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GILBERTO FRANCISCO DALMOLIN

O PAPEL DA ESCOLA ENTRE OS POVOS


INDÍGENAS
de instrumento de exclusão a recurso para emancipação sociocultural

EDUFAC
GILBERTO FRANCISCO DALMOLIN

O PAPEL DA ESCOLA ENTRE OS POVOS INDÍGENAS

de instrumento de exclusão a recurso para emancipação sociocultural

EDUFAC
Dalmolin, Gilberto Francisco.
D148pe
O papel da escola entre os povos indígenas: de
instrumento de exclusão a recurso para emancipação
sociocultural / Gilberto Francisco Dalmolin. -- Rio Branco:
Edufac, 2004.
267 p.

ISBN ...............................

1. Índios - educação. 2. Educação diferenciada. 3. Escola


indígena. I. Título.

a
CDD: 371.9798 (20 )
DALMOLIN, Gilberto Francisco. O papel da escola entre os povos indígenas da Amazônia
Ocidental: de instrumento de exclusão a recurso para emancipação sociocultural. 2004. 267 f.
Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos.

RESUMO

Esta tese analisa a escola nos confrontos de exclusão e no seu papel na construção de relações
de igualdade com respeito às diferenças socioculturais, entre povos indígenas e demais
segmentos populacionais da sociedade nacional. Enfoca esse papel da escola nas práticas de
exclusão e relações, na região ocidental da Amazônia brasileira, que compreende o estado do
Acre, o sul do Amazonas e o noroeste de Rondônia. O estudo realizado, parte das concepções
construídas no âmbito da cultura ocidental para caracterizar e orientar as ações dos
colonizadores no trato com os povos nativos do continente americano, apontando que, para os
povos indígenas, essas perspectivas nortearam apenas o tratamento preconceituoso e formas
de exclusão da sociedade dominante para com eles. Com este referencial e visando a
superação da tradicional narrativa positiva dos fatos, na revisão histórica da colonização e
formação da sociedade regional, é destacada a construção da negação de direitos aos
indígenas como forma de legitimar o domínio colonial/capitalista sobre territórios, povos
nativos e riquezas naturais da Amazônia. Dentre os direitos negados é ressaltado o
impedimento, ao indígena da Amazônia ocidental, de ter acesso à escrita e a matemática do
colonizador, como forma mantê-los em regime de servidão. Avançando o estudo para a época
atual, num contexto de luta por emancipação sociocultural dos segmentos historicamente
subjugados, o enfoque desta tese é posto na resistência dos povos indígenas da Amazônia
ocidental, os quais, respaldos em direitos conquistados, elaboram mecanismos de resistência,
construindo um dos movimentos sociais mais ativos na região. O pesquisador, adotando o
diálogo como principal instrumento de pesquisa, na participação com representantes de povos
indígenas em espaços públicos nos quais são formuladas e controladas as políticas públicas,
analisa o papel da educação escolar, que fora negada a estes povos, e, atualmente, é
reivindicada como instrumento de resistência, apontada como indispensável para desconstruir
as formas de exclusão, sobretudo o preconceito mantido pela sociedade dominante para com
os indígenas. Por fim, conclui que com o novo papel atribuído à escola é desencadeada a
construção de práticas escolares diferenciadas, moldando esta instituição como escola
indígena, justificada como necessária para restabelecer o bem viver com dignidade, condição
para afirmação das identidades socioculturais dos povos remanescentes bem como para
garantir o estabelecimento de relações respeitosas numa sociedade plural.

PALAVRAS-CHAVE: Educação escolar indígena, educação diferenciada, escola indígena,


povos indígenas, índios.
DALMOLIN, Gilberto Francisco. The role of school amidst indigenous peoples in Western
Amazon: from exclusion instrument to resource for cultural emancipation. 267 p. 2004.
PH.D. Thesis. Posgraduate Education Program – São Carlos Federal University – São Carlos.

ABSTRACT

This paper examines school in confrontations of exclusion and in its role in the building of
equality relationships, regarding sociocultural differences between indian populations and the
rest of populational groups in the society as a whole. This role of the school is focused in the
actions of exclusion and in the relationships in the Western part of the Brazilian Amazon,
which includes the state of Acre, South of the state of Amazonas and Northeast of the state of
Rondonia. The starting point of this paper are the concepts built by western culture to
charecterize and guide the acts of the colonizers in their relationships with the native
populations of the American continent, pointing out that for the indian populations these
concepts only led to prejudiced treatment and forms of exclusion from the dominant society
towards them. Bearing this in mind, the building of denial of rights to the indians as a form of
legitimizing the colonial/capitalist domination of territories, native people and natural wealth
of the Amazon is highlighted. Among the rights withheld from the Western Amazon indian,
the denial of access to the writing and arithmetic of the colonizer is emphasized as a way of
keeping them in a servitude regime. Moving the study to the present day, in a context of
struggle for sociocultural emancipation of the historically subjugated segments of society, the
focus of this thesis lies on the resistance of the indigenous people of the Western Amazon,
who backed by rights already gained create resistance mechanisms, constructing one of the
most active social movements in the region. The researcher adopted dialogue as the main tool
for research; representatives of indigenous populations took part in these dialogues, where the
role of school-that was denied to these people and is today claimed as an instrument of
resistance to destroy forms of exclusion- is analyzed. The conclusion is that with the new role
given to school the construction of new differenciated school habits is triggered, shaping this
institution as indigenous school,considered necessary to re establish dignity and the
affirmation of sociocultural identity to the remaining populations as well as guarantee
respectful relationships in a plural society.

KEY-WORDS: Indigenous scholar education, differential education, indian school


indigenous peoples, indians.
LISTA DE SIGLAS

CAINAM - Centro de Antropologia Indígena da Amazônia ocidental.


CIMI - Conselho Indigenista Missionário.
CPI/AC - Comissão Pró-Indio do Acre.
COICA - Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica.
COMIN - Conselho de Missão entre Índios.
COPIAM - Comissão de Professores Indígenas da Amazônia.
COPIAR - Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Acre e Roraima.
FUNAI - Fundação Nacional do Índio.
FUNASA - Fundação Nacional de Saúde.
IDH - Índice de Desenvolvimento Humano.
IDI - Índice de Desenvolvimento Infantil.
MNTB - Missão Novas Tribos do Brasil.
ONGs - Organizações Não-Governamentais.
ONU - Organização das Nações Unidas.
OPAN - Operação Amazônia Nativa.
OPIAC - Organização de Professores Indígenas do Acre.
OPIRE - Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira.
SEE - Secretaria de Estado de Educação.
SPI - Serviço de Proteção aos Índios.
UCDB - Universidade Católica Dom Bosco.
UFAC - Universidade Federal do Acre.
UNI - União das Nações Indígenas do Acre e sul do Amazonas.
UNICAMP - Universidade de Campinas.
UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Adolescência.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 01
CAPÍTULO I:
OS MODELOS DE EXCLUSÃO NA CONSTRUÇÃO DO DISCURSO UNIVERSALISTA 25
1 A exclusão da identidade cultural dos povos nativos no discurso civilizatório.......................... 26
2 A exclusão das identidades culturais com base no discurso científico da assimilação à
“Cultura Nacional” .................................................................................................................... 36
3 A recomposição do discurso hegemônico e a educação escolar na perspectiva de
mercado....................................................................................................................................... 44
CAPÍTULO II:
A FORMAÇÃO DA AMAZÔNIA BRASILEIRA E AS PRÁTICAS DE EXCLUSÃO DOS
INDÍGENAS................................................................................................................................... 48
1 A invasão colonial sobre as nações amazônicas....................................................................... 50
2 A “ocupação” da Amazônia ocidental e o processo de “apagamento” do indígena.................... 65
3 As práticas integracionistas e de negação da escola ao indígena................................................. 81
CAPÍTULO III:
OS MOVIMENTOS SOCIOCULTURAIS E AS RELAÇÕES CONTRA-HEGEMÔNICAS 92
1 A desconfiança na cultura hegemônica e o movimento de afirmação das identidades
étnicas e culturais em sociedades plurais................................................................................. 93
2 O movimento indígena nas lutas contra-hegemônicas de emancipação...................................... 121
3 O debate sobre a escola entre os movimentos socioculturais..................................................... 124
CAPÍTULO IV:
A RESISTÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS NA AMAZÔNIA OCIDENTAL.................... 136
1 Os povos que resistem, em suas identidades indígenas, na Amazônia ocidental ........................ 137
2 Os mecanismos de resistência do movimento indígena regional................................................. 159
CAPÍTULO V:
A CONQUISTA DA ESCOLA E SUA RESSIGNIFICAÇÃO COMO RECURSO
FAVORÁVEL AOS PROJETOS INDÍGENAS......................................................................... 173
1 A política atual de educação escolar indígena.............................................................................. 173
2 A construção da escola indígena nas estratégias de resistência sociocultural.............................. 184
CAPÍTULO VI:
A ESCOLA NOS PROJETOS DE EMANCIPAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS................ 197
1 O persistente preconceito como mecanismo de exclusão dos indígenas...................................... 198
2 O papel da educação escolar na perspectiva dos indígenas.......................................................... 202
3 A relação escola e movimento indígena...................................................................................... 213
4 A cultura e a escola na afirmação da identidade indígena........................................................... 220
5 As propostas para avançar na construção de relações respeitosas............................................... 224
CONCLUSÃO................................................................................................................................ 232
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................... 260
PROFESSORES E LIDERANÇAS INDÍGENAS CITADAS1

Antonio Apurinã, povo Apurinã, liderança, suplente de Senador da República e diretor de


assistência da Funai.
Antonio Olavo Eukutsy Apurinã, povo Apurinã, professor.
Auricélio Brandão Shanenawa, povo Shanenawa, professor, liderança e membro da
coordenação da UNI.
Carlos Brandão Shanenawa, povo Shanenawa, liderança, membro da coordenação da UNI e
coordenador do PDPI.
Chola Manchinery, povo Yine, liderança e membro da coordenação da UNI.
Edílson Arara, povo Shawãdawa, professor e liderança.
Fernando Luiz Yawanawá, povo Yawanawá, professor.
Francisco Avelino Apurinã, povo Apurinã, liderança e Coordenador da UNI.
Francisco Pianko Ashaninka, povo Ashaninka, liderança e Secretário de Estado para os Povos
Indígenas.
Isaac Pianko Ashaninka, povo Ashaninka, professor e presidente da OPIAC.
Joaquim Maná Kaxinawá, povo Huni Kuĩ, professor e membro da Comissão Nacional de
Professores Indígenas.
José de Lima Kaxinawá, povo Huni Kuĩ, agente agroflorestal e coordenador da Associação
dos Agentes Agroflorestais Indígenas.
José Paulo Alfredo Maná Kaxinawá, povo Huni Kuĩ, professor.
Julio Barbosa Kaxinawá, povo Huni Kuĩ, professor, liderança e sub-administrador regional da
Funai.
Komãyari Ashaninka, povo Ashaninka, professor.
Manoel Gomes Kaxinawá, povo Huni Kuĩ, liderança, membro da coordenação da UNI e
administrador regional da Funai.
Maria Vanísia Poyanáwa, povo Poyanáwa, liderança do movimento de Mulheres indígenas do
Acre e sul do Amazonas/UNI.
Miralda Apurinã, povo Apurinã, Liderança do Movimento de Mulheres indígenas do Acre e
sul do Amazonas/UNI.
Paulo Lopes Siã Kaxinawá, povo Huni Kuĩ, professor.
Santos Pinheiro Apurinã, povo Apurinã, liderança.
Sebastião Manchinery, povo Yine, liderança e coordenador da COICA.
Siã Kaxinawá, povo Huni Kuĩ, liderança.
Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá, povo Huni Kuĩ, professor, liderança e representante da
COPIAM na região.
Zezinho Caxarari, povo Kaxarari, liderança e membro da equipe de coordenação da UNI.

1
Professores e lideranças indígenas com os quais dialogamos em nossa pesquisa. Atores sociais, dentre muitos
outros, que fazem o movimento indígena da Amazônia ocidental, região formada pelo estado do Acre, o sul do
estado do Amazonas e o noroeste do estado de Rondônia.
INTRODUÇÃO

O enfoque deste estudo acerca do papel da escola, entre os povos indígenas,


situa-se no debate atual sobre educação escolar em sociedades plurais, que pleiteiam a
ressignificação do processo educativo institucional, alterando o seu papel de uniformização
cultural para espaço de diálogo intercultural. Nesse processo a educação escolar é organizada
sem perder de vista a identidade sociocultural da comunidade na qual está inserida, de forma
que sejam enfatizadas, no currículo escolar, as verdades dos saberes locais, saberes
relacionados à natureza, ao meio social e cultural, ao mesmo tempo em que se obtém o
domínio das ciências e das técnicas ditas “universais”.
Esta mudança no papel da educação escolar constitui uma bandeira de luta dos
movimentos socioculturais no Brasil, inserida num contexto maior de mobilização, para que a
sociedade brasileira, o poder público e as instituições educativas reconheçam e modifiquem a
perspectiva e a atuação monocultural ocidentalcêntrica, admitindo o caráter sociocultural
diverso, pluriétnico e multicultural do Brasil. Os fundamentos desta perspectiva já foram
estabelecidos na Constituição Federal brasileira, confirmando que a cultura nacional coexiste
com outras culturas, admitindo como legítimas, formas próprias de organização sociais,
sobretudo aquelas originárias de nações já estabelecidas antes do processo colonial: os povos
indígenas, que foram excluídos da formação da sociedade brasileira, devido às suas diferenças
e, apesar da opressão, persistiram resistentes nessas diferenças.
A atual luta para que a sociedade brasileira se reconheça como plural, respeite
e valorize as culturas dos diferentes povos, coexistindo na sociedade nacional, implica, em
primeiro plano, considerar a herança histórica de exclusões que suprimiu a dignidade dos
povos nativos. Enquanto persistir, essa herança inviabiliza a possibilidade de relações
democráticas entre grupos socioculturais.
Assim, mais do que assumir o caráter pluriétnico e multicultural, é preciso
estabelecer novas políticas de relações, políticas que requerem condições de igualdade de
direitos e respeito às diferenças socioculturais, que pressupõem medidas de compensação à
exclusão histórica e atual. Medidas necessárias, afinal, são 500 anos durante os quais os
indígenas foram inferiorizados, desclassificados, categorizados como ruins, selvagens e
primitivos. Tiveram negados como válidos os seus saberes, a sua visão de mundo e além
disso, este desprezo cultural, foi acompanhado da subtração do direito a seus territórios, de
condições dignas e autônomas de subsistência. Entendemos que tais injustiças devem ser
expostas e resolvidas para que possamos estabelecer relações interculturais respeitosas.
A superação da situação de exclusão a que estiveram submetidos os povos
indígenas, constitui-se em condição para que se faça justiça, a tais segmentos discriminados, e
se garantam condições para que a educação escolar se estabeleça num espaço onde seja
exercitado o diálogo respeitoso entre culturas.
Portanto, nesta pesquisa, como ponto de partida, consideramos o processo
histórico de exclusão do outro: exclusão que esteve respaldada em concepções elaboradas nas
sociedades ocidentais, fabricadas para definir e classificar os povos nativos do continente
americano. Em outras palavras, analisamos, num primeiro momento, o papel da instrução
escolar, norteado por concepções excludentes - a escola que os colonizadores ocidentais e
posteriores estados nacionais destinaram ou negaram, no processo de contato e dominação,
para os povos indígenas.
Avançando para um segundo momento deste estudo, analisamos o esforço
empreendido pelos povos indígenas para conquistar o direito à escola; o acesso a esta
instituição que foi usada contra eles, agora reivindicada como recurso estratégico de
resistência e de emancipação. Assim, este segundo momento constitui o foco central do
trabalho: os motivos para que esta educação escolar, usada para fazer desaparecer os povos
indígenas, seja, atualmente, por eles reivindicada, como estratégia de resistência e recurso
indispensável para seus projetos de vida, para conquistar o bem viver 2 com dignidade hoje e
no futuro.
Considerando que esta escola é reivindicada como recurso em comunidades
que se identificam por bases socioculturais próprias, analisamos, também, a ressignificação a
que esta instituição é submetida nestas comunidades - que se encontram em processo de
mobilização política e social em torno de suas identidades culturais - tornando-a diferenciada
e intercultural.
Em síntese, procuramos visualizar o papel da escola no contexto histórico
concebido pelo não-índio para o índio, e o papel que à ela é destinado, atualmente, pelos

