
dessa. Mas nenhuma das duas chegou a passar mal. O tal Royce foi o único que
precisou dos sais para voltar a si.
Barrett adentrou o lugar, afobado.
— Trouxeram Clermont para dentro. Não posso ficar aqui mais do que um
minuto. Vão ter de descer e cuidar do resto por mim, pois tenho que interceptar
qualquer mensagem da srta. Allen. Ela já se foi com a tia, mas deixou claro que vai
entrar com um processo por prisão e execução indevidas. — Respirou fundo. —
Bassington também está transtornado e exigindo explicações. Eu o levei para o
antigo escritório de Southey.
— Relaxe, vai dar tudo certo — falou Meyer. — Saberei mais depois de
conversar com Drayton.
Barrett concordou.
— Vou falar com o comissário. Não deixem o conde conversar com ninguém
antes de eu voltar. Se ele quiser ver o corpo, inventem alguma coisa.
LeSueur franziu o cenho.
— Não contaram a Bassington?
— Não temos contado muita coisa a ele ultimamente — admitiu Meyer. —
Ainda não sabemos quem está por trás dessa trama. Só sabemos que se trata de
alguém que conhece muito bem a casa do conde e a casa de sir Charles.
Barrett rumou para a saída.
—Alias, não saberemos mais nada até descobrirmos quem roubou aquela
maldita carta — disse e foi embora. Meyer passou a lista que analisara para LeSueur.
— Aqui está. Você vai para o condado de Oxford com doze homens. As
pessoas desta lista têm de ser vigiadas dia e noite. O coronel lhe dará outras
instruções esta tarde, depois que conversarmos com o major Drayton.

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Serena não se recordava muito bem do que acontecera na Torre depois de ter
vislumbrado Julien a distância. Lembrava-se apenas da comoção que se seguira após
os disparos e de haver sido amparada pelo jovem capitão. Depois, elas haviam
retornado para o solar.
— Pobre menina — tinha ouvido o comentário, em meio a uma intensa
confusão mental, e só então se vira arrancada do estranho torpor que se abatera
sobre ela.
Sentiu ódio do tio... ódio do mundo.
Demorou para que, finalmente, se visse a sós. Levantou-se da cama e saiu
para o corredor, sem se importar se vestia apenas uma camisola e um robe
desamarrado. Ignorou os olhares espantados dos lacaios e rumou para o topo da
escadaria, de onde avistou o conde conversando em voz baixa com Rowley.
Ao vê-la, ele respirou fundo e passou a subir as escadarias lentamente,
apoiando-se no corrimão, abatido.
Quando parou diante dela, Serena demorou a encontrar as palavras.
— Foi você o responsável? — exigiu, por fim, com voz trêmula.
— Não vou mentir, Serena. Quando Clermont foi preso, senti-me vingado.
Agora, receio ter aceitado a culpa dele fácil demais. — Bassington a conduziu pelo
braço para uma saleta próxima e a fez sentar-se.
Impassível, Serena não tirou os olhos dele nem por um segundo.
— Deve ter percebido que estávamos às voltas com documentos confidenciais,
que foram guardados no cofre de sir Charles... Clermont foi acusado de ter roubado
um desses documentos do escritório de Barrett — explicou o conde, pesaroso. Ele foi
apanhado em flagrante, uma noite depois de descobrirmos que uma carta
importante havia sido roubada do cofre.
Serena tentou absorver a informação.
— Agora, vem a parte pela qual me considero culpado. Quando você me
provou que Clermont era filho de Charles, percebi que ele havia dito a verdade
sobre o motivo de ter dado um jeito de permanecer em Boulton Park. Mais do que
isso, eu sabia que Clermont tinha motivos para invadir o escritório de Barrett...
Quando ele se convenceu de que era filho do meu primo, quis ver os diários de
Charles. Não podia mais se aproximar de mim, mas soube, de alguma forma, que os
escritos do pai estavam lá.
— Simon — murmurou Serena, e o conde empalideceu.
— Mas eu só mencionei os diários para o coronel White! — Balançou a cabeça,
inconformado. — Isso, porém, agora não importa. O que importa é que eu estava
indignado com a decepção que Clermont havia lhe causado. E, agora, ainda me
dizem que ele estava com você, pouco antes de ter sido visto nas imediações da casa
de sir Charles.
— E estava...
O conde piscou, chocado.
— O que disse?
