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O TEATRO DO PODER:

cultura e política no Maranhão


Letícia Conceição Martins Cardoso

O TEATRO DO PODER:
cultura e política no Maranhão

São Luís

2017
©2017 Copyright by EDUFMA
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Efetuado o depósito legal na Biblioteca Nacional,
conforme Lei nº. 10.994 de 14 de dezembro de 2004

Cardoso, Letícia Conceição Martins.

O teatro do poder: cultura e política no Maranhão [livro eletrônico]/Letícia


Conceição Martins Cardoso – São Luís, EDUFMA, 2017.

186 p. ePUB

ISBN 978-85-7862-659-4

1.Cultura - Maranhão. 2.Política - Maranhão. 3.Cultura popular 3. Governo


Roseana Sarney - Cultura. I.Título

CDD 394.281 21
CDU 394.2 (812.1)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
À Maria Gracinete, minha mãe Catirina.
A Ismar Raymundo, meu pai Francisco.
AGRADECIMENTOS

Aos brincantes da cultura popular, que com fé, cachaça e suor me


ensinam a viver com seus testemunhos de amor e pertencimento à terra
do Maranhão.

Ao meu pai, pelo seu apoio incondicional e por ser a inspiração pra
tudo que eu viver.

À minha mãe, por me ensinar a ter humildade e fé, buscando ser


uma pessoa melhor todos os dias.

Às minhas irmãs, Isneth, Muryel e Winnie, por nos amarmos em si-


lêncio.

Aos meus avós, Antenor e Benita, Didi e Olavo, pela minha origem
multicultural.

À tia Eló, pelo seu carinho sempre presente.

Às amigas, Raquel Noronha e Thaísa Bueno, pela carinhosa elabora-


ção da capa e da revisão deste livro, respectivamente; e ao amigo Fran-
cisco Gonçalves, pelo cuidadoso texto que prefacia o livro.

À Profª. Drª. Elisabeth Maria Beserra Coelho, orientadora deste tra-


balho, pela fundamental contribuição durante esta pesquisa e pela sua
generosidade de pesquisadora e amiga.

À Universidade Federal do Maranhão, por possibilitar a publicação


deste trabalho, através do Programa de Apoio à Publicação de Livros do
Centro de Ciências Sociais – CCSo.

À FAPEMA pelo incentivo financeiro na época da execução desta


pesquisa.
[...] Dizem que, se a noite é feia,
Qualquer um pode escutar
O touro a correr na areia
Até se perder no mar
Onde vive num palácio
Feito de seda e de ouro
- mas todo esse encanto acaba
Se alguém enfrentar o touro.

E se alguém matar o touro


O ouro se torna pão:
Nunca mais haverá fome
Nas terras do Maranhão.
E voltará a ser rei
O rei Dom Sebastião.
Isso é o que diz a lenda

Mas eu digo um pouco mais:


Se o povo matar o touro
A encantação se desfaz.
Não é o rei mas o povo
Que afinal se desencanta;
Não é o rei mas o povo
Que liberto se levanta
Como seu próprio senhor
- que o povo é o rei encantado
No touro que ele inventou.

(O touro encantado, Ferreira Gullar)


SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS .......................................................................................................7
PREFÁCIO ........................................................................................................................13
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................17
A POLÍTICA EM PROCESSO .......................................................................................21
A fabricação de símbolos ........................................................................................37
Construindo uma identidade para a nação ......................................................44
Aparato burocrático e mídia: difusão e controle da cultura ........................49
Bumba-meu-boi como símbolo de identidade ...............................................62
O “Mecenas” na Presidência da República .........................................................70
Patrimônio da Humanidade e celeiro da “Cultura Popular” ........................81
Oficializando a “cultura popular” ........................................................................ 107
O “patrimônio da humanidade” difundindo a “cultura popular” ............. 120
Maranhão: “um grande arraial”! .......................................................................... 124
A gestão cultural no papel .................................................................................... 128
“Viva” a produção cultural: teatralizando o poder ........................................ 134
O carisma “encena”................................................................................................... 146
Reforma Administrativa: mais recursos para a “cultura popular” ............ 152
Dominação x emancipação .................................................................................. 165
Considerações Finais .............................................................................................. 173
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 179
PREFÁCIO

Letícia Cardoso apresenta, neste livro, o resultado de suas pesquisas


sobre as conexões entre cultura e política nos dois primeiros governos de
Roseana Sarney (1995-1998 e 1999-2002). Sem sucumbir às tentações do
paternalismo político ou do populismo acadêmico, Letícia situa a produ-
ção das políticas culturais dos governos Roseana Sarney no centro das
disputas de poder e saber que constituem o Maranhão hoje.

A relevância dessas disputas de poder e saber no Maranhão fica evi-


dente quando se leva em consideração o processo de redemocratização
do país e a chamada inovação democrática brasileira, bem como os pro-
cessos de midiatização da política e de comodificação das práticas cul-
turais, com a criação das redes de televisão, a partir dos anos setenta, e
expansão do mercado de consumo no Brasil.

A democratização da política, a midiatização da sociedade brasileira


e a comodificação das práticas culturais vão exigir do grupo Sarney, que
cresceu à sombra da ditadura militar, o desafio de fazer política na demo-
cracia e em uma sociedade miditiatizada. As disputas de concessões de
rádio e TV, a produção cultural para consumo das massas e a reestrutura-
ção do campo cultural no estado fazem parte deste cenário.

No processo de redemocratização da sociedade brasileira, novos


agentes sociais emergiram no espaço público com agendas e formas de
organização distintas de muitos grupos e movimentos existentes antes
do golpe militar de 1964. Uma das principais características desses novos
movimentos sociais foi a defesa da sua autonomia em relação aos gover-
nos e aos grupos políticos que controlavam os aparelhos do estado.

Mas possibilidades de participação abertas com a Constituição de


1988 não se restringem à ampliação do direito de voto aos analfabetos
e menores de 16 a 18 anos. Uma das conquistas dos movimentos sociais,
no processo constitucional e na redemocratização da sociedade brasi-

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Letícia Conceição Martins Cardoso

leira, foi o direito de a população participar da formulação, execução e


avaliação das políticas públicas, sobretudo, por meio das conferências e
conselhos, que se transformam em palco de grandes debates.

No Maranhão, como em outros estados da federação, os pobres não


eram mais apenas as vítimas à espera do sujeito ético, do herói, do pai
bondoso, do salvador dos seus males. Organizados em diferentes mo-
vimentos religiosos, sindicais, populares e partidários, os setores mais
pobres da população reivindicavam o reconhecimento como sujeitos de
direitos, em contraponto às políticas clientelistas dos grupos hegemôni-
cos.

A presença do outro na cena pública e as transformações das ins-


tâncias de produção da política colocaram em xeque os padrões de legi-
timidade e credibilidade dos grupos oligárquicos, que invocavam o mito
da Atenas Maranhense, por exemplo, para legitimar a sua ação política,
explicar a realidade e tornar o mundo inteligível. Ou seja, os mitos invo-
cados pelas elites já não conseguiam mais coesionar as relações sociais.

É nesse contexto de mudança social, que o governo Roseana Sarney


vai intervir estrategicamente no campo cultural para produzir, a partir
dos elementos constitutivos da chamada cultura popular, um novo sis-
tema de apreensão e representação da política, pelo qual pudesse se co-
municar com os eleitores e traduzir a realidade regional. Para isso, seria
necessário conquistar a cumplicidade dos agentes do campo cultural.

A partir da análise das políticas culturais do governo do Estado do


Maranhão e das suas respectivas estratégias de intervenção no campo
cultural, Letícia Cardoso demonstra como o governo Roseana Sarney in-
corpora a cultura popular à sua estratégia de disputa política e como es-
sas práticas culturais passam por um processo de domesticação, ou seja,
de eliminação dos seus elementos críticos, para servir a esse propósito.

O bumba-meu-boi é um caso exemplar do que ocorre nesse pro-


cesso de mediação. Ao ser incorporado às políticas culturais do estado, o
auto do boi desaparece do palco, com as suas encenações dos conflitos
de classe, característicos do nordeste do Brasil. Para isso, contribui tam-
bém o processo de midiatização e comodificação das práticas culturais,
com a tradução dessas práticas culturais de origem popular para consu-
mo de outros.

14
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

A partir da noção de campo, Letícia Cardoso analisa como essas po-


líticas e estratégias de governo negociam com as práticas desses grupos
culturais que veem também, nessa conexão, possibilidades de acesso a
recursos públicos e posições de prestígio. E, ainda, como esses agentes
sociais vão usar do acesso aos recursos públicos e às posições de prestí-
gio para auferir benefícios às suas comunidades e reforçar suas respecti-
vas lideranças.

O que está em jogo com isso é a própria regulação do campo cultu-


ral, como demonstra a autora, ao analisar as formas de nomeação, clas-
sificação e hierarquização das práticas culturais pela Secretaria de Esta-
do da Cultura, o que exige novos posicionamentos desses grupos. Neste
caso, como em outros, a disputa de hegemonia que orienta essas políti-
cas está voltada para a produção de novos sujeitos nos campos político
e cultural.

Ao investigar essas conexões, Letícia Cardoso oferece uma impor-


tante contribuição para o entendimento dos processos de reestrutura-
ção do campo cultural no Estado do Maranhão e das novas formas de
representação da política advindas daí. Ao mesmo tempo, demonstra
como a produção dos sistemas significantes constitui o lugar estratégico
da ação política e da teatralização do poder.

São Luís, 30 de julho de 2012.


Francisco Gonçalves da Conceição

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INTRODUÇÃO

O campo cultural no Maranhão, ambiente de trocas de experiências


e relações sociais, tem sido bastante modificado nos últimos anos, espe-
cialmente no âmbito da produção cultural, por influências/interferên-
cias políticas e mercadológicas, o que vem transformando a relação dos
agentes com a cultura e com os produtos culturais. Essas alterações são
observadas em todo o universo simbólico da cultura, ou seja, nas práticas
sociais, nas relações do cotidiano, nos modos de ser e estar dos sujeitos1.

A intenção é compreender como são estabelecidas as relações que


dão origem às mudanças no campo cultural do Maranhão; saber que es-
tratégias são usadas, por que e por quem são desenvolvidas. A singulari-
dade deste trabalho, portanto, está em identificar o campo de relações
entre atores culturais e atores políticos no Maranhão contemporâneo,
mais precisamente, durante os Governos de Roseana Sarney (1995-1998;
1999-2002)2, período em que percebi uma sensível aproximação entre
esses atores, o que gerou maior visibilidade para os grupos culturais e
também para a Governadora.

Com este intuito, este livro se apresenta em cinco partes. Ainda na


introdução trago discussões para um diálogo com outros autores, to-
mando a orientação epistemológica de Pierre Bourdieu (1989) quando
fala da pesquisa como ofício, pondo a teoria em funcionamento a partir
de procedimentos específicos. Esta organização não implica a separa-
ção entre teoria e prática, já que as teorias e categorias de análise, assim
como a revisão bibliográfica sobre o tema/problema desta obra, opera-
ram nas interpretações realizadas e na construção de todo o texto.

1
Estas reflexões deram origem à dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da UFMA (2008) que resultou neste livro.
2
Em 2002, Roseana Sarney renuncia ao último ano do seu segundo mandato para se
candidatar à Presidência. Quem assume o Governo nesse período é o seu vice, José
Reinaldo Tavares, reeleito em 2003, com apoio da família Sarney. Por isso, incluo na
pesquisa o ano de 2002, considerando que não houve alterações em relação à estrutura
burocrática, aos membros e à linha política da Secretaria de Cultura.

17
Letícia Conceição Martins Cardoso

Desse modo, aponto os principais autores e conceitos que ilumina-


ram o estudo do objeto. Adotando uma perspectiva processualista de es-
tudo dos fenômenos políticos, enfatizei as relações entre os agentes bem
como as estratégias utilizadas por eles para alcançar seus objetivos. Deste
ponto de partida percebi que seriam pertinentes à reflexão os conceitos
de poder (FOUCAULT, 2000), poder simbólico (BOURDIEU, 2003), trocas
simbólicas (MAUSS, 2003), teatralização (GEERTZ, 1991) e ritualização (DA
MATTA, 1981) para explicar como se desenvolvem as estratégias nesse
ambiente de disputa que constitui o campo desta investigação.

No capítulo seguinte, a análise de autores que estudaram interfa-


ces da dinâmica cultural no Brasil e a sua ligação com a política desde
a formação da sociedade urbano-industrial do país (anos 30) ajudam a
contextualizar as práticas desenvolvidas entre essas esferas, em âmbito
regional, no Maranhão. A partir daí, pode-se perceber que a experiência
maranhense não é constituída por práticas inéditas no país.

Em muitos momentos a esfera política, nomeadamente o Estado,


tentou controlar ou apropriar-se da produção cultural, visando definir,
parafraseando DaMatta (1986), o que faz (ou o que não faz) o Brasil, Bra-
sil. Diversos autores (OLIVEN, 1983; ORTIZ, 1994; MICELI, 1984) observa-
ram que geralmente o Estado esteve à frente desse jogo de disputa pelo
monopólio da definição legítima das divisões do mundo social. Grande
parte das vezes, requerendo para si o direito exclusivo de criar ou reco-
nhecer a verdadeira e a autêntica identidade nacional. Um exemplo des-
sa prática foi a manipulação, pelo Estado-nação, de traços étnicos para
sua conversão em símbolos nacionais (FRY, 1982), o que aconteceu, por
exemplo com o bumba-meu-boi3, divulgado como produto turístico e
símbolo maior da cultura do Maranhão pelo Governo do Estado, proces-

3
Também chamado de Bumba-boi, Boi, Bumba, a Superintendência de “Cultura Popular”
do Maranhão define o fenômeno como um auto que, reunindo três formas de expressão
artística (teatro, dança e música), conta a estória da negra Catirina que, grávida, desejou
comer a língua do boi predileto de seu amo, induzindo o seu marido, pai Francisco, a
matar o boi para a satisfação de seu desejo. O fenômeno apresenta um conjunto de
personagens que pode variar segundo o sotaque ao qual pertencem. Os diferentes estilos
de boi são chamados de sotaques. Invariavelmente, os grupos têm como personagens:
o boi, figura central da brincadeira feito de buriti, cujo couro é bordado com miçangas
e canutilhos; o amo, que personifica o dono da fazenda podendo acumular a função de
cantador; os vaqueiros, grupo que forma o cordão, exceto, nos sotaques de orquestra
e zabumba onde, com o boi, se posicionam no centro do cordão; e as índias, meninas
adolescentes que trajam indumentária confeccionada com penas, e cocares. Disponível
em: <http://www.culturapopular.ma.gov.br/manifestacoes> Acesso em: 19/10/2007.

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O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

so iniciado por José Sarney no fim dos anos 60 e aperfeiçoado por Rose-
ana Sarney, nos anos 90.

Expostas as proposições e ferramentas teóricas capazes de dar sus-


tentabilidade à reflexão, ingresso no terceiro e quarto capítulos, desen-
volvendo precisamente a análise das ações/reações dos Governos de
Roseana Sarney no âmbito da cultura e das ações/reações dos atores cul-
turais neste processo, que é de disputa e não propriamente de domina-
ção.

Durante esses Governos, a cultura e a política intensificaram suas


relações. Desde então, o processo só tem aumentado: os políticos desen-
volvem estratégias para aliar sua imagem à cultura, como fez Roseana
Sarney (e, antes dela, seu pai), utilizando-se disto para reforçar sua ima-
gem e conquistar dividendos políticos.

As performances da governadora inspiradas na cultura local são en-


tendidas aqui como estratégias de antropomorfização do poder (GEERTZ,
1997). Assim, a obtenção do título de Patrimônio Cultural da Humanida-
de para São Luís; o “cadastro” das manifestações culturais; o pagamen-
to de “cachês” regulares a artistas e grupos locais; a criação dos espaços
“Viva” nos bairros de São Luís; o elevado incremento nos recursos para a
pasta da cultura; as reuniões realizadas com os produtores culturais, no
Palácio do Governo; as campanhas publicitárias do Estado em nível local
e nacional, enfocando a “cultura popular”4 como principal atrativo turís-
tico do Maranhão; entre muitas outras ações estatais que aparecerão no
decorrer do trabalho são estratégias que assumem um caráter ritualístico
(DA MATTA, 1981) e teatralizado (GEERTZ, 1991), sendo ainda legitimadas
pelo discurso autorizado de instituições científico-culturais, é o caso do
Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho e da Comissão Mara-
nhense de Folclore.

4
“Cultura popular” é uma categoria complexa, aqui entendida como sistemas de idéias,
imagens, atitudes, valores, símbolos, em permanente reelaboração, construídos a partir
de relações internas, na sociedade. São ainda formas pelas quais o povo dá sentido a
sua existência, expressas por manifestações artísticas, modos de falar, comer, vestir etc.
Entendendo que o termo no singular não dá conta de traduzir a multiplicidade de sentidos
possíveis nos processos culturais gerados pelo povo (entidade que não é homogênea,
como pressupõem as teorias do Estado-nação), a título metodológico, adotarei o termo
“culturas populares” (CANCLINI, 1983). Assim, quando a denominação “cultura popular”
(que é estática e universalizante) aparecer no trabalho, irá se referir àquela empregada
pelo discurso oficial do Governo do Estado.

19
Letícia Conceição Martins Cardoso

Mas os agentes culturais desta cultura tida como popular pelo Go-
verno do Estado também atuam neste processo: beneficiam-se de sua
posição privilegiada junto ao campo político para conseguir apoio fi-
nanceiro, para transitar em outros campos sociais, na mídia ou no setor
empresarial, para investir na carreira política ou mesmo para conseguir
cargo público nas secretarias do Estado. O que está em jogo é obter o
reconhecimento dos demais atores e, assim, conquistar poder.

Neste contexto, a atuação da mídia ganha destaque, pois além de se


configurar como mediadora das relações entre política e cultura, assume,
cada vez mais, o papel de espaço público privilegiado do mundo con-
temporâneo – este momento de transição, diferente da modernidade,
ambientado pelos meios de comunicação de massa, pelas tecnologias da
informação e marcado pelos processos de globalização e mundialização
da cultura. Portanto, perpassa a análise das relações política-cultura o lu-
gar ambíguo da mídia neste cenário do mundo social: a mídia, na atu-
alidade, tanto pode ser o lugar do controle, mantenedora do status quo,
reproduzindo as visões e di-visões hegemônicas de mundo, servindo,
assim, à concentração de poder e à legitimação de interesses de alguns
grupos, por exemplo, das elites políticas no Maranhão; como também
pode ser o lugar da emancipação, buscando o pluralismo de verdades e
servindo aos interesses mais diversos. Deste modo, a mídia desconcentra
o poder das elites, na medida em que dá voz e visibilidade a grupos so-
ciais considerados periféricos.

Pensar neste emaranhado de relações implica, ainda, outra discus-


são inerente ao debate cultural contemporâneo: a questão das políticas
públicas para a área. As relações entre atores políticos e culturais no Ma-
ranhão são intermediadas e motivadas por uma linha de ação do poder
instituído. O Governo de Roseana Sarney, especificamente, fez do geren-
ciamento dos bens culturais uma opção de governo. Mas, isto caracteri-
zaria uma política pública de cultura no Estado? É uma problematização
feita no decorrer destas linhas.

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A POLÍTICA EM PROCESSO

Ao analisar as relações desenvolvidas entre cultura e política nos


Governos de Roseana Sarney no Maranhão, meu interesse principal está
no processo de construção das relações que os grupos estabelecem entre
si, e não propriamente nas relações internas dos grupos ou nas mudan-
ças que sofreram.

Dando ênfase ao caráter processual dessas relações, parecem-me


pertinentes à análise a proposta teórico-metodológica desenvolvida por
Swartz, Turner & Tuden (1966). Dentre outros, estes autores contribuíram
para a constituição da Antropologia Política, dando origem à perspectiva
processualista de estudo dos fenômenos políticos, mudando o foco da
estrutura para os processos. Nela, a investigação é mais voltada para os
conflitos e as mudanças sociais, atentando para as diferentes formas de
constituição de grupos políticos, com ênfase na análise das estratégias e
das ações individuais.

Os autores sugerem o conceito de campo político, cabendo ao pes-


quisador buscar as consequências de conflito não só no nível local, mas
em qualquer nível que o processo se desenvolva. A política é conside-
rada um processo que independe da presença do Estado5 ou de autori-
dades superiores e pode ocorrer tanto no interior de pequenos grupos
dentro da sociedade quanto fora de suas fronteiras. “É político tudo que é
ao mesmo tempo público, orientado para certos fins e que envolve uma
diferença de poder entre os indivíduos do grupo em questão” (SWARTZ,
1966, p. 7). Essa noção abrangente do político permite-me considerar os
produtores e os grupos culturais enquanto agentes políticos, já que os
fenômenos culturais em análise suscitam um processo de politização, ou
pelo menos, uma aproximação estreita com a política.

5
Estado é tido aqui, e, no decorrer do trabalho, como uma organização política na qual
existe um grupo de seres humanos ligados por um sistema complexo de relações. O poder
do Estado, na verdade, é o poder dos indivíduos que o compõem; está nas mãos de seus
membros – sejam reis, primeiros ministros, presidentes, governadores, magistrados,
policiais, chefes de partidos, votantes.

21
Letícia Conceição Martins Cardoso

Na análise será importante perceber “o significado da compreensão


das estruturas dos grupos envolvidos nas atividades políticas bem como
as posições estruturais dos atores principais” (COELHO, 2002). Assim, o
Estado, as instituições governamentais e o sistema econômico não se-
rão os únicos atributos definidores da política, entrando em cena outros
agentes que transcendem os elementos estruturais: produtores culturais,
movimentos sociais, associações de bairro, entre outros.

A perspectiva processualista adotada percebe que campo político é:


um campo de tensão, composto por antagonistas inteligentes, indi-
vidualmente e coorporados, motivados pela ambição, pelo altruís-
mo, auto-interesse, pelo interesse em bens públicos, que em várias
situações ligam-se a outros por auto-interesse ou idealismo e sepa-
ram-se ou opõem-se pelos mesmos motivos. (SWARTZ, 1966. p. 8).

O alcance territorial e o escopo social de um campo político são


condicionados pela natureza e intensidade dos interesses das partes
afetadas. Isso significa que a conformação social desse campo é extre-
mamente fluida, expandindo-se e contraindo-se ao longo do tempo, em
resposta às mudanças de interesses. Neste caso, o campo combina um
continnum espaço-temporal, com algumas características sistemáticas,
sem corresponder necessariamente a um sistema fechado e integrado.
As partes desta unidade, em condições específicas, podem apresentar
variados tipos e graus de interdependência, institucionalizada e aciden-
tal (SWARTZ, 1966, p. 30).

Para os “processualistas” a unidade espacial é antes um campo po-


lítico que uma sociedade isolada. E a unidade de tempo refere-se a um
tempo histórico, não a um tempo estrutural. Dessa forma, para se fazer
uma análise adequada do processo político, deve-se selecionar um pon-
to no tempo. E a definição desse ponto é uma questão de estratégia par-
ticular, ou conveniência.

Além disso, esses autores sugerem conceitos tais como conflito,


luta, força, atores, grupos, arena (um espaço mais amplo que envolve os
grupos em relação) que contribuem para a reflexão. Também serão im-
portantes para a análise: a noção de sustentáculo, suporte ou estratégia,
aquilo que contribui para a formulação ou implementação de fins polí-
ticos; e de legitimidade, entendida como um tipo de suporte que deriva
não da força ou da sua ameaça, mas dos valores individuais, formulando,

22
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

influenciando e sendo afetada por fins políticos. A legitimidade é con-


siderada fator importante para a aquisição de poder, no entanto, para
esta concepção, poder e legitimidade são independentes, não estão atre-
lados. O exercício do poder seria uma interação entre o poder de obter
submissão através de uma decisão referente a objetivos grupais e a com-
preensão de que os submetidos invocarão certas obrigações no futuro.
A obediência ao líder está condicionada não exatamente à legitimidade,
mas à compreensão de que haverá reciprocidade posterior no que se re-
fere a ações que tragam proveito.

Neste sentido, poder é uma estratégia simbólica cujo funcionamen-


to não depende fundamentalmente de suas qualidades intrínsecas, mas
das expectativas que sua ação desenvolve nos atores envolvidos (PAR-
SONS apud SWARTZ, 1966, p.14). Sendo assim, poder, no decorrer deste
texto, deve ser interpretado como resultado de relações de disputa, que
partem de vários pontos, sem ser exclusividade do Estado. É importante
ressaltar, por isso, que os atores culturais, bem assim os atores políticos,
são capazes de exercer poder nas relações que estabelecem entre si, lu-
tando no mesmo espaço social por suas visões e definições de mundo.

Complementando este raciocínio, o conceito de poder de Foucault


é esclarecedor para a análise proposta. De acordo com este autor, um
dos elementos constitutivos do poder é que ele é uma ação sobre a ação
dos outros, que buscando circunscrever e delimitá-la, encontra seu espa-
ço de atuação. Se “a verdade não existe fora do poder ou sem o poder”
(FOUCAULT, 2001, p. 12), é necessário o controle do discurso legitimador
(a verdade) como modus operandi de manutenção do status quo. Enten-
do, aqui, por verdade “o conjunto das regras segundo as quais se distin-
gue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de
poder” (idem, p. 13).

Destaco ainda o conceito de status político, que é a consequência


de tomar ou implementar decisões políticas. E de código de autoridade,
no qual se baseia o direito de usar e adquirir poder revestido de status e
que funcionará para administrar o poder que está presente num sistema
hierárquico (SWARTZ, 1966, p.18).

Como adverte Bourdieu (1996a), o ato de nomear é também um ato


de poder, que cria e institui realidades. Nesse caso, em que o Estado-na-
ção configura-se como porta-voz da sociedade, ser “verdadeiro”, ser “au-

23
Letícia Conceição Martins Cardoso

têntico” e ser “identidade nacional” é ser o que o discurso oficial classifica


e nomeia enquanto tal.

Esse poder advém do reconhecimento dos outros agentes, que é


capaz de produzir e reproduzir a crença na legitimidade – ora baseada na
legalidade, ora no carisma. Sem o reconhecimento, o Estado perde legi-
timidade e, consequentemente, poder. Para evitar isso, desenvolve várias
estratégias.

Uma delas é garantir o exercício do poder pela coerção, estratégia


que não garante legitimidade. Outra (não menos violenta) é adquirir
reconhecimento dos demais atores por uma via simbólica (persuasão,
ideologia etc), através de um “capital simbólico” que, segundo Bourdieu
(1996, p. 107) significa “uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de
capital; físico, econômico, cultural, social), percebida pelos agentes so-
ciais cujas categorias de percepção são tais que eles podem entendê-la e
reconhecê-las, atribuindo-lhes valor”. Assim sendo, o Estado “que dispõe
de meios de impor e de inculcar princípios duráveis de visão e de divisão
de acordo com suas próprias estruturas, é o lugar por excelência da con-
centração e do exercício do poder simbólico” (BOURDIEU, 1996, p. 107-
108), fazendo ignorar-reconhecer a violência que essas relações encer-
ram objetivamente (BOURDIEU, 2003, p. 15). Neste sentido, Foucault
(2001) já dizia que as práticas discursivas ou ideológicas constituem uma
forma de poder tão eficaz quanto às práticas coercivas.

Mas nesse processo, embora o Estado exerça poder simbólico, em-


bora consiga impor uma visão hegemônica de identidade e, portanto,
autoritária de cultura, ele não extingue as demais. O fato de o Estado
impor a sua, não quer dizer que não existam outras verdades – latentes,
silenciadas, abafadas, conhecidas e reconhecidas por outras instâncias
ou por determinados grupos – co-existindo no mundo social. Numa di-
nâmica de luta em que diversos atores agem, negociam, interagem,
movimentam-se, ganham-perdem, entram-saem, o poder do Estado não
pode ser concebido como único, inabalável ou central.

O mundo está “em pedaços” (GEERTZ, 2001, p. 191). O sentimento


de dispersão e descentramento gerado pela desarticulação do mundo
bipolar do período pós-guerra põe em cheque os grandes conceitos
integradores e totalizantes. Identidade, nação, religião até então organi-
zavam a vida dos homens e as idéias sobre política e cultura. Essas nar-
rativas-mestras já não dão conta de explicar a contemporaneidade e os

24
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

conceitos precisam ser relativizados, pois as circunstâncias “clássicas” que


geraram essas categorias se modificaram, no que diz respeito às suas sig-
nificações práticas e teóricas.

Neste cenário de “desmontagem”, “cheio de identidades irriquietas e


ligações incertas”, diz Geertz, precisamos “de modos de pensar que sejam
receptivos às particularidades, às individualidades, às estranhezas, des-
continuidades, contrastes e singularidades” (2001, p. 196).

Movida pela inquietação de pensar o mundo social sob novos pa-


râmetros, Boaventura de Sousa Santos afirma que estamos vivendo um
momento de emergência da “reinvenção do Estado” (SANTOS, 1998), já
que a sociedade nacional é agora o espaço-miniatura de uma arena so-
cial global e o Estado nacional, uma caixa de ressonância de forças que o
transcendem. Para ele, não se pode mais compreender o Estado contem-
porâneo a partir das categorias com que se pensava o Estado-Nação (mo-
derno), nem o Estado-desenvolvimentista (autoritário), nem tão somen-
te o Estado-empresário (neo-liberal). De acordo com o autor, o Estado é
uma organização política muito mais vasta, que se tornou um campo de
lutas, o qual integra elementos estatais e não estatais, nacionais, globais
e locais – incluindo aí os movimentos sociais, o Terceiro Setor, as redes e
organizações transnacionais, enfim, a sociedade civil –. Neste sentido, a
nova configuração mundial e as profundas mudanças pelas quais vem
passando o Estado “tornam obsoletas, tanto a teoria liberal, como a teo-
ria marxista do Estado” (SANTOS, 1998, p.13).

Como observa o coordenador do Centro de Estudos Multidisciplina-


res em Cultura (CULT), Antonio Albino Canelas Rubim (2003b, s.p.):
A política parece estar em um lugar problemático na sociabilidade
contemporânea. Insistentemente ela tem sido instalada no registro
da crise, quase em situação de não-lugar. O colapso das energias
utópicas, a derrocada das grandes narrativas, a depressão dos su-
jeitos políticos, a insatisfação com as práticas de representação, as
repetidas denúncias de corrupção, o desencanto com os políticos
profissionais aparecem apenas como algumas das inúmeras inter-
pelações endereçadas à política pela contemporaneidade. A cir-
cunstância atual apresenta assim visível contraste com a emergên-
cia, a conformação e mesmo a exaltação da política acontecida na
modernidade.

25
Letícia Conceição Martins Cardoso

Para Rubim, esse “mal-estar” da política atualmente é derivado, em


grande parte, da inadequação entre uma atividade política, com forma-
tação oriunda da modernidade (cuja herança marca ainda hoje a política
que realizamos), e uma contemporaneidade, conformada por outras es-
pacialidades e campos de força, num ambiente marcadamente midiático
e glocalizado6.

Portanto, convém esclarecer que, ao tratar do poder exercido pelo


Estado na área cultural no Maranhão, pretendo trazer para a discussão
(algumas) “novas forças que transcendem o Estado”, das quais fala Santos,
dando voz aos agentes culturais que interagem com o poder público. É
inegável a força do Governo do Estado nesse processo. Mas entendo que
os produtores culturais também são um pólo ativo dessa relação, contri-
buindo para pressionar, regular e moldar esse campo político de lutas,
buscando configurar a “cultura oficial” segundo seus interesses, exercen-
do, enfim, poder.

Dessa maneira, construo o campo da minha investigação – as rela-


ções desenvolvidas entre cultura e política no Maranhão nos Governos
de Roseana Sarney (1995-2002) – buscando as diferentes “versões da
história” e seus contadores, não no intuito de achar a verdade, mas de
construir uma verdade possível. Afinal, como bem destaca Coelho, “no
jogo das ‘verdades’, os pontos de vista diversos representam diferentes
verdades” (2002, p. 50).

Então, quando me refiro, aqui, à cultura do Maranhão não estou tra-


tando da cultura em sua dimensão mais ampla, nem incluindo todas as
formas e expressões culturais maranhenses. Na verdade, busco entender
a concepção de cultura adotada pelo Poder Público local analisando o
que é nomeado de “cultura oficial” pelo Governo do Estado, uma cultura
definida / classificada pela Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão
(SECMA), que, por sua vez, se auto-intitula “agente responsável” pelo
“produto tradicional da cultura” do Maranhão (SECMA, 1995, p. 4).

Considerando a existência da categoria “cultura oficial”, instituída


pelo Governo, construo o campo em análise incluindo a noção de cultura
reconhecida e produzida pelo Governo do Estado, uma cultura definida
como “tradicional” (SECMA, 1995, p. 4) e que também é assimilada pelos
produtores culturais na medida em que estes adquirem um status dife-
6
O glocal é a conexão entre o global e o local, em que a força do lugar impregna a cultura e
transforma o processo de globalização em glocalização.

26
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

renciado perante o Estado, e assim são contemplados por ações estatais


(apoios financeiros, cursos, divulgação).

A cultura tomada por objeto neste estudo trata, então, de concep-


ções de cultura definidas pelo Governo de Roseana Sarney. Num pri-
meiro momento, essa cultura identifica-se com a noção de “patrimônio”
construída e reproduzida pelo Estado, durante a gestão de Eliézer Mo-
reira Filho na Secretaria de Estado da Cultura (1995-1997). Num segundo
momento (1998-2001), há ênfase naquilo que o Estado define como sen-
do a “cultura popular maranhense”, encabeçado pelo novo secretário, o
artista Luís Henrique de Nazaré Bulcão (Ver Figura 1).

Na primeira fase da gestão cultural do Governo de Roseana Sarney


há uma narrativa recorrente que identifica cultura com instrução formal
e erudição, destacando o patrimônio material. No Relatório de 1996, por
exemplo, a cultura é definida como “cultura animi, isto é, uma mente de
tal modo educada e culta [sic] que se lhe pode confiar o cuidado e a pre-
servação de um mundo de aparências cujo critério é a beleza” (SECMA,
1996, epígrafe).

A cultura é definida nesse momento nos seguintes termos, de acor-


do com os Relatórios de Atividades:

Noções de cultura segundo discurso do Governo do Estado:


“Fator de desenvolvimento criativo humano”
“Processo dinâmico em constante renovação”
“Produto tradicional”
“Arquitetura, documentos, pesquisa histórica, promoção de eventos
artísticos”
“Eventos e obras”
“Eventos artístico-culturais e conjunto arquitetônico”
“Fertilizante na construção de uma mentalidade cidadã”
“Passado, uma inspiração ou lição para o presente e o futuro”
Fonte: Relatórios de Atividades SECMA (1995-1997)

Vejo a tendência em destacar o caráter erudito (“fator de desenvolvi-


mento criativo humano”, “fertilizante na construção de uma mentalidade
cidadã”) e patrimonialístico (“conjunto arquitetônico”, “passado”, “obras”).

27
Letícia Conceição Martins Cardoso

Nesse período, grande parte das ações e dos recursos estatais na es-
fera cultural volta-se para uma meta principal: adquirir o Título de Patri-
mônio Cultural da Humanidade para a cidade de São Luís.

O discurso baseado numa “cultura popular maranhense” começou a


ser engendrado ainda no primeiro mandato de Roseana Sarney, a partir
da Coordenadoria de Ação e Difusão Cultural. Mas ganhou mais visibili-
dade e força quando o Secretário Eliézer Moreira (advogado) foi trocado,
em 1998, por Luís Henrique de Nazaré Bulcão, ligado a grupos culturais
do Bairro da Madre Deus7. A partir daí, as ações da Secretaria de Estado
da Cultura (transformada em Fundação Cultural do Maranhão em 1999)
intensificaram-se no sentido de prover a cultura “autêntica”, “tradicional”
e identificada com o “povo do Maranhão”.

Nesta fase da gestão cultural, os recursos financeiros do Estado, an-


tes concentrados principalmente no Patrimônio Cultural, migraram para
a Coordenadoria de Ação e Difusão Cultural em 1998. Em 1999, a Coor-
denadoria foi transformada em Programa de Difusão e Apoio à Produção
Artística e Cultural com a Reforma Administrativa do Estado, que extin-
guiu o Sistema Estadual de Cultura e criou a Fundação Cultural do Mara-
nhão – FUNCMA.

A FUNCMA deu continuidade e incrementou a política especialmen-


te voltada para a “cultura popular”. Os recursos provenientes do Tesouro
Estadual já não eram mais limitados pela Lei Orçamentária, que determi-
nava um percentual de no máximo 2% do orçamento do Estado para o
Sistema Estadual de Cultura. A FUNCMA, por sua vez, não tendo recursos
limitados pelo orçamento, atingiu uma receita sem precedentes na ges-
tão cultural do Estado.

A receita da FUNCMA só aumentou durante os Governos de Rosea-


na Sarney, concentrando os recursos no Programa de Difusão e Apoio à
Produção Artística e Cultural (Ver Quadro 5, no item 4), que é responsável
pela promoção de grandes eventos e festas populares do calendário ofi-
cial do Estado: Carnaval, São João, Festa do Divino Espírito Santo, Natal e
Reveillon.

7
Bairro localizado próximo ao Centro Histórico de São Luís, apontado por intelectuais e
artistas locais como bairro “tradicional” e centro da efervescência cultural da cidade.

28
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Numa reconstrução esquemática, interpreto as narrativas recorren-


tes sobre cultura produzidas pelos órgãos responsáveis pela gestão cul-
tural nos Governos de Roseana Sarney no Maranhão, da seguinte manei-
ra:
Figura 1: Discursos predominantes sobre cultura nos Governos de Roseana Sarney

Cabe esclarecer que esta percepção não exclui outros discursos


oficiais sobre cultura produzidos pelo Estado no referido período, mas
aponta para aquelas que se tornaram as duas grandes tendências ou li-
nhas de atuação do Governo na esfera cultural.

É preciso observar também como o Governo de Roseana Sarney


articulou o discurso autorizado de alguns agentes para legitimar-se. Por
exemplo, na segunda fase da gestão cultural (especialmente voltada
para uma concepção de “cultura popular”) o referido Secretário é poeta
e membro de grupos culturais em São Luís. E, ao afirmar que os poetas,
os cantores, os artistas e mais ainda o povo sabem bem que o Maranhão
“é tradição, é torrão abençoado e predestinado” busca legitimar um dos
discursos oficiais do Estado, posicionando-se como porta-voz autoriza-
do de tais grupos. Por esta ótica, não é somente o Estado ou o Secre-
tário que afirma tal enunciado, é também o Secretário-artista e aqueles
grupos que ele diz representar. Nesta medida, o discurso legitimador do
Secretário induz a uma identidade da verdade do Estado com a verdade
dos artistas e do povo.

Neste discurso, a noção de povo não se refere a todos os cidadãos


do Estado, mas às camadas populares. O termo é usado contraposto a
artistas, poetas e cantores (“Seus poetas, cantores e artistas sabem disso.

29
Letícia Conceição Martins Cardoso

Aliás, o povo sabe bem mais”), dando a idéia de que estes não fazem par-
te do povo e que constituem um outro grupo social, do qual o próprio
Secretário faz parte. A “autenticidade” seria um atributo conferido pelo
Estado, que determina o que é e o que não é cultura tradicional, através
de atos administrativos.

Aliando a legitimidade legal à tradicional o Estado atrai artistas e in-


telectuais para ocupar cargos administrativos da Secretaria de Cultura e
aproxima-se de entidades não-governamentais compostas por pesquisa-
dores e acadêmicos para legitimar suas ações baseando-se nos discursos
autorizados desses intelectuais de corte (GEERTZ, 1997).

As visões e divisões de mundo propostas pelo Estado se consolidam


através de “rituais que reforçam as regras e os papéis sociais existentes”
(DA MATTA, 1981, p. 59). Por exemplo, a celebração do São João nos ar-
raiais; as reuniões da Governadora Roseana Sarney com os produtores
culturais no Palácio dos Leões, sede do Poder oficial; o cadastramento e a
classificação das manifestações pelo Poder Público; são rituais e, ao mes-
mo tempo, estratégias dos quais falarei mais adiante, que acabam teatra-
lizando o poder e sacralizando a imagem do agente político, sob a égide
do Estado (GEERTZ, 1997, p. 187).

Diante do exposto, o campo político objeto desta pesquisa são as re-


lações entre os atores dessa cultura definida e oficializada pelo Estado e
os atores políticos que agem (ambos) para a configuração das culturas
oficiais, num continnum espaço-temporal que envolve os dois mandatos
de Roseana Sarney (1995-1998; 1999-2002) como governadora do Mara-
nhão.

Em seus Governos, a gerência do setor cultural chegou a confundir-


se com aquilo que chamei de uma Indústria Política8, uma apropriação
8
Em trabalho anterior, já citado, estudo as especificidades da indústria cultural
maranhense. A pesquisa sinalizou que existe uma indústria da “cultura popular”, que é
gerida e financiada essencialmente pelo Poder Público, nomeadamente, pelo Governo
Estadual. Desse modo, a indústria cultural - tendência capitalista que visa à criação de
monopólios culturais, à exploração sistemática e programada dos bens culturais com a
finalidade de lucro (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) -, processo originário da iniciativa
privada é impulsionado no Maranhão pelo Governo, mais precisamente por agentes
políticos. Além disso, assim como a Indústria Cultural, o campo político maranhense
se utiliza da cultura, em alguns momentos, como entretenimento, divertimento, como
forma de distração e desarticulação política das massas, para evitar a contestação. Por
isso, referi-me a tais processos não somente como uma Indústria Cultural Maranhense,
mas como uma Indústria Política da Cultura Maranhense.

30
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

dos fenômenos culturais e sua inserção no mercado de bens simbólicos


com vistas à legitimação de agentes e interesses políticos. Mas, percebo
agora que existem outras relações neste espaço, que não se restringem à
apropriação ou à instrumentalização da cultura pela política. Os grupos
culturais também legitimam seus interesses, seu status e exercem poder.
Por exemplo, na medida em que demandam ações do Governo, reivindi-
cam direitos culturais e organizam-se enquanto movimentos sociais, os
atores culturais reelaboram sua experiência tornando-se também atores
políticos e, desta maneira, operam naquilo que podem para a configura-
ção do mundo social conforme seus interesses.

As relações entre os atores desse campo de disputas estabele-


cem-se a partir de um sistema de prestações e contraprestações, em que
destaco o papel da dádiva (MAUSS, 2003) como elemento importante
para compreender o significado das relações e a construção da imagem
dos atores.

O recorte empírico da pesquisa, como disse, corresponde a um sen-


sível aumento das articulações entre cultura e política no Estado do Ma-
ranhão e a uma maior visibilidade da cultura local tanto no cenário esta-
dual quanto nacional.

A observação do campo de estudo apontou alguns atores centrais


neste jogo de disputas. Buscando auxílio nos representantes dos Estudos
Culturais, Stuart Hall e Homi Bhabha, pude pensar de forma relacional
esses atores, que ressignificam e traduzem a sua experiência enquanto
políticos e produtores culturais, assumindo papéis fluídos, intersticiais,
dinâmicos, intercambiáveis.

De acordo com Hall, o significado, que se atribui em qualquer expe-


riência semiótica, não pode ser fixado definitivamente, o que quer dizer
que a experiência humana ressignifica-se continuamente. Para este autor:
“Sempre há o ‘deslize’ inevitável do significado na semiose aberta de uma
cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente
reapropriado” (HALL, 2006, p. 33).

Já a tradução da experiência, inspirada em Bhabha, é uma reapro-


priação com elementos novos. Traduzir é “viver nas fronteiras”; estar num
“entre-lugar”; é “uma condição de hibridismo que confere poder, uma
emergência que transforma o retorno em reinscrição” (BHABHA, 2005,

31
Letícia Conceição Martins Cardoso

p.311). E as fronteiras são possibilidades de contato com o que está do


outro lado, não significam limites, nem separações.

Percebi que durante os Governos de Roseana Sarney, o Estado inter-


feriu na produção cultural local, através da SECMA/FUNCMA e da Comis-
são Maranhense de Folclore (CMF), organismos integrados por artistas,
produtores culturais, intelectuais, pesquisadores. Nessa atuação estatal,
mas que também é determinada pelas experiências pessoais dos agen-
tes, houve predomínio da noção de cultura que se identificou, na maior
parte das ações, com “cultura popular”.

Simultaneamente, movimentos culturais proliferaram e se consoli-


daram na cena cultural local, pressionando o Estado e de algum modo
demandando ações do Poder Público que contemplassem suas reivindi-
cações.

Os protagonistas do campo de minha investigação desempenham,


portanto, papéis fronteiriços no mundo social. Elementos políticos e
culturais são reapropriados e reinscritos pelos atores na sua experiência
cotidiana, não se podendo identificar onde começa um e onde o outro
termina, já que a ressignificação não é percebida racionalmente pelos su-
jeitos. Além disso, a cultura expressa um elemento político que lhe é em-
butido (ORTIZ, 1988, p. 114), e neste sentido (não no sentido de “tomada
de consciência” ou de “cultura desalienada” 9), a ação cultural é também
ação política.

Os atores a que me refiro são, portanto, os “donos” 10, os “brincantes”11


e os agenciadores (espécie de empresários) de expressões das culturas
9
Para o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE (1962-1964) o conceito de popular
se confunde com a idéia de conscientização; não é uma concepção de mundo das
classes subalternas, nem os produtos artísticos das classes populares, mas um projeto
político dirigido ao povo que usa a cultura como instrumento de sua realização. Toda
manifestação artística que não se reveste desse objetivo é considerada “falsa cultura”
/“falsa consciência”/ “cultura alienada” (ORTIZ, 1985).
10
Na linguagem coloquial, o dono do bumba-meu-boi é o responsável pela manifestação,
seu dirigente ou presidente, muitas vezes ele acumula a função de amo do boi, aquele que
protege e é responsável pela brincadeira e de cantador do folguedo.
11
São aqueles que brincam, que celebram determinada manifestação cultural como membro
do grupo. Entendo que o termo brincar, “colocar brincos”, como diria DAMATTA (1981),
simbolicamente tem a ver com as brincadeiras de criança, com o mundo da fantasia,
do sonho, da magia, da representação, enfim, do lúdico. Relaciona-se com aquilo que
extrapola o cotidiano dos sujeitos e foge ao domínio do real, das condições materiais da
vida.

32
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

populares, nomeadas pelo Estado como “grupos folclóricos do Mara-


nhão”. São elas: Bumba-meu-boi, Tambor de crioula, Quadrilha, Coco, Ca-
curiá, Danças, Dança Portuguesa, da Fita, do Boiadeiro, Bambaê de Cai-
xa, Escolas de Samba, Danças Alternativas, Blocos Afros, Tribos de Índios,
Blocos tradicionais, Blocos organizados, Blocos alternativos, Cordão, Gru-
pos mirins e Grupos natalinos.

É importante ressaltar que as denominações e classificações aqui


referidas foram criadas por membros do Centro de Cultura Popular Do-
mingos Vieira Filho (órgão hoje subordinado à Superintendência de Cul-
tura Popular do Maranhão, da Secretaria de Estado da Cultura), logo, são
construções refletidas e propagadas pelo discurso oficial. Esse ato de no-
meação, reforço, traduz-se como um ato de poder do Estado.

Porém, não se pode localizar o poder nisto ou naquilo. À luz de


Foucault (2001), posso afirmar que o poder está em todos os lugares,
transitando dos sujeitos até as instituições e das instituições aos sujei-
tos, numa relação dialética. Segundo o autor, o poder confere significado
às instituições, mas estas só o exercem através dos sujeitos que são seus
portadores, pois poder é ação!

Logo, o poder do Estado a que me refiro encontra-se pulverizado


nas várias relações estabelecidas pelos indivíduos na sociedade: “o poder
do Estado não está localizado no aparelho do Estado e nada mudará na
sociedade se os mecanismos do poder que funcionam fora, abaixo, ao
lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, quotidia-
no, não forem modificados” (FOUCAULT, 2001, p. 51).

O Estado, como disse, é uma organização política abstrata na qual


existe um grupo de seres humanos ligados por um sistema complexo
de relações, que, por sua vez, é regulado pela sociedade civil (cidadãos,
associações de bairro, grupos culturais, ONG’s, institutos, redes transna-
cionais etc.). O poder do Estado, então, é o poder dos indivíduos que o
compõem; está nas mãos de seus membros, que materializam a sua exis-
tência.

Seguindo essa linha de pensamento, entendo que também cons-


tituem atores centrais desse campo político, a Governadora Roseana
Sarney, a Secretaria de Estado da Cultura (SECMA) / Fundação Cultural
do Maranhão (FUNCMA) e a Comissão Maranhense de Folclore (CMF). O

33
Letícia Conceição Martins Cardoso

Estado é aqui personificado por Roseana Sarney e pelos membros dos


setores administrativos da SECMA e da CMF. Mas quem são estes atores?

