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Legislação Urbana e Registro Imobiliário 1
Legislação Urbana e Registro Imobiliário 1
1
Sumário
Introdução .......................................................................................... 22
Separar e reinar: nasce o bairro residencial exclusivo ....................... 23
Inclusão, exclusão e cidadania .......................................................... 27
0 papel do Estado: serviços urbanos e os bairros populares ............. 30
A crise dos anos 20 na cidade das multidões .................................... 33
A ponta do iceberg: a questão do arruamento irregular ..................... 36
A cidade popular pode ser anistiada e a cidade burguesa se defende .. 40
Conclusão .......................................................................................... 41
DO ESTATUTO DA CIDADE AO CÓDIGO DE URBANISMO ............... 52
Introdução .......................................................................................... 52
Competência da União para legislar sobre direito urbanístico ........... 52
A legislação urbanística federal ......................................................... 53
Deficiências da legislação federal ...................................................... 54
A Experiência internacional em direito urbanístico ................................ 56
1
Princípio da Inscrição ou do Registro ................................................. 64
Princípio da Legalidade ...................................................................... 66
Princípio da prioridade ....................................................................... 67
O NOVO PAPEL DOS BENS IMÓVEIS NUMA PERSPECTIVA CIVIL-
CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA .............................................. 71
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................... 88
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NOSSA HISTÓRIA
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HISTÓRIA NOVA, HISTÓRIA URBANA E HISTÓRIA
DA LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA
dos pela visão do historismo, que tem no historiador alemão Leopold von
Ranke sua maior expressão. À história baseada unicamente nos grandes
acontecimentos e nas fontes documentais oficiais, restrita à política e feita
somente por historiadores profissionalizados, contrapõem a aproximação da
história a outras disciplinas e a ampliação dos objetos da história e do campo de
fontes documentais. Nessa busca de ampliação do território da história e da
interdisciplinaridade está implícito o questionamento à especialização do
historiador, que resultou da institucionalizatem um passado que pode ser
reconstruído, não se reconhecendo, portanto, a existência de uma história com
H maiúsculo. Assim, em contraposição a uma história referenciada em fatos que,
nas palavras de Braudel, não passam de “espumas nas ondas do mar da
história”, propõem a “história total”.2 Os fatos não existem isoladamente, mas
constituem um tecido, têm uma organização na qual desempenham o papel de
causa, fins, acasos etc., e cabe ao historiador “reencontrar essa organização”.3
Em termos metodológicos, a diretriz principal diz respeito à ampliação das fontes:
não apenas escritas, mas também orais, imagéticas, estatísticas, etnográficas
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etc. A explicação histórica deve, nessa perspectiva, dar-se pela variedade de
questionamentos que se revelam mediante o reconhecimento de “vozes variadas
e opostas”, e não pelo ideal de uma voz oficial da história.4
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acontecimentos. O tempo das estruturas é a longa duração, a quase imobilidade,
uma vez que as estruturas permanecem constantes durante um tempo longo ou
só evoluem de maneira imperceptível. O tempo das conjunturas são flutuações
de dimensões diversas, oscilações cíclicas que se manifestam no contexto das
estruturas. Os acontecimentos são engendrados pelas estruturas e conjunturas,
são as rupturas ou o restabelecimento de equilíbrios.8
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campo específico para a história do urbanismo, e autores que entendem a
história urbana como o estudo da forma urbana como resultante de complexas
forças sociais, psicológicas e econômicas. Em The History of Urban and
Regional Planning – an annotated bibliography, publicado em 1981, Anthony
Sutcliffe faz um balanço dos trabalhos elaborados, em sua grande maioria, na
Europa e Estados Unidos. Em suas conclusões, podem-se observar algumas
semelhanças com a condição atual da história urbana no Brasil, principalmente
em relação ao universo de pesquisas vinculadas às idéias e às práticas
urbanísticas, tanto no que se refere ao perfil dos pesquisadores, como no que
se refere aos limites na utilização de recursos teórico-metodológicos. Cabe
destacar que a maioria absoluta dos trabalhos levantados por Sutcliffe são
elaborados no período pós-60, o que confirma esse momento como um marco
na expansão da área.
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relatórios etc. – corresponde uma não-apropriação metodológico-conceitual da
disciplina história, que se expressa, por um lado, na quantidade de pesquisas
voltadas para a criação de bancos de dados e, por outro, no número significativo
de trabalhos que se restringem a descrever cronologicamente planos, leis,
relatórios etc. Deve-se considerar que os trabalhos, no Brasil, além de
sinalizarem a vitalidade de um campo temático multidisciplinar, constituem uma
busca de ampliação de parâmetros teóricos e metodológicos para se transpor os
limites interpretativos colocados pela pronunciada influência do referencial
marxista – desenvolvido, sobretudo, pela sociologia francesa dos anos 70 –, o
qual vinha marcando as pesquisas brasileiras. Assim, paralelamente ao
esquadrinhamento das fontes documentais, que vem permitindo iluminar todo
um universo de constituição da engenharia, arquitetura e urbanismo brasileiros
que permanecia oculto, os trabalhos de história urbana refletem o deslocamento
das interpretações fundamentadas exclusivamente em determinantes
econômicos, em que as questões fundiária, imobiliária e de serviços urbanos
foram privilegiadas na explicação dos processos de estruturação urbana, para a
incorporação de aspectos estético-culturais. Se, nos anos 70, os marcos teórico-
conceituais em suas várias vertentes eram em grande parte explicitados ou
reconhecíveis, nos trabalhos elaborados pós-80, com exceção daqueles
vinculados à linha foucaultiana, tais questões vêm sendo minimizadas.
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urbanística. O papel assumido pela legislação no urbanismo brasileiro constitui
um campo nebuloso e pouco explorado. Nos setores de urbanismo das
administrações municipais no Brasil, prevalece, há meio século, uma abordagem
legalista, ou seja, a legislação é colocada como uma meta em si, e não como um
instrumento, dentre outros, para atingir determinadas metas de desenvolvimento
urbano. Se no período da Primeira República, quando começam a estruturar-se,
nas administrações públicas, as seções de obras que evoluem para seções de
urbanismo, a elaboração e execução dos planos de melhoramentos e,
posteriormente, dos chamados planos de conjunto, impõem-se como atividade
privilegiada de urbanistas oriundos dos cursos de Engenharia. A partir dos anos
40, ocorre um nítido deslocamento da esfera de atuação desses órgãos.
Constrói-se um novo saber urbanístico – uma nova visão de atuação do Estado
ante as novas formas de apropriação do espaço urbano – e os denominados
órgãos de planejamento passam a atuar, fundamentalmente, como órgãos
normativos. A tal mudança corresponde uma nova estrutura organizacional do
setor, assim como a construção de um novo perfil do urbanista – o profissional
generalista, com predominância de profissionais egressos dos cursos de
arquitetura. É nesse momento que se dá uma fissura entre arquitetura e
urbanismo: planejar passa a constituir-se como atividade desligada de projetar,
e o zoneamento – abrangente ao conjunto da cidade e articulador de um conjunto
de parâmetros urbanísticos em zonas funcionais – consolida-se como o principal
instrumento de planejamento.
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séculos XVI e XVII, aponta os princípios reguladores e as instituições
responsáveis por sua implementação, no âmbito da política urbanizadora no
Brasil-colônia. Da análise dos trabalhos publicados em livros, anais de encontros
e seminários, dissertações de mestrado e teses de doutorado, no período pós-
80, podem ser identificadas três vertentes dominantes nas pesquisas voltadas
para a historiografia da legislação urbanística no Brasil. Uma primeira vertente
enfoca os aspectos normativos referentes à propriedade fundiária, emanados
pelo poder eclesiástico até a promulgação da Lei de Terras, em 1850, quando a
terra adquire o estatuto de mercadoria. Os trabalhos de Marx (1991), Fridman &
Ramos (1992) e Fridman (1994) mostram como entre o regime jurídico do
sistema de sesmarias do período colonial e a separação entre Igreja e Estado
estrutura-se a propriedade fundiária no Brasil. Da distribuição gratuita de terras,
passa-se à aquisição onerosa, o que define os limites da propriedade em favor
do interesse público. Marx (op. cit.) mostra, de forma minuciosa, como persistem,
por décadas, os privilégios dos grandes detentores de terra e os procedimentos
do antigo sistema de distribuição de terras, e como, de forma tímida, os
municípios se adaptam à nova realidade político-administrativa, a partir da lei de
1850 e sua regulamentação em 1854, mediante a prática dos loteamentos e dos
códigos de posturas, atos e resoluções.