2
“Bem viver” é uma expressão a que recorremos com freqüência neste estudo, por considerar ser uma condição
indispensável para que sejam estabelecidas relações interculturais. Trata-se de uma formulação que representa
uma condição ideal de vida que cada povo constrói considerando seus valores, seus modos de vida, suas
aspirações, compreendendo apreciações subjetivas e ideológicas próprias ao contexto em que cada povo se
insere, enfim, um referencial particular do que seja viver bem. Portanto, o bem viver não obedece a critérios
universais, mas, pressupõe a existência de condições que garantam a integridade, a dignidade, o direito à vida,
condições que satisfaçam as necessidades básicas, biológicas e culturais de cada povo. Outro aspecto a ser
considerado, tem a ver com a dinamicidade dos diferentes povos e suas culturas, cujos valores e ideais variam
conforme a época. Ou seja, o bem viver é uma construção histórica e cultural de valores variáveis no tempo e no
espaço compreendendo as formas de vida consideradas as melhores em determinado lugar e em determinada
época.
indígenas. Considerando relevante, para a área educacional, este papel atual, destinado à
escola entre os indígenas, especulamos também sobre o desafio que é transformar a educação
escolar de instrumento de homogeneização cultural em espaço, no qual são vivenciadas
práticas educativas interculturais.
Tratamos da temática escolar no contexto mais amplo possível da luta dos
povos indígenas, tendo, como situação concreta, comunidades sob crescente pressão do
entorno formado pela sociedade regional. Isto é, povos imersos em um contexto no qual
prevalecem as dimensões nacionais de regulação e emancipação social, mas mesmo assim,
pautando suas existências em culturas próprias, constituindo coletividades com diferentes
valores e com outras verdades que não as elaboradas pelo saber ocidental. Verdades que são
preponderantes nos meios sociais nas quais são compartilhadas e devem ser respeitadas tanto
quanto forem as verdades da cultura dominante como a possibilidade para que sejam
estabelecidas relações de diálogo entre povos que se reconhecem como diferentes.
Por um lado a emancipação sociocultural dos povos indígenas, sob estados
nacionais, e a relação de diálogo respeitoso estão também respaldados no direito
internacional, que trata das minorias étnicas e constitui pleito de mobilização destas minorias.
Por outro lado, faz parte das novas políticas requeridas pelos movimentos socioculturais,
abrangendo a luta de todos os movimentos organizados pela emancipação social em contextos
plurais.
No âmbito acadêmico, tal debate extrapola a área da educação, constituindo-se
temática de relevante interesse nas ciências sociais e amplamente discutida por autores de
diferentes áreas. Partindo da crítica às concepções civilizatórias universalistas, com base na
cultura ocidental, tratam das reconfigurações da cultura e da política em estados nacionais,
também concebidas como alternativas contra-hegemônicas de emancipação social.
Ainda contextualizando a temática de estudo, pautamo-nos na compreensão de
que, mesmo considerando a persistente co-existência de identidades culturais, as pessoas que
mantém fortes vínculos com seus lugares de origem e tradições não, necessariamente,
permanecem estáticas, fixas. Significa dizer que as pessoas e as coletividades estão sujeitas ao
plano da história, principalmente no momento atual, no qual estados nacionais estão sujeitos a
instrumentos globalizantes que obrigam as pessoas a submeterem-se ou a negociarem com as
novas culturas em que vivem e que lhes afetam. As mudanças reivindicadas para a escola
estão inseridas neste meio de afirmação de diferenças e de dinâmica cultural.
Na mesma linha de compreensão, as mudanças também são operadas no bojo
da concepção ocidental, tendo conseqüentes reflexos nas instituições das sociedades
ocidentais e em suas práticas, em particular, a escola, no trato com as identidades culturais.
Assim, situamos a temática, também entre as mudanças na concepção dominante, defendendo
a perspectiva que surge com os movimentos de resistência socioculturais; perspectiva de
reconhecimento das nações como sociedades plurais, e nestas, políticas de relações
interculturais, vistas como possibilidade de superação dos modelos construídos pela cultura
ocidental que ainda propõe a sua visão de mundo como a mais elaborada e, portanto, enquanto
alta cultura, destino para as demais.
O movimento indígena congrega as forças de mobilização e resistência dos
povos que se reconhecem como indígenas, destaca-se e dá corpo aos movimentos de
resistência socioculturais, com suas lutas pelo restabelecimento da dignidade dos povos
nativos dominados pelos colonizadores europeus e pelas sociedades nacionais, criadas por tais
colonizadores. É neste contexto de resistência dos movimentos sociais, particularmente do
movimento indígena, e neste, a mobilização dos povos indígenas da Amazônia ocidental, que
analisamos as mudanças do papel da escola.
Dispondo geograficamente a nossa temática de estudo - o papel da educação
escolar entre os povos indígenas, de instrumento de exclusão étnico-cultural para recurso de
apoio ao processo de resistência e afirmação sociocultural - temos como campo de pesquisa a
região ocidental da Amazônia brasileira, que compreende o estado do Acre, o sul do
Amazonas e o noroeste de Rondônia. Nesta região temos, como população predominante, a
não-indígena, perfazendo algo em torno de 600 mil pessoas. Embora a população
não-indígena se caracterize por identidades culturais diferenciadas, em função do nosso foco
de interesse estar centrado na população indígena, denominamos todos os demais apenas
como população regional, diferenciando-os, desta forma, das pessoas que se reconhecem
como indígenas.
A população indígena da região, congregando aproximadamente 14 mil
pessoas, caracteriza-se pela diversidade étnica e diversidade, no grau de interação, com a
população regional. Das mais de 180 comunidades indígenas, nesta região, temos desde
comunidades que, após décadas de integração forçada à sociedade regional, pleiteiam o
reconhecimento de sua identidade como indígenas, a comunidades isoladas, sem qualquer
contato com a sociedade regional ou com povos indígenas já contatados. Quanto aos povos
que se auto-reconhecem como nativos da região, representados pelo movimento indígena,
junto à sociedade regional, estes se autodenominam: Huni Kuĩ (Kaxinawá), Shanenawa,
Katukina, Kaxarari, Jaminawa, Yawanawá, Jaminawa Arara, Shawadawa (Arara), Náua,
Poyanáwa, Nukiní, Apolima-Arara, Madijá (Kulina), Jamamadi, Kamadeni, Apurinã, Yine
(Manchineri) e Asheninka (Kampa).
Em nossa pesquisa, dialogamos com professores e lideranças indígenas,
pessoas que estão à frente do movimento, que desde o início da década de 1980, tornou-se
protagonista nas mediações de conflitos e relações dos povos indígenas acima relacionados
com o poder público e com a sociedade regional na defesa das causas indígenas. O
movimento indígena atua, substancialmente, por meio de organizações representativas: em
instância maior, congregando todas as lideranças dos setores indígenas, a União das Nações
Indígenas do Acre e sul do Amazonas (UNI); em instância intermediária, as organizações por
micro regiões, como a Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira (OPIRE); em âmbito
local, as associações por terras indígenas ou comunitárias; e por organizações que congregam
setores específicos do movimento, como a Organização de Professores Indígenas do Acre
(OPIAC), entre outras. Estas mais de 20 organizações e associações indígenas funcionam
como interlocutoras dos interesses das comunidades nos espaços públicos.
Nossa opção por trabalhar com a perspectiva de professores e lideranças do
movimento justifica-se, por um lado, por exercerem a autoridade de mediar e falar em defesa
dos interesses das coletividades, portanto, as principais vozes no controle social das políticas
nacionais e regionais para os povos indígenas. Por outro lado, justifica-se em função da
diversidade de situações que encontraríamos, caso fôssemos trabalhar com o universo da
população indígena, tais como a de comunicação, dada a diversidade cultural e a existência de
comunidades nas quais as pessoas não dominam a língua portuguesa. As limitações maiores,
entretanto, decorrem das dificuldades de acesso às comunidades indígenas, devido às
condições amazônicas, marcadas pelas distâncias e pelo isolamento; condições que restringem
os deslocamentos a ocasiões esporádicas e com altos custos.
Outras dificuldades estão relacionadas a questões éticas. Os povos da região,
após mais de um século de espoliação, estão receosos com pesquisadores. Sempre há
interessados em pesquisar suas culturas e, neste caso, a pronta reação desses povos tem sido o
questionamento quanto a benefícios que a pesquisa trará para suas comunidades. Geralmente,
não há acordo entre o que um pesquisador, uma universidade pode reverter e o que a
comunidade quer, de imediato, para melhoria de sua qualidade de vida. A crítica aos
pesquisadores é freqüente e, para os indígenas, não há constrangimento em interromper ações
e pesquisas em que percebam que o elemento externo esteja obtendo mais vantagem que a
própria comunidade, com tais atividades. Nestas circunstâncias, considerando que são comuns
tais restrições por parte das comunidades, torna-se impossível negociar o acesso a mais de
uma centena de comunidades. Assim, em nossa pesquisa, a observação ficou restrita ao
acompanhamento do trabalho em algumas poucas comunidades, com as quais dispomos de
relações de confiança.
As referidas condições contribuíram para que privilegiássemos os espaços de
luta política, o espaço público para o diálogo com nossos interlocutores. Desta forma, a
pesquisa é realizada concomitante a atividades, nas quais dispomo-nos a contribuir nas
atividades de concepção das políticas de educação e na organização da educação escolar
indígena.
Os espaços públicos constituem, pois, arena comum de luta por novas políticas
socioculturais, tanto para os povos indígenas como para os demais segmentos excluídos dos
bens e serviços na sociedade nacional. O que significa dizer que as lideranças indígenas
participam, juntamente com outros segmentos populacionais, da consolidação de espaços
onde são definidas políticas públicas que lhes dizem respeito, dando um caráter de pluralidade
a este processo. Para nós, espaço onde se aprende, interage, acompanha e participa, com o
propósito de construir relações e garantias de bem viver para os diferentes povos, diferentes
grupos sociais que constituem a sociedade brasileira, na qual nos incluímos. Sobretudo,
espaço no qual situamos este estudo.
Assim, temos, como constatação positiva, fruto da contribuição da escola
dentro do seu novo papel, a especial relevância, o significado da participação indígena,
atitude intencional, pensada, que tem dado o caráter plural aos espaços públicos. A presença
propositiva de lideranças indígenas, no debate das políticas públicas e a competência dos
mesmos na execução de serviços e no exercício de funções, vão diluindo as imagens
preconceituosas, fato constatado pelos próprios indígenas. Com o reconhecimento da atuação
indígena e com a consciência de que a superação das formas de preconceito tem muito a ver
com oportunidades iguais, as lideranças buscam cada vez mais o acesso aos conhecimentos
técnicos e políticos da sociedade dominante a fim de que eles próprios possam garantir que
sejam reelaboradas as ações das instituições públicas de modo a terem suas comunidades
atendidas, de forma respeitosa. A presença qualificada nos espaços públicos como, por
exemplo, de advogados indígenas, como nos declararam lideranças da UNI, é necessária para
garantir o controle social das questões que lhes dizem respeito.
Apesar de constituírem um movimento organizado e atuante, isto não
representa interesses comuns entre os indígenas. Fatos como as diferenças socioculturais entre
as comunidades, ou a proximidade de cidades e a conseqüente influência dos regionais, levam
as comunidades a rumos distintos. Portanto, os projetos, na busca de ideais de bem viver, são
diferentes: que vão daqueles que trabalham no reforço da manutenção dos modelos
socioculturais próprios até mesmo a projetos que perseguem o modo de ser não-indígena.
Entretanto, no geral, os povos representados pelos nossos interlocutores anseiam pelo domínio
de mecanismos políticos e saberes da cultura nacional, cujo principal argumento é a
autodefesa nos enfrentamentos com os regionais, a viabilização de alternativas de subsistência
e a garantia de permanência das famílias nas terras indígenas.
Ainda sobre o perfil dos interlocutores, estes se destacam pela militância na
representação dos interesses dos povos indígenas da região, tendo, como uma das principais
atribuições, a prática da gestão política junto aos poderes públicos, com vistas a garantir
benefícios que, com base em promulgação atual do direito, devem ser viabilizados para seus
povos.
Portanto, na intermediação das questões que afetam as comunidades indígenas,
o movimento indígena, por meio de suas organizações, conquistou o direito de ser a instância
que detém o maior poder de decisão, na política que afeta os indígenas, seja reivindicando,
seja intervindo, nas ações vindas de fora para dentro das comunidades, inclusive a educação
escolar. Isto reforça, pois, os motivos pelos quais privilegiamos tais lideranças como
interlocutores nesta pesquisa.
O espaço de pesquisa ultrapassa as conversas e entrevistas; isto é, a coleta de
dados é ampliada aos discursos proferidos em reuniões que ocorrem, principalmente, em
espaços de instituições públicas e em espaços das organizações indígenas e indigenistas.
Portanto, temos participado de reuniões com o movimento indígena, visando a condução de
diferentes assuntos de seus interesses, dedicando maior atenção àquelas destinadas à
discussão da educação escolar e, mais substancialmente, no decorrer do presente estudo, de
reuniões e seminários realizados com vistas a pensar políticas de educação escolar indígena e
a discutir a formação de professores indígenas em nível médio e superior.
Tivemos outros espaços privilegiados para a pesquisa tais como, os Encontros
de Culturas Indígenas do Acre e sul do Amazonas, que tem a UNI como uma das instituições
promotoras, com atividades que têm vasta programação política e cultural em eventos
simultâneos; também os Encontros de Educação Escolar Indígena do rio Envira, organizado
pelos representantes locais da Comissão de Professores Indígenas da Amazônia (COPIAM);
e, ainda, os cursos de formação de professores indígenas, de responsabilidade da Secretaria de
Estado de Educação (SEE). Essas ocasiões constituíram-se em espaços para diálogo,
conversas, entrevistas e acompanhamento do processo de construção da concepção de
educação escolar, na perspectiva do movimento indígena.
Durante a participação em Encontros, Seminários, Cursos e Reuniões,
convivemos, de forma mais próxima, com dezenas de professores e lideranças indígenas,
ocasiões em que nos foi possível registrar os discursos e acompanhar o debate sobre a
educação escolar. As fontes para produzir esta tese são complementadas, também, com as
conversas freqüentes com indigenistas de instituições governamentais e não-governamentais,
que acompanham o cotidiano das comunidades. Além de tais conversas, reunimos
publicações, teses, dissertações, relatórios e matérias publicadas na imprensa local, que
ampliam a compreensão da temática.
Em determinadas ocasiões, ampliamos o diálogo para as pessoas das
comunidades indígenas, com as quais temos mais contato, porém os nossos principais
interlocutores são as lideranças da UNI e professores indígenas. Dentre os professores, há um
grupo mais experiente, cuja presença vem se tornando indispensável nos espaços de discussão
das políticas educacionais - dada a autoridade representativa perante a população indígena e o
domínio das questões relacionadas à educação escolar – pessoas, cujo papel é decisivo,
sobretudo, no contexto atual de formulação de políticas em educação. Reforça tal situação o
fato de os próprios professores indígenas reivindicarem a responsabilidade da condução do
processo de ressignificação das escolas em suas comunidades: de escolas para índios em
escolas indígenas. Essa situação passou a exigir professores com maior domínio, não só da
cultura dominante mas, sobretudo, da cultura de seu povo, da língua indígena e demais
saberes culturais.
Os professores indígenas, particularmente os 230 do estado do Acre, estão em
processo contínuo de formação, com programas direcionados ao estudo e à pesquisa de
saberes de sua cultura e ao conhecimento de saberes da cultura dominante. Esta ênfase na
formação, acrescida da experiência acumulada, por parte significativa dos professores, torna-
os referências políticas nas comunidades, articuladores dos discursos internos e externos,
relativos à cultura e à escola. Tal experiência e formação têm favorecido a condução
autônoma das questões afetas, principalmente, à educação escolar indígena, o que resulta no
crescente processo de organização política dos professores, seja pela participação na
COPIAM, seja pela atuação na OPIAC e em outras associações, por regiões, como a dos
professores da região do rio Envira. Alguns professores já acumulam 20 anos de experiência
no magistério, histórico que têm lhes proporcionado o domínio do papel da escola e do
trabalho para tornar diferenciada a escola em sua comunidade. Embora não disponham das
credenciais de titulação, como o profissional formado na academia, fazem valer, com
autoridade, suas posições, nas questões que lhes dizem respeito.
A liderança exercida pelos professores e a parcela significativa de contribuição
destes, no movimento, são fatos que não podem ser ignorados pelo pesquisador. Outro
aspecto importante para esta pesquisa está na dupla função de muitas lideranças do
movimento indígena, pois eles atuam como professores ou passaram pela função de professor
em suas comunidades, fato que lhes favorece, deixando-os à vontade para falar da escola.
Pudemos constatar a preocupação destes líderes, em diversas ocasiões, com o papel da escola,
questionando os possíveis resultados a serem obtidos com o trabalho dos indígenas, como
professores, em escolas organizadas, de forma similar, à escola não-indígena. Questionam
sobre até que ponto o sistema oficial estava apenas transferindo para os indígenas a função de
continuar o processo de integração do indígena à cultura nacional.
Nos diálogos, nas conversas com as lideranças do movimento e com as demais
pessoas envolvidas nas políticas de interesse dos povos indígenas, adotamos, como princípio,
partir sempre da abertura, da necessária incompletude, que requer o estabelecimento de
relações. Essa postura representou um esforço de sair do enfoque de objetos do saber para ir à
direção dos sujeitos do saber. Tal como recomenda Jovchelovitch (1998, p. 74):
O outro não está simplesmente lá, esperando para ser reconhecido pelo sujeito do
saber. Ao contrário, o outro está lá, ele próprio, enquanto eu, com projetos que lhes
são próprios, desejos que lhes são próprios, perspectivas que lhes são próprias. Ele
não é redutível ao que o eu pensa ou sabe sobre ele, mas é precisamente “outro”,
irredutível na sua alteridade.
Desse modo, a coleta de dados para esta tese esteve baseada no diálogo entre
pessoas diferentes em suas identidades culturais, com experiências, saberes e visões de mundo
próprias. Diálogo entre pessoas, que lutam em torno de objetivos comuns, nos quais nos
incluímos, na construção de relações solidárias e de um mundo, onde a dignidade de todos
seja respeitada.
Enfocando a relevância dos resultados desta pesquisa, convém destacar que
esta se insere num projeto maior da instituição, a que estamos vinculados, a Universidade
Federal do Acre (UFAC), que atendendo às demandas socioculturais da região amazônica,
vem ampliando sua atuação com os povos da Amazônia. A UFAC tem, pois, investido no
aperfeiçoamento de seus profissionais para melhor interagir com as diferentes identidades
culturais, com a perspectiva dos diferentes povos e, desta forma, enquanto Universidade,
contribuir, de forma coerente e respeitosa, com as demandas que lhes são postas na produção
de novos conhecimentos, na valorização dos conhecimentos dos povos amazônicos, junto à
sociedade dominante, e na formação de profissionais voltados para os contextos locais,
sobretudo professores. Assim, incluímos esta pesquisa entre os esforços da UFAC, no
reconhecimento, respeito e defesa das concepções dos povos com os quais interage,
constituindo-se em um passo importante na construção relações interculturais.
Num âmbito mais geral, este estudo traz muito do que já é conhecido, mas traz
também avanço, seja pelo aprofundamento do papel da escola em contextos diferenciados ou,
até mesmo, pelo próprio exercício a que os interlocutores são postos, ao serem provocados de
forma a manifestar pontos de vista conflitantes, que são inevitáveis, sobretudo por
trabalharmos num terreno incômodo, ao dar voz aos destinatários de políticas nem sempre
executadas como reivindicadas pelo movimento e pelas comunidades. Conseqüentemente, são
reveladas práticas auto-suficientes ou insuficientes de setores oficiais e não-oficiais. As ações
externas, hoje, levadas às comunidades, sem a devida participação de indígenas, resultam em
muitas críticas.
Embora tivéssemos em vista um propósito delimitado, trabalhar com a
perspectiva do movimento indígena da Amazônia ocidental, pautamos a nossa abordagem em
um contexto maior, que compreende o nosso envolvimento com o trabalho indigenista. Desse
modo, consideramos a nossa interação com os movimentos sociais, sobretudo com o
movimento de resistência indígena, um fator que contribuiu para o estudo da problemática a
que nos propusemos tratar nesta pesquisa.
Assim como o envolvimento com a questão indígena, também a formação e a
experiência voltadas para o trabalho escolar constituem vantagens importantes para o trato da
problemática, em questão. Significa dizer que a abordagem deste estudo sustenta-se também
em nossa vivência com educação escolar e na formação em nível médio e superior com forte
influência da Teologia da Libertação e do pensamento pedagógico de Paulo Freire. A partir de
então, conciliamos o trabalho, na educação, com a militância em movimentos sociais.
Quanto ao nosso envolvimento com as lutas dos povos indígenas, este ocorrerá
a partir do período pós-constituinte, quando tivemos a oportunidade de trabalhar no Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), ocasião em que nos foi possível acompanhar a mobilização
indígena pela garantia dos direitos conquistados, na Constituição de 1988. Momento forte na
luta dos povos indígenas, com apoio de organizações indigenistas, particularmente do CIMI.
Época em que afloravam as organizações indígenas, o esforço em reunir povos diferentes na
luta contra as adversidades regionais e em torno da regulamentação dos direitos
constitucionais. Deste trabalho, no contato com a diversidade de povos indígenas, conhecendo
a luta destes povos, aprendemos o quão é relevante a mobilização popular de resistência em
uma sociedade submetida às concepções homogeneizadoras e aos mecanismos de exploração
do capitalismo.
A partir de 1991, iniciamos nosso trabalho com educação escolar, na região da
Amazônia ocidental, particularmente, no estado do Acre. Região, cujos movimentos
socioculturais sempre tiveram destaque, dada a luta da população tradicional em defesa da
floresta e de formas alternativas ao modelo capitalista de exploração dos recursos naturais,
conseqüentemente, lutas por novas políticas que contemplassem o saber construído pelos
povos que, tradicionalmente, vivem na região.
Nesta região, atuando como docente na UFAC, conciliamos o trabalho
acadêmico, de formação de professores, com a participação nas lutas dos movimentos
socioculturais. Acreditando e participando na transformação social, política e cultural da
região, concentramos nosso estudo no processo de construção da educação escolar
diferenciada nas comunidades indígenas, temática a que nos dedicamos no Mestrado em
Educação, em cuja dissertação (DALMOLIN, 1998 passim) tratamos da Política Nacional de
Educação Escolar Indígena, com enfoque na luta das comunidades Shanenawa e Kaxinawá da
região do rio Envira, no município de Feijó, AC, no que diz respeito ao processo de conquista
da escola. Comunidades, destacadamente politizadas, nas quais a educação escolar não se
desvincula das bandeiras de luta das organizações Indígenas: locais e regionais, e da, então,
Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Acre e Roraima (COPIAR), hoje,
COPIAM.
Desde então, participamos efetivamente do debate para formulação de uma
política educacional para as comunidades indígenas na região ocidental da Amazônia
brasileira. Interagindo com o movimento indígena e com os órgãos oficiais, contribuímos por
meio de projetos de extensão e pesquisa direcionados para a formação de professores
indígenas - maior reivindicação do movimento indígena, junto à UFAC.
Por ocasião dos estudos do doutorado, surgiu a oportunidade de conhecer outra
perspectiva, em outro contexto de luta, a do povo Kaiowá/Guarani, em Mato Grosso do Sul.
Nesta oportunidade, em 2001, acompanhamos algumas situações da movimentação política
em torno das questões de interesse indígena naquele estado. E, mais efetivamente, na
observação e acompanhamento dos debates e ações que vêm sendo conduzido pela população
indígena da Reserva Indígena de Caarapó em conjunto com a Universidade Católica Dom
Bosco (UCDB), por meio do Programa Kaiowá/Guarani, com apoio de outras instituições,
tais como: Prefeitura Municipal de Caarapó, MS e Diocese de Dourados, MS.
Naquela ocasião, tivemos a oportunidade de conviver com professores
indígenas e pesquisadores da UCDB, no exercício de diálogo e práticas interculturais
envolvendo escola, comunidade indígena e universidade em experiências, nas quais, os
pesquisadores, partindo das perspectivas, exigências e especificidades da cultura
Kaiowá/Guarani, assumiram o desafio de contribuir com ações em favor do povo. Em outras
palavras, iniciativas concebidas a partir da soma da sabedoria tradicional ao saber acadêmico
científico, subsidiando formas de melhor utilização, recuperação e conservação do potencial
dos recursos naturais na terra indígena, cujo principal objetivo é contribuir para a melhoria da
qualidade de vida da população. Ações nas quais a escola exerce papel decisivo, seja pela
sistematização das experiências em saberes escolares, seja como instituição que concentra e
difunde o processo através do qual se busca restaurar a dignidade, o bem viver da população.
Embora os problemas enfrentados pelos povos indígenas do Mato Grosso do
Sul representem uma situação distinta do contexto amazônico, o avanço da “empresa”
capitalista e de seus modos de produção, já se impõe, para algumas comunidades amazônicas,
em condições semelhantes às enfrentadas pelos indígenas em Mato Grosso do Sul, isto é,
impondo a necessidade de se organizarem em novos espaços, reordenando alguns dos antigos
papéis e práticas sociais (VIETTA, 1998, p. 53). Procuramos ter presente essa experiência no
debate com professores e lideranças indígenas da Amazônia ocidental.
Desta experiência, mantidas as ressalvas decorrentes das diferenças étnicas e
de contextos socioculturais, dentre os muitos aprendizados, ficou patente a identidade cultural
do povo, cujos elementos, que marcam a diferença, extrapolam aspectos de bases
essencialistas. Apesar das condições adversas, impostas pela exploração capitalista, persistem
referências culturais que denotam a visão de mundo, que os torna únicos enquanto povo.
Aspectos que reforçam a idéia de identidade cultural e formas próprias de organização social
dos diferentes povos, e que justificam, tal como defendemos nesta tese, novas políticas
interculturais em sociedades plurais. A título de exemplo, dentre os aspectos próprios do
modo Kaiowá/Guarani de ver o mundo, apesar de fortemente pressionado pela ocupação
regional, no processo de exploração capitalista, está a dimensão de território, compreensão
que corresponde ao espaço em torno de cada uma das aldeias ocupadas por famílias,
constituindo a unidade territorial fundamental para a continuidade do seu modo de ser. Este
espaço, ocupado pela aldeia, denominado tekoha, vem a ser o lugar onde a família extensa
vivia de acordo com os seus costumes. Brand (1998, p. 23) afirma que:
É a aldeia, efetivamente, o espaço onde se fundem terra, território, subsistência,
relações sociais e festas religiosas [...] É o espaço necessário para os
Kaiowá/Guarani realizarem e concretizarem seu modo-de-ser específico e fundador
de sua identidade.
A contribuição obtida a partir da nossa vivência com esta comunidade, mesmo
que breve, sobretudo no que diz respeito ao acompanhamento do trabalho dos professores
indígenas e ao acompanhamento do trabalho de pesquisadores, representou, também, uma
experiência de especial relevância, tanto na temática educacional como na temática ecológica-
ambiental. Registramos esta experiência numa monografia (DALMOLIN, 2001), atentando,
particularmente, para os processos participativos entendidos como propulsores das
perspectivas emancipatórias e de sobrevivência (SORRENTINO, 2001, p. 08).
Os diferentes contextos, entre outros fatores, determinam as especificidades de
luta e não permitem comparação, principalmente por tratarem-se de povos distintos.
Entretanto, a experiência do povo Kaiowá/Guarani e dos pesquisadores da UCDB nos
fornecem elementos para interagir em nosso campo de trabalho e estudo, na região da
Amazônia ocidental. Enfim, consideramos esta nossa bagagem e as referências da luta de
outros povos em outras regiões como pontos de apoio no diálogo com as lideranças do
movimento indígena do Acre e sul do Amazonas sobre políticas, particularmente de educação
escolar.
Ainda no tocante ao papel do pesquisador, voltando ao espaço onde realizamos
a pesquisa, as boas relações que construímos com nosso trabalho, enquanto docente da
UFAC, favoreceram as atividades de pesquisa. Boas relações construídas, tanto com as
lideranças das organizações indígenas e professores indígenas quanto com as organizações
indigenistas e órgãos governamentais, que têm atuação junto aos povos indígenas. Condição
que nos favoreceu, no período de 2002 e 2003, no que se refere ao acompanhamento das
reuniões envolvendo tais segmentos, pois, além de participar do debate sobre as questões de
interesse dos povos indígenas, aproveitamos para levantar dados para esta pesquisa.
Nossa presença nos espaços de discussão política do movimento indígena é
justificada pela posição de profissional da área da educação da UFAC, mais especificamente
para sermos um dos interlocutores, da instituição, para uma das principais demandas dos
povos indígenas da região: a formação de professores. Com este propósito e como
contrapartida, participamos dos espaços de luta do movimento indígena, também respondendo
a incumbências que a própria instituição tem nos delegado para dar resposta às demandas
levadas à Universidade pelo movimento indígena. Fato é que a nossa atuação, assim como a
de outros pesquisadores da UFAC, vem sendo repensada a partir de um processo que envolve
aprender e construir juntos, tal como recomenda Cardoso de Oliveira (1988, p.101): ao
aprender a vida do Outro (indivíduo, grupos ou povos), o faz em termos de historicidade,
num tempo histórico do qual ele próprio, pesquisador, não se exclui.
No trabalho com os povos indígenas, acreditamos que a postura adequada pode
ser ilustrada por uma citação de Garcia (1994, p. 65) ao referir-se a um diálogo entre uma
indígena australiana e um técnico, de outro país, supostamente bem-sucedido, que ponderou
da seguinte forma: Se você veio para me ajudar, pode tomar o seu caminho de volta. Mas se
crê na minha luta como parte de sua sobrevivência, então talvez possamos trabalhar juntos.
Quanto ao nosso posicionamento, nosso papel, no trato com o discurso do
outro, esforçamo-nos em controlar nossa análise, enquanto pesquisadores, que, está balizada
no saber dominante. Valendo-nos das palavras de Guareschi (1998, p. 160), para sermos
éticos, enquanto pesquisadores, esforçamo-nos em descer da oligarquia cultural acadêmico-
universitária para saber-ouvir a voz que vem do além, [...] desde a exterioridade da
dominação.
Desse modo, envidamos nossos esforços para escapar da tendência objetiva,
como parasita do processo de pesquisa, admitindo a subjetividade do pesquisador, a partir da
qual o interlocutor não é mais uma entidade isolada. Conforme Coulon (1995, p. 54), o
interlocutor:
Está sempre em inter-relação com a pessoa que o estuda; não existe corte
epistemológico, [...] os métodos usados dependem mais da análise qualitativa, a
única que pode ser significativa, assim como não-mensurável; os quadros sociais
resultam de uma contínua construção, de uma permanente criação das normas
pelos próprios atores; subjetivismo reabilita o transitório, o tendencial e o singular.
Por este prisma, reafirmamos a postura referida acima, tendo como princípio
orientador da conversa, na interação com o outro, o diálogo. Citando Todorov (1999, p. 304),
embora seu comentário esteja se referindo a um trabalho de relação com o outro na história,
tentamos pautar-nos numa postura perante o outro, que se aproxime do entendimento de
diálogo assumido pelo autor:
Eu quis evitar dois extremos. O primeiro é a tentação de reproduzir a voz das
personagens como é em si mesma; de procurar eu mesmo desaparecer para melhor
servir ao outro. O segundo é submeter os outros a si, transformá-los em marionetes
e controlar-lhes os fios. Entre os dois, procurei não um campo intermediário, mas a
via do diálogo.
No âmbito da educação escolar, temos o entendimento de que a escola, quando
ressignificada e democratizada, cumpre um papel relevante junto aos diferentes segmentos da
população brasileira. Necessariamente, essa escola precisa desenvolver-se, de forma
diferenciada e, para tal, não pode estar desvinculada das lutas políticas das comunidades a
quem se destina e, além disso, deve respeitar o universo sociocultural de tais comunidades,
seus valores, seus saberes. Dessa forma, consideramos, como parte do processo de construção
de uma sociedade plural e justa, o desafio de assumir saberes diferentes na produção do
conhecimento, permitindo que os diversos grupos sociais e étnicos alcancem a cidadania
plena. No contexto indígena, a escola deve estar associada às lutas políticas do movimento
indígena bem como deve assimilar as práticas e concepções educativas, a história, a língua, a
religiosidade, a tradição, enfim, a cultura de cada povo. A escola precisa ser transformada
pela ação desses elementos, moldada em nova forma pelas “mãos habilidosas” dos próprios
sujeitos históricos a quem ela se destina.
O direito à escola ressignificada como indígena, ou até mesmo a defesa de um
sistema de ensino próprio, vêm sendo respaldados em delineamentos construídos
internacionalmente, garantindo, como pressuposto básico, o princípio de que cabe aos povos
indígenas decidirem seu futuro. Em se tratando do Brasil, a legislação do país tornou legítima
a compreensão de que os povos indígenas devam exercer o controle de suas instituições, uma
vez que a Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seu artigo 232, reconhece que os índios,
suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de
seus direitos e interesses. Este princípio responde inclusive a questionamentos - próprios da
nossa visão ocidentalizada de mundo, decorrentes, ainda, da incapacidade de entender ou
mesmo aceitar o diferente - tais como: se convém, em tempos de globalização, defender que
grupos étnicos mantenham-se em seus costumes tradicionais, ou defender que, por ser
inevitável o contato com a sociedade nacional, que estes sejam estimulados a assimilar os
“benefícios” proporcionados pelas sociedades mais desenvolvidas, tecnologicamente. As
orientações, com base no direito, são de que cabe aos povos indígenas decidir o seu futuro.
Em se tratando da relevância, da necessidade ou não da escola indígena, a
reflexão e a prática dos principais interessados, os indígenas, indicam que já se superou, há
muito tempo, esta discussão a respeito do que “convém”. Persistem as lutas para avançar na
concepção de políticas que contemplem a diversidade cultural, favorecendo a concretização,
ao menos do que já foi explicitado em Lei: a cidadania plena, satisfazendo com isto o
princípio da igualdade - Artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988) - e o
reconhecimento de uma diferença identitária dos povos indígenas como assevera o Artigo
231, da mesma Constituição: são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Explicitado o nosso posicionamento na área de estudo, apresentamos, a seguir,
o instrumental utilizado para análise e sistematização dos conhecimentos obtidos na pesquisa,
na ordem dos capítulos que compõem esta tese. Procedimentos, os quais, aliados ao espírito
de abertura e de diálogo, possibilitaram-nos alcançar os objetivos que nos propusemos
desenvolver.
Para a descrição teórica elaborada nos capítulos primeiro e terceiro, recorremos
a autores de Ciências Sociais, História e Educação, sendo que, no capítulo primeiro, nosso
propósito foi o de apresentar concepções da cultura dominante que nortearam a intervenção
das sociedades modernas no modo de vida dos povos indígenas, particularmente no Brasil,
enfocando, principalmente, concepções que embasaram o modelo de instrução que restringiu
ou negou, aos indígenas, os direitos de existirem como tais, inclusive, o direito de acesso ao
saber escolar elaborado.
No capítulo segundo, trabalhamos, mais diretamente, com a intervenção
colonial e posterior da sociedade brasileira sobre o mundo dos povos amazônicos, tendo a
preocupação em enfocar, substancialmente, o período e a região onde centramos nosso estudo.
Desse modo, destacamos as práticas de negação da escola para os indígenas da Amazônia
ocidental, pontuando, também, os norteamentos oficiais até a época atual, sob o enfoque das
concepções que negam a possibilidade de os povos indígenas viverem conforme orientações
socioculturais próprias. Para elaborarmos este capítulo, fizemos o esforço de ficar atentos para
procedimentos e abordagens contemporâneas nos estudos de história da educação, embora
tenhamos consciência de que estamos ainda impregnados do modo de ver positivista, que
influencia as nossas opções técnicas e metodológicas. Apesar disto, empenhamo-nos em
confrontar nossas análises às críticas à concepção positivista, postura que não constitui
novidade, como indica Foucault (2000, p. 56), certamente a história há muito tempo não
procura mais compreender os acontecimentos por um jogo de causas e efeitos na unidade
informe de um grande devir, vagamente homogêneo ou rigidamente hierarquizado.
As ressalvas, no que se refere a produção deste capítulo, estão situadas na
dificuldade comum a estudos que visam desvendar a postura dominante em educação, em
diferentes contextos históricos, isto é, a ausência da perspectiva dos dominados. Soma-se a
isto, além da incapacidade do indivíduo “ocidental” de compreender e até mesmo aceitar a
cultura dos nativos americanos, outro grande limitador, que é o de consistir nos mecanismos
de memória das informações históricas. Estas chegam, até nós, por intermédio do sistema de
registro e comunicação da cultura dominante, que se estabeleceu, anulando, eliminando,
excluindo outras possíveis formas de narrativas.
Partimos, pois, do fato de que não é possível o registro objetivo da realidade.
Diante de tais limitações, somadas a outras, como a impossibilidade de se abarcar todo o
universo de concepções e acontecimentos num estudo, ou mesmo, em decorrência das
condições nas quais as imagens, os fatos observados, os relatos registrados, as falas
selecionadas, são feitas segundo seus (nossos) interesses, crenças, valores, preconceitos etc.
(BURKE, 1992, p. 27), temos consciência de que os dados e a bibliografia utilizada para a
produção deste e de outros capítulos são filtrados pela visão dominante, registrados nos
códigos e pelo prisma desta concepção.
Assim, a sistematização desta etapa tende, entre outros aspectos, para a
crescente expansão nas formas de olhar, de retornar aos contextos passados, com vistas a
obter outros “ângulos” de acontecimentos e outras perspectivas de pessoas e sociedades. Este
modo de enfocar a história é caracterizado por Burke (1997, p.12) como:
A substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história
problema. [...] [Trata-se] da história de todas as atividades humanas e não apenas
história política [...] em colaboração com outras disciplinas tais como a geografia,
a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a antropologia social, e tantas
outras.
No terceiro capítulo discorremos sobre as bases que sustentam as perspectivas
atuais, contra-hegemônicas, nas quais situamos o movimento indígena e a escola diferenciada,
que concebe as culturas indígenas, assim como a cultura tida como “universal”, como
legítimo objeto de aprendizado na escola. Neste capítulo, apresentamos os fundamentos para
que sejam firmadas relações respeitosas entre pessoas que se reconhecem como diferentes.
Trata-se da base teórica que recorremos para dialogar e refletir sobre assuntos afins ao que
temos como objeto neste estudo e, substancialmente, o referencial no qual situamos a base
que dá suporte à construção da educação escolar como recurso favorável à emancipação dos
povos indígenas.
No quarto capítulo situamos a resistência atual dos povos indígenas na
Amazônia ocidental, apresentando algumas considerações sobre os povos indígenas da
Amazônia ocidental e sobre estratégias de resistência do movimento formado por estes povos,
no momento atual. Justificamos este capítulo no fato da diversidade e da resistência terem
vínculo indissociável com o processo de construção de escolas indígenas. Trata-se de
considerar que a escola concebida como recurso favorável aos projetos de vida e de futuro dos
povos indígenas - além de ser pensada no conjunto de medidas que visam a compensação das
conseqüências históricas e atuais do processo de dominação e negação - deve ajustar-se à
diversidade étnica, de situações e de interesse das comunidades; deve estar vinculada às
bandeiras de luta do movimento indígena, tendo como ponto de partida (e de chegada) a
identidade cultural, a visão de mundo, enfim, a cultura do povo desta comunidade, tal como
será explicitado nos capítulos seguintes.
Assim, tivemos a preocupação de apresentar, no quarto capítulo, mesmo que de
forma resumida, um texto sobre a diversidade atual dos povos indígenas na região que
compreende o Acre, sul do Amazonas e noroeste de Rondônia bem como sobre a resistência
indígena, sobretudo a atuação do movimento e o seu papel no controle das políticas públicas.
Nossas ressalvas quanto a este capítulo são postas na grande complexidade que é tratar da
diversidade cultural sem, com isso, incorrer no risco de caricaturizar ou minimizar a
totalidade que compreende o mundo do outro. Considerando que, nos dias atuais, há consenso
“científico” sobre a complexidade que é retratar uma cultura como um observador oriundo de
outra cultura, conseqüentemente, as descrições do outro se constituem em reduções, como
analisa Malerba (2000, p. 273):
O problema maior que enfrentam os estudos culturais, entre eles o da história da
cultura, é o da irredutibilidade do conjunto de códigos de um grupo humano a
outro, separados pelo tempo e pelo espaço; em uma palavra, o problema das
diferenças culturais. Em outros termos, um grupo humano quando se vê diante de
outro que desconhecia [...], quais os limites de possibilidade de compreensão do
outro, sem que inevitavelmente um grupo “traduza” (ou reduza) o outro, a partir de
sua própria visão de mundo?
Como exemplo, temos as condições a que foram submetidos os indígenas bem
como o negro e a mulher, historicamente construídos por representações marcadas pela
violência simbólica e por um conjunto de exclusões. História escrita por homens e brancos.
Na produção dos capítulos segundo e quarto, recorremos a dados
bibliográficos, incluindo teses e dissertações, publicações com enfoque regional, artigos,
relatórios e documentos obtidos no acompanhamento das atividades do movimento indígena.
Com relação à apresentação da história recente sobre os povos e o movimento indígena,
consideramos também as informações obtidas com a observação no decorrer do trabalho de
pesquisa, bem como, no acompanhamento que temos feito da conjuntura regional, desde a
década de 1990. Entendemos como parte desse processo de observação o acompanhamento
das ações do movimento, a participação nas mobilizações, seminários, encontros, cursos e
reuniões; enfim, a interação com as pessoas indígenas e não-indígenas envolvidas com as
lutas de interesse dos indígenas, seja de educação escolar, seja nas demais questões de
interesse destes povos.
Para tratarmos da escola e dos saberes indígenas, nas estratégias de resistência,
descrevemos, no capítulo quinto, os avanços oficiais obtidos pelos povos indígenas, com
ênfase nas mudanças refletidas na legislação orientadora da política oficial, que revoga o
propósito integracionista, e redefine o papel do Estado obrigado a garantir que os povos
indígenas tenham condições de viver conforme suas culturas. Sob este enfoque de redefinição
do papel do Estado, destacamos o processo oficial de regulamentação da educação escolar
indígena visando o tratamento diferenciado e específico desta educação, e, em termos de
implementação desta orientação diferenciada, apresentamos a política de educação escolar
indígena no estado do Acre.
Considerando que as normas e as condições pedagógicas não garantem que a
escola torne-se recurso favorável aos projetos de emancipação sociocultural, neste mesmo
capítulo explicitamos algumas ponderações políticas e culturais relacionadas à construção da
escola indígena, abordando alguns aspectos sobre os saberes indígenas em “negociação”, na
construção da escola.
No capítulo sexto, discorremos sobre a perspectiva das lideranças do
movimento indígena. Para tal, reproduzimos falas de professores e lideranças, obtidas em
conversas dirigidas, entrevistas, artigos na imprensa, publicações com depoimentos e
documentos produzidos pelo movimento. O material é composto por diálogos ilustrativos
sobre o processo de luta do movimento indígena pelo restabelecimento de sua dignidade na
luta contra o preconceito, sobre o papel da escola no processo de resistência indígena e nos
projetos de futuro, sobre a cultura e a identidade indígena, por fim, expressa proposições com
vistas ao estabelecimento de relações respeitosas entre os diferentes, em direção a uma
sociedade plural.
Tais discursos constituem representações que refletem opiniões já, de certa
forma, difundidas socialmente no meio indígena e, portanto, confiáveis. Essas opiniões
tendem a servir de referencial nos processos decisórios nos quais o professor ou a liderança
participa. Isto é, os discursos das lideranças indígenas tendem a representar, com as devidas
ressalvas, as escolhas da coletividade, refletidas na opinião das lideranças do movimento.
Assim, as falas caracterizam-se por um saber que mobiliza as atitudes e estão
articuladas com a vida coletiva da comunidade ou com as bandeiras do movimento.
Normalmente, as falas dos professores são construções ligadas ao lugar a que representam, ou
seja, sua comunidade, portanto, são falas influenciadas pela identidade cultural e pelos
interesses comuns.
Não nos ocupamos em classificar as falas, nem em avaliar o cunho ideológico
de seu conteúdo. Centramos nossa atenção e procuramos dar destaque aos posicionamentos.
Por exemplo, em relação à educação, é do conhecimento de todos que a escola real está longe
de constituir a escola desejada. Entretanto, no momento atual, em tempos de construção de
políticas públicas, é relevante que professores e lideranças debatam, reflitam e se posicionem.
Ainda com relação ao cunho ideológico das falas, tomando como referência
comentários de Foucault (2001), por definição, ideologia opõe-se a algo que se apresenta
como “a verdade”. Este autor argumenta, quanto ao uso da noção de ideologia no quadro
metodológico, que o problema não está em separar entre o que num discurso revela da
cientificidade e da verdade e o que revelaria outra coisa; mas de ver historicamente como se
produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem
falsos (FOUCAULT, 2001, p. 7). Desse modo, considerando o norte que tivemos nesta
pesquisa, em que partimos da tentativa de desvincular o poder da verdade das formas de
hegemonia (social, econômica, cultural), trabalhamos pela reabilitação dos saberes
desprestigiados por tal verdade hegemônica. Portanto, nosso entendimento é de que não cabe,
neste trabalho, a adoção do viés ideológico para análise das representações obtidas junto aos
nossos interlocutores.
Assim, pautando-nos em Foucault (2001, p. 12), partimos do entendimento de
que os efeitos de verdade são produzidos dentro de discursos que em si mesmos não são nem
verdadeiros nem falsos. Desse modo, num espaço em constante reelaboração, no qual os
indígenas vêm conquistando o direito de definir as políticas para suas comunidades, os
discursos deles, enquanto lideranças, representando povos, são carregados de peso político
que os legitima e possui grande significado para seu povo. Segundo este entendimento, não
cabe verificar se tal fala, se este ou aquele saber é mais ou menos verdadeiro. Embora o saber
indígena tenha sido historicamente desqualificado pela cultura dominante, no âmbito local, na
cultura, na sociedade onde ele é produzido e veiculado, seu poder de verdade é incontestável.
Portanto, não se trata de fazer comparações entre verdades, uma vez que seja o discurso
fundamentado no saber tido como científico ou o discurso fundamentado em saberes locais,
de um grupo étnico, ambos possuem status de verdade no meio em que é produzido.
Em se tratando do discurso de uma liderança do movimento indígena, a
representação, o saber ali veiculado, não passa pelo julgamento de legitimidade, pois uma vez
que este interlocutor apropria-se, reelabora um discurso, dada a sua posição enquanto
representante de um povo, tem um papel de intelectual, assumindo responsabilidades
específicas que têm a ver com questões socioculturais de seu povo, portanto, tem sua
importância. Enquanto intelectual específico, como argumenta Foucault (2001, p. 12;14),
queira ou não ele é obrigado a assumir responsabilidades políticas e complementa, seria
perigoso desqualificá-lo em sua relação específica com um saber local. Este discurso,
enquanto elaboração, torna-se importante, como diz Foucault, porque a verdade não existe
fora do poder ou sem poder. A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a
produzem e apóiam e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem.
Na conclusão, enfatizamos algumas considerações sobre a questão central do
nosso estudo, retomando aspetos sobre a exclusão no processo histórico e suas formas atuais
que dificultam o acesso dos indígenas à escola e, substancialmente, enfatizamos o significado
que esta instituição exerce, na época atual, nos projetos indígenas, articulando os
condicionantes apontados no capítulo quarto e quinto com as falas de professores e lideranças
do capítulo sexto, situadas no debate que apresentamos no capítulo terceiro.
Os depoimentos contribuem também, na análise das múltiplas correlações e
interdependências, com o processo histórico dos problemas e conquistas indígenas na região,
por trazer marcas da diversidade de povos e, nesses, as variações em suas perspectivas. Desse
modo, preocupamo-nos em olhar a educação escolar no contexto histórico, em suas
contradições e conflitos, seu processo de construção, desenvolvimento e transformação nas
diferentes comunidades.
Com os procedimentos que adotamos, buscamos manter uma visão crítica,
considerando o conjunto de fatores imbricados no contexto, no qual, indivíduos, interesses
políticos e econômicos, projetos distintos estão em processo, em conflito. Para isto, foi
necessário um trabalho de crítica, interpretação e avaliação dos fatos - processo em que a
atividade do homem, do cientista é condição necessária ao conhecimento objetivo dos fatos
(KOSIK, 1976, p. 45).
Ainda com relação ao aspecto metodológico, para melhor atentar para o
discurso social, apreender as diferenças que compreendem aspectos culturais próprios do
outro, buscamos ter presentes algumas orientações etnográficas, sempre que possível, obtidas
na observação dos acontecimentos e situações concretas, atentando para suas relações com os
discursos produzidos. Assim, os princípios etnográficos nos ajudaram a lidar com as
diferentes construções, com as formas como os discursos e os acontecimentos são produzidos,
percebidos e interpretados. Esses discursos revelam, desde a preservação e reforço dos valores
culturais do próprio povo à reelaboração ou assimilação de valores, seja da comunidade
regional - indígena e não-indígena - seja do discurso/projeto apresentado por indigenistas que,
no trabalho de apoio, socializam experiências/projetos desenvolvidos por outros povos.
Embora não tivéssemos como propósito interpretar os discursos, não ficamos
alheios aos fatos, por exemplo, a proximidade com cidades, como é o caso de algumas
comunidades indígenas, ou mesmo, à influência exercida por órgãos oficiais e Organizações
Não-Governamentais (ONGs), gerando disputas de concepções e interesses entre segmentos
dentro das comunidades. Enfim, é próprio das culturas o seu caráter dinâmico, ilustrando que
as experiências concretas de vida se modificam. Nesse processo, as pessoas precisam
encontrar novos símbolos, que traduzam ou expressem os significados que elas mesmas vão
atribuindo às novas situações vivenciadas. Assim, novas concepções entram em conflito com
a concepção dominante na comunidade, resultando na reelaboração da mesma por meio da
incorporação de novos símbolos.
O recurso ao enfoque etnográfico ajuda-nos a, mais do que falar o que os
indígenas querem, buscar conversar com eles e não apenas com estranhos (GEERTZ, 1989,
p. 24). O grande desafio está em superar uma postura decorrente da ânsia de falar sobre o que
é passar a falar por este alguém. A meta seria “procurar o comum” em determinadas culturas,
ressaltando o grau no qual o significado do comportamento humano varia de acordo com o
padrão de vida através do qual ele é informado (GEERTZ, 1989, p. 24). Enfim, temos que
considerar que:
O que inscrevemos (ou tentamos fazê-lo) não é o discurso social bruto ao qual não
somos atores, não temos acesso direto, a não ser marginalmente, ou muito
especialmente, mas apenas àquela pequena parte dele que os nossos informantes
nos podem levar a compreender. [...] isso torna a visão da análise antropológica
como manipulação conceptual dos fatos descobertos, uma reconstrução lógica de
uma simples realidade, parecer um tanto incompleta ( GEERTZ, 1989, p. 30).
A problemática enfrentada por povos, tal como o povo Kaiowá/Guarani em
Mato Grosso do Sul, bem como as estratégias para solucioná-los, firmando parceria com
instituições com predisposição a trabalhar junto e a partir do contexto local, com as devidas
ressalvas, auxilia-nos na análise dos problemas que ocorrem na Amazônia ocidental bem
como nas possibilidades de enfrentamento, como as próprias lideranças enfatizam sobre o
papel das parcerias, buscando, junto, soluções para problemas com origem similares: a
pressão, o desprezo e a indiferença da sociedade dominante.
Culturas de povos indígenas da Amazônia ocidental, de uma ou outra forma já
constam em dissertações e teses, em sua maioria estudos antropológicos e lingüísticos,
tratando, pontualmente, de alguns povos. Frente a isto, esta pesquisa é construída, tal como
descreve Geertz (1989, p. 35), também sobre outros estudos. Acontecimentos, saberes,
conceitos anteriormente desenvolvidos são usados, sem perder de vista, que um estudo é um
avanço quando é mais incisivo do que aqueles que o precederam.
A importância a ser dada ao trabalho está relacionada ao fato de conseguirmos
fazer com que tais informações - resultantes da pesquisa - possam balizar não só o agente
externo, influenciando nas políticas de educação escolar, mas, principalmente, possam
subsidiar o próprio movimento na relação com o poder público, garantindo que a escola
indígena considere a perspectiva do povo, das comunidades, ao estabelecer políticas que lhes
afetem. Assim, no exercício do diálogo poderemos avançar com mais propriedade na
construção conjunta de relações interculturais.
Antecipamos também, alguns conceitos que consideramos esclarecedores para
o entendimento da abordagem que optamos adotar nesta tese. Assim, no tocante ao campo de
interação com os interlocutores, referimo-nos ao espaço público, onde são debatidas tanto as
questões de interesse dos povos indígenas quanto as dos demais segmentos sociais. É nesse
espaço que se exerce o controle social das ações. Tal idéia de espaço público está associada ao
exercício de superação da visão de homem como “categoria universal”, espaço público que
vem se constituindo, cada vez mais, em espaço de pluralidade humana. Nota-se o crescimento
da consciência de que enquanto pessoa ou coletividade, gozam de direitos, inclusive de fazer
gestão política, participando nas decisões sobre questões que lhes afetam estabelecendo, com
esta prática, um caráter de respeito ao plural implícito na sociedade nacional.
Este espaço a que nos referimos corresponde a um espaço de ação e discurso,
onde as pessoas exercem suas capacidades de falar e agir. Espaço público que pode se
concretizar na aldeia ou na cidade, em momentos e lugares nos quais o falar e o agir são
exercidos em torno de questões que dizem respeito ao público. É a arena de encontros da
vida pública que garante as condições para descobrir preocupações comuns do presente,
projetar o futuro e identificar aquilo que o presente e o futuro devem ao passado
(JOVCHELOVITCH, 1999, p. 68). Em se tratando de espaços onde cidadãos se encontram e
falam uns com os outros, tendo em vista a garantia de acesso a todos, o espaço público vem a
ser o espaço onde acontecem as lutas pela emancipação social, lutas que existem para que
sejam restabelecidos a dignidade e o bem viver das pessoas e das coletividades.
No que diz respeito aos encontros de diferentes, da pluralidade de povos co-
existindo sob um domínio, procuramos distinguir as formas como se processam os contatos,
fazendo uso da expressão “relações” para designar os contatos nos quais há interação, diálogo
entre as partes em comunicação. Portanto, a palavra “relações” está sendo usada no sentido
oposto ao confronto que gera exclusões, aos contatos nos quais há incompatibilidade de
valores culturais e intolerância ao diferente. O sentido da expressão, que é mais bem
explicitada na psicologia social, a qual, conforme Guareschi (1998, p. 151), é:
Um adjetivo que provém de “relação” é “relativo”. E relativo é o contrário de
“absoluto”. Nesse sentido, sempre que falo em relação, estou falando de um ser
que, como tal, necessita de outro, isto é, aberto, incompleto, por se fazer. Falar de
“relações” é falar de incompletudes, e pensar em algo aberto, em algo que pode ser
ampliado e transformado. Nesse sentido, uma análise dos grupos, ou da sociedade,
a partir do conceito de “relação”, é sempre uma análise aberta, uma análise que
deixa espaço para mudanças, uma análise que implica relatividade, que apenas
feita já pode estar se transformando.
Esta compreensão da expressão “relações” constitui um aspecto essencial no
enfoque deste trabalho que trata da construção de novas políticas entre povos, entre culturas,
isto é, a interculturalidade, o diálogo de saberes, que pressupõe predisposição entre as partes,
sobretudo esta abertura expressa na forma de incompletude. A ausência desta abertura para
relações, por exemplo, quando a pessoa ou grupo fecha-se em seu discurso, em suas verdades,
resulta em situações de preconceito, intolerância e negação do outro.
Assim, a tônica no contato entre os diferentes é o “conflito”, no qual
distinguimos o confronto que gera exclusões e o conflito natural que provoca a busca do
diálogo, de construção de relações, onde são preservados os diferentes modos de ser e de ver
o mundo. No tocante ao conflito, seja pelo seu aspecto construtivo, seja pelo seu
entendimento como confronto, o termo não contempla toda a problemática compreendida nos
enfrentamentos étnicos. Para melhor designar este contato de não-relação, Cardoso de
Oliveira (2000, p. 183) orienta que as palavras “conflito” ou “fricção” não são suficientes
para indicar o conteúdo substantivo das relações entre índios e brancos. O mesmo autor
sugere que a expressão “exclusão” situa melhor a condição de conflito, que identificamos
como confronto, esclarecendo que o eufemismo “conflito” não indica claramente o que são
estruturas de dominação, exploração, alienação do outro. Desse modo, a não-relação é mais
bem entendida como “exclusão” do outro da respectiva comunidade de comunicação.
Dessa forma, nosso enfoque à expressão “exclusão” compreende as dimensões
culturais e sociais do contexto no qual estão inseridos “indígenas e brancos”, porém,
submetidos à lógica perversa do modelo sócio-cultural branco, de origem européia, ocidental,
que privilegia os “brancos” e exclui os povos indígenas da condição moral de dignidade, de
bem viver. Nos aspectos a serem levantados no capítulo primeiro, buscamos caracterizar tais
confrontos de não-relação e as concepções que norteiam o modo de conceber o outro,
tornando excluídos os segmentos dominados. Essa perspectiva refletirá na análise histórica do
contato entre o elemento invasor e as nações indígenas da Amazônia, retratado no capítulo
segundo.
Finalizando, convém ressaltar que, embora as políticas que preconizem
relações de comunicação, de respeito aos valores e culturas dos diferentes povos, constituam-
se como questão de interesse amplo, sobretudo entre grupos sociais que foram historicamente
subjugados, neste estudo atemo-nos às formas de contatos, conflitos e relações dos povos
indígenas com a sociedade nacional e, nesta, o papel da educação escolar, enfocando o
contexto da região ocidental da Amazônia, o estado do Acre e o sul do Amazonas.
Portanto, o resultado deste estudo constitui-se num ponto de vista, ou melhor,
uma representação parcial de um amplo contexto de luta travadas pelos povos indígenas, na
forma de movimento sociocultural de resistência, tendo a escola como recurso favorável no
processo de afirmação de suas identidades étnico-culturais, pela igualdade de direitos, enfim,
pela dignidade e pelo bem viver.
CAPÍTULO I
II 2 - OoS MODELOS DE EXCLUSÃO NA CONSTRUÇÃO DO
DISCURSO UNIVERSALISTA

Nestae etapa do trabalhocapítulo, enfocamos alguns aspectos que caracterizam


as concepções hegemônicas de sociedade, concepções que acompanharam o processo de
dominação sociocultural, conseqüuentemente, determinando os modelos de educação escolar,
quando esteseja quando esta educação recurso é estendidao a todos os segmentos
populacionais, seja quando em particulardosada , aos povos indígenasconforme distinções
concebidas pelo segmento social dominante. Essas concepções determinantes dos modelos de
educação visavam e visam a homogeneização cultural, com base nas verdades e valores deste
segmento dominante: verdades e valores que concebem como natural a desigualdade e têm,
como efeito, o acesso desigual aos níveis de instrução.
Tratamos, pois, no primeiro ponto, das formas pelas quais os colonizadores,
oriundos da Europa ocidental, partilhando do mesmo discurso cultural, conceberam e
travaram contato com os povos originários do Continente Americano, particularmente do
Brasil, territórios de muitos povos, com identidades culturais diversas. Neste contexto,
interessa-nos, para o enfoque deste estudo, indicar o ideário de “verdades” nas quais se
assentou a subjugação destes povos e o formato da instrução a eles estendida.
Num segundo momento, estabelecidos os Estados nacionais, enfocamos o
Estado brasileiro, no qual, assinalamos as mudanças, a atualização do o discurso dominante
na agoraatual sociedade nacional, marcando a reelaboração da perspectiva ocidental, agora
sob bases científicas, determinando que determinam novas formas de contato com as pessoas
classificadas como sendo de “raças” diferentes. Nesta reelaboração de perspectiva, os
investimentos em instrução destinados a outras raças, “não-brancas”, visavam integrá-las,
homogeneizando-as em torno da cultura nacional sem, com isso, estabelecer relações de
igualdade entre os diferentes.
Na seqüência, atentamos voltamos o nosso olhar para o período atual, no qual,
as sociedades modernas dão sinais de impotência no que se refere aa superação das
contradições sociais que excluemi os segmentos culturais, historicamente inferiorizados,
implicando em novao que implica uma reformulação do discurso hegemônicos, agora, com
base em mecanismos econômicos e financeiros. Os segmentos dominantes instituem o
mercado como principal força reguladora das relações políticas eoas socioculturais,
justificando que a desigualdade entre indivíduos é fruto de sucessos e fracassos nas
competições que se dão na arena do “mercado”. Esse aArtifício que visa a consolidar o
discurso universalista, padronizando a todos sob a identidade de indivíduos consumidores e,
mantendo veladas as condições a que os “diferentes” foram submetidos historicamente.
Justificamos esta tentativa de retratar aspectos das concepções que
predominaram nas sociedades ocidentais, brancas, de origem européia, como sendo um
exercício necessário para compreendermos o preconceito, a intolerância, a indiferença e as
conseqüentes dificuldades em se estabelecer relações entre pessoas com diferentes identidades
culturais. Esse procedimento nos ajuda a Ccompreender,mos, também, a legitimidade das
bandeiras dos movimentos de resistência, suas lutas pelo restabelecimento da dignidade das
pessoas e de povos historicamente excluídos, principalmente, indígenas e afro-descendentes3.
Direcionando a justificativa à questão central do nosso estudo, a temática, aqui
analisada, auxilia-nos na visualização do papel da escola entre os povos indígenas. Neste
caso, em circunstâncias, nas quais estará a serviço da negação das diferentes identidades
culturais bem como da negação de acesso a condições de igualdade com os segmentos
dominantes.
PortantoA partir desta, reflexão necessária, porque expõeobjetivamos expor as
origens das desigualdades de que ainda se mantêm nos dias de hoje, e de seus discursos
justificadores, consciência exercício que atua no fortalecimento das lutas pelo resgate da
dignidade das identidades culturais subjugadas, uma vez que a cultura dominante, vencedora,
tende a reciclar seu discurso para esconder, camuflar as atrocidades cometidas no processo de
conquista; e, com esta prática, também tornar naturalis as desigualdades atuais entre os povos,
bem como, dificultar a identificação das raízes históricas dos mecanismos de exclusão.

2.1 1 - A exclusão da identidade cultural dos povos nativos no discurso civilizatório e a


empresa colonial

OA colonização do Novo Mundo foi o empreendimento, com base na exclusão,

3
Conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)), em estudo sobre desenvolvimento,
população e pobreza no Brasil, divulgado no dia 03 de dezembro de 2002, o Brasil tem 170 milhões de
habitantes, 54 milhões de miseráveis, destes, 77,1% se declararam de cor negra ou parda e o restante branco
(FOLHA ONLINE, 2002a). Publicado por:
Folha Online. http://www.folhaonline.com.br. Consulta realizada em 03.12.2002.
que vitimou o maior número de povos na história mundial. foi a colonização do “novo
mundo”. O continente americano, ao qual a queque os europeus chamaram também de
N“novo Mmundo”, era visualizado visto por eles como inexperiente, jovem, selvagem e
pagão, “que seria conduzido à maturidade, à civilização e à fé, com a experiência do „“velho
continente”‟ europeu” (HOORNAERT, 1994, p. 31). Esse empreendimento que inaugura a
modernidade na cultura ocidental,. mModernidade construída com investidas exploratórias e
civilizatórias, e ou melhor, traduzida no domínio exercido sobre povos e na apropriação de
seus mundos, que rendendo os benefícios prometidos no discurso justificador somente aos
europeus, propiciando-lhes o aperfeiçoamento do seu instrumental cultural e o acúmulo de
riquezas materiais, a ponto de consolidar sua cultura como cultura universal, excluindo e,
desclassificando outras culturas.
No tocante à colonização do Ccontinente aAmericano, particularmente do
Brasil, enfocamos duas faces interdependentes da problemática que se estabeleceu com o
enfrentamento entre os colonos europeus, e as centenas de povos pré-colombianos. Uma das
faces tem a ver comé confirmada pela a apropriação e exploração de novas terras e povos nela
existentes, estabelecendo-asidos como seu domínio, garantido pela força das armas, graças aà
superioridade bélica, e pelo controle burocrático que o europeu impôs sobre territórios e
nações. Portanto, eEsse domínio representou a exploração das terras e de suas riquezas,
extensiva à força de trabalho dos povos nativos.: Num primeiro momento, estes povos eram
induzidos a colaborar, ao passo que secaso se opusessemopunham à vontade do colonizador,
estavam sujeitos ao aprisionamento eeram submetidos ao trabalho escravo, ou a serem
eliminados.
A “autoridade” do colonizador para adotar circunstâncias extremas, tais como a
escravidão ou a eliminação dos povos dos territórios colonizados, assenta-serepresenta na o
que consideramos a outra face da colonização, e tem a ver comassenta-se na hegemonia
estabelecida por meio da imposição de um discurso, de uma narrativa única como verdade e
faz, fazendo valer para os povos colonizados da América os valores, as leis e as instituições
do colonizador. Esta segunda dimensão do colonialismo era posta de forma explícita, uma vez
que constituía um “ideário de verdades”, que caracterizava a “civilização” e tranqüilizava a
consciência do colonizador, mesmo quando suas investidas “civilizatórias” resultavassem em
atrocidades.
Tal dualidade do projeto colonizador ficou registrada na literatura que visava
representar as conquistas do colonizador, conforme Cashmore (2000, p. 174), “embora o
objetivo encoberto dos europeus fosse explorar os recursos naturais das colônias, o expresso
era „“civilizar”‟ os Outros, subjugando-os. Isso articula-se na literatura, que é uma
representação do mundo nas fronteiras da civilização”.
Enfim, a interdependência das ações exploratórias e civilizatórias concorriam
para um propósito comum, a colonização,. eExpressão, esta, que é melhor entendida quando
associada a outros termos que a acompanham,. Conforme Cashmore (2000, p. 130), colônia
tem a ver com “soberania” política sobre territórios, com o “imperialismo” que está associado
ao desejo de adquirir colônias e dependências, tomar terras e recursos para exploração. Ainda
quanto às prioridades do colonizador sobre o continente americano, estava evidente - de
acordo com o volume dos investimentos - que a prioridade do Estado colonizador eram as
ações de exploração e comércio de riquezas e a segurança destas. Por outro lado, a atividade
civilizatória representava uma parcela mínima nos investimentos. O que não significa, em
momento algum, o abandono das investidas civilizatórias, sobretudo quando estas concorriam
para garantir a segurança dos objetivos exploratórios e comerciais.
Interessa-nos ressaltar, neste processo, a imposição de uma cultura,
autodenominada civilizada, processo que contou com um fator decisivo, que foi a aliança da
Igreja Católica com o sistema colonial, possibilitando a expansão de um modelo de
cristianismo, conforme Hoornaert (1994, p. 10), elaborado e testado junto a sociedades da
Europa ocidental, durante séculos. Considerando que a Igreja detinha o controle das formas de
acesso aos conhecimentos, a sua associação à empresa colonial inaugura, também, a
colonização dos saberes, das linguagens e dos imaginários de outros povos, nas colônias.
Na investida colonial, sob os métodos da Igreja, o outro é considerado como
merecedor de atenção., No entanto, a intenção é impor-lhe a cultura civilizada. Os efeitos
serão tão nocivos quandto os provocadaos pelas armas dos colonos em suas frentes
exploratórias. Equüivalem-se por negar a possibilidade do outro existir em sua dignidade.
Para o colonizador, o “índio” sempre será inferior, “objeto” a ser desprezado enquanto que,
na perspectiva dos religiosos, o modo de ser, as crenças e os valores, a identidade do
“indioíndio” é são os elementos que devem ser elimidadaseliminadoas.
O processo colonial, na ação civilizatória, pretendeia substituir a “confusão”, o
incompreensível do modo de ser do outro pelo modo de ser do colonizador, embora tal ação
não garantisserá o acesso do “índio” à condição de igualdade humana com o europeu, pois a
igualdade implicaria na concessão de direitos. Enfim, o que se buscava era o respaldo à ação
exploratória e isto se processava no discurso do “intento de catequizar e civilizar os
colonizados conduzindo-os a um modo de pensar e viver o mais possível próximo do
europeu” (MORAIS, 1989, p. 65),. Eeste objetivo torna-se viável, dado o atrelamento entre a
Igreja e a CorôaCoroa portuguesa.
O amparo e os serviços religiosos estavam garantidos pelo poder concedido
pelo Papa ao Rei de Portugal que, em contrapartida, expandiria os domínios da Igreja a novos
mundos. Neste serviço, teve destaque, entre os religiosos que acompanharam os
empreendimentos exploratórios, a Companhia de Jesus (os jJesuítas), cujos destacaram-se
figuras, dentre os religiosos, cujos papéis estavam voltados mais para a dimensão
civilizatória., a Companhia de Jesus (Jesuítas). A atuação desta ordem religiosa correspondeu
à convicção de Manoel da Nóbrega, liderlíder do primeiro grupo de jesuítas a chegar no
Brasil, que afirmou: “o Brasil é nossa empresa” (SEBE, 1982, p. 58). A preocupação
preponderante dos Jesuítas foi a conversão dos índios ao catolicismo, para isso eles
desenvolveram mecanismos talis como o sistema de aldeamentos, para facilitar a implantação
da política da vida cristã e a luta contra a antropofagia, e outros aspectos da cultura dos
nativos que se contrapunham aos valores da “civilização”. A Companhia levou “às últimas
conseqüências seu projeto missionário, cuja tônica era mais civilizacional do que religiosa”
(VAINFAS, 2000, p. 327). O sucesso da colonização do Brasil deve-se muito a esta
“empresa”, ., cComo afirma Sebe ” (1982, p. 64), “não faltaram aos jesuítas, para garantir o
Brasil como propriedade espiritual, em moldes estritamente europeus, vontade e trabalho;
não existiram outras condições”.
A concepção que orientava os jJesuítas, em sua missão civilizatória, a
concepção filosóficoa-religiosa, assentava-se na cultura medieval, na filosofia da essência,
oriunda da Antigüidade grega, que concebia como seres humanos os homens livres, só nestes
a essência humana se realizadva, ao passo quequanto aos escravos, estes não eram
considerados seres humanos, sendo portanto, despossuídos de essência humana. Na Idade
Média, a essência humana foi articulada, também, com a criação divina, onde para a qual o
mundo era dado por Deus, perpassado e preenchido pela presença divina,; um mundo
sacralizado. Ao homem não cabia a concepção de identidade enquanto indivíduo soberano,
que pudesse influenciar em seu destino. O sujeito tinha seus apoios estáveis nas tradições e
nas estruturas divinamente estabelecidas.
Com base nesta visão de mundo, o colonizador, apoiado na tradição, deveria
impor a verdade, a ordem divina das coisas, sentindo-se autorizado a submeter os pagãos -
não tementes a Deus, despossuídos da essência humana - tomando seus bens e reduzindo-os à
escravidão. Confirmando tal entendimento, Gomes (1991, p. 66) comenta que Portugal
achava-se acautelado por sanção papal desde 1454, quando Nicolau V, pela bula Romanus
Pontifex, garantira-lhe o direito de conquistar terras novas, de “bárbaros” ou de infiéis, e
submeter seus povos à servidão pelo uso da guerra.
Este princípio de submissão dos “negros” da terra, os povos indígenas, terá
recorrência na política indigenista para o Brasil até o século XIX. Conforme Gomes
(Ibid.1991, p. 73), em diversas cartas régias serão concedidas aos exploradores autorização
para promoverem guerras ofensivas aos indígenas, inclusive com o direito a escravizá-los.
À motivação determinada pela crença religiosa, somou-se o surgimento na
Europa, dno século XVI, a pretensão ocidental de transferir ao mundo inteiro o seu modo de
desenvolvimento, de sua religião e de sua visão de mundo, inaugurando o movimento de
significar como universal, o que era regionalmente europeu. Esse iImpulso que acompanha
sempre o interesse exploratório, como comenta Morais (1989, p. 60):
Braços escravos estavam também sendo procurados pelos europeus, coisa que se
torna curiosa quando se pensa que desejavam expandir também seu modo de pensar
e de crer. Ressaltamos o sentido de predestinação civilizatória e de proseletismo
religioso dos colonizadores, que desciam nas terras do Novo Mundo com a Bíblia
em uma das mãos e um bacamarte na outra.
Do ponto de vista educacional, no Brasil, o projeto civilizatório é inaugurado
com a delegação oficial dada à Companhia de Jesus:, a tarefa de converter os indígenas.
Morais (Ibid1989., p. 72) descreve que:
Nos Regimentos, de 17/12/1548, D. João III estabelece a nova política de
colonização, registrando a diretriz segundo a qual deviam vir para cá religiosos
para converter os indígenas à fé católica mediante a instrução. Tal diretriz punha
em ação a Companhia de Jesus, a qual principiou toda a história da educação por
aqui.
A catequese constituiu-se, basicamente, na totalidade da “assistência” oferecida
pelos conquistadores aos povos indígenas da América portuguesa, o Brasil. Do período dDe
sua chegada até o advento da Rrepública, a ação missionária da Igreja correspondia ao que
existia em concessões para com os indígenas. Isto porque o poder espiritual e o Estado
português eram complementares, apesar de existirem posturas discordantes, a aliança
concorria para a expansão do processo civilizatório.
Convém enfocar que a concepção filosófico-religiosa não foi hegemônica no
período colonial, ou seja, houve dissonâncias entre as concepções colonialistas da Europa
ocidental, tal como enfocaremos a seguir.