Roseana Sarney, não se pode esquecer, é “filha biológica, social e po-


lítica de José Sarney” (GONÇALVES, 2006), político que iniciou este mo-
vimento de aproximação com as culturas populares em seu mandato
como Governador do Estado do Maranhão (1966-70). Ela foi assessora de
seu pai na Presidência da República, eleita deputada federal mais votada
em 1990 pelo PFL/MA, eleita governadora do Maranhão em 1994 e ree-
leita em 1998, tornando-se, nos meados de 2001, pré-candidata do PFL
às eleições presidenciais. Após abandonar a candidatura, elegeu-se Sena-
dora da República pelo Maranhão (PFL), cargo que exerce atualmente12.

Maria de Fátima da Costa Gonçalves afirma em sua tese de Doutora-


do que a filha, Roseana Sarney, representa a perpetuação do projeto polí-
tico do pai, no espaço que denomina “Maranhão Dinástico13”. O que pode
ser averiguado, por exemplo, com o slogan de seu Governo “Um Novo
Tempo”, em que a governadora retoma o atributo “novo”, utilizado tam-
bém por seu pai como campanha e palavra-chave de seu governo em
1966, o “Maranhão Novo”. Gonçalves explica ainda que a continuidade do
projeto político de José Sarney por sua filha sofre “transgressões dentro
da ordem para a constituição de uma aparente autonomia em relação
ao pai – através das performances políticas de Roseana Sarney Murad14”
(GONÇALVES, 2006, p. 43, grifos da autora). Acredito que estas perfor-
mances políticas estejam ligadas especialmente ao setor cultural, sendo
herdadas, mas também intensificadas e aperfeiçoadas pela governadora.

A Secretaria de Cultura, órgão que materializou as estratégias e as


performances políticas de Roseana Sarney na área da cultura, também
demanda certa contextualização. O primeiro órgão estadual de cultura
12
Em 2005, Roseana Sarney afastou-se do cargo de Senadora e candidatou-se novamente
ao Governo do Estado do Maranhão, mas numa disputa acirrada, perdeu o pleito no
segundo turno para o candidato Jackson Lago (PDT). O fato teve grande repercussão e
de alguma forma abalou o poder da família Sarney no Estado, já que, pela primeira vez
em 40 anos um candidato de oposição à família chega ao Governo do Estado. Até então,
desde que deixou o Governo do Estado em 1970, José Sarney conseguira eleger todos os
candidatos que indicou ou apoiou ao governo, seus chamados “afilhados políticos”.
13
É um conceito que abrange um espaço de formas de poder político, pelo qual as práticas
pessoais determinam a maneira de gerir a dimensão política (GONÇALVES, 2006, p. 30).
14
O nome completo da governadora é Roseana Sarney Murad, pois é casada com Jorge
Murad. Mas, como explica Gonçalves (2006, p. 78), prevalece o sobrenome paterno
em detrimento do sobrenome de casamento “Murad”, já que a imagem de Roseana é
fabricada como “herdeira” na ordem de sucessão de seu pai.

34
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

remonta ao ano de 1953, quando, no Governo de Eugênio Barros, foi cria-


da a Secretaria de Estado dos Negócios de Educação e Cultura15, tendo
como órgão administrativo o Departamento de Cultura. Em 1967, José
Sarney criou o Conselho Estadual de Cultura16.

Em 1971, o governador Pedro Neiva de Santana instituiu a Funda-


ção Cultural do Maranhão17, subdividida em seis órgãos. A partir daí, o
Conselho Estadual de Cultura passou a ser órgão da administração supe-
rior da Fundação.

Em junho de 1981, o Governo de João Castelo transformou a Fun-


dação Cultural em autarquia, resultando no Instituto Maranhense de Cul-
tura18, composto por nove órgãos. Finalmente, em outubro do mesmo
ano, Castelo organizou o Sistema Estadual de Cultura e criou a Secretaria
de Estado da Cultura do Maranhão19, “com a finalidade de desenvolver
e apoiar a Cultura, bem como assessorar o Governador na formulação e
execução da política cultural do Estado” (SECMA, 1995, p. 2). A configura-
ção da Secretaria estabelecida pelo Governador João Castelo permane-
ceu até o primeiro governo de Roseana Sarney. No final de 1998, a gover-
nadora promoveu uma reforma administrativa20 geral do Estado, na qual
extinguiu o Sistema Estadual de Cultura e substituiu a SECMA pela Gerên-
cia Adjunta de Cultura, órgão vinculado à Gerência de Desenvolvimento
Humano (antiga Secretaria de Estado da Educação). Mas a pasta estadual
de cultura permaneceu nesta situação jurídico-administrativa por pouco
tempo, pois em 7 de maio de 1999, com a Lei nº 7379, a Gerência Adjunta
de Cultura foi substituída pela Fundação Cultural do Maranhão (FUNC-
MA) (Ver Apêndice A), significando, de acordo com o discurso oficial, “a
recuperação do status anterior, com as prerrogativas administrativa, or-
çamentária e financeira” (FUNCMA, 1999, s.p.).

Outro ator que precisa ser contextualizado é a Comissão Maranhen-


se de Folclore (CMF). Em 1948, foi criada a Subcomissão Maranhense de
Folclore (SMFL), representante da Comissão Nacional de Folclore (CNFL)
21
, mas foi extinta após a vigência da primeira diretoria. A rearticulação
15
Lei nº 934/53.
16
Lei nº 2791/67.
17
Lei nº 3225/71.
18
Lei nº 4292 de 03/06/81.
19
Lei nº 4351 de 31/10/81.
20
Lei nº 7356, 29/12/98.
21
Segundo Albernaz (2004), a estrutura da Comissão Nacional de Folclore baseava-

35
Letícia Conceição Martins Cardoso

da subcomissão como Comissão Maranhense do Folclore só ocorreu na


década de 1980. Atualmente, a CMF é uma instituição de direito priva-
do sem fins lucrativos, de natureza cultural, integrada por folcloristas,
pesquisadores, intelectuais – alguns ligados ao poder público. Funciona
nas instalações do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, ou
seja, num prédio do Governo do Estado. É apontada como “parceira” do
Governo em grande parte dos projetos e atividades da SECMA/FUNCMA
(em seus Relatórios de Atividades de 1995 a 2002).

A instituição figura como importante ator no campo em análise, ao


funcionar muitas vezes como mecanismo de legitimação das ações do
Estado, da verdade do Estado (FOUCAULT, 2001, p. 13), através do discur-
so autorizado da ciência (BOURDIEU, 1996a).

De maneira indireta, compõem a arena dessas disputas os verea-


dores, deputados, prefeitos, o Governo Federal, as empresas privadas e
demais atores sociais que interferem no processo de construção das re-
presentações sociais, oriundas do contato, do conflito, das trocas e dos
interesses entre cultura e política no Maranhão.

Tudo isso acontece num espaço social estruturado em rede e am-


bientado pela mídia, que é importante agente de construção e recons-
trução do mundo social contemporâneo. Por isso, a mídia é entendida
aqui como ator privilegiado no estabelecimento das relações política-
cultura. Como lembra Rubim (2003a, p.15) no artigo Espetáculo, política
e mídia, “uma significativa parcela da atividade política hoje se realiza na
dimensão pública instituída pela rede de mídias [...]. Mais que isto, hoje
fica fácil constatar e imaginar que a política midiatizada tem potente inci-
dência naquela realizada em espaços convivenciais”.

se em subcomissões criadas em todos os Estados brasileiros, constituídas por


estudiosos do tema, usando metodologia semelhante à ciência positiva, e que,
simultaneamente, tivessem boas relações com o poder executivo local. A CNFL
formou uma rede de pesquisa nacional, com o objetivo de criar a ciência do
folclore nas universidades brasileiras que estavam se organizando. Localmente,
a criação da SMFL, por ser uma instituição exclusiva para os estudos do folclore,
que buscava fortalecer este campo do conhecimento em todos os Estados,
articulando-as nacionalmente, trouxe algum prestígio e legitimidade para o
tema como objeto de investigações eruditas. De acordo com a autora, não há
registros da continuidade da SMFL após ser desfeita a sua primeira diretoria,
com exceção da auto-apresentação de Domingos Vieira Filho como representante
do Maranhão na CNFL.

36
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Neste jogo de disputas, a cultura pode ser vista como elemento ca-
paz de gerar capital simbólico aos políticos e à política, como fonte de
capital simbólico para os atores culturais. Por um lado, os políticos po-
dem se aproveitar da dimensão simbólica, aliando sua imagem a uma
manifestação cultural, para se posicionarem melhor no jogo pela disputa
de poder político. Num movimento inverso, os atores culturais são cons-
cientes de que a posição de destaque que ocupam – reconhecidos como
líderes de opinião da comunidade, como pessoas carismáticas ou mes-
mo como bons artistas – pode lhes render capital simbólico no âmbito
político.

Mas é por meio do reconhecimento dos outros agentes que é pro-


duzida e reproduzida a crença na legitimidade. Pois, o reconhecimento é
aquilo que transforma um capital qualquer em capital simbólico.

Os atores adquirem esse capital simbólico em seu grupo, mas pre-


cisam criar formas de mantê-lo sempre legítimo, em outras palavras, ne-
cessitam cultivar o reconhecimento dos outros, sob pena de perder po-
der (simbólico). Uma estratégia para adquirir tal reconhecimento pode
ser ganhando visibilidade em outros campos sociais e, neste movimento,
a mídia tem papel relevante, porque se tornou espaço público distinto
no mundo contemporâneo.

A fabricação de símbolos

Em determinados momentos, a dinâmica cultural no Brasil foi per-


meada por um processo de apropriação das manifestações culturais e
sua subsequente transformação em símbolos de coesão social manipu-
lados pelo Estado como formas de identidade nacional (OLIVEN, 1983).

Tal processo esteve presente nos vários movimentos populistas


latino-americanos, sendo registrado por Canclini (1983) como uma es-
tratégia da concepção estatista do nacional-popular, segundo a qual a
identidade está no Estado (e não contida na raça, nem num pacote de
virtudes geográficas, nem no passado ou na tradição). Esta concepção do
nacional-popular inspira uma política cultural que “trata de reproduzir as
estruturas ideológicas e as relações sociais que legitimam a identidade
entre Estado e Nação” (CANCLINI, 1988, p. 43).

37
Letícia Conceição Martins Cardoso

Durante os regimes autoritários no Brasil, predominou essa moda-


lidade de política cultural, não só difundida pelo governo federal, como
também reproduzida em nível regional.

O Maranhão, por exemplo, começa a se inserir na política desenvol-


vimentista nacional quando José Sarney22 assume o Governo do Estado,
em 1966, afirmando romper com o vitorinismo, um coronelismo particu-
lar, que consistiu no domínio dos interesses do senador Vitorino Freire no
Estado.

Gonçalves, que estudou a instituição de José Sarney nos campos


político e literário, afirma que uma de suas estratégias de legitimação
nesses campos foi fundamentar suas ações e seu discurso na “oposição
cíclica decadência/prosperidade/decadência” (GONÇALVES, 2000, p.
108). Como esclarece a pesquisadora,
Um princípio de divisão estabelece um Maranhão como passado
de apogeu – consagrado pela historiografia oficial e pela tradição
erudita – e um Maranhão como ‘presente da decadência’ – resulta-
do do próprio confronto com os padrões adotados para o chamado
‘apogeu’.
Desta forma, um produto político chamado ‘Maranhão Novo’ pre-
tende fazer do proclamado ‘desenvolvimento’ do Maranhão, um
elemento que permita não o regresso temporal, mas o estado de
consagração que é dado pela prosperidade passada. (GONÇALVES,
2000, p.108, grifos da autora).

Percebo, assim, que a principal justificativa do discurso político de


José Sarney é a “ruptura com o atraso” à luz do “desenvolvimento”, que,
como ele próprio define, estaria ligado à “incorporação dos benefícios
que decorreriam da meta da Integração Nacional” (SARNEY, 1970 apud
22
Candidato da coligação da União Democrática Nacional (UDN) com o Partido Social
Progressista (PSP), a atuação política de José Sarney. Apesar das posições que assumira
em defesa das reformas de base e em apoio a João Goulart, José Sarney tornou-se um
dos principais nomes políticos do regime implantado em março de 64. Ostensivamente
apoiado pelo presidente Castelo Branco, Sarney conquistou o governo do Maranhão em
outubro de 1965, recebendo uma votação inédita na história do Estado: 121.062 votos, o
dobro do segundo colocado, Antônio Eusébio da Costa Rodrigues, do PDC, apoiado pelo
governador Newton Belo. A eleição representou a primeira derrota política de Vitorino
Freire: seu candidato, Renato Archer, obteve uma votação inexpressiva. Após o término de
seu mandato presidencial (1985-1989), elegeu-se duas vezes senador pelo Amapá, cargo
que ocupa até hoje, exercendo a presidência dessa casa de 1995 a 1996, de 2003 a 2004.
Ver mais sobre José Sarney em: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro. Fundação
Getúlio Vargas. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br> Acesso em: 02/10/2007.

38
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

GONÇALVES, 2000, p. 110). Portanto, o governador teria a missão de, ao


mesmo tempo, acabar com a (suposta) “decadência” econômica e cultu-
ral em que se encontrava o Estado e retomar a “prosperidade” econômica
e cultural do Maranhão, que remonta a um passado de glórias – nos cam-
pos literário e político – supostamente extinto com o vitorinismo.

Essas representações sobre o Maranhão inspiraram as práticas do


projeto de governo “Maranhão Novo” 23, que, por sua vez, geraram outros
discursos e passaram a redefinir ou reinventar o Maranhão pelo critério
da identidade regional (GONÇALVES, 2000, p.110).

Sintonizado com os interesses da política nacional desenvolvimen-


tista, o Governo Estadual teve o apoio amplo do presidente militar Caste-
lo Branco. A partir daí, é iniciada no Maranhão a implementação de uma
infraestrutura econômica e social sem, todavia, contrariar os interesses
dominantes no Estado, especialmente dos latifundiários.

José Sarney desenvolveu um estilo de governo popular e moder-


nizador. Recebia em audiências diárias dezenas de pessoas de variados
setores da população. Segundo o poeta e amigo Odylo Costa Filho, ele
“sabia varar a noite contando coisas, anedotas, e nessa base fez sua cam-
panha como orador popular capaz de entusiasmar as massas” 24.

Provocou uma revolução administrativa, em que os investimentos


decuplicaram, aumentando em 2.000% o orçamento do Estado. O cha-
mado “milagre maranhense” incluiu, entre outros empreendimentos, a
construção de quinhentos quilômetros de estradas asfaltadas e dois mil
quilômetros de estradas de terra; a construção do porto de Itaqui e o pla-
nejamento da cidade industrial; a criação de uma rede de telecomuni-
cações cobrindo 85 municípios; o aumento de cem mil para 450 mil das
matrículas escolares; inauguração, com uma assistência de cem mil pes-
soas, da ponte de São Francisco, sobre a foz do rio Anil.

O preço dos investimentos locais foi a doação de milhares de hecta-


res de terras; a cessão de benefícios fiscais e isenção de impostos a gran-
23
Maranhão Novo foi o nome do projeto de governo de José Sarney no Maranhão (1966-70)
baseado na defesa da modernização capitalista da economia no Estado. Dentre outros, os
objetivos do projeto eram a “prosperidade”, a “modernização” e o “desenvolvimento com
justiça social”. “Novo” e “Moderno” são tomados como sinônimos neste governo, que traz
como retórica a ruptura com o “atraso” que assolava o Estado antes de Sarney.
24
Fonte: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, http://www.cpdoc.fgv.br.

39
Letícia Conceição Martins Cardoso

des empresários nacionais pelo Governo do Estado. Prática que desen-


cadeou a expulsão de centenas de famílias de trabalhadores rurais para
a capital, São Luís, sem que investimentos de base tivessem sido feitos
para lhes dar suporte (MARQUES, 1999).

Neste contexto de êxodo rural, as famílias veem nas tradições cultu-


rais a possibilidade de evocar sua terra de origem, um retorno (simbóli-
co) à terra deixada. Assim, a manifestação da cultura além de ato de lazer
passa a ser também momento de romper com o cotidiano, com o con-
formismo, para dar lugar ao inusitado, à catarse, à resistência e à crítica
social.

O jornalista Herbeth de Jesus dos Santos, que pesquisa a história do


Bumba-meu-boi da Madre Deus, confirma que nesse período já se viam
manifestações culturais populares na capital25. Ele informa, por exemplo,
que já na edição de 5 de julho de 1868 do Semanário Maranhense há um
anúncio sobre uma apresentação do Boi da Madre Deus “na casa do ad-
ministrador do Matadouro Público”.

Josué Montello também destaca as festas populares em sua obra,


mostrando em algumas delas a arrogância e o descaso da elite urbana
maranhense em relação às manifestações populares no século XIX e
início do século XX. Em Os tambores de São Luís (1971), por exemplo, os
tambores são as metáforas das festas e tanto podem ser vistos como ou-
vidos a distância por seus personagens. Os sons dos bois, do tambor de
crioula e dos cultos afro-brasileiros – Casa das Minas e Casa de Nagô –
marcam acontecimentos importantes dos personagens principais, como
de Damião, que andava pelas ruas desertas de São Luís, numa noite en-
luarada, lembrando fatos de sua vida e, consequentemente, construindo
uma narrativa sobre o Brasil de 1838 a 1915.

Nota-se, assim, que várias brincadeiras vindas do interior misturam-


se às que já existiam na capital àquela época, gerando diversas negocia-
ções, inclusive com as elites e com o poder público. A formação de iden-
tidades culturais, como destaca Stuart Hall (1997, p. 88-89), perpassa um
processo de “tradução”, que:

25
Herbeth dos Santos analisa que o “sotaque” de matraca, que caracteriza o Boi da Madre
Deus, também é chamado de “sotaque da Ilha”, por fazer uma alusão à Ilha de São Luís.
Logo, esse sotaque se refere a bois originados na própria capital (zona rural ou urbana
da ilha).

40
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

[...] descreve aquelas formações de identidade que atravessam e


intersectam fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram
dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm
fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas
sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a nego-
ciar com as novas culturas que vivem, sem simplesmente serem as-
similadas por elas e sem perder completamente suas identidades.
Elas carregam os traços culturais, das tradições, das linguagens e
das histórias particulares pelas quais foram marcadas.

O contato com a população vinda do interior ocasiona traduções/


negociações e uma consequente diversificação dessas expressões cultu-
rais da capital, especialmente dos “sotaques” 26 do Bumba-meu-boi. Mas,
como lembra Marques (1999, p. 68),
as famílias burguesas têm verdadeiro pavor do Bumba até a década
de 1940 [...], chamando a polícia a cada vez que a brincadeira passa,
porque não vêem o boi como manifestação da cultura popular, mas
somente como uma brincadeira estúpida de negros. As pressões
são tantas e tão fortes que as brincadeiras não podem ultrapassar
os bairros onde são produzidas, sob pena de ser multados e presos,
situação que só muda na década de 70.

A aceitação das manifestações culturais populares na sociedade


maranhense foi um processo permeado de violência física e simbólica.
Elas eram geralmente expulsas das áreas nobres e centrais da cidade à
base de força policial. Havia, ainda, um limite na zona urbana demar-
cando a área onde tais grupos pudessem circular. Para ultrapassar essas
barreiras físicas os grupos tiveram que se enquadrar a alguns padrões de
normalidade das elites e dos espaços nobres, passando por um processo
de “assepsia”, em que os elementos considerados grotescos pelas elites
sofrem um “aprimoramento estético” (expressão da FUNCMA [2001] para

26
Alguns pesquisadores (AZEVEDO NETO, 1983; LIMA, 1982) registram que nos anos 60
e 70 já diversas brincadeiras, tais como Tambor de Crioula, Danças do Coco, do Lelê e
Quadrilhas eram realizadas em São Luís pelas classes populares. O Bumba-meu-boi, a
mais popular delas, nesse período, na capital, passa por uma diversificação de sotaques,
que são o gênero musical/artístico/regional de que fazem parte, ou seja, o estilo, o ritmo,
que define também seus instrumentos, suas indumentárias e o tipo de dança. Para
Azevedo Neto (1983), existem quatro sotaques: o de Matraca ou da Ilha, cujos elementos
remetem à cultura indígena (e que era o predominante em São Luís nesse período); de
Zabumba, também denominado pela sua região de origem, Guimarães, em que os traços
africanos são mais acentuados; de Orquestra, basicamente de conteúdo europeu; e o de
Pindaré, oriundo da região da Baixada maranhense, em que há uso de matracas, com
diferenças no ritmo, nos instrumentos e no guarda-roupa. Há ainda um sotaque existente
somente no município de Cururupu como um quinto sotaque, também conhecido como
Costa de Mão (referindo-se à forma usada para tocar um dos instrumentos, o pandeirão).

41
Letícia Conceição Martins Cardoso

se referir ao objetivo da política cultural do Estado no Governo de Rose-


ana Sarney).

Uma estratégia dos grupos para transpor os limites que lhes eram
impostos era contar com o prestígio de alguns políticos. De acordo com
dona Zelinda Machado de Castro e Lima, pesquisadora da cultura mara-
nhense e chefe do Departamento Estadual de Turismo, do governo de
José Sarney (1966-1970), “o bumba-meu-boi, assim como maior parte
das manifestações da cultura popular eram alvos de preconceito e vistas
como ‘coisa de vagabundo’ pelas elites”. Zelinda Lima, comadre e amiga
de José Sarney, relata que com frequência, em casos de prisão, os donos
de boi recorriam a ela ou a alguns políticos para serem libertados. Como
exemplo desse período de repressão, ela lembra com detalhes a prisão
de seu Leonardo, dono de um boi de zabumba que brincava na capital:
Ele foi preso, espancado, tiraram todo o dinheiro dele. Quando me
comunicaram de manhã cedinho, na hora do café, eu bati lá no go-
vernador [Sarney] e disse: “olha, está acontecendo isso, isso e isso”.
Ele botou a mão na cabeça e disse: “agora, que eu sou governador,
o que é que eu vou fazer?” Vamos pensar, eu disse. Transferir o dele-
gado? Não, não é o caso. Chamar o chefe de polícia? Talvez. Decidi-
mos ficar por aí. Parecia pouco diante da barbaridade, mas estáva-
mos iniciando um processo importante de mudança de mentalidade
do maranhense frente à cultura popular de seu estado.

Personalidade que interagiu com os produtores culturais (donos


de Bois, de Tambor e outras brincadeiras etc.) em nome do Governo,
“dona Zelinda”, como é chamada pelos brincantes, é muito admirada e
tida como líder de opinião27, como se nota no relato de Terezinha Jansen,
dona do Boi e do Tambor de Crioula da Fé em Deus: “vou fazer um parên-
tese para dizer que essa Srª Dona Zelinda Lima é a árvore frutuosa que
todos nós nos abrigamos” (JANSEN, 2004, apud Congresso Brasileiro de
Folclore, 2004, p. 109).

Sendo assim, acreditando que José Sarney seja um “benfeitor” para


as culturas populares, dona Zelinda acaba por produzir e reproduzir essa
crença, refletida, em certa medida, nos discursos e no processo criativo
dos atores culturais no Maranhão.
27
Atores sociais que desfrutam de certa credibilidade nas comunidades (bairro, igreja,
trabalho, escola) e influenciam os demais com suas opiniões e interpretações da realidade
social. Segundo Beltrão (2001) essa conquista de liderança está intimamente ligada à
credibilidade que merece no seu ambiente e à habilidade do agente comunicador de
codificar a mensagem ao nível do entendimento dos seus receptores.

42
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

É importante destacar, em sua fala, o status atribuído ao Governa-


dor como agente principal de “um processo importante de mudança de
mentalidade do maranhense”. Penso que essa “mudança de mentalida-
des do maranhense” conjugava-se com o seu projeto maior, o “Maranhão
Novo”. Assim, a intenção não era apenas trazer a “modernização” e o “de-
senvolvimento” para a estrutura econômica e político-administrativa do
Estado, mas também “modernizar/desenvolver” as mentalidades, o que
envolve a dimensão simbólica.

Nesta linha de pensamento, reconhecer as culturas populares como


culturas típicas e originais do Maranhão (em contraposição à visão an-
terior) pode ser interpretado não só como um ato de defesa da cultura
produzida por classes oprimidas da sociedade, mas também e, principal-
mente, como forma de legitimação do governante junto a esses segmen-
tos populares e junto a seus pares intelectuais.

Cabe destacar aqui que José Sarney foi membro da “Geração de 45”,
grupo de intelectuais maranhenses inspirados no movimento moder-
nista brasileiro, do qual faziam parte figuras como Ferreira Gullar, Bello
Parga, Carlos Madeira, Reginaldo Telles, Domingos Vieira Filho, Bandeira
Tribuzi, Lucy Teixeira, entre outros. A ascensão de José Sarney à política
maranhense o transformava na personificação do projeto dessa geração.
“Ao tomar posse no Governo do Estado, José Sarney proclamou: ‘É a po-
esia no poder’” (GONÇALVES, 2000, p. 97). Firmou-se no campo literário28,
inspirando-se, geralmente, em temas, mitos e lendas do saber popular
maranhense. Desse modo, além de aliar sua imagem à de um político
inovador/moderno, consegue vinculá-la à imagem do intelectual e pro-
tetor da “cultura popular”.

Dona Zelinda Lima, reforça essa idéia ao afirmar:


Ele [José Sarney] sempre foi uma pessoa sensível e deveria ser fol-
clorista, mas enveredou pela política... Eu o conheci acompanhando
todos os grupos. Mesmo antes de ser governador, sempre gostou
28
José Sarney foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL), em 17 de julho de
1980, sucedendo a José Américo de Almeida na cadeira de número 18. É recebido em 6
de novembro de 1980 pelo acadêmico Josué Montello. Dos atuais integrantes da ABL, é
o membro mais antigo. Algumas obras publicadas: A canção inicial (poesia, 1954); Estudo
sobre a pesca de curral na ilha Currupi (ensaio, 1952); Norte das águas (contos, 1969);
Governo e povo (1970), Cantigas de Pericumã (poesia, 1978); Marimbondos de fogo (poesia,
1978); Brejal dos Guajas e outras histórias (1985); O mundão das águas (romance, 1995); O
dono do mar (romance, 1995); Saraminda (romance, 2000).

43
Letícia Conceição Martins Cardoso

da cultura popular. Nós tínhamos um grupo de pessoas (uns inte-


lectuais, outros não), eu, meu marido [Carlos de Lima], Domingos
Vieira Filho, que acompanhavam essas brincadeiras. Íamos lá no su-
búrbio, já que as mesmas não vinham aqui na cidade, por proibição
da polícia da época. Costumávamos viajar sempre pro interior pra
pesquisar as brincadeiras e ele muitas vezes foi conosco [...] obser-
vava tudo. Ele sempre foi contra essa perseguição aos donos de boi
[...].

Construindo uma identidade para a nação

A relação da política com as culturas populares no Brasil sempre foi


bastante próxima, tornando-se prática recorrente a manipulação de sím-
bolos étnicos para a criação de símbolos nacionais. Desde as mudanças
sociais provocadas pelo movimento abolicionista no final do século XIX,
inicia-se a busca de uma identidade para o país, aliás, para o (novo) Esta-
do Nacional Brasileiro. Neste contexto, a “cultura popular” é construída
como objeto de inspiração e de análise de intelectuais e pesquisadores,
originada da assimilação de elementos étnicos e atrelada à idéia de cons-
tituição do Estado-Nação.

As produções científicas e/ou literárias de autores como Celso


Magalhães, Aluísio de Azevedo, Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides
da Cunha tiveram fundamental importância nessa tentativa de construir
um modelo de identidade nacional brasileira, que contemplasse a nova
realidade social, com elementos “autênticos”, “reais” e “originários” do Bra-
sil, mas de modo diferente do ufanismo romântico. No Romantismo, a
busca por símbolos de nacionalidade encontrou no índio a inspiração
para a identidade nacional. No entanto, a forma idealizada como o índio
era retratado pelos artistas românticos remetia aos padrões estéticos eu-
ropeus medievais. José de Alencar foi o ícone desta corrente indigenista
na literatura romântica, com a obra Guarani.

Finalmente, o negro surge na literatura nacional – ao menos no


plano simbólico – como integrante da sociedade brasileira, ou melhor,
como brasileiro e não apenas como força de trabalho ou propriedade do
senhor. A partir daí, a identidade do Brasil pensada por aqueles intelectu-
ais passa a ser produto da mestiçagem de três raças: a branca, a negra e a
índia.

44
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Até então, porém, o negro / o mestiço é apresentado de forma am-


bígua, duvidosa ou negativa, como se depreende da análise de Ortiz
(1985, p. 39) sobre O Cortiço (1880), de Aluísio de Azevedo:
João Romão, calculista e ambicioso, ascende socialmente no mo-
mento em que se distancia da raça negra (ele se desvencilha da
negra Bertoleza, com quem viveu grande parte de sua vida); Jerô-
nimo, ao se abrasileirar, não consegue vencer a barreira de classe,
e permanece “mulato”, junto à população mestiça do cortiço. [...] as
qualidades atribuídas à raça branca são aquelas que determinam
a racionalidade o espírito capitalista. Ao se retirar do mestiço as
qualidades da racionalidade, os intelectuais do século XIX estão
negando, naquele momento histórico, as possibilidades de de-
senvolvimento real do capitalismo no Brasil. Ou melhor, eles têm
dúvidas em relação a esse desenvolvimento, a identidade forjada
é ambígua, reunindo pontos positivos e negativos das raças que se
cruzam.

Na primeira metade do século XX, o crescimento da urbanização e


da industrialização, o surgimento do proletariado urbano e consequente
desenvolvimento de uma classe média inserem definitivamente o país
no processo capitalista. Essas transformações estruturais serão refletidas
no campo artístico-cultural, dando continuidade ao projeto identitário
para o país, mas sob novas perspectivas.

A partir de 1922, o debate sobre “cultura popular” passa a despertar


o interesse da sociedade letrada, quando, com o objetivo de discutir a
identidade e a cultura nacional e os rumos das artes, artistas e intelectu-
ais organizam nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de
São Paulo, a Semana de Arte Moderna – marco do movimento moder-
nista no Brasil – que representou, simultaneamente, uma abertura para
que o país acompanhasse o mundo culturalmente e buscasse as veias de
uma concepção de cultura direcionada para suas origens (étnicas).

Inúmeros foram os acontecimentos que precederam e marcaram a


Semana de Arte Moderna29. O mundo estava em mutação e para os mo-
29
Cabe destacar a exposição paulistana de Annita Malfatti, artista plástica recém
chegada da Europa, cujos trabalhos inauguraram a escola modernista no Brasil,
em 1917. Monteiro Lobato escrevera um artigo depreciativo para a coluna
“Artes de Artistas” do Jornal O Estado de São Paulo, intitulado “A propósito da
Exposição Malfatti”. Nele, revelava o próprio pensamento acadêmico em voga e
atacava fortemente o trabalho da artista, ridicularizando a arte moderna, pois
o autor era contra a técnica naturalista de reproduzir a realidade.. Num trecho
do artigo, dizia: “Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem

45
Letícia Conceição Martins Cardoso

dernistas, o Brasil deveria acompanhar esse movimento. Assim, o pano-


rama das artes brasileiras no século XX começa a sofrer uma mudança
profunda: uma vertente considerada conservadora enxergava o movi-
mento modernista como mero “importador” de conceitos europeus. Ou-
tros diziam que os modernistas não compreendiam os valores da van-
guarda européia. E existiam aqueles que enxergavam um modernismo
adaptado à realidade brasileira, suscitando movimentos de busca pelas
raízes culturais do Brasil e de ruptura com a cultura européia, gerando
novas correntes artísticas baseadas nos ideais modernistas, tais como o
Movimento Pau-Brasil, o Antropofagismo, o Movimento Verde-Amarelo,
entre outros.

A partir dessa efervescência cultural, a temática do nacional-po-


pular vai ganhando força entre intelectuais e artistas. E os modelos es-
sencialmente universalizantes da arte clássica passam a dar lugar a uma
arte do dia-a-dia dos brasileiros, de caráter social, trazendo à tona ques-
tões polêmicas para época (a violência colonialista, a exploração do índio
e do negro, as desigualdades de classe), com vistas a uma identidade “au-
têntica” e “genuinamente” nacional.

Desse modo, os modernistas aproximam a língua literária da lín-


gua falada pelas classes populares, exaltando-a, como faz Manuel Ban-
deira nos seguintes versos:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros


Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
normalmente as coisas e em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os
eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas,
os processos clássicos dos grandes mestres. [...] A outra espécie é formada pelos
que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras,
sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da
cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de
decadência [...]” (LOBATO apud CEREJA; MAGALHÃES, 2000, p.351). Essa
crítica gerou polêmica entre intelectuais e artistas solidários à pintora. Oswald
de Andrade e Mário de Andrade, jovens escritores, e o escultor Victor Brecheret
unem-se a ela contra os defensores da arte acadêmica, gerando o conflito entre
a arte moderna e os passadistas. Inicia-se, assim, a Semana de Arte Moderna,
aberta com uma conferência do escritor Graça Aranha, intitulada “A emoção
estética da arte moderna” e diversas outras participações: Lima Barreto, Menotti
Del Picchia, Luís Aranha, Sérgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral, Di
Cavalcanti e Heitor Villa-Lobos. O evento também envolveu representantes
de outros segmentos da sociedade, como políticos, educadores, empresários e
trabalhadores.

46
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil


Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
(CEREJA; MAGALHÃES, 2000, p. 345)

Os modernistas eram inovadores, satíricos e bem-humorados, zom-


bando da arte tradicional e das figuras eminentes do passado. Como fez
Oswald de Andrade no poema “Senhor Feudal”:

Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Eu boto ele na cadeia
(CEREJA; MAGALHÃES, 2000, p. 346)

Há, nas diferentes linguagens, uma tentativa de valorização da “cul-


tura popular” (produzida pelas classes populares), em contraposição a
uma cultura clássica (de elite e européia). Posso citar como exemplo na
escultura, a Bailarina, de Vitor Brecheret; nas artes plásticas, as telas An-
tropofagia e Abaporu (1929), de Tarsila do Amaral; e Cinco moças de Gua-
ratinguetá (1930), de Di Cavalcanti; na música, Uirapuru e Tocata (O tren-
zinho do caipira), de Heitor Villa-Lobos. Assim a “cultura popular” ingressa
na pauta de discussão de artistas e intelectuais brasileiros, no início do
século XX, como resultado da dicotomia entre uma cultura folclórica e
uma cultura de elite30.

Mário de Andrade, expoente da Semana de Arte, teve um papel de-


cisivo na implantação da arte moderna no Brasil e no registro e na vi-
sibilidade da “cultura popular” do país, por meio de seus estudos sobre
folclore e de sua atuação no poder público.
Mário empreendeu várias viagens pelo Brasil, inicialmente como
‘mero aprendiz’, depois como pesquisador. Passou pelas cidades
30
Ortiz observa que no Brasil os primeiros estudos sobre “cultura popular”, influenciados
por Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, apontam para uma identidade entre “cultura
popular” e folclore, constituindo-se numa forma de saber que se associa às camadas
tradicionais de origem agrária. Esta concepção, ainda presente em grande parte da
literatura brasileira, é considerada conservadora pelo autor, já que valoriza a tradição
como presença do passado e toma o “progresso” como dessacralização da sabedoria
popular (ORTIZ, 1985, p.70-71).

47
Letícia Conceição Martins Cardoso

históricas mineiras, pelo Norte e pelo Nordeste do país, recolhen-


do materiais e informações de interesse cultural, como poemas e
canções populares, modinhas, ritmos, festas religiosas e de folia,
lendas e músicas indígenas, objetos de arte, etc [...] Muito mais do
que como meio de satisfação pessoal, Mário encarava sua intensa
atividade cultural como missão, isto é, queria ser útil no processo
de reconstrução de um Brasil que se transformava social, política,
econômica e culturalmente (CEREJA; MAGALHÃES, 2000, p.369).

Suas obras Clã do jabuti (1927) e Remate de males (1930) são perme-
adas por lendas, costumes e modos regionais de falar, além de ritmos e
danças populares (samba, coco, toada, modinha). E Macunaíma31 (1928),
o mais conhecido de seus trabalhos em prosa, cujo personagem princi-
pal se transformara num símbolo da cultura brasileira, apresenta um anti-
herói (herói por suas qualidades de mentiroso, preguiçoso, covarde), que,
segundo o autor, tem muitas semelhanças com os brasileiros, povo “sem
nenhum caráter”. Esclarece ele:
Com a palavra caráter não determino apenas a realidade moral não,
em vez disso, entendo a entidade psíquica permanente, se manifes-
tando por tudo, nos costumes, na ação exterior, no sentimento, na
língua, na História, na andadura, tanto no bem como no mal. O bra-
sileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria
nem consciência tradicional (ANDRADE apud CEREJA; MAGALHÃES,
2000, p. 372).

Seja como professor universitário ou Diretor do Departamento de


Cultura de São Paulo ou membro do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional e do Ministério da Educação, no Governo de Getúlio
Vargas, Mário de Andrade lutou pela recuperação do imaginário mito-
poético brasileiro e desencadeou um processo de construção de uma
identidade nacional fundamentada na “cultura popular”, idéias que em
certa medida colaboraram para legitimar o projeto político-pedagógico
do então presidente Getúlio Vargas.

31
O ponto de partida para a criação de Macunaíma foi a leitura que Mário fez de Vom Roraima
zum Orinoco, do etnógrafo alemão Koch-Grünberg, que colheu na Amazônia, entre 1911
e 1913, um ciclo de lendas dos índios taulipangues e arecunás. O autor brasileiro fez
algumas alterações na lenda original, acrescentou-lhes outras, de origens diversas,
incluiu anedotas da história brasileira, aspectos da vida urbana e rural do país, sem deixar
de fora os personagens reais e fictícios, a feitiçaria, o erotismo e o absurdo surrealista.
Perseguindo a tradição das canções e novelas populares, das epopéias e das novelas – a
tradição oral da literatura – Macunaíma foi chamada por Mário de rapsódia, composição
que, na música, envolve uma variedade de motivos populares (CEREJA; MAGALHÃES,
2000).

48
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Mais tarde, numa autocrítica, o idealizador de Macunaíma diria que


faltou aos modernistas de 22, maior empenho social, maior impregnação
“com a angústia do tempo”. Eles colocaram a renovação estética acima
de outras preocupações importantes. Mas, de qualquer maneira, a rebe-
lião modernista conseguiu instaurar a experimentação, o que, segundo
os artistas modernos, era indispensável para a fundação de uma arte ver-
dadeiramente nacional. Em algumas ocasiões, o movimento denunciou
a alienação das camadas cultas em relação à realidade do país e criticou
as desigualdades sociais – temáticas que permanecem atuais no Brasil,
após 86 anos da Semana de Arte.

Liderado por Getúlio Vargas (como chefe do Governo Provisório,


pós-Revolução de 1930 e como presidente constitucional, a partir de
1934), o Estado valeu-se das transformações sócio-econômicas correntes
como estratégias de marketing. Para isso, utilizou-se de suportes ideo-
lógicos, que possibilitaram maior coesão e integração nacional. Getúlio
Vargas ajustou as idéias modernistas do nacional-popular segundo seus
interesses e, inclusive, cedeu a intelectuais modernistas altos cargos do
Governo. Além disso, na concepção de Ortiz (1985, p. 41), os escritos de
Gilberto Freyre geraram uma importante ferramenta ideológica para o
Estado nacional. Segundo ele,
Gilberto Freyre reedita a temática racial, para constituí-la como se
fazia no passado, em objeto privilegiado de estudo, em chave para
a compreensão do Brasil. Porém, ele não vai mais considerá-la em
termos raciais, como faziam Euclides da Cunha ou Nina Rodrigues;
[...] ele se volta para o culturalismo de Boas. A passagem do con-
ceito de raça para o de cultura elimina uma série de dificuldades
colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço.
[...] [Em Casa Grande & Senzala] Gilberto Freyre transforma a nega-
tividade do mestiço em positividade, o que permite completar de-
finitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha
sendo desenhada.

Aparato burocrático e mídia: difusão e controle da cultura

Refletindo sobre a relação entre a política e a cultura no Brasil, Oli-


ven (1983) também retoma a formação da sociedade urbano-industrial
do país, apontando outros mecanismos de legitimação do Estado-Nação.
Getúlio Vargas usa como força legitimadora do Governo, por exemplo, a
criação de órgãos designados à divulgação da imagem institucional do
Estado e de seu governante: em 1931, foi criado o Departamento Oficial

49
Letícia Conceição Martins Cardoso

de Publicidade (DOP) e em 1934, o Departamento de Propaganda e Di-


fusão Cultural (DPDC), que atuava perante a imprensa oficial e era res-
ponsável pelos meios de comunicação de massa da época, como rádio e
cinema.

No Maranhão, esta estratégia foi amplamente utilizada, principal-


mente nos Governos de Roseana Sarney (1995-1998/1999-2002). Ao
observar a instituição dos órgãos de cultura no Estado, percebe-se isso.
Os primeiros órgãos estatais de cultura foram implantados no Governo
de Eugênio Barros (1951), criando 3 órgãos: Biblioteca Pública, Estação
Transmissora P.R.J. - 9 e Museu Histórico. José Sarney ampliou o Departa-
mento de Cultura, instituindo o Conselho Estadual de Cultura, em 1967.
O governador Pedro Neiva de Santana, em 1971, transformou o Departa-
mento de Cultura em Fundação Cultural do Maranhão (FUNC), composta
de seis órgãos: Rádio Timbira do Maranhão, Teatro Arthur Azevedo, Bi-
blioteca Pública Benedito Leite, Museu Histórico e Artístico do Maranhão,
Departamento de Cultura, Museu do Folclore e Arte Popular e Conselho
Estadual de Cultura. Em 1981, João Castelo implanta o Sistema Estadual
de Cultura, destinando recursos do orçamento exclusivamente para o se-
tor, que era vinculado à Secretaria de Educação. A Secretaria de Estado
de Cultura foi formada por nove órgãos nesse governo: Escola de Música
do Estado do Maranhão (EMEM), Museu Histórico de Alcântara, Departa-
mento de Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do Estado, Arqui-
vo Público do Estado do Maranhão (APEM), Teatro Arthur Azevedo, Mu-
seu Histórico e Artístico do Maranhão, com a incorporação da Cafua das
Mercês, Centro de Artes e Comunicações Visuais (CENARTE) e Centro de
Cultura Popular do Estado do Maranhão, que em 1982, passou a ser Cen-
tro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho (CCPDVF), em homenagem
ao folclorista, que morrera naquele ano.

Em 1995, no Governo de Roseana Sarney, percebe-se ampliação


significativa da Secretaria de Cultura. São 17 órgãos: Arquivo Público do
Estado do Maranhão (APEM), Biblioteca Pública Benedito Leite, Casa de
Cultura Josué Montello (CCJM) (integrada à Secretaria em 1989), Casa de
Cultura de Alcântara, Centro de Criatividade Odylo Costa Filho (Ccocf ),
antigo CENARTE, Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho (CCPD-
VF), Escola de Música do Estado do Maranhão – Lilah Lisboa (EMEM),
Espaço Cultural João do Vale, Teatro Arthur Azevedo, Centro de Artes
Cênicas do Maranhão (CACEM), Salão de Bens Culturais, Departamento

50
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

de Projetos Especiais, Departamento de Patrimônio Histórico, Artístico


e Paisagístico do Maranhão, Museu Histórico e Artístico do Maranhão
(MHAM), com os anexos: o Museu de Artes Visuais, o de Arte Sacra e a Ca-
fua das Mercês. Em 1999, a governadora extingue a Secretaria de Cultura
e cria a Fundação Cultural do Maranhão (FUNCMA), momento em que
se observa um incremento ainda maior dos mecanismos de legitimação,
através de órgãos de cultura. A FUNCMA dispôs de 22 unidades oficiais
de cultura, sendo mantidos os órgãos anteriores e criadas a Diretoria de
Ação e Difusão Cultural, a Morada das Artes, a Diretoria do Patrimônio
Cultural (coordenando os departamentos de patrimônio), Casa do Ma-
ranhão e Casa de Nhozinho (como anexos do CCPDVF).

Com a instauração da ditadura do Estado Novo (1937-1945), Getúlio


Vargas aumentou as formas de controle. A esfera cultural foi um dos se-
tores mais visados, pois diferentemente do mercado de bens materiais,
o de bens culturais “envolve uma dimensão simbólica que aponta para
problemas ideológicos, expressam uma aspiração, um elemento político
embutido no próprio produto veiculado” (ORTIZ, 1988, p.114).

O rádio era um desses elementos, que deveria estar sob a vigilância


do Governo. Esse meio de comunicação causou impacto na sociedade e
se popularizou, por diversas razões. Em primeiro lugar, era o meio mais
acessível para a maioria da população da época, pois, baseado numa
linguagem oral e coloquial, as camadas populares (sem instrução) não
precisavam saber ler para entender os conteúdos veiculados – diferen-
temente do jornal impresso. Além do mais, ao contrário do cinema e da
televisão (que demandaram maiores investimentos para se estabelecer),
o rádio teve uma rápida propagação e grande abrangência em todo o
território nacional, possibilitada por suas próprias características técni-
cas: ao adquirir aparelho portátil, do mais simples que fosse, qualquer
pessoa, nas diferentes regiões do país, poderia ter acesso às transmissões
radiofônicas e, além disso, compartilhar esse ato com outros indivíduos.

O Estado percebe, portanto, a necessidade de controlar esse pode-


roso meio de comunicação e, mais do que isso, de utilizar esse recurso
como um aliado. Como informa Oliven (1983), não é à toa que Getúlio
Vargas tenha sido o primeiro político latino-americano a utilizá-lo como
instrumento de propaganda. Frente aos avanços da comunicação de
massa e à possibilidade de contestação ao Estado através de seus pro-

51
Letícia Conceição Martins Cardoso

dutos culturais é criado, em 1939, o Departamento de Imprensa e Pro-


paganda (DIP), dirigido pelo jornalista e intelectual Lourival Flores, órgão
que foi o principal responsável pela legitimação de Vargas e do Estado
Novo perante a opinião pública.

Com maior amplitude de ação do que o Departamento Nacional de


Propaganda, o DIP tornou-se porta-voz autorizado do regime e o órgão
coercitivo máximo da liberdade de pensamento e expressão até 1945.
Passou a organizar homenagens a Vargas, tornando-se instrumento de
promoção pessoal do chefe do governo, de sua família e das autoridades
em geral32. Em certa medida, José Sarney reproduziu essa estratégia no
Maranhão, através da implantação do Sistema Mirante de Comunicação,
rede de comunicação de maior abrangência no Estado, que pertence à
família Sarney.

Atualmente, apesar da extinção do DIP e da censura, as práticas


que visam ao controle dos conteúdos no espaço público e à promoção
pessoal dos políticos estão assumindo um papel determinante no ce-
nário político contemporâneo. Além da transmissão excessiva de men-
sagens publicitárias e propagandísticas encomendadas pelo mercado, a
imagem pública dos políticos está cada vez mais vinculada às estratégias
de marketing. Quanto à promoção de eventos, sabe-se que quando re-
correm ao patrocínio do político ou são promovidos pelo Estado, acabam
divulgando a figura pessoal dos próprios governantes. Além disso, mui-
tos conglomerados midiáticos do Brasil estão concentrados nas mãos
de famílias políticas que se beneficiaram das concessões de rádio e TV
distribuídas pelo Regime Militar, o que ocorreu com a família Sarney, no
Maranhão – tema que abordarei adiante com mais atenção.

As estratégias desenvolvidas pelo DIP para cumprir seus objeti-


vos foram variadas: a criação da Hora do Brasil, programa veiculado até
hoje com a denominação Voz do Brasil, que divulga os atos e preceitos
do Estado, obrigatoriamente transmitido por todas as emissoras, cuja
programação continha uma parte falada e música popular. A produção
32
Entre outras funções o DIP deveria não apenas superintender todos os serviços de
radiodifusão no país, como também orientar o rádio brasileiro em suas atividades
culturais, sociais e políticas (OLIVEN, 1983, p. 50-51); centralizar e coordenar a
propaganda do governo e dos ministérios; exercer a censura do teatro, do cinema, das
atividades recreativas e esportivas, da literatura social e política e da imprensa; promover
e patrocinar manifestações cívicas e festas populares; organizar e dirigir o programa de
radiodifusão oficial do governo.

