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INSTIGANTE

JADE S.
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Capa, Diagramação e Revisão: Jade S.


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INDICE

I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX - Capítulo Especial
I

— Amiga, como a gente era boba! — dizia uma moça à sua amiga na mesa ao lado, as duas
riam tanto que pareciam estar chorando — Eu tinha treze anos e ia na farmácia todos os dias,
só pra ver o vendedor. Inventava cada desculpa! Ele devia me achar uma idiota.

— E eu que esperava o entregador de jornal passar na rua de casa, e depois dava a volta ao
quarteirão correndo só pra encontrá-lo na próxima esquina. Ele sempre sorria pra mim e eu me
sentia nas nuvens, mas na verdade ele estava era rindo da minha cara!
— Miga, tu era muito idiota também! Mas quem não morreu de amor pelo primeiro crush que
atire a primeira pedra né! — e gargalhava.

Não pude deixar de rir sozinho ouvindo esse diálogo entre duas mulheres que já não eram tão
jovens ali na mesa ao lado. Elas falavam alto e riam, pareciam estar num bar. Mas eram apenas
oito da manhã, numa padaria/lanchonete muito confortável, com ar condicionado, wifi
liberado, bolos convidativos, atendimento ruim e preços salgados.
Verifiquei as horas no celular, apesar de estar de relógio. Eles estavam atrasados, os três caras
que iriam dividir comigo o meu apartamento a partir daquele momento.
Eu sou o Bruno. Aos 27 anos eu era um cara normal, engenheiro mecânico, tinha emprego,
namorada, um filho que tive com uma ficante (meu xodó que morava com a mãe dele) família
grande e linda e morava sozinho em um grande apartamento. Tudo perfeito.
Só que não.
Morar sozinho era incrível. A solidão e a liberdade sempre me atraíram, e apesar de todos
estarem sutilmente me cobrando o casório, ou pelo menos um noivado, não me sentia no
momento apropriado. Além disso, as coisas não eram tão favoráveis. Uma crise, um salário
menor do que eu gostaria, um grande apartamento, uma grande despesa. Contas de luz
absurdas, não importando o quanto eu economizasse. Pensão, IPTU, condomínio, diarista, etc.
Prestes a cancelar minha tv por assinatura, meu irmão me deu a ideia de ocupar aqueles
quartos vazios e diminuir o prejuízo. Só por um tempo. Só para pessoas de confiança.
A Larissa, minha namorada apoiou a ideia indicando o Sérgio, seu best friend, um cara “incrível,
super gente fina”, na opinião dela. Um gayzinho bem vestido e metido a besta, na minha. Ele
deveria ficar com a outra suíte. E por falar nele...
— E aí cara, desculpe a demora — disse ele me dando a mão e se sentando numa cadeira à
minha frente — O trânsito está péssimo. Na verdade, ele tá normal, né — e revirou os olhos —
pois todo dia é assim. É por isso que quando a Lari me disse que você tá a fim de dividir o apê,
eu achei a oportunidade perfeita de sair dessa vida. É perto do meu trampo e da facul, então
tá de boa.
Assenti e ele continuou.

— Vou nessa sexta, ok? Já estou arrumando as minhas coisas, providenciando alguém pra levar
minha cama e meu armário, é claro que você não se importa — ele afirmou e não perguntou —
e mais umas coisinhas que...
— Tem cama box e armário no quarto — o interrompi — Acho que lá tem tud...

Ele me interrompeu.
— Claro, claro, mas o meu colchobox, eu não vivo sem ele. Não vai atrapalhar, juro! A Lari me
disse que o apê é top, decoração vintage...
— São velharias mesmo. Mas as camas são novas — não tava aqui de falar da decoração.
— Mas eu vou levar, tudo bem?

— Sim, claro. E vamos discutir algumas regras também.


— Claro, eu concordo. A vantagem é que eu e a Lari somos tão amigos que eu não vou me
importar com a presença dela no apartamento, desde que se comportem, é claro. Ou não, né
hahaha! — a expressão “falar pelos cotovelos” combinava perfeitamente com ele — Só me
meto em caso de briga de faca. É mentira tá? — e outra gargalhada escandalosa — A Lari me
disse que...
— Calma, não é bem assim. Estou esperando também... Ah sim, aí estão os outros dois.
— Outros dois? — Serginho fechou a cara e elevou a vista para os dois rapazes que se
aproximavam – Não esperava por mais gente, tipo, seria só você e eu. Mas o que houve? Vai
transformar seu apê numa república?
Ele disse “república” com certo desprezo.

— Tem mais dois quartos menores e um banheiro. E meu irmão conhece os “gêmeos”, são
muito amigos. O espaço é grande, somos todos civilizados.
Sim, meu irmão mais novo me indicou “os gêmeos”. Eles vieram do interior, da mesma região
da minha família.

Meu pai veio do interior quando era jovem e sempre cultivou o sonho de poder voltar um dia.
“Quando eu me aposentar”, ele dizia. A mãe dele ficou viúva e sozinha e veio morar com a
gente, minhas irmãs mais velhas se casaram e se mudaram, minha mãe tomou para si a missão
de cuidar da sogra doente, e meu pai conseguiu a sua tão sonhada aposentadoria. Compraram
um grande lote numa pequena cidade litorânea e se mudaram. Poderiam ter vendido o
apartamento e comprado um menor, mas minha mãe não quis. “Aqui você vai poder criar os
seus filhos, Bruninho”, ela disse. “Mas mãe, isso vai demorar muito, por enquanto só vou criar
muitas baratas, porque não vou ter tempo e nem saco pra limpar tudo isso” eu disse na
véspera da mudança. “Ora, contrata uma faxineira, você estudou pra quê?” Sim, minha mãe é
bastante simples.

— Fala Bruno! Como vai velho? – disse um dos rapazes. Esse parecia aquele cantor do
Rebolation, as mulheres da mesa ao lado se calaram ao ver o bonitão. Já o irmão era beeem
diferente, lembrava um pouco o Ronaldinho Gaúcho, mas fora de forma e com óculos de grau.
— Velho? Tudo beleza, cara. E aí Rique, como vai? – cumprimentei os dois — Podem se sentar
aqui pra gente conversar. Esse é o Sérgio, do outro quarto que te falei.
Apontei pra um Sérgio irritado e mal encarado, mas do nada o humor dele mudou. Sorriu de
forma pode-se dizer encantadora e deu a mão aos recém-chegados.

— Olá, eu sou o Paulo Sérgio.


Oferecido, foi o que pensei.
— Oi Paulo Sérgio. Eu sou o Paulo Vítor e esse é o meu irmão Paulo Henrique. É muita
coincidência, cara, não acha? Você sabia disso? — ele disse rindo e olhando para mim.
Claro que eu sabia. Mas como queria surpreendê-los, fingi que não sabia.
— Cara, vocês de identificam todos pelo segundo nome, como eu iria imaginar? É realmente
muito interessante. Se eu quisesse propositalmente juntar uma galera com o mesmo nome,
acho que nunca conseguiria.
— Nossa, isso deve ser um sinal! – um Sérgio mais sorridente colocou a mão no peito ao dizer
isso.

— Da minha parte podem esquecer o Paulo – disse o outro cara, o Paulo Henrique.
— E da minha também. E então, quais serão as regras da nossa “convivência”? — ele fez
“aspas” com as mãos. Paulo Vítor era prático e rápido.

As regras que combinamos eram bem banais, pesquisei com uns conhecidos e na net mesmo.
Eles se mudaram e embora eu estivesse receoso quanto à mudança na minha rotina e a
convivência com quase desconhecidos, tudo saía melhor do que eu imaginava.
Todos saíam de casa cedo, bem antes de mim, e passavam o dia com seus trabalhos e estudos.
Em casa revezávamos com o preparo do café da manhã e o jantar, já que ninguém vinha
almoçar em casa. Cada um cuidava da sua roupa. As segundas e sextas vinha uma diarista
limpar a casa, mas não acumulávamos muita bagunça não. Nos finais de semana todos iam
pras suas casas, viagens, baladas. E o dinheirinho começou a chegar.
Minha namorada não gostou de não poder dormir comigo durante a semana. Estávamos juntos
há mais de três anos e ela já pensava em redecorar o apê. Eu não.

Sérgio trouxe seu “colchobox” favorito, um armário extra, apesar de já ter um bem grande no
quarto, tv e vários eletrônicos. Disse a ele que cobraria uma taxinha extra por causa do
aumento na conta de luz e ele disse que pagaria pelo seu conforto. Mas na verdade, já no
segundo mês ele começou a atrasar o pagamento da mensalidade. E inventava desculpas.

Ele era aquele tipo de pessoa que sabe usar muito bem as palavras. Podia ser extremamente
simpático, bom conselheiro e podia ser grosso ou sarcástico quando queria. Eu o admirava e
também o odiava por isso. De baixa estatura, mas de músculos muito vistosos e definidos,
moreno claro, mas que vivia na praia acentuando o bronzeado. Usava roupas caras e vivia em
shoppings e baladas. Estudava Direito na mesma turma que a minha namorada.
Já os gêmeos eram um caso interessante. Pra início de conversa, eles nem eram gêmeos, nem
sequer parecidos. Paulo Henrique, o patinho feio da família tinha 23 anos, estudava uma
engenharia sinistra na federal e a ela dedicava todo o seu tempo. Magro de barriguinha
saliente, cabelo desleixado, mal vestido, óculos de grau, dentes proeminentes com aparelho.
Simpático, apesar de tudo, mas se eu fosse uma mulher, ou mesmo gay como o Sérgio, jamais
pegaria. Ou talvez, se estivesse matando cachorro a grito.
Paulo Vítor, o cisne da família, era o contrário. Moreno, malhado, simpático e visual de cantor
de música baiana. Bermuda, óculos escuros e regata, quando não estava vestido para o
trabalho. Sim, apesar de três anos mais novo que o irmão ele tinha um emprego formal,
estudava numa faculdade particular à noite e ainda tinha tempo para malhar, namorar,
festejar, conversar. Era ele quem pagava o aluguel dos dois, era o dono do carro e
praticamente bancava o irmão mais velho. Esse fazia um estágio e recebia algumas centenas de
reais mensais que mal davam pra comida e o transporte do coitado. Mas eles se amavam,
nunca vi irmãos tão unidos. Era normal antes de uma saída na sexta à noite, por exemplo, o
Vítor, sem cerimônia alguma, pegar a carteira do irmão e colocar dinheiro e camisinha.
Também marcava o dentista e o buscava de carro quando ele precisava.
Observar esses detalhes da vida deles era bem interessante, quase um hobby secreto para
mim. Como não estudava mais, eu tinha algum tempo livre e uma rotina bem tranquila. E
assim se passaram dois meses e meio.

Mas um dia recebi uma ligação de um cara que dizia precisar de um quarto naquele bairro. Que
podia ser dividido. Que tinha que ser logo. Eu apenas disse que não tinha mais vaga e saí para
o trabalho sem pensar mais naquilo.
Depois do almoço eu permanecia no charmoso restaurante que eu costumava almoçar quando
um cara veio falar comigo. Pediu desculpas por incomodar, eu disse tudo bem, ele pediu
desculpas novamente e começou a falar.
— Então, você é o Bruno, não é? Então, eu te liguei hoje cedo a respeito do quarto — ele falava
assim mesmo, com pausas depois do “então”.

— Cara, como eu te disse, não há mais vagas — me senti o gerente de um grande hotel.
— Poxa, me disseram que você tem quatro quartos e eu precisava muito. Tá difícil conciliar o
trabalho e o curso, por causa do tempo do transporte. E tá tão perto...

— Sim, mas o quarto quarto — rimos quando falei isso — é o meu. E o pessoal que tá lá não
pretende dividir, não é bem uma república.
— Poxa... Sim, eu entendo... — ele parecia pesaroso — Então, mas será que você não conhece,
tipo, um lugar por aqui que tenha vaga?
Tentei visualizar meu apartamento mentalmente e me veio uma ideia. Não sabia por que
estava preocupado com o curso e o emprego daquele cidadão desconhecido, não sabia de
onde ele tirou que eu alugava quartos, nem de onde me conhecia. Mas não pensei nisso na
hora, apenas tive uma ideia.
— Cara, meu apartamento é daqueles antigos, muito grandes, com dependência de empregada
nos fundos. É o que tenho.
Ele sorriu.
— E é mais barato, né, com certeza.
— Seria bom se você visse, pois, apesar de estar tudo limpo e organizado, é bem diferente dos
outros quartos. Muito pequeno, miúdo mesmo.
— Claro que eu posso ver antes, mas posso te adiantar que na situação em que estou eu
alugaria um sofá se necessário, desde que fosse nesse bairro e que eu pudesse pagar. Não é
por muito tempo.
— Bom... —eu tentava raciocinar — Você então pode ir lá hoje à tarde, depois das cinco. Aí a
gente resolve, porque agora preciso voltar ao trabalho.
— Pode ser sim, eu também tenho que voltar pra cozinha. Vou depois das seis, pode ser? Ah,
eu te ligo.
Ele falava meio atrapalhado e eu ficava meio tonto pensando. Ele disse “cozinha”? Ele disse “eu
te ligo”? Claro, ele tinha o meu número, já tinha ligado uma vez, mas era a palavra cozinha que
me intrigava.
Fomos nos afastando, eu indo em direção à rua e ele indo em direção aos fundos do
restaurante. Claro, a cozinha. Ele trabalhava ali, com certeza foi ali que ouviu falar sobre mim.
Fui caminhando até meu local de trabalho perdido em pensamentos como um maluco. Cheguei
rápido. Era tudo tão perto, por isso aquele espaço era tão disputado. Entrar e sair daquele
centro é que era difícil, o trânsito era caótico e estressante. E caro. Mamãe tinha razão, era
melhor manter aquele apartamento, um trambolho, é verdade, mas um trambolho bem
localizado.

O resto do dia passou normal. Ou quase. Enquanto me distraía no trabalho eu pensava no


motivo de eu ter pensado em alugar o quartinho dos fundos para um desconhecido. Tudo bem
que ele era cozinheiro no meu restaurante favorito, mas isso não era nada. Pensei inclusive em
ligar para ele e dizer que o quartinho era para a empregada que iria começar o trabalho na
próxima semana. Que desculpa mais idiota — pensei — ainda mais idiota do que alugar o
quartinho da empregada.
— Ah, dane-se! O apartamento é meu e eu posso alugar o que eu quiser, até mesmo o sofá da
sala — falei sozinho.

Os outros não iriam gostar nadinha. Pensei na cara feia do Sérgio e sorri involuntariamente. Ou
talvez ele gostasse, já que o dito cujo, cujo nome eu me esqueci de perguntar era bem
apessoado. Bem bonito na verdade, mas pensando bem, o Sérgio gostava mesmo era de
morenões sarados e o cozinheiro era muito branquinho.
Cinco e dez eu cheguei em casa. Me preocupei com a possibilidade de ele chamar no interfone
enquanto eu estivesse no banho, mas depois acabei rindo da minha insanidade. Ele iria me
ligar, foi o que ele disse, além disso, ele nem sabia onde eu morava exatamente. Ou talvez
soubesse, já que sabia o meu número.
Levei o celular para o banheiro e tomei um banho bem rápido. Ao me ver no espelho eu tomei
um susto, minha barba estava bem espessa, e meu cabelo bastante crescido. Pus meus óculos
de grau só para conferir: sim, eu estava a cara do Renato Russo!

Me vesti e fui para a sala esperar. Deu dezoito horas, ele não apareceu e eu comecei a ficar
impaciente. Obviamente não era normal eu ficar naquele estado, mas não dei atenção a esse
fato no momento. Só olhava as horas e o celular e as horas no celular.
Às dezoito e dezoito ele ligou. Ri e pensei se não eram coincidências demais na minha vida,
sabia que era ele, pois já tinha conferido o número que me ligou pela manhã. No segundo
toque eu atendi.
— Alô?
— Oi Bruno, é o Eric, é sobre o quarto, eu falei com você hoje no restaurante.
— Ah sim, Eric — yes, não precisei perguntar o nome dele — pode vir, já estou em casa. Sabe
onde eu moro?
— Não, apenas tenho algumas informações. Por isso te liguei.
— Bem, anota aí então.

Passei o endereço nos mínimos detalhes e as instruções de como ele deveria subir. E avisei na
portaria.
Doze minutos depois ele chegou.
Estava de calça e camiseta preta e tênis, bem simples. E com cara de cansaço.

— Olá, boa noite. Desculpa se eu demorei.


— Boa noite, tudo bem.
Cumprimentei-o e ele entrou tímido olhando o ambiente com interesse.
— Que sala grande... — ele comentou.

— Pois é, mas vamos ver o local que eu te falei. Como eu disse, é um quarto pequeno e simples
e fica nos fundos. Venha.
Fui adentrando o apartamento e ele me acompanhava em silêncio. Da sala passamos pela sala
de jantar, de onde saía um corredor que levava aos quartos, que eram quatro, além do
banheiro social. Ali também tinha o lavado e a porta que dava na cozinha. Entramos por ela e
Eric olhou admirado. Ele parecia apreciar uma boa cozinha.
Pouco tempo antes de se mudarem meus pais reformaram a cozinha. Era o único cômodo
moderno da casa, já que os demais tinham móveis antigos, daqueles que encontramos em
feiras de antiguidades, nem todos em suas melhores condições.
Da cozinha saímos para a área de serviços que era bem espaçosa, mas quase não tinha
ventilação. E ali estava o tal quarto, um cubículo com um banheiro minúsculo. Senti-me um
tanto constrangido em mostrar, mas era tarde demais pra desistir.

— Tem uma cama nova — ele disse apontando pra única coisa boa que tinha ali.
Uma cama box de solteiro, pouco usada. Na verdade ela estava na suíte que ficou para o
Sérgio, mas não era boa o suficiente pro moço e ele trouxe a cama dele.
— Ah sim, bem nova mesmo. O que achou?
— Então, o quarto não é ruim, na verdade é melhor do que eu esperava. A única que me
incomoda é a falta de ventilação, é que sou alérgico a mofo, essas coisas — ele disse meio sem
graça.
Não disse nada. Na verdade, achei até um pouco fresco da parte dele, já que estava tão
desesperado por um quarto, fosse ele qual fosse.
— E o preço? — ele sorriu e levantou uma sobrancelha.
Pensei um pouco e falei o valor, um preço bem menor do que os que eu tinha ouvido falar na
região. Ele pareceu concordar, confirmando com a cabeça.

— Quando posso vir dormir?


— Vir dormir? — estranhei a pergunta dele, mas me recuperei rápido e continuei — Amanhã,
se você quiser, vou falar com os outros hoje, quando chegarem.

— Ok, então. E quais são as regras aqui? Tipo, horário e limpeza.


— Ah sim, já ia me esquecendo.
Peguei um papel que estava guardado num balcão na cozinha e entreguei a ele, que leu
devagar e já ia me devolver quando o contive.
— Esse fica com você, aqui todo mundo tem um papelzinho desses — sorri e ele também.

Combinamos o pagamento e ele se despediu menos animado que quando chegou. Algo o
desagradou, mas eu não podia fazer nada. Também tinha uma tarefa desagradável pela frente,
que seria conversar com meus outros “inquilinos”.
II

Tão logo o Eric se despediu, o Vítor chegou. Passou pela sala rápido como uma ventania, mas
freou e me cumprimentou.
— Grande Bruno, como vai? Tô só na correria, mano.

— E aí, Vitão? Velho, tenho umas paradas pra conversar contigo e os outros, é importante.
Ele foi pro quarto conversando, eu fui atrás.
— Mano, vai dar não, tô mais do que atrasado, mas faz o seguinte, fala pro Henrique, ele me
dá o recado depois. E o que tu combinar com ele, tá selado comigo, falou?

— Ok, então. Ele é responsável?


Vítor pareceu ofendido.
— Claro, camarada! Só tem responsa na família Silva, meu irmão! — e entrou no banheiro do
corredor.
— Menos um — pensei.
Distraidamente fui à cozinha pegar um biscoitinho para enganar a fome quando lembrei que
era o meu dia de preparar o jantar. Aéreo como estava ainda não tinha adiantado nada. Abri a
geladeira para pensar em alguma coisa.
Algum tempo depois chegaram os outros ocupantes da casa, um após o outro, e foram direto à
cozinha. Havia um contraste tão grande entre os dois que me fazia rir. O Henrique estava sem
banho, amassado e desgrenhado como sempre. Aparentava cansaço. Já o Sérgio estava de
bermuda e regata, penteado e perfumado, recém-chegado da academia.
Ele tinha o costume de levar roupas na sua mochila quando saía para a faculdade pela manhã,
para usar na academia à noite. Acontece que a academia não ficava longe e ele poderia tomar
banho no seu próprio banheiro se quisesse, mas por alguma razão ele preferia os chuveiros da
academia. O Vítor também fazia isso, mas ele ia à academia pela manhã e tinha uma rotina
bem mais corrida.
— Vou tomar um banho – Henrique falava pensativo enquanto bebia uma água, ele parecia
cogitar a possibilidade de não tomar. Depois saiu da cozinha.
Serginho se aproximou da bancada.
— Eu já tô pronto para o ataque. Aliás, esse rango tá com cara de que vai demorar, hein?
— Ah, foi mal cara, eu tive uns assuntos para resolver agora à tarde e demorei a começar. Você
poderia me dar uma mão aí, velho?
Ele estendeu as duas mãos bem próximas ao meu corpo e caiu na gargalhada. Mostrei o dedo
do meio pra ele, que fez cara de espanto e depois riu. Começou a fazer uma salada.

Apesar da pouca convivência, com o tempo já nos permitíamos algumas brincadeiras desse
tipo. Eu já o conhecia de vista antes e ele não dava em cima de mim, nem nada do tipo. Não
garanto que não jogasse seu charme pra cima do Vítor, mas acho que ali não renderia nada. Do
Henrique ninguém se lembrava, pelo menos eu achava.

Ajeitamos tudo para o jantar e o Henrique chegou de banho tomado e cabelo penteado. A
aparência dele melhorava consideravelmente assim, foi o que constatei. Jantamos conversando
amenidades e quando estávamos quase terminando, abordei o assunto que estava
aguardando.
— Vamos ter mais um companheiro aqui no apartamento — falei.

— Como assim?— Serginho mudou o semblante e a voz de repente.


— Sim, mas ele vai ficar no quartinho dos fundos por enquanto. E pagar por isso.
— Velho, na boa, não achei que seria assim. Daqui a pouco não teremos mais sossego e
privacidade por aqui — ele falava mexendo nervosamente nos talheres, numa espécie de TOC.
Henrique apenas ouvia tranquilo. Olhou de rabo de olho para o Sérgio e fez uma careta
discreta.
— Ele me foi indicado por um amigo — menti descaradamente — e vai seguir todas as regras
que estabelecemos. Além disso, ele trabalha e estuda como vocês. Não vejo incômodo algum.
— Não é por isso, apenas não é o que eu esperava — ele estava visivelmente irritado.
Olhei para o Sérgio e entendi onde ele queria chegar. Ele veio com a ideia de “dividir o apê”,
com todos os direitos. Essa ideia lhe foi impingida pela Larissa, sua amiga e minha namorada. A
culpa era minha, pois com a minha inexperiência e um medo infundado de abrir a minha vida a
desconhecidos, acabei aceitando a intromissão da Larissa e do meu irmão, arranjando
companheiros de apê ao invés de inquilinos. Foi tudo feito informalmente, sem nenhum
contrato. Além disso, eu estava perdendo dinheiro, pois o Sérgio ocupava sozinho uma suíte
muito disputada na região. E por um preço camarada demais.
— Quando ele chega? — Henrique parecia não se importar.
— Amanhã à tarde.
Sérgio suspirou, se levantou e saiu. Henrique também se levantou, recolheu pratos, copos e
talheres e pôs na pia. Ajeitou as coisas no fogão e saiu.
— Boa noite — ele nem esperou a resposta.
— Bom, não foi tão difícil — falei apenas para mim.
Olhei para a pia com cara de poucos amigos e saí. O Vítor chegaria logo mais e esquentaria a
comida pra ele, o dia seguinte seria sexta e a diarista que lavasse aquelas poucas coisinhas que
estavam ali. Fui pro meu quarto ver TV.

As coisas amanheceram normais, o Sérgio estava com a cara emburrada, mas ninguém dava
assunto. Às vezes ele assumia uma postura esnobe que desagradava à população em geral.
Vítor já estava a par do assunto e fazia algumas perguntas sobre o inquilino, idade, profissão,
curso, nome. Eu tentava sair dessas questões, pois a não ser o nome que ele mesmo me falou e
o seu local de trabalho, nada mais eu sabia a respeito do Eric.
Ou sabia sim. Sabia que ele tinha uma alergia qualquer, que era um tanto sem jeito para falar e
que tinha um sorriso desconcertante, mas nem sob tortura eu falaria uma coisa dessas pra
alguém. Ri sozinho por detrás da xícara de café. Henrique me olhou desconfiado através dos
seus cachos bagunçados. Às vezes eu achava que aquela praga lia os pensamentos da gente.
Saíram todos para as suas rotinas. Eu começava mais tarde e poderia ter ficado mais na cama,
mas naquele dia eu ia fazer umas pesquisas a respeito de contratos.
Cheguei do traballho pouco depois das cinco, estava tudo limpo e perfumado. E vazio. Fui
direto pro banho, pois estava bem quente aquela sexta. Já tinha acertado tudo sobre o novo
inquilino lá na portaria, mas ainda não tinha resolvido a questão da chave, acabei me
esquecendo.
Alguém entrou no apartamento bem apressado, fui ver e era o Vítor na sua correria diária.
Apenas um “beleza, velho” e pouco tempo depois ele já estava de saída. Ouvi-o falar com
alguém na porta de entrada e do nada assim meu coração acelerou.
— “Que coisa idiota Bruno, não é nem o Obama nem nada” — me dizia uma voz interior que
me fez sentir vergonha pela reação inesperada.
Cumprimentei o Eric normalmente, já recomposto. Perguntei pela sua bagagem e ele me
mostrou. Tive que rir na hora. Tudo se resumia a uma mochila preta e uma bolsa média,
também escura. O próprio Eric trajava calça jeans e uma camiseta cinza escura, bem simples.
Enquanto eu ria, ele me olhava de lado com uma sobrancelha levantada, numa interrogação
muda. Desconversei. O acompanhei até o esconderijo, digo, quartinho dos fundos. Ele
atravessou o apartamento mudo e olhando tudo ao redor.
— Bem Eric, na correria hoje acabou não dando tempo de providenciar a sua cópia da chave.
— Nossa, e olha que eu tenho que sair e talvez volte bem tarde. Mas, e essa porta aqui? — ele
apontou para a saída de serviços que ficava na área bem perto do quartinho.
— Ah, é a porta de serviços, nunca uso. Vai querer logo essa chave? — perguntei um pouco
surpreso.
— Ah, só enquanto eu não tenho a outra, é, tipo... — pausa — mais fácil, já eu que economizo
a volta por dentro de todo o apartamento, você sabe — ele pensava antes de falar e isso me
deixava nervoso.

— Sei, vou ver onde está.


Encontrei e entreguei a ele, com recomendações. E o deixei lá.

Naquela noite todos saíram. Eu também saí, encontrei a Larissa na festa de uma amiga dela e
depois ela foi comigo para o meu apartamento. Na sexta podia já que todos tomavam seus
rumos no sábado pela manhã e assim se evitavam constrangimentos.
Foi uma noite normal, como tantas outras. A Lari disse não ter gostado do fato de eu ter
alugado quarto pra um desconhecido sem falar com ela e os outros — Serginho fofoqueiro.
Não dei assunto, decidi prosseguir com aquilo do meu jeito, ela gostando ou não. Acordamos
por volta das nove e fomos juntos à cozinha para providenciar o café da manhã. Ao entrar ela
tomou um susto e eu tomei um susto também. Na bancada da cozinha, sentado e com um
copo na mão estava um rapaz de cabelos castanho-claros — ou loiro-escuros — bem crescidos
na parte da frente, bermuda cinza e camiseta branca. Ele se virou e sorriu sem jeito. Tinha nariz
e olhos de uma pessoa que está gripada.
— Bom dia — ele disse tímido.
— Quem é você? — minha namorada perguntou de forma um tanto grosseira.
— Eu sou o Eric — ele respondeu se levantando e olhando para mim com aquele erguer de
sobrancelhas que sempre me exige uma resposta.
— E porque está aqui hoje? É sábado! — Larissa frisou a importância do dia.

— Não pode ficar aqui aos sábados? — uma pergunta quase infantil, mas dita com aquele
olhar de lado, inquisidor.
Ela falava com ele e ele falava comigo.
— Ora, claro que pode — falei, por fim — a surpresa é porque que todo mundo aqui vai para a
casa da família aos sábados, mas isso não é uma regra. Pode ficar sim.
— Eu não tenho os finais de semana livres.
— Tudo bem, é que a gente ainda não conversou, nem nada, mas vou só levar a Larissa — que
me olhou com uma cara de ódio — e depois você me põe a par dos seus horários. Tem café?
— Tem sim. E pão.
Me sentei também pra comer, estava tranquilo, completamente normal. Larissa bufou e saiu
pisando duro. Apesar de entender a revolta dela, eu não aprovei a grosseria que ela fez e iria
colocar esse assunto na pauta logo mais.

— Bom dia — falei e sorri pra ele, pegando o café e o pão.


— Bom dia — ele respondeu com um sorriso e eu reparei que ele tinha pintinhas vermelhas em
volta da boca.

— Gripado?
— Não, é só uma alergia.
— Hum, chato né... Tem mofo no quarto?
Ele me olhou.

— Não, não! Quer dizer, não é isso, é a falta da janela, você sabe.
— Sei... — ele sempre esperava que eu soubesse — Que horas vai pro trabalho hoje?
— Hoje é minha folga no restaurante, só vou à noite, mas trabalho amanhã.
— Nossa, é foda!
— Que nada!
Terminamos de comer, ele foi para a pia e eu corri dali. A Lari estava deitada na minha cama
mudando os canais da Tv descontroladamente. Peguei o controle da mão dela, desliguei o
aparelho e sentei na cama. Ela permaneceu calada.
— Entendo que se assustou com a presença inesperada dele, mas não precisava da falta de
educação.

Ela apenas suspirou e eu continuei.


— Eu também não sabia que ele trabalha aos fins de semana, mas a culpa é minha que não
perguntei.
— Por que não deixou apenas o Sérgio morar aqui? Seria tão mais fácil!
— Porque eu preciso de dinheiro, ninguém paga as minhas contas. Esse apartamento custa.
— Era só combinar certinho com ele, dividir tudo igual.
— Minha querida — falava como se fosse com uma criança — seu amiguinho Serginho não tem
condições de dividir todas as contas, além disso, eu não quero dividir nada, eu quero é lucro,
pé de meia, entendeu? Não posso ficar aí no zero a zero a vida toda. Quando o Sérgio sair eu
vou alugar aquele quarto pelo dobro do preço.
— E colocar gente estranha dentro de casa, Brunô?
— É tudo no contrato, certinho.

— Quero saber qual contrato vai te livrar de um psicopata, um maníaco, ou de um


mexeriqueiro, ou um ladrão.
Gargalhei alto.
— Ah, por favor, quem vai querer roubar esse museu? E que psicopata? Não viaja, são todos
normais, fica tranquila.

Quando voltei da casa da Lari já passava das onze. Fui à cozinha e o Eric não estava lá, mas
tinha algo cozinhando no fogão. Bom, pelo menos ele era profissional — pensei. Ri sozinho e
fui pra área de serviços e vi que ele estava limpando o quarto bem meticulosamente. Achei
aquilo exagerado. Achei que ele tivesse daquelas manias de limpeza que tanto me irritavam.
— Tá sujo aí? — perguntei.
Ele se virou rapidamente e eu vi que ele parecia bem gripado. Ao falar, sua voz saiu um pouco
estranha.
— Ah, sempre tem umas poeirinhas escondidas, em cima e embaixo das coisas. Só tô tirando.
— Alergia, né...
— Rinite. Sou um tanto sensível, odeio isso, mas fazer o quê, né?
— É... — falei apenas, na falta de algo melhor pra dizer — Será que aquele almoço serve dois?
Ele riu, limpou as mãos e saiu apressado rumo à cozinha.

— Espero que sim.


— Quer ajuda?
— Com certeza. Pegue aí algo que você goste pra gente fazer — ele disse enquanto mexia a
panela, sem me olhar.
— Oh, não! — ri e abri a geladeira, mas fiquei olhando sem pegar nada.
Ele foi chegando perto curioso, ficando atrás de mim, notei que era mais baixo do que eu. Na
verdade, eu que sou bem alto, ele devia ter algo em torno de 1,80m.
— Pensando? — ele perguntou, tirando-me daquele transe.
— Hein?
— Costuma abrir a geladeira para pensar? Isso aumenta o consumo de energia.
Rimos do meu embaraço. Peguei apenas repolho e entreguei a ele.

— O que quer que eu faça com isso?

— Corta, mas corta fininho pra eu ver, tenho curiosidade.


Eu sempre gostei de repolho, mas não conhecia ninguém que soubesse cortar como nos
restaurantes.

— Será que eu sei fazer isso? — ele disse já pegando umas facas.
— Eu não sei, disso tenho certeza.
— As facas estão ruins, todas elas!
Eric pegou um afiador de facas que estava na gaveta e que eu nunca usei, nem sabia a utilidade
daquilo. Ele afiava uma faca de forma compenetrada, com a boca entreaberta e a língua
aparecendo. Fiquei olhando...
Não que eu achasse homem bonito, mas ele tinha uns traços muito simétricos, para não dizer
perfeitos. Não vi nada demais em observar, afinal era uma obra da natureza, como uma flor, ou
um pássaro. E no meio dos meus devaneios ele elevou a vista, seus olhos eram cinzento-
azulados ou azul-acinzentados, interessantes. Sorriu de forma debochada estreitando os olhos,
e eu me senti bem idiota. Admirar uma obra da natureza tudo bem, mas o momento era
inadequado. Ele poderia interpretar mal.
Ele começou a cortar o repolho sobre um suporte de plástico com uma rapidez impressionante.
E com a mão esquerda, achei bonitinho. Hein?
Intrometido, eu peguei um pedacinho para conferir. Estava finíssimo, fiquei admirado. Ele
sorriu daquele jeito de novo.

— Do seu gosto?
— Perfeito!
— Aprendeu? — ele me olhou e sorriu.
— Claro. Claro que não! Melhor deixar para os profissionais.
— Ainda sou um auxiliar, mas um dia eu chego lá.
A cozinha tinha dessas ilhas no meio, onde se preparava os alimentos e era ali que estávamos.
Fui passar por detrás dele justo na hora em que ele ia se afastando da bancada com a faca na
mão. Rapidamente ele se voltou e recolheu a mão, evitando um acidente. Assustei-me com a
rapidez dos movimentos dele e nisso tudo apenas o seu cotovelo tocou no meu antebraço. O
cotovelo esquerdo dele no meu antebraço direito.
Não que eu nunca tivesse levado uma cotovelada acidental, mas aquela foi uma cotovelada
especial. Apenas um toque sutil. Suave. Quentinho. Agradável. Não doloroso, mas algo que eu
sentiria de novo, se necessário. Quantas vezes fossem necessárias.

Olhei o cotovelo esquerdo dele e peguei-o apenas com o polegar e o indicador, pressionando
de leve a pele branca e quentinha. Ele pareceu não se importar. Aí que notei que ele estava
falando.

— Cara, desculpa, sou meio atrapalhado — ele falava entre risos — quase te corto.
— Hein?
Não sei quanto tempo durou. Dois segundos? Mas estava tudo de volta, era como tirar a
cabeça de dentro da água.
— Você tá bem? — ele perguntou me olhando de novo com aquele jeito peculiar.

— Então amolou bem a faca pra me estripar, né bandido? — falei, já recuperado.


Ele gargalhou.
III

Naquela tarde eu fui buscar o meu pequeno Gabriel. Ele tinha quatro anos e morava com a
mãe e a avó num bairro bem afastado. Não era o meu bairro favorito naquela cidade e meu
sonho era que um dia ele fosse morar comigo no meu apartamento. Nunca consultei a Larissa a
respeito e, sinceramente, eu não pretendia fazer isso.
Ele já me esperava arrumadinho e com a mochilinha que ele adorava. Iria leva-lo à casa de
minha irmã Milena, ela tinha uma menina quase da idade dele, uma loirinha linda e eles se
adoravam. Mentira, esses quase se matavam brigando, mas eu achava muita graça.
No caminho eu ia dirigindo e prestando atenção em tudo o que ele dizia lá da cadeirinha no
banco de trás. Ajeitei o espelho para vê-lo melhor. Ao passar em frente a uma sorveteria que
ele conhecia ele gritou.
— Aqui, pai, aqui que a gente veio amanhã — na verdade tinha sido na semana anterior — eu
quero outro sorvete. Sorvete! Sorvete! — ele gritava.
Olhei-o, a carinha redondinha, os braços gordinhos e uma barrigona. Sorri.
— Que a sua mãe não fique sabendo!
Nos empanturramos de sorvete e fomos pra casa da Milena, ele todo sujo. Nem liguei.
Chegamos ao meu condomínio já escurecendo e uma vizinha, ao nos ver, nos chamou para
uma festinha da filha dela que estava acontecendo ali no salão. Era coisinha simples, ela disse,
e lá fomos nós. Muitas crianças correndo e muitas, muitas guloseimas. Comecei a ficar
preocupado.
Gabriel era louco por refrigerante e tomava um copo após o outro, a boca estava com aquela
marquinha dos lados que fica quando se toma bebida com corante, formando um sorriso
artificial. E a barriga dele estava tão redonda que espichava a camisa.
Lá pelas nove fomos embora, tomamos banho fazendo muita bagunça e pouco tempo depois
ele capotou no sofá, apagou mesmo. Coloquei-o na minha cama e fui pra sala ver tv. Trocava
mensagens com a Larissa, mas não estava a fim de uma visita dela.
— Será que o Eric vai demorar? – pensei alto.
— “Não é da sua conta” — outro eu me respondeu.
Como estava cedo ainda, me levantei e fui pra cozinha. Abri a geladeira instintivamente. Fechei
rapidamente quando pensei na última conta de energia que havia chegado e que ainda estava
sem pagamento. Fui até a área de serviços. Ele entraria por ali e não pela porta principal, mas
ainda era cedo pra ele chegar. Olhei a porta trancada do quartinho, ali não tinha janela e isso
estava fazendo mal pra ele.
Voltei pra cozinha quase num transe, abri um armário alto e retirei uma caixa. Abri a caixa e
peguei uma chave, identificada por um código qualquer. Eu sabia muito bem de onde era, eu
tinha chaves extras de todos os lugares.

Voltei à área de serviços e introduzi a chave na porta do quarto de empregada. Abri e acendi a
luz, mas não entrei, não era necessário. Da porta se avistava tudo devido às dimensões
reduzidas do ambiente: a cama box com um lençol branco muito bem ajustado, um armário
aéreo sobre a cama que estava com as portas arriadas. Estava antes, porque tinha sido
consertado. — “Ele consertou, que legal...” — e o banheiro minúsculo sem porta, onde tinha
uma mini pia quase colada ao sanitário e sobre ele uma prateleira de vidro onde estavam os
produtos de beleza dele. Sorri ao vê-los. Era tão pouco, apenas um xampu e um desodorante
aerossol, outro frasco de alguma coisa, um creme dental e uma escova de dentes dentro de
uma caixinha transparente. Só não dava pra ver o chuveiro. O piso estava muito mais branco
que o de costume e não tinha nenhum tapete.

Apaguei a luz, fechei a porta olhando para os lados e saí dali rapidamente. Senti que alguém
me observava, mas constatei que era apenas eu mesmo desaprovando a minha bisbilhotice.
Mentalmente mostrei o dedo do meio para mim e voltei pra sala pra ver tv.
Acordei de um cochilo, olhei as horas no celular e fui pro meu quarto. Ao entrar vi que o
Gabriel estava atravessado na cama, com as pernas penduradas. No momento em que o toquei
para muda-lo de posição senti que estava ensopado. Sim, ele tinha mijado na minha cama. Não
me aborreci, afinal todo aquele refrigerante que ele tomou tinha que ir para algum lugar. Sorte
que o colchão tinha protetor.
Tirei o short que ele usava, peguei outro que tinha numa gaveta no closed, peguei um cobertor
bem grosso e joguei sobre o molhado do colchão e me deitei ao lado dele, pegando logo no
sono.

Eu estava na área de serviços do meu apartamento, mas ele estava maior e mais escuro que o
normal. E mais sufocante também. Estava diante de uma porta de alumínio a qual eu tentava
abrir usando um molho de chaves enorme. Estava com pressa, ele poderia chegar a qualquer
momento, eu já podia sentir a sua presença, mas não conseguia encontrar a chave certa. Ia
experimentando uma por uma, sem sucesso e a quantidade de chaves parecia aumentar cada
vez mais. A tensão foi crescendo e eu já sentia o calor de alguém muito próximo ao meu corpo,
meu coração batia tão forte que eu quase podia ouvi-lo. De repente minha garganta foi
pressionada, não muito forte, mas o suficiente pra me deixar sem ar. Eu não tentava me
defender, não usava as mãos, apenas procurava, procurava no molho de chaves interminável. A
pressão no meu pescoço foi aumentando, até eu que eu não pude mais respirar...

De repente acordei. Acordei cansado como se estivesse correndo, mas a pressão na minha
garganta era real, mas dessa vez eu usei as mãos. E ali no escuro identifiquei meu agressor: um
pezinho gordo procurando espaço enquanto o dono dele estava com a cabeça pendendo para
fora da cama. Suspirei aliviado e ri sonoramente. Ajeitei o Gabriel novamente, dei um beijo
nele e me deitei.

Mas dessa vez o sono não veio. Pensava e pensava naquele sonho estranho, aquela
quantidade imensa de chaves que eu usava para abrir a porta do quartinho. — Que viagem! —
pensei.

Levantei, tomei água, andei pela casa, voltei a me deitar. Demorou, mas finalmente dormi. Sem
sonhos dessa vez. Mas foi rápido, pareceu apenas um piscar de olhos. Uma mãozinha me
puxou.
— Pai, já é de manhã.
Virei-me de bruços e escondi a cabeça embaixo do travesseiro.

— Acorda, pai. Quero leite com toddy no meu copo do McQueen.


Peguei o celular e olhei: seis da manhã!
— Ah não, Gabriel! Pelo amor meu filho, hoje é domingo!
Ele montou nas minhas costas e segurando as minhas orelhas numa cavalgada dolorida ele
cantava.
— Hoje é domingo, pé de cachimbo, o cachimbo é de barro, bate no... aonde pai?
— Tá escuro ainda, temos que dormir mais.
— Não, já tá claro, olha — ele se levantou e puxou as cortinas da porta de vidro da sacada. O
sol estava lindo naquela manhã de setembro.

Levantei-me cansado e dolorido. E sentindo um cheiro desagradável de xixi, o que me fez


lembrar que eu teria que mudar todos aqueles lençóis. Mas primeiro o leite com toddy. Gabriel
pegou na sua mochila um copo branco com a estampa de um carro vermelho que sorria muito
petulante, e correu em direção à cozinha. Consegui segurá-lo a tempo para que não fizesse
muito barulho. Com sorte não acordaria o inquilino dos fundos. Fiz o leite, comemos biscoitos
e uvas e fomos pra sala.
Meu celular tocou, era a minha mãe. Ela tinha esse irritante costume de ligar aos domingos de
madrugada, se o Gabriel não estivesse comigo eu nem atenderia. Mas atendi, falei com ela e
passei o celular pro Gabriel falar com a vovó. Quando a conversa terminou, tentei reaver o
aparelho, mas ele saiu correndo. Pôs um vídeo que ele gostava e ficou pulando no sofá.
— Hoje eu tô terrível, hoje eu tô terríveeel! — ele cantava alto.
Eu só podia rir desse momento.
Peguei-o e fomos tomar banho, tirei os lençóis e cobertores da cama, fiz um grande embrulho e
deixei no chão. Descemos pro parquinho do condomínio para que ele gastasse a sua energia
brincando. Ainda era muito cedo. Mais tarde o Fabrício, meu irmão, me ligou dizendo que viria
na quarta à tarde resolver umas coisas na quinta-feira. Conversamos muitas outras coisas e eu,
distraído, nem me lembrava mais do motivo pelo qual ele me ligou.
Quando subimos o Eric não estava lá, mas parecia que esteve. A cozinha estava arrumada e
não fui eu quem arrumou.
Na hora do almoço levei o Gabriel ao restaurante onde o Eric trabalhava, mas não o vi. Nem
tentei ver. Estava ocupado em tentar fazer o Gabriel comer legumes e salada, sem sucesso. Às
duas da tarde levei-o para casa, e ele dormiu por todo o trajeto.
Fui à casa da Larissa, brinquei com o pai dela, falei mal do time dele, troquei duas palavras com
a minha pretendente à sogra e depois me deitei na cama da minha namorada onde dormi o
sono dos justos. Acordei apenas à noite. Choveu convites para shopping, bar, churrasco, mas
eu não estava a fim. Disse a todos que tinha assuntos importantes para resolver em casa. E não
tinha.
Ao chegar ao meu apartamento vi que apenas o Paulo Sérgio não tinha chegado, ele sempre
vinha na segunda e ia direto pra faculdade. Ainda bem. Os demais estavam na cozinha,
conversando e rindo. A simpatia dos “gêmeos” ajudava na socialização do novato.
— Cara, você não tinha me falado que os gêmeos não são gêmeos — O Eric falou comigo, ele
estava bem humorado.
— Eles são muito unidos, por isso ganharam esse apelido.
— Legal. Eu também tenho um irmão, a gente é muito unido. Vou falar disso com ele — e riu.
— Mais velho ou mais novo?

