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GIDDENS, Anthony.

O Estado-Nação e a Violência: Segundo Volume de


Uma Crítica Contemporânea ao Materialismo Histórico.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

PODER ADMINISTRATIVO, PACIFICAÇÃO INTERNA

O Estado-nação, vou repetir, é a “sociedade” do sociólogo. O uso descuidado do


termo “sociedade” na literatura sociológica mascara a complexidade das mudanças
criando este conjunto confinado e unitário a que normalmente ela se refere. Afirmo is­
so não com a intenção de proibir o uso do conceito nas ciências sociais, mas para apon­
tar uma variedade de problemas que ele comumente escondeÀo contrário dos Estados
tradicionais, o Estado-nação é um power-container' cujo alcance administrativo cor­
responde exatamente à sua delimitação territorial /Como este poder administrativo é
gerado? Este será o tópico que ocupará minha atenção na primeira parte deste capítulo,
mas que levará a questões posteriores. A criação de tais capacidades administrativas
está imediatamente relacionada às influências conjuntas do industrialismo e do urbanis-
mo/E é importante, por sua vez, como isso se relaciona a aspectos centrais do Estado-
nação como uma sociedade capitalista, o que significa elucidar a natureza da estrutura
de classe em relação tanto à soberania quanto à democracia. Um aviso ao leitor: neste
capítulo assimilarei muitas idéias introduzidas no primeiro volume deste trabalho e no
que fiz até aqui; embora sejam essenciais ao argumento empregado, não há espaço su­
ficiente para fornecer uma justificativa completa delas.

* A expressão power-container expressa a legitimação de pertinência entre as várias dimensões do Estado-


nação, mais especificamente às suas atribuições administrativas, políticas e econômicas (N. T.).

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o ESTADO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

Poder Administrativo I:
Comunicação e Armazenamento de Informação

Diversos fatores relativos à extensão da comunicação estão profundamente envol­


vidos com a consolidação da unidade administrativa do Estado-nação. Eles incluem: a
mecanização do transporte; a separação entre comunicação e transporte pela invenção
da mídia eletrônica; e a expansão das atividades “documentais” do Estado, envolvendo
uma reviravolta na coleção e confrontação de informações dirigidas a propósitos adminis-
trativos/intretanto, o segundo e o terceiro desses fatores foram cada vez mais incorpo­
rados no século XX como um modo eletrônico de armazenamento de informação,
tornando-se sempre mais sofisticados. Além disso, a eletricidade tornou-se progressi­
vamente parte dos meios mecânicos de propulsão. Todos os três estão interligados em
termos do esquema de conceitos que compõe este livro. Cada um representa um modo
incisivo no tempo e no espaço, fornecendo os meios de aumentar drasticamente o
alcance do distanciamento do tempo-espaço além daquele disponível nas sociedades
de classes.
i/\j modo mais simples e efetivo de se analisar o impacto direto das inovações no
transporte é por meio da noção de convergência de tempo-espaço1. Em meados do sé­
culo XVIII, foi iniciada uma série de inovações nos meios de transporte, diminuindo o
tempo necessário para executar trajetos de um ponto a outro. Em todos os Estados tra­
dicionais havia algum tipo de sistema viário, muitas vezes bastante complexo, como os
'do império romano. Pequenos grupos de pessoas podiam mover-se bastante rapidamen­
te em longas distâncias, especialmente se havia postos de parada para trocas de cava­
los. Os vikings eram capazes de realizar viagens muito rápidas —e, algumas vezes,
muito longas - que podem ser comparadas com quaisquer outras alcançadas mais tarde
até o advento das embarcações movidas mecanicamente. Entretanto, o ímpeto princi­
pal subjacente a tais formas de transporte (relativamente) rápidas era muito freqüente-
mente militar, ao passo que os grandes transportes comerciais eram lentos e normal men­
te restritos a rios ou a mares. Até o século XVIII, a Europa não era diferente de nenhum
outro lugar em relação a isso. As estradas eram, em geral, muito pobres, com exceção
de poucas rodovias entre grandes cidades e portos. Na Grã-Bretanha, em meados do
século XVIII, iniciou-se uma disseminação de estradas com pedágio”, onde, antes
disso, ao longo do Reino Unido, as estradas eram extremamente ruins e quase intransitá­
veis, de modo que era muito difícil transportar tanto artigos volumosos quanto pesados

1. D. G. Janelle, "Central Place Development in a Time-space Framework”. Professional Geographer, 20.


1968. Ver também Don Parkes e Nigel Thrift. Times, Spaces e Places, Chichester. Wiley. 1980. cap. 7.

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PODER ADMINISTRATIVO. PACIFICAÇÃO INTERNA

de um lugar a outro. As carruagens sobre rodas eram pouco usadas, e os cavalos eram
os meios comuns de transportes”2*.
Apenas por volta do final do século XIX é que houve uma rede de estradas propria­
mente organizada, propiciando transporte comercial razoavelmente barato, o qual foi,
aos poucos, sendo superado para o transporte de grandes volumes, principalmente em
função do desenvolvimento rápido do sistema de canal. O sistema de diligências foi a
primeira forma de transporte rápido moderno, operando regularmente e por um padrão
amplo de distância/fcoi o primeiro também a ser organizado em termos de horário, pois
aqueles em uso até o século XIX eram muito irregulares e pobremente coordenados,
considerando os padrões subsequentes dos sistemas de transportes rápidos. O sistema
de horários é um dos mais significativos instrumentos organizacionais modernos, pres­
supondo e estimulando a regulação da vida social pela quantificação do tempo de um
modo bastante desconhecido nos tipos anteriores de sociedade. Os horários não são
apenas meios de utilização das diferenças temporais no sentido de identificar e especi­
ficar eventos regularizados —a chegada e a partida de diligências, trem, ônibus ou
aviões. O horário é um instrumento de ordenação do tempo-espaço, que está no centro
das organizações modernas*. Todas as organizações, incluindo o sistema mundial atual,
operam por meio de horários, por intermédio dos quais as sequências de atividades no
tempo-espaço são eoreografadas.^s organizações sempre envolveram algum tipo de
horário - a invenção do calendário, por exemplo, foi um aspecto característico dos
Estados tradicionais. Mas somente em contextos regularizados de tempo-espaço, organi­
zados por meio do "relógio de ponto”, puderam os horários assumir uma forma mais
precisa. O mosteiro talvez tenha sido o exemplo mais remoto de tal contexto4*, mas a
mercantilização do tempo, peculiar à produção capitalista foi, sem dúvida, a sua mais
•decisiva propagadora.convergência do tempo-espaço fornece, portanto, um índice
dramático de um fenômeno do qual, hoje em dia, dificilmente se pode falar sem cair no
clichê - a diminuição do mundo. Mas por trás da convergência tempo-espaço há um
fenômeno mais difuso, profundamente importante, de uma coordenação cada vez mais
precisa da sequência de tempo-espaço na vida social
É ilusório concentrar-se na mecanização do transporte ao interpretar a dissolu­
ção do caráter fragmentário das sociedades de classes. Os efeitos de tal mecanização

2- J. Bischoff. A Comprehensive History of the Woollen and Worsted Manufactures. London. 1842, p. 428. Essa
Passagem < citada e criticada em algumas partes por Derek Gregory, que sugere que o s.stema de estradas
era, de fato. melhor do que o acreditado. Ver o seu Regional Transformation and Industrial Revolution.
London. Macmillan, 1982, pp. 54-55.
3- Cf. Evitar Zerubavel, Hidden Rhythms. Chicago, University of Chicago Press, 1981.
4- Lewis Mumford. Interpretations and Forecasts. London, Seeker & Warburg, 1973.