2.1.1 - As dissonâncias no colonialismo

Desde a instituição do intento de civilizar os povos nativos dos territórios


colonizados, tal prática é acompanhada de contradições, próprias do início da expansão
colonial da Europa ocidental. Na época, aflorava, com o Humanismo Renascentista, a
ânsiabusca pela revisão crítica de valores, projetava-se nova visão de homem que deixava de
preocupar-se, exclusivamente, com a salvação de sua alma, com o paraíso após a morte,
voltandova-se para a realidade imediata e entregavando-se às curiosidades e descobrimentos
científicos. Crescia, pois, no mundo ocidental, a ânsia pela explicação do destino humano,
deslocando o foco central, que movia a atividade humana, até então situado nas coisas
divinas, para o próprio homem. Esta nova concepção Contradiçãoconflituava com o ainda,
dada a predominânciaante ainda do espírito teocêntrico, da visão essencialista oriunda da
Idade Média, que guiava o pensamento dos colonizadores portugueses e espanhóis, base do
modelo civilizatório dos jesuítas.
Entre o Humanismo Renascentista e o Iluminismo, é reforçada a supremacia da
razão humana, o sentimento de que o “homem” é um “indivíduo soberano”. Surge aí, na
cultura ocidental, a concepção individualista de sujeito e de sua identidade,. Conforme Hall
(2001, p. 10):
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção de pessoa humana como
um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de
consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior que emergia
pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que
permanecendo essencialmente o mesmo - contínuo ou “identicoidêntico” a ele - ao
longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma
pessoa.
Uma vez que esta nova concepção emergia com forte influência da Reforma
Protestante, convém destacar a repercussão tardia influência desta concepção do sujeito
individual, no Brasil, dada a influência católica nos domínios portugueses., uma vez que esta
nova concepção emergia com forte influência da Reforma Protestante. O colonialismo, como
processo de dominação no Brasil, assimilará, muito lentamente, as mudanças e revoluções que
aconteciam na Europa.
Enfocando o aspecto cultural, podemos afirmar que, com a colonização, a
cultura européia ganhou força contrastando-se com as outras,. Como afirma Joffe (1998, p.
110),: “a superioridade da identidade européia foi construída e afirmada na base dum
conjunto de comparações com povos e culturas não-européias”. O modo europeu-colonialista
de conceber a alteridade baseava-se, conforme Todorov (1999, p. 50), “no egocentrismo, na
identificação de seus próprios valores como os valores em geral, de seu eu como o universo;
na convicção de que o mundo é um”. Assim, a relação de alteridade, sob o colonialismo,
terminou sendo, basicamente, uma forma de exclusão, de negação do outro. Este
egocentrismo se traduz-se, também, conforme Guareschi (1998), na visão do ser humano
como indivíduo, no para o qual, quando nós nos tornamos o centro do mundo, o outro não
interessa, ou ao menos está em segundo plano, subordinado.
A gradativa assimilação da visão deo ser humano, enquanto como sujeito
individual - que toma corpo concomitante ao colonialismo - resultará em posturas de
exclusão em relação ao outro, refletidas na idéia de indivíduo como:
aAlguém que não tem nada a ver com os outros, o “outro” é um ser, uma coisa, com
quem estabeleço relações que podem ser de tipo e qualidades diferentes. Mas o
outro está num pólo, e eu, no pólo oposto, sem ligações intrínsecas necessárias. Há
a a-versão ao outro. [...] Por que isso? Exatamente porque o “outro” não significa
ou pouco significa para nós. Pois ele não faz parte de nós, é um estranho, um
alienígena. Ele é o índio, o negro, a mulher, o excluído. (GUARESCHI, 1998Id.
Ibid., p. 154-1,159).
Nesta perspectiva, a legitimidade dos empreendimentos colonialistas é
justificada com a desconsideração da existência do outro. Tal como comenta Jovchelovitch
(1998, p. 82), sob esta concepção “o outro não existe, e com seu desaparecimento simbólico,
comunidades são destruídas, direitos individuais são postos em questão, saberes sociais
tornam-se uma ameaça”. Deste modo, a negação do outro se traduz-se em diferentes posturas,
uma das mais trágicas e cristalizadas tem sido a indiferença - comonforme explicitadomos
acima, baseados na visão do homem como indivíduo, visão esta forjadoa com o surgimento da
modernidade - cujos efeitos foram e são tão letais quanto àas práticas deliberadas de
extermínio. A fome e as doenças que afetam as populações mais pobres do planeta
comprovam esta afirmação4.
Portanto, aA concepção que fundamentou o processo civilizatório, promovido
pelos religiosos, não se manteve como única perspectiva no trato com os povos da terra. Se,
para os jesuítas, o outro era merecedor de atenção, para a empresa burguesa interessada na
exploração e comércio das riquezas, o outro poderia representar um estorvo. Enfim, há muitos
estudos, em diferentes áreas do conhecimento ocidental, que têem procurado aprofundar o
entendimento sobre o fenômeno da europeização, a visão ocidental sobre os povos
colonizados, estudos que procuram desvendar as:

4
Estudo da ONU (Organização das Nações Unidas (ONU), publicado em 03.12.2002, aponta um aumento na
desigualdade entre ricos e pobres no mundo. A diferença entre o rendimento per capita dos 20% mais ricos e dos
20% mais pobres aumentou de 30 para 1, em 1960, para de 78 para 1, em 1994. Isso ocorreria,S segundo o
relatório, em razão dos baixos investimentos em educação básica têm contribuído para este distanciamento. Em
uma ampla série devários países em desenvolvimento estudados, concluiu-se que a porcentagem maior das
despesas públicas com educação vai para ações de governo em favor dos ricos. O investimento nos serviços de
saúde básicos também estaria bem abaixo do necessário. De acordo com o relatório, os países pobres gastariam
21 dólares per capita ao ano com todos os tipos de cuidados com a saúde, a maior parte desse dinheiro é gasto
em terapia, não em profilaxia (tratamento preventivo). (FOLHA ONLINE, 2002b).

Conforme matéria publicada por: Folha Online. http://www.folhaonline.com.br. Consulta realizada em


03.12.2002.
tTeorias e ideologias mascaradoras dos verdadeiros intentos da dominação, que
falavam em “raças fracas e fortes”, em “raças escravas e raças mestras”, em
“raças inferiores e superiores”, tudo isso, [...] invenção dos europeus para
justificar suas tropelias de colonização (MORAIS, 1989, p. 64).
Para a cultura ocidental, o empreendimento civilizatório cumpriu seu papel
colonialista, que culminou na com a organização da totalidade do espaço e do tempo.,
Conforme Lander (2000, p. 16), reunindo todas as culturas, povos e territórios do planeta,
presentes e passados, em uma grande narrativa universal, na qual, a Europa é (e sempre foi) o
centro geográfico. A e, a partir da cultura da Europa ocidental, serão são também
estabelecidas as hierarquias e negações culturais.

2.1.2 - O discurso colonial e suas formas de legitimação

Voltando aos ideários de verdades, que justificaram a colonização, convém


uma breve explanação sobre a forma como era estabelecido o sistema de leis que validavam,
para os europeus, o projeto colonial, tornando a empresa “legítima” a empresa, sob todaos os
ângulos, para os europeus.
Em primeiro plano, estavam os princípios bíblicos, de onde originavam os
mandamentos, objetos de obediência imediata, com os quais, o poder espiritual detinha o
controle dos ensinamentos e interpretações, como diz Habermas (2002, p. 16), “conferiam às
normas morais uma força de convencimento público”. Desste modo, o poder espiritual estava
justificado na “sábia legislação do deus criador”, norteando a visão de mundo do
colonizador. Do ponto de vista do europeu, esta visão de mundo estava revestida da verdade
absoluta que deveria ser observada em qualquer parte, nas palavras de Hoornaert (1994, p.
19), “o europeu estava tão convicto de sua superioridade, que não hesitou em defender de
todas as maneiras - até pela força bruta, quando julgava necessário - o que ele entendia ser a
verdade, pura e simplesmente”.
Em se tratando do sistema jurídico, no qual a Europa ocidental, sobretudo
Portugal e Espanha, se pautaram-se para justificar seus empreendimentos, os colonizadores
europeus, ao chegarem à América, agiram com total convicção de de que eram justa e
realmente proprietários destas terras, respaldados em tal sistema jurídico, como é explicitado
por Hoornaert (Ibid1994, p. 294):
A legitimação invocada pelos invasores europeus está no conceito jurídico de
“padroado das índias” (patronato de Indias), conceito de fundo religioso. Roma
cedia à coroa espanhola os direitos que ela pretendia ter sobre estas terras por
ordem divina.
O Papa, por meio de cartas apostólicas, transfere a “propriedade” sobre terras,
considerando que os colonizadores, homens de Deus, iriam, tal como ditava a carta
Inter caetera de 1493, “instruir aos mencionados habitantes na fé católica e imbuí-los de
bons costumes” (Carta apostólica Inter caetera, 1493 apud HOORNAERT, 1994, p. 295).
A formalização do projeto civilizatório, no sistema jurídico da época, que
acompanharia o direito ao usufruto das riquezas dos territórios dominados, provocou longos
debates sobre a condição dos indígenas. A hesitação, conforme afirma Hoornaert, (1994,
p.33) decorria, de acordo com conforme argumentos da época, do fato de os índios não
constarem nas listas bíblicas dos descendentes de Adão,. pPolêmica que obrigou o Papa Paulo
III a ter que declarar, em 1537, que os “índios” eram seres humanos e, portanto, dignos de
salvação.
A condição de grupo dominante reservou aos colonizadores europeus o poder
formativo, ou seja, na condição de dominador ele podia atribuir nomes aos dominados e, com
isso, revestire-se do poder de para fazer existir coletividades, independentes da opinião das
pessoas incluídas em tais coletividades. Assim, respaldados na pela condição de
conquistadores e avalizados por seus sistemas jurídicos, os colonizadores constróoem a
América e os Índios. Mesmo sendo expressões equivocadas, arbitrárias, são transmitidas de
geração em geração, adquirindo o status de direito, conferido aos termos pela lógica da
verdade do colonizador, ou como comenta Hoornaert (Ibid1994, p. 31),
a expressão „“América”‟ [...] certamente não é o melhor termo para designar
a originalidade do continente, mas, como no caso do termo “„índio”‟ e de tantos outros, o
uso por tanto tempo lhe conferiu direitos adquiridos incontestes.
Ao que Colombo “descobriu”, o sistema jurídico-religioso da época distribuiu
entre colonizadores espanhóis e portugueses, porém, o descobrimento não incluiu qualquer
direito aos habitantes originários destas terras, cuja existência só era admitida como objeto de
civilização,. O os termos com os quais eram representados já lhes tirava de qualquer
possibilidade a de usufruir de direitos:.
Los pobladores autóctonos devinieron - por la invasion, conquista y colonización
europeas - salvages, bárbaros y definitivamente índios, expresión genérica creada
para uniformemente - de Alaska a Tierra del Fuego - a quienes se conocían y
definíam con diferenciados nombres . (ANSALDI, 1997, p. 30).).
Importante destacar, na sobre a questão dos povos indígenas - no tocante à
negação a estes da condição de pessoa humana a estes povos -– é que, de acordo com o direito
da época, não se constituíam em injustiça àas atrocidades promovidas pelo colonizador, pois a
origem da expressão “direito”, conforme Guareschi (1998, p. 159):,
eEm latim, é jus e de jus provém justiça. [...] o que está implícito na afirmação de
que alguém é justo, é que nas relações que estabelece com os outros ele respeita os
“direitos” que essa pessoa tem. Toda vez que os direitos de alguém são feridos, há
uma injustiça.
Para cCom os indígenas não ocorria injustiça porque eles “não possuíam” o
modo “civilizado” de ver o mundo, eram selvagens, bárbaros, conseqüuentemente, não eram
pessoas, “não estavam aptos” a exercer direitos, tais como o de posse das terras ou oa
tratamento qualificado como “justo”.
No casoSobre das expressões genéricas, que tratandom coletivamente povos
distintos como “índios” povos distintos, convêém ressaltar ainda também o efeito de
formalização das condições de desigualdade, onde pois quem produz a expressão é o “nós”, a
civilização ocidental, categorizando os outros, preconceituosamente identificados como
“índios”. Tais expressões, formalizadas como “corretas”, tornadas legítimas, de tempos em
tempos foram sendo ressignificadas, conforme o interesse dos poderes constituídos. É o caso
do uso de expressões como sociedades, povos, nações, para referir-se aos nativos da América,
expressões estas que foram submetidas a restrições e a adequações, conforme a circunstância.
É significativa a ressignificação pela qual passou o uso do termo nação. Tanto
que, atualmente, fazer uso da expressão nação indígena, para designar um grupo indígena, é
provocar polêmica com os nacionalistas. Em seu sentido atual, o uso da palavra “nação” é
“entendida como Estado-nação, definida pela independência ou soberania política e pela
unidade territorial e legal..” Entretanto, os textos documentais do período colonial e imperial
tratam os índios como “nações indígenas”, isto porque, conforme Chaui (2000, p. 14):,
quando, no final da Antiguidade e início da Idade Média, a Igreja Romana fixou seu
vocabulário latino, passou a usar o plural nationes (nações) para se referir aos
pagãos e distingui-los do populos Dei, o “povo de Deus”. Assim, enquanto a
palavra “povo” se referia a um grupo de indivíduos organizados
institucionalmente, que obedecia a normas, regras e leis comuns, a palavra
“nação” significava apenas um grupo de descendência comum e era usado não só
para referir-se aos pagãos, em contraposição aos cristãos [...] mas também a
grupos de indivíduos que não possuíam um estatuto civil político (foi assim que os
colonizadores se referiram aos índios falando em “nações indígenas”, isto é,
àqueles que eram descritos por eles como “sem fé, sem rei e sem lei”). Povo,
portanto, era um conceito jurídico-político, enquanto nação era um conceito
biológico.
No Brasil, no início do período republicano, - no Brasil, no trato com as
populações indígenas - comsob a influência de adeptos da visão positivista nas políticas do
Estado, na a partir da qual, o “indioíndio” era considerado como um “ser digno” - foi
defendidao, sem serem traduzidas em leis,, a idéia de que os povos indígenas fossem
considerados nações, sob a proteção do governo federal. Restou, efetivamente, como política
para com os indígenas, formalizada nas leis, o tratoa designação como de tribos e, mais
adiante, de sociedades. Manteve-se, Pportanto, a concepção de que os indígenas eram grupos
atrasados, sem maiores significações. Conseqüentemente, as, cujas políticas oficiais atuariam
com o propósito de integrá-los à nascente sociedade nacional, tornando todos brasileiros.
PortantoE, em sua origem, o termo nação comportava referências negativas, de
inferiorização do outro, ou, como explicita Habermas (2002, 126), “esteve associada desde o
início com a delimitação negativa entre o próprio e o estrangeiro”. A ressignificação do
termo vai ocorrerá a partir das revoluções do final do século XVIII, nas sociedades ocidentais,
onde nas quais o termo nação passa a ser associado a Estado, representando os Estados
Nacionais. Nesste novo contexto, o termo nação tende a comportar os habitantes de um
mesmo território, que se reconheçam como pertencentes a um todo mediado jurídica e
politicamente. Desde então, tendências diferenciadas têm sido dadasaparecido, em “defesa”
de tais “Estados Nacionais”, inclusive, passando a ser usado, em determinadas épocas, ou por
algumas nações, adquiriu contornos para além da identificação nacional, vinculando-se a
práticas de segregação, tal como o anti-semitismo.
A resistência das oligarquias coloniais levou ao atraso do Brasil, na sua
formação, como estado Estado nNacional, nos termos dos conceitos construídos por outras
sociedades ocidentais. A mudança no discurso vai encontrará condições para se estabelecer, a
partir do século XIX, quando o aprimoramento técnico, na para a exploração das riquezas
obtidas com o domínio de povos e territórios, requeriam o aprimoramento dos discursos
justificadores da dominação, condição que se fazia necessárioa para a ressignificação das
sociedades coloniais em sociedades capitalistas.

2.2 - A exclusão das identidades culturais com base no discurso científico da assimilação
à ““Ccultura Nnacional”

O atraso na adesão aos valores da modernidade científica, e a desvalorização


das categorias de explicação, fundamentadaos em princípios religiosos medievais, fez fizeram
crescer o grupo dos críticos e descontentes com este modelo, forçando a adesão, por parte das
sociedades coloniais, como o caso do Brasil, a outras “verdades”, com base nos novos
contextos e formas de produção de saberes, como forma de manter a legitimidade das práticas
exploratórias e de hegemonia da cultura ocidental. Como as mudanças não acontecem de
prontoimediato, o surgimento do Brasil, como Estado nacional, estará marcado pela disputa
entre ideologias, mesmo assim, as perspectivas de tais ideários em disputa não representavam
ruptura ou, mesmo, desvio ao princípio universalista da cultura ocidental.
Em função das novas perspectivas socioculturais, a serem abordadas mais
adiante, requerendo novas políticas no âmbito dos Estados, convém que caracterizemos
melhor alguns pressupostos, nos quais se apoiouaram a criação dos Estados nacionais. O No
entendimento deEstado-nação, conforme Poutignat e Streiff-fenart (1998)Oriol o Estado-
nação, não pode fundar-se apenas em um contrato, requer um quadro de identificações: “A, ou
seja, a nação é pressuposta pelo Estado como conjunto de conteúdos geográficos, históricos,
lingüísticos, „culturais‟ no sentido restrito da palavra, que tornam possível a definição da
expressão da vontade geral” (ORIOL, 1984 apud p.outignat e streiff-fenart, 1998, p.50).
Os Estados nacionais do ocidente foram se caracterizando por uma concepção
liberal de sociedade, cujo pensamento se firmaou defendendo “em teoria um modelo
operatório de sociedade e sua prática na realidade histórica parece bastante diferente”
(SEMPRINI, 1999, p. 24). CEsse caráter ideológico que mascara um projeto de sociedade
positivo, cujo objetivo era a perpetuação de um sistema de poder, sob o controle das elites
brancas., Conforme Semprini (1999, p.160)o mesmo autor:,
cConstruído a partir de um “universalismo” que era com freqüência apenas um
disfarce de uma monocultura sob os traços de um simulacro de humanidade
incrivelmente branca e européia; estruturado a partir de um espaço público
“igualitário” que na verdade fechava as portas a numerosos grupos sociais;
fundamentado sobre uma noção de indivíduo abstrata e redutora (Id., Ibid., p.160).
Na prática, os Estados nacionais não foram formados com base em numa única
etnia, o discurso ideológico liberal funcionou para induzir as pessoas de origem múltipla a
perceberem-se como membros de uma mesma nação. É ondeNesse espaço atuam as
instituições encarregadas de “fabricar” a comunidade nacional. Instituições como a Escola
vêem a terassumem um papel relevante nesta função, garantindo, entre outras incumbências, a
manutenção, da unidade língüísticalingüística. A nacionalidade requer, também, a construção
de uma herança cultural, bem como, um destino histórico compartilhado.
Conseqüuentemente, este “Estado civilizado” vai requererá a negação da história de outras
potenciaisoutras potenciais “nações” que se encontram no conjunto geográfico do Estado.
Neste contexto, as palavras empregadas para designar o outro fazem sentido, como forma de
minimizar resistências.
Em se tratando das populações indígenas,, sob Estados nacionais, para se
firmar a idéia de nacionalidade destes, os povos indígenas foram estigmatizados,
categorizandos como “tribos”, grupos que corresponderão a um quadro coletivo, com
conotação arcaica: primitivos. Essa Ddesignação que perdurará, oficialmente, como termo
“correto” para designar um e outro povo indígena, até recentemente. Mais importante, com
aA categorização como tribos, foi importante para garantir a eliminação de obstáculos para a
fim de se buscar a unidade cultural por meio de empreendimentos de homogeneização e, de
políticas de aculturação (processo de transformação das identidades culturais por meio da
aquisição de saberes, valores da cultura dominante). Conforme Poutignat e Streiff-Fenart
(1998, p.82), “a noção de tribo parece cada vez mais marcada pela ideologia, de tal modo
que serviu de base para a oposição entre o meu nacionalismo e seu tribalismo”.
Enfim, a nação, tal como se consolidou o sentido para aodo termo, precisou ser
inventada, para construir a identidades nacionalis. Neste ponto, as cCiências darão grande
contribuição com argumentos, interpretações e, justificandotivas para a diluição das variantes
culturais e o inevitável destino da humanidade: a civilização moderna universal.

2.2.1 - A sociedade concebida com base na ciência

Com o predomínio do discurso científico na cultura dominante, enfocamos, a


seguir, a sociedade concebida a partir desta nova concepção. Particularmente, no caso da
formação da nação brasileira, é inaugurada a perspectiva “científica” para definir o outro.
O recurso àa saberes caracterizados como científicos, calcados em leis naturais,
portanto, neutros e objetivos, dariam caráter de verdade incontestável ao novo discurso da
cultura ocidental, como forma de justificar os Estados nacionais e sua unidade cultural. Tal
recurso às ciências, não se estabelece com exclusividade, ou com uma formulação única.,
Grosso modo, podemos dizer que o cientificismo constituiu-se no aporte principal para os
novos discursos da cultura dominante. Ao menos, deram sustentação a uma visão ideal de
marcha progressiva de todas as sociedades para a civilização universal, moderna.
Em conflito, principalmente com a concepção teológicao-metafísica, os
adeptos dao cientificismo dedicam-se a difundir esta nova perspectiva. P, para os quaiseles, as
leis que regem as sociedades estariam submetidas às mesmas leis aplicadas às ciências
naturais., Portanto, as sociedades poderiam ser estudadas pelos a partir dos mesmos métodos e
processos das ciências naturais. Destse modo, firmado em verdades “incontestáveis”, não
teológicas, no seu rigor positivo, formulou-seforam formuladas novas bases para “legitimar o
processo que se vivia de expansão consolidação do domínio dos principais países capitalistas
sobre os povos do mundo. Esse método era útil” (SANTOS, 1996, p. 14) e também, para
explicar as diferenças sociais e culturais.
Dentre as teorias científicas que contribuíram para construir o discurso da
“identidade nacional” no Brasil, podemos citar o naturalismo científico, formulado por
Charles Darwin, do qual originouaram várias teorias aplicadas às sociedades, influenciando,
significativamente, nas formas como os povos ocidentais conceberam outros povos. Chaui
(2000, p. 49) destaca a influência do darwinismo no pensamento nacional, no final do século
XIX. X,A analisando as obras de Silvio Romero, para odeste período qual, ela comenta que o
brasileiro era retratado como uma “sub-raça mestiça e crioula, nascida da fusão de duas
raças inferiores, o índio e o negro, e uma superior, a branca ou ariana” e, para evitar a
degeneração da raça mestiça, era preciso estimular o seu embranquecimento, promovendo a
imigração européia. É institucionalizado o racismo para definir as coletividades.
Entretanto, aA ideologia “científica” que mais marcou as decisões políticas do
Estado brasileiro, sobretudo no trato com as culturas indígenas, foi a ideologia positivista,
baseada na filosofia de Augusto Comte. Esta ideologia foi assumida por elites brasileiras,
tendo que tinha como uma das principais motivações a superação do modelo colonialista com
forte influência religiosa. O positivismo partia da idéia de progresso da humanidade, a
qualque passava por três estados: a o fetichista, nao qual encontravam-se os negros e os
indígenas; a o teológico-metafísicooa, concepção contra a qual os positivistas mais debatiam;
e o estado científico ou positivo, estágio mais avançado da evolução e destino das sociedades.
O discurso científico positivista, construído a partir da visão européia de
humanidade, concebia a hierarquia entre as culturas humanas com base em critérios de
avaliação que enalteciam seus valores, suas tecnologias, colocava-osfato que colocava os
europeus como o ápno ápice da evolução cultural. Trata-se, pois, de uma formulação
ideológica, um discurso que traduz, caracteriza, veicula o modo de pensar ocidental. Discurso
que é imposto sobre os demais, caracterizando-se esta forma como dominante, e que se dá
concomitante à dominação física, como esclarece Cardoso de Oliveira (2000, p. 175):
O processo de dominação - como todos nós sabemos - não se dá apenas pela força
ou pelo peso das tecnologias criadas pelo mundo industrial, dá-se também - e esse é
o ponto que [...] interessa desenvolver - pela hegemonia do discurso ocidental, de
raiz européia.
Tal discurso científico-evolucionista ocidental marcou, profundamente, o
modelo cultural dominante no Brasil. A, a população não-branca passa a ser vista pelo viés da
evolução social, que iria do estágio mais primitivo à civilização. No caso do trato com as
populações indígenas, situadas como primeiro estágio da evolução humana, os positivistas
apostavam na educação para apressar sua evolução. ,As as políticas foram direcionadas para
que os índios fossem assimilados, integrados à cultura nacional. Neste contexto, a escola
concebida para os “índios” fundamentava-se na crença de que:
pPoderiam evoluir e passar de um estágio a outro através da educação. Eis a
esperança dos positivistas em relação aos índios. A solução estaria em dar-lhes
condições para que caminhassem, o mais rapidamente possível, para o
entendimento da sua posição e da sua integração à nação brasileira. (GOMES,
1991, p. 122).
Estabelecido o “cientificismo” como princípio, como ideal norteador para
conhecer e caracterizar o outro, deste modo, sãoprincípio, como ideal norteador para conhecer
e caracterizar o outro, são definidass as formas de abordagem das sociedades ocidentais, no
que diz respeito ao contato com povos diferentes, para apressar sua evolução. Consolidada
esta ênfase no saber científico, a este, é associado o caráter de verdade, em função da sua
condição de saberes verificáveis, possíveis de serem comprovados, conforme os métodos
elaborados para tal. Assim, a vertente central das ciências da cultura ocidental, manteve sua
hegemonia, achando defendendo a idéia de que tudo se explicava por determinada teoria..
Foi assim que certas antropologias pretenderam “compreender” e “explicar” os
comportamentos dos aborígenes, dos “outros”. Foi assim que certos historiadores
escreveram “A História”. E certas religiões se transformaram na “Religião”. É
desse modo que determinados povos se transformaram em “não ser”, em
contraposição aos hegemônicos que passaram a “ser”, pois quem definia quem era
um e quem era outro sempre foram os dominantes (GUARESCHI, 1998, p. 160).
Com o saber científico, o poder formativo de que o colonizador dispunha -–- o
qual acreditava que lhe fora delegado por Deus - para designar, nomear (rotular) as pessoas,
os povos, passa a ser justificado pelas verdades positivas da ciência. O poder formativo é
oficializado pelo Estado e, com base nas ciências, estabelece, determina, nomeia, faz existir
coletividades de indivíduos. Desste modo, os indígenas deixaram de ser indígenas, tornando-
se caboclos, enfim, brasileiros, à medida que “vestiam” roupas e falassem a língua nacional.
Portanto, com a verdade transferida para as ciências da cultura ocidental, persiste a negação
do direito às pessoas, às coletividades, aos povos de eles mesmospara eles próprios se auto-
definirem e, de se auto-reconhecerem em sua identidade cultural.
Na época atual, vemos a crença ocidental reforçada em seus discursos,
fundamentados no saber científico, e, com estes, a crença na obtenção da verdade única, na
obtenção de versões realistas, inclusive, nos aspectos sociais e culturais. Malerba (2000)
caracteriza como “realismo científico” esta tendência oriunda do positivismo e das demais
versões realistas do conhecimento. Conforme este autor, nas ciências humanas, os membros
da comunidade científica ocidental sustentam que seus métodos oferecem o melhor meio de
traduzir o mundo, utilizando categorias racionais, assim como a linguagem científica seria a
melhor maneira de representação do mundo real, o mundo tal como ele é. Neste caso, seria
possível representar outras culturas com base nos referenciais ocidentais, ditados pela ciência.
Malerba (2000, p. 273), O mesmo autor complementa que:
a diferença cultural, segundo essa visão, seria conseqüência da má compreensão,
da falha em verdadeiramente representar o mundo - o que, por sua vez, cria um
problema novo para os cientistas sociais: eles são obrigados a ditar os parâmetros
de procedimento investigativo que legitimarão um conhecimento como verdadeiro
(ou científico) ou não. (Id., Ibid., p. 273)
Tomando a questão de forma mais ampla, no âmbito das ciências sociais do
mundo ocidental as mudanças continuam sendo operadas. ,S surgindoem outras perspectivas
para explicar o mundo, firmando-se simultâneas ao realismo científico. Essas mMudanças são
decorrentes daCom a complexificação do mundo moderno e do desenvolvimento dos saberes
na cultura ocidental. Assim,, são postas novas demandas no tocante a à identidade do sujeito,;
a necessidade de explicar o papel que os indivíduos desempenham nos Estados modernos. As
ciências sociais do mundo ocidental constatam que a concepção essencialista ou fixa de
identidade já não se sustenta, e que o sujeito é formado também na relação com outras
pessoas, conforme Hall (2001, p. 11), é então elaborada a concepção “interativa” da
identidade e do eu:, “de acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica
clássica da questão, a identidade é formada na „“interação”‟ entre o eu e a sociedadade”.
Portanto, o sujeito mantém a sua essência interior que é modificada na contínua interação com
os mundos culturais “exteriores”.

2.2.2 - A celebração da mestiçagem na nacionalidade brasileira

Retomamos, a seguir, o enfoque introdutório acima, sobre os Estados


nacionais, para tratar da ideologia da mestiçagem, tal como foi inventada no Brasil para
"fabricar" o consenso em torno da nacionalidade brasileirta. .
Para firmarO Brasil para firmar o seu caráter de nação, o Brasil precisava criar
uma identidade nacional que o caracterizasse. Atender a esta necessidade requeria a
elaboração de discursos que respondessem tanto àa necessidade de estabilidade do status quo
das elites dominantes, quanto àa unidade de toda a população em torno de um sentimento de
nacionalidade. Desste modo, foi formulado um discurso em tom de otimismo -nacionalista,
que contemplasse a contribuição das raças, e que, mescladas, formaram um povo.
Houve empenho oficial na veiculação da idéia de construção de uma nova
civilização, firmada com base nas características da população. Conforme Chaui (2000, p. 50)
consistiu num esforço do poder central em garantir uma tradição historiográfica onde a partir
da qual “cabia ao historiador brasileiro redigir uma história que incorporasse as três raças:
índios, negros e portugueses, dando predominância ao português, conquistador e senhor que
assegurou o território e imprimiu suas marcas morais ao Brasil”.
Com Essta idéia, cunhada para caracterizar o “brasileiro”, foi, gradativamente,
assimilada pela população e ressignificada conforme a conveniência científica ou política.
Conforme Ortiz (1994), na década de 1930, foi representativa à idéia de mestiçagem a obra de
Gilberto Freyre: Casa Grande e Senzala. Ortiz ressalta que, “Gilberto Freyre transforma a
negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os
contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada” (ORTIZ, 1994, p. 41). A
partir de então, esta tendência é firmado no discurso oficial, transposto para os currículos
escolares, aa “celebração da mestiçagem”, ” consolida-se como retórica predominante,
adotada até os tempos atuais,, para diferenciar o Brasil das demais nacionalidades. O discurso,
neste caso, destaca a superioridade do Brasil por ter conquistado a proeza de harmonizar o
“tipo nacional”, dada :
pPela excelência dos três elementos que entraram na formação do tipo (beleza,
força e coragem dos índios; afetividade, estoicismo, coragem e labor do negro;
bravura, brio, tenacidade, união, filantropia, amor ao trabalho, patriotismo do
português) e por isso o mestiço brasileiro não denota inferioridade alguma física ou
intelectual. (Id., Ibid.CHAUI, 2000, p. 52).
A Enquanto a celebração da mestiçagem enquanto respondia à exigência do
“princípio da nacionalidade”, requisito que assegurava ao Brasil como uma
nacionalidadenação, ao mesmo tempo encobria os conflitos e a situação de exclusão, a que
foram submetidos os não-brancos com a falsa idéia de tolerância ou a ausência de
preconceitos. Desste modo, tanto a política assimilacionista de inspiração positivista - “que
encontra ainda seus defensores no Brasil” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 184) -
quanto aàs políticas voltadas à mestiçagem, “são exemplos eloqüentes de uma atitude pouco
afeita à defesa da diversidade cultural” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 184) (Id.,
Ibid.).
Convém destacar o papel das instituições na produção do povo, que se
reconhece como comunidade nacional. Para que os “indivíduos” de origens múltiplas fossem
moldados nesta identidade, instituições como a escola primária, a família, a Igreja e a
imprensa em geral, são mobilizadas em torno de pressupostos culturais comuns como: língua,
história e religião, a. Adequando-se, destse modo, às exigências das nações modernas,
fundamentadas em saberes científicos, que apontavam para a inevitável “vocação universal”
do “homem”.
Voltando às concepções com base no pensamento científico, estas forneceram
argumentos, fabricados “cientificamente”,
2.2.3 - Apara definir, adjetivar o “outro”. Na seqüência, explicitamos a
construção de discursos preconceituosos para definir o “outro”.

O aprofundamento dos estudos, no âmbito dos saberes científicos do mundo


ocidental, propiciamO aprofundamento dos estudos, no âmbito dos saberes científicos do
mundo ocidental, busca a oportunidade de identificar seus equívocos, rever suas verdades,
apontar as perspectivas unilaterais de saberes científicos, principalmente no que se refere à
humanidade, revelando que as ciências ocidentais adotaram um viés exclusivo de para
interpretar os diferentes povos, outras diferentes culturas. Tal autocrítica permite afirmar que
a verdade pode ser outra, se a humanidade for vista a partir de outra cultura. Sob o enfoque do
realismo científico, a pessoa diferente é concebida não pelos seus referenciais próprios e sim
com base em discursos que foram elevados ao estatuto de saber e de verdade, imprimindo ao
imprimir categorias pré-concebidas sobre o outro, tornando-se norma nas relações, passando
para o senso comum, impregnando e orientando o entendimento, as representações e o contato
entre pessoas. Deste viés unilateral surgem, portanto, as formas preconceituosas de
representarção do outro.
Analisando o modo como se processa o preconceito, França (1998) destaca a
função política do saber científico, o qual, exerce poder, uma vez que dá sentido, respaldo de
verdade ao discurso. O saber corresponde a um conjunto de enunciados aceitáveis,
cientificamente, traduzindo-se em verdades sobre si e sobre os outros. Tais enunciados são
traduzidos em normas, no intuito de disciplinar os indivíduos, d. Destse modo, as sociedades
ocidentais regulam seus indivíduos, de acordo com um formato médio, preconcebido de
acordo com normas reguladoras. Havendo um comportamento padrão, se tornam-se visíveis
os “desvios”, distinguindo o diferente;, aquele cujas características não se enquadram nas
“verdades” expressas nas normas. Aquele que se porta com modos estranhos à verdade, está
errado. Assim, a verdade é o certo, e o certo é trabalhar;, o certo é vestir-se, cobrir o corpo, o
certo é falar a língua nacional;, o bom e valorizado, é o “claro”, é o branco. Ao Àquele que
difere, cabe uma conotação depreciativa.
Conforme a mesma autoraFrança (1998, p. 208), o comportamento “normal”
do indivíduo -, sob a perspectiva da cultura ocidental, frente ao desvio, ao diferente, e
comparando-o consigocom a sua própria maneira de ver o mundo, - com a sua identidade, é
teré ter como primeira decisão normativa, para com este estranho, “adotar uma linguagem
que permita uma descrição imediata, tornando possível comparações”(Ibid., p. 208). É
quando opera o esforço em designar esta diferença que se afasta da média, por meio da
linguagem, que “reage a fim de apropriar-se dele com uma palavra, fechá-lo em uma
palavra, pois esta distinção aponta para a evidência de um estranhamento, um incognoscível,
uma resistência ao que está sendo proposto no processo de aferição da norma”(Id., Ibid.).
Nesta ânsia de conceituar ao o que foge à norma, em adotar uma linguagem
que permite uma descrição:,
éÉ onde o preconceito se instala. No horror ao vazio, de não poder nomear, em vez
de se arrojar contra os limites impostos pela norma, transforma -se a diferença em
objeto lingüístico comparativo, um objeto subjetivado, adjetivado, para na medida
do possível, ser falado (Id., Ibid.FRANÇA, 1998, p. 209).
O preconceito, desste modo, se efetiva-se reafirmando uma medida comum, -
cujo discurso se afirma assenta em saberes, crenças e valores, - queos quais, um determinado
grupo se auto-oferta, e fazendo uso de formas historicamente construídas para nomear o
“desvio” de tal medida comum, e a emitir opiniões, geralmente estereotipizaçãoadas. O
preconceito, por vezes, distingue-se, sendo oupodendo adquirir contornos uma postura de
rejeição a pessoas com determinadas características, por exemplo, negros, orientais, judeus,
índios; ou uma forma genérica de rejeição ao outro, também caracterizada como
etnocentrismo., O etnocentrismo, assemelhando-se ao referido acimaque, tende a considerar o
próprio grupo como padrão e, todos os demais seriam como estrangeiros e, geralmente,
inferiores.
Outra explicação da negação do outro eé apresentada por Joffe (1998) como
uma forma de “degradação”, recurso que se intensifica no pensamento ocidental em tempos
de crise. Neste caso, a expressão “o outro” é aplicada somente aos excluídos, “ser „outro‟ é ser
objeto de fabricação de alguém diferente e não um sujeito com poder de voz” (Id.,
Ibid.JOFFE, 1998, p. 109). A autora conclui que é com base nestas formas de degradação que
se estabelece a “superioridade” dos brancos ocidentais - construída, afirmada e fundamentada
em conceitos científicos das ciências ocidentais - sobre o outro, o estrangeiro, o imigrante,
principalmente, em situações de crise.
Tomando a questão da atualização das formas de exclusão, sob o âmbito das
representações, na produção de discursos de significação e produção de identidades,
Woodward (2000, p. 18) enfatiza que “todas as práticas de significação que produzem
significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e
quem é excluído”. Ou seja, no cotidiano da intersecção entre pessoas e culturas os sistemas
simbólicos fornecem novas formas de para dar sentido às divisões, às desigualdades sociais e
para justificamr os “meios pelos quais alguns grupos são excluídos e estigmatizados. As
identidades são contestadas” (Id., Ibid.WOODWARD, 2000, p.19).
Ainda neste contexto das formulações ideológicas, com base no saber
científico, a formulação que mais marcou o enfrentamento entre povos, nas sociedades
ocidentais, consiste na tentativa de classificar os povos sob categorias raciais. A diferença
genética foi, conforme Hall (2001), o último refúgio das ideologias racistas e que,
contrariamente à crença generalizada, a raça não é uma categoria biológica ou genética que
tenha qualquer validade científica, portanto, não pode ser usada para distinguir um povo do
outro. O mesmo autorHall (2001, p. 63) define:
A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a
categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de
representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo,
freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas
- cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. - como
marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo do outro (Ibid., p.
63).
As críticas ao recurso das ciências ocidentais para compreender o outro,
operam nas lacunas dos discursos deste saber, onde os preconceitos costumam ser expostos,
depondo contra o seu caráter de verdade. Estas lacunas constituem-se em espaços para a
desconstrução na da unilateralidade das verdades científicas que sempre privilegiaram os
“povos ocidentais” e onde se assentam as fronteiras da exclusão do outro.

2.3 - A Recomposição do discurso hegemônico e a educação escolar na perspectiva


de
mercado

Com o desgaste do liberalismo não conseguindo é mais possível, dissimular,


em seusnos discursos, seus os laços íntimos deste sistema com o racismo e o eurocentrismo,.
oOs grupos que detéêm o domínio político, econômico e cultural nos Estados modernos
apressam-se pois, em conduzir as reformas, de modo que não lhes tirem a condição de
privilégio, “tudo deve mudar para continuar tudo igual”. Destse modo, a partir da década de
1970, é postao, em curso, a reforma ideológica das sociedades ocidentais para cujo êxito
contou comfoi fundamental a adesão de governantes e intelectuais, difundindo um novo senso
comum, convencendo “amplíssimos setores das sociedades capitalistas - e a quase totalidade
de suas elites políticas - de que não existe outra alternativa”(BORON, 2001, p. 11) senão a
adesão às reformas propostas (BORON, 2001, p. 11). A “civilização” privada, individual é
configura-se como a “ordem natural” das coisas, a sociedade não pode organizar-se de outra
maneira.
A globalização da atividade financeira, desenvolveendo um universo quase
totalmente desregulado e faz com que o capital adquira algo como uma ommnipresença,
tornando o “mercado” uma super instituição, um “tribunal imaterial” influente. Esse
Ccontexto, manifesto como “conquista da civilização”, estende as cadeias de subordinação do
trabalho assalariado ao mercado global. A vida é então, passa a ser subordinada à mecanismos
de competição de mercado. Agrava-se a exclusão social, a hegemonia cultural é posta em
argumentos econômicos “altamente industrializados”, pautando os comportamentos, valores,
atitudes, aspirações e modos de relação. Diante da exclusão, as concessões limitam-se a
medidas compensatórias e corretivas dos problemas, decorrentes das limitações dos próprios
indivíduos e nunca do próprio modelo ou da história histórica condição de exclusão.

2.3.1 - A educação escolar na lógica de mercado: a consolidação da


ordem civilizatória

Situando-nos naNa esfera da educação institucional, ainda sob o discurso


hegemônico, nesta, as escolas se firmaram-se como veiculadoras do saber dominante, saber
distribuído em doses distintas, de acordo com os estamentos sociais. Tradicionalmente, o
saber mais elaborado, (a “alta cultura” na perspectiva ocidental, graças aos mecanismos de
contenção,) sempre foi disponibilizadoa de forma limitada, a um pequeno segmento da
população, em sua maioria “branca” e com o percentual mais alto de renda. Enquanto queP
para a população em geral, a escola oferecida, e até mesmo tornada obrigatória, foi
configurada numa versão “elementar”, permitindo o acesso restrito a saberes, habilidades,
hábitos e atitudes, enfim, acesso à cultura tida como “suficiente” para servir ao mercado de
trabalho e para consumir os produtos do mercado da cultura ocidental5.