— Clermont estava comigo. Bassington ficou lívido.

97
— Nesse caso, não sei se devo lamentar a morte dele. Serena sorriu sem
vontade.
— Sou assim tão preciosa, titio? Será que valho a vida de um homem? Por
acaso sabe o que aconteceu no meu quarto, naquela noite?
— O fato de ele estar na sua companhia já não é o bastante?
— Vou lhe contar o que aconteceu—disse Serena. —Julien veio se desculpar, e
eu tentei seduzi-lo!
Seu tio soltou uma exclamação abafada.
—Não tenho mais nenhuma razão para mentir—ela prosseguiu. — Clermont
se ajoelhou aos meus pés e pediu perdão... Fui eu quem se jogou nos braços dele,
depois disso, e foi Julien quem me fez retomar o bom senso! Disse que não iria
arruinar a minha vida como o pai tinha arruinado a da mãe dele. Jurou que nunca
teria um filho bastardo para passar pelo que ele passou... Disse que eu merecia ser
feliz. — Serena riu. — Pareço feliz agora?
Bassington não respondeu.
— Quero justiça — murmurou Serena, exausta. — Quero que limpem o nome
de Julien. Isso é tudo o que lhe peço e acho que, nas circunstâncias, é quase nada. Ele
era um Piers, não era? Precisa fazer justiça, titio, nem que seja em nome da família!
O conde suspirou profundamente.
— Vou ver o que posso fazer assim que voltar a Londres. Não vai ser assim
tão difícil: o conselho concluiu que Clermont não era nenhum espião, pouco depois
de o terem executado.
— Baixou os olhos. — Vamos voltar a Boulton Park imediatamente, já que fui
afastado da comissão.
A comissão para o tratado tinha sido o sonho do conde por muito tempo: uma
esperança de que a ordem pudesse ser restaurada em um continente devastado por
vinte anos de guerra.
— Foi afastado? —repetiu Serena, atordoada.
— Como Clermont foi inocentado de ter roubado a carta, as investigações
levam a crer que o culpado residia ou reside em Boulton Park. Agora, estamos todos
sob suspeita.
— Pensei que sir Charles fosse seu amigo.
— E meu amigo. Mas eu faria o mesmo no lugar dele. — Bassington rumou
para a porta. — Eu ia me "esquecendo...
— Retirou um papel dobrado do bolso. — Isto é para você... de Clermont.
Serena pegou o papel com mãos trêmulas. Havia apenas uma frase:
Eu te amei tarde demais. J.C.

98
Capítulo XI
__ Podia ter me avisado antes de que era tudo uma farsa! — reclamou Julien
para o falso padre. — E ter evitado que eu mandasse minhas cartas de despedida.
—Pensei que você já soubesse de tudo: as cartas me pareceram uma jogada de
mestre, para ser sincero. Está pronto para se fazer passar por um Dragão? —
Apontou o uniforme sobre a mesa com um gesto de cabeça. — Vai ter de dar um
jeito de cair fora da Torre. Pensamos em despachá-lo dentro de um caixão, mas a
srta. Allen podia querer ver o corpo, e aí...
— Serena estava aqui? Deve estar desesperada! Julien teria saído porta afora
se o homem não o tivesse segurado pelo braço.
— Está maluco? Como vai saindo, assim, depois de todo o trabalho que
tivemos para forjar sua execução? Se White não tivesse tido a idéia de me fazer
passar por padre e arrancar de você uma confissão, à esta hora estaria a sete palmos
debaixo da terra! Mas pode ficar tranqüilo: não foi preciso que eu contasse a eles
tudo que me revelou. White e Barrett já estavam desconfiados de que era inocente.
— Quem é você, afinal? — indagou Clermont.
— Major Richard Drayton, da força de guarnição de Sua Majestade.
—Espere um pouco. —Julien ergueu as mãos, atordoado. — Para quem
trabalha, afinal? E algum espião, por acaso?
— Espião é uma palavra muito forte — suspirou Drayton.
—Prefiro me denominar agente. Estou ajudando o ministério das Relações
Exteriores em uma investigação confidencial. E isso é tudo o que posso lhe dizer.
— Pensaram que eu havia roubado documentos da casa de Bassington —
concluiu Julien. -
— Fui eu que pensei — revelou uma voz vinda da porta. Meyer adentrou o
porão.—Precisa admitir que nos deu bons motivos para isso.