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O ESTAÜO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

teriam sido muito mais limitados sem a invenção da comunicação eletrônica. Sem o te­
légrafo e os modos posteriores de comunicação eletrônica, os transportes rápidos esta­
riam restritos a uns poucos trajetos ao dia, a uma pequena minoria e a uma pequena
"quantidade de mercadorias. O transporte de massa requer movimentos cronometrados
e “espaçados”, que, por sua vez, supõem a capacidade de comunicar “adiante do tem­
po” o que foi planejado. Somente com isso pode o conjunto do sistema de tráfego ser
monitorado reflexivamente e, portanto, “organizado” de forma abrangente. Assim, mais
do que o trem a vapor, é a direção do itinerário da ferrovia, coordenada pela comunica­
ção telegráfica, que exemplifica o transporte moderno. É bastante com-preensível que
os contemporâneos ficassem admirados pela estrada de ferro, “um verda-deiro sistema
de circulação sanguínea, vermelho, complicado, dividindo e reunindo, ramificando,
separando, estendendo, sondando ramos, raiz-mestra, afluentes”5. Mas a combinação
da estrada de ferro com o telégrafo foi o que tornou este complexo possível, não a
locomotiva e seus trilhos por si sój
Muitos historiadores e sociólogos talvez não reconheçam o alcance do processo
envolvido na disseminação dos meios de transporte mecanizados, um processo que não
culminou senão com a introdução do padrão mundial de tempo em 1884. Na Primeira
Conferência de Meridianos mantida em Washington durante aquele ano, seguindo uma
série de debates políticos calorosos, Greenwich foi adotado como o meridiano zero. O
globo foi dividido em 24 zonas de tempo, cada uma com uma hora de diferença, e o co­
meço exato do dia universal foi definidoh/fem alguns Estados, os horários das estradas
de ferro e de outros transportes foram muito rapidamente mantidos dentro dessas delimi­
tações, mas em outras, prevaleceram práticas mais caóticas. O quanto uma ou outra
tornaram-se aceitas dependia substancialmente de sistemas preexistentes. Já em 1870,
nos Estados Unidos havia algo em torno de 80 horários diferentes nas ferrovias7. Entretan­
to, em 1883, representantes das rodovias encontraram-se para estabelecer um tempo
uniforme, referido como o dia de dois meio-dias”, já que na parte leste de cada região
os relógios retrocediam ao meio-dia8. Quando a Conferência de Washington foi reali­
zada, a França - cujos delegados eram os oponentes mais acirrados da escolha de
Greenwich como o meridiano zero - ainda possuía quatro tempos regionais diferentes,
nenhum deles prontamente conversíveis ao tempo de Greenwich. A hora em Paris, no­
ve minutos e vinte e um segundos à frente de Greenwich, foi adotado como o horário

5. Frank Norris, The Octopus, London, Grant Richards, 1901, p. 42


6. Cf. Evitar Zurubavel, op. cit.
7- ^19olJ, p.H?121.
T ' GreenWkh Tme and ,he DiSCOVery o f,he ^ h 'it u d e . New York, Oxford Umvers.ty Press.

8. Stephen Kern, The Culture of Time and Space 1HH0-I9IH. London. Weindenfeld, 1983. p. 12.

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PODER ADMINISTRATIVO PACIFICAÇÃO INTERNA

das ferrovias, e, em 1891, foi considerado o tempo estatutário para toda a França. As
peculiaridades permaneceram. Os trens eram, de fato, programados para funcionarem
5 minutos atrasados em relação ao seu tempo “oficial”, para assim dar oportunidade
aos seus passageiros de embarcar comodamente/bío entanto, foram os franceses que
iniciaram a Conferência Internacional sobre o Tempo, realizada em Paris em 1912;
este foi o congresso que definiu um método uniforme de especificar sinais de tempo de
forma precisa e transmiti-los por todo o mundo9'
^A separação da comunicação em relação ao transporte estabelecida pelo telégra­
fo foi tão importante quanto qualquer outra invenção anterior na história humana. Re­
duziu a um mínimo o que os geógrafos chamam de “fricção da distância”. A separação
na distância tem sido sempre não apenas separação no tempo, mas esteve diretamente
re-lacionada a despesas de custo e esforço. As comunicações mais ou menos instantâ­
neas talvez não eliminem nem os custos nem os esforços, mas rompem com a incidên­
cia de-les na separação espacial. As redes postais são, sem dúvida, um suplemento
fundamental ao telégrafo e ao seu sucessor, o telefone/As Figuras 2 e 3 mostram a
crescente convergência tempo-espaço entre Nova Iorque e São Francisco.

Figura 2 — A convergência tempo-espaço postal entre Nova Iorque e São Francisco.

9- Idem. p. 13.

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O ESTADO-NAÇÃO EA VIOLÊNCIA

Figura 3 - A convergência tempo-espaço do telefônica entre Nova Iorque e São Francisco"1.

/O s serviços postais de tipo nacional e internacional originaram-se no século XVIII.


Mas, no início, as comunicações postais eram tão lentas quanto esporádicas. Antes de
meados do século XIX, a correspondência raramente era transportada a mais do que 16
km/h em distâncias mais longas". A questão sobre os sistemas modernos de transportes
em geral —de que a coordenação no tempo-espaço é tão importante quanto a mecaniza­
ção do fluxo de movimento —aplica-se ainda aos serviços postais como um ins-trumento
de transporte de comunicação./Mas serviços postais altamente eficientes certamente
precedem o telefone e seus similares. Nos Estados Unidos, um serviço telefônico na­
cional completo existe somente a partir da instalação do primeiro cabo transcontinental
em 1915. Mesmo assim as chamadas interurbanas consumiam muito tempo se compa­
radas às posteriores. Em 1920, era necessário cerca de um quarto de hora para fazer
uma chamada, que envolvia a colaboração de oito operadores. Como a Figura 3 indica,
na década de 1930 melhoramentos nas conexões de rede diminuiram a média de tempo
de serviço para dois minutos, e, em 1950, a introdução do interruptor automático redu­
ziu esse tempo para um minuto. A chegada da discagem direta a longa distância reduziu^
esta operação ao tempo de se compor os numeros e de alguém responder a chamada.»
^Nas comunicações por telefone existe uma convergência de tempo-espaço quase
completa, tanto dentro dos Estados quanto internacionalmente. Há uma pequena diferen­
ça entre realizar uma chamada local e uma a milhares de quilômetros de distância1^/É
claro que o telefone é apenas um entre uma variedade de meios eletrônicos que permi-102

10. As Figuras 2 e 3 de Ronald Abler, Effects of Space-adjusting Technologies on the Human Geography of
the Future”, em Abler et al„ Human Geography in a Shrínking World, North Scituate Duxbury, 1975, pp.
39 e 41.
11. Idem, p. 40.
12. Ithiel da Sola Pool, The Social Impact ofthe Telephone, Boston, Mass, MIT Press 1977

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tem uma comunicação mais ou menos instantanea (ou, se preferir, prolongada) sobre
distâncias indefinidas^X televisão desenvolveu-se como um meio de comunicação de
“uma via”, mas não há uma razão intrínseca para que assim permaneça, já que várias
formas de vínculos recíprocos são, em princípio, e em alguns casos na prática, possí­
veis. Transmissões por fax, vídeo e computador representam também formas novas de
comunicação real e potencial, cujo impacto provável sobre a vida social é ainda bastan­
te desconhecido, mas que sem dúvida prenuncia processos ampliados de convergência
de tempo-espaço/
Menciono estes fenômenos aqui não no sentido de tentar trazer a discussão do
Estado-nação até o momento presente Alinha intenção é enfatizar a importância para a
consolidação do Estado-nação no final do século XIX e no começo do século XX da
separação da comunicação de informação dos transportes. O salto inicial adiante do
poder administrativo gerado pelo Estado-nação foi realizado antes do desenvolvimento
da comunicação eletrônica. Mas as sociedades modernas foram sociedades eletrôni­
cas” durante muito mais tempo do que normalmente imaginamos, e sociedades de
informação” desde o seu início^fá um sentido fundamental, como já afirmei, no qual
todos os Estados foram “sociedades de informação”, já que a geração do poder de
Estado supõe um sistema de reprodução reflexivamente monitorado, envolvendo a reu­
nião regularizada, armazenamento, e controle da informação voltados para fins adminis­
trativos. Porém, no Estado-nação, com seu peculiar alto grau de unidade administrati­
va, isso ocorre em um nível muito mais elevado.
Ao discutir os Estados tradicionais, Innis faz uma distinção entre meios de comuni­
cação que “enfatizam o tempo” e aqueles que enfatizam o espaço . Os primeiros são
duráveis mas pesados, e são os principais materiais das antigas civilizações. Pedra, ce­
râmica, pergaminho pertencem a esta categoria. Eles trazem as marcas da palavra escri­
ta por períodos muito longos no tempo, mas não contribuem para a geração de poder
administrativo por vastas extensões de espaço. O papiro e o papel tendem a ser menos
duradouros, mas são leves, mais facilmente transportáveis e também mais facilmente
reproduzíveis. A conquista romana do Egito, de acordo com Innis, foi peculiarmente
importante para a expansão do Império, não apenas por causa do território então conquis­
tado, mas porque permitiu o acesso a grandes suprimentos de papiros que eram então
usados amplamente na documentação administrativa. Seguindo a queda de Roma, os
Estados europeus passaram a usar o sistema de pergaminho, visto que o papiro pratica­
mente desaparecera depois do século VIII. O papel foi inicialmente usado visando pro­
pósitos comerciais, como documento de crédito e comprovante de troca. Os textos de13