— Mais velho, muito mais. Quase meu pai — ele disse e se afastou para fazer alguma coisa.
As informações sobre o Eric me vinham assim, em conta-gotas. Ele quase não falava de si e eu
raramente perguntava. Eu gostava disso, era um jogo interessante para mim.

Assistíamos algo na Tv da sala, nós quatro. Uma sala bem grande com três ambientes, eu diria,
se fosse corretor de imóveis. Era grande, mas o único sofá confortável só tinha dois lugares. Os
gêmeos se sentaram lá, mas se lembraram do terror que era as outras cadeiras e se juntaram
num lugar só, quase um no colo do outro, deixando um espaço vago. Eric e eu queríamos ser
gentis um com o outro, cedendo o lugar. Por fim o obriguei a sentar ali e me sentei no tapete,
próximo às pernas dele.
Ficamos conversando, o Vítor falando que tinha terminado com a namorada porque ela era
muito fresca e cheia de cu doce e o Rique dizendo que ia virar padre porque não tava pegando
ninguém. Rimos. Não falei de mim e o Eric não falou dele.

Depois de um tempo ele se sentou ao meu lado no tapete. Vítor e Henrique saíram da sala e o
Eric começou a bocejar. Nem era tarde, mas eles estavam cansados. Eu não.

— Cara, eu posso usar a net? — ele perguntou depois de um tempo em silêncio.


A televisão estava com um volume baixo.
— Claro! Nossa, nem te passei a senha, né. Desculpa.
Ele procurou o celular no bolso, mas não achou.
— Merda, deixei no quarto. Anota pra mim?

Me levantei, peguei uma caneta ali na estante e fiquei pensativo.


— Esqueceu a senha?
— Às vezes eu confundo. Mas deixa eu ver...
Me abaixei, peguei a mão dele e comecei a escrever. Parei, risquei e comecei de novo. Ele ria e
se contorcia.
— Ai, ai! — ele tentava puxar a mão, mas eu segurava.
— Larga de ser fresco, isso é só uma caneta.
— Ah, mas escreve na sua mão pra você ver. Eu não aguento! — e ria alto.
Eu não soltava a mão dele, ia escrevendo os caracteres devagar.

Não vou mentir, em momento algum eu esqueci a senha. Mas ninguém precisava saber disso e
eu estava me divertindo. Acabei soltando afinal.
— Testa lá depois e se der errado você me fala.
— Ok... Ficou de cabeça pra baixo, como eu vou ler? — Eric fez uma carinha marota, olhando a
mão.
— Ah, é?
O puxei forte, entrei atrás dele de forma que ele ficou entre as minhas pernas e segurando sua
mão direita com a minha mão esquerda eu fui escrevendo a senha de novo enquanto ele ria
muito. Sorte que os quartos dos meninos ficavam longe, senão eles iriam querer saber o que
estava acontecendo. Meu braço estava colado à barriga do Eric e a minha barriga nas costas
dele. Eu não sou fortão, mas sou grande e não tive dificuldades em domina-lo, e também ele
não estava tentando fugir de verdade, só se defendia das cócegas na mão.

Poderia ter aproveitado mais, mas esse tipo de brincadeira era novidade para mim e também
eu não era doido de assustar ele assim, de primeira. Queria apenas brincar, só aproveitei para
sentir o cheiro e o calor do corpo dele, nada demais. Quando finalmente soltei a mão, ele se
afastou meio que engatinhando, muito engraçado. E não parava de rir.

— Vê se consegue ler agora!


Ele olhou bem de perto e deu um sorriso sapeca.
— Letrinha feia da porra! — e saiu correndo rumo ao quarto dele.
Fiquei um tempo ali rindo sozinho, meio excitado. Rir sozinho estava se tornando normal para
mim e eu pensava se as outras pessoas também faziam isso. Deixei pra lá. Desliguei a televisão,
mas não fui pro quarto imediatamente, fiquei ali até quase pegar no sono.
IV

Acordei tarde na segunda, não era o meu dia de fazer o café. Fiquei esperando a diarista, mas
naquele dia ela não apareceu, apenas mandou uma mensagem dizendo que não viria mais
porque tinha arrumado um emprego com carteira assinada. Nem liguei, eu já tinha chamado a
atenção dela por causa de umas coisas mal feitas e ela não tinha gostado. Eu tenho aversão
aos serviços domésticos, mas gosto de vê-los bem feitos.
Almocei no trabalho mesmo e cheguei em casa um pouco mais tarde que o normal. Aquele dia
foi especial porque parecia que as coisas iriam melhorar na empresa onde eu trabalhava.
Fiquei responsável por um projeto importante, do jeito que eu gostava e tinha que me dedicar
ao máximo.

Ao chegar, fui direto à cozinha onde o Henrique cumpria com a sua obrigação de fazer a
comida. Ele fazia as vezes do irmão também, pois ele estudava à noite, mas jantava depois. O
Eric estava lavando umas coisas na pia, já que o Rique era terrivelmente bagunceiro, muito
mais do que eu. Cumprimentei os dois e já ia pro banho quando o Sérgio chegou. Não ia perder
aquela oportunidade.
Ele cumprimentou a mim e ao Henrique normalmente e depois falou com o Eric, sem sorrisos,
apenas com o mínimo de educação.
— Ah, é você o Eric? Acho que já te vi na faculdade.
Ele não estava muito simpático e o Rique não deixou pra lá.
— Ah, vocês já se conhecem? Que legal!
— Não muito — Eric disse.

— Apenas de vista — Serginho confirmou, mas falou com certo desdém — ele é um dos
gatinhos do turno, todo mundo conhece.
Eric riu sem jeito.
— Você faz direito também? — o Henrique tentava evitar constrangimentos puxando assunto.
Paulo Sérgio saiu deixando apenas seu perfume na cozinha. Era cheiroso aquele mané.
— Que nada, faço técnico em Gastronomia.
— Sério? Então assuma as panelas meu fii... — Paulo Henrique fez uma mesura pro lado do
fogão do tipo “é todo seu”.
— Vai ter o dia dele Rique, não seja espertinho — falei, deixando de apenas ouvir as conversas.
— Não sou nenhum chef, quem me dera...
— Tá se tornando uma profissão chique hoje em dia. Vai se dar bem — Henrique continuou.

— Espero que sim, eu tinha começado outro curso, mas não levava jeito aí mudei pra
gastronomia.
— A gente tem que fazer o que gosta mesmo.
Na hora do jantar estávamos todos na mesa da cozinha como sempre, já que nunca usávamos
a sala de jantar. Falei com eles sobre a falta da diarista, pedi que eles procurassem saber de
alguém porque senão nós teríamos que dividir as tarefas. Eles concordaram e disseram que
iriam colaborar na limpeza da casa até encontrar uma diarista de confiança que aceitasse as
nossas condições.

Na terça à noite ouvi o Henrique se desculpando com o Eric pelo barulho na área de serviços.
Olhei-o atentamente e vi que ele não estava muito bem. Fiquei preocupado.
Era véspera do feriado e o Sérgio estava se arrumando pra viajar, pois não trabalharia o resto
da semana. Ele fazia estágio num escritório de advocacia de um parente dele e tinha essas
mordomias. Os gêmeos iriam sair mais tarde, assim que o Vítor saísse da faculdade. Eu também
pensei em sair, mas resolvi ficar pra ver o que estava havendo com o Eric.
Lá pelas nove e tanto, quando todos já tinham saído, fui até a cozinha e ele estava lá fazendo
um lanche. Se assustou quando me viu.
— Ué, ainda não saiu?
— Não, houve um imprevisto — menti.
— Ah, sim. Eu também tinha que sair, mas precisei tomar um remédio pra alergia e aí eu fico
meio lerdo. E dormi mal a noite passada, vou descontar hoje.
Nesse momento meu celular vibrou no bolso. Peguei e constatei que era a Larissa querendo
saber por que eu desmarquei nossa saída através do Whats. Fiquei aborrecido, mas tinha que
atender. Eric saiu de perto discretamente.
— Lari, vai dar não. Peguei um projeto fera, preciso de sossego para planejar.
— Amor, deixa pra amanhã que é feriado — ela disse.
— Não, pior que amanhã tenho que pegar meu filhote, você sabe que aí não dá mesmo. Além
disso, tô com um probleminha aqui. Depois eu te ligo.
— Ah, fala sério — ela estava irritada — você nunca pode, nunca quer. Quer saber? Vou sair
com a Ana, depois não reclama!
— Não vou reclamar. Beijo — e desliguei.
Olhei em volta e o Eric não estava mais na cozinha. Fui à área de serviços e ele também não
estava lá. Chegar a pensar que ele tinha saído, mas mudei de ideia, não daria tempo. Voltei e
quando cheguei à sala de jantar vi-o sentado numa cadeira. Era o primeiro ser humano que
sentava ali depois de muitos meses.
As cadeiras eram muito retas e covardemente desconfortáveis, eram pesadas, com os assentos
precisando de tecidos novos. Aquela sala toda era um museu. Uma mesa grande de belos pés
torneados, oito cadeiras, buffet, espelho e cristaleira, tudo de madeira escura. Era um
ambiente nostálgico. Há alguns anos tinha sido um lugar incrível, chamávamos de copa. Era
ocupada pelos meus pais, seus quatro filhos, os pais de meu pai e muitas visitas. Mas nesse
momento era um lugar vazio, que contava apenas com a presença de quem estava passando, já
que ali davam muitas portas. E o Eric estava ali. Me sentei também, de frente pra ele.
— Oi — falei apenas.

— Oi. Quanta cadeira, né...


— Ah sim. Já foi muito útil quando esse apartamento vivia cheio de gente.
— Família grande, é?
— É, e continua grande, só um pouco espalhada.
Ele ficou calado.
— Não dormiu bem a noite passada? — perguntei, mas sem querer parecer invasivo demais.
— Aham... Mas já tomei um remédio que eu tinha esquecido na casa do meu irmão.
— E quanto ao barulho?
— Ah, tá tudo bem.

— Pode falar.
— É sério.
Ele não queria falar. Mudei a estratégia.
— Acho que é porque agora todo mundo tá usando a área de serviços com mais frequência, né.
Aquele quarto é ruim pra você.
Ele sorriu.
— Cara, preocupa não, é só por um tempo. Não pense que eu tô achando ruim, é melhor do
que o lugar que eu tava antes.
Pensei um pouco. Ele começou a se levantar.
— Espera, preciso te fazer uma pergunta muito séria que já devia ter feito antes.

Ele se sentou novamente e ficou na expectativa, me olhando.

— Pode fazer.
Suspirei e disse de uma vez:

— Quantos anos você tem? — e ri.


— Hã? — ele ficou confuso — Vinte e um. Por quê?
— Ah, porque eu não sabia ainda. Olha, enquanto a gente não arranjar uma diarista pra fazer o
serviço na hora que a gente tá trabalhando, o pessoal vai continuar te atrapalhando lá no seu
canto. E aquele quarto sem ventilação faz mal pra você.

— Mas é por...
— Sei, é por pouco tempo, mas passe esse pouco tempo num lugar melhor! — Eric me olhou
preocupado, eu sorri — Não se preocupe, só estou dizendo pra você pegar aquela cama e
trazer pro meu quarto. Ele tem...
— Nossa, cara — ele arregalou os olhos — claro que eu não vou fazer isso! Imagina, te
atrapalhar...
— Claro que não vai atrapalhar. O quarto é enorme, era o quarto dos meus pais, tem closed,
sacada e duas pias no banheiro, acredita? Fique lá o tempo que quiser, não tem galho nenhum,
vai ser melhor pro pessoal poder lavar roupa e pegar as vassouras com tranquilidade.
Ele ficou quieto, depois perguntou:
— Vai aumentar o valor? — ele devia ganhar pouco, pelo jeito que se preocupava com os
valores das coisas.
— Não, claro que não — fui decidido, mas mesmo assim ele ficou pensativo — Se a minha
presença te incomoda... — falei rindo, ele riu também.
— Não incomoda não. Eu que não quero incomodar.
— Bora lá pegar as paradas.
Me levantei e fui pro quartinho, ele foi atrás. Esperei ele entrar, meio tímido. Eu entrei mais
resoluto e peguei o colchão e saí. Ele pegou o box e veio também.
— Vou colocar aqui que é mais perto da sacada. Você pode abrir ou fechar a porta, o que te
fizer melhor.
— Que isso, cara! O quarto é seu.
— Cê tá pagando...

Ele riu, mas ainda estava tímido.

— Vai lá pegar as suas coisas, vou ajeitar um espaço aqui no closed.


— Ah, ok então.

Entrei no closed, acendi as luzes, mas não precisei ajeitar nada. Era grande e tinha mais
espaços vazios do que ocupados. Ele foi feito para a minha mãe, uma senhora que teve uma
parte da vida bastante pobre e quando meu pai começou a ganhar bem, ela começou a gastar
dinheiro. Era louca por sapatos e meu pai lhe fazia todas as vontades.
O Eric chegou com suas coisas todas de uma vez. Eu achava interessante aquele estilo
minimalista dele, ele não era desleixado, nem nada, apenas tinha poucos objetos pessoais.
Colocou tudo arrumadinho lá e sentou na cama.
— Fique à vontade — sentei ao lado dele e toquei-lhe a perna – pode tomar banho, se quiser.
— Tá — ele ia se levantando.
— Hein, só uma coisa — chamei.
— Sim? — ele levantou uma sobrancelha, como sempre fazia.
— Pelo quê o Henrique estava te pedindo desculpas?
Dessa vez ele não se esquivou do assunto.
— Ah, pela máquina de lavar, tipo, nem foi ele que fez...
— A máquina de lavar te fez algo e o Rique pediu desculpas? — tentei erguer uma sobrancelha
só como ele fazia, mas não sei se deu certo.
— Não, não – ele ficou meio embaraçado – tipo, alguém, que não foi ele, colocou roupa pra
lavar bem tarde, depois das onze da noite.
Fiquei pensando.
— E o ciclo completo, ainda por cima — ele riu, por fim.
— E como o Rique sabia disso?
— Ah, nem sei, talvez ele foi na cozinha e ouviu.
— Hum, interessante — falei, pensativo. Mas eu tinha uma ideia de quem teria sido, na
verdade, eu tinha certeza.
Eric foi pro banho e eu fui providenciar alguma coisa comestível na cozinha. Enrolei um pouco
para deixa-lo mais à vontade no meu quarto. Quando voltei ele estava na minha cama vendo
televisão, sentado como num sofá, sem pôr as pernas em cima.

Eu tinha posto a cama dele mais próxima da porta da sacada e ela ficou numa posição em que
não dava pra ver a TV, praticamente depois dela. Eu não tinha pensado nesse detalhe, mas ali
ele me pareceu bem interessante. Quando me viu, o Eric se levantou para sair, mas eu o peguei
pelo braço e o fiz se sentar de novo.

— Ora, fica aí. Se quiser a gente põe a sua cama aqui do ladinho da minha pra você poder
assistir, mas sinceramente, eu acho que você vai dormir melhor ali onde ela está. Você vai ter
que assistir aqui mesmo, então pode sentar, ou melhor, deitar nessa cama e ficar à vontade.
Quando ele ia falar eu pus o dedo indicador bem perto do rosto dele e falei sério:
— Se ficar com frescuras, ponho a tua cama lá no closed.

Ele riu. Eu fui pro banheiro e demorei bastante. Quando voltei encontrei-o deitado na própria
cama, parcialmente coberto por um lençol.
— Já vai dormir? Vou desligar a TV então.
— Não, não. Não precisa.
— Descanse aí rapaz, hoje não tem máquina de lavar, eu prometo.
— Mas eu vou sonhar com ela, tenho certeza — ele riu e deu boa noite.
Desliguei tudo, apaguei as luzes e fui pro escritório, perto da sala. Eu tava num momento bem
criativo, não podia desperdiçar. Acho que fiquei ali por horas até que ouvi a porta de entrada
sendo aberta e os dois irmãos entrando sem fazer barulho. Não me viram e eu fui depois deles
pro meu quarto, na primeira porta do corredor. As portas deles eram as últimas.
Entrei no quarto em silêncio e o Eric ressonava baixinho. Observei-o por alguns minutos e
depois dormi.
V

Acordei na manhã de quarta com o sol alto e uma música na minha cabeça, achei que estivesse
ficando maluco. Eu tava sozinho no quarto, a cama do Eric estava arrumadinha e sobre ela
havia peças de roupas dobradas. Abri a porta que dava na sacada e identifiquei a música: em
algum lugar próximo estava acontecendo um evento com banda marcial.
Fui pra cozinha e fiquei feliz, o Eric tinha preparado uma mesa linda, cheia de gostosuras. Os
gêmeos também estavam lá e riam de alguma piada. Quando cheguei o Vítor se engasgou de
tanto rir, entendi que a piada tinha a ver comigo.
— Bom dia para todos vocês — disse meio desconfiado.

— Menos pro Eric, né — o Vítor falou tossindo.


— Por quê? — me sentei e peguei o café.
— Porque ele dormiu contigo, uai.
— Ah, vai tomar...
— Café? Tô tomando. E olha o café que ele nos preparou! Ah, parabéns mano! — Vítor me deu
um tapinha no ombro, mostrei o dedo mal educado para ele.
Todos riam muito, inclusive o Eric. Ele tava tímido como sempre, porém, mais à vontade do que
nunca e se defendia das piadas de duplo que os outros faziam.
— Brincadeiras à parte, que bom que acabou o Apartheid por aqui – Henrique falou com a
boca meio cheia – tava esquisito esse cidadão excluído lá na despensa.

— Vê se entra pela porta da frente agora, fera — Vítor completou.


Ficamos ali um tempo, mas o Eric saiu dizendo que ia trabalhar. Depois meu filhote me ligou e
eu fui lá busca-lo. Nos divertimos um pouco na rua e almoçamos na casa da minha irmã
Milena. Ela estava cheia de curiosidade sobre os amigos que estavam morando comigo e ficou
preocupada quando eu disse que um eu não conheci previamente.
— Irmão, cuidado nunca é demais.
— Claro, vou até colocar alarme na cristaleira da copa, pra prevenir. Vai que alguém queira
roubar o aparelho de jantar que foi da vovó! — ri, desdenhando dela.
— Bruno, é sério! Estou dizendo pra você tomar cuidado, a gente nunca sabe o que pode
encontrar. Veja se nenhum deles é viciado, traficante, essas coisas.
— Pode deixar que eu tô vendo — isso era verdade, se tinha uma coisa que eu fazia bem era
observar.
Devolvi meu pequeno pra mãe dele e fui bater o ponto na casa da Larissa, que me recebeu de
cara feia. Nem liguei. Conversei com os pais dela tranquilamente, falei sobre trabalho, sobre
futebol, sobre política. Não fiquei muito tempo, me despedi dela e fui pra casa por volta das
seis da tarde.
Parecia que estava parado demais aquele feriado, que havia algo que eu estava esquecendo.
Deixei de pensar. Mas me lembrei assim que pus meus pés na sala.

— Mano! Saudades, seu urubu! — ele me abraçou.


Meu irmão Fabrício tinha avisado que viria e eu esqueci completamente. Ele estava estudando
numa cidade do interior, longe pra caramba e vinha poucas vezes ao nosso velho apartamento.
Quando tinha tempo, ele ia pra casa nova dos nossos pais, na praia, que também era longe.
Meus irmãos me chamavam de urubu por causa das minhas roupas pretas. Não tenho saco pra
ficar escolhendo roupa, e decidi que fico bem de preto total, ou preto e branco ou preto e
jeans. E assim eu vivo feliz.
— Velho, chegou que horas? — perguntei, ainda me recuperando do susto.
— Lá pelas quatro e subi direto. Fiquei aqui conversando com o Henrique, já que o senhor saiu.
Nos sentamos lado a lado no sofá.
— Eu sou um homem de muitas obrigações. Fui ver meu filhote, fui bater ponto na casa da
Larissa, dei uma volta na rua.
— Pensei que fosse encontrar a Larissa aqui.
— Ah, não dá, a casa agora tá lotada.
— Ah, sim. Por falar nisso, fui guardar minha mochila lá no teu quarto e vi que tem uma
caminha extra. O Rique me disse que você botou o cara da lavanderia pra dentro.
Puts, essa noite vai dar galho! — pensei, mas agi naturalmente.
— Ah mano, deu ruim aqui no lance do quarto dos fundos por causa da lavanderia e tals. Além
disso, o cara tava ficando doente naquele ambiente fechado.
— Tá de boa, mas onde eu vou dormir?
— Comigo cara, o Eric é tranquilão, de pouca conversa, não incomoda em nada. Claro que eu
podia botar um colchãozinho no quarto de empregada pra tu, mas não te quero com rinite
nem com fobia de máquina de lavar.
— Ah, vai te fuder, isso sim.
Rimos. O Henrique emergiu das sombras.
— Fabrício, você podia dormir no meu quarto, eu durmo lá com o Vítor — ele falou isso sério,
mas depois, com um sorriso sacana, emendou — Não vamos atrapalhar os pombinhos!

Eles caíram na gargalhada e eu mostrei o dedo médio das duas mãos para eles. Nisso o Eric
chegou e eles se calaram. Cumprimentaram-se e ficaram conversando enquanto eu fui tomar
banho.

Paulo Vítor chegou quando estávamos jantando e conversando animadamente. O Eric ficava
meio sem graça às vezes, mas ninguém o deixava de fora nas conversas. Uma coisa a ser
reafirmada sobre os “gêmeos” é que eles eram super gente fina, do tipo que nunca exclui uma
pessoa. Só fui me deitar quando estava bêbado de sono, depois que todos os outros já tinham
ido.
Acordei cedo no outro dia, mas o Eric já tinha saído, não estava nem na cozinha. Meu irmão
saiu com o Henrique no meu carro, pois tinha assuntos para resolver na Universidade. Ele foi
me buscar na hora do almoço e ficou esperando um tempo enquanto eu saía do trabalho.
Fomos almoçar numa churrascaria para enfim conversarmos a sós.
— Mano, como tá sendo essa parada de conviver com todos esses caras? — Fabrício perguntou
me olhando nos olhos.
— Melhor do que eu imaginava. Todo mundo tá na correria e a gente só se esbarra mesmo no
café e no jantar e olhe lá ainda. Só tá osso agora que estamos sem faxineira.
— Hum, e esse novato?
— Tranquilo, na dele.
— Calado, né.
— É o jeito dele. E eu prefiro, não suportaria gente buzinando no meu ouvido o tempo todo.

— Eu sei — ele riu — te conheço bem. E sei também que o seu relacionamento não tá mais a
mesma coisa — ele manteve o olhar firme no meu, me impedindo de desviar.
— Mudou pra psicologia, foi? — sorri.
— Não, Deus me livre. Já basta um na família — a Amanda, nossa outra irmã — mas, tipo, você
não parece estar sentindo falta, mesmo ficando sem se ver a semana toda. Não anda saindo
muito também, pelo que eu sei.
— Velho, eu tô num momento interessante da minha vida. Tenho 27 anos, formado,
empregado, namorando há três anos, ela está prestes a terminar o curso, está trabalhando, e o
pior: tenho um apartamento. Advinha o que as pessoas pensam e falam o tempo todo?
— Casamento, naturalmente!
— E eu não vou me casar tão cedo, isso eu garanto. Não é que deixei do gostar da Larissa, mas
quero viver outras experiências, sabe, agora que estou tão sossegado.

— Hum, você tá certo. Passou a vida toda estudando, agora tem que aproveitar mesmo. Mas
por favor, dá um jeito nesse cabelo e nessa barba que você está parecendo mais velho que o
papai. E use as suas lentes no lugar desses óculos.
— Ah, não exagera, não tô tão mal assim. É que eu ando meio sem tempo. E tenho também
que voltar a malhar — admiti.
— Tem mesmo, tá só a pele e os ossos.
— Cara, me fala a verdade: você é meu irmão ou meu inimigo? — falei sério, mas depois ri.
— Sou teu irmão favorito e te adoro, por isso estou sendo sincero.
— Obrigado por isso, vou me cuidar, eu prometo. Mas e você, o que anda fazendo?

Ele me contou que o curso estava tomando todo o seu tempo, que ele não tava namorando,
mas tava pegando geral e que sentia saudades da família. Como caçula ele era muito mimado
pelos mais velhos e sempre fomos muito unidos.
— Os meninos me chamaram pra sair essa noite, já que amanhã o dia vai ser light pra todo
mundo. Bora com a gente? — Fabrício me falou enquanto comia.
— Aonde vocês vão? — perguntei por perguntar, pois eu não estava a fim.
Ele falou o nome do local e as atrações da noite.
— Não é meu programa favorito, você sabe, além disso, o Ramon — meu amigo da época da
faculdade — me convidou pra uma comemoração qualquer lá no apê dele.
— Ramon... — Fabrício estreitou os olhos tentando se lembrar — É aquele careca, bombado e
tatuado? Como ele tá?
— Mais careca, mais bombado e mais tatuado do que nunca.
— Credo. Mas daqui a pouco você vai tá parecendo um gibi que nem ele — e apontou pros
meus braços.
— Nada a ver, só tenho três! — tenho tatuagens nos braços, eu gosto, a minha família não.
O dia foi tranquilo, por isso fui pra casa mais cedo. Recebi uma mensagem do meu irmão
dizendo que tinha ido ao shopping com os gêmeos e que iriam pra balada mais tarde.

Ao entrar no meu quarto, notei uma atmosfera diferente, as portas estavam abertas, assim
como todas as cortinas. Eu tentava identificar o que me havia chamado à atenção, mas antes
que eu pudesse pensar, visualizei o Eric sentado no chão da sacada. Fui até lá e notei que ele
estava com os olhos e o nariz vermelhos e me cumprimentou com uma voz um tanto rouca.

— Tudo bem, cara? — perguntei preocupado, me abaixando um pouco para vê-lo melhor —
Você não tá com uma cara boa.
— Tudo bem sim, não é nada — ele tentou sorrir.
— Uma crise de rinite, é? — fui tirando a camisa e indo pro banheiro no intuito de deixa-lo
mais à vontade para mentir, se fosse necessário.
— Aham — ele disse apenas.
Tomei banho, aparei a barba, me vesti e fui pra cozinha. Ele não foi pra lá como sempre fazia.
Esperei alguns minutos e quando voltei pro quarto, meio intrigado, o Eric já estava de banho
tomado, se vestindo com umas roupas que ele tinha, mas que eu não o tinha visto usando.
Acho que ele guardava para ocasiões especiais, uma camisa de mangas longas cinza bem escura
e uma calça jeans menos surrada.
— Opa, desculpe, você está se arrumando — dei meia volta e fui pra sala, me sentando no sofá.
Um minuto depois ele apareceu lá, com uma aparência bem melhor, todo arrumadinho e
perfumado.
— Ei, precisa pedir desculpa não, o quarto é seu e eu já tinha me vestido mesmo — ele disse
sorrindo sem mostrar os dentes, tentando ser simpático.
— Ok então, aproveite a noite.
Ele riu e saiu, me acenando com a cabeça. Pouco tempo depois eu saí também, mesmo que
ainda fosse cedo pro meu compromisso na casa do Ramon. Como na certa eu iria beber, resolvi
ir caminhando para voltar de táxi depois. Não era longe e a rua era segura.

Eu tinha caminhado três ou quatro quarteirões quando avistei o Eric. Ele estava sentado num
banco perto de um Café, do outro lado da rua, e nesse momento um carro parou em frente
onde ele estava. Do carro saiu uma mulher alta, de cabelos loiros longos e lisos, salto alto e
vestido bem bonito. Era sensual sem ser vulgar, um verdadeiro mulherão pelo visto. Eu já
estava praticamente em frente ao local, no lado oposto, e sem pensar acabei atravessando a
rua para observar.
Ela, mais desinibida, deu um beijo no rosto dele, que estava visivelmente sem jeito. Depois
entraram no Café, um estabelecimento chique que com certeza ele não podia pagar com o
salário de auxiliar de cozinha. Sentaram-se um de frente para o outro, e para a minha sorte de
bisbilhoteiro, o Eric ficou de costas para a rua.
Ao ver o rosto da mulher, tive uma pequena decepção. Não era feia, mas com certeza uma
parte da sua beleza já tinha ido embora com o tempo. Ela aparentava ter idade pra ser mãe
dele, ou ainda mais. Pensei que talvez fosse uma daquelas mulheres poderosas e
independentes, mas solitárias, na faixa dos quarenta. Ri sozinho da situação e segui o meu
caminho pensativo.

No apartamento do Ramon estava acontecendo uma pequena comemoração do aniversário


dele, que completava trinta anos. Me assustei com a passagem tão rápida do tempo quando
conversava com ele sobre os velhos tempos. Ele vivia reprovando nos semestres até abandonar
o curso de Engenharia e se dedicar a um comércio de motos customizadas.

Fui embora por volta da meia-noite, a pé mesmo, pois queria caminhar e passar um tempo
sozinho. Ao entrar na sala do meu apartamento, me surpreendi com o Eric deitado
preguiçosamente no sofá, com uma roupa de ficar em casa, vendo um filme na TV.
— Já tá aí, cara? Que baladinha fraca a sua, hein? — falei rindo, meio alegre pela bebida.
Decidi não falar que o peguei no flagra.

— Ah, não era nenhuma festa. Mas você também veio cedo, achei que tivesse saído com o seu
irmão — ele se sentou e ajeitou a roupa.
— Não, ele até chamou, mas eu tô meio velho pro tipo de balada que eles curtem. E os três são
amigos, eles se divertem pra lá.
Ele chegou mais para o canto do sofá e eu me sentei.
— Eu nem sei a sua idade — ele comentou, me olhando.
— Vinte e sete.
— Nossa, pensei que... — e gaguejou — Tipo, você não é velho, não — ele ficou muito
envergonhado com o que ia falar, ficou vermelho.
— Pensou que eu fosse mais velho né? — caí na gargalhada.

— Não, não, nada disso — ele ficou mais atrapalhado ainda — eu não disse isso.
— Mas nem precisou. Achava que eu já tinha uns quarenta? — lembrei do encontro dele e ri
mais ainda.
— Não, mas pensei nuns trinta sim — ele disse isso e escondeu o rosto com uma almofadinha.
— Liga não, seu bobo — tirei a almofada da mão dele — hoje mesmo meu irmão falou que eu
tô parecendo mais velho que o meu pai. Mas achei que a coisa tinha melhorado, já que eu dei
uma ajeitada na barba.
Ele me olhou enquanto eu passava a mão pelo rosto, nossos olhos se encontraram me
causando uma sensação estranha. Mas não externei e ele não percebeu.
— Hum, ficou legal sim. Você bebeu?
— Um pouquinho só.
— Sei... Você tá um pouco alegre — e saiu pra cozinha.

Tirei meus tênis e joguei num canto da sala, me espreguicei e quase ia deitando no sofá,
quando o Eric apareceu com uma taça de sorvete.
— Eu que fiz, experimenta — se sentou ao meu lado e me entregou a taça.
— Hum, de chocolate, que delícia! Mas tem um gostinho alcoólico, ou é impressão minha?

— Um pouco de licor. Eu gosto de fazer coisas diferentes.


Ele ficava olhando enquanto eu tomava o sorvete, como se esperasse aprovação.
— Ficou legal, mas se eu tomar demais, vou ficar bêbado de vez. Tá forte, sente.
Levei uma colherada à boca dele, ele hesitou um pouquinho, mas depois a abriu e, me olhando
nos olhos, tomou devagar. Aquilo foi extremamente sensual, senti um calor estranho e uma
vontade de... de...
Nessa hora, um barulho de chave na fechadura e vozes no corredor me fizeram tomar uma
atitude rápida: parecer mais bêbado do que eu realmente estava.
— Ah, qual é? — disse o Vítor abrindo os braços — As duas senhoras ficaram em casa tomando
sorvete? Vocês não iam sair?
Os outros riam também enquanto tiravam os sapatos.
— Já saí e já voltei, agora tô tomando um sorvete de cachaça.
— Cachaça? — Fabrício tomou a taça da minha mão.
— Foi o Eric que fez.

— Não, é de chocolate com licor. Ele chegou meio alegre da festa que ele foi, e eu também saí
mais cedo — Eric explicou.
Fomos todos para os nossos quartos, eu tomei banho e me joguei na cama, mas estava o sono
não veio. O Eric apagou a luz e se deitou também, mas eu sentia que ele estava acordado.
Naquela noite eu tava a fim de conhecê-lo melhor.
VI

— Sem sono? — perguntei depois de bastante tempo.


— Pois é, e você também, né.

— Vem aqui, a gente liga a TV — falei, mas ele ficou em silêncio — mas tudo bem se você não
quiser.
— Não sei, não é tarde?
— Não, vamos ver alguma coisa até o sono chegar.
Peguei o controle no criado do lado direito e liguei a TV, o Eric se sentou na cama dele e depois
veio pra minha todo sem jeito. Naquelas noites em que ele dormiu ali, notei que sempre
estava de short e camiseta e eu dormia só de cueca. Ele se ajeitou no travesseiro enquanto eu
o observava.
— Sério mesmo que você dorme assim, ou é por minha causa? Não vou te assediar não cara, te
dou a minha palavra.
Ele riu de forma mais desinibida.
— Eu sempre dormi assim, acho que é porque nunca tive um quarto só meu, quer dizer, já tive,
mas por pouco tempo.
— Hum, entendo... — eu passava os canais procurando algo interessante — Você morava com
seus pais e seu irmão?
— Não, recentemente eu morava com uns amigos e antes eu morava com o meu irmão. Mas
ele mudou de emprego e teve que se mudar de cidade. Só vejo ele agora aos fins de semana.
— Que idade tem o seu irmão?
— Trinta e quatro. Não, trinta e cinco, eu acho.
— Nossa, que diferença de idade entre vocês! Por que seus pais esperaram tanto pra ter outro
filho?
Ele suspirou, eu notei o desconforto e me virei de lado para observa-lo.
— Não é bem assim, é uma história bem complicada.
— Conte, se quiser ou não conte, se não quiser. Fique à vontade.
Ele pensou um pouco e depois começou a falar devagar, olhando para a televisão sem assisti-
la.
— Bom, meu pai era casado e tinha só um filho, o Vander e a minha mãe era uma novinha
bonita e sem juízo. Aí meu pai largou a família pra ficar com ela, eu nasci, mas quando eu tava
com seis meses, mais ou menos, eles se separaram e meu pai voltou a morar com a esposa dele
e o filho. Daí eu passei a morar com a minha avó materna, recebia pensão do meu pai e tudo,
mas raramente o via. Até que quando eu tinha oito anos minha avó faleceu e como não
encontraram a minha mãe, me entregaram ao meu pai.

Ele suspirou e ficou olhando para o lado. Desliguei a televisão e apoiei a cabeça no braço, para
ouvir melhor.
— Pode continuar.
— Então, eu fui morar na casa do meu pai e de sua esposa, era muito estranho.
— Ela te maltratava?

— Não, ela não chegava a ser carinhosa, mas também não era malvada. Meu pai é que era
ruim, eu não podia fazer nada, mas, enfim... Aí uns dois meses depois, o filho deles que estava
estudando longe chegou para as férias de fim de ano e aí eu conheci a melhor pessoa do
mundo. Ele me tratava bem e quando pôde me levou pra onde ele morava. Ele dava jeito em
tudo e praticamente me criou. Agora ele tem as filhas dele, mas faz o que pode por mim, claro
que eu tento me virar sozinho, mas às vezes eu ainda preciso da ajuda dele.
— Nossa, que história! — realmente me comovi — E que irmão, hein? Não é todo mundo que
tem essa sorte, outro poderia não gostar de você, brigar por causa da herança, te maltratar...
— Eu sei. Mas a questão da herança, meu pai não deixou quase nada quando morreu, só
mesmo a casa onde mora a minha madrasta, então não temos porque brigar.
— Que sorte hein!

— Ah, claro! — rimos.


Liguei a TV novamente e conversamos mais alguma coisa. Aos poucos o assunto foi morrendo e
ficamos assistindo um filme até que senti que o Eric estava cochilando. Desliguei o aparelho
sem me mexer muito e deixei-o ali ao meu lado. Pensei em muitas coisas, nem todas decorosas
a respeito dele, mas ali, na semiescuridão do quarto, ele parecia um anjo de tão perfeito.
Quando me convenci de que ele estava num sono profundo, o cobri com parte do meu
cobertor leve e me concentrei em dormir também.
Quando acordei, vi que ainda era noite, não sabia quanto tempo tinha se passado. O Eric
continuava ressonando baixinho, parecia mais próximo ao meu corpo e eu podia sentir o seu
calor. Senti meu coração acelerar até o ponto de eu quase poder ouvi-lo. Era aquela sensação
que se sente na adolescência, cujos efeitos eu já tinha me esquecido.
Poderia ser só um amigo dormindo ao meu lado, ou um conhecido que ficou pra dormir depois
de uma noite de festa, ou ainda um irmão com o qual eu não tinha quaisquer pudores. Mas
não era nada disso, era o Eric. Eu não sabia quem era o Eric, ainda não o considerava um
amigo, não era meu irmão, não estava passando apenas uma noite para ir embora na manhã
seguinte. E eu não sabia se podia toca-lo. Ele não se esquivava quando eu o tocava, nem me
repreendia, mas eu ainda não sabia.
Finalmente decidi. Lentamente toquei seu antebraço, sentindo sua pele morna com pelos finos.
Não foi o suficiente. Subi os dedos até o ombro, que apertei delicadamente por sobre a camisa.
Ele despertou devagar, com movimentos preguiçosos até se dar conta de onde estava.
— Acorda garoto, vai pra tua cama — falei suavemente quase no ouvido dele.
— Vixi, eu dormi aqui! Desculpa, cara.
— Bah, vou te dar uma porrada por causa dessas tuas desculpas. Tá tudo bem, boa noite.

Ele saiu meio trôpego e foi pra cama dele. Olhei o visor do celular, passava das três da manhã.
Sentindo-me bem comigo mesmo, voltei a dormir.

Pela manhã meu celular me despertou com um recado irritante: meu dia de preparar o café. Saí
da cama aborrecido, fui pro banheiro silenciosamente e depois fui fazer a minha obrigação.
Eram apenas seis e quinze. Assim que comecei os preparativos o Eric chegou e após o “bom
dia”, começou a me ajudar. O agradeci por isso.
— Você sabe que eu faço isso porque não tenho escolha, não sabe? — falei, bocejando.
— Notei, mas deixa que eu faço pra você — ele assumiu o que eu fazia.

— Oh não, assim você vai me deixar mal acostumado! — ri.


— Não quer? — ele me olhou nos olhos, me deixando desconcertado. Fazia de propósito, com
certeza.
— Claro que eu quero, mas não reclame depois, ok?
— Ok, entendi. Ah, e foi mal ter pegado no sono lá na sua cama.
— Deixa disso, eu que devo te pedir desculpas por ter te acordado, você demorou pra pegar no
sono, foi insensível da minha parte — me encostei ao balcão, bem perto dele, enquanto o
observava preparar o café e um suco.
— Não foi não.
— Pode assistir TV e cochilar o quanto quiser garoto, aliás — falei mais baixo, me inclinando
sobre ele — pode dormir na minha cama, se quiser. E para com essas frescuras, eu já disse —
uma cantadinha descarada e sem vergonha.

Toquei-o no ombro, ele riu e me olhou rapidamente, voltando a se concentrar no que fazia.

Naquela sexta eu estava tranquilo em relação ao trabalho, apenas uma reunião importante
mais tarde. Após o café, todos foram saindo para os seus compromissos, até que eu fiquei
sozinho.
Voltei ao meu quarto. Eu precisava estar ali sozinho, acordado, sóbrio e descansado para
observar, pois algo havia me chamado a atenção na véspera, mas minha cabeça não processou
na ocasião. Nesse momento eu tinha tempo.

Arrumei a minha cama, a do Eric estava sempre impecável. Desliguei o ar condicionado, abri
todas as portas e cortinas e ao fazer isso eu sorri. Ri muito e sonoramente, pois eu estava
sozinho e podia fazer isso sem ser chamado de maluco. Fui ao closed e ao banheiro, só para
confirmar.
Claro que ele não ia me falar, mas tudo naquele quarto foi lavado, escovado, aspirado nos
mínimos detalhes. Até o meu lado no closed, até o meu colchão. Não havia nada de valor com
que eu pudesse me preocupar, então isso não era um problema. Ele gastou uma parte da
quinta-feira limpando o quarto, lavando colchas e cortinas, remexendo em móveis velhos que
tinham traças e poeira acumuladas. E teve uma crise alérgica por causa disso.
Ele não usava nenhum produto de limpeza daqueles que deixam um cheirinho, mas à luz do
dia era visível a limpeza do piso, dos azulejos do banheiro e das cortinas, o brilho do mogno
dos criados. Tudo limpo, sem ácaros ou poeira para incomodar meu inquilino sensível.
Mas ainda havia algo que eu queria saber. Sobre a cama dele sempre havia umas coisas, o que
me fez lembrar que eu devia arrumar uma mesinha pra ele. Peguei essas coisas com cuidado,
uma revista qualquer, uma caixinha com um pouco de dinheiro e uma caneta, uma caixa maior
com um perfume, um carregador de celular e um protetor solar e um envelope branco meio
amassado com uma receita médica dentro. Mas não era o que eu esperava encontrar. Li e
guardei novamente, arrumei do melhor jeito que conseguia, mas depois, sabendo que ele
notaria, tive uma ideia melhor: fui até o escritório, peguei uma mesinha que tinha lá e coloquei
ao lado da cama dele. Pus as coisas dele em cima, arrumadas de um jeito diferente e gostei do
resultado. Depois fui cuidar da minha vida.

Saí da reunião de trabalho irritado e cansado. Ela se estendeu por tempo demais e não chegou
a lugar nenhum. Fui pra casa descansar, pois mais tarde eu tinha que levar a Larissa pra jantar
e dar uma atenção a ela.
O Eric estava na sala parado em frente à estante em que ficava a televisão, tão distraído com o
celular que nem me ouviu abrir a porta. O cumprimentei e ele tomou sum susto, quase deixou
cair o aparelho e enrubesceu na hora.

— Que isso, rapaz? Te peguei no flagra, hein? — dei um tapinha no ombro dele e me afastei.
— Hã? Não, não, eu só tava distraído.
— Notei — ia me dirigindo ao escritório, mas ele chamou.

— Bruno?
— Diga — parei para ouvi-lo.
— Quem faz as compras da casa?
— Ah, quem quiser e estiver com tempo. Depois é só deixar a notinha do supermercado numa
caixinha perto do bebedouro que a gente divide tudo no final do mês. Se você quiser ir ao
supermercado, sempre tem uma listinha de compras na porta da geladeira.
— Hum, eu vi, mas só vou ter tempo segunda-feira... — ele coçou a cabeça.
— Ok, então eu dou um jeito de fazer as compras amanhã.
Depois eu fiquei pensando nessa falta de tempo dele, já que ele não trabalhava no restaurante
aos sábados. Seria outro encontro com a coroa? Ri diabolicamente. Nisso ouvi uma batida na
porta do escritório.
— Entra — disse, me levantando da poltrona em que estava confortavelmente instalado.
Eric entrou com um sorriso tímido.
— Posso tomar banho primeiro?

Revirei os olhos e suspirei. Depois ri.


— Deixa disso criatura, eu já disse. Vai logo.
Ele abriu um sorriso encantador e saiu, fechando a porta atrás de si. Esperei uns dois minutos e
fui pro quarto também.
Não precisei procurar muito, estava sobre a cama dele, com a tela bastante danificada. Peguei
o celular, me certifiquei de que a senha era um padrão, fui até a porta de vidro onde ainda
havia claridade natural, inclinei-o de forma que pude ver bem as marcas na tela escura. Deslizei
meus dedos formando um W da direita para a esquerda e o aparelho desbloqueou
imediatamente. Simples.
Procurei o ícone do Whatsapp e olhei as conversas. A única atualizada recentemente era com
um tal de Nestor. Não havia muitas mensagens e o assunto era vago e intrigante.
“Nestor: — Aí cara, td de boa? Se ainda quiser a parada aqui, pode vim essa noite”.

“Eric: — ok, vou sim, mas você precisa me dar mais umas dicas”.
“Nestor: — vem mais cedo que a gente vê isso, e o chefe tá interessado nesse lance de você
usar as duas mãos, mostra pra ele” — e uma carinha de riso.

“Eric: — flw rapaz, daqui a pouco tô aí, blz”.