— Mas... — Julien olhou de um para outro, confuso. — Se chegaram à
conclusão de que eu não era culpado, por que forjaram minha execução?
— Se não é o ladrão, alguém é — rebateu Meyer. — Daí ainda não podermos
revelar que continua vivo.
— Ora essa, não esperam que eu vá concordar com isso! Vocês não têm
nenhuma razão legal para me manter preso! A paz de espírito da srta. Allen é muito
mais importante para mim do que essas malditas tramas do governo! — Clermont
rumou para a porta, mas Drayton lhe bloqueou a passagem mais uma vez. ...
— Não quer esclarecer a situação de uma vez por todas? Não percebe que o
verdadeiro culpado aproveitou sua presença em Boulton Park para se livrar das
acusações e lhe armou uma cilada? Esta é a sua chance de nos ajudar a pôr as mãos
nesse infeliz.
— Minhas últimas experiências me fizeram ter um profundo desgosto por
vinganças... como deve se lembrar da minha confissão — declarou Julien.
— Não se trata de vingança, mas de justiça.

99
— Não vou continuar a ser usado!
— Só queremos que nos conte tudo o que sabe sobre cada uma das pessoas
que vivem em Boulton Park—disse Meyer. — Sem dúvida, teve oportunidade de
observá-las enquanto esteve lá.
Julien se virou para Drayton:
— Se não me falha a memória, você me garantiu que eu já havia pagado pelos
meus pecados.
— Violar o sacramento da confissão também não foi um ato muito digno da
minha parte... Mas foi mais correto do que ter permitido que o pelotão atirasse em
você de verdade. Julien digeriu as informações em silêncio.
— E depois que eu trair Bassington e a família dele outra vez? — perguntou,
amargo.
— Nós o mandaremos para o condado de Oxford na companhia de Dragões e
ficaremos torcendo para que a sua "ressurreição* nos leve até o verdadeiro culpado.
Em Boulton Park, Serena buscou uma oportunidade de ficar a sós com seu
primo
— Simon — começou, cautelosa —, foi você quem roubou a tal carta?
Ninguém vai prendê-lo ou torturá-lo, eu prometo!
— O sr. Clermont nem era o ladrão e eles o mataram — lembrou o garoto,
sério.
Serena mordeu o lábio. Ele tinha razão. Como podia lhe prometer proteção
quando nem sequer fora capaz de impedir a execução de Julien?
— Não fui eu, Serena! —jurou o menino.
Julien estava de volta a Burford Arms. Agora, não passava de um dos doze
Dragões circulando pela taverna. Mesmo assim, tentou manter-se afastado de Budge
e das garçonetes e falava o mínimo possível com os companheiros.
— Dante!
Levou alguns segundos para responder ao seu novo nome.
— O coronel quer vê-lo — o soldado apontou o corredor. Subiu as escadas,
consciente de que estava a caminho de
um encontro qüe poderia resultar em outra execução: dessa vez com balas de
verdade.
Ouviu vozes atrás da porta, mas, quando bateu, elas silenciaram.
— Entre. — Era Barrett.
Estavam todos lá. Meyer, LeSueur e o coronel White.
— Já vasculhamos toda a casa e não vimos sinal da carta — informou White.
— Nossa única esperança, agora, é fazer com que o culpado cometa um deslize. Por
isso está aqui.
— Já enganei o conde uma vez, mas não pensem que sou tão ardiloso assim —
disse Julien. — Deviam usar Meyer ou o tal Drayton.
—Só precisa aparecer em Boulton Park — declarou Barrett. — Até o mais
controlado dos vilões deve se abalar ao ver que está vivo.
— Têm ideia de quem seja o criminoso?

100
— Mais ou menos — suspirou Barrett. — O plano é observar a reação de cada
suspeito, como já fizemos no dia da sua "execução".
— Vou lhe arranjar um lugar para ficar por enquanto — informou LeSueur. —
Aproveite para descansar um pouco.
Algumas horas depois, Barrett foi ao encontro de Clermont, no quarto de
despejos da hospedaria, carregando um pacote.
— Vou lhe pedir que permaneça aqui, com a porta trancada. Só abra se
disserem o meu nome.
Julien concordou com um gesto de cabeça.
— Enquanto isso — prosseguiu Barrett, retirando um papel dobrado do bolso
da casaca —, pode se distrair com esta carta.