13. H. A. Innis, Empire and Communications, Oxford, Clarendon Press, 1950, p. 7.

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O ESTÃO -NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

qualquer extensão, incluindo textos acadêmicos, continuaram a ser escritos em pergami­


nho até o desenvolvimento da imprensa. A invenção da imprensa foi um fenômeno tão
importante como a formação do Estado absolutista e outros fatores mencionados no
capítulo 6. Seria difícil superestimar o impacto generalizado da imprensa na formação
da modernidade14. A imprensa foi o primeiro grande passo na mecanização da comuni­
cação e, ao produzir documentos e textos amplamente disponíveis, iniciou o processo
de distanciamento da cultura européia do imaginário mimético nos domínios material,
intelectual e artístico.
^4o que se refere ao Estado, a consequência mais importante da disponibilidade de
materiais impressos fáceis e baratos toi um alargamento da esfera do “político”. O cres­
cimento da “esfera pública” da administração do Estado é inseparável da organização
textualmente mediatizada. A arena discursiva aberta a partir daí é descrita muito erro­
neamente como aquela em que o “discurso livre” é, em princípio, possível. Não é basi­
camente o discurso que está em questão, e sim o quanto as câmaras de debates possam
tornar-se importantes. Ao contrário, é a “intertextualidade” da troca de opiniões e obser­
vações por meio dos textos que estão “livremente disponíveis” - nos termos de Ricoeur,
distanciados de seus autores —que define a mudança decisiva na guinada em direção à
nova forma de Estado/Oeter-me-ei neste tema mais adiante, por enquanto vou me con­
centrar nas implicações do alargamento do poder administrativo do Estado. O que a im­
prensa tornou possível, sendo cada vez mais usado durante a fase de consolidação do
absolutismo, foi um avanço muito profundo nas operações de vigilância do Estado. Foi
essencial para o direito sobre o qual Weber, corretamente, coloca bastante ênfase^km
todo lugar leis foram, em algum momento, escritas, mas na cultura escrita precedente,
sua influência foi necessariamente limitada e difusa. Os códigos de lei impressos, den­
tro de uma cultura cada vez mais escrita, aumentou a integração da “interpretação” do
direito dentro da prática de administração de Estado e alcançou uma aplicação muito
mais consistente e direta da padronização dos procedimentos jurídicos para as ativida­
des da maioria da população. Mas a esfera da lei é apenas uma área na qual tais mudan­
ças podem ser observadas. Registros, relatórios e coleta rotineira de dados tornaram-se
parte das operações diárias do Estado, ainda que, obviamente, não limitadas a isso.,
Um único indício tão bom quanto outro qualquer do movimento do absolutismo
ao Estado-nação é o início da coleta sistemática de “estatísticas oficiais”. No período
do absolutismo, tais coletas de dados concentraram-se particularmente em duas áreas,
ao menos no que se refere aos assuntos internos dos Estados. Uma era a de finanças e

14. Ainda que pudesse ser dito que McLuhan conseguiu fazê-lo. Para uma avaliayáo mais discreta, ainda que
instrutiva, ver em especai Elt/abeth L. Etsenstem. The Priming Revolution m Early Modem Eumpe.
Cambridge, Cambridge University Press, 1983.
PODER ADMINISTRATIVO. PACIFICAÇÃO INTERNA

impostos, a outra, a posse das estatísticas da população - que tendia, entretanto, a ser
localizada, em vez de centralizada, até o século XVIII. As primeiras são testemunhas
da importância do gerenciamento fiscal, já mencionado. A segunda refere-se a um fenô­
meno que discutirei na próxima seção - a preocupação do Estado centralizado com a
manutenção da “ordem” interna em relação à rebelião, vagabundagem e crime. As es­
tatísticas oficiais que todos os Estados começam a guardar a partir da metade do século
XVIII em diante mantêm e estendem essas preocupações. Mas elas também atingem
muitos setores da vida social e, pela primeira vez, são detalhadas, sistemáticas e quase
completas. Elas incluem a coleta centralizada de materiais registrando nascimentos,
casamentos e mortes, estatísticas relativas à residência, origem étnica e ocupação; e o
que veio a ser chamado de "estatística moral” por Quételet e outros, relativos a suicí­
dio, delinqüência, divórcio, e assim por diante.
"'Há uma questão muito importante sobre a estatística oficial. Desde que ela pas­
sou a ser elaborada, cientistas sociais consideravam que elas ofereciam um material que
poderia ser usado para demonstrar graficamente as características da organização e mu­
dança sociais. As origens das pesquisas sociais empíricas nas ciências sociais estão inti­
mamente ligadas ao uso das estatísticas oficiais como um índice dos processos de ativida­
de social15. O Suicídio, de Durkheim, é somente um entre muitos trabalhos do século
XIX que se baseia nas análises de tais estatísticas para fundamentar suas conclusões^
Agora pode muito bem ser aceito, considerando certas reservas sobre o modo de sua co­
leta, que as estatísticas oficiais são fontes inestimáveis de dados para a pesquisa social.
Mas elas não "correspondem” apenas a um dado universo de objetos e eventos sociais,
elas são constitutivas d isso /o poder administrativo gerado pelo Estado-nação não pode-
ria existir sem a base de informação que são os meios de sua autoregulação reflexival
Outras implicações também derivam disso/^As ciências sociais, mesmo em suas formu­
lações iniciais, não surgiram viçosas e inocentes em listas organizadas de dados empíri­
cos. A coleta de estatísticas oficiais é impossível sem um conhecimento sistemático, por
parte daqueles que a fazem, da questão que concerne a essas estatísticas. Tal conhecimen­
to é progressivamente monitorado, no Estado moderno, pelos mesmos métodos que os
cientistas sociais "independentes” costumam analisar os dados assim produzidos. A partir
daí, as ciências sociais têm sido persistentemente relacionadas ao fenômeno que elas se
dispuseram a analisar. As conexões envolvidas aqui são, em parte, empíricas (porque a
coleta das estatísticas normalmente envolve o aprendizado dos processos usados para
“sistematizá-los” e "melhorá-los”) mas também conceituais ou teóricos. Os discursos

15. Cf. Anthony Obmch.ll. The Esrahlishment of Empirical Social Research in Germany. The Hague. Momon.
1965. Sobre o crescimento da documentação do Estado, ver B. R. Mitchell, European Huroncal Sranmcs.
17X0.1970. New York. Columbia University Press. 1975.
O ESTADO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

da ciência social são absorvidos pelos temas que tratam, ao mesmo tempo que (logica­
mente) derivam de conceitos e teorias já empregados por atores leigos"’.
ciência social, em outras palavras, desde as suas tenras origens no período mo­
derno, tem sido um aspecto constitutivo dessa enorme expansão do monitoramento re­
flexivo da reprodução social que é uma parte integral do Estado. No período do absolu­
tismo, duas formas de discurso foram particularmente relevantes a esse respeito. Um,
que mencionei anteriormente, foi o discurso inicial da teoria política, totalmente envol­
vido na formação de modos de soberania que distingue o Estado absolutista dos tradicio­
nais. O outro pertence a uma fase ligeiramente mais recente, é o discurso do início da
teoria econômica, que ajudou a dar o sentido moderno ao “econômico”, à “economia”,
à “indústria” e a todo um conjunto de termos em torno disso/fentretanto, o uso deles
somente se estabeleceu no século XIX, e é a economia, junto com a sociologia e a psico­
logia, que foi mais profundamente envolvida com o surgimento do poder administrati­
vo do Estado-nação. Ao dizer isso, não quero afirmar que as ciências sociais não pos­
sam, em algum momento, manter-se fora desse poder e sujeitá-lo a análise e crítica,
.1

como considero que esteja fazendo neste texto. Mas devemos reconhecer que um dos
aspectos do Estado moderno —e das organizações modernas em geral - é um estudo siste­
mático e uma utilização de materiais relevantes para a sua própria reprodução.;