Sorte que não tinha mensagens novas. Coloquei o aparelho no mesmo lugar e fui pra sala ver
televisão, sem conseguir me concentrar em nenhum programa. Logo o Eric apareceu dizendo
que ia sair.

— Vai lá cara, depois eu vou sair também.


Ele estava vestido com uma camiseta preta simples e uma calça que ele usava muito. Não
parecia uma roupa pra balada.
Assim que ele saiu, eu saí também. Não sei se estava seguindo-o no sentido literal da palavra,
mas sem pensar muito eu acabava indo aonde ele ia. Ele caminhava resoluto, sabendo
exatamente que direção tomar, isso por uns quinze minutos. Até que ele parou em frente a um
bar bem grande, que ainda estava vazio e se sentou numa cadeira de plástico do lado de fora.
Logo em seguida chegou um cara e se sentou ao lado dele. Entrei em uma farmácia do outro
lado da rua e comecei a escolher alguns produtos que eu realmente precisava enquanto olhava
através das portas de vidro.
Notei que o cara era bem alto, de braços tatuados musculosos, mas sem exageros, parecido
comigo, inclusive, e estava usando uma camiseta preta bem justa ao corpo (assim como eu) e
uma calça preta também. Ele parecia mais velho que o Eric e falava animadamente enquanto o
outro só ouvia atentamente. Parecia ser algum tipo de instrução. Não deu pra visualizar muito,
os dois entraram no estabelecimento e desapareceram.
Paguei os produtos que comprei e saí da farmácia em passos rápidos. Fui pra casa, tomei
banho, vesti uma roupa qualquer e fiquei fazendo hora no sofá, apenas pensando na vida.
Depois o Fabrício chegou e a gente ficou conversando. Ele disse que ia rever uns amigos numa
festinha do condomínio; eu disse a ele que não iria porque já tinha um compromisso.
Respondi mensagens, recebi ligações, liguei pra Larissa dizendo que ia lá mais tarde e saí
novamente. Estava com uma ideia fixa na cabeça.
Voltei ao tal bar, dessa vez de carro porque apesar de ser possível ir caminhando, não era tão
perto assim. Esperei um pouco na entrada, era cedo ainda e tinha poucos clientes. De repente
avistei uma pessoa que poderia me dar o aval para entrar ali sem parecer um detetive: a
Jéssica, uma ex ficante minha e mãe do meu Gabriel.

Ela é do tipo que os homens chamariam de “gostosa” e as mulheres chamariam de “gorda”.


Não muito alta, mas de atributos avantajados, um par de coxas grossas, um bumbum e um par
de seios enormes, tudo isso arrematado por uma cinturinha fina, (resultado de uma
intervenção cirúrgica). Estava com um cabelo loiro, liso e comprido, batom vermelho e olhos
maquiados. Uma piriguete de carteira assinada, mas fora isso, era boa mãe, não usava o
dinheiro da pensão em benefício próprio e nos entendíamos bem.
— Ora, o que faz por aqui? — ela veio me cumprimentar.
— Tô perdido — dei um beijo no rosto dela.
Ela riu e pegou no meu braço. Se a Larissa ficasse sabendo, o tempo iria fechar de vez.

— Como pode isso? Esperando alguém?


— Não, e você?
— Estou esperando umas amigas, mas resolvi vir mais cedo e observar o movimento.
— Sei... Vamos entrar um pouco então? Ou vai atrapalhar os seus esquemas?
Ela deu uma risada meio exagerada. Me puxou pro interior do bar que ainda tinha mesas
vazias. Parecia ser um local que lotaria mais tarde. Sentamos.
— Não vai atrapalhar, mas pode ajudar. Você tá com tempo?
— Não muito, tenho compromissos, você sabe — dei uma vista de olhos pelo local.
— Sei sim. Tá firme o namoro?

— Mais ou menos — confessei e a Jéssica se surpreendeu.


— Hein? É isso mesmo, produção? Porque eu achei que você fosse se enforcar dessa vez, a
mulher era perfeita! Ela te aborreceu, foi? — ela piscou ao dizer isso.
— Não, não, eu que tô numa fase complicada agora, precisando de mais tempo pro trabalho,
mais espaço, não dá pra focar em nenhum outro compromisso, entende?
Chegou um garçom pra atender, ela pediu alguma coisa pra ela e pra mim e ele saiu.
— Entendo sim... Vai terminar então?
— Não sei, nem conversamos ainda, na verdade. Não sei o que vou dizer a ela, afinal não
aconteceu nada. Nós vamos sair mais tarde.
— Tem certeza que não aconteceu nada? — ela me olhou nos olhos, tentei sustentar o olhar —
Você parece inquieto, como se procurasse por alguém nesse momento.
Ri enquanto o garçom entregava as bebidas. Tomei um gole do meu copo e fiquei pensativo.

— Não, não estou procurando — demorei a responder. Não sei se ela engoliu.

Depois de um tempo ela pegou na minha mão. Entendi o que ela queria.
— Tá dando um gelo em alguém ou fazendo inveja nas suas amigas?

— As duas coisas. Dá uma ajuda aí, vai.


— Jéssica, Jéssica... Quer que eu te leve a algum lugar? Não vou poder ficar muito aqui, eu
marquei com a Larissa.
Ela falou o nome de um local, uma casa de shows.
— Me deixe lá e pague a minha entrada. Saindo daqui com você eu dou o que pensar a um
“certo alguém” enquanto você já deve ter visto o que tinha que ver. Não é mesmo?
Ri com o copo na boca.
— Quem disse?
Ela chamou o garçom, pediu a conta e ameaçou de pagar, mas eu não deixei. Na entrada de
outro estabelecimento, bem longe dali, nos despedimos como amigos e eu fui pra casa da
minha namorada um tanto atrasado.

Larissa e eu fomos a um restaurante novo que ainda não conhecíamos e escolhemos uma mesa
mais afastada. Ela não questionou sobre o meu atraso, pelo contrário, tentava ser simpática,
falava coisas banais e engraçadas, até que entrou no assunto que estava pendente.

— Você tem andando tão distante Bruno, o que tá havendo?


— Não tá havendo nada, apenas estou cansado.
— O que mudou no seu trabalho pra te deixar tão cansado assim? Alguma promoção?
— Não mudou nada lá, o que eu mais queria é que algumas coisas mudassem, mas
permanecem tal e qual. Eu preciso de mais para fazer um bom trabalho.
— Eu entendo. Mas será que todo aquele movimento no seu apartamento não está te
cansando? Antes você não estava assim...
— Não, nada disso. Acho que tem me ajudado a espairecer um pouco, se não fosse isso eu já
teria ficado louco.
Ela ficou calada por um tempo, olhando para o prato. Seus cabelos lisos e escuros caíam dos
dois lados do rosto, formando uma moldura.
— Não quero que se sinta mal, não é nada com você, apenas estou num momento diferente.
Cobranças, compromissos, isso tudo tá difícil pra mim. Eu preciso de tempo, de espaço, ainda
tenho muita coisa pra fazer...

Larissa elevou a vista de uma vez, numa expressão que não era de tristeza, parecia mais raiva.
Mas ao invés de explodir como eu esperava, ela apenas suspirou.

— Não queria que se sentisse pressionado, Bruno. Nada disso.


— Como assim?
— Acho que muita gente tem te questionado sobre o nosso relacionamento, que está na hora
de tomar um rumo, mas eu nunca te falei isso, lembra?
— Não, claro que não falou, mas não é isso...

— Bruno, vamos continuar como estamos, certo? Você está cansado, eu vejo, nem se arrumou
direito pra sair... — ela sorriu examinando a minha roupa — Vamos deixar assim, eu não vou
ficar no seu pé, prometo, só não vamos deixar isso acabar, são três anos... — ela suspirou como
que contendo uma emoção e continuou — Vou lá amanhã arrumar o seu quarto, já que você
está sem empregada. Isso deve estar te estressando, né.
Aquela conversa tomou um rumo que eu não previra. Pensei numa solução rápida.
— Não, não precisa. O quarto tá impecável e, além disso, o Fabrício tá lá esses dias, só vai
embora no domingo.
Passamos a conversar sobre amenidades até o fim do encontro. Não consegui chegar aonde eu
queria naquele dia, mas pelo menos consegui ir pra casa sozinho e sem compromissos para o
fim de semana.

Deitei na minha cama no escuro e no silêncio total e fiquei pensando durante muito tempo,
sem sono ou cansaço. Apenas pensava em muitas coisas, eu tinha muitos planos,
principalmente pra minha profissão, mas faltava algo que me inspirasse, algo que me tirasse
daquele lugar comum. Eu queria muito mais de mim, não necessariamente me tornar rico e
importante, o que eu queria era me sentir realizado.
Levantei e fui pro escritório onde passei a rabiscar umas coisas e a fazer pesquisas. Fiquei ali
até meus olhos começarem a arder de sono e então fui pro quarto sem sequer olhar as horas.
Notei que o Eric estava na cama dele, ressonando baixinho. Ao me acostumar com a
penumbra, vi que ele estava sem camisa, de bruços na cama, coberto apenas da cintura para
baixo. Me aproximei e fiquei olhando por um tempo, eu ainda não o tinha visto assim, com a
pele exposta. Ele tinha uma tatuagem no braço esquerdo, na parte interna. Gostei. Me ajoelhei
perto da cama e fiquei pensando.
Lembrei que na primeira vez que o vi, todo atrapalhado lá no restaurante, me pedindo um
quarto, eu me senti diferente. E que quando ele chegou ao meu apartamento eu fiquei nervoso
como se esperasse por alguém muito importante. E que o toque acidental lá na cozinha me fez
bem ao ponto de querer tocá-lo novamente, e que eu pensava tanto nele a ponto de espionar
a sua vida.
Lentamente toquei seu ombro com os dedos, de forma bem leve. Meu coração batia acelerado
e eu gostava disso, era uma energia nova e eu estava precisando. Minhas mãos tremiam. Desci
com as pontas dos dedos pelo braço direito, sentindo os músculos relaxados, e depois voltei
para as costas onde os pelos pequenos e macios se eriçavam. Não me preocupei em saber se
ele estava dormindo ou não, apenas tocava de leve, aproveitando um momento delicioso de
excitação. Acariciei as costas dele por alguns minutos, ouvindo a respiração compassada e
suave dele e depois voltei ao escritório onde fiquei até amanhecer o dia.
VII

Fui dormir quando já passava das seis da manhã e só acordei à uma da tarde, quando ouvi
batidas na minha porta. Levantei sonolento, com os olhos cansados e fui abrir, era o meu
irmão.

— Velho, já tava preocupado contigo. Tá tudo bem? — Fabrício me observou, preocupado.


— Tá sim, é que aproveitei essa noite tranquila pra trabalhar nuns projetos, sabe, e só vim
deitar de manhã. Tô pregado — bocejei.
— Tá querendo mostrar serviço, é?
Eu fui pro banheiro e ele foi atrás.

— Na verdade, eu quero algo mais, sabe. É a primeira vez que me dão um projeto que exige
mais responsabilidade e eu não vou desperdiçar a oportunidade. Estou especialmente
inspirado esses dias.
— Hummm... E por que será?
— Não é da sua conta. Está sozinho?
— E contigo. Os gêmeos foram pra casa, seu amigo caladão saiu com uma mochila, mas deixou
bolo, pão, suco, doce, tudo prontinho. Acho que ele tem um tesão enorme naquela cozinha.
Tive que rir enquanto escovava os dentes.
Tomamos café no lugar do almoço, depois fomos buscar o meu filho. Nós três fomos ao
shopping, ao supermercado, ao parquinho e foi infinitamente divertido. À noite pedimos uma
pizza e comemos no chão da sala assistindo um filme infantil. Depois puxei a cama do Eric pra
perto da minha e dormimos os três ali até às seis da manhã de domingo, quando o moleque
nos acordou. Logo após o almoço levei o Gabriel para casa dele e depois fui levar o Fabrício até
a rodoviária. Fiquei ali com ele até o ônibus sair. Combinei de ir pra casa dos nossos pais no
mês seguinte, para o aniversário da vovó e para rever a família.
Dirigi sem rumo pela cidade, apenas observando a paisagem cheia de prédios não muito altos,
ouvindo uma música qualquer na rádio. Eu gostava de sair sozinho pela cidade, principalmente
aos domingos quando estava tudo vazio. Só havia sorveterias abertas na maioria das ruas onde
passei.

Quando cheguei em casa o Eric já estava lá, na cozinha, como sempre. Ele colocava uma panela
pequena sobre o fogão e apenas sorriu quando me viu.
— Oi, tudo bem? — falei, chegando bem perto dele.

— Tudo sim. Tá com fome? Vou fazer alguma coisa pra comer.

Peguei o rosto dele delicadamente e o fiz olhar para mim, toquei-o na ponta do nariz com meu
dedo indicador direito.
— Faz sim, eu tô com fome. E depois faça o jantar.

Ele olhou para baixo e depois levantou as pálpebras de forma lenta, quase sensual. E assentiu,
submisso.
— O que vai querer?
Toquei-lhe o queixo, e depois os lábios, fazendo um círculo.

— Faça o que for mais fácil pra você, e em boa quantidade. Todos vão chegar logo mais.
— Ok então.
Só faltou falar “Sim, senhor” e aquilo me deu um prazer incrível. Toquei-o no queixo
novamente e depois me afastei, para deixa-lo trabalhar. Ele pegou algumas coisas na geladeira
e começou a preparar, cortava carne, legumes, lavava os utensílios. Rápido, mas com
tranquilidade. Eu me sentei perto do balcão e observava todos os movimentos e ele parecia
não se importar. Às vezes olhava pra mim e sorria. Ele fez uns bolinhos de queijo e nós
comemos quase sem conversar.
Enquanto o Eric preparava o jantar os três Paulos chegaram juntos conversando
animadamente. Jantamos todos juntos como uma família, o Serginho falando empolgado sobre
a sua viagem pra uma praia nordestina e mostrando fotos no celular.
Depois o Vítor saiu pra encontrar uma gata, como ele disse, o Henrique foi estudar e o Eric foi
pro quarto dizendo que depois voltava para lavar a louça. Serginho já ia saindo, mas pedi pra
ele ficar.
— Vamos conversar mais cara, fica aí.
— Ah, claro — ele sentou novamente e me olhou ansioso.
— Você foi sozinho pra Boa Viagem?
— Fui com mais dois amigos. Foi incrível, eu tava precisando muito de uma viagem dessas.
Nossa, o Nordeste é demais! Eu curto muito, vou sempre que posso.
— Que bom que se divertiu, não é todo mundo que pode tirar umas férias assim, de vez em
quando.
Ele riu e ficou pensativo. Depois me olhou.
— Você ficou aqui sozinho com o Eric?

Sabia que ele ia perguntar isso.

— Não, o Eric também saiu e meu irmão tava aqui. Foi muito bom também.
— Ah, sim. E a Larissa?

— A gente saiu na sexta.


— Hum — ele disse apenas, ainda pensativo. Ele era amigo da minha namorada e tinha algo
contra o meu companheiro de quarto. Interessante.
— Já conhecia o Eric antes de ele vir pra cá?
Serginho me olhou desconfiado por um tempo antes de responder. Ele meio que estreitava os
olhos escuros e astutos.
— Não exatamente. Foi assim, eu o vi, achei gatinho e fui puxar assunto, normalmente. Um
amigo já tinha me falado dele. Mas ele apenas me olhou de lado, respondeu com monossílabo,
a contragosto. Achei antipático da parte dele. Depois nos vimos mais umas duas vezes lá na
faculdade, ele nunca fala com ninguém. Ou quase ninguém.
Um “quase” bem significativo. Eu peguei a referência.
— Só isso? Não tiveram nenhum tipo de desentendimento?
— Não, nada disso! — ele levantou as duas mãos de uma forma afetada — Nunca
conversamos, na verdade.
— E por que resolveu incomoda-lo com a máquina de lavar à meia noite? — disparei.

Serginho deu uma risada escandalosa, chegou a inclinar a cabeça para trás. Eu permaneci sério.
Quando parou de rir, ele tossiu e disse, sarcástico.
— Ele reclamou, foi?
— Não, não reclamou, ele nunca reclama de nada. Eu que ouvi alguém pedindo desculpas pra
ele pelo incidente da máquina e julguei que fosse o senhor.
Os dentes brancos perfeitos se destacavam na face morena do Paulo Sérgio, onde havia um
sorriso petulante.
— Na certa foi o Paulo Henrique que falou. Aquele lá só observa.
— Mas sinta-se à vontade para lavar suas roupas na hora que quiser. O Eric tá dormindo lá no
meu quarto agora.
Paulo Sérgio arregalou os olhos e desfez o sorriso.
— Já?

— Aquele ambiente fechado do quartinho estava piorando as alergias dele.

— Sei... Sensível, não? — ele disse naquele tom sarcástico enquanto se levantava. Não dei
assunto.
Serginho ia saindo da mesa quando o Eric chegou à cozinha. Passou bem perto dele, olhando-o
nos olhos.
— Nada como um par de olhos bonitos, né não? — e saiu.
Eric apenas olhou-o sem expressar nenhum sentimento e se dirigiu ao fogão onde começou a
retirar as sobras de comida das panelas. Fui até ele.
— É nítido que vocês dois não se bicam, qual é o galho?

Ele me olhou de rabo de olho, sem parar o que estava fazendo.


— Frescura, nunca o tratei mal, apenas não gosto dele.
— Hum, sério? Ele tem umas ideias na cabeça, sabia?
— Azar o dele!
Ri e me aproximei mais. Atrás dele, peguei seus dois cotovelos com apenas dois dedos de cada
mão e fiz uma pressão leve. Inclinei-me um pouco e cheirei os cabelos, depois me afastei. Ele
não esboçou qualquer reação negativa.
— Vou te observar enquanto faz o serviço — puxei uma cadeira para perto.
— Se você quiser... — ele disse num meio sorriso.

Tomei um banho demorado, depois liguei a televisão e deitei na minha cama. O Eric estava
esperando pra tomar banho também, sentado na cama dele. Silencioso, ele se levantou e foi
pro banheiro. Quando saiu, estava usando apenas uma cueca preta do tipo boxer com um
detalhe branco no lado direito.
— Enfim resolveu me mostrar esse seu corpinho, hein? — falei, maroto, enquanto o observava.
Ele apenas sorriu, pôs as roupas dobradinhas sobre a mesinha na lateral da cama e me olhou.
— Vem cá, vem... — apontei pro meu lado na cama, chegando mais para a direita.
— Fazer o quê? — ele se fazia de desentendido.
— Ver TV comigo, tá cedo pra dormir.
— É seguro? — ele vinha andando lentamente, o andar dele era sensual e me causava
ansiedade.

— Não vou te assediar...


— Duvido — ele parou perto da cama, mostrei os dedos cruzados, ele riu — sempre me
assediam — revirou os olhos e sentou na minha cama.

— E isso é ruim? — olhei o peito dele com desejo, depois os olhos que estavam claros e
brilhantes. Voltei a olhar o peito e os mamilos dele se enrijeceram.
— Às vezes sim.
Virei de lado e com apenas um dedo comecei a fazer círculos na barriga dele. Tinha outra
tatuagem, essa era na pelve do lado esquerdo, só dava pra ver uma parte dela. Passei o dedo
ali, curioso.
— E quando isso é ruim?
— Quando eu não quero.
Desliguei a TV e ajeitei um travesseiro pra ele.
— Como vou saber se você quer ou não?
— Vai ter que descobrir sozinho — a voz dele era rouca, sensual.
— Certo, vou tentar interpretar os seus sinais. Você já ficou com algum cara?
— Isso importa? — ele me olhou de lado.
— Não. Eu nunca fiquei e, sinceramente, não sei até onde eu quero ir.

— Nem eu, mas isso não importa, não precisa seguir uma cartilha comigo.
— O que quer dizer?
— Não sei, mas acho que você fala demais.
Continuei fazendo desenhos imaginários na pele dele. Branca, recoberta por pelos muito
claros, quase transparentes, extremamente macia. O corpo dele era magro na medida certa,
com músculos discretos, gostei das proporções e da simetria. E as tatuagens ficaram perfeitas, a
do braço esquerdo era como um arabesco, a da barriga eu não pude ver toda. Não perguntei o
significado delas, um dia eu ia saber.
Com as pontas dos dedos eu circundava os mamilos, fazendo-os endurecer. Me aproximei
ainda mais até que meu nariz tocou o pescoço dele, aspirei o cheiro suave e rocei a minha
barba, fazendo-o arrepiar-se. Fiquei assim por um tempo, com a mão no peito dele deslizando
suavemente enquanto o beijava o pescoço, lambia devagar. Ele se ajeitou melhor para que eu
me aconchegasse mais ao seu corpo e ficamos assim, ele calmo, eu excitado. A sensação era tão
boa que eu não queria parar, mas também não queria me precipitar e fazer algo que fizesse eu
me arrepender depois. Além disso, notei que já era tarde, por isso me afastei um pouco para
deixa-lo dormir. Aos poucos fui me acalmando, sentindo o cansaço pegar chegar até
adormecer.

A segunda-feira começou preguiçosa, mas aos poucos foi entrando no ritmo normal. Só vi o Eric
quando cheguei do trabalho à noite. Ele estava com o celular, talvez usando o Whats e apenas
me olhou e sorriu quando me viu. Mais tarde ele foi pra cozinha e começou a preparar o jantar,
eu também fui, mas fiquei fazendo uns trabalho em silêncio. Paulo Sérgio chegou, olhou ao
redor com as mãos na cintura e depois me dirigiu à palavra no seu tom irritante.
— É o dia dele cozinhar? — e apontou o dedo para o Eric de forma afetada.

— Não sei, acho que é o dia do Vítor, mas como ele não está...
— Quando ele não está, a obrigação é do Henrique, não? Ou mudaram as coisas por aqui sem
que eu soubesse?
O Eric continuava tranquilo com os seus afazeres, como se não ouvisse a conversa. Serginho me
olhava sério, os olhos dele faiscavam. Suspirei.
— Cara, as coisas não mudaram. O Henrique não liga de passar a vez, o Eric gosta de cozinhar,
então não vejo qual o problema.
— Não, não é um problema, imagina! Ele chegou aqui com essa carinha de sonso dizendo que
ia ficar no quartinho de empregada, mas de sonso ele não tem nada, não é? — ele ia saindo,
mas se voltou de repente — E você tá na dele, não tá? Você até fala por ele, defende...

— Sérgio, é melhor parar com isso, ok? Quando não for a sua vez, não se meta!
— Não tá nem aqui mais quem falou!
Ele saiu irritado enquanto o Eric permanecia imperturbável. Cheguei bem perto, aspirei o
cheiro dele e da comida que ele fazia. Passei a mão nas costelas dele por debaixo da camiseta,
e falei-lhe ao ouvido.
— Não vamos irritar o garoto, ok? Olhe a lista da semana e só entre na vez de alguém se for
convidado, entendeu?
Eric apenas me olhou de lado. Passei as duas mãos na barriga dele, depois passei a língua pelo
pescoço e repeti:
— Entendeu?
Ele foi saindo dos meus braços olhando para a porta aberta.
— Não achei que ele fosse se importar, nem era a vez dele.

— Eu acredito em você, mas, como eu já te disse, o Serginho não acredita na inocência dos seus
belos olhos. Ele vai continuar implicando, portanto, não dê motivos, entendeu?
Eric apenas riu misteriosamente, mais para si mesmo.
Como o Paulo Sérgio não apareceu pra jantar, pedi ao Henrique para dar uma passadinha no
quarto dele e ver como estavam as coisas. Henrique saiu, ficando apenas o Eric e eu na cozinha,
ele ainda comendo calmamente e eu o observando.
— Por que me olha tanto? — ele perguntou depois de uma garfada de salada de maionese.
— Porque eu gosto, algum problema?
— Eu fico com vergonha e sou obrigado a me comportar, comer de boca fechada, não pôr o
dedo no nariz.
Ri muito com o que ele disse.
— Isso te obriga a se comportar de outras formas também — pisquei, ele pareceu não
entender.
— Quer que eu me comporte, é? — a forma com que ele fez a pergunta foi provocante.
— Não, quero que arrume a cozinha, mas deixe a comida onde está. O Vítor vai jantar mais
tarde — me levantei para sair.
Eric me olhou desconfiado, depois riu debochadamente.
— Não era o seu dia de arrumar a cozinha?

— Mas não vou te tirar esse prazer.

Deitamos juntos na cama e assistimos televisão em silêncio, mas aos poucos fomos nos
aproximando. Como na noite anterior, minhas mãos o acariciaram lentamente, enquanto ele
permanecia parado, apenas sentindo. Eu ia devagar, aproveitando cada centímetro de pele que
eu me atrevia a tocar. Ele respirava tranquilo, mas eu podia ver o quanto ele estava gostando
apesar da pouca luz, a pele dele se arrepiava e exalava um cheiro bom. Peguei a mão esquerda
dele e pus no meu peito, de início ela não se moveu, mas depois de um tempo começou a ir
pra cima e para baixo, lentamente, e depois desceu para a minha barriga, onde ficou brincando
com meus pelos. A sensação era incrível, como se a mão dele tivesse fogo. Depois ele parou e
eu não insisti.
O volume da televisão era quase inaudível, na verdade ninguém estava assistindo. Deitado de
lado, quase em cima dele, eu comecei a beijar o pescoço, depois o peito. Ele parecia gostar,
pois não só permitia, como também facilitava, às vezes elevava o tronco para aumentar o
contato entre nossos corpos. No começo eu tinha receio de que ele sentisse a minha ereção,
mas depois eu já não tinha mais neuras e deixava que todo o meu corpo tocasse no dele. Ele
ficava excitado, mas não tomava qualquer iniciativa. Também não trocávamos quaisquer
palavras, era apenas a linguagem dos sentidos e nos entendíamos perfeitamente, por isso
mesmo, quando o vi coçar os olhos e bocejar, entendi que era a hora de parar. Fui cessando as
carícias, me acalmando, deixando que a paz do sono chegasse.

Algumas pessoas dizem que não conseguem dormir agarrado com alguém. Eu também não
conseguia, até começar a dormir com o Eric. Tive uma noite deliciosa, colado a um corpo
quente e cheiroso, que me embriagava. Tive sonhos eróticos absurdos, como se tivesse
experimentado algum alucinógeno. Acordei gozado e grudento pela manhã, não sei se ele
reparou.

— Bom dia, delícia — falei rindo da cantada idiota. O despertador tinha acabado de tocar.
Ele se espreguiçou, esticando os braços e me olhou com um sorriso.
— Bom dia. Você nem me acordou pra me mandar pra minha cama essa noite...
— Não, eu não faria isso! Dormi muito bem em cima de você — ele riu — e você vai dormir
aqui agora.
Ele se levantou, arrumando os lençóis, sorrindo para si mesmo, sem me olhar.
— Tem medo de dormir sozinho, é?
— Na verdade eu tenho sim.
— Mas eu tenho compromisso essa noite, tá?

Fiz biquinho pra ele enquanto ele ia para o banheiro.


VIII

Voltei bem tarde do trabalho aquele dia e encontrei o Eric de saída com seu traje preto
misterioso, como na sexta-feira anterior. Ele estava falando ao celular e apenas sorriu pra mim
quando passamos pela sala.

Não interagi muito com o pessoal naquela noite, comi antes de eles chegarem e depois fui para
o escritório onde fiquei até quase de madrugada lendo, pesquisando e fazendo projetos.
Quando fui pro meu quarto, bêbado de sono, o Eric ainda não tinha chegado. Mas enquanto
eu escovava os dentes ele chegou, entrou no banheiro calado e pelo espelho eu vi que ele
tinha uma expressão bastante cansada.
— Pelo visto a noite foi boa, hein? — não pude resistir.

— Foi necessária — às vezes ele dava umas respostas misteriosas.


— Descanse então... — enxuguei o rosto e saí do banheiro, fechando a porta atrás de mim.
Deitei na cama e comecei a cochilar, mas logo depois o Eric se deitou perto de mim.
— Por que veio?
— Porque você mandou.
Ri tentando não pensar em coisas sacanas. O corpo dele estava frio por causa do banho e eu
apenas o abracei para não perder o sono.
— Você tá bem? Precisa descansar.
— Tô bem sim, fica tranquilo.

Logo eu dormi pesado. Quando acordei já bem tarde, na verdade foi o Eric que me acordou.
— Bruno, acorda! Já é quase nove, cara! Trabalho!
— Ah, caralho! — me levantei de supetão, mas deitei novamente já que era inútil correr — E o
seu curso?
— Sem chance, já era. Problema que os caras aí vão pegar no teu pé, a gente perdendo a hora
desse jeito.
Ele foi pro banheiro, eu fui também.
— E no teu também.
— Eu não ligo.
— Nem eu.
Fomos escovar os dentes ao mesmo tempo no banheiro, eram dois lavatórios grandes e nos
sentíamos bem fazendo as coisas juntos, como se já tivéssemos esse tipo de intimidade antes.

Liguei pra empresa explicando que ia chegar mais tarde e fui tomar o café. O Eric foi também,
mas apenas olhou o que tinha pronto e começou a preparar um suco.
— Vai dar problema no seu trabalho se chegar atrasado? — ele perguntou.

— Não, não.
— Então vou fazer um suco pra você, o café hoje não tá do seu gosto.
Gostei de ouvir aquilo.
— Assim você me mata, sabia? Fica aí fazendo as minhas vontades...

Levantei da banqueta e fui até ele, sem saber realmente o que pretendia. Apenas fui. Ele me
olhou e continuou o que estava fazendo, cortando uma manga e colocando pedaços no
liquidificador. O abracei por trás e levei a minha boca até o pescoço dele, me abaixando um
pouco para fazer isso por causa da diferença de altura. Passei minhas mãos pela barriga e o
peito e ele facilitava o contato, mas sem parar o serviço.
— Você está me enlouquecendo, sabia? — falei baixo no ouvido dele, que se arrepiou.
— Você gosta, não gosta?
— Vou te prender só pra mim, sabia? Vou colocar uma corrente no seu pé pra você não fugir.
— Por que eu fugiria? — ele disse isso saindo dos meus braços.
Nesse momento o Eric se abaixou para pegar alguma coisa no armário e depois ligou o
liquidificador, interrompendo o meu clima. Sentei novamente observando-o até que ele me
serviu um copo de suco. Dei um beijo na mão dele e fiquei segurando-a enquanto tomava todo
o suco do copo, depois me levantei e fiquei parado, olhando os olhos e a boca dele. Tudo nele
era provocante, disponível...
— Não quer comer? — ele perguntou me apontando uma embalagem de pão que estava sobre
o balcão.
— Não consigo nesse momento.
— Então o que você quer? — ele chegou perigosamente perto.
— Acho que você sabe o que eu quero e o que eu preciso, então não me deixa fazer algo que
estrague isso, tá bem?
— Não vou deixar, fica tranquilo. Pode ir, se quiser... — e se afastou para que eu saísse.
Peguei as minhas coisas no escritório e fui andando leve até o elevador. Naquele dia consegui
que parte de um projeto em que eu estava trabalhando fosse aprovado sem modificações.
Fiquei radiante, pois não era sempre que as coisas davam certo, especialmente naqueles dias
de crise.

Naquela noite o Eric saiu novamente, todo arrumadinho. Eu estava no escritório quando ele
passou lá pra me avisar, piscou e saiu sorrindo. Não fiz nenhuma pergunta, estava muito
ocupado, mas depois fiquei pensando no que ele poderia estar fazendo na rua. Na hora do
jantar não escapei das gracinhas da galera.
— A noite foi muito boa e eles perderam a hora — o Vítor falou isso como se eu não estivesse
presente.
— Mano, o que tu tá fazendo aqui? — eu não estava zangado com ele, só entrei no clima da
brincadeira — Você estuda à noite velho, matou aula só pra me perturbar?
— Claro doido, você acha mesmo que eu ia perder? — ele ria, mas depois ficou sério — Na
verdade eu perdi foi a hora velho, cheguei tarde demais pra ir pra faculdade. E tava um caco,
pra variar.
— Sem sacanagem Bruno, eu vi que você trabalhou até de madrugada, velho — o Henrique me
defendeu.
— E o Eric nem tava aqui, seus manés — falei a verdade — Você também fica acordado até
tarde, Rique?
— Tá foda cara, tenho tanta coisa pra estudar que tem hora que eu acho que vou pirar. São
muitas madrugadas perdidas.
— Cuidado que pira mesmo, velho. Eu mesmo acho que pirei, nunca me recuperei dos meus
tempos de universidade.
Eles riram, e até o Serginho que estava mais na dele se meteu na conversa.
— Isso explica muita coisa...
— Serginho, Serginho... — eu falei e ele deu uma risada, jogando a cabeça para trás de forma
engraçada. Foi ele quem cozinhou e estava muito bom, ele também mandava bem na cozinha.
Fiz hora lá na cozinha e depois no escritório e quando fui para o quarto, o Eric já estava lá,
usando um notebook que eu nem sabia que ele tinha. Acho que ficava sempre na mochila.
— Jantou não, velho? Você não come a comida do Sérgio, ele não come a sua comida... Isso tá
chato.
— Não é isso não, é que eu fiz um lanche na rua.
— Hum, saiu com alguém? — sentei perto dele na cama.

— Ciúmes? — ele me olhou divertido.

— Por enquanto não, só curiosidade mesmo.


— Hum, é que uma pessoa vive insistindo pra me conhecer, acabei aceitando.

— E...?
— E nada, só papo — ele desligou o note e colocou na mochila.
— Assédio?
— Normal — ele riu.

— Convencido. Fica aí e liga a TV, vou tomar um banho.


— Tá — ele se deitou na minha cama e ligou o aparelho, eu fui pro banheiro.
Naquela noite repetimos o ritual da noite anterior: carícias, toques quentes, porém limitados,
poucas palavras. E nossos corpos amanheciam bem próximos, cúmplices. Não vou negar que eu
vivia num estado de excitação extremo, sentia meu corpo febril o dia todo, tinha sonhos
eróticos fantasiosos e absurdos, tinha palpitações. Mas não queria o alívio, não naquele
momento, eu precisava daquela energia. Quando eu pudesse descansar, eu me permitiria o
gozo libertador, junto àquele estado de preguiça e letargia que o acompanhava.

Na sexta eu saí com a Larissa, fomos a um barzinho perto da casa dela. Conversamos, nos
beijamos, falamos da formatura dela que seria no começo do outro ano. Ela me disse também
que o Serginho, seu amigão que morava no meu apartamento estava de ficante novo e se
recusava a revelar a identidade do sujeito, até mesmo para ela. Fiquei pensando sobre isso
depois.
Se eu tivesse ficado em casa, na certa estaria sozinho, o Eric, aparentemente, tinha
compromissos todas as terças e sextas com o tal Nestor. Claro que eu tinha curiosidade de
saber de que se tratavam esses compromissos, mas preferi deixar quieto por um tempo. E
tinha outras coisas também, mas resolvi esperar o momento ideal.
Depois de deixar a Larissa em casa eu dei umas voltas na rua para espairecer e pensar numas
ideias que eu tinha.

Naquele fim de semana meu pequeno Gabriel não iria ficar comigo, pois a mãe dele ia visitar o
pai dela em outra cidade. Eu o deixei ir com a condição de que ele viajaria comigo para a casa
dos meus pais alguns dias depois.
Eu ia aproveitar o silêncio do meu apartamento para trabalhar nos meus projetos. Como o Eric
não trabalhava aos sábados, pedi que ele fosse fazer as compras. Dei o dinheiro a ele, mesmo
não sendo o nosso costume e ele não disse nada, aliás, ele nunca reclamava de nada. E dei a
chave do carro também. Ele demorou no supermercado, mas eu estava tão distraído no
escritório que quando reparei, ele já estava de volta.
Fui à cozinha e ele estava guardando as coisas, todo concentrado. Como ele sempre cozinhava
no meu lugar e arrumava tudo, eu ainda não tinha visto o interior dos armários depois que
tinha chegado ao meu apartamento: estavam super organizados.
— Você é maníaco, não é? — falei apontando pro armário, enquanto ele estava baixado.
— E você também é — ele disse sem parar o que fazia.
— Eu quero fazer umas coisas, mas preciso de você — me abaixei perto de onde ele estava.

Ele terminou de guardar as coisas, fechou as portas e ficou de joelhos me olhando ansioso.
— Faz tudo o que eu te pedir sem questionar?
— Só fala o que você quer... — o jeito que ele falava essas coisas fazia meu corpo tremer, a voz
dele tinha uma sensualidade latente.
— Quero que desligue o celular, feche as portas e janelas do nosso quarto...
— Sim... — ele continuava de joelhos.
— E quero que tire a roupa, fique apenas de cueca, preta de preferência.
— Tá, mas...
— E sem perguntas — levantei, peguei a mão dele e o puxei para cima.

Fui ao escritório e peguei algumas coisas, depois fui para o quarto. O Eric já estava lá, conforme
pedi, sentado na cama, quase nu.
Sem qualquer palavra, fui até ele e o movi mais para o meio da cama, depois peguei uma
venda preta que comprei especialmente para isso e cobri-lhe os olhos. Ele se deixava conduzir
e não oferecia qualquer resistência, tão submisso que se eu não me concentrasse poderia
perder o controle e partir pra cima dele, mordê-lo, possuí-lo de uma vez, mas eu precisava
pensar em outras coisas.
Lentamente comecei o trabalho, na barriga e no peito. Comprei uma caneta especial para não
incomoda-lo, vi que no começo ele ainda sentia cócegas, mas depois parece que se acostumou
e não se contorcia mais. Naquela superfície irregular e deliciosa eu passei a desenhar
calmamente, tentando não errar nem me entregar aos devaneios e sair do planejamento. As
linhas tinham que ser precisas, seguindo cálculos prévios, era um projeto que, se desse certo,
seria espetacular. As tatuagens dele ficaram perfeitas dentro do meu desenho, como se
fizessem parte dele. Depois virei-o de costas e ali passei um bom tempo, numa série de
detalhes mais complicados, até que ele cochilou. Demorei bastante tempo na tarefa,
misturando trabalho com prazer sem culpa nenhuma. Ele era a planilha perfeita, que aceitava
sem questionar, e uma inspiração sem limites, com suas formas deliciosas, macias. Era o tudo o
que eu precisava. Era delicioso fazer aquilo.
Depois comecei a fotografar, para isso eu precisava de uma luz forte que poderia incomodar os
seus olhos, mas ele estava protegido com a venda. Fui fotografando todos os detalhes e
ângulos, com uma precisão lenta, até que terminei imensamente satisfeito com o resultado. Eu
estava num estado de euforia suprema, suando frio, com palpitações, as mãos e as faces
quentes. Se alguém me visse naquela situação poderia jurar que eu estava drogado.
Ele já estava acordado por causa da mudança de posição para as fotos, mas permanecia
largado sobre a cama esperando que eu lhe dissesse o que fazer. Olhei aquela boca linda, que
ainda tinha pintinhas vermelhas em volta e me aproximei. Meu coração batia tão forte que eu
o ouvia através do silêncio daquele quarto. Instintivamente segurei-o pelos braços, como se ele
fosse fugir, e toquei com meus lábios aquela boca atrevida.
O que faz um beijo se tornar incrivelmente gostoso é a vontade que você está de fazer aquilo.
Não foi um beijo de encaixe perfeito, na verdade foi todo atrapalhado, a boca dele estava um
pouco seca, eu estava meio fora da cama, ele estava vendado, mas foi delicioso, a ponto de eu
não querer mais parar. Apenas de lábios, que foram ficando quentes, depois de língua, meio
com receio, depois sem pudor nenhum.
Eu sempre segurando os braços dele e ele entregue, submisso. Ainda naquela loucura eu desci
para o pescoço onde chupava e mordia, talvez de forma um pouco dolorosa, mas ele não
reclamava. Soltei os seus braços e alisei o peito, depois peguei um biquinho com os lábios,
fazendo-o endurecer. E sugava, sugava como se dali fosse sair algo que saciasse a minha sede. E
depois o outro e cada vez mais forte, até sentir que eu precisava de mais.

Me deitei sobre aquele corpo rabiscado e ele tirou a minha camisa, finalmente tomando a
iniciativa. Depois eu tirei a bermuda nem sei como, ficando apenas de cueca. Na posição de
flexão, eu roçava o meu corpo no dele, os dois quentes, suados e calados. Voltamos a nos
beijar, um beijo sôfrego, por causa dos movimentos do meu corpo sobre o dele, como se fosse
uma relação sexual. Me encaixei entre as pernas dele e continuei os movimentos desvairados e
quando senti que ele estava puxando a minha cueca para baixo, eu tentei ajudá-lo.
Enfim ficamos nus de verdade, permitindo que dois membros duros e quentes fossem
molhando o espaço entre as minhas pernas e as dele. Eles se esfregavam um no outro, uma
coisa louca e ali não dava mais, não tinha mais volta, estava doendo e ao mesmo tempo
gostoso. A fricção foi ficando mais vigorosa, mais urgente, mais absurda, era algo que eu não
queria que acabasse, mas que ao mesmo eu queria que saísse, até explodir num êxtase
frenético, longo, que me sugou todas as energias como um vampiro. Desabei sobre um corpo
suado e grudento. Estava esgotado.
Mas assim que parei os movimentos, as mãos dele seguram o meu quadril e me fizeram
continuar. Olhei o rosto dele e a boca estava contraída, mordendo os lábios, a respiração
ofegante, entrecortada por gemidos discretos. Ele também queria ir até o fim.

Puxei-o para mim, virando-me de costas sobre o colchão, coloquei-o sobre o meu corpo,
encaixado entre as minhas pernas e deixei que ele conduzisse os movimentos. Ele começou a
fazer como eu havia feito, friccionado nossas partes mais íntimas, agora molhadas por algo
viscoso, em movimentos cada vez mais rápidos e sincronizados. Como eu podia vê-lo, tomei o
seu rosto entre as mãos e o beijei de forma bruta, enfiando a língua na boca dele, e ele sugava
sem parar. Até que o corpo dele começou a tremer, como se estivesse sendo sacudido e ele
gemeu mais alto dentro da minha boca, sem soltar a minha língua. Senti um líquido quente
jorrar sobre meus pelos pubianos. Eu o apertava e o mantinha em movimento, mesmo quando
principiava a parar. Era mais uma seção de prazer que meu corpo me proporcionava. Fiz com
que ele soltasse a minha língua e abocanhei o pescoço, soltando-o apenas para gemer. Nunca
tinha sentido tido um prazer tão longo.
Aos poucos o êxtase desvairado foi dando lugar a uma calmaria, como aquela que vem após a
passagem de um furacão. Algumas sensações foram se manifestando: o esgotamento muscular,
os braços doloridos, a boca ardendo, os corpos grudentos com muito suor e sêmen derramados
também sobre a cama.
Soltei o Eric e ele se afastou um pouco alisando o pescoço, sua boca fez uma pequena careta.
Na certa eu exagerei na força e o pescoço dele ficaria marcado depois. Ele ameaçou de tirar a
venda, mas o contive a tempo.
— Não, não — minha voz estava cansada e falhada — é melhor que você não veja isso.
O corpo dele estava todo desenhado com uma tinta preta, que acabou borrando durante o ato
que acabamos de praticar. Fiquei olhando-o, tentando pensar no que tinha acontecido, mas a
minha mente estava vazia, não sabia dizer exatamente o que tinha sido aquilo, se tinha sido
sexo, ou se foi apenas uma pegação intensa. Só sei que foi gostoso, grudento e que ao tentar
me levantar, minhas pernas não obedeceram ao meu comando.
— Minhas pernas estão bambas — ri e ri como um retardado, sem conseguir me controlar —
eu não consigo me levantar.
— Então espera um pouco — a voz dele também estava fraca.
— Essa coisa está incomodando...
Ele fez uma careta. Rimos juntos.
Depois me levantei ainda fraco, tão fraco que meu corpo tremia. Peguei a mão do Eric e o
ajudei a levantar-se, e fomos para o banho. Liguei o chuveiro e delicadamente levei-o para
debaixo da água morna, fui passando uma esponja no corpo dele, começando pelas costas. Ele
ainda estava vendado.
— Espero que isso não seja um trator ou um caminhão de lixo — ele falou isso e riu de um
jeito gostoso.

— Hum, quem sabe? Mas saiba que você parece que foi atropelado por um — ri também.
Quando saiu toda a tinta da caneta, comecei a tirar a venda e ele concluiu. Me olhou e sorriu,
os olhos dele estavam mais claros que o normal. Depois aumentou o volume de água do
chuveiro e começou a tomar banho sozinho.
Passei a observa-lo, o corpo todo nu. Era branquinho, de formas agradáveis, não era um
modelo fitness, mas era macio e delicado. Não me sentia envergonhado por estar assim tão
perto e ele também me observava. Apesar da intimidade exposta, estávamos calmos. Ele saiu
do chuveiro, pegou uma toalha que estava ali no box e começou a se enxugar, um pouco mais
sério.

— Acabou? — perguntou tranquilo.