5
Segundo o documento, "Situação dos Adolescentes Brasileiros", divulgado em 11.12.2002 pelo Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef), dos cerca de 10 milhões de adolescentes, na faixa etária de 12 a 17 anos,
existem hoje, no país, mais de 1,1 milhão de adolescentes analfabetos e cerca de 8 milhões com baixa
escolaridade.
Em sua configuração dominante, a tônica da política educacional no âmbito
dos sistemas, acompanha as novas dimensões da ordem mundial. Para não ficar de fora do
circuito do mercado global, eEstados nnacionais, como o Brasil, reorganizam suas instituições
na lógica de continuidade e mudanças, que caracterizam as formas históricas de reciclagem
das concepções e dos discursos de dominação das sociedades ocidentais capitalistas,
adequando suas instituições ao modelo que requer o mercado.
As críticas a esta tendência mercantilista, também caracterizada como
"globocolonização"Conforme os críticos em educação,, colocam tal modelo consiste
numacomo sendo uma versão reelaborada do liberalismo, ou, neoliberalismo:,
iIsto é, uma alternativa dominante à crise do capitalismo contemporâneo através do
qual pretende-se levar a cabo um profundo processo de reestruturação material e
simbólica das nossas sociedades. O neoliberalismo deve ser compreendido como um
projeto de classe que orienta, ao mesmo tempo e de forma articulada, um conjunto
de reformas radicais no plano político, econômico, jurídico e cultural (GENTILI,
2001, p. 102).
Os grupos dominantes nos setores: econômico, político e cultural,
compartilham, de forma mais ou menos consensual, desta alternativa capitalista. - cCom seus
interesses representados pela formulação abstrata e dissimulada, o “mercado”, que se
apresenta como uma entidade “virtual”, sem pátria, cuja ação se sobrepõe aos governos e, aos
povos. A crise, já na perspectiva de mercado, decorre da incapacidade estrutural dos Estados
na administração das políticas sociais. A solução estaria estaria em se “promover uma
profunda reforma administrativa que reconheça que tão somente o mercado pode
desempenhar um papel eficaz [...] na implementação de mecanismos competitivos” (Id.,
Ibid.GENTILI, 2001, p. 19) e fazer, no caso da educação escolar, uma verdadeira revolução
educacional.
A escolar ajustada ao mercado - com a transferência das responsabilidades
educacionais da esfera política para a esfera da competição privada - visa adequar a educação
escolar “ao modelo de homem neoliberal [...] o cidadão privatizado, responsável, dinâmico: o
consumidor” (GENTILI, 2001Id., Ibid., p. 20).
Nessta perspectiva, o homem moderno consolida sua condição de indivíduo
submetido ao mercado, e é identificado como consumidor e os direitos de cidadania
transformados em Código de Defesa do Consumidor. Esta reconfiguração da cultura
hegemônica, insiste em esconder séculos de história, marcadamarcados pela apropriação
desigual; e, coloca todos, “teoricamente”, na arena comum do mercado, para competir como
indivíduos “livres”. Nesse mercado,, no qual, sóssomente os "melhores" triunfam, o sucesso e
o fracasso são privatizados.
É característicoa ndas reformas educacionais, submetidas ao receituário deste
modelo hegemônico, a validação democrática, porém, sob uma democracia ressignificada -
caracterizada como “democracia mínima”, com limites estritos, esvaziada de atribuições
morais, de atendimento a expectativas, algo como um método subordinado ao mercado, ou
sejaisto é, um procedimento que não viole as regras de mercado, a propriedade privada - que,
na prática, funcionaria como uma “simulação democrática”. Assim, obedecendo a tal método,
as reformas são conduzidas de forma “negociada” sendo que, na verdade, as reformas
acontecem esta se dá a partir de pauta, já delimitada, que não pode ser extrapolada;, portanto,
os interessados são chamados para “pactuar”, consensuar. Neste caso, questionar a pauta é
questionar a própria democracia. “Quando a comunidade educacional é convocada a
“„participar‟”, espera-se que concorde de forma cega com parâmetros ou conteúdos
básicos” (GENTILI, 2001Id,. Ibid., p. 66), elaborados por “experts”: homens de negócio, bem
sucedidos, especialistas, intelectuais, técnicos competentes, que, “ouvindo” os interessados, à
distância, elaboram as decisões necessárias, de forma consensual. Como as reformas estão sob
as “regras democráticas” (minimalistas), qualquer contestação é taxada de “antidemocrática”.
Um dos principais argumentos desta nova perspectiva hegemônica assenta-se,
conforme o ideário de tal perspectiva, na “vocação” própria da natureza humana,: o
“indivíduo livre” a ser alcançado com o pleno estabelecimento da ordem civilizatória,
processo de superação da ordem primitiva, coletivista. Portanto, contrapõe-se, radicalmente,
às novas políticas, defendidas pelos movimentos de resistência. No caso, Aas políticas contra-
hegemônicas de defesa de coletividades, dase culturas locais, representariam uma volta ao
primitivismo, em sua versão tribal. Gentili (2001, p. 52) descreve os fundamentos propostos
pelos ideólogos do neoliberalismo, como:
aA ordem extensa de cooperação humana (estágio superador da ordem primitiva)
encontra seu fundamento na eliminação das tendências instintivas que promovem o
solidarismo comunitarista e o altruísmo tribal. O processo civilizatório - e em
conseqüência o liberalismo que, como atitude espiritual coincide com ele -
fundamenta-se numa rejeição elementar contra qualquer forma de igualitarismo
gregário (Id., Ibid, p. 52).
Naturalmente, que tal perspectiva choca-se com o muro da miséria e da
exclusão a que estáão submetidosa a imensa maioriagrande parte das pessoas. Dessta
contradição, tal como enfocaremos mais adiante, é que surgem as novas formas organizativas,
assentadas na consciência de que o conjunto de direitos sociais, mesmo que possuídos por
poucos, ainda tomam conta do imaginário social, motivando as lutas pela conquista de tais
direitos na esperança de, também, se alcançar a emancipação social. Como resultado, temos a
“politização do social, do cultural [...] tornando possível organizar novas formas de
cidadania coletivas e não meramente individuais” (SOUSA SANTOS, 2000ba, p. 263);,
novas formas políticas de participação e representação democrática, também influenciando as
mudanças na escola, na luta contra o monopólio do conhecimento e contra sua transformação
em mera mercadoria.
Assim, considerando que os instrumentos apelativos não se fazem acompanhar
de formas comunicativas respeitosas para com outras culturas, denotando sempre a postura
“ocidentalcêntrica” de intolerância ou indiferença para com o outro, trataremos, no próximo
capítulomais adiantena etapa seguinte, dos pressupostos necessários para que seja possível
firmar relações com base no diálogo, sem que uma das partes envolvidas seja inferiorizada.
CAPÍTULO II
A FORMAÇÃO DA AMAZÔNIA BRASILEIRA E A INSTRUÇÃO
DESTINADA AOS INDÍGENAS

No capítulo anterior, caracterizamos concepções que justificaram o tratamento


dado pelos colonizadores - e posterior sociedade nacional - aos povos indígenas e a
persistente tentativa de atualização de tais perspectivas que excluem, negam a possibilidade
de grupos sociais viverem conforme referenciais socioculturais diferentes daqueles nos quais
foram considerados como “universal”. Neste capítulo, expomos as práticas de exclusão a que
foram submetidos os povos amazônicos. Essa exposição é necessária para compreendermos o
papel exercido pelas instituições da sociedade dominante, entre elas a Escola, no contato com
estes povos.
Assim, para justificar o papel exercido pela educação escolar entre os povos
indígenas do estado do Acre e região, consideramos indispensável explicitar o processo
histórico do tratamento dado às nações nativas da Amazônia, desde a invasão dos
colonizadores europeus aos dias atuais, passando pela consolidação da nação brasileira a
partir da cultura dos colonizadores. Neste intuito, partimos do impacto que se abateu sobre as
nações originárias da Amazônia, no processo de tomada colonial para, em seguida, pontuar o
processo, por meio do qual, a nação brasileira deu continuidade à colonização do “outro”,
adjetivando os povos nativos, submetendo-os à condição de selvagens e, portanto, exploráveis
como um produto a mais da “selva”. Por conseqüência, a intervenção, no aspecto que poderia
ser considerado como educação escolar, esteve pautada nesta perspectiva sobre o “outro”, seja
no sentido de, com a instrução, tirá-lo da condição de “selvagem”, seja negando a ele o acesso
a instrumentos que o permitissem conquistar a liberdade.
Enfocamos duas fases do processo colonial sobre a Amazônia, que resultou nos
domínios políticos atuais dos estados nacionais sobre a região. Na primeira fase, da Amazônia
dominada pelos portugueses, tratamos do período que compreende de 1600 a 1850. Neste
período, ressaltamos as motivações econômicas, a busca desenfreada pela obtenção de
riquezas, durante a qual os indígenas constituíram o bem de maior valor, uma vez que eram
“utilizados” como escravos na extração de riquezas. Nesse caso, a eventual instrução, a eles
destinada, visava facilitar a domesticação para torná-los úteis ao trabalho.
49

Na seqüência, pontuamos, como segundo momento, o período que


compreende, de meados do século XIX aos dias atuais, tratando, de forma mais específica o
processo de exploração econômica da região, onde situamos nosso estudo, a qual compreende
o Acre e o sul do Amazonas. Essa região é também denominada Amazônia ocidental, ou
ainda, região Juruá-Purus, por abranger o alto das bacias hidrográficas dos rios Juruá e Purus.
Este segundo período constitui a fase de intensa procura do produto gumífero, fase na qual
ocorre o desdobramento da exploração das últimas nações indígenas da Amazônia, refugiadas
na região Juruá-Purus. Este segundo período é caracterizado, na área da instrução, pela
negação do acesso às letras para evitar que o indígena pudesse se libertar do cativeiro.
Neste mesmo capítulo, discorremos, também, sobre a política oficial do Estado
brasileiro, na época em que se estabelece o domínio do Brasil sobre a região Juruá-Purus,
destacando as formas de intervenção instrucionais, pontuando o constante princípio norteador
do Estado e sociedade nacional para com os indígenas: integrá-los à comunhão nacional.
O processo histórico, abordado neste capítulo, é para nós relevante, também, a
fim de situar a luta atual do movimento indígena na região e o novo papel dado à escola pelos
indígenas nas suas estratégias de resistência e de conquista por condições melhores de bem
viver (temática que trataremos nos próximos capítulos). Em outras palavras, é preciso ter
presente a história para aproximar-se do entendimento da luta do movimento indígena, bem
como da relevância de suas conquistas junto à sociedade nacional. É preciso ter presente o
histórico de desprezo dos “brasileiros” pelo “índio”, para se ter a dimensão do que é gozar de
garantias de cidadania, de ter respeitadas algumas especificidades socioculturais, refletidas
nas conquistas políticas, particularmente a educação escolar, fundamentada no respeito à
cultura do povo a quem se destina.
Produzimos este capítulo com base em textos, relatórios, teses, dissertações e
outras publicações que versam sobre a história regional, sobre educação escolar indígena,
legislação pertinente e anotações de observações e depoimentos obtidos no trabalho e durante
a pesquisa na região. Convém ressaltar que, na elaboração deste capítulo, não tivemos como
preocupação a narrativa positiva da história, e, sim, enfatizar o impacto dos invasores e da
nação construída por estes sobre as nações nativas, tendo presente sempre a preocupação em
caracterizar representações da cultura dominante sobre os povos indígenas e, desta forma,
trazer alguns elementos esclarecedores da persistente exclusão e resistência indígena na
região.
Enfim, o interesse no passado decorre da necessidade de remontar alguns
elementos que permitam decifrar melhor os problemas atuais, subsidiando-nos na análise dos
50

posicionamentos do movimento indígena e no debate sobre as políticas de educação escolar


destinadas à população indígena. Debate esse, marcado por conflitos, isto é, influenciado
pelos interesses em jogo: as respostas à antiga reivindicação da população indígena local: o
“querer escola”, é motivo de debates e conflitos, onde entram, em cena, as perspectivas de
setores do indigenismo, as políticas de oferta, por parte de estados e municípios, e, sem
dúvida, a perspectiva do movimento indígena.

1 A invasão colonial sobre as nações amazônicas

Movidos pela ambição por riquezas, os colonizadores, em sua maioria


portugueses, tomaram de assalto a Amazônia, respaldados nas suas crenças que lhes davam o
“direito” sobre territórios e seus ocupantes. Na prática, a atenção destes estava voltada para as
riquezas silvestres, possíveis de serem exploradas e com retorno comercial. Na época, esses
colonizadores não visualizavam impactos negativos de suas ações, não dispunham de apreço
sobre povos que se apresentavam como diferentes, menos ainda por suas culturas, não cabia
em seus referenciais a exploração racional dos recursos naturais da floresta. A Amazônia era
vista como fonte de riquezas que poderiam proporcionar lucros no comércio externo, riquezas
denominadas “drogas do sertão”, conforme Rancy (1992, p. 57), uma:
Gama de espécies florestais [...] constituída de produtos diversos, utilizáveis na
alimentação, nos medicamentos, na perfumaria, na habitação, consistindo,
principalmente, “no cacau, na baunilha, no cravo, na canela, no puxuri, na salsa,
nas sementes oleaginosas, nas raízes aromáticas, nas espécies variadíssimas de
madeiras, de logo empregadas nas construções que se levantavam no Reino”, com
aceitação certa no mercado externo e que “na vida amazônica nada mais são do
que a matéria-prima do sistema colonial de exploração”.
A atuação dos colonizadores europeus, aos olhos de hoje, constituiu um
verdadeiro assalto sobre a Amazônia. Sob o aspecto do impacto sobre as nações que ali
viviam, os métodos de invasão e domínio sobre o mundo destas nações, inauguradas no
século XVII, tornaram impossível precisar o número de povos e pessoas que habitavam a
região. Dos poucos povos que foram mencionados em registros deixados por exploradores,
aventureiros e missionários - no período no qual ocorreram as expedições em busca de
riquezas e de ampliação dos domínios coloniais - destes, o Conselho Indigenista Missionário
(2001, p. 222) constatou o desaparecimento de 55%, isto é, muitos povos desapareceram sem
que deles tenha ficado qualquer registro e mais da metade dos povos mencionados pelos
cronistas também desapareceram. Considerando que a principal motivação dos colonizadores
era a conquista de riquezas, o avanço destes sobre o mundo desconhecido não era precedido
51

de embaixadores ou “etnólogos” para registrar quem eram e como eram os povos nativos que
seriam dominados. Obviamente, povos foram exterminados sem que tenha ficado qualquer
registro.
Para início de detalhamento do contexto amazônico, o importante a ser
destacado, como comenta Bessa Freire (1991 p. 15):
É o fato de que a região que chamamos Amazônia não começa a existir a partir da
colonização européia [...] e que as nações indígenas que ocupavam este território,
além de possuírem pelo menos mais de 10.000 anos de história, possuíam uma
organização social própria, uma economia adaptada às condições naturais da
região, que os permitia viver com abundância de alimentos, obedecendo a códigos
morais particulares a cada uma dessas nações.
A pouca ou quase nenhuma relevância dada pela cultura ocidental às nações
nativas do continente americano reflete-se na narrativa da “história da humanidade”. As
civilizações milenares, constituídas no ambiente peculiar da região amazônica, não tiveram
chance de fazer valer seu legado de experiência humana. Com base em estimativas feitas, a
partir dos dados acima referidos, dos poucos registros, que restaram do período colonial,
estudiosos afirmam que no século XVI havia algo em torno de 2,5 milhões de pessoas na
região que hoje compreende a Amazônia brasileira. População essa, distribuída em centenas
de nações distintas; povos que tiveram o curso de suas histórias impactado pelo processo de
“assalto”, imposto por colonizadores oriundos da Europa ocidental.
Assim, na perspectiva ocidental européia, o século XVII marca o início do
“povoamento” da Amazônia. Estudiosos em busca de desmentir a história fabricada pelos
colonizadores declaram que, caso a história fosse contada pelas nações nativas, este seria o
início da grande catástrofe demográfica. Bessa Freire (1991, p. 16) relata que, na verdade:
Com o início do processo de colonização da Amazônia, o contato entre o nativo e o
invasor destruiu as organizações tribais, introduziu na Amazônia longas jornadas
de trabalho e a diferenciação em classes sociais, alterou as rotas de comércio,
subverteu as crenças religiosas aqui existentes, quando não significou o seu
extermínio total. Do ponto de vista econômico, transformou povos agricultores em
coletores.
A colonização da Amazônia, no relato de Meggers, caracteriza o início de um
período de rápidas e drásticas mudanças, sobretudo com a disseminação de doenças novas e
mortais, que dizimaram a população nativa, além da substituição de atitudes culturais que se
tinham criado durante milênios de seleção natural, pela cultura estrangeira, na prática:
Aos olhos dos estrangeiros, a Amazônia era principalmente uma fonte de produtos
exóticos que podiam ser vendidos por preços elevados e o fito de lucros imediatos
teve primazia sobre as vantagens da produtividade em longo prazo. Os recém-
chegados mantiveram sua dieta alimentar tradicional preferida, constituída de
carne, arroz e café e continuaram a se comportar como uma extensão da sociedade
européia na qual uma divisão de trabalho altamente diversificada se ligava a um
complexo sistema de troca comercial (MEGGERS, 1987, p. 221).
52

Em se tratando dos “homens” envolvidos no embate pela Amazônia, a partir de


então, temos o relato da história oficial apresentando, em primeiro plano, o elemento
colonizador, denominado “civilizado”, para diferenciar do nativo, já no vocabulário
amazônico, o colonizador é identificado como “branco”. Conforme Brito, “branco” são todos
os homens que não são índios, nem negros, nem caboclos. A formação desta categoria é
apresentada pela mesma autora:
Entre os brancos que contribuíram para o desenvolvimento do Amazonas e a
formação de uma de suas identidades étnicas - o caboclo - estão os portugueses,
holandeses, franceses, ingleses, libaneses, espanhóis, italianos e sírios, entre os
estrangeiros; ficando entre os brasileiros, com papel preponderante, o nordestino
(BRITO, 2001, p. 69).
A denominação “caboclo” tem importante significado na condição a que foram
delegados os indígenas aprisionados. Além do elemento mestiço, resultante do contato
interétnico entre o branco e o índio, substancialmente, foram identificados como caboclos os
índios que, gradativamente, foram aculturados, civilizados, enfim, forçados a assumir uma
nova identidade em substituição à identidade étnica de origem. Entretanto, o termo caboclo é
acompanhado de uma carga de preconceito e conotação pejorativa, que persiste até os dias
atuais.
Voltando ao modelo de exploração dos colonizadores o qual marcou e
determinou a tipificação da população, recorremos a Meggers para situar a tragédia que
acompanhou os saques empreendidos na região amazônica, nos quais, os indígenas tornaram-
se a mercadoria de maior valor ao serem forçados ao trabalho escravo:
por volta de 1615, começam a proliferar estabelecimentos portugueses, ingleses,
holandeses e franceses nas vizinhanças da foz do Amazonas e a rivalidade política
se tornou cada vez mais intensa. Cada nação recrutava milhares de indígenas para
defender sua reivindicação à soberania e a mortandade foi tão grande que, em
1631, quando os portugueses saíram vitoriosos, restavam poucos nativos para
serem explorados. Em 1664, as incursões preadoras de escravos já tinham atingido
a Foz do Rio Negro; trinta anos depois, somente algumas dezenas de cativos eram
obtidas, mesmo no alto Amazonas onde, um século antes, viviam milhares de índios
(MEGGERS, 1987, p. 210).
Nesta disputa por domínios, na análise de Brito, o processo de colonização
promovido pelos portugueses diferenciava-se dos utilizados por colonos oriundos de outras
nações européias. Por exemplo, os holandeses, primavam pelo comércio com os nativos e
sutilmente catequizavam. Os portugueses caçavam escravos, “dessangravam as malocas”
trucidando ou escravizando os “silvícolas”. Os relatos sobre a formação do hoje “homem
amazônico” retratam esta prática comum durante o processo colonial, a mesma autora analisa,
comentando o impacto do avanço dos portugueses sobre os territórios indígenas:
Com os ataques constantes dos portugueses às malocas, os índios começaram a
fugir para as profundezas das matas, procurando evitar as perseguições e os
53

escravizamentos. Apesar disso, as aldeias eram atacadas muito freqüentemente:


Não raro, lugares populosos entregues ao trabalho e a uma relativa tranqüilidade,
despertavam, sem motivo justificado às agressões dos „caça-bugres‟, se escapava aos
zagalotes, aos pontaços das durindanas, eram os murubixabas e curumins
agrilhoados, repetindo-se amiúde as cenas dos negreiros nas costas da África. À orla
da floresta, a carusma, que o vento soprava das ruínas, anunciava mais uma tribo
ferida, mais um aldeiamento extinto. (BRITO, 2001, p. 54).
Ainda na análise de Brito, sobre os efeitos das investidas coloniais, os
indígenas, quando já não tinham êxito nas retiradas para as entranhas da floresta, apelavam
para a prática da eutanásia coletiva. Prática extrema, nas retiradas, adotada para evitar o
aniquilamento total dos grupos. Na fuga, a condução de mulheres grávidas, crianças, velhos e
doentes, que não andavam velozmente - condição agravada pela fadiga e pela fome, após dias
seguidos de caminhadas, sem igarapés, sem frutas, sem caça, sem pesca, nem leite nas mães -
obrigava o grupo a decidir entre deixar os fracos à espera da tortura dos algozes e da morte
violenta, sem direito a uma sepultura, ou a adoção do sacrifício supremo: a matança das
crianças e dos inutilizados. Pesava na decisão a certeza da tortura a que seriam submetidas as
mulheres e as crianças, para que revelassem o destino dos que conseguiam fugir. Salvar-se-
iam poucos: era a eutanásia selvagem, evitando o assassínio, a prisão pelo inimigo e o
sofrimento sem remédios (BRITO, 2001, p. 66).
Diversos registros da produção econômica da época pré-pombalina relatam o
processo contínuo de aprisionamento como forma de renovar a mão-de-obra escrava, que se
dizimava com os surtos de epidemias. Bessa Freire comenta que os índios foram sempre
considerados “uma droga do sertão”, que era arrancada do mato. Mas eles constituíam uma
“droga” especial, porque eram os únicos capazes de produzir outras “drogas”. Entretanto,
como as ações de apresamento consistiam em práticas violentas, a maioria dos indígenas era
assassinada. Apesar da controvérsia sobre o número de índios assassinados, desde o
“recrutamento” até a produção, Bessa Freire (1991, p. 34) afirma que um fato porém é
indiscutível: em setenta anos de colonização portuguesa os povos indígenas foram
exterminados do delta do Amazonas, da ilha do Marajó e do baixo Amazonas, obrigando os
portugueses a procurar índios na Amazônia Ocidental.
Na análise de Moreira Neto, em cem anos, desde o início da política pombalina
na Amazônia (1750) à criação da província do Amazonas (1850), o caráter étnico e cultural da
região amazônica muda de maneira radical e irreversível, a partir de meados do século XIX a
face da Amazônia brasileira se transforma radicalmente pela diminuição drástica do número
de índios tribais e destribalizados, que passam de maioria a minoria (MOREIRA NETO,
1988, p. 15).
54

Em meados do século XIX, consolida-se a ordem conservadora e latifundiária


no Brasil. Conforme o mesmo autor, foi neste período que o Brasil amazônico deixou de ser a
região marcada por um caráter indígena dominante e onipresente, à semelhança dos
altiplanos peruano e boliviano e de certas áreas da América Central e do México, para
assumir sua feição atual. (MOREIRA NETO, 1988, p. 15).
No Brasil independente, o interesse oficial pelos indígenas da Amazônia
permanece, ainda, com a possibilidade de tê-los como mão-de-obra, o índio como alternativa
aos escravos negros. Por conseqüência, a persistência dos colonizadores na imposição aos
indígenas do regime de trabalho escravo, traduzido como “dedicação a atividades produtivas”,
gerou toda sorte de resistência, uma vez que, no mínimo, alterava profundamente o modo de
vida dos nativos, considerando que, em geral, os indígenas tinham como prática o trabalho
comunitário e produziam apenas para atender às suas próprias necessidades internas.
Preconceituosamente, a historiografia oficial debochou da resistência dos indígenas, que se
recusavam aos trabalhos forçados, tachando-os de preguiçosos e outras adjetivações, negando
ser uma forma de resistência a recusa aos trabalhos forçados, como comenta Bessa Freire
(1991, p. 33):
Durante todo o período colonial centenas de revoltas estouraram em toda a
Amazônia, [...] Em geral, a historiografia oficial oculta a resistência indígena e os
índios são chamados de preguiçosos e indolentes porque se recusaram a fornecer
um sobre-trabalho para os colonos que não trabalhavam.
A escrita da história pelo elemento colonizador, a partir de representações que
os colonos faziam da resistência dos indígenas, resultou no preconceito atual para com os
povos nativos. Registros da época, que embasaram as posteriores narrativas históricas, eram
carregados de adjetivações usuais do elemento colonizador, as quais expressavam as
representações sobre o indígena e o motivo da falta de piedade do colonizador no avanço
sobre o mundo do outro. Alden (1970, p. 45), comentando alguns registros do século XVIII,
explica que:
Dos meados para o fim da década de 1720, Silva Nunes continuou a redigir longos
memoriais escolados em citações de autores clássicos, de juristas eruditos como
Solórzano Pereira e da anterior legislação régia, tentando sublinhar a bestialidade
e ao mesmo tempo apresentar as motivações dos colonos sob o melhor dos prismas.
Sustentava que os selvagens, de quem dizia que talvez fossem descendentes dos
judeus, “não eram verdadeiros homens mas brutos arbórios incapazes de
participarem da fé católica”. Eram “selvagens imundos, ferozes e tão vis que quase
não tinham nada de humanos”.
Detendo-nos mais precisamente na intervenção estrangeira sobre as culturas
nativas, temos, de um lado, as nações indígenas que habitavam a Amazônia, falando centenas
de línguas e, por milênios, transmitindo seus saberes e tradições conforme suas culturas; por
55

outro lado, os intrusos que, para obterem êxito em sua empresa colonial, viam-se obrigados a
modificar a situação, como forma de estabelecer sua hegemonia na região. Deste modo, para
o colono mandar e o índio obedecer, para o missionário ensinar e disciplinar, colonos e
missionários tinham duas alternativas: tentar aprender a infinidade de línguas indígenas, ou
estabelecer uma língua de comunicação regional (BESSA FREIRE, 1991, p. 35).
Como recurso, os portugueses buscaram uma língua variante do tupi, falada no
litoral brasileiro, o Nheengatu, que se tornou a língua de comunicação entre os portugueses e
os diferentes povos indígenas da Amazônia, e foi também definida como “língua geral”.
Imposta, inclusive, para comunicação com povos de línguas totalmente distintas. Como
afirma Bessa Freire (1991, p. 35):
Esta variante foi imposta também aos índios [falantes de línguas] Aruak e Karib
amontoados indiscriminadamente nas aldeias de repartição. E o Nheengatu, ainda
hoje falado na região do rio Negro, transformou-se na língua falada no Estado do
Maranhão e Grão-Pará, pelos portugueses, índios e mestiços.
Este foi um aspecto decisivo para o controle das populações nativas. A adoção
da “língua geral” favorecia, também, ao sistema instrucional, catequético, recurso de que se
valeram as missões religiosas, destacadamente os jesuítas, para ter acesso e controle destas
populações.
Considerando que para colonizadores e missionários as culturas nativas nada
valiam, exceto pelos conhecimentos que pudessem trazer lucro imediato, as ações de ambos
resultavam na desorganização social dos povos indígenas, decorrente de sua destribalização.
Os sobreviventes eram forçados a fazer uso desta “língua geral” como instrumento de
comunicação. Convém destacar, obviamente, que à substituição da língua acompanhava a
substituição de instituições, normas e valores por outros que não se referiam a nenhuma
cultura indígena, em particular, mas decorriam de uma cultura genérica e empobrecida, fruto
da situação colonial e de sua variante missionária (MOREIRA NETO, 1988, p. 43).
Um aspecto que favoreceu a adoção do Nheengatu como “língua geral” foi o
grande número de povos, cujas línguas eram do tronco lingüístico Tupi. O mesmo autor
descreve que:
A expansão da língua geral, principalmente em seus primeiros estágios, auxiliou a
atividade intelectual de missionários, especialmente os jesuítas, que se dedicaram
ao estudo das línguas indígenas da colônia. A presença maciça de grupos indígenas
de língua Tupi no litoral brasileiro deu azo para que fossem elaborados
vocabulários, gramáticas e outros instrumentos de domínio dessa língua. [...] As
comunidades Tupinambá da baía de São Marcos e da ilha de São Luís e os vários
grupos Tupi que se dispunham pela costa, em direção ao Pará, penetrando a foz e
os afluentes do baixo curso do Amazonas [...], justificavam o uso dessa língua como
instrumento de comunicação e de dominação colonial e missionária (MOREIRA
NETO, 1988, p. 43-44).
56

Com a destribalização, embora continuem essencialmente indígenas, essas


massas populacionais, já falantes da “língua geral”, passam a ter sua identidade negada,
“classificados” como caboclos - denominação genérica que persiste até hoje entre os
regionais. Essa expressão, que manteve intacta uma carga de preconceito, é designada
genericamente quando se faz referência a sociedades indígenas destituídas de seu modo de
vida tradicional. Índio, somente o arredio, isolado. A “língua geral”, enquanto língua
intermediária, será anulada, substituída pelo português durante a política pombalina, que
trataremos a seguir.
Fato é que, seja pela carga de preconceito para com os nativos, seja pela
necessidade do elemento colonizador garantir sua hegemonia, o desprestígio das línguas
nativas, extensivo à língua intermediária, não garantiu a estas sequer o status de língua, na
consolidação da nação brasileira. Mesmo restabelecido pela Constituição Federal de 1988, o
direito de os povos indígenas usarem sua língua, ainda hoje a população regional faz
referência às línguas nativas como sendo “gírias”; isto é, gíria é expressão ainda usada para
designar as línguas nativas. Esse aspecto marcará decisivamente a escola nas comunidades
indígenas, exemplo disso é o fato de os supervisores das Secretarias Municipais de Educação
terem proibido, terminantemente, em plena década de 1990, o uso da “gíria” na escola.
Um outro aspecto característico, ocorrido em determinadas regiões da
Amazônia, é que, conforme a densidade populacional de determinadas etnias, a língua destas
acabavam por exercer o papel de língua geral nesta região, como o Tucano e o Baníua. Apesar
disso, a cultura de contato levou a uma profunda erosão das heranças culturais dos grupos
étnico-culturais distintos. Tanto é que a categoria “caboclo” ou “tapuio”, falante da “língua
geral”, predominante na Amazônia no início do século XIX, era:
Menos o produto da preservação de uma cultura indígena, que do processo inverso
de perda de identidade étnica, substituída por uma cultura compósita, uma espécie
de cultura de contato. [...] a descaracterização das tradições culturais foi
necessariamente maior. O produto final, o tapuio, é compelido a despojar-se do
sentimento de pertencer a um povo e a uma cultura indígena em particular, não só
pela ação catequética e civilizatória [...] do missionário cristão, mas, também, pela
pressão de várias outras tradições tribais que integravam o aldeamento missionário
(MOREIRA NETO, 1988, p. 46).
Os indígenas, forçados a despir-se de sua identidade étnico-cultural, tornados
tapuio ou caboclo, denominação que chegou aos nossos dias, eram forjados por meio do
seguinte processo:
Os passos da dominação são bem conhecidos: o descimento, isto é, a transferência
do grupo indígena de suas áreas de ocupação tradicional para os aldeamentos
missionários, quase sempre localizados junto aos grandes rios ou no litoral, em
lugares mais acessíveis e mais expostos ao contato, onde se reúnem indivíduos de
grupos diversos: a sistemática de destruição dos modos tradicionais de organização
57

e do controle social do grupo e de sua herança cultural, pelo combate e eventual


eliminação de seus mitos, de seus pajés e tuxáuas tradicionais, e ainda da sua
língua, substituídas por rudimentos de valores e crenças cristãos, pela presença dos
próprios missionários e de seus prepostos indígenas, os “capitães”, pela introdução
da língua geral, e por outros mecanismos diversificados de dominação colonial
(MOREIRA NETO, 1988, p. 46).
Esta prática, com outros mentores-condutores, será repetida, mais tarde, no
processo de ocupação da Amazônia Ocidental, onde persistiu a denominação de caboclo aos
índios aliciados pelos seringalistas, na extração da borracha. Embora em ambos os momentos
os colonizadores não tenham obtido êxito no apagamento total das identidades étnicas, a
dominação pela sociedade colonial impôs às sociedades indígenas um processo de desgaste,
cujo resultado final é o índio genérico, empobrecido e marginalizado, o caboclo. Dada a
relevância que assume, no contexto das relações interétnicas, na Amazônia, o termo
“caboclo”, é significativa a análise do mesmo autor, ao tratar das expressões tapuio e caboclo:
Ambos os vocábulos, tapuio e caboclo, usados para definir o índio genérico,
aproximaram inevitavelmente desse conceito o índio que havia aderido às maneiras
dos brancos, com o abandono de seus hábitos e lealdades tradicionais, isto é, o
índio crioulo. Também por esta razão, [...] ambos os termos seriam, de modo quase
necessário, contaminado por uma conotação depreciativa e discriminatória como,
sem dúvida, parece ter ocorrido na Amazônia e nas demais regiões do país
(MOREIRA NETO, 1988, p. 54).
Por fim, a “língua geral”, ao substituir as várias línguas indígenas, rompeu com
a tradição oral, com muitas outras linguagens e formas de representar o mundo e, ao mesmo
tempo, não constituiu um veículo escrito para transmitir às novas gerações as experiências
passadas, apesar do Nheengatu ser dotado de um alfabeto organizado pelos jesuítas.
Conforme Bessa Freire, o processo de hegemonia da língua portuguesa,
suplantando a “língua geral”, somente se efetivará a partir de 1854. Esse processo ocorre após
muitos embates, dos quais os mais freqüentes opunham colonos e jesuítas. É o caso da
prolongada luta no Estado do Maranhão onde, nas constantes investidas junto a Coroa, os
colonos reivindicavam: primeiro, que se retirasse dos religiosos a faculdade de exercerem
autoridade temporal, política ou econômica dentro das aldeias; segundo, que se lhes
proibisse continuar a instruir os ameríndios na língua geral (ALDEN, 1970, p. 45).
Detendo-nos nas ações dos missionários, estes foram responsáveis pela maior
intervenção sofrida pelos indígenas, nos séculos XVII e XVIII, sobretudo com o processo de
aldeamento, que tinha o intuito de extrair as riquezas da floresta. Os aldeamentos missionários
tinham viabilidade, conduzido pelo carisma dos religiosos. Davam certo, conforme afirma
Moreira Neto (1988, p. 25), pois:
Aos olhos dos próprios índios, o missionário participava da natureza supranatural
dos xamãs e dos heróis culturais, mais que dos homens comuns. Mesmo no século
58

XVIII não seriam exceção os padres que consciente ou inconscientemente, [...]


Manipulavam as crenças e esperanças edênicas dos índios amazônicos.
O mesmo autor comenta que, neste período, a missão é o centro por excelência
de destribalização e de homogeneização deculturativa daqueles “restos de nações menos
bravias”, concentrados nos aldeamentos catequéticos. O produto final é o índio privado de
sua identidade étnica (MOREIRA NETO, 1988, p. 23).
Tal processo “civilizatório” não visava a emancipação, não consistia em
educação, mas em práticas de adestramento, amansamento, domesticação, enfim, integração
por baixo, por baixo da pirâmide social.
Os aldeamentos cristãos, sob a responsabilidade dos missionários,
constituíram-se em lugar de produção do índio genérico, destribalizado. Nesse espaço os
indígenas passavam por um empobrecimento cultural, eram forçados a abandonar suas raízes,
passando a desprezá-las como superstição, ignorância, atraso e fanatismo; a língua tradicional
era substituída pelo Nheengatu; a religião dos antepassados substituída por uma catequese
imposta pela disciplina e mantida pelos castigos; as normas reguladoras das sociedades
indígenas substituídas pelas normas padronizadas e empobrecidas do mundo ocidental.
Neste ponto, o uso da língua nativa constituiu um grande recurso para os
objetivos da Companhia de Jesus. Embora o Plano de Estudos, Ratio Studiorum, não
contemplasse o estudo da língua vernácula, havia uma relativa autonomia nos colégios junto
aos diferentes povos, sendo permitido o uso da língua vernácula e incentivado o seu domínio
como recurso de grande valia para o acesso ao povo.
Neste contexto, a adoção de uma “língua geral” constituiu-se um marco da
cultura colonial, no entanto, sob o método missionário e com a manutenção da presença
indígena. Aspecto este, que Pombal se empenhará para eliminar, pois veio a constituir-se um
entrave no processo expansionista da colonização.
No âmbito instrucional, as práticas deliberadas de modelação das consciências
assentaram-se na inculcação da cultura dominante. O modelo instrucional vigente na época,
estendido da Europa às colônias, consistia na imposição de hábitos, valores, costumes, de
forma abrupta, aos nativos desta terra, visando, exclusivamente, os interesses e a vontade dos
que estavam chegando. Estes decidiram promover alterações no outro, fazendo-os mais
parecidos aos que chegavam.
O modelo instrucional implantado no Brasil Colônia está ligado ao aspecto
religioso vigente no séc. XVI, em Portugal, cujo poder monárquico estava investido de
poderes religiosos. Assim, no entendimento da fé católica, à época, todas as terras
59

conquistadas, inclusive seus habitantes, eram pela graça de Deus, oportunidade de estender a
fé cristã aos bárbaros que, porventura, estivessem em tais territórios.
Há que se fazer uma distinção natural quanto ao tipo de educação e seus
destinatários, particularmente no que diz respeito a ação jesuítica, na região amazônica, onde
o interesse sobre o trabalho braçal do indígena estava em primeiro plano, na perspectiva dos
colonizadores. A educação destinada aos índios restringia-se ao elementar, ao necessário para
o melhor desenvolvimento da catequese e, conseqüentemente, para que não se contrapusesse
àquilo em que eram mais úteis: o trabalho.
Diante da natural ordem, que distinguia os seres mais dignos, de acordo com a
ideologia civilizatória ocidental da época, a educação de fato, ministrada nos colégios, era
restrita a poucos. Havia mecanismos de discriminação, que permitiam o acesso aos colégios,
somente aos filhos de casamentos legítimos de colonos e, principalmente, aos futuros
sacerdotes (os principais, na linguagem da época), ou a educação do “minúsculo estrato
social de letrados” que, de um modo geral, ajudava a perpetrar os interesses metropolitanos
portugueses no Brasil colonial (FERREIRA JUNIOR; BITTAR, 2000, p. 19).
Na colônia portuguesa, na Amazônia, evidencia-se a ambigüidade do projeto
colonial. Embora a Companhia de Jesus mantivesse, em primeiro plano, sua missão
evangelizadora - o fim com que os jesuítas vieram ao Brasil foi a catequese (BITTAR;
FERREIRA JÚNIOR, 2000, p. 454), expandir o cristianismo - entretanto, esta ação ocorria
integrada à empresa exploratória visando a obtenção de lucros com mercadorias
comercializáveis, tal como já explicitamos.
Assim, ao tornar cristãos os filhos da terra, os jesuítas tinham também como
princípio torná-los úteis ao sistema político da época, uma vez que a ação educativa concorria
para levar os indivíduos a uma integração harmoniosa como súdito no corpo político do
Estado (HANSEN, 2000, p. 25). Essa política católica era levada a efeito como catequese e
conquista espiritual das novas terras ocupadas pela expansão mercantilista da monarquia
portuguesa. Não se concebia o Estado, a economia, a cultura, a sociedade de forma
desvinculada da religião. Na prática, a ação catequética dos missionários atendia a objetivos
econômicos a serviço do colonialismo europeu, ou seja, por trás da obra da conversão e
evangelização dos índios ao cristianismo, realizado através da comunicação e catequese
(gramática, vocabulários e catecismo), estavam os interesses econômicos da empresa
colonial metropolitana (FERREIRA JUNIOR; BITTAR, 2000, p. 18).
Tanto era fato a participação dos religiosos na “empresa” econômica, que na
Amazônia eles se tornaram os maiores concorrentes dos colonos. O conflito entre colonos e
60

missionários foi grave, sobretudo com a situação desfavorável dos primeiros em relação aos
segundos, uma vez que a Coroa Portuguesa entregou o controle dos aldeamentos aos
missionários. E, numa região onde não é rico quem tem muitas terras, mas aquele que tem a
maior quantidade de índios (BESSA FREIRE, 1991, p. 45), os missionários sofriam ataques
freqüentes de colonos em suas aldeias de repartição, onde eram alojados os indígenas antes de
serem “alocados” para o trabalho. Conforme o mesmo autor, os missionários eram acusados
pelos colonos de negar-se a distribuir e alugar os índios de repartição aos moradores porque
esses índios eram todos empregados nas rendosas empresas missionárias.
Fato é que missionários e colonos puderam acumular riquezas às custas da
exploração na mão-de-obra indígena, embora isso nunca tenha ocorrido de forma tranqüila:
açoites até a morte, torturas de crianças indígenas e de mulheres, para que confessassem o
paradeiro de índios fugidos, longas jornadas de trabalho e fome constituíam uma prática
corrente na Amazônia (BESSA FREIRE, 1991, p. 47). Essas condições de trabalho e de vida
contribuíram para o extermínio dos indígenas. Aqueles que não eram mortos nos assaltos a
suas aldeias eram, desgraçadamente, explorados no trabalho escravo, até que suas forças se
extinguissem.
Em meados do séc. XVIII os indígenas ainda constituíam motivo de
preocupação, interesse e disputa. Aos poucos, foi se diferenciando o foco, uma vez que aos
colonos interessava expandir seus domínios territoriais e obter mais mão-de-obra escrava,
enquanto que entre os jesuítas tomava corpo o empenho de livrar os indígenas da escravidão,
reforçando sua missão de salvar almas através da catequese, sem descuidar do funcionamento
de suas propriedades. Em parte, a atuação missionária minimizava a violência contra os
indígenas. Ao valer-se de sua autoridade religiosa e política, os jesuítas aldeavam os indígenas
protegendo-os da ganância dos colonos. Este, entre outros aspectos, reforçou as medidas
tomadas por Marquês de Pombal contra os jesuítas. A expulsão da Companhia de Jesus, em
1759, quebra a maior força de resistência contra as ações de extermínio e apresamento dos
nativos da terra.
A expulsão da Companhia de Jesus dos domínios portugueses, na segunda
metade no séc. XVIII, atendeu, entre outros, os interesses dos colonos, dando-lhes maior
liberdade para a ocupação das terras e para o embate com os nativos. Os povos indígenas,
embora desrespeitados em sua cultura, tinham os jesuítas como seus intercessores, no que diz
respeito a sua integridade física. Alden contextualiza a trama que levou à expulsão dos
jesuítas, destacando a atuação de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal e,
também, governador e capitão-general do Estado do Maranhão, por sete anos e meio, desde
61