Clermont observou a caligrafia, mas não a reconheceu. Ao ver a assinatura ao
pé da mensagem, sentiu o sangue abandonar-lhe o rosto.
— E a última carta escrita por seu pai. Talvez, depois de ler o que ele escreveu
aqui, fique mais disposto a enfrentar o que temos pela frente. Charles Piers arriscou
a própria vida para manter confidencial uma operação como esta em que estamos
envolvidos. E este — Barrett retirou um livro vermelho de dentro do embrulho —, é
o diário de Charles Piers, em que descreve o encontro com sua mãe. Não vai gostar
de muita coisa escrita aqui... Seu pai não aceitou muito bem o fato de ela o ter
deixado.
— Como assim?—espantou-se Julien. — Não foi ele quem a abandonou?
— Charles pretendia se casar com ela. Moraram juntos até o dia em que ele
partiu em busca de um pastor protestante para casar os dois, e pedir dinheiro ao tio.
Nesse meio-tempo, sua mãe recomeçou a frequentar a igreja do vilarejo e retomou
sua crença. Foi então que lhe escreveu uma carta, dizendo que não poderia continuar
vivendo em pecado com um herege. Foi embora e nunca mais voltou.
Típico de um Conde, pensou Julien, amargo.
— Não estou certo de quanta verdade há aqui — contemporizou Barrett. — Só
posso dizer que, nos outros diários, seu pai sempre se descreveu como o pior dos
homens... Lembre-se: não abra a porta para ninguém.
Julien girou a chave na fechadura e começou a ler os diários.
Era exatamente como Barrett havia descrito, mas não tão diferente do que
contara a tia dele. Estava tudo lá: os pedidos de ajuda ao quarto conde, pai de
Bassington, a eventual descoberta de uma mademoiselle DeLis em um convento de
Lausanne. Charles ainda havia tentado vê-la, mas ela se recusara a recebê-lo. Assim,
seu pai jamais soubera da existência dele, Julien.
Ninguém tinha sabido. Até mesmo os Conde o haviam ocultado. Os
pagamentos foram enviados para a mãe dele, no convento, mas não para ajudá-la a
criar o filho bastardo.
Para Julien, ver revelada a natureza da mãe não foi nada agradável. O que
mais o abalou na leitura do diário, entretanto, foi o desespero do pai nos dias
seguintes ao desaparecimento de sua amada. Por que ele fora tão condescendente?
Por que não imaginara o que poderia acontecer quando ela voltasse a freqüentar as

101
missas e se confessasse com um padre? Por que não havia se casado com ela quando
tivera a chance?
Julien se levantou, destrancou a porta e espiou o corredor escuro. Tinha seus
próprios fantasmas para confrontar naquela noite.
Boulton Park estava vigiada por dragões, o que tornaria difícil o acesso à
casa... Se ele próprio não estivesse se passando por um. Desta forma, teve apenas
que passar pela sentinela que montava guarda na entrada da propriedade, deixar o
cavalo junto aos outros e caminhar, com as passadas firmes de um militar, até o
soldado parado na varanda.
— O que é? — indagou o vigia, mal-humorado.
— Tem ordens para fazer ronda nos jardins agora. — Começou a andar de um
lado para outro, fingindo assumir o posto, até que o companheiro desaparecesse em
meio à escuridão e à neblina que cobria as sebes do jardim. Em seguida tirou o
chapéu e as botas e passou a escalar a parede lateral da casa. Agora sabia bem onde
era o quarto de Serena.
Julien galgou a parede de pedra com alguma dificuldade. Pouco depois, abria
a janela e entrava no quarto escuro. Já começava a se sentir orgulhoso de seu feito,
quando, por puro instinto, agarrou no ar o ferro de atiçar brasas que descia sobre sua
cabeça. Serena ainda tentou arrancá-lo de sua mão com um gemido, mas Julien
conseguiu segurá-la e tapar-lhe a boca.
—Vai se casar comigo? — exigiu, ofegante, ao ouvido dela, tão logo a
aprisionou entre os braços......
A resposta foi uma joelhada na virilha. .
Julien dobrou o corpo, mas não chegou a soltá-la.
— Vou entregá-lo a seu capitão, isso sim! — Serena conseguiu dizer, a voz
abafada pela mão dele.
Só então Julien conseguiu se recuperar do golpe e perceber que Serena não o
havia reconhecido no uniforme. Julgara ser um soldado qualquer invadindo seu
quarto no meio da noite, por isso o havia atacado.