— Não, tá bem longe disso — eu respondi ainda embaixo do chuveiro — eu quero mais, muito
mais. Eu preciso de você...
Ele permaneceu ali no box enquanto eu terminava o banho, depois me deu a toalha. Ao pega-
la, me abaixei um pouco, segurei a mão dele e a beijei, ele me olhava nos olhos.
— Não quero ter que te obrigar Eric, então espero que tenha curtido também.
Ele apenas sorriu, mas foi um sorriso provocante, de quem estava brincando com fogo. Era
sensual ele mordendo os lábios de leve e me olhando.
— Cuidado com essa sensualidade que você tem garoto, isso pode te prejudicar. Eu não sei o
meu limite, eu já disse.

— Pode me usar, se te dá prazer...


— Você me instiga, isso é irresponsável da sua parte... — puxei-o mais para mim — Você não
sabe o que me dá prazer... — comecei a sugar um mamilo dele.
— Eu sei que você quer me escravizar — ele falava calmo, como se isso fosse a coisa mais
normal do mundo.
— E você quer me servir... — suguei o outro até os dois ficarem durinhos e rosados — Eu tô
com muita fome.
— É porque são três da tarde. Fala o que você quer que eu faço pra você — a voz baixa e rouca
dele, falsamente submissa, era como um vinho que me embriagava.
— Veste só uma cueca e vai cozinhar pra mim.
— Solta isso aí que eu vou.
Olhei-o nos olhos novamente. Eu estava quase doido e ele parecia sentir um prazer imenso
nisso.

Enquanto ele preparava tudo o que eu tinha pedido, eu o observava pensando que talvez eu já
tivesse ultrapassado o limite da insanidade. Ele calado, cozinhando, lavando, arrumando,
servindo, quase nu, provocante e eu pensando em pôr uma corrente em seu tornozelo
esquerdo. Ri sozinho.

— Isso tá pior do que eu imaginava — falei apenas para mim.


IX

Após o almoço tardio, nos deitamos na cama cansados e silenciosos. Dormi logo. Acordei com
meu celular tocando no criado do meu lado, olhei e era a Larissa. Fiquei olhando para a tela
por um tempo sem saber o que fazer.

— Por que não atende logo? — o Eric falou com uma voz de sono que não demonstrava
qualquer irritação.
Atendi. Ela disse que queria sair um pouco, ir não sei aonde, que tinha tempo que a gente não
fazia nada legal, e tudo mais. Bocejei.
— Ah Lari, tô tão cansado, tava até dormindo — não menti.

— Ah, vou aí então pra gente ver uns filmes, tô sem fazer nada em casa. A barra tá limpa?
Procurei pelo Eric, ele tinha se levantado e estava se arrumando. O problema é que ele fazia
tudo muito rápido, em segundos estava saindo do quarto.
— Lari, então a gente sai um pouco, mas nada muito demorado porque eu não quero dormir
tarde, tudo bem? — ela pareceu ficar feliz.
Fui me vestir, tentando ser tão objetivo quanto o Eric com suas poucas peças de roupa
perfeitamente combinadas. Não fui atrás dele.
Saí com a Larissa e alguns amigos, teria sido até divertido se eu não tivesse bocejado tanto.
Meu amigo Ramon estava lá e ria da minha preguiça.
— Mano, tu tava assistindo o quê lá naquele apartamento solitário, hein? — ele perguntou
maldosamente.

Não respondi, ao invés disso bocejei novamente.


Fui embora um pouco tarde e ainda levei o Ramon, pois ele morava perto e estava bem
bêbado. Depois fui dormir, ou quase hibernar. Quando acordei já era a tarde de domingo, os
três Paulos já estavam no apartamento e conversavam animadamente na sala. Notei que o Eric
não estava em lugar nenhum, mas não me preocupei, já estava me acostumando com aqueles
ninjas dele.
Tomei um banho para espantar a preguiça e fui pra cozinha fazer um lanche, pois estava quase
morto de fome. Enquanto comia conversando bobagens com os caras eu olhava as mensagens
no meu celular. Notei que tinha uma mensagem da Jéssica dizendo que já tinha chegado de
viagem e que o meu filho estava falando de mim. Naquele momento eu senti uma saudade
muito grande do meu pequeno, tinha que ir vê-lo. Me arrumei rapidamente para sair.
Quando estava de saída, o Vítor me pediu para espera-lo, pois estava saindo também e a gente
desceu junto. Nesse momento também a Larissa ligou me convidando para uma social
qualquer.

— Lari, tô indo ver meu filhote, ok? — avisei logo.


— Ah, amor, poxa, te liguei mais cedo e você nem atendeu.
Suspirei. Compromissos, como eles estavam me irritando!

— Olha, você se lembra do que a gente conversou um dia desses?


— Sim, eu sei, mas tudo bem, você que sabe. Só pensa direitinho no que você está fazendo, ok?
— Lari, a gente conversa essa semana, tá bom? Quarta-feira, depois do trabalho, pra resolver.
— Tá bom, vamos ver isso, Tchau.

Desliguei aborrecido, o Vítor me olhava. Sorri pra ele, sabendo que ele tinha percebido o
assunto da ligação.
— Tenso, não é? — ele disse com um sorriso contido.
— Sim, mas nesse caso eu é que sou o problema, entende? Tô me cansando...
— Velho, quer um conselho? Sai um pouco, apronta um pouco, depois você vê esse lance aí.
Você é muito certinho.
— Isso, me leva pro mau caminho!
Rimos.

Fiquei um bom tempo com meu filhote, lá na casa da Jéssica mesmo. A mãe dela gostava de
mim e o Gabriel estava cansado, tanto que dormiu no chão do quarto, enquanto brincava
comigo. Fui embora feliz.
Quando cheguei em casa, tudo estava muito silencioso. Não gostei. A cozinha estava mal
arrumada denunciando que o seu dono ainda não tinha retornado, e isso começou a me
preocupar.
Fui andando devagar em direção ao corredor. Algo me incomodava, me fazendo ficar alerta, se
eu fosse um cachorro, provavelmente estaria com as orelhas levantadas. Meu quarto era a
primeira porta do corredor e a segunda, era o do Paulo Sérgio. Apesar das portas serem
próximas, os quartos ficavam separados pelos banheiros, a construção foi planejada de forma
que a suíte principal não fosse incomodada por barulhos de ambientes vizinhos.
Ali entre as duas portas, um pequeno suspiro me chamou a atenção. Em qualquer outro tempo
ele passaria despercebido, mas nesse momento. Não que eu tivesse sexto sentido, ou
qualquer poder sobrenatural, mas eu não deixaria de notar algo fora da rotina.

Quando entendi, eu ri da situação. Eu nunca sequer imaginaria algo nesse sentido até algumas
semanas antes, mas ali as coisas eram diferentes. Entrei no meu quarto e esperei. Cinco
minutos depois, ou menos, o barulho da fechadura me despertou ainda mais os sentidos e eu
espreitei. Um Paulo Henrique despenteado, descalço, sem camisa e suado saiu do quarto do
Serginho e entrou rapidamente no banheiro do corredor. Vi-o pelas costas e ele não olhou para
trás.
Fechei a porta com cuidado e deitei na minha cama, olhei as horas e vi que ainda era cedo.
Estava novamente naquele estado de euforia, a curiosidade tinha aumentado a minha
excitação e meu coração batia descompassado. Levantei em silêncio e entrei no quarto do
Serginho sem pensar e sem bater, ele estava no banho. Havia lençóis e outras coisas emboladas
no chão e a cama estava arrumada. Deitei nela e esperei tranquilamente, até que ele saiu.
Quando me viu ele se assustou e quase gritou, a cor do rosto dele mudou.
— Cara, quer me matar de susto? Por que você está aí na minha cama?
Olhei para ele com curiosidade. Baixo, malhado, moreno claro, mas com mamilos bem escuros
e arrepiados, com algumas gotas de água ainda. Da cintura para baixo, apenas uma toalha
branca.
— Vim cobrar o aluguel — falei de forma marota, analisando o corpo dele e ele percebeu.
Ele tinha atrasado o pagamento novamente, isso eu já tinha conferido. E conhecimento é
poder. Ele todo nervoso vestiu um short escuro enquanto eu me divertia com aquilo, deitado
na cama dele com a cabeça sobre minhas mãos entrelaçadas.
— Cara, isso não poderia ficar para amanhã? — ele tentava se recompor.
— Por que amanhã? — me levantei e me aproximei dele, que recuou — Ainda é cedo, você não
acha?
— Mas eu estou muito cansado, amanhã eu juro que vejo isso pra você. É sério, eu tive uma
semana cheia e acabei me esquecendo de transferir o dinheiro, mas não vou esquecer amanhã,
prometo.
— Eu tenho certeza que não. E por que tá tão cansado? — eu ia me aproximando e ele
recuando.
Frente a frente ele precisava olhar para cima pra me encarar, pois tínhamos uma diferença de
altura considerável. Toquei-o no ombro e depois desci a mão pelo peito. Ele estava um pouco
nervoso, mas não recuava mais. Fiz a mesma coisa com a outra mão, até que deslizei as duas
pelo peito e barriga dele e vi que ele ficou excitado. Peguei os mamilos dele e notei que eram
um pouco exagerados e escuros. Manipulei os dois ao mesmo tempo deixando-os bicudos,
enquanto ele olhava meio vazio algum ponto na minha camisa, respirando meio
descompassado, mas sem reagir voluntariamente.
— O que tá fazendo? — Serginho perguntou numa voz débil enquanto eu o encaminhava de
costas para a cama.

Não respondi. Sem usar nenhuma força o fiz se deitar na cama e me deitei sobre ele sem me
preocupar com o meu peso. Peguei um biquinho com a boca, chupei e apertei o outro, depois
inverti as posições, as protuberâncias cresciam exageradamente. Ele correspondia apertando a
minha cabeça e os meus ombros, gemia forte enquanto eu o sugava cada vez mais, ele abria as
pernas me imprensando, apertando algo muito duro na minha barriga. Até que ele começou a
se mover, como se acordasse de um sonho. Bateu nos meus ombros e me empurrou pra fora
da cama.
— Tá louco, seu nojento! — ele falou alto e eu ri alto também, fazendo-o se irritar ainda mais.
Ele foi até a porta e abriu-a com força.

— Saia!
Calmante eu fui até a porta, mas não saí, encostei-me ao batente.
— Se acalma aí garotinha indefesa, não vou fazer nada com você, apenas me deu um tesão
desgraçado te ver dando pro meu amigo nerd. E não vou querer de novo, você perdeu a sua
oportunidade!
Serginho arregalou os olhos, mas logo se recompôs.
— Você não tem nada com isso, e ainda tem namorada. Você é muito escroto, isso sim, um
enrustido que se esconde...
— Cala a boquinha – o interrompi, pondo o dedo nos lábios dele — eu não tenho nada com
isso e você não tem nada com isso, estamos quites. E também não tô a fim de você, só gostei
disso aqui — eu ia pegar, mas ele bateu na minha mão — não se faça de ofendido que você
tava gostando!
— Idiota! — os olhos dele brilhavam de ódio.
Ri de forma insana e vi a raiva dele aumentando. Entrei no meu quarto e deixei-o ali na porta
embasbacado.
Tomei banho e ali acabei me aliviando de forma solitária, pensando não nele, mas na situação
em si. Ele definitivamente não me atraía, apenas o Eric me provocava os sentidos. Talvez o
Serginho me trouxesse aborrecimentos mais tarde, mas eu não tava nem aí.
Eric... Eu estava preocupado, não queria admitir, mas a demora dele tava me deixando
nervoso. Tinha receio de ligar e parecer um idiota apaixonado.
—Ah, dane-se! — falei — Provavelmente ele nem vai atender, deve estar ocupado com alguma
coisa misteriosa.
Liguei. No segundo toque ele atendeu.

— Sentiu saudades, foi? — ele estava com uma voz sonolenta e um tom sarcástico.

— Estou morrendo — respondi no mesmo tom — só me diz uma coisa: você tá bem?
— Já posso voltar? — ele ignorou a minha pergunta.

— Onde você está? — me senti estranho.


— Ei, não se preocupe, eu tô na casa do meu irmão. É um pouco longe.
Pelo visto ele tinha certeza de que eu queria busca-lo.
— Me manda a localização.

— Bruno, não precisa, tá de boa.


— Já tô saindo Eric, para de me enrolar.
Ele mandou a localização e eu saí com meu carro. De fato era longe, na verdade era numa
cidade vizinha. Por sorte, a maior parte do caminho era de rodovia e o endereço era de fácil
localização, um bonito prédio de apartamentos.
Avistei-o na portaria com a sua mochila companheira e ao seu lado um homem alto e magro,
muito branco. Ao me ver, ele acenou e se despediu do cara com um abraço um pouco
demorado e com beijo no rosto. Pisquei para ter certeza de que estava enxergando bem. Ele
entrou no carro um pouco tímido.
— Oi — uma voz baixa.
— Oi, você sumiu, tive que vir te buscar — pus o carro em movimento, um pouco aborrecido.

— Ah, tá tudo bem, eu venho mesmo todo fim de semana. Eu ia amanhã cedo.
— Mas agora eu tô viciado, você sabe, não vou suportar a abstinência.
Ele deu uma risada.
— Mentira, você se vira, desconta na namorada.
— Não, não, não posso fazer isso, vou resolver esse assunto em breve. Já tentei, na verdade,
mas agora é definitivo.
— Duvido, ela vai insistir — disse ele, olhando para a estrada.
Eu também achava, mas não comentei.
— Quem é o grandão lá? — perguntei.
— O amor da minha vida, tá com ciúmes? — ele falou sério, mas depois riu.

— Beija seu irmão na boca? Que nojento!

Ele riu mais ainda.


— Claro que não, só no rosto. E não tem nada de nojento, somos muitos próximos.

— Hum, ele te criou né, legal.


— Sim, e a gente conversa muito.
— Falou com ele sobre mim?
— Claro!

— Mentira... — eu me concentrava no trânsito, mas colocava a mão na perna dele, que


deixava.
— Sério, eu conto tudo pra ele.
— Tudo mesmo? — o olhei desconfiado.
— Não entro em “certos” detalhes, mas falo do que tá acontecendo — ele fez aspas com as
mãos.
— E ele aprova o que você faz?
— Ele me conhece bem — uma resposta inteligente.
Não entrei demais no assunto, preferi esperar a hora certa. Quando chegamos no
apartamento, o Eric foi para o quarto e eu fui à cozinha pegar uma fruta, estava com uma
fomezinha.

Ali vi que a porta que dava na área de serviços estava aberta e o Serginho estava colocando as
roupas de cama pra lavar. Olhei as horas: 23h30min.
— Hum, então foi assim... — pensei.

No quarto deitei ao lado do Eric, mas sem toca-lo, fiquei apenas próximo. Ele mexia no celular
em silêncio.
— Seu amigo Serginho tá colocando roupa de cama pra lavar nesse momento.
— Sério? — ele riu — É uma hora incomum.
— Sabia que ele e o Paulo Henrique estão se pegando?
— Sim, mas não é namoro nem nada, acho que só estão juntando a fome com a vontade de
comer.

Filho da mãe, ele sabia!


— Também achei pouco romântica aquela foda deles — comentei pensativo.
— Você viu? — o Eric me olhou de lado com uma expressão curiosa.

— Não, mas ouvi gemidos no quarto do Serginho e depois vi o Rique sair de lá suado e
cansado. Me deu até um tesão.
Ele riu e me olhou com cara de safado.
— Ui, e aí?

— Bom, aí eu resolvi que era uma boa hora pra cobrar o aluguel do Serginho.
Eric arregalou os olhos e ficou me olhando de boca aberta. Depois riu alto e eu ri também.
— E ele pagou?
— Ele bem que queria pagar, mas é um cara legal, não ia ficar com o namorado da amiga. Só
deixou dar uma bolinada nos peitinhos.
— Você gosta disso, né? Seu safado! — e me deu um tapa no braço.
— Sei lá, achei foi esquisito. Os dele são escurinhos e grandes! — passei as mãos pelo rosto —
Até poucos dias eu nunca repararia nesses detalhes. Cruz credo!
Ele pegou a minha mão e segurou. Puxei-o mais para mim, nos abraçamos, mas não avançamos
em nada, apenas dormimos. Era daquele corpo que eu gostava.

A semana seguinte passou voando. No trabalho meu humor pendia entre dois extremos: o
prazer de estar superando meus limites criativos e o desprazer de ter que cumprir tarefas
estafantes e inúteis que meus superiores insistiam em me incumbir. Um dos maiores objetivos
da minha vida era reduzir o número de superiores no meu trabalho para poder trabalhar feliz.
Na tarde de segunda-feira conferi meu extrato bancário num aplicativo do celular e vi que
tinha um depósito feito por uma tal Maria Luíza, no valor exato do débito do Serginho. Acho
que ele tratou de pedir ajuda, provavelmente à mamãe, para não ficar em dívida comigo.
Também quase não o vi, ou eu não estava em casa ou ele estava me evitando, ou as duas
coisas simultaneamente.
Esqueci completamente da conversa que eu tinha marcado com a Larissa na quarta-feira, só me
lembrei na quinta e mandei uma mensagem pra ela pedindo desculpas. Ela não respondeu e eu
não insisti.
Minha fonte de alívio do stress diário era o corpo do Eric quentinho na minha cama, mas
naqueles dias ele não estava muito bem. Quando ele chegou do seu compromisso de terça-
feira, já de madrugada, estava espirrando e com um pouco de tosse. Carregava um frasco de
soro fisiológico e tinha pintinhas em volta da boca.
— O que é isso? — passei um dedo nos lábios dele na quarta pela manhã. Ele não tinha ido
para o curso.

— Alergia. Não pressione senão isso começa a coçar e piora — ele tirou a minha mão.
— Seus olhos também, né...
— É... — ele respirou fundo — Vou ter que tomar uma injeção. Odeio!
Ri e dei um beijo no cabelo dele. Pensei um pouco.

— Ambiente fechado?
— Pois é — ele disse apenas.
Saí do quarto e fui tomar o café que o Vítor fez, acompanhado de pão doce de padaria, já que
o meu chef particular estava de cama.

No final da tarde o Eric me mandou uma mensagem no Whats perguntando se o irmão poderia
entrar no meu quarto.
— Claro que pode, sem problemas — respondi, mas corri pra casa na mesma hora.
Finalmente conheci o tal Evander, o único e querido irmão do Eric. Ele estava sentado na
beirada cama menor, passando a mão nos cabelos do irmão. Levantou-se para me
cumprimentar quando eu cheguei.
— Desculpe invadir assim, mas queria deixar o Eric descansando — ele disse.
Ele era quase da minha altura, mais magro e bem vestido, tinha uma barba rala e olhos azul-
claros já com pequenas rugas ao redor. Ele se parecia e agia como um pai. A maior semelhança
entre os dois era a voz, mas havia outras menos perceptíveis.
— Ah, tudo bem, também fiquei preocupado. Ele tomou a tal injeção?
— Sim, acho que agora ele vai melhorar. O Eric é muito sensível à poeira, fumaça, fungos, essas
coisas. E não dá pra limpar todo lugar que ele entra — e se sentou novamente.
Olhei o Eric deitado na própria cama. Ele tinha um meio sorriso nos lábios, mas estava pálido e
com os olhos vermelhos, mais irritados do que se fosse apenas uma alergia. Achei que ele tinha
chorado.
— Fique mais tempo aí com ele – falei já me dirigindo à porta — qualquer coisa me chame no
escritório, ali perto da sala.

O homem ia falar alguma coisa, mas eu já tinha saído. A proximidade dos dois era realmente
grande, o que despertava um sentimento diferente, sei lá, talvez fosse ciúmes.
Algum tempo depois o vi passando pela sala e fui falar com ele.

— O Eric tá bem?
— Tá sim, tá dormindo.
— Hum, os olhos dele estavam muito irritados, não é mesmo?
O irmão protetor me olhou rapidamente, mas desviou o olhar logo a seguir.

— Ah sim, é um sintoma da alergia dele. Daqui a pouco ele está bem, não se preocupe.
E foi embora. Fui ao quarto e o Eric estava dormindo tranquilamente, parecia respirar melhor.
X

Na quinta-feira o Eric estava normal, sem nenhum sintoma de alergia. Jantamos só nós dois
porque os outros tinham saído, ficamos um tempo na sala assistindo televisão e depois fomos
pro quarto. Ele ia tirando a camisa pra se deitar quando eu cheguei mais perto e passei as
mãos pelo peito dele, apertando os mamilos. Ele ficou parado, só olhando, e terminou de tirar
a camisa.
— Você gosta bastante disso, né... — ele falou bem baixinho.
— Aham — falei sem olhar pra ele.
— Mas você tem vergonha de chupar — ele disse meio risonho, olhei pra ele, que passou a
mão nos meus cabelos.
— Tenho?
— Tem sim. Vai, pode chupar, é gostoso. Ou você prefere os do Serginho?
— Hã? Para com isso, cara. Me dá um tesão da porra.
Ele riu. Em pé mesmo, me abaixei até a minha boca alcançar aquelas coisinhas durinhas,
rosadas e deliciosas. Ele me fazia carinho no rosto e nos cabelos.
— Vem cá... — ele disse e me puxou pela mão, se deitando na cama, bem no meio.
Me deitei sobre ele, delicadamente, e comecei a passar a língua no peito dele, que se contorcia
de prazer e gemia baixinho. Ele tinha razão, eu adorava fazer aquilo, mas morria de vergonha.
— Apaga a luz, vai — pedi.

— Bobo — ele deu uma risada e apagou.


Fiquei ali chupando devagar em cima dele, depois ele disse que eu era pesado, e nós ficamos
meio de lado. Fiquei agarrado nele, me concentrando em um biquinho só até que senti que ele
dormiu. Peguei meu celular para ver as horas e com a luz do aparelho notei que um mamilo
estava muito mais bicudo que o outro. Fiquei maluco com aquilo e não consegui dormir.
Fui ao escritório pegar um bloco que eu usava para desenhar e voltei pro quarto, acendi uma
arandela de luz fraca na parede e comecei a rabiscar. Notei que os mamilos dele estavam
murchinhos de novo e eu os queria durinhos, então molhei o polegar e o indicador na minha
boca e fui pegando-os devagar para não acordar o garoto. Era delicioso fazer aquilo com ele
dormindo. Mas não teve jeito, ele abriu os olhos. Sorriu de um jeito preguiçoso e colocou a
mão esquerda perto do rosto, o polegar tocando nos lábios entreabertos.
— Fica assim, tá? Tá lindo! — sentei na beirada da cama.
E fiquei desenhando, tentando enxergar bem naquela meia luz e meus olhos doíam, mas eu
não podia perder aquela cena perfeita. De vez em quando eu tocava o peito dele para manter
os mamilos arrepiados e ele sorria estreitando os olhos, um sorriso tão gostoso que me dava
vontade de mordê-lo todinho. Demorei um pouquinho pra terminar, depois fechei o bloco e
guardei numa gaveta do criado. Não queria que ele visse antes da hora.
Me levantei e fiquei olhando para ele, que me olhava nos olhos e respirava descompassado,
esperando que eu fizesse alguma coisa. Ele sempre dizia pra eu fazer o que eu quisesse, e não
o contrário. Eu não podia pedir, se eu pedisse ele dizia que não, era louco aquilo.
Deitei na cama quase em cima dele, ainda vestido. Lambi o rosto, o pescoço e o ombro dele.
Analisando friamente, aquilo devia ser até nojento, mas na hora eu queria. Ele ficava
quietinho, sensual, numa passividade impressionante.
Mordi o pescoço dele, nem sei que força eu empreguei, ele apenas gemeu baixinho. Desci um
pouco mais e mordi o peito, devagar. Dava vontade de morder mais e mais. Fui pra barriga,
depois pras coxas, não sem passar perto do pênis dele, duro e molhado na cueca. Não quis
tocar ali naquele momento.
Virei-o de costas e lambi toda a extensão, de cima até embaixo no cóccix. Ele se contorcia lento
e gemia de forma quase inaudível. Comecei a morder ali também, tentando não passar dos
limites do suportável. Depois me deitei por cima dele, os meus braços segurando os braços
dele (aquilo era instintivo, não sei por que) e mordendo o pescoço e a nuca dele. Naturalmente
nossos corpos foram se encaixando e sem mesmo planejar eu comecei a pressionar meu
quadril contra a bunda dele, em movimentos ritmados.
— Tem certeza? — ele perguntou numa voz abafada pelo travesseiro.
— Não — falei suspirando — mas é difícil pensar com você embaixo de mim desse jeito.

Parei os movimentos, mas sem sair de cima, fiquei cheirando os cabelos dele.
— Sabia que você é pesado? — o Eric falou meio ofegante, eu ri e saí pro lado, ficando de
barriga para cima.
— Como a gente vai dormir, hein?
— Se vira aí! — ele riu e foi pro banheiro.

Na sexta à tarde, quando eu cheguei do trabalho, o Eric estava novamente com os olhos
vermelhos. Ele estava sentado no chão da sacada do quarto, abraçado às próprias pernas e
olhando perdido através do vidro. Me sentei ao lado dele e fiquei calado, depois peguei a mão
dele e fiz um carinho. Ele deu um sorriso triste.
— Me diz o que há de errado contigo...
— Ah, nada demais, só estou desempregado de novo — ele balançou a cabeça, rindo
debilmente.

— Ei, e pra quê esse sarcasmo?


Ele suspirou e tentou tirar a mão da minha, mas não permiti.
— A forma com que essas coisas me acontecem... Eu só queria um pouco de paz... — Eric falava
mais para si mesmo, sem olhar para mim.
Segurando a mão fria eu pensei por uns minutos, depois o olhei. Lembrei que ele estudava pela
manhã.
— Qual o preço de poder chegar ao trabalho mais tarde que os outros colegas?
— Alto. Intrigas e mais intrigas, até não poder mais.

— Seu patrão te cobrava algum tipo de “favor”? — ele puxou a mão rapidamente.
— Patroa. Não, nada disso, ela apenas me ajudava a conciliar o curso com o trabalho, eu podia
chegar na hora de servir porque eu era rápido e tudo mais, mas...
— Sim? — o encorajei a continuar falando.
— Umas mulheres que trabalham lá se sentiram “desvalorizadas” com os meus “privilégios”. No
fim minha patroa não tinha o que fazer, ela bem que tentou. Minha vida é uma droga, cara!
— Ei, calma! Você consegue alguma coisa.
— Eu tô calmo, tem a boate, vou ter que me virar lá por enquanto. E lá também não é fácil! —
ele continuava olhando pro nada.

— Ambiente fechado com fumaça? — perguntei cautelosamente.


— Também...
— Mas só duas vezes na semana?
— Posso ir mais, se quiser. Lá eu também tenho “privilégios” — fez aspas e revirou os olhos.
— E então, qual é o problema?
— Problema? Nenhum problema.
O garoto era cabeça dura, mas eu ia dar uma vista de olhos naquilo tudo. Comecei a me erguer
do chão, mas parei e voltei a olha-lo.
— Eric, me diga uma coisa... A sua patroa, a do restaurante...
— Sim? — ele perguntou mais com o erguer de sobrancelha do que com a voz.
— Chegaram a sair, tipo, se encontrar fora do trabalho?

— Hã? Claro que não, que ideia!

Fiquei pensativo com essa negativa veemente dele. Ele foi pro banho e eu fui pra cozinha. Eu
pensava melhor abrindo a minha geladeira.

— Me diz aí onde você trabalha — falei quando vi que ele ia sair com aquela roupa preta.
— Ah, sim — ele me falou o nome do local e a direção — Pretende ir lá?
— Preciso me divertir — pisquei para ele, que riu.

— Talvez você não goste, digamos, do ambiente.


— Quem sabe? — entendi o recado, ou achei que tivesse entendido.
Depois que ele saiu eu liguei pra Larissa, que me atendeu logo no primeiro toque.
— Ah, achei que não fosse ligar mais — a voz dela demonstrava uma falta de paciência.
— Eu mandei mensagem, você que não respondeu...
— Ah, por favor, Bruno! Mensagem? Quanta consideração!
— Tudo bem então, se não quer conversar... — eu estava na minha tranquilidade habitual.
— Olha — ela falou mais calma – vem aqui em casa, a gente conversa melhor.

— Vou passar aí daqui a pouco — senti que ela suspirou do outro lado da linha.
Mas quando cheguei à casa dela, eu tomei até um susto. Ao invés de uma conversa discreta a
dois para resolver os problemas, havia uma comemoração qualquer, era aniversário de alguém.
Os pais dela vieram conversar comigo, alguns amigos também. Aquilo não estava ajudando.
— Oi, você demorou — ela falou animada e veio me abraçar.
— Não, não demorei — falei sério e não sorri.
— Ei, calma, tá tudo bem. É o aniversário da minha avó, não te falei?
— Não me recordo.
Lembrei do aniversário da minha própria avó e uma luz de alerta se acendeu na minha cabeça.
Talvez a Larissa já soubesse, já que minha mãe costumava ligar pra ela, mas naquela festa eu
pretendia levar apenas o meu filho.
— Você anda tão aéreo, Bruno — ela riu e deu um tapinha na minha cabeça — divirta-se com a
galera aí enquanto eu vou ajudar lá dentro. Depois a gente conversa, tá?

Ela me deu um beijo no rosto e saiu. Eu sentei numa cadeira e comi alguma coisa que me
serviram, mas em menos de dez minutos eu vazei dali, sem dar satisfação a ninguém.

O endereço que o Eric me deu era bem longe daquele bar onde ele tinha ido com o tal do
Nestor dias antes. Passei devagar em frente ao local e analisei, era do tipo que só encontra
quem sabe o que está procurando, não tinha nenhuma placa de identificação. Conferi a hora
na tela do carro e resolvi procurar um caixa eletrônico, já que parecia ser um daqueles
estabelecimentos caros que não aceitam cartões. Em pouco tempo retornei e estacionei um
pouco antes daquilo que me pareceu ser a entrada.

Tudo era muito discreto e vigiado. Já na portaria fui informado sobre as modalidades de
entrada, uma mais cara que a outra. Comprei a mais cara para ver o que acontecia. Diferente
das outras boates “normais” que eu já tinha ido, aquela funcionava bem cedo. Havia gente de
todo tipo, a maioria homens e um palco onde algumas garotas dançavam, mas nada vulgar
demais. Não tinha barulho em excesso, nem estava muito lotado, na verdade era bem
confortável.
Eu já esperava por esse tipo de local, mas me surpreendi um pouco, achei que seria mais
“temático”. Vi que além do palco, o bar também chamava muito a atenção. Uma infinidade de
luzes, taças, garrafas e alguns rapazes jovens, entre eles o meu companheiro de cama. Ele
estava lá trabalhando. Bartender.
Fiquei ali meio perdido, sozinho, apenas observando. De vez em quando alguma garota
dançava olhando para mim, mas eu estava tranquilo, apenas sorria e desviava o olhar. Vi que
um homem circulava no ambiente conversando com alguns clientes, ora se sentava a alguma
mesa, ora apenas cumprimentava alguém. Reconheci o sujeito na hora. Renato.
Fomos apresentados numa festa da empresa uma vez e um colega me disse que esse Renato
tinha um motel e era sócio em algumas boates, mas não esperava que aquela fosse uma delas.
Soube também que ele chegou a ser preso certa vez por suspeita de usar a conta do motel para
fazer lavagem de dinheiro. Mas estava ali firme e forte trabalhando honestamente. Forte
mesmo. Era um cara alto, muito musculoso (até exagerado) com uma camisa própria para
destacar os músculos dos seus braços e peito, cheio de tatuagens, cordão de ouro estilo
ostentação, cabelos claros muito curtos e olhos claros também. Ele tinha um sotaque meio
nortista, eu acho.
— Boa noite! Bruno, o homem das máquinas e motores! Como vai? — ele me cumprimentou —
Primeira vez que vem?
— É sim, tava de bobeira.
Ele me conduziu até uma mesa, chamou um garçom para servir.

— Claro, claro, mas vamos ficar mais à vontade, senta aqui e aproveite bem a noite — me
instalou num bom local e saiu conversando com alguém.
Fiquei ali por quase duas horas sozinho, bebendo e observando, já estava cansado. O Renato
voltou, sempre cumprimentando as pessoas e veio falar comigo.

— Grande Bruno, tá sendo bem servido?


Sorri pra ele, acenei afirmativamente e ele sentou-se à minha frente.
— Eu tô tentando me divertir, minha namorada terminou comigo, tô meio solitário — falei
olhando para a taça.
— Entendo — o Renato se aproximou e falou em tom de confidência — o que achou do
serviço? É terceirizado, mas pode me dizer se não gostou. A opinião do cliente é muito
importante pra mim.
— Eu sei — sorri por detrás da minha taça, sem olhar para ele — Gostei, é discreto, não ficam
abordando a gente, mas...
— Sim? Sem coragem? Só aponta que eu facilito pra você.
Eu ri pra ele, olhei para as luzes do bar e alonguei os músculos dos braços e pernas. Depois
voltei a olhar a taça reluzente na minha mão.
— Tô meio louco hoje velho, acho que bebi demais, não tô pra mulher... — continuei.
Ele era experiente no ramo, com certeza sabia quando o cliente queria algo e não tinha
coragem de falar. Ele tocou no meu braço e falou ainda mais baixo.

— Ali, à direita do palco, já viu? — discretamente também tinha os “garotos” — É um pouco


tarde, só tem dois, mas se fosse mais cedo...
Na verdade não era tão tarde, mas acho que ali a coisa começava cedo.
— Não, não... — bebi mais do meu copo, sorrindo — No bar, o branquinho...
O Renato riu alto.
— O bartender? Há há há, meu novato faz sucesso, mas ele não atende assim. Não é um dos
“garotos”, entende?
— Ah, que pena! – continuei de bom humor — Mas nem com uma boa proposta? — consegui
falar olhando para ele.
— Vou ficar te devendo essa, Brunão. O garoto é simpático, gostosinho, mas faz carinha de anjo
e não libera. Mas não tô dizendo que ele é santo, ele é do tipo que se insinua e dá linha na
pipa, tá ligado? Acho que ele quer alguém pra bancar, sei lá, quer ser de “luxo”.

Eu ri muito, tanto que lágrimas escorreram pelo meu rosto. Um garçom serviu mais bebidas pra
mim e pro Renato e ele ficou bebendo e me olhando.
— Eu conheço esse garoto, ele alugou um quarto comigo faz pouco tempo. Tô parado nele, sei
lá — continuei rindo, mais calmo.

Renato ficou pensativo, olhando pro copo. Depois olhou para mim, os olhos claros estavam
mais astutos.
— Investigando, engenheiro?
— Não, eu tô perseguindo mesmo. Esse garoto é... Viciante, é isso! Tô viciado nele.
Ele riu.

— Tá pegando? Porque tem muita gente que quer pegar aquela delicinha por aqui, até o
Renatão. Eu gosto de provar a mercadoria antes de oferecer aos clientes.
— Só dei uns amassos, eu nunca peguei homem não, pô.
— Ah, larga de ser lerdo e come logo. E se quer só pra você trata de amarrar em casa, meu
chegado, porque o moleque tem uma cara de safado!
Eu ri alto, já tava pra lá de Bagdá. E ainda tava bebendo mais.
— Ele é novo por aqui?
— É sim. Ele tava em outro bar que eu tenho no centro e meu gerente mandou ele pra cá. Ele é
criativo, faz uns truques interessantes com as duas mãos, dizem que é ambidestro, sei lá. O
pessoal gosta.

Isso esclarecia certas coisas na minha cabeça.


— E você gosta? — pisquei pra ele, que riu.
— Gosto, gosto muito! — ele piscou também — Bonito, quietinho, tem uma carinha de anjo
que me deixa maluco, mas é todo fresco, fica gripado toda semana, não responde quando
alguém faz “as proposta”. E aí ele pede pra ir mais cedo, eu acabo deixando...
— Ah é?
— É, eu tenho um bom coração — ele riu e se levantou — Fica à vontade Bruno, se precisar de
algo chama aí.
O homem ostentação saiu conversando com um garçom e eu voltei a beber sozinho e a pensar
no Eric.
Ambidestro. Sensível, como os privilegiados que usam as duas mãos. Instigante. Ri pra mim
mesmo, sem ter noção do quanto já tinha bebido. Fiquei ali até quase perder a consciência.

Eu não via nem ouvia nada naquele ambiente de luzes irritantes e sons cansativos até que
senti alguém me pegar pela mão, me forçando a levantar. Olhei bem e era o Renato, ele falava
alguma coisa, mas eu não identificava as palavras, o local parecia vazio, envolto numa névoa
amarelada. O Eric chegou perto, tímido e me pegou pelo braço, falando alguma coisa com o
patrão. Ele me ajudou a chegar até o carro, pegou a chave no meu bolso e pôs o veículo em
movimento. Eu dormi logo.
Não me lembro de como subi para o apartamento no quinto andar. Sei que tomei banho e caí
na cama e minutos depois um corpo frio se deitou ao meu lado. O abracei e dormi de novo.
XI

Acordei sozinho, meio dia de sábado, com uma sede absurda, um pouco fraco e com a cabeça
pesada, mas nada que me incomodasse muito. Só acordei porque meu celular estava tocando.
Vesti uma roupa que estava jogada em cima do criado, atendi à ligação e fui andando
preguiçosamente em direção à cozinha. Achei que fosse a Larissa, mas era a minha mãe.
Conversamos sobre o aniversário da vovó no próximo fim de semana, ela disse que eu deveria
ir, que a vovó sentia a minha falta e tudo mais. Prometi que eu iria com o Gabriel, só nós dois,
e desliguei antes que ela quisesse saber de mais detalhes.
Bebi água e mais água e a sede não passava. Não estava enjoado, apenas desidratado. A
cozinha estava silenciosa, olhei na área de serviços e o Eric estava lá lavando roupa, inclusive a
minha. Fui até ele e beijei-o no pescoço, de surpresa, abraçando-o por trás.

— Tá vivo, é? — ele perguntou sem me olhar.


— Muito, quer ver? — respondi de forma sacana, mordendo a orelha dele.
— Ressaca?
— Não, só sede, muita sede.
— Quer um suco?
— Eu te adoro, sabia? — apertei o abraço.
Eu tinha certeza de que estávamos a sós, então resolvi fazer algo que me dava mais tesão que
ver filme adulto: ver o Eric cozinhar para mim quase nu. Tirei a camisa dele, ele apenas riu e me
ajudou a tirar o short, tudo sem questionar. Fez um suco de abacaxi, me deu um copo grande e
depois começou a preparar o almoço. Eu observava todos os seus movimentos, sentado numa
banqueta bem perto.
Ele estava todo concentrado na preparação da comida, mas às vezes me sorria, aquilo me
deixava encantado. Aproveitei o momento descontraído para fazer algumas perguntas, eu
notava a devoção que ele tinha pelo irmão e aquilo me deixava curioso.
— Quanto tempo você morou com o seu irmão, tipo, só vocês dois?
— Desde quando eu tinha uns oito ou nove anos até quando ele casou, foram alguns anos, por
quê?
— Nada... E ele cuidava de você direitinho?
O Eric me olhou de lado e depois sorriu, um sorriso aberto que quase fazia covinhas no rosto.
— Eu fiz uma cartinha do dia dos pais pra ele uma vez, ele até chorou na escola.
— Você é um anjo lindo — falei, olhando os olhos acinzentados dele. Toquei-o no ombro, mas
ele se afastou um pouco.

— Ai, você não sabe de nada, Bruno.


— Então me diz... Você é um mistério pra mim, um doce mistério. Se você soubesse das coisas
malucas que já passaram pela minha cabeça...

— Eu não sou um anjo, quer dizer, às vezes as pessoas pensam que eu sou, mas depois se
assustam.
— Por quê? Já fez algo que assustasse as pessoas? — perguntei enquanto me servia de mais
um copo de suco.
— É, já sim, já tentei matar uma namorada do meu irmão quando eu tinha onze anos — ele
falou pensativo, olhando pra faca que ele usava para cortar a cebola... — Tentei enfiar uma
faca no pescoço dela dormindo.
Na hora eu engasguei com o suco, tanto que fez meu nariz e garganta arder sem parar. Tossi,
sujei a bancada, a camisa, enquanto ele olhava tranquilo. Tinha certeza que ele não estava
brincando, não era o tipo dele fazer brincadeiras, mas como ele fala pouco e sem preâmbulos,
as coisas vinham assim, na lata. O mundo não estava preparado pro nível de sinceridade do
Eric. Passei a mão pelo rosto, tentando me recompor.
— E conseguiu? — tentei beber o resto do suco, mas não desceu.
— Não, meu irmão agiu a tempo, me tomou a faca, acordou a mulher e depois quis saber o que
estava acontecendo.
— Sei... — tossi mais um pouco — E o que estava acontecendo?

— Sei lá, acho que era ciúmes.


— Do seu irmão?
— Aham, eu não queria que ele namorasse, que me deixasse de lado — ele continuava
cortando a cebola rapidamente — e a namorada dele não gostava de mim.
— E o que ele fez?
— Ah, conversou comigo, sem nenhuma bronca, perguntou se eu gostava de homem, falou as
coisas que ele fazia com a namorada e bla bla bla.
Ele me deu um pano pra eu limpar o suco que derramei na bancada. Aproveitei e limpei meu
braço e a camisa.
— Hum, e aí?
— Eu não tinha coragem de falar nada, tava com vergonha. Ele pegou a minha mão e colocou
na perna dele e perguntou se era aquilo o problema, se eu pensava nessas coisas com ele, e aí
eu comecei a chorar.

— Credo, que doideira! E aí?


— Bom, aí eu chorei e chorei e ele disse que me amava, que ia namorar, talvez casar, ter filhos,
mas nunca ia me deixar. E é isso.

— Nossa, até me arrepiei , olha! — mostrei o braço pra ele — E a namorada dele?
— Ele terminou com ela uns dias depois e começou a namorar uma outra que eu gostava
muito. Ela me chamava de filho.
— E ele casou com ela?
— Não, eles namoraram um tempo, mas ele não era apaixonado não. Quando ele conheceu a
Marisa, uma chatinha e metidinha, nojenta, aí sim ele caiu de amores.
— Tentou matar essa aí? — ri do tom que ele usou para falar da mulher, mas fiquei meio
preocupado.
— Não, não, eu já tinha passado dessa fase. Eles se casaram, eu continuei morando com o meu
irmão, que me trata como um filho, mesmo depois que nasceram as meninas. É a minha
família.
— Nossa! E a sua mãe biológica? Nunca mais viu?
— Vi, ela apareceu aí dia desses, a gente conversa de vez em quando.
Uma luz brilhou na minha mente na hora.
— Uma loura bonitona, bem vestida e que anda de carrão?

— Sim, como você sabe? — ele me olhou rapidamente estreitando os olhos enquanto lavava as
mãos com vinagre.
— Te vi com ela um dia lá no Café, pensei que fosse sua namorada.
— Credo, claro que não. Você anda me seguindo mesmo, hein?
— Você nem imagina o quanto, gatinho!
Ele fez um biquinho, achei sensual. Fui até ele agarrando-o e tirando-o do chão. Ele no meu
colo, quase nu, com aquela pele branca, eu de camiseta preta, parecendo um delinquente com
os meus braços tatuados, era um contraste interessante.
Desde cedo eu aprendi a reverenciar o que é belo. A beleza dele me enlouquecia, não era uma
beleza comercial, dos modelos e atores, era uma edição limitada, uma raridade que eu tinha e
que não dividiria com ninguém. E não era uma beleza vazia, de uma pessoa irritante que
cobrava e irritava. Era de alguém que servia, e que sentia prazer em servir. E era alguém que
podia se tornar perigoso, quando contrariado. Me senti ainda mais louco por ele.

Coloquei-o na bancada, sentado de frente para mim. Encaixei-me entre as pernas dele,
abraçando o máximo que eu podia. Aspirei aquele cheiro que tinha muito de mim, comecei a
beijar o peito, sugando os mamilos do jeito que eu gostava e ele não reclamava, apenas
olhava. Ele sabia que aquilo matava a minha sede. Suguei, às vezes olhando para ele, depois
subi até o pescoço, onde eu mordiscava saboreando a pele.
— Você é doce... — falei, ele apenas riu fechando os olhos.
Morder era tão delicioso que eu precisava me conter pra não marcar e machucar a pele
delicada dele. Quanto mais eu mordia, mais dava vontade de morder. Minhas mãos e minha
boca o queriam cada vez mais, e aquela apatia dele só aumentava a minha vontade de tê-lo
para mim.

De repente o corpo dele retesou-se. Eu continuei sugando e lambendo o pescoço, mas ele deu
três tapinhas de leve nas minhas costas. Olhei-o no rosto e ele lançou um olhar significativo
apontando para a porta. Me virei e vi: Paulo Henrique, todo descabelado, segurando uns livros
e com uma expressão de incredulidade no rosto.
Eu não saberia me defender sem atacar.
— Porque entrou assim sorrateiro, hein? — perguntei, engolindo o coração que tentou sair
pela boca.
— Cara, foi mal. É que eu tô estudando hoje, foi mal mesmo — Paulo Henrique falava rápido e
atrapalhado.
Fui soltando o Eric devagar para que o Henrique não visse mais do que já tinha visto. Ele
desceu da bancada tranquilo, pegou as roupas e foi pra área de serviços. Respirei fundo, olhei
para o lado envergonhado e passei a mão pelos cabelos. Lembrei que tinha que cortar aquela
juba.
— Cara, desculpa aí, eu jurava que não tinha mais ninguém aqui — falei depois de um tempo
sem palavras.
Eu tava envergonhado por ele ter visto aquilo, mas me lembrei de que ele também fazia e me
recompus. E ele não sabia que eu sabia.
— Ei, tá de boa — ele disse baixinho e foi pegar umas coisas na geladeira, não falou mais nada.
Paulo Henrique era esperto, muito inteligente, ele não ia dar uma de ofendido tendo o teto de
vidro também. Um cara que eu gostava de graça.
— Cara, agora eu vou voltar pra aula, acredita? Hoje tá foda — e foi saindo.
— Tá bom então, vai lá — disse, mas depois o chamei — Rique, entre nós? — fiz uma expressão
significativa pra que ele entendesse.