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político de intervenção do Estado na questão social nas cidades – é desvendada,
tanto nas formas de habitação (Rolnik, 1983; Lira, 1991; Marins, 1998) como nos
territórios de prostituição (Feldman, 1987). A questão da segregação espacial,
por meio da análise das primeiras normas que extrapolam a construção de
edifícios contidas nos Códigos de Posturas aprovados na última década do
século XIX, em inúmeras cidades, constitui o eixo direcionador de tais análises.
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legislação, principalmente no que se refere ao zoneamento e aos instrumentos
pós-Constituição de 1988.
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urbanísticas neles contidas e dos setores e instituições envolvidos em sua
formulação e aplicação, na esfera do Executivo e do Legislativo. (Souza, 1994;
Grostein, 1987; Feldman, 1996, 1997, 1998; Campos, 1996, 1998). No entanto,
a produção é fragmentada, com recortes temporais e espaciais restritos, além
de se deter em aspectos específicos da legislação. De fato, há uma
concentração de trabalhos sobre São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, o que,
como nos demais estudos de história urbana, não permite delinear um panorama
abrangente da questão, nem discriminar particularidades regionais.
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A visão legalista consiste no enfoque da lei como uma meta em si, e não
como um instrumento, entre outros, para se atingir metas, o que leva à
preferência por leis antecipatórias em lugar da experimentação, e à crença de
que nada pode ser assumido sem prévia legislação ou regulação. A ênfase na
lei é, segundo Graham, vista como um ideal, ao invés de algo a ser aplicado a
circunstâncias presentes com o máximo de precisão. Para o autor, uma
expressão da experiência legal no Brasil é a ênfase e valorização da codificação
das leis.
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teorias administrativas engendram modelos institucionais que originam práticas
que, por sua vez, se articulam a práticas herdadas de outros momentos. Do
ponto de vista das instituições, da organização e dos procedimentos adotados
na implementação das leis, alguns trabalhos oferecem uma contribuição
relevante, uma vez que utilizam como fontes de pesquisa processos de
aprovação das próprias leis, de loteamentos e de edificações (Grostein, 1987;
Feldman, 1989, 1996; Simões, 1990; Lira, 1991). Tais fontes de pesquisa
permitem, por meio de uma leitura menos genérica, entender a legislação como
um processo não-linear, mas como o resultado de embates técnicos e políticos
e, ao mesmo tempo, desvendar que relação se estabelece entre cidadão e
Estado.
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do urbanismo americano, por meio das parkways, zoneamento, e das versões
americanas das cidades-jardins de Howard, como o princípio das unidades de
vizinhança de Radburn. Nas experiências de cidade novas, a partir dos anos 30,
começam a ser introduzidos princípios modernistas, que se realizam de forma
acabada em Brasília. Se nos planos as referências internacionais são facilmente
demarcadas, seja pelos traçados propostos, seja por explicitações de seus
autores em relatórios, textos, memoriais, o mesmo não ocorre em relação à
legislação. A legislação é cumulativa. Novas formas de controle com as mais
diversas referências são constantemente incorporadas, como peças legais
parciais, artigos, num processo contínuo de reformulações, exclusões e
acréscimos, que não alteram, necessariamente, nem o sistema legal, nem as
instituições e seus procedimentos.
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movimento modernista, que se contrapõe à legislação de princípios higienistas
vigente na Europa dos anos 20. Segundo Ebenezer Howard, embora princípios
reguladores estejam implícitos na proposta espacial de cidades-jardins, não
chegam a propor uma concepção de lei. As leis sanitárias e o zoneamento
americano vêm recebendo a atenção da maioria dos pesquisadores voltados
para a historiografia da legislação urbanística no Brasil (Rolnik, 1983; Lira, 1991;
Souza, 1994; Feldman, 1996; Somekh, 1997; Nery Junior, 1998; Marins, 1998),
e as formas como tais referências foram e são absorvidas pela legislação
urbanística brasileira estão sendo desvendadas. Em relação às propostas
modernistas, o único documento que vem sendo utilizado como referência é a
Carta de Atenas, fundamentalmente no que se refere ao zoneamento funcional
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remembramento de terrenos – “verdadeira revolução na noção sagrada de
propriedade”, a fim de garantir a melhoria do alcance coletivo, as construções
em altura reunidas sobre pequena superfície edificada, enormes espaços livres,
supressão de pátios e corredores, construções sobre pilotis, e tetos-jardins.
Gropius propõe que, ao invés do limite de altura dos edifícios, se utilize o limite
da densidade populacional, ou seja, propõe que se regule a relação entre
superfície de moradia/volume edificável/superfície edificável, argumentando que
as condições higiênicas e econômicas se tornam mais vantajosas.
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especialistas não-qualificados que ofereçam moradias de baixa qualidade. Caso
o Estado não assuma tal postura, os arquitetos colocam a alternativa da
autoajuda, estabelecendo-se a relação direta entre o habitante como usuário e
o construtor como produtor. O nível de qualidade da moradia passa a ser assunto
exclusivo de ambos, e a regulamentação estatal, dessa maneira, passaria a ser
supérflua, com o passar do tempo.
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reagrupamento do solo – “único caminho que conduz ao urbanismo” –, uma vez
que a propriedade subdividida, o caráter inalienável da propriedade, condena
“toda tentativa de melhorias coletivas”.
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York, e não do zoneamento proposto por Le Corbusier. Este só se efetivará em
1960, com a aprovação das “Normas para Construção em Brasília”.
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ESTUDO DE CASO
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contrapõem aos espaços populares não regulados ou em desacordo com a lei.
Repetidas infinitas vezes ao longe da história, esta tensão sintetiza o movimento
de um mercado imobiliário cuja rentabilidade e ritmo de valorização são definidos
por uma dupla lógica: por um lado, são mais lucrativos os agenciamentos
espaciais capazes de gerar as maiores densidades e intensidades de ocupação.
E por outro, se valorizam os espaços altamente diferenciados e exclusivos. A
intensidade de uso é garantida através do estabelecimento de um território fora
da jurisdição de lei, aonde a terra pode se subdividir ao infinito; a condição é não
"contaminar" as vizinhanças. Daí decorre um duplo movimento estabelecido pela
lei: por um lado garantir a "proteção" de determinados espaços contra a invasão
de usos e intensidades de ocupação degradantes, de outro definir uma fronteira,
para além da qual estes mesmos usos seriam tolerados. Este movimento se
expressa pela primeira vez, no Código de Posturas de 1862 , quando se demarca
pela primeira vez uma zona urbana (correspondente à área central da cidade)
onde se proibia a construção de cortiços. O desenho desta zona foi sendo
sucessivamente reatualizado, sem, entretanto, romper com a concepção básica
de se manter uma zona urbana cada vez mais minuciosamente regulada e uma
vasta zona suburbana (e rural) que poderia ser ocupada com usos urbanos
vedados para a primeira tais como matadouros, cemitérios, indústrias
malcheirosas e... cortiços.
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bairro de Hygienópolis concentrar os palacetes mais elegantes da cidade. Em
seguida é a Av. Paulista, construída por Joaquim Eugênia de Lima e inaugurada
em 8 de dezembro de 1891. Esta, afastada do núcleo urbanizado, contava com
rede de água e esgoto, iluminação e piso macadamizado com pedregulhos
brancos. A construção da Av. Paulista, situada no alto do espigão que separa a
bacia do Rio Pinheiros da Bacia do Tietê, permitia a vista para toda a cidade.
Logo se transformaria não só em lugar das residências mais ricas da cidade,
mas também como símbolo cívico, realizando-se ali grandes solenidades,
paradas militares e desfiles carnavalescos elegantes. Em 1894, Joaquim
Eugênio de Lima consegue aprovar uma lei exclusivamente para a Av. Paulista,
obrigando as futuras construções a obedecer a um recuo de dez metros em
relação ao alinhamento, bem como dois metros de casa lado. Em 1898 a lei
municipal 355 "especifica o modo de edificar nas avenidas Hygienópolis e
Itatiaia", exigindo recuos mínimos obrigatórios de seis metros para jardins e
arvoredos e um espaço não menos do que dois metros de cada lado. A estas
leis, definindo a especificidade do modo de construir nos bairros de elite,
corresponde uma característica absolutamente marcante na construção da
legalidade urbana na cidade de São Paulo: a lei como garantia de perenidade do
espaço das elites.