1751, constituindo-se num dos principais mentores da expulsão dos jesuítas, em 1759. O
mesmo autor comenta a atuação de Mendonça Furtado:
Fossem quais fossem as outras proesas que podiam tê-lo impressionado, ele
certamente se deu conta de haver desempenhado importante papel na tarefa de
convencer as mais altas autoridades régias, sobretudo seu irmão [...] de que os
jesuítas não eram mais úteis à Coroa e se tinham transformado em séria ameaça a
ela. Foi em boa parte graças a seus informes tendenciosos que a Coroa retirou dos
índios amazônicos o já tradicional manto protetor dos missionários, expondo o
gentio à exploração desenfreada, posta em prática pelos rivais seculares dos padres
(os colonos), apesar de uma lei que no papel deixava os indígenas em liberdade
(ALDEN, 1970, p. 60).
É difícil determinar qual era a “opinião pública” sobre os jesuítas no Brasil do
século XVIII, em parte, por falta de meios adequados de expressão, e, também, porque o que
se sabe das opiniões dos colonos vem-nos, principalmente, da pena de funcionários régios,
quase nunca imparciais. Enfim:
A carta régia de 3 de setembro de 1759, exilou definitivamente os jesuítas de todos
os domínios portugueses. [...] em 19 de janeiro de 1759 o Rei assinou uma ordem
confiscando todos os bens dos jesuítas do reino, sob o pretexto de que os padres
haviam insuflado a guerra guaranítica e o atentado contra a sua pessoa (ALDEN,
1970, p. 61,63).
Com o regime pombalino, nova ordem é imposta. Moreira Neto comenta que,
definitivamente, o fim da política não era o índio, mas a conservação e o aumento do domínio
colonial. Conforme o autor, o instrumento mais eficaz, concreto e durável na política
pombalina, o “Directório”, que devia ser observado nas povoações dos índios do Pará e
Maranhão, consistia um claro instrumento de intervenção e submissão das comunidades
indígenas aos interesses do sistema colonial. Neste sentido, amplia e completa a obra de
desorganização da vida indígena tribal inaugurada pelas missões (MOREIRA NETO, 1988,
p. 27). Tem origem, sob a ótica da historiografia oficial, um período considerado vazio na
história da Amazônia. Esse período compreende a época da desorganização da estrutura
missionária até a época da borracha.
A política pombalina pretendia, para os índios, algo semelhante à política
“moderna”, que vigorava até recentemente como política oficial do estado brasileiro - abolida
com a Constituição de 1988 - “integrar” os índios à sociedade nacional, exigindo destes a
“nacionalização” ou, ao menos, uma identificação aceitável ao que se pretendia nos domínios
portugueses. Neste aspecto, é marcante a pressão sobre as línguas nativas, como diz Moreira
Neto (1988, p. 26): Daí a insistência em proibir a língua geral e a obrigatoriedade do uso do
vernáculo.
As medidas adotadas por Pombal também foram vistas como novas bases de
colonização efetiva que, conforme Bessa Freire, pressupunha o cumprimento de uma paz
62

colonial, portanto, revisão da política de organização e exploração da força de trabalho


indígena, implicando a adoção de uma nova atitude:
A população indígena se constituísse num elemento importante na manutenção e
expansão dos espaços coloniais. Em outras palavras, Portugal, com uma população
bastante reduzida, ficou impossibilitado de exercitar a imigração de massas
metropolitanas, no que foi obrigado a confiar a segurança da região à própria
população local, através da “libertação” e “europeização” dos indígenas (BESSA
FREIRE, 1991, p. 56).
Conforme o autor, as medidas adotadas por Pombal tiveram como principal
característica a regularização do trabalho forçado dos índios e um profundo caráter
etnocêntrico: a tentativa de “portugalizar” a Amazônia, destruindo as diferenças e a alteridade
representada pelas culturas indígenas. Com base nas mesmas orientações pombalinas:
O Diretório proíbe o uso da língua materna de cada nação indígena ou da língua
geral - o Nheengatu - e obriga o uso da língua portuguesa nas escolas, bem como a
utilização obrigatória, por parte dos índios de sobrenome português. Os índios
eram obrigados ainda a construir moradias no estilo dos brancos, com divisões
internas onde possam “guardar, como racionais, as leis da honestidade e polícia”.
As habitações coletivas, de tradição milenar estavam proibidas (BESSA FREIRE,
1991, p. 57).
Porém, o diretório não mudou, substancialmente, a exploração dos indígenas.
As aldeias de “repartição”, antes controladas pelos jesuítas, transformaram-se em verdadeiros
currais, onde se depositava a mão-de-obra, conforme Bessa Freire (1991, p. 59):
Este sistema, na realidade, apenas modificou quem era o responsável pela
exploração da força de trabalho indígena. Os diretores de índios passaram a
monopolizar cada vez mais os escassos índios, fazendo-os trabalhar na extração de
drogas. As antigas aldeias, transformadas em povoados, passaram a ser conhecidas
como “vilas de índios de Diretor”.
Também o projeto pombalino fracassou. A imposição de um novo modelo não
se efetivou de todo. Segue-se, da queda de pombal até a independência do Brasil,
progressivamente, uma política antiindígena. Admitia-se o uso “livre” do trabalho indígena
com a condição de educá-los e batizá-los. Garantiam-se prêmios, a quem promovesse a
catequese, entre índios, ou os atraísse para as povoações, centros ou paróquias. As missões
continuaram com a prática de aproximação dos povos indígenas remanescentes, inclusive com
o uso da “língua geral” como recurso.
Apesar dos esforços coloniais, na ação sistemática de apagamento das
identidades indígenas e da dizimação (aos milhares) da população nativa, uma observação de
Bessa Freire (1991, p. 62) retrata, ainda, o persistente perfil do fenótipo do homem
amazônico:
Um dado importante a ressaltar é que, após a Independência do Brasil, o Amazonas
constituía a única unidade política que não havia sido portugalizada e que
permanecia majoritariamente indígena. Como afirmou Joaquim Nabuco, “os
portugueses vieram, viram, mas não venceram”. Esta situação vai durar ainda por
63

mais meio século e será o Estado brasileiro o encarregado de modificá-la, com uma
política igualmente colonialista.
No período imperial acontecerão ainda conflitos, ações devastadoras,
intencionais, preocupadas com a sobreposição, inclusive numérica, dos brancos sobre os
homens de cor. Enfim, a seqüência do relato do acontecido permite que se deduza, conforme
Brito (2001, p. 52), que:
O propósito de todos os colonizadores sempre foi escravizar através do domínio
físico, intelectual e político, jamais civilizar, levando, quase sempre, à destruição
dos valores da cultura primitiva considerada selvagem e atrasada. O encontro ou
contato interétnico entre o índio e o branco colonizador não tinha como finalidade
construir e desenvolver um sistema interétnico, mas desconstituir ou aniquilar os
grupos e as identidades étnicas existentes.
Após efetivado o domínio total sobre os territórios, bem como, sobre as nações
nativas e suas culturas, é estabelecida a hegemonia do discurso dominante, a hegemonia
cultural ou, nas palavras de Bessa Freire (1991, p. 36):
Silenciados os índios, os portugueses retomam a palavra. O primeiro ensaio da
história da Amazônia é de autoria de Bernardo Berredo, um “capitão de cavalos”
de nacionalidade lusa, que foi governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará
(1718-1722). [...] A partir de Berredo até os dias de hoje, a história da Amazônia se
resume a uma parcialidade primária “visão dos vencedores”.
Como conseqüência, tomando a análise, sob o aspecto dos saberes, das ciências
das civilizações amazônicas, com a vitimização de tais civilizações pelo processo violento de
dominação, foram extintos, com elas, diferentes estilos de vida, línguas, visões de mundo,
modos próprios de se relacionar, de se organizar; enfim, com a eliminação desses povos,
foram eliminadas culturas originais, com saberes milenares; apagados pela ânsia das nações
ocidentais em obter ganhos fáceis, domínios limitados à sua estreita noção de valor.
Com o domínio e a submissão de tais povos, foram interrompidos o
desenvolvimento de ciências construídas e aperfeiçoadas, através dos tempos, a partir das
riquezas naturais do ambiente, fato que afetou, inclusive, a maioria dos povos que
sobreviveram. Os povos remanescentes foram forçados a abandonar a dinâmica de suas
ciências de suas culturas, ou pela intrusão da cultura estranha, tiveram descontinuado as
condições autônomas de manifestação e bem viver. Fato é que a forma de intervenção
adotada, pelo elemento colonizador, marcou, decisivamente, o trato com as populações
nativas, deixando impregnados preconceitos que persistirão como emblemáticos nas relações.
Seja pela força ou pela natureza dinâmica das culturas, são visíveis as
mudanças no aspecto da cultura material. Houve uma apropriação pelos indígenas de
tecnologias comuns na região tanto que, à primeira vista, a impressão é de que há uma cultura
homogênea. Meggers (1987 p. 211-212), referindo-se a tal homogeneização, resultante do
processo de colonização, afirma que:
64

Uma das características mais surpreendentes da vida na Amazônia de hoje é a


ausência de diferenciação regional. Ao longo de todos os rios principais e alguns
tributários menores, o povo come a mesma comida, veste roupas semelhantes, vive
no mesmo tipo de casa e participa das mesmas crenças e aspirações. Tendo perdido
a habilidade de satisfazer suas necessidades com os recursos da floresta é obrigado
a comprar não somente panos, potes e panelas, facas e espingardas mas, também,
muitos gêneros de subsistência básicos, tais como açúcar, sal, feijão, e café.
Apesar das controvérsias que possam ser ponderadas frente a tais afirmações,
quem circula pelos rios da Amazônia não pode deixar de notar a semelhança de muitos
costumes entre a população tradicional, sejam eles indígenas, seringueiros ou demais
segmentos ribeirinhos. Entretanto, no cotidiano, as fronteiras étnicas persistem bem vivas. O
compartilhamento de recursos e tecnologias dá esta aparente semelhança, mas no contato, na
conversa com um indígena, ou com um seringueiro percebe-se a convicção que diferencia as
suas identidades. O diferencial para com os “outros”, sejam índios ou não-índios, é que
manifestam, quase sempre, com uma forte carga de preconceito.
Enfim, esta perspectiva deve ser ponderada. É inegável o poderio da cultura e
das tecnologias dominantes exercendo força depreciativa sobre o diferente. Diante disto, na
relação desigual, é inevitável que a parcela em desvantagem passe a desacreditar em seu
próprio sistema. Neste sentido, é ilustrativo o comentário de Bessa Freire (1991, p.35),
reportando-se a definição de outro autor: Por esta razão o escritor Márcio Souza definiu o
amazonense de hoje com muita amargura como um homem geralmente desfibrado e
incoerente, um farrapo atravessado entre dois mundos contraditórios, entre colonizador e
colonizado.
É preciso considerar sempre todo o processo truculento a que foram
submetidas as nações indígenas, para que a sociedade nacional se sobrepusesse com o
predomínio da cultura ocidental. Esse entendimento é necessário para que possamos
compreender as atuais práticas de exclusão promovidas pela sociedade brasileira, e seus
reflexos nos processos de educação. Daí, o lugar do indígena na história do Brasil, ou a sua
“ausência” na história, geralmente traduzida da seguinte forma:
“Os portugueses descobriram o Brasil.” Daí se infere que nossos antepassados são
os portugueses e o Brasil era apenas uma extensão de terra. “Havia” selvagens
arredios que faziam parte da terra e que “descobertos”, foram objeto de catequese.
São, desde o começo, o alvo de um apagamento, não constituem nada em si. Esse é
o seu estatuto histórico “transparente”: não constam. Há uma ruptura histórica
pela qual se passa do índio para o brasileiro através de um “salto” (ORLANDI,
1990, p.56).
Como conseqüência, temos hoje uma cultura dominante, enxertada sobre a
população amazônica, aceita pelos brasileiros sem discussão, na qual é reproduzida a versão
que os portugueses deram da história colonial:
65

Na realidade, a portugalização recente da Amazônia não foi apenas um processo de


esmagamento das línguas indígenas, uma ruptura dos veículos de transmissão de
experiência histórica. Foi além disso a montagem de toda uma ideologia
colonizadora que baniu a questão indígena do curriculum oficial das escolas, dos
meios de comunicação e da memória do povo que hoje vive - sobrevive - na
Amazônia (BESSA FREIRE, 1991, p. 36).
Embora a população nativa da região ocidental da Amazônia, sobretudo a
região do Alto Juruá e Purus, não tenha sofrido ação direta nos primórdios da exploração
amazônica, principalmente a ação dos missionários, a cultura geral, dimensionando os
preconceitos, resultado de mais de dois séculos de colonização, acompanhou a investida em
direção às últimas fronteiras, até a definição dos limites do Brasil com Peru e Bolívia. O
extrativismo da matéria-prima da borracha foi o motor para que, em meados do século XIX,
brasileiros de um lado peruanos e bolivianos do outro, encurralassem os povos indígenas
refugiados nas cabeceiras dos rios Juruá e Purus.
Portanto, nesta primeira fase da colonização, que abrange a Amazônia como
um todo, a instrução a que os indígenas foram submetidos atendia exclusivamente interesses
dominantes. Essa educação era restrita ao elementar, centrava-se na catequese, e visava
apagar as culturas para tornar os indígenas subservientes aos interesses econômicos, políticos
e religiosos dos invasores.

2 A “ocupação” da Amazônia ocidental e o processo de “apagamento” do indígena

A exploração colonial da região que compreende os altos rios Juruá e Purus,


como nos referimos acima, é situada no segundo momento da colonização da Amazônia,
momento esse que se inicia em meados do século XIX. Para a empresa colonial ele constitui
uma simples extensão do processo de “conquistas” instalado no início do século XVII.
Relatos históricos sobre, a Amazônia ocidental registram:
Desde o começo do século XIX, [por]exploradores e comerciantes itinerantes vindos
de Belém, Manaus e de centros urbanos localizados ao longo do rio Solimões [...]
Durante suas viagens, comercializavam com membros de populações nativas que
habitavam nas margens dos rios[...] trocavam bens industrializados por produtos
florestais (salsaparrilha, copaíba, piracucú, carne de caça, peles, ovos e gordura de
tartaruga, castanha e baunilha) que encontravam demanda no mercado regional;
procuravam, em alguns casos, escravizar índios, que eram aproveitados durante os
trabalhos da floresta e/ou, no caso de muitas mulheres e crianças, vendidas às
famílias abastadas dos centros urbanos (AQUINO; IGLESIAS, 1994, p. 6).
A exploração direcionada para obtenção da borracha (“goma elástica”) passa a
ser o principal objeto de interesse na região ocidental da Amazônia brasileira, a partir de
meados do século XIX e, por mais de um século, verteu riquezas e sangue que impulsionaram
66

o capitalismo, as grandes indústrias, os lucros de empresários com nenhum compromisso com


as pessoas e com a região de onde era extraída tal riqueza. A corrida pelos lucros fáceis, pelas
riquezas amazônicas, em territórios, tomados à força, na forma de assalto, pilhagem, teve
como conseqüência mais drástica a vitimização de indígenas e nordestinos, explorados e
escravizados no trabalho extrativista. Quando a empresa exploratória deixa de render
compensações ao capitalista, este sai de cena. Restam, então, como saldo para a região,
pequenas comunidades famintas com seus sistemas e valores socioculturais desacreditados,
apagados por tais práticas colonizatórias truculentas, até que surja uma nova “fonte” a ser
explorada por novos aventureiros.
A primeira frente de exploração “estrangeira”, na região, teve brasileiros como
executores. Entretanto, os principais beneficiados, estabelecidos na ponta inicial do processo
que dava suporte, entre a célula extratora-seringal e o mercado externo europeu, eram
portugueses. Estes, enquanto comerciantes proprietários das casas aviadoras, eram os
organizadores indiretos da indústria extrativista. Isto porque, o aviamento era a sua tarefa
primordial. Portanto, o português era o primeiro intermediário entre o produtor e o
consumidor, conseqüentemente, o grande beneficiado pelo extrativismo, sobretudo por manter
o monopólio sobre a extração, definindo os preços, e garantindo seus lucros com o pagamento
em mercadorias. Trataremos com detalhes, mais adiante, do sistema de aviamento.
O segundo intermediário do processo era o brasileiro, seringalista, patrão que
ficava com o trabalho sujo de gerenciar a tomada, a “limpeza” e a exploração de territórios e
da mão-de-obra indígena e nordestina. Estes organizaram frentes que subiam os rios em busca
de seringueiras6, árvores produtoras do látex para extração da goma elástica. Essas frentes
avançaram sobre os territórios das últimas nações indígenas isoladas da Amazônia. Territórios
indígenas, porém já delimitados, no século XIX, como terras bolivianas. Com o avanço de
brasileiros sobre estas terras, estabeleceu-se um processo de disputa com os países vizinhos:
Bolívia e Peru, disputa, essa, que resultou na tomada da região para o Brasil, nos primeiros
anos do século XX.
As circunstancias da disputa pela região, para as nações indígenas, traduziram-

6
A Seringueira ou seringa, consiste na hevea brasiliensis, da qual, é retirado o látex. Nativa da Amazônia:
cresce esparsa na mata, exigindo a abertura de “estradas” que fazem a ligação entre as árvores e a casa do
seringueiro. A casa é construída na beira de um rio ou igarapé, em local denominado colocação; um conjunto
de colocações forma um seringal, cujo ponto central é a colocação onde está localizado o barracão do patrão
(armazém de mercadorias, escritório das famosas cadernetas nas quais anota-se as quantidades de borracha
entregues e as mercadorias retiradas por cada seringueiro) [...] A seringueira é sulcada e sua seiva escorre
como num ferimento raso que não mata; ela é perene e a mata deve permanecer intacta para que o sistema de
extração possa reproduzir-se (RANGEL, 1994, p. 40, 45). Tal organização espacial e de prática de coleta
assentou-se em conhecimentos tradicionais indígenas.
67

se em tragédia, pois eles não dispunham de aparato militar para resistir aos invasores e já não
tinham para onde fugir. Os brasileiros avançavam subindo os rios e, em direção oposta,
vinham os peruanos, descendo em busca do caucho7, árvore que era destruída para extração
da goma elástica. Estes últimos eram exploradores sem a preocupação de fixar posse nos
locais que exploravam. Eram caçadores de árvores, passavam pela selva extraindo,
derrubando, destruindo (RANCY, 1992, p. 38), sobretudo a população nativa. Os caucheiros
ficaram na lembrança dos sobreviventes indígenas pelas atrocidades que cometiam. Deste
modo, os indígenas que fugiam dos brasileiros eram encurralados pelos peruanos que, com
práticas tão ou mais cruéis que as dos brasileiros, destruíam comunidades, aliciando povos
para atacar outros, no intuito de “limpar” a área para extração do caucho. De acordo com
relato dos professores indígenas do Acre:
Os caucheiros peruanos andavam pelas matas em busca de caucho e os nordestinos
subiam os rios em busca de seringa. Com essas duas frentes de invasão, a situação
das nações indígenas piorou bastante. Quando os índios tentavam fugir de uma
invasão, davam de cara com outra. Os invasores vinham a procura de seus
interesses: a riqueza do caucho e da borracha (KAXINAWÁ, 2002, p. 92).
Na descrição de Aquino e Iglesias, a exploração das extensas áreas de floresta
banhadas pelas bacias formadoras dos altos rios Purus e Juruá, desenrolou-se, sobretudo, a
partir das duas últimas décadas do século XIX, período em que é intensificada a penetração
das duas frentes de expansão extrativistas: a itinerante e de curta duração, dos peruanos, que
visavam a exploração do caucho e de outros produtos florestais, como peles de animais e
madeira-de-lei, e a outra, maciça e duradoura, constituída por brasileiros que passaram a
trabalhar nos seringais. Ambos adotaram práticas similares no ataque às comunidades
indígenas, conforme os mesmos autores:
A passagem dos caucheiros pela região do Alto Juruá foi marcada pela violência
extrema contra as populações nativas. Nas suas perambulações pela floresta,
comumente promovida nos meses da estação seca (maio a setembro), os caucheiros
promoviam correrias contra as populações indígenas, procurando dizimá -las e
amedrontar seus integrantes (sobreviventes) para forçá-los a abandonar seus locais
de moradia. Por outro lado, índios eram capturados e escravizados para
desempenharem diferentes tarefas durante as expedições (às vezes até cairem
mortos por esgotamento físico e maus-tratos) [...] Os caucheiros freqüentemente se
aproveitavam de tradicionais conflitos inter-tribais, aliando-se a uma das partes,
fornecendo-lhes armamento, munição e outros produtos industrializados para que
realizassem correrias e escravizassem membros das populações derrotadas
(AQUINO; IGLESIAS, 1994, p.8).

7
O caucho, castilloa elástica, árvore mais comum nas matas da Bolívia e do Peru, cuja exploração consistia em
outra forma de extração do látex, era feita derrubando a árvore depois do que era atorada de metro em metro;
abria-se no chão cavidades rasas retangulares nas quais eram depositadas durante uma semana até que
escorresse todo o látex. [...] Deste modo, em pouco tempo esgotava-se o cauchal. Como as árvores do caucho
crescem em grupos separados uns dos outros, os caucheiros deslocavam-se ao esgotamento do
cauchal.(RANGEL, 1994, p. 39).
68

Considerando que a ação dos brasileiros, seringalistas e seringueiros foi mais


duradoura, pois estes permaneciam nos seringais para o extrativismo contínuo, as suas
práticas de destruição da organização sociocultural indígena também foi contínua e
permanente, conforme Aquino e Iglesias (1994, p.8):
A abertura dos seringais [por brasileiros] também foi marcada pela realização de
violentas correrias. Neste período inicial, os membros das populações nativas foram
simplesmente mortos ou expulsos das terras que imemorialmente ocupavam. [...]
alegavam que necessitavam dar segurança para que os seus seringueiros
trabalhassem com tranqüilidade nas colocações localizadas no interior da floresta.
Para tal patrocinavam expedições fortemente armadas com os objetivos de
aniquilar os caboclos brabos que habitavam malocas localizadas nos limites e nas
proximidades de seus seringais, assim como, de afugentar os sobreviventes para as
cabeceiras dos rios e igarapés. Outros proprietários e patrões firmavam acordo
com caucheiros peruanos, permitindo-lhes que explorassem os cauchais existentes
em seus seringais em troca do extermínio ou da expulsão das populações indígenas.
Persiste, nos dias atuais, entre a população regional, sobretudo entre os
seringueiros, o uso do termo caboclo para designar os indígenas, que são distinguidos como
caboclo manso e caboclo bravo, sendo que só o segundo é designado como “índio”. Já entre
os indígenas, é usado o termo “cariú”, para designar os não-índios, ou nawá 8.
O extermínio das populações indígenas que povoavam a Amazônia ocidental,
tal como na primeira invasão colonial, teve como principal causa os massacres armados,
agravados pelo acirramento dos conflitos inter-tribais e pela introdução de doenças, até então
inexistentes, entre a população nativa, como a gripe, o sarampo, a hepatite, a tuberculose e as
doenças venéreas. Ribeiro (1996, p. 59) observa que:
Grande parte das tribos do Juruá-Purus desapareceram antes que fosse possível
qualquer documentação sobre seus costumes; de muitas delas só se conhece a
crônica das violências de que foram vítimas – crônicas, aliás, quase idênticas pois
os mesmos fatos se repetiam com uma tribo após outra.
Tal tragédia foi o motivo do desaparecimento de dezenas de nações, mas, no
discurso oficial, o relato será amenizado em favor da “conquista” do território acreano. O
resultado desta corrida pela conquista de territórios, conforme levantamento realizado pelo
Conselho Indigenista Missionário (2001, p. 223) - feito apenas em registros documentais –
aponta que desapareceram, somente no Estado do Acre, 32 povos. Restam, hoje, 14 povos no
Estado. Se considerarmos as bacias hidrográficas dos rios Juruá e Purus como um todo,
conforme estudo feito por Picolli (1993), as fontes documentais registraram a existência de
103 grupos étnicos em toda a região, hoje, são menos de 30 povos remanescentes. Entretanto,
se levarmos em conta que os recursos injetados na região eram destinados, exclusivamente,

8
Sobre o termo “nawá”, Coffaci de Lima (1994, p. 4) comenta que entre os grupos pano, sobre os quais há
registros etnográficos, é usado tanto para a auto quanto para a alo-referência. Nawá significa num gradiente, o
“nós” o “outro” (grupos pano) e o “estrangeiro” ou “inimigo”.
69

para extrair riquezas, conseqüentemente, as expedições eram formadas somente por


exploradores, armados para enfrentar resistências. Neste embate, os indígenas, em
desvantagem bélica, ficaram entregues à própria sorte. Muitos povos foram massacrados sem
que tenha ficado qualquer registro. Por isso, é impossível precisar o número dos povos
desaparecidos, também, nesta região.
Sob a ótica econômico-capitalista, a região dos altos Juruá e Purus terá a sua
importância no contexto de exploração das riquezas da Amazônia, a partir de meados do
século XIX, época em que já não resta dúvida quanto ao comprometimento da indústria
capitalista com a borracha natural como matéria-prima.
A economia amazônica passa a ser movimentada pelo sistema de “aviamento”,
como referido acima, controlado, ainda, por portugueses. Esse aviamento consistia num
sistema de crédito informal, sem dinheiro, no qual, negociantes sediados em Belém ou
Manaus supriam de mantimentos a empresa coletora de “drogas do sertão”, posteriormente de
borracha, para receber em pagamento, ao fim da expedição, o produto físico recolhido;
sistema que movimentou toda a economia amazônica da fase da borracha. Como
intermediário entre estes comerciantes das capitais, estabeleceu-se, no interior, o seringalista,
mais conhecido como “patrão”, que arregimentava os trabalhadores. Entre estes últimos e os
“patrões” firmou-se a relação mais difícil, de total dependência, dado o vínculo exclusivo com
o barracão do patrão, onde os trabalhadores empenhavam seu trabalho em troca de
mercadorias. Sobre esses trabalhadores, Aquino e Iglesias (1994, p.6) observam:
Desde as últimas décadas do século XIX, o problema da escassez de mão-de-obra
para a ocupação dos seringais foi resolvido através da maciça importação de
nordestinos oriundos do interior cercado pelas fazendas de gado e arrasado pelas
secas prolongadas. Segundo cálculos de Paul Le Cointe, diretor do Museu
Comercial do Pará, essa migração pode ter envolvido aproximadamente 100.000
pessoas (40.000 no Vale do Juruá e 60.000 no Vale do Purús) durante o período de
apogeu da economia da borracha no Brasil (1870-1912).
O isolamento e a dependência não permitiam o estabelecimento de relações
monetárias. Consequentemente, firmou-se uma relação em cadeia de exploração, pois sem
liberdade e sem concorrência, os aviadores, em primeiro plano, e os patrões, em linha
intermediária, estabeleciam os preços, tanto da borracha, quanto da mercadoria com a qual era
pago o trabalho do seringueiro. Os trabalhadores eram mantidos “em débito” permanente. O
“patrão” detinha a posse da contabilidade que não havia como ser fiscalizada ou contestada
pelo trabalhador, por este ser analfabeto.
É nesse contexto que se assenta nossa afirmação de que, na Amazônia
ocidental de forma alguma interessou à sociedade regional, que se estabeleceu a partir do
70

mando dos seringalistas, a instrução dos indígenas. O impedimento de ter acesso às letras e
números, a que comunidades indígenas estavam submetidas, até época recente, sustentou o
sistema de servidão.
O seringalista produzia os números, de acordo com os seus interesses,
reduzindo o trabalhador a uma situação de dívida perpétua, irresgatável. Sendo o patrão a
única autoridade, valia a sua “lei”. Ao trabalhador, indígena ou nordestino, desprotegido e
endividado restava a servidão total. Não podia afastar-se enquanto não pagasse suas dívidas;
fugir era impossível pela distância a percorrer, buscar outro patrão não era possível devido ao
acordo firmado entre patrões, de não aceitarem empregados antes destes saldarem suas
dívidas. Confirmando o esquema de cativeiro, extensivo aos indígenas, os patrões adotavam
táticas, como relatam os indígenas:
Felizardo [Felizardo Cerqueira] “amansava” caboclo e depois botava a marca FC
para os outros patrões saberem que aquele caboclo era dele, que ele que tinha
amansado. Nicolau Costa, Regino, Chico Curumim, Romão Sales, Valdemar
Damião, esses caboclos Kaxi mais velhos, ainda carregam essa marca do Felizardo
no braço (KAXINAWÁ, 2002, p. 108).
Embora o discurso oficial insista em minimizar a participação indígena no
empreendimento extrativista no Acre e região, lembrada mais como obstáculo selvagem -
fácil de transpor, devido à inferioridade militar - para a expansão capitalista/extrativista na
Amazônia, qualquer análise mais detalhada constata que:
A sociedade que se implanta ali constrói-se durante um século sobre território e
trabalho indígena. Mesmo sendo a região um canal de chegada de migrantes, o
trabalho indígena não pode ser dispensado. Os índios foram incorporados nos
trabalhos dos seringais, não enquanto homens isolados mas, enquanto
comunidades; [...] os conquistadores dependeram do conhecimento indígena para
dominar a região (RANGEL, 1994, p. 48).
Assim, a “empresa” seringalista assentou-se nos territórios indígenas, valeu-se
dos saberes e do trabalho indígena, mas o nordestino é que será lembrado como trabalhador,
como seringueiro. Mesmo assim, não se pode negar a grande leva de nordestinos deslocados
para a região, sobretudo a partir da década de 1870, atraídos por campanhas que prometiam
muitos ganhos e benefícios, promessas logo desfeitas, ao se perceberem presos a um sistema
de exploração de retorno impossível. Vindos aos milhares para a Amazônia, os nordestinos
eram oriundos da zona sertaneja do Ceará, complementada por elementos da Paraíba, do Rio
Grande do Norte e de Pernambuco (RANCY, 1992, p.65). Eles foram explorados tanto no
trabalho escravo quanto como combatentes contra indígenas e bolivianos, conforme relatam
Aquino e Iglesias (1994, p.6):
Os governos Imperial e da Província do Amazonas, bem como as casas-aviadoras
de Belém e Manaus possibilitaram o direcionamento do fluxo migratório (composto
principalmente por homens solteiros) para os afluentes dos altos rios Acre, Purús e
71

Juruá. A inauguração de linhas regulares de navegação a vapor, ligando Belém e


Manaus aos principais rios da região, veio a facilitar o transporte desses indivíduos
para o povoamento dos seringais. Aquelas mesmas casas-aviadoras se
encarregaram, por outro lado, de garantir o abastecimento dos barracões dos
patrões com produtos industrializados, bem como o escoamento e a
comercialização da produção de borracha.
A estes trabalhadores ludibriados e a seus patrões a historiografia oficial
atribuirá o feito do “desbravamento” da região. Nesta mesma narrativa oficial, é esquecido ou
abrandado o feito - não tão nobre - dos “heróis” desbravadores e, cinicamente, só se refere ao
indígena afirmando que este pouco contribuiu para a formação da atual sociedade acreana.
São comuns relatos tipo:
No que se refere à intensidade desta participação [indígena], é necessário ressaltar
que o Acre se apresenta de forma singular se comparado ao todo amazônico [onde
a] participação nativa ajudou o português a formar o homem regional amazônico.
[...] Já no Acre [...] em razão da presença nordestina [...] a participação indígena
na formação étnica do acreano tem sido pra ticamente nula (RANCY, 1992, p. 49,
54).
Portanto, na versão oficial é esquecido que os heróis desbravadores do Acre
não tiveram nenhuma compaixão para com as comunidades indígenas e, mesmo quando
lembram que indígenas foram trucidados pela empresa seringalista brasileira e pelos
caucheiros peruanos, que serviam de mão-de-obra descartável para esta empresa, não se
associa tal genocídio aos heróis que se beneficiaram com a “empresa” e ficaram registrados
como os construtores da história. Tanto que é comum, entre historiadores, a versão na qual a
Amazônia era um imenso “vazio”, já os invasores, estes têm a sua intervenção ressignificada
pela adoção de terminologia que dá caráter positivo, heróico aos seus feitos “desbravadores”.
São comuns narrativas como:
A Amazônia como região desabitada e próspera em árvores detentoras da goma
elástica, começou atrair exploradores que, motivados pela corrida da borracha,
realizaram o seu desbravamento, oportunizando a região a supremacia produtiva,
além de ter permitido que o Acre se tornasse brasileiro (RANCY, 1992, p. 14).
São comuns narrativas como esta que corroboram o discurso dominante,
justificando a idéia de que a Amazônia era “desabitada”. Desse modo, apaga-se da história o
aspecto perverso dos surtos intensos de ocupação; os massacres que acompanharam estes
surtos e “limparam” as áreas, tornando fato o discurso de negação, que esconde a existência
de povos. Admitir povoações seria um complicador para livre empresa e ao “progresso”.
Quanto aos surtos ou períodos que levaram o desastre para a população indígena, Oliveira
(1991, p. 17) confirma:
A economia extrativista da borracha, cuja fase mais produtiva estendeu-se de cerca
de 1870 a 1910, foi responsável pelo desaparecimento de mais da metade, talvez do
total de índios da região. Nos poucos anos de revitalização desta atividade, durante
a segunda guerra mundial, os efeitos negativos foram quase equivalentes. Nos
72

últimos anos, registrou-se nova situação de crise para todos os grupos indígenas da
Amazônia.
Com o avanço extrativista sobre a Amazônia Ocidental, no apogeu da
economia da borracha (1870 a 1910), a região foi assaltada por uma febre de lucros sem
precedentes. Como mencionamos acima, a região, sobretudo a que hoje corresponde ao estado
do Acre, num primeiro momento foi alvo de disputa entre brasileiros, bolivianos e peruanos.
Em 1867, o Brasil reconheceu, oficialmente, como boliviano tal território. Mas, exploradores
brasileiros, sobretudo donos de casas aviadoras e empresas de navegação, apoiados pelo
governo do Amazonas e aproveitando-se de grave seca, ocorrida na região nordeste do Brasil,
em 1877, incentivaram a migração de nordestinos para trabalhar como mão-de-obra na
extração do látex. Desse modo, aumentavam a densidade populacional de brasileiros para
ocupar a região.
A empresa extrativista sempre esteve associada às condições peculiares da
região, sobretudo quando se trata de locomoção e de transporte. Os rios e as chuvas foram e
continuam sendo essenciais para a vida e para a economia na região, uma vez que só é
possível a navegação em seus leitos com a alta precipitação pluviométrica, no período de
novembro a abril, denominado “inverno”. As águas do período chuvoso possibilitam o
escoamento dos produtos acumulados no verão, de maio a outubro. Desse modo a indústria
extrativista assentou-se, de acordo com Rancy (1992, p. 15):
No equilíbrio das duas estações, uma vez que o período seco, ou verão, apesar de
favorável e necessário à produção, não permite a navegabilidade de embarcações
de médio e grande porte. Este transporte, exclusivo no período chuvoso, é o
responsável ainda hoje pelo abastecimento dos seringais e pelo escoamento da
matéria-prima produzidas nestas unidades (RANCY, 1992, p. 15).
Portanto, a vida de grande parte da população da região ocidental da
Amazônia, sobretudo no Estado do Acre, tem dependência direta dos afluentes da margem
direita do Amazonas, o Juruá e o Purus, complementada pelo rio Acre, afluente do Purus.
Vias fluviais, por meio das quais os colonizadores-extrativistas avançaram sobre a região.
Considerando a persistência da empresa extrativista, apesar das limitações na
locomoção, permite que se tenha uma idéia da importância da região do Acre, no final do
século XIX, tanto que a produção de borracha, na área que hoje corresponde a este Estado,
correspondia a 60% da produção de toda a Amazônia. Esse fato motivou o governo do
Amazonas, apesar da isenção do Governo Federal, a financiar o Movimento Insurrecional
denominado “Revolução Acreana” que tornou a região “Estado Independente do Acre”, em
1902. A definição da soberania sobre a região só ocorreu com a atuação do Barão do Rio
Branco, sob o comando da diplomacia brasileira, articulando o desfecho sobre a polêmica
73

entre Brasil e Bolívia, finalizada em 1903, quando o Brasil comprou o território da Bolívia,
em acordo diplomático, que ficou conhecido como Tratado de Petrópolis.
Em 1904, a região passou a constar sob um novo modelo político
administrativo, entre as unidades da Federação, recebendo a denominação de “Território do
Acre”. Esse modelo perdurará até 1962, com a elevação do Acre à categoria de Estado.
A partir de 1910, a indústria extrativista entrou em crise por causa da
concorrência com produtos mais baratos vindos da Ásia. Essa crise foi acentuada após a 2ª
Guerra Mundial, fato que desarticulou um pouco o sistema de concentração das propriedades
na mão de seringalistas e o domínio destes sobre a população local. Na década de 1920, a
produção de borracha na Ásia retirou a hegemonia da produção brasileira. Entretanto, na
década de 1940, o Brasil aliado às potências imperialistas, estabeleceu o monopólio estatal
sobre a produção da borracha, deslocando, ainda mais, trabalhadores nordestinos para a
Amazônia, no intuito de suprir, com borracha, a indústria bélica dos Estados Unidos da
América e seus aliados. A exploração dos trabalhadores permaneceu a mesma, considerando
que o Governo apenas substituiu o papel das casas aviadoras, permanecendo os patrões como
intermediários e exploradores da mão-de-obra. Terminada a Guerra, a produção da borracha
perdeu sua importância. Em algumas localidades da região do Estado do Acre, a indústria
extrativista, em menor escala, passou a ser complementada com a coleta da castanha.
Enfim, a região foi formada, sob vínculos de dependência, primeiro dos
grandes capitalistas, donos das casas aviadoras sediadas em Manaus e Belém e,
posteriormente, a partir da década de 1940, da intervenção governamental. Com o declínio do
extrativismo, a manutenção do lucro fácil dos empresários (comerciantes) da borracha é
depositada no governo, com a garantia de incentivos que permitiam manter a rentabilidade
dos intermediários. Passou-se a usar argumentos de cunho social como “manutenção de
empregos”, para manter um sistema que, até então, não provera nenhuma forma de benefícios
para a região. Na verdade, esses empregos consistiam sistema de servidão, tal como
explicitado acima. O subsídio tornou-se insustentável, uma vez que as indústrias do pós-
guerra, na mão da iniciativa privada, obtinham a matéria-prima - borracha vegetal - de forma
muito mais barata com a importação, do que com o extrativismo na Amazônia, afastando, de
vez, a viabilidade desta atividade econômica, na região, como fonte de altos lucros.
Neste meio tempo, os indígenas negociavam sua integração, como brasileiros,
para vender o que lhes restou: sua força de trabalho, única via que lhes foi oferecida como
alternativa de sobrevivência, uma vez que seus territórios foram loteados entre os
seringalistas. Não mais com suas identidades étnicas, enquanto nações de tradição milenar, e
74

sim, como caboclos, uma condição sociocultural inferior. Não restou outra alternativa aos
povos nativos desta região, pois sobreviver no território de seus antepassados pressupunha
assumir esta nova identidade, submeter-se aos exploradores no trabalho escravo, negando sua
identidade e “calando” o uso de sua língua nativa bem como o uso de qualquer manifestação
de valores culturais próprios. Foram, portanto, forçados a integrar-se à cultura do explorador.
Como comenta Wagley (1977, p. 50):
A escravização indígena perdurou ao longo dos tributários do Amazonas até mesmo
durante o nosso século [XX]. A escravatura é, portanto, um fenômeno relativamente
recente no Vale Amazônico e os descendentes de escravos índios ocupam uma
posição econômica social inferior, comparável à do negro em outras regiões do
Brasil.
A negociação da “integração”, decorrente do desejo de deixar de ser índio,
como estratégia de sobrevivência na época do cativeiro, foi traduzida como virtude indígena,
na narrativa histórica da sociedade dominante, tal como é citado por Kaxinawá (2002, p. 221):
O maior desejo que têm os Kaxinawá, ou quaisquer outros índios, desde que entram
em relações amistosas com os cariús é o de ser batizados, pois observam logo que
os seringueiros só matam os que não são, embora esses já sejam amigos ou mansos,
como dizem aqueles que não têm o menor escrúpulo de atirarem num índio pagão,
embora manso, só pelo prazer de verificar a boa pontaria de seu rifle. [...] O índio
batizado identifica-se logo com os seringueiros, julga-se um outro homem, um
“carua” ou civilizado, e não admite que o chame mais de índio.
O processo de descaracterização indígena passou também pelo processo de
troca de nomes pessoais, ou seja, tanto os patrões quanto o Estado não admitiam as
denominações indígenas. Por exemplo, entre os Huni Kuĩ, os nomes eram e são escolhidos
pela avó ou avô, paterno ou materno quando a mãe está grávida (KAXINAWÁ, 2002, p.
221). Na convivência com a sociedade regional estes valores são ignorados pelos não-índios,
que os ridicularizam e negam-lhes este direito. Conseqüentemente, os nomes passam a ser
escolhidos por não-índios; os brancos que mantinham contato com a comunidade. Essa prática
teve início com os “brancos”, que ao contatarem os grupos atribuíram nomes, por vezes
pejorativos, com os quais os povos ficavam sendo conhecidos, por exemplo, o povo que se
autodenomina Asheninka foi denominado Kampa (provavelmente em função do costume
deste povo, em determinado período do ano, de acampar nas praias dos rios); o povo que se
reconhece como Huni Kuĩ foi denominado pelos “brancos” como Kaxinawá (gente do
morcego). Enfim, a maioria dos povos foram nomeados ao sabor da conveniência, ou
ignorância, dos colonizadores.
No decurso do século XX, a situação vivida pelos povos indígenas
remanescentes foi de submissão aos patrões instalados sobre seus territórios. Esta presença
contínua do invasor levou a um processo de dispersão e desagregação quase sem volta, como
75

comenta Rangel (1994, p. 4): A depopulação brutal e o distanciamento maior entre as


diversas aldeias, provocado pela presença dos seringais, permitem falar em traumatismo
social, marca de grande intensidade que provocou perturbações desagregadoras.
Tal como mencionamos no item anterior, referindo-nos à Amazônia como um
todo, também no Acre - exceto os povos em regiões mais afastadas, como a região dos
Asheninka - o processo intenso de pressão sobre os indígenas e a assimilação, pelos não-
índios, de recursos e saberes indígenas levou, em primeira instância, a uma homogeneização
nos modos de vida entre indígenas e não-indígenas. Constatação também apontada por Rangel
(1994, p. 77):
A especificidade do processo amazônico parece ter sido a emergência de uma
cultura cujas características acabam por homogeneizar o modo de vida indígena e
sertanejo: a economia de subsistência, as técnicas agrícolas, particularmente a
coivara, o uso de instrumentos indígenas para caça e pesca, a construção de casas
altas quase sem paredes, inventadas pelos seringueiros, o recurso ao pajé ou
rezador para todos os males, as lendas, a vida familiar e o compadrio, os bailes e a
dieta alimentar, a generalização do consumo da farinha de mandioca etc. Mas
mesmo assim as distinções entre cariús e caboclos não se apagaram.
Como explicitamos acima, é na convivência mais próxima, na relação com a
população regional e, sobretudo, com os indígenas, que se constatam as distinções que se
assentam, desde a identidade étnica a outros aspectos relacionados à cultura. Porém, o maior
prejuízo, resultante da falência extrativista, consistiu nos efeitos do declínio desta empresa.
Considerando que esta beneficiou apenas uma das partes, os donos do capital, enquanto que
os trabalhadores, seringueiros e indígenas, até então sujeitos ao cativeiro, como forma de
sobrevivência, foram entregues à própria sorte. É comum, sobre a situação em que ficaram
determinadas famílias, depararmos com relatos como o de Brito (2001, p. 109):
As dificuldades cresceram, a miséria estendeu-se pelo beiradão; seringueiros e
agricultores não tinham sequer, como cobrir o corpo. Calças e blusas viraram
molambos; de tanto remendo não mais se via o tecido original. Crianças andavam
nuas ou de tangas; até os sacos de trigo e café eram aproveitadas para vestimentas.
Os “donos” dos seringais partiram para o desmatamento, buscando ganhos com
a venda da madeira e formação de campos para pecuária, ou passaram adiante suas posses. A
região passa a ser objeto de nova onda de conflitos com a redefinição da propriedade privada
da terra, reforçada por uma política patrocinada pelo Governo Militar instalado no Brasil, a
partir de 1964, e traduzida no slogan “ocupar os espaços vazios da Amazônia”. Iniciou-se, na
década de 1970, o processo de especulação das terras, com campanhas que visavam atrair
empresários da região Centro-Sul, para investirem em terras férteis, abundantes e baratas,
conforme propagava campanha do Governo Federal. Acenou-se, a partir de então, para novas
oportunidades de ganhos: produzir no Acre e exportar pelo Pacífico. A propaganda oficial
76