Poder Administrativo II: Pacificação Interna

A vigilância como mobilizadora do poder administrativo —por meio do armaze­


namento e controle da informação —é o meio básico de concentração dos recursos
políticos envolvidos na formação do Estado-nação. Mas ela é acompanhada de proces­
sos de transformação interna em larga escala, processos estes que têm suas origens no
desenvolvimento do capitalismo industrial e que podem ser representados essencialmen­
te como produzindo uma pacificação interna/o significado de “pacificação interna"
precisa ser cuidadosamente entendido e interpretado no cenário do aspecto da adminis­
tração interna dos Estados tradicionais. É uma questão que nos remete novamente ao
tema da violência.
/C om o já apontei anteriormente, nos Estados tradicionais o conceito de “desvio”
faz muito pouco sentido, com exceção de locais restritos de grupos dominantes. O
alcance administrativo do Estado não se estende para abranger as práticas da comunida­
de local, mesmo nas cidades onde elas estão espacialmente distantes dos centros onde16

16. Cf. CS, capítulo 6.

202
PODER ADMINISTRATIVO, PACIFICAÇÃO INTERNA

o poder do Estado estava mais concentrado. Ademais, os padrões de violência não se


assemelham àqueles que se tornaram familiares no Estado-nação (ocidentais). Nos
Estados tradicionais, o controle relativamente inseguro do centro político sobre os meios
de violência significava que poderiam haver poucas possibilidades de “policiamento”
no sentido moderno; que sempre houve fontes potenciais de desafio, de tipo militar, ao
centro; e que bandidos, saqueadores, piratas, gangues urbanas e rurais de vários tipos
estariam sempre presentes,
fa. partir do século XVI, o temor em relação aos “distúrbios populares” era constan­
temente expresso nos círculos dominantes das sociedades européias. Mas embora mui­
tos deles envolvessem formas tradicionais de protesto, marcavam o começo de uma
nova relação entre o Estado e a população. Duas tendências de desenvolvimento parci­
almente independentes, mas crescentemente convergentes, pareciam estar envolvidas.
Uma era, em muitos países, principalmente o resultado da emergência precoce da ativida­
de econômica capitalista, tornando avulso um grande número de camponeses despos-
suídos, que se tornaram trabalhadores semidesempregados de grandes plantações, ou
mantidos em vilas e cidades como uma massa potencialmente crítica, apenas parcialmen­
te absorvida dentro da nova ordem social. A outra foi o estabelecimento de organiza­
ções mediadoras em locais específicos que separavam certas categorias de indivíduos
do resto da população. Esse é o processo, ou uma série de processos, que Foucault cha­
ma de “segregação”17. No século XVII, na Inglaterra, foi estimado que o “exército de
pobres e desempregados” somava entre 10 a 20 por cento da população adulta, com este
número alcançando, em tempos de crise econômica, algo em torno de 30%. O reconhe­
cimento disso como um “problema social” de largas proporções por parte destes círcu­
los dominantes foi indubitavelmente uma das principais razões para a criação das casas
de correção e dos antigos "hospitais”18*.
Considerando que o hospital foi o primeiro modelo envolvido nas fases iniciais
do crescimento rápido de organizações carcerárias, vale a pena comentar brevemente
suas origens em relação a seu desenvolvimento posterior. Os hospitais , às vezes na
forma pela qual o sentido moderno do termo poderia ser aplicado - concentrando-se no
cuidado dos doentes e enfermos - têm uma longa história fora da Europa . Assim os
hospitais em Bizâncio foram agências especializadas desse tipo, embora estivessem in­
fimamente ligados aos mosteiros. O hospital-mosteiro estabelecido por João Commenos
cm 1112, por exemplo, possuía cinco alas separadas de aproximadamente 12 leitos

17. Foucault, op. cil.


IX. Doerner. op. cil., pp. 16 e ss.
George Rosen. "The Hospital: Historical Sociology of a Community Institution”, em Eliot Fre.dson, The
Hospital in Modem Society, Glencoe. The Free Press, 1959.

203
O ESTADO-NAÇÃO EA VIOLÊNCIA

cada uma, atendendo a tipos diferentes de doença. Cada ala possuía dois médicos, com
assistentes e ajudantes em tempo integral, além de administradores responsáveis pela
organização como um todo; havia também um departamento para pacientes externos.
Havia poucos hospitais semelhantes a esses na Europa na Idade Média, tais como o da
Abadia de Saint Gall, na Suíça, construído no século IX20. O prédio da Abadia possuía
um hospital com um número de alas, e era atendido por um médico responsável e ou­
tros doutores. Mas tais organizações possuíam apenas uma relação marginal com aque­
les construídos a partir do século XVII. A influência religiosa e o modelo monástico
permaneceram dominantes, mas as novas organizações foram muitas vezes estabeleci­
das pelo Estado, e sua preocupação era mais com o crime e a vadiagem do que com o
cuidado dos doentes21.
Se as organizações carcerárias tiveram suas origens no período do absolutismo,
elas apenas assumiram o aspecto com o qual estamos familiarizados hoje ao longo da
transição para o Estado-nação. Não há necessidade de aceitar toda a fundamentação
dos argumentos de Foucault para reconhecer que o “poder disciplinatório” associou-se
a uma variedade de organizações envolvendo novos modos de regularizar as atividades
no tempo-espaço22. As prisões e os hospícios diferenciaram-se de outras organizações,
como os hospitais médicos, nos quais os indivíduos não são encarcerados contra a sua
vontade^A privação da liberdade torna-se o principal meio punitivo, substituindo
aquelas formas espetaculares de punição que Foucault descreve mas que, de fato, nun­
ca foram mais do que exceções dramáticas de formas mais mundanas de sanções pree­
xistentes23. A privação forçada de liberdades é, de alguma forma, uma expressão da
centralização que os direitos democráticos ou de cidadania vieram a assumir dentro
do Estado. O debate - particularmente aquele estimulado pelos escritos de Foucault -
sobre o quão longe a tendência relativa ao confinamento como uma sanção punitiva
corresponde aos ideais humanos24é, em alguns aspectos, equivocado. A questão p ãoi
apenas se ocorreu uma transição de um tipo de punição (violenta, espetacular, aberta)
para outra (disciplinatória, monótona, escondida), mas que um novo complexo de rela­
ções coercitivas foram estabelecidas onde poucas estavam localizadas antes. A criação
de uma necessidade pela lei e ordem é o lado reverso da emergência das concepções

20. Brian Tierney, Mediaeval Poor Law, Berkeley, University California Press, 1959
21. Sean McConville, A History of English Prison Administration. London, Routledge & Kegan Paul. 1981.
vol. I, p. 31 e ss.
22. Cf. “From Marx to Nietzsche? Neo-conservantism. Foucault and Problems in Contemporary Political
Theory”, em PCST, vertambém CS, cap. 3.
23. Cf. George Rusche e Otto Kirchheimer, Punishment and Social Structure. New York Russell & Russell,
1968, pp. 42 e ss.
24. Cf. Michael Ignatieff, A Just Measure of Pain, London, Macmillan. 1978

204
PODER ADMINISTRATIVO. PACIFICAÇÃO INTERNA

de "desvio” reconhecidas e categorizadas pelas autoridades centrais e por especialistas