52
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

do Cinejornal Brasileiro, série de documentários de curta metragem de


exibição obrigatória antes das sessões de cinema, que fazia a crônica co-
tidiana da política nacional, recorrendo-se ao forte impacto dos recursos
audiovisuais. A uniformização das notícias pela Agência Nacional, que as
distribuía gratuitamente ou como matéria subvencionada, dificultava o
trabalho das empresas particulares, contribuindo para o monopólio das
informações pelo Estado. Outra estratégia era a promoção de concursos
de música pelo DIP, tendo como temática o nacionalismo, com prêmios e
pagamentos aos artistas, de onde surgiu a música Aquarela do Brasil, de
Ari Barroso. Oliven (1983, p. 51) fala com propriedade sobre o tema:
[...] nos concursos de músicas carnavalescas, nos desfiles de carna-
val, nas estações de rádio, nas gravadoras de discos, em tudo es-
tava a mão do DIP. [...] Mas além de promover na música popular
uma imagem ufanista do Brasil, o governo estava empenhado em
integrar o crescente proletariado à disciplina do trabalho fabril. A
prévia criação do Ministério do Trabalho e da legislação trabalhista,
bem como outras medidas já indicavam esta orientação. Um dos
alvos do DIP foi, portanto, reverter a tendência dos sambistas de
exaltar a malandragem, incentivando os compositores a enaltecer
o trabalho e a abandonar as referências elogiosas à malandragem.

O malandro33 tornou-se símbolo de identidade de uma população


de costumes ainda agrários, deslocada no novo espaço urbano e cons-
tituída por indivíduos que não se adaptaram à lógica e à rotina capita-
lista. Segundo Oliven (1983, p. 32), essa camada social era formada por
homens livres que, não sendo escravos nem senhores, não puderam
prescindir da ordem nem viver dentro dela. Desse entre-lugar34 (BHABHA,
2005) surge o anti-herói, que aos moldes de Macunaíma, rejeita e sati-
riza o trabalho. Figura, pois, inconveniente aos objetivos capitalistas de
industrialização do país, rechaçada da música popular no Estado Novo.

Mas a atuação do regime estadonovista na área cultural projetou-se


não só em direção às camadas populares, através da política de vigilân-
cia e adequação das manifestações da “cultura popular” pelo DIP. Houve,
ao mesmo tempo, ações voltadas para as elites intelectuais, que ficavam
33
Tema recorrente na cultura brasileira, a malandragem está associada à rejeição do trabalho.
Seu aparecimento corresponde à formação de uma sociedade urbano-industrial no Brasil,
permanecendo – apesar do reduzido espaço social que lhe sobrou – como símbolo de
identidade nacional. Ver mais em: OLIVEN, George Ruben. Violência e cultura no Brasil.
1983.
34
O entre-lugar (between) é o intersticial. Representa um estado fronteiriço, liminar,
marginal, paradoxal e ambíguo.

53
Letícia Conceição Martins Cardoso

a encargo do Ministério da Educação. O Ministério era assessorado por


intelectuais como Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade e
incentivava a pesquisa e a reflexão nesta área, o que resultou na implan-
tação de órgãos como a Universidade do Brasil, o Serviço Nacional de Te-
atro (1937), o Instituto Nacional do Livro (1937), o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – SPHAN (1937) 35 e o Conselho Nacional de
Cultura (1938).

Ortiz (1985, p. 80) confirma que no Estado Novo “o aparelho Esta-


tal encontra-se associado à expansão da rede das instituições culturais,
à criação de cursos de ensino superior, e também à elaboração de uma
ideologia da cultura brasileira”.

Nesta ocasião, o Estado brasileiro impulsiona a formação de uma


identidade nacional não apenas tentando “domesticar” ou “aprimorar” a
“cultura popular”, mas utilizando-se, também, da idéia de patrimônio36,
principalmente através do SPHAN. O que Corrêa (2003, p. 38) conside-
ra como resultado de um “processo de enquadramento da memória”, no
qual “o Estado Nacional seleciona – a partir de suas ideologias – os pon-
tos de referência que devem ser celebrados pela memória oficial”.

Neste sentido, o patrimônio nacional – oficial – é produto do tra-


balho de organização/classificação da memória nacional pelo Estado. A
memória nacional, por sua vez, não atende à diversidade dos grupos so-
ciais, à natureza múltipla e plural das memórias dos diferentes grupos.
De caráter uniformizador, a memória nacional corresponde, sim, a um
enquadramento das memórias coletivas fortemente constituídas, motivo
pelo qual o autor, citando Pollak, refere-se a ela como uma “memória en-
quadrada” (CORRÊA, 2003, p. 37).

Desse modo, a função dos serviços do patrimônio criados pelo Es-


tado brasileiro é, a priori, agenciar esses pontos de referência ou semi-
35
Rubim acredita que o SPHAN foi a instituição emblemática da política cultural no país até
a década de 1970. “Criado a partir de uma proposta encomendada por Gustavo Capanema
a Mário de Andrade, mas não plenamente aceita, o SPHAN acolheu modernistas [...]. O
Serviço, depois Instituto ou Secretaria, opta pela preservação do patrimônio de pedra
e cal, de cultura branca, de estética barroca e teor monumental. [...] circunscreve a área
de atuação, dilui possíveis polêmicas. [...] A opção elitista, com forte viés classista; a
não interação com as comunidades e públicos interessados nos sítios patrimoniais
preservados e mesmo o imobilismo, advindo desta estabilidade, impediram o SPHAN de
acompanhar os desenvolvimentos contemporâneos [...] (RUBIM, 2007, p.17).
36
Patrimônio está ligado à idéia de memória, da qual retira seu repertório de signos, sinais,
índices, como pontos de referência individuais ou coletivos (CORRÊA, 2003, p. 40).

54
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

óforos indicativos de identidades sociais dentro de um quadro organi-


zacional específico (CORRÊA, 2003), desenvolvendo estratégias, suportes
e instrumentos de legitimação dos bens considerados patrimônio pelo
Estado como, por exemplo, a instituição do Livro de Tombo37, em âmbito
estadual e federal.

Corrêa, no entanto, ressalta que apesar do peso desse Estado Cen-


tral no trabalho de enquadramento das memórias, esse processo envol-
ve, não só o poder de dominação estatal, mas também um jogo de dis-
putas e de negociações em torno do tecido social. Assim, analisa o autor,
“o jogo da memória é um jogo fortemente marcado por instituições que
trabalham para interesses específicos de grupos e associações” (CORRÊA,
2003 p. 38).

E, nesse contexto, assumem papel fundamental na seleção, con-


figuração e legitimação do “patrimônio da nação” e de um patrimônio
reconhecido pelo Estado as diversas instituições e os agentes que têm o
patrimônio e a memória coletiva como objeto de interesse, tais como os
Institutos Históricos e Geográficos, os Departamentos de Patrimônio, as
Universidades, os pesquisadores, os Museus, as Bibliotecas, o Instituto do
Livro.

Sendo assim, ao criar um aparelho burocrático responsável pela


memória nacional, com vistas a uma identidade nacional (unificada) e ao
convocar os intelectuais para pensar a gestão cultural e educacional do
país, Getúlio Vargas acabou legitimando o projeto político-pedagógico
do seu Governo, através do “discurso autorizado” (BOURDIEU, 1996a)
desses agentes. Para Rubim (2007, p. 18), a forte relação entre governos
autoritários e políticas culturais marcou de modo substantivo e proble-
mático, a implementação de políticas públicas de cultura no país, a que o
autor chama de uma “triste tradição”.

De fato, durante o breve intervalo democrático-liberal, 1946-64 as


políticas culturais do Estado brasileiro resumem-se às intervenções do
SPHAN, não atendendo à efervescência cultural do período nas mais di-
versas áreas: teatro, música, arquitetura, artes plásticas, cinema, dança
etc. As temáticas populares combatidas pelo Estado Novo voltam à cena
cultural, com a inclusão de elementos das culturas populares num mer-
cado mais amplo e sintonizado com o capitalismo mundial (o retorno da
37
Livro burocrático que serve como listagem dos “semióforos” ou “pontos de referência” das
classes consagradas pelo Estado, segundo Corrêa (2003, p. 39).

55
Letícia Conceição Martins Cardoso

malandragem no samba, por exemplo) (OLIVEN, 1983). Algumas ações


pontuais do período democrático foram registradas por Rubim (2007, p.
18):
A instalação do Ministério da Educação e Cultura, em 1953; a expan-
são das universidades públicas nacionais; a campanha de Defesa
do Folclore e a criação do Instituto Superior de estudos Brasileiros
(ISEB), órgão vinculado ao MEC. O ISEN dedica-se a estudos, pes-
quisas e reflexões sobre a realidade brasileira e será maior produtor
do ideário nacional-desenvolvimentista no país, uma verdadeira
‘fábrica de ideologias’(TOLEDO, 1977). [...] [o ISEB] terá um enorme
impacto no campo cultural, através da invenção de um imaginário
social que irá conformar o cenário político-cultural que perpassa o
pensamento e ação de governantes (Juscelino Kubitschek e Brasília
são os exemplos imediatamente lembrados) e as mentes e cora-
ções dos criadores e suas obras intelectuais, científicas e artísticas.

Neste período, instituições não estatais foram importantes para


a área cultural. Um bom exemplo são os Centros Populares de Cultura
da União Nacional dos Estudantes (CPCs da UNE). Criados em 1961 e fe-
chados em 1964, os CPCs movimentam o debate público sobre política
e cultura pela juventude brasileira. Neste contexto, a “cultura popular” é
discutida numa concepção revolucionária, na qual artistas e intelectuais,
oriundos principalmente de movimentos estudantis, tentam fazer da
arte popular um instrumento de revolução político-social. O projeto, en-
tretanto, fracassa, pois os líderes do movimento tentam pensar a “cultura
popular” pelo povo, sendo os próprios militantes políticos os produtores
dessa arte engajada, numa tentativa (frustrada) de politizar as classes po-
pulares.

“Fora da arte política não há arte popular”. A máxima dos CPCs re-
vela que para eles, a única forma verdadeira de cultura era a arte política,
que seria a única resposta possível ao processo de alienação. As demais
expressões culturais, fossem da elite, da indústria cultural ou das classes
populares, eram concebidas como alienadas ou falsas consciências, logo,
falsas culturas. Sob essa ótica, ao povo caberia apenas assimilar os valo-
res previamente pensados pelos intelectuais, “que levam cultura às mas-
sas” (ORTIZ, 1985, p. 73).

Apesar dos equívocos, o movimento serviu para aproximar intelec-


tuais e artistas da discussão sobre “cultura popular”, até então dispersa no
cenário nacional, e evidenciar a emergência de novos parâmetros / cate-

56
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

gorias / conceitos para analisar as culturas populares. Mas as instâncias


de repressão do período pós-64 inviabilizam a continuidade dos CPCs e
também do ISEB.

O Governo militar desenvolvimentista, propiciado pelo Golpe de


1964, atuou incisivamente no campo cultural no Brasil, “mais uma vez au-
toritarismo e políticas culturais vão estar associados” (RUBIM, 2007, p. 20).

Ao reorganizar a economia brasileira, inserindo o país no processo


de internacionalização do capital, a nova ordem econômica faz crescer
não só o mercado de bens materiais, como também impulsiona o merca-
do de bens culturais. A consolidação do mercado de bens culturais, com
a efetiva implantação de uma indústria cultural no país, foi, portanto, di-
retamente motivada por ações políticas.

O Regime Militar deu tratamento diferenciado à área cultural, já que


a cultura tem o poder de expressar valores e disposições contrários à von-
tade política dos que estão no poder. Um bom exemplo disso pode ser
ilustrado pelo Tropicalismo, movimento cultural de 1967, composto por
jovens artistas que criticavam a cultura e a realidade brasileiras da época.
Com uma linguagem verbal e musical diferente da então predominante,
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Betânia, Tom Zé, Os Mutan-
tes integravam o movimento. E inspirados nos ideais antropofágicos de
Oswald de Andrade, estes artistas uniam as inovações da Bossa Nova de
João Gilberto e Tom Jobim, às guitarras elétricas de The Beattles e ao re-
gionalismo de Luís Gonzaga e João do Vale.

O movimento tropicalista denunciou e ironizou as contradições do


país, que:
sob a égide da ditadura militar, acreditava em milagres da indus-
trialização e do capital estrangeiro, sonhava com o Wolksvagen
zero e com o Chacrinha pela televisão. Era um país de bananeiras,
de índios, de baião e de frevo; mas também de Brasília, de poluição
paulista, de movimento estudantil e operário, de dívida externa, de
rock, de chiclete e de Pelé. (CEREJA; MAGALHÃES; 2000, p. 512).

Decretado o Ato Institucional nº 5 – AI-5, que restringiu as liberda-


des políticas e de expressão e oficializou a censura, vários dos artistas tro-
picalistas, assim como estudantes e intelectuais que questionavam o sis-

57
Letícia Conceição Martins Cardoso

tema militar, foram duramente perseguidos pelo Regime, o que os levou


à prisão, ao exílio e, até, alguns foram assassinados.

Os militares transformaram (o mito da) “democracia racial”, funda-


mentado por Freyre em Casa Grande e Senzala, em peça-chave da sua
propaganda oficial, tachando artistas e militantes que insistiam em le-
vantar temas contrários aos interesses do Estado, como “impatrióticos” e
perigosos à segurança nacional. Assim, temáticas como a discriminação
racial e as reivindicações indigenistas, por exemplo, foram entendidas
pelos militares (e reproduzidas pelas elites) como afronta ao caráter na-
cional. Logo, fortemente censurados pelo Regime.

O incentivo no setor cultural pelo Estado foi, portanto, proporcio-


nal ao seu controle. E a (aparente) efervescência cultural foi, ao mesmo
tempo, estimulada e filtrada pelos generais, por um Estado “repressor e
incentivador” (ORTIZ, 1994, p.116).

Nunca houve tanta censura no país, também nunca houve tanta


produção e difusão de bens culturais, pelo menos em termos de quan-
tidade: um reflexo das declaradas instâncias repressoras (SNI – Serviço
Nacional de Informações; DOPS – Departamento de Ordem Política e
Social; Divisão de Censura e Diversões Públicas, órgão do Departamento
de Polícia Federal) e, ao mesmo tempo, de órgãos especialmente criados
para fomentar a cultura (Conselho Federal de Cultura, Instituto Nacional
do Cinema, EMBRAFILME, FUNARTE), estes últimos, executores de uma
censura sutil e disciplinadora, que orientou a produção cultural segundo
a Ideologia da Segurança Nacional38.
38
Em vigor durante o regime militar entre 1964 e 1985, a Ideologia da Segurança
Nacional, a pretexto de combater o comunismo, deu todo o poder às Forças
Armadas. Foi transplantada para o Brasil após a 2ª Guerra Mundial, quando
vários oficiais superiores foram treinados no National War College (centro de
treinamento do alto escalão do exército norte-americano). O objetivo principal
desta ideologia era garantir metas de segurança para implantar uma geo-
política para todo o Cone Sul do Continente Americano, capaz de bloquear o
perigo expansionista do comunismo internacional. A Ideologia da Doutrina de
Segurança Nacional e Desenvolvimento tinha como meta criar condições para,
através do fortalecimento do Estado, construir um modelo de desenvolvimento
econômico extremamente favorável à entrada do capital estrangeiro,
pretendendo implantar uma infra-estrutura capaz de transformar o país em
uma potência econômica. Para que isto pudesse ocorrer, era necessário manter
sob controle o crescimento dos movimentos sociais organizados que, cada vez
mais, ocupavam espaços no cenário político, criando um clima político-social
de grande instabilidade, ameaçando os interesses da classe dominante nacional.
Ver mais sobre o tema em O regime autoritário de 1964 - breve resenha, artigo do

58
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

O objetivo maior desta doutrina era a “integração nacional”, almeja-


da tanto pelos militares quanto pelos empresários da emergente comu-
nicação de massa. Enquanto os homens de farda propunham a unifica-
ção política das consciências, a integração simbólica do país; os homens
de negócio focalizavam a integração do mercado.

Os militares sabiam que essa aliança era necessária devido à influ-


ência dos meios de comunicação junto às massas, ao seu poder de criar
sentimentos coletivos. O Manual Básico da Escola Superior de Guerra
advertia: “bem utilizados pelas elites, constituir-se-ão em fator muito im-
portante para o aprimoramento dos componentes da Expressão Política;
utilizados tendenciosamente, podem gerar e incrementar inconformis-
mo” (ORTIZ, 1988, p. 116).

Por outro lado, os empresários precisavam das concessões de TV e


Rádio – que até hoje são cedidas exclusivamente pelo Governo Federal39
–, dos investimentos do Estado na esfera das telecomunicações (suporte
tecnológico, sistema de redes, entre outros) e dos incentivos na fabrica-
ção de papel e importação de tecnologias. Ao articularem seus interes-
ses com os da Ditadura Militar, os grandes grupos/empresários do setor
cultural são “apadrinhados” pelos Generais e colhem os lucros dos inves-
timentos, passando então a apoiar/difundir o pensamento autoritário e
abafar ou, pelo menos, não divulgar as vozes dissonantes, contrárias ao
regime (foi assim com a TV Globo, Sistema Globo de Rádio, TV Tupi, Edi-
tora Abril, Editora Saraiva, Cruzeiro entre outras grandes empresas midi-
áticas).

Assim, a implantação da televisão no Brasil se deu por conta do Es-


tado, que efetivamente instalou a infraestrutura tecnológica do sistema
de telecomunicações. Porém, salienta Ortiz (1994, p. 88), “o Estado reser-
va para si o controle último dos serviços de telecomunicação. Ao se defi-
nir como concessionário único e transferir para a jurisdição federal o po-
der de concessão, ele concentra poder e facilita o controle sobre as redes
nacionais de televisão” e dessa forma prolonga a Ideologia da Segurança
Nacional “enquanto controle ideológico e político”.
cientista político João Rego. Disponível em: http://midiaindependente.org/pt/
blue/2004/03/27.
39
Art. 223, da CF 1988: “Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar
concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e
de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas
privado, público e estatal”.

59
Letícia Conceição Martins Cardoso

A indústria da informação e da cultura impulsionou esse projeto na-


cionalista do Regime, na medida em que este promoveu o esvaziamento
político e o controle tecnoburocrático dos meios de difusão de massa.

Como observa Rubim (2007, p. 20), os intelectuais que apoiavam


o Regime, instalados no então instituído Conselho Federal de Cultura
(1966) demonstraram preocupação com a penetração da mídia e seu im-
pacto sobre as culturas regionais, concebidas numa perspectiva conser-
vadora. Então, através do Conselho, o Regime Militar estimulou a instala-
ção das secretarias estaduais de cultura no país.

O órgão estatal responsável pela cultura no Maranhão nesse perí-


odo era o Departamento de Cultura ligado à Secretaria de Estado dos
Negócios de Educação e Cultura (Ver Apêndice A). Mas o governador
José Sarney incrementa a gestão cultural criando um Conselho de Cul-
tura, como fizeram os militares. Em 1967, institui o Conselho Estadual de
Cultura, tendo como principal atribuição “formular a política cultural do
Estado” (Lei Estadual 2791/67). O Conselho é basicamente composto por
intelectuais e artistas locais oriundos da Academia Maranhense de Letras
(AML), assim como José Sarney. É um órgão, portanto, atrelado ao poder
público. E a AML, como observa Albernaz (2004), teve poder de decisão
nas ações institucionais do Estado, influenciando, por exemplo, para a
criação do Museu Histórico e Artístico do Maranhão.

O controle do Regime Militar sobre os jornais impressos sempre fora


incerto, devido à representatividade político-econômica da imprensa
escrita, que frequentemente patrocinava causas ou interesses divergen-
tes. Mas, com os meios eletrônicos, a televisão em especial, a situação
foi diferente, já que o Estado deteve o monopólio das telecomunicações,
sendo a exploração radiofônica privada concedida a título precário pelo
chefe do Executivo. Para Muniz Sodré (1984, p. 144 apud MICELI, 1984),
as concessões constituem “mais uma fonte de poder de cooptação ou de
clientelismo do Estado: os beneficiados tendem a ser grupos alinhados
com as posições governamentais”. Desse modo, conclui o autor, “a coop-
tação dos mass media no Brasil tem-se associado à cooptação burocrática
exercida pelo Estado. Os autoritarismos empresariais e estatais ajustam-
se sem maiores arranhões” (SODRÉ, 1984, p. 144 apud MICELI, 1984).

60
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Uma boa representação dessa parceria, afirma Bucci, pode ser en-
contrada no tom oficial que adquiriu o telejornalismo: “Para o Estado não
bastava ter a Voz do Brasil. Era preciso ter na TV o Jornal Nacional (que foi
ao ar pela primeira vez em 1º de setembro de 1969), e era preciso que
ele fosse produto de uma emissora privada, representante da sociedade
civil” (BUCCI, 1996, p. 19). Entra em cena a Rede Globo.

Em dezembro de 1957, o fundador da Rede Globo, Roberto Mari-


nho, recebeu do presidente Juscelino Kubitscheck uma concessão que só
foi utilizada em 1962. Nesse ano houve negociações com o grupo multi-
mídia Time-Life, grupo estrangeiro ligado à família Civita (que fugira do
fascismo de Mussolini vindo para o Brasil onde criou o poderoso grupo
editorial Abril). A TV Globo foi inaugurada em abril de 1965, após a inter-
venção expressa do então presidente marechal Castelo Branco para fe-
char o acordo Globo/Time-Life, no qual o grupo estrangeiro investiu cinco
milhões de dólares na jovem emissora.

Uma comissão parlamentar de inquérito foi criada para investigar o


acordo. A conclusão da CPI, aprovada pelo Congresso Nacional em 1966,
foi a de que os negócios entre as empresas eram inconstitucionais e le-
sivos ao Brasil, pois criava assim sociedade com um grupo estrangeiro,
o que era (e ainda é) vetado pela Constituição Federal40. Com o relatório
final do Procurador da República a respeito do caso, foram estipulados
90 dias a Roberto Marinho para regularizar a situação, mas ele recorreu
ao presidente Castelo Branco: o recurso teve efeito suspensivo e o presi-
dente garantiu a impunidade de Roberto Marinho.

Em 1969, a Globo finalmente compra as ações que o grupo Time-


Life detinha na sociedade e estabelece uma rede nacional, com produção
centralizada e distribuição de programas em todo país. No artigo “Eu vi
o Brasil na TV”, Maria Rita Kerhl (1986) diz que a Rede Globo se colocou
como porta-voz oficioso do Governo e deu sustentação ideológica ao
40
A CF de 1988, dispõe em seu Art. 222: “A propriedade de empresa jornalística
e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou
naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sede no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional
nº 36, de 2002). § 1º: Em qualquer caso, pelo menos setenta por cento do capital
total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e
de sons e imagens deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos
ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão
das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação.

61
Letícia Conceição Martins Cardoso

“milagre brasileiro” (construído sobre uma taxa efêmera de crescimento,


elevado a um custo social de concentração de rendas).

Foram amplamente utilizados os recursos inovadores e incisivos da


emissora, com propagandas e conteúdos que divulgavam mensagens
ufanistas e de otimismo sobre o “país do futuro”, o “Brasil potência”. O
clima nacionalista foi impulsionado (e explorado) pela mídia com a con-
quista da terceira Copa do Mundo de Futebol, em 1970, no México. Cé-
lebres slogans como “Brasil. Ame-o ou Deixe-o” e “Ninguém Mais Segura
Esse País” legitimavam as ações do Regime Militar e conclamavam o povo
a apoiá-lo. O progresso e o desenvolvimento do país dependiam de “cada
um fazer a sua parte”.

Para Bucci, as estratégias políticas veiculadas na “telinha” durante


o Regime surtiram efeito porque a televisão é muito mais do que um
aglomerado de produtos descartáveis destinados ao entretenimento ou
consumo da massa. “No Brasil, ela consiste num sistema complexo que
fornece o código pelo qual os brasileiros se reconhecem brasileiros. A TV
domina o espaço público de tal maneira que sem ela, ou sem a represen-
tação que ela propõe do país, torna-se quase impossível o entendimento
nacional” (BUCCI, 1986, p. 9).

Bumba-meu-boi como símbolo de identidade

O Governo de José Sarney no Maranhão (1966-70) desenvolveu es-


tratégias similares às políticas culturais dos governos autoritários na esfe-
ra cultural.

Em primeiro lugar, José Sarney constituiu a sua equipe de gover-


no convidando os integrantes dos movimentos literários dos quais par-
ticipava para compor o aparato burocrático do Estado, consagrando-se
assim tanto no campo político quanto no intelectual. Para a gestão cul-
tural, instituiu o folclorista Domingos Vieira Filho como diretor do Depar-
tamento de Cultura; o poeta Bandeira Tribuzi como membro do Grupo
de Trabalho de Assessoria e Planejamento; e o escritor Reginaldo Teles,
como diretor da Imprensa Oficial.

E, além de ter ao seu lado o Conselho Estadual de Cultura, o gover-


nador, intelectual e apreciador da cultura interveio contra a perseguição
dos grupos culturais populares. Diz dona Zelinda:

62
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

José Sarney já conhecia a cultura popular e com o poder que ele ti-
nha enquanto governador tentou mudar muita coisa. Mas, por mais
que dissesse que não era pra prender, nem proibir as brincadeiras,
elas ainda eram vistas como coisa de pobre, de caboclo. É aí que
a cultura popular começa a ser vista no Estado “com bons olhos” e
tolerada na capital maranhense.

O marco apontado por Dona Zelinda Lima (e por muitos atores cul-
turais) como fundamental nesse processo, em São Luís, dá-se quando
José Sarney chama durante o seu governo, pela primeira vez, o bumba-
meu-boi e outras manifestações populares – que até então ficavam res-
tritas às zonas rurais e bairros periféricos da cidade, como o Bairro do
João Paulo – para dançar no terraço do Palácio dos Leões41:
Naquela época, o governador Sarney estava realizando muitas
obras no Estado, como a construção do porto do Itaqui. Veio uma
comitiva pra visitar o Palácio, Odylo Costa Filho, uma série de pesso-
as da literatura e gente importante do país, jornalistas... Então, para
comemorar e divulgar o fato na imprensa o governador me cha-
mou pra organizar um cardápio com comidas típicas, pra selecio-
nar uma cozinheira que fizesse um cuxá bem feito... Aí me lembrei
e disse: ‘olha, governador, está aí uma oportunidade de acabar com
a perseguição ao Boi. O senhor chama pra brincar aqui no palácio,
que todo mundo vai achar maravilhoso!’ E assim foi feito. Ao invés
de oferecer um banquete daqueles, como era costume, chamamos
não só o boi, mas o Tambor de Mina, do Jorge Babalaô, que abriu a
festa, depois se apresentou o tambor de crioula, e vários bois, como
o Boi de João Câncio, Boi de seu Lauro e Boi de Newton. Os donos
dos bois nesse tempo já eram compadres do governador [...] Foi um
choque pra sociedade! Aquilo foi um escândalo na cidade, as pes-
soas comentavam muito, e a imprensa ficou se perguntando, ‘Boi e
tambor no palácio, como é que pode?’

Dona Zelinda não menciona a data do ocorrido, atribuindo um ca-


ráter quase mítico à narrativa. Ledy Albernaz (2004), em sua tese de dou-
torado “O ‘urrou’ do Boi em Atenas: instituições, experiências culturais e
identidade no Maranhão”, também teve a oportunidade de ouvir o relato
de Dona Zelinda. De acordo com a pesquisadora, Dona Zelinda faz esta
narrativa situando-a temporalmente apenas através do governante no
poder, sem, no entanto, citar um tempo cronológico. “É como se o go-
vernante, por ter um registro temporal oficial, estivesse ali para demarcar
um antes e um depois” (ALBERNAZ, 2004, p. 45).

41
Sede do Poder Executivo no Maranhão.

63
Letícia Conceição Martins Cardoso

As brincadeiras começaram a compor o espaço oficial e, já enqua-


dradas na lógica higienizadora das elites, passaram a brincar nos bairros
nobres da capital. A leitura de Dona Zelinda sobre a aceitação dos grupos
populares na sociedade maranhense aponta o governador José Sarney
como principal responsável pela proteção e valorização das culturas po-
pulares no Maranhão:
[...] o governo proibiu a perseguição, criou órgãos para pensar uma
política cultural para o Estado e teve início um processo fantástico de
auto-valorização e auto-estima do povo maranhense, que se desco-
briu detentor de um saber e de uma cultura popular fenomenais”

Este processo de “auto-valorização” e “auto-estima” relatado por


Dona Zelinda como uma assimilação pacífica da sociedade maranhense,
provocada pelo governante, é discutida por Albernaz (2004, p. 49):
‘o boi dançando no palácio’, possibilita aos ludovicenses, cum-
prirem uma missão civilizatória, ‘amansar e domar os incultos’, de
acordo com a auto-definição de atenienses. Na própria fala de Dona
Zelinda as manifestações de bumba boi são descritas como violen-
tas e de certa forma incivilizadas e, por isso, eram rejeitadas pelos
intelectuais e parte da população de São Luís. Dessa forma justifi-
ca também o processo ‘civilizador’ onde se investe muita paciência
para se conseguir alterar “uma mentalidade” [...]. Dessa maneira pa-
rece que se cumpre a
missão de tornar o boi aceitável, símbolo através do qual o mara-
nhense poderia se definir internamente e externamente, sem, en-
tretanto, negar a percepção de ser também ateniense. O passo se-
guinte era tornar admissível a manifestação como ela é, posto que
seus realizadores já estavam prontos para se comportar usando das
“boas maneiras” instituídas pela civilização. À solução prática pare-
ce que se fez necessário o alargamento do sentido de identidade
maranhense, e o boi dançando para as autoridades poderia cum-
prir esta função. E assim, as dificuldades dos dois lados – aqueles
que se viam atenienses e aqueles que se percebiam “boieros”– são
solucionadas pela atitude civilizatória de Atenas [metáfora que se
refere a uma São Luís erudita].

E, se por um lado, o episódio representou uma conquista para os


grupos e uma abertura para sua aceitação e visibilidade na capital, por
outro lado, significou uma conquista também para José Sarney, que pas-
sou a ser visto como principal responsável por essa “auto-valorização e
auto-estima do povo maranhense”, que só conseguiu enxergar e reco-
nhecer sua cultura guiado/alertado pelo governante.

64
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Dona Zelinda Lima reproduz essa crença em diversas oportunida-


des, como no artigo que escreveu sobre a vida de Jorge Babalaô, para a
Comissão Maranhense de Folclore:
Assim aconteceu: abriram-se as portas do palácio e em grande esti-
lo apresentaram-se Jorge Babalaô e suas dançantes, com suas ves-
tes suntuosas e seus rituais, seguidos do Bumba-meu-boi da Madre
Deus e o de João Câncio/Apolônio Melônio [...]. Foi, pois, ao som
das rezas do pai-de-santo e das matracas do Boi, da exibição de
suas penas e canutilhos, que se deu a ascensão do folclore mara-
nhense... E logo toda a sociedade elitista aderiu, pressurosamente,
ao gosto do governador. Franqueado o palácio à entrada do povo,
toda a gente, que antes não suportava aquelas manifestações gros-
seiras, passou a apreciá-las, mesmo porque, agora elas participa-
vam dos festejos oficiais, representantes legítimas da cultura po-
pular: bumbas, Mina, cantadores, artesãos, culinária, restaurando o
prestígio de pratos regionais como arroz-de-cuxá, quando o jornal
só recomendava cardápios franceses. Até então todas as manifesta-
ções populares consideradas coisa de preto e de pobre passaram,
de repente, a ser valorizadas, com certa desconfiança, é certo, mas
aceitas, porque eram do agrado do governador. Assim a elite mara-
nhense descobriu a cultura popular do Maranhão. Quase que pelos
olhos alheios. (LIMA, 2003, p.3 apud COMISSÃO MARANHENSE DE
FOLCORE, 2003).

José Sarney acabou adquirindo capital simbólico e reforçando sua


legitimidade na esfera cultural com suas ações de “proteção”, “incentivo”
e “valorização” das culturas populares, o que facilitou a apropriação ou
cooptação desses grupos culturais pelo governador. É assim que o Esta-
do passa a modificar o processo produtivo dos fenômenos culturais. Na
medida em que o apoio oficial reconhece e, portanto, seduz os atores
culturais, consegue abrandar ou desmotivar seu caráter de crítica e con-
testação social.

O bumba-meu-boi, por exemplo, passa a ser apresentado como


produto cultural do Estado, inserido na programação dos atrativos turís-
ticos do Maranhão, através de ações do Departamento Estadual de Turis-
mo (órgão chefiado por Zelinda Lima, que também fazia as vezes de uma
secretaria de cultura).

O pagamento dos grupos consistia em alguns trocados, cachaça e


convites para outras apresentações. Mas, apesar de não haver recurso fi-
nanceiro regular, que possibilitasse a sobrevivência do grupo, José Sar-

65
Letícia Conceição Martins Cardoso

ney passou a ser considerado padrinho de diversas manifestações, sendo


elogiado em várias toadas da época. Como se pode ver na seguinte toa-
da do Boi de Laurentino:

Deus conserve Zé Sarney


no palácio dos leão,
que tire seu tempo em paz,
livre das pressiguição
Jesus tá lá no céu,
na terra Senhor São João (LIMA, 1982, p.7)

Há, então, uma ressemantização dos conteúdos que faziam parte do


processo criativo dos folguedos a partir da “reelaboração simbólica das
suas relações sociais” (CANCLINI, 1983, p. 43), ou seja, as novas relações
com a política (e o novo status propiciado por ela) geram novas práticas,
estratégias e novos sentidos na (e para a) cultura.

Ao divulgar o Bumba-boi como símbolo de identidade regional,


José Sarney ajusta a política cultural do Estado-nação – que manipulou
traços étnicos para convertê-los em símbolos nacionais – para a esfera
regional. Assim, processo análogo ao que ocorreu com os fenômenos do
futebol, do samba, do carnaval e com a feijoada no Brasil, acontece com
o Bumba-meu-boi no Maranhão. Nestas situações, o poder político tende
a mascarar as contradições e os conflitos presentes no elemento étnico,
que ganha status de cultura nacional e eufemiza o seu status étnico origi-
nário (FRY, 1982).

Na década de 70, o bumba-meu-boi começa a ser exportado como


representante, por excelência, da “cultura popular maranhense”, por ini-
ciativa do Governo do Estado. Estratégia que gerou uma série de mudan-
ças nas relações do brincante com o folguedo, nas formas de apresentá-
lo ao público, enfim, em todo seu universo simbólico. Como identifica
Maria Michol de Carvalho (1995, p.72), através de depoimentos de atores
designados por ela como “gente que faz o boi”:
Fomos levados pelo turismo, pelos órgãos do governo, por pesso-
as ligadas ao folclore pra mostrar lá fora o que o Maranhão tem de
bom, de bonito. E nunca decepcionamo, fizemo sucesso em tudo,
pois em nosso grupo a gente faz questão de se apresentar bem,
com as roupas assim da mesma cor, os chapéus de pena muito en-
feitado [...], dançando direitinho. Nós queremos também se desta-

66
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

car pelo [...] cumprimento de horário, das normas [...] Hoje tem que
ser assim, a gente tem mais responsabilidade que dantes, quando
se brincava boi só por devoção, por gosto e por prazer.

O agente cultural lida com o fenômeno de modo diferente, ao passo


em que assume compromissos perante o Governo, tanto para propagar a
cultura local quanto para divulgar a imagem do político que o exportou.
As culturas populares começam então a ganhar status de mercadoria. E o
bumba-meu-boi, originário das classes baixas e de periferia, perseguido
e proibido, tratado como “caso de polícia”, acabou sendo apropriado por
políticos e pelas elites, passando a ser aceito e veiculado como autênti-
co símbolo da cultura estadual, representante máximo de uma “cultura
popular” (categoria socialmente criada; usada aqui no singular mesmo,
para destacar seu caráter universalizante). E, num processo muito pare-
cido com o que ocorreu com o samba – antes restrito às classes popula-
res e circunscrito aos morros, apropriado pelas elites e transformado em
símbolo de identidade nacional pelos militares –, o bumba-meu-boi foi
introduzido em outro circuito no qual seus elementos foram utilizados a
ponto de modificar seu significado inicial. Tornou-se símbolo de identi-
dade do Estado do Maranhão ao ser incorporado pelo mercado de bens
simbólicos, incentivado por ações estatais.

A política cultural desenvolvida nesses diferentes recortes históri-


cos trata o povo como incapaz de pensar por si, espécie de matéria bruta
a ser moldada (ou melhor, adestrada) pelo saber das elites intelectuais.
Então, apesar de aludido como destinatário do governo, o povo é con-
vocado para aderir às ações estatais, mas não é reconhecido genuina-
mente como fonte e justificativa desses atos, pois não tem o direito de
reiterar ou rejeitar tais decisões. Esse modelo estatista de gestão cultural
exige que as iniciativas populares se subordinem aos interesses do Esta-
do, o que desqualifica as tentativas independentes de organização das
massas (CANCLINI, 1988). Neste sentido, essa gestão da cultura não
pode ser entendida como uma política pública cultural42, mas no máximo
como uma política estatal de cultura.

Anos mais tarde, ainda se percebe a gratidão ou a retribuição à dá-


diva (MAUSS, 2003) dos agentes culturais em relação ao seu primeiro me-

42
A noção de política cultural assumida para a análise evoca as intervenções não-estatais
também como políticas culturais, portanto, não se vincula somente ao Estado. Mais
adiante, discuto o conceito de política cultural com atenção.

67
Letícia Conceição Martins Cardoso

cenas e à família Sarney em geral, como se percebe em diversas toadas


da atualidade.
De volta ao antigo santuário
O glorioso São José de Ribamar
Santo milagroso
Inspirador de muita fé
Por ser “Santo do povão”
Tornou-se Padroeiro do Maranhão
Em sinal de gratidão
A sua cidade passou
Por uma grande transformação
Recriando os ares de fé
Com a volta do Santuário de São José

Agradecemos a nossa Governadora


Com muito carinho, tudo ela preparou
Hoje tudo é festa
Tudo é devoção
Reconstruída a igreja do “Padroeiro da Multidão”
(João Chiador e Itaney, Bumba-meu-boi de Ribamar, 2002)
O tom crítico-satírico que embalava as toadas cedeu lugar aos ver-
sos elogiosos, num processo de ressignificação. O preço para ser símbolo
de identidade do “estado” foi não contestar o “Estado”. Para alguns auto-
res, este processo é entendido como uma forma de dominação. Citando
Menezes, Oliven (1983, p. 62) sugere a existência de três momentos no
processo de dominação cultural:
No primeiro, o da rejeição, a cultura popular é vista como “delito”
ou “desordem” e contra ela são acionados os aparelhos repressivos
como, por exemplo, a polícia. No segundo, o da domesticação, o
aparelho científico das classes dominantes é utilizado para separar
os componentes da cultura popular considerados perigosos da-
queles considerados apenas figurativos ou exóticos. Esta é a fase
da dominação simbólica que se caracteriza pelos registros, con-
ceptualizações, tipologias, interpretações, teorias e modelos. No
terceiro momento, o da recuperação, a ação simultânea dos apa-
relhos ideológicos e da indústria cultural transforma as expressões
culturais das classes dominadas em itens codificados de museus e

68
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

exposições, em mercadoria exótica para consumo turístico, em ins-


trumentos ideológicos de inculcação pedagógica (grifos do autor).

Entretanto, se por um lado o político tenta cooptar a manifestação


cultural e utilizá-la para consagrar sua imagem política, por outro lado,
os grupos culturais estão se adaptando, cada vez mais, a esse contexto,
desenvolvendo novas estratégias e traduzindo suas práticas para a de-
manda das novas realidades sociais.

Como bem nos adverte Bourdieu (2003, p. 12), “o campo de produ-


ção simbólica é um microcosmo da luta simbólica entre as classes: é ao
servirem os seus interesses na luta interna do campo de produção (e só
nessa medida), que os produtores servem os interesses dos grupos ex-
teriores ao campo”. Se por um lado os setores dominantes, cujo poder
se baseia no capital econômico, legitimam uma dominação através da
produção simbólica – controlando os meios de comunicação, utilizando-
se do marketing, apropriando-se dos bens/manifestações culturais; por
outro lado, a partir das relações com a política, os agentes culturais vão
adquirindo, assimilando ou criando novas técnicas para entrar ou perma-
necer no jogo e garantir seu espaço nessa luta simbólica, a fim de tam-
bém tentar impor uma “definição do mundo social mais conforme aos
seus interesses” (BOURDIEU, 2003, p. 11).

Esse processo de ressignificação se dá de forma diferente com os di-


versos atores culturais. Alguns desenvolvem mecanismos de visibilidade
midiática e aliam-se a um padrinho político que possa facilitar seu trânsi-
to em outras esferas sociais; outros surgem por uma “demanda” política43.
Há aqueles que vêem sua arte como negócio, outros como brincadeira,
ou ainda, as duas coisas juntas. Há os que põem a performance em pri-
meiro plano e são considerados por pesquisadores da área44 como estan-
dartizados, para-folclóricos ou híbridos, grupos que têm como principal
referência o mercado e a indústria cultural. Em contraposição, há os que
acionam no seu processo de identificação elementos que afirmam como
autênticos ou tradicionais45 no confronto com os demais. Enfim, são diver-
43
Há grupos culturais que são inicialmente criados por políticos de determinados bairros ou
comunidades. Cf. CARDOSO, 2004.
44
Ver mais sobre as distinções entre os grupos culturais no Maranhão em Mídia e
experiência estética: o caso do bumba-meu-boi, de Francisca Ester de Sá Marques; e Matracas
que desafiam o tempo: é o bumba-boi do Maranhão: um estudo da tradição / modernidade na
“cultura popular”, de Maria Michol Pinho de Carvalho.
45
Para Adriano Duarte Rodrigues (1994) o tradicionalismo é encontrado em todas as
épocas, mas predomina sempre que os valores da tradição entram em crise, ameaçando a

69
Letícia Conceição Martins Cardoso

sos os meios encontrados pelos agentes em busca de acumular capital


simbólico a fim de legitimar-se cada vez mais. Como destaca Bourdieu
(1996a, p. 82), essa é uma luta diária e em permanente (re)atualização:
As diferentes estratégias, mais ou menos ritualizadas, da luta sim-
bólica de todos os dias, assim como os grandes rituais coletivos de
nomeação, ou melhor ainda, os enfrentamentos de visões e de pre-
visões da luta propriamente política, encerram uma certa preten-
são à autoridade simbólica enquanto poder socialmente reconheci-
do de impor uma certa visão do mundo social, ou seja, das divisões
do mundo social.

Esse enfrentamento, no entanto, dá-se através de uma interação


dialética entre os atores, que é elaborada, mantida e dinamizada a partir
de negociações com os demais grupos sociais.

É verdade que o setor econômico ganha papel de destaque nesse


jogo e, geralmente, no Brasil, o grupo que dita as regras do plano econô-
mico também está aliado ao setor político ou inserido nele, o que reflete
uma tendência à concentração desse poder simbólico limitada a poucos
grupos sociais, usualmente chamados de elite, que detém o poder eco-
nômico e político.

Mas, também é verdade que os demais segmentos sociais po-


dem adquirir poder simbólico ou lutar por ele, utilizando-se de meca-
nismos gerados pelo próprio capitalismo (indústria cultural, meios de
comunicação, marketing, etc.), que são normalmente manuseados pela
elite. Nessa disputa, portanto, a mídia aparece como agente importante,
contribuindo, paradoxalmente, para concentrar e desconcentrar poder.
A “sociedade em redes” (CASTELLS, 1999), o ambiente de “televivências”
(RUBIM, 2003) que reveste a contemporaneidade já não permite falar
apenas em manipulação ou dominação das massas através da mídia pela
elite.

O “Mecenas” na Presidência da República

A morte de Tancredo Neves


em São Paulo foi um horror
passou na televisão
e todo povo chorou
legitimidade das vantagens adquiridas e pondo sistematicamente em causa os interesses
dos seus beneficiários.

70
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Zé Sarney vai fazer


aquilo que o homem deixou (CARVALHO, 1995, p. 211)

A toada do Bumba-meu-boi de Apolônio, dos anos 1980, relata e


exalta a chegada de José Sarney à presidência da República, em 1985.
José Sarney foi eleito vice-presidente pelo Colégio Eleitoral, em janeiro
de 1985, na chapa de Tancredo Neves (PMDB), que não chegou a tomar
posse da presidência. Com o falecimento de Tancredo Neves, Sarney foi
investido oficialmente no cargo de presidente e governou até 1990, um
ano a mais que o previsto na carta-compromisso da Aliança Democráti-
ca, que o levou ao cargo.

A expressão “Nova República”, criada pelo deputado Ulysses Guima-


rães (PMDB), para designar o plano de governo da Aliança Democrática,
foi assumida por José Sarney em sua administração. Em 10 de maio de
1985, uma Emenda Constitucional restabeleceu as eleições diretas para
as prefeituras das cidades consideradas pelo Regime Militar como áre-
as de segurança nacional. Também concedeu o direito de voto aos anal-
fabetos e aos jovens maiores de 16 anos, além de extinguir a fidelida-
de partidária e abrandar as exigências para registro de novos partidos.
A mais importante medida dessa Emenda, todavia, foi a convocação de
uma nova constituinte, que viria a publicar a Constituição Federal de
1988.

O processo de elaboração da nova Constituição foi alvo de disputas


políticas: os setores mais progressistas defendiam a formação da Assem-
bléia de representantes, eleitos pelos cidadãos, com a função exclusiva
de elaborar a nova Constituição, modalidade que teria maior represen-
tatividade e soberania para elaborar a nova Carta, em termos democrá-
ticos. Mas, prevaleceu o Congresso Constituinte46, isto é, os deputados
federais e senadores eleitos em novembro de 1986 acumularam as fun-
ções de congressistas e de constituintes, excluindo-se, portanto, a direta
participação da sociedade.

46
O grupo majoritário na Constituinte era o Centro Democrático, também conhecido
como “Centrão”, formado por uma parcela dos parlamentares do PMDB, pelo PFL, PDS
e PTB, além de outros partidos menores. O “Centrão”, apoiado pelo poder Executivo e
por representantes das tendências mais conservadoras da sociedade, conseguiu influir
decisivamente na regulamentação dos trabalhos da Constituinte e no resultado de
votações importantes, como a duração do mandato de Sarney (estendido para cinco
anos), a questão da reforma agrária e o papel das Forças Armadas.

71
Letícia Conceição Martins Cardoso

No entanto, grupos de pressão organizados para influenciar as de-


cisões dos constituintes (os conhecidos lobbies), defenderam interesses
de determinados setores da sociedade no decorrer do processo. E o Con-
gresso também recebeu inúmeras propostas, formuladas pelos cidadãos
brasileiros, apresentadas por meio de entidades associativas e subscritas
por um mínimo de 30.000 assinaturas (<www.brasil.gov.br>).

Os trabalhos dos constituintes se estenderam por dezoito meses.


Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a atual Constituição brasileira,
que trouxe avanços para a área cultural no campo institucional, como por
exemplo, a inclusão dos direitos culturais como um direito fundamental
da pessoa humana.

Os direitos culturais já eram parte integrante dos direitos humanos


quando foi implantada a Constituição de 1988, constantes no artigo 27
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e nos artigos 13
e 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966).

As pressões internacionais, especialmente evidenciadas pela UNES-


CO (Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura), contri-
buíram no âmbito das políticas públicas nacionais não só para a implan-
tação do Ministério da Cultura, como também para a positivação dos
direitos culturais pela Constituição brasileira. O organismo internacional
realizou diversas conferências no país e no exterior, destacando o papel
da cultura como fator de “desenvolvimento” das nações e culminando
na promoção da “Década mundial do desenvolvimento cultural (1988-
1997)” (BARBALHO, 2005).

Os movimentos sociais da época também contribuíram para o re-


conhecimento de alguns direitos culturais pela Carta Magna. Dentre
muitos, destaco os movimentos liderados pela União Nacional dos Es-
tudantes (UNE), que mobilizou política e culturalmente a juventude uni-
versitária brasileira desde a década de 1960 (CPCs, Comitê de Defesa dos
Presos Políticos, Diretas Já, passeatas estudantis, etc.); a atuação dos inte-
lectuais oriundos do ISEB, do IPHAN, da Comissão Nacional de Folclore e
suas filiais em nível regional; os movimentos étnicos, como o negro (Ins-
tituto de Pesquisa e Cultura Negra, no Rio de Janeiro; Movimento Negro
Unificado Contra a Discriminação Racial – MNU, em São Paulo) e o indi-
genista (União das Nações Indígenas, Aliança dos Povos da Floresta etc.);

72
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

os movimentos religiosos (afro-brasileiros, por exemplo) e movimentos


regionalistas (Movimento Cultural Popular, em Pernambuco, por exem-
plo).