acompanhava a promessa de abrir um corredor de exportação, por meio de rodovia que ligaria
o Brasil ao Pacífico.
O “movimento” das elites capitalistas, autodenominado “setor produtivo”, olha
o mundo pela ótica da exploração econômica. É nesta perspectiva estreita, que a Amazônia é
visualizada. Desse modo, enquanto esta região não estiver cravejada de empresas explorando
todo o seu potencial em riquezas, sempre será uma “selva”, um imenso vazio. Foi com base
nesta perspectiva que se fundamentou a propaganda para sustentar o novo projeto de
“ocupação” da Amazônia. Rangel (1994, p. 51), confirma esta perspectiva:
No final dos anos 60 o debate nacional em torno da ocupação da Amazônia reedita
também a visão que se tem a respeito da região. [...] em abril de 1967 a Folha de
São Paulo publica um suplemento especial com o título “Amazônia: um vazio cheio
de riquezas”.
A exploração da região é passada para o controle de novos especuladores que
não tinham interesse no extrativismo, ou na agricultura de subsistência, muito menos de
conciliar a exploração econômica com as peculiaridades amazônicas. O novo projeto
exploratório assentou-se no modelo comum, adotado em outras regiões do país: a exploração
madeireira, a pecuária extensiva e a terra como investimento de especulação fundiária. É
inaugurada uma nova fase de conflitos, tendo, de um lado, índios e seringueiros que
permaneciam nas áreas, estorvos para os novos proprietários, situados no outro lado do
embate. Essa situação estendeu-se a regiões do sul do Amazonas, como relata Rangel (1994,
p. 4):
Em 1970 o município de Boca do Acre [AM] também era envolvido pela última fase
de ocupação da Amazônia que teve como característica a tentativa de implantação
de fazendas de gado, a procura exacerbada por madeira de lei e as pesquisas de
prospecção de minérios. Tudo isso levou a redefinição da propriedade privada da
terra, cuja conseqüência inevitável foram os conflitos violentos entre os ex-
seringueiros e aqueles que exibiam títulos de propriedade.
No Acre, é ilustrativo o depoimento dos Yawanawá, sobre a nova frente
exploratória, na região dos afluentes do rio Juruá. Para eles, nada mudou no que se refere ao
tratamento dos novos “donos” das terras para com os indígenas:
Depois chegaram os representantes da PARANACRE, uma empresa do sul do país.
Esses paulistas chegaram dizendo que tinham comprado todo o rio Gregório do
Altevir Leal, com nós, índios, dentro. A PARANACRE fez lei igual à do barracão do
patrão seringalista. Ficou tudo no mesmo cativeiro velho. Os índios continuaram
vivendo ali. Batiam campo para a firma colocar seu gado. (KAXINAWÁ, 2002, p.
116).
Nesta época, o processo de “apagamento” da população nativa já havia
ocorrido, ao menos na perspectiva dos não-índios. Na década de 1970, tanto a opinião pública
quanto o poder público do estado do Acre não reconheciam a existência de povos indígenas
neste Estado. O antropólogo Terri Vale de Aquino, um dos primeiros indigenistas da Funai
77

vindo ao Acre para trabalhar no processo de identificação da “existência de índios” na região,


relata o estranhamento das autoridades locais, com a possibilidade da existência de indígenas
no Estado:
Os índios desconheciam seus direitos sobre seus territórios. Não existia
oficialmente índio naquela terra, quanto mais terra para eles. Quando começaram a
surgir problemas fundiários graves, que incluíam pessoas que se diziam
“descendentes de índios”, o próprio governador do Estado do Acre, na época o
Professor Geraldo Mesquita, mandou uma carta ao presidente da Funai
perguntando que índios eram esses. Os órgãos oficiais, inclusive a Funai,
desconheciam a existência dessas populações no Estado, não sabiam sequer onde
estavam esses índios, quantos eram (AQUINO, 2001, p. 38).
Antes da vinda da Funai, contrariando a opinião pública e enfrentando ameaças
de morte, indigenistas do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e de outras instituições,
como a Operação Anchieta (OPAN), hoje Operação Amazônia Nativa, a partir de 1975,
iniciaram um levantamento das populações indígenas e seus respectivos territórios, na região
do Acre e sul do Amazonas. Por saberem estar diante de pessoas ligadas à Igreja, portanto,
com credibilidade, as comunidades admitem suas identidades indígenas. Somente neste
momento, tomam conhecimento de que, na condição de indígenas, poderiam garantir o seu
direito à terra. Diante desta possibilidade, é desencadeada a resistência das comunidades, que
passam a recusar sair de suas colocações, provocando a vinda de equipes da Funai ao Acre,
em 1976. Já nesta primeira fase de estudos da Funai, no estado do Acre, realizada no período
de 1976 a 1979, foram identificadas 18 áreas indígenas. Nesta época, um terço das terras da
região já estava em mãos de empresas agropecuárias, incluindo terras habitadas por povos
indígenas. O acirramento da disputa fez com que a Funai desse início ao processo de
delimitação de tais territórios indígenas.
Comparando com a situação a que povos indígenas de outras regiões do Brasil
foram submetidos, em muitos casos chegando ao seqüestro total de suas terras, podemos dizer
que, graças à falência do extrativismo da borracha e a pouca viabilidade econômica dos
latifúndios pecuaristas nas regiões mais remotas da Amazônia ocidental, os povos indígenas,
dessas regiões, puderam garantir a posse de parte de seus territórios. Dificilmente esses povos
teriam obtido o reconhecimento, tal como a conquista de direitos sobre os territórios, nas
atuais dimensões, se persistissem os altos lucros do extrativismo ou a viabilidade de outra
atividade econômica no modelo capitalista.
Para os indígenas da Amazônia ocidental, o extrativismo serviu, ainda, como
sistema transitório do processo de servidão para a retomada da autonomia e da condição de
povos. Assim, concomitante à retomada da terra, com assessoria indigenista, as comunidades
indígenas foram estimuladas a fazer uso dos recursos dos seringais, aproveitando a produção
78

da borracha para instalar um eixo motor da organização e comercialização coletiva. Nesse


momento surgem as cooperativas organizadas, nos moldes dos “barracões”, com que os
indígenas já estavam familiarizados. Com a venda da produção, seria possível suprir as
necessidades de bens industrializados. Neste aspecto, as cooperativas foram fundamentais
para que os indígenas pudessem se libertar, de vez, da dependência dos “patrões”. Durante a
década de 1980, as cooperativas contribuíram para o fortalecimento dos processos de luta pela
reorganização política e social da população indígena e, substancialmente, de luta pela
garantia das terras indígenas e conseqüente retirada dos patrões e seringueiros não-índios. No
entanto, o cooperativismo não persistiu, por razões diversas, principalmente pela falta de
domínio de instrumentos a que os indígenas da Amazônia ocidental não tiveram acesso, como
a leitura e a escrita, por exemplo.
Assim, para administrar as cooperativas, para assumir o controle da produção e
da comercialização era necessário o domínio de conhecimentos mínimos da escrita e da
matemática, domínio esse que lhes fora negado, desde a chegada dos primeiros seringalistas.
A escola que lhes foi negada se torna um elemento de primeira necessidade para garantir a
continuidade da luta pela conquista da autonomia. Nesse momento, a educação escolar passa a
ser reivindicada como instrumento a favor da resistência indígena, fato que explicitaremos
com mais detalhes em capítulos subseqüentes.
Por outro lado, as cooperativas tornaram-se inviáveis, dado o interesse, cada
vez menor, do mercado pela produção extrativista:
Nos anos 90, a política do governo federal para a borracha teve efeitos perversos
para as populações que tradicionalmente dependiam do extrativismo, dada a
acentuada queda de preço do produto [...] e redundou na desarticulação das redes
comerciais antes atualizadas por suas cooperativas (AQUINO; IGLESIAS, 2002,
p. 154).
Em decorrência desta e de outras condições desfavoráveis, como o isolamento
e a ausência de políticas públicas que lhes contemplassem, os povos indígenas tiveram
agravadas as condições de reorganização de suas comunidades. Isto porque, após décadas de
integração forçada, tornou-se indispensável a comercialização de algum produto para manter
a sustentabilidade das comunidades, que já não era possível apenas com o extrativismo da
borracha. Com isso, as famílias indígenas, que viviam do extrativismo, foram forçadas a
instalar suas aldeias, às margens dos rios, e investir em alternativas como o cultivo de
produtos agrícolas e a criação de animais para comercializar e, desse modo, garantir recursos
para sustentar as necessidades adquiridas a partir do contato com a sociedade regional.
As dificuldades não impediram a mobilização das comunidades por direitos e
melhoria das condições de vida. Surgiram, nessa época, as associações e organizações
79

indígenas, além de outros mecanismos que deram corpo à resistência, consolidando o


movimento das nações indígenas do Acre e sul do Amazonas. As organizações e associações
indígenas, representação política dos povos e comunidades, tornaram-se instrumentos
mediadores em busca de projetos com alternativas de subsistência, e de direitos como o de
educação escolar, que pudessem garantir mais autonomia aos povos indígenas Trataremos
desse aspecto nos próximos capítulos.
Dentre os problemas enfrentados pelas comunidades indígenas, na época atual,
é visível o confronto entre a organização sociocultural, própria das comunidades, e as
pressões da “cultura nacional”, atualizada pela perspectiva consumista, de mercado. Assim,
tornou-se comum entre os indígenas a busca individualizada de fonte de renda, o
assalariamento, como alternativa de subsistência. O poder público e as Organizações Não-
Governamentais (ONGs) têm dado margem a uma corrida (entre os indígenas) em direção a
um hábito, comum na sociedade regional: a busca por um “contrato”, como recurso para
garantir a sobrevivência, isto é, o salário de professor, de agente de saúde, de agente
agroflorestal, ou, ainda, a aposentadoria dos mais velhos. Além da polêmica, que envolve esta
forma de subsistência, supervalorizando os meios de vida da sociedade dominante, de
imediato, os salários geram impactos sobre as comunidades, tais como, o esvaziamento de
algumas aldeias em decorrência do deslocamento de famílias para as cidades a fim de viver
destes recursos, abandonando a possibilidade de afirmação étnica, conciliando os saberes
indígenas com outros saberes, como garantia de vida na terra indígena.
A problemática do assalariamento, embora o “contrato” seja desejo de uma
parcela significativa dos indígenas, não afeta todas as comunidades. Alguns projetos
alternativos de produção econômica têm dado certo, propiciando qualidade de vida nas aldeias
a partir da produção de bens comercializáveis, desde produtos relacionados à arte indígena a
outros produtos extraídos da floresta. Estas alternativas econômicas têm recebido maior
atenção do movimento indígena e de seus parceiros, por garantir a permanência das famílias
nas aldeias, e também, por possibilitar a afirmação da identidade indígena, a partir do
momento que estes sentem condições de garantia do viver bem sem abrir mão de sua cultura,
aspectos que abordaremos em outros capítulos.
No âmbito dos interesses econômicos, que trazem inevitáveis impactos sobre
as populações indígenas, a região que compreende os estados do Acre e Amazonas constitui,
ainda hoje, uma fronteira para exploração econômica. Estão sendo criadas condições que
podem resultar na derradeira frente exploratória dos recursos naturais da Amazônia ocidental.
Trata-se da concretização da promessa de sucessivos governos, desde o regime militar: a
80

saída, por rodovia, para o Pacífico. Além disso, também está sendo feita a pavimentação de
rodovias, que cortam a região, inclusive territórios indígenas, cujo acesso, até então, só era
possível por via fluvial e aérea.
Embora o atual governo defenda a exploração racional dos recursos naturais,
até o momento, entre os representantes do “setor produtivo”, permanece inalterável a
perspectiva econômica predatória, para a qual a Amazônia ainda é um “vazio” de riquezas a
serem exploradas. O discurso, que é ensaiado em alguns estados da Amazônia, sobretudo no
Acre, propõe o “desenvolvimento” elaborado a partir de uma terminologia apropriada aos
novos tempos de preservação dos recursos naturais: o “desenvolvimento sustentável”. Esse
discurso pretende conciliar a exploração capitalista da floresta, sem devastá-la. Neste caso, o
“setor produtivo” é chamado a “modernizar” sua tecnologia de exploração. Os riscos são
postos quando a ressignificação não ultrapassa o discurso do “desenvolvimento” como
sustentável. Uma vez apropriado pelas grandes corporações capitalistas, em termos imediatos
provoca o “des-envolvimento”, o não-envolvimento da população tradicional, cuja economia
é de subsistência, baseada num modelo econômico familiar, seja agrícola ou extrativista.
Além da exclusão da população que não integra o “setor produtivo”, na
exploração extensiva das riquezas, basicamente madeira, não há precedente que demonstre ser
possível o controle sobre a exploração promovida pela indústria madeireira e pelos
interessados no desmatamento para formação de campos para pecuária. A comprovação de tal
afirmação é que, apesar dos esforços em torno da exploração racional da floresta, todo ano
repete-se a situação trágica de poluição atmosférica na região, resultado das queimadas, nos
períodos de julho a setembro. Outro fato, os dados oficiais demonstram que, 70% da produção
comercializada na região da Amazônia ocidental provém da madeira. Eles indicam a
persistente perspectiva exploratória presente nos métodos convencionais.
Em termos concretos, o estágio atual dos “projetos” para a Amazônia, os quais
já estão impactando sobre as comunidades indígenas, caracteriza-se pelo avanço das obras nas
rodovias federais. A contrapartida do poder público tem se dado através de medidas
mitigatórias e/ou compensatórias, por meio de obras, instalações e programas de
sustentabilidade. As obras em execução, nas comunidades indígenas, consistem na construção
de escolas, açudes e Kupixáwas9. As instalações correspondem à construção ou ampliação das
sedes para as organizações indígenas, ao passo que, os programas de sustentabilidade

9
Kupixáwa consiste numa edificação, que comporta espaço para reunião de toda a comunidade, onde são
realizadas atividades culturais do povo, tais como: cantos, danças, reuniões, confecção de artesanato e
transmissão de conhecimentos.
81

contemplam ações de assistência técnica para a produção de alimentos e para futura geração
de renda.
A boa vontade por parte do poder público, assim como os recursos para
execução das obras não têm sido o bastante. As obras já executadas, que tinham como
propósito compensar impactos, têm gerado, em grande parte, mais impactos. Tanto as
empresas empreiteiras responsáveis pelas obras, como as obras por elas edificadas são alvo de
constantes críticas, porque seguem a prática comum da maioria das ações conduzidas por não-
indígenas em comunidades indígenas: são executadas por pessoas que não possuem nenhuma
orientação para o trato respeitoso com outras culturas. Conseqüentemente, algumas das obras
que pudemos observar, apresentam-se de forma estranha, deslocadas do cotidiano da
comunidade. A péssima qualidade das obras, denúncia recorrente no relato de pessoas das
comunidades e do movimento indígena, confirma a observação.
Portanto, nas novas frentes exploratórias, mesmo diante de circunstâncias
favoráveis aos indígenas, ainda assim, a relação de poder é muito desproporcional. Entre os
indígenas e o “setor produtivo”, qualquer que seja o governo, este tenderá a fazer inevitáveis
concessões ao “setor produtivo”. Desse modo, o que se visualiza são inevitáveis pressões da
força motora dos interesses econômicos sobre os mundos indígenas. Esse fato justifica o foco
de atenção do movimento indígena, na educação escolar, para formação de quadros indígenas,
que pensem estratégias para o futuro.

3 As práticas integracionistas e de negação da escola ao indígena

Trataremos, neste item, da política, sobretudo educacional, visando o


“progresso” do indígena à condição de brasileiro. Para tal, partiremos do período no qual são
esboçadas políticas públicas à parte da ação religiosa, sem, contudo, desconsiderá-las. Esse
período coincide com a anexação do Acre ao Brasil, já no século XX. Por fim,
contextualizando a época atual, destacamos o modelo regional de enaltecimento da cultura
dominante, a reedição dos preconceitos de forma mais elaborada, constituindo a força
contrária ao estabelecimento de relações respeitosas entre culturas.
Quando o Acre foi anexado ao Brasil, os indígenas já não representavam
impasse ao processo de exploração extrativista, muito menos ao domínio político sobre a
região. Na “conquista” oficial do território, por “heróis” brasileiros, o “índio” está ausente das
fileiras dos vitoriosos, conseqüentemente excluído dos méritos da história, mesmo porque
82

estava do outro lado e foi vencido antes mesmo dos bolivianos. A conquista, para o
colonizador, assenta-se sobre seu real interesse: territórios com riquezas a serem exploradas.
O indígena não entra em questão, como povo com possíveis direitos, diante de tais interesses
dos conquistadores.
Nesta época, o Brasil República estava suscetível a influência de novas
concepções “científicas”, que viam os indígenas como grupos a serem protegido pelo Estado.
Embora na Constituição de 1891 as questões indígenas tenham sido completamente
ignoradas, esta perspectiva de tratar a questão indígena como responsabilidade do Estado,
constituirá um princípio norteador a ser perseguido, a partir de então. No âmbito do poder
público, sob influência dos positivistas, dentre eles, Cândido Rondon10, é criado o Serviço de
Proteção aos Índios (SPI), pelo Decreto nº 8072, de 20 de julho de 1910 (RIBEIRO, 1996, p.
157), primeiro órgão oficial responsável pela política indigenista no Brasil. Com o órgão, são
estabelecidas diretrizes para nortear a ação do Estado, no trato com os povos indígenas. Tais
diretrizes consistiam num conjunto de princípios baseados no ideário positivista 11, visando
um indigenismo estatal e laico.
O propósito do SPI estava inserido entre as idéias que tomavam corpo no
movimento de ilustração brasileira: o positivismo, introduzido no Brasil em meados do século
XIX. O positivismo assume um papel relevante no destino dos povos indígenas
remanescentes. Do ideário positivista advinha a interpretação, o entendimento da fatalidade
das leis que dirigem a humanidade, firmes como as leis que dirigem o mundo físico e material
(BARROS, 1986, p. 12). Sob tal entendimento, exigia-se no que concerne aos indígenas, que
fossem possibilitadas condições para a progressiva transição de seu estado primitivo até sua
perfeita integração à sociedade nacional. Conforme o entendimento do mesmo autor, o índio
se transformava, agora, numa simples fase de um processo universal, que já superáramos.
Até a década de 1980, a legislação que norteou a ação do Estado brasileiro,
pregou a proteção e a incorporação da população indígena à sociedade brasileira. O Código
Civil, de 1916, definiu os índios como relativamente incapazes, sujeitos ao regime tutelar
enquanto não fossem adaptados à civilização do país. As Constituições de 1934, 1946, 1967 e
1969 reproduziram como modelo para o trato com os indígenas a incorporação dos silvícolas

10
Cândido Rondon comandou a implantação de linha telegráfica entre os Estados de Mato Grosso e do
Amazonas, estabelecendo contato pacífico com os índios no percurso, o que motivou o Governo a convidá-lo
para dirigir a instituição federal destinada à assistência aos índios.
11
Tal como situamos no capítulo 1, os positivistas defendiam a tese de que, oferecidas as condições favoráveis
aos índios, eles progrediriam pouco a pouco na direção da civilização. Cabia ao governo defendê-los contra o
extermínio e a opressão.
83

à comunhão nacional (GUIMARÃES, 1989, p. 16).


A educação escolar, que porventura fosse destinada aos indígenas, estava
orientada para o propósito da integração. Arnaud (1989, p. 103), indigenista do tempo do SPI,
comenta sobre a atuação do órgão indigenista, na década de 1940, na região Amazônica. Seu
relato fala da instrução escolar entre povos indígenas, deixando transparecer o que era
ensinado nas escolas:
A fundação da primeira escola, ocorrida no âmbito dos Galibí, em 1945 [...] a
segunda, que foi estabelecida entre os Karipuna, em 1948 [...] em ambas as
comunidades os pais enviaram espontaneamente os filhos às escolas, as quais por
isso mesmo tiveram freqüência significativa desde quando fundadas [...] Os roteiros
de instrução foram baseados nos programas do Território do Amapá, até o 3.º ano
primário, incluindo o ensino de orações cristãs, hinos patrióticos e das festas
cívicas nacionais. Foram ampliados através do aprendizado de costura à máquina
para as meninas e do plantio de hortas para ambos os sexos.
Naturalmente, o investimento na instrução para “índios” não consistia uma
política extensiva a todos. Sempre houve comunidades que interessava, à sociedade brasileira,
o apressamento de sua integração, como forma de “liberar” territórios para o
desenvolvimento. A outros grupos que esboçassem resistência e, sobretudo, se não estivessem
no curso de áreas de interesse, a oferta de tal atendimento era irrelevante, conforme episódio
destacado por Arnaud (1989, p. 103):
A instrução escolar foi introduzida somente entre os Galibí e os Karipuna. Não foi
estendida aos Palikúr, segundo fomos informados, porque a direção do Pôsto houve
por bem não contrariar a maior parte dos velhos do grupo que consideravam tal
coisa uma forma de escravidão.
A atuação do SPI na Amazônia ocidental, pelo que há em registro, esteve
restrita a algumas viagens de equipes do órgão. Considerando que, até a década de 1970,
vigoravam as “leis” dos patrões na região, conforme descrito nos itens anteriormente, os
índios que sobreviveram às correrias12 foram integrados aos trabalhos nos seringais, onde não
interessava ao patrão que sua mão-de-obra tivesse domínio da escrita, arma com a qual
mantinha no cativeiro índios e seringueiros, sem que os mesmos pudessem contestar sua
contabilidade. De acordo com o que há registrado sobre os povos da Amazônia ocidental,
houve uma escola primária entre os Poyanawa, no início do século XX, por iniciativa do
“governo prefeitural” de Cruzeiro do Sul, provavelmente motivada pela proximidade da
aldeia à cidade, fato que não significou ampliação do serviço ou sequer continuidade da
referida escola.

12
As “correrias” consistiam em expedições de extermínio patrocinadas pelos patrões seringalistas com o
propósito de quebrar a resistência de grupos indígenas em áreas de interesse para exploração. Executadas por
jagunços armados, os quais, rastreavam “índios brabos” até localizar suas aldeias, atacando-as, matando uns,
provocando correria entre os demais, mata adentro, expulsando-os para regiões distantes dos seringais que se
queria explorar.
84

No âmbito nacional, enquanto política de intervenção escolar, ao menos


enquanto proposta, foi esboçada uma política educacional oficial, na qual se pretendia uma
ação laica. Na prática, persistiu a predominância da ação religiosa, mais na forma de
catequese do que de instrução, restrita, ainda, às comunidades indígenas a que as missões
tinham acesso. Sob a concepção religiosa ou laica, forçosamente os grupos subjugados
ficaram à mercê de projetos concebidos sem sua aquiescência. Naturalmente, era atribuição da
escola o desenvolvimento do homem ideal, na perspectiva da cultura ocidental dominante.
Assim, os princípios positivistas orientaram a política indigenista oficial até
recentemente. Com a extinção do SPI, foi instituído um novo órgão oficial, a Fundação
Nacional do Índio (Funai) criada em 1967 pela Lei nº 5371 (RIBEIRO, 1983, p. 84). Dentre
as atribuições do novo órgão indigenista, estava a finalidade de promover a educação de base
apropriada ao índio, visando a sua progressiva integração na sociedade nacional.
Com o Estatuto do Índio, Lei 6001, de 19 de dezembro de 1973, instituída sob
o regime militar, foi delineada, mais amplamente, a política oficial de integração dos índios,
confirmando o papel do Estado de: preservar sua cultura e integrá-los, progressiva e
harmoniosamente, à comunhão nacional. Mais explicitamente, no âmbito da instrução
destinada aos indígenas, o artigo 48, da mesma Lei, estabelecia: Estende-se à população
indígena, com as necessárias adaptações, o ensino em vigor no país, enquanto que o artigo 50
determinava que: A educação do índio será orientada para a integração na comunhão
nacional, mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da
sociedade nacional, bem como do aproveitamento das suas aptidões individuais
(GUIMARÃES, 1989, p. 51).
A integração dissolvendo as nações indígenas, na sociedade brasileira,
constituía a finalidade da intervenção educativa patrocinada, tanto pelas missões religiosas,
como pelas iniciativas de caráter oficial, sob a responsabilidade do SPI e da Funai e/ou
Secretarias de Educação. Em termos de programas educacionais, o voltado para os indígenas
caracterizou-se pela mera transposição das escolas rurais e, em ocasiões, urbanas, com
professores não-índios, sem qualquer diferenciação. A similaridade, ou simples extensão da
escola oficial às comunidades indígenas, era também quase que a totalidade das escolas
mantidas pelas missões religiosas, todos agindo sistematicamente na desindianização.
Conforme parecer do Conselho Nacional de Educação:
É preciso reconhecer que, no Brasil, do século XVI até praticamente a metade deste
século [XX], a oferta de programas de educação escolar às comunidades indígenas
esteve pautada pela catequização, civilização e integração forçada dos índios à
sociedade nacional. Dos missionários jesuítas aos positivistas do Serviço de
Proteção aos Índios, do ensino catequético ao ensino bilíngüe, a tônica foi uma só:
85

negar a diferença, assimilar os índios, fazer com que eles se transformassem em


algo diferente do que eram. Neste processo, a instituição da escola entre grupos
indígenas serviu de instrumento de imposição de valores alheios e negação de
identidades e culturas diferenciadas (PARECER CNE/CEB nº 14, 1999).
Desse modo, até recentemente, o modelo de política pública educacional
brasileira foi impositivo, uma vez que desconsiderava como válidos os saberes e as culturas
indígenas às quais a escola se destinava sendo, não raras vezes, aplicado com extrema
violência, como nos casos dos internatos para onde as crianças indígenas eram levadas, muitas
vezes à força, arrebatadas de seus pais.
A mediação do Estado, ou até mesmo de instituições não-governamentais
avalizadas, como a de Igrejas, na Amazônia ocidental, foi insignificante, restrita a
“passagens” esparsas, sem qualquer intervenção, que pudesse minorar o impacto das empresas
extrativistas. Rangel (1994, p. 60) ilustra bem as condições:
A sociedade brasileira não chega através de suas instituições plenamente
constituídas mas, sim, sob a égide de patrões que “governam” com leis próprias,
inventando formas de mando exercitado através de capangas armados. A Igreja e o
Estado chegam tarde demais, sem força e nem aparato suficiente para controlar o
processo; o alcance da ação do Estado brasileiro, pelo menos neste caso, foi e tem
sido muito menor do que se formula em seu discurso integracionista.
No que se refere às intervenções em educação escolar no Acre, as primeiras
iniciativas que alcançaram a população indígena, ou “caboclos”, como eram vistos pela
sociedade regional, foram as do programa de alfabetização de adultos do governo militar, o
MOBRAL, as escolas missionárias de igrejas/seitas fundamentalistas e escolas rurais, em
comunidades, próximas a sedes de municípios, na década de 1970. Entretanto, essas
iniciativas foram muito insipientes, sem impactos na relação com a sociedade regional.
A atuação de seitas/igrejas fundamentalistas ocorreu, em períodos
intermitentes, entre vários povos: Kaxinawá, Katukina, Yawanawá, Deni e Jamamadi,
geralmente com missionários estrangeiros, os quais, partindo da transcrição da língua
indígena desenvolveram um processo de alfabetização, como uma estratégia para se levar aos
indígenas a “salvação” e a “civilização”. Eles agem amparados na perspectiva que
acompanhou os primeiros colonizadores da Amazônia, prática ainda presente junto a povos da
Amazônia, a qual se assenta no pressuposto de que a tradução da Bíblia, na língua de cada
povo, é a solução para todos os males e, sobretudo, a chave para a sua salvação.
A “instrução” proporcionada por estas instituições consistiu e constitui um
elemento a mais, na problemática enfrentada pelos povos indígenas, pois é uma ação que teve
e tem por finalidade interferir na identidade cultural destes povos, dada a concepção
etnocêntrica em que se sustentam seus objetivos:
86

A língua indígena era utilizada como “ponte”, apenas para facilitar o aprendizado
do português. É o “uso da língua sem língua”, na apropriada expressão de Meliá.
Ou seja, trabalhar com fonemas e palavras desligadas de um contexto sócio-
cultural e contribuindo, assim, para um paulatino desaparecimento da riqueza
lingüística de um povo (AMARANTE; PAULA, 2001, p. 06).
Apesar da polêmica que envolve a presença de tais missionários, estes ainda
mantém, estrategicamente, presença em aldeias na região, com suas bases fora da terra
indígena. É o caso da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), que ainda se faz presente
próximo ao povo Katukina, aproximando-se com a distribuição de medicamentos, falando,
com desenvoltura, a língua indígena e, desse modo, conquistando a confiança do povo. Uma
outra investida de tais seitas, nos dias atuais, tem sido a busca de aproximação dos índios
isolados na região da fronteira com o Peru, tentando o contato para civilizá-los. Como a
política oficial no Brasil é preservar o território e garantir a integridade daqueles que mantêm
o “isolamento voluntário”, os missionários fundamentalistas estabeleceram-se no Peru,
empenhados em, a partir daquele país, estabelecer o contato com os povos isolados, bem ao
estilo do período colonial.
Voltando à ação oficial dos poderes públicos na Amazônia ocidental, esta vai
ocorrer com a instalação da Funai, no final da década de 1970, nesta região, tal como nos
referimos anteriormente, para mediar os conflitos entre fazendeiros e comunidades indígenas.
O projeto inicial do órgão era sacramentar o entendimento das autoridades locais e da maioria
da população, de que já não havia mais índios e sim “caboclos”. Corroborando com o
preconceito regional, a interpretação do governo considerava os indígenas da região índios
aculturados, chegando a categorizá-los, por Decreto, não mais como indígenas, mas como
colonos. Esse fato ocorreu com o povo Apurinã, conforme matéria de 1988, do Jornal O São
Paulo:
Apesar das manifestações em contrário, foi criada a primeira colônia indígena no
Brasil. No último dia 20 de janeiro saiu publicada no Diário Oficial da União uma
portaria denominando a área indígena Apurinã, do quilometro 124 da BR-317,
como colônia indígena (O SÃO PAULO, 1988).
O projeto anti-indígena não teve sustentação diante das evidências
socioculturais e da persistência das comunidades em manter suas identidades indígenas.
Convém ressaltar que a resistência indígena na Amazônia Ocidental chegará aos dias atuais
com uma população bastante reduzida, muito mais pela dizimação do que pela assimilação,
confirmando as conclusões de Darci Ribeiro sobre a depopulação indígena:
A pesquisa com relação à assimilação dos povos indígenas, que me foi entregue,
deu o mesmo resultado decepcionante. Nenhum grupo indígena jamais foi
assimilado. É uma ilusão dos historiadores, que trabalham com a documentação
escrita a suposição de que havia onde havia uma aldeia de índios e onde floresceu,
depois, uma vila brasileira, tenha ocorrido uma continuidade, uma se convertendo
87

na outra. Em todos os casos examinados por nós, numerosíssimos, isso não sucedeu.
Os índios foram morrendo, vítimas de toda sorte de violências, e uma população
neobrasileira foi crescendo no antigo território tribal (RIBEIRO, 1996, p. 12).
No Acre, há alguns fatos que ilustram as conclusões de Darci Ribeiro, como o
caso do povo Náua, dado como extinto em inícios do século XX, cuja principal aldeia deu
lugar à cidade de Cruzeiro do Sul, AC. A cultura local incorporou apenas a expressão “náua”,
seja como referência à região como terra dos náuas, seja na denominação de casas comerciais
e produtos da região. Entretanto, quase um século depois, parcela significativa da população
desta cidade levanta-se contra uma comunidade, refugiada em colocação, distante da zona
urbana, comunidade que foi forçada a manifestar a identidade indígena e a reivindicar o
reconhecimento como remanescentes do povo Náua, motivados pela pressão de empresários e
ecologistas, os quais exigiam que os indígenas abandonassem seu território por estar situado
em um “parque nacional”. O presente caso é significativo na conclusão a que chegou o autor
citado acima, quando este afirma: onde quer que um grupo indígena pôde manter a
convivência familiar - os pais educandos seus filhos - permaneceu a identificação étnica
tribal (RIBEIRO 1996, p. 12). Laudos antropológicos, confirmados pelo poder judiciário,
reconheceram tal comunidade como sendo indígena.
O caso do povo Náua bem como o de vários outros povos da região é
ilustrativo da persistente luta pela identidade cultural dos indígenas, mesmo com suas culturas
ressignificadas na dinâmica que lhes é própria. A partir de estudos e trabalho com a população
indígena da região, o antropólogo Jacó Picolli confirma tal situação:
As sociedades que lograram sobreviver permanecem indígenas. Mesmo
transfiguradas resistem enquanto indígenas, na sua auto-identificação e
reconhecimento externo, diferenciando-se, nitidamente, da sociedade nacional,
apesar do amplo processo de dominação a que foram submetidas. A assimilação e
miscigenação só podem ser constatadas a nível individual e jamais a nível coletivo.
Na verdade, o que explica a diferenciação e a não diluição das sociedades e
culturas indígenas na sociedade ou cultura envolvente é a capacidade de luta e
resistência, ativa ou passiva, restaurada e renovada, oferecida pelas sociedades
indígenas ao processo de dominação e colonização que caracteriza as relações
interétnicas e, conseqüentemente, as relações interculturais (PICOLLI, 1993, p.
25).
Assim, embora a população indígena da região não tenha sido alvo de políticas
deliberadas de assimilação e tenha ficado entregue à ação das empresas exploradoras do látex,
os grupos que resistiram, à mais de sete décadas de violência e negação, resistiram,
fragilizados, mas resistiram em suas identidades étnicas. A fragilidade é posta em condições,
nas quais, são retirados dos povos os pressupostos elementares para o bem viver. Neves
(2002, p. 14), sintetiza os efeitos do processo histórico, que estabeleceu a condição desigual a
que os indígenas foram submetidos:
88

Durante sete décadas de cativeiro os povos nativos do Acre sofreram uma enorme
degradação de suas culturas tradicionais. O peso dos preconceitos da sociedade
não-índia, a expropriação de suas terras ancestrais, a falta de políticas de
assistência, de educação ou de saúde, levou-os a uma grave condição econômica e
social.
No estado do Acre, a partir do ano 2000, o poder público tem procurado fazer a
diferença nas relações com os indígenas. Na história do Acre nunca os pleitos dos indígenas
foram tão respeitados como são hoje, o poder público tem se mostrado disposto a construir
uma política de governo que contemple, também, este segmento populacional. Entretanto, as
contradições são visualizadas nas ações conservadoras das concepções universalistas,
homogeneizantes, em torno da cultura dominante promovida pelo mesmo poder público, que
reforça o preconceito e o desprezo para com os indígenas e suas culturas.
A persistente carga de preconceito continua sendo um fator determinante para
que sejam mantidas as fronteiras da exclusão dificultando a construção de relações
respeitosas, ou seja, o preconceito constitui a maior força contrária à manutenção de valores
culturais próprios dos diferentes povos, sobretudo a língua. É comum ouvirmos relatos como
o que segue, retratando a ridicularização sofrida pelos indígenas:
O povo Yawanawá foi perdendo a sua cultura, as festas e brincadeiras. Os pajés
não rezavam mais. Os pajés sabiam de tudo que estava acontecendo ali. Tudo eles
sabiam e guardavam dentro deles. Quando os Yawanawá falavam na língua
indígena, os brancos ficavam mangando e diziam para nós: - Olha, os caboclos
cortando gíria! Por isso, hoje, só os velhos falam a nossa língua Yawanawá
(KAXINAWÁ, 2002, p. 116).
Por outro lado, como nos referimos acima, na história oficial do Acre são
cultuados como heróis personagens que tomaram, de forma violenta, as terras indígenas,
terras também reivindicadas pela Bolívia e Peru, compreendendo o espaço que hoje é o estado
do Acre. A narrativa oficial encarregou-se de lapidar a imagem dos coronéis, exploradores do
trabalho escravo, na empresa extratora das riquezas da floresta. A narrativa histórica, já
revisada, enaltece como “antepassados” da população acreana, os coronéis, donos dos
seringais, e os nordestinos seringueiros. Essa historiografia, escrita pelos vencedores, não
consta que os territórios tomados pertenciam a nações milenares e minimiza a ação, não tão
nobre, dos heróis exploradores, na dizimação de muitas nações, por meio das famosas
“correrias”.
Enquanto realizávamos esta pesquisa, a população do Acre era envolvida na
celebração do centenário da “Revolução Acreana”, celebração baseada em cultos a símbolos
construídos na versão da história contada pelos colonizadores. Os festejos, iniciados em 2000,
reforçados com monumentos, museus e similares, enaltecem os vencedores dos embates do
passado, homenageados como heróis, personagens que, pelo acaso e oportunismo econômico,
89

manobraram significativa massa de nordestinos e promoveram os assaltos às aldeias indígenas


e postos bolivianos “limpando” a área, e traduzido, na história oficial, como conquista do
Acre para o Brasil.
A mobilização dos aparelhos de estado e da imprensa, em torno da versão da
história fabricada pelos vencedores, além de esconder as injustiças do passado, reeditou a
política patriótica de sentimento de pertença regional, definida como “acreanismo”, prática
que, na teoria do nacionalismo, já se critica há décadas, que a exaltação das qualidades de um
povo leva, inevitavelmente, à comparação com outros, então considerados inferiores.
O culto aos heróis, coincidentemente todos da cultura dominante, oficialmente,
obedece à orientação de um “conselho de notáveis”, os mais dignos representantes vivos da
cultura dominante na região. Estes notáveis dão respaldo à historiografia oficial, não restando
“dúvidas” quanto à grandeza dos ilustres colonizadores, os heróis acreanos. Trata-se de uma
versão que esvazia o conteúdo das lutas reais e, como analisa Bessa Freire (1991, p. 48),
citando frase de Brecht:
“Infeliz do povo que necessita de heróis”. Esta frase, colocada por Brecht na boca
de Galileu, é excelente ponto de partida para questionar esta concepção de história
que é feita por alguns indivíduos superdotados e que as massas entram apenas
como figurantes de quinta categoria, exatamente como uma super-produção
cinematográfica.
Não se trata de uma política ingênua, e, sim, de uma estratégia sutil para
assegurar o poder no presente, reforçando a história contada pelos vencedores, versão pré-
fabricada, parcializada, que favorece a cultura dominante. E, na medida em que é tratada
como a história que engloba a todos, atua como fator de homogeneização, contrária à
possibilidade de uma história que faça justiça e contribua para a diminuição do preconceito
para com as culturas marginalizadas.
Os resultados são os dividendos políticos-ideológicos, como comenta Bessa
Freire (1991, p. 49): se as massas, no passado, foram meros figurantes e tudo foi decidido por
um herói, então hoje, as massas também não têm condições de interferir no processo
histórico, que é produto apenas da ação de alguns indivíduos. Essa explicação ajusta-se ao
modo comum dos governos conceberem as políticas, justificando conhecer, profundamente, o
Estado e a população que governam e reforçando a idéia de que as mudanças só ocorrem
graças a eles, governantes. O privilégio a ações de indivíduos, conforme Bessa Freire (1991,
p. 49) coloca-os, num majestoso pedestal e escamoteia a realidade, porque confere às
atitudes de um indivíduo um caráter de exceção, anulando as ações dos outros e a
participação das massas nas grandes transformações históricas.
Portanto, temos como ponto alto, nas políticas de promoção da cultura
90

regional, o “acreanismo” que atua na elevação da auto-estima do não-índio, constituindo-se


numa política de reforço à cultura dominante, a qual dificulta o reconhecimento e o respeito
aos povos e culturas dominadas; respeito necessário para que se avance na construção de uma
sociedade plural.
Outro aspecto relevante no contexto atual, dentre as contradições, no poder
público na região, consiste num polêmico debate sobre o bem viver da população amazônica.
Estão sendo questionados, no estado do Acre, os índices que aferem o bem estar das pessoas
com os quais trabalham as organizações internacionais como o Fundo das Nações Unidas para
a Infância e a Adolescência (Unicef) e a própria Organização das Nações Unidas (ONU).
Políticos da região avaliam que indicadores como Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)
e Índice de Desenvolvimento Infantil (IDI), da Unesco e do Unicef, além do mapa da pobreza
no Brasil, baseado em dados da Universidade de Campinas (Unicamp), são instrumentos
inadequados para aferir a qualidade de vida de quem vive na Amazônia. Não há dúvidas de
que são índices que desconsideram as diferenças culturais e refletem perspectivas
homogeneizantes. Não se contesta que o ambiente amazônico difere de uma periferia urbana,
mesmo assim, as condições de vida dos antigos seringueiros e de muitas comunidades
indígenas são de extrema carência. Nessas comunidades faltam condições elementares para a
sobrevivência, como saúde e alimentação. A herança de mais de um século de dominação, de
ações forçadas de homogeneização cultural, criou necessidades comuns a qualquer ambiente.
Por isso, propor a redefinição de indicadores sociais, definir qual será o ideal em qualidade de
vida, fundamentados numa visão romântica do homem livre na floresta é correr o risco de
rebaixar direitos de cidadania, como educação, sob o pretexto de que, na floresta a educação
escolar não é tão relevante.
A proposta de “mudança” pode refletir um avanço para que sejam respeitados
ideais de bem viver, fundamentados em culturas locais, mas, pode, também, resultar na
desobrigação do poder público no investimento em políticas sociais, sem nunca tê-las
viabilizado. Substituir indicadores sociais insere-se em debate semelhante ao que vem sendo
promovido sobre a educação escolar: não pode representar a supressão de direitos de
cidadania e não pode ocorrer sem a participação das comunidades, sem que as pessoas, em
questão, tomem parte. Do contrário, corre-se o risco de reeditar, em nível intermediário, as
medidas globais que supõem saber o que é melhor para o bem viver do outro, retirando, deste
outro, o direito de sonhar com novas tecnologias e instrumentos da sociedade dominante em
seu ideal de bem viver.
Enfim, estão vivas e atuantes as perspectivas universalistas e homogeneizantes,
91

elaboradas a partir da visão de mundo das nações da Europa ocidental, exercendo pressão
sobre as culturas que diferem de sua ordem de valores. Em contrapartida, persiste e tornam-se
mais visíveis a pluralidade e a crença na possibilidade de relações respeitosas entre povos
com valores culturais diferentes, contrariando o projeto civilizatório hegemônico. Nas
mesmas bases do debate, que reivindica relações culturais contra-hegemônicas, inserimos o
debate sobre a educação escolar nas comunidades indígenas, sobre a escola conquistada como
direito e instrumento favorável aos projetos de emancipação sociocultural, pleiteado pelos
povos indígenas, tal como trataremos nos próximos capítulos.
CAPÍTULO III
III3 OS MOVIMENTOS SOCIOCULTURAIS E AS- ressupostos para a construção de
RELAÇÕES
CONTRA-HhEGEMÔNICAS E o movimento de resitência INDÍGENABASES DAS
RELAÇÕES CONTRA-HEGEMÔNICAS, O MOVIMENTO DE RESITÊNCIA E O
DISCURSO DA INTERCULTURALIDADE NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

Nos capítulos anteriores, tratamos, na parte anterior deste trabalho, de


concepções que acompanharam a modernidade ocidental até os tempos atuais,. cConcepções
estas, que justificaram e justificam políticas universalistas, forçando a homogeneização dos
povos, condenando as diferenças, sobretudo aquelas que se fundamentavam em verdades que
não asdiferentes das verdades da cultura ocidental. Indicamos que os discursos, sob tais
concepções, acobertaram oposições excludentes entre povos e culturas,. C
conseqüuentemente, não sustentaram, por muito tempo, as mesmas verdades que davamão
suporte a seus discursos. Entretanto, persistiramem os esforços na legitimação do
“conhecimento verdadeiro” sobre a Hhumanidade e seu destino: a “ordem civilizatória”.
Neste capítulo, nosso propósito é explicitar Aa resistência dos Ggrupos
humanos resistem em suas identidades culturais, resistem a. Perspectiva que confrontaa-se
com tal formaos modelos hegemônicos de fazer política, ou sejaisto é, de o projeto
civilizatório não obteve êxito, na diluirção das diferenças, para estabelecer relações, no seu
intento de nivelandor a todos na àna condição de “indivíduos”. Assim, considerando queTais
os grupos humanos, cujas culturas são tidas como não-civilizadas, são os mesmosem sua
maioria, são os mesmos excluídos das condições dignas de bem- viver, e, é principalmente na
é, principalmente, a luta pela sobrevivência e, pela dignidade destes excluídos, que todos que
se assentamdeuram origem aos movimentos sociais sociais. Quando é agregado à luta social e
considerando a persistência resistência em torno das diferenças culturais é agregada à luta
social, temos um novo contexto, no qual se firma o movimento pela emancipação social,.
Novo contexto onde o movimento social é reelaborado com base no respeito a às
manifestações culturais específicas das coletividades, portanto, ressignificado como
movimento sociocultural, do qual, emergem perspectivas que visam a estabelecer políticas de
emancipação social, firmadas em relações que respeiteam o modo de ser de cada povo.
Temos, pois, perspectivas contraditórias em cena: por um prisma, os segmentos
dominantes reciclam seus discursos, propondo como possibilidade única de superação da crise
93

da modernidade, a submissão dedas instituições e de indivíduos às regras de mercado, e a


adesão à “iInevitável” cultura “civilizada”., Por outro prisma, os movimentos sociais,
principalmente, aqueles organizados com base nas diferenças humanas (físicas, sexuais,
étnicas, religiosas, sociais, econômicas e culturais) constroóem uma perspectivas de
resistência, acreditando ser possível a emancipação social, sem que todos tenham que se
submeter a políticas hegemônicas. . Insistimos em assinalar tais perspectivas contraditórias
como forma de situar o papel da educação escolar, sobretudo nas comunidades indígenas; isto
é, mesmo persistindo a tendência homogeneizante, o papel da escola, quando remodelado sob
a perspectiva dos movimentos de resistência, tende a tornar-se instrumento favorável à
emancipação social sem o apagamento das diferenças culturais.
Neste terceiro capítulo, dada a complexidade que envolve a discussão em torno
da temática “movimentos socioculturais”, nossoa propósito consiste em delimitar alguns
pressupostos, os quais, acreditamos que, necessariamente, estariam compreendidos no debate
sobre o reestabelecimento da dignidade e do bem- viver da população indígena. Base com a
qualCom base nesses pressupostos, dialogamos com o movimento indígena, pois acreditamos
que as temáticas em torno das diferentes identidades culturais, étnicas e os pressupostos
delimitados para o diálogo, constituem pontos essenciais na pauta sobre as perspectivas de
novas políticas, inclusive as de educação escolar, reivindicadas pelos povos indígenas..
Assim, todo este capítulo, além da desconstrução das bases civilizatório-
universalistas, apresenta pressupostos, nos quais se assentam a construção de novas políticas,
inclusive as concebidas pelo movimento indígena,assentam as construções de novas políticas,
inclusive as concebidas pelo movimento indígena; políticas sobretudo educacionais, que
contemplaem o reconhecimento e o respeito aàs suas culturas e àas formas próprias de
organização social, .
Desse modo, buscamos aqui fundamentar o contexto no qual se insere a
educação escolar não mais como instrumento de descaracterização do outro, e, sim, como um
recurso a favor dos grupos que se identificam em bases socioculturais próprias, tal como
defendem os povos indígenas. aspectos que trataremos com detalhes a partir do capítulo
cinco.
Ainda neste capítulo, fazemos uma breve caracterização do processo de consolidação do
movimento indígena no Brasil e, bem como, situamos o debate em torno da educação escolar
interculturalÉ nesta segunda perspectiva que nos deteremos nesta parte do trabalho,
caracterizando alguns pressupostos que fundamentam o desafio da construção de novas
políticas socioculturais contra-hegemônicas e nesta, situamos a educação escolar, tal como
94

vem sendo concebida neste meioa partir dos movimentos socioculturais e reivindicada pelo
movimento indígena, vinculada às bandeiras de emancipação social, com base no diálogo
entre culturas.