profissionais. Estas são intrínsecas à expansão do alcance administrativo do Estado
penetrando nas atividades diárias - e à aquisição de um monopólio efetivo da violência
nas mãos das autoridades do Estado.
Os principais conflitos separatistas dentro do Estado-nação ocidental tornaram-
se conflitos de classes e conflitos associados ao surgimento de vários tipos de movimen­
tos de massa. O "criminoso”, em específico, não é mais um rebelde, mas um tipo "des-
viante”, que deve ser ajustado às normas de comportamento aceitável como o definido
jielas obrigações da cidadania. Nos tipos anteriores de sociedade, as classes dominan­
tes não buscaram, ou exigiram, a necessidade da aquiescência regularizada da maioria
da população, com exceção de critérios demasiadamente restritos de submissão mate­
rial. A manutenção da "ordem” - um termo que não possui a mesma aplicação em
qualquer caso naqueles tipos de sociedade - foi o pretexto de uma combinação de con­
trole de comunidade local e de possibilidade de intervenção armada quando necessá­
ria. Mas no Estado-nação, o encarceramento, mais o policiamento, substituem ampla­
mente essas influências. A "guerra civil”, onde ocorre, normalmente é distinguida mesmo
das confrontações violentas, bastante significativas, entre as autoridades de Estado e
agrupamentos de classe rebeldes ou outros grupos dissidentes organizados.
/ / O "poder disciplinatório” como descrito por Foucault depende basicamente da
vigilância, no sentido de manutenção da informação, especialmente na forma de regis­
tros pessoais de histórias de vida mantidas pelas autoridades administrativas. Mas ele
também envolve a vigilância no sentido de supervisão direta. Nesse sentido, prisões e
asilos dividem algumas das características generalizadas das organizações modernas,
incluindo o local de trabalho capitalista, além de uma variedade de outras organiza­
ções. Todos incluem a concentração de atividades por um período do dia, ou por um
período na vida de indivíduos, em locais especialmente construídos para isso. Deve­
mos considerar o poder disciplinatório como um subtipo de poder administrativo em
geral. É este último que provém de procedimentos disciplinatórios, a partir do uso re­
gularizado da supervisão, com o objetivo tanto de inculcar quanto de tentar manter cer-
tas peculiaridades no comportamento daqueles sujeitos a ele^Já que em épocas anterio­
res os mosteiros eram um dos poucos locais onde se concentrava grande quantidade de
pessoas, não é surpreendente que alguns dos principais aspectos do poder disciplinatório
tenham se originado lá. O poder disciplinatório é construído em torno do horário, exa­
tamente como os outros aspectos espacialmente mais difusos de organizações moder­
nas. Mas nesse caso, os horários são usados para organizar a seqüência de desenvolvimen­
to de ações no tempo-espaço dentro de locais delimitados fisicamente, nos quais a
regularidade das atividades pode ser imposta pela supervisão de indivíduos que, de ou­
tro modo. não as fariam. A supervisão requer tanto a observação contínua (como, por
O ESTADO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

exemplo, no caso de um professor confrontando uma classe de alunos) como o acesso


imediato a tal observação quando for necessário (como no exemplo dos instrumentos
que podem ser usados para a observação dos prisioneiros quando eles estão em suas ce-
las)/No sentido de que o poder disciplinatório envolve a observação, Foucault está cor­
reto em tomar a posição de Bentham como um exemplo, sem considerar o quanto isso
foi usado como modelo por aqueles que conceberam ou operaram as prisões ou outras
organizações locais.
Mas Foucault engana-se, na medida em que considera esse poder disciplinatório
“maximizado” como expressão da natureza geral do poder administrativo no Estado
moderno Prisões, asilos e outros locais nos quais os indivíduos são mantidos inteiramen­
te isolados do exterior, como Goffman deixou claro, devem ser considerados como ten­
do características especiais que os separam muito distintivamente de outras organiza­
ções modernas jfae lo fato de seu efeito ser “total” sobre os seus ocupantes, aquele tipo
de organização interrompe a rotina habitual na qual os agentes vivem suas vidas23. A
noção de Goffman de “instituição total” pode ou não ter sido cunhada pelas suas afini­
dades com o “totalitarismo”, mas certamente o campo de concentração é, nos tempos
recentes, o exemplo mais dramático e assustador de reclusão forçada. O uso de técni­
cas de vigilância em tais ambientes cercados e com horários controlados, inegavel­
mente lançou uma marca maligna na era moderna.^Pode-se perceber, a partir disso,
porque Foucault prefere acentuar as implicações dessas formas de poder disciplinatórias,
visto que, em princípio, teriam sido estabelecidas por motivos essencialmente humanitá­
rios. Mas ainda temos de insistir que é o local de trabalho ou, mais genericamente, o
local especializado dentro do qual o poder administrativo está concentrado, que é típi­
co do Estado-nação ocidental. É característico do ambiente do local de trabalho de
empresas ou escolas, e outras organizações modernas, o indivíduo gastar somente parte
do dia dentro de seu interior e, durante esse segmento do dia, a aplicação do poder
disciplinatório ser mais difusa do que nas “instituições totais”//Em todas as organiza­
ções, em virtude da dialética de controle, há algum tipo de “tentativa de acordo”, im­
plícita ou explicitamente concluída pelos participantes. Mas além dos locais de reclu­
são forçada, esse é o único que, tanto de jure quanto de facto, reconhece limites restritos
ao grau em que as atividades podem ser fortemente constrangidas para se adequarem
aos padrões designados ou desejados Jfiá certamente similaridades bastante próximas
na arquitetura entre, por exemplo, as prisões e as fábricas do século XIX na Inglaterra
e em em outros países. Como já foi observado, os primeiros empresários industriais
buscaram fontes de trabalho submisso e não livre, na tentativa de criar condições está-25

25. Cf. CS, cap. 2.

206
PODER ADMINISTRATIVO, PACIFICA ÇÃO INTERNA

veis de produção dentro da empresa. Um historiador observa que, “havia poucas áreas
no país [Grã-Bretanha| nas quais as indústrias modernas, particularmente as têxteis
quando localizadas em grandes prédios, não estavam associadas às prisões, casas de
correção e orfanatos”26.0 mesmo escritor acrescenta, no entanto, que uma das caracterís­
ticas mais importantes do capitalismo industrial é que o trabalho assalariado é “livre”
Conseqüentemente, a imposição do poder disciplinatório fora do contexto do confina-
mento forçado abranda-se pelo poder de reação bastante real e conseqüente que aque­
les a ele sujeitos podem, e conseguem, exercer)•
Isso sugere que há dois aspectos fundamentais da associação do poder disciplinató­
rio com o Estado moderno que devem ser salientados. Por um lado, ocorre um ímpeto
definido em direção à expansão desta forma de poder, tornada possível pelo estabeleci­
mento de locais nos quais a observação regularizada das atividades pode ser realizada
no sentido de buscar o seu controle. Isso é importante para a natureza do local de
trabalho moderno e, portanto, é um vínculo fundamental conectando o capitalismo in­
dustrial (como um modo de empresa econômica) ao Estado-nação (como uma unidade
administrativamente coordenada)/Não é, como tal, parte da influência diretiva do apa­
rato de Estado, mas um fenômeno generalizado aumentando a pacificação interna ao
promover a disciplina de grupos potencialmente recalcitrantes em pontos centrais de
tensão, especialmente na esfera da produção. Isto é distinto de um crescimento do po­
der disciplinatório vinculado às sanções que aqueles no aparato de Estado são capazes
de exercer em relação ao “desvio”. É este o segundo aspecto que está mais diretamente
relacionado ao desenvolvimento da vigilância como o policiamento das atividades de
rotina de grande parte da população por órgãos especializados separados do corpo
principal das forças armadas, i
pacificação interna envolve diversos fenômenos, todos relativos à diminuição
progressiva da violência nas questões internas dos Estados-nação. Um aspecto a que
Foucault atribuiu uma proeminência especial é o desaparecimento de formas violentas
dcjjuniçãii associadas ao sistema legal. Talvez o indício mais surpreendente disso seja
encontrado na história da pena capital/Em tempos pós-medievais, a pena capital pode­
ria ser aplicada a uma variedade de transgressões, muitas delas aparentemente bastante
triviais. A morte de outra pessoa, no entanto, poderia muitas vezes ser recompensada
pelo pagamento de uma multa e, na prática, era freqüentemente sancionada mais pela
comunidade local ou por grupos de parentes do que pelo Estado. O assassinato era con­
siderado o ponto mais alto da escala de crimes, qualquer que fosse o nível na hierar­
quia social em que o criminoso pudesse estar, e a distinção feita entre assassinato e ma-

Sidney Pollard, The Genesis of Modem Management, London, Arnold, 1965, p. 163.
O ESTADO-NAÇÃO EA VIOLÊNCIA

tança de populações estrangeiras em tempos de guerra é uma atitude peculiar aos dois
últimos séculos. Ela reflete tanto a primazia que os “direitos burgueses” assumem,
quanto a sua conexão com a cidadania universal dentro do Estado soberano.
As execuções públicas ainda eram realizadas na Inglaterra em anos bastante pos­
teriores ao século XVIII. Os carrascos eram figuras bem conhecidas do público em ge­
ral. e incorporaram ao seu trabalho vários tipos de idiossincrasias e formas de exibicionis­
mo2728.Aqueles malfeitores condenados à morte em Tyburn foram levados pelas ruas em
carroças abertas, seguidos por um imenso cortejo de funcionários. Eles morreram de­
vagar. embora fosse permitido aos amigos encurtar seu sofrimento, empurrando-os do
cadafalso. Embora essas práticas tivessem desaparecido antes da própria execução pú­
blica. em tempos mais remotos os corpos eram, muitas vezes, expostos publicamente.
O enforcamento era o mais comum desses procedimentos. Um cadáver poderia ser
fervido ou coberto de piche e preso em uma cadeira ou em uma vestimenta de vime na
cena do crime, em uma via pública movimentada ou em um local especial para enfor-
cam entos/o aspecto mais evidente da pena capital posterior ao desaparecimento de
execuções públicas foi a introdução progressiva de técnicas que tentavam minimizar
tanto o sofrimento quanto qualquer sentido de espetáculo. O objetivo também era o de
evitar a mutilação. Os cadafalsos foram concebidos de modo a derrubar o condenado
longe o suficiente apenas para deslocar o seu pescoço, mas não tão longe a ponto de
romper os vasos sangüíneos. As execuções foram ocultadas tanto no tempo quanto no
espaço, sendo realizados pela manhã ou tarde da noite, em vez de no meio da tarde,
como cos-tumavam ser as execuções públicas/como Lofland aponta.