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concentra valores imobiliários altos, o comércio mais elegante, as casas ricas, o
consumo cultural da moda e a maior quantidade de investimentos públicos. Na
primeira República a imagem desta topografia social é feita de colinas secas,
arejadas e iluminadas de palacetes que olham para as baixadas úmidas e
pantanosas onde se aglomera a pobreza.
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serviços públicos de calçamento e pavimentação (pagos até este momento
integralmente pela Prefeitura).5
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Inclusão, exclusão e cidadania
As afirmações anteriores procuraram apontar como uma legalidade
urbanística que foi sendo construída na cidade de São Paulo, ao mesmo tempo
em que se constituía uma zona de ilegalidade, que correspondia, a grosso modo,
aos assentamentos populares. A extra legalidade estava em construir em
terrenos cujo desenho não havia sido aprovado pelos engenheiros municipais,
ou em partilhar os lotes ou casas com habitações coletivas, gerando um espaço
de alta densidade demográfica. Assim, bairros inteiros existiam sem, no entanto,
serem reconhecidos como parte da cidade oficial; a alta densidade do território
popular enojava e preocupava as elites, que se defendiam construindo bairros
exclusivos e propondo favores fiscais e liberalidades construtivas para os
empreendedores que desejassem construir casas populares em zonas
precisamente delimitadas para tal, fora do perímetro central. Apontamos também
para o papel da legislação urbanística no estabelecimento de um mercado
imobiliário dual, capaz de prover alternativas de localização para as diferentes
faixas de poder aquisitivo presentes na cidade, ao mesmo tempo em que se
garantia a rentabilidade do investimento imobiliário independente da faixa de
renda a que se destinava. Além das implicações econômicas, a situação de
ilegalidade urbana tem implicações culturais. Ao longo do século XX, o
paradigma da legalidade foi se construindo em torno das cidades-jardim
exclusivas da elite paulistana, habitadas pelas famílias endinheiradas. Ao
mesmo tempo em que a condição de extra legalidade foi se definindo como a
alta densidade e subdivisão de casas e terrenos, configuração urbanística
considerada promíscua, indisciplinada e desregrada, ou seja, como espaço sem
lei, marginal. O lugar e a condição passam a constituir assim uma só zona de
opacidade no tecido social. Esta correspondeu, em um primeiro momento, ao
território negro na cidade e depois, pouco a pouco, foi incorporando os bairros
populares de imigrantes até se identificar plenamente, na década de 30, como
território estrangeiro numa cidade cujo projeto cultural era francamente
nacionalista.
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político do PRP – Partido Republicano Paulista – as classes dominantes jamais
haviam tomado conhecimento da existência do povo como expressão política.
Para o governo, exercido pelos fazendeiros do café, o problema era como suprir
sua carência de mão-de-obra. O estrangeiro, que veio substituir o escravo nesta
função, tinha, na verdade, a mesma condição política: não vota nem pode ser
votado, não existe nas decisões sobre o destino da cidade ou do País. Durante
todo o período da República Velha, embora tenha havido eleições diretas para
prefeito e vereadores, as eleições eram uma farsa montada para aparentar o
voto universal, parte da doutrina liberal a que era devoto o partido que havia
derrubado a monarquia e instaurado a República. As regras do jogo eleitoral
estavam definidas pela Constituição de 1891, quando predominaram as teses do
republicanismo civil e liberal do Partido Republicano Paulista.
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Assim, tampouco por este meio, se ampliava a representação dos moradores da
cidade.
O voto popular, quando existia, era mediado por uma relação hierárquica
baseada em laços de obediência, lealdade e proteção. Assim, não existia
propriamente uma relação com as demandas populares; a participação popular
nas eleições era atravessada não por direitos, mas por redes de relacionamentos
pessoais, a partir dos quais se poderia obter favores e oportunidades.
Finalmente, a garantia de sucesso de uma eleição definida a priori, nos
gabinetes, se dava através do processo de reconhecimento dos resultados do
pleito, que deveria ser feito pelo Senado e Câmara. Eram eleitos, diplomados e
reconhecidos os candidatos que as comissões executivas dos partidos
houvessem indicado em seus boletins. No dia das eleições, seções eleitorais
inteiras poderiam não funcionar, os livros e atas ficavam na mão de juízes ligados
ao grupo que dirigia a política municipal, mortos e ausentes, às vezes, votavam.
Com estes procedimentos se garantia a chamada degola de eleitos indesejados.
As eleições eram o preenchimento de uma formalidade com a qual se mantinha
a ilusão de que se cumpria a Constituição, e assim, prescindia de um debate
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sobre as questões da cidade, Estado ou País e girava em torno de figuras
políticas, os figurões e seus círculos.
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sistemas e redes e de associação com empreendedores imobiliários em
negócios conjuntos. Desta forma, a relação entre a provisão do serviço e a
demanda se dá quase que exclusivamente para o mercado de alta renda, leia-
se no centro de negócios e bairros residenciais "valorizados" ou na abertura de
novos mercados de mesmo tipo, em terras que ainda não "desbravadas". No
próprio contrato das companhias estava registrado um perímetro demarcado
para sua atuação, definido como urbano, e, portanto, sujeito a regras específicas
de construção. O que estava fora, ou em desacordo com as disposições
estabelecidas em contrato, a Cia. não era obrigada a cobrir. Atas da Câmara
Municipal de 1881 registravam a preocupação da Cia. em fazer a Prefeitura
definir o perímetro urbano e as regras de uso e ocupação do solo, para poder
cumprir cláusulas de seu contrato:
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do Prefeito e reconfirmou o monopólio. Contra tal decisão, explodiu um motim
popular , que ocupou o Triângulo e uma parte da Av. São João aos gritos de
"Abaixo a Light! Abaixo o monopólio! Viva Antônio Prado!” Apesar da revolta, as
condições contratuais foram mantidas e a Light continuou ditando as regras de
indexação dos preços de terrenos, gerando eixos de expansão, e definindo, a
partir de critérios de mercado, quem deveria ser beneficiado e quem seria
excluído da provisão de infraestruturas.
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de sua criatura: uma cidade que em 1920 chega aos 600.000 habitantes, densa
e concentrada como um barril de pólvora prestes a explodir.
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incorporar questões para além do mundo do trabalho, como o valor dos aluguéis,
preço e qualidade dos produtos de primeira necessidade. A rede funcionava
como base territorial da ação direta, levando à prática da autonomia e
autogoverno, princípios da doutrina anarquista.
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produzida pela Light, que era também concessionária do serviço de bondes, a
falta de bondes gerava um clima permanente de conflito. Enquanto fervia a
agitação revolucionária na cidade, o Prefeito Pires do Rio, em final de mandato,
promulgava a Lei n. 3.427 de 19/11/1929, conhecida como Código de Obras
Arthur Saboya. O novo Código não apresentava grandes inovações em matéria
de regulação do uso e ocupação do solo, representando muito mais uma
compilação das leis esparsas já promulgadas do que propriamente um novo
instrumento urbanístico. Sua grande novidade era incorporar os zoneamentos
parciais que já haviam sido promulgados – definindo normas específicas para a
ocupação de certas ruas. O Código foi recebido com frieza, quando não com
críticas pelo meio técnico. Na fala dos engenheiros com representação na
Câmara Municipal – como Alexandre de Albuquerque – esse já havia nascido
velho: "Afirmei e continuo a afirmar que a "Lei Arthur Saboya" não passa de uma
Codificação de leis esparsas, sem unidade e sem originalidade". O próprio Arthur
Saboya, embora indignado com as críticas do colega, ressaltava como principal
qualidade do Código:
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política da crise da República Velha, exigia também um reposicionamento
urbanístico: até quando a legislação urbana poderia ignorar a irregularidade da
cidade popular, que inclusive, àquelas alturas já havia acumulado investimentos
familiares por décadas e gerado valorização e mobilidade social? 0 Código de
1929 era como a resposta de Washington Luís à questão social: faz de conta
que não existe. A possibilidade de autoconstrução na expansão ilimitada da
fronteira trazia a resposta, do ponto de vista da economia imobiliária, à crise.