Além disso, as novas expressões culturais impulsionadas pelos


meios de comunicação de massa (cinema, televisão, rádio, indústria fo-
nográfica) deram visibilidade à cultura como elemento indispensável
numa sociedade democrática e de consumo, algo que não poderia mais
ser reprimido, controlado, censurado pelo Estado, merecendo, portanto,
ser um direito fundamental do cidadão e do consumidor.

a década de 1980, surgiram discussões teóricas mostrando que a


participação da cultura na sociedade deveria ser revista e sair da “margi-
nalidade”. Jadir Rostoldo (2006), em seu artigo Expressões culturais e so-
ciedade: o caso do Brasil nos anos 80, explica a sociedade brasileira desse
período analisando expressões da música e do cinema, baseando-se em
autores como Featherstone (1995) e Paiva (1987). Contextualiza assim:
A cultura saiu do campo do excêntrico e marginal para se firmar
como um elemento importante de reconhecimento das socieda-
des. Segundo Paiva (1987), a sociedade brasileira dos oitenta viveu
um momento de acúmulo de informações, do advento da cultura
de massas e da produção exacerbada de signos. As manifestações
espontâneas, artesanais e autônomas se deslocaram do contexto
cotidiano, popular e passaram a fazer parte das relações de merca-
do [...]. A produção cultural ganhou características que a distingui-
ram da produção de décadas anteriores: ausência da preocupação
político-ideológica, relação com os grandes esquemas de produ-
ção, utilização de novas linguagens, dos meios eletrônicos e inova-
ções tecnológicas. [...] Para o autor, não existiu, na década de 1980,
uma ideologia hegemônica, como a produção populista dos anos
1960 e a proposta alternativa dos anos 1970, tendo em vista que
as estratégias de poder não se centralizaram em um setor específi-
co, mas se desenvolveram no espaço social das diversas instituições
[...]. (p. 39).

Ainda, no campo institucional, Rostoldo (2006) situa a criação do Mi-


nistério da Cultura e a Lei Sarney, como fatores que impuseram a neces-
sidade de o Estado implantar políticas públicas culturais, introduzindo ao
campo cultural a noção de cultura como um bem rentável. Para ele, “os
órgãos como o Instituto Nacional do Cinema, a Embrafilme, a Funarte e a
Fundação Pró-Memória acentuaram a difusão da cultura como bem cul-

73
Letícia Conceição Martins Cardoso

tural e como mercadoria” (ROSTOLDO, 2006, p. 39), o que desencadeou


maior profissionalização desse setor.

De fato, o grande destaque do governo de José Sarney para a es-


fera cultural foi a instituição do Ministério da Cultura47, em 15 de março
de 1985, que representou a autonomização da área cultural em relação à
educação. Até então a cultura era gerida em conjunto com a educação,
pelo Ministério da Educação e Cultura. Segundo o decreto nº 91.14448 a
emergência do Ministério da Cultura obedecia à situação do Brasil à épo-
ca, que não podia prescindir de uma “política nacional de cultura, condi-
zente com os novos tempos e com o desenvolvimento já alcançado pelo
país”. Outra justificativa para a instituição desse Ministério era que:
o crescimento econômico e demográfico do País, a expansão da
rede escolar e universitária, a complexidade cada vez maior dos
problemas ligados à política educacional, nas suas diferentes fun-
ções no desenvolvimento nacional, bem como o enriquecimento
da cultura nacional, decorrente da integração crescente entre as di-
versas regiões brasileiras e da multiplicação das iniciativas de valor
cultural, tornaram a estrutura orgânica do Ministério da Educação
e Cultura incapaz de cumprir, simultaneamente, as exigências dos
dois campos de sua competência. (BRASIL, 1985)

A institucionalização do setor cultural no governo federal também


foi resultado de processos / movimentos anteriores, engendrados em ou-
tras esferas da administração pública e pela sociedade civil, em especial,
as elites intelectuais.

Nos anos 70, já existiam várias secretarias e conselhos estaduais de


cultura. Em 1976, aconteceu o primeiro encontro de Secretários Estadu-
ais de Cultura, originando um fórum de discussão que ainda se mantém
ativo e que muito contribuiu para a criação de um Ministério indepen-

47
Em 1990, no então governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello, o Ministério da
Cultura foi transformado em Secretaria da Cultura, diretamente vinculada à Presidência
da República. Essa situação foi revertida dois anos depois, em 19 de novembro de 1992,
já no governo do ex-presidente Itamar Franco. Em 1999, no governo de Fernando
Henrique Cardoso, foram ampliados os recursos e a estrutura foi reorganizada, segundo
lei aprovada em 27 de maio de 1998. Pela Medida Provisória 813, de 1º de janeiro de
1995, transformada na Lei 9.649, de 27 de maio de 1998. Em 2003, o atual presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, aprovou a reestruturação do Ministério da Cultura, por meio
do Decreto 4.805, de 12 de agosto. (<www.cultura.gov.br> Acessado em: 08/01/2008).
48
Publicado no Diário Oficial da União no dia 15/03/1985, o referido decreto cria o
Ministério da Cultura e dispõe sobre sua estrutura.

74
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

dente. Aloísio Magalhães49 já vinha preparando instituições nacionais


que pudessem dar suporte ao Ministério da Cultura. Além disso, as pres-
sões sociais pelo fim da ditadura e o início do processo de redemocrati-
zação do país, ensejaram reivindicações dos setores artísticos e intelectu-
ais para o reconhecimento oficial da cultura e sua institucionalização no
novo governo, através de um ministério específico.

Os seguintes órgãos passaram a compor o novo ministério:

a) Conselho Federal de Cultura (CFC), criado pelo Decreto-lei nº 74,


de 21 de novembro de 1966, e alterações posteriores;

b) Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), criado pela Lei n.º


5.988, de 14 de dezembro de 1973, e alterações posteriores;

c) Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), criado pelo Decreto n.º


77.299, de 16 de março de 1976, e alterações posteriores;

d) Secretaria da Cultura, criada pela Portaria n.º 274, de 10 de abril


de 1981;

e) Empresa Brasileira de Filmes S/A (EMBRAFILME), criada pelo De-


creto-lei n.º 862, de 12 de setembro de 1969, e alterações poste-
riores;

f ) Fundação Nacional de Arte (FUNARTE), criada pela Lei n.º 6.312,


de 16 de dezembro de 1975, e alterações posteriores;

g) Fundação Nacional Pró-Memória (PRÓ-MEMÓRIA), criada pela Lei n.º


6.757, de 17 de dezembro de 1979, e alterações posteriores;

49
Aparece em destaque o nome de Aloísio Magalhães nos estudos sobre as políticas culturais
brasileiras (MICELI,1984; ORTIZ, 1994; RUBIM, 2007). De fato, ele representou “um
sopro inovador nas políticas culturais brasileiras”, principalmente devido a sua atuação
dinâmica e criativa, tentando burlar os conservadorismos militares. Aloísio Magalhães
“criou ou renovou organismos como: Centro Nacional de Referência Cultural (1975);
IPHAN (1979); SPHAN e Pró-Memória (1979); Secretaria de Cultura do MEC (1981)
até sua morte prematura em 1982. Sua visão renovada da questão patrimonial através
do acionamento da noção de bens culturais; sua concepção ‘antropológica’ de cultura;
sua atenção com o saber popular [...] retomando Mário de Andrade, ensejam uma
profunda renovação nas antigas concepções de patrimônio vigentes no país, mesmo com
limitações” (RUBIM, 2007, p. 22).

75
Letícia Conceição Martins Cardoso

h) Fundação Casa de Rui Barbosa, criada pela Lei n.º 4.943, de 6 de abril
de 1966, e alterações posteriores;

i) Fundação Joaquim Nabuco, criada pela Lei n.º 770, de 21 de julho de


1949, e alterações posteriores.

No decorrer do Governo Sarney, foram criados ainda muitos outros


organismos, vinculados ao Ministério da Cultura tais como: Secretarias
de Apoio à Produção Cultural (1986); Fundação Nacional de Artes Cêni-
cas – FUNDACEN (1987); Fundação do Cinema Brasileiro (1987); Funda-
ção Nacional Pró-Leitura, reunindo a Biblioteca Nacional e o Instituto
Nacional do Livro (1987) (RUBIM, 2007, p. 24). E também, a Fundação
Cultural Palmares50 (1988), com a finalidade de “promover a preservação
dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência ne-
gra na formação da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988). Estas ações são
entendidas não apenas como atos do executivo, tendo o Estado como
o grande promotor/divulgador/protetor da cultura, mas também como
uma resposta às demandas e pressões sociais da época, geradas por mo-
vimentos artísticos, identitários e étnicos.

Logo de início, o recém-criado ministério enfrentou dificuldades e


instabilidades, tanto de ordem financeira como administrativa. Assim, na
tentativa de criar novas fontes de recursos para o setor cultural, surgiu a
Lei Sarney.

A promulgação da Lei Federal 7.505, em 1986, mais conhecida como


Lei Sarney instituiu o Programa Nacional de Cultura – PRONAC (em vigor
até hoje, com algumas modificações). E constituiu um marco para as po-
líticas estatais de cultura no Brasil, pois, pela primeira vez, determinou
benefícios fiscais na área do imposto de renda concedidos a operações
de caráter cultural ou artístico. A prática ficou conhecida na área cultural
como mecenato.

O sentido original do termo mecenato remonta ao Império Romano,


em que Gaius Maecenas foi, segundo o Dicionário Etimológico da Língua
Portuguesa (CUNHA, 1986), um cavaleiro que participou da administra-
ção do Império entre 30 a.C. e 10 d.C e se serviu de seu crédito junto ao
imperador Gaius Octavius Caesar para proteger as artes e as letras, ten-
do sido seus protegidos Virgílio e Horácio. De acordo com Rubim (2005),
50
Lei Federal nº 7.668, de 22 de agosto de 1988.

76
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

“Mecenas realizou um memorável trabalho de acolhimento e estímulo à


cultura” durante esse período. “Mas esse apoio implicava em uma adesão
dos criadores ao Império romano e à figura do imperador. [...] Assim, todo
aquele incentivo à cultura orientava-se por um nítido interesse de legiti-
mação política” (RUBIM, 2005, p. 55).

No século XVI, já era comum a prática do mecenato por diversas ins-


tituições e personalidades, tais como os reis, a nobreza, a Igreja Católica.
Mais tarde, no período identificado com o Renascimento, a burguesia
emergente também protegeu e subsidiou artistas e intelectuais.

Atualmente, são os Estados – como também seus governantes – e


as empresas privadas que representam (ou assumem o papel de) gran-
des mecenas do mundo contemporâneo. O mecenato contemporâneo
não pode ser interpretado como uma mera instrumentalização política e
ideológica da cultura. O que acontece é que muitas vezes este mecanis-
mo serve para legitimar e dar credibilidade ao mecenas através do uso da
cultura, aproximando-se, neste aspecto, da noção de marketing cultural51.

No Brasil, o interesse do empresariado brasileiro em subsidiar ativi-


dades culturais foi desencadeado pelo Estado, aflorando a partir da vi-
gência da Lei Sarney, que dispunha, entre outras coisas, permitir que o
contribuinte pudesse deduzir as contribuições, como patrocínios e inves-
timentos, do imposto de renda pago, chegando a até 100% do valor no
caso de doações e 80% em casos de patrocínio.

A primeira lei brasileira de incentivos fiscais para a cultura foi, se-


gundo Rubim (2007), concebida em um momento de fragilidade institu-
cional da área, ainda que de modo ambíguo o governo estivesse criando
diversos órgãos voltados para a cultura. Para o autor, a nova lei:
terminava por contrariar todo este esforço e investimento em no-
vos organismos, pois introduzia uma ruptura radical com os modos,
51
Para Rubim, o marketing cultural, ao lado do mecenato e do mercado, constitui uma das
formas contemporâneas de financiamento da cultura. Não deve ser confundido com o
mecenato, embora ambos impliquem a mobilização de recursos oriundos de outros entes
sociais para apoiar a produção cultural. O mecenato se governa por uma lógica de doação,
que algumas vezes pode ser desinteressada; enquanto o marketing cultural realiza sempre
uma relação explícita de troca mercantil entre atores e interesses distintos, que buscam
um ganho comum. Assim, o marketing cultural constitui uma zona instável de trocas,
nas quais se intercambiam recursos financeiros por produção de imagens públicas e
valores imanentes ao produto cultural ou dele derivados, como prestígio e legitimidade,
repassados sob a forma de qualidades agregadas. (RUBIM, 2005, p. 62).

77
Letícia Conceição Martins Cardoso

até então vigentes, de financiar a cultura. Em vez de financiamento


direto, agora o próprio Estado propunha que os recursos fossem
buscados pretensamente no mercado, só que o dinheiro em boa
medida era público, decorrente do mecanismo de renúncia fiscal.
(RUBIM, 2007, p. 24).

Assim, com a implementação da lei ativada por mecanismos de


isenção fiscal, a iniciativa privada passou a ser vista como principal finan-
ciadora das ações culturais, embora com recursos públicos. O Estado mí-
nimo passa a se instalar no país, na esfera cultural começa-se a observar
o privilégio do mercado nessa lógica de financiamento. O que significa
dizer que a partir daí o Estado cedeu poder de decisão ao mercado.

A Lei Sarney vigorou até 1990, extinta pelo Governo Collor de Melo
(1990-1992) – que também extinguiu o Ministério da Cultura e diversos
de seus órgãos52. Mas deu origem, em 1991, a outra Lei de incentivo, a Lei
8.313, conhecida como Lei Rouanet, vigente até hoje, depois de ter sido
alterada nos governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luís
Inácio Lula da Silva (2003-). A Lei Rouanet, como observaremos no item
seguinte, foi amplamente utilizada pela gestão cultural dos Governos de
Roseana Sarney no Maranhão.

Percebi que os movimentos sociais e os lobbies, indiretamente, re-


percutiram na noção de “cidadania cultural”, que reúne os direitos cultu-
rais do cidadão, presente na Constituição de 1988. Em seu Título VIII, que
trata “da ordem social”, a Carta constitucional apresenta pela primeira vez
no Brasil uma seção específica para a cultura, garantindo a todos o ple-
no exercício dos direitos culturais, através do artigo 215, que previa que
o Estado iria apoiar e incentivar a difusão das manifestações culturais,
bem como proteger manifestações da cultura popular, indígena e afro-
brasileira. O artigo trazia ainda um parágrafo que permitia ao estado criar
datas comemorativas.

52
A estrutura da gestão cultural no Governo Collor foi reduzida novamente à condição
de Secretaria, significando um retrocesso no setor: vários programas e projetos foram
suspensos, foram extintos o Conselho Federal de Cultura, a FUNDACEN; a Fundação
do Cinema Brasileiro; a EMBRAFILME; a PRÓ-LEITURA. A Fundação Pró-Memória
e o SPHAN foram transformados em Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural e
a FUNARTE em Instituto Brasileiro de Arte e Cultura. O Ministério e algumas de
suas instituições foram recriados em 1992, no Governo Itamar Franco (Ver mais em
CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: balanço e perspectivas. p.87-107. In: RUBIM;
BARBALHO; 2007).

78
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

No dispositivo constitucional, atualizado pela Emenda nº 48, de


2005, percebe-se a preocupação do legislador em relação ao apoio e in-
centivo (financeiro) das manifestações culturais, visando sua valorização
e difusão. Já, no que se refere às manifestações das “culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras” (§1º), o foco passa do apoio e incentivo para
a “proteção”. A ação afirmativa de “proteger”, no entanto, revela uma pers-
pectiva conservadora que atribui fragilidade/dependência a tais expres-
sões culturais, demandando tratamento diferenciado para elas.

Interessante notar que o Plano Nacional de Cultura proposto pela


Constituição visando ao “desenvolvimento cultural” e à integração das
três instâncias do executivo deve levar à “produção, promoção e difusão
dos bens culturais” e à “formação de pessoal qualificado para a gestão da
cultura”. Assim, em sintonia com o mercado capitalista e com a demanda
da indústria cultural, o bem cultural, passa a ser visto pelo legislador, não
apenas como bem simbólico, mas também como bem rentável (merca-
doria). E o ator cultural, por sua vez, como profissional da cultura. Como
ratifica o artigo 219: “O mercado interno integra o patrimônio nacional e
será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e só-
cio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do
País, nos termos de lei federal”.

No artigo 216, o texto constitucional apresenta uma ampla (e vaga)


definição de patrimônio cultural brasileiro, e, de forma indireta, dos direi-
tos culturais que contempla:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de na-
tureza material e imaterial, tomados individualmente ou em con-
junto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...].

No parágrafo 6º do mesmo artigo, o legislador faculta aos Estados


um incremento orçamentário para a área cultural, de até 0,5% de sua re-
ceita tributária líquida. As questões culturais contempladas pela Consti-
tuição de 1988, apesar de não terem sido resultado direto da vontade
popular (através de representantes escolhidos pelo povo), foram influen-
ciadas pelos movimentos sociais e pelo lobby. Representando interesses
diversos, eles tiveram uma atuação considerável na positivação dos di-
reitos culturais, o que suscitou a noção de cidadania cultural. Além disso,
a repercussão dos direitos culturais reconhecidos pela Carta Magna do
país acabou desencadeando uma efervescência na pauta de reivindica-

79
Letícia Conceição Martins Cardoso

ções populares, gerando outras questões culturais ainda ignoradas pelo


poder constituído.

As liberdades de expressão (artística, intelectual, científica), de cren-


ça religiosa e de comunicação aparecem ainda como direitos fundamen-
tais do cidadão no artigo 5º:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na-
tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anoni-
mato;
[...]
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo asse-
gurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
[...]
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente de censura ou licença;
[...] (grifos meus)

Aqui a Constituição garante a diversidade de pensamento (político,


cultural, religioso...) e aliada à valorização da diversidade étnica e regio-
nal (do art. 215), permite que outros bens culturais não expressamente
mencionados possam vir a ser direitos culturais. Além disso, associando-
se o artigo 5º (incisos IV, VI e IX) ao artigo 220 (caput e §2º), a Constitui-
ção extingue e proíbe oficialmente qualquer tipo de censura “de nature-
za política, ideológica e artística”. Desse modo, não só o campo cultural
como também o campo dos media, ganham mais autonomia a partir da
nova situação jurídica brasileira.

No entanto, no que se refere às empresas de comunicação, algumas


normas são mantidas: não podem ser, direta ou indiretamente, objeto de
monopólio ou oligopólio (art. 220, § 5º); cabe ao Poder Executivo outor-
gar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de ra-
diodifusão (dez anos) e de televisão (quinze anos), sendo apreciado pelo
Conresso Nacional (art. 223, §1º e 5º).

80
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

O presidente José Sarney serviu-se amplamente das concessões


de rádio e TV e da influência da mídia durante o seu mandato presiden-
cial. O Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro registra que ele articulara
politicamente a manutenção do presidencialismo em seu governo e a fi-
xação do seu mandato em cinco anos, conquistando votos de parlamen-
tares, principalmente através da concessão de canais de rádio e televisão.
Segundo a Folha de S. Paulo (28/11/1993), os registros do Ministério
das Comunicações revelam que, durante sua gestão, Sarney benefi-
ciou amigos com concessões, procedimento justificado por um de
seus filhos, Fernando: “É natural que se dê preferência aos amigos”.
Levantamento feito pela Federação Nacional dos Jornalistas e cita-
do pela Folha de S. Paulo (3/9/1995) demonstra que até março de
1979, data da posse de Figueiredo, havia 1.483 emissoras de rádio e
TV no Brasil. Durante o governo de Sarney, foram distribuídas 1.091
concessões, 257 no mês que antecedeu a promulgação da Consti-
tuição. Daquele total, 165 beneficiaram 91 parlamentares, 90% dos
quais votariam a favor do mandato de cinco anos, mas também ga-
nhariam concessões do governo ministros, governadores, jornalis-
tas e funcionários da administração pública.

No Maranhão, Sarney já possuía o jornal O Estado do Maranhão,


fundado em 1973, em parceria com o amigo e poeta Bandeira Tribuzi.
Uma aquisição durante o seu mandato presidencial foi o Sistema Mirante
de Comunicação, “o maior grupo privado de comunicação do Estado do
Maranhão”, como define o próprio site da empresa. É formado pela Rede
Mirante de Televisão (fundada em 15 de março de 1987), pelo Jornal O Es-
tado do Maranhão e pela Rádio Mirante FM e Rádio Mirante AM (somando
19 emissoras). Acreditando no potencial dos meios de comunicação,
José Sarney estreou, em outubro de 1985, o programa Conversa ao pé do
rádio, veiculado em nível nacional e mantido até 1989. O programa foi
usado durante os trabalhos da Constituinte para criticar os congressistas
que divergiam de seus pontos de vista.

Patrimônio da Humanidade e celeiro da “Cultura Popular”

O elemento comum que liga arte e política é serem, ambos, fenôme-


nos do mundo público. O que medeia o conflito do artista com o ho-
mem de ação é a cultura animi, isto é, uma mente de tal modo edu-
cada e culta que se lhe pode confiar o cuidado e a preservação de um
mundo de aparências cujo critério é a beleza.

81
Letícia Conceição Martins Cardoso

(Hanna Arendt, Filósofa – citada no Relatório de Atividades da SE-


CMA, 1996).

A citação acima foi retirada do Relatório de Atividades da Secretaria


de Estado da Cultura, de 1996, e reflete a concepção predominante de
cultura e de gestão cultural do primeiro mandato de Roseana Sarney no
Governo do Maranhão (1995-1998), que teve o advogado Eliézer Moreira
Filho como Secretário de Cultura até o ano de 1997.

Essa concepção valoriza a cultura considerada pelo Estado “erudita”


e “bela”, devendo ser “cuidada e preservada” pelas ações estatais a partir
de “mentes educadas e cultas”. Mentes como a do poeta Nauro Machado,
que integrou a assessoria da Secretaria nesse período.

No artigo intitulado “O Estado e os artistas”, veiculado no jornal O


Imparcial, Nauro Machado defendeu a atuação da SECMA, anunciando o
apoio estatal à publicação de livros, sob a supervisão dos gestores públi-
cos, a quem denomina de “mentores oficiais da cultura”. Disse ele:
Nenhum artista pode viver ou criar livremente sob os tacões ou
as vestes floridas do Estado. O Estado não pode e nem deve tu-
telar a criação autônoma do artista. [...] o artista possui a bússola
de um destino mais alto capaz de modificar o meio, mas dele não
necessitando necessariamente para ser ou criar. [...] cabe à consci-
ência crítica dos mentores oficiais da nossa cultura, uma resposta
e um atendimento prático e eficiente aos desafios que lhes jogam
os nossos artistas e produtores culturais. É necessário, no entanto,
que eles tenham algo novo a dizer, que eles façam da instrumen-
talização formal de suas idealidades artísticas, um artefato imune
ao direcionamento preconcebido do Estado e à simples e narcísea
extrapolação de um vazio carente de conteúdo e expressividade. A
SECMA estará dentro em breve, à espera dessas manifestações in-
dividuais que necessitam principalmente de uma forma capaz de
incluir-lhes o valor exato das manifestações a que o espiritual con-
cede o vislumbre antecipado do eterno. (O IMPARCIAL, 12/02/1995,
p. 8).

A fala de Nauro Machado é esclarecedora: o Estado não deve tutelar


o processo criativo dos artistas, mas deve estar pronto para atender às
suas demandas, contanto que “tenham algo novo a dizer”, ou seja, con-
tanto que sua qualidade seja atestada pelos “mentores oficiais da cultu-
ra”. Desse modo, ao mesmo tempo em que o poeta diz que o artista deve
ser independente do Estado e que este, por sua vez, não pode interferir

82
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

na produção cultural; o assessor defende que o Estado conceda apoio


àqueles que “merecem”, os escolhidos pelo Estado. Aproveito para men-
cionar que Nauro Machado teve editado e lançado seu livro As esferas li-
neares pela Edição SECMA/96.

Em nome da SECMA, o poeta sugere, publicamente, que o Estado


deve ser demandado pelos artistas, e não o contrário. Mas os discursos
no interior da Secretaria são plurais e às vezes contraditórios. O Relatório
de Atividades do órgão afirma que a SECMA tem o papel de “agente ca-
nalizador da distribuição mais equitativa dessa renda cultural” (SECMA,
1995, p. 3, grifos meus) e de “agente responsável pelo produto tradicio-
nal [da cultura]” (SECMA, 1995, p. 4, grifos meus). Ele ratifica, ainda, que
é responsabilidade do Estado “desenvolver ações na área cultural, atra-
vés do Sistema Estadual de Cultura, direcionando suas atividades e pro-
jetos no sentido de adequá-los a uma visão de cultura que pressuponha
um processo dinâmico em constante renovação e que possa ser acessível
às mais diversas camadas e segmentos sociais” (SECMA, 1995, p. 3, grifos
meus).

De acordo com esse discurso, “a visão de cultura do Estado” deve


ser acessível às mais diversas camadas e segmentos sociais. A sociedade
apenas é aludida como receptora / sujeito passivo das ações estatais e
da visão de cultura do Estado. Cabe ao Sistema Estadual de Cultura “ca-
nalizar” essa “visão” à sociedade. Mas o que o Estado define como cultura
neste momento? Que “visão” é esta?

A análise dos Relatórios de 1995, 1996 e 1997 aponta o “patrimônio”,


ou aquilo que a SECMA define enquanto tal, como sendo a concepção de
cultura predominante do período.

O conceito de patrimônio, formulado pelas sociedades ocidentais


modernas e amplamente utilizado pelos Estados-nação como recurso
de sua unificação, está diretamente ligado à noção de herança. Etimo-
logicamente, o termo significa “em nome do pai”, ou seja, em nome da
herança simbólica. Atualmente, o conceito vem sendo problematizado
e ampliado, podendo ser definido como bem coletivo, legado ou heran-
ça artística e cultural por meio dos quais um grupo social pode se reco-
nhecer enquanto tal, incluindo-se, aí, expressões simbólicas de naturezas
diversas. No entanto, a concepção estatal de patrimônio aqui referida, é,
predominantemente, circunscrita a patrimônio tangível ou material, es-

83
Letícia Conceição Martins Cardoso

pecificamente, ao conjunto arquitetônico do centro histórico de São Luís


do Maranhão.

Nesta fase, o objetivo da Secretaria de Cultura, segundo Relatório


de Atividades de 1996, incluía “a preservação arquitetônica, a guarda de
documentos, a pesquisa histórica, atingindo até a promoção de eventos ar-
tísticos” (SECMA, 1996, p. 5, grifos meus). Noto que o interesse do órgão
são ações voltadas para o patrimônio material (“preservação arquitetôni-
ca”, “guarda de documentos”), realizando, por contingência, “a promoção
de eventos artísticos”. Esta tendência é confirmada em alguns trechos
dos Relatórios de Atividades de 1997, como: “a grande conquista na área
da cultura no ano de 1997: a homologação, pela UNESCO, da cidade de
São Luís, como patrimônio mundial” (SECMA, 1997, p. 6). Ou ainda na se-
guinte passagem:
foi sempre na perspectiva de querer o melhor para o Maranhão que
labutamos, foi sempre na ótica de ver a cultura como fertilizante
na construção de uma mentalidade cidadã que aqui estamos, até
porque enxergamos o passado como inspiração ou como lição para
o presente e o futuro [...]. Lembremo-nos de Aloísio Magalhães (SEC-
MA, 1997, p. 7).

A referência a Aloísio Magalhães, artista, intelectual e dirigente do


IPHAN – Instituto de Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (1979-
1982) revela a influência patrimonialista e preservacionista dessa institui-
ção sobre a Secretaria de Cultura.

Apesar de Aloísio Magalhães ter proposto a associação de um con-


ceito “antropológico” de cultura53 às ações de uma política para o patri-
mônio, com o ideal de abarcar a diversidade cultural, religiosa e étnica no
Brasil, a sua morte prematura em 1982 e a crise institucional da cultura
no Governo de Collor de Mello representaram um retrocesso para o ór-
gão, contribuindo para o predomínio de uma política que protege vestí-
gios e fragmentos do passado como fonte privilegiada para a construção
de uma identidade nacional. Como situa Regina Abreu (2007, p. 271 apud
LIMA FILHO et al, 2007), historicamente, a atuação do IPHAN – desde o
SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico Artístico e Nacional), fundado
53
Para Aloísio Magalhães, existiram diversos passados, tantos passados quantos os
diferentes grupos sociais, étnicos e religiosos da sociedade brasileira. Para ele, a
identidade cultural brasileira ainda estava em processo de formação. O passado devia
ser considerado, mas na medida em que tornava possível a continuidade deste processo.
Nesta perspectiva, foi criada a Fundação Pró-Memória, para abranger novos elementos
da diversidade cultural e que deveria reunir três áreas Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, Centro Nacional de Referências Culturais e Programa das Cidades Históricas.

84
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

em 1937 – ficou fortemente associada, em primeiro lugar a objetos de


todo tipo, ou seja, à cultura material; em segundo lugar, à valorização do
passado; e, em terceiro lugar, ao tema do nacional. Segundo a autora, “o
grande saldo da política [do IPHAN] foi a objetificação da idéia de nação.
Somos um país, porque temos história, e esta história está documenta-
da em monumentos, prédios, objetos, coisas” (ABREU, 2007, p. 272 apud
LIMA FILHO et al, 2007).

As ações da SECMA no que se refere ao patrimônio cultural delimi-


tam-se também pelas noções de cultura material (monumentos e prédios
principalmente), passado e a temática do nacional. A própria organiza-
ção e escolha das nomenclaturas para a área revelam esta tendência (Ver
Quadro 1).

O setor responsável pelo patrimônio foi intitulado Coordenadoria


do Patrimônio Cultural, cabendo a ela “programar, acompanhar, coor-
denar e avaliar a execução das atividades do Departamento de Patrimô-
nio Histórico, Artístico e Paisagístico do Maranhão, do Departamento de
Projetos Especiais e de outras atividades relativas ao desenvolvimento
do Patrimônio Cultural” (SECMA, 1997, p. 28). Por sua vez, as atividades
dos departamentos supervisionados pela Coordenadoria de Patrimônio
Cultural são limitadas somente a bens materiais: ao Departamento de
Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico (DPHAP-MA) cabe a “difu-
são, proteção e preservação dos bens culturais tombados pelo Governo do
Estado do Maranhão” (SECMA, 1997, p. 30, grifos meus). Ressalto que as
ações deste departamento são voltadas para “bens culturais tombados”,
ou seja, para bens materiais, já que os bens culturais intangíveis ou ima-
teriais não são passíveis de tombamento, mas de registro. Já o Departa-
mento de Projetos Especiais (DPE) foi responsável pela implantação do
Programa de Preservação do Centro Histórico de São Luís, “compatibili-
zando as ações dos diversos segmentos da Administração Pública, envol-
vidos nas obras, fiscalização e planejamento urbano da área do Reviver”
(SECMA, 1996, p. 26).

A gestão cultural do Governo de Roseana Sarney priorizou alguns


setores em detrimento de outros. A efetivação das ações revela a cultura
política desse Estado. Por isso, organizei um quadro (Ver Quadro 1) com
a origem dos recursos e o volume de atividades realizadas (ou não rea-
lizadas) em cada setor da SECMA, a partir dos Relatórios de Atividades
do órgão. Os valores aplicados em cada setor e coordenadoria não estão
especificados nos documentos, mas pude ter uma noção dos setores/

85
Letícia Conceição Martins Cardoso

coordenadorias que foram privilegiados e que ações demandaram mais


atenção do Estado nessa gestão.
Quadro 1 – Execução das atividades da SECMA por setor - 1995:

SECMA - 1995
Execução Atividades Projetos
 Escola de Artes Cênicas
 Estaleiro Escola do Maranhão
 Plano Fonográfico  Revitalização do Patrimônio Histórico e
Não executado por falta de
 Programa de Ações integradas Ambiental de Alcântara
recursos
 Capacitação de Recursos Humanos  Implantação centro de memória e
documentação afro-maranhense
 Pesquisas arqueológicas

 Ampliação dos espaços de apresentações


de espetáculos
Precariamente executado
-------  Revitalização patrimônio Histórico e
(recursos reduzidos)
Ambiental Urbano de São Luis – Projeto
Reviver

 Imperatriz: co-patrocínio Concurso Literário


3ª Idade
Executado, com recursos do  Paço Do Lumiar: co- patrocínio Bumba-Meu-  Programa Centro Cultural da Praia Grande
orçamento Boi Mirim  Pesquisa e tombamento da coleção de
 São Luís: co-patrocínio a 32 grupos folclóricos gravuras Arthur Azevedo
 Tuntum: co-patrocínio a Associação Folclórica
Bumba-meu-boi

Quadro 2 – Execução das atividades da SECMA por setor - 1996:

SECMA - 1996
Execução Atividades Projetos
 Dinamização da Coord. de Museus
Não executado por  Coleção gravuras
 Dinamização da Coord. de Municipalização
falta de recursos de Arthur Azevedo
da cultura

 Festival da Canção Popular Construção de espaço


Executado, através  Dinamização da Coord. de Ação e Difusão cultural da Igreja de São José de Ribamar
de convênios e Cultural  Recuperação Palácio dos Leões
mecenato  Dinamização da Coord. de Memória e  Início do Museu do Ex-Voto de São José de Ribamar
Documentação  Valorização à música produzida no MA
 Editoração da memória cultural maranhense

Executado,  Implementação das atividades da Coord. do


com recursos Patrimônio Cultural
do orçamento,  Desenvolvimento e Apoio à Produção ---------
convênios e cultural
mecenato

86
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Quadro 3 – Execução das atividades da SECMA por setor - 1997:

SECMA - 1997
Execução Atividades Projetos
 Dinamização da Coord. de Museus
 Dinamização da Coord. de
Não executado por falta de recursos -----
Municipalização da cultura

 Coleção Gravuras de Arthur Azevedo


 Recuperação Igreja da Sé
 Reconstrução da cobertura do Palácio
dos Leões
Executado, através de convênios e  Festejos juninos no Maranhão –
 Dinamização da Coord. de Memória
mecenato Promoção, Difusão e Registro
e Documentação
 Museu de Ex-voto São José de Ribamar
 Valorização à música produzida no MA
 Editoração da memória cultural
maranhense
 Implementação das atividades da
Coord. do Patrimônio Cultural
 Dinamização da Coord. de Ação e
Executado, com recursos do orçamento, Difusão Cultural
 Estruturação museal do CCPDVF
convênios e mecenato  Desenvolvimento e Apoio à
Produção cultural
 Preservação do Patrimônio Cultural
do MA
Fonte: Observação dos Relatórios de Atividades da SECMA

Quando algum setor executa ações com recursos provenientes do


Tesouro Estadual, previstos no orçamento, isto quer dizer que a Coorde-
nadoria/Programa/Atividade teve os recursos programados para o ano
liberados pelo Orçamento Estadual (Tesouro Estadual), ou pelo menos,
parcialmente liberados, devido à redução dos recursos destinados àque-
le fim. No entanto, o setor pode ser beneficiado tanto pelo Tesouro Es-
tadual como por outras fontes: os convênios, que o Estado realiza com
o Ministério da Cultura (MinC); ou ainda, a captação de recursos junto a
empresas privadas através da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Mece-
nato). Se a receita resultar da fonte estadual e dos convênios/Mecenato,
há uma alocação de recursos, complementando ou até ultrapassando o
orçamento previsto. Caso seja proveniente somente de convênios ou do
Mecenato, geralmente ela corresponde ao valor proposto na assinatura
do convênio ou no projeto, com ou sem contrapartida do Tesouro Esta-
dual. Mas esses valores não foram mencionados nos Relatórios. Quando
uma ação é realizada apenas com a receita dos órgãos que compõem as
coordenadorias, isto quer dizer que ela não teve os recursos orçamentá-
rios previstos liberados pelo Governo. Assim, a coordenadoria tem que

87
Letícia Conceição Martins Cardoso

restringir suas atividades aos serviços próprios dos órgãos executores,


por exemplo, a Biblioteca que atende aos usuários, mas não tem recursos
financeiros para promover projetos/eventos que demandem despesas
extras. E finalmente, há aquelas atividades que não são executadas por-
que não recebem recursos de fonte alguma.

Percebi que uma cultura identificada com o patrimônio material ga-


nhou atenção especial do Governo nesse período. A Coordenadoria de
Patrimônio Cultural foi a única que teve recursos do orçamento garan-
tidos pelo orçamento estadual para o exercício de 1995, centrando suas
ações na infraestrutura do Bairro Praia Grande. Dentre as principais ações
realizadas pelos departamentos desta coordenadoria, destaco: acom-
panhamento de 168 obras, reforma de diversos prédios e levantamento
físico de 31 prédios em ruínas na área de tombamento estadual, recupe-
ração de praças (da Seresta, Reviver, Criança e Folclore), publicação de
cartilha sobre a importância da preservação do patrimônio cultural de
São Luís (financiada pelo Ministério da Cultura da Espanha). As Coorde-
nadorias de “Ação e Difusão Cultural”, de “Memória e Documentação”54 e
de “Museus”55, apesar de estarem incluídas no orçamento, não tiveram os
recursos liberados pelo Governo. No entanto, a Coordenadoria de Ação
e Difusão Cultural, “à qual compete programar e avaliar a execução dos
órgãos a ela subordinados” (SECMA, 1997, p. 16): Centro de Criatividade
Odylo Costa filho, Escola de Música do Estado, Centro de Cultura Popular
Domingos Vieira Filho, Espaço Cultural João do Vale e Teatro Arthur Aze-
vedo geralmente se destaca, em relação às outras duas, em volume de
atividades e de recursos.

Nesse mesmo ano, o setor de projetos teve 9 propostas. Destas,


duas ligadas ao patrimônio foram parcialmente executadas – “Amplia-
ção dos espaços de apresentações de espetáculos” e “Revitalização do
Patrimônio Histórico e Ambiental Urbano de São Luís (Projeto Reviver)”
54
A Coordenadoria definida pela SECMA como: “órgão diretamente subordinado à
Subsecretaria de Estado, [a ele] compete programar, coordenar, acompanhar e avaliar
a execução das atividades do Arquivo Público do Estado do Maranhão, da Biblioteca
Pública Benedito Leite, da Casa de Cultura Josué Montello e outras atividades na área
de preservação e divulgação do patrimônio arquivístico, bibliográfico e museológico da
cultura maranhense” (SECMA, 1997, p. 25).
55
Definida pela SECMA como: “órgão diretamente subordinado à Subsecretaria de Estado,
[a ele] compete programar, coordenar, acompanhar e avaliar a execução das atividades
do Museu Histórico e Artístico do Maranhão, do Museu Histórico de Alcântara e
outras atividades necessárias ao desenvolvimento e à preservação da memória cultural
maranhense” (SECMA, 1997, p. 31).

88
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

– e um projeto foi plenamente realizado com recursos do orçamento – o


programa “Centro Cultural da Praia Grande”, criado para “promover a di-
fusão do conjunto dos bens culturais, nas suas diversas formas de produ-
ção e preservação da memória cultural maranhense” (SECMA, 1995, p. 6).
Dos outros seis projetos de 1995, foi implementado apenas o referente
à coleção de gravuras de Arthur Azevedo. “Em virtude da escassez de re-
cursos com que se defrontou a SECMA e pela não liberação de recursos
[...] não foi possível realizar nenhuma meta prevista para 1995” (SECMA,
1995, p. 6) em relação aos demais projetos. Uma observação que deve
ser feita é em relação ao Plano de Apoio à Produção Cultural, que bene-
ficiou “32 produtores culturais e grupos folclóricos da capital e 05 do in-
terior, abrangendo montagem de espetáculos de dança e teatro, oficinas,
festas religiosas, festivais, exposições, concursos etc” (SECMA, 1995, p. 8).

Em 1996, a receita estadual da SECMA foi orçada em R$ 2.812.704,00,


mas apenas foi repassado para a Secretaria o montante de R$ 451.114,95,
ou seja, 16% do valor programado. Por isso, outras fontes de financia-
mento entraram em cena. Como destaca o Relatório de Atividades refe-
rente a esse exercício financeiro:
Ressalva-se como grande mérito da Secretaria, a alternativa criada
com a assinatura de 5 convênios com o Ministério da Cultura [...]. A
captação destes recursos foi fundamental para no sentido de dar
maior dinâmica às ações da SECMA. Não podemos deixar de cha-
mar a atenção sobre o papel exercido pela SECMA na área do Pro-
jeto MECENATO (Lei de Incentivo à cultura), servindo de elo entre
associações civis do meio artístico-cultural e o empresariado, que
permitiu o alongamento das ações na área da cultura, onde [sic]
foi possível promover eventos como o Festival da Canção Popular
do Maranhão e o Apoio à cultura popular do Maranhão, bem como
prosseguir nas obras de Recuperação da Igreja da Sé, de Reforma do
Palácio dos Leões e dar início à Edificação do Museu de Ex-voto de São
José de Ribamar (SECMA, 1996, p. 6).

Dadas as restrições orçamentárias para a cultura, a SECMA dá início


a uma série de convênios com Ministério da Cultura (MinC) e ainda insti-
tui como novas estratégias os “Projetos do Mecenato sob a interveniên-
cia da SECMA” (SECMA, 1996, p. 13). Desse modo, através da Lei Federal
de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91) que instituiu, como
vimos no capítulo anterior, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRO-
NAC) surge uma nova política de financiamento para área cultural. Atra-
vés do PRONAC, o Governo Federal promove dois mecanismos de apoio:

89
Letícia Conceição Martins Cardoso

o FNC – Fundo Nacional de Cultura, que apóia a fundo perdido projetos


culturais apresentados por entidades públicas e privadas sem fins lucra-
tivos de natureza cultural; e o Mecenato que, segundo a Secretaria de Fo-
mento e Incentivo à Cultura do MINC, constitui “o investimento em proje-
tos culturais, mediante doações, patrocínios, ou contribuições ao Fundo
Nacional de Cultura, com a possibilidade de abatimento no Imposto de
Renda devido do contribuinte investidor” (<www.cultura.gov.br>).

Em 1996, os projetos do Mecenato propostos pela SECMA tiveram


recursos oriundos da renúncia fiscal das empresas TELEBRÁS, CORREIOS,
GUARANÁ JESUS, EMBRATUR tendo a SECMA como a captadora. A partir
daí, surgem novos atores no campo em análise, como o MinC e grandes
empresas nacionais, que ampliam o campo e impulsionam novas rela-
ções com a esfera cultural.

Com o mecanismo do Mecenato, o Estado transfere boa parte do


seu poder de decisão para a iniciativa privada. Trata-se de uma política
de Estado Mínimo, mais voltada para as leis de mercado.

O Governo de Roseana Sarney situa-se nesse contexto, sob a pre-


sidência de Fernando Henrique Cardoso, tendo Francisco Weffort como
Ministro da Cultura. De acordo com Lia Calabre (2007, p. 95 apud RUBIM,
2007), a gestão do Ministro Weffort “foi o momento da consagração des-
se novo modelo”, transferindo “para a iniciativa privada, através da lei de
incentivo, o poder de decisão sobre o que deveria ou não receber recur-
sos públicos incentivados”. A autora continua a análise:
Ao longo da gestão Weffort, a Lei Rouanet se tornou um importante
instrumento de marketing cultural das empresas patrocinadoras. A
Lei foi sofrendo algumas alterações que foram subvertendo o pro-
jeto inicial de conseguir a parceria da iniciativa privada em investi-
mentos na área da cultura. As alterações ampliaram um mecanismo
de exceção, o do abatimento de 100% do capital investido pelo pa-
trocinador. [...] isso significa que o capital investido pela empresas,
que gera um retorno de marketing, é todo constituído por dinheiro
público, aquele que seria pago como impostos. (CALABRE, 2007, p.
95 apud RUBIM, 2007).

O Estado passa a abdicar de investir dinheiro em políticas culturais,


deixando isto cada vez mais a cargo da iniciativa privada. Sobre essa prá-
tica comenta Rubim (2007, p. 25):

90
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

A combinação entre escassez de recursos estatais e a afinidade des-


ta lógica de financiamento com os imaginários neoliberais então vi-
venciados no mundo e no país, fez que boa parcela dos criadores e
produtores culturais passe a identificar política de financiamento, e
pior, políticas culturais tão somente com as leis de incentivo.

No Governo de Roseana Sarney, a iniciativa privada não foi tão visi-


bilizada quanto o próprio Estado, já que este passou a ser o maior capta-
dor de recursos através de atores como a SECMA, intitulando-se o grande
mecenas da cultura ao aplicar a verba arrecadada em obras e eventos ou
ao repassá-la a artistas, produtores culturais e organizações não-gover-
namentais. Os atores culturais receberam o financiamento diretamente
do Estado e não das empresas privadas. Logo, a quem atribuiriam e re-
tribuiriam a dádiva (MAUSS, 2001) recebida? Às empresas ou ao Estado?

O dinheiro captado pela SECMA junto a essas novas fontes teve


como estímulo uma noção de patrimônio, responsável pela concentra-
ção das ações no âmbito do “patrimônio arquitetônico” e na “cultura po-
pular”, que se configuraram também como as principais justificativas da
proposta de inclusão do Centro Histórico de São Luís no livro do tombo
do Patrimônio Mundial da UNESCO. Em maio de 1996, a Governadora Ro-
seana Sarney entregou pessoalmente ao Diretor Geral da UNESCO, Fre-
derico Mayor, em Paris, a proposta de homologação de São Luís como
Patrimônio Cultural da Humanidade56.

Assim, dos seis grandes projetos executados em 1996 pela SECMA,


três foram relacionados a essa noção de patrimônio (Recuperação do Pa-
lácio dos Leões, Construção de Espaço cultural da Igreja de São José de
Ribamar e Início do Museu do Ex-Voto de São José de Ribamar) e três
ligados à produção cultural (Festival da Canção Popular do Maranhão,
Valorização à música produzida no MA e Editoração da memória cultural
maranhense57). O “Apoio à Cultura Popular do Maranhão” citado no dis-
56
Para elaborar o documento foi nomeada pela governadora uma equipe nacional e
internacional de pesquisadores, intelectuais e consultores: Edson Fogaça, Rafael Moreira,
Jean Pierre Halevy, Glauco Campelo, Sílvia Lea, Alessandro Candeas, Eliézer Moreira,
Phelipe Andrés, Ronald Almeida, Frederico Burnnet e Zelinda Lima. E como consultores:
Dora Alcântara, Pedro Alcântara, Danilo Rocha, Carlos Lima, Mário Meireles e Albanir
Ramos. Esta equipe elaborou um minucioso relatório e um vasto dossiê fotográfico que
foi apresentado ao Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Históricos – ICOMO
–, órgão ligado a UNESCO. Ver mais em: PEREIRA, Lana Lourdes. Praia Grande: uma
história de resistência. Monografia. São Luís: UEMA, 1997
57
“Valorização à Música Produzida no MA”, caracterizou-se pela gravação de CDs de artistas
maranhenses. E a “Editoração da memória cultural maranhense”, pela edição de livros do

91
Letícia Conceição Martins Cardoso

curso inscreve-se na estratégia de “Desenvolvimento e Apoio à Produ-


ção Cultural”, criada “com o objetivo de incentivar as manifestações de
cultura popular, produção musical, manter atividades artístico-culturais
da Praia Grande e bairros da Ilha de São Luís e do Estado” (SECMA, 1996,
p. 10). Aqui se percebe que a noção de produção cultural da Secretaria
refere-se à produção de uma cultura considerada popular.

Também é interessante notar que as coordenadorias que tiveram a


receita incrementada por meio de convênios ou do Mecenato foram a
de Patrimônio Cultural, que através de seus departamentos realizou prin-
cipalmente perícia técnica, orçamento e acompanhamento de obras na
área da Praia Grande58; e Coordenadoria de Ação e Difusão Cultural, que
promoveu eventos nas áreas de atuação dos seus órgãos subordinados,
destacando-se, nesse contexto, o Centro de Cultura Popular Domingos
Vieira Filho (CCPDVF); e depois, o Centro de Criatividade Odylo Costa fi-
lho (CCOCf ), únicos órgãos da coordenadoria que tiveram um adicional
em suas receitas através da “Dinamização da Coordenadoria de Ação e
Difusão Cultural”.

Este mecanismo possibilitou: a) 16 eventos ligados à “cultura popu-


lar” do CCPDVF (Semana da Cultura Popular, apoios financeiros a grupos
culturais, lançamento de boletim da CMF e de livros, exposições, regis-
tros sobre “cultura popular”, eventos ligados a festas populares, etc.); b) 4
atividades do CCOCf (cursos, exibição de filmes, azulejaria e reforma das
instalações). O setor de Memória e Documentação recebeu apoio através
da estratégia de dinamização, somente no final do ano e, mesmo assim,
em virtude dos convênios celebrados com o MinC, para a reforma e in-
formatização da Biblioteca Pública Benedito Leite e do Arquivo Público
do Estado. Note-se que as edificações dos referidos órgãos são prédios
históricos. Logo, o investimento neste setor, está aliado ao interesse de

Plano editorial de 1995.