3.1 - ReconfiguraçõesA desconfiança dna cultura e da política: alternativas


contra-hegemônica e o s movimento de afirmação das
identidades étnicas e culturais em sociedades plurais

Para destacarmos o movimento contra-hegemônico de mudanças e as


implicações políticas em questão, para que sejam construídas relações interculturais, partimos,
pois, nesta parte do trabalho, da desconfiança aos modelos universalistas concebidos nas
sociedades ocidentais para toda a humanidade, para destacar o movimento contra-hegemônico
de mudanças e destacar as implicações políticas para que sejam construídas relações
interculturais. Na seqüência, Nnestse movimento de mudanças no mundo social, ao
apresentarmos os pressupostos que embasam a concepção contra-hegemônica, apesar dos
diferentes enfoques, hámostramos alguns pontos comuns no debate entre os interlocutores
que teorizam esta concepçãosobre o movimento contra-hegemônicoo movimento, aspectos
recorrentes no decorrer do capítulo.
Antecipando tais pontos, entendemos como . O primeiro ponto sendo comum,,
dentre as propostasos pressupostos da concepção oriunda do movimento sociocultural, trata-se
do entendimento de quea compreensão de que a perspectiva ocidental não é a única verdade a
orientar os caminhos para a relação entre povos. e se faz-seÉ necessário construirmosconstruir
relações sociais e políticas fundamentadas em novas bases, no respeito às verdades das
diferentes culturas. O segundo aspecto comum, no movimento de mudanças, consiste na
posição consensual de que os eEstados nacionais foram formados, negando a pluralidade de
povos e culturas e que, mesmo subjugadas a uma formulação única de nacionalidade,
permaneceram e permanecem visíveis as diferentes identidades, manifestando-se em formas
de enfrentamentos e exclusões. O tTerceiro aspecto comum está atrelado a uma condição: , os
caminhos para a superação das crises sociais da modernidade devem passar,
necessariamente,m por medidas que garantam o direito às identidades, aos valores culturais, e
às formas de organização social próprias e, substancialmente, ao restabelecimento de
condições sociais dignas de bem viver dos grupos étnicos, dos povos. Por fim, reconhecidas
as pluralidade s que foram submetidas aos Eestados nacionais, –- pluralidade ainda maior se
pensarmos a aldeia global; –- admitida a legitimidade, o direito subjetivo de cada povo
95

exercitar sua identidade,; torna-se consenso a necessidade de novas formas de relações


socioculturais, construídas sob novas bases políticas, intra eEstados nacionais e entre nações
supranacionais., Enfim, novas alternativas contra-hegemônicas de emancipação social.

No que diz respeito à desconfiança posta no modelo ocidental de igualdade


universal, pautamo-nos na

3.1.1 - Considerações sobre aA desconfiança ao modelo ocidental


ocidental dede igualdade universalismo e globalizações

A reflexão de pensadores contemporâneos, enfatizando as desconfianças diante


doesse modelo de igualdade universal, concebido com base nas ciências ocidentais, sãoe
recorrentes da mídia “global”., Dentre eles, Taylor (2002), que diz:
Foi-se o tempo em que os "ocidentais" podiam considerar sua experiência e sua
cultura como norma e outras culturas meramente como estágios anteriores do
desenvolvimento do Ocidente. Hoje a maior parte do Ocidente percebe a presunção
arrogante que está no centro dessa idéia antiga.
Em consonância com Taylor, outros autores como Todorov (1999, p. 302)
reforçam as críticas que revelam o esgotamento dos modelos científicos de homogeneização
social e cultural, declarando que “os representantes da civilização ocidental já não acreditam
tão ingenuamente em sua superioridade, e o movimento de assimilação enfraquece”.
Portanto, no plano ideológico, pensadores reafirmam a prespectivaperspectiva dos
movimentos sociais, para os quais, a “civilização moderna”, montada nas crenças e valores da
cultura ocidental, não atendeu, não se fez acompanhar de condições concretas de bem- viver
extensiva a todos e, portantopor isso, os modelos de assimilação tendem a dar lugar ao
pluralismo cultural.
A constatação, cada vez mais evidente, da fragilidade do projeto de
homogeneização cultural, escancara os problemas resultantes das realidades pluriculturais. ,
no qual aAté então, as diferenças eram reconhecidas somente quantdo se pretendia diminuir,
escravizar, segregar, excluir, negar direitos ao outro. Os princípios de unidade, que sustentam
a idéia de nacionalidade, firmados em bases universalistas, estão sendo postos em questão por
tendências, as quais, embora não possuam caráter conclusivo, apontam para mudanças no
aspecto social e político, em sociedades nacionais, que se constituíram, absorvendo povos
diferentes. Sob desconfiança, no discurso que concebia a formação de uma humanidade
homogênea, já não se mantém a idéia de civilização universal, “a sociedade não é como os
96

sociólogos pensaram muitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade,
produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma” (HALL, 2001,
p.17).
Convém alguma ressalva quanto à crise da modernidade e as alternativas
contra-hegemônicas., as quais, embora Eestas, ainda que apontem para mudanças estruturais
no mundo social, não necessariamente representam ruptura à dinâmica expanscionista,
vinculada a determinadas áreas do saber ou a instituições do mundo ocidental, ou sejaisto é,
os instrumentos de globalização, o avanço técnico-científico, têm sua dinâmica própria,
mesmo sendo criticadas como motivadoras da crise social, sobretudo, da crise política, com
insidênciaincidência sobre as identidades culturais.
Enfim, os movimentos de resistência sociocultural vêem-seestão às voltas, com
instrumentos homogeneizadores globalizantes que colocam em interconexão áreas diferentes
do globo, com fortes apelos ao consumo de produtos e conseqüente sedução das pessoas à
lógica de mercado da cultura ocidental.. SEssa sedução que se esvai quando a grande maioria
não dispõe de condições de comprar. Excluída dos benefícios que garantiriam o bem- viver
numa identidade universal, a grande massa populacional aglomera-se nas periferias das
grandes cidades, destituídas, também, das condições dignas que sustentavam suas identidades
culturais, no passado.
Resumindo, o fracasso das promessas da modernidade traz, como
conseqüência, a implantação de uma cultura consumista de mercado, difundindo toda sorte de
“enlatados” culturais pelos mecanismos de globalização, ao mesmo tempo em que não
possibilita a essa grande massa o acesso a condições para comprar tais mercadorias.

1.2 - Sobre globalizações

Nas reflexões aqui apresentadas, associamos, tanto as crises quanto àas


mudanças no mundo social, a instrumentos, mecanismos de “globalização”, expressão
comumente associada à economia, sobretudo ao processo de transnacionalização da produção
e comercialização de bens e serviços, e dos mercados financeiros. Porém, há outras dimensões
associadas ao termo globalização, o que significa dizer que não há globalização e, sim,
globalizações. Sousa Santos (2000ba, p. 22) define este sentido amplo de “globalização”
como sendo “o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua
influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra
97

condição social ou entidade rival”.


Estender esta influência, a que se refere Sousa Santos, depende dee suporte que
levem tal influência virtual a toda superfície da terra. Este suporte ou instrumentos consiste
nas instituições modernas da sociedade ocidental que se aperfeiçoam constantemente, é o caso
do “mercado capitalista”. Este instrumento, em particular, e seus produtos acabam por se
confundirem com o termo “globalização”, dado o seu raio de influência, a tal ponto de a
expressão “mercado”, por vezes, ser substituída por “globalização”. E pPor ser a instituição
mais identificada com o mundo ocidental, sua influência acaba por submeter tudo e todos à
lógica de mercado, isto em razão de a hegemonia econômica sempre ser acompanhada de uma
hegemonia cultural que a justifica e consolida.
Assim, a conotação negativa, associada à globalização, está associada à lógica
de mercado, lógica da exclusiva possibilidade técnica: tudo o que pode ser produzido
empresarialmente possui um valor absoluto e não deve ser impedido por exigências éticas.
Este mecanismo de globalização, aperfeiçoado pela cultura ocidental, é um dos mais
perversos no mundo atual, e, que de acordo comnas palavras de McLaren (2000), que torna a
“ética obsoleta”. O mesmo autor ilustra sua definição com o exemplo:
O patrimônio dos 358 maiores bilionários do mundo é superior à renda anual
aproximada da metade da população do globo [...] Raras vezes, na política cheia de
ódio das últimas décadas, viu-se tanto desprezo pelos pobres e pelas pessoas de cor
menos favorecidas . (IbidMCLAREN., 2000, p. 14)..
Este ângulo da globalização, quando se sobrepõe aos demais, torna toda a vida
social, e não apenas as relações econômicas, submissas à supremacia absoluta da razão de
mercado. Sob este mecanismo de globalização, opera-se, uma completa inversão de valores:
enquanto o capital é personificado e elevado à posição de sujeito de direito, o homema pessoa
humana é relegadoa à condição de simples mercadoria,, ou de instrumento produtivo, a à
serviço do capital. Portanto, é uma globalização que se sustenta nos mesmos princípios do
etnocentrismo ocidental. Esta faceta do mundo ocidental justifica, a, ainda viva, pretensão
imperialista por uma concepção unilateral da civilização., Neste caso, a globalização funciona
como uma retórica da dominação. Como expressa Bedjaoui (1981, p. 02), “levado por um
„“narcisismo cultural”‟ inveterado, o Ocidente não parou de representar o agressor em
relação às outras culturas e às outras civilizações do mundo”.
É preciso ressaltar outros ângulosAcima,Mas, nos referimos acima
relacionados aa “globalizações”, ou seja, subentendendo que asnão podemos desconsiderar a
existência de instituições, mesmo as produzidas ou aperfeiçoadas pela cultura ocidental,
podem que produzirem aspectos positivos para os povos. Ou seja, Hhá globalizações, e que
98

podem ser vistas comoconsideradas benéficas, mesmo que sejam para expor, visualizar
problemas sociais, graves, a em que se encontram determinados grupos sociais, determinados
povos, tal como a globalização que produz resistência política, porque atrai, claramente, a
atenção para dilemas antigos ou de aparição recente, causando, pelo menos, indignação.
Resistência essa manifesta, também, em levantes, aos moldes dos grandes movimentos por
justiça social e que também se estendem pelo globo, geralmente, denominados como
movimentos antiglobalização. No mesmo entendimento, podemos relacionar o
cosmopolitismo, enquanto modo de produção globalizada, no qual, temos o favorecimento à
valorização e ao resgate de culturas, antes desprezadas, como fundamento para mudanças
estruturais com conseqüências políticas.
Assim, com as críticas, e a conseqüente exposição das mazelas, resultantes das
políticas de exclusão e de assimilação do outro, hoje expostas pela globalização, abrem-se
espaços para movimentos de afirmação, de ressignificação das diferenças, como meio
necessário para o resgate do bem- viver, da dignidade de cada ser humano, em suas
peculiaridades locais. iIndicando, pois, que este contexto plural, num mundo onde já estão
firmadas “teias” globais, “compreender o “„outro”‟ será o maior desafio social do século 21”
(TAYLOR, 2002). O desafio está na construção de novas políticas, que trabalhem garantindo
o direito daos povos e grupos sociais em de manterem seus valores culturais, ao mesmo tempo
em que sejam estabelecidos novos elos de relações entre povos, entre culturas.

1.33.1.2É neste espaço de críticas ao modelo fracassado de igualdade universal, Formatados: Marcadores e
numeração
que se assenta o - O movimento de afirmação das diferençasidentidades étnicas e culturais,
movimento que inclui a remodelação das instituições, entre elas, a escola, tal como almejam
os indígenas, como explicitaremos a seguir.

Entramos no século XXI, conforme a distribuição do tempo concebido no


mundo ocidental, período para o qual, esperava-seque se esperava, ser um tempo de
completude do processo de modernização. Contrariando as pretensões ocidentais,, conforme
Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p. 28), muitos pesquisadores observam agora, na
modernidade, não a chegada da uniformização diluindo as diferenças e tornando todas as
pessoas em indivíduos, mas a era das resistências étnicas, de emergência de identidades
particularistas, favorecendo a uma “ideologia de resistência à uniformização, ou à dominação
cultural e lingüística”. Contraditoriamente, as resistências são organizadas e reforçadas
valendo-se dos instrumentos de globalização, tal como destacamos no item
99

anterioranteriormente, cuja rapidez das comunicações possibilitam a difusão das formas de


organização, bem como, as reivindicações dos grupos, ou, dizendo de outro modo, “um dos
efeitos dessa mundialização das idéias e das experiências de liberação nacional foi o de
ligar, mais do que nunca, as reivindicações do Terceiro Mundo e as das minorias do
Ocidente”. (POUTIGNAT; e STREIFF-FENART, 1998,Id., Ibid., p. 28).
Esta resistência, em forma de movimentos organizados, desloca a
categorização das lutas que, sob a idéia do universalismo, situavam-se nas definições de
classes sociais. Ou seja, sSob as ideologias universalistas, as pessoas, na condição de
indivíduos, tinham definidas as suas posições dentro do modo de produção capitalista, ou
melhor, a diferenciação social estava pautada na detenção e no acesso aos bens de capital. A
mudança do foco das lutas vem sendo deslocada das classes para os novos movimentos
organizados, sem perder de vista a problemática das desigualdades sociais. Há, portanto, um
deslocamento das resistências para outras categorias de organização social, para segmentos
marginalizados, para identidades coletivas, étnicas, comunitárias e outras.
A luta destes novos movimentos situa-se em campo comum ao tradicional
espaço de resistência dos trabalhadores pela emancipação social: a problemática das
desigualdades sociais, por por se tratarem-se de segmentos situados, também, na base da
pirâmide social - os mais pobres e despossuídos, excluídos dos bens e serviços nas sociedades
capitalistas - que se fazem ouvir e visualizar com vozes diferentes, diferentes modos de ver e
de encarar o mundo, manifestaos em diferenças culturais.

1.3.1 - Sobre as diferenças

O surgimento das novas formas organizativas - que veêm se estabelecendo com


base na multiplicidade das diferenças humanas (físicas, sexuais, étnicas e, religiosas, sociais,
econômicas, culturais etc.) que povoam o tecido social contemporâneo - apresenta-se como
resposta à crise da modernidade, como resposta e às práticas de exclusão que teêm mediado
os contatos entre os diferentes. Frente a este contexto, a temática “diferença é antes de tudo
uma realidade concreta, um processo humano e social, que os homens empregam em suas
práticas cotidianas e encontra-se inserida no processo histórico” (SEMPRINI, 1999, p. 11).
Tomando a questão pelos significados, o sentido da expressão “diferença” tem
origem na negação do outro, “o “„outro‟” é o “ „di-ferente‟”, do latim, dis, que significa
divisão ou negação; e ferre, que significa levar com violência, arrastar” (GUARESCHI,
100

1998, p. 157). A diferença como negação do outro, remonta a tempos imemoriais, onde
quando um determinado grupo se considerava como povo e todo o resto como “os outros”. S,
significa dizer que diferença não é um simples conceito filosófico, mas um fator concreto,
como diz Semprini em na citação acima, constatado nas práticas cotidiano, fazendo parte do
processo histórico das pessoas, dos grupos sociais. Processo no qual as pessoas “identificam-
se e são identificadas pelos outros na base de dicotomizações Nós/Eles, estabelecidas a partir
de traços culturais que se supõe derivadas de uma origem comum” (POUTIGNAT; e
STREIFF-FENART, 1998, p. 141). Portanto, as diferenças afloram com a consciência de
grupo, com o reconhecimento da pertença a uma identidade. É com a linha de demarcação
entre membros e não membros, ou então, no confronto dos modos de ser, que os atores se dão
conta das “fronteiras” que marcam o sistema social ao qual pertencem, e se dão conta das
diferenças.
É, também, na história, que se assenta àa origem do “discurso” da diferença.
Advém dos segmentos dominantes, “conservadores”, “de direita”, como afirma Pierucci
(1999, p. 29). O mesmo autor acrescenta: “a direita já escolheu, desde sempre, a diferença”
(Id., Ibid.), porém, tratava-se de uma diferença nos termos em que o oOutro é escravizável,
desigual, subordinado, inferior, passível de discriminação, humilhação, segregação e
exclusão. Obviamente, esta forma de ver a diferença não se confunde com a perspectiva
defendida pelos movimentos sociais. A expressão diferença, ressignificada por segmentos
situados no outro lado daqueles a que Pierucci identifica como “direita conservadora”, os
novos movimentos sociais, sobretudo das minorias, passouaram a investir no léxico da
diferença e a tematizar o direito à diferença. Pierucci (1999, p. 31) situa:
São divisas novas para a esquerda, vem da esquerda, não da direita. Isto
significa que, além do diferencialismo de direita, existe hoje um diferencialismo de
esquerda ou, se quiserem, uma esquerda diferencialista e seu mote é a defesa do
“direito à diferença”.
Os Estados nacionais do Ocidente apresentam-se, hoje, em contextos mais ou
menos semelhantes, tendo que administrar a realidade plural pós-colonialismo. CEsses
contextos que podem ser traduzidos na forma de movimentos similares de reivindicações pelo
reconhecimento e respeito a identidades coletivas, afirmando esta outra significação do termo
“diferente” - que compreende o entendimento de alteridade, mais coerente ao contexto atual -
que tem a verrelacionado com a expressão “distinto”, expressão que, conforme Guareschi
(1998, p. 157):,
“oO „“"outro”‟" é o „“"dis-tinto‟”" de dis e tinguere, que significa tingir, pintar;
também é separado, é o outro, não contudo arrastado para fora, mas possuindo sua
identidade e estabelecendo com o “mesmo” relações de diálogo, construtivas, [...].
Essa a verdadeira alteridade”.
101

Esclarecendo melhor o conceito de alteridade, Guareschi (1998, p. 157),:


comenta complementa que a clareza o entendimento da expressão “alteridade” encontra-se
“dentro da categoria „autrui‟, isto é, o outro homem que está no mundo além do meu
mundo.”.
Com o aprofundamento dos estudos sobre a alteridade, sobre a questão do
outro - com grande contribuição da antropologia - outras áreas do saber ocidental obtéêm um
instrumento de alargamento de suas perspectivas sobre as possibilidades de convivência entre
diferenças que se supunha incompatíveis. No entanto:,
o O outro, por vezes é reduzido a coisa sobre a qual os interesses do eu se projetam.
Quando isso ocorre, há dominação, usura, exploração, entre tantas outras relações
de abuso. Não basta, portanto, admitir a realidade do outro. É necessário
reconhecê-la como a realidade de um sujeito legítimo, que não apenas me constitui
enquanto eu, mas que se apresenta como portador de um projeto que lhe é próprio e
merece ser reconhecido. (JOVCHELOVITCH, 1998, p. 74)..
Dentre os possíveis rumos que tomam os estudos sobre as diferenças, convém
ressaltar o nosso foco de atenção, que se situa nas diferenças culturais e nos aspectos da
organização social imbricados nestas diferenças,. Ccom a ressalva de que as diferenças entre
povos, grupos étnicos, não podem se rdeduzir a semelhanças e diferenças culturais. Os
padrões relevantes de identidade,, de pertença a um povo, não derivam de uma lista descritiva
de traços ou de diferenças. Mesmo assim as diferenças culturais “podem” apontar para:
1. sinais ou signos manifestos - os traços diacríticos que as pessoas procuram e
exibem para demonstrar sua identidade, tais como o vestuário, a língua, a moradia,
ou o estilo geral de vida; e 2. orientações de valores fundamentais - padrões de
moralidade e excelência pelos quais as ações são julgadas . (BARTH, 1998, p.
194)..
Reforçando que tTais categorias podem ter importância para pertença a um
povo, mas não, necessariamente, precisam ser relevantes. Enfim, as diferenças que marcam as
fronteiras entre grupos não são as diferenças objetivas e, sim, a afirmação de pertença a este
povo, em oposição a outros, que declare sua sujeição à cultura compartilhada por este povo.
A adoção de tal perspectiva situa-se, também, na postura crítica ao realismo
científico, que contesta “a possibilidade e mesmo a legitimidade de buscar representar outras
culturas com base nos referenciais ocidentais (ditados pela ciência), advogando, em vez
disso, a autoridade epistêmica das „“verdades locais‟”, das „“múltiplas subjetividades‟”
(MALERBA, 2000, p. 273). Este entendimento justifica o nosso afastamento de possíveis
representações das culturas, situando-nos na concretude de contextos plurais, nos quais,
interessa-nos as bases sobre nas quais se firmam as articulações dos grupos, para que se
constituam em movimentos organizados, a forma como são administradas as diferenças que se
assentam em identidades distintas.
102

1.3- Sobre identidades Formatados: Marcadores e


numeração

Na atual conjuntura de reconfigurações, de resistências culturais e de políticas,


existem têm diferentes dimensões, nas quais podem ser pensadas as identidades. Apesar das
contradições, resistências e reconfigurações, são mantidas as identidades nacionais, a unidade
em torno de culturas nacionais - como tratamos anteriormente, identidades formadas em torno
de comunidades imaginadas, ou sejaisto é, formadaos por um dispositivo discursivo,
agregando culturas que foram unificadas após longo processo de conquista violenta que
subjugou povos e suas culturas, costumes, línguas e tradições;, diferenças nunca totalmente
dissolvidas - permanecendo fortes “especialmente com respeito a coisas como direitos legais
e de cidadania” (HALL, 2001, p. 73).
Outra dimensão diz respeito às globalizações, cujos processos e instituições de
alcance global difundem informações como num supermercado cultural, criando necessidades
e tendências a para uma maior interdependência global, onde as “identidades se tornam
desvinculadas - desalojadas - de tempos, lugares, histórias e tradições específicos” (Id.,
Ibid.HALL, 2001, p. 75), ou seja, dando seqüência ao “fenômeno” da homogeneização
cultural. Por outro lado, a mesma globalização, como já mencionamos acimaanteriormente,
favorece aos movimentos de resistência, reforçando uma tendência de afirmação das
diferenças como novas bandeiras de luta. Em todo este contexto, conforme Hall (Ibid.2001, p.
73), “as identidades locais, regionais e comunitárias teêm se tornado mais importante”, issto
porque, nosso comportamento individual e coletivo se organiza, inclusive e necessariamente,
pela afirmação de nossa identidade de pertença a uma comunidade, a um povo.
Este processo atual de crise, afirmação e mudanças nas sociedades modernas e,
sobretudo, o contexto de globalizações, somados à emergência dos movimentos de
contestações e de resistência às ideologias homogeneizantes, se traduz em questionamentos e
reconfigurações ao entendimento de identidade. Conforme Woodward (2000), na base do
debate sobre identidades na época atual, estão as perspectivas “essencialistas” e perspectivas
“não-essencialistas” de identidade. Identidade com base essencialista, conforme a autora,
sugere a existência de um conjunto cristalino, autêntico de características que um grupo
compartilha e que não se altera ao longo do tempo, portanto, identidade fixa e imutável. O
essencialismo pode fundamentar suas afirmações, tanto na história - no passado
compartilhado, representado como uma verdade imutável - quanto na biologia, em elementos
103

“raciais”. Já uma definição não-essencialista de identidade focalizaria as diferenças, assim


como as características comuns ou compartilhadas, portanto, relacionalis, tais como nas
marcações simbólicas de afirmação das identidades nacionais. Neste caso, os sistemas
simbólicos dariam sentido de unicidade a grupos em luta por emancipação social.
Situando a discussão das identidades no campo das representações e do
discurso, Hall (2000, p. 109) comenta que as identidades são construídas dentro do discurso e
que, portanto, é preciso compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais
específicos. ,C comenta, também, que “elas emergem no interior do jogo de modalidades
específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do
que o signo de uma unidade idêntica”. Portanto, no que apresentade acordo com este autor, as
identidades são construídas por meio da diferença, estando sempre sujeitas a serem
desestabilizadas, pois se afirmam em posições-de-sujeito, temporárias, construídas nas
práticas discursivas. Acompanhando tal compreensão, Duveen (1998, p. 98) explicita o
entendimento de identidade como sendo:
uUm lugar social, um espaço que se torna disponível dentro das estruturas
representacionais do mundo social. [...] A identidade, então, não é uma coisa, como
uma atitude ou crença determinadas, mas a força ou poder que liga uma pessoa ou
grupo a uma atitude ou crença; numa palavra, a uma representação. A identidade é
uma luta pelo reconhecimento, e a alteridade é construída no decorrer dessa luta. A
identidade, então, é antes de mais nada separação e diferenciação do outro,
portanto a íntima relação entre o eu e a identidade, ambos são construção da
diferença.
Direcionando a reflexão para o nosso foco de interesse, as identidades dos
grupos étnicos, ressaltamos que a relevância destas se justificam no pelo papel que exercem
na luta de tais grupos pelo em busca do reconhecimento de seu modo sócio-cultural, pelo por
parte do Estado-nação, no qual estão inseridos. A identidade étnica, neste caso, enquanto
força representacional, corresponde a um conjunto cultural específico de padrões valorativos,
que o grupo usa para categorizar a si mesmo e os outros. Assim, pertencer a uma categoria
étnica implica em ser um certo tipo de pessoa que possui aquela determinada identidade
básica. Ainda Cconforme explicitado por Woodward (2000) e tal como nos referimos,
anteriormente, na introdução deste trabalho, os discursos e as representações, no processo
cultural, constroóem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar, e a partir
dos quais podem falar, onde se estabelecem as identidades individuais e coletivas.
O movimento de afirmação de identidades vem ressignificar as diferenças,
defender o “direito aà diferença” sob novas perspectivas que pensem a convivência entre
povos, entre culturas, em a partir de outros patamares. Do ponto de vista do movimento de
reconhecimento das diferenças, “diferenciar não eqüivaleequivale a discriminar, e diversidade
104

não equüivale a à desigualdade”" (CASTAÑO apud CADAU, 2002, p. 35)”. ,O o desafio está
em construir alternativas humanas viáveis, nas quais as pessoas e os grupos sociais têem o
direito a de serem iguais e o direito a suas identidades sociais ou étnicas.

1.4- Sobre culturas Formatados: Marcadores e


numeração

As identidades culturais refletem a história dos seres humanos na tTerra,


separados em grupos, cada um com sua própria linguagem, sua própria visão de mundo, seus
costumes e suas expectativas. Significa dizer que a cada grupo humano corresponde uma
cultura, não, necessariamente, com distinções, amplamente, assimétricas. Cultura, conforme
Suess (1995, p. 24), “é como um laboratório coletivo, onde cada povo produz sua identidade
e os meios e comportamentos necessários para sua vida”. Em outras palavras, cada cultura
tem suas próprias e distintivas formas de classificar o mundo., Ppor estas formas
classificatórias proporcionadas pela cultura, mais ou menos consensual entre os membros de
um grupo, é que é dado sentido ao mundo social, como conclui Woodward (2000, p 41),
“esses sistemas partilhados de significação são, na verdade, o que se entende por
“„cultura‟”.
A cultura está imbricada nas questões que constituem preocupação
contemporânea, principalmente, dos povos sob maior influência dos processos
“globalizantes”.; Como afirma Santos (1996),tT teem a ver com os muitos caminhos que
conduzem os grupos humanos a suas relações presentes e suas perspectivas futuras. Na
explicitação do autor,.
sob Por um aspectoprisma, “cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a
existência social de um povo ou nação, ou então de grupos no interior de uma sociedade" (Id.,
Ibid.SANTOS, 1996, p. 24)”. Sob outro aspecto. Por outro prisma, como afirmamos acima,
cultura compreende também a visão de mundo, de pessoa humana, de sociedade, dos saberes
e, como complementa o mesmo autor, refere-se, também, “ao conhecimento, às idéias e
crenças, assim como às maneiras como eles existem na vida social (Id., Ibid., p. 24)”.
Em função das particularidades próprias de cada cultura, a tônica é descartar
qualquer possibilidade de comparação entre culturaselas, de colocá-las num único esquema
com o intuito de classificá-las. É a questão da incomensurabilidade das culturas. Deste modo,
como afirma Santos (Ibid1996., p. 13), na relação entre as diferentes culturas, “nega-se que
seja viável fazer qualquer hierarquização. Argumenta-se que cada cultura tem seus próprios
105

critérios de avaliação, e que, para tal hierarquização ser construída, é necessário subjugar uma
cultura aos critérios de outra”. Neste entendimento, firma-se com mais consistência, na época
atual, de que não há critérios científicos capazes deque nos forneçam bases para afirmar a
possibilidade de que uma cultura seja inferior a outra. Não existem leis naturais que digam
quesobreponham as características de uma cultura sejam como superiores a de outra.
Entretanto, a defesa da postura relativista, conforme Cardoso de Oliveira
(2000), a defesa da incomensurabilidade das culturas, torna-se problemática em certas
dimensões do relacionamento intercultural, em situações nas quais se busca consenso em
questões de que envolvem valores como moralidade e eticidade, questões relacionadas com a
idéia do “bem- viver”. O mesmo autor exemplifica as implicações, num no caso de relações
entre povos, questionando se seriam aceitáveisl práticas como o infanticídio, compreensível,
no âmbito da cultura, e inaceitável, sob a ótica da moralidade e eticidade, em no processo de
relações interculturais. Voltaremos, mais adiante, às ressalvas de Cardoso de Oliveira em item
mais adiante.
Um outro aspecto a ser destacado sobre as culturas, tem a ver comestá
relacionado a complexidade das culturasdestas dnos diferentes agrupamentos humanos, e,
também, com oao inevitável encontro entre povos, entre culturas, dada a exposição feita
provocada pelo processo de globalização, fazendo que faz com que as manifestações culturais
assumamam novos contornos, reforçando uma característica comum às culturas, sua
dinamicidade, conforme Suess (1995, p. 25):
As culturas não são algo estático. Os diferentes povos souberam adaptar suas
culturas - seus instrumentos materiais, sua organização social e política e seu
universo religioso - a novas circunstâncias históricas. [...] Pela cultura e pela
história cada povo constrói sua identidade e sua alteridade.
Este caráter dinâmico da cultura contesta a tendência, entre os defensores da
“ordem civilizatória”, de classificar o movimento de resistência à homogeneização
globalizante como um retorno ao passado. O resgate de valores locais, visto por alguns, como
um retrocesso - dada esta a dinamicidade das culturas frente a novas circunstâncias históricas
- deve ser vista como uma rearticulação entre modernidade e identidades coletivas, culturais e
comunitárias, diferente do fundamentalismo nacionalista ou étnico. Assim, se as experiências
concretas de vida se modificam, as pessoas precisam encontrar novos símbolos, de acordo
com a situação a que estão vivendo:, rearticulando identidades coletivas, culturais com novas
identificações, relacionadas a outros agrupamentos a quedos quais faça parte.
106

1.5- Sobre etnias Formatados: Marcadores e


numeração

Invertendo a afirmação feita no início do item anterioracimaanteriormente,


sobre culturas, podemos afirmar que a existência de diferentes culturas - modo de consciência
que as pessoas têem de si mesmas ou formas de descrever os comportamentos humanos -
corresponde a admitir a existência de agrupamentos humanos, diferentes, que compartilham
valores culturais fundamentais. Ou seja, unidades étnicas que correspondem a cada cultura.
Poutignat e Streiff-Fenart (1998) situam a origem da expressão “etnia” no
Embora o uso do termo etnia, em sua origem no período de expansão colonialda colonização
promovida pelas nações da Europa ocidental, o qualnesse período, etnia, confundia-se com
outras noções, tais como, tribo, raça, povo e nação., Eentretanto, com a formação dos Estados
pós-coloniais, o convencionou-se, como tratamento para designar os dado aos povos
indígenas, os convencionou comoa expressão “tribos”, identificação usual até recentemente.
UltimamenteA, a partir da década de 1970, tornou-se mais comum o uso da expressão etnia,
ou sociedade, tendendo a sepultar de veze o termo “tribo”, entrandoou em desuso, na medida
em que se subentende tratar-se de uma construção ideológica, refletindo uma visão
estereotipada e pejorativa, tal como a expressão “índios”. No âmbito acadêmico, e científico
das sociedades ocidentais, também o termo “etnia” está sujeito a reservas quanto ao seu uso.
Conforme Poutignat e Streiff-Fenart (1998),os mesmos autores, embora seja mais consensual,
há restrições no quanto ao uso do termo etnia para designar grupos socioculturais por este
manter similaridade, eqüivalência com o termo “tribo”.
Nas críticas associadas ao uso do termo etnia, há aspectos que estão
relacionados à adoção ampla do termo, sobretudo quando adotado usado como forma de auto-
identificação de segmentos dominantes. Neste caso - considerando que os segmentos sociais,
com base na etnicidade, determinam um conjunto de categorias de pertença étnica, na forma
de quadro cognitivo comum, quadro que servirá de guia, de orientação nos contatos sociais e
interpretação de situações estranhas ao grupo - em situações de relações assimétricas, havendo
um grupo dominante, o outro, que destoa do seu quadro comum, é objeto de exclusão,
desprezo, de adjetivações, de preconceito, reforçando a condição de desvantagem dos grupos
dominados.
As ressalvas quanto ao uso do termo etnia decorrem também da possibilidade
deste vir a definir o mesmo entendimentotermo ser compreendido com o mesmo
entendimento do termo raça., nNeste caso, acompanharia a conotação biológica e,
107

cientificista, tal como explicitamos anteriormente. Isto reforçaria o discurso racista, de


subjugação dos não-brancos. Conforme análise de Poutignat e Streiff-Fenart (1998), o uso do
termo pode ser feito para encobrir situações de exclusão, o a que se procura evitar na
substituição da palavra raça por etnia. Enfim, os mesmos autores comentam inúmeros estudos
e tendências no tocante ao uso da expressão etnia, estudos que, confrontados, mantêém o
caráter inconcluso de tais tendências, apontando sempre para a provisoriedade do termo.
Entretanto, a etnicidade tende a ser ressignificada como novo paradigma em
ciências sociais, resultante da mudança do discurso, no qual deixaram de ser qualificadas de
primitivas e de tribais as comunidades contemporâneas, em prol dos termos etnia e etnicidade,
aplicados, indiferentemente, a todas as sociedades. “Sob esta perspectiva, o conceito de
etnicidade exprime a unidade de um fenômeno social universal e onipresente
“„simultaneamente nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos, no passado e no presente”‟”
(POUTIGNAT; e STREIFF-FENART, 1998Id., Ibid., p.31).
O termo nação, para designar um grupo humano, como já comentamos,
anteriormente, também não reúne critérios objetivos de tal modo que fosse seja aplicável a
grupos em geral, dada a diversidade de formas como através das quais os grupos se
manifestam, se afirmam. E mais, com a emergência dos Estados nacionais, com a
“"fabricação"” das comunidades nacionais, o termo nação foi tendo seu uso restrito. O uso
generalizado do termo, na paranóia das elites conservadoras, resultaria em possíveis disputas
por reconhecimento por parte deimpetradas pelos grupos subjugados, uma vez que o discurso
de nacionalidade foi sendo firmadofirmou-se pressupondo um território, uma língua nacional
e uma certa memória comum, que constituiria a cultura nacional. Esta forma de
nacionalidade, conforme crítica já apresentada, teve efeito de ocultação e não de
reconhecimento dos povos, grupos étnicos que se pretendia que fossem absorvidos em tal
discurso, ao mesmo tempo em que os Estados desenvolviam programas de homogeneização
em torno desta cultura nacional. Hoje, com a exposição maior dos Estados nacionais, com a
qual é denunciada a inexistência de “nacionalidades” fundadas em uma única base étnica na
formação do seu povo, é são também reveladaso, por conseqüência, as condições de exclusão
a que grupos étnicos estão submetidos nestas nacionalidades.
Enfim, o modo mais adequado na concepção dos agrupamentos humanos
distancia-se da possibilidade de se obedecer a padrões que se possam considerar recorrentes,.
Eesta tem sido a tônica dna análise em trabalhos antropológicos, conforme Poutignat e Streiff-
Fenart (Ibid.1998, p. 61), destacando “ser impossível encontrar um conjunto total de traços
culturais que permitam a distinção entre um grupo e outro, e que a variação cultural não
108

permite, por si própria, abranger o traçado dos limites étnicos”. Tornou-ando-se arbitrário
afirmar que, para ser considerado grupo étnico deva possuir determinados traços.
Predomina, nos tempos atuais, como critério para identificação, a
autodefinição. Assim, um alguém é Apurinã 13 pelo fato de se crer e denominar-se Apurinã,
agir de modo a validar e ser reconhecido pelo povo Apurinã. A autoridade ou a atribuição
para determinar o pertencimento é de competência do próprio grupo, a partir dos sentimentos
de pertença a um povo ou a uma comunidade formada por pessoas possuidoras de uma
herança cultural comum.
Respeitando o princípio da autodefinição, a expressão menos arbitrária para o
trato com as populações indígenas é “povos indígenas”, tendência respaldada no direito
internacional14, com respaldo, também, de organizações de mobilização pelos direitos
indígenas. Cardoso de Oliveira (2000, p. 187) destaca que tal fato representa uma conquista
“das populações indígenas [ao] serem, finalmente, reconhecidos como povos e, como tais,
[tornam-se] legítimos pretendentes à singularidade étnica e à autonomia, ainda que no
âmbito dos Estados nacionais”.
A autodefinição étnica permite, também, a explicação de situações que afetam
os povos indígenas, que, submetidos a práticas civilizatórias, assimilacionistas, lhes é
oferecidoa, como possibilidade, a mobilidade étnica. Como comenta Poutignat e Streiff-
Fenart (1998, p. 154),:
N“Nna América Latina, a fronteira que separa os indígenas dos mestiços é
suficientemente leve para que seja suficiente a um indígena que aprenda a falar
corretamente o espanhol e adquirir atributos culturais considerados como
definidores da cultura crioula para deixar de ser considerado como um indígena”.
No caso da Amazônia brasileira é ilustrativa a situação dos povos indígenas,
que, ao serem “civilizados”, eram categorizados como “caboclos”., e Ffrente a práticas
discriminatórias, deixar de ser índio, servia também como alternativa de sobrevivência.
Em se tratando dosNo que concerne aos povos indígenas no Brasil, embora
muitos grupos mantenham características próprias, as quais poderiam ser explicitadas como
essencialistas - características físicas e outros elementos que os ligam a uma ascendência
comum, pré-colombiana - assume maior relevância, na luta destes povos, a etnicidade como
expressão de interesses comuns. Com bases essencialistas ou redefinidas em novas bases, a

13
Povo indígena cujo território situa-se na região sul do Estado do Amazonas.

14
A convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata sobre povos indígenas e tribais
em países independentes, reconhece as populações indígenas como “povos com identidade e organização
própria” cuja "consciência de sua identidade indígena [...] deverá ser considerada como critério fundamental para
determinar os grupos interessados”, para identificá-los como povos.
109

identidade indígena é mantida como forma de mobilização. O enfoque mobilizacionista


assume maior evidência em função das condições de dominação, a que os povos indígenas
foram submetidos, e onde a etnicidade é situada como um recurso mobilizável na conquista de
poder político e de bens econômicos.
Este recurso mobilizável pressupõe, justamente, o entendimento de etnicidade
não sob condições de isolamento, ao contrário, se dãomas, em situações de interações,
próprias das condições do estágio atual da modernidade. Levando-se em conta os aspectos
dinâmicos das culturas, da e a interdependência que se criou entre grupos, apesar do contato, e
de todo o processo de uniformização cultural, a identificação étnica persiste, tornando-se a
fonte da mobilização coletiva. Ou sejaIsto é, mesmo aceitando instituições da sociedade
dominante, a identidade étnica continua sendo mais importante para os grupos quando esta se
torna fonte de mobilização coletiva. A defesa da identidade étnica, no caso dos indígenas do
Brasil, atua como forma de resistência e de busca depor participação democrática no sistema
político.
A luta política, em certas circunstâncias, pressupõe elementos que realceçam a
identificação étnica. Assim, como forma de afirmação e de mobilização, são retomados signos
visíveis como a língua, arte, rituais, vestuário e comportamentos, selecionados para tipificar o
grupo “ou utilizados para apresentar um Eu étnico específico” (POUTIGNAT; e STREIFF-
FENART, 1998Id., Ibid., p. 167). O realce de signos permite resgatar aspectos da cultura que
atuam como fator de mobilização interna em torno da identidade grupal, bem como, favorecer
a participação com mais propriedade na organização de movimentos interétnicos, que
requerem que sejam compartilhadas e, visualizadas as especificidades, os valores culturais de
cada grupo.
ACom os mundialização ou instrumentos de globalização, osou mundialização
dos sistemas de comunicação do mundo moderno,, mencionadoconforme mencionamos em
item acimaanteriormente, são difundemidos, também, os sentimentos nacionalistas e étnicos. ,
portantoNesse processo, os fatores de uniformização atuam também como facilitadores de
reavivamento de identidades particularistas. As afirmações étnicas e culturais - aos moldes
das que vêem sendo formuladas pelos povos indígenas - não excluiem, pelo contrário,
agregam novos mecanismos de luta pela igualdade de direitos na busca pelo do bem -viver,
que consiste em garantirm nos direitos próprios de cada coletividade, ou ainda, como forma
de resistênciaresistir de forma organizada contra a diluição e, assimilação impostas pelas
forças hegemônicas da modernidade ocidental. Traduzindo-se, destaDessa forma, numa
110

constrói-se uma ideologia de resistência à uniformização ou à dominação cultural, com


variações, conforme a nação a que estão submetidos os povos indígenas. No caso brasileiro,
essa resistência estende-se também a contra os interesses de grupos capitalistas sobre ospelos
bens culturais e pelas possíveis riquezas, ainda existentes, nos territórios tradicionalmente
ocupados pelos povos indígenas.
Os povos indígenas, enquanto grupos étnicos, emergindoem em formas de
mobilização, reforçam a tese dos movimentos de resistência, apresentando-se como uma
rearticulação das dinâmicas de lutas de classe,. É Importante considerandor que tais povos,
assim como os afro-descendentes e trabalhadores em geral, estiveram sempre à margem dno
processo de modernização das sociedades ocidentais. Sob este prisma, o movimento de
afirmação dos povos indígenas insere-se nesta nova dinâmica das lutas coletivas, que mais
especificamente, caracterizando-se “como uma forma de solidariedade que emerge em
resposta à discriminação e à desigualdade e manifesta uma grande consciência política por
parte dos grupos que buscam reverter uma lógica de dominação”o. (Id., Ibid.POUTIGNAT; e
STREIFF-FENART, 1998, p.103). PortantoOs, povos indígenas que resistem à colonização
armando-se das diferenças culturais para fazer disso a base de suas organizações, como
mecanismos de reivindicações políticas e econômicas. Neste caso, a etnicidade é
ressignificada no âmbito das lutas coletivas, pois já não corresponde a uma forma de
alienação e sim a um instrumento de lutas.
O movimento de afirmação sociocultural, num contexto de sociedades
nacionais, impulsiona estas sociedades a avançar na desconstrução das políticas
monoculturais e a conceber bases democráticas plurais.