Porém, está colocava em xeque toda a lógica de investimentos públicos e
provisão de serviços.
Para poder atender à cidade popular era preciso reconhecê-la. Mas, para
isso, faltava um elemento essencial: "que estatuto jurídico urbanístico teria esta
cidade autoconstruída, para além dos parâmetros oficiais e controlados pelos
códigos, que agora seria viável aconselhável ocupar?" A resposta sem dúvida
nenhuma não estava no Código de 1929. E tardou os anos turbulentos que
separam o golpe de 1930 da Constituinte de 1934 para ser formulada. Nesse
ínterim, sucederam-se dez prefeitos nomeados por interventores federais que
duraram cada qual poucos meses no poder abalados pela rebeldia de São Paulo
diante dos poderes ditatoriais de Getúlio e pela perda crescente de espaço
político da oligarquia paulista. Nestes anos rebeldes se ensaiou o que estaria por
vir plenamente com as definições de rumo em 1930 e 1934.
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horizontal, no ônibus e automóvel como meios dominantes de transporte, na
autoconstrução dos assentamentos populares e... na mais absoluta
irregularidade em relação às leis e códigos que regem as regras de uso e
ocupação do solo na cidade. Para atender às pressões sociais para a instalação
de serviços públicos era necessário que os loteamentos e construções fossem
oficiais. As empresas de serviços públicos manifestavam àquela altura
claramente esta preocupação. A Repartição de Águas e Esgotos, por exemplo,
pedia em ofício endereçado ao prefeito, datado de 1931, que este intercedesse
no sentido de:
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políticas públicas é uma concessão, seletiva, do Estado. Qualquer semelhança
com a formulação dos direitos trabalhistas da era getulista não é mera
coincidência.
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armamentos irregulares, introduz o Ato de 1932 como um capítulo da
Consolidação, em substituição ao art. 548 do Código de 1929 que impossibilitava
a aceitação de ruas abertas em desacordo com a legislação. Ao permitir que
ruas abertas sem prévia licença sejam aprovadas, introduz também – o que
inexistia na versão de 1929 – condições para regularização das edificações
situadas em loteamento sem plano aprovado (largura mínima de rua de 8 m,
obras de drenagem, ocupação de apenas 1/3 do lote, recuo de frente de 4 m,
entre outras exigências) Além disto, as casas operárias, para serem
reconhecidas, não precisavam obedecer às condições enumeradas: bastava
estarem recuadas 4 m da via pública ou particular e 2 m de cada lado e da divisa
de fundo. Através da leitura das modificações introduzidas em 1934 é possível
analisar qual é o novo pacto territorial que se estabelece entre as classes
dominantes e os grupos sociais emergentes: a velha ordem não se transforma
para incorporar outras formas de ocupação do espaço, na verdade apenas tolera
– seletivamente – exceções à regra que, ao serem reconhecidas, são
"contempladas" com o direito de serem objeto de investimentos públicos em
infraestrutura e serviços urbanos. As maiorias clandestinas entram assim na
cena da política urbana devedoras de um favor de quem as julgou admissíveis.
A relação política que funda este pacto territorial é a que se convencionou
chamar na literatura sobre a questão social de "ideologia da outorga", ou seja, o
ato fundador da cidadania é uma relação de doação do Estado ao povo.
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permitiu desarticular qualquer tentativa de organização autônoma por parte dos
trabalhadores/moradores. Com a redemocratização, a relação assim
estabelecida é que abre espaço para a construção do clientelismo e populismo:
a condição de extra legalidade tolerada das maiorias clandestinas vai então
assumir a forma de troca. Aos rn/'horamentos obtidos se retribui com o voto.
Mas, para que isso seja possível foi necessário, além da construção de um pacto
político baseado na dádiva, um novo papel do Estado. O que se estabelece é
uma relação de ascendência e intermediação obrigatória do Estado em relação
às massas recém-incluídas ao pacto.
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cidade", esboça a reação territorial das elites diante do espectro do fantasma do
povo. O desejo de controle da cidade por parte das elites se manifesta como
desejo de proteção de seu próprio espaço: a sanha do desenvolvimento urbano
é, ao mesmo tempo, fonte de riqueza e ameaça, porque pode significar que esta
riqueza mude de mãos ou que alguns privilégios acabem. Por isso é preciso
proteger a cidade. No discurso das elites, diante do populismo do Estado, é seu
território que necessita de proteção legal: uma proteção que tenha, ao contrário
da anistia do território popular, um perímetro e uma regra claramente definidos
em lei. A anistia e o zoning seletivo são duas faces cartografadas em mesma
moeda: representam uma estratégia político urbanística em São Paulo que
deitou raízes tão profundas, que praticamente nada mais aconteceu em termos
de legislação até o final dos anos 50. Seu fundamento tem o caráter do
compromisso estabelecido com a revolução de 30: as massas populares chegam
ao poder sem autodeterminação, subordinadas a um Estado protetor e populista;
as elites se deslocam sem perder seu lugar. Enfim, tudo muda para nada mudar.
Conclusão
Ao findar o século XX, São Paulo, metrópole de 10 milhões de habitantes,
tem sua organização espacial regulada por uma ordem jurídico-urbanística
fortemente enraizada nos princípios formulados no início do século. Um retratista
que necessitasse captar, através de uma imagem instantânea, esta organização
espacial, descobriria, para além das peças de um caleidoscópio de difícil leitura,
a inércia de um desenho de cidade marcado pela contraposição entre um espaço
contido no interior da minuciosa moldura da legislação urbanística e outro, três
vezes maior, eternamente situado numa zona intermediária entre o legal e o
ilegal. Esta contraposição não é absoluta: a ordem jurídica formal ou estatal
nunca está totalmente ausente, mesmo no mais ilícito dos espaços. No mínimo,
se apresenta como referente e é frequentemente mobilizada nas negociações
que se estabelecem entre moradores/ocupantes destes espaços e as
autoridades estatais, que são geralmente as encarregadas pela aplicação das
normas. Da mesma forma, no interior dos espaços construídos de acordo com
as regulamentações urbanísticas, existe uma infinidade de transgressões, fruto
muitas vezes da própria atratividade e valorização que as regiões ultra
regulamentadas têm na cidade.
41
A contraposição destes espaços pode ter inúmeros significados. Do ponto
de vista de geografia da cidade, configuram paisagens que apresentam distintos
graus de prestígio e, consequentemente, de valor no mercado de localizações.
Assim, a grosso modo, se poderia identificar todo o vetor Sudoeste da cidade,
traçado a partir de seu velho centro, como zona concentradora das paisagens
formais, ricas e valorizadas, e as periferias (Norte, Leste, Sudeste e Sul) como
regiões pobres e desvalorizadas, marcadas pela condição de irregularidade, ou
extra legalidade. Mais uma vez aqui é necessário um matiz: a condição de
irregularidade não se refere a uma configuração espacial, mas a múltiplas. Assim
não se pode falar de irregularidade como se fosse um atributo intrínseco de um
espaço urbano, como sua topografia ou a composição de seu solo. Não somente
porque existem, na própria ordem jurídico urbanística, muitos tipos de
irregularidade, mas também porque as normas jurídicas podem ter, na prática,
diferentes significados para os atores sociais, dependendo das condições
políticas e culturais prevalentes. Assim, embora tanto as favelas como as casas
populares autoconstruídas na periferia se encontrem no mesmo vasto campo da
irregularidade, construir sem licença é hoje considerado muito menos ilícito do
que morar em favelas. A favela, além de ter seu espaço organizado de forma
particular e não enquadrada nas previsões da lei, é uma forma de apropriação
do território baseada unicamente no critério da utilização, e não em qualquer ato
de compra devidamente registrado, base fundamental da noção de propriedade
tal como foi definida através da Lei de Terras de 1861 e consagrada no Código
de Direito Civil de 1902.
42
moradores não forem criminosos. Espaço criminalizado de saída, não é
eliminado, apenas rejeitado22.