— Cem por cento, mano. Nem o Vítor, nem ninguém, pode deixar.

— Valeu, velho!
Suspirei novamente, bebi água e senti minhas pernas bambas por causa do susto. Procurei pelo
Eric e o encontrei cuidando das roupas da máquina.

— Nada te abala, né? — me sentei no chão perto de onde ele estava.


— Muita coisa me abala.
— Ainda não vi.
— Eu iria te odiar se você tremesse na base ali, se falasse que não era aquilo que ele tava
pensando, mas você é forte, não liga pro que os outros pensam, não fica de mimimi. Eu gosto
disso.
— Então eu sou o seu tipo? — ri e passei a mão pela canela dele, que não parava o que estava
fazendo — Aliás, que tipo de pessoa te atrai?
Ele pensou um pouco antes de responder.
— O tipo que me aceita do jeito que eu sou.
— Isso não é difícil.
— Engano seu, é muito difícil. As pessoas dizem que eu sou lindo, perfeito, e o caralho, mas
depois de um tempo querem que eu mude, que eu tenha uma profissão chique, que eu seja
“alguém”, que eu tenha mais amigos... Por que eu não posso simplesmente ser eu mesmo? —
ele parecia irritado.

— Ei, pra mim você pode ser você mesmo, eu gosto assim, tá?
— Eu espero que sim — ele foi pra cozinha, eu fui atrás.
O Eric terminou o almoço bem rápido e nós dois comemos em silêncio. O humor dele tinha
mudado e eu o entendia bem, na verdade, depois daquele flagra, eu também fiquei
introspectivo. Ele arrumou a cozinha após o almoço, eu até ajudei um pouco, e depois me
deitei no sofá da sala para tirar um cochilo. Ele se arrumou pra sair.
— Preciso ver meu irmão, tá? — ele se despediu de longe.
— Pode ir, quando quiser voltar, eu vou te buscar, tá?
— Não Bruno, não precisa, o Evander vai me trazer — e saiu sem dizer mais nada.
Poucos minutos depois a Larissa ligou dizendo que estava lá embaixo e se poderia subir. Eu
disse que podia e me levantei do sofá.

— Nossa, quanto tempo que eu não venho aqui — ela disse assim que entrou na sala.
— Pois é.
— Você acordou agora?

— Não faz muito tempo.


— Tá com preguiça até de conversar — ela riu. — Está sozinho?
— Acho que sim.
— Hum, eu encontrei lá embaixo aquele rapaz que trabalha aos fins de semana. Ele não tá
trabalhando hoje?
— Acho que ele foi ver a família.
— Ah tá...
Ela foi em direção ao meu quarto e eu fui atrás estranhamente tranquilo para dar muitas
explicações. Ou não, eu não pretendia dar explicações.
— Mas por que outra cama? — Larissa chegou perto da cama arrumadinha do Eric e ficou
confusa.
— Ah, o Eric tá dividindo o quarto comigo.
— Por quê? Ele não ia ficar no quartinho de empregada? — ela me olhou intrigada.
— Ele tem rinite ou sei lá o quê e ficou doente, e aí eu trouxe ele pra cá.

— Ah Bruno, isso não tá passando dos limites? Uma coisa é dividir o apartamento, outra é
perder completamente a privacidade. Daqui a pouco você aluga o lado esquerdo da cama.
Ela falou e riu. Tive que rir também da situação.
— Eu tô pensando nisso — deitei na minha cama.
Ela andou pelo quarto, foi ao closed, ao banheiro, observando todos os detalhes. Depois se
sentou ao meu lado na cama.
— Já contratou uma nova diarista?
— Não, ninguém foi atrás disso.
— Então esse Eric é muito organizado, né.
— Você nem imagina o quanto!

— E você? — ela perguntou tentando me olhar nos olhos, mas eu evitava encarar.

— Eu detesto qualquer tarefa doméstica.


— Não é disso que tô falando. Como você está?

— Eu tô bem sim.
— Por que anda tão distante assim?
Me ajeitei na cama e olhei pra ela, era chegada a hora da conversa. Eu não estava nervoso, mas
me sentia como se estivesse numa reunião de trabalho tendo que expor meu ponto de vista
para alguém que não entendia do assunto. Pensei, apertei os lábios e respirei fundo.

— Olha Lari, eu tô em outro momento, eu já te disse, por isso acho melhor a gente parar por
aqui. Não estou sendo legal com você.
— Mas estivemos juntos por três anos, o que aconteceu agora? Por que assim, do nada?
Suspirei.
— Olha, não foi assim, do nada e não foi nada que você fez, ok? — falei pausadamente —
Simplesmente eu preciso estar do jeito que estou agora, sem compromissos, entende? Eu
queria que você entendesse que não dá mais pra...
— Por quê? — ela começou a falar mais alto — Poxa, a gente sempre se deu tão bem, o que há
de novidade? Não me venha dizer que não aconteceu nada que eu não acredito, ouviu? As
coisas não mudam assim, de repente.
— Olha, não vamos nos indispor por causa disso. Eu já disse e vou repetir: as coisas não
mudaram, eu mudei. Ainda não sei o que mudou, mas uma coisa é certa: a pessoa que eu sou
agora não merece que alguém bacana como você insista em ter por perto.
— Bruno, para com isso! Você me traiu?
— Acho que sim — fiquei sem jeito para falar aquilo.
— Como assim, acha? As suas respostas não fazem sentido, você não está normal, Bruno!
Respirei fundo, passei as mãos pelo rosto. Aquela insistência...
— Olha, você vai ficar melhor sem mim, juro! Vai entender isso quando souber de algumas
coisinhas que eu andei fazendo, além disso, tenho trabalhado muitas horas por dia, eu tô
insuportável, sério mesmo.
— Por que não damos um tempo e conversamos depois, quando isso passar? — ela pegou na
minha mão.
— Você já disse isso dias atrás quando eu tentei ter uma conversa desse tipo. Mas continuou
me ligando, me convidando para compromissos familiares...

— Não vou fazer mais isso, tá? Também estou numa correria sem fim, até o fim do ano não vou
ter tempo pra nada. A gente dá um tempo... — os olhos dela se encheram de lágrimas — E a
gente se vê só de vez em quando, se você puder...

— Larissa, pra quê sofrer à toa? Não posso mais continuar, eu já te disse...
Ela quis me abraçar, eu a abracei e ela chorou de soluçar. Não era assim que eu queria que
fosse, aquela insistência dela em continuar comigo mesmo sabendo que eu queria terminar o
namoro piorava tudo.
— Vou pra casa, tá? — ela saiu da cama.

— Eu te levo — me levantei, mas ela já ia.


— Não, fica aí. Preciso ficar sozinha.
Foi muito ruim aquilo tudo. Eu não quis entrar em detalhes do que estava acontecendo, o
lance com o Eric, os meus desejos insanos. Ainda não era a hora de confessar aquilo para
alguém, mas cedo ou tarde ela ia ficar sabendo através do Sérgio, pois com certeza iria chorar
nos braços do melhor amigo.
Passei mais de uma hora na cama olhando pro teto e pensando em tudo que estava
acontecendo comigo. De fato era um caminho sem volta, mas a vida tinha que continuar.
Levantei, tomei um banho rápido e fui passar um fim de semana maravilhoso com meu filho. Vi
minhas duas irmãs, minha sobrinha, meus cunhados, alguns amigos, fui a uma festa infantil
com o Gabriel e comi tantos doces e salgadinhos que quase passei mal. Voltei pra
tranquilidade do meu lar apenas no domingo à noite.

Na segunda-feira pela manhã estávamos tomando o café, alguns mais apressados, outros mais
tranquilos quando o Serginho sentou do meu lado. Ele agia como se nada tivesse acontecido.
Sorri cinicamente pra ele e ele respondeu de forma mais cínica ainda.
— Bom dia, Eric! — ele falou com um sorriso suspeito.
Olhei pra ele tentando entender o que ele queria, pois raramente ele falava com o Eric.
— Bom dia — o Eric respondeu sem muita empolgação.
— O professor Pablo perguntou por você, disse que tava preocupado porque não te viu no
campus... — ele falava com visível prazer.
Eu sempre achei que o Sérgio soubesse algo em relação ao Eric e iria usar pra me atingir. Nesse
momento ele estava despejando um pouquinho de veneno.
— Ah sim, diz pra ele que tá tudo bem — o Eric respondeu de mau humor.

O Sérgio olhou pra mim, talvez procurando algum indício de surpresa ou ciúme, mas eu não
sou de externar isso. É claro que ele sabia de algo, mas não tinha provas e eu não dava à
mínima.
— Eu digo sim, Eric! — sorriu e saiu da cozinha, aparentemente satisfeito.

Todos saíram para o trabalho, inclusive o Eric, e eu fui cuidar da minha vida. Eu tinha muito o
que fazer para me preocupar com o joguinho do Paulo Sérgio.
XII

Quando vi o Eric à noite ele estava deitado na minha cama mexendo no celular. Me aproximei
em silêncio e toquei no ombro dele.
— Professor Pablo? — perguntei maliciosamente, acariciando a pele nua.

Ele sorriu de um jeito delicioso, meio que fechando os olhos.


— Não, não, tô conversando com a minha irmã.
— E desde quando você tem irmã?
— Desde quando a minha sobrinha diz que eu sou irmão dela.

— E o professor Pablo? — deitei bem perto dele e fiquei olhando-o.


— Ele é professor do Sérgio, não meu. Já tem tempo que ele dizia que queria me conhecer e
tal, aí eu topei me encontrar com ele numa praça uns dias atrás. Até te falei.
— Você disse que era “uma pessoa”, mas não disse quem.
— Você não perguntou...
— Você ficou com ele? — perguntei olhando para a minha mão e o Eric riu.
— Não, a gente só conversou, eu já te disse. Tá preocupado?
— Com você, isso sim. Como o Sérgio sabe disso?
— Eles são amigos, o Sérgio acha que eu fiz o amigo dele de palhaço.

— Por quê?
— Porque eu não quis ficar com ele, tipo, eu não tenho culpa se o cara confundiu as coisas.
Pensei um pouco mexendo nos cabelos claros dele. Me lembrei das palavras de um conhecido
meu, dono de uma boate: “Do tipo que se insinua e dá linha na pipa”.
— Mas comigo não, meu passarinho... — eu dizia dentro de mim — Comigo a coisa não
funciona assim.
Enquanto eu pensava, compenetrado e acariciando-o lentamente, ele me olhava e parecia
ansioso em falar de si, o que era raro.
— Eu nunca fui de ficar com homem, na verdade. Até gostei de alguns, mas sempre fiquei com
meninas. Eu só tinha beijado dois caras antes de ficar com você.
Me surpreendi com a revelação, eu achava que ele tinha mais experiência. Mas do nada me
veio um ciúme por causa desse número. Dois antes de mim, e eu queria ser o único!

— Sério? Hum... E quem foram esses dois? — apesar do ciúme eu falava manso.
— Um cara que eu conhecia, amigo do meu irmão, já faz tempo. E o Ramon — ele disse
simplesmente.

Não gostei.
— Ramon? Como assim? Como foi isso? — me levantei da cama falando um pouco alto, o que
o deixou assustado e sem jeito.
— Ah, eu tava morando com uns colegas, eles eram legais, mas a casa vivia muito lotada e
aquilo me matava. Aí lá na faculdade uma amiga me disse que esse Ramon já tinha alugado o
quarto uma vez, que era bem localizado e tudo mais, aí eu fui lá falar com ele.
— Prossiga... — eu estava nervoso andando de um lado para o outro e voltando para olhar nos
olhos dele.
— Bem, ele me chamou lá no apê dele, me mostrou o quarto e tals, mas depois começou meio
que a dar em cima de mim.
— E você fez o quê?
— Levei na boa, fui pra lá no outro dia e a gente ficou conversando. E depois ele deixou de sair
com a namorada pra ficar lá comigo, pra não me deixar sozinho, segundo ele...
— Siiim...?
— Aí veio pra perto, quis me beijar, eu não tava a fim, mas deixei. A gente se beijou, mas
depois ele foi ficando doido, sei lá, começou a querer pegar demais em mim, eu saí de perto,
mas ele foi atrás, segurou o meu braço e me chamou de puta gostosa. Aí eu dei uma porrada
na cara dele.
— Hein? E depois?
— Ele me deu umas porradas também, mas depois ficou quieto e pediu desculpas. Me deu o
seu número, disse que você tava alugando os quartos daqui e me mandou ir embora.
O Eric falou aquilo tudo e abaixou a cabeça, eu respirei fundo. Então foi assim que ele tinha me
encontrou, e eu achava que tivesse sido no restaurante.
— Por que deixou o Ramon te paquerar, te beijar e depois bateu nele?
— Porque ele me chamou de gostosa. Odeio quando ficam dando em cima de mim, quando
ficam me pegando, eu nem conheço o cara, ele vem me agarrar e falar essas coisas, eu odeio!
— ele ficou meio vermelho.
— E por que fica se insinuando pro professor, pro dono da boate, pra mim...? — peguei o rosto
apertando as bochechas pra olha-lo nos olhos. Ele tentou sair, mas eu não deixei.

— Eu não fico me insinuando pra ninguém!


— Jura? — falei sarcástico — E usa essa voz sensual, essa passividade, esse olhar instigante com
todo mundo, assim, no dia a dia?

— Não acredita em mim, né — ele pareceu ficar triste, olhou pro lado — Não sou assim com
todo mundo, é que eu gostei de você. E foi você que começou isso.
Deitei na cama e fiquei olhando pro teto. Normalmente eu não sou de sentir ciúmes, mas...
Puxei-o para mim, passando um braço em torno do corpo dele.
— Só que eu gostei de você demais, entende? Tô quase louco com isso e não sei se é bom —
falei pensativo, acariciando os cabelos dele, que me olhava nos olhos. — Eu te quero só pra
mim.
— Mas eu não fico com mais ninguém, já te disse. Sou só pra você...
— Eu sei, mas você falando desse jeito... Olha como eu fico... — ele não olhou, mas deve ter
sentido — Tô te querendo demais, garoto — cheirei os cabelos dele — você nem sabe o
quanto.
— Eu também gosto de você, eu tô com você, não tô? Então...
Ele estava deitado em cima de mim, com a cabeça no meu peito. O abracei forte, depois o
soltei.
— E o professor, o Renato...?
O Eric me olhou de um jeito sacana e riu.

— Só se você deixar...
Dei um tapa na bunda dele.
— O Renato me mandou te amarrar em casa, sabia?
— Quem avisa amigo é, né! — ele saiu de cima de mim correndo e foi lá pra sala fazer alguma
coisa.

Depois daquela conversa eu fiquei inquieto, queria ficar um pouco sozinho. Fui à cozinha,
Paulo Sérgio e Paulo Henrique estavam conversando e rindo, mas ao me ver, eles ficaram sem
graça. Peguei uma maçã, falei alguma coisa genérica e saí. Peguei o carro, fui dar umas voltas,
queria sair um pouco daquele clima ruim.
Sem perceber eu acabei entrando na rodovia federal, mas estava um trânsito lento e irritante,
só fui mesmo até pegar um retorno, voltei à rua lateral e dirigi sem rumo por vários
quilômetros. Ao passar por uma sorveteria onde eu costumava ir com meu filho, resolvi parar.
Fiquei um tempo escolhendo um pote grande, paguei e voltei pra casa.
Na cozinha o Serginho estava fazendo alguma coisa, o Eric estava na sala parado em frente à
estante da TV, como eu já o tinha visto outras vezes e o Henrique estava no sofá com os seus
óculos de grau e um livro. Todos silenciosos.
— Trouxe sorvete — eu disse quando estávamos jantando.
— Velho, eu espero que seja gelado, por que hoje tá um calor do cão — disse o Henrique. De
fato, os cabelos dele estavam sebosos.
— Bom, parecia gelado quando eu peguei — eu disse e ele riu.

Depois o clima entre nós ficou um pouco melhor, mas o Serginho foi para o quarto dele.

No outro dia eu cheguei do trabalho ainda cedo e o Eric estava tomando banho, era dia de ele
ir trabalhar naquela boate. Como estava demorando, fui ver o que ele estava fazendo e ao vê-
lo fiquei espantado: ele estava cortando o próprio cabelo! Cortava com a mão direita e depois
fazia igualzinho com a esquerda. Surreal aquilo.
— Não tente isso em casa — ele falou divertido, enquanto eu olhava atônito.
— Deus me livre! — eu falei e ri.
De fato aquele corte de cabelo fashionist e irregular não ficava bem em qualquer um, apenas
no Eric com o seu jeito único de ser. Aliás, tudo ficava bem nele.

— Como é essa coisa de usar as duas mãos igualmente?


— Sei lá, é natural, eu acho. Dizem que eu nasci canhoto e fui obrigado a usar a mão direita,
talvez seja isso, mas eu prefiro usar a esquerda.
Passei a mão nos cabelos dele.
— Seu cabelo é interessante, não precisa pentear...
— Não, e não adianta tentar mudar também, ele é assim mesmo e pronto, é teimoso... — ele
riu, virou e me olhou — Ficou legal?
— Nada fica ruim em você, minha delícia...
Ele se virou novamente, olhando pra mim através espelho, muito sério.
— Por que “minha delícia”?
— Hã? — não entendi.

— Não me chame por nomes femininos, entendeu? — ele falou muito perto de mim, com as
faces rubras — Por favor, se quiser algo comigo, nunca, mas nunca mesmo, me chame dessas
coisas que os caras falam, entendeu?
Ele gesticulava nervosamente, bem perto do meu rosto, com a tesoura na mão. Lembrei de um
personagem de um filme antigo e ri alto, ele ficou sem entender.
— Não estou brincando.
— Ei, tá tudo bem. Delícia é uma palavra sem sexo, seu bobo, quer dizer “meu gostoso”,
entendeu? E olha, se vai falar botando o dedo no meu nariz, melhor deixar a tesoura na pia,
ok?

Ele olhou a própria mão e ficou em graça.


— Desculpa.
Dei um beijo no pescoço dele, uma leve mordida e saí, rindo sozinho.

Quando o vi saindo com a sua roupa preta, me deu uma sensação ruim. Ele ia falar algo
comigo, mas me tranquei no escritório, peguei meus trabalhos e fiquei olhando, tentando me
concentrar. Sem inspiração nenhuma, enfiei tudo bagunçado na gaveta.
Eu trabalhava maravilhosamente bem com o Eric por perto, onde eu pudesse vê-lo, toca-lo. Era
uma fonte de inspiração sem limites que já estava fazendo a diferença no meu rendimento.
Mas aquele trabalho dele à noite, convivendo com pessoas como o Renato não me agradava.
Ele sempre chegava em casa cansado, com os olhos irritados e uma tosse seca preocupante, às
vezes precisava de um remédio para respirar melhor. Eu entendia o fato de ele usar aquela
sensualidade natural para amolecer o coração do patrão (endurecendo outra coisa) e sair de lá
quando a alergia se tornava insuportável. Mas eu precisava fazer alguma coisa mais útil para
mudar aquela situação. Conferi alguns e-mails que eu tinha enviado, peguei novamente meus
papeis e voltei a planejar.
A gente continuava dormindo junto, eu sempre o abraçava, acariciava, às vezes essas carícias
ficavam mais quentes, mas a gente evitava o contato sexual. Tinha um quê de culpa da minha
parte e uma certa reserva da parte dele. E raramente a gente se beijava na boca, não que
faltasse vontade, pelo menos para mim, mas algo me fazia esperar. Com essa abstinência eu
vivia muito agitado, quase não conseguia dormir e aproveitava as noites para trabalhar.

No sábado, ainda de madrugada, eu me arrumava para ir pra casa dos meus pais, pro
aniversário da minha avó. Já tinha mais de cinco meses que eu não ia e meus pais estavam
reclamando. Enquanto eu pegava umas roupas no closed o Eric chegou do trabalho noturno
dele.

— Bom dia — ele não esperou a resposta e foi pro banheiro.


Fiquei preocupado, ele parecia estar com outra crise daquela alergia. Bati na porta.
— Você tá bem?

— Tô sim, daqui a pouco melhora. Só preciso de um lugar arejado — ele saiu do banheiro com
o rosto molhado.
— Que tal uma praia sossegada há uns 250 quilômetros, hein? — pisquei pra ele.
— Na casa dos seus pais? Nem pensar! — ele sentou na minha cama — Não acho que...

— Anda, pega umas coisas e vamos buscar o Gabriel — saí antes que ele pudesse contestar.
Depois voltei e ele continuava na cama, pensativo.
— Anda Eric, eu falei sério, você vai comigo!
Meio sem jeito ele acabou cedendo e fomos buscar o meu filho. Ao me entregar o garoto
dormindo, a Jéssica estranhou meu acompanhante, mas não disse nada, apenas sorriu pra ele.
Gabriel e Eric dormiram por quase todo o trajeto e chegamos mais rápido do que eu tinha
imaginado, pois não fizemos nenhuma parada. Minha mãe foi encontrar o carro ainda na rua
para pegar o neto que ela adorava — ainda dormindo — cumprimentou o Eric, disse que ele
era bonito, quis saber da Larissa, eu desconversei e fui ver o resto da família.
— Até que enfim, achei que tivesse esquecido o caminho de casa! — meu pai, alto e magro,
parecendo cada dia mais jovem depois que se aposentou, veio me abraçar.

— Que nada, eu tô em casa, vocês que saíram. Nunca vi isso!


Ele riu e correu pra abraçar o neto. Peguei as coisas no carro, chamei o Eric e entrei na casa.
Era uma casa térrea, sem nenhum degrau ou escada, tinha corredores largos e banheiros
grandes. Própria para velhos de cadeiras de rodas, como meu pai dizia. Minha mãe correu pra
ajudar a guardar as coisas no quarto, que eram seis. Sim, seis quartos! E tinha ainda um quintal
enorme, que chegava até a rua dos fundos, e mesmo assim lotava nas férias e feriados
prolongados. Quem tem casa na praia sabe como a família cresce no verão.
— Você que chegou primeiro escolhe o quarto, meu filho — minha mãe estava sempre bem
vestida, apesar de morar em frente ao mar e estar sempre trabalhando. Ainda bem que me
lembrei de cortar o cabelo e aparar a barba, ela sempre enchia o saco com isso. Ela chegava ao
cúmulo de olhar as unhas das minhas irmãs e chamar a manicure, sem elas estivessem sem
esmalte.
— Quero um da frente mãe, porque vai fazer bem pro Eric, ele tá com alergia.

— Não, tá tudo bem! — o Eric disse, todo tímido.

— Ah, então vem cá — ela o puxou pela mão, ele riu.


Ela colocou as nossas coisas num quarto que tinha uma cama de solteiro comum e uma
bicama. O banheiro ficava ao lado, no corredor.

— Aqui dá pros três rapazes, tenho certeza.


Quando ela saiu o Eric perguntou baixinho:
— Qual o nome dos seus pais?
— Eurico e Alice. E uma coisa importante: nunca chame a minha mãe de dona, senhora, velha,
coroa, senão ela te mata, entendeu? Se quiser fazer média, diga que ela é muito nova pra ser
minha mãe, que não parece que já é avó e que está muito bonita hoje, ouviu?
Ele ria alto. Cheguei mais perto e beijei-o no pescoço, ele arregalou os olhos e olhou para os
lados.
— Vai fazer isso aqui?
— Claro, quando ninguém estiver vendo! — dei um abraço e um cheiro nele, depois saí e fui
ver a minha vó, na varanda dos fundos.

Ela estava lá aparentemente alheia ao mundo, pequena e encurvada. Sofria de mal de


Alzheimer e estava cada dia pior. Quando eu era moleque eu aprontava muito com as
ferramentas do meu avô, desmontava coisas, mexia com graxa. Meu avô brigava comigo e ela
sempre me defendia. “Deixa o menino” — ela falava — “Ele gosta de tirar os parafusos, ensina
alguma coisa pra ele”.
Desde criança eu gostava de máquinas, equipamentos agrícolas, industriais, veículos. Meu
sonho era trabalhar numa multinacional, não como coadjuvante, mas como engenheiro
principal.
— Benção, Vó? A senhora está bem?
Ela me olhou, mas pareceu não me reconhecer. Tive uma ideia: fui ao quarto, tirei as minhas
lentes de contato, pus meus óculos e voltei a falar com ela.
— Vó? Tudo bem com a senhora?
Ela sorriu na hora.
— Bruninho! Até que enfim meu filho, como você demorou!
— Eu tava muito ocupado vó, mas tava com saudade da senhora — segurei a mão dela.

— Tá indo direitinho na escola? — nos seus devaneios provocados pela doença ela pensava
que eu ainda era criança, por isso não me reconhecia sem os óculos.
— Tô sim vó, e tô trabalhando muito.
Ela apertava e balançava a minha mão.

— Tadinho, então pode ir brincar, mas por favor, não mexa nas ferramentas do vovô nem fique
espiando a vida dos outros, viu? É feio.
Ri e fiquei pensando em como ela me conhecia bem, mesmo com as limitações da doença.
Meus irmãos chegaram depois de mim. O Fabrício, quando viu que eu tinha levado o Eric ao
invés da Larissa, fez uma cara curiosa e eu fingi que não vi.

À noite, o Preto, meu cunhado — que na verdade era um branquelão gordo — tomava conta
da churrasqueira, minha mãe fez muita comida e tinha muita gente. Notei que o Eric olhava
bem a comida antes de pôr no prato e só comeu arroz, salada e carne bovina. Me aproximei
dele, que estava calado num canto se esquivando da curiosidade dos meus parentes.
— Qual o problema com a comida da minha mãe? — perguntei quase no ouvido dele.
— Camarão — ele respondeu de mau humor.
O olhei por um tempo depois fui conversar com uns primos. Todos queriam saber da minha
vida, em como eu estava pagando o condomínio — que tinha subido — quando eu ia me casar,
se estava pegando geral já que morava sozinho.
Gabriel corria para todos os lados, brincava e brigava com a prima e com as outras crianças e
comia muito. Ele pedia “guinliça” ao Preto e ele morria de rir. Ele adorava o pequeno. O sonho
do meu cunhado era ter três filhos, mas a Amanda, minha irmã não tinha conseguido
engravidar até o momento.
Amanda era uma mulher belíssima. Alta e magra, cabelos lisos, ela já tinha sido modelo,
chegou a morar nos Estados Unidos. Mas ao conhecer um jovem gordo, de cabelos louros,
porém crespos (por isso o apelido), com a sua bermuda caindo e mostrando parte da cueca, ela
resolveu se casar. Apenas terminou o curso de psicologia e casou-se, mudando de cidade. Seus
amigos e familiares não entendiam a sua escolha, chegavam a fazer piadinhas sobre o rapaz,
diziam que ele fez macumba e tudo mais. Mas ele era uma ótima companhia, simples,
engraçado e minha irmã o amava. Se eu fosse me casar um dia, gostaria que fosse com alguém
assim.
Uma das coisas mais irritantes daquela região praiana eram os mosquitos gigantes que
incomodavam todas as noites. Quando as pessoas começaram a reclamar da invasão dos
insetos, minha mãe pegou o repelente e passou nas crianças. Depois ela passou em mim, no
Fabrício e quando ia passar no Eric, ele se assustou e se afastou. Ela estranhou a reação dele,
visivelmente chateada.

— Que menino esquisito! — e saiu de perto de nós.


O Eric, que já era quieto de costume, depois daquilo ficou ainda mais tímido e recluso. Me
aproximei dele e tentei puxar assunto.

— Cara, os mosquitos vão te carregar, por que não usa o repelente? Minha mãe só queria
ajudar, não precisava correr daquele jeito.
— Eu tenho alergia — ele disse pausadamente, para que eu ouvisse bem. E não olhava para
mim.
Suspirei e senti uma certa irritação. A forma com que ele se comportava entre outras pessoas
era muito esquisita e ele não fazia nenhum esforço para facilitar.
— Cara, isso é meio chato, as pessoas estranham, sabia? Tem mesmo todas essas alergias?
Como consegue viver assim com tanta restrição?
— Como consigo? — ele me olhou com os olhos brilhantes — Aprendi a cozinhar, a limpar e a
não reclamar — e foi para os fundos do terreno, onde tinha umas árvores.
Eu fiquei parado, olhando ele se afastar a passos largos, sem acreditar que tinha acabado de
magoar o meu garoto sensível. Não pude fazer nada na hora, uns primos chegaram perto de
mim e ficaram conversando bobagens. Todos estavam bem bêbados.

Quando já passava da meia noite, quase todo mundo já tinha tomado rumo. Apenas meus
irmãos e seus agregados iriam dormir ali na casa dos meus pais, e foram se recolhendo aos
poucos. Me despedi de algumas pessoas e fui procurar o Eric nos fundos do quintal.
Ele estava sentado num banco rústico embaixo de uma castanheira, com o olhar perdido.
Ventava muito e os cabelos de corte irregular balançavam.
— Você fica tão perfeito ao ar livre que parece até cruel te deixar preso num apartamento —
cheguei bem perto dele. Ele apenas me olhou nos olhos — Me desculpa pelas bobagens que eu
falei, tá? Foi idiota, mas foi sem pensar. Eu te adoro sensível assim, não precisa mudar.
Ele não falou nada, apenas sorriu, tão lindo. Me abaixei perto dele, ele me deu a mão e eu a
beijei.
De longe vi que não tinha mais ninguém na varanda dos fundos, fui até uma lâmpada que
ficava pendurada no galho da castanheira e desenrosquei-a até que apagasse. Ficou tudo
escuro.
— Vem cá... — estendi a mão na penumbra em direção ao Eric e apenas ouvi sua respiração —
Eu quero você...

Passaram-se alguns segundos até que ele pegou a minha mão, senti que ele estava ansioso,
meu coração batia forte como se fosse o nosso primeiro encontro. Estar com ele ali embaixo de
uma castanheira no quintal da casa dos meus pais dava um sabor diferente, gostoso.
Quando ele ficou ao alcance dos meus braços, eu o abracei com força e começamos um beijo
incrível. A boca dele tinha um gosto de coca cola, e os lábios estavam quentes, macios. O cheiro
dele, naturalmente suave, estava exótico com a mistura da maresia, a pele estava levemente
salgada. Eu saboreava a região do pescoço e, apesar de tanta comida que tinha na mesa,
aquela era a coisa mais gostosa que eu provava naquele dia. Eu perdia a noção da minha força,
apertando-o, fazendo com que ele se curvasse para trás.
— Calma — ele falou por fim, quase sem voz, enquanto eu tentava tirar sua camisa — aqui
não, né.

— Eu quero você, agora. Não dá mais... — voltei a beijar o pescoço e a passar as mãos pelas
costas dele.
— Quando a gente voltar... — ele falava num sussurro — Você pediu pra eu não te deixar fazer
besteiras...
— Não vou conseguir dormir assim, eu preciso de você...
— Ei, mas aqui não tem como. O que você vai fazer? — ele falava me impedindo de despi-lo,
mas não saía dos meus braços.
— A gente podia sair um pouco...
Nesse momento um barulho de passos nas folhas secas do chão me fez gelar. O Eric começou a
se afastar, mas eu segurei em seu braço. Me veio uma ansiedade enorme e meu coração quase
parou.
— Bruno? — era a voz do Fabrício.
— Ei... Eu tô aqui — consegui falar, mas meu peito parecia gelado. E não soltava a mão do Eric.
— Não é melhor entrar e dormir? Papai pode querer vir aqui...
Esperei que ele se afastasse, mas ele não saiu. Ao invés disso, ele começou a rosquear a
lâmpada até que ela se acendeu.
O Eric ficou muito desconfortável, mas eu entendi que não adiantava fingir que não estava
acontecendo nada. Ainda segurando-o pela mão, eu fiz um carinho no rosto dele para deixa-lo
mais tranquilo.
— Vai tomar um banho e deita lá onde te mostrei, tá bom? Depois eu vou...
Ele abaixou a cabeça e saiu. Eu sentei no banco e Fabrício sentou ao meu lado em silêncio,
ficou olhando para as mãos e depois de um tempo ele começou a falar.

— Não foi surpresa pra mim, mas aqui não é um bom lugar pra essas coisas.
— Eu sei... — admiti — Mas por que a falta de surpresa?
— Você vigia ele o tempo todo, eu notei desde o primeiro dia. E outras pessoas também já
notaram, papai comentou até.
Apenas ri, envergonhado.
— Tão namorando? — ele perguntou, divertido.
— Não, não... — abaixei a cabeça e fiquei pensando.

— Hum... Amizade colorida?


— Também não. Não sei o que é, acho que tá mais pra simbiose, sei lá — Fabrício riu — só sei
que é meio esquisito, eu não consigo ficar sem ele, parece até meio patológico, sei lá.
— Terminou seu namoro, feito homem? — ele olhou para mim.
— Pra mim tá terminado, já tentei duas vezes, mas ela insiste em só dar um tempo, e não sei o
quê. A culpa não é minha.
— Ela sabe?
— Não, como eu ia falar disso com ela?
— É melhor deixar tudo às claras do que ficar traindo, não acha? — Fabrício se levantou e foi
saindo.

Eu permaneci ali por mais um tempo, pensando e pensando.


XIII

Deitei na cama que ficou para mim, cansado, mas sem sono. Na cama de baixo, o Gabriel
dormia atravessado e no outro lado o Eric parecia dormir, virado para a parede. Aos poucos fui
pegando no sono.

Acordei cedo no domingo e o Eric não estava mais na outra cama, o Gabriel também já estava
na maior algazarra lá fora. Tomei café conversando com meus cunhados, mas senti uma
atmosfera estranha por ali, apesar dos sorrisos exageradamente simpáticos de todos. Não sou
vidente, mas sou sensível à mudança de rotina. Parece que todo mundo já sabia e fingia que
não tinha acontecido nada para não atrapalhar o clima da festa.
Preto chamou as crianças para ir à praia e eles saíram. Pouco depois o Eric chegou na varanda
junto com a minha irmã Milena. Ele estava tímido, mas tentava ser simpático, e estava lindo de
bermuda e camiseta branca. Milena veio me abraçar.
— Irmão, seu preguiçoso! Eu fui correr na praia e vi o seu amigo lá e você ainda aqui, bem
dormindo!
— Acordei foi cedo demais, isso sim.
Por volta das dez da manhã foram chegando mais parentes. Meu pai colocou a cadeira da
minha avó na varanda dos fundos, falou com todo mundo, menos comigo. Eu sabia que tinha
algo diferente por ali, mas tentei não ficar triste com isso. Fiquei tomando cerveja e
conversando sobre trabalho com algumas pessoas até que o Preto voltou da praia com as
crianças.
— Nossa, eu preciso passar mais tempo com essas crianças, assim eu perco muitos quilos sem
nenhuma dieta. E aí Brunão?

Ele foi pra sua churrasqueira e começou os preparativos. Sempre simpático, ele puxava assunto
com todo mundo, inclusive com o Eric. O amor pela preparação da comida levou o garoto a se
aproximar do Preto e os dois ficaram conversando e rindo. A Amanda apareceu com tomates,
pimentões e cebolas e pediu ao Eric para ajudar com o vinagrete. Ali ele ficou feliz, mas pediu
para amolar a faca.
Giovane, um primo meu, chegou perto de mim e me abraçou, pelo visto ele tinha começado a
beber cedo, pois já estava muito chato e fedido.
— Primão, cadê aquela sua namorada, velho? Tô sabendo que você trocou pelo franguinho ali,
é verdade?
— Jô, vai se fuder cara, já tá chapado há essa hora?
— Tô chapado, mas não tô cego, velho. Tu tá virando viado, velho? Nessa idade? — ele ria e me
abraçava. Outras pessoas também riam, alguns sem graça com a situação.

O Eric fingia que não ouvia, o Preto se esforçava pra manter a atenção de todos na
churrasqueira. Empurrei o Giovane pra longe, peguei uma latinha e sentei numa cadeira.
Chegou mais gente para almoçar, todos comiam muito, até que acabou o vinagrete. Amanda
trouxe mais ingredientes e chamou o Eric pra fazer.

— Vem aqui rapaz, você corta tão rapidinho. Faz aqui pra mim.
O Eric já estava por perto e atendeu prontamente ao pedido. Amanda e o marido ficavam
impressionados com a habilidade dele com os tomates e cebolas. Até que o Giovane, mais
bêbado ainda, começou de novo.
— Amanda, esse aí é a sua cunhada, tá sabendo? Namorada do Brunão! E é prendada a
menina! — e ria sem parar, cambaleante, e se encostou no tronco de madeira da varanda.
— Cala a boca Giovane, vai sarar essa cachaça pra lá — a Amanda ficou irritada, ela sabia que
aquilo ia dar galho.
— Prima, Brunão é o primeiro viado da família! — e se virou para mim me apontando a latinha
de cerveja — Parabéns, velho!
— Jô, pelo amor de Deus! — disse alguém que eu não vi quem era.
— Velho, quer morrer? — olhei muito sério pra ele e falei entredentes, mas ele caiu na
gargalhada e olhou pro Eric.
— Princesa, o que você fez pro Bruno virar viado assim? Você é gostosinha, é? — Giovane ria e
fazia gestos obscenos.
O Eric, que cortava tomates com a agilidade da sua faca afiada, lentamente foi levantando o
olhar, havia um brilho de aço na íris azul-cinzenta. Não é preciso muito tempo, nem muitos
detalhes para entender alguém. Levantei da cadeira.
Faca. Adjetivos femininos.
Às vezes não basta ter o pensamento rápido, é preciso também ter 1,89 de altura e uma
envergadura de quase dois metros. Uma fração de segundos, um movimento preciso, um grito,
e um objeto de metal se cravou no tronco de madeira. E um silêncio reinou.
Deitado no chão meu primo Giovane ainda segurava um sorriso débil, mas sua pele estava fria
e pálida. Ergui-me, limpando a areia e deixei-o ali. Ignorando a perplexidade geral, eu tentei
tirar a faca do tronco de madeira, mas por nada no mundo ela saía. Vi que a Amanda levava o
Eric pela mão, conduzindo-o não para dentro de casa, mas para a praia. Achei uma boa atitude.
Ele se deixava conduzir, sem nenhuma resistência.
Havia muitas pessoas ali, alguns tentavam contornar a situação constrangedora rindo de outras
coisas, as mães foram atrás das crianças, mamãe chamou pra sobremesa. Meus pais estavam
visivelmente aborrecidos, evitavam me olhar. Saí em direção à praia também, andando bem
devagar. Vi que Amanda vinha voltando.

— Ele só tá muito quieto — ela disse, prevendo que eu iria querer saber.
— Obrigado.

Ouvi que cantaram os parabéns, provavelmente cortaram o bolo, mas eu não fui lá. continuei a
caminhar na praia.
Avistei um garoto de cabelos esvoaçantes sentado na areia, bem próximo ao mar, que de
repente ficou agitado. O dia que nasceu azul aos poucos se acinzentou. Ao olhar para mim,
seus olhos estavam perdidos e nublados, como o tempo. Ele parecia interagir com a natureza, e
mesmo na sua tristeza, abraçado às próprias pernas, formava uma paisagem perfeita. Apenas
contemplei, um pouco distante, para guardar na memória. Não queria vê-lo assim novamente.
Sentei ao lado dele, mas sem toca-lo. Ele apenas olhou para mim, depois para as próprias mãos
e por fim olhou para o mar agitado.
— E agora? — ele perguntou, por fim. E começou a desenhar com o dedo na areia úmida.
Ele resumia uma longa conversa numa simples pergunta. Era sensível, inconsequente e carente,
muito carente. E esperava pela minha reação.
— Eu já sou independente — aprendi a economizar palavras, assim como ele. Não sei se ele
esperava por algo mais, apenas ouviu e continuou calado.
O vento aumentou de intensidade, aos poucos foi ficando frio. Tive que insistir pra que ele
fosse até a entrada principal da casa, deixei-o sozinho no quarto e voltei pro quintal. Todos
tentavam ser simpáticos, falando amenidades, mas notei que cochichavam entre eles quando
eu não estava ouvindo. Não comi o bolo, apesar da insistência da minha mãe.
— Como você sabia que ele ia atirar aquela faca? — Milena, minha irmã, perguntou assustada,
longe dos ouvidos dos outros.
— Porque eu também teria atirado, se estivesse no lugar dele, o Giovane tava merecendo. Mas
ia dar problema pro lado do Eric, por isso não deixei.

No começo da tarde de domingo, bem antes do planejado, nós começamos a viagem de volta,
calados e cansados. O Eric ficou boa parte do tempo olhando pela janela do carro, caía uma
chuva fina e cinzenta. Já o Gabriel, alheio à confusão, dormiu por quase toda a viagem. Deixei-o
com a mãe, a Jéssica, que sorriu de forma misteriosa para o Eric na despedida. Com certeza ela
também sabia.
Ao entrar no grande e escuro apartamento, ele também pareceu um estranho para mim. A vida
iria mudar para sempre.

Sem qualquer palavra o Eric foi para o quarto, eu fui à cozinha, abri a geladeira para pensar no
que ia ser dali em diante, no que eu deveria fazer. Peguei um iogurte que devia ser do Sérgio e
tomei. Fiquei ali um bom tempo pensando em tudo o que tinha acontecido, nos meus pais que
não me olharam na cara naquele domingo, no comportamento do Eric...

Fui pro quarto e ele dormia na minha cama. Tomei um banho e saí, fechando a porta
devagarinho. Me tranquei no escritório, mas dessa vez não era para planejar nada, era apenas
esperar. Sentei numa cadeira que, apesar de velha ainda era bastante confortável. Num
armário no canto, uma foto da minha formatura junto a toda a minha família, uma linda
família de origem italiana, muito religiosa. Eu, vestido de preto, o urubu, a ovelha negra da
família, meus pais orgulhosos, meus irmãos sorridentes. Desviei meu olhar daquela foto, olhei
para o teto e fechei os olhos por um tempo, por muito tempo...

Quando os abri a atmosfera estava diferente, o ar mais frio, meu corpo cansado e dolorido,
não precisei quanto tempo tinha se passado. Meu celular sobre a mesa estava com a tela
iluminada, mesmo sem toca-lo eu sabia do que se tratava. Peguei-o apenas para confirmar:
uma mensagem da Milena me chamando para conversar tão logo fosse possível, no dia
seguinte.
Levantei com certa dificuldade por causa do tempo que passei numa posição desfavorável, fui
andando até o meu quarto, que era perto. Naquele apartamento de mais de 250m² poucas
coisas eram perto. Entrei silenciosamente, o Eric continuava dormindo. As cortinas estavam
abertas e isso permitia um pouco de claridade, então não acendi nenhuma luz. Ao me
aproximar da cama, notei que ele estava muito encolhido, cheguei bem perto e vi que todo o
corpo dele tremia. Ao toca-lo, automaticamente recolhi a mão, a temperatura estava muito
alta e ele gemia baixinho.
— Eric? — passei a mão de forma vigorosa nas costas dele — Acorda, você tá muito quente!

Sacudi um pouco aquele corpo febril de pelos eriçados, ele abriu os olhos, meio perdido.
Acendi apenas a arandela para não assusta-lo com a luz forte.
— Vem, vamos tomar um banho frio.
Tentei tira-lo da cama, mas ele não colaborava muito. Levei-o ao banheiro, tirei a roupa dele,
mudei a temperatura do chuveiro para o frio e empurrei-o lá debaixo. Tive pena naquela hora.
Sempre soube que é um bom procedimento para baixar a febre alta, mas mataria alguém que
fizesse aquilo comigo. Ele tremia, batia os dentes e não conseguia falar nada. Acabei me
molhando um pouco também, pois estava vestido. Desliguei o chuveiro, ajudei-o a enxugar-se e
levei-o de volta para a cama. Não permiti que ele se cobrisse.
— Tá friiio... — ele conseguiu falar.
— Já vai passar, bebê. Vou arranjar um remédio aqui.
Fui até as coisas do Gabriel e peguei um remédio dele. Era de gotinhas, calculei a dosagem, que
basicamente precisou de todo o restante do frasco e coloquei na boca do Eric. Ele protestou,
mas não deixei que cuspisse o líquido amargo.

— Larga de ser fresco garoto, não sou médico, mas entendo da parada aqui. Daqui a pouco
você toma outro banho.

— Ne... nem morto — ele falou tremendo e rindo.