Precisou arrastá-la até a claridade da janela.
— Serena, olhe para mim!
Ela parou de se debater e obedeceu. Os olhos cinzentos se arregalaram e, por
um instante, Julien não soube identificar se a reação era de incredulidade, surpresa
ou alegria.
— Não pode ser. Você morreu... Eles atiraram em você! — exclamou ela,
atônita.
— Estou vivo, Serena. Foi tudo uma farsa. — Julien ensaiou um sorriso, pela
primeira vez em dias. Depois tornou a ficar sério.—Mas até amanhã à tarde continuo
oficialmente morto. Não pode dizer a ninguém que me viu. — Lançou um olhar
preocupado pela janela antes de voltar a se concentrar nela. — Ainda não me
respondeu.
— O quê? — ela franziu a testa, atordoada.

102
— Vai se casar comigo? — Julien repetiu, tenso, já imaginando ter-se
precipitado ao invadir o quarto de Serena no meio da noite.
—Casar com você?—Ela recuou um passo, chocada. Fitou um ponto qualquer
da penumbra do quarto e, por um instante, Julien não soube o que pensar. O rosto
bonito tornou a se mostrar na claridade que entrava pela janela e ã expressão
continuava neutra, indecifrável. — Agradeço de coração o seu gesto, mas não posso
aceitar seu pedido.
Julien entreabriu os lábios, sem saber o que dizer. De alguma forma, esperara
que Serena fosse se jogar em seus braços* Lançou novo olhar para o jardim, lá
embaixo, em parte para ver se o guarda estava à vista, porém mais para se recompor
daquele último golpe.
—Porque sou bastardo?—arriscou incoerentemente, sentindo a velha ferida
sangrar dentro do peito.
Serena riu, mas seu riso soou seco, destituído de humor.
— Não espera que eu vá me casar com um homem que foi uma farsa do
começo ao fim. Um fim, aliás, digno de um espetáculo de horror! E que sequer se
importou em me alertar, muito pelo contrário!
Pelo canto do olho, Julien viu um movimento no pátio.
— Droga! — falou entre dentes. — Preciso ir. — Virou-se com um suspiro. —
Tudo o que posso fazer agora é dizer outra vez que sinto muito, Serena, e que espero
poder me explicar depois. — Tinha uma expressão vulnerável no olhar. — Fui tão
tolo assim em pensar em uma proposta de casamento?
Serena não respondeu, porém o brilho em seus olhos fez Julien avançar um
passo. Segurou as mãos delicadas entre as suas e percebeu que tremiam.
Quando ele a puxou para si, em meio à penumbra, Serena não resistiu.
Recostou-se no peito largo e permitiu que Julien lhe beijasse os olhos úmidos.
— Não posso ficar mais — murmurou. — Se me virem descendo, estou
perdido. Pediram que eu permanecesse escondido esta noite e eu fugi para vir vê-la.
— Por quê?
Julien prendeu o ar ao notar a ansiedade na voz de Serena. Por um segundo,
pensou em repetir o pedido, agora que ela parecia mais receptiva, mas preferiu beijá-
la.
Serena se entregou à carícia com abandono. O carinho ameaçou se
transformar em um novo turbilhão de desejo e Julien se afastou, relutante. Quando
viu as lágrimas escorrerem pelo rosto dela, quase voltou atrás.
— Lembre-se, Serena... Ninguém pode saber que estive aqui.
Ela assentiu em silêncio.
Na manhã seguinte, Serena despertou aos poucos. Primeiro, teve a sensação
de que um lindo presente esperava por ela em algum lugar. Não sabia bem o quê,
mas só a ausência de culpa e sofrimento já era um conforto.
Foi então que o presente se materializou em sua mente: Julien Clermont
estava vivo.

103
Sentou-se de um salto, com medo de que tudo não tivesse passado de um
sonho. Mas não. Lá estava o atiçador de brasas, jogado a um canto.
Mordeu o lábio, saboreando secretamente aquela felicidade.
Levou cerca de vinte minutos para arrumar o quarto e tentar se recompor. Foi
com muito esforço que não revelou seu estado de graça quando Emily veio ajudá-la,
nem quando a tia bateu à porta, como vinha fazendo todas as manhãs, a fim de
consolá-la.
Ao meio-dia, sua cabeça ainda fervilhava. Por que haviam forjado a execução
de Julien?