As execuções históricas eram barulhentas: pancadas para vergar corpos nas rodas; marteladas para
prender corpos em crucificação; fogo crepitando e madeira tombando para preparar recipientes para ferver
corpos [...] A opção moderna é por técnicas silenciosas. Na realidade, nenhum esforço foi gasto para que os
ingleses preparassem um enforcamento silencioso. No começo do período moderno, as portas dos cadafalsos
eram abafadas com fardos de algodão e, quando a tecnologia tornou-se acessível, almofadas de borracha e
molas foram usadas2*.

A eliminação da punição como espetáculo é, sem dúvida, rica em implicações,


tnas um aspecto fundamental envolvido é a transferência da capacidade de sanção do
Estado do uso manifesto da violência para o uso abrangente do poder administrativo,
sustentando o seu domínio, A pena capital foi hoje abolida na maioria dos países oci­

27. Ver o trabalho de Horace Bleackley. The Hangmen of England, reeditado na sua totalidade em John I .ofland,
Stale Executions, Montclair NJ, Patterson Smith, 1977.
28. Idem, p. 312. Ver também Alice Morse Earle, Curious Punishments of Bygone Pays. Montclair. Smith.
1969. Originalmente publicado em 1896.
PODER ADMINISTRATIVO, PACIFICAÇÃO INTERNA

dentais. Mas no período anterior não era mais um método de infligir dor física, conce­
bido para impressionar o resto da população com o comando de força do Estado/Ao
contrário, tornou-se a sanção final em uma hierarquia de remoção de liberdades. Seu
"silêncio" e "dissimulação" sem dúvida têm a ver com o fato de que a sanção de
condenar alguém à morte não é, de tato, apenas um passo a mais na privação progres-
jjiva dos direitos de cidadania, mas um fenômeno inteiramente distinto. A mudança de
pena capital para prisão perpétua como uma sanção mais grave está, portanto, em
conformidade com a "nova lógica" de punição, que emerge em associação com a ex­
pansão do poder administrativo/Slaturalmente, deve-se reconhecer que muitas outras
formas de violência são amplamente realizadas dentro das delegacias e prisões do
mundo moderno. Mas estas não são geralmente parte de uma escala de punição por
meio da qual a violência é usada no sentido de expor publicamente aos malfeitores em
potencial o resultado possível de qualquer transgressão. Ao contrário, eles normalmen­
te têm de ser empregados de um modo sub-reptício.'i
Em comunidades locais, nos Estados tradicionais, onde os costumes são a princi­
pal força de coesão, havia freqüentemente lutas sangrentas e outras formas de embates
violentos entre indivíduos e grupos familiares. Os camponeses que viviam a uma certa
distância das principais concentrações de forças armadas das autoridades do Esta-do
ou de seus senhores locais não poderiam ser efetivamente protegidos dos bandidos ou
bandos armados de invasores. Este era o caso da maioria das áreas da China tradicio­
nal, por exemplo, até o século XX, não obstante o fato de que a China foi, provavelmen­
te, em regiões mais centrais, o mais bem sucedido de todos os grandes Estados impe­
riais pacificados29. As viagens eram sempre um empreendimento temeroso em tais
Estados, e comerciantes de qualquer origem sempre se moviam em caravanas armadas,
mesmo para jornadas curtas. Finalmente, dentro das cidades havia muitas vezes áreas
"proibidas" nas quais, mesmo com proteção armada, pessoas de outras partes teriam
medo de se aventurar.
A) desenvolvimento do Estado absolutista esteve, indubitavelmente, associado
a»s maiores uvunços de pacificação interna, embora o nível da violência diária fosse
sempre variável em períodos e lugares diferentes. De acordo com Le Goff e Sutherland,
c°mo foi mencionado anteriormente, na maior parte da França rural sob o Velho Re­
gime predominava a "violência, a turbulência, pequenos roubos e similares"30. Se
Macfârlane está certo sobre a Inglaterra rural, no entanto, o nível de segurança pessoal
n° século XVII foi consideravelmente mais alto do que na maior parte da Europa con-

Cf. Eberhard. op. cit..


T J A. U üoflfe D. M G. Sutherland. The Revolution and lhe Rural Community in Eighieemh Century
Briliany" ílnj Prrxrnt. 62. 1974. p 97.
O ESTADO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

tinental. De acordo com ele, em Kirkby Lonsdale e seus arredores era bastante comum
mulheres viajarem desacompanhadas, e pessoas atravessarem os pântanos sozinhos e à
noite, mesmo quando levavam dinheiro. Um grande movimento ocorria na região, e
parecia se dar sem temor de roubos. As brigas entre gangues de jovens vagabundos pra­
ticamente não existiam em algumas áreas da Inglaterra ruraf^inda que alguns comen­
taristas da época expressassem suas preocupações, elas não podem ser tomadas literal­
mente, mas, definitivamente, parece ter sido este o caso, ou seja, que em grandes cidades,
na parte final do século XVIII, em todas as áreas controladas os níveis de assassinato e
assalto a mão armada eram muito altos para os padrões posteriores. É apenas nesse
período, entretanto, que a noção de “ilegalidade” passou a ser amplamente utilizada. O
policiamento moderno, com sua característica mistura de aspectos de informação e
vigilância, foi tanto tornado possível como considerado necessário por boa parte da
população transferida do ambiente rural para o urbano^Horace Walpole escreveu, em
1752, em relação aos trajetos em Londres, que “somos forçados a viajar, mesmo ao
meio-dia, como se fôssemos a uma batalha”3132. Referindo-se às cidades inglesas do
período, os Webbs escreveram sobre o “desespero de transmitir qualquer cena adequa­
da da violência sem lei, a licenciosidade bárbara, e a quase ilimitada oportunidade de
furtos e roubos pelas ruas despoliciadas”33.
'A rápida expansão de uma população recentemente urbanizada, na qual a mudan­
ça no modo de vida levou algum tempo para se estabelecer, criou condições de “ilegalida­
de” indefinidas. Em um determinado momento, deve ter havido uma diminuição destas
condições de acordo com padrões mais estáveis de residência. Mas, sem dúvida, a in­
fluência principal foi o controle que os novos tipos de policiamento, em conjunto com
a aprovação de mecanismos do código penal e de aprisionamento, foram capazes de
conseguiras atividades “criminais” tornaram-se muito mais distintas de outras fontes
dos embates sociais, e estes, por sua vez, diferenciaram-se abertamente dos compromis­
sos militares externos dos Estados^Comparando Londres, Estocolmo e Nova Gales do
Sul durante a segunda metade do século XIX e começo do século XX, Gurr conclui que
em cada caso houve um declínio nos crimes comuns de violência —constatação esta
amplamente confirmada em outros estudos34. Até o século XIX, na Grã-Bretanha, via­
gens de longa distância significavam chamar a atenção de assaltantes ou ladrões de es­
trada. Mas, durante aquele século, esse fenômeno se transformou rapidamente em nada
mais do que uma memória, não muito raramente investida de uma imagem romântica

31. Alan Macfarlane, The Justice and the Mare’s Ale, Oxford, Basil Blackwell, 1981, pp. 189-190.
32. Citado era T. A. Critchley, A History of Police in England and Wales, London, Contable, 1978, p. 22.
33. S. e B. Webb, English Local Government, London, Macmillan, 1922, vol. 4, p. 408
34. Ted Robert Gurr, Rogues, Rebels and Reformers, Beverly Hills, Sage, 1976,' pp. 34 e ss.