— Você vai começar a suar e vai querer um banho.
Sentei na cama ao lado do Eric e fiquei olhando-o bem de perto. Ele tinha um olhar de pupilas
dilatadas febris, as faces rosadas, as mãos muito brancas e trêmulas. Fiz-lhe um carinho no
rosto.

— O que tá havendo contigo, meu anjo?


— Nada demais, vai passar — ele tentava se cobrir, eu não permitia.
Tirei minha camisa e deitei ao lado dele, que imediatamente se aconchegou em mim em busca
de calor. Passei um braço e uma perna sobre o corpo dele, sentindo-o tremer.
— Se a sua febre não passar, vamos ao médico, ok? Tomar injeção na bunda.
— Ah, por favor... — ele riu e escondeu a cabeça no meu peito.
Fui acarinhando e abraçando ele, e assim acabei dormindo. Quando acordei, muito tempo
depois, ouvi que ele estava no banho. Quando ele deitou ao meu lado, senti que a
temperatura corporal estava normal. Voltei a dormir.

Antes das seis da manhã eu me arrumei e saí, sem tomar café e sem falar com ninguém. Eu
tenho uma coisa chamada ansiedade que em alguns momentos não consigo controlar. Rumei
pra casa da minha irmã. Ainda era cedo, mas ao vê-la na sala de sua residência, notei que já
estava acordada há um bom tempo. O marido dela apenas me olhou e saiu.
— Então Milena, qual é a bomba que você tem pra mim? — perguntei antes mesmo do bom
dia.
— Bruno, vamos sentar pra conversar. Quer um café?
— Não, eu não vim pro café. Estou ouvindo — permaneci de pé.
Ela sentou no sofá e respirou fundo. Começou a falar com uma voz triste, sem olhar para mim.
— Papai ficou aborrecido com o que estavam falando de você lá.
— E o que foi que “falaram” de mim lá? — nessas horas entra em cena o sujeito indeterminado
na terceira pessoa do plural.

— Que você estava beijando o tal do Eric na noite de sábado.

Não fiquei surpreso, apenas ansioso, muito ansioso. Ri e ri alto. Ela olhou para mim, assustada.
— E ele mudou de ideia sobre deixar aquele apartamento para você, resolveu que vai vender
e...

— Claro, claro, eu já esperava por isso. Ficou feliz? — olhei-a nos olhos e sorri cinicamente. Ela
e o marido não ficaram de bem comigo quando nossos pais me deixaram no apartamento. Não
foi feito nenhum documento de doação, nem de compra e venda, dessa forma meu pai ainda
poderia reaver o imóvel em que eu morava.
— Eu não participei disso não Bruno, claro que eu nunca gostei de você ser sempre o
beneficiado, o favorito, claro que eu achei injusto você ficar com o apartamento sozinho, mas
isso já passou. Agora foi papai que resolveu vender e dividir o dinheiro, ele...
— E o que vou fazer com o pessoal que mora lá, hein?
— Eles podem ficar até o fim do ano, pode deixar.
— Hum, que generosos. Mais alguma coisa?
— Bruno, não seja assim tão cínico!
— Olha, minha querida, vamos combinar o seguinte: eu vou sair de lá essa semana e você fica
responsável por administrar aquele museu, ok? Tem inquilinos até o fim do ano, o imóvel é do
seu pai, a responsabilidade é sua.
— Bruno, não inventa...

— Olha — a interrompi — você me conhece, eu não sou de ficar de chororô. Tenho que sair? Tô
saindo essa semana. Tchau.
Saí dali sem olha-la, passei pela porta e meu cunhado Marcelo estava lá. Fingi que não o vi. Fui
direito pro trabalho, não tomei café, nem nada, tratei logo de ocupar a cabeça com outras
coisas.
Quando tive um tempo sozinho, fechei os olhos e tentei pensar no que estava acontecendo, no
que seria dali em diante. Mas na minha cabeça havia apenas o peso do cansaço, não estava
triste, nem desapontado. A minha quota de tristeza se foi quando meu pai não falou comigo
na manhã de domingo.
Eu mesmo não sabia bem o que estava acontecendo comigo. Eu beijei o Eric, o que já era uma
coisa de espantar muita gente. Eu beijei o Eric no quintal da casa dos meus pais, o que chocou
a minha tradicional família religiosa. Meu pai queria o apartamento de volta, o lugar onde eu
morava com mais quatro pessoas, sendo que uma delas era justamente o Eric.
Abri meus olhos, já decidido. Meu espírito prático não permitiu que eu divagasse muito,
acessei um site de classificados e comecei a analisar algumas opções.
XIV

No horário de almoço, resolvi ir ao meu apartamento, eu tinha que ver o Eric. Quando eu ia
saindo, Ronan, um dos meus superiores, discretamente me chamou pra conversar.
— Sim? — respondi meio intrigado.

— Bruno, reunião às 14:00, alguns diretores querem conversar com você.


— Diretores?
— Sim, eles virão especialmente para isso.
— Pauta da reunião...? — inquiri.

— Não faço a mínima ideia, agora pode ir.


Saí do trabalho irritado. Eu estava cansado pela noite mal dormida, pelo fim de semana ruim,
pela conversa chata de manhã, e ainda mais isso! Era pouco mais de onze da manhã e eu teria
que esperar até duas da tarde para saber o assunto da tal reunião surpresa.
Ao chegar ao condomínio, deixei o carro na rua, subi sem falar com ninguém, se alguém me
dissesse “bom dia” eu responderia “só se for pra você”. Destranquei a porta impaciente, entrei
e fechei-a sem nenhum cuidado, fazendo barulho. O Eric, que devia estar na cozinha, foi à sala
ver o que estava acontecendo. Ao vê-lo, minha irritação começou a diminuir.
Aquela pele branquinha, os cabelos claros e fininhos caídos na testa, aquelas roupas simples,
aqueles olhos cinzentos... Abracei-o forte, procurando pelo cheirinho gostoso do pescoço,
sentindo os pelos dos braços dele se eriçarem, depois o beijei de lábios, num selinho
demorado. Ele sorriu e me olhou nos olhos.

— Você não avisou que vinha almoçar...


— Ei, eu vim te ver, seu bobo. Você tá bem? — ele balançou a cabeça afirmativamente — Se
não tiver comida eu faço um lanche na rua depois.
— Não, não, vem cá — ele me pegou pela mão me conduzindo à cozinha.
— O que tem de bom naquela cozinha?
— Tem eu — ele disse sensual, e depois riu.
— É justamente isso o que eu tô precisando.
Lá ele soltou a minha mão e começou a pegar algumas coisas na geladeira, colocando sobre a
bancada. Pegou uma tábua de corte de plástico e uma faca pequena e afiada e começou a
cortar rapidamente. Abracei-o por trás e comecei a beijar o pescoço dele, fui enfiando as mãos
por debaixo da camiseta branca, alisando o peito e a barriga, pressionando o meu corpo no
dele. Ele riu e falou com a voz rouca.

— Para Bruno, senão o almoço não sai.


— Olha garoto, hoje o dia tá infernal. Se eu chegasse aqui e não te encontrasse, com certeza eu
botaria esse prédio abaixo, entendeu? Preciso de você, e agora — e voltei a beija-lo no ombro.

— E se chegar alguém, hein? Melhor não arriscar... — ele se virou e ficou de frente para mim.
— Então vamos pro quarto, vai ser rapidinho... — fui empurrando-o delicadamente para fora
da cozinha.
— Hein? Ah, Bruno...
— Vem comigo, meu anjo... Eu tô quase maluco, preciso relaxar e só consigo isso com você...

Entramos no quarto e eu não tranquei a porta. Eric se sentou na cama, me olhando nos olhos,
meio apreensivo. Parei na frente dele, bem perto, e toquei-o no queixo com um dedo.
— Tira a roupa pra mim, vai, eu quero ver...
Eu sentei na beirada da cama, tirei apenas sapatos e meias. Ele se levantou devagar e começou
a tirar a camiseta lentamente. Sorria safado, mas tímido, mordia de leve os lábios, e às vezes
me olhava nos olhos. Eu observava os movimentos sensuais dele enquanto minha irritação e
ansiedade iam sendo substituídas por tesão e prazer. Inclinei-me para trás para ficar mais à
vontade, apoiado nos braços esticados, estiquei também as pernas abertas, pra que ele
notasse o quanto eu estava gostando da cena. Depois que tirou a bermuda, ele parou, em
dúvida.
— Tira tudinho... — pedi, mordendo os lábios.

Ele tirou, olhando a porta de vidro da sacada, ficando ruborizado e ainda mais lindo.
— Vem cá... — pedi baixinho quando ele ficou todo nu e me deitei, ainda vestido — Vem, sobe
aqui.
O Eric subiu na cama, olhando o meu corpo ainda vestido e começou a me beijar. Ele me dava
um beijo doce, saindo um pouco quando eu queria acelerar, segurava nos meus braços, sem
fazer muita força. Aquele beijo doce era delicioso, mas eu queria provar o corpo dele todinho.
Fiquei de joelhos na cama, fazendo-o deitar-se.
Ele olhava a minha camisa preta e depois me olhava nos olhos erguendo uma sobrancelha, e
eu ignorava a pergunta muda dele. Comecei a beijar o pescoço, depois os ombros, sugando
devagar, depois desci para o peito onde os dois biquinhos já estavam durinhos me esperando.
Mas não demorei muito ali, desci pra barriga, beijando e mordendo de leve. Ele se contorcia e
gemia.
Enquanto eu beijava a barriga, olhei um pouco mais para baixo e o seu membro meio rosado
estava no ar com uma gotinha escorrendo. Beijei a pelve e desci para as coxas, sempre olhando
para ele. Tinha pelos claros e finos bem aparados que exalava um cheiro suave de sabonete.
Voltei a passar a língua pela barriga dele, era magra, mas macia. Não tinha músculos salientes
nem costelas à mostra, era perfeita. Minhas duas mãos subiram juntas e pegaram os mamilos
simultaneamente. Nesse momento ouvi um suspiro mais forte, depois um gemido discreto. Ali
era sensível e ele gostava. Fiquei assim, saboreando aquela pele, às vezes nossos olhos se
encontravam.
Subi para alcançar aquela boca macia, vermelhinha e tão quente que senti mais calor quando
beijei. Ele queria um beijo doce, então foi assim que eu fiz, fui bem devagar, sugando os lábios,
a língua enquanto apertava os peitinhos, fazendo-o gemer na minha boca. Depois fui pro
pescoço novamente, ficando sobre o corpo dele, que começou a puxar a minha camisa.

— Quer me ver sem roupa, é? — perguntei bem sacana.


— Quem tá na chuva é pra se molhar, né.
Fiquei na posição de flexão enquanto ele tirava a minha roupa. Quando fiquei todo nu, ele riu
timidamente.
— Ora, não gostou? Você já viu...
— Você é todo exagerado... — ele me olhou com os olhos tão abertos que tive que rir.
— Eu sei, seu bobo. Mas relaxa, tem umas coisas que não tenho vontade de fazer... A não ser
que você queira muito, entendeu? — beijei os lábios dele e me sentei entre as pernas abertas.
Ele me olhava nos olhos, a respiração ofegante, os lábios entreabertos, todo disponível para
fazer as minhas vontades. Eu ficava louco com aquilo.

— Pega os dois, vai... — pedi, tentando imitar o jeitinho sensual de ele falar.
Ele arqueou as costas e sua mão esquerda tentou segurar nossos membros ao mesmo tempo.
Eu ajudava, chegando mais perto. Era uma delícia aquilo, mas a mão dele estava meio lenta,
então eu peguei, não foi estranho nem nada pegar o membro de outro cara, na verdade foi
bom pra caramba vê-lo sentir prazer, se contorcer. Eu masturbava os dois, mas ele não tirou a
mão, ficou meio que me ajudando. Foi ficando molhado, mais quente e mais gostoso. Eu
poderia fazer aquilo por horas até que doesse, mas tinha hora pra sair e ainda tinha que
comer. Comida.
Livre de qualquer nojo ou preconceito eu cheguei um pouco para trás, segurando aquele
membro, limpei a babinha que saía, saiu mais e eu limpei novamente, até que coloquei na
boca, claro que só um pouco, não era exagerado como o meu, mas não era pequeno. Acho que
o Eric não acreditou no que eu estava fazendo, ficou paralisado por alguns segundos, mas
depois começou a gemer e arranhar o lençol da cama. Tive que parar nessa hora.
— Por favor, não passe as unhas no tecido...

Ele parou e riu, mas delicadamente empurrou minha cabeça para onde estava. Acho que ele
estava gostando.
— A boca dói... — parei depois de chupar um pouco. Eric me olhou.
— Bruno, não precisa fazer isso se você não gosta...

— Claro que eu gosto, mas ajuda aí... — peguei a mão dele e fiz com que se masturbasse
enquanto eu tentava chupa-lo.
Foram mais alguns minutos até que ele começou a se contorcer mais, a gemer mais forte e a ter
espasmos de prazer, alguns jatos de algo parecido com leite de coco caiu na barriga dele. Foi
uma cena incrível, que durou bastante tempo. Ele tirou da minha boca e ficou segurando,
espremendo até que saísse tudo o que tinha lá dentro. Depois ele ficou respirando forte,
olhando nos meus olhos e rindo descontraído.
— Quer também?
Não respondi nada, apenas virei-o de bruços na cama e me deitei sobre ele, apoiando meu
peso nos meus braços flexionados. Vi que ele ficou de olhos abertos, tenso, beijei-o na nuca,
lambi o pescoço e pus minhas pernas abertas em torno das dele, prendendo-o.
Automaticamente meu membro, muito lubrificado, deslizou por entre as nádegas dele, e assim
fui pressionando, friccionando em movimentos sincronizados. Ele entendeu o recado e relaxou,
facilitando o trabalho. O calor aumentava, nossos cheiros se misturavam, nossas peles
grudavam e o suor escorria. Meus movimentos de vai e vem sobre ele, apenas de fricção, foram
ficando mais rápidos e mais fortes, a cama, mesmo sendo de madeira bruta, rangia.
Como eu sou mais alto, não dava pra fazer isso e beijar o pescoço dele ao mesmo tempo como
eu gostaria, mas mesmo assim, em pouco tempo eu senti o prazer chegando, acelerei ainda
mais os movimentos e gozei muito, melando o corpo dele e também o lençol da cama.
Enquanto gozava, por mais tempo do que estava acostumado, eu desci para alcançar o pescoço
dele e morder, chupar muito. Só soltei a pele dele quando estava muito ofegante e desconfiei
que devesse estar doendo. Saí de cima e o olhei todo melado, rimos como dois retardados. Foi
incrível. Não sei que nome tem o sexo assim, limpo, sem dor, sem medo, mas foi perfeito,
delicioso.
— Tô com fome — falei depois de alguns minutos em silêncio, apenas suspirando.
— Eu também, mas preciso de um banho. Eu e a cama estamos grudentos.
Tomamos banho juntos, mas ele saiu rápido e foi fazer algo pra eu comer. Foi uma comida
simples, mas estava maravilhoso e eu estava feliz. Naquele momento eu não me importava se
o mundo estava prestes a desabar sobre mim, os diretores poderiam até me despedir em
menos de meia hora, que eu não estava nem aí. Beijei muito a boca do Eric antes de sair,
depois fui pra empresa saber o que me aguardava.
Cheguei no trabalho apenas alguns minutos antes da hora marcada. Senti meu celular
vibrando, peguei e vi que era o Fabrício, eu queria muito falar com ele, mas teria que ser mais
tarde. Era a hora da reunião.
No fim das contas a tal reunião foi ótima para mim. O assunto era uma sobre a parceria da
empresa com uma fabricante de máquinas agrícolas, com a qual já tínhamos trabalhado outras
vezes. Fiquei encarregado de projetar melhorias numa beneficiadora de grãos que já tinha sido
testada e reprovada. O local de trabalho era nos arredores da cidade vizinha, distante cerca de
80 quilômetros, para onde fui com mais três pessoas. Fiquei feliz em ganhar mais espaço e
confiança na minha profissão, ainda que tivesse que fazer esforços extras.
Apesar de toda a confusão que virou a minha vida, depois de estar com o Eric eu estava
totalmente relaxado, até mais do que eu deveria, porque eu gosto de estar alerta, ligado e por
que não, excitado para trabalhar. Eu produzo melhor assim do que com a preguiça que eu
estava naquele momento.
Só voltei pra casa por volta das oito da noite, depois de ver muitos detalhes sobre meu novo
trabalho. No carro mesmo, peguei meu celular e retornei pro Fabrício. Ele atendeu muito
rápido.
— Cara, eu tava preocupado achando que você não queria falar comigo.
— Que nada, mano. Diz aí!
— Olha, eu juro que não falei nada pra ninguém daquilo que eu vi, deve ter sido a tia Bete,
porque não fui eu, eu juro pra você...
Eu dei uma risada.

— Eu sei que não foi você, relaxa. Devia ter gente me espiando.
— Tinha sim, eu te falei que você dava muita bandeira...
— Tá tranquilo, ninguém morreu por causa disso não.
— Ainda bem né, cara! Falando nisso, que pontaria daquele garoto! — Fabrício riu — Sério
mano, eu fui lá quando não tinha mais ninguém e tentei jogar aquela faca umas duzentas vezes
e ela não cravou no tronco, sério mesmo. Ele treinou muito, pode ter certeza, cara.
Fiquei pensando no que ele disse. De onde vinha aquela habilidade do Eric?
— Como ficou o clima lá depois que eu saí?
— Sinistro, cara. Papai tava sem graça, o povo foi indo embora. Quando ficou só a gente, ele
começou a falar que você não tava bem da cabeça, que esse pessoal que mudou pro
apartamento tava te fazendo mal, que era melhor vender aquilo e dividir o dinheiro, que aí
você comprava um menor e ia morar sozinho.

— Sei... E mamãe, e Milena?

— Todo mundo ficou quieto, ninguém apoiou ele não, nem Milena. Amanda e Preto já tinham
saído. Mas olha cara, fica tranquilo aí, não precisa sair correndo não. Se ele vai mesmo vender
o apartamento, isso leva tempo, tem que avaliar, tem toda aquela muamba lá dentro. Vai ser
até bom pra você, você vai ver.
— Eu sei, já pensei nisso também. Mas tem os gêmeos, o Serginho...
— E o Eric... — ele riu — Mas olha, espera aí um pouco antes de dar a notícia pros caras.
Mamãe não quer se desfazer do velho apê, e é ela que manda, você sabe. Fica quieto aí por
enquanto, eu te aviso quando o tempo mudar por aqui.

— Falou irmão, te amo, velho!


— Falou, viado! Ops — ele riu alto — Também te amo!

Entrei no apartamento e só estava o Paulo Henrique lá, o Serginho ainda não tinha voltado da
academia e o Eric tinha dado mais um perdido. Olhei no quarto, na cozinha e fui pro banheiro
aborrecido. Pra onde ele teria ido em plena segunda-feira?
Depois do banho eu tive que comer a comida do Rique, que, convenhamos, não era a melhor
do mundo, depois fiquei lá com ele na cozinha conversando bobagens. O Serginho chegou todo
cheiroso e penteadinho da academia, fez mais uma salada e sentou à mesa onde estávamos. O
cumprimentei normalmente e depois fui pro escritório, apenas para sentar e pensar.
Fiquei mexendo nos aplicativos do meu celular quando me lembrei de conferir minha caixa de
e-mails. Havia uma mensagem importante, era de uma empresa que eu gostaria de trabalhar e
para a qual eu tinha enviado um currículo há cerca de dois meses. Naquela ocasião eu estava
insatisfeito com as minhas condições de trabalho, mas as coisas tinham melhorado
significativamente. Mesmo assim eu sorri feliz com a resposta ao e-mail, era sobre uma
entrevista que eu deveria confirmar até a próxima quarta-feira. Eu tinha muitas coisas em que
pensar.
Ouvi uma batida na porta e parei os rabiscos que estava fazendo, quando o Sérgio entrou
silenciosamente e sentou-se na cadeira à minha frente.
— Oi, o que foi? — perguntei guardando os papeis.
— Queria conversar.
Ele estava estranhamente quieto, o que não era normal. Olhei-o, interessado.
— Sou todos ouvidos.
— Minha amiga está muito mal.

Eu sabia de quem ele estava falando.

— Ela tá doente? — fiquei preocupado.


— Não, sofrendo por amor. Vocês estão dando um tempo, é isso?

— Olha, isso foi ideia dela, pra mim eu já terminei. Não queria que ela sofresse desse jeito, mas
realmente não dá mais pra voltar, eu não tava sendo legal com ela e você sabe disso. Ela vai só
vai sofrer com essa coisa de dar um tempo.
— O que houve com você, Bruno? Ninguém tá te reconhecendo! Cara, você até deu em cima de
mim! Você parece fora de si às vezes. Sem falar nos boatos que rolam por aí...
— Não houve nada, sou eu mesmo — suspirei, guardei umas coisas na gaveta e levantei — Não
sou perfeito como todos achavam, mas o que eu posso fazer? Falou pra ela?
— Hã? Claro que não! — ele sabia perfeitamente do que eu estava falando — Não quis que ela
sofresse ainda mais, mas devia ter falado pra ela parar de achar que é a culpada.
— Ela vai ficar bem, não tem nada a ver ficar se sentindo culpada, já disse isso. Vou dar um
jeito de conversar com ela essa semana.
Sentei na mesa perto do Serginho, que ficou me olhando.
— Cara, você não devia mudar a sua vida assim por causa do Eric, ele não vale à pena.
— Hein? — cheguei mais perto e ele se encolheu na cadeira, mas continuou falando.
— Sim, aquelas caras e bocas que ele faz pra seduzir, ele faz pra todo mundo, tá? Na verdade
ele não tem rumo, não para em curso nenhum, e quando precisa de ajuda aí ele paquera
algum macho babaca, que vai correndo salvar a princesa.
Empurrei a cadeira dele um pouco mais para trás e me abaixei até o meu rosto ficar bem perto
do dele.
— Não diga bobagens, eu não sou idiota, sei de tudo da vida do Eric. Eu gosto dele do meu
jeito e gosto muito do que ele faz. Tá me fazendo um bem que você não imagina.
— Tem certeza? Você sabia que ele aumenta os sintomas de uma alergiazinha qualquer para
chamar a atenção? E pelo visto ele consegue né, você caiu direitinho!
Mesmo acuado o Serginho continuava a falar do Eric com desdém.
— E qual é a sua, hein? Tá com inveja dele?
— Você é maluco, isso sim. Não tá normal.
— Ah, quem sabe do meu normal? Você sabe, por acaso?

Ele foi tentando se levantar, mas eu o fiz ficar sentado e falei pondo o dedo bem no nariz dele.

— Não tente dar uma de juiz ou de conselheiro pra cima de mim, ok? E não venha com
piadinhas na hora do café, entendeu?
Serginho me olhava com um ar feroz, mas depois ficou quieto, olhando para baixo. Suspirei,
pensei um pouco e voltei a sentar na mesa.
— Eu admiro a sua lealdade para com os seus amigos, a Larissa, o tal do Pablo, mas deixe o Eric
em paz. Você não precisa gostar de mim e nem dele, pode se mudar se quiser.
Ele me olhou sério.
— Agora, fim de período, você vai me mandar sair daqui?

— Claro que não, não tô mandando ninguém sair. Talvez eu é que saia e deixe isso aqui por
conta da minha irmã, mas nem isso é certo. Tô te dizendo para deixar o Eric em paz, para não
alimentar as esperanças da Larissa e para não vir me dar conselhos, entendeu?
Ele ficou um pouco quieto, depois se levantou e saiu. Tentei me concentrar no que eu estava
fazendo antes, mas não foi possível, alguns pensamentos insistentes me vinham à cabeça sem
parar. Sem fazer nenhum alarde, eu saí com meu carro, tinha umas coisas que eu precisava
saber.

Ao chegar àquele endereço onde eu tinha estado uma única vez, perguntei na portaria e
poucos minutos depois um cara muito branco e magro veio falar comigo. Não me chamou pra
subir, ao invés disso fomos até um bar do outro lado da rua.

— Evander, desculpe aparecer assim sem avisar, mas tô preocupado com Eric. Ele tem estado
numa crise permanente de uma infinidade de alergias, o que há de errado com ele?
O homem riu e pensou um pouco antes de responder.
— Eu sabia que algum dia você viria me perguntar, se estivesse mesmo interessado nele. Não
me olhe assim, eu sei que vocês estão ficando, então vou te falar a real: o Eric é carinhoso,
prestativo, mas também é extremamente ciumento, manhoso, e carente. Tão carente que ele
pode fazer qualquer coisa, eu digo, qualquer coisa mesmo pra ter a sua atenção. Simples assim
— ele falou e ficou me olhando, tomando uma Coca-Cola.
— Não me parece tão simples, mas me diga a verdade: há algo de grave nisso? Ele pode se
tornar, digamos, perigoso de uma hora para outra?
— Claro que não, nada disso! O que ele faz é ficar doente, e sério mesmo, sem fingimentos. Ele
já teve febre de 41° e o médico me disse que era apenas ciúme, entende? É que ele passou a
maior parte da infância sozinho, sem qualquer tipo de afeto, é uma história bem complicada.
Quando veio morar comigo com oito anos ele não falava, eu pensava que ele tinha algum
problema de audição e me comunicava por sinais, até quando descobri que ele falava sim,
quando queria.
— Então ele se fingia de mudo?

— Não, exatamente. Ele não aprendeu a se expressar, mas aprendeu a chamar a atenção de
outras formas, seduzir...
— E aquela história da faca no pescoço da sua namorada?
— Ele te contou, foi? — ele riu — Olha, não leve aquilo ao pé da letra. Naquela época a minha
namorada, mais infantil do que ele com onze anos, perturbou o menino até que ele ficasse
realmente irritado. Ela dizia na cara dele que ele inventava doenças pra chamar a minha
atenção, que ele tinha ciúmes de mim, essas coisas. Foi na época que eu tava terminando a
faculdade, muito estressado, sem tempo pra nenhum dos dois. O Eric ficava doente de
verdade. Se ele te contou essa história, entenda como um aviso: ele tá com ciúmes de você,
tem medo de te perder, é isso. Soube que você não terminou de verdade o seu namoro...
— Ele parece não se importar...
— Mas ele se importa, e muito. E tem medo que as pessoas se afastem...
— E quanto àquelas alergias todas?
— Ele tem alergia sim, mas pode ser facilmente controlada. O problema é que ele não fala com
ninguém, não quer receber ajuda da mãe. Ela o abandonou com seis meses de vida, mas está
aí, tem dinheiro e quer ajudar, mas ele não quer.
Pensei um pouco e resolvi falar.

— Ontem o Eric atirou uma faca num primo meu que estava falando como se ele fosse uma
garota.
— Isso é complicado — Evander suspirou — é um daqueles casos extremos, como o que te
falei. Como não sabe brigar com palavras, ele se defende como pode. Mas fora isso, o resto é
pirraça.
— Qual a receita pra pirraça?
— Ora, você tem um filho então sabe o que fazer, dá uns tapas na bunda dele.
Não me contive e ri alto. O Evander também riu, com certeza ele entendeu o meu pensamento
e eu fiquei um pouco envergonhado.
— Você que o criou como um filho aceita fácil assim ele ficar com um homem?
— Eu não tenho escolha, já tem muito tempo que ele me disse que gostava de meninos. É claro
que eu não gostei, principalmente quando ele ficou com um amigo meu, ele ainda era um
adolescente, eu me aborreci muito. Tinha a esperança de que fosse só mais uma forma de ele
chamar a atenção, mas agora parece que ele gosta mesmo de você, então, o que posso fazer?
Só espero que você não esteja brincando com ele, por que aí as coisas podem ficar ruins pro
seu lado — isso ele falou sério, me olhando nos olhos.

Fiquei sem jeito e pensativo, tomando o resto do refrigerante do meu copo.


— Entendo, é a sua obrigação, né...

Depois dessa conversa eu voltei pro meu endereço sem nenhuma pressa, apenas aproveitando
a liberdade da noite, as ruas estavam quase vazias e silenciosas. Abri a porta do meu quarto
silenciosamente e vi o Eric dormindo de bruços na minha cama. Pensei mesmo em dar uns
tapas na bunda dele, mas fui tomar banho e dormir.
XV

Na manhã seguinte acordei um pouco mais tarde que o normal porque eu tinha tempo, só iria
pro meu novo serviço depois das nove. A casa estava silenciosa, mas não vazia, o Eric estava na
área de serviços.

— Ué, não foi estudar? — cheguei bem perto dele e dei um beijo no ombro.
— Não, acho que vou ter que parar...
— Parar? Por quê?
— Tô sem emprego fixo, como vou pagar? — ele estava lavando panos de prato e falava sem
me olhar.

— Não é o primeiro curso que você começa e abandona, não é mesmo? — falei calmo, mas ele
se assustou.
— Pois é... Eu nunca fui muito bom na escola, mas parece que sou simplesmente obrigado...
Passei a mão no ombro dele, pensativo.
— E o que seu irmão diz sobre isso?
Eric riu, olhou para baixo e ficou vermelho. Depois me olhou sem graça.
— Ele diz pra eu trabalhar num bar ou num restaurante e dar um jeito de casar. Mas claro que
ele tá brincando...
Eu não disse nada, ri pra descontrair, mas fiquei pensando.

— Por que sua mãe não paga, aí você estuda mais tranquilo sem precisar de correria? —
perguntei depois de um tempo.
Ele me olhou sério, saiu de perto e começou a lavar umas coisas na pia da cozinha. Fui atrás
dele.
— Por que o nervoso?
— E por que eu tenho que ser ajudado? Não posso simplesmente viver do meu jeito? — ele
estava com uma esponja cheia de sabão lavando talheres e a próxima peça era uma faca.
Ri e abracei aquele carinha complicado, segurando os braços dele.
— Relaxa, meu atirador de facas, deixa isso aí antes que você fique viúvo! — e cheirei o
pescoço dele.
Ele se virou, me olhando desconfiado.
— Hã? Eu não fico jogando faca toda hora não, tá maluco? — enxugou as mãos e saiu da
cozinha.

Eu ri sozinho e fiquei pensando enquanto tomava um café. Talvez algumas pessoas sejam tão
simples, que de tão simples nunca serão compreendidas.

Fui pro quarto me arrumar para o trabalho e quando saí do banheiro, o Eric estava assistindo
televisão deitado na minha cama.
— Nossa, que delícia você assim, disponível na minha cama!
Ri e ele riu também, um sorriso lindo, de olhos quase fechados.
— Ai Bruno, que papo idiota!

— Deixa eu tirar uma foto? — ele olhou sério — Não, continua sorrindo lindo daquele jeito!
— Você fala cada coisa...
Aí ele sorriu de um jeito tão espontâneo que me deixou encantado. Mas não era só isso, o dia,
a luz do sol na porta de vidro, tudo estava lindo, era um cenário perfeito. Peguei minha câmera
que estava ali mesmo no closed, e comecei a fotografa-lo, ele às vezes ria, às vezes ficava sem
graça.
— Você falou uma foto, Bruno...
— Uma foto perfeita, eu quis dizer, ainda estou na tentativa. Mas você é lindo, uma obra de
arte, sabia? Vai ser difícil escolher a melhor.
— Vai, cego...

Depois que tirei uma quantidade considerável de fotos, eu comecei a conferir o resultado e ele
continuava na cama só mudando os canais da TV, com um sorriso misterioso, sem me olhar.
— Tem trabalho na boate hoje? — perguntei, deitando ao lado dele.
— Aham, tem sim, mas só hoje. Nestor me disse pra ficar no bar de novo, a semana toda,
menos na segunda. Posso começar amanhã.
— Hum... — eu ainda não tinha conversado com ele os detalhes do meu novo serviço.
— Mas aí meu irmão me chamou pra ficar lá com ele, arranjar um serviço por lá, que vai ser
melhor e tal. Tô pensando em...
— Hein? Mas você não vai com ele não, garoto! Você é meu agora... — virei parte do meu corpo
sobre o dele, mas ele falou, meio triste.
— Tô te arrumando problemas, isso sim. Sabia que não devia ter ido na casa dos seus...

Peguei o rosto dele com as mãos, olhando-o nos olhos.

— Ei, tá tudo bem, viu? No final não aconteceu nada demais, fizeram cara feia, mas e daí?
Sempre fazem cara feia pra tudo e eu não preciso mais pedir autorização a ninguém. Além
disso, eu não sou sentimental, você já deveria saber disso...

— Mas aconteceu alguma coisa, você tá estressado, tá procurando apartamento no Zap... — os


olhos dele ficaram cinzentos, uma cor estranha.
— Ei, para com isso — beijei a testa dele — Talvez eu precise mesmo me mudar, mas é por
questão de trabalho, entendeu? E vou te levar comigo, porque depois que a gente começou
isso, chegar em casa e não te encontrar... — passei as mãos pelo corpo dele — Nossa, você não
sabe como eu fico maluco! Eu quero que você pare de sair assim, como ontem — olhei sério
pra ele.
— Ei, eu não saí. Só fui na praça, minha mãe queria falar comigo.
— Tá bom, mas, olha, continua comigo... — fiz biquinho, ele riu — Vou resolver tudo essa
semana, tá bom?
Ele assentiu afirmativamente.
— Você vai ficar comigo, não vai? — o apertei forte, aspirando o cheiro dele.
— Tá, mas o que digo pro meu irmão?
— Diz pra ele que você casou... — mordi o pescoço dele, que riu e me beijou na boca.

Foi um dia muito interessante. Conheci um fazendeiro, um dos que estavam testando a
beneficiadora de grãos. Ele me explicava a deficiência da máquina com a simplicidade de quem
não precisou estudar para ser bem-sucedido na vida. Um senhor baixo, branco ruborizado,
barrigudo e que trabalhava descalço. Imaginei que talvez ele entendesse daquilo melhor do
que eu.
Cheguei tarde, sujo e cansado naquele dia. Eu tinha mandado uma mensagem pro Vítor
pedindo que ele estivesse em casa às nove junto com os outros pra gente conversar, era uma
boa hora para resolver sobre o apartamento, pois o Eric não estaria presente. Tinha
conversado também com meu amigo Ramon pelo Whats sobre o apartamento dele.
Depois do banho fui à cozinha e eles já estavam lá jantando. Vítor comia em pé.
— Vai crescer mais não, mano — falei.
— Quem sabe, eu tô tentando — ele terminou e foi pegar mais suco.
Serginho que tinha cozinhado e o prato deveria ter algum nome sinistro. Ele estava quieto,
bem vestido e cheiroso. Nunca mais o tinha visto sem camisa e ele passou a trancar bem a
porta do quarto. Sabia disso porque eu ouvia a fechadura antiga ranger e eu me divertia com o
medo dele.
Henrique tinha penteado o cabelo e amarrado, o que o deixou diferente, menos desleixado.
Todos pareciam esperar por alo impactante, e eu era o mensageiro. Eu estava um pouco
ansioso, sem jeito, mas tinha que falar.
— Pessoal, tenho umas paradas pra falar pra vocês, é o seguinte: rolou um desentendimento
com a minha família sobre a posse desse apartamento, ao mesmo tempo tô com duas opções
de trabalho e nenhuma delas é nessa cidade. Tenho planos de fazer um curso também, e é a
mesma coisa, tudo longe. Mas não quero prejudicar ninguém, sei que esse lugar aqui é bom
pra vocês, então, tô tentando pensar em algo que beneficie todo mundo.

— Velho, eu tava mesmo pensando em alugar um apê pra mim, e pro Rique, claro. Até vi umas
opções já — Vítor era prático, rápido e empreendedor. Ele estudava publicidade e propaganda
e já trabalhava no ramo.
— Cara, não pense que eu tô te apressando, minha irmã disse que vocês podem ficar até
quando acabarem as aulas. Deus me livre prejudicar algum de vocês!
— A mim não prejudica não, velho. Tá na hora de ter o meu canto e o “mano véio” aqui vai
comigo — ele se referia ao irmão.
— Mas se eles saírem... — Sérgio falou de forma calma, mas muito sério.
— Você pode ficar, se quiser. Minha irmã é que vai administrar as contas, ela querendo ou não.
Pode ser meio estranho e até assustador ficar aqui sozinho, por isso, se você achar melhor se
mudar, um amigo meu tem um apartamento de dois quartos nessa mesma rua, e está sozinho
no momento. Se quiser, eu já adiantei com ele...
— Ah, valeu! Me passa o número dele, preciso ver isso logo. Alugar um apê sozinho é o meu
sonho, mas só depois da minha formatura. Por enquanto a grana não permite.
Pensei em como seria o Serginho lá com o sem-vergonha do Ramon, e ri internamente. Mas eu
tinha certeza de que daria tudo certo, o Paulo Sérgio era um cara de personalidade forte e não
um menino simples e carente como o Eric. Pensando nisso...
— E o Eric? — o Serginho era venenoso e não ia deixar barato.
— Ele tem mãe e um irmão por aqui, se ele quiser... — foi o melhor que me veio à cabeça.
Claro que não era segredo pra ninguém que a gente dormia junto, mas era preciso manter a
hipocrisia.
— E se ele não quiser...? — Serginho sorriu, malicioso.
— Aí eu já não sei... — sorri do mesmo jeito para ele.

— Vão vender o imóvel? — Paulo Henrique era um desfazedor de climas ruins em conversas
com a sua habilidade de mudar de assunto.
— Se todo mundo vai sair, eu vou entregar as chaves daqui, levar o que me pertence e alugar
uma casa pra mim perto do meu novo trabalho. Meus pais resolvem o que fazer. Vai ser bom
pra mim também, desapegar disso aqui.
— A manutenção é onerosa, né — Rique continuou.
— Demais, isso aqui precisa de uma reforma na parte elétrica, trocar o piso, o gesso, as portas.
Tenho pena de quem comprar. E o condomínio? Subiram de novo, daqui a pouco vai valer todo
o meu salário. Não sei o que tem por aqui pra valer tudo isso — e era tudo verdade. Manter
aquele apartamento não era mais viável para mim.

— Seus pais podem vender a mobília em separado, dá mais retorno — disse o Vítor.
— É, talvez — eu disse apenas.
Depois disso ficamos conversando bobagens como velhos amigos. Aquela conversa foi muito
útil, eu achava que o Serginho fosse chiar por ter que se mudar, estando tão ocupado com o
fim da faculdade, mas ele levou numa boa. Mais tarde, quando ele já tinha ido pro quarto,
passei lá e bati na porta. Ele abriu e me deixou entrar.
— Desculpa aí você ter que se mudar, não queria perturbar mesmo.
— Tá tudo bem, se todos vão sair, tenho que vazar também.
— E o Rique? Vocês tão ficando? — perguntei sem olhar para ele e senti que ele respirou
fundo.

— Não, não, até rolou um lance aí, mas foi só casual, o Rique gosta de uma menina do curso
dele e eu ainda tenho esperanças de voltar com meu ex.
— Hum, que pena. Essa coisa de esperar pelo ex e gostar de quem não gosta da gente é um
atraso, na minha opinião.
— Ah, claro, você encontrou a sua alma gêmea, né! — ele disse, sarcástico como sempre —
Meu amigo gostava dele, fazia de tudo por ele, mas ele dizia que não gostava de homem. Mas
aí veio pra cá e se atirou em cima de você, que tinha namorada...
Ele levantou da cama e começou a arrumar as roupas que estavam sobre uma cadeira.
— Olha, vamos deixar disso, não se preocupe comigo porque eu sou adulto e vacinado. Boa
sorte lá com o Ramon, ele tem namorada, mas se der mole ele pega, viu? — ri.
— Problema dele, eu não dou mole pra homem comprometido... — ele falou sério. Era cheio de
princípios o rapaz.

Mudanças. Só o que está morto não muda, já ouvi isso algumas vezes e sei que é uma verdade
inquestionável. Nos dias que se seguiram houve uma agitação naquele apartamento, outrora
apático. Vítor vinha mais vezes durante o dia, faltava às aulas na faculdade, Henrique ria e
descrevia o apartamento em que eles iriam morar a partir da próxima semana. Revi a mãe
deles, uma mulher simples e que tinha muito orgulho dos filhos, o pai deles, que trouxe num
caminhão um pouco de mobília para o novo endereço.
Serginho conheceu o Ramon, fizeram um contrato de inquilinato com duração de três meses,
da forma que eu deveria ter feito no início, quando ele veio morar no meu apartamento. Ele
levou suas coisas, pagou os débitos — na verdade a mãe dele pagou— e me deu um abraço na
despedida. Mas eu veria todos eles com frequência, Serginho ia morar um tempo com meu
amigo, os gêmeos iam continuar sendo amigos do meu irmão, tudo na mesma. E o Eric...
Bem, o Eric ficou doente, teve crises de rinite, febre alta, tosse e manchas vermelhas pelo
corpo. Ele chegou do último trabalho na boate, na madrugada de quarta-feira, já passando mal
e assim ficou até a sexta, quando o irmão foi busca-lo, a meu pedido. Eu dava remédio, ficava
acordado com ele à noite, mas tinha que trabalhar e era bem longe, de forma que eu não
podia vê-lo na hora do almoço. Acabou que ele não foi trabalhar no bar como havia dito.
Trabalhei na manhã sábado e à tarde ajudei os gêmeos com a mudança, depois busquei o
Gabriel, de forma que eu passei bem ocupado o tempo que o Eric esteve fora, mas mesmo
assim eu sentia muito a falta dele, principalmente na cama. Só pude vê-lo novamente no
domingo à tarde, quando ele apareceu sozinho e de boa saúde.
— Saudades de você, bebê — eu disse quando ele chegou. Nos abraçamos longamente.

Gabriel estava deitado no sofá assistindo vídeos no meu celular e nem ligou quando o Eric
chegou.
— Bebê? — ele riu.
— Aham, meu bebê. Temos que arrumar as coisas pra nossa mudança, você melhorou? —
ainda abraçados, eu beijei o pescoço dele.
— Mudar? Por quê? Pra onde? — ele me olhou, confuso.
— Ei, é pra perto, mais perto do seu irmão, até. Sei que você largou o curso, não tá
trabalhando, então vem comigo, vai ser legal. É um lugar mais tranquilo, não tem esse trânsito
e esse barulho que tem aqui...
— Mas morar junto, já?
— Ora, porque a surpresa? O que a gente tem feito nos últimos tempos? A gente precisa um do
outro.

Ele não respondeu nada, apenas ficou calado, olhando perdido, mas continuou nos meus
braços.
– Você tá bem? Tomou a sua injeção?
Ele olhou pra mim, meio que tentando formular as palavras. Ele estreitava os olhos, numa
expressão curiosa.
— E você? Tá tudo bem?
— Não sei, talvez, quem sabe?
Ele riu, mas continuou introspectivo e começou a desfazer o abraço.

— Faz um lanche pra gente e depois vamos descer um pouco lá no parquinho.


— Tá, vou fazer misto e suco.
— Eu quero mistro! — Gabriel jogou meu celular pro chão e foi correndo pra cozinha.
— Ele tá gordinho... eu também era gordinho nessa idade... — Eric falava de forma quase
sonhadora enquanto íamos para o lanche. Parei para ouvi-lo, mas ele parou a conversa.

Depois descemos juntos para levar o Gabriel pra brincar no parquinho do condomínio. Eu
pagava por aquilo e quase não usava e provavelmente não usaria mais. O Eric sentou num
banco e eu fiquei brincando com o Gabriel, ele corria, ia nos balanços, no escorregador, na
areia. Eu ficava tirando fotos com meu celular, fotos dele e também do Eric, que morria de
vergonha se alguém visse.

Eu estava distraído olhando as fotos na memória do celular quando senti que alguém se
aproximava e ouvi me chamarem. Demorei pra localizar de onde vinha a voz até que
identifiquei. Era a Larissa, acompanhada de seu fiel escudeiro, o Serginho. Na verdade, seus
amigos íntimos o chamavam de Paulo Sérgio.
— Oi, Lari — desde aquela última conversa no apartamento que eu não falava com ela.
— Oi Bruno, quanto tempo, né? — ela estava bonita, mas toda sem jeito — Oi Gabriel, como
você está fofo!
— Eu sou o gordinho gostoso! — o Gabriel mostrou a barriga pra ela e saiu correndo pra pegar
o celular do Eric.
— Vamos sentar um pouco, vem — chamei e ela chegou mais perto e nós fomos até um banco
de ferro pintado de branco.
O Serginho foi até onde estava o Eric e Gabriel e ficaram lá conversando.

— Por que você não me disse quando eu te perguntei, hein? Teria sido tão mais simples do que
aquele monte de coisas sem sentido que você falou, Bruno... — a Larissa foi direta assim, mas
sua voz estava calma.
— O que queria que eu dissesse?