43
Imaginou-se, no início do século, quando a terça parte das habitações da
cidade era composta de cortiços, que um dia este iria desaparecer e dar lugar à
vila operária25. Para as normas urbanísticas, o cortiço transitou de uma posição
de proibição expressa a simplesmente na exclusão de certo perímetro da cidade,
onde sua presença desvalorizaria a região. Durante décadas foi, na prática,
tolerado e se transformou em grande alternativa de investimento para um capital
rentista e possibilidade segura – embora não sem sacrifícios – de ascensão
social. Embora superado, a partir dos anos 30, pelo modelo da autoconstrução
da periferia, e mais recentemente pelo enorme crescimento das favelas em São
Paulo, o cortiço jamais desapareceu. Pelo contrário: não há nenhum distrito do
Município de São Paulo onde não exista um cortiço, tanto nas áreas de
implantação mais antiga da cidade, quando antigas casas unifamiliares se
subdividem, como nas periferias mais distantes, onde alugar cômodos e
compartilhar quintais é uma das estratégias fundamentais do próprio processo
de autoconstrução26 . Mesmo assim, jamais foi reconhecido sequer como
questão urbana. Com exceção do curtíssimo período em que as autoridades
médicas usaram como estratégia principal de combate às epidemias na cidade
sua "desinfecção", o que poderia implicar inclusive sua demolição, o cortiço
desaparece por completo do campo de intervenção urbanística, embora durante
todo o século não parou de se reproduzir, reinventar, relocalizar. Dos casarões
recém-abandonados no velho centro subdivididos por sublocadores, foram
ocupando os casarões dos Campos Elísios, da Liberdade, do Cambuci, do Brás.
E as sucessivas periferias foram produzidas sob sua forma. Brasileiros, italianos
e portugueses enriqueceram levantando milhares deles nas fronteiras
sucessivas: até a virada do século ocuparam Barra Funda/Brás/Belenzinho/Bom
Retiro/ Bexiga/Lapa, fronteira que em 1916 já ocupava Água Branca/Ipiranga/
Vila Prudente/Mooca/Pary/Tatuapé/Pinheiros. Em um padrão compacto e
pendurado às linhas de bonde foram gerando densidades que chegavam a 11,76
habitantes por domicílio.
44
Brasil/Vila Nova
Mazzei/Mandaqui/VilaGustavo/CasaVerde/Limão//VilaMadalena/VilaOlympia/Mi
randópo lisBosque da Saúde/Vila Guarany: todos bairros arruados nos anos 20
e que foram paulatinamente sendo ocupados pela autoconstrução domingueira
e pelos indissociáveis cômodos de aluguel. A história dos bairros populares é a
história dos quintais coletivos, dos cômodos mínimos alugados para famílias
inteiras, da situação eternamente cambiante, da progressão lenta feita dos
pequenos investimentos familiares. Este padrão, estes ritmos, esta lógica
comercial, espacial e financeira, sempre ausentes das normas urbanísticas,
nada têm a ver com os investimentos massivos e em bloco que criaram a cidade
formal.
45
Nove de Julho, parte do Plano de Avenidas de Prestes Maia, cuja implantação
iniciou-se nos anos 30, começava a sentar as bases para a migração das
atividades terciárias do Centro, na direção Sudoeste. Assim, a Av. Paulista,
símbolo da riqueza gerada na Primeira República com seus palácios de novos e
velhos ricos, vai ser implodida para poder abrigar as torres de bancos, grandes
corporações e antenas de comunicação a partir dos anos 60, sem nunca abalar
seu prestígio. Assim, a valorização sobe as colinas e desce as baixadas em
ondas de ressignificação, invariavelmente acompanhadas pela priorização dos
investimentos públicos da cidade.
46
entrou para dentro do zoneamento eternizando uma situação de fato: sua
ocupação por certo padrão de moradia e, consequentemente, por certo grupo
social à sua altura.
47
fenômeno que se alastra na exata medida do processo de terceirização da
cidade e de dispersão deste tipo de atividades pelo território. Embora os conflitos
em torno da Z-1 seguem sendo negociados e cartografados em mais e mais leis
e decretos (e hoje, cada vez mais também através do instrumento do
tombamento, enquadrando sobretudo os loteamentos da City como patrimônio
histórico), a promoção imobiliária já encontrou seu sucessor como espaço
exclusivo e protegido: o condomínio fechado. Trata-se de pura e simplesmente
materializar as muralhas, presentes na lei e no imaginário urbano,
transformando-as em muros concretos e circuitos eletrônicos de controle e
segurança, que eliminam a presença de qualquer "estranho" no bairro. Isto
significa levar ao limite o modelo segregacionista proposto através do pioneiro
Campos Elysios.
48
infraestrutura e desenvolvimento urbano, que equipam e valorizam a zona,
financiados por cofres públicos e capitais privados.
49
Os comunistas, no breve período de legalidade do partido, entre 1945 e
1947, foram os primeiros a perceber a periferia como um espaço propício para o
surgimento de um movimento de luta por melhorias urbanas e novas formas de
organização popular. Durante o período de legalidade, em que constituíam a
maior bancada na Câmara de vereadores, organizaram dezenas de Comitês
Democráticos e Progressistas, cuja função era funcionar como órgão de massa
do partido, mas que promoveram um trabalho de organização das vilas em tomo
a problemas comuns, que não faltavam. Inaugura-se aí uma tradição de
reivindicação e estratégias de pressão sobre o Estado – seu principal interlocutor
– que redefiniu a geografia política da cidade. Com a ilegalidade do PCB, os
CDPs foram fechados e os vereadores comunistas cassados. Porém, boa parte
destas lideranças foram incorporadas nas Sociedades Amigos de Bairro, forma
de organização que se transformou na principal representação da periferia na
relação com a Câmara e Prefeitura. Até 1953, os vereadores – principalmente
Jânio Quadros, suplente que havia assumido em 48, com a reabertura da
Câmara após a cassação dos vereadores do PCB – já ressoam a voz da
periferia, denunciando as condições precárias e encaminhando reivindicações.
Porém a institucionalização desta relação só se dará a partir do mandato de
Jânio, primeiro prefeito eleito pela cidade após a democratização. São Paulo, em
seu quarto centenário de existência, era então uma metrópole industrial de 2,5
milhões de habitantes e seu imenso território ilegal passa a ser, pela primeira
vez, priorizado pela Prefeitura. Uma das primeiras medidas administrativas de
Jânio foi conseguir a aprovação na Câmara de um projeto de lei sobre
"oficialização dos logradouros", que declarava oficiais todos os loteamentos
aprovados, todos os registrados de acordo com a anistia de 1936 e todos
contidos na planta da cidade anexa à lei. Desta forma, concedia uma anistia em
massa, tornando todo e qualquer espaço contido naquela planta passível de
investimento público. A medida legal era fundamental para pôr em marcha um
Plano de Emergência, que consistia na colocação de guias, sarjetas,
pavimentação e instalação de luz elétrica nas vias principais da periferia dos
anos 5033.
50
lentíssimo ritmo em que se processavam no interior da máquina da Prefeitura,
para que garantissem condições mínimas34. Desta forma, o Departamento de
Urbanismo se dissocia do movimento feito pelo Prefeito, que por sua vez
estabelece uma negociação direta com as lideranças locais, a elas se dirigindo
em suas ações. Combatidas pelos urbanistas, suas medidas eram amplamente
apoiadas pelos empresários ligados ao setor de construção civil e loteamentos,
que tiveram grandes possibilidades de ampliação de seus negócios. O sucesso
eleitoral desta ação de Jânio foi imediato – em 1955 este vence a eleição para o
Governo do Estado, enfrentando Adhemar, e elege seu sucessor em São Paulo.
Em seu período de governador, promove uma ampliação dos serviços de água,
aumentando em 5 vezes a adução e ampliando em quase 50% a rede,
atendendo assim a muitos bairros da periferia. Enquanto governador, sua
influência contribui para a promulgação da lei de conservação, que permite a
edificações irregulares serem legalizadas, o que era fundamental para a
instalação dos serviços. Com esta política, Jânio consolida um primeiro anel de
loteamentos, ocupados entre os anos 30 e 50, enraizando ali sua poderosa base
política. Consolida também uma relação entre o político e a produção da
periferia, que tem, na própria condição inicial de ilegalidade do assentamento, a
possibilidade de transformar investimentos públicos em poderosas moedas de
barganha em contabilidades eleitorais.