210
PODER ADMINISTRATIVO. PACIFICAÇÃO INTERNA

que tinha pouca relação com a realidade passada em questão. É óbvio que em outras
partes da Europa tal nível de pacificação interna levou um tempo consideravelmente
longo para se realizar. Ainda no começo do século XX era inseguro viajar em algumas
áreas montanhosas ou florestais da França e assim permanece em algumas partes até o
presente momento na Sicília ou Turquia35.
Um outro aspecto de pacificação interna é bastante fundamental para os temas
deste livro’6. Trata-se da erradicação da violência, e da capacidade de se utilizar os
meios de violência a partir do contrato de trabalho - o eixo do sistema de classes. Infi­
mamente ligadas, e dependente disso, as outras formas de pacificação interna são um
aspecto fundamental de separação do “econômico” do “político”, embora isso seja
normalmente ignorado na maioria dos escritos sobre o assunto^stá relacionado aos
processos de mudança social que discutirei na próxima seção, e apenas os seus contor­
nos necessitam ser esboçados aqui. No capitalismo industrial —em contaste com os sis­
temas de classes anteriores - os empregadores não possuem acesso direto aos meios de
violência no sentido de assegurar o retorno econômico que eles buscam na classe subordi­
nada. Marx, embora não tenha buscado as implicações, enfatizou consideravelmente
este aspecto. “Uma compulsão econômica estúpida”, mais a vigilância tornada possí­
vel pela concentração do trabalho dentro do local de trabalho capitalista, coloca a pos­
sibilidade direta de coerção pelo uso da força. É claro que os empregadores não cedem
o uso de sanções de violência sem alguma relutância e as lutas de classes empreendi­
das por trabalhadores muitas vezes envolveram violência. Mas estes fatos não comprome­
tem a importância dos “direitos burgueses na formação de um sistema de produção
“desmilitarizado”. Este é um dos elementos mais significativos do Estado liberal-demo­
crático —os dos direitos de liberdade para a oferta da força de trabalho, para a qual a
burguesia lutou ativamente, que trazem consigo a limitação intrínseca do poder de em­
pregadores no local de trabalho de empregar e dispensar trabalhadores e de supervisio­
nar o “gerenciamento”. Essas não são, de modo algum, fontes negligenciáveis de contro­
le. Entretanto, elas só são possíveis em uma sociedade que tenha sido pacificada
internamente em outro modo, e na qual os “direitos burgueses” sejam mais do que um
mero engodo de liberdade, como Marx aparentemente as considerou .1

A maior parte deste livro, exceto onde trato do sistema de Estado global, diz
respeito ao Estado-nação europeu. Mas talvez seja apropriado, neste ponto, fazer uns
poucos comentários sobre os Estados modernos nos quais o uso da força continuou a

35. Macfarlane, op. cit., p. 189.


36. Ainda que isso seja analisado extensivamente em CCHM, vol. I.
37. Sobre essa questão há grandes divergências entre os intérpretes de Marx. Para uma discussão relevante, ver
Steven Lukes, M anam and Morality. Oxford, Oxford University Press, no prelo.
O ESTADO-NAÇÃO EA VIOLÊNCIA

representar um papel muito mais direto na coordenação da força de trabalho na esfera


da produção. Se nesses Estados a regulação do trabalho pela “compulsão econômica
estúpida” permanece pouco desenvolvida, é, provavelmente, em grande parte, devido
ao envolvimento periférico do capitalismo com o uso de trabalho não livre. Nos países
com um passado econômico desse tipo, o isolamento da economia e da política, caracte­
rística do Estado-nação europeu, não foi obtida. Outros aspectos da pacificação interna
também talvez possam ser, de forma correspondente, seguramente menos desenvolvi­
dos - em relação, por exemplo, à existência de gangues armadas que perpetuam o ter­
rorismo organizado na perseguição de objetivos políticos38.
^Uma característica final de pacificação interna, intimamente relacionada a outras,
mas, no entanto, distinta delas, é a retirada da participação direta dos militares em as­
suntos internos de Estado. É isso o que parece, para muitos pensadores do século XIX,
confirmar a tese do caráter essencialmente pacífico do capitalismo industrial. O que
ela envolve, entretanto, não é o declínio da guerra, mas uma concentração do poder mi­
litar “apontando para fora” em direção a outros Estados do sistema do Estado-nação. A
consolidação dos recursos administrativos internos do Estado desloca o poder admyiis-
trativo de sua base forte e necessária nas sanções coercitivas das forças armadas/Não
gostaria que esta afirmação fosse mal compreendida. No Estado-nação, como em outros
Estados, a reivindicação do controle efetivo dos meios de violência é bastante funda­
mental para o poder do Estado. Mas o registro do sucesso quase completo dessa reivin­
dicação, tornado possível pela expansão das capacidades de vigilância e de pacificação
interna, diminui radicalmente a dependência do aparato de Estado sobre o controle da
força militar como um meio de seu domínio. A distinção entre polícia militar e civil é
um símbolo e uma expressão material desse fenômeno. Ao mesmo tempo, o fato de es­
ta distinção raramente ter contornos nítidos, de a polícia ter seções paramilitares empre­
gadas em casos considerados de sérios distúrbios civis, e de os militares serem direta­
mente acionados, são evidências suficientes de que a diferenciação é normalmente
carregada de tensão.

Urbanismo, Regionalização e Segregação

Nas sociedades de classes, por razões já elucidadas, as cidades foram a fonte


principal da geração tanto dos recursos materiais quanto dos políticos. A relação do ur­
banismo moderno com o Estado-nação é bastante diferente, como é o caráter da vida

38. Gurr, op. cit.

212
PODER ADMINISTRATIVO PACIFICAÇÃO INTERNA

urbana como taF./A expansão do urbanismo moderno é, sem dúvida, induzida pela
emergência do capitalismo industrial como forma dominante do sistema de produção
Mas, em sua forma consequente e intrínseca, o desenvolvimento urbano moderno é
muito diferente das cidades anteriores. Forma um “ambiente criado”, no qual a transfor­
mação da natureza é expressa como tempo-espaço mercantilizado; tal como é o milieu
de toda ação social, não mais uma entidade física e setor social distintos dentro de uma
ampla totalidade social. A mercantilização de tempo e de espaço é a condição desses
processos sequenciais de tempo-espaço descritos anteriormente como características
de organizações modernas, incluindo o Estado-nação como o mais novo power-container
proeminente/
ÜAo dizer isso, não pretendo negar a importância tanto da regionalização dentro
do território do Estado quanto dos sistemas sociais que permeiam os Estados. Em vá­
rios aspectos os Estados-nação e as áreas globais cobertas pelo sistema de Estado-
nação são mais regionalizados do que os Estados tradicionais que os precederam. A
unidade administrativa que eles apresentam é basicamente um fenômeno restrito ao
alcance do aparato de Estado. A interdependência, econômica e política, do mundo no
qual o Estado-nação existe, não deve ser identificada com homogeneidadeAlgumas
das principais formas de regionalização são as seguintes3940:
1 - A distribuição regionalizada dos próprios Estados-nação, economicamente
como Estados de centro e periferia e, politicamente, como blocos de poder e como
centros de poder distintos e autônomos dentro de um conjunto global de Estados.
2 - A distribuição regional diferencial da indústria, em uma divisão de trabalho
dentro e através dos Estados. A produção industrial é, por sua própria natureza, regionali­
zada, já que vários tipos de indústria tendem a se desenvolver, ou serem localizadas,
em ambientes e áreas espaciais distintas. Isso se aplica não somente a distribuições re­
gionais amplamente generalizadas dentro e entre os Estados, mas também dentro de
ambientes bastante restritos, tais como a disposição espacial de áreas industriais em
certos tipos de arredores urbanos. O “desenvolvimento desigual” pode ser associado com
qualquer um ou com todos os tipos de regionalização mencionados nos pontos I e 2.
3 - A diferença regional de concentração de populações, sem considerar se são ou
não expressões de variações culturais, étnicas ou linguísticas. As populações dos Esta-
dos-nação tendem a ser muito mais desigualmente distribuídas do que aquelas dos Es­
tados tradicionais, em parte pelas limitações da economia rural nestes últimos e pela
alta densidade que as aglomerações urbanas assumem no caso dos primeiros. A concen­
tração de grande número de indivíduos dentro de áreas espaciais relativamente restritas