Uma resposta óbvia e desagradável começou a se delinear em sua mente e
Serena concluiu: precisava encontrar um meio de alertar Simon. Mais que isso,
precisava dissimular o próprio estado de espírito e não demonstrar alegria, nem
nervosismo.
Voltou ao quarto. Às duas horas, porém, não conseguiu esperar mais e
decidiu sair à procura do tio. Rumou para o escritório, onde ele costumava passar a
maior parte do tempo, e bateu na porta. Não obteve resposta. Bateu outra vez.
— Tio George?
— Serena!
Ao ouvir a voz da tia, virou-se para trás, tensa.
— Olá, tia Clara. Tio George não está em casa? — perguntou, retorcendo as
mãos.
— Veja só, eu vinha justamente perguntar a você se sabia onde ele estava.
Uma parede próxima se moveu nesse instante e Simon apareceu na frente das
duas.
— Papai está na salame arquivos — revelou o menino.
— Simon! — repreendeu Clara, levando a mão ao peito. — Quer nos matar de
susto? Eu já disse para não fazer isso!
Serena apertou os lábios. Já tinha pedido ao primo para não usar as passagens
secretas enquanto os soldados estivessem por perto.
— O que seu pai está fazendo lá? — estranhou a condessa.
— Não sei — O menino deu de ombros. — Ouvi a voz dele. E tem um monte
de soldados junto. Dois estão montando guarda na porta.
As duas mulheres se entreolharam e dispararam corredor afora.
A sala de arquivos era um compartimento utilizado apenas para guardar
documentos do governo e ficava na mesma ala do escritório. Royce utilizava parte
do aposento para trabalhar, mas o local não era apropriado para um conselho mili-
tar. Não havia janelas nem cadeiras, apenas uma mesa.
Os guardas não fizeram menção de impedir a entrada das duas. Na verdade,
quase ninguém as notou ali, tamanha a tensão que pairava no ambiente. O conde,
com expressão alarmada, estava em pé, ao lado da mesa, sobre a qual havia uma
maleta aberta, cheia de cédulas.

104
Um homem, de semblante vagamente familiar, contava as notas. Olhando
com mais atenção, Serena soube de quem se tratava: Meyer, o falso naturalista, só
que alguns anos mais jovem; a corcova nas costas dera lugar a uma postura militar.
Em pé, atrás da escrivaninha, Royce observava a cena, imóvel.
— Três mil libras — declarou Meyer, rompendo o silêncio.
— Tem como explicar a origem deste dinheiro, sr. Royce? Serena prendeu o
fôlego. Três mil libras era muito mais do que seu próprio dote.
— Foi ele? — perguntou Simon atrás delas, sem se dar ao trabalho de falar
baixo.
O rosto do secretário parecia esculpido em cera.
— Trata-se de herança de família — defendeu-se, frio. — O senhor entra aqui
com seus soldados, coronel White, dizendo que o sr. Clermont não era culpado e que
o verdadeiro criminoso está nesta casa... Como pode afirmar tal coisa? Levando cada
um de nós para o paredão?
Ao lado de Serena, a condessa soltou uma exclamação abafada.
— O criminoso que procuramos fala francês e alemão, sr. Royce. E, muito
provavelmente, russo também — explicou Charles, que também se encontrava
presente. — Por esse motivo, toda a criadagem foi eliminada de nossa lista de sus-
peitos.
White fez um gesto com a cabeça para um dos dragões ao lado da porta, que a
abriu para a entrada de Clermont.
O choque dos que, até então, não sabiam a verdade, propagou-se no ar. O
conde empalideceu. Simon e a condessa nem mesmo piscaram, ambos boquiabertos.
Somente Royce se moveu, ao apoiar um braço na parede, lívido.
— Graças a Deus — murmurou com voz fraca e fechou os olhos.
Clermont caminhou até ele e se apoiou na escrivaninha para encará-lo.
— Era você, aquela noite, no baile, não era? Vi quando conversou com um dos
adidos russos. Depois desapareceu por duas horas, alegando ter ido atrás de Simon.
— Virou-se para Barrett. — Eu já lhe contei que estava escondido na passagem
secreta, do lado de fora do seu escritório, enquanto Simon e a srta. Allen entravam
pela cozinha. O que não me recordava, até então, é que escutei um ruído no corredor
nesse momento. Só agora me dou conta de que não estava sozinho ali.