58
Em 1996, o DPE realizou: 1) levantamento dos principais problemas existentes na Praia
Grande; 2) Execução dos orçamentos da Escola de Música do Estado; 3) Anteprojeto de
Reforma do Teatro João do Vale; 4) Serviços de levantamento de desenhos da Igreja
da Sé; 5) Apoio a feiras culturais com fornecimento de fotos e painéis. O DPHAP-MA
executou: 1) acompanhamento de 118 obras, com expedição de 138 notificações a
proprietários irregulares; 2) Emissão de 118 pareceres; 3) Elaboração de planilhas das
obras de restauração da Igreja de Santana, sede do DPHAP-MA e Laborarte; 4) Laudos
de vistoria para isenção de IPTU; 5) Planejamento plurianual para algumas obras de
restauração; 6) Laudos periciais; Levantamento de 3 salas no Projeto Reviver (Salão de
Informações Turísticas); 7) Levantamento das ruínas do Centro Histórico; 8) Distribuição
de exemplares do livro Bens tombados no MA; etc.

92
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

restaurar o patrimônio arquitetônico. A coordenadoria de Museus59 não


foi abrangida pela “dinamização”, que também não chegou à recém-
criada coordenadoria de Municipalização da Cultura, cujo objetivo era
descentralizar as ações estatais no âmbito da cultura, tendo como órgãos
os “Núcleos Regionais de Cultura, responsáveis pela implementação das
ações culturais nos municípios maranhenses” (SECMA, 1996, p. 12).

Em 1997, a receita da SECMA foi maior que nos dois anos anterio-
res. Neste exercício financeiro, contou com recursos do Tesouro Estadual,
que não foram discriminados60; com financiamentos do Governo Federal,
na ordem de R$ 3.829.651,38, através de nove convênios com o MinC e
cinco avenças assinadas com o Fundo Nacional de Cultura; e ainda, com
recursos da renúncia fiscal, cujos valores não foram revelados nos Relató-
rios. Mas, como informa a propaganda institucional divulgada no jornal
O Estado do Maranhão no dia 08 de setembro de 1997, data de aniversá-
rio de São Luís, o Governo afirma investir R$ 20 milhões na recuperação
do patrimônio histórico da cidade, sem referir as diversas fontes de ori-
gem desses recursos.

A estratégia de implementar a infraestrutura do bairro da Madre


Deus, traduzida no “Projeto Viva Madre Deus”, está associada a uma su-
posta “valorização da cultura popular”, já que esta área é conhecida por
reunir diversas manifestações das culturas populares em São Luís. A re-
forma da Madre Deus faz, portanto, parte do projeto político de Roseana
Sarney de transformar São Luís em Patrimônio da Humanidade.

Desta forma, um tipo de cultura considerada popular passou a ser


beneficiada pelos mecanismos de fomento usados para a restauração do
patrimônio arquitetônico e configurou, neste momento, como segundo
maior foco de atuação da SECMA, não só através do “Viva Madre Deus”,
como também através da Coordenadoria de Ação e Difusão Cultural, es-
pecialmente a partir do programa “Desenvolvimento e apoio à produção
cultural”.
59
O Relatório de 1996 afirma que nenhum recurso foi liberado para a SECMA para a
dinamização desta coordenadoria, registrando que o Museu Histórico e Artístico do
Maranhão esteve fechado. No entanto, relata que foi celebrado convênio entre Governo
Federal e Estadual “com o fim de recuperar tão importante casa de cultura”, ficando o
convênio a cargo da Secretaria de Estado de Infra-estrutura.
60
A única menção sobre valores de repasse do Tesouro Estadual em 1997 é referente às
atividades-meio, ou seja, custeio (pagamento de folha, serviços de manutenção) e foi
de R$ 20 mil mensais, o que foi “insuficiente para arcar com as despesas de mais de 2
dezenas de unidades físicas” (SECMA, 1997, p. 6).

93
Letícia Conceição Martins Cardoso

Figura 2 – “Viva Madre Deus”: teatro de materialização do poder

Teresa Sarney (cunhada da governadora), Roseana Sarney (com chapéu de


bumba-boi), ao lado do Ministro da Cultura Francisco Weffort e sua esposa,
no Projeto Viva Madre Deus, em São Luís: cenas de um teatro.
Fonte: O Estado do Maranhão, 29/06/1997.

Neste momento, a SECMA assume um papel de “intercessora” da


cultura maranhense junto ao MinC e à iniciativa privada, como se pode
interpretar do seguinte discurso:
a SECMA tem servido de elo entre associações civis do meio artísti-
co-cultural, o Ministério da Cultura e o empresariado, captando re-
cursos para realizar projetos de relevância cultural como a continu-
ação da reforma da cobertura do Palácio dos Leões, a revitalização
do entorno da Igreja de São José de Ribamar, apoio à divulgação
dos festejos juninos no Maranhão e reforma da Casa de Cultura Jo-
sué Montello, como exemplos notórios (SECMA, 1997, p. 7).

É evidente que os “projetos de relevância cultural” mencionados são


na verdade aquilo que a Secretaria e o Estado consideram relevante na-
quele momento. Nota-se uma concentração dos projetos, mais uma vez,
no setor do patrimônio arquitetônico (“cobertura do Palácio dos Leões,
a revitalização do entorno da Igreja de São José de Ribamar, reforma da
Casa de Cultura Josué Montello”). E também uma contínua atenção para
com a “cultura popular” (“apoio à divulgação dos festejos juninos no Ma-
ranhão”).

94
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

As Coordenadorias de Patrimônio Cultural, Ação e Difusão Cultural


e Memória e Documentação receberam recursos orçamentários do Te-
souro Estadual. Mas duas destas coordenadorias foram destacadas pelo
discurso oficial:
Cabe aqui grande destaque à atuação da Coordenadoria de Ação e
Difusão Cultural, através de suas unidades subordinativas, como
o Centro de cultura popular Domingos Vieira Filho, responsável pela
promoção de vários eventos artístico-culturais no decorrer do perí-
odo findo. [...] À Coordenadoria do Patrimônio Cultural, responsável
pela política de preservação do nosso valioso conjunto arquitetônico,
coube a tarefa de estar à frente naquela [sic] que foi a grande conquis-
ta na área da cultura no ano de 1997: a homologação pela UNESCO,
da cidade de São Luís como patrimônio mundial, coroando uma luta
de mais de vinte anos (SECMA, 1997, p. 6, grifos meus).

Das sete atividades de “dinamização” da Secretaria, em 1997, duas


não foram executadas, a de Museus e a de Municipalização da Cultura
(repetindo o que havia ocorrido no ano anterior). Mas, foram efetivadas
as seguintes:

A) “Dinamização da Coordenadoria de Memória e Documentação”,


que promoveu a partir de 5 convênios com o Governo Federal (MinC): 1)
Editorial Documenta Maranhão – 97, cujo conteúdo preserva a memória
documental que serviu como defesa da cidade de São Luís como Patri-
mônio da Humanidade; 2) Resgate dos documentos históricos da Capita-
nia do Maranhão, existentes no arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa;

B) “Dinamização da Coordenadoria de Ação e Difusão Cultural”, que


realizou: 1) Projeto Viva Madre Deus (arraial da Madre Deus, incluindo de-
coração, sonorização, infra-estrutura, “154 apresentações de grupos fol-
clóricos e 15 shows com artistas maranhenses”, feitos em quatro pontos
do circuito); 2) Convênio com a União para a restauração e adaptação do
Solar Santa Terezinha para sede da Escola de Música do Estado; 3) Convê-
nio com o MinC para elaboração do Banco de Dados sobre o Patrimônio
Histórico-Cultural do Estado do Maranhão para ser disponibilizado na In-
ternet; 4) Convênio com a União, através do MinC para apoio à manuten-
ção do Teatro Arthur Azevedo;

C) “Desenvolvimento e Apoio à Produção Cultural”, que desenvol-


veu as seguintes ações através do CCPDVF e da Comissão Maranhense
de Folclore (CMF): 1) Convênio com a União para o “apoio e incentivo aos

95
Letícia Conceição Martins Cardoso

festejos juninos do Maranhão, através de apresentações de grupos fol-


clóricos em diversos locais onde são montados arraiais, sendo executado
pela CMF [...] envolvendo 214 grupos folclóricos, em 252 apresentações”
(SECMA, 1997, p. 11); 2) Apoio aos arraiais da Vila Palmeira e da Praia
Grande, liberando co-patrocínios a 28 grupos folclóricos;

D) “Implementação das atividades da Coordenadoria do Patrimônio


Cultural”: o que pode ser observado no Relatório, devido à ausência da
página que se refere a esta atividade, foi que esta contou com altos finan-
ciamentos do MinC (numa primeira fase, R$ 543.114,00; numa segunda
remessa, R$ 875.336,53) e também do BID (Banco Interamericano do De-
senvolvimento).

E) “Preservação do Patrimônio Cultural do Maranhão”: esta estraté-


gia, criada em 1997, com a finalidade de garantir o Título de Patrimônio
Mundial, recebeu recursos provenientes de dois convênios com a União,
através do MinC: 1) Conclusão das obras de restauração do Museu Histó-
rico e Artístico do Maranhão; 2) Conclusão das reformas da Igreja da Sé.

Como se pode constatar, grande parte das ações desenvolvidas na


rubrica “dinamização das coordenadorias” estiveram atreladas à grande
meta do Governo para a cultura em 1997: o Título de Patrimônio Mundial
para São Luís, que se fundamentou pela presença do “maior conjunto
arquitetônico de origem civil portuguesa” numa capital brasileira e “pela
singularidade e relevância dos seus aspectos histórico-culturais” (SAR-
NEY, PLANO MAIOR, 2000), como a própria Governadora destacou.

Durante a gestão de Eliézer Moreira Filho, na Secretaria de Cultura, a


questão do Patrimônio esteve sempre presente na agenda do Estado. E o
tratamento dispensado à cultura pelo Secretário é norteado por seu en-
tendimento de cultura como sinônimo de erudição, uma “cultura animi”,
como ressaltei anteriormente.

A proposta de inclusão do Centro Histórico de São Luís no livro do


tombo do Patrimônio Mundial da UNESCO foi aprovada em 4 de de-
zembro de 1997. A partir daí, 220 hectares do centro histórico da cidade
(bairro da Praia Grande e adjacências), abrangendo quatro mil imóveis
com valor histórico-arquitetônico (construções do século XVIII e XIX),
passaram a constituir Patrimônio Cultural da Humanidade.

96
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

O clima de euforia e a sensação de dever cumprido da SECMA per-


mearam o Relatório de Atividades de 1997, ano da esperada homologa-
ção, como se pode depreender da citação de Aloísio Magalhães, ex-dire-
tor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que abre
o documento: “Não tem sentido a memória apenas para guardar o passa-
do. [...] A tarefa da preservação do patrimônio cultural brasileiro, ao invés
de ser uma tarefa de cuidar do passado, é essencialmente uma tarefa de
refletir sobre o futuro” (SECMA, 1997, p. 3).

A concessão desse título foi largamente utilizada como marketing


político – e a temática do “novo”, recorrente nas campanhas e discursos
desenvolvimentistas de José Sarney, foi reelaborada pela filha, para a
construção de um novo e, ao mesmo tempo, antigo projeto para o Esta-
do: o projeto “Maranhão de um novo tempo”, que talvez só seria possível
com Roseana Sarney à frente do Governo. Neste contexto, o “novo” é si-
nônimo de “progresso” e “modernidade”. Como analisou Gonçalves (2006,
p. 108):
[esses são capitais que] apontam uma pseudoclivagem política em
relação a procedimentos de gestões anteriores, de ‘descontinuida-
de’ em relação a práticas anteriores, como afirmou Roseana Sarney
Murad, na posição de governadora eleita em 1994: ‘A palavra de or-
dem é crescimento com modernização. Modernização de métodos
administrativos, de tecnologias, de produção e de distribuição’.

Na esfera cultural, Roseana Sarney fortaleceu o projeto político “Um


novo tempo” com o título de Patrimônio da Humanidade para São Luís.
Em anúncio publicitário, o Governo divulgou “Um novo tempo na Madre
Deus” (O Estado do Maranhão, 20/06/1997, p. 10), referindo-se ao “Proje-
to Viva Madre Deus”. A própria política cultural da SECMA foi definida no
Relatório de 1997 como “uma bandeira desfraldada em prol de um novo
tempo” (SECMA, 1997, p.6).

A mídia contribuiu para caracterizar o fato como obra, exclusiva, do


Governo de Roseana Sarney: “Quando o resultado foi proclamado, encer-
rava-se um processo iniciado há menos de dois anos, quando, em Paris, a
governadora formalizou a candidatura de São Luís à Lista do Patrimônio
Mundial” (O ESTADO DO MARANHÃO, 19/12/1997). O anúncio da homo-
logação foi divulgado pelo jornal O Estado do Maranhão com uma maté-
ria de capa cujo título foi uma fala da governadora: “Roseana: ‘agora é a
vez de Alcântara’” e o subtítulo: “Governadora diz que iniciará gestão jun-

97
Letícia Conceição Martins Cardoso

to à UNESCO para tornar Alcântara Patrimônio da Humanidade”, acom-


panhada de uma foto de Roseana Sarney na cerimônia de homologação,
em Nápolis, Itália.

No entanto, o processo que culminou no tombamento do centro


histórico de São Luís pela UNESCO, em 1997, remonta a datas e fatos
muito anteriores. Foi iniciado no Governo de João Castelo, na década de
70. Como informa Corrêa (2003, p. 123): “Deve-se levar em conta o fato
de São Luís estar incluída no Programa de Preservação das Cidades Históri-
cas do Ministério do Planejamento, desde a década de 1970”. Além disso,
o Centro Histórico de São Luís foi tombado por lei federal em 1955 e por
lei estadual em 1986. Somado a esses fatores, Corrêa destaca a criação
da FUNC (Fundação de Cultura da Cidade) na administração municipal
de São Luís, por Jackson Lago, do PDT (1989-1992), como agente que
teria contribuído a longo prazo para a aquisição do título. A FUNC teria
sido criada para atender a população que exigia maiores investimentos
da prefeitura na limpeza da cidade, na recuperação de prédios históricos
e no apoio a manifestações populares.

Esse período coincide com o Governo de José Sarney na Presidência


da República (1985-1990) e de Epitácio Cafeteira (1987-1990) no Estado
do Maranhão. Nas três esferas do executivo foram realizadas obras de
restauração histórica em São Luís, com verbas oriundas do recém-criado
Ministério da Cultura e, também, da recém criada SECMA. Nessa época,
portanto,
iniciou-se o maior projeto de restauração do qual se tem notícia na
capital: o Projeto Reviver, administrado principalmente pela SECMA,
quando o Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) – sob a di-
reção do engenheiro Phelipe Andrés – coordenou os trabalhos de
revitalização do Centro Histórico. A partir daí elaborou-se o pedido
formal de inscrição de São Luís na lista da UNESCO, que em 1997
aprovou o processo e a capital maranhense recebeu esta inscrição
internacional (CORRÊA, 2003, p. 123).

O “Projeto Reviver” substituiu o antigo “Projeto Praia Grande” (ela-


borado desde 1977 e cujo nome se refere ao bairro em que se concentra
grande parte do centro histórico). A mudança de nome não significou
apenas uma mudança na nomenclatura61; revelou, sim, uma concepção
61
“Quando da mudança do nome Projeto Praia Grande para Projeto Reviver, foi abandonada
uma parte significativa dos referenciais teóricos do projeto, dificultando a plena
revitalização da área e criando mesmo alguns problemas para sua conservação. O nome

98
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

preservacionista, associando a idéia de revitalização à recuperação de


uma “identidade perdida”, de maneira nostálgica (CORRÊA, 2003, p.128).

Chamo a atenção ainda para o fato de que apesar de o tombamen-


to ter se dado sobre uma área específica da cidade – o centro histórico
de São Luís –, o discurso oficial e a mídia redimensionaram o título con-
cedido e o ressemantizaram, ampliando sua abrangência. Nos discursos
jornalísticos e oficiais, a cidade de São Luís como um todo se tornou pa-
trimônio mundial. O que é expresso em manchetes como “São Luís – pa-
trimônio cultural da humanidade” (Site oficial do Governo do Estado);
“Casarões e Sobrados da Ilha Universal” (Jornal O Estado do Maranhão,
05.09.97); “São Luís é cidade do Mundo” (Jornal O Imparcial, 04.12.97);
“São Luís, Patrimônio de Todos” (Jornal O Imparcial, 06.12.97); “Mundo se
rende aos encantos de São Luís” (Jornal O Estado do Maranhão, 19.12.97);
“São Luís da gente e do mundo” (Jornal O Estado do Maranhão, 19.12.97).

O discurso está relacionado, como diz Foucault (1995, p. 52), a uma


prática social. A categoria discurso indica a instância da linguagem en-
quanto prática interativa, modo de produção social e, portanto, locus de
manifestação de ideologias, de conflitos e confrontos latentes nos agen-
tes que dele fazem uso. É neste sentido, que tais discursos jornalísticos e
oficiais contribuíram para que o episódio do tombamento fosse interpre-
tado como uma conquista da Governadora para o povo do Maranhão,
numa tentativa de identificação das ações do Estado com as ações da
governante.

Como referi no capítulo anterior, a família Sarney é proprietária do


jornal O Estado do Maranhão, o de maior circulação da região, e do prin-
cipal sistema de rádio e televisão: o Sistema Mirante e o Mirante Sat, que
recebem o sinal da Rede Globo. Os outros dois sistemas de TV mais re-
presentativos do Estado pertencem a correligionários ou aliados da fa-
mília: um, a TV Difusora (que recebe o sinal do SBT), é do senador Edison
Lobão; o outro, a TV Praia Grande (que recebe o sinal da Bandeirantes)
pertence ao deputado Manuel Ribeiro, oito anos presidente da Assem-
bléia Legislativa do Maranhão, durante os Governos de Roseana Sarney
(1995-1998/1999-2002). Além disso, fazem parte do Sistema Mirante 19
emissoras de rádio (AM e FM).
‘Reviver’ nada tem a ver com aquele espaço da cidade que é consagrado pela tradição, no
sentimento interiorizado em todos nós, como Praia Grande” (Jornal O Clarim, 1995 apud
CORRÊA, 2003, p. 128).

99
Letícia Conceição Martins Cardoso

A política, de modo diferente do que acontecia na modernidade,


já não tem sua localização primordial no espaço nacional e nos Estados-
nação – apesar de não poder subestimá-los, pois são instituições que
se mantêm vigentes, ainda que relativizadas. Por isso, analisa Rubim
(2003b), o lugar da política contemporânea deve ser pensado como per-
passado por contrastes e tensões advindos de um momento histórico de
transição, em que fluxos, interesses, demandas globais e nacionais se en-
trecruzam em disputa.

Diante dessas circunstâncias de tensões e de disputas pelo poder,


acirradas pela proliferação de movimentos contra-hegemônicos e de
novos centros de poder, entendo que haja interesse dos políticos em se
inserir nos meios de comunicação de massa, ou mesmo em controlá-los,
porque a mídia se tornou, como observaram diversos autores (BUCCI,
1996; CANCLINI, 1997; RUBIM, 2000), um espaço público privilegiado da
contemporaneidade.

De acordo com Rubim (2003a), a política supõe sempre um conjun-


to de instituições, práticas, atores, capazes de produzir sua apresentação
e sua representação visíveis na sociedade. A plasticidade desses regimes
de visibilidade obriga a política a possuir uma dimensão estética, que
não pode ser desconsiderada, em particular em uma sociedade na qual
a visibilidade adquiriu tal relevância, como na contemporaneidade, atra-
vés da nova dimensão pública de sociabilidade: a mídia.

Ao adquirir o estatuto de espaço público do contemporâneo, a mí-


dia pode ser usada como centro produtor e reprodutor de poder simbóli-
co e de ideologias, a favor de determinados grupos ou setores sociais, ora
controlada por esses grupos ou ora motivada por interesses econômicos,
já que os sistemas de comunicação, apesar de realizarem um serviço pú-
blico, são antes empresas, que se mantém através do lucro.

No Maranhão, a política interfere diretamente na produção midi-


ática. Mesmo aquelas empresas que não são ligadas à família Sarney,
acabam muitas vezes sendo influenciadas pelo poder econômico do
Estado, já que este constitui a maior conta de anúncios publicitários do
Maranhão. Os recursos financeiros dos jornais no Maranhão, por exem-
plo, provêm, sobretudo, da publicidade e não das assinaturas/vendas
dos exemplares, o que poderia garantir mais autonomia para a empresa

100
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

jornalística e, consequentemente, mais qualidade/credibilidade da infor-


mação.

Sendo assim, há um terreno propício para que a mídia local seja um


locus de controle – que não é total, nem exercido a todo momento, o
que quer dizer que existem espaços a ser ocupados por outros grupos. O
agendamento das notícias nesses veículos de comunicação identifica-se,
portanto, frequentemente com os interesses de seus dirigentes ou patro-
cinadores.

Analisando algumas edições de jornais da época, percebi que os


discursos oficiais e midiáticos convergiram para uma personificação/ma-
terialização do Estado ou, como teoriza Geertz (1997), uma antropomor-
fização do poder. Processo semelhante é definido por Bourdieu (1996, p.
83) como uma “alquimia da representação”:
através da qual o representante constitui o grupo que o constitui:
o porta-voz dotado do poder pleno de falar e de agir em nome do
grupo, falando sobre o grupo pela magia da palavra de ordem, é o
substituto do grupo que existe somente por esta procuração. Gru-
po feito homem, ele personifica uma pessoa fictícia [...] ele recebe
o direito de falar e de agir em nome do grupo, de ‘se tomar pelo’
grupo que ele encarna, de se identificar com a função à qual ele ‘se
entrega de corpo e alma’, dando assim um corpo biológico a um
corpo constituído. Status est magistratus, ‘o Estado sou eu’.

O título de Patrimônio da Humanidade foi personificado por Rosea-


na Sarney. Como se pode deduzir do seguinte trecho do Jornal O Estado
do Maranhão (04/12/1997, p. 6, grifos meus):
São Luís chegou onde [sic] a história determinou: nas mãos do mun-
do. Nasceu francesa, viveu holandesa e tornou-se lusitana; cresceu
como uma síntese de várias culturas, o que a torna diferente, nada
parecida com as demais cidades brasileiras. Agora é Patrimônio da
Humanidade, título conquistado graças ao trabalho de todos os
que a construíram ao longo dos séculos e à determinação da gover-
nadora Roseana Sarney e sua equipe.

E na fala da própria governadora, após a proclamação do título: “Es-


tou muito emocionada e muito orgulhosa dessa conquista. Afinal, sou
maranhense, nasci, estudei e vivo em São Luís, esta cidade que amo. São
Luís passa a ser agora uma referência cultural para toda a humanidade”.
(O Estado do Maranhão, 04/12/1997, p. 8).

101
Letícia Conceição Martins Cardoso

Além disso, o acontecimento62 passa a ser divulgado como um pre-


sente para o povo, o que pode ser observado na fala do Secretário de
Cultura, Eliézer Moreira:
Foi um esforço do governo que aí está. Devemos este patrimônio
ao povo do Maranhão. É uma homenagem à cultura de São Luís,
que tem no seu patrimônio arquitetônico uma das imagens mais
fortes. Elogio a capacidade de articulação da governadora que en-
tregou o dossiê pessoalmente em maio, na França junto com o pre-
sidente FHC. (O Estado do Maranhão 04/12/1997, p. 8).

Ou ainda, uma conquista do povo, como no artigo de José Chagas,


publicado em O Estado do Maranhão (19/12/97):
[...] o reconhecimento de São Luís como patrimônio da humanida-
de é uma vitória do passado e do presente de nosso povo, com uma
responsabilidade imensa que agora cabe a todos nós. Muitos lu-
taram por um futuro que hoje é passado e nós temos que honrar
cada vez mais esse passado, para que tenhamos um futuro ainda
melhor. [...] São Luís é hoje mais São Luís do que nunca. [...] E feliz o
governo que, com seu decidido empenho, marcou a culminância desse
trabalho de tantas e tantas gerações, através dos séculos.

Mas o patrimônio não reinou sozinho na agenda pública do Estado.


Ele esteve aliado a uma “cultura popular maranhense”. Em 1997, ações
voltadas para a “cultura popular” começaram a ser intensificadas pela
SECMA e divulgadas na mídia nacional. Esse processo foi desencadeado
a partir do projeto “Festejos juninos do Maranhão – promoção, difusão
e registro”. Apesar da denominação, que sugere ações diversificadas de
“promoção/difusão/registro”, trata-se na verdade da realização da “Cam-
panha Publicitária para as Festas Juninas 1997, intitulada Descubra essa
Magia”63 (SECMA, 1997, p. 14), que envolveu a Comissão Maranhense de
Folclore (CMF), a SECMA, a Secretaria Extraordinária de Comunicação So-
cial, a Empresa Maranhense de Turismo (MARATUR) e a VCR – Produções
62
De acordo com teóricos do Jornalismo (Nilson Lage, José Marques de Melo, Adriano
Duarte Rodrigues, entre outros), o acontecimento jornalístico é um fato que virou
notícia. Um fato digno de nota, que merece publicização no discurso midiático devido a
características como excepcionalidade, interesse público, singularidade e a relevância da
personalidade.
63
A referida campanha compreendeu a criação e veiculação de: a) 95 outdoors em 7 cidades
(São Luís, Imperatriz, Belém, Parnaíba, Palmas, Teresina e Fortaleza); b) 1 anúncio de 1
página na Revista Veja (15 a 22 de junho) e na Revista Isto É (22 a 29 de junho); c) 1 filme
de 30 segundos veiculado na Rede Globo em 5 praças (MA, Belém, Brasília, Rio de Janeiro
e São Paulo) em horário de reconhecida audiência, de 20 a 24 de junho; d) confecção e
distribuição de cartazes.

102
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

e Publicidade (SECMA, 1997, p. 14). Novos atores ampliam o campo em


análise.

A campanha publicitária do Estado, que teve como principal alvo


o mercado turístico, foi bancada com recursos provenientes do Mecena-
to (Lei de Incentivo), mecanismo de fomento criado para financiar proje-
tos culturais. Como uma campanha publicitária do Estado pode ter sido
aprovada como um projeto cultural? A resposta pode estar na parceria
estabelecida entre a Comissão Maranhense de Folclore (CMF) e a SECMA.
Composta por intelectuais, pesquisadores e folcloristas, a CMF foi res-
ponsável pela concepção deste e de muitos outros projetos da SECMA,
fundamentando-se num “discurso científico”.

Assim, o discurso autorizado da CMF pode ter contribuído para le-


gitimar as ações do Estado na esfera cultural. Como destaca Foucault
(2001, p. 13), em nossas sociedades a “verdade” é centrada na forma do
discurso científico e nas instituições que o produzem; é ainda produzi-
da e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante de alguns
aparelhos ligados à política ou à economia.

A Comissão é entendida aqui como uma dessas instituições que


produzem discursos revestidos de cientificidade e que podem ser ajus-
tados aos interesses estatais. O Estado patrocina a CMF em diversos as-
pectos: a sede da Comissão é um prédio estadual; os Boletins da CMF são
geralmente publicados e lançados pelo CCPDVF; além disso, os livros dos
intelectuais e pesquisadores que compõem a CMF são regularmente pu-
blicados pelo Estado e ainda, muitos integrantes da Comissão também
são membros da SECMA, como é o caso da então presidente da CMF, Ma-
ria Michol Carvalho, também diretora do Centro de Cultura Popular do
Estado.

Esses “intelectuais-administrativos”, que podem ser entendidos


como intelectuais de corte (GEERTZ, 1997) devido à proximidade com o
poder público e o trânsito livre nas Universidades, tornaram-se uma es-
pécie de porta-vozes oficiais (ou oficiosos?) da “cultura popular” no Ma-
ranhão. Seus textos são considerados “leituras obrigatórias” para novos
pesquisadores e estudiosos da cultura do Maranhão. Mas, qual a legiti-
midade dessa instituição e de seus membros enquanto tradutores ou
porta-vozes das expressões culturais do Maranhão? Quem elegeu seus
discursos como autorizados não foi o Estado? Então, pergunto-me até

103
Letícia Conceição Martins Cardoso

que ponto as pesquisas, análises e as próprias ações da CMF não esbar-


ram numa autocensura de seus atores, por estarem vinculados ao Estado.

Outro ponto que discuto é a concepção “folclórica” – presente inclu-


sive na denominação da Comissão – que permeia não só trabalhos da
CMF como também acaba por orientar ações da SECMA. A tendência em
“folclorizar”, de conceber os produtos culturais como exóticos, valoriza a
tradição como presença necessária do passado (ORTIZ, 1985, p.70-71),
considerando as inovações, as transformações da cultura como dessa-
cralização da sabedoria popular. É uma forma conservadora de tratar a
cultura, definida por Ulpiano Meneses como a tentativa de criar “museus
vivos”, de “museificar” o patrimônio cultural, atraindo visitantes pela ence-
nação e dramatização da memória, através de ilusões:
[...] ao pretender anular distâncias com o passado, [essa tendência]
acaba reduzindo-o a mero presente anacrônico: [...] um caso de
“disneyficação” da história. Supor que se possa visitar o passado –
um passado fetichizado e congelado, oferecido à visão, confundido
com conhecimento – é postura confortavelmente anti-histórica e
antipedagógica. (MENESES, 1999, p.18).

Interpreto essa concepção de cultura como tradicionalista/conser-


vadora, que tenta “proteger” e “conservar” a tradição por meio de uma
atitude passadista, de recusa das inovações; e, ao mesmo tempo, esta-
tista (CANCLINI, 1983) na qual a gestão cultural do Estado confunde-se
com a fabricação de identidades de um povo, ao reproduzir estruturas
ideológicas e relações sociais que legitimam essa prática.

Segundo Barbero (2005, p. 68), diante do discurso que vê cultu-


ras tradicionais apenas como algo a ser conservado, cuja autenticidade
se encontraria no passado e para o qual qualquer intercâmbio aparece
como contaminação, é necessário afirmar que “não é possível ser fiel a
uma cultura sem transformá-la, sem assumir os conflitos que toda comu-
nicação profunda envolve”.

Em sua gestão cultural, o Estado construiu uma identidade mara-


nhense vinculada à noção de patrimônio cultural. Mas o que realmente
interessou foi o patrimônio arquitetônico – de origem européia, dos sé-
culos XVIII e XIX – aliado a uma idéia de “cultura popular maranhense”.
Assim, o Maranhão foi divulgado como uma mistura de “cultura erudita”
(européia) e “cultura folclórica” (exótica). Um lugar “mágico a ser desco-

104
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

berto” pelo mundo, como sugeriu a campanha publicitária do Estado. As


ações estatais de cultura convergiram para uma tendência que identifi-
cou o “patrimônio” com a preservação do próprio Estado, recorrendo ain-
da à origem étnica (“cultura popular”) para reforçar a afirmação nacional.
Tais características são próprias da concepção estatista do nacional-po-
pular classificada por Canclini (1983).

Ao conceber as transformações na cultura como “descaracteriza-


ções”, “modernizações”, “espetacularizações”, como ameaça ou algo ne-
cessariamente prejudicial, noto que essa concepção conservadora e
estatista da cultura, presente nos Governos que aqui servem de campo
empírico, acaba sendo tão extremista quanto a ótica mercadológica da
cultura (cultura vista como produto, visando ao lucro), porque não admi-
te que as dinâmicas sociais integrem o fenômeno cultural, ou seja, quer
conservar a cultura livre das influências do mercado, do turismo, da tec-
nologia e da mídia (como se isso fosse possível). No entanto, não assume
que o próprio Estado seja um ator que interfere nesse universo simbóli-
co.

Tido como “agente responsável pela cultura tradicional” (SECMA,


1995, p. 4), o Estado é aquele que protege, conserva, promove e divulga.
Mas, ações do próprio Estado motivam aquilo que a sua gestão cultural
afirma rejeitar. Por exemplo, a partir da formalização das relações entre
os grupos culturais e o Poder Público, mediante pagamento oficial pelas
apresentações, os atores culturais acabam modificando sua relação com
a cultura. Outro exemplo, a inserção dessas manifestações num calen-
dário oficial turístico e de festas contribui para a mercantilização desses
bens como produtos turísticos. E nesse processo o Estado se utiliza dos
mesmos suportes (mercado, turismo, tecnologia, mídia) para legitimar as
ações destinadas à cultura segundo seus interesses. Em poucas palavras,
essa concepção considera os atores culturais como incapazes de gerir a
cultura, entre outros motivos, porque podem transformá-la, descarac-
terizá-la e, assim, prejudicá-la. Em contrapartida, atribuindo ao Estado
o papel – exclusivo – de “agente responsável pela cultura tradicional” o
discurso oficial tende a legitimar as ações estatais como indispensáveis à
“preservação e difusão” dos bens culturais.

105
Letícia Conceição Martins Cardoso

Oficializando a “cultura popular”

A verba proveniente da renúncia fiscal incrementou a Coordena-


doria de Ação e Difusão Cultural, que realizou diversas ações ligadas à
cultura considerada popular, aquilo que o discurso oficial registra como
“grupos folclóricos” (SECMA, 1997, p. 11). Através das rubricas “Dinamiza-
ção da Coordenadoria de Ação e Difusão Cultural” e “Desenvolvimento
e Apoio à Produção Cultural”, a Coordenadoria forneceu recursos finan-
ceiros diretos a segmentos da “cultura popular”. O executor dos projetos
foi o Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, em parceria com a
Comissão Maranhense de Folclore, que realizava os repasses para os gru-
pos e artistas culturais.

Entretanto, o dinheiro captado pelo Estado junto às grandes em-


presas (EMBRATUR, TELEBRÁS, etc.), através da Lei Federal de Incentivo,
foi repassado aos artistas e grupos culturais com a denominação de “co-
patrocínio” do Estado, sendo omitida a sua procedência.

Decididamente, o Estado assume a função de “agente canalizador da


distribuição da renda cultural”. No entanto, mais do que simples “apoio”
como prevê a denominação dada pela SECMA, a estratégia deu origem à
instituição oficial do cachê64 na esfera cultural no Maranhão.

Assim, enquanto em governos anteriores, as brincadeiras aceitavam


a cachaça e algum agrado65 do padrinho como pagamento pelas apre-
sentações, a partir do Governo de Roseana Sarney esse sistema de apoio
à “cultura popular” foi aperfeiçoado. Novos atores entraram em cena,
alargando o campo de relações entre cultura e política.

O Estado passou a fazer parcerias com outras grandes empresas,


como ALUMAR, CIA. VALE DO RIO DOCE, TELEMAR, através da Lei Federal
de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) para subsidiar o calendário oficial de
festas.

Maria Michol de Carvalho, então diretora do Centro de Cultura Po-


pular Domingos Vieira Filho dos governos de Roseana Sarney, confirma
que esse sistema de apoio, no que se refere à “cultura popular”, era dife-
64
Termo utilizado por agentes da Secretaria de Estado da Cultura para designar o pagamento
pecuniário oficial do Estado aos artistas e grupos culturais, a cada apresentação.
65
Termo costumeiramente usado pelos brincantes para denominar a ajuda financeira que
recebem geralmente dos padrinhos do Boi.

106
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

rente em governos anteriores. Diz ela: “quando Dona Zelinda Lima era a
chefe do antigo Departamento de Turismo, havia uma ajuda oficial para
os grupos culturais, mas esse apoio se dava através da distribuição de
paetês, plumas, veludo, canutilhos, ornamentos, enfim, material para a
confecção das roupas e dos instrumentos” (CARVALHO, 2007, s.p.).

Juntamente com a institucionalizaçãodo do cachê, outra estratégia


é desenvolvida pelo Governo do Estado no campo político em análise, o
cadastro oficial. Para receber os cachês, a manifestação cultural deve estar
legalmente registrada enquanto personalidade jurídica. Então, em 1997,
Roseana Sarney, através do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira
Filho (CCPDVF) institui o cadastro oficial, a obrigatoriedade do registro
jurídico das manifestações culturais populares em troca de cachês pelas
apresentações festivas (São João, Carnaval, Natal, Reveillon e outros).

O CCPDVF é mais um ator relevante nesse processo de oficialização


de uma cultura “para o Estado” e “do Estado”. Originado de uma fusão do
antigo Museu do Folclore e Arte Popular e da Biblioteca do Folclore, criados
em 1971, o órgão foi inaugurado em 1982, no Governo de Ivar Saldanha
(apadrinhado político de José Sarney). O CCPDVF está subordinado à Se-
cretaria de Estado da Cultura e tem como objetivo “preservar, documen-
tar, apoiar, estimular e divulgar ações e atividades no campo da cultura
popular maranhense” (SECMA, 1995,1996, 1997).

Mais do que um “banco de dados, em que consta o nome, o CPF,


o endereço, os contatos dos grupos”, como informou Maria Michol de
Carvalho, na prática, esse instrumento oficial sugere que os grupos cul-
turais obtenham o registro jurídico, o CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa
Jurídica). Explica a superintendente:
Algumas [brincadeiras] ainda não são associações. Mas há uma
necessidade. A partir de 1997, a Comissão Maranhense de Folclo-
re é que repassou os recursos do Estado para os grupos que ainda
não eram pessoas jurídicas. Mas a Comissão está se retirando desse
processo, porque é muito desgastante. Cada um tem que ter a sua
existência jurídica, porque para se receber dinheiro do Estado tem
toda uma exigência burocrática. Realmente foi uma sugestão do
Governo que houvesse uma organização das entidades... A suges-
tão para que os grupos culturais se tornassem associações foi do
próprio Governo, desde o tempo da Maratur.

107
Letícia Conceição Martins Cardoso

O cadastro das manifestações culturais, denominadas pelo CCPDVF,


de “grupos folclóricos”, foi realizado através do “censo cultural”, definido
por Michol Carvalho, como sendo uma pesquisa realizada por funcioná-
rios do CCPDVF que visa conhecer aspectos culturais, religiosos e legais
dos grupos. Segundo ela, essa pesquisa foi baseada num questionário
(Ver Anexo A) que aborda itens como “identificação, histórico, organiza-
ção do grupo, apresentações, batismo e morte e relações do grupo com o
poder público”. A identificação inclui o nome, a origem (bairro, povoado,
cidade), o responsável e a quantidade de componentes. No que se refere
à organização, o censo explora os aspectos legais: se o grupo é registrado
como associação, se possui CNPJ, desde quando (data de criação), se tem
sede, qual o nome da entidade e dos fundadores, se é ligado a alguma
associação/entidade. Quando o assunto é funcionamento do grupo, de-
vem ser descritas as apresentações, o ritual, o histórico. O aspecto que
me chamou mais atenção no questionário, no entanto, diz respeito ao
item “Outras informações consideradas importantes”, no qual geralmen-
te é perguntado ao grupo, qual a relação deste com o poder público (es-
tado e município) e com a iniciativa privada, quanto cada grupo cobra
por apresentação, se há exigências em seus contratos, entre outros.

As atividades de “cadastramento e recadastramento dos grupos fol-


clóricos da capital e do interior do Maranhão” (SECMA, 1995, p.18) come-
çaram em 1995. Em 1996, o Relatório da SECMA registra a participação
de funcionários do CCPDVF:
no acompanhamento das atividades peculiares à dinâmica de
funcionamento de Manifestações/Grupos de cultura popular Ma-
ranhense, tais como: Festa do Divino Espírito Santo, em Alcântara,
na Casa das Minas, na Casa de Nagô, no bairro da Liberdade e em
São José de Ribamar; 03 (três) grupos de Reisado em Caxias-MA;
Bumba-meu-boi, nas etapas do seu tradicional Ciclo Anual de Festa
(Ensaios, apresentações públicas e os encontros); Festejos juninos,
com a verificação do tipo de programação promovida por arraiais/
largos. (SECMA, 1996, p. 19).

Em 1997, o censo cultural concentrou-se na Festa do Divino Espírito


Santo, “sendo desenvolvido o cadastramento/recadastramento de festas
promovidas em São Luís e outros municípios, apoio financeiro, através
de co-patrocínio a 47 festejos do Divino Espírito Santo” (SECMA, 1997, p.
19). Nesse mesmo ano, o CCPDVF, através da Comissão Maranhense de
Folclore, “co-patrocinou”, em forma de cachês 154 apresentações de 65

108
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

“grupos folclóricos” cadastrados pela instituição no âmbito do Projeto


“Viva Madre Deus”; a 214 “grupos folclóricos”, em 252 apresentações, no
projeto de “Apoio e Incentivo dos Festejos Juninos”; a 28 grupos, no pro-
jeto de “Apoio aos Arraiais da Vila Palmeira e da Praia Grande”. A origem
do dinheiro: renúncia fiscal das empresas, através da Lei Rouanet. No en-
tanto, o Estado, materializado na personalidade Roseana Sarney, é que
surge como doador das benesses.

Enquanto principal captador de recursos, o Estado se apropria de


uma verba pública federal e impõe condições – formas de controle –
para repassá-la aos agentes culturais, tornando-se, de forma estratégica,
também o maior empresário da cultura local. Neste sentido, interpreto o
cadastro como instrumento de controle das manifestações pelo Estado,
aos moldes do que era realizado em outros momentos não-democráti-
cos da política brasileira, já que os grupos culturais passam a adquirir um
status atribuído pelo Estado, que implica em vantagens financeiras e na
inclusão (ou exclusão) do grupo no circuito cultural oficial do Governo.

O cadastro classifica e nomeia66 os atores culturais em categorias


distintas. Sendo a nomeação um ato que institui e cria novas realidades
(BOURDIEU, 1996a), o cadastro institui novos significados e relações en-
tre os atores. Como se observa na fala do cantador Humberto de Maraca-
nã, sobre a instituição do cachê:
Ah... [no Governo] de Roseana. Antes disso não me lembro não de
cachê. Antes cada um tinha que se virar mesmo pelo seu, não tinha
um apoio direto pra todos os grupos do Governo. Antes de Roseana
eu nem lembro qual era o apoio que tinha. Tinha um apoio assim,
como eu falei, dona Zelinda dava um apoio financeiro pra ajudar
em alguma coisa [...].

A oficialização do cachê representou um marco para os atores cultu-


rais, instituindo um “antes” e um “depois”, cujo referencial é a governado-
ra Roseana Sarney (“Antes de Roseana eu nem lembro qual era o apoio
que tinha”).

66
Sobre o ato de nomear, Bourdieu (1996a) diz que ele é ao mesmo tempo um ato
de instituição e destituição fundado socialmente, através do qual um indivíduo,
agindo em seu próprio nome ou em nome de um grupo, quer transmitir a
alguém o significado de que ele possui uma dada qualidade, querendo ao mesmo
tempo cobrar um comportamento de seu interlocutor que corresponda a seu
status social.

109
Letícia Conceição Martins Cardoso

Desde o último cadastro realizado, em 2003, o discurso oficial classi-


ficou as “manifestações culturais do Maranhão” em 6 grandes categorias:
“Danças, Festas, Carnaval, Religiosidade afro-maranhense, Lendas do Ma-
ranhão e Ciclo Natalino”.

Os representantes das culturas populares cadastrados como “gru-


pos folclóricos” foram distribuídos nas seguintes modalidades67:
1) Bumba-meu-boi (232 grupos)
2) Quadrilha (71 grupos)
3) Dança Portuguesa (71 grupos)
4) Blocos Alternativos (68 grupos)
5) Tambor de crioula (64 grupos)
6) Cacuriá (36 grupos)
7) Blocos Tradicionais (36 grupos)
8) Grupos Mirins (32 grupos)
Coco (11 grupos)
9) Dança do Boiadeiro (27 grupos)
10) Danças Alternativas (22 grupos)
11) Blocos Organizados (21 grupos)
12) Grupos Natalinos (20 grupos)
13) Escolas de Samba (11 grupos)
14) Tribos de Índios (11 grupos)
15) Blocos Afros (9 grupos)
16) Danças (Baião Cruzado, Bambaê de Caixa, Chegança, Caroço,
Fita, Lelê, Lili) (7 grupos)
17) Cordão (5 grupos)
18) Grupos Alternativos (5 grupos)

67
Nesta classificação, expressões de caráter religioso como o Tambor-de-mina (tido
como representante único do Grupo “Religiosidade afro-maranhense”) e a Festa do
Divino (que, ao lado das Festas Juninas, compõe o grupo “Festas”) recebem o mesmo
tratamento das manifestações de “cultura popular”. Classificações disponíveis no site
da Superintendência de “cultura popular” do Maranhão. <http://www.culturapopular.
ma.gov.br/> Acesso em: 19/10/2007. A relação com os nomes/locais das festas e dos
grupos, em categorias, decorrente do último cadastro realizado pelo CCPDVF em 2003
está disponível no site <www.perfilcultural.com.br>.

110
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Como os grupos foram classificados desta maneira? Como foram


produzidas essas categorias? Que critérios foram usados para distribuir
os grupos? Pergunto-me, por exemplo, qual seria a diferença entre um
“bloco alternativo”, “um bloco afro”, “um bloco tradicional” e um “bloco or-
ganizado”. Um “bloco afro” não pode ser tradicional, e vice-versa? Nem
organizado? Nem alternativo? São questionamentos para os quais não
encontrei resposta no decorrer da pesquisa. Fui informada por Michol
Carvalho de que a classificação é realizada pelo CCPDVF, tendo a assesso-
ria da Comissão Maranhense de Folclore.

Em cada modalidade há, ainda, uma espécie de hierarquização dos


grupos para efeitos de pagamento de cachês pelo Estado. Por exemplo,
no que se refere ao bumba-meu-boi, há uma classificação que distribui
as brincadeiras em Grupos “A”, “B”, “C” e “D”. No Festejo Junino de 2004,
para cada grupo de bumba-meu-boi tipo “A”, o Estado pagou um cachê
de R$ 2.200,00, por apresentação, sendo feito um contrato de 10 apre-
sentações por período festivo, o que totalizava R$ 22 mil no final da festa.
Para aqueles do grupo “B”, o cachê foi de R$ 1.400,00, por evento, com
um contrato de 10 apresentações, somando R$ 14 mil. Aos bois do grupo
“C” destinou-se R$ 1.400,00 por apresentação, com um contrato de no
máximo 8 apresentações, podendo chegar assim a R$ 11.200, 00 por São
João. E os bois da classe “D” receberam R$ 1.400,00, por espetáculo, mas
contratados apenas para 5 apresentações, somando R$ 7 mil ao término
do período junino.

Na prática, essa hierarquização é resultado do trabalho de funcioná-


rios e estagiários do CCPDVF, que vão aos arraiais e terreiros para obser-
var as dinâmicas de cada grupo, atentando para aspectos como “tradição,
vestimentas, quantidade de brincantes, performance”, explica Michol
Carvalho. A partir daí, as informações são colhidas para a organizar os
grupos em classes. Não consegui entender como é que os critérios são
aplicados para vincular um grupo a uma categoria. Pois, grupos como
Boizinho Barrica (da Cia. Barrica Teatro de Rua) e Boi Pirilampo, considera-
dos “alternativos”68 pela programação oficial do São João, fazem parte da
categoria “A”, a mesma em que bois como o Boi de Axixá (orquestra) e Boi
de Maracanã (matraca), considerados “tradicionais” estão incluídos.

68
Os grupos considerados “alternativos” eram denominados “parafolclóricos” pelo CCPDVF.
A mudança do nome deveu-se à insatisfação de alguns representantes desses grupos, que
sentiam prejudicados com a denominação de parafolclóricos. (OLIVEIRA, 2003, p. 45).

111
Letícia Conceição Martins Cardoso

As denominações atribuídas pela Secretaria aos grupos não dão


conta de representar suas especificidades, o que acaba modificando a
forma pela qual os grupos se reconhecem. Como informa Jandir Gonçal-
ves, que é funcionário da Secretaria e conhecedor/pesquisador de diver-
sas expressões culturais populares do Estado, tendo percorrido grande
parte dos municípios maranhenses:
[...] Mesmo Caxias que tem 32 bois, o ritmo específico de lá tá em
decadência. Se tu fores lá, vai pensar que é zabumba, mas não é
esta nossa zabumba daqui. O próprio cadastro da Secretaria de
Cultura enquadrou como zabumba, porque o funcionário não tem
conhecimento, mas o boi não é de zabumba, é um ritmo próprio,
específico só deles. Mas, já existe hoje lá Associação do Boi de Za-
bumba!

Neste exemplo, por ter sido nomeado pelo Estado como sotaque
de zabumba, o grupo acabou registrando-se enquanto tal, já que o ato
de impor uma definição legítima, por estar firmado em um poder, que é
simbólico, acaba por produzir a existência daquilo que afirma (COELHO,
2002), criando novas realidades.