Este pacto territorial, esboçado, como vimos, desde os anos 30, mas
definido mais claramente no contexto da redemocratização e populismo, nunca
mais foi desmontado. Através dele se permite construir redes de sustentação
política a partir de investimentos públicos nos territórios irregulares. A legalidade
urbanística, sob a justificativa da isonomia e igualdade, exige a aplicação de um
único modelo de agenciamento territorial, que com raras exceções corresponde
aos contratos praticados no interior do território formal. Ali se estabelece uma
regra milimétrica de uso e ocupação, garantindo reservas de mercado e
inscrevendo contratos econômicos em lei. Ali se concentram os potenciais de
edificabilidade e as grandes obras públicas, os grandes equipamentos culturais
e educacionais, os maiores centros de diversão e consumo. Para além do canal
do Tamanduateí começa outra cidade, construída por uma infinidade de micro
investimentos pessoais e coletivos, que foi se consolidando sob a égide da
51
provisoriedade. Ali partidos políticos e lideranças negociaram ao longo de
décadas uma legitimidade que garantiu sua consolidação, perpetuando ad
eternum. Um modelo de desenvolvimento urbano excludente e perverso. E
contra este modelo, que um movimento pela reforma urbana se articulou no final
dos anos 80, mas esta é outra história que nestas breves linhas já não cabe
contar.
52
controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” e para
“suplementar a legislação federal e estadual” (art. 30, II e VIII).
53
Diversas outras leis setoriais incidem indiretamente sobre o
desenvolvimento urbano, podendo-se citar as seguintes:
54
fato de que, na maioria dos casos, os planos diretores elaborados após o
Estatuto da Cidade não contêm um mapeamento das áreas de risco, cuja
ocupação é vedada pela Lei nº 6.766, de 1979. De um modo geral, tende-se a
tratar os planos diretores, cada vez mais, como peças de retórica política e não
como documentos técnicos de urbanismo, capazes de efetivamente orientar o
crescimento das cidades.
55
necessárias para a revitalização de áreas degradadas, como zonas portuárias,
centros históricos e assentamentos regularizados, medida que interessa a
praticamente todas as grandes cidades brasileiras. A ausência de um regime
jurídico específico, entretanto, torna esse tipo de projeto, em muitos casos,
inviável.
56
– França: Code de l’Urbanisme et de l’Habitation, de 1954, reformulado
em 1973;
Sugestão de agenda
A harmonização das leis federais pode ser feita por meio de sua
consolidação, conforme previsto na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro
de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação
das leis. A consolidação consiste na integração de todas as leis pertinentes a
determinada matéria num único diploma legal, revogando-se formalmente as leis
incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance nem interrupção da
força normativa dos dispositivos consolidados (art. 13, § 1º).
57
A consolidação não seria o instrumento adequado, entretanto, para o
aperfeiçoamento da legislação existente no sentido defendido no presente texto.
Por essa razão, entendemos ser conveniente a elaboração de um projeto de
Código de Urbanismo no âmbito do Congresso Nacional, com ampla consulta à
sociedade e aos Estados e Municípios.
REGISTRO DE IMÓVEIS
Princípio da continuidade
Serve para evitar que um imóvel seja alienado por quem não seja o seu
dono (Alyne Yumi Konno - Registro de Imóveis, Memória Jurídica Editora, p. 35).
Assim, quem transfere um direito tem de constar do registro como titular desse
direito (Narciso Orlandi Neto, Retificação do Registro de Imóveis, Juarez de
Oliveira, pág. 55/56). Exemplo: para que a escritura pública por meio da qual "A"
vende um imóvel a "B" seja registrada no registro de imóveis, é preciso que "A"
conste na matrícula como titular de domínio do imóvel vendido. Afrânio de
58
Carvalho explica o princípio da continuidade da seguinte forma: "em relação a
cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de
titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante
dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões,
que derivam umas das outras, asseguram a preexistência do imóvel no
patrimônio do transferente" (Registro de Imóveis, Editora Forense, 4ª Ed., p.
254).
59
Assim, reputou-se violada a continuidade porque, ao tempo da
apresentação do contrato no registro de imóveis, o anuente da sublocação não
mais constava da matrícula como titular de domínio. Vale lembrar que a
qualificação registral segue a regra tempus regit actum, o que significa que o
título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro,
pouco importando a data de sua celebração (Ap. Cíveisl nº, 115- 6/7, nº 777-6/7,
nº 530-6/0, e nº 0004535-52.2011.8.26.0562). Outro tema recorrente nos
recursos administrativos e apelações diz respeito à qualificação registral dos
títulos judiciais. A jurisprudência do CSM e da CG é tranquila no sentido de que
os títulos judiciais também se sujeitam à qualificação registral, haja vista que o
exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial,
mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus
dados com o registro e a sua formalização instrumental" (Ap. Cível nº 31881-
0/1.).
60
Art. 237 - Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que
dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a
continuidade do registro.
61
determinar a situação do imóvel, e que ele seja transmitido ou onerado por
inteiro, ou seja, desde que a nova matriz a ser aberta o abranja por inteiro.
Contudo, se o imóvel for objeto de desmembramento, fusão ou instituição de
condomínio, sua descrição deverá submeterse aos requisitos da LRP.
Esse entendimento tem sido prestigiado e até ampliado pelo CSM e pela
Corregedoria Geral da Justiça, podendo-se citar a Apelação Cível nº 9000002-
16.2011.8.26.02961 , em que o CSM admitiu o registro mesmo no caso em que
a descrição deficiente constava da matrícula e não de transcrição. O que importa
é que a descrição do título, ainda que precária, coincida com a do registro e seja
suficiente para identificar o imóvel.
62
poderão ser apurados os remanescentes de áreas parcialmente alienadas, caso
em que serão considerados como confrontantes tão-somente os confinantes das
áreas remanescentes. É importante frisar que, ainda que o laudo apresentado
na ação de desapropriação descreva a área remanescente, se a descrição for
discrepante das medidas contidas na matrícula, o registrador pode exigir que a
abertura da matrícula seja precedida de retificação do registro - judicial ou
administrativa - para que se apure a área remanescente (CSM Ap. Cível no
0005861-92.2012.8.26.0180).
Aliás, é por isso que se diz que ambos os princípios estão intimamente
ligados. É por meio da preservação da especialidade subjetiva que se assegura
63
que a continuidade não será quebrada, transmitindo-se a propriedade apenas
através daquele que possuir, de fato, tal direito. Vale dizer, garante-se que a
pessoa que transmite um direito dele figure como titular no registro imobiliário,
seja a transmissão decorrente de ato voluntário ou não.
64
vivos e derivado somente se dão com o registro, salvo exceções legais,
como o casamento pelo regime da comunhão universal de bens”
(LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado. Barueri:
Manole, 2007, p. 1081).
65
Necessidade de apresentação da certidão negativa de débitos junto à Receita
Federal - Inexistência de direito adquirido, em ato complexo não consumado por
inteiro - Aplicação da lei vigente ao tempo do registro - Registro inviável -
Recurso improvido (CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL 35.714-0/0, data do
julgamento: 30/12/1996, Relator: Márcio Martins Bonilha).
Princípio da Legalidade
Na esfera registraria, o princípio da legalidade assume a função atribuída
ao registrador de exercer o controle de legalidade sobre os títulos que ingressam
para registro na serventia imobiliária. Como destaca Narciso Orlandi Neto,
“estabelece a lei, pois, um filtro de legalidade para os títulos, sujeitando-os, antes
do registro, à qualificação” (ORLANDI NETO, Narciso. Retificação do registro de
imóveis. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, p. 74).
66
ao instrumento e a forma dos títulos, conforme artigos 193 e 194, assim como
os requisitos do registro, que devem observar outros princípios registrarios como
o da continuidade (artigo 195) e o da especialidade (artigo 196) – op. cit., p. 74,
extraindo-se, nesses últimos casos, também, o princípio da legalidade.