—Não chegou a ver a pessoa?—Barrett estreitou o olhar.
— Minha maior preocupação, no momento, era não ser pego. — Tornou a
olhar para Royce. — Como eu estava presente no baile, imaginou que seria uma boa
ocasião para entrar no escritório de sir Charles, não foi isso? E seu plano se tornou
ainda mais primoroso quando decidi usar a passagem secreta para voltar à festa.
Assim, decidiu voltar na noite seguinte e roubar a carta, agora que tinha um bode
expiatório.
O silêncio era total. Ninguém ousou se mover.
— Não tem nenhuma prova do que está dizendo — defendeu-se Royce,
pálido.
O conde soltou uma exclamação abafada.

105
— Você... — Precisou se apoiar na mesa para não cair e levou a mão ao peito.
— Seu... — Fechou os olhos.
Royce aproveitou a comoção que se seguiu e abriu uma das gavetas da
escrivaninha. Do meio dos papéis e pastas, tirou uma pistola.
Não chegou a apontá-la para ninguém, mas sua expressão já dizia o que
pretendia fazer, se necessário. Diante dos olhares alertas e aterrorizados, recuou
lentamente até a porta dos fundos.
Simon agarrou-se à manga do vestido de Serena e colocou-se atrás dela.
— Por quê, Royce? — indagou Bassington, com voz grave e rouca. — Pelo
dinheiro?
O rapaz bufou, sarcástico.
— Maldito seja! — explodiu o conde, o rosto arroxeado. Deu um passo à
frente, ignorando a arma. — Eu o acolhi em minha casa, o apadrinhei, confiei em
você não só para cuidar dos meus negócios, mas para tutorar meu próprio filho... E
você nos trai por dinheiro?!
— Não fiz nada por dinheiro! — defendeu-se Royce. — Poupe-me pelo menos
disso, sir!
— Então, por quê? — exigiu Bassington, inconformado.
— Nunca lhe ocorreu que um inglês pudesse admirar Napoleão? Eu era um
patriota até vir trabalhar para milorde — disse ele, amargo. — Então comecei a ler
sobre as leis inglesas, sobre os impostos. Alguma vez já consultou nosso código
penal? — Apontou os livros nas estantes. — Sabe que ainda é possível mandar
enforcar um menor por roubar um naco de carne? Jogar na prisão um menino que
atirou lama em um soldado? Quer saber se me arrependo da trama em que me
deixei envolver? Sim, em parte. Mas minha honra me pareceu insignificante em
comparação com a importância de tentar melhorar o governo europeu. Milorde,
antes de ninguém mais, deveria entender.
— E de que forma vender correspondência diplomática para aÁustria poderia
ajudar Napoleão?—contestou Barrett, ríspido.
— Napoleão está liquidado. E eu já sabia disso há meses. Os aliados vão
retalhá-lo. Escolhi o governo que, na minha opinião, tinha mais chance de dar
continuidade aos planos dele. — Retirou um papel dobrado de dentro de uma pasta
e o jogou aos pés de Charles. — Podem ficar com a carta, se isso alivia sua
consciência. Não me serviu para nada, sem assinatura.
Royce ergueu a pistola^ ao mesmo tempo que alcançava a maçaneta da porta
dos fundos. No segundo seguinte, desapareceu.
Um dos soldados se precipitou na direção dele, porém Bassington. o deteve.
— É apenas um estoque, não tem saída.
— Isso é o que eles pensam — sussurrou Simon e somente Serena pôde ouvi-
lo.
Quando o silêncio se prolongou por tempo demais, White e os soldados
irromperam cômodo adentro, praguejando. Sob os protestos desesperados da

106
condessa, Simon seguiu logo atrás. Acompanhado por Bassington, Barrett e Meyer,
ia orientando os homens aos gritos.
Ao ver a tia fraquejar, Serena correu para acudi-la.
— Simon sabe o que está fazendo, titia. Quando desconfiei de que Royce
podia ser o culpado, hoje de manhã, pedi a Simon que lhe mostrasse a saída secreta,
caso fosse necessário.
— Santo Deus... — murmurou a condessa, pálida. Julien se aproximou,
surpreso.
— Sabia que era ele?
— Eu desconfiava. Royce passou mal quando soube que iam executar você.
Quase nos fez capotar naquele coche, tentando chegar a tempo em Whitehall.