A exigência do cadastro oficial e o pagamento de cachês, entendidas


como estratégias que exercem poder simbólico e instituem realidades,
gera várias implicações na produção cultural no Maranhão. Uma delas
é que a manifestação popular cadastrada – (re)nomeada, classificada
e hierarquizada – reelabora sua existência, apreendendo e assumindo
também outra interface, mais ligada ao mercado e ao mundo dos negó-
cios. O peso do estatuto de pessoa jurídica desperta a sua vocação para
organizar-se como empresa. Além disso, a hierarquização acaba geran-
do novas disputas entre os próprios grupos. O que antes acontecia por
conta das históricas rivalidades entre os “batalhões”69, agora começa a ser
provocado também por uma ação estatal, que implica em vantagens fi-
nanceiras. Os mais bem posicionados no campo estão na classe A. Estes
lutam para manter esse status diferenciado e os outros lutam para conse-
guir melhor posição. Desde então, os grupos populares deixaram de ser
apenas folguedos, deixaram de ser somente “brincadeiras”. Um exemplo
é dado por Michol Carvalho, a coordenadora do processo de cadastra-
mento:

69
Também chamados de “rebanhos”, são denominações que os brincantes usam para se
referir ao conjunto dos componentes do grupo de bumba-meu-boi.

112
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

[...] quando o cadastro começou, eram 22 grupos de tambor de


crioula; no ano seguinte passou para 42, se não me engano, quase
dobrou. E no outro ano já tinham 66 grupos. Aí, tem gente que cha-
ma isso de efervescência cultural. Não, gente, isso não é efervescên-
cia, porque em muitos desses casos são grupos chamados “3 em
1”: os mesmos aparelhos, os mesmos brincantes inscritos como se
fossem dois, três grupos... Então, a gente deu uma parada, há qua-
tro anos [desde 2003] que não se renova o cadastro. [...] Aí, eles me
perguntam muito assim: “agora não se pode mais criar grupo?” E eu
respondo: me parece que criar um grupo não é só pra se apresentar
na programação do Estado, mas para uma dinamização da brinca-
deira, por causa da tradição da sua família, de pessoas que vieram
do interior...

Através do cadastro, o governo exerce maior controle sobre as ma-


nifestações populares, na medida em que, recebendo remuneração fi-
nanceira do Estado e identificadas através de um CNPJ, elas comportam-
se como empresas prestadoras de serviços, dotadas de direitos e deveres
para com o poder público. Isso porque a nomeação exige um desempe-
nho daquele que nomeia e daquele que é nomeado. O nomeado adquire
um algo mais, um novo estatuto e, por isso, não pode mais ser quem era
antes, caso contrário, pode ser destituído do mandato que lhe foi confe-
rido.

Por causa do compromisso assumido pelos grupos com a programa-


ção oficial do Estado e também pela demanda de mercado, que requer
certa rapidez dos espetáculos para que haja maior rotatividade e maior
consumo de bens culturais, os atores ressignificaram as suas expressões
culturais. Como explica Humberto do Maracanã, cantador do Boi:
À proporção que o auto foi desaparecendo, a relação com os per-
sonagens foi sumindo. Tem boi que não tem mais o auto. Todo ano
a gente ensaia o auto e onde se tem uma oportunidade, a gente
faz o auto. Mas com essa corrida danada de tempo pra não perder
os contratos, fica difícil de fazer. Eu sugeri uma vez pro secretário
nas apresentações que são pagas pelo Estado, onde tá a concentra-
ção maior de turistas que eles melhorassem mais o cachê, porque o
auto demora um pouco, mas eles não puderam fazer nada, aí ficou
tudo baseado mais no cantador. Aqui [no terreiro] tem apresenta-
ção com o auto do boi todo completinho no dia de são João. [...]
Antes era assim: dependia dos contratos que a gente tinha na casa
de fulano no bairro tal... mas hoje é assim, a gente tem que ir pra lá,
pro Estado e Município pra sentar com a pessoa que coordena isso.
‘Olha, Maracanã tá pra tal lugar, hoje e amanhã, só pra uma apre-

113
Letícia Conceição Martins Cardoso

sentação’. Quando é só uma apresentação por noite, a despesa é


maior do que o que se vai ganhar. Às vezes acontece de ter 4, ter
5, aproximadamente são 40 apresentação na temporada do São
João...

Nesse processo, cada vez mais, a manifestação cultural passa a ser


percebida como produto/mercadoria pelos atores, que por sua vez res-
significam a sua experiência enquanto integrante do fenômeno cultural,
passando também a dançar no folguedo, que é diferente de somente
brincar o folguedo.

Para Marques (1999), os integrantes do fenômeno cultural passam


a assumir duas atitudes diferenciadas: a de brincar e a de dançar. Brin-
car é ato de participar do fenômeno cultural por devoção, por gosto, por
prazer; já dançar o folguedo dá-se por força de um compromisso oficial,
um contrato do qual decorre dinheiro, prestígio e gera a obrigação de se
apresentar bem. No caso do bumba-meu-boi, a autora argumenta:
[...] o boi é prática quando brinca por adoção-devoção, tirando da
promessa empreendida a força e a energia necessárias à sua par-
ticipação. Por outro lado, o boi é produto quando dança por com-
promisso, quando o elemento artístico sobrepõe-se em função de
ensaios, horários, cachês e despesas, responsabilidades necessárias
à manutenção da empresa (MARQUES, 1999, p. 198).

Tendo que cumprir horários e transportar os brincantes de um ar-


raial para outro em curto espaço de tempo, os donos das brincadeiras
reduziram ou adaptaram sua apresentação conforme a nova lógica, de-
mandada pelas exigências do circuito oficial e do mercado, por isso Hum-
berto fala na supressão do “auto” (narrativa dramatizada em que é desen-
volvido o ritual mítico do bumba-boi) para apresentações contratadas
pelo poder público. Os bumba-bois criaram um formato mais performá-
tico de apresentação, que os brincantes denominam de “meia-lua”. Nela,
foi suprimido o auto ritualístico das apresentações ao público durante os
festejos juninos, mas permanece nas toadas a sequência da apresenta-
ção que compreende: o “guarnicê”, quando o amo do boi chama o grupo
para começar a apresentação; o “lá vai”, aviso de que a brincadeira está
se dirigindo ao local da apresentação; “a licença”, que é a permissão para
que o grupo se apresente ao público; “a saudação”, quando são canta-
das toadas de louvação ao dono da casa e ao boi; o “urrou”, momento
que celebra a alegria de todos pelo restabelecimento do boi depois de
ter sido sacrificado; e a “despedida”, quando a brincadeira é encerrada. A

114
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

brincadeira completa, que inclui o auto, realiza-se, agora, geralmente nos


“terreiros”, localizados na comunidade de origem da manifestação, como
acontece com o Boi de Maracanã.

Carvalho (1995) analisa esses novos significados do Bumba-boi,


como sendo resultantes das relações que o fenômeno desenvolve com o
mundo de casa e o mundo da rua, o que estabeleceria, segundo a autora,
a permanente relação entre a tradição e a modernidade no Bumba-meu-
boi.

No entanto, questiono se essas oposições brincar x dançar; boi prá-


tica x boi produto; o boi de casa x o boi da rua dão conta, realmente, de
entender como os agentes sentem, vivenciam e (re)interpretam a experi-
ência cultural. Será que podemos pensar assim de forma tão dicotômica?
Quando os membros do grupo dançam para a empresa, ao mesmo tem-
po não estão brincando o folguedo? Penso que dançar e brincar são faces
da mesma moeda. Ao nível do cotidiano não se podem separar tais expe-
riências, pois elas se dissolvem no universo simbólico dos atores culturais
como uma só experiência cultural. Lembrando Bhabha (1998, p. 27), “o
trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não
seja parte do continuum de passado e presente, mas o novo como ato in-
surgente de tradução cultural”. E a fronteira aqui não é o ponto onde algo
termina, mas o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente. O
que esse autor quer dizer é que as fronteiras não são limites, nem impli-
cam separações, permitem, sim, um contato com o que estava no outro
lado. Inspirada nisso, vejo que essas interfaces do fenômeno cultural não
têm um início e um fim; nem onde uma começa é necessariamente onde
termina a outra. Assim, o boi é prática e produto; é de casa e da rua não
em momentos distintos, mas a um só tempo.

E a partir desses novos significados suscitados por ações políticas


e mercadológicas, os atores culturais aprendem a acionar estratégias e
discursos que lhes são convenientes. Surge, por exemplo, nas manifesta-
ções culturais a figura do agenciador, que assume o papel do captador de
recursos e mediador da brincadeira junto à mídia. Há, portanto um alar-
gamento do campo com a entrada desses atores, que se acomodam ao
sistema de dádivas, no qual o dom70 é ofertado, geralmente, pelo político.
70
O dom é a prestação, a coisa dada. Dar e receber implica não só em uma troca material,
mas simbólica, na medida em que criamos expectativas em relação à dádiva e que esta
pode ser interpretada de várias formas pelo destinatário. Marcel Mauss dedica ao hau
(o “espírito da coisa dada”), uma resposta para a circulação de dons. Ao dar, dou sempre

115
Letícia Conceição Martins Cardoso

Como explica Mauss (2003, p. 198): “Se o presente recebido, troca-


do, obriga, é que a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonado pelo
doador, ela ainda conserva algo dele. Por ela, ele tem poder sobre o be-
neficiário, assim como por ela, sendo proprietário ele tem poder sobre o
ladrão”. Todo ato de dar implica outros dois atos: receber e retribuir, pois
aquele que oferta cria a expectativa de ser retribuído; aquele que recebe
o dom sente-se na obrigação de retribuí-lo. Por isso, o hau gera sempre
uma contraprestação em relação aos cachês, patrocínios, favores e apa-
drinhamentos.

Com suas palavras, o produtor cultural e agenciador do Boi de So-


nhos, Robson Coral, explica a existência dessa prática de trocas: “No Ma-
ranhão, sem a influência política nada se consegue”. Ele admite a necessi-
dade de apadrinhamentos políticos e favores que garantam o passe-livre
do grupo cultural junto a órgãos públicos, a meios de comunicação de
massa e até mesmo a empresas privadas: “Hoje, a relação com políticos
ou empresários é necessária para manter o boi. Não há como trabalhar
de outro modo, porque somente a comunidade não sustenta mais um
grupo, como acontecia antigamente”.

Vê-se que agentes econômicos e políticos articulam novas formas


de relacionamento com a cultura, muitas vezes, levando os fenômenos
culturais a se apresentarem como espetáculos de massa. Como observa
Carvalho (1995, p.73):
[...] o Bumba-boi passa a ser um produto de exportação maranhen-
se. E, na condição de porta-voz, de veículo de difusão do Estado, o
bumba precisa tornar-se um espetáculo digno de ser apreciado e
aplaudido: bonito, rico, dinâmico para poder despertar o interesse,
chamar a atenção e causar sucesso!

Nesse campo de relações os atores, que têm capitais diferenciados,


movimentam-se, jogam e apostam suas fichas como podem. Aqueles
que têm posições privilegiadas na esfera cultural – reconhecidos seja
como líder de opinião da comunidade, como carismático ou mesmo
como bom artista – têm consciência do capital simbólico que adquirem
e, ao mesmo tempo, da necessidade permanente de legitimá-lo. Nesta
medida, adquirir o reconhecimento de outros agentes sociais pode ser

algo que é parte de mim mesmo. Ao aceitar, o recebedor aceita algo do doador. Ele deixa,
ainda que momentaneamente, de ser um outro; a dádiva aproxima-os, torna-os mais
semelhantes (MAUSS, 2003).

116
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

uma estratégia válida nessa luta pela definição do mundo social. Como
pude observar em pesquisa anterior:
[...] nas últimas duas eleições para a Câmara de Vereadores, vários
candidatos ligados a manifestações culturais e religiosas foram
eleitos. Pinto da Itamaraty (PTB), proprietário de uma das maiores
radiolas de reggae do Maranhão, a radiola de reggae Itamaraty,
elegeu-se em 2002 e foi reeleito em 2004 como o mais bem vota-
do vereador de São Luís. O candidato Ferreirinha da Estrela do Som
(PSL), dono de outra famosa radiola de reggae da capital, conseguiu
tornar-se vereador em 2004. O babalorixá Sebastião do Coroado
(PFL) exerceu dois mandatos como vereador (1996 e 2000). Outro
caso ilustrativo é o do pai-de-santo Astro de Ogum (PPS), que eleito
em 2004, é atual vereador de São Luís. (CARDOSO apud MARQUES,
2004).

Alguns grupos culturais utilizam-se dessa estratégia para anga-


riar maior visibilidade social e midiática, para conseguir cachês mais altos
e maior volume de contratos. Na prática, grande parte dos agentes cultu-
rais assimilou essa política de trocas com o poder público. O dom oferta-
do pelo político espera a contrapartida, que pode vir de diversos modos,
desde a construção de uma boa imagem no meio cultural até o apoio po-
lítico explícito por parte dos agentes culturais. A título de ilustração, cito
o caso do Bumba-meu-boi de Sonhos71, originariamente criado a partir de
uma demanda política.

A criação do Bumba-meu-boi de Sonhos, da comunidade do São Cris-


tóvão (bairro de São Luís) foi apoiada, em 1995, pelo então candidato a
vereador Chaguinha, morador daquele bairro. O produtor cultural Rob-
son Coral relata como se deu o processo de organização da brincadeira:
Foi ele quem deu o primeiro impulso à manifestação, com a compra
de roupas e ornamentos. Mas, em 1998, Chaguinha não se elegeu
e deixou de apadrinhar o boi. Necessitando de um padrinho, o boi
aceitou o auxílio de outro candidato a vereador... Foi aí que entrou
o Albino Soeiro, que decidiu investir no boi achando que na área do
São Cristóvão havia a necessidade de um movimento cultural.

O candidato a vereador Albino Soeiro passou a ser padrinho do gru-


po. Foi eleito em 2000 e padrinho da brincadeira até 2001. Segundo Rob-
son Coral, foi a partir desse apoio que a manifestação começou a ganhar
visibilidade e projeção na capital. Já, em 2003, o Bumba-meu-Boi de So-
nhos foi apadrinhado pelo vice-governador do Estado, Jura Filho.
71
Cf. CARDOSO, 2004.

117
Letícia Conceição Martins Cardoso

Marilena Chauí (2001, p. 86) salienta que no Brasil a cultura política


ainda é bastante alicerçada em práticas populistas, por isso, nem sempre
os representados (cidadãos) se vêem como tal, nem tampouco têm cons-
ciência dessa representação:
[...] os representantes, embora eleitos, não são percebidos pelos re-
presentados como seus representantes e sim como representantes
do Estado em face do povo, o qual se dirige aos representantes para
solicitar favores ou obter privilégios. Justamente porque a prática
democrática da representação não se realiza, a relação entre o re-
presentante e a população é de favor, clientela e tutela (grifos da
autora).

Seja como consolidação do poder do governante ou como ato que


instaura uma relação clientelista, o fato é que a institucionalização do ca-
chê desencadeou o que Maria Michol de Carvalho chama de “esquema
caça níquel”. Ela afirma: “a partir do momento em que houve um aumento
dessa parte financeira, com os cachês, começa a se sentir que as pessoas
passaram a criar grupos [culturais] de uma maneira muito descontrolada,
interessadas no dinheiro”. A partir do instituto do cadastro/cachê, muitos
foram os grupos de bumba-meu-boi, de tambor-de-crioula, de cacuriá,
de quadrilhas que surgiram todos os anos para ser “fregueses dos cachês
do Estado”. Segundo a assessora da Secretaria de Cultura, Kátia Portela,
“realmente, muitos desses grupos são criados apenas para receber os ca-
chês de determinado período festivo, depois da festa eles se desfazem”.

Embora Maria Michol admita que o pagamento de cachês tenha


gerado esse “esquema caça-níquel” na cultura, a sua fala parece negar/
retirar a responsabilidade do Estado nesse processo, atribuindo “culpa”
ao mercado e aos atores culturais. Para ela, há “comercialização do bum-
ba-meu-boi como um negócio rentável para muitos que o tomam como
uma mercadoria turística” (CARVALHO, 2004, s.p.). Neste discurso, é como
se a ação estatal houvesse sido mal compreendida ou mal utilizada pelos
atores, que se apropriaram indevidamente da “política cultural” do Esta-
do.

118
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

O “patrimônio da humanidade” difundindo a “cultura popular”


Figura 3 – A cultura política predominante no Governo de Roseana Sarney

Fonte: O Estado do Maranhão (28/06/1997, p. 4).

A charge72 em tela sintetiza a gestão cultural do Governo de Rosea-


na Sarney, liderada por Eliézer Moreira. Neste momento, há a fabricação
de símbolos nacionais, elegendo o patrimônio arquitetônico (“São Luís:
patrimônio da humanidade”) e as culturas populares (representada pelos
desenhos dos bumba-meu-bois) como símbolos do Estado do Maranhão,
como símbolos dos “maranhenses”. De acordo com a opinião do jornal,
aos olhos do mundo, São Luís foi merecedora do título de patrimônio da
humanidade, também devido a sua destacada “cultura popular”.

Muitas ações do Governo de Roseana Sarney recorreram ao passado


histórico e à origem étnica para reforçar a afirmação do Estado. Como
demonstrei em capítulo anterior, o “patrimônio” foi amplamente utiliza-
do como elemento de nacionalidade no Brasil, identificando-se nação e
Estado. A estratégia foi reproduzida no Maranhão pela Coordenadoria de
72
Charge constitui um gênero jornalístico opinativo, em que o jornalista expressa, através
de imagens (de forma irônica, cômica, lúdica etc.) a opinião do veículo de comunicação.

119
Letícia Conceição Martins Cardoso

Patrimônio Cultural, da SECMA. O tombamento do patrimônio arquitetô-


nico de São Luís, que permitiu à cidade o título de “patrimônio mundial”,
transformou a cidade de São Luís e o Bairro da Madre Deus (muito mais
do que o próprio centro histórico tombado, através do “Projeto Viva Ma-
dre Deus” que aliou a reforma da infra-estrutura do bairro com a promo-
ção de festas populares no local), em símbolos do Governo do Estado,
“revitalizados” pela Governadora, como se pode notar em várias notícias
de jornais. Por exemplo, a capa de O Estado do Maranhão traz estampa-
do no dia 20 de junho de 1997 o título: “Madre Deus é revitalizada”, com o
subtítulo: “Roseana entrega primeira etapa do projeto e inaugura arraial
do bairro” e uma foto do bairro recém-reformado, colorido e enfeitado
para o São João. A matéria mencionada na capa, entretanto, traz a se-
guinte ilustração:
Figura 4 - Roseana Sarney, nas obras do “Viva Madre Deus”: antropomorfização do Estado

Fonte: O Estado do Maranhão (20/06/1997, p. 1).

É a personificação do Estado, Roseana Sarney, e não a obra es-


tatal, que é evidenciada na matéria, cujo título é: “Governadora entrega
hoje 1ª etapa das obras”. O texto da notícia diz que o bairro é “oficializado

120
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

pelo Governo Roseana Sarney como reduto da cultura maranhense”. O


Bairro da Madre Deus torna-se então metáfora da cultura do Estado. A
partir daí, os grupos culturais populares e alguns cantores representantes
da MPM (Música Popular Maranhense) passaram a prestar serviços para o
Estado com maior regularidade, seguindo o calendário oficial de festas73,
sendo remunerados através do cachê. E tal “cultura popular maranhense”
passou a ser difundida em rede nacional, a fim de atrair turistas para a
“cidade patrimônio”.

Essas e outras estratégias do Governo me levam a afirmar que a “cul-


tura popular” foi utilizada pelo Estado servindo como um dos capitais
para a aquisição do título de “patrimônio da humanidade” e, depois do tí-
tulo, divulgada como a “cultura patrimônio mundial”: a cultura do Estado,
“valorizada, difundida, revitalizada” pela Governadora juntamente com o
patrimônio.

Até aqui, na análise dos Relatórios e dos discursos oficiais veiculados


nos jornais, em momento algum percebi uma tentativa de diálogo do Es-
tado com a sociedade. Esta, quando aludida no discurso, é mencionada
como pólo passivo na formulação das políticas culturais (“é uma vitória
do passado e do presente de nosso povo”, “devemos este patrimônio ao
povo do Maranhão”). O problema nesta “política cultural” está em esta-
belecer a igualdade Estado = público, que tende a negar a existência de
uma esfera pública desvinculada do Estado.

Em seu Dicionário crítico de política cultural, Teixeira Coelho (1999),


define a política cultural como um “programa de intervenções realizadas
pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitá-
rios com o objetivo de satisfazer às necessidades culturais da população
e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas”. A
discussão contemporânea sobre política pública cultural pressupõe in-
tervenções estatais e não-estatais. Desse modo, tanto o Estado quanto a
sociedade civil (conselhos, sindicatos, associações, ONG’s, empresas pri-
vadas, cidadãos) são vistos como produtores de políticas culturais. Como
argumenta Barbalho (2005, p. 40 apud RUBIM, 2005), “uma política cultu-
ral é duplamente pública”: a cultura é um documento simbólico social,
pois não é possível lidar com um bem cultural sem remetê-lo à coletivi-
73
O “Calendário cultural e religioso do Maranhão” produzido pelo CCPDVF registra 366
eventos culturais e religiosos do Maranhão, distribuídos em todos os meses do ano. Está
disponível no site <www.perfilcultural.com.br>, no item “cultura popular”.

121
Letícia Conceição Martins Cardoso

dade. Já a política, em seu sentido originário e amplo (politikos), também


se refere à dimensão coletiva da vida humana.

Ao falar em política cultural, portanto, não estou designando ape-


nas as ações do Estado ou de outras instituições com relação à cultura,
sendo considerada um terreno específico e separado da política, redu-
zido à produção e consumo de bens culturais. Emprego o termo para
evidenciar o laço constitutivo entre cultura e política e a redefinição de
política que essa visão implica (ALVAREZ et al, 2000, p. 17).

O Estado que se coloca como “agente canalizador”, “agente respon-


sável pela cultura” e que visa adequar não só suas ações, mas também
a sociedade a uma “visão de cultura” não está exercendo uma política
cultural, talvez exerça uma política estatal de cultura. Lembrando, assim,
aquele Estado “incentivador/ repressor” dos regimes autoritários, que im-
põe definições e di-visões do mundo, baseando-se num discurso popu-
lista, mas sem considerar, na prática, as aspirações populares. Um Estado
que “apóia e incentiva” financeiramente a produção cultural para poder
exercer controle sobre ela.

A gestão cultural desenvolvida pela SECMA, neste primeiro mo-


mento do Governo Roseana Sarney, foi caracterizada: a) pela execução
de ações emanadas do poder estatal; b) pela política de financiamento
do MinC; c) pela meta de adquirir o título de patrimônio da humanida-
de, o que direcionou as ações da Secretaria, essencialmente, para a re-
cuperação e reforma do patrimônio arquitetônico; e c) pela difusão da
“cultura popular”, tratada como fundamento para o título de patrimônio
da humanidade e como resultado dele. Há de se ressaltar, ainda, que não
foram encontrados planos ou planejamentos no órgão referentes a esse
período.

Esse conjunto de ações estatais na área cultural, sem planejamento


e sem a participação popular efetiva, guiado por uma visão (patrimonia-
lista e popular) de cultura é difundido pelo Estado como uma “política
cultural”, legitimado pelo discurso autorizado de atores (intelectuais, pes-
quisadores, CMF, mídia). O ato de nomear, retomando Bourdieu (1996), é
um ato de poder que cria realidades. Se o Estado tem o poder (simbólico)
de impor uma visão/divisão/definição legítima de mundo, acaba produ-
zindo a existência daquilo que afirma. Assim, divulga suas ações como
sinônimo de “política cultural”.

122
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Mas, essa “política cultural” difundida como verdade do Estado


nem sempre é reconhecida pelos atores sociais, logo, nem sempre é tida
como legítima, já que uma condição para a manutenção do poder é o
reconhecimento. Além disso, a obediência também está condicionada à
compreensão de que haverá uma reciprocidade posterior no que se re-
fere a ações que tragam proveito (Swartz, et al., 1966). Desse modo, as
verdades do Estado podem ser aceitas/reproduzidas/reinventadas/con-
testadas pelos atores sociais, segundo seus interesses, de acordo com
sua visão de mundo.

Maranhão: “um grande arraial74”!


A cultura é essencial ao processo de desenvolvimento na mesma
medida em que a identidade é essencial à afirmação de um povo
como unidade cultural, como unidade histórica, e é, de certa ma-
neira, um direito humano de todos os povos.
(Francisco Weffort, Ministro da Cultura – Citado no Relatório da
FUNCMA, 1999).

As palavras do Ministro Francisco Weffort parecem ter inspirado as


ações da Secretaria de Cultura durante o Governo de Roseana Sarney na
segunda fase da gestão cultural (1998-2001), liderada pelo artista Luís
Henrique de Nazaré Bulcão. Neste momento, a idéia do nacional-popular
produzida pelo Estado está cada vez mais presente nas ações destina-
das à esfera cultural. Em meio ao campo fértil de identidades que se en-
trecruzam e que disputam poder no Maranhão, “a identidade” proposta
pelo Estado destacou-se na esfera pública e ganhou maior visibilidade
nos circuitos midiáticos durante esta gestão cultural, produzindo estra-
tégias que tentaram associar “a identidade do povo” – concebida como
“cultura popular” – ao Estado e, mais precisamente, à governante.

Desse modo, entendo que a identidade referida por Weffort como


“essencial à afirmação de um povo como unidade cultural” foi fabricada
pelo Estado para sua própria afirmação e de seu governante.

74
Título inspirado na fala do Secretário de Cultura do Estado, Luís Henrique de Nazaré
Bulcão, ao se referir ao primeiro grande projeto de sua gestão cultural, o São João, cujo
slogan foi “São Luís: um grande arraial”. Um dos significados do vocábulo arraial é “lugar
de festas populares”, provavelmente originado do adjetivo real (século XIV arayal, arreal),
“acampamento do rei” (Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa,
1986).

123
Letícia Conceição Martins Cardoso

Passada a euforia do título que elevou o Centro Histórico de São


Luís a Patrimônio Cultural tombado pela UNESCO, em maio de 1998 o
Secretário de Cultura do Estado Eliézer Moreira é convidado para coor-
denar a campanha política de reeleição de Roseana Sarney. É, então, es-
trategicamente substituído por Luís Henrique de Nazaré Bulcão, poeta,
amigo da governadora e dirigente da Companhia Barrica Teatro de Rua,
grupo cultural do Bairro da Madre Deus, cadastrado como “alternativo”,
que faz releituras estéticas baseado em expressões culturais populares
do Maranhão.

Se nos três anos anteriores, observou-se um tratamento especial da


SECMA em relação à “cultura popular” eleita pelo órgão, a partir de ago-
ra, à frente da Secretaria uma personalidade oriunda do Bairro da Madre
Deus – considerado pelo discurso oficial, como vimos, “reduto da cultu-
ra maranhense” –, com trânsito livre entre os artistas e grupos culturais,
observa-se um sensível aumento das ações priorizando essa “cultura po-
pular” do Estado.

Em entrevista concedida para esta pesquisa em 2007, Luís Bulcão


ratificou que o São João foi, sem dúvida, o carro-chefe de sua gestão, mas
salientou que essa política voltada para a “cultura popular” foi resultado
de um projeto que envolveu outros atores:
[...] Inclusive é um slogan nosso “São Luis: um grande arraial”... Essa
concepção foi fruto de várias razões, mas eu quero prestar uma ho-
menagem, aqui, a uma pessoa que é cabeça disso, que se chama
Godão, Jorge Murad e Roseana. Essa tríade participou junto comi-
go disso. Eu nunca decidi nada só. A gente pensava em conjunto.
A gente reformulava quando um vinha com uma idéia melhor. A
gente tem que homenagear muito Dr. Jorge, por exemplo, que tem
uma visão muito ampla porque ele viveu também, ele é composi-
tor. Ele também entende e conhece música, conhece cultura popu-
lar porque ele teve infância. Os familiares dele deram muito isso pra
ele. Roseana, então, nem se discute. Não é à toa que ela é a grande
foliã. Pra alguns governadores, aquilo [a cultura popular] era pejo-
rativo. Tem uns que se recolhem em casa, ou com medo do fofão ou
por ser o próprio fofão... Ela não, ela sempre ia à luta mostrar que o
povo tem que ser alegre. Então, esses projetos foram concebidos a
quatro mãos. Não foi só Luís Bulcão. [...] E nós não só fazíamos ‘para
a cultura’ como nós ‘fazíamos cultura’ também. Porque eu também
compunha, eu também estava lá dentro do Boizinho Barrica, tava
dentro de outros grupos, fabricando as nossas coisas, né? Nossas
canções...

124
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Aqui, Bulcão ressalta a influência pessoal de Roseana Sarney – con-


siderada “a grande foliã” – e seu marido Jorge Murad nas ações promovi-
das pela Secretaria de Cultura. Destaca também a participação de seu só-
cio José Pereira Godão, fundador da Cia. Barrica Teatro de Rua e, na época,
assessor do órgão da SECMA. Além disso, aliado ao papel de secretário/
gestor ele enfatiza a sua posição de produtor cultural, sublinhando sua
aproximação com a “cultura popular”, com o povo.

Em declaração aos jornais, o novo Secretário afirma: “A cultura ma-


ranhense agora vai pegar fogo!” (O Estado do Maranhão, 03/06/1998, p.
3). Mas que cultura é esta a que Bulcão se refere? É ele próprio que res-
ponde, ao falar sobre a “política cultural” desenvolvida em sua gestão:
Olhe, eu acho que nós tínhamos uma política. E essa política era cen-
trada na cultura popular. Era uma política de cultura. Os recursos vi-
nham e você não via na minha época nenhum caso de desvio de
verbas. Eu nunca fiz nada por subterfúgios... Então... nós tínhamos
uma meta? Tínhamos a alcançar. O que era a meta? Era pelo menos,
que o maranhense conhecesse a sua cultura. Pelo menos isso. Hoje
eu vejo, por exemplo, todo mundo falar. É rara a instituição que pro-
mova qualquer festa que não contrate um bumba-boi. E naquela
época não era assim, porque o Boi sempre era tido como uma insti-
tuição de marginais. Eu digo marginais, assim, colocados à margem
da sociedade. ‘Eu gosto muito de ti, acho muito bonitinho, mas tu
não entras no Palácio’. ‘Eu gosto muito desse batuque, ele é muito
bonitinho, mas tu não passas do Canto da Viração’. Assim que era.
Nós desmistificamos isso. É política de cultura? Deem o nome que qui-
ser! Nós desmistificamos isso.

Luís Bulcão “acha” que em sua gestão cultural houve uma política
de cultura, que teve como alvo principal a “cultura popular”. Segundo ele,
foi essa política que fez o maranhense conhecer e valorizar sua cultura,
desmistificando a “cultura popular”. O discurso de Luís Bulcão me leva a
várias conjecturas. Primeiro, ele produz uma identidade entre cultura e
“cultura popular”: “essa política era centrada na “cultura popular”. Era uma
política de cultura”. Quando se refere à meta de sua gestão, também res-
tringe o termo cultura a uma “cultura popular”, representada pelo exem-
plo do bumba-boi.

Quando o Secretário diz “naquela época não era assim”, refere-se ao


período anterior à sua gestão, “época” em que, segundo ele, o bumba-boi
não era conhecido, nem valorizado. Essa época é comparada aos tem-
pos em que o bumba-meu-boi era proibido de se apresentar nos espa-

125
Letícia Conceição Martins Cardoso

ços centrais da cidade, até a décadas de 60 (“Eu gosto muito de ti, acho
muito bonitinho, mas tu não entras no Palácio”). Desse modo, o discurso
caracteriza a gestão cultural do Governo de Roseana Sarney como um
marco para o bumba-meu-boi, para a “cultura popular”, fazendo ainda
uma referência ao Governo de José Sarney, que permitiu “a entrada do
Boi no Palácio”.

Na frase “Nós desmistificamos isso”, entendo que Bulcão se refere


a um projeto coletivo, que inclui no discurso outros atores, como o ex-
governador José Sarney (que, para ele, inicia o processo de aceitação da
“cultura popular” no Estado), Roseana Sarney, Jorge Murad e José Pereira
Godão. Além disso, o Secretário conclui que essa gestão cultural levou os
maranhenses a dar continuidade ao processo iniciado por José Sarney,
conhecendo e valorizando a cultura (popular).

Finalmente, parece-me que o próprio Secretário de Cultura não tem


certeza se as ações da Secretaria constituem uma política cultural (“eu
acho que nós temos uma política”, “É política de cultura? Dêem o nome
que quiser!”).

Luís Bulcão tenta ainda justificar a eleição da “cultura popular” em


sua gestão, fazendo uma comparação com uma cultura erudita (“culta”)
que, segundo ele, sempre foi privilegiada em momentos anteriores:
Quantas vezes as pessoas não pagam um crítico pra dizer que seus
poemas são lindos? Mas é difícil, o pobrezinho vai pagar quem pra
elogiar? Há uma diferença muito grande, mas nem assim nós nos
descuramos daquilo que nós chamamos da cultura culta, não? Fize-
mos? Fizemos. Ajudamos? Ajudamos, na medida diretamente pro-
porcional, principalmente ao que eles já tiveram, porque eles sem-
pre tiveram muito. Sempre tiveram ‘por cima da carne seca’, né? Acho
que foi a única vez que a cultura popular começou a suspirar, não é? E
olha, que tem gente aí doido pra abafar! Porque não conhece. Não
sabe. Nunca pulou um fofão... não conhece isso, não sabe o cheiro
do povo. Você tem que saber o cheiro do povo, você tem que se
comunicar. Este suor, este olho no olho, este ‘tête à tête’, o boca-a-
boca, é que nos identifica e isso ninguém substitui.

Neste discurso, é interessante notar que Bulcão define o ator da “cul-


tura popular” como “pobrezinho”, aquele que deve ser ajudado, apoiado
pelo Estado. A sua concepção de cultura está relacionada à classe social,
sendo a “cultura culta” produzida/consumida pelas classes dominantes

126
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

e a “cultura popular”, pelo povo, identificado com as classes subalternas.


Uma concepção, portanto, dicotômica e reducionista.

Além disso, há uma oposição “nós x eles” no discurso que correspon-


de à oposição “cultura popular” x “cultura culta”. O Secretário coloca-se
como membro da “cultura popular”, logo, membro do povo (“nem assim
nós nos descuramos daquilo que nós chamamos de cultura culta”) em
contraposição à “cultura culta”, à elite (“eles sempre tiveram muito. Sem-
pre tiveram ‘por cima da carne seca’”).

Subtende-se, assim, que ao afirmar ser do povo, Luís Bulcão tam-


bém está afirmando que a sua gestão cultural é do povo ou, pelo menos,
corresponde às aspirações populares. Por extensão, pode-se dizer que o
próprio Governo de Roseana Sarney é aludido no discurso como um “go-
verno do povo”.

A gestão cultural no papel

A análise dos Relatórios de Atividades dos anos de 1998 a 2001 vai


ao encontro da concepção de cultura definida por Luís Bulcão e da (su-
posta) política cultural desenvolvida pela Secretaria de Cultura, poste-
riormente transformada em Fundação Cultural do Maranhão.

No primeiro ano da gestão de Luís Bulcão, as ações da SECMA foram


distribuídas em três setores: “Atividades”, “Coordenadorias” e “Subsistema
de Treinamento e Desenvolvimento de Recursos Humanos”75 (Ver Qua-
dro 2).
Quadro 4 – Execução das atividades da SECMA por setor (1998):

SECMA – 1998
Atividades Coordenadorias Execução

Implementação das atividades da Coordenadoria


Patrimônio Cultural
do Patrimônio Cultural Não executado por falta de
recursos
Dinamização da Coordenadoria de Museus Museus

75
Este último, resultado de demandas anteriores. Em 1997, o Relatório de
Atividades da SECMA apontou uma “necessidade extrema de se promover
uma política agressiva de recursos humanos melhorando qualidade e eficiência
através de treinamentos” (SECMA, 1997, p. 7).

127
Letícia Conceição Martins Cardoso

Dinamização da Coordenadoria de Memória e


Memória e Documentação
Documentação

Dinamização da Coordenadoria de Recurso orçamentário não


Municipalização da cultura liberado
Municipalização da cultura

Preservação do patrimônio cultural do Maranhão ----

Executado, através de
Desenvolvimento e Apoio à Produção cultural Ação e Difusão Cultural
convênios e mecenato
Fonte: Observação do Relatório de Atividades da SECMA

Naquele ano, houve seis ações sob a rubrica “Atividades”, mas so-
mente foi executada a de “Desenvolvimento e Apoio à Produção Cultu-
ral”, cujo objetivo era “incentivar as manifestações de cultura popular,
produção musical, manter atividades artístico-culturais” (SECMA, 1997,
p. 10). Segundo o Relatório, as demais não foram realizadas “em virtude
da não liberação de recursos”, não sendo possível “executar nenhuma das
metas previstas” (SECMA 1998, p. 8-10).

Nem mesmo o projeto de “Implementação das atividades da Coor-


denadoria de Patrimônio” e o de “Preservação do patrimônio cultural do
Maranhão”, este último criado em 1997 por causa do título de patrimônio
da humanidade, mereceram atenção.

A partir daí, já se percebe uma diferença em relação à gestão an-


terior: o “patrimônio” não configura mais como principal prioridade das
intervenções estatais na cultura.

O projeto de “Desenvolvimento e Apoio à Produção Cultural” foi fi-


nanciado por diversas fontes: recebeu recursos provenientes do Tesou-
ro Estadual (garantidos pelo orçamento), de convênios com o MinC e
do Mecenato (Lei Federal de Incentivo à Cultura), com recursos da TELE-
BRÁS, oriundos da renúncia fiscal. Este projeto ampliou a política de “Vi-
vas”, do Governo do Estado, iniciado pelo Projeto “Viva Madre Deus” em
1997. Apesar de o Relatório de Atividades não ter especificado o valor
total dos recursos da SECMA em 1998, os jornais divulgaram que o ór-
gão investiu, R$ 1 milhão, somente no São João (O Estado do Maranhão,
20/06/98, Caderno Alternativo, p. 8).

Quando a SECMA foi transformada em Fundação Cultural do Ma-


ranhão (FUNCMA), em 1999, a receita do órgão estatal de cultural só

128
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

aumentou a cada ano. E a distribuição de recursos continuou desigual,


concentrando-se no “Programa de Difusão e Apoio à Produção Artística e
Cultural”, que envolve todos os órgãos da antiga “Coordenadoria de Ação
e Difusão Cultural” (CCOCf, CCPDVF, EMEM, Teatro Arthur Azevedo e Tea-
tro João do Vale, substituído em setembro de 1999 pelo Centro de Artes
Cênicas do Maranhão – CACEM) e ainda a “Diretoria de Ação e Difusão
Cultural”, especialmente criada para realizar e acompanhar eventos liga-
dos às festas populares.

Representei a execução dos programas da FUNCMA no seguinte


quadro:
Quadro 5 – Execução dos programas da FUNCMA (1999-2001):

Programas

Programa Manutenção dos Serviços Administrativos


Programa de Conservação da Memória Documental e Recursos do Tesouro Estadual reduzidos
Bibliográfica (executado < programado)
Programa de Dinamização das Atividades Museológicas

Recursos do Tesouro Estadual e convênios


Programa de Difusão e Apoio à Produção Artística e Cultural
(executado > programado)
Programa de Conservação do Patrimônio Arquitetônico,
Paisagístico e Arqueológico Não executado por falta de recursos (executado
= 0)
Programa de Municipalização Cultural
FUNCMA – 2000
Programas
Recursos do Tesouro Estadual (executado =
Programa Manutenção dos Serviços Administrativos
programado)

Recursos do Tesouro Estadual com suplementação


Programa de Difusão e Apoio à Produção Artística e Cultural
(executado > programado)
Programa de Conservação da Memória Documental e
Bibliográfica
Recursos do Tesouro Estadual reduzidos
Programa de Dinamização das Atividades Museológicas (executado < programado)
Programa de Conservação do Patrimônio Arquitetônico,
Paisagístico e Arqueológico
Não executado por falta de recursos (executado
Programa de Municipalização Cultural
= 0)

129
Letícia Conceição Martins Cardoso

FUNCMA – 2001
Programas
Programa Manutenção dos Serviços Administrativos Recursos do Tesouro Estadual (executado =
Programa de Dinamização das Atividades Museológicas programado)

Programa de Difusão e Apoio à Produção Artística e Cultural


Recursos do Tesouro Estadual com suplementação
Programa de Conservação do Patrimônio Arquitetônico, (executado > programado)
Paisagístico e Arqueológico
Programa de Conservação da Memória Documental e Recursos do Tesouro Estadual reduzidos
Bibliográfica (executado < programado)
Não executado por falta de recursos (executado
Programa de Municipalização Cultural
= 0)
Fonte: Observação do Relatório de Atividades da FUNCMA

Percebe-se que os setores da antiga SECMA foram transformados


em seis grandes programas, sendo que em 1999 o programa ligado ao
“patrimônio” (que passou a ser restrito à “conservação”) mais uma vez
não foi contemplado com a execução orçamentária do Estado, junta-
mente com o programa de “Municipalização Cultural”, que em nenhum
dos exercícios financeiros recebeu recursos. Isso demonstra em primeiro
lugar, que o “patrimônio” continuava não sendo prioridade para a gestão
de Luís Bulcão e, em segundo lugar, que não houve interesse em descen-
tralizar as ações estatais de cultura e dar autonomia aos Núcleos Regio-
nais de Cultura do interior Estado, o que contribuiu para uma concentra-
ção de recursos na capital.

O programa de “Difusão e Apoio à Produção Artística e Cultural”,


cujo objetivo é “Apoiar atividades culturais propostas pela comunidade e
incentivar a produção das artes [...]” (FUNCMA, 2000, p. 30), teve nos três
exercícios orçamentários recursos do Tesouro Estadual, incrementados
por convênios, em 1999, e por suplementação, em 2000 e 2001.

A suplementação de receita é um instrumento exclusivo do Che-


fe do Executivo e possibilita a abertura de créditos suplementares para
determinado órgão ou atividade, com a finalidade de atender insufici-
ência nas dotações orçamentárias. Pode ser feita até o limite de 30% da
despesa total do Estado, fixada para o exercício financeiro em questão,
mediante a utilização de recursos provenientes: da anulação parcial de
dotações orçamentárias autorizadas por lei; de operações de crédito;
da Reserva de Contingência; de superávit financeiro apurado em balan-

130
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

ço patrimonial do exercício anterior; de doações; de convênios, contra-


tos, acordos, ajustes e outras transferências (MARANHÃO, Lei Estadual nº
7.497, 22/12/1999).

Isso quer dizer que as suplementações de receita do programa de


“Difusão e Apoio à Produção Artística e Cultural” foram autorizadas pela
própria Governadora Roseana Sarney, seja remanejando recursos que se-
riam aplicados em outras áreas (anulação de outras dotações orçamen-
tárias) ou através de “doações, convênios, contratos, acordos, ajustes e
outras transferências”.

Os demais programas passaram por restrições orçamentárias em


pelo menos um dos exercícios financeiros: “Manutenção dos Serviços
Administrativos” teve recursos reduzidos em 1999; “Dinamização das Ati-
vidades Museológicas” só teve a sua receita integral em 2001; e “Conser-
vação da Memória Documental e Bibliográfica”, em todos os exercícios
financeiros teve sua receita prejudicada.

O discurso do Relatório de Atividades de 2001 demonstra que a


concepção dicotômica de cultura que opõe “cultura culta x cultura po-
pular” permeou toda esta gestão cultural, dirigindo as ações estatais de
cultura para um privilégio da cultura considerada popular.

Nas “notas introdutórias” do citado Relatório, o Secretário afirma:


“Temos, pois, duas dimensões da cultura. Uma trata da linguagem esté-
tica e do saber intelectual. A outra fotografa e demarca a idiossincrasia
de uma sociedade; os símbolos de uma civilização” (FUNCMA, 2001, p. 4).
E, mais adiante, delimita como se dá a atuação do órgão de cultura que
preside: “A FUNCMA, através de suas unidades administrativas, atua nas
duas zonas de representação cultural”, citadas anteriormente. O curioso
é que para ilustrar essa atuação, o Secretário toma como exemplo duas
unidades administrativas do programa de “Difusão e Apoio à Produção
Artística e Cultural”:
O Centro de Criatividade Odylo Costa filho, por exemplo, ao longo
do presente exercício organizou vários cursos [...] oportunizando a
comunidade local a aprimorar e exercitar os talentos. Ao todo fo-
ram organizados 16 cursos, tendo 340 concludentes [sic]. Já o Cen-
tro de cultura popular Domingos Vieira Filho, unidade criada há
quase 20 anos, uma justa homenagem ao pesquisador e folclorista
que empresta seu nome ao citado setor de execução programática,

131
Letícia Conceição Martins Cardoso

desenvolveu ações de preservação e difusão dos bens imateriais da


cultura maranhense. São os folguedos e as crenças, simbolizando
o modo de ver, sentir, e agir da sociedade inclusiva maranhense
(FUNCMA, 2001, p.4).

Ao destacar ações restritas ao programa de “Difusão e Apoio à Pro-


dução Artística e Cultural” e omitir todos os outros programas existentes,
o dito e o não-dito do discurso do Secretário revelam, mais uma vez, qual
o foco de atenções da instituição e, consequentemente, do Governo de
Roseana Sarney.

Essas observações, aliadas às análises que serão apresentadas a se-


guir, me fazem pensar que a gestão cultural do referido Governo conce-
beu o Maranhão como “um grande arraial”, um grande “lugar de festas
populares”. Interessante lembrar que a origem do vocábulo arraial é o ad-
jetivo real (arayal, arreal): “acampamento do rei”. Num arraial, entendido
como um lugar de festas populares patrocinadas pelo Estado ou como
acampamento do governante76, cenários são montados, papéis devem
ser exercidos, os atores são peças de um jogo ou personagens de um “te-
atro da vida real”. Neste espaço, as relações sociais são reforçadas por ri-
tuais (DAMATTA, 1981) que, constituindo discursos simbólicos, destacam
certos aspectos da realidade, tornando alguns elementos mais presentes
que outros, criando oposições. Portanto, essa mis en scène pode atualizar
e reforçar estruturas de autoridade, separando quem tem poder e quem
não tem.

Segundo DaMatta (1981), a produção de cada momento festivo e


extraordinário remete a um grupo ou categoria social que tem seu lugar
garantido, vale dizer, sua hora e vez no quadro da vida social. O autor re-
fere-se aqui ao promotor da festa, ao seu destinatário e ao papel que ela
exerce no mundo social. Neste sentido, é fundamental identificar quem a
promove, para quem e por que é promovida.

76
Vale lembrar o estudo de Peter Burke sobre a construção simbólica da autoridade de
Luís XIV, em que observou o uso estratégico do teatro pelo rei e sua corte, tendendo à
teatralização na execução dos rituais reais (BURKE, 1994).

132
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

“Viva” a produção cultural: teatralizando o poder


Figura 5 – Roseana Sarney em ato teatral de poder: a “ama” da cultura

Fonte: O Estado do Maranhão (22/06/1997, p.4).

Roseana Sarney desenvolveu estratégias cada vez mais aperfei-


çoadas para adquirir capital simbólico a partir das relações estabeleci-
das com a esfera cultural. Frequentemente sua imagem foi associada à
protetora, admiradora e mesmo brincante da “cultura popular”, como se
depreende da charge. Neste exemplo, vê-se Roseana Sarney num arraial,
montada num bumba-meu-boi e fantasiada de “brincante”. A brincadeira
parece ser um boi de matraca, que é o sotaque próprio do Boi da Madre
Deus. A governadora é representada como “ama” do boi, ou seja, a líder
da manifestação, pois porta um grande “maracá” na mão direita77. O “ma-
77
Esta representação teatral de Roseana me remete ao texto “A preeminência da mão direita:
estudo sobre a polaridade religiosa”, de Robert Hertz. Diz o autor: “Que semelhança mais
perfeita entre nossas mãos! E, no entanto, que impressionante desigualdade!”. Para ele,
a aparentemente simples oposição entre a mão direita e a esquerda não é natural, é,
sim, cultural e está carregada de significados, servindo como representação de divisões
e hierarquias sociais. De modo análogo, as representações sociais (divisões, hierarquias,
classes, concentração de poder...) sofrem a ação de forças preeminentes tanto quanto a da
mão direita sobre a esquerda. À mão direita são atribuídos controle, honras, poder, ação,

133
Letícia Conceição Martins Cardoso

racá” é o instrumento próprio dos amos e/ou cantadores de Boi, com que
dão a marcação das toadas, orientando seu “batalhão”. Aqui o “maracá”
é o “cetro” de Roseana Sarney, símbolo de poder e distinção da “rainha”
em relação aos “súditos”. Os trajes da governante, no entanto, não fazem
referência a um boi de matraca, mas sim, às indumentárias de palha ca-
racterísticas do Boi Barrica, cujo dirigente é o seu Secretário de Cultura,
Luís Bulcão.