Princípio da prioridade
O princípio da prioridade tem a principal finalidade de evitar conflitos de
títulos contraditórios, que são aqueles incompatíveis entre si ou reciprocamente
excludentes, referentes ao mesmo imóvel. A prioridade se apura no protocolo do
Registro de Imóveis, de acordo com a ordem de seu ingresso. A Lei de Registros
Públicos disciplina a matéria e estabelece regras que devem ser observadas
67
pelos Oficiais. De acordo com a lição de Afrânio de Carvalho - “O princípio da
prioridade significa que, num concurso de direitos reais sobre um imóvel, estes
não ocupam todos o mesmo posto, mas se graduam ou classificam por uma
relação de precedência fundada na ordem cronológica do seu aparecimento:
prior tempore potior jure. Conforme o tempo em que surgirem, os direitos tomam
posição no registro, prevalecendo os anteriormente estabelecidos sobre os que
vierem depois.” (4ª ed., Editora Forense, 1998, p.181).
68
registro. Se essa posição lhe assegurar prioridade, correlatamente lhe
assegurará a inscrição, contanto que o resultado final do exame da legalidade
lhe seja favorável.” (p.182 e 183).
69
O artigo 188 da Lei de Registros Públicos estabelece que protocolizado o
título, este deve ser registrado no prazo de trinta dias, salvo nos casos previstos
nos artigos seguintes. A prioridade persiste pelo prazo de trinta dias contados do
lançamento no protocolo, conforme previsto no artigo 205 da Lei de Registros
Públicos - “Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos
trinta dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por
omissão do interessado em atender às exigências legais.” Este dispositivo
compreende também os atos de averbação.
70
de títulos dela decorrentes, em razão da publicação de edital e prazo para
impugnação.
Como bem notou Ricardo Luiz Lorensetti, a “idéia do homem como centro
do ordenamento, afirmada de forma absoluta, não é um princípio incontestado.
71
O homem não pode ser o único e excludente ponto de referência da lei, já que
isso poderia conduzir a um individualismo exacerbado ou a uma
desconsideração prejudicial de outros bens”.18 Em outras palavras, absolutizar
o princípio da dignidade da pessoa humana, desconsiderando os demais
direitos, como o da propriedade, teria a nefasta conseqüência de retorno ao
individualismo e abandono do bem estar coletivo, passando-se, eventualmente,
do individualismo que privilegia o economicamente mais forte, vigente no
liberalismo, para um individualismo que privilegie o economicamente mais fraco.
O ser humano, como ente social, não existe sem os bens.19 A apropriação dos
bens da vida é necessária ao desenvolvimento e ao crescimento do ser humano
e, nesse sentido, desde que o homem é homem tem a idéia de apreensão dos
bens físicos, por mais rústica que fosse.20 A humanidade seguramente não teria
atingido o ponto de evolução que atingiu não fosse a idéia de propriedade.21 O
nível de organização social, o nível de evolução tecnológica, o nível cultural,
dentre outros, têm íntima ligação com o direito de propriedade. Até mesmo a
fixação das relações familiares tem vínculo estreito com o direito de propriedade,
uma vez que a formação da família se dá em torno de um lugar seu, cujo
ancoradouro baseia-se em um direito real imobiliário. Onde o direito de
propriedade é fraco (uma vez que a inexistência de tal conceito não nos parece
possível), por não receber a devida tutela estatal ou por estar fora da formalidade
imposta pelo Estado, fracas são as relações familiares.
72
se imagine o homem prisco, nômade, que não tinha vínculo de apropriação com
o solo, com certeza o tinha em relação a certos bens móveis; a caça com a qual
se alimentava certamente seria defendida por “ser sua”; da mesma forma as
peles de animais com que se protegia das intempéries. Note-se que até mesmo
os animais irracionais têm um senso de apropriação dos bens da vida que lhe
sejam necessários; assim, demarcam “seu território” via de regra através de
feromônios, cuidam com seus meios de defesa do “seu” alimento, etc. Desta
forma, a noção de apropriação dos bens do mundo sempre existiu, e a vida social
é impensada sem a sua regulamentação adequada, e, portanto, nada resta ao
direito senão reconhecer tal situação como um direito existente e necessário à
própria existência social humana. A eventual idéia de afastar o reconhecimento
e a tutela ao direito de propriedade sob o frágil pretexto da personalização das
relações jurídicas, significaria tão-somente o retorno às regras da força, tal qual
na apreensão dos bens nos primórdios da humanidade, uma vez que, como se
disse, a apreensão dos bens da vida, tutelada, ou não, pelo direito, é inata ao
ser humano. E, note-se, que os bens disponíveis na natureza não apenas
existem e são disponibilizados pelo homem para realizar seus desideratos, mas
existem em quantidade insuficiente à apreensão por todos os homens.
Nesse quadro, dizer que o homem pode dispor naturalmente dos bens e
dos seres exteriores representa poder dispor deles segundo a finalidade,
sine poenitentia. Sem nenhum arrependimento ou constrangimento.
Essa é a ordem, essa, a harmonia, essa, a finalidade estabelecida desde
sempre. [...]
73
A utópica supressão, ou mesmo o desrespeito aos institutos patrimoniais
de direito privado seria contrária ao princípio da dignidade da pessoa humana,
por causar mazelas econômicas e sociais incomensuráveis, ao contrário do que
possa parecer num primeiro momento, embora a alteração de tais institutos a fim
de adequá-los aos novos valores do ordenamento, seja algo juridicamente
natural.26 O desrespeito aos institutos patrimoniais concebidos no ordenamento
jurídico traria insegurança jurídica em nível intolerável, e com ela intranqüilidade
e conflito social,27 além de minar a produção e circulação de riquezas, vital para
o sustento do desenvolvimento econômico de um Estado capitalista, haja vista
que o próprio trabalho humano ancora-se na idéia de propriedade. Tudo isto teria
a inegável conseqüência de afastar o direito da concreção do princípio da
dignidade humana, o qual, seguramente, para ser implementado, necessita de
segurança jurídica, de paz social que permita o convívio pacífico dos homens, e
de desenvolvimento econômico, que permita um patrimônio material mínimo às
pessoas, garantindo-lhes bem-estar material.
74
tudo, tendo-selhe imposto uma série de limitações ou de obrigações em prol do
interesse coletivo. A dignidade humana impõe ao proprietário que exerça seu
direito de acordo com os fins que o objeto do seu direito deve ter dentro dos
valores eleitos pela sociedade; o homem é um ser social, e, portanto, o exercício
de seus direitos deve se dar de maneira que gere o bem social, e não de forma
a agredir o interesse coletivo. Nessa esteira, surgem direitos difusos que devem
ser respeitados pelo proprietário de bem imóvel, porque superiores ao seu direito
relativo, como, verbi gratia, a conservação do meio ambiente, o respeito às
regras de desenvolvimento urbanístico, o respeito à função social da
propriedade,29 etc.
75
bens por todas as pessoas, bem como haver o exercício adequado de tal direito
pelo seu titular, o que não justifica eventual não-proteção ao direito de
propriedade, já que tais abusos encontram solução dentro do próprio sistema
jurídico, mediante a atuação estatal, em prol do bem estar social.31
76
relevantes, no sentido de não poder ofender direitos não-proprietários, mister
que se analise, dentro desse novo panorama, qual o papel do Registro de
Imóveis, já que sua matriz está justamente na propriedade imobiliária. Terá o
Registro Imobiliário perdido importância diante da relativização do direito de
propriedade? Ou, ao contrário, justamente em virtude da relativização do direito
de propriedade, que lhe agregou importância porquanto passou este a ser um
meio de desenvolvimento da dignidade humana, teremos um incremento da
importância do Registro de Imóveis, que passa a ser um dos mais importantes
instrumentos estatais para a consecução do fornecimento de segurança jurídica
ao titular do direito de propriedade, que deve ser garantido, e para a consecução
da proteção dos direitos não proprietários, que terão na publicidade registral um
fundamental ponto de apoio, sendo assim importante agente fomentador da
dignidade humana? Parece estar nesta segunda oração a correção do
entendimento.