Quando pensou que havíamos chegado tarde demais, chegou a desmaiar. Desde en-
tão andava pela casa feito um zumbi, como se fosse ele quem tivesse morrido.
— Também não sinto por ele ter fugido — admitiu Julien. — Sei que devia
sentir mais desprezo por Royce, afinal ele traiu seu tio e conseguiu me incriminar.
Mas acho que estou tão aliviado em vê-lo fugir quanto ele ficou em me ver vivo.
— Se é que ele fugiu — comentou a condessa, preocupada.
— Simon não ia mostrar a saída aos soldados?
— É verdade. — Ela sorriu, esperançosa. Julien sorriu para ambas.
—Acho que acabou, então — disse com um longo suspiro.
Depois de procurarem por Royce horas a fio, os soldados desistiram e, com a
permissão de lorde Bassington, retornaram a Londres. Foi melhor assim, para todos.
Dessa vez, Julien fizera a coisa certa. Havia voltado para o quarto em Burford
Arms e, para total espanto de Vernon, que quase desmaiara ao vê-lo, trajara-se
devidamente com a ajuda do velho criado e retornara a Boulton Park, decidido a
pedir oficialmente a mão de Serena. Não sem antes passar na estrebaria e oferecer
um bom dinheiro por Tempestade.
Havia muito entre ele e lorde Bassington que não podia ser esquecido ou
ignorado. Queria ter certeza de que o conde não teria nenhuma objeção em aceitá-lo
na família depois de tudo que acontecera.
O conde riu, não sem ironia.
— Já faz parte da família, quisesse eu ou não.
—Talvez eu tenha me precipitado, milorde — disse Julien, temeroso. — Ainda
é tudo muito recente para nós.
— Quem sabe... — Para surpresa de Julien, Bassington o tocara no braço. —
Mas quero que saiba que já o considero como um filho. Não apenas por uma questão
de origem, como disse, mas também porque aprendi a admirar sua força de vontade,
apesar de não ter concordado com todos os seus métodos — ressaltou, sério.
Agora, ao cair da tarde, Julien passeava pela estufa, de braço dado com
Serena. O perfume das flores-de-laranjeira impregnava o ar.
Julien fitou a mulher a seu lado. Serena parecia mais linda que nunca, agora
que todos os seus temores pareciam ter se dissipado.
— Sua tia é uma mulher forte — comentou, sincero.

107
— E passional — acrescentou Serena, rindo. — As mulheres da minha família
têm essa fama.
— É mesmo? Engraçado, ela sempre me pareceu muito dócil.
— Isso depois que se casou com meu tio. Julien sorriu.
— Será que quando se casar comigo você também vai mudar?
Serena ergueu as sobrancelhas, fingindo-se surpresa.
— Quem disse que vou me casar com você? Julien suspirou.
— Quer que eu rasteje a seus pés, srta. Allen? Pois que seja... — Ele se pôs de
joelhos. — A senhorita me daria a honra de ser minha esposa? — declamou, fitando-
a com intensidade.
— Só isso? — Serena reprimiu um sorriso. — Sem promessas de amor eterno,
nada disso?
— Serena... Teremos três dias inteiros na carruagem para eu proclamar meu
amor por você.
— Está mesmo disposto a me arrastar com você...
— Estou disposto a me casar com você, e se você aceitar, levá-la comigo para a
Escócia.
Serena sentiu o coração bater mais depressa.
— Por que a Escócia? Que eu saiba, só meninas de dezesseis anos
costumavam fugir para lá para se casar. Sou um pouco mais velha que isso.
— É a única solução. A única forma de evitarmos as dificuldades da união
entre um católico e uma protestante. Escapamos da fúria dos Condes e só
precisaremos esperar alguns dias, em vez de um mês, para nos casarmos. Dado o
tempo que passei no seu quarto, creio que estamos até atrasados com esta decisão.
— Mas, e quanto aos meus tios? — disfarçou, nervosa.
—Foi sua tia quem me deu essa sugestão — revelou Julien.
— Aliás, sou mesmo um grande admirador da condessa. — Aproximou-se,
ligeiramente ofegante. — E mais ainda da sobrinha dela.
Serena sorriu, feliz.
— Tenho que arrumar as malas, então. O caminho mais rápido para o meu
quarto é por aqui. — Puxou-o pela mão, afobada. — Vamos!
— Agora que eu estava me preparando para incrementar minha proposta? —
Julien riu e correu atrás dela.

Fim

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