De acordo com Kertzer (1988, p. 5), “a realidade política é em grande


parte criada por significados simbólicos”. Isso acontece porque “os sím-
bolos fornecem os significados pelos quais as pessoas dão sentido ao
processo político” (KERTZER, 1988, p.6).

A referida representação de Roseana Sarney é rica em símbolos e


cria várias realidades, ou seja, possibilita significados diversos através dos
quais os indivíduos podem conceber a governadora. Um desses signifi-
cados é a imagem de Roseana Sarney vinculada à cultura, que não é uma
cultura qualquer, mas à “cultura do povo”, a partir de uma suposta afini-
dade pessoal da governadora com essas expressões populares. Elege-se,
simbolicamente, Roseana Sarney como “ama”, ou seja, protetora da “cul-
tura popular”.

Ao referir-se ao “Projeto Viva Madre Deus”, subtende-se que a re-


forma infraestrutural do bairro foi pensada como pretexto para difusão
da “cultura popular”. Além disso, o fato de Roseana Sarney ter sido carac-
terizada como brincante do Boi Barrica – e não de outra manifestação
qualquer – revela mais do que uma preferência pessoal da governadora
por esse grupo cultural. Simbolicamente, demonstra a sua ligação com
os amigos Luís Bulcão e José Pereira Godão, compositores do Boi Barrica.

Os palcos, por excelência, das festas populares promovidas pelo


Governo de Roseana Sarney seriam inspirados no “Projeto Viva Madre
Deus”, definido pelo discurso oficial como “um grande teatro a céu aber-
to”. De acordo com Luís Bulcão, a idéia inicial do projeto partiu da Gover-
nadora Roseana Sarney:
Os projetos Vivas? Batida de martelo dela! [disse Roseana:] ‘É isso
que eu quero’. E ela foi pioneira. Ela me chamou pra me mostrar
esse projeto lá na Madre Deus... Quando nós descemos, muitas das

ordem. A mão esquerda é vista como dependente, auxiliar, submissa (HERTZ, 1980).

134
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

pessoas que tavam lá, zombaram. ‘Ah... aqui já veio muita gente di-
zer isso, mas nunca fez nada!’. Mas nós fizemos!

Jeovah França, morador da Madre Deus e na época assessor de pla-


nejamento da SECMA, narra como aconteceu uma dessas visitas da go-
vernadora ao bairro da Madre Deus:
Numa dessas manhãs, eu tava colocando a cerveja pra gelar na As-
sociação do Caroçudo quando chega Roseana, Bulcão e uns asses-
sores. Eles sentaram e começaram a conversar. Perguntaram o quê
que eu achava, como morador do bairro, o que podia ser feito ali
pela cultura popular. Eu disse que uma melhoria seria investir na in-
fra-estrutura das praças, com a construção de palco, banheiros, pra
que as brincadeiras pudessem ensaiar e se apresentar sem pagar
aluguel, e também com uma estrutura de bares pra gerar renda pra
comunidade. Depois disso, apareceram por lá ainda algumas vezes
pra falar com outros moradores, aí o Viva Madre Deus foi desenvol-
vido e inaugurado no São João de 98, eu até ajudei na elaboração
do projeto.

Assim, foi criado, em 1998, o primeiro “Viva”, situado no Bairro da


Madre Deus. Segundo o site oficial do Governo, os “Vivas” constituem “es-
paços públicos dotados de infra-estrutura como pequenas arquibanca-
das, banheiros, bares, sistema de som ideal para programações culturais”.
Ainda em 1998, foram criados outros “Vivas”. Como explica Luís Bulcão:
Nós alastramos [os Vivas]... Fizemos Madre Deus, fizemos Anjo da
Guarda, fizemos Vila Embratel, fizemos João Paulo, fizemos Mon-
te Castelo. Na Alemanha, deixamos o dinheiro e o Governador até
hoje não fez. Fizemos Anil, fizemos no Turú, fizemos no interior, em
Imperatriz, Santa Inês. Vários Vivas foram feitos.

Essas obras estatais e a forma como foram divulgadas pela mídia lo-
cal contribuíram para um acúmulo de capital simbólico sobre Roseana
Sarney, que inaugurou as obras e anunciou sua candidatura à reeleição
em pleno período junino. As aparições públicas da governadora apre-
sentam caráter ritualístico. Segundo Kertzer (1988, p.11), o ritual trabalha
através do sentido para estruturar nosso senso de realidade e nossa com-
preensão do mundo que nos cerca. E o seu conteúdo é simbólico.

A matéria “Batalhão da Maioba em festa” (O Estado do Maranhão,


24/06/1998) começa assim:

135
Letícia Conceição Martins Cardoso

Os festejos juninos já estão movimentando a cidade há duas sema-


nas, mas para o boi da Maioba a festa só começa a partir de hoje.
Nesta noite – véspera do dia de São João – a comunidade prepa-
ra o seu batalhão e vai pedir a bênção do santo para iniciar suas
apresentações. Mas a noite de hoje tem mais motivos para come-
morações: o batalhão festejará a inauguração do ‘Largo Zé Calça
Curta’, que incorpora o projeto ‘Viva Maioba’, do Governo do Estado.
A solenidade de inauguração do Largo acontece a partir das 22h,
com a presença da governadora Roseana Sarney e de representan-
tes da Maioba, quando serão entregues comendas e a governadora
receberá uma homenagem especial. E como na Maioba as raízes da
cultura são fortes, o homenageado com a obra não poderia fugir à
regra. Zé Calça Curta é uma daquelas figuras que, nos bairros tra-
dicionais, integra o quadro de personagens lendários. Falecido há
quatro anos, ele sempre esteve ligado às manifestações populares
do bairro e ainda hoje é tido pelos vizinhos como alguém que sem-
pre lutou para manter vivas as raízes culturais que ali nasceram. [...]
agora ele será imortalizado de vez pelo nome com o qual ficou co-
nhecido [...].

A notícia destaca, também, que a governadora foi convidada pela


primeira vez para ser madrinha especial do Bumba-meu-boi da Maioba.
Uma retribuição à dádiva recebida pela comunidade?

No dia seguinte, o mesmo jornal anuncia: “Roseana entrega primei-


ra etapa do Viva Maioba” (O ESTADO DO MARANHÃO, 25/06/1998, capa).
“Obras dinamizam os festejos juninos: Maioba e Maracanã ganham cen-
tros recreativos construídos pelo Governo do Estado” (25/06/1998, p. 3).

Um dia após as inaugurações das obras, Roseana Sarney oficializa a


sua campanha política à reeleição, com apoio de artistas maranhenses,
dentre eles, a cantora Alcione Nazaré, “apadrinhada” da família Sarney,
que participou de toda a campanha política da governadora à reeleição,
cantando e prestando homenagens a ela em palanque eleitoral:

136
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Figura 6 – Cena de um cortejo: a governante é homenageada por artistas locais

Senador João Alberto, a cantora Alcione Nazaré, Roseana Sarney e seu pai, José Sarney.
Fonte: O Estado do Maranhão (27/06/1998).

As aparições de Roseana Sarney, registradas nos jornais, constroem


sentidos, fornecem significados que enfatizam a relação próxima de Ro-
seana Sarney com a cultura e o apoio da cultura à governadora. A figu-
ra política “Roseana Sarney” é simbolicamente construída pelos agentes
através de cortejos (GEERTZ, 1997) que associam sua imagem à “cultura
popular”78.

Como disse, os “Vivas” foram amplamente divulgados pelo Gover-


no do Estado e pela mídia local como “grandes teatros a céu aberto”. Por
quê, para quê e para quem foram criados esses “teatros”?

De acordo com o Secretário Luís Bulcão, tais espaços constituíram o


maior orgulho das comunidades durante sua gestão, resultando da von-
78
Geertz diz que os cortejos são rituais que identificam o centro da sociedade na figura do
rei e confirmam sua conexão com as coisas transcendentes ao demarcar um território
com os sinais rituais de dominação (GEERTZ, 1997, p. 188).

137
Letícia Conceição Martins Cardoso

tade da população. Ele define os “Vivas” como “praças de encantamento,


de cidadania e auto-estima [do povo]”.

Jeovah França diz que a construção desses novos espaços realmen-


te passaram a ser objeto de demanda social. “A própria população, as
associações de bairro, clube de mães, grupos folclóricos, tendo o “Viva”
da Madre Deus como exemplo, passaram a querer a implantação de um
“Viva” em sua comunidade”. É verdade que após a conclusão do primei-
ro “Projeto Viva” as comunidades de São Luís pressionaram o Estado a
construir os espaços em seus bairros, adquirindo assim melhorias para
a área. Mas, percebo que o Governo do Estado também teve o interesse
de construir essas “praças de encantamento do povo” em diversos pon-
tos da capital e do interior do Estado. O que pode se configurar como
uma afirmação da presença do Estado naquela área. Considerando ainda
que a implantação dos primeiros “Vivas” se deu em período de campa-
nha eleitoral, sou levada a dizer que esses espaços serviram de palanque
eleitoreiro da Governadora.

Uma das características dos rituais, segundo Kertzer (1988), é que


frequentemente eles remetem a certos “lugares”. A partir daí, pode-se en-
tender os “Vivas” como espaços (lugares) próprios para o desenvolvimen-
to dos rituais do Estado.

Geertz aponta outra ferramenta que contribui para esse entendi-


mento, em seu estudo sobre o poder e seus simbolismos nas sociedades
modernas. Diz ele: “no centro político de qualquer sociedade [...] sempre
existem uma elite dominante e um conjunto de formas simbólicas que
expressam o fato de que ela realmente governa” (1997, p. 187). Segundo
o autor, essas formas simbólicas justificam a existência dessa elite e “ad-
ministram suas ações em termos de um conjunto de estórias, cerimônias,
insígnias, formalidades e pertences” (Idem).

Desse modo, concebo os “Vivas” como uma necessidade do Gover-


no de padronizar espaços públicos para promover eventos e festas popu-
lares (rituais) em territórios “seus”, constituindo ambientes propícios para
a difusão/encenação de formas simbólicas próprias do poder, ao mesmo
tempo em que a população, ao entrar nesse jogo, angaria melhorias de
infra-estrutura para sua comunidade.

138
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

O plano de “Desenvolvimento e Apoio à Produção Cultural” foi o


principal responsável, em 1998, pela propagação da “política de Vivas” na
SECMA. Esse plano originou diversas ações que receberam a denomina-
ção “Viva”, todas voltadas para a “cultura popular”. Foram elas:

A) “Viva São João – Plano de Apoio e Incentivo aos Festejos Ju-


ninos Maranhenses”: de acordo com o Relatório, essa ação promoveu
“patrocínio a 15 arraiais de São Luís, localizados nos Bairros Madre Deus,
Anjo da Guarda, Liberdade, João Paulo, Bairro de Fátima, Vinhais, Vila Em-
bratel, Cidade Operária, Maiobão, Renascença, Vila Palmeira, Parque do
Bom Menino, através de apoio à infra-estrutura (palco, sonorização e ilu-
minação) e programação, sendo que, com este último item, foram tam-
bém beneficiados outros 90 arraiais”. Foram ainda “patrocinadas 1.145
apresentações, envolvendo 426 grupos folclóricos, entre Bumba-meu-
boi, Tambor de Crioula, Danças diversas, Quadrilhas, Dança Portuguesa e
31 artistas (compositores e intérpretes da música popular maranhense).
Houve também a produção de um filme documentário Brasil de Sotaques
e uma campanha de mídia e marketing para registro e divulgação dos
Festejos Juninos do ano de 1998. A ação desenvolveu-se em São Luís e
em mais de 40 municípios maranhenses, no período de 20 a 30 de junho”
(SECMA, 1998, p. 8, grifos do autor). Para que se tenha uma noção do
quanto aumentou o interesse do Estado em relação à “cultura popular”,
cabe fazer uma comparação com a gestão anterior. Em 1997, a gestão
de Eliézer Moreira, pagou cachês a 307 grupos em 406 apresentações em
todo o São João. Já a gestão de Luís Bulcão pagou cachês a 426 grupos,
que fizeram 1.145 apresentações. Um aumento de 27,9% de grupos con-
tratados e o número de apresentações quase triplicou: 282% a mais.

B) “Viva Verão”: segundo o Relatório, esta ação teve como objeti-


vo “a descentralização das atividades da Secretaria e promover o inter-
câmbio de diversas manifestações artísticas entre as comunidades. Fo-
ram criados espaços culturais nos bairros do Maiobão, Liberdade, Madre
Deus, Anjo da Guarda e Maracanã, com apresentações de artistas mara-
nhenses, bandas, grupos de teatro e canto coral, fanfarras, projeção de
vídeos e atividades lúdicas, num total de mais de 200 apresentações e
77 shows, no período de 7 a 30 de agosto” (SECMA, 1998, p. 8, grifos do
autor).

139
Letícia Conceição Martins Cardoso

C) “Viva São Luís”: que consiste em “programação cultural em co-


memoração ao aniversário da cidade de São Luís, tendo como referen-
cial o Centro Histórico da cidade e outros locais, como Avenida Litorânea,
comunidades do Programa Viva e o município de São José de Ribamar.
[...] constou de Cortejo Tambores do Maranhão, envolvendo grupos
folclóricos e grupos carnavalescos, num total de trinta; Show Patrimônio
Cultural, por ocasião do lançamento do disco da artista Alcione Nazaré;
Feira Livre de Música, com bandas de rock e reggae de São Luís e apre-
sentações de pagode nos espaços do Projeto Viva; Lançamento do Edi-
torial Documenta Maranhão, com lançamento de livros, CD Room [sic],
vídeos e exposições fotográficas; Viva Comunidade – com apresentações
de compositores contemporâneos e novos grupos maranhenses e a Fes-
ta de São José de Ribamar, no período de 4 a 8 de setembro” (SECMA,
1998, p. 9, grifos do autor).

D) “Ritmos Maranhenses / Cantuária”, compreendendo “gravação


dos principais ritmos musicais maranhenses, com a participação do Bum-
ba-meu-boi do Maracanã, de Pindaré, da Liberdade, de Axixá, Boizinho
Barrica, Fuzileiros da Fuzarca, Casa Fanti Aschanti, Cacuriá de Dona Teté,
Casa das Minas, Bloco Tradicional ‘Os Feras’ e Tambor de Crioula de Felipe,
por solicitação do compositor Vinícius Cantuária, através de uma equipe
vinda dos Estados Unidos” (SECMA, 1998, p. 9, grifos do autor).

Esses eventos oferecidos pelo Estado apresentam diferentes canais


discursivos, numa associação entre ritual e poder. Da Matta afirma que o
mundo ritual é feito de oposições e junções, de ênfases e supressões de
elementos, é, enfim, “o mundo do efetivamente arbitrário e o mundo do
puramente ideológico” (1981, p. 60), sendo, desse modo, capaz de atua-
lizar e reforçar estruturas de autoridade, cindindo quem sabe de quem
não sabe; quem tem contato com o poder e quem não tem; quem come-
mora e quem está descontente. Na mesma linha de pensamento, Kertzer
chama atenção para o caráter dramático do rito, “qualidade que além de
definir papéis, provoca responsabilidade emocional” (1988, p. 11).

O problema está na maneira sutil como esse processo acontece. E,


para analisá-lo, DaMatta sugere que as festas e os rituais não devem ser
estudados como momentos especiais ou qualitativamente diferentes da-
queles do nosso cotidiano. O rito é plenamente compatível com a vida
diária e os elementos do cotidiano são os mesmos do ritual. O que deve

140
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

ser questionado é como elementos triviais do mundo social podem ser


deslocados e transformados em símbolos, que em certos contextos per-
mitem engendrar um momento extraordinário (1981, p. 55).

Em todas as sociedades, o Estado teve um papel essencial na pro-


moção da comemoração. Ao analisar o Negara, o Estado teatro balinês,
Geertz (1991) destacou o papel do Estado, não só como responsável pela
governança, mas também pelas atividades ligadas ao status e à pompa.
Vale pensar nessas considerações, tendo em vista que a idéia de Estado
Nacional também se constitui e se mantém por meio de atividades rela-
cionadas ao prestígio, a festejos e a comemorações.

As idéias de Ferretti, no artigo Religião e cultura popular: estudo de


festas populares e do sincretismo religioso (2003), reforçam esse argumen-
to. Segundo ele,
O medievalista francês Jacques Heers (1987:11) afirma que a festa
‘apresenta-se também como o reflexo duma sociedade e de inten-
ções políticas’. Considera ser fácil conceber o prestígio que recai so-
bre aquele que oferece jogos e festas. Indica como outra consequ-
ência da festa, (id.: 17) ‘a exaltação da situação e dos valores, ainda
mais das influências, dos privilégios e dos poderes, tudo reforçado
pela exibição do luxo e pela distribuição de benesses.’

Assim, práticas sociais que têm como cenário os “Vivas” levam a crer
que eles funcionam, dentre outras coisas, como arenas de materializa-
ção do poder do Estado (e do governante, mais especificamente), onde
é exercida a política panem et circenses com mais teatralidade e legitimi-
dade. Como lembra Balandier (1994), na Grécia Antiga, o Drama servia
como forma de adequar/moralizar os costumes, um mecanismo de regu-
lação da vida social. Nesses rituais, a promotora da festa, Roseana Sarney,
metáfora do Estado, tem seu lugar garantido: ela é o “centro do centro”
(GEERTZ, 1997), é a ela que o povo atribui as benesses. Desse modo, a
teatralização do poder (BALANDIER, 1994) serve, entre outras coisas, para
estabelecer / manter papéis sociais, fornecer significados ao “povo” a res-
peito daquele que está no poder, distrair as massas por meio do entrete-
nimento/espetáculo (de forma dramática). Como observa Kertzer (1988,
p. 1), “as figuras políticas usam ritos para criar realidade política para as
pessoas em torno delas”. Essas estratégias podem desmobilizar ou enfra-
quecer tentativas de contestação ao Estado, na medida em que constrói
“uma aura mágica” (GEERTZ, 1997) para o governante. A toada de João

141
Letícia Conceição Martins Cardoso

Chiador e Fifi da Mangueira, do ano de 2002, mostra uma forma de retri-


buição às benesses.

Prometeu e cumpriu
O meu povo este ano se alegrou
Contente com a nossa governadora
Passou três anos sua promessa cumpriu
Na Maioba e Maracanã
E outros que ela construiu
Oh! Meu batalhão vamos todos comemorar
Essa linda construção
Do grande Viva Ribamar

Mulher de fibra seu nome tem tradição


Pelo seu trabalho hoje
É líder dessa nação
Nós temos certeza que um dia vamos vencer
Essa homenagem Roseana
O povo de Ribamar faz pra você
(Bumba-meu-boi de Ribamar, 2002)

Os “Vivas” constituem, assim, territórios onde se desenvolvem os


cortejos oficiais, centros de poder. São emblemas do Estado e, logo, do go-
vernante (aquele que os criou). Nas monarquias são os símbolos – coroas
e coroações, limusines, os tronos, os selos reais – que dão ao centro a
marca de centro e ao que nele acontece a aura não só de importância,
mas uma aura de como se ele estivesse relacionado com a própria forma
em que o mundo foi construído (GEERTZ, 1997, p. 187).

Nos regimes políticos atuais esses símbolos aparecem com toda for-
ça devido à valorização exacerbada da imagem, do marketing, da pro-
paganda e dos meios de comunicação em geral, que reforçam esta ten-
dência. E, de uma forma subliminar, acabam sacralizando a imagem do
agente político, sob a égide do Estado, já que nesses regimes “disfarça-se
melhor a tendência humana natural para antropomorfizar o poder” do
que nas monarquias tradicionais (Idem).

142
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

A perpetuação das relações de poder político na esfera cultural se dá


não só pelo carisma da governadora “que revitaliza a cultura maranhen-
se”; nem somente porque o Estado passou a ser o maior “empresário”
da “cultura popular” (cadastramento para cachês, captação de recursos
junto a grandes empresas, apadrinhamentos etc.); ou porque a família
Sarney é detentora de maior parte da mídia local; mas, também, porque
todos esses vetores, aliados a outros, convergem para um acúmulo de
poder simbólico na figura de Roseana Sarney, o que permite legitimar
suas ações e discursos, desembocando numa sacralização (CHAUÍ, 2001,
p. 86) da sua imagem junto ao campo cultural.

Esse “poder quase mágico, que permite obter o equivalente daquilo


que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específi-
co de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado
como arbitrário” (BOURDIEU, 2003, p. 14). Por isso, percebe-se a cons-
trução cuidadosa de uma imagem de Roseana Sarney, como protetora
e mecenas da cultura. É assim que, além de governadora, ela se institui
como porta-voz legítima do povo e procuradora por excelência dos di-
versos grupos sociais. Essa concepção de administrar a res publica está di-
retamente relacionada com a prática da representação política no Brasil,
que Marilena Chauí denomina a sagração do governante, ou seja, “a visão
do governante como salvador” (2001, p. 86).

Nesse campo de relações, “está em jogo o monopólio da violência


simbólica legítima, quer dizer, do poder de impor – e mesmo de incul-
car – instrumentos de conhecimento e de expressão” (BOURDIEU, 2003,
p. 12). E a interação dos atores em disputa permite a construção de no-
vos significados tanto para o processo de representação social da política
quanto da cultura.

Roseana Sarney é reeleita em 1998. E, no ano seguinte, muitos gru-


pos de bumba-meu-boi continuam convidando a governadora para ser
madrinha ou para lhe prestar homenagens nos terreiros. Como podemos
ver na matéria a seguir, veiculada no São João de 1999, em que a gover-
nadora aparece “abençoando” o Boi da Maioba.

143
Letícia Conceição Martins Cardoso

Figura 7 – Roseana Sarney batizando o Boi da Maio-


ba: rito de sacralização do Boi e da Governante

Fonte: O Estado do Maranhão (25/06/1999)

Essas performances contribuem para um acúmulo de capital sim-


bólico na figura de Roseana Sarney, atribuindo-lhe uma “aura mágica” e
constituindo importantes estratégias de renovação de seu carisma.

Os grupos culturais também são motivados por interesses diversos


ao convidar uma personalidade política para batizar o boi, o que quer
dizer que suas ações/reações não podem ser vistas como atos mecânicos
de submissão. Uma forma de interpretar essas ações/reações é a partir
do sistema de dádivas (MAUSS, 2003).

A dádiva não é uma simples troca. Ela pressupõe uma expectativa


de direito em relação à retribuição do presente (o dom): esse é o contrato
implícito que rege as relações entre doador e donatário. Assim, o convite
para batizar o boi pode ser um reconhecimento ao dom ofertado pela
governadora. As melhorias de infraestrutura (os “Vivas”) entregues às co-
munidades pessoalmente por Roseana Sarney tiveram efeito simbólico
para estas comunidades, que passaram a retribuí-la oferecendo seu “me-

144
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

lhor novilho”. Ser madrinha/padrinho do bumba-boi é a maior honra que


o grupo cultural pode oferecer a alguém, é o reconhecimento de que a
pessoa escolhida é admirada e querida pela comunidade, pelo grupo
cultural.

Por outro lado, a prática desse sistema de trocas gerou outros sig-
nificados para os atores sobre o do batismo do boi, ao perceberem, por
exemplo, que poderiam obter muitos benefícios com essa estratégia.
Portanto, os grupos de bumba-boi têm convidado para padrinhos/ma-
drinhas, personalidades que podem ajudar de algum modo a brincadei-
ra. Essas ações/reações dos grupos culturais podem ser interpretadas
como estratégias de visibilidade, que visam também acumular capital.

O carisma “encena”

Para Sennet (1988, p. 330), quando uma pessoa é dotada de caris-


ma, os outros sentem que ela é poderosa sem saberem o porquê, defi-
nindo o carisma como o “poder da personalidade”. O autor assinala que o
estudo do carisma secular pode ser um meio para pensar a política numa
cultura governada pela crença no imediato, no imanente, no empírico.
Ampliando essa perspectiva, Geertz (1997, p. 184) chama a atenção para
“a conexão entre o valor simbólico dos indivíduos e a relação que estes
mantêm com os centros ativos da ordem social”. Esses centros são os lo-
cais onde tudo acontece: as discussões, as tomadas de decisão, enfim, as
importantes atividades que irão dar forma ao mundo social e influenciar
a vida de seus membros. É essa relação do indivíduo com os centros que
lhe confere o carisma. Desse modo, “o carismático não é necessariamente
dono de algum atrativo especialmente popular, nem de alguma loucura
inventiva; mas está bem próximo ao centro das coisas” (Idem).

Roseana Sarney se posicionou no centro de confluência dos acon-


tecimentos, “nas arenas em que as idéias dominantes fundem-se com
as instituições dominantes” (GEERTZ, 1997, p. 184). Em outras palavras:
esteve na hora certa, no lugar certo, com as pessoas certas. Isso se ex-
pressa nos diversos papéis assumidos por ela, que contribuíram para a
construção de uma imagem carismática: ora como herdeira política de
José Sarney; ora como a governadora que adquiriu o título de Patrimônio
Cultural da Humanidade para São Luís; ora como madrinha de bumba-
-meu-boi ou como “a grande foliã”. E também nos espaços escolhidos
para suas aparições públicas como personagem principal: os veículos de

145
Letícia Conceição Martins Cardoso

comunicação, os “Vivas” e o “Maranhão – Vale Festejar” são bons exem-


plos. Este último cenário constitui um “festejo junino fora de época”, rea-
lizado em julho, no Convento das Mercês (onde se encontra o Memorial
José Sarney), com a justificativa de atender à demanda dos turistas que
vêm passar férias na capital maranhense.

O “Vale Festejar” é resultado de uma parceria entre Roseana Sarney,


a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e o Governo Federal, em que a go-
vernadora entra como captadora dos recursos provenientes da isenção
fiscal da CVRD, via Lei Federal de Incentivo à Cultura. Todavia, enquanto
pessoa física ela não pode receber o dinheiro, por isso entra em cena a
“Fundação de Amigos do Bom Menino das Mercês”, que repassa e admi-
nistra o capital para a realização do evento. No final das contas, os grupos
culturais ganham os cachês, mas a promotora da festa também sai lu-
crando, ao ganhar capital simbólico.

A fala de seu Marcelino Azevedo, dono do Bumba-meu-boi de Gui-


marães confirma essa suposição:
O meu boi é cadastrado naquela brincadeira de Roseana no Conven-
to. É beleza! Ela reconhece que o Boi do interior tem que ganhar
mais que o Boi de São Luís porque tem mais despesa... Pra governar
o Maranhão tem que conhecer o Maranhão e também as manifes-
tação popular.

O carisma, no entanto, não é uma qualidade eterna ou ainda uma


“graça divina”, como faziam crer os teóricos do Antigo Regime79. Para
manter esse posicionamento estratégico e privilegiado num campo, é
preciso justificar e ratificar esses laços constantemente, fortalecendo as
relações já estabelecidas e fomentando novas relações. Por isso, não bas-
ta estar no centro do poder para ser carismático. É preciso parecer caris-
mático e agir como essa nomeação exige.

Se alguém é nomeado socialmente como carismático, e pretende


continuar sendo visto como tal, deve adequar suas ações e seus discur-
sos; o seu lugar de fala deve corresponder à nomeação “(…) na medida
em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo
que lhe conferiu o mandato, e do qual ele é (…) o procurador” (BOUR-

79
Teóricos como Montesquieu e Jacques Bossuet legitimaram a centralização do poder
político nas mãos do monarca através de teorias que explicavam o poder divino do
soberano. De acordo com Burke(1994), para esses teóricos, os reis eram imagens vivas de
Deus, os únicos representantes da majestade divina.

146
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

DIEU, 1996, p. 89). Por isso, os atores sociais buscam estratégias que pos-
sam renovar o carisma.

Algumas performances de Roseana Sarney deram relevo à sua per-


sonalidade, destacando sua afinidade com a “cultura popular”. Essas es-
tratégias convergem para aquilo que Sennet (1988) chama de Sistema do
Estrelato, uma modalidade política que aposta no poder da personalida-
de (carisma) do político para obter êxito e legitimidade.

De acordo com Sennet, “existe uma conexão entre a política e as ar-


tes hoje, que é diretamente criada pela cultura da personalidade” (1988,
p. 351). Como se observa, a política vai se consolidando, cada vez mais,
como espetáculo. Os políticos adquirem um caráter de celebridades80 ou,
para usar um jargão jornalístico, de colunáveis: a vida privada do político
passa a ser centro de interesse. Nunca a dimensão pública aproximou-se
tanto dos interesses privados. O carismático no mundo contemporâneo
mediatizado não é só aquele que está no centro dos acontecimentos,
mas aquele que se torna um acontecimento midiático; aquele que vira
notícia. Pois, o interesse compulsivo pela personalidade suscitado pelos
meios de comunicação de massa e a necessidade que tem o político de
uma deflexão das atenções concordam perfeitamente (idem, p. 348).
Figura 8 – A governante encena: performance (re)construindo o carisma

Humberto de Maracanã e Roseana Sarney, vestida como brincante do Bumba-meu-boi de Maracanã


Fonte: O Estado do Maranhão (25/06/1999, capa)
80
Celebridade: palavra originada do latim celebrare (comemorar com solenidade, festejar,
elogiar publicamente), qualidade do que é notável, famoso, ilustre, extravagante, singular,
nomeado, de acordo com o Dicionário Universal de Língua Portuguesa. A construção de
celebridades é, basicamente, um produto de marketing: próprio do campo midiático e da
indústria cultural, está ligada à idéia dos “quinze minutos de fama” pensada pelo pintor e
cineasta do movimento pop art, Andy Warhol.

147
Letícia Conceição Martins Cardoso

Como se pode depreender da imagem que ilustra a matéria “Boiei-


ros homenageiam governadora”, no jornal O Estado do Maranhão, Rosea-
na Sarney se fantasia como um dos personagens do bumba-boi, ao rece-
ber homenagem do Bumba-meu-boi de Maracanã, no São João de 1999.

Vestida de “cabloco de pena”, há uma associação da imagem de


Roseana Sarney a um personagem do povo, um brincante de bumba-
meu-boi. Tenta-se criar, portanto, uma identidade entre a governadora
e a “cultura popular”, o povo. O discurso jornalístico que acompanha essa
encenação reforça aspectos emocionais e pessoais da governadora.
A governadora disse que a emoção de ser madrinha da velha guar-
da dos bois de São Luís – São José de Ribamar, Maioba e Maraca-
nã – é muito grande. ‘Estou muito feliz porque este convite partiu
de comunidades comprometidas com a nossa maior manifestação
cultural’, ressaltou ela que já foi madrinha dos bois Barrica e de Nina
Rodrigues. [...] Roseana foi recebida por centenas de brincantes de
boi das comunidades visitadas. ‘Essas brincadeiras estão levando
o nome do nosso Estado para todo o Brasil. O Maranhão voltou a
mostrar sua tradição e sua história, através da cultura popular’, afir-
mou Roseana.

Não só nos cadernos de cultura, como nas colunas sociais, a presen-


ça da governadora é constante nos jornais. Em breve pesquisa realizada
nos diários O Estado do Maranhão e O Imparcial, percebi que em apenas
dois meses foram veiculadas 127 notícias em que Roseana Sarney apare-
ceu como a personagem principal (excluindo-se as matérias que se rela-
cionavam apenas a familiares da governadora). Os jornais pesquisados
são referentes aos meses em que acontecem as grandes festas populares
do calendário oficial, fevereiro (Carnaval) e junho (São João), totalizando
116 exemplares de 1995. O gráfico abaixo mostra os resultados da pes-
quisa:

148
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Figura 9 – Gráfico: A governadora como pauta para os jornais

Observa-se que Colunismo Social e Cultura compreendem as edi-


torias nas quais Roseana Sarney aparece com mais frequência, ultrapas-
sando mesmo as editorias de Política e a de Economia, que apresentam a
mesma proporção. Nas Colunas Sociais, são destacados, principalmente,
os aspectos privados da vida da governadora: a vida em família, eventos
particulares que frequentou ou promoveu, homenagens pelo seu aniver-
sário, entre outros. Isso significa dizer que a imagem de Roseana Sarney é
divulgada também como celebridade, tendo sua vida privada como cen-
tro de interesse público.

Mas as reações dos atores também podem ser interpretadas como


estratégias de visibilidade dos grupos culturais, que se aproveitam dos
apadrinhamentos políticos para adquirir não só capital financeiro como
também capital simbólico.

Erlito Meneses, membro do Bumba-meu-boi da Madre Deus, diz que


os Bois passaram a convidar Roseana Sarney para ser madrinha do grupo
porque ela ajuda a manifestação e gosta da “cultura popular”:
Eu já vi foi Roseana dar de 20 mil na mão do presidente do Boi em
dia de batizado. ‘Tá aqui, um presentinho pro Boi’. Por isso, que po-
dem falar mal dela por aí, mas eu lhe digo uma coisa: ela foi muito
boa pra cultura, ela se misturava com o povo. Antes de ser gover-
nadora, no Carnaval, ela já vivia aqui na Madre Deus vestida de fo-
fão pra ninguém reconhecer... Esses outros políticos aí, não querem
nem saber, não vêm aqui. Por isso que digo, eu sou Roseana.

149
Letícia Conceição Martins Cardoso

O ator cultural não esquece o apoio financeiro que Roseana Sarney


destinou à “cultura popular”, propagado como valorização da cultura.
Percebe-se também que a performance como política próxima do povo,
afeita à “cultura popular” permanece no imaginário coletivo de algumas
comunidades. Em 2007, por exemplo, o Bumba-meu-boi de Pindaré
bordou um retrato de Roseana Sarney no “couro do boi” – revestimento
externo do boi, que é enfeitado com paetês, canutilhos e miçangas. Ser
tema do couro do boi significa um grande honra, resultado do ano intei-
ro de trabalho da comunidade.
Figura 10 – Roseana Sarney representada no couro do boi: símbolo de honra e poder

Fonte: Arquivo pessoal

Seu Marcelino Azevedo, dirigente do Bumba-meu-boi de Guima-


rães, atribui a Roseana Sarney o melhor governo para a cultura:
Eu passei por tanto governo no Maranhão... o governo que mais
apoiou até hoje a cultura do Maranhão foi o de Roseana. Eu não sou
de mentira. Nesse governo, o pessoal sempre me recebeu muito
bem [...] Eu tenho uma simpatia com ela, porque ela nunca me en-
ganou. A gente repara governo é pela palavra dele. Nessa situação
da cultura, ela sempre cumpriu.

150
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Ao serem apadrinhadas por Roseana Sarney, as manifestações po-


pulares podem aparecer com mais frequência nos meios de comunica-
ção, ganhando assim mais visibilidade. E os atores culturais são conscien-
tes disso.

Outro fator que indica que os grupos culturais têm poder é a procu-
ra dos políticos e, às vezes, de empresas privadas, para patrociná-los, em
troca de marketing político ou institucional.

Também, os editais de financiamento das empresas públicas e pri-


vadas nacionais constituem mecanismos que possibilitam maior autono-
mia dos atores culturais, desde que tenham pessoas especializadas para
formatar seus projetos culturais. Aí entram em cena, os pesquisadores,
as ONG’s, as Universidades. Como aponta seu Marcelino, ao lembrar do
projeto cultural, desenvolvido por uma antropóloga brasileira que levou
seu grupo para o exterior: “Eu acho é que a Universidade tá mais perto
da cultura hoje do que os governo... Quando a gente foi na Alemanha,
a gente foi tão bem tratado, os universitários gostaram muito da gente,
quando eu lembro daquilo, meus olhos enche d’água”.

Em sua fala, seu Marcelino chama atenção para a importância das


Universidades, dos pesquisadores, das ONG’s como alternativa de visibi-
lidade, valorização e aquisição de capital (financeiro e simbólico) para os
artistas e grupos culturais em geral.

Reforma Administrativa: mais recursos para a “cultura popular”

A identidade cultural é uma força imensurável que nos cabe poten-


cializar e valorar, para que seja o elemento fertilizador da articula-
ção entre o econômico, o social e o político.
(Enrique Iglesias, Presidente do BID – Retirado do Relatório de Arivi-
dades da FUNCMA/2001)

No final de 1998, Roseana Sarney promove uma reforma adminis-


trativa no Estado do Maranhão, através da Lei Estadual nº 7.356, de 29
de dezembro de 1998, na qual dentre outras coisas, transforma as 22 Se-
cretarias de Estado em 8 Gerências, o que é considerado por Gonçalves
um “reforço à centralização das práticas de poder” (GONÇALVES, 2006, p.
205) em âmbito estatal. Além disso, institui 18 Gerências Regionais, que
ao mesmo tempo dilui a concentração de poder dos políticos circunscri-

151
Letícia Conceição Martins Cardoso

tos em pequenas regiões e municípios e adensa poder em suas mãos,


já que as Gerências de Estado eram pessoalmente supervisionadas pela
governadora (GONÇALVES, 2006, p. 208).

A pasta da cultura, no entanto, recebeu tratamento diferente das


outras secretarias. Primeiro, a Secretaria de Cultura foi provisoriamente
transformada em Gerência Adjunta de Cultura, subordinada à Gerência
de Desenvolvimento Humano (antiga Secretaria da Educação), extin-
guindo o Sistema Estadual de Cultura. Permaneceu nesta situação jurí-
dico-administrativa por apenas cinco meses, pois em 7 de maio de 1999,
a Lei Estadual nº 7379, substitui a Gerência Adjunta de Cultura pela Fun-
dação Cultural do Maranhão (FUNCMA) (Ver Apêndice A). De acordo com
essa Lei a FUNCMA foi criada com a função de:
instituir o Programa Estadual de Cultura, utilizando a ação trans-
formadora do processo cultural para o exercício da cidadania e de-
senvolvimento humano, com a democratização ao acesso às ações
culturais e à memória histórica, visando descentralizar as atividades
culturais através da municipalização da cultura, preservando e dis-
seminando os valores culturais, patrimoniais, artísticos e paisagís-
ticos do Estado do Maranhão, com o fim de estimular a produção
cultural, valorizar e promover as manifestações artístico-culturais.

Pergunto-me: por que somente a Secretaria de Cultura foi transfor-


mada em Fundação? Por que esse status diferenciado para a pasta da cul-
tura? O que isso significa?

Para explicar essas questões, em primeiro lugar recorro a um escla-


recimento sobre a definição de fundação, segundo o Índice Fundamental
do direito:
complexos de bens destinados à realização de determinados fins,
sendo, para tanto, dotadas de personalidade jurídica. Se um parti-
cular ou o Poder Público decidem, a título de exemplo, criar uma
instituição destinada ao ensino ou à pesquisa médica, criarão uma
fundação, mediante dotação patrimonial. Portanto, a fundação tem
caráter patrimonial, ao passo que uma sociedade é uma coletivida-
de de pessoas. Existem fundações de direito privado e fundações
de direito público. As fundações de direito privado são criadas por
escritura pública ou por testamento, mas a fundação de direito pú-
blico é instituída por lei.

Depreendemos daí que investir na cultura através de uma fundação


de direito público e não através de uma Secretaria/Gerência significou

152
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

para o Estado a possibilidade de destinar maior volume de recursos fi-


nanceiros para a área, tendo em vista que o orçamento da cultura não
mais proviria do orçamento geral do governo, mas, sim, de dotações
orçamentárias especiais. A programação das receitas das fundações es-
taduais deve ser encaminhada à Gerência de Planejamento e Desenvol-
vimento Econômico81, comandada pelo marido da governadora, Jorge
Murad, que avalia e autoriza as receitas, depois anuídas pela Chefe do
Executivo.

Assim, transformar a Secretaria de Cultura em Fundação significa


também instituir um órgão com maior autonomia, cujos recursos finan-
ceiros não mais proviriam do orçamento geral do governo que, por lei,
estabelecia um percentual de apenas 2% à pasta da cultura. A partir daí,
observou-se um aumento gradual da receita da cultura no Estado. O qua-
dro que segue mostra esse movimento:
Quadro 6 – Demonstrativo das Receitas da SECMA / FUNCMA*

SECMA
Municipali- Total
Coorde- Patrimônio Ação e Difusão Memória e Total Liberado**
Museus zação Orçado
nadorias: Cultural Cultural Document. (R$)
da cultura (R$)
3.669.017,89
1995 Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado 11.691.967,00
(31%)
451.114,95
1996 Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado 2.812.704,00
(16%)
Receita não
1997 Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado relatada – superior à
estimada
Receita não
1998 Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado Não relatado relatada – superior à
estimada
FUNCMA
Conservação
Difusão e Apoio Conservação
Patrimônio Dinamização Municipali- Total Total
à Produção da Memória
Arquitetônico das Atividades zação Programado Executado**
Progra-mas: Artística e Documental
Paisagístico e Museológico Cultural (R$) (R$)
Cultural Bibliográfica
Arqueológico
Programado Programado: Programado: Programado: Programado:
906.234,00 2.690.303,00 431.643,00 200.886,00 107.926,00
1999 Executado: Executado: Executado: Executado: Executado: 1.384.478,14
4.156.992,00
0,00 1.330.757,86 3.016,00 50.704,28 0,00 (30%)
(0%) (49,46%) (0,7%) (25%) (0%)
81
Todas as Gerências de Estado eram ligadas à Gerência de Planejamento e Desenvolvimento
Econômico, uma espécie de gerência-mor, coordenadora das demais, responsável por
gerenciar todas as obras e liberar recursos para todas as áreas.

153
Letícia Conceição Martins Cardoso

Programado Programado: Programado: Programado Programado


504.648,00 2.176.364,00 620.450,00 282.686,00 182.844,00
2000 Executado: Executado: Executado: Executado: Executado: 7.787.696,94
3.766.992,00
88.633,09 7.428.442,89 211.185,26 59.435,70 0,00 (206,73%)
(17,56%) (341,32%) (34,04%) (21,03%) (0%)
Programado: Programado: Programado: Programado: Programado:
505.942,00 2.418.579,00 627.604,00 283.308,00 183.465,00
2001 Executado: Executado: Executado: Executado: Executado: 12.099.409,48
4.018.898,00
1.370.999,03 10.095.053,76 354.142,50 279.029,18 185,01 (301,06%)
(270%) (417,4%) (56,43%) (98%) (0,1%)

Programado: Programado: Programado: Programado: Programado:


505.942,00 2.478.577,00 627.604,00 283.308,00 183.465,00
2002 17.381.817,00
Executado: Executado: Executado: Executado: Executado: 4.018.898,00
(332,5%)
732.713,55 15.724.907,00 326.871,00 122.523,00 0,00
Fonte: Relatórios de Atividades SECMA/FUNCMA. *A receita real pode variar porque os Relatórios
só descrevem os recursos provenientes do Tesouro Estadual, não especificando os valores de outras
fontes com regularidade.

Vale ressaltar que dentre essas receitas anuais, o Programa da FUN-


CMA que recebeu mais verbas foi o de Difusão e Apoio à Produção Ar-
tística e Cultural82, responsável principalmente pela promoção de festas
populares do calendário oficial do Estado: Carnaval, Festa do Divino Es-
pírito Santo, São João, Natal e Reveillon. Em 1999, este programa concen-
trou mais de 95% de toda a receita da Fundação (R$ 1.330.757,86 de R$
1.384.478,14). Em 2000, a receita da FUNCMA foi sete vezes maior que o
ano anterior e duas vezes maior que a receita estimada para esse exercí-
cio financeiro do órgão (a receita prevista foi de R$ 3.766.992,00 e a exe-
cutada, R$ 7.787.696,94), novamente, mais de 95% desses recursos (R$
7.428.442,89) foram destinados ao Programa de Difusão e Apoio à Pro-
dução Artística e Cultural. Em 2001, a concentração também foi grande
neste setor: 83,4% dos recursos da FUNCMA (ou seja, R$ 10.095.053,76
de R$ 12.099.409,48), sendo que a receita do órgão triplicou em relação à
programação financeira e aumentou 41% em comparação a 2000.

Foi nomeado pela governadora Roseana Sarney para presidir a


FUNCMA o então Secretário de Cultura, Luís Henrique de Nazaré Bulcão,
que teve os amigos e também dirigentes da Cia. Barrica Teatro de Rua,
Wellington Reis como diretor de Ação e Difusão Cultural e José Pereira
Godão, como assessor da Fundação.

82
O Programa de Ação e Difusão cultural envolve: a Diretoria de Ação e Difusão Cultural, o
Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, o Centro de Criatividade Odylo Costa
filho, Espaço Cultural João do Vale e Escola de Música do Estado.

154
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

O organograma da FUNCMA (Ver Apêndice C) apresenta um Fundo


de Desenvolvimento Cultural e 11 órgãos: Diretoria de Patrimônio Cul-
tural, Biblioteca Pública Benedito Leite, Casa de Cultura Josué Montello,
Arquivo Público do Estado do Maranhão, Escola de Música do Estado
(EMEM), Museu Histórico e Artístico do Maranhão (MHAM), Centro de
Criatividade Odylo Costa filho (CCOCf ), Centro de Cultura Popular Do-
mingos Vieira Filho (CCPDVF), Centro de Artes Cênicas do Maranhão (CA-
CEM), que incorporou o Teatro João do Vale, Diretoria de Ação e Difusão
Cultural e Centro de Pesquisa Histórica, Natural e Arqueológica do Mara-
nhão, estes dois últimos criados na gestão da FUNCMA. O referido orga-
nograma não inclui nem o Teatro Arthur Azevedo, nem Morada das Artes
(inaugurada em 2002), que também constituem casas de cultura supervi-
sionadas pela instituição. Para além do organograma, identificam-se ain-
da os seguintes sub-órgãos (Ver Apêndice A): Casa do Maranhão e Casa
de Nhozinho, inaugurados em 2002 como anexos do CCPDVF, o que
representa um alargamento da atuação deste órgão; Museu de Artes
Visuais, Museu de Arte Sacra, Cafua das Mercês, que já eram anexos do
MHAM; Casa de Cultura de Alcântara e Salão de Bens Culturais; o Depar-
tamento de Projetos Especiais e Departamento de Patrimônio Histórico,
Artístico e Paisagístico do Maranhão, subordinados à Diretoria de Patri-
mônio Cultural. Totalizando 22 unidades de cultura.

A antiga Secretaria possuía 17 unidades de cultura (incluindo ór-


gãos e subórgãos), portanto, percebe-se que com a instituição da FUNC-
MA, houve um aumento significativo na quantidade de unidades oficiais
de cultura no Maranhão (Ver Apêndice A).

Estabelece-se a continuidade do projeto de transformar a “Cultura


Popular” em carro-chefe do Governo de Roseana Sarney, uma metáfora
do Estado e da Governadora.

Para compreender como esse processo é desenvolvido, recorro ao


discurso do governo no Relatório de Atividades da FUNCMA, em que o
Maranhão é identificado com um lugar fértil para a cultura: “[...] vasto e
rico quinhão cultural que se chama Maranhão, que não é mentira nada
seu Padre Antônio Vieira. É tradição. É torrão abençoado e predestina-
do. Seus poetas, cantores e artistas sabem disso. Aliás, o povo sabe bem
mais” (FUNCMA, 2001, p. 5).

155
Letícia Conceição Martins Cardoso

O Maranhão é representado como quinhão cultural vasto e rico, ou


seja, Maranhão é sinônimo de diversidade cultural. Em seguida, fazendo
uma referência simplória ao sermão da Quinta Dominga da Quaresma, de
Padre Antônio Vieira83, há uma oposição dos termos mentira e tradição, o
que me permite dizer que tradição está sendo usada como sinônimo de
verdade. O vasto e rico quinhão cultural é verdadeiro, porque tradicio-
nal e vice-versa. Logo, é limitado pelo critério da tradição: se “Maranhão
é tradição”, o que não é alcançado pela tradição não é entendido como
sendo Maranhão, ou seja, é mentira; a diversidade cultural do Maranhão
é delimitada, assim, pela tradição (verdade ou forma de divisão do mun-
do social do Estado).

Na metáfora “[Maranhão] é torrão abençoado e predestinado” o dis-


curso oficial aciona uma relação de semelhança entre Maranhão e um
solo próprio para cultura. Evocando o sagrado/ o sobrenatural ao dizer
que o chão maranhense é “abençoado e predestinado”, ao mesmo tem-
po, são referidas as manifestações culturais e festas populares que têm
forte caráter religioso no Maranhão e justifica-se o discurso oficial ba-
seando-se num poder divino. Se pretende afirmar que o solo maranhen-
se é próprio para a cultura, desde que esta se identifique com a “cultura
popular” nomeada pelo Estado.