39. CCHM, vol. I, capítulo 5.


40. Para uma discussão da regionalização, ver CS, capítulo 3.
O ESTADO-NAÇÃO E A VIOLÊNCIA

é inegavelmente uma das diferenças mais surpreendentes entre o mundo moderno e o


tradicional. Até o século XVH havia provavelmente 100 milhões de pessoas na Europa,
consideravelmente mais populosa do que os outros continentes. Hoje, praticamente meta­
de desse número vive em um complexo de cidades, ocupando pequenas áreas que se es­
tendem de Boston a Washington na Costa Leste dos Estados Unidos.
4 - Há muitas variações regionais nítidas e difusas entre os arredores e as pró­
prias áreas construídas a partir de um meio ambiente criado. Não há dúvida de que es­
tes são às vezes, planejados, mas provavelmente muitas vezes são o resultado não in­
tencional de combinações de mercados de produtos, de trabalhos e imobiliário. Em
uma escala menor, a regionalização entre e dentro de locais concretamente situados,
que são ambientes de organizações, é frequentemente acentuada e significativa. O grau
de diferenciação entre a vizinhança das cidades tradicionais e entre os locais nos quais
a vida cotidiana era realizada era normalmente bastante baixo. Os grandes locais, in­
ternamente diferenciados, eram tanto prédios públicos quanto o lugar de comunidades
religiosas. Mas tais locais tornaram-se lugares comuns na sociedade moderna, sendo
eles próprios o receptáculo para a geração de poder administrativo. A regionalização
interna de locais está envolvida de um modo direto com a hierarquia de cargos típicos
da burocracia, mas também com muitos outros aspectos da diferenciação de atividades
sociais//
"A segregação é uma forma de regionalização, e não há dúvida de que sua influên­
cia não está restrita às esferas do encarceramento forçado. Ocultamento e revelação
apresentam um novo significado e uma nova ressonância no ambiente criado do moder­
no urbanismo e em uma sociedade onde o desenvolvimento da vigilância é muito im­
portante para as operações de poder/Zonde se dá ênfase ao poder disciplinatório, ou se­
ja, em ambientes nos quais aqueles sujeitos à supervisão podem evitar serem observados
por subordinados, por exemplo, adquirem importância especial na dialética do contro­
le. A segregação é importante para o tecido do cotidiano social por sua conexão com
aqueles aspectos da experiência humana que eram anteriormente expostos, cercados
de rituais e proibições. A despeito das críticas feitas por historiadores à discussão de
Ariès sobre a mudança de atitude ocidental em relação à morte, os contornos gerais das
análises feitas por ele parecem válidas. Tradicionalmente, ele argumenta, a morte era
um fenômeno integrado à vida, à continuidade das atividades sociais.
O espetáculo dos mortos, cujos ossos eram sempre desencovados e levados à superfície dos cemitérios,
como o foi o crânio de Hamlet, não impressionava mais os vivos do que a idéia de sua própria morte. Eles esta­
vam tão familiarizados com os mortos como o estavam com a idéia de sua própria morte.

Em algum momento no século XVI isso começou a mudar, não devido a uma

214
PODER ADMINISTRATIVO PACIFICAÇÃO INTERNA

única fonte, mas por razões que convergiam para a produção de uma tendência consis'
tente.

Como o ato sexual, a morte era, em conseqüência, pensada cada vez mais como uma transgressão que
separava o homem de sua vida diária, da sociedade racional, do seu trabalho monótono, no sentido de condu­
zi-lo a um paroxismo, lançando-o dentro de um mundo irracional, violento e belo [...] Essa idéia de ruptura i
algo completamente novo4142*.

A solicitação dos primeiros reformadores da saúde para remover os cemitérios


das igrejas e áreas centrais das cidades foram, na visão de Ariès, uma expulsão simbóli­
ca inicial dos mortos da comunidade dos vivos. Precedeu e ajudou a moldar a “supres­
são” da morte que é característica de tempos mais recentes. Qualquer que seja a sua
origem, no entanto, que certamente é tanto histórica quanto psicologicamente comple­
xa, esta “supressão” não está limitada à evidência material da mortalidade. Não so­
mente a morte é segregada das atividades cotidianas do dia-a-dia, mas também outros
fenômenos que, ao se “destacarem” do curso normal da vida social, produzem fontes
específicas de ansiedade e aflição —incluindo tanto a loucura quanto uma doença física
de tipo grave. Se Elias estiver certo, o comentário de Ariès sobre a sexualidade também
assinala uma mudança social importante, mesmo que o comportamento sexual não
esteja confinado, de forma organizada, do mesmo modo que os outros fenômenos. Há
boas razões para sermos cautelosos sobre as afirmações históricas de Elias, assim como
em relação àquelas de Ariès, mas parece que as atividades sexuais costumavam ser rea­
lizadas mais abertamente do que veio a ocorrer posteriormente .
//Sempre que essas fontes mudam, suas consequências são muito significativas pa­
ra o conjunto da vida social diária nos Estados modernos. Já afirmei que a rotina, mes­
mo que tacitamente organizada por agentes no curso de suas ações, é fundamental para
a reprodução de práticas institucionalizadas4/N a s sociedades tribais e de classes, a
tradição introduz a rotina e fornece uma fonte moral pela qual a vida diária vincula-se
aos parâmetros existenciais da vida, às relações dos seres humanos com a natureza,
nascimento, doença e morte. A “contradição existencial” com a qual os seres humanos
vivem as suas vidas - de que eles são parte de uma natureza inorgânica, e que voltam a
ela na morte, ainda que não seja da natureza, já que eles vivem também conscientes de

41. Philippe Ariès. Western Attitudes Towards Death. Baltimore. Johns Hopkins University Press, 1974. p. 58.
Ver tamWm Joachim Whaley, Mirrors of Mortality. London, Europa. 1981; Le Roy Ladune. "Chanu.
Lebrun. Vovelle: la nouvelle histoire de la mort", em U Territoire de L'Historien. Parts, Galhmard, 1973-
1978, 2 vols.
42. Norbert Elias. The Civilising Pnxess. Oxford, Basil Blackwell, 1978.
L43. CS. capitulo 2; CPST, pp. 123-128.
ESTADO-NAÇÃÜ E A VIOLÊNCIA

sua finitude - não está separada da dinâmica organizada da vida social. No Estado mo­
derno, a contradição existencial é quase que completamente anulada pela contradição
estrutural, cujo locus principal é justamente o Estado44. Um resultado é que a rotinização
do dia-a-dia da vida social é precária, fundamentando-se em uma base psicológica
relativamente superficial e não integrada aos princípios morais que fornecem os meios
para se encontrar os dilemas existenciais. A segregação da morte, da doença e da lou­
cura e a privatização da sexualidade, são tanto o resultado dessa situação como uma
condição da estabilidade da rotina.
^Em virtude da segregação, portanto, uma variedade de experiências psicologica­
mente problemáticas não penetram no conjunto principal das atividades individuais
"realizadas no curso de suas vidas. Tais experiências são afastadas de uma possível intru­
são na continuidade das atividades rotineiras e, ao contrário, são impelidas às margens
externas dos contextos nos quais a maior parte da vida diária é desempenhada^Não pre­
tendo propor um tipo de abordagem tuncionalista tanto das origens da segregação como
de suas implicações amplamente estabelecidas. O desenvolvimento de locais segre­
gados é explicado em parte pela emergência de organizações carcerárias e pela prima­
zia dos métodos "técnicos" de “tratamento" de doenças "mentais" e "físicas". O resul­
tado da segregação não é, de uma forma generalizada, funcional para a continuidade
das atividades sociais. Em relação aos sentimentos de segurança ontológica, os mem­
bros de sociedades modernas são particularmente vulneráveis à ansiedade generaliza­
da. Isso pode se intensificar quando, como indivíduos, têm de confrontar dilemas existen­
ciais corriqueiros omitidos pela segregação, ou quando as rotinas da vida social são, por
alguma razão, substancialmente interrompidas. O vazio das rotinas seguido pela vida
social moderna engendra uma base psicológica para a incorporação de símbolos que
podem tanto promover solidariedade quanto causar separação. Entre estes símbolos
estão aqueles associados ao nacionalismo; retornarei a estas questões no capítulo 8.

44. CCHM, vol. I. pp. 230-239.

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