— A verdade. Se você é gay não tem problema pra mim, se você ama o Eric, tá tudo bem. O
problema é a mentira Bruno, esconder as coisas. Eu fiquei sabendo pelo grupo de Whatsapp da
sua família — meus irmãos, cunhados, primos, agregados tinham um grupo no qual a Larissa
participava e eu não — Foi horrível saber assim, eu sei que você quis terminar, mas eu achava
que era uma fase ruim, que as coisas podiam voltar... — os olhos dela se encheram de lágrimas.
— Olha Lari, não fica assim não. Se você soubesse como são as coisas de verdade estaria dando
graças a Deus por estar longe de mim. Olha, eu sei que você tá imaginando um romance, eu e o
Eric nos encontramos, descobrimos o amor e fomos felizes para sempre e o mundo precisa ser
tolerante, mas não é bem assim. Não sei te explicar, mas você não ia querer estar no lugar
dele, eu sou ciumento, possessivo...
Ela arregalou os olhos, levantou do banco e olhou para mim.
— Ciumento, você? Possessivo? Desde quando?
— Olha, não sofra por mim, tá bom? Você é uma pessoa incrível, mas não deu pra gente.
Serginho disse que você tá se sentindo culpada e não sei o que mais, mas deixa disso, a culpa
não é sua, nem de ninguém. Vai ser melhor assim, você vai ver...
Ela sentou novamente no banco e olhava o horizonte com lágrimas escorrendo pela face. Me
doía aquela cena, mas não tinha o que fazer, nem o que falar.

— A gente faz planos... — ela disse, respirando fundo.


— Eu sei... Mas a vida continua, dá voltas...
— Não tem medo de se arrepender um dia? — ela perguntou sem qualquer ameaça na voz.
— Não, não tenho.
Ela foi se levantando lentamente, enxugando as lágrimas do rosto. Deu um sorriso triste para
mim e me desejou sorte no futuro. Depois chamou o Serginho e foram embora no carro dele.
Fui até o Eric que estava quieto e encolhido no banco, olhando o carro que saía do condomínio
com aqueles olhos cinzentos. Havia tristeza e algo mais naquele olhar.
— Por que você tá assim, meu anjo?
— Nada não...
— O que o Serginho tava te falando que te deixou assim?

— Não foi isso, é que... Sei lá, não queria que ninguém sofresse... — ele abaixou a cabeça.

Passei de leve os dedos naqueles cabelos lisos, toquei no queixo dele e o fiz olhar para mim.
— Ei, não é culpa sua, tá? Não fica triste assim não. Vai, sobe com o Gabriel que eu vou daqui a
pouco.

Ele se levantou e já ia saindo, mas o chamei.


— Mas o que o Serginho disse, afinal?
O Eric riu timidamente.
— Ele disse que ia encomendar uma macumba pra fazer nascer três espinhas na minha cara.

Tive que rir.


— Bichinha impertinente!
XVI

Fiquei sentando num banco por bastante tempo pensando em como as coisas puderam mudar
tão de repente. Ou talvez, elas sempre estivessem ali. Não me refiro ao meu relacionamento
com o Eric, que ainda era indefinido, mas a mim mesmo, que sempre fui tão pacato, tão
previsível, tão... Ou não. Não me chamavam de urubu à toa.
Subi, ora cumprimentando algumas pessoas, ora fingindo que não as via. Nunca fiz questão de
ser popular, mas sempre acabava sendo. O nerd na escola, exemplo na família, importante no
trabalho, não que eu fosse esnobe, mas as pessoas que não gostavam de mim não me
incomodavam, a indiferença sempre foi meu escudo e ia continuar sendo assim.
Ao chegar à porta do apartamento que não era mais meu, ouvi o barulho do que me pareceu
ser algo se quebrando. Experimentei a maçaneta e senti que estava trancada, meti a mão no
bolso em busca da chave, mas o que encontrei foi um molho com várias delas, a chave do carro
veio junto e acabou caindo no chão, me abaixei para pega-la.
Mais um barulho de vidro se quebrando, mais alto dessa vez, e logo a seguir um grito agudo do
Gabriel. Identifiquei a chave, introduzi, mas a engrenagem mal lubrificada não girou, tentei
mais uma vez, com força, ela não cedeu e eu acabei socando a fechadura. Ouvi mais gritos
ensurdecedores do Gabriel e risadas do Eric.
Quando finalmente a chave girou, eu pude entrar pra ver a cena: o Gabriel deitado no sofá, o
Eric ao lado dele com o notebook no colo, na tela uns pássaros medonhos, sem asas, iam
sendo brutalmente atirados para matar porquinhos inocentes. Os dois me olharam assustados
quando a porta bateu na parede.
— Que porra, essa fechadura! — eu disse zangado.

— Acho que o som tá muito alto, Gabriel — o Eric disse e o barulho começou a diminuir.
A porta da varanda estava aberta, as cortinas balançavam ao crepúsculo de um domingo feliz,
mas eu estava cansado. Fui pra lá e fiquei olhando a paisagem, aos poucos a luz natural ia
sendo substituída pelas luzes artificiais, às vezes irritantes, às vezes belas. O Gabriel continuava
gritando de forma ensurdecedora para cada porquinho que explodia, o Eric continuava rindo
alto, quase maluco. Olhei-o ali tão à vontade, talvez em alguns momentos ele não fosse mais
adulto que o Gabriel.
— Agora é eu — ouvi o Gabriel dizer e se apossar do notebook.
— Última vez Gabriel, a gente tem que ir — falei, indo até onde ele estava jogando Angry Birds.
— Não! — ele simplesmente dizia não pra tudo que a gente falava.
— Sim!
— Só depois que eu ganhar!

O Eric o ajudou a ganhar e eu pude leva-lo para casa, ele dormiu por todo o trajeto, como
sempre. Quando voltei, o Eric assistia desenhos no sofá da sala.
— Vendo desenho, bebê? — beijei o cabelo dele.
— Então é por isso que você me chama de bebê, porque eu assisto desenhos? Se você
soubesse que eu já brinquei até de princesa com as minhas irmãs! Não vai rir de mim, vai? —
ele ria de olhos fechados, inclinando a cabeça para trás.
Fiquei olhando ele quase deitado, a cabeça no encosto, as pernas bem esticadas e o tronco
reto, sentei bem perto para admirar. Go Diego Go! passava no NickJr. e ele assistia com a
atenção de uma criança.

— Você é lindo, sabia?


Ele me olhou nos olhos e sorriu, cada vez mais eu me perdia naquele sorriso.
— Sabia não... — e fez um movimento sensual com a língua, me provocando.
Peguei o controle e desliguei a televisão, ficamos nos olhando em silêncio, ele sorria meio que
segurando os lábios, mordendo-os de leve. Fui chegando mais perto, bem perto, quando meu
nariz tocou no dele, ele fechou os olhos e umedeceu os lábios, esperando o beijo. Mas não o
beijei de imediato, fiquei olhando, ele viu que eu fiz de propósito e riu mais aberto, quando ia
abrir os olhos eu o beijei pra valer.
Eu me inclinei sobre ele, sugando os lábios com vontade, lambia o queixo, as faces, deixando-
as molhadas, enfiava a língua na boca dele e ele chupava. Sem parar de beijar fui levantando a
camiseta dele, deixando o peito à mostra, e com a mão esquerda fui alisando, depois
apertando os mamilos. A minha direita segurava a cabeça dele, para o beijo ficar mais forte, ele
gemia na minha boca e suspirava. A gente se beijava sorrindo, era tão gostoso, ele daquele
jeito, todo mansinho... Ficamos nos beijando assim por um bom tempo, até que parei e fiquei
olhando ele quietinho, meio sorridente, com os olhos fechados e os lábios entreabertos,
esperando a minha língua. Depois ele sorriu, a boca estava vermelha e molhada, o rosto todo
estava molhado e com algumas marcas. Ele abriu os olhos e olhou dentro dos meus.
— Seus olhos estão azuis agora... — falei olhando bem de perto, e passei a língua nos lábios
dele, que começou a passar a própria língua na minha.
— Evander diz que eles mudam de cor, era só ele que via isso...
— Eu tenho ciúmes desse seu irmão...
— Bobo...
— Tem que estar muito perto e te conhecer bem pra reparar...
— É, deve ser, no espelho eu nunca reparei.

Passei um dedo pelo nariz, boca e perto dos olhos dele. A gente já estava deitado, eu sobre ele,
desajeitados.
— Você é tão lindo... e é todo meu...
— Eu me acho tão comum... — ele riu — Só bonitinho, eu acho. Você que é bonito, inteligente,
todo grande e cuida tão bem de mim...
— Por que você é especial, esse seu jeitinho de fazer as coisas, eu nunca tinha visto nada assim.
E esses seus olhos... É como aquela pedra do astral, mas o astral de quem está perto de ti.
— Como? — ele pareceu confuso.
Ri, enquanto pensava no que dizer.

— Seu irmão me disse que quando ele ficava estressado, você ficava doente.
— Você foi lá falar com ele né, e agora acha que eu sou maluco.
— Não, não, nada disso. Só queria te entender melhor.
— Eu já fui doidinho na infância, mas eu melhorei...
— Eu te entendo perfeitamente meu anjo, você só é carente, precisa de atenção o tempo
todo...
Ele me olhou nos olhos, aquele olhar que me derrubava. Me apoiei num cotovelo para aliviar o
peso do meu corpo sobre o dele.
— O tempo todo?

— É sim, meu garoto, vou te dar atenção o tempo todo agora. Você quase me matou quando
falou que era meu, que eu podia fazer o que eu quisesse contigo... Eu tô aqui agora, cem por
cento livre pra cobrar as suas promessas.
Ele riu daquele jeitinho especial, de olhos quase fechados.
— Te prometi alguma coisa?
Sustentei um olhar sério, fixo no dele.
— Eu sou do mal, sabia?
— Não...
— A gente vai se mudar pra um lugar melhor, esse apartamento te dá depressão.
Ele ficou sério de repente e começou a se levantar.
— Quando?

— Amanhã. Faz alguma coisa pra gente comer que eu vou arrumar as coisas.

Ele foi fazer comida, eu fui arrumar as coisas que estavam guardadas em armários no escritório,
na área de serviços, no meu quarto. Era bastante tralha e na casa que eu ia morar tinha espaço
pra tudo aquilo.
Abri um armário baixo do escritório, tinha tanta coisa lá dentro, algumas inclusive deveriam ir
para o lixo. Em uma caixa de plástico encontrei algo que me fez sorrir, algo que eu gostava
muito: meu primeiro robozinho. Ele foi feito para uma feira de ciências da escola quando eu
tinha treze anos, era bem feinho, mas eu adorava. Tinha outras engenhocas também, até mais
funcionais, mas o robozinho Pedroca era o meu favorito.

Encontrei também uma coisa que há muito tempo eu não me atrevia a pegar: um embrulho de
veludo preto cujo conteúdo era uma bela faca gaúcha de prata com bainha, que foi do meu
avô. Não, meu avô não me deu a faca, eu peguei sem ele saber, acho que quando eu tinha uns
dez anos. Peguei porque a achei muito bonita, fascinante mesmo, uma verdadeira obra de arte.
Lembro que todos procuraram por ela na ocasião, reviraram todo o sítio na procura, mas nunca
se lembraram de olhar nas minhas coisas. Sorri pra mim mesmo lembrando daquilo. Sempre fui
assim, as coisas singulares me atraíam.
Ela estava um pouco cinzenta pela falta de uso, e não muito afiada. Abaixado no chão e
distraído, eu alisava o metal, sentia o alto relevo dos desenhos com os dedos, quando o Eric
entrou devagarinho. Tive um pequeno sobressalto, ele reparou.
— Desculpe, eu não bati — ele falou tímido — vem comer comigo...
— Tá, daqui a pouco eu vou. Vem aqui, olha isso. — ele se aproximou — O que acha?

Ele olhou, pegou na mão meio sem jeito e ficou olhando.


— Bem bonita, mas diferente, pesada...
— É de prata.
— Hã? Que estranho, não me imagino cortando cebola com uma faca de prata — ele riu.
— Cortar cebola? Tá maluco, você só pensa em comida! Isso é de colecionador, meu avô que
ganhou e eu peguei pra mim.
— Ele te deu?
— Mais ou menos... — falei de forma significativa, o Eric me olhou estranho, mas não disse
nada.
Depois que jantamos, o Eric começou a arrumar panelas, talheres e vários utensílios em caixas
de papelão, eu estava arrumando outras coisas quando o meu celular tocou. Era a minha mãe.
— Oi, mãe — atendi.
— Meu filho, tá tudo bem? Como você tá? — a voz dela estava aflita.

— Eu tô bem mãe, e a senhora? — e eu calmo, como sempre.


— Filho, a Milena me disse que você tá se mudando daí, é verdade?
— É sim mãe, mas não se preocupe, é por causa do trabalho. Não vou virar sem-teto não.
— Bruno, meu filho, seu pai falou umas bobagens aqui naquele dia, mas eu não mandei
ninguém vender o apartamento não. Foi dado pra você, mamãe já te disse. Você pode ficar aí a
vida toda, se quiser.
— Eu sei mãe, mas acontece que Milena e Marcelo — meu cunhado — não gostaram disso, e
pra falar a verdade eles estavam certos. E é muito caro pra mim morar aqui sozinho, e não vou
me casar com a Larissa, a senhora já deve saber, então papai pode vender e repartir o
dinheiro. Tem essas coisas aqui também, alguém pode se interessar — me referia ao mobiliário
antigo.
— Tem certeza, Bruninho? Não vai mudar de ideia depois?
— Mãe, eu já mudei de ideia alguma vez?
— Não, que eu me lembre. Deus te abençoe então, meu filho, boa sorte.
— Tá, mãe, beijo pra senhora. Tô feliz porque não se esqueceu de mim.

— Nunca, por nada no mundo. Fica com Deus — e desligou.


Meus olhos quase se encheram de lágrimas. Mas aí ela ligou de novo, ela sempre fazia isso.
— O que é, mãe?
— Sua avó fala em você toda hora Bruno, e ela tá cada dia pior. Tira um tempinho e vem vê-la
antes que seja muito tarde, tá?
— E papai, não vai me botar pra correr daí?
— Claro que não, se ele fizer isso, eu ponho ele pra correr também — ela riu.
— Vou sim, mãe, vou quando puder — e ela desligou novamente.
Fiquei arrumando as coisas até bem tarde, depois fui pro quarto com o Eric. Ele fez algumas
perguntas sobre o local para onde a gente ia, mas não dei muitos detalhes, queria deixa-lo na
expectativa. Dormimos logo, pois estávamos muito cansados. Saímos pela manhã, logo depois
do café, levando apenas algumas caixas.

Na terça-feira seria feriado, então naquela segunda teria pouco serviço, mas fomos mais cedo
para que o Eric visse o nosso novo endereço. Sim, a palavra “nosso” entrou na minha vida
assim, sem que eu me desse conta.
— É uma casa? — o Eric ficou impressionado quando paramos em frente ao imóvel.
— Sim, você fica melhor aqui do que num apartamento, meu anjo. Tem até jardim, tá
abandonado, mas tem.
— Nossa, fez tudo pensando em mim? Não precisava, deve ser caro isso... — ele estava meio
sem graça, olhando impressionado para o sobrado branco a nossa frente.
— Não, nada disso, aqui o aluguel é mais barato e não tem tarifa de condomínio. Só que a casa
ainda está uma bagunça, não deu pra fazer muita coisa na semana passada. E não é nenhuma
mansão, tá? — peguei no cotovelo dele, conduzindo-o para dentro. O portão já estava aberto.
Escolhi o imóvel através de um corretor local na quarta-feira da semana anterior, combinei com
o proprietário, um senhor de uns cinquenta anos, de ele providenciar a pintura, instalações
elétricas, lâmpadas. Eu levaria muitas coisas do apartamento, não teria que comprar quase
nada.
Era um sobrado de tamanho razoável, um pouco sofrido pelo mau uso de inquilinos anteriores,
mas que passou por uma pequena reforma, foi todo pintado de branco gelo, a porta principal e
as janelas eram de vidro gradeadas, as portas internas eram brancas e tinha varandas por
todos os lados. Na frente da casa tinha um espaço com grama, mas estava seca e cheia de ervas
daninhas. Uma das laterais era a passagem do carro, já que a garagem ficava nos fundos, um
lugar com bastante espaço, com uma grande lavanderia e uma espécie de despensa, tudo
cercado por grama e ervas daninhas. Num canto havia ruínas do que deveria ter sido um
orquidário, havia também vestígios de uma pequena horta.
Ficamos andando pelo quintal esperando o proprietário do imóvel trazer as chaves. Alguns
minutos depois ele apareceu, disse que tudo tinha sido pintado e limpo, mas que o jardim não
tinha dado tempo de cuidar. Peguei as chaves e entramos, conferi algumas coisas com o
homem e ele foi embora. O Eric estava calado, olhando tudo. Cheguei bem perto dele e dei um
selinho.
— Não gostou?
— Hã? Claro que gostei, nossa, tem muito espaço, é bem legal. Só tô preocupado com você.
— Comigo? Por quê? — estávamos na sala, era grande e em forma de L.
— Tipo, não vai te dar problema no trabalho se eu morar aqui com você?

— Problema no trabalho? Acha que vão me demitir porque você dorme comigo?

— Ah, sei lá, tem gente que me olha estranho.


Chegamos à cozinha, um espaço bem grande com cerâmica branca na totalidade das paredes,
bancadas de granito preto e alguns armários planejados brancos, porém encardidos. O Eric
olhou para eles com uma sobrancelha levantada.
— Olha, eu mandei limpar, juro! — ergui as mãos e ele riu.
— Eu dou um jeito nisso.
— Eric, não se preocupe comigo, tá? — o abracei — Ninguém vai me prejudicar, se alguém me
olhar estranho você deve ficar preocupado é com ele, não comigo.

Rimos juntos. Peguei a mão dele e beijei.


— Na verdade ninguém tá nem aí pro que a gente faz ou deixa de fazer, só querem falar ou
talvez nos passar para trás, mas isso não rola comigo. As pessoas que me subestimam quebram
a cara, pode ter certeza.
Fomos a um supermercado, que ficava no mesmo quarteirão, e compramos produtos de
limpeza, frutas e biscoitos. Depois eu fui pro galpão da empresa que eu trabalhava, mas avisei
que viria busca-lo para o almoço.

Quando voltei pro almoço, vi que tinha um carro branco parado bem em frente à minha nova
casa. Entrei e vi que o irmão do Eric, que eu me recusava a imaginar como cunhado, estava lá
conversando com ele. Ele falava sério, bem de perto, como se desse conselhos ou instruções.
Fiquei curioso e até aborrecido, eu queria ficar sozinho com o Eric, a interferência daquele
cidadão cuidadoso me dava nos nervos.
Me aproximei dos dois que estavam na varanda da frente.
— Oi — disse apenas.
— Oi — o tal Evander também não estava a fim de conversa comigo.
— Eu vou ver alguma coisa, tá bom? — o Eric continuou a conversa com o irmão, mas eu não
saí de perto.
— Olha, pensa no que eu te falei, tá bem? Vou vir aqui te buscar amanhã, ou vou lá se você
ainda não tiver saído. Vou te ligar.
— Você me liga, então.
Eles se abraçaram, um abraço demorado demais, com direito a beijo no rosto e mais conselhos
no ouvido! Apenas observei calado até que o homem foi embora, o Eric ainda foi com ele até o
carro e conversaram mais um pouco lá também!

— Nossa, até que enfim! — falei quando o Eric voltou — O que tanto conversavam?
O Eric riu e passou a mão no meu braço, depois me puxou pra dentro da sala e me deu um
beijo na boca. Apenas deixei.
— Ele é meu irmão, seu bobo, lembra? E é o pai que eu tenho, claro que ele ficou preocupado
com essa coisa da gente morar junto assim, do nada. Ele quer que eu continue trabalhando.
— Você vai ficar bem ocupado por aqui.
— Tá, mas eu vou dar uma volta por aí e ver se consigo um serviço. Pena que aqui é muito
sossegado, vai ser difícil conseguir alguma coisa.
— Claro que vai, e tomara que seja bem difícil — falei sério e dei um abraço apertado nele.
— Parece que você quer que eu fique em casa igual àquelas mulheres de antigamente.
O Eric se soltou dos meus braços e me olhou. Eu não disse nada, apenas fui em direção ao
carro, chamando-o para almoçar.
XVII

Depois do almoço voltamos pra casa e entramos rapidamente. Reparei que o Eric tinha
limpado toda a cozinha, os vidros, os banheiros, não tinha mais nada encardido.
— Fez tudo rápido assim, Bê?

— Que nada, ainda falta muita coisa.


— Não parece, tá prontinho pra receber as nossas coisinhas.
Ele sorriu, orgulho.
Voltamos ao velho apartamento por volta das quinze horas, pois o pessoal que iria transportar
as coisas faria o serviço naquela tarde. Minha mãe disse que eu poderia pegar o que eu
quisesse, então só deixei mesmo os móveis antigos que uma loja iria avaliar, os armários
planejados que não saíam do lugar e as coisas que eu não gostava mesmo. Levei a estante da
sala, apesar de não gostar dela, pois já havia reparado que o Eric gostava daquilo.
O mesmo pessoal que levou colocou no tudo lugar na noite de segunda mesmo, o Eric ia
arrumando tudo, mas as roupas ainda permaneceram embaladas porque o guarda-roupa que
eu comprei só seria montado no fim da semana.
Arrumar e limpar deixava o Eric com alergia, ele ficou espirrando, tossindo, com os olhos
vermelhos, mas parecia feliz, então achei que era a alergia real mesmo. Por volta das onze da
noite o convenci a parar com a arrumação, tomamos banho separados e nos deitamos para
dormir, exaustos. Eu queria até dar um carinho, mas ele estava muito cansado, resolvi deixa-lo
em paz.

Quando acordei na manhã seguinte ele já tinha acordado e estava na cozinha preparando o
café. O abracei por trás e o beijei.
— Nosso primeiro café na nossa casinha, Bê...
— É verdade, a gente já comeu de tudo aqui, mas café é o primeiro — ele riu. — Bruno, você
me colocou um apelido!
— Bê, meu bebê — eu ia dando beijinhos no ombro dele, por cima da camisa mesmo, pois ele
já estava vestido para sair — Não gostou?
— Gostei.
— Pra onde você vai arrumadinho assim?
— Vou falar com a minha mãe e meu irmão quer me ver.
— Ah, esse seu irmão... —Eric se virou e me deu um beijo, não continuei o assunto.
Tomamos café e voltamos à cidade, o trânsito estava ruim e por isso a viagem demorou
bastante. Paramos no condomínio, mas ele não subiu comigo, disse que tinha coisas pra
resolver e eu não questionei.

Voltar ao apartamento um dia depois de ter saído foi curioso porque eu tive a impressão de
nunca ter estado ali. Tudo estava escuro e vazio, meus passos ecoavam nos cômodos enormes
e sombrios. Adentrei os quartos para conferir se estava tudo certo, se não tinha esquecido
nada, depois fui à cozinha e à área de serviços e ali me detive um pouco mais pensando no que
aquele espaço desvalorizado tinha me trazido. Antes de sair pela última vez eu ponderei se não
sentiria saudades dali. Cheguei à conclusão que sentiria saudades sim, mas do tempo da casa
cheia, dos meus irmãos, meus pais. Sentiria saudades dos caras que moraram ali comigo por
quatro meses, mas não sentiria saudades daquele imóvel em si, um símbolo de ostentação da
classe média, com suas salas exageradamente amplas e suas “dependências completas de
empregada”.

Depois fui à casa de Milena, minha irmã mais velha, para entregar as chaves. Ela chorou e disse
que não era culpada por aquilo, que não queria me causar desconforto, mas eu expliquei a ela
que estava tudo bem, que era melhor assim mesmo. Falei das propostas de trabalho que
recebi e ela entendeu que foi isso o que me afastou do nosso velho apartamento. De bem com
minha irmã e com a vida, eu dei um abraço e um beijo na minha sobrinha e saí da casa dela, fui
procurar pelo Eric.
Liguei duas ou três vezes e nada de ele atender, quando finalmente atendeu, ele se desculpou
por ter esquecido o celular no carro do irmão e disse que estava na casa da mãe. Pedi a
localização e fui pra lá imediatamente. Saí do carro e fiquei encostado do lado de fora
esperando em frente a um condomínio novo, muito luxuoso. Vi o Eric saindo de lá
acompanhado da mãe, uma mulher de formas perfeitas, mas de plástico, e o bendito irmão.
Eu não gostava daquele grude do Eric com o irmão, não achava aquilo normal. O cara vivia
enchendo a cabeça dele de conselhos, o abraçava demais e o acarinhava demais, e o pior, eu
sempre tinha a impressão que ele falava de mim. O Eric decidiu por conta própria parar de
estudar, não o obriguei a largar o emprego pra ir morar comigo, acredito inclusive que ele
estava ansioso pra que eu o levasse, pois ficou doente a semana toda, talvez para chamar a
minha atenção. Ele estava comigo, já tínhamos dormido juntos na nossa casa, ele tinha
limpado e arrumado tudo, era todo meu, mas aí vinha aquele irmão chato para atrapalhar, o
mandando arrumar um emprego. Olhei-o mais detidamente e tive certeza que ele falava de
mim. Ao passar por mim para chegar ao próprio carro, ele me olhou nos olhos.
Não sei definir que sentimento me atingiu no momento daquele olhar azul claro. Não foi um
olhar qualquer, de cumprimento, nem um olhar de ódio. Foi algo como um aviso, uma
advertência. Meu sangue gelou nas veias.
O Eric apareceu normal, com aquele sorriso tímido que lhe era característico, entrou no carro e
ficou calado.
— O que foi? — perguntei enquanto entrava na rodovia para voltar pra casa.

— Minha mãe quer que eu continue estudando...

— E o que seu irmão te disse?


Ele pensou antes de responder.

— Ele disse que ela tinha razão, mas que eu sou adulto para decidir...
Respirei fundo. Não queria assusta-lo com as coisas que passaram pela minha cabeça naquele
momento.
— Bebê, e o que você pretende fazer? Sem a opinião do seu irmão?
— Ah, eu queria ficar com você...

— E a gente tá junto, não tá? — passei a mão pela perna dele — Tá te faltando alguma coisa?
Me fala.
— Não falta nada, mas eu sem trabalho e sem ocupação é muito esquisito. Me sinto um inútil,
e fico dependendo de você pra tudo.
— Bobagem, você é muito útil pra mim, meu anjo. Eu espero que você continue assim, tá? —
ele pôs a mão sobre a minha sobre a perna dele e ficou calado.

Na quarta-feira feira eu cheguei mais cedo para o almoço e entrei sorrateiro para ver o que o
Eric estava fazendo. Ele estava na cozinha muito concentrado enfeitando um bolo. O bolo
parecia de chocolate, em várias camadas fininhas e perfeitas de massa e recheio, e ele ia
fazendo desenhos brancos com uma espécie de saquinho. No topo do bolo, um monte de
morangos e mais chocolate. Sorri olhando ele ali trabalhando, tinha certeza que ele não queria
que eu visse antes da hora. De repente ele elevou a vista, quase tomou um susto, ficou
vermelho e eu ri alto.
— Calma, bebê... — fui abraça-lo.
— Por que você entra assim, hein? — ele bateu de leve no meu peito e depois me abraçou.
Dei um beijo no pescoço dele, mordi a orelha e ele ficou todo arrepiado.
— Queria te pegar no flagra. Delícia você assim com esse cheirinho de chocolate e chantilly... —
mordi mais o pescoço dele, que ficou todo molinho nos meus braços. Fui passando a mão pelas
costas dele por debaixo da roupa.
— Quem mandou você vir mais cedo, hein? Era surpresa — ele falava com uma voz manhosa,
sensual.
— Ah, poxa, só queria passar mais tempo com você... — fiz biquinho, ele riu e me deu um
selinho.

— Eu queria te dar um presente, mas você sabe que eu não compro coisas, então é só o que eu
posso fazer...
— Você que é o meu presente bebê, só falta tirar essa roupa e deixar eu te ver trabalhando.

Ele riu, se afastou um pouco e ficou me olhando, mudo, com um sorriso preso entre os lábios
vermelhos, levemente mordidos por dentes perfeitos.
— Vai, tira... Você sabe como eu gosto... — puxei uma cadeira, sentei com as pernas abertas e
bem esticadas — Faz pra mim, faz...
Ele tirou a camiseta branca, depois o short cinza que ele usava e voltou a confeitar o bolo, às
vezes olhando para mim. Eu estava do lado esquerdo dele, quase em frente, mas não muito
perto.
Quando ficou satisfeito com o resultado, ele pôs o bolo perto da pia, voltou para bancada e se
sentou sobre ela, sempre me olhando nos olhos e com um sorriso sem-vergonha. Sentou com
as pernas abertas, encostou a cabeça na parede e começou a desenhar na própria barriga com
o saquinho de chantilly.
Ele ficava me olhando com os olhos estreitos, os lábios úmidos e entreabertos, muito excitado
e desenhando em si mesmo os mesmos desenhos que tinha feito no bolo. Eu quase pirava de
tesão, tanto que chegava a doer. Fiquei sentado assistindo ao espetáculo, aquele corpo
delicioso sendo enfeitado com arabescos de chantilly para ser degustado depois. Mas quando
ele começou a desenhar em volta dos mamilos, colocando pinguinhos nos bicos durinhos e
rosados, não pude mais ficar sentado. Levantei e fui até bem perto dele, queria agarra-lo, mas
com o pé direito ele me impediu de chegar muito próximo, e tive que manter uma certa
distância.
Ele mordia os lábios, sempre me olhando, e ia desenhando no próprio corpo, se detendo na
parte que eu mais gostava, até que não aguentei mais. Tomei o saquinho deixando-o por
perto, segurei-o pelos dois braços e fui lamber aquele doce do corpo dele. Fui direto pro
mamilo esquerdo que era o meu favorito, primeiro lambi, depois chupei com força, puxando-o
com os lábios, ele ria e se contorcia. Depois fui limpando o chantilly da barriga, lambendo e às
vezes mordendo, deixando marcas suaves na pele branca. Ele tinha uma sensibilidade absurda
perto do umbigo, eu passava a língua bem de levinho ali e ele se arqueava, tentava segurar a
minha cabeça e ria alto, mas eu não parava.
Desci naquele caminho de pelos claros e macios e cheguei até a cueca preta dele, passei a
minha barba nela e a minha face tocou o membro duro e molhado escondido embaixo do
tecido elástico. Fui para a lateral onde lambi a parte que aparecia da tatuagem dele, depois
comecei a subir novamente pelo lado direito, lambendo, às vezes roçando a barba e mordendo
de leve até que cheguei ao outro mamilo, ainda com desenhos de pétalas em volta da auréola
e com um espiral sobre o biquinho. Lambi, depois chupei com fome mesmo, suguei forte, ele
ria e se arqueava, encostando a cabeça na parede. Depois eu peguei o saquinho e comecei a
passar mais chantilly nos mamilos. Como eu não sabia fazer desenhos, só ia saindo um monte
de espirais que eu lambia e depois sugava com força.
— Daí não vai sair nada — ele disse e depois riu, eu entendi o recado.

— Quer que eu chupe outra coisa né, seu safado?


— Exatamente. E se quiser, depois eu retribuo — ele falava com uma voz manhosa, todo
molinho nos meus braços.
Peguei-o no colo, não era nem um pouco leve, e pus deitado no chão sobre um tapete
daqueles de cozinha. Me abaixei com os joelhos e as mãos no chão e enfiei a língua na boca
dele, de forma nada romântica, e ele deixava, com a boca aberta e olhos fechados. Depois fui
pro pescoço chupando e mordendo forte, ele gemia mais alto quando doía, mas não
reclamava. Chupei os mamilos dele, um por um, apertando um enquanto sugava o outro,
mordi a barriga depois fui descendo a da cueca dele devagar.
De olhos fechados deixei que aquela cabeça quente, melada e de um cheiro que eu não
gostava muito entrasse na minha boca. Comecei a sugar devagar, pois sabia que ele gostava.
Ele me deixava morder e marcar o corpo todo e eu tinha que dar prazer a ele também. Tentei
fazer do jeito que já fizeram em mim, mas às vezes me vinham ânsias de vômito e eu precisava
ir mais devagar. Mas o melhor era vê-lo se contorcer, gemer e até tremer.
Ia passando a mão na barriga dele, apertava as coxas e depois de um tempo ele veio se
masturbar de leve, para adiantar o meu serviço. Peguei na mão dele para acelerar os
movimentos e depois de alguns minutos ele começou a morder os lábios, olhando nos meus
olhos, respirando ainda mais forte.

— Continua vai, porque tá gostoso... — a voz dele estava ofegante.


— Aê, se gozar na minha boca eu te mordo, tá?
— Ai Bruno — ele riu — Vai mais um pouco, vai... Tá quase...
Continuei chupando, até tentei colocar mais pra dentro, mas aí vinha a ânsia e eu tinha de tirar
um pouco. Fiquei mais na cabeça mesmo, sugando forte até que ele veio com a outra mão e
tirou da minha boca.
— Delíciaaa!
Alguns jatos caíram na barriga dele e um no meu braço. Fiquei olhando enquanto ele gozava de
olhos fechados, gemendo baixo, o corpo dele tremia todo. Eu adorava fazê-lo sentir aquilo.
Depois ele foi se acalmando, com um sorriso delicioso nos lábios, mas com uma porra grudenta
na barriga.
— Nossa... Que coisa isso! Agora tira a roupa, urubu.

— Não... – disse e fiz com o dedo bem próximo do rosto dele, ele acompanhava com os olhos o
movimento do meu dedo.
— Hã? Por que não?
— Agora não, você sabe como eu fico depois, cheio de preguiça e eu tenho que trabalhar. Te
espero à noite.
— Chato — ele riu, e se esticou todo no tapete, bocejando — não vai querer mais nada, tem
certeza?
Ele meio que sorria com os olhos ao dizer isso, eu sabia direitinho do que tava falando.
— Quero, mas isso aí vai sujar a minha roupa.

Ele pegou a camisa do chão e colocou sobre a barriga, se deitando de novo.


— Vem porque hoje eu tô bonzinho. Só que não tem como apagar o sol pra ficar escuro, viu? —
ele riu, debochando de mim.
— Cala a boca e fecha os olhos!
Ele riu mais alto. Me deitei sobre ele, pus meu braço por sobre a cabeça e peguei o mamilo
esquerdo com os lábios. Estava murchinho, pois seu dono estava preguiçoso, então o puxei
com os dentes pra que ele viesse mais pra fora. Fiquei sugando, sugando... Era tão gostoso
aquilo, eu poderia ficar o dia todo assim. Não era grande nem nada, mas dava pra pegar com
os lábios, assim como toda a auréola em volta, eu pirava naquilo. Me imprensava, me
esfregava nele, e sugava até que... Até que ele dormiu, o filho da mãe! Não sei como ele
conseguia dormir embaixo do meu corpo daquele jeito. Mordi o biquinho dele com mais força
e ele acordou.
— Cara, isso não é de borracha não, tá? — ele acordou passando a mão pelo rosto, esfregando
os olhos.
— Bê, tô com fome, já passou do meio dia — falei e voltei a chupar, sempre o esquerdo.
— Come eu — ele riu e se espichou no chão, elevando o peito, depois me olhou — Cara, tem
dois, por que você só gosta desse aí? Tá doendo já!
— Esse é mais docinho — rimos.
Ele se mexeu, me fazendo solta-lo e sair de cima dele.
— Agora larga, deixa eu arrumar o almoço que também tô com fome.
À noite, depois do banho, me deitei na cama pra ver televisão e o Eric se deitou ao meu lado.
Ficamos quietos por um tempo, estávamos cansados, mas depois, sem nenhuma palavra, ele
desligou o aparelho e desceu até a minha barriga, dando beijinhos e mordidinhas. Cheirou
sobre o tecido da minha cueca, beijou e começou a me olhar com uma carinha de safado. Eu fui
passando a mão nos cabelos dele, e aproveitando a visão daquele garoto lindo querendo me
dar prazer.

— Quer? — ele perguntou já me deixando nu.


— Com certeza.
Aí ele colocou na boca devagar, me olhando nos olhos. A boca dele, quente e sempre
vermelhinha, era perfeita e eu curtia vê-la tanto quanto o prazer do oral. Ele sugava, tentando
colocar mais para dentro, às vezes engasgava, tinha ânsias e ria.

— Calma bebê, não precisa ter pressa...


Ele continuou me olhando nos olhos, bem sensual. Passaram-se alguns minutos e ele
continuava ali chupando devagar, até que pegou o membro com as duas mãos, masturbando
de leve.
— Vai mais forte, aperta mais — eu falava e ele tentava obedecer.
Por fim, eu mesmo peguei as mãos dele e acelerei os movimentos, movimentando também o
quadril em direção ao rosto dele. Em pouco tempo o gozo veio forte, rápido, delicioso, tentei
tirar da boca do Eric, mas ele não deixou e aí caiu na boca e no queixo dele. Foi engraçado
porque ele cuspiu e fez cara de nojo, mas depois continuou a chupar, limpando tudo.
— Isso, Bê, bebe tudinho... — eu fazia carinho nos cabelos dele.
Depois o Eric foi pro banheiro e eu fiquei na cama rindo sozinho e curtindo aquele
relaxamento. Bocejei. Ele veio do banheiro, limpou aonde tinha cuspido e foi pra lá de novo,
depois voltou e me beijou com gosto de enxaguante bucal.
— Bebeu leitinho, Bê? É gostoso, é? — perguntei, sacana, mas tive que rir.
— Não é uma delicia, não, tá? Mas também não é tão ruim quanto um remédio que você me
deu um dia desses.
Rimos, nos abraçamos e depois dormimos.
A gente sempre fazia assim e era satisfatório pra nós dois, apenas sexo oral, pegação e muito
prazer. Tudo bem que demandava mais tempo e criatividade, mas pra mim não era problema,
eu adorava aquilo tudo e nunca fui fã de anal. Ele também não curtia, pelo menos não como
passivo. O que eu mais gostava era a beleza, o cheiro e o contato com a pele dele.
Estando trabalhando por perto eu podia almoçar, lanchar e passar em casa de vez em quando.
Eu fazia bastante isso para não deixar o Eric sozinho, pois temia que ele se sentisse mal
daquela forma. Sabia que ele queria sair de vez em quando, que queria procurar emprego, mas
eu não gostava disso e ele me obedecia, nas poucas vezes em que cheguei em casa e não o
encontrei, eu fiquei aborrecido e fiz questão de que ele soubesse. Não queria que ele ficasse
longe de mim, nem para trabalhar.

Aos sábados ele ia pra casa do irmão, enquanto eu ia buscar o Gabriel, era o único momento
em que a gente se separava. Nos momentos em que ele e meu filho ficavam juntos, eles
aproveitavam para jogar Angry Birds e muitas outras bobagens no computador e se davam
super bem, eu achava aquilo incrível. Sem contar que o Eric fazia bolos, doces, biscoitos e o
Gabriel não era gordinho à toa.
Sem ter muito que fazer em casa, o Eric passou a cuidar do jardim. Arrancou com as mãos
mesmo as ervas daninhas da grama e irrigava sempre com uma mangueira, em poucos dias ela
ficou verde. Plantou cebolinha e tomates na hortinha, e flores no quintal. Ele subia numa
escada encostada no muro para conversar com a vizinha, uma senhora pretinha, de cerca de
1,40 de altura. Tão baixinha, uns sessenta anos de idade e cabelos alisadíssimos, muito pretos,
Dona Diana, eu a achava linda, mas não gostava do cabelo artificial. O assunto deles era sobre
flores, grama e principalmente as orquídeas que sobreviveram ali no cantinho lateral da casa.
Era praticamente o único contato que ele tinha com a vizinhança.
Eu tinha uma câmera profissional que comprei para o trabalho e passava boa parte do meu
tempo livre tirando fotos do Eric. Ele já estava acostumado com o meu hobby e não ficava mais
tímido, fazia poses até. Eu pedia que ele apenas agisse naturalmente. Assim eu tinha fotos dele
subido na escada, fazendo bolo, tomando café numa xícara florida encostado na janela de
vidro banhado pelo sol da manhã, tomando sol de short na varanda e até dormindo. Eu
colecionava imagens desses momentos únicos, pois a beleza é efêmera e mutante, e eu a
queria para mim, era uma necessidade. Até tinha um álbum onde eu colocava apenas as
imagens perfeitas. E estava quase completo.
Eu desenhava também, quando alguns momentos me inspiravam. Um desses momentos
perfeitos foi quando o vi podando as roseiras com a tesoura que ele usava para cortar o
cabelo, num fim de tarde ensolarado enquanto eu mexia com um molinete nos fundos da
nossa casa. Fiz tudo sem ele ver e depois guardei numa pasta onde ele nunca mexia, eu me
certificava disso.
— O que você faz com tanta foto, Bruno? — um dia ele perguntou enquanto eu o fotografava
deitado na cama.
— Tô guardando você, Bê. Pra posteridade.
— Credo, que tara maluca! E por que não tira fotos suas também?
— Porque eu sou feio, e não tem graça né, pra que eu vou querer ver a minha cara?
Passado cerca de um mês e meio que a gente tinha se mudado, eu soube que minha avó estava
no hospital. Minha mãe e meus irmãos me ligavam sempre pedindo que eu fosse vê-la e eu
ficava enrolando, mas naquele dia eu senti que poderia ser a última vez. Pedi um dia na
empresa e saí rumo à casa de meus pais, era numa sexta-feira. Não quis levar o Eric para que
ele não ficasse constrangido com a presença da minha família, por isso o deixei com o irmão.

O hospital em que minha avó foi internada ficava a poucos quilômetros da casa dos meus pais.
Cheguei lá justamente na hora das visitas, por volta das dez da manhã, liguei pra minha mãe
que estava como acompanhante e ela foi me encontrar na recepção. Chorei quando vi vovó. Ela
estava vestida com uma camisola de tecido de lençol, muito magra e enrugada, cheia de
agulhas, os olhos lacrimejantes. Ela gemia de vez em quando, mesmo quando estava dormindo.
Peguei a mão dela, que me olhou por bastante tempo com um olhar perdido. De repente ela
pareceu me reconhecer.
— Bruninho, sabia que você estava aí — ela falava tão baixo que eu precisava chegar bem
perto para ouvir.
— Claro que estou, vó. Desculpa ter demorado.
— Não precisa pedir desculpa, meu menino. O Vô não vai brigar com você.
— Eu não fiz nada, vó.
— A vó sabe, ele nem gosta daquela faca.
Ela sabia, claro que sabia. E nunca contou pra ninguém. Ela sabia que eu mexia nos pertences
do meu avô, que montava e desmontava as coisas, que vigiava o que os outros faziam e
colecionava as coisas que eu gostava. Mesmo que não me pertencessem.

— Brigado vó, só a senhora que gosta de mim.


Ela disse mais algumas coisas em voz baixa, eu fiquei ali segurando aquela mão de ossos frágeis
até que minha mãe chegou pra ficar lá. Tinha acabado a hora da visita.
Fui pra casa da praia calado e muito triste. Meu pai estava lá, mas não conversamos muito,
apenas bom dia e boa tarde. Eu não tinha raiva dele, sabia que ia demorar um pouco até ele
aceitar todas as mudanças, ou talvez ele nunca aceitasse. Mas eu o compreendia.
Fiquei perambulando na praia ao entardecer, pensando e sofrendo sozinho. Queria poder estar
com o Eric ali, sem que ele se sentisse mal, mas a gente não pode ter tudo na vida. Queria
também que minha avó melhorasse de saúde, mas aos 85 anos não tinha mais jeito pra ela.
Ela faleceu na tarde de sábado, choramos a perda, mas sabíamos que a morte às vezes é
melhor que o sofrimento. Abracei meu pai, ele me pediu desculpas por não gostar do que eu
estava fazendo e eu disse que entendia o lado dele. Fui embora antes do enterro porque essa é
uma parte da vida que eu não aprendi a aceitar.

Muitos quilômetros antes de chegar à minha casa, eu não aguentei a emoção contida e parei
na rodovia, era um local de cheio de pedras onde passava a linha do trem. Sentei no chão e
fiquei um bom tempo olhando a lua, as estrelas, os carros passando num lado, o trem
passando no outro, naquela noite quente de domingo. Ali sozinho eu podia chorar, e chorei e
chorei, até que me secassem as lágrimas. Depois, bem mais leve, eu segui para o endereço do
Evander para buscar o Eric porque eu não conseguia dormir sem ele.

Os dias que seguiram eu passei meio introspectivo, o Eric sempre se aproximava, mas
respeitava a minha necessidade de espaço naqueles dias de luto. Ao mesmo tempo eu comecei
a cuidar dos preparativos para uma feira agropecuária que iríamos participar dali a alguns dias,
numa cidade do sul do país, e com isso eu passava o dia todo envolvido com o trabalho, só ia
para casa à noite. O Eric não dizia nada e parecia não se importar, mas, como eu imaginava, na
quinta-feira à noite senti que ele não estava bem. Eu estava sem sono, ele estava na outra
ponta da cama, encolhido e tremendo de frio. Quando toquei-o, senti que a temperatura
corporal estava muito elevada. Levei-o ao banho, dei remédio e cuidei até que ele dormisse, o
que demorou bastante. Só consegui pegar no sono de madrugada.
Quando acordei, o Eric não estava mais na cama, levantei, escovei os dentes e fui procura-lo. O
encontrei sentado na varanda tomando sol, com uma roupa branca muito simples, os cabelos
claros reluzentes na luz da manhã. Sorri vendo aquela cena tão bonita e resolvi acabar com a
distância que havia entre nós, me aproximando dele. Ao vê-lo me assustei, ele estava com os
olhos vermelhos.
— Que foi, Bê? — sentei ao lado dele — Você não parece nada bem.
Ele suspirou, olhou para cima e depois olhou para as mãos pálidas.