As entrelinhas do discurso apontam, portanto, aquilo que o Go-


verno concebe (ou privilegia) como cultura nesta fase, isto é, aquilo que
identifica como “cultura popular”. Entendo assim que a diversidade cultu-
ral, para esta concepção de cultura, não constitui um critério importante
para o estabelecimento das ações estatais em âmbito cultural, já que são
privilegiadas as expressões de uma cultura considerada popular como
principais representantes da cultura do Estado.

O enfoque da gestão cultural, mais do que antes, é a “cultura popu-


lar”, norteado pela concepção do Secretário sobre o popular, o que ca-
racterizaria uma “cultura política” e não uma “política cultural”. Segundo
Alvarez (et al, 2000, p. 25), a cultura política constitui “a construção so-
cial particular em cada sociedade do que conta como ‘político’”, ou seja,
83
Padre Antonio Vieira diz no citado sermão, escrito em 1654: “E se as letras do abecedário
se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há
dúvida que o M. M – Maranhão, M – murmurar, M – motejar [gracejar], M – maldizer,
M – malsinar, M – mexericar, e, sobretudo, M – mentir: mentir com as palavras, mentir
com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se
mente...”.

156
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

“a cultura dominante”. Luís Bulcão define que cultura política é essa, no


Relatório de Atividades (FUNCMA, 2000, p. 3-4):
Sentimo-nos gratos na medida que [sic] a sociedade reage com sa-
tisfação aos nossos atos. É o turista que nos visita e fica a conhecer
nossas casas de cultura, nossas brincadeiras, nossa gente e nossa
arte. É a sociedade nativa que se mostra mais à vontade em se reco-
nhecer diante e dentro do Bumba-meu-boi, do bloco tradicional, da
arte pictórica de um Ambrósio Amorim, da delicadeza de Sinhô dedi-
lhando acordes magníficos, do jeito irreverente e rítmico de Dona Teté,
‘cacuriando’ mentes e corações, das rimas simples e telúricas de Hum-
berto de Maracanã, da poesia densa, profunda e sangrenta de Nauro
Machado, do som trovejante dos tambores da Casa das Minas, inter-
nacionalizados por Josué Montello, clamando por justiça, chorando
seus filhos e nos atando em laço à mãe África.

A partir deste discurso, classifico a concepção de cultura desta


gestão como estatista (CANCLINI, 1988, p.42), pois nela “há uma inade-
quada caracterização do popular, entendido como conjunto de gostos,
hábitos sensíveis e intelectuais ‘espontâneos’ do povo, sem discriminar
o que representa seus interesses e o que os aparatos do Estado inocula-
ram nas massas através da educação escolar e das comunicações”. Essa
concepção pode ser observada em diversas estratégias desenvolvidas
pelo Governo Estadual. Seja na classificação das manifestações culturais
em categorias específicas, cuja hierarquia implica não só em status, mas
também em benefícios financeiros diferenciados para os grupos. Seja na
interferência direta do processo criativo desses grupos culturais, através
de ações da FUNCMA que, “operando na perspectiva da ação transforma-
dora da sociedade”, visa ao “aprimoramento estético dos seus membros,
sempre pautado na preservação e difusão dos bens culturais materiais e
imateriais do Maranhão” (FUNCMA, 2001, p. 3).

O “aprimoramento estético” dos produtores culturais significa o en-


quadramento desses atores, uma “assepsia” da cultura, uma formatação
que corresponda aos interesses do Estado e dos intelectuais que funda-
mentam e legitimam as ações estatais. Com a justificativa de um “apri-
moramento estético”, visando “preservar” e “dinfundir” os bens culturais,
o Estado incute padrões, categorias, hierarquias no âmbito da produção
cultural, tendo como retórica84 a tradição e o turismo. Neste sentido, pre-
84
A retórica baseia-se num discurso que visa ao convencimento, à adesão; não visa
distinguir o que é verdadeiro ou certo, mas, sim, fazer com que o próprio receptor da
mensagem chegue sozinho à conclusão de que a idéia implícita no discurso representa o
verdadeiro ou o certo.

157
Letícia Conceição Martins Cardoso

servar significa aderir a um modelo de tradição. E difundir os bens cul-


turais, significa torná-los atraentes para a indústria do turismo (e para o
mercado). Tradição e turismo (entre muitas outras) são verdades cons-
truídas e reproduzidas pelo Estado, ora na fala da governadora Roseana
Sarney, ora do Secretário, ora dos diretores dos centros de cultura do Es-
tado, ora na fala dos intelectuais da Comissão Maranhense de Folclore.
Dessa missão de aprimorar esteticamente os atores é que surgem, por
exemplo, oficinas, workshops, cursos direcionados aos produtores cul-
turais para que estes conservem, (re)produzam e até mesmo aprendam
modos de fazer, de ser e de estar na própria cultura, sob os olhos vigilan-
tes e doutrinadores do Estado, ações que tratam os produtores culturais
como inaptos a gerir os próprios bens culturais.

A fala de Michol Carvalho, divulgada no informativo do CCPDVF re-


força essa idéia:
[...] Dentro do processo de criação/produção/reprodução do Bum-
ba-meu-boi maranhense o difícil é encontrar o ponto de equilíbrio
para conciliar os valores do espaço e do tempo sagrado das suas ra-
ízes religiosas com os apelos da espetacularização, do consumo tu-
rístico. Como conciliar as peculiaridades dos referenciais artísticos
específicos da brincadeira com as influências da cultura de massa
que se impõem nos circuitos da mídia? Esse é o desafio crucial que
se coloca no momento para o nosso Bumba-meu-boi. No passado,
a manifestação chegou a ser proibida. Hoje é reconhecida como
símbolo máximo da identidade maranhense. Sem dúvida, conta, e
muito, a expressão de resistência e afirmação dessa nossa brinca-
deira tão séria como sinal de vida e historicidade da nossa gente
(CARVALHO, 2004, s.p., grifos meus).

A pesquisadora expõe uma preocupação acerca da ameaça do con-


sumo turístico, da espetacularização e da mídia sobre o bumba-meu-boi,
dizendo ser este o principal desafio a ser enfrentado pela brincadeira
atualmente. Note-se que o Estado não é mencionado no discurso como
possível ameaça – o lugar de fala de Michol Carvalho não é somente de
pesquisadora, mas também de membro do Estado, diretora do CCPDVF.

A perspectiva preservacionista/passadista, que fundamenta as


ações estatais pode ser observada na fala de Michol Carvalho. Quando o
assunto é cultura, existe um ponto de equilíbrio? A cultura é produção e
reelaboração simbólica, que não se dá maneira consensual, mas resulta
de relações de forças. Por isso, é natural que ela esteja em permanente

158
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

tensão. O bumba-meu-boi, assim como qualquer outro bem cultural, não


pode ser desvinculado do mundo social do qual a cultura de massa, o
consumo turístico, a mídia, o mercado, e também, a política fazem parte.
Nesse sentido, “conciliar as peculiaridades dos referenciais artísticos es-
pecíficos da brincadeira com as influências da cultura de massa” é des-
necessário. Os atores culturais ressignificam o Boi a cada dia, recebendo
influências de suas tradições, da mídia, do mercado, do Estado, das sub-
jetividades de seus membros. É incoerente tentar proteger a expressão
cultural das influências e das relações com os diversos campos sociais;
eleger alguns vilões (“turismo”, “mídia”, “mercado”). Com esta atitude, o
próprio Estado acaba interferindo na produção cultural ao afirmar pro-
tegê-la.

Que influência, então, pode ser considerada do “bem” ou do “mal”?


Precisamente, a questão é: quem tem o poder de afirmar o que é do
“bem” ou do “mal”? Ao fabricar / difundir / reconhecer o bumba-meu-boi
como “símbolo máximo da identidade maranhense” o Estado contribuiu
para a ressignificação desta expressão cultural. Mas esse processo foi di-
vulgado e reproduzido como “valorização”.

A conversão de um elemento étnico ou identitário em símbolo da


Nação ou de um Estado significa, entre outras coisas, atribuir certa distin-
ção e status a esse elemento. Esse novo status pode desestimular o po-
der reivindicatório ou contestações dos grupos ao poder vigente. Se por
um lado, os símbolos adquirem reconhecimento e status diferenciado
na sociedade; por outro lado, os grupos étnicos/sociais (cujos elementos
identitários serviram para a fabricação de símbolos nacionais pelo Esta-
do) nem sempre estão incluídos nesse processo de distinção e reconhe-
cimento social. Assim aconteceu com o carnaval, o samba, o futebol e a
feijoada – transformados em símbolos de representação nacional, idéia
de brasilidade que ainda hoje persiste. Como analisou Peter Fry (1982, p.
53), “a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais não apenas
oculta uma situação de dominação racial, mas torna muito mais difícil a
tarefa de denunciá-la”.

Seguindo o pensamento de Fry, percebo que no Governo de Rose-


ana Sarney a utilização de expressões culturais populares, como o bum-
ba-meu-boi, no processo de produção de símbolos identitários para o
Estado contribuiu para a legitimação da governadora como aquela que

159
Letícia Conceição Martins Cardoso

valoriza a “cultura popular do Maranhão”. Neste processo, o caráter con-


testatório do bumba-meu-boi foi atenuado por uma estratégia de poder
que o elegeu como símbolo de identidade local. Essa eleição resseman-
tizou o auto do bumba-meu-boi (que até início do século XX servia de
denúncia, momento em que a população podia falar das desigualdades):
hoje, a crítica política raramente aparece nas toadas, cedendo lugar cada
vez mais à exaltação das belezas naturais, do amor, do próprio grupo e
de seu padrinho político-financeiro e a temáticas genéricas como pre-
conceito, drogas, ecologia, futebol. Por essa estratégia, o poder instituí-
do abrandou o caráter contestatório do bumba-meu-boi, investindo em
práticas discursivas que constituíram o folguedo em símbolo de identi-
dade maranhense.

De modo análogo ao que ocorria com as políticas estatais de cultu-


ra da Era Vargas e dos regimes autoritários, no Governo Roseana Sarney o
povo é mencionado como destinatário das ações do Estado (“a sociedade
nativa que se mostra mais à vontade em se reconhecer diante e dentro
do Bumba-meu-boi”), no entanto, só lhe resta aderir a elas, porque à po-
pulação não é dado o poder para submeter tais ações à sua livre aprecia-
ção. Isso fica explícito no discurso de Luís Bulcão: “a sociedade reage com
satisfação aos nossos atos”. Este discurso parece não reconhecer que os
cidadãos têm o direito de demandar/produzir políticas culturais de seu
interesse. Será que só resta à sociedade reagir às intervenções do Estado?
E será que essas intervenções configuram políticas públicas culturais?

O produtor cultural, Jeovah França, que foi assessor da SECMA/FUN-


CMA avalia: “durante o Governo de Roseana Sarney não houve a cons-
trução de uma política [pública cultural], mas ações que seguiam a linha
de pensamento do Secretário vigente”. Ele acredita que o “estilo Roseana
Sarney” inseriu uma cultura política no Maranhão que influenciou gover-
nos posteriores, dificultando a implantação de políticas públicas culturais
no Estado: “O que temos ainda hoje é uma política de eventos concentra-
da na cultura popular, porque é aquela considerada a mais vantajosa pro
Estado”.

Em eventos populares, a repercussão das ações do Governo, na im-


prensa, na opinião pública, na população se dá a curto prazo, quer dizer,
em pouco tempo todos ficam sabendo o que o governo está fazendo e,
como, geralmente são mega-eventos, voltados para as massas, atingem

160
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

um número considerável de pessoas. O ritual desses grandes espetáculos


acaba funcionando como meio de legitimação do Estado, mais ainda, da
personificação de Roseana Sarney, que aproveita essas encenações para
renovar seu carisma, baseando-se no discurso do popular. Afinal, como
bem observa Canclini (1997, p. 58-59),
os rituais servem para ‘conter o curso dos significados’ e tornar ex-
plícitas as definições públicas do que o consenso geral julga valio-
so. Os rituais eficazes são os que utilizam objetos materiais para
estabelecer o sentido e as práticas que os preservam. Quanto mais
custosos sejam esses bens, mais forte será o investimento afetivo e
a ritualização que fixa os significados a eles associados.

Para Calabre (2007 apud Rubim, 2007) as políticas públicas são de-
cisões coletivas, em geral produtos de atividades políticas, que devem
envolver diversos agentes com um impacto sobre o conjunto da socie-
dade, além de ações normativas e alocação de recursos. De acordo com
Rubim (2007), só podem ser consideradas políticas públicas aquelas que
são discutidas e legitimadas pela sociedade. O autor explica que é funda-
mental distinguir políticas estatais de cultura de políticas públicas de cul-
tura, pois estas últimas implicam sempre em políticas negociadas com a
sociedade.

Ao ser questionado sobre a participação popular em sua gestão,


Luís Bulcão argumenta:
[...] nós tínhamos consciência do que estávamos fazendo, tudo me-
todicamente feito. Mas, dando uma abertura para que a população
como um todo participasse. Não era aquela secretaria de cultura
que se botava um bordão de apenas um ou dois privilegiados te-
rem acesso. Eu cheguei a receber no meu gabinete 50, 100 pessoas.
Eu enchia meu gabinete porque eles queriam conversar com o Se-
cretário... Eles queriam me dizer dos seus problemas. Essas pessoas
são simples, elas querem apenas te conhecer e fazer com que elas
também fossem conhecidas. E eu dei isto pra elas. Quando eu não
tinha, porque nem tudo você tem dinheiro pra fazer e tudo, mas
eu dava carinho, eu dava compreensão, eu os recebia, eu os tinha
como meus amigos e isso fazia com que a gente trabalhasse numa
harmonia, numa fraternidade... E isso existia na época que a gente
participava da cultura do Maranhão.

O então Secretário acionou discursos populistas / paternalistas para


lidar com os atores culturais, levando os atores para os centros de poder
do Estado (o Palácio, os Vivas, órgãos estatais de cultura). Essas práticas,

161
Letícia Conceição Martins Cardoso

em que o poder se exercita de modo quase invisível, forjam um ambiente


democrático dando voz aos atores. Como ilustra a fala de seu Marcelino
Azevedo, do Boi de Guimarães:
Nesse governo o pessoal sempre me recebeu muito bem. No go-
verno dela [Roseana Sarney], a gente era chamado era pro palácio,
pra fazer reunião com a gente lá dentro, na presença dela. Eles que-
riam saber... conhecer o movimento da cultura. A gente tem que ter
liberdade de expressão e isso o Governo Roseana dava pra gente.
Eu influenciava meus brincantes e influencio pra votar nela!

No entanto, não havia interesse em despertar um debate efetivo


entre Estado e sociedade. Os atores eram convocados a “aceitar” as de-
liberações do Estado. O discurso de Luís Bulcão sobre a montagem da
programação dos arraiais oficiais do Estado revela isso:
[Dirigindo-se aos atores culturais:] ‘Olha, tu tens tantas apresenta-
ções, o outro tem tantas apresentações, os outros têm tantas...’ Veja
bem, é isso. As pessoas pensam que as outras porque são simples,
são pobres, não são inteligentes; que essas pessoas são burras. Não
são. Você explicava e as pessoas entendiam. As pessoas reconhe-
cem que o Boi da Madre Deus, da Maioba, que o Boi de São José
de Ribamar, de Axixá, de Nina Rodrigues têm mais preferência. Eles
sabem disso, eles sabem. Então, não precisava muito argumento,
eles mesmos sabem, só que eles queriam apenas uma oportunida-
de pra também crescer. Quem não quer crescer?

A distribuição dos grupos em cada arraial nos períodos de festa é


apenas um exemplo das decisões unilaterias e verticalizadas da referida
gestão cultural.

A violência simbólica também foi exercida através da categorização,


da classificação, do etiquetamento desses atores pelo Estado. Como vi-
mos anteriormente, a SECMA criou uma hierarquização dos “grupos fol-
clóricos”, a título de pagamento de cachês, a partir de critérios subjetivos
de membros do CCPDVF e da CMF. Questionado sobre o uso desta estra-
tégia, Luís Bulcão responde:
[...] você sabe que nós pegamos o bonde andando. Você chegar pra
parar e botar os próprios interessados pra fazer um negócio des-
se, você não vai conseguir. Então o que nós fizemos? Nós fechamos
várias listas, conversávamos. Eu reuni com eles várias vezes lá no
[teatro] Alcione Nazaré, lá no João do Vale, mostrava e tudo. Tá tudo
bom? É isso aqui? É! Mas sempre tinha um ou outro desconten-
te. Era natural gente! Nem Jesus agradou, coitado, a todos. Eu iria

162
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

agradar? Não! Vai ter um ou outro descontente? Vai. Tinha um sar-


gento, por exemplo, que ele achava que ele era um cara da cultura.
Nunca foi. Vivia daquilo pra pegar um dinheirinho ali ou outro, nós
sabíamos, mas quem era eu pra dizer isso, né? Então, eu também
tinha que dar o direito dele. Se ele tem um grupo, se ele tava repre-
sentando o grupo dele, eu deixava [...] Mas, na cultura popular, veja
bem, tem uma coisa que marca, que é o que nós chamamos da tradi-
ção, o nome, o pedigree. Tem gente que tem pedigree, tem gente que
não tem. Quem não tem vai lutar pra ter. Esse é que é o problema. Tu
achas, por exemplo, que Boi de Axixá não tem pedigree, não tem
tradição? Boi da Maioba não tem? Turma do Quinto não tem? Fuzi-
leiros da Fuzarca não tem? Flor do Samba não tem? Favela não tem?
Então, é isso... É por isso que tô dizendo: foi fácil pra mim porque é
fácil você saber quem tem e quem não tem tradição.

O presidente da FUNCMA ratifica o uso da categorização dos grupos


e, ainda, parte do princípio de que os atores não têm capacidade para
definir seus próprios critérios. Ele afirma ter se reunido com atores cultu-
rais, no entanto, tais reuniões serviam apenas para comunicar decisões
previamente tomadas.

Além disso, Luís Bulcão atribui a si próprio o direito de nomear


(BOURDIEU, 1996) um ator/grupo como tradicional ou não, qualidade
que compara a um pedigree. Os significados deste termo podem se refe-
rir a “linha de ancestrais”, “registro genealógico de animais de raça pura”,
“história”. O interessante é que seu discurso é posto como verdade única
(“Tem gente que tem pedigree, tem gente que não tem”) e universal (“foi
fácil pra mim porque é fácil você saber quem tem quem não tem tradi-
ção”).

Essas práticas de “deixar falar”, de levar o povo para o centro do po-


der político e de nomeações podem ser entendidas como rituais, no sen-
tido dado por Kertzer (1988, p.1), segundo o qual os políticos se utilizam
dos ritos para criar realidades políticas para as pessoas que estão ao seu
redor. Tais práticas simbólicas fornecem significados para os atores, que
a partir deles, constroem uma imagem sobre o político. Neste processo,
explica Kertzer (1988, p. 14), “o ritual não somente tem efeito cognitivo
sobre a definição política da realidade, mas tem um importante impacto
emocional”, o que pode contribuir para uma maior persuasão dos atores,
através dos discursos populistas / paternalistas do gestor cultural, por
exemplo.

163
Letícia Conceição Martins Cardoso

O Estado tenta impor suas visões e divisões de mundo, mas diante


da cultura política dominante, os atores não são passivos nesse proces-
so. Reivindicam direitos, demandam ações do Estado (mesmo que não
sejam executadas), negociam com o Estado, exercendo também poder.
Desta forma, tentam interferir na cultura política do Estado, a fim de ge-
rar respostas aos seus interesses. O que é verificado nas palavras de Hum-
berto do Maracanã. Segundo ele, a SECMA/FUNCMA não convocava os
atores para participar da elaboração da programação oficial:
Não. Eles convidam a gente pra mostrar, mas quando a gente chega
lá, já tá tudo montado. Aí eles perguntam: ‘Tá bom pra vocês?’ Aí a
gente diz: ‘não, não tá bom, porque a gente já tem aquelas apresen-
tações particulares’, aí vai... até a gente chegar num acordo... mas
isso é feito com cada um, não é junto não.

E ainda, na fala de seu Marcelino: “O governo que não faz reunião


com o povo da cultura não tá valorizando, porque o fazedor da brinca-
deira é que sofre. Se ele falar com a gente, ele vai saber a nossa verda-
de”.

Assim, não há uma simples assimilação dos discursos e aceitação


das estratégias do Estado pelos atores culturais. Eles podem assimilar al-
guns conteúdos, mas também podem rejeitar e reelaborar outros, crian-
do suas próprias realidades, suas visões de mundo e ressignificando sua
experiência. É isso que faz Humberto afirmar que a motivação de brincar
o boi há mais 30 anos ainda hoje é a mesma: “Eu vejo ainda o mesmo
sentimento de gostar do boi nas pessoas”.

Dominação x emancipação

A cultura política do Governo de Roseana Sarney levou a uma do-


minação/manipulação dos atores? Houve um silenciamento das vozes
dissonantes na esfera cultural? Seria precipitado dizer que sim. As ações
estatais de cultura tenderam a um acúmulo de capital simbólico na fi-
gura de Roseana Sarney, o que gerou uma antropomorfização do poder
ou uma consagração / visibilidade da governante a partir das relações
desenvolvidas com a “cultura popular”. Além disso, as intervenções da
SECMA/FUNCMA privilegiaram alguns setores da esfera cultural em de-
trimento de outros, com base nas concepções de cultura dos gestores.
Neste emaranhado de relações, muitas estratégias desenvolvidas pelo
Estado interferiram nas culturas populares (título de patrimônio, Vivas,

164
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

cadastro, cachês, classificações, apadrinhamentos), gerando modificações


no universo simbólico dos atores. Mas, ainda assim, não se pode falar que
as relações entre política e cultura se estabeleceram através da oposição
dominação/sujeição.

Nossa pesquisa nos leva a concluir que os grupos (culturais e po-


líticos) aprenderam a tirar proveito da situação de acordo com o que
um tem a oferecer ao outro. Num sistema de trocas simbólicas que nos
permite pensar as relações dos grupos em disputa não apenas como
uma oposição dominação/sujeição; dominantes (políticos, elite cultural)
/ dominados (povo, culturas populares); mas nos ajuda a perceber que
ambos os pólos são ativos nesse processo de disputa pela definição da
divisão do mundo social, reinterpretando, selecionando e remanejando
as pressões que recebem e exercem entre si.

“A cultura é política porque os significados são constitutivos dos


processos que, implícita ou explicitamente, buscam redefinir o poder so-
cial” (ALVAREZ et al, 2000, p. 25). E os atores têm consciência de seu poder
político, como demonstra a fala de seu Marcelino Azevedo:
Este ano é ano de eleição, eles vão oferecer maior estrutura pra cul-
tura popular, mas os outros anos eles esquecem que também são
anos culturais. Eles visitam a gente com esse interesse político de
levar a gente pra fazer campanha deles. Eles sabe que o grupo de
cultura tem um contingente... Nós que tamo aqui com 130 pessoas,
o político vai querer falar de um a um? Ele quer falar é com a pessoa
coordenador do grupo, que aí ele tira alguma coisa.

Seu Marcelino representa um líder de opinião em sua comunidade,


ou seja, aquele sujeito que reinterpreta as informações para o grupo, que
é autorizado a falar pela e para a comunidade pela credibilidade e habili-
dade que possui. Reconhecendo-se enquanto agente político, negocia e
exige benefícios para o grupo junto a outros campos sociais. Humber-
to do Maracanã também fala de sua atuação na comunidade:
O bumba-boi vem de um povo sofrido, esse povo dificilmente ti-
veram condição de crescer financeiramente. Alguns melhoraram
alguma coisa, mas é o mesmo povo humilde, assalariado. Aí, eles
vêm e pedem. Na medida do possível, a gente resolve. É um remé-
dio... Quando o pessoal chega e vai pra casa, a gente reconhece as
dificuldades que eles passam. Então a gente tem o cuidado, né, de
dar pra cada um levar um provimento pra tomar um café em casa.
Outros querem remédio, um é pescador que tá com a canoa esban-

165
Letícia Conceição Martins Cardoso

dalhada; outro é lavrador, tá precisando ajeitar a roça. Alguma coisa


a gente ajuda, tudo a gente faz. Eu sempre fui a favor de ajudar. [...]
Sempre a gente tá atento. Eu me preocupo muito quando eu vou
na casa de um brincante que eu vejo a casa dele num estado tão
precário, alguma coisa eu tenho que fazer... Até porque ele se des-
loca lá da casa dele e vem pra cá prestigiar, pra dar essa força, vem
somar. Então isso sensibiliza a gente.

O ator cultural adquire capital simbólico junto à comunidade e tam-


bém fora dela, a partir da sua atuação política. Humberto do Maracanã
explica como conseguiu isso:
A gente começou a Associação [Recreativa e Beneficente do Mara-
canã] em 1979, com aquela coisa tradicional de contribuição de só-
cio, mas isso não funcionou, isso não dá certo... Mas a gente foi ten-
tando ver se conseguia fazer alguma coisa na comunidade: criamos
uma escolinha, a comunidade é servida de saúde, tem o posto de
saúde, tem água encanada, nós temos uma escolinha comunitária
que funciona lá na sede, e o forte mesmo é o Boi. Através do Boi é
que a gente conseguiu manter essa relação forte com a comunida-
de e lá fora.

Percebe-se que o envolvimento político de Humberto é bastante


antigo, tendo registrado o bumba-boi como personalidade jurídica bem
antes da exigência do cadastro do Governo de Roseana Sarney. Além dis-
so, não é só através do poder público que consegue recursos para man-
ter o grupo cultural e as atividades na comunidade:
Hoje tem as coisas do Governo. De uma forma ou de outra ele faz
a sua parte. Ele contrata Boi, né? Porque muitas vezes agora é mui-
to difícil de se achar contratos. Faço as apresentações pro Governo
Municipal e Estadual. Aí, a gente vai correr atrás de amigos, amigos
empresários por aí. Um dá uma coisa, um paga o ônibus, enfim, um
dá 100 kg de carne. Aí, a gente vai levando, o Boi vai indo pra frente.

Os diversos movimentos identitários locais, geralmente sufocados


ou não-reconhecidos pelo Estado foram desencadeados / impulsionados
no mundo contemporâneo, ambientado pelos meios de comunicação
de massa, pelas tecnologias da informação e marcado pelos processos
de mundialização/glocalização da cultura. Paradoxalmente, o processo
de globalização – que seria responsável pela inevitável homogeneização
mundial de bens materiais e simbólicos – acabou gerando uma preocu-
pação maior com a identidade, o que fez proliferar novos movimentos

166
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

culturais e formas contra-hegemônicas de atuação política (SANTOS,


2003, p. 557).

O Estado-nação, que deteve o monopólio da legitimidade em afir-


mar o que deveria ser o “autêntico” símbolo da coletividade, perde essa
exclusividade com a expansão da globalização no domínio da cultura
(mundialização). Assim, a identidade nacional torna-se uma “diferença”
entre várias outras.

Neste contexto, a mídia – espaço público privilegiado do mundo


contemporâneo – assume um papel importante. Não apenas como lugar
de controle, mas também como lugar de emancipação dos atores sociais.
Desse modo, apesar das relações próximas com o Estado e da lógica ca-
pitalista que regem as empresas de comunicação no Maranhão, a mídia
não pode ser vista apenas como mecanismo de controle ou manutenção
do status quo, já que ela pode desconcentrar poder do Estado e das eli-
tes, na medida em que der voz e visibilidade a grupos sociais considera-
dos periféricos.

Neste sentido, partilhamos a concepção de comunicação midiática


de Barbero (2005, p. 63), para quem a comunicação constitui “um cená-
rio cotidiano do reconhecimento social, da constituição e expressão dos
imaginários a partir dos quais as pessoas representam aquilo que temem
ou que têm direito de esperar, seus medos e suas esperanças”.

As correntes teóricas conservadoras sobre a mídia85 descartam o


fato de que os indivíduos estão inseridos num contexto sócio-cultural,
interagindo com outros indivíduos, outras instituições (trabalho, escola,
igreja...) e com líderes de opinião da comunidade onde vivem. Todos es-
ses elementos compõem o processo de mediação dos discursos midiáti-
cos e a consequente formação da opinião pública pelos atores sociais. De
acordo com Beltrão (2001), o processo comunicação de massa acontece
num “fluxo em múltiplos estágios”: dos meios de comunicação coletiva,
85
Estudos em comunicação, baseados num paradigma de comunicação de massa,
unidirecional e verticalizado. As pesquisas de Lazarsfeld, Berelson, Katz, Merton e Kurt
Lewin concluíram por contrariar a crença dominante de que os meios de comunicação
são implacáveis e exercem decisiva influência direta na aceitação de novas ideias. As
investigações levaram à evidência de que o efeito dos meios postos a serviço de grandes
campanhas políticas ou sociais, visando mudar opiniões e atitudes a curto prazo, não era
tão eficaz como se imaginava. São exemplos, as correntes norte-americanas Hipodérmica
e Funcionalista e a Teoria Crítica de Frankfurt, tradições teóricas que apesar de revisadas
e em muitos aspectos ultrapassadas ainda hoje marcam estudos sobre a mídia.

167
Letícia Conceição Martins Cardoso

através de vários líderes que se comunicam entre si, para os grupos lide-
rados, compartilhando um contexto social.

Além disso, os indivíduos não são meros receptores “dóceis” ou sim-


ples audiência passiva de mensagens. São antes sujeitos dotados de sub-
jetividade, capazes de assimilar, rejeitar, enfim, reagir de modos diferen-
tes às mensagens midiáticas.

Em parte, a mídia influencia, aponta caminhos, difunde ideologias


e modismos, veicula mensagens universalizantes e homogeneizadoras,
sugere visões e divisões de mundo. Mas ela também é reflexo da mesma
realidade social que ajuda a construir. Não podendo ser analisada fora
do mundo social, como se estivesse acima do bem e do mal. Os discur-
sos que são mediados ou traduzidos pela mídia são também originários
de outros campos sociais com os quais se relaciona (política, economia,
cultura...).

Nos meios de comunicação, pondera Barbero (2005, p.63), “não ape-


nas se reproduz ideologia, mas também se faz e se refaz a cultura das
maiorias, não somente se comercializam formatos, mas recriam-se as
narrativas nas quais se entrelaça o imaginário mercantil com a memória
coletiva”.

A comunicação contemporânea também promove a visibilidade de


agentes e grupos sociais considerados periféricos, principalmente em se
tratando de mídias colaborativas (blogs, redes sociais, tecnologias P2P,
softwares livres etc) e formas alternativas de usar os meios de comunica-
ção de massa convencionais, a exemplo das rádios e dos jornais comu-
nitários, tvs universitárias. A visibilidade midiática insere os agentes em
circuitos nunca antes experimentados. E no caso da web, esse processo
pode adquirir dimensões globais.

Por um lado, as possibilidades emancipatórias e democratizantes


das tecnologias da informação esbarram na distribuição desigual do ca-
pital na sociedade e nas estratégias desenvolvidas pela grande mídia, em
geral, controlada por famílias políticas ou pelo Governo, mais interessada
em promover o consumo e a influência ideológica do que a cidadania.
Por outro lado, o poder político e econômico exercido sobre a mídia con-
vencional deve ser relativizado devido a novos agentes como a potência
da inteligência coletiva (LEVY, 2005) e os sistemas alternativos de mídia.

168
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

Se durante muito tempo as mídias corporativas se legitimaram rei-


vindicando o direito de informar a sociedade, agora, essas empresas mi-
diáticas não detêm mais o monopólio deste saber, disputando espaço
com as redes distribuídas de comunicação da Internet, através das quais
qualquer pessoa pode criar a maneira de se informar que lhe convém e
de informar outras pessoas. Em certa medida isso representa maior plu-
ralidade da comunicação, uma vez que o tradicional modelo de comuni-
cação de massa um-todos (unidirecional e vertical), vem sendo substituí-
do ou ao menos influenciado pelo modelo todos-todos (pluridirecional e
horizontal), como vem destacando Levy (2005).

Se por um lado, a mídia constrói realidades ao contribuir para a coe-


são social, para a reprodução do status quo e para o avanço da lógica ca-
pitalista em vários domínios; por outro lado, ela constrói outras realida-
des, ao permitir espaços férteis à reivindicação, à pressão às autoridades
administrativas, ao surgimento de movimentos emancipatórios contra-
hegemônicos (principalmente com a popularização da Internet). Nes-
te sentido, a mídia é o lugar da emancipação quando é ocupada pelas
vozes dissonantes das rádios comunitárias no Brasil, pelos movimentos
transnacionais de proteção ao meio ambiente na Internet ou ainda pela
apropriação dos meios convencionais por um movimento social, geran-
do notícias de (re)conhecimento sobre a referida mobilização, como é o
caso da seguinte matéria sobre o Boi da Madre Deus.

169
Letícia Conceição Martins Cardoso

Figura 11 – Estratégia de emancipação dos atores

Brincantes e novos dirigentes do bumba-meu-boi se articulam para dar continuidade à manifestação.


Fonte: Jornal Pequeno (24/08/2007)

A reportagem relata a articulação política de membros do Boi da


Madre Deus que lutaram na justiça, através de processo judicial, para de-
por a antiga diretoria da “Sociedade Folclórica e Cultural Bumba-meu-boi
da Madre Deus”, acusada de desvio de verbas e má administração.

O Bumba-meu-boi da Madre Deus (sotaque de matraca), conhecido


como tradicional manifestação cultural daquele bairro, enfrentou uma
grave crise financeira e de articulação entre os integrantes, o que acabou

170
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

afastando os brincantes. Segundo Herbeth Santos, coordenador do mo-


vimento de rearticulação política da manifestação, “a diretoria anterior
se acostumou a receber os cachês do Estado que eram pra despesa do
Boi e botava no bolso, porque não tinha um controle, nem prestação de
contas”. Então, o grupo que antes se destacava na cultura política domi-
nante do Estado, agora enfrenta dificuldades por ter se acomodado ao
recebimento dos cachês (sem investi-los na brincadeira), já que não bus-
cou outras formas de subsistência. O mesmo mecanismo que desarticu-
lou politicamente o grupo foi o que lhe havia proporcionado visibilidade
anteriormente. Isto levou alguns membros do Boi e moradores do bairro
da Madre Deus a reavaliar a cultura política do Estado, buscando alterna-
tivas emancipatórias para a manifestação.

Outro exemplo de movimento emancipatório contra-hegemônico86


é relatado por seu Marcelino Azevedo:
A gente tá com o Projeto na Petrobrás, de 18 meses, em que a gente
vai fazer aulas de cultura nas comunidades quilombolas. Aqui, em
Guimarães, tem 19, mas foram escolhidas logo 5. Nós tamo muito
feliz com isso, porque a gente pode orientar mais a cultura em Gui-
marães, porque ela tá se perdendo. Eu tô incansável, porque não
tem um incentivo do Governo Municipal, nem Estadual pra nossa
cultura. Eles poderiam reunir a gente pra que eles soubessem as
nossas necessidades; eles não acreditam que a gente se enriquece
se expressando, dialogando. Não tem ninguém que pense no futu-
ro, só no presente. E a cultura é um desenvolvimento a longo prazo!

Tanto nestes dois movimentos, quanto nas ações desenvolvidas


por Humberto de Maracanã em sua comunidade, os atores buscam al-
ternativas para dar continuidade à manifestação cultural de forma inde-
pendente do Estado ou pelo menos, conciliando as ações estatais que
consideram condizentes aos seus interesses. Para entendê-los, recorro à
definição de política cultural proposta por Alvarez (et al 2000, p. 24-25):
Processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais mol-
dados por e encarnando diferentes significados e práticas culturais
entram em conflito uns com os outros. Essa definição supõe que
significados e práticas – em particular aqueles teorizados como
marginais, oposicionais, minoritários, residuais, emergentes, alter-
nativos, dissidentes e assim por diante, todos concebidos em rela-
86
Santos (2003) diz que os projetos emancipatórios são contra-hegemônicos na medida em
que utiliza instrumentos hegemônicos (mídia, capitalismo, globalização) para contestar
a própria hegemonia.

171
Letícia Conceição Martins Cardoso

ção a uma determinada ordem cultural dominante – podem ser a


fonte de processos que devem ser aceitos como políticos.

Interpreto, portanto, esses movimentos político-culturais como for-


mas de política cultural, concebendo a sociedade como parte legítima
para gerar políticas que correspondam às suas necessidades, às suas vi-
sões de mundo.

172
Considerações Finais

O Governo de Roseana Sarney não possui um discurso uníssono/


homogêneo sobre política cultural. Aliás, não existe apenas um discur-
so, mas visões plurais que permearam a gestão cultural do Estado, cujos
membros são atores que expressam suas experiências e suas concepções
de mundo em determinadas ações. Mas, essa gestão cultural pode ser
considerada uma política pública de cultura?

Ao analisar os Relatórios de Atividades da SECMA/FUNCMA, não foi


encontrada definição para a política cultural do Estado, apesar de esta
aparecer em várias passagens dos documentos como principal objetivo
do órgão. Também, não há outro documento, segundo funcionários da
Secretaria, que trate do tema.

A SECMA foi criada para “desenvolver e apoiar a cultura, bem como


assessorar o Governador na formulação e execução da política cultural do
Estado (SECMA, 1995, p. 2, grifos meus)” e para “planejar, normalizar, co-
ordenar, executar e avaliar a política cultural do Estado” (SECMA, 1996, p. 5,
grifos meus). Por sua vez, a FUNCMA, que substituiu a SECMA, também
teve como missão a “elaboração e execução da política pública de natu-
reza cultural” (FUNCMA, 2001, p. 3).

No entanto, não houve formulação, elaboração, planejamento, nem


tampouco execução ou avaliação de uma política cultural. Existiu, sim,
um conjunto de ações e projetos – isolados e descontínuos –, seguindo
a visão de cultura dos Secretários escolhidos pela governadora Roseana
Sarney.

Num primeiro momento, na gestão cultural comandada pelo advo-


gado Eliézer Moreira Filho predominou a concepção de cultura identifi-
cada com “erudição”, limitando-se a dois eixos de atuação: o “patrimônio”
e a “cultura popular”, esta última a reboque do primeiro, com intuito de
garantir o título de Patrimônio Cultural da Humanidade para São Luís. Já,

173
Letícia Conceição Martins Cardoso

no segundo momento, em que o artista Luís Henrique de Nazaré Bulcão


assumiu a gestão cultural, predominou a concepção de que a “cultura
popular” deveria ser incrementada em detrimento das demais, por se
tratar de uma cultura, segundo a visão do Secretário, do “povo pobre”.
Assim, as ações antes concentradas no “patrimônio” migraram para a “cul-
tura popular”.

As relações entre atores culturais e o Estado no Maranhão, aparen-


temente caóticas, são intermediadas e motivadas por uma linha de ação
do poder público. Mas, isso caracterizaria uma política pública de cultu-
ra? Para responder a esta questão, destaco alguns elementos comuns às
duas gestões do Governo de Roseana Sarney, tentando situá-los no de-
bate contemporâneo sobre política cultural:
a) O predomínio de uma política de eventos (obras ou festas populares):
essa visão delimitada ao acontecimento episódico dificulta a
continuidade / o desenvolvimento de projetos a médio ou longo
prazo, pois constituem atividades isoladas e pontuais, limitadas a
mandatos e motivadas por interesses de ocasião;
b) A falta de planos/planejamentos dos órgãos de cultura: qualquer
processo de gestão demanda diretrizes, planejamento, execução
e avaliação dos resultados, com a cultura não é diferente,
considerando-se, é claro, que ações voltadas à cultura precisam
de um prazo mais longo para se observarem os resultados, por se
tratar da dimensão simbólica, que envolve subjetividades, visões
de mundo, práticas culturais naturalizadas. A gestão cultural do
Governo Roseana Sarney é permeada por ações eventuais, que
mudam de direcionamento a cada troca de Secretário;
c) A retirada do Estado em alguns setores culturais, transferindo a
responsabilidade para a iniciativa privada, através da Lei Federal
de Incentivo à Cultura: o Governo Roseana Sarney acomodou-
se aos mecanismos de financiamento do Governo Federal,
principalmente ao Mecenato, que fez o Estado abdicar, em parte,
à sua função de fomentar a cultura. No Brasil, esta prática está se
tornando comum, tendo como justificativa a perspectiva liberal
de que cabe ao Estado apenas assegurar o espaço de produção
e o consumo de bens culturais. O uso recorrente do Mecenato
no Governo Roseana Sarney foi peculiar: não denegou poder de
decisão à iniciativa privada, como costuma acontecer em nível

174
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

nacional; gerou, sim, um controle dos investimentos / patrocínios


privados pela governadora, capitalizando politicamente para si o
patrocínio das empresas e repassando-o aos atores culturais sem
especificar a origem dos recursos.
d) Não-reconhecimento da diversidade cultural: as concepções
de cultura vigentes nas duas gestões ficaram restritas a
formas dicotômicas e reducionistas. A oposição “cultura culta
x cultura popular”, marcante neste governo, não dá conta de
atender à diversidade de públicos existentes no Estado, com as
visões e os interesses diferenciados que formam o Maranhão
contemporâneo;
e) A falta de participação popular efetiva na gestão cultural: a
participação da sociedade nas decisões estatais voltadas para
a cultura é ponto indispensável à implementação de qualquer
política pública de cultura. Como salienta Rubim (2007),
precisamos de políticas “que exibam continuidade independente
dos governos no poder, porque alicerçadas em interesses
estratégicos pactuados socialmente”. Mas nos Governos de
Roseana Sarney, apesar de o povo ter sido aludido inúmeras vezes
nos discursos oficiais como justificativa das ações do Estado, não
teve poder efetivo de decisão nas ações estatais de cultura.

Nossa investigação fornece subsídios para afirmar que as ações es-


tatais do Governo de Roseana Sarney na esfera da cultura são protecio-
nistas e conservadoras, tratando os produtores culturais como inaptos a
gerir os próprios bens culturais. Um dos objetivos da SECMA/FUNCMA,
por exemplo, é “o aprimoramento estético [da sociedade maranhense],
sempre pautado na preservação e difusão dos bens culturais materiais e
imateriais do Maranhão”, o que significa o enquadramento desses atores
numa formatação coerente com os interesses do Estado e dos intelec-
tuais que fundamentam e legitimam as ações estatais.

Não identificamos, portanto, uma política pública cultural no Go-


verno de Roseana Sarney. Houve, sim, uma cultura política que utilizou
estratégias, instituídas como ações estatais, que contribuíram para uma
consagração / visibilidade política da governante.

Os eventos culturais promovidos pelo Estado são geralmente, apre-


sentados de forma espetacular. No mesmo ritual, o governo diverte as

175
Letícia Conceição Martins Cardoso

massas e tende a desmobilizar possíveis contestações ao Estado, na me-


dida em que, por exemplo, cadastra os grupos e lhes oferta um dom (em
forma de cachê). Além disso, esses rituais fabricam uma identificação do
Estado, personificado na figura de Roseana Sarney, com símbolos iden-
titários das culturas populares, através de cenas teatrais, que, simbolica-
mente e subliminarmente, traduzem atos de poder. Esses espetáculos são
divulgados pela mídia e registrados nos Relatórios de Atividades do Esta-
do como “apoio e incentivo” à “Ação e Difusão da Cultura Popular”.

Os atores culturais, por sua vez, ressignificaram sua experiência para


participar desse teatro do poder não apenas como figurantes, mas como
protagonistas do seu fazer cultural, o que entendemos aqui como uma
forma de ação política, definindo/redefinindo o mundo social de acordo
com seus interesses e possibilidades.

Em parte, os produtores culturais espelham-se nos discursos ofi-


ciais, acionando discursos que remetem ora à tradição e à ancestralidade,
ora à preservação, ora à modernização, ora à experimentação estética,
ora ao mercado. E assim, cada agente desenvolve o discurso que se lhe
apresenta mais conveniente no momento.

Mas, a ação/reação dos atores não se limita à mera reprodução do


discurso oficial. Eles são conscientes de que o fazer cultural resulta em
ação política e que a atuação do Estado na área também é resultado de
anos de lutas por reconhecimento de direitos culturais. Além disso, os
atores sabem que a cultura pode gerar dividendos políticos e que ela é
visada por políticos, principalmente em anos eleitorais, ou períodos de
“política”, como bem atesta seu Marcelino Azevedo, dirigente do bumba-
-meu-boi de Guimarães: “a cultura popular é um crescimento pro Gover-
no. Quando eles [os políticos] tão na política, eles usam a cultura no dis-
curso, mas quando ganham, não valorizam a cultura”.

Ao afirmar que a cultura “é um crescimento para o Governo” e que


os políticos se utilizam dela “no discurso” (mesmo não correspondendo
às expectativas do povo quando eleitos), seu Marcelino admite conhecer
o poder que a cultura tem. É vantajoso para o Governo e para os polí-
ticos ter a cultura ao seu lado. Desse modo, se os políticos criam estra-
tégias para se aproximar dos grupos culturais pensando em vantagens
políticas, os grupos culturais também sabem tirar proveito dessa relação

176
O TEATRO DO PODER: Cultura e Política no Maranhão

(apoios financeiros, transporte, trânsito em outros campos, como a mí-


dia, etc.).

A cultura política dominante no governo de Roseana Sarney reper-


cute ainda hoje na esfera cultural, refletida na manutenção/reprodução
de vários mecanismos criados no referido governo. Não só devido à fide-
lidade política de muitos funcionários e membros da Secretaria de Cultu-
ra à Roseana Sarney. Como também, devido à falta de discussão efetiva
das ações estatais junto à sociedade. Esta ausência é notada pelo recor-
rente bloqueio de canais democráticos de participação social, como, por
exemplo, do Conselho Estadual de Cultura, extinto na época.

Para Canclini (1988), “discutir políticas culturais é pensar que socie-


dade queremos”. Se um Estado não discute suas políticas com a socieda-
de, isso significa que ele próprio pretende definir a sociedade, impondo
verticalmente uma visão de mundo conveniente aos seus próprios inte-
resses. No entanto, o poder do Estado hoje está também no reconheci-
mento dos atores e dos outros campos sociais: a sociedade civil tem po-
der, especialmente neste momento de cultura da convergência, em que
os movimentos sociais, políticos e identitários podem se articular atra-
vés de mídias sociais (alternativas, comunitárias etc) e em redes sócio-
-tecnológicas locais e transnacionais. Cabe à sociedade civil reconhecer
ou não esse Estado, atribuir-lhe ou não legitimidade, enfim, conceder-lhe
ou não poder. Isso significa que o poder estatal contemporâneo é aba-
lável e questionável. Apropriando-nos de uma expressão de Boaventura
Santos, sentimos a emergência de “reinventar o Estado” como um campo
de lutas, em que atuam, negociam, interagem, movimentam-se, ganham
-perdem, diversos atores (estatais, não-estatais, nacionais, locais, glocais).

Neste contexto, os atores sociais se veem não apenas como recep-


tores, mas também como produtores das mais diversas políticas públi-
cas, entrando no jogo de disputas pelo poder para tentar configurar o
mundo social conforme seus interesses e visões de mundo. Se “discutir
políticas culturais é pensar que sociedade queremos”, produzir políticas
culturais é construir a sociedade que desejamos.

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Humberto Barbosa Mendes. Entrevista cedida para esta pesquisa em
29/10/2007.
Erlito Meneses. Entrevista cedida para esta pesquisa em 07/12/2007 e
21/12/2007.
Jandir Silva Gonçalves. Entrevista cedida para esta pesquisa em:
28/10/2007.
Jeovah França. Entrevista cedida para esta pesquisa em 10/06/2007.
José Henrique de Nazaré Bulcão. Entrevista cedida para esta pesquisa em
26/09/2007.
Marcelino Azevedo. Entrevista cedida para esta pesquisa em 03/12/2007.
Maria Michol Pinho de Carvalho. Entrevista cedida para esta pesquisa em
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Roza Santos. Entrevista cedida para esta pesquisa em: 18/11/2007.
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O ESTADO do Maranhão, São Luís, 03, 20, 24, 25 e 27 jun. 1998.
O ESTADO do Maranhão, São Luís, 25. jun. 1999.
O IMPARCIAL. 04 e 06 dez. 1997.
JORNAL Pequeno. 24 ago. 2007.

Legislação:
BRASIL. Constituição Federal da República (1988).
BRASIL. Decreto-lei n 91.144 (Criação do Ministério da Cultura).
MARANHÃO. Lei Estadual n. 7.497. 22 Dez. 1999 (Reforma Administrativa
do Estado).

Sites Visitados:
BRASIL. Ministério da Cultura. <http://www.cultura.gov.br> Acesso em:
02/09/2007.
MARANHÃO. Secretaria de Estado da Cultura. <http://www.cultura.ma.gov.
br/> Acesso em: 27/08/2007.
MARANHÃO. Superintendência de cultura popular do Maranhão. <http://
www.culturapopular.ma.gov.br/> Acesso em: 05/09/2007.

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