77
Nesse sentido, identificou António Menezes Cordeiro a análise econômica
do direito como sendo o último acontecimento metodológico do Século XX,
originado do pensamento materialista norte-americano, e que tem como
premissa a assertiva de que a conduta humana é essencialmente informada por
postulados de ordem econômica, o que traduz um vínculo muito próximo com o
direito de propriedade, em especial.33 A análise econômica do direito tem a
função de averiguar qual a implicação econômica dos institutos jurídicos; como
a definição dos institutos jurídicos afeta os agentes econômicos. Se por um lado,
o fenômeno de análise econômica do direito não deve ser rechaçado de plano,
como pretendem alguns sob a alegação de que a interpretação econômica do
direito tem o efeito de afastar a tutela social alcançada ao longo da evolução
jurídica, a qual não se coaduna com a liberdade da economia de mercado,34 por
outro lado, é preciso ter ciência de que a evolução jurídica fez germinar valores
sociais que nem sempre estão de acordo com os postulados econômicos; por
vezes são até mesmo absolutamente antagônicos, como a intervenção estatal
em prol do interesse coletivo em institutos vitais para a economia, como a
propriedade e o contrato.35 Em verdade, a regra geral é a de que o direito
influencia e é influenciado pela economia.36 De qualquer forma, a análise
econômica do direito assume uma relevância substancial, pois, se é verdade que
o homem é um ser social (mais por necessidade do que propriamente por
natureza), é igualmente verdade que o homem é um ser econômico.
78
fundamentais ao desenvolvimento humano. As obras que facilitam a vida
humana, as pesquisas que buscam melhorar a existência humana, inclusive
descobrindo a cura de patologias que até pouco dizimavam milhares em surtos
incontroláveis, o desenvolvimento do homem enquanto ser, protegendo-se do
mau humor da natureza em relação ao clima, por exemplo, alimentando-se,
aculturando-se, tudo isso, depende fundamentalmente da propriedade enquanto
conceito econômico e, o direito não pode fechar os olhos a essa realidade. Nesse
ponto, o conceito econômico de propriedade aproxima-se da dignidade humana,
eis que, sem ela, o desenvolvimento humano não seria o mesmo.
79
econômica a ser exercida pelo direito de propriedade, tem-se que um direito de
propriedade bem definido e seguro, gerará em si a alocação de recursos,
gerando bem estar social. Esta assertiva formulada por Bernardo Mueller, dita
de outro modo, quer significar que o direito de propriedade bem definido e
tutelado atrairá recursos, e naturalmente cumprirá sua função social.40 Caso
este cumprimento natural da função social da propriedade não ocorra, entrará
em ação o direito, com seus institutos coercitivos. Não há crescimento
econômico sem um direito de propriedade bem definido e protegido. Não só o
ordenamento jurídico deverá definir o direito de propriedade, como deverá
também estabelecer um eficiente sistema de tutela desse direito, e, é nesse
mister que surge a função econômica essencial do registro de imóveis, como o
aparato estatal apto a conferir certeza e segurança ao direito real de propriedade,
e aos demais direitos que dele defluem, possibilitando o desenvolvimento
econômico que, num sistema capitalista, significa bem-estar social, de modo que
o desenvolvimento econômico proporcionado pelo sistema registral terá o
condão de fomentar a dignidade humana, através da colocação em circulação
dos bens mínimos a gerar o bem-estar social.
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desenvolvimento econômico, e, portanto, maior a possibilidade de se encontrar
o bem-estar social e a dignidade humana, na parte que toca ao patrimônio
material mínimo. O registro de imóveis, conferindo certeza e segurança ao direito
de propriedade, permite a realização do tráfico imobiliário, reduzindo custos,
especialmente no que toca aos custos de informação. A falta de informação das
transações imobiliárias gera insegurança e incerteza intoleráveis à alocação de
capital, e, assim, um sistema jurídico que não tenha um órgão centralizador das
informações a respeito da propriedade, levará os atores econômicos a buscarem
tais informações por outros meios, a um custo muito mais elevado, a ponto de
poder inviabilizar a negociação, e com uma segurança muito discutível. O
sistema registral logra, através dos princípios que o regem, prestar informações
seguras e eficientes, reduzindo significativamente os custos transacionais.44
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dignidade humana, uma vez que torna mais difícil, mais caro, o acesso ao crédito
e aos bens.
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Registros Públicos, mas que em nada afetam a certeza da identificação da parte,
ou ainda a desconformidade de algum elemento da descrição do imóvel, em
cotejo com a descrição tabular, mas que igualmente em nada interfere na
identificação do imóvel. Este proceder, ancorado em uma interpretação literal da
legislação registral, coloca em cheque os próprios valores que animam o registro,
pois, uma vez que a penhora está perfectibilizada no processo (e é lá que ela é
constituída), e uma vez que o registro tem, neste caso, apenas eficácia
declarativa, não registrar, por um excessivo rigor, tal qual nos parece que ocorre
nos exemplos acima apresentados, significa gerar insegurança e incerteza
jurídica, econômica e social, porquanto a penhora continuará existindo, sem
publicidade contudo. Há, aqui, um procedimento desconforme com os preceitos
constitucionais, na medida que a atividade registral se afasta do princípio
máximo da dignidade da pessoa humana, em seu aspecto patrimonial, ao gerar
insegurança e incerteza nas relações patrimoniais. Na análise do registro da
penhora, deve haver uma mitigação compatível com a situação jurídica com a
qual se está defrontando, devendo ser negado o registro somente em casos de
absoluta impossibilidade de ingresso do título judicial na tabula registral por ferir
de morte algum princípio que move o sistema, como, verbi gratia, numa situação
de impossibilidade de se identificar com segurança o imóvel sobre o qual recai a
constrição judicial. É claro que a superação da estrita interpretação dos
requisitos legais do registro, em prol do atendimento dos princípios que norteiam
a própria existência do sistema registral, com o da segurança jurídica e da função
econômica e social, encontram limites neles próprios, ou seja, não se pode
embrenhar uma interpretação tão liberal a ponto de tornar insegura a inscrição.
Note-se que, no caso exemplificado, a dignidade patrimonial do devedor,
amparada por um sistema de impenhorabilidades, já foi analisada pelo
magistrado que preside o feito, e, o não registro da penhora por excessivo rigor,
contraria a dignidade patrimonial do credor, que pode ver frustrado seu direito.
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grandes) desses países; inúmeras pessoas têm uma propriedade podre, fora do
sistema legal, sem titulação adequada e sem ingresso no sistema registral, o que
significa um abalo bastante significativo na economia de tais países porque tal
propriedade não pode gerar riquezas, não pode “fazer dinheiro”, porquanto não
pode servir de garantia formal. Desta forma, essas pessoas não poderão usar
seu bem para conseguir financiamento para a aquisição de bens de consumo,
ou mesmo de serviços (no caso de reforma do próprio imóvel, por exemplo),
fazendo com que a economia perca uma parcela importante de riquezas que
poderia circular e gerar mais riquezas, melhorando o bem-estar social e, por
conseqüência, indo ao encontro da dignidade humana. O ingresso do direito
dessas pessoas no registro imobiliário é fundamental ao desenvolvimento
econômico de tais países. Ao lado, certamente, de uma política urbanística
adequada, deve haver uma resposta registral adequada, sendo vital, social e
economicamente, a integração de todos no sistema formal e seguro de
propriedade.
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coisa, porém não podem “tirar uma mais-valia da sua propriedade e contribuir
com a circulação de riquezas”.51
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direito inscrito, e, portanto, mais apto a circular, seja do ponto de vista
econômico, seja do jurídico. Conferir um caráter estável à atividade registral, tem
hoje uma importância econômica muito grande na prestação de informação
rápida e confiável, e, portanto, apta a reduzir os custos transacionais.
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consigo uma função social e uma função econômica que andam de mãos dadas,
e que decorrem, ambas, naturalmente de um sistema registral bem aplicado, em
consonância com os princípios constitucionais que norteiam a propriedade. E,
um sistema registral bem aplicado é fundamental à consecução do princípio da
dignidade da pessoa humana, cuja face voltada ao aspecto patrimonial, só é
alcançada quando se alcança a implementação da função econômica e social
da propriedade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, F. de P. D. de. Subsídios para o estudo da influência da legislação
na ordenação e na arquitetura das cidades brasileiras. São Paulo, 1966. Tese
(Doutorado) – EPUSP.
FRIDMAN, F. “Os donos da terra carioca”. Espaço e Debates. São Paulo, Ano
XIV, n. 37, 1994.
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ARRUÑADA, Benito. Organização do registro da propriedade em países em
desenvolvimento. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, ano 27, n. 56, jan.-
jun. 2004, p. 139-59.
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