— Acho que é melhor eu voltar a morar com o meu irmão... Eu sabia que ia ser assim.
— Assim, como?
— Você já enjoou de mim, eu fiz tudo o que você queria...
Cheguei mais perto e peguei as duas mãos dele, que mesmo assim não me olhou nos olhos.
— Bê, para com isso, tá tudo bem, eu tô aqui com você. Sei que andei meio distante esses dias,
mas olha, foi por causa de um monte de coisas. Tem uma feira daqui a poucos dias, eu tô
ansioso por isso, trabalhando demais. Eu queria que você entendesse.
Ele não disse nada. Apenas olhava para as próprias mãos.
— Eu tô sofrendo com a morte da minha avó também, isso você entende, não entende?
Ele apenas respirou fundo.
— Sofreu quando a sua avó morreu, não sofreu?

— Não.

Me interessei.
— Ficou triste?

— Não — essas respostas curtas e diretas ainda me surpreendiam.


— Hein? Por quê? Não era ela quem te cuidava?
— Ela usava o dinheiro da minha pensão pra fazer jogos, sei lá. Me beliscava quando eu usava
a mão esquerda, me deixava sem comer porque eu era gordinho... E muitas outras coisas.
— Eu não sabia, desculpe. A minha era ao contrário de tudo isso aí.

— Meus vizinhos brigaram comigo quando viram que eu não estava chorando no velório, mas
eu não ligava. Não sei fingir.
Ele não fingia mesmo.
— Do que ela morreu?
Ele olhou para mim dessa vez e havia um brilho cinzento naqueles olhos enigmáticos.
— Não joguei uma faca ou nada parecido, se é isso o que quer saber. Acho que foi do coração,
sei lá, nunca pensei nisso.
Ri e beijei as mãos dele.
— Ei, você só tinha oito anos, não pensei em você se vingando de alguém nessa idade. Você
sofreu muito, Eric.

— Mas eu pensava nisso sim, queria que ela morresse. Não sofri e nunca menti pra ninguém
sobre isso.
Pensei no que ele dizia enquanto o olhava admirado. A pele macia e branca, com aqueles
lábios rosados e aqueles olhos azuis cinzentos formava um quadro delicioso.
— Meu anjo, você é perfeito, sabia? Tão sincero e transparente que me deixa encantado. Eu sei
que não te dei muita atenção por esses dias, mas não mudei com você.
— Não mudou?
— Nunca, e nem pense em me deixar sozinho porque eu vou atrás de você, tá bom?
Ele sorriu e as bochechas dele ficaram coradas. Aproximei meu rosto e o beijei, um beijo longo
para matar a sede de alguns dias vazios. Depois disso fui trabalhar, mas na medida do possível
eu me mantinha por perto para que o meu garoto carente não se sentisse abandonado.
XVIII

Eu passei a maior parte da minha vida preso num apartamento grande e dispendioso, estava
infeliz no trabalho e apático no relacionamento. Um dia, num restaurante, um carinha muito
tímido e bonitinho veio falar comigo, pois precisava urgentemente de um lugar pra dormir. Um
dia esse carinha esbarrou acidentalmente no meu cotovelo e imediatamente eu gostei do
toque da sua pele. Desesperado, procurei formas de senti-lo novamente, ele permitiu, curtiu e
agora dormia nos meus braços. Enfim eu estava cheio de ideias, de planos e vivendo um
relacionamento delicioso com um garoto simples e perfeito. Um conto de fadas.
E foram felizes para sempre...
Quando tempo dura o “para sempre” depois que o narrador termina a história? Ninguém
nunca voltou pra contar. Os contos de fadas, aquelas histórias que encantaram a nossa infância
não existem no mundo real. Ou talvez o mundo real seja encantado e aquelas baboseiras que
nos contaram é que estragaram tudo. Mas a gente precisa viver pra saber.
Viver com o Eric era perfeito, na minha concepção de perfeição. Ele estava sempre “à mão”
quando eu precisava, sempre disponível, sempre carente pelos meus afetos, e era submisso ao
ponto de quase me enlouquecer. Ele mantinha o nosso ninho quente e cheiroso, a comida era
incrível, e na cama ele fazia tudo o que eu queria. Eu o queria para mim, não apenas no
sentido físico, mas totalmente, e isso incluía o olhar, as palavras e até o pensamento.
A única coisa que me incomodava era o irmão. O irmão que o buscava nos sábados em que eu
não o levava, o irmão que ligava sempre, o irmão que dava conselhos. Mas eu ia relevando,
vivia feliz o resto da semana. O irmão que na semana do Natal me chamou pra conversar e eu
não puder correr.

— Bruno, eu sei que você gosta do Eric, que vocês estão bem e tudo, mas toma cuidado para
não sufoca-lo demais. Eu não sei por quanto tempo alguém aguenta uma relação submissa
assim, mesmo alguém carente como o Eric. E lembre-se: o Eric não é uma pessoa sozinha no
mundo, ele tem a mim que sou mais do que um irmão pra ele e estou de olho em você — ele
falou sério e me apontou o dedo, ainda por cima.
— Olha cunhado, a gente tá muito bem, então cuida da sua vida, ok? — falei no mesmo tom
porque eu nunca deixo ninguém me intimidar.
— Eu tô cuidando de tudo o que é importante na minha vida, e você tá avisado.

Na noite depois dessa conversa irritante com meu cunhado/sogra chata, eu estava na cama de
olhos abertos, pensando, talvez até conversando comigo mesmo quando o Eric se mexeu.
— Que foi, Bruno? — ele perguntou com uma voz de sono.
— Nada... Mas... Bê, me diga a verdade, eu estou te sufocando?

— Às vezes você me sufoca quando quer colocar o peso todo em cima de mim, mas já tô
acostumado, pode ficar assim mesmo.
Ri com aquele jeito dele de levar tudo para o lado prático e palpável da coisa. De fato
acostumei-me a dormir quase sobre o corpo dele e não parecia mesmo muito confortável. Mas
ele nunca reclamava.
Eu alisava o braço dele com as pontas dos dedos, pensativo, quando ele voltou a cochilar, a
gente estava meio que de conchinha.
— Bê...
— O que foi? Tá sonhando, é? — ele queria dormir.

— Eu não quero que você sofra por causa das minhas paranoias, tá? — beijei-o nos cabelos —
Eu não sou perfeito, você sabe.
— Deixa disso, ninguém precisa ser perfeito pra ser perfeito para alguém. Agora descansa... —
aquilo fazia muito sentido.
No Natal eu fui para a casa dos meus pais e o Eric ficou com a família dele, mas voltamos pra
nossa casa logo no dia 26. Ele me mostrou, irritado, os presentes que ganhou da mãe, o que
me fez rir. Ele não gostava de ganhar coisas das quais não fosse precisar, e a coroa rica deu a
ele um monte de roupas e um celular muito chique. Eu tinha comprado um anel, mas não
entreguei.

Por causa do estilo minimalista que adotei vivendo com o Eric sobrava dinheiro pra tudo,
inclusive pra viajar. Viajamos na última quinzena de janeiro, fomos ao norte da Itália onde eu
tinha uns parentes, Trento, Verona e outras cidades pequenas. Fomos a diversos lugares,
aproveitamos para conhecer castelos, florestas, ilhas, mesmo não sendo a época ideal. Foi uma
viagem sem muitos luxos, mas de muita estrada.
Era incrível vê-lo naqueles cenários diferentes, aquelas paisagens, e eu aproveitava para tirar
fotos e mais fotos, algumas ficavam tão sofisticadas que até eu me surpreendia. O Eric se
divertia com a minha mania de fotografa-lo, dizia que se sentia uma celebridade sendo
perseguida por um paparazzo. E Nessa viagem eu pude saber mais coisas sobre ele, coisas que
eu nunca saberia se não tivéssemos saído do país. Um delas é que ele aprendia outros idiomas
com a facilidade de quem decora uma receita de bolo, em poucos dias ele se comunicava
melhor do que eu, apesar da timidez. Na verdade ele era muito inteligente, seu insucesso na
escola se devia mais à instabilidade emocional do qualquer outra dificuldade.
Eu tinha mais tempo para viajar, se quisesse, mas preferi só duas semanas por causa do meu
filho. Não gostava de passar muito tempo sem vê-lo, tanto que no mesmo dia em que cheguei,
eu fui à casa da Jéssica busca-lo. O Eric também queria ver o irmão e as sobrinhas, então deixei-
o lá antes de buscar o Gabriel. Ao contrário do Eric, as outras pessoas do mundo gostavam de
ganhar presentes e eu tinha trazido alguns pros chegados da família e aproveitei para entregar.

Na volta pra casa o Eric estava estranho, olhando pela janela, pensativo. Comecei a me
incomodar.

— Que conselho seu irmão te deu dessa vez que te deixou pensativo assim, hein?
— Conselho? — ele me olhou rapidamente e depois riu — Não, não é isso. Acho que agora ele
vai se separar.
Não era impressão minha, o Eric, mesmo depois de adulto, ainda cultivava um ciúme doentio
do irmão, não gostava da cunhada e estava feliz com a separação. Eu não gostava disso, na
verdade eu ficava muito puto com isso. Parei o carro e respirei fundo.

— Eu entendo o seu carinho pelo seu meio-irmão, mas eu não gosto desse grude, entendeu?
Me sinto traído.
— Traído? Tá maluco, Bruno? — ele me olhou rapidamente com uma sobrancelha levantada.
— Eric, você tem ciúmes dele, tá na cara!
— Claro que não! — o rosto dele ficou vermelho de repente — Eu não gosto da Marisa porque
ela não gosta de mim, tá legal? Ela acha que eu tiro a atenção do Vander das filhas dela e blá
bla blá... Quero que se separem mesmo — disse isso e abriu um sorriso misterioso.
— Armou isso, não foi? — falei e olhei-o nos olhos, eu não duvidava de nada. Ele se zangou.
— Claro que não, como é que eu ia fazer isso? Bruno, você precisa confiar mais em mim, eu
estou contigo, a gente se curte pra caramba, mas você não substitui o meu irmão. É diferente.

— Eu sei, Bê. Mas eu tenho duas irmãs e um irmão e a gente não fica nesse grude.
— Que grude, Bruno? — ele balançou a cabeça — Ele só fica preocupado comigo, quer saber da
minha vida, é normal.
— Amor, você cresceu! — o Gabriel começou a acordar e eu liguei o carro — Não vamos
discutir, tá? Logo a gente vai viajar de novo e ficar sozinhos, só nós dois.
Ele suspirou e voltou a olhar para fora.
— Itália?
— Não, Santa Catarina. É outra feira, mas dessa vez você vai gostar. Garanto que você não vai
ficar perdido como da outra vez.
Ele sorriu e pôs a mão na minha perna, me ouvindo falar com bastante interesse.
Alguns dias depois viajamos para a tal feira agropecuária onde a empresa em que eu
trabalhava iria expor máquinas e implementos. Eu estava muito empolgado, pois essas feiras
sempre traziam novas oportunidades. O Eric estava meio quieto, mas foi comigo sem reclamar.
E foi lá, num quarto de hotel, depois de um sábado muito cansativo, que ele iniciou o assunto
que fez desmoronar a minha tranquilidade amorosa.

Eu estava deitado na cama, ele estava sobre mim com a cabeça no meu peito e fazendo carinho
nos meus braços, quando se ergueu sobre o cotovelo e me olhou.
— Bruno, me ajuda a fazer um portfólio?
Estranhei e não gostei de imediato.

— Que portfólio? Pra quê?


— Ah, um book fotográfico, pra modelo, você sabe...
— E desde quando você é modelo? — fiquei de mau humor e não fiz questão de disfarçar.
— O que é, Bruno? Eu já fiz isso duas vezes quando tinha uns dezessete anos, depois não me
interessei mais, mas minha mãe me ajuda a conseguir os trabalhos agora. Acho que é...
O fiz deitar novamente sobre mim.
— Acha nada Eric, não quero que você faça isso. Minha irmã foi até para os Estados Unidos.
Ele riu e me beijou o peito.
— Ah Bruno, não tô podendo assim não né, é só coisa simples, por aqui mesmo, eu já passei da
idade. E você sempre tira fotos de mim.

— Aquelas fotos são pra mim e pra ninguém mais. Bê, não tá tão legal a gente junto, sem nada
e ninguém pra atrapalhar?
— Ei, por que atrapalhar? A gente vai continuar junto, eu juro! Vai ser legal, eu gosto desse
tipo de coisa, já me disseram que eu sou expressivo, mesmo que eu não sirva pra passarela.
Peguei o rosto dele com as duas mãos e o fiz olhar para mim.
— Eu não quero isso, tá? Vai me contrariar?
Ele baixou os olhos, depois me olhou novamente.
— Então deixa eu voltar pro bar do Renato. Ele me ligou esses dias.
— Hein? Nem sonhando! — me irritei e me virei de lado, derrubando-o de cima de mim — O
Renato tá a fim de te comer, isso sim. Não quero você de conversa com aquele cara, você é
meu, eu já te disse.

Ele riu, nervoso e suspirando.

— Claro que sou, e vou continuar sendo, meu amor. Mas eu tô acostumado com o assédio, eu
sei me virar. E eu até gosto, você sabe, é legal ver um cara bonito me desejando, mas eu só
quero você...

Respirei fundo. O Eric não reclamava nunca, mas também não mentia. Claro que ele gostava de
atrair os caras, especialmente os caras presença, bonitões como o Renato, o Ramon e porque
não, eu também. Só que comigo, além da paquera veio o afeto que ele tanto procurava, e aí
ele se entregou legal. Mas eu não tava gostando daquele papo.
— Por acaso você tá sentindo falta de ser solteiro? Por que se for eu resolvo o seu problema!

Ele ficou impaciente, passando a mão no cabelo e no rosto.


— Claro que não! Bruno, você tá confundindo tudo, eu não tô pensando em te trair, nem te
deixar. Eu só quero um pouco mais de movimento, eu tô ficando muito preso em casa, você
sabe disso.
— Em casa a gente conversa, tá? — fechei os olhos.
— Tá bom... Desculpe por isso, eu amo estar o tempo todo com você, mas você não pode estar
o tempo todo comigo, eu quase morro vivendo assim, como se fosse um passarinho numa
gaiola.
— Gaiola? — abri os olhos.
— Porque é assim que eu me sinto...
Um passarinho numa gaiola? Sim, um lindo pássaro de belas asas, mas preso pelo pé numa
gaiola disfarçada de lar feliz. Estaria ele triste, querendo voar? Eu tinha muitas coisas em que
pensar, mas na minha mente insana apenas uma ideia fixa: terminar o meu álbum.

Voltamos pra nossa casa no domingo à noite, ele estava quieto e eu cansado. Ele fez um lanche
pra gente, comemos quase em silêncio, depois fomos dormir. O espaço entre nós na cama aos
poucos foi diminuindo, até que ele chegou para os meus braços e eu pude sentir aquele cheiro
e aquele calor que me acalmava. Entre abraços e beijos eu torcia pra que ele deixasse aquele
assunto pra lá.
Na segunda-feira eu fiquei muito ocupado e a gente quase não se falou, mas na terça ele
voltou com aquela conversa logo após o almoço. Sentado à minha frente, fazendo círculos
imaginários com o garfo na mesa, ele me olhou calado por um tempo, depois começou.
— Bruno, pensou no que te disse?
— Pensei não Eric, eu não quero nem pensar nisso.

— Bruno...

— Eu não te obriguei a vir morar comigo Eric, você veio por livre e espontânea vontade, e a
gente se dá tão bem! É bom pra mim e é bom pra você do jeito que a gente tá.
— Mas Bruno, por que eu não posso sair de casa? Eu confio em você, você tem que confiar em
mim também. Preciso me ocupar.
Estendi a minha mão e toquei-o no queixo.
— Bê, eu não quero brigar com você, vamos continuar assim... Você é muito lindo, é o meu
anjo, eu te quero só pra mim, tá bom? Eu cuido de você...
Ele respirou fundo e pegou a minha mão, falou olhando nos meus olhos.

— Olha, faz do seu jeito. Pode me colocar uma coleira com o seu nome, se quiser, mas me
deixa sair sozinho na rua. Ou me leva pro seu trabalho, sei lá, faz como quando você trabalha
aqui em casa, só não me deixa aqui sozinho, por favor. Porque se você não me deixar sair eu
vou voltar a morar com o Evander... — ele falava meio aflito, com os olhos cinzentos.
— Você não vai! Eu te busco, ele querendo ou não! — a mão dele estava na minha, ele tentou
soltar, mas eu a apertei com força.
— Eu fujo...
Peguei o rosto dele com as duas mãos e aproximei nossas cabeças. Ele me olhava assustado.
— Você não vai fugir, se fizer isso eu te acho aonde for, tá entendendo? — falei alto — Você
não vai querer me testar, vai?

Fui em direção ao nosso quarto e ele foi atrás. Deitei na cama e fiquei olhando para o teto, ele
sentou ao meu lado e ficou em silêncio por bastante tempo, depois tocou suavemente na
minha mão.
— Bruno, não precisa disso. Olha, eu não sou um anjo como você diz e nem quero ser. Eu sou
só um cara normal, poxa, e cheios de defeitos, ainda por cima. Nem sou tão bonito.
— Eric, me deixa sozinho, eu preciso pensar.
— Não quero que você goste de mim por algo que você criou na sua cabeça. Eu não quero ser
seu crush, seu anjinho, seu bebê. Eu quero ser seu namorado, só isso.
Crush. Crush me lembrava algo. Sim, me lembrei de uma conversa que ouvi há muito tempo,
quando tudo aquilo começou. Duas mulheres riam como galinhas cacarejantes enquanto
falavam de seus crushs de adolescência. Eu não era mais um adolescente, tinha quase 28 anos,
mas me sentia do jeito que elas descreviam. Sonhava, vigiava, perscrutava, stalkeava, e tudo
isso com a pessoa que dormia nos meus braços, o que era irônico. Não, aquilo não estava indo
bem.

O Eric me olhava, ele estava quase ajoelhado sobre a cama. O olhei e depois fechei os olhos.
— Quinta-feira feira à tarde a gente vai pra uma cidadezinha pacata e montanhosa, não muito
longe daqui.

— Pra fazer as pazes? — ele deitou do meu lado.


— Pra fazer fotos. E encerrar isso.
Ele suspirou e ficou calado.

Na quarta-feira eu aproveitei pra resolver tudo o que estava pendente no trabalho e


providenciei algumas coisas que eu ia precisar na viagem. Eu estava num estado de irritação
extrema e por isso me afastei ao máximo dos meus colegas de trabalho, a única pessoa que eu
queria ver era o Eric, de preferência seminu. Mas ao chegar à noitinha, ele não estava.
Interessante que antes mesmo de por meus pés dentro de casa eu já sentia a ausência dele,
meu sangue ferveu na hora e imediatamente eu voltei pro carro e fui atrás dele. E eu sabia
exatamente aonde ir.
Quando cheguei lá, ainda mais irritado por causa da demora no trânsito, aquele irmão
cauteloso finalmente me convidou pra subir. Era um bonito apartamento novo, bem decorado,
porém pequeno, no sexto andar. Evander tinha duas filhas, uma de seis anos e uma de três,
lindas, loirinhas e muito apegadas com o Eric. Mas notei que a tal Marisa, a cunhada chatinha
que o Eric se referia era uma chatona ciumenta. Pensei em como aquele meu cunhado tinha
sangue doce pra gente ciumenta. Ele era engenheiro civil e trabalhava na construção de uma
estrada ali por perto. Com roupas de ficar em casa, dava pra ver ainda mais a brancura e
magreza daquele cara, que ainda assim era bem apessoado. Notei também o clima ruim da
casa, afinal eles estavam se separando.
O Eric estava sentado na sala jogando vídeo game com as meninas, e no colo dele tinha duas
bonecas. Achei fofo aquilo, mas eu estava muito estressado pra apreciar.
Eu estava nervoso, tenso, poderia cometer um crime por motivo fútil a qualquer momento,
mas tinha que disfarçar ali na casa daquele povo.
— Ah, é aqui o seu esconderijo — falei rindo, tentando parecer simpático. Não me sentei,
mesmo sendo convidado.
— É, você me achou — ele respondeu me olhando nos olhos, sorrindo também, mas um sorriso
contido.
— Vem, vamos pra casa.
Evander estava meio sem graça, acho que era por causa da esposa, mas mesmo assim ele me
olhou nos olhos daquele jeito estranho. Depois se voltou para o Eric, todo protetor.

— Eric, eu quero que você fique, ainda não tivemos tempo de conversar direito.
O Eric pensou um pouco, olhou para mim, depois olhou pro irmão. Ele parecia indeciso.
— Hã, eu venho na sexta, pode ser?

— Você que sabe, filho. Eu já te disse que é melhor você ficar, mas se você quer ir...
O Eric foi até ele e o abraçou. Foi um abraço longo e apertado, o cara ainda deu um beijo no
cabelo dele do jeito que eu costumava fazer. Eu senti um pouco de ciúmes sim, mas ouvi a
mulher suspirar e olhei para ela.
— Esse menino não é filho dele, é só meio-irmão. Isso é ridículo! — ela falou para mim.

Não gostei daquela mulher. Magra, cabelos platinados, bem vestida, e uma aura de gente ruim,
invejosa e ciumenta, uma candidata perfeita para as facadas do Eric. Ao pensar nisso eu ri
internamente.
— Pai é quem cria, não é? — falei e ela se calou.
O Eric se despediu das meninas e das bonecas, depois descemos no elevador e fomos para o
carro em silêncio. Era interessante pensar que de tudo o que poderia atrapalhar meus planos
com o Eric, meu antagonista fosse justamente o irmão que o criou como filho. Acho que nem
um ex-namorado perseguidor me incomodaria tanto quanto aquele meu cunhado.
— Eu disse pra você não sair — falei entredentes quando pegamos a rodovia.
Ele olhou pra janela do carro e não falou nada.

— Por que veio pra cá hoje?


— É que ele me chamou pra conversar, ele tá se separando da Marisa, tá complicado lá.
— E você por acaso é advogado, padre, conselheiro de família?
Eric me olhou sério e com uma sobrancelha levantada.
— Não, mas eu tenho família, igual a você. Não precisava vir me buscar, era só me ligar.
— Eric, eu preciso de você comigo, então vamos pra casa, só isso.
— Bruno, meu irmão tá preocupado com esse nosso relacionamento.
— Bê, amanhã a gente resolve tudo tá bom? Lá onde te falei, mas até lá, continua comigo, do
jeito que estava antes, tá?
— E por que a gente não conversa hoje? O que tem de especial amanhã?
— Lua cheia — respondi e ele me olhou intrigado.

— Hã? Lua? E você vai virar lobisomem, por acaso? — ele riu — Bruno, às vezes você me
assusta com essa tara maluca de sempre procurar cenários perfeitos, imagens perfeitas.
Gostaria que a praga do Serginho tivesse pegado e nascessem mesmo as espinhas na minha
cara, aí eu ia saber se você gosta de mim de verdade ou só da minha, hã, beleza singular.

— Não fala bobagens, tá? Você não ia deixar de ser bonito por causa de três espinhas, a beleza
que me atrai não é isso. Mas não adianta te explicar, você não vai entender...
— Não basta gostar de mim do jeito que eu sou e saber que eu gosto muito de você? Eu te falei
sobre querer me mudar...
Respirei fundo e diminuí a marcha para entrar na rua da nossa casa.

— Você está falando demais hoje, que coisa!


Ele apenas olhou pra fora, calado. As mãos dele estavam unidas e pareciam nervosas.
XIX

Ao entrar em casa eu fui direto pro banho, não desci pra comer nada e deitei na cama cedo. O
Eric foi mais tarde, deitou ao meu lado, mas senti que ele não dormiu. Depois de um tempo ele
se achegou ao meu corpo e ficamos de conchinha. Não pude evitar cheirar aquele pescoço,
acariciar aqueles cabelos macios e de beijar de leve aquele ombro. Dormi tranquilo como das
outras vezes, mas acordei inquieto no meio da noite, uma profusão de pensamentos ruins,
dúvidas. Não quis voltar a dormir por causa dos pesadelos que ameaçavam vir.
Pensei em tudo que tinha mudado na minha vida, a parte boa, a parte complicada. Tentei me
concentrar em coisas mais banais, como o aniversário do meu filho dali a alguns dias, na
formatura da Larissa e do Serginho para a qual eu estava convidado e intimado a não faltar,
numa visita que tinha que fazer à casa dos meus pais. Mas nada disso me distraía, era aquela
ideia fixa que não me descansava. Peguei alguns papeis, desci pra sala e fiquei lá rabiscando,
planejando alguns detalhes.
Algum tempo depois vi o Eric descendo as escadas, quieto, só de cueca. Ele chegou bem perto
de mim e sem dizer nada se sentou no chão entre as minhas pernas, com a cabeça na minha
coxa.
— Não é melhor você ir dormir? Eu estou sem sono, mas você não precisa me acompanhar.
Ele ficou calado, na mesma posição e alisando a minha canela com as pontas dos dedos. Depois
ele levantou a cabeça e me olhou.
— Deixa eu ficar aqui com você...
— Tá bom, mas então vamos pro sofá.

Sentei no sofá e ele se deitou colocando a cabeça no meu colo. Continuei desenhando, já meio
sem foco, até que as minhas vistas foram escurecendo, as pálpebras pesando e a escuridão caiu
sobre mim. O sono veio pesado, sem sonhos ou pesadelos, acordei todo torcido, o dia já claro
e o Eric espremido junto comigo. Ri daquilo.
— Viu só? Mandei ficar na cama.
Ele só me olhou triste.
— É hoje?
— É sim — e fui pro banheiro do nosso quarto.

Passei a maior parte do dia na rua providenciando algumas coisas. Saímos à tarde para a
viagem de cerca de 90 quilômetros ao noroeste, a viagem que eu fazia para a libertação, a
mudança. Passamos por uma pequena e charmosa cidadezinha montanhosa, com seus vales
profundos e morros cobertos de matas.

Logo após a cidade, parei numa velha cantina com nome italiano para comprar uma garrafa de
vinho. Eu já havia passado por ali e gostava do produto de fabricação artesanal, acabei
comprando três garrafas. Era de boa qualidade e custava apenas dezesseis reais cada.

O endereço era um sítio que eu já conhecia, uma casa estilo chalé europeu, mas bem maior, no
topo de uma elevação e de frente a um vale. Quando chegamos lá, já passava das quatro da
tarde. Ali normalmente a temperatura era mais baixa por causa da altitude, mas estava uma
tarde gostosa, sem nuvens, perfeita. Peguei as chaves e chamei o Eric, ele estava muito curioso
com tudo, não perguntava o que havia de errado, mas devia saber. Eu estava introspectivo.
Entramos na sala decorada com muitos móveis e objetos de madeira, subimos uma escada
também de madeira e chegamos ao quarto, que era incrível. Havia uma grande cama
estrategicamente posicionada de frente às grandes janelas de vidro, que eram três. Dali se
tinha vista perfeita pro leste, sul e norte. Abri as cortinas e ele ficou olhando, sem saber o que
fazer.
— Toma um banho bem caprichado Bê, eu vou ver alguma coisa pra gente comer — falei sem
olha-lo e saí do quarto.
— Ué, vai até fazer as coisas no meu lugar...?
Não respondi, deixei-o sozinho intrigado com as minhas atitudes.
Fui ao carro e peguei um embrulho pesado que eu tinha comprado numa loja de ferragens,
cuja embalagem identificava o nome da loja, peguei outro embrulho que eu já tinha há algum
tempo, e outras coisas que eu tinha colocado numa sacola discreta. Deixei no quarto enquanto
o Eric estava no banho. Fui à cozinha e a comida já estava pronta, eu tinha encomenda à dona
do local, claro que eu não ia botar a mão na massa. Peguei uma bandeja, duas taças, abri duas
garrafas de vinho e subi novamente.
Analisei o quarto, conferi as horas, ainda era cedo. Empurrei a cama para coloca-la encostada
na janela voltada para o leste, o que fez um pouco de barulho. O Eric saiu do banho de toalha,
me olhou de lado, olhou a cama e foi vestir uma cueca. Comecei a montar câmera, fazendo
testes, enquanto ele só observava.
— Senta aqui na cama, Bê — pedi e ele obedeceu.
Peguei uma taça e enchi de vinho, bebi um gole e entreguei a ele.
— Não posso beber muito, me dá sono por causa do remédio que eu tomo.
— Hum, mas toma um pouco — não queria me distrair, então não prolonguei a conversa.
Ele foi tomando devagar enquanto eu ajeitava as coisas.
— Quer que eu ajude em alguma coisa?

— Não, eu só quero que beba, tá bom? Que beba bastante.

Ele franziu a testa e virou a taça até acabar. Ele era acostumado a sempre fazer todas as tarefas
e não a ficar olhando.
Quando vi a taça vazia na mão dele, eu a enchi de novo. Pus a bandeja de frios perto dele que
comeu um pouco de queijo, eu ia pegando algum pedaço de vez em quando. Quando ele
terminou a segunda taça, estava com o rosto corado. Conferi as horas.
— O que tem no relógio? Você olha o tempo todo...
— Não se preocupe.
Me aproximei dele, que parecia ansioso, mas sorrindo de forma sedutora.

— Você é lindo, seu diabinho. Sabe sorrir assim pra me provocar — e beijei a boca dele com
gosto de vinho.
Ele sorriu ainda mais e se deitou na cama. Eu peguei a outra garrafa e bebi do gargalo.
— Eu sou um anjinho — ele disse e riu.
— Não, você não é. Você é um safadinho, isso sim. Vem aqui, vem.
Puxei a mão dele, pra que se sentasse novamente. Sorvi mais da minha garrafa e o beijei,
fazendo-o beber da minha boca. Ele bebeu tudinho. Passei a mão esquerda pelo corpo dele,
que se arqueava para sentir o meu toque. Eu ia bebendo do gargalo e dando a ele, isso por
bastante tempo. Eu o olhava se embriagando e vigiava o relógio.
— Vai urubu, tira essa roupa. Vou te comer não, porra! — e estava fazendo efeito, o remédio
que ele tomava potencializava o efeito do álcool.
— Isso, fala putaria, fala — tirei apenas a minha camisa, ele abriu o zíper da minha calça e ficou
me masturbando de leve — fraquinho assim não bebê, mete a boca, vai.
Ele riu e começou a me chupar. Segurei o rosto sem fazer força e comecei a fazer movimentos
de vai e vem na boca dele. Ele deixava, mas às vezes tinha ânsias e ria.
— Continua chupando, vai. Você gosta, não gosta?
— Aham — ele disse sem tirar totalmente da boca.
— Mas agora para e deita na cama, vou conversar com você.
— Agora? — ele me olhou desconfiado e se deitou, meio zonzo.
Ajudei-o a ficar na posição que eu queria e me deitei sobre ele. Beijei-o enfiando a língua na
boca dele, sem nenhum romantismo e desci mordendo aquela pele branca, marcando mesmo.
Ele gemia e reclamava da dor. Depois eu fui até a beirada da cama e embaixo dela eu peguei o
embrulho pesado, abrindo-o no chão. Dali eu tirei uma corrente de aço inox 316, do tipo
industrial, e comecei a prendê-lo, ele até riu quando viu o que eu estava fazendo. Passei uma
volta em cada perna dele, prendendo-a com cadeados, e prendendo as extremidades nos pés
da cama. Deixei as pernas dele um pouco abertas. Ele olhava para baixo e ria, cada vez mais
bêbado. Bebi mais da minha garrafa e dei na boca dele, que ia engolindo tudo.

Ajeitei a posição do corpo dele novamente e comecei a prender as mãos, dessa vez com
algemas e uma corrente menor. Ele ficou com os braços pra cima, completamente imobilizado.
Me coloquei de joelhos na cama e fiquei analisando a obra. Conferi as horas e vi-o rindo disso
novamente. Meio irritado, voltei a mordê-lo na barriga, mordi várias vezes, até que ele gemeu
de dor. Depois beijei o peito dele, mordiscando os mamilos. Levantei da cama, desliguei a luz e
liguei a câmera. A lua começou a aparecer na janela.

Bati algumas fotos pra testar, depois coloquei para filmar. Peguei um embrulho de veludo
preto e subi na cama de joelhos novamente. Abri na frente dos olhos dele.
— Olha bebê, olha o que eu trouxe pra gente brincar.
Nos olhos dele passaram fagulhas, não sei se era de medo, de raiva ou de excitação. O brilho
da prata na luz da lua era algo singular, talvez até sinistro. A faca gaúcha e sua bainha também
de prata estavam polidas. Passei-a bem perto do nariz dele, toquei com o metal frio o calor dos
lábios rosados e macios. Cortei uma mecha dos cabelos castanho-claros e passei no rosto dele.
— Olha Bê, como está afiada!
— O que... o que vai fazer? — ele falou com dificuldade.
— Preciso tirar esse anjo de mim Bê, ele me assombra.

Ele gaguejou alguma coisa. O interrompi com as costas da faca.


— Não fala nada, tá? Vamos fazer a imagem mais bela do mundo, pra encerrar. A última.
— Bruno, eu te... — pus a faca novamente na boca dele.
— Sim, você me ama, eu sei que você me ama. E eu sou louco por você, louco entendeu? — ele
balançou a cabeça — Olha, é a lua... Olha Bê, ela está maior e mais brilhante hoje e não está
nublado. Mas ela vai passar rápido por essa janela, então tem que ser logo. Senão só daqui a
dezoito anos — ri alto e ele balançou a cabeça novamente.
— O que você...
— Xiii, não vai doer nada... Eu coloquei um remedinho no seu vinho, naquela garrafa — e
apontei, ele apenas assentiu.
Mudei de posição na cama, fui para o lado esquerdo. Beijei a tatuagem sob o braço, acariciei o
peito, beijando-o, suguei cada um dos mamilos, desci pra barriga beijando e mordendo perto
do umbigo. Tirei o pênis dele da cueca e pus na boca, chupando com vontade, consegui colocar
mais pra dentro do que estava acostumado, masturbando-o com as duas mãos. Chupei
bastante depois o deixei para fora muito duro e melado. E peguei a faca novamente.
— Hora de dar adeus ao meu anjo.

Ele fechou os olhos. Passei a lâmina afiada pelo lado esquerdo do pescoço dele, bem devagar.
Nesse momento, na mesinha ao lado, a tela do meu celular se iluminou. Suspirei e evitei olhar,
mas ela se iluminou novamente. Eu sabia do que se tratava. Deslizei a outra mão sobre o peito
do Eric e cheguei ao pescoço dele, fechei os olhos e depois os abri. Não senti nada.
— Ai Bê, olha — mostrei a faca ensanguentada, triunfante.
Ele abriu os olhos tremendo as pálpebras, depois fechou-as novamente e virou a cabeça pro
lado direito. O sangue jorrava e eu comecei a rir alto, muito alto, como um maluco. Estava num
êxtase louco, prestes a ter um orgasmo sem sequer me tocar.
— Que delícia!
Fui passando a mão e espalhando mais sangue pelo lençol branco e pelo peito do Eric.
Experimentei e não gostei daquele gosto de ferrugem. Pus a faca ao lado daquele corpo branco
e desnudo. Olhei a imagem e era perfeita, eu tinha vontade de gritar.
Levantei e mudei a câmera para fotografar. A luz incrível da lua naquele quarto, aquela cama
de lençóis brancos com detalhes em vermelho-sangue e o Eric preso em correntes e algemas
prateadas, inacreditavelmente ainda excitado... Eu estava num estado de felicidade quase
química, surreal, insana. Estava tudo maravilhoso, muito melhor do que eu tinha pensado, eu
só sentia prazer!
A lua começou a sair do meu campo de visão e parei de fotografar. Para alcançar o orgasmo e
enfim poder descansar, eu comecei a me masturbar, ainda parcialmente vestido, apenas com a
mão direita e em poucos segundos, sem fazer muita força o gozo veio forte, caindo sobre a
barra do lençol e o tripé da câmera. Foi louco e surreal aquilo, eu ria como os personagens
maus dos desenhos infantis, aquela risada sinistra e rodava pelo quarto.
Até que eu fui me acalmando, conseguindo enfim respirar direito. Estava exausto, o suor
descia, apesar da temperatura do quarto estar agradável, minhas pernas tremiam. Comecei a
desligar a câmera com cuidado para não correr nenhum risco de perder as imagens. Tirei-a do
tripé, colocando-a numa mesa, onde peguei o meu celular, tudo isso usando apenas a mão
direita. Na esquerda, um corte grande e profundo, ainda sangrando, começava a latejar e doer
de verdade.
— Ai, caralho! — peguei a outra garrafa de vinho, a que tinha um remedinho de alergia do Eric
e bebi mais um pouco, dessa vez para espantar a dor. Enrolei a minha camisa para estancar o
sangramento.
Olhei meu celular, numa mensagem no Whatsapp, a foto de uma carinha porca e gordinha. O
Gabriel tinha aprendido a me enviar selfies e fazia isso várias vezes ao dia, e até ali, naquela
hora. Sorri e beijei a tela.

— Meu anjo, é por você que eu ainda mantenho a minha sanidade. Acho que se não fosse por
você, eu já teria ficado louco. Obrigado por você existir.

Olhei o corpo estendido na cama. Sorri vendo aquele rostinho bonito, mas como ele mesmo
dizia, não era tão perfeito. Ali com a boca aberta, roncando sonoramente e quase babando,
ele era apenas um garoto comum. A combinação do vinho com antialérgicos dava nisso,
sonolência e queda de pressão.
Senti o pulso dele, estava normal. Abri as algemas, tirei as correntes e verifiquei se não estava
marcado. Não estava. Lentamente fui movendo-o de forma que pudesse tirar o lençol sujo de
sangue, limpei a pele dele com uma gaze umedecida e depois o cobri com um lençol limpo.
Beijei os lábios dele, as faces e a testa. Eu o amava! Sim, eu o amava do jeito dele, carente e
sedutor, mas que gostava de controlar a situação. E eu adorava o jeito que ele me tratava,
como se eu fosse o irmão que ele platonicamente idolatrava. Eu precisava dele, do jeito dele, e
não do meu jeito.
Peguei meu álbum secreto e fui conferindo algumas fotos ali perto da janela à luz da lua e do
celular, para não acorda-lo. Eram lindas, mas tinha que admitir que o fotógrafo também fez um
bom trabalho. Sorri pensando nisso. Separei algumas que me pareceram adequadas para o
portfolio que ele precisava, umas caseiras mesmo, no nosso jardim, algumas tiradas em
Verona, onde ele estava com um casaco preto e um gorro cinza. Eram as mais comerciais. As
demais eram minhas, meu álbum estava completo.
Olhei pra ele novamente. Meu garoto. Minha vida mudou tanto depois que ele chegou, tão
quietinho, sorrateiro, sedutor. Por que não muda-la novamente? O meu crush estava morto, o
verdadeiro Eric apenas dormindo. Isso abria possibilidades. Um novo álbum? Por que não?

Apalpei o bolso direito da minha calça e encontrei o que procurava: o anel. Coloquei-o no dedo
anelar da mão branca e fina do Eric, na esquerda porque era a favorita dele. Ele continuava
dormindo profundamente, então escrevi com a minha caneta especial pra que ele visse depois.
“Bê, eu te amo. Eu sei que você já disse Sim”
XX - Capítulo Especial

O Eric acordou por volta do meio dia, pálido e com os olhos inchados. Eu tinha fechado as
cortinas, mas ainda assim era possível ver o sol quente lá fora. Ele tentou se levantar, mas logo
se deitou novamente. Eu sentei ao lado dele na cama.

— Cara, tô enjoado — ele disse e fechou os olhos.


— Tome um suco de laranja, eu encomendei pra você.
— Não sei se vai descer... — ele pegou o copo, de ajeitou melhor no travesseiro alto e deu duas
goladas, depois me entregou o resto.
— Toma mais.

— Depois... Hum, a gente não tá em casa, não é?


— Não, você esqueceu?
— Ah sim... — um pequeno silêncio — Sabia que eu sonhei que você tentou me matar a noite
passada?
Ri e passei a mão no rosto dele.
— Tá tudo bem, meu amor. Foi só um sonho, né...
— Amor? Gostei. Me dá aí esse suco.
Entreguei e ele foi tentando tomar. Depois fechou os olhos e me entregou o copo vazio.
— Quer ver seu portfólio? — falei, já com o grande álbum na mão.

Ele abriu os olhos rapidamente e eles tinham um brilho diferente, mais feliz.
— Você fez? Ai Bruno, eu achei que... Enfim, deixa eu ver.
Quando ia pegar o álbum da minha mão, ele viu as ataduras brancas. Já ia questionar quando
viu a própria mão com um recado escrito em tinta preta e o anel prateado com um fio dourado
no dedo anelar. Ele olhava de um lado para o outro, confuso, depois sorriu.
— Por quanto tempo eu dormi?
— Bastante, Bê.
Ele estava indeciso entre pegar o portfólio, ler o que estava escrito na mão esquerda e ver o
que tinha na minha mão machucada. Eu o olhava e me divertia.
— Veja a sua mão primeiro, é só uma sugestão — abri os braços.
Ele leu e me olhou desconfiado. Leu duas vezes, olhando para o anel, até que a fica caiu.

— Sério?

— Aham, muito sério — eu o olhava nos olhos.


— Eu tive medo esses dias Bruno, achei que não ia dar pra gente.

— Foi uma fase, esquece aquilo. A gente pode recomeçar, aliás, eu posso recomeçar, você não
mude, por favor.
Ele riu e sentou na cama, calado e pensativo. Lá fora estava calor.
— Será que a gente dá certo?
Eu o beijei nos lábios novamente.

— Acho que a gente não dá certo com mais ninguém nesse mundo, garoto. Somos perfeitos um
para o outro...
— Vou poder sair de casa?
Sorri e peguei as mãos dele.
— Sim, mas a gente vai fazer as coisas juntos. Eu vou te fotografar, comercialmente. Eu fiz
alguns planejamentos, quer ver?
— Você não tem jeito, né?
— Não, amor. Mas não vou correr o risco de te perder, juro!
Nos abraçamos, nos beijamos de lábios e ficamos nos olhando. Aí ele sorriu.

— Então estamos casados!


— Gosto da sua praticidade, meu amor!
— O que houve com a sua mão?
— Um sacrifício por uma boa foto, em breve você vai ver. Vou fazer um quadro.
— Bruno, Bruno...

Saímos do chalé e nos dirigimos a outra casa no sítio para pagar a estadia. O Eric permaneceu
dentro do carro o tempo todo, disse que estava enjoado. Voltamos para casa e poucos dias
depois ele foi mesmo tirar fotos para a publicidade de uma fábrica de roupas jeans, junto com
mais duas garotas. E voltou feliz e me contando detalhes.
Passei a fazer fotos mais sensuais dele, e a usa-las num site. A gente se divertia fazendo, as
sessões era muito prazerosas, literalmente falando. Um dia mostrei a ele os desenhos e fotos
mais antigas que eu tinha, ele ficou curioso e espantado com algumas.

— Sou eu mesmo?
— Aham, e sem retoques.

— Credo, que cara de garoto-propaganda de camisinha que eu tenho! Nunca imaginei isso!
Ri e o beijei.
— Você é sensual garoto, eu te disse. E essas fotos aqui são as mais inocentes. As atuais são
mais safadas e deliciosas.
— Você mudou ou é impressão minha?

— Hum, descubra e me conte.


— Ainda tem ciúmes do meu irmão? Vai continuar implicando com o ele?
— Contando que não role beijos demais entre vocês...
— Fique tranquilo, seu besta.
— E eu continuo ciumento, viu? Só pra constar nos autos.
— Sabia que eu não me importo? Eu me prendi a você por vontade própria, por isso não tente
me pôr mais grades e algemas, que aí estraga tudo.
O beijei daquele jeito pouco romântico que ele adorava.
— Você é simplesmente complicado, garoto. E eu sou louco por ti!

No fim de semana meu querido cunhado chegou à nossa casa com as duas filhas. Ele estava
separado da mulher, por isso passava os fins de semana com as meninas. Ao passarem do
portão, as duas foram correndo abraçar o Eric e o Evander parou perto de mim, me olhando
nos olhos, o que me deixava irritado.
— E então, Bruno? Como vai?
— Bem cunhado, e você?
— Também. O Eric parece mais feliz ultimamente, não é?
— Pois é... — a voz e o olhar daquele cara me deixavam desconfortável — Também me parece.
— Mas quero que saiba de uma coisa, e não se esqueça de jeito nenhum.
— Sim?

— Eu ainda estou de olho em você!

E me apontou o dedo na cara e depois entrou. O olhei afastar-se e saí rumo a uma pracinha,
sentei lá perto de alguns idosos e fiquei rabiscando com uma caneta e um papel que eu tinha
levado no bolso. Peguei meu celular, procurei numa pasta uma foto do Eric dormindo para me
guiar nos esboços. Era o meu novo projeto. Meu trabalho secreto.

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