1.73.1.3 - A Pluralidade, multiculturalismo e pressupostos Formatados: Marcadores e


numeração

democráticosSociedades plurais

O Rreconhecimentocer das identidades culturais, no âmbito de Estados


nacionais, pressupõe admitir a coexistência de grupos étnicos ou povos distintos, sob nestes
Estados.
Admitir, o que não é difícil. A questão, a problemática estáé posta nas poucas
condições oferecidas para que os grupos cultivem conservem sua dignidade, para que sejam
mantidas as possibilidades de existir sob com os referenciais de sua própria cultura,
coexistindo na pluralidade e compartilhando instituições comuns. Embora as referências de
111

Estado plural estejam longe da convivência harmoniosa entre os diferentes, há Estados


nacionais assentados em formações, semelhantes a um mosaico, metáfora recorrente para
ilustrar esta forma de organização, ou sejaisto é, “uma entidade uniforme composta por vários
elementos distintos e separados”. (CASHMORE, 2000, p. 416). É o caso da organização
social da Indonésia, com grupos étnicos muito diferentes, cujo elo que os uneem comum é o
mercado, onde se dispõe de serviços e produtos de outros grupos.
Na atualidade, recorre-se ao pluralismo para projetar um modelo de
organização, no qual seja exercitada a convivência entre grupos com interesses diferentes,
culturais e sociais, sem que a diversidade se torne motivo de conflito, ou seja, sem gerar
divisões profundas. Esse mModelo que pressupõe a distribuição justa e uniforme do poder
entre os grupos, num esforço de necessário para equilibrar os interesses envolvidos.
“Teoricamente”, a sociedade pluralista possibilitaria o fortalecimento da autoconsciência,
simultaâneoamente à construção de pontos de unificação, cooperação e solidariedade.
O pluralismo cultural tem se constituído num modelo teórico recorrente nos
países da América do Norte, no qual, o. Os ideólogos deste modelo acentuam a importância
dos grupos étnicos na definição das identidades sociais, enfatizando que “a pertença étnica
não é mais vista como um obstáculo para a igualdade dos cidadãos, mas como a base de sua
participação na vida política e social” (POUTIGNAT; e STREIFF-FENART, 1998, p. 73).
No plano ideológico, conforme os mesmo autores, o modelo da assimilação apaga-se diante
do modelo do “pluralismo cultural”.
Portanto, oO pluralismo torna-se uma base de discussão para novos modelos de
sociedade, na medida em que a política de homogeneização dos Estados nacionais já não se
afirma mais como tratamento justo para com as diferentes culturas. Entretanto, c
Considerando sempre que o pluralismo cultural dá-se em Estados constituídos, a demanda é
situadao desafio consiste, então, na reestruturação política interna de tais Estados, concebendo
que devem conceber a interação entre os grupos étnicos de tal modo que estes preservem suas
diferenças culturais. PortantoA situação, requer que sejam criadas regras que para regulemar
os contatos interétnicos, no âmbito de sociedades democráticas.
A construção de mecanismos de unidade entre os diferentes, numa sociedade
nacional que admita a pluralidade cultural, justifica-se como forma de impedir a segregação, o
racismo, enfim que de coíbam coibir formas de agressão ao outro, por este ser diferente. Nesta
situação, é preciso administrar a diversidade de interesses, convicções e crenças, garantindo
que as identidades individuais e coletivas sejam respeitadas, ao mesmo tempo em que se
busqueca uma forma de comunicação entre os diferentes, atentando para interesses que dizem
112

respeito à coletividade maior, passando pelointeresses que incluem o bem viver, pela e a
dignidade de todos.
Tanto Em as sociedades pluralistas, que abrigam a convivência harmônica
entre grupos étnica e culturalmente diferentes e quanto as ações aceitando e incorporando os
diferentes grupos étnicos, são caracterizadas como multiculturais. Fundamentadoas no ideal
político de se estabelecer “relações” entre os grupos étnicos, as medidas multiculturais
concretas tornam-se visíveis em instituições sociais como escolas. Na educação escolar, o
multiculturalismo é expresso no currículo com a incorporação de matérias e atividades que
explicitem os valores das diferentes culturas, no intuito de promover relações positivas entre
os estudantes. Conforme Caschmore (2000, p. 372), “nos contextos educacionais, o
multiculturalismo desenvolveu-se por meio de críticas aos modelos educacionais de
assimilação que tentam impor uma educação monocultural a sociedades culturalmente
diversificadas”. Voltaremos, mais adiante à educação multicultural.
Para Não é um processo simples as sociedades se reconhecerem como
multiculturais, não é processo simples.uma vez que mMuitas culturas são mutuamente
excludentes, outras possuem princípios, valores, costumes, opiniões discordantes. É comum,
também, em Estados liberais, nos ocorrer apenas uma atualização do discurso, atitude típica
de seus modos de fazer política:, “atualizar os discursos” incorporando em sua retórica as
expressões mais acertadas para a época. , deste Desse modo, a expressão multiculturalismo
tende a ser assimilada e ressignificada, desviando a atenção do legado colonial de racismo e
injustiça social. Há, portanto, diferentes tendências de multiculturalismo. No entendimento de
McLarem (1999, p.59), “os multiculturalismos liberal e conservador são tendências de uma
política de assimilação”. O mesmo autor explica que “os grupos privilegiados ocultam
vantagens ao defenderem o ideal de uma humanidade comum ”(IBIDMCLAREN, p. 77).
Ainda na perspectiva do mesmo autor:
Devemos procurar uma visão de multiculturalismo e diferença que avance para
além da lógica da escolha entre assimilação e resistência, [mais adiante
complementa que] mesmo uma posição liberal de esquerda sobre o
multiculturalismo não consegue avançar em um projeto de transformação social.
[...] [e propõe o] multiculturalismo crítico que compreende a representação de
raça, classe e gênero como o resultado de lutas sociais mais amplas sobre signos e
significações e neste sentido enfatiza a tarefa central de transformar as relações
sociais, culturais e institucionais nas quais os significados são gerados.
(IBIDMCLAREN, p. 80, 122 e 123)..
As críticas são postas no avanço limitado das mudanças, distante da interação
ideal, que promovea a dignidade de todos. O reconhecimento da pluralidade cultural pode
induzir, em vez de relações, a apenas a uma justaposição de culturas. , umas sobre as outras.
113

Neste aspecto, aponta-se comoé necessário avançar para além do reconhecimento da


pluralidade cultural e das políticas multiculturais, enquanto modelo, uma vez que a
convivência pode manter-se apenas nas ações de respeito às diferentes culturas. Ou sejaIsto é,
pode admiteir-se a diversidade cultural, o direito àa organização social própria, sem que sejam
criadas, no entanto, criar condições de comunicação, de relação entre os grupos
socioculturais.
Mantida a questão no âmbito dos Estados nacionais, tanto o reconhecimento da
pluralidade cultural como o avanço no aprimoramento das relações étnicas, estas só se
tornam-se possíveis no âmbito de sociedades que persigam o aperfeiçoamento dos regimes
democráticos. A perspectiva da pluralidade insere-se neste campo de aperfeiçoamento, como
afirma Taylor (1993, p. 46), a sociedade democrática cria condições para o reconhecimento
das diferenças, em suas palavras: “
La democracia desembocó en una política de reconocimento igualiltario,
que adoptó várias formas com el paso de los años, y que ahora retorna en la forma de
exigencia de igualdad de status para las culturas y para los sexos”.
Assim, em se tratando de sociedades ocidentais, nos regimes políticos atuais, a
democracia é o campo no qual situam-se as condições mais favoráveis para se ter a
pluralidade como um valor. Situando-nos então no âmbito da democracia, são vastos os
estudos que apontam os princípios requeridos para o aperfeiçoamento das sociedades
democráticas, apontando para a superação do modelo de inspiração liberal que deu origem aos
Estados nacionais. Ou sejaIsto é, uma democracia que contemple mudanças ideais estaria sob
um prisma “mais à esquerda”, como comenta Sader (2001). O, o mesmo autor aponta as
limitações do liberalismo para o aperfeiçoamento democrático das sociedades:
[Uma] concepção democrática radical [...] esbarrou sempre na visão
reducionista do liberalismo, que buscou sustentar nos estreitos limites jurídicos e
políticos do formalismo os fundamentos da democracia, circunscrevendo-a à
natureza codificada dos regimes políticos, que terminaram não apenas esvaziando
sua legitimidade. [...] Qualquer avanço democrático no mundo de hoje se choca
com o processo de mercantilização que atravessa tudo, movido pelo apetite
irrefreável de lucro das grandes corporações internacionais. Essa mola mestra da
acumulação do capital [...] se choca com os valores sociais, políticos, morais,
culturais que sustentam o humanismo e a solidariedade humana. (Ibid.SADER,
2001, p. 04).
São Essas limitações que geram conseqüentes implicações/limitações a uma
política de reconhecimento das diferenças;. Ou seja, partir de “sociedades democráticas” é
preciso que se estabeleçam princípios que as definam as sociedades democráticas como tal,
que se pauteprincípios estes pautados “na luta por um mundo guiado pelas necessidades
materiais e espirituais de toda a humanidade ”(Id., Ibid.SADER, 2001, p. 16).
114

Em vista disto, o que se busca não é a mera convivência entre diferentes, e sim,
elementos de unidade na diversidade, algo como diz Gutmann (1993, p. 40), que): “de esta
manera, podemos hacer de la necesidad de nuestros desacuerdos morales una virtud”.
Considerando o fato de estarmos lidando com Estados liberais capitalistas e que, sob estes, se
busca-se exercitar a capacidade de deliberar acerca das diferenças, a possibilidade de
alçarmos relações interculturais legítimas implica em ir mais além da simples possibilidade de
viver em uma sociedade multicultural, ir além da capacidade para administrar diferenças.
Ir além implica construir
1.83.1.4 - aAlternativas contra-hegemônicas de emancipação sociocultural; Formatados: Marcadores e
numeração
buscar outras referências para viabilizar novas políticas sociais, culturais e, sobretudo,
educacionais, no âmbito de Estados nacionais. A seguir, pontuamos algumas indicações sobre
este debate.al

No âmbito dos Estados nacionais, a cidadania, como promessa de igualdade,


mantém-se como algo irreal, particularmente para os grupos étnicos subjugados, desde o
início da colonização. No Brasil, até nem mesmo os veículos de comunicação, aà serviço da
ideologia que sustenta a globalização de mercado, já não podem esconder imagens e números
denunciados nas pelas estatísticas. Eles, são forçados a expor a persistênciao do quadro das
persistentes desigualdades sociais,; o persistente preconceito que mantém excluídos os povos
indígenas e afro-descendentes do acesso a condições dignas de bem- viver. Portanto, não
basta ser tolerante com a pluralidade cultural., M medidas são necessárias, para implantar
novas políticas que viabilizem a igualdade social, traduzida em cidadania plena sob o cenário
nacional e direitos específicos dos gruposnacional, e os direitos específicos dos grupos
socioculturais;, igualdade firmada em novas “relações”, pautadas no diálogo intercultural.
Tais medidas de direitos específicas e novas relações no cenário nacional já vêm sendo
gestadas , requeridas pelos grupos interessados, reunidos nos movimentos de resistência,
medidas difundidas de muitas formas e refletidas em estudos de pesquisadores sintonizados
com os movimentos socioculturais.
Dentre as propostas em construção, temos como ponto de chegada, em nosso
estudo,está a educação escolar intercultural, concebida como uma das reivindicações dentre as
novas demandas democráticas que surgemiram nas sociedades ocidentais, particularmente no
Brasil. Isto é, a extensão dos direitos de cidadania a todos, entre os quais a educação escolar,
deve estar pautada no respeito, na valorização e no diálogo entre culturas. Detemo-nos, ainda,
nos subitens a seguir, sobre em alguns exemplos (dos muitos pressupostos) que são apontados
115

como necessários para viabilizar novas políticas sociais, culturais e, sobretudo, educacionais,
no âmbito de Estados nacionais.

1.8.1 - Mobilização no campo da sobrevivência

As condições para que sejam estabelecidas novas formas de relações sociais


nas sociedades modernas, relações que reestabeleçamrestabeleçam a esperança na inclusão
dos discriminados e despossuídos, firmam-se a partir da fragilização do modelo de relações
homogeneizadoras e excludentes e nda possibilidade de articulação , principalmente entre
setores marginalizados, que emergem dnas lutas dos movimentos organizados de resistência.
Essas Llutas são possíveis de serem interpretadas, conforme mencionamos
acimaanteriormente, como ressignificação das lutas da base da “pirâmide social”,
redimensionadas para as lutas de grupos que se identificam por determinadas bandeiras, de
pertença ou comunitáriaos, cujas conseqüências resultam, além das afirmações de relações
interpessoais de pertença, em novas formas de interpelação e representações por garantias
materiais e, condições dignas de bem- viver.
Se dDirecionandormos a reflexão para a problemática que afeta aos “nativos do
continente americano”, veremos que as lutas são reforçadas por condicionantes, representados
por fatores, os mais diversos. P, por exemplo, quando a ameaça afeta grupos socioculturais,
totalmente diferentes, submetidos a situações idênticas de exclusão social, inclusive à mesma
designação genérica, preconceituosa, o que se pode observar nesta situação é que:
o O fato de serem coletivamente nomeados acabou por produzir uma solidariedade
real entre as pessoas assim designadas, talvez porque, em decorrência desta
denominação comum, eles fossem coletivamente o objeto de um tratamento
específico (POUTIGNAT; e STREIFF-FENART, 1998, p. 145).
No caso dos indígenas, essa solidariedade surgiu pelo fato de alguns povos,
com rivalidades desde tempos imemoriais, dando-se contatendo se apercebido da sua
condição comum de dominados e, categorizados pelo mesmo sistema colonial e (posteriores
Estados nacionais) como “indiosíndios”, submetidos a um tratamento administrativo
uniforme, enfim, acabaram por assimilar tal identidade geral de indígenas. Tal O sentimento
de opressão compartilhada faez desta identidade geral uma bandeira de luta, ponto comum de
comunicação e mobilização pela dignidade, pelo bem viver de todos. A ressignificação das
expressões impostas se tornam-se elementos de reforço nas lutas dos grupos, muito mais pelo
acesso a condições dignas de vida que a por questões restritas de interesse particular.
Assim, dentre os fatores motivadores de relações entre grupos “étnicos”
116

distintos, um dos principais está relacionado à própria situação de exclusão material, ou


sejaporque, as formas de comunicação tendem a ser facilitadas diante da mobilização em
torno de interesses comuns, como a busca de uma educação escolar que respeite e valorize a
diversidade sociocultural entre outros,, principalmente que defavoreçam ganhos materiais,
que favoreçam o bem viver, a dignidade ou, sob outro ângulo, frente a ameaças contra o bem
estar das pessoas.

1.8.2 - Mobilização no campo sociocultural

O contexto plural no qual projetam-seemergem as novas demandas culturais e


sociais, analisado por Semprini (1999) como modelo multicultural, se projeta-se como espaço
sociocultural. Na opinião deste autor, o espaço público, vem sendo redefinido com o crescente
poder dos fatores socioculturais, ou sejamelhor, o espaço social vem sendo substituído pelo
espaço sociocultural, modificando a concepção e a percepção do espaço coletivo. Tal
perspectiva, apresenta a sociedade, esquematicamente, “de uma visão vertical para uma visão
horizontal de relação entre grupos sociais” (Id., Ibid.SEMPRINI, 1999, p. 117), ou sejaisto é,
a sociedade deixaria de ser pensada conforme como uma pirâmide ou escada, com a
superposição de camadas ou grupos determinando as condições dos segmentos, para algo
comoe passa a ser concebida como algo que pode ser representado por uma superfície plana.
Num No modelo sociocultural de espaço social, de acordo com Semprini (1999, p. 118): a
A oposição alto-baixo é substituída por uma oposição centro-periferia. Ao centro
está associada a posição dominante, o poder de ditar as regras de funcionamento
do sistema. Na periferia encontra-se, em compensação, os grupos que só
marginalmente possuem esta capacidadee (Id., Ibid.SEMPRINI, 1999, p. 118).
Neste caso, o enfoque das lutas é posto mais no campo cultural do que no
social, onde de modo que os grupos, cuja cultura é marginalizada, põem-se em constante luta,
por espaço, com contra o grupo dominante que controla o poder. Nesta forma de ver conceber
as relações, tomam ganham sentido as lutas pela conquista do poder discursivo, sobressaindo
as disputas pelo controle dos símbolos e dos mecanismos que garantem a referência no
conjunto das relações.
O espaço social, transformado em espaço sociocultural, favorece a afirmação
do direito àa autodenominação, do ao autoreconhecimento, onde estão as significações e “os
valores [...] que modelam as identidades e os modos como os indivíduos e os grupos definem
sua pertença e sua posição” (Id., Ibid.SEMPRINI, 1999, p. 126). Neste entendimento, a
conquista do poder discursivo concentra as lutas em outro setor, diferente do enfoque
117

apontado por Poutignat e Streiff-Fenart, em citação acima. Semprini destaca como sendo um
dos principais desafios, retirar o poder, (até então, sob o controle dos segmentos dominantes)
de nomear e, adjetivar aos demais. Isto porque, definir os nomes, controlar os mecanismos de
designação, permite modelar o espaço sociocultural. Como exemplo, temos a luta dos negros
no Brasil, que os quais reivindicam o tratamento comoa denominação de afro-descendentes,
acompanhando aà expressão que é acompanhada de toda uma gama (histórico-cultural),
histórica de afirmação da negritude, ou o caso de comunidades indígenas, às quais, a cultura
dominante já tinha “definido” quem eram, classificadas como comunidades rurais, caboclos,
primitivos, e que, hoje, lutam pelo seu reconhecimento como povos, tal como sempre se
reconheceram.
As mudanças vão sendo operadas em várias dimensões, também inclusive no
campo do Direito. Tal como no período colonial, onde o Ddireito teve papel fundamental para
legitimar o domínio sobre as conquistas, hoje, o pPoder Jjudiciário, enquanto instituição que
se pretende independente nos Estados liberais, volta a ter importância estratégica, agora na
garantia do modelo de regulação da coexistência dos grupos étnicos, como comenta Semprini
(Ibid.1999, p. 164):, “manipulado habilmente por grupos organizados num novo clima social,
o direito tem se mostrado uma arma poderosa, um “ „pé-de-cabra”‟ nas trincas da
modernidade”. As pessoas, as coletividades, transferem seus problemas de relação
sociocultural para o espaço público, obrigando o Direito a acomodar-se às mudanças
socioculturais. Atua também nesta direção, a articulação dos movimentos em organismos
supranacionais, produzindo respaldo jurídico, pressionando as nações pela ratificação de
convenções internacionais e, destse modo, desenvolvendo o um paradigma ético em busca da
justa medida nas relações entre povos.

1.8.3 - A discussão em torno de alternativas políticas

Tomando a questão das relações entre povos no âmbito global - a qualque, em


partes aplica-se aos contextos nacionais formados por diferentes povos - o modelo concebido
na cultura ocidental para a Hhumanidade levou em conta sua visão de mundo para propor a
igualdade entre as pessoas. Essa, visão que se assenta-se na identidade individual como
unidade de referência para estabelecer direitos, em detrimento deas visões de outras culturas,
cujos direitos, são estendidos a coletividades, a outras gerações ou aà natureza como um todo.
A “igualdade” continua sendo um valor a ser almejado, assim como o direito de ser diferente,
118

neste caso, conjugar igualdade e diferença tem se revelado impossível em sociedades que
identificam os princípios de uma cultura como universais. Um exemplo que ilustra essa
problemática, no âmbito global, é a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, refletindo
que reflete os valores básicos de uma cultura e formulados formula esses valores como
universais,. como comentaPara Sousa Santos (2000ab, p. 26)::
Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos
humanos tenderão a operar como localismo globalizado -– uma forma de
globalização de cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do “choque de
civilizações” tal como concebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do
Ocidente contra o resto do mundo (“the West against the rest”). A sua abrangência
global será obtida à custa da sua legitimidade local. Para poderem operar como
forma de cosmopolitismo, como globalização de baixo-para-cima ou contra-
hegemônica, os direitos humanos têem de ser reconceitualizados como
multiculturais.
O mesmo autor explicita que as culturas tendem a considerar seus valores
máximos como mais abrangentes, mas somente a cultura ocidental formula seus valores como
universais. Sousa Santos (2000ab, p. 27) exemplifica o modelo de relações a que nos
referimos no parágrafo acima, comentando o conceito de direitos humanos, o qualque, se
assenta-se em “pressupostos claramente ocidentais e facilmente distinguíveis de outras
concepções de dignidade humana em outras culturas”. Exemplificando, destaca valores,
constantes na Declaração Universal de Direitos Humanos, marcadamente ocidentais, como o
“reconhecimento exclusivo de direitos individuais [...] [a] prioridade concedida aos direitos
cívicos e políticos sobre os direitos econômicos, sociais e culturais [...]” (Id., Ibid.SOUSA
SANTOS, 2000ab, p. 28).
Em se tratando da luta por relações de igualdade entre povos, Sousa Santos
defende que tal luta deve fundamentear-se em direitos humanos que retratem o esforço de
diálogos interculturais. Desste modo, fundamentado-se em premissas que dariam referência a
um diálogo intercultural, propõe um procedimento hermenêutico –- definido como
Hhermenêutica Ddiatópica –- no qual o diálogo intercultural parte do reconhecimento de que
os argumentos fortes de cada cultura apresentam-se incompletos, vulneráveis, quando
“usados” numa cultura diferente. S, sendo a completude algo inatingível, o objetivo seria
“ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua por meio do diálogo que se
desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro noutra” (SOUSA SANTOS,
2000ba Id. Ibid., p. 31).
Para “prevenir perversões”, Sousa Santos (Ibid.2000ab) propõe que as partes
envolvidas no diálogo devam identificar, nas diferentes versões de uma dada cultura, “aquela
que representa a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro”. A título de
119

exemplo, apresenta que a aplicação de tal procedimento, no caso da cultura ocidental, das
duas versões existentes -– a liberal e a marxista –- a marxista seria mais favorável na relação
com outras culturas, pois amplia, para os domínios econômico e social, a igualdade que a
versão liberal apenas considera legítima no domínio político. Outro imperativo intercultural a
ser considerado seria o seguinte:
Uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo
com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica, e, portanto, com
concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais
tem o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser
diferentes quando a igualdade os descaracteriza. (Id., Ibid.SOUSA SANTOS,
2000ab, p. 36).
Tendo presente a complexidade dos diferentes grupos culturais, as resistências
de muitos povos, quanto a à igualdades de dignidade humana entre os diferentes, torna-se fato
que “sempre haverá luta entre direitos universais e particulares, pois eles nunca serão
totalmente compatíveis” (MCLAREN, 2000, p. 276). No entanto, convém reforçar o aspecto
que alimenta a utopia dos movimentos de resistência, principalmente no âmbito dos Estados
nacionais, que é a constante reelaboração dos caminhos em busca de políticas
emancipatórias,. Nnestas, de alguma forma persiste como bandeira, a à superação das
desigualdades sociais, fator que mobiliza os povos e, grupos sociais em relações de diálogo.
Tomando a discussão sob a ótica de outros autores - sempre partindo do
consenso em torno da fragilização do projeto de homogeneização cultural, acrescido do
explícito fracasso das sociedades ocidentais no atendimento às demandas por condições
dignas de vida a todos - estes declaram que as sociedades se vêem cada vez mais
“atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade
de diferentes „“posições de sujeito”‟ - isto é, identidades” ( HALL, 2001, p.17). Mesmo
assim, sob este quadro, a fragmentação dos Estados nacionais não é colocadoa fragmentação
dos Estados nacionais não é colocada como perspectiva, ou, como observa Hall (2001), as
sociedades modernas não se desintegram, totalmente, não é por serem unificadas, mas pelo
fato de, em certas circunstâncias, os seus diferentes elementos e identidades poderem ser,
conjuntamente, articulados.
Para lidar com este contexto plural, outras propostas debatidas, a partir de
experiências de alguns Estados nacionais, apontam, muito provisoriamente, para a conjugação
de esferas de articulação e separação em níveis macrossocial e microssocial. Destse modo,
seriam mantidos as unidades e os limites culturais e, com eleas, “as limitações na
compreensão comum, diferenças de critério de julgamento, de valor e de ação, e uma
restrição da interação em setores de compreensão comum assumida e de interesse mútuo”
120

(BARTH, 1998, p. 196). Para tanto, devem ser encontrados, em qualquer forma de relações
entre grupos étnicos, princípios comuns que se firmem como referência para os contatos entre
tais grupos. Assim, para situações sociais de interação entre grupos, se presssupõe:
Um conjunto de prescrições dirigindo as situações de contato e que permitam a
articulação em determinados setores ou campo de atividade, e um conjunto de
proscrições sobre as situações sociais que impeçam a interação interétnica em
outros setores, isolando assim partes das culturas, protegendo-as de qualquer
confronto ou modificação. (BARTH, 1998Id., Ibid., p. 197).
Nesta perspectiva, a identidade étnica seria imperativa nas restrições sobre o
comportamento de um indivíduo que derivam de tal identidade e, conforme o mesmo autor, a
ligação entre os vários grupos étnicos, num sistema social englobante, dependeria da
complementariedadecomplementaridade, no que concerne a certos traços de suas
características culturais, constituindo-se em áreas de articulação.
As possibilidades de se firmaremr relações interétnicas respeitosas, no âmbito
de Estados nacionais, também é analisadao por Cardoso de Oliveira (2000), sob a distinção de
espaços sociais. O autor distingue três esferas, nas quais, as relações políticas e sociais entre
os grupos étnicos seriam pautadas em princípios éticos, morais. Situa a microesfera, como o
espaço das relações face a face, que se dão no meio comunitário, grupal; a mesoesfera,
correspondendo às relações sociais permeadas pela ação dos Estados nacionais, por meio das
instituições e leis por eles criadas; e, em instância maior, a macroesfera, campo onde seriam
postas as ações sociais que, por deliberação internacional, regulamentariam uma ética
planetária.
As A construção de novas políticas em Estados nacionais que preconizem o
respeito às identidades culturais, , conforme Cardoso de Oliveira (2000, p. 185), implicaria
em proporcionar, no âmbito da microesfera social, condições para que os grupos étnicos
buscariam ssem a preservação das normas morais de caráter particular. Como afirma o mesmo
autor, , normas observadas nas instâncias íntimas “com suas demandas pela defesa dos
direitos aos territórios que habitam, à identidade étnica que devem assumir livremente e aos
seus modos de vida particulares, sem os quais estariam pondo em risco sua própria
existência” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 185). Neste mesmo âmbito, situa-se o
direito de tornar a escola uma instituição da comunidade, à serviço dos interesses desta
comunidade. Na mesoesfera, conforme o autor, há, ainda, um contexto pouco afeito à defesa
da diversidade cultural, no entanto, o quadro de mudanças vem se tornando possível, dados os
movimentos de resistência, com respaldo em instâncias e fóruns internacionais, favorecidos
pelos instrumentos de comunicação global. Cardoso de Oliveira ressalta que os Estados
nacionais são compelidos por pressão internacional a administrar a conjunção entre valores
121

particularistasa conjunção entre valores particularistas micro e valores universalistas macro.


Conforme Cardoso de Oliveirao autor, a interculturalidade almejada, em
termos de moralidade e ética, no compromisso de bem- viver do outro e no compromisso de
negociar democraticamente a possibilidade de se chegar a um consenso, é um caso de justiça
e não de caridade. E, em sendo um caso de justiça, no plano da moralidade, implica em fazer
mais do que administrar, politicamente, a pluralidade e a tolerância entre os diferentes.
Cardoso de Oliveira (2000, p. 186) reforça, também, o entendimento de outros
autores, no tocante aos movimentos de resistência, enfatizando:
o O significativo aumento da capacidade de organização étnica, permitindo uma
atuação mais eficiente no modo de pressionar os organismos governamentais, o
crescimento de uma tendência que eleva a afirmar a identidade étnica bem como
sua auto-estima, entendidas como núcleo de uma proposta política em condições de
igualdade.
Tal crescimento organizativo é reforçado, ainda, no entendimento do mesmo
autor, na pela capacidade de vinculação com diversas organizações nacionais e internacionais
que compõem o movimento de resistência às formas de exclusão., Eenfim, começam-se a
viver um novo cenário político, resultante da globalização. Trataremos no ponto seguintemais
adiante, das formas organizativas de resistência que vêmem sendo construídas pelos povos
indígenas.
Concluindo, éÉ oportuno ponderar que, apesar deste crescente potencial
organizativo, a a a constatação de Cardoso de Oliveira (Ibid2000, 196) sobre a situação do
quadro atual das relações entre indígenas e não-indígenas, no caso brasileiro, que
apontadenuncia a ainda distaância de uma política de relações::
Não há nenhuma novidade em reconhecermos que existem dificuldades nas
relações sociais [...] que engendram representações preconceituosas e
profundamente discrimidadoras do outro - particularmente quando este outro mais
se distancia dos parâmetros culturais do polo dominante da sociedade global.
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, 196).
Considerando o campo da educação escolar, para melhor compreensão da
escola, enquanto direito reivindicado pelos povos indígenas, como instrumento de possível
contribuição em suas lutas pela diminuição das distâncias políticas para com os não-
indígenas, convém enfocar melhor o entendimento sobre
diálogo, principal 3.1.5 1.8.4 - pPressupostos para o diálogo interculturapara
lidar, seja na escola, com diferentes culturas, seja nas implicações do contato entre pessoas de
diferentes culturas.l

Partindo do que diz Taylor, só é possível nos tornarmo-nos agentes humanos


122

plenos na interação com os outros, ou seja,pois a mente humana forma-se em sentido


dialógico. Nas palavras do autor: “Mi propia identidad depende, en forma crucial, de mis
relaciones dialógicas con los demás” (TAYLOR, 1993, p. 55). Entretanto, o diálogo não é
possível sem autonomia das partes implicadas nesta ação, ou seja, autonomia requerimplica
em que haja reconhecimento pelo outro. O diálogo pressupõe reconhecer o outro como sujeito
e a mim mesmo como tal, e pressupõe também a defesa de liberdades concretas, reconhecidas
como recíprocas, válidas para todos.
O diálogo, partindo de tais condições, se traduz-se na ação primordial para que
tenhamos relações interculturais. Para as sociedades ocidentais, diante da crise da
modernidade, tal como já nos referimos em pontos anteriores, é ainda mais relevante, como
nos fala Bedjaoui (1981, p 03):, “estabelecer um diálogo parece ter-se tornado tanto mais
imperativo para o Ocidente na medida em que este experimenta hoje a necessidade de sair de
seu próprio impasse cultural”, ou sejaisto é, o impasse da visão unilateral construída pela
modernidade ocidental.
Buscando a compreensão de Cardoso de Oliveira (2000) sobre os pressupostos
para o diálogo, este autor define o diálogo como atitude chave nas relações interétnicas,
porém, ressalta as dificuldades, sobretudo no caso do Estado nacional com os povos
indígenas. Neste caso, as condições sócio-econômicas, a que estão submetidos os indígenas,
que os põecolocando-os na condição de excluídos da condição moral de “bem- viver”,
apresenta-se como um contexto que inviabiliza a ética discursiva, requisito para o diálogo. Ou
sejamelhor, não é possível o diálogo quando uma das partes envolvidas está em condição de
desvantagem.
Partindo da possibilidade de se firmarem relações étnicas com base no diálogo,
sobretudo na relação povos indígenas e não-índiosindígenas, Cardoso de Oliveira (Ibid2000.,
p. 197) indica que tais relações precisam estar condicionadas a princípios traduzidos em
noções de “bem viver” e “dever”, no campo da moral e da ética. Conforme o autor, as
relações deveriam ser mediadas pelo “compromisso com o bem-viver do outro” e pelo
compromisso docom o “dever de negociar, democraticamente, a possibilidade de se chegar a
um consenso com o outro”. O bem viver, no campo da moral implica valores,
particularmente, aqueles associados a formas de vida consideradas como as melhores e,
portanto, pretendidas no âmbito de uma determinada sociedade, enquanto que o campo do
dever insere-se no campo da ética, implicando em normas que devem ser seguidas por todos
os membros da sociedade.
Considerar tais noções como pressuposto para as relações interétnicas,
123

conforme nos referimos em item anterior, com base no que propõe Cardoso de Oliveira
(Ibid.2000), é impor reservas à idéia de incomensurabilidade das culturas e,
conseqüentemente, reservas ao relativismo cultural enquanto princípio inegociável. Significa
dizer que, no contato, ou encontro entre culturas, as comparações são inevitáveis,é inevitável
às comparações e predispor-se ao diálogo dependerá de flexibilização, de abertura das partes
envolvidas em tal ação. Entretanto, Cardoso de Oliveira (I2000bid.)o autor enfatiza outras
dificuldades a serem superadas para que seja produzido um diálogo verdadeiro, edificuldades
que são determinantes, tal como o caso onde asnas relações são profundamente assimétricas
entre as culturas, caracterizadas pela dominação de uma cultura sobre as outras.
Centrando o debate no campo cultural, diante do processo de dominação a que
os povos indígenas foram submetidos, sobretudo pela “hegemonia do discurso ocidental de
raiz européia” (Id., Ibid.CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 175), a dificuldade em se
estabelecer o diálogo está nos mecanismos utilizados para legitimar o mesmodiálogo.
Considerando a situação de interação na qual um dos interlocutores é “branco, culturalmente
europeu, ocidental”, o qual,e dispõe de requisitos básicos na para a legitimação doe seu
discurso, tais como: inteligibilidade, verdade, veracidade e retidão e, frente a uma situação de
interação, a distância cultural torna limitada a possibilidade do ouvinte, ocidental, ter
compreender e aceitar a fala do indígena obedecendo a seuscom base nos requisitos da cultura
ocidental para validá-la. Nestas circunstâncias, haveria a necessidade de redefinição de tais
requisitos legitimadores, partindo da “dignidade da pessoa” como valor maior na
comunicação. Portanto, se faz-se necessário “superar as regras estabelecidas pelo discurso
hegemônico” e instituir uma nova normatividade para o discurso, com a contribuição efetiva
da outra parte envolvida no diálogo.

1.8.5 - Medidas compensatórias

O diálogo pressupõe, ainda, a superação do vazio social e político que há entre


determinados grupos culturais. Acima de tudo - apesar da preservação da autonomia em
valores e práticas, da conservação de suas identidades e memória cultural concomitante àa
abertura para participar no mundo globalizado e ao acesso aos instrumentais técnicos
desenvolvidos pela cultura dominante - as sociedades ocidentais dependem, para que
consigam avançar nas condições de melhoria de vida de sua população, de investimentos, de
empenho na construção de novos caminhos políticos, inclusive de ações propositivas e até
124

mesmo de compensação.
Como expusemos nos íitensitens anteriores, a complexidade do diálogo
intercultural se acentua-se quando as diferentes culturas envolvidas no diálogo partilham de
um passado de sucessivas trocas desiguais. Complexidade que Sousa Santos (2000ab, p. 36)
expressa em questionamentos:
Após séculos de trocas culturais desiguais, será justo tratar todas as culturas de
forma igual? [...] Que possibilidades existem para um diálogo intercultural se uma
das culturas em presença foi moldada por maciças e prolongadas violações dos
direitos humanos perpetradas em nome da outra cultura? [...] dado que, no
passado, a cultura dominante tornou impronunciáveis algumas das aspirações à
dignidade humana por parte da cultura subordinada, será agora possível
pronunciá-las no diálogo intercultural sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a
sua impronunciabilidade?
Assim, fundamentalmente, a interculturalidadefirmar relações interculturais
numa sociedade plural requer oimplica no reestabelecimentorestabelecimento da dignidade
das culturas que foram subordinadas, e tem a ver com o restabelecimento de condições de
“bem- viver” do povo, da comunidade com a qual se quer firmar relações. Dentre as medidas
adotadas para se garantir eficácia nas políticas que visaem àa dignidade igualitária, têem sido
experimentadoas medidas compensatórias destinadas a grupos que foram subjugados,
historicamente, os quais, por encontrarem-se em desvantagem, numa sociedade liberal, seriam
beneficiados por medidas discrimintatórias de ordem inversa, por exemplo, cotas no emprego
ou em universidades. Taylor (1993) comenta que “la discriminación a la inversa es defendida
como una medida temporal que gradualmente nivelará el campo de juego”. Comenta, ainda,
em outra passagem, referindo-se a obra de Kymlicka, sobre a base de certas necessidades
culturais:
Minimamente, la necesidad de un lenguaje cultural íntegro e ileso con el que
podamos definir y proseguir su propia concepción de la vida buena. En ciertas
circunstancias, para las poblaciones en desvantaja, la integridad de la cultura puede
requerir que les asignemos mayores recursos o derechos que a los demás.”
(KYMLICKA apud TAYLOR, 1993, p. 64)..
Assim, no contexto atual, a possibilidade de articulação entre diferentes
identidades, é posta como um dos grandes desafios para as sociedades ocidentais no contexto
atual, implicando na redefinição dos modos de fazer política, onde na qual as relações sejam
assentadas sobre novas bases, ou seja, tendo o diálogo como pondto de partida. Aprender a
conviver não é o bastante., O diálogo torna-se a expressão chave,. uma vez que é possível de
ser concretizado, conforme o entendimento de que as características, bem como os valores de
cada cultura não são absolutos, não são completos, estão sempre sujeitos a transformações. É
nesta incompletude das culturas que se vislumbra a possibilidade de aproximação e de diálogo
entre os diferentes., Porém, para que sejam estabelecidas relações de interculturalidade, há a
125

necessidade de superação deé necessário superar as condições históricas de exclusão a serem


superadas e restabelecer as, e do reestabelecimento de dignidades das culturas subjugadas a
serem reestabelecidas.

3.2 - O movimento indígenas nas lutas contra-hegemônicas de emancipaçãoAs


organizações indígenas no Brasil, efeitos práticos de lutas contra-hegemônicas

Dentre os movimentos de resistência sociocultural, a atuação do movimento


indígena no Brasil é uma comprovação prática de luta contra as políticas que promovem a
hogemogeneização cultural e a exclusão social. Nas últimas três décadas, se a extinção
programada dos “índios” não ocorreu, deve-se, em primeiro lugar, aà mobilização de
lideranças indígenas, promovendo ampla articulação dos povos indígenas concomitante ao
apoio obtido nas parcerias com outros movimentos e instituições. Esta realidade é descrita por
Cardoso de Oliveira (2000), ressaltando a importância que este movimento tem para a
afirmação das identidades étnicas, para a auto-estima e para o resgate da dignidade, enquanto
povos diferenciados. Movimento entendido, como núcleo de uma proposta política em
condições de igualdade., Nas palavras como afirma do autor:,
Pudemos [...] constatar que, nas últimas décadas tem ocorrido significativas
mudanças no comportamento indígena, podendo-se destacar algumas bastante
auspiciosas: o aumento da capacidade de organização étnica, permitindo uma
atuação mais eficiente no modo de pressionar os organismos governamentais.
(Ibid.CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 186).
A expressão “movimento indígena” consiste em terminologia recente, usada na
antropologia e na sociologia para categorizar o conjunto das lutas políticas e sociais dos povos
nativos do Continente Americano, visando a conquista de direitos, sobretudo de posse de seus
territórios tradicionais bem como o direito de manutenção de suas culturas e modos próprios
de organização, e, ainda, direitos de cidadania como atendimento nas áreas da saúde e
educação.
Convém enfocar que o movimento indígena, no surgimento dasmanifesta-se,
substancialmente, pelas organizações indígenas, as quais surgiram com a contribuição
decisiva das parcerias - com destaque, no Brasil, ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI),
o qualque, com o respaldo da Igreja Católica, dispunha de condições de acesso à maioria das
comunidades indígenas - inovando na prática das relações, exercitando o diálogo
intercultural;, num primeiro momento, criandoou condições para a realização de grandes
assembléias, reunindo representantes de mais de uma centena de povos. Diálogo que começa
a ser exercitados nesta grande diversidade de povos, muitos com inimizades tradicionais,. No
126

entanto, o compartilhamento de um adversário comum na luta pelo bem- viver, os une em


torno de bandeiras comuns:
O eixo das lutas do movimento indígena para além das suas aldeias passou a ser
a terra. Esse eixo mobilizador funcionou como elo de unidade do movimento, que de
acordo com as distintas realidades foi estimulando a criação de variados
instrumentos de luta e níveis diferentes de organização. (CONSELHO
INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2002)..
Acumulando experiências, os organismos políticos das organizações tornam-se
autônomaso movimento indígena, adquirem autonomia, expandemindo-se, e tornando-se
instrumento de lutas em todas as instâncias que afetam a suas comunidades. As maiores
conquistas se deram na Assembléia Nacional Constituinte, em 1986, quando fizeram registrar
parte de suas reivindicações, na Constituição promulgada em 1988. As conquistas animaram
as bases indígenas, que foram construindo diferentes instrumentos de luta - com destaque às
organizações indígenas - para assegurar os direitos constitucionais. Conforme, o CIMI, em
descrição sobre o histórico das organizações indígenas,:
O fenômeno do surgimento das organizações indígenas locais se disseminou pelo
país com rapidez extraordinária. As comunidades, inquietas na busca de defender
seus territórios e demais direitos à saúde, educação, subsistência e autonomia
cultural, buscam se articular, se mobilizar e construir referências organizativas que
lhes permitissem: atuar na cidade, dando visibilidade a suas lutas e divulgando suas
causas, reivindicações e propostas; constituir alianças locais com movimentos
sociais, Igrejas e entidades; criar interlocutores junto ao Estado e a sociedade civil
e acionar o Ministério Público para defendê-los com base nos artigos 231 e 232 da
Constituição Federal . (Id., Ibid.CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO,
2002)..
O movimento estendeu-se para os âmbitos local e regional, compreendendo
mais de duas centenas de organizações, em todo o Brasil, articulando lideranças, professores,
agentes de saúde, mulheres e estudantes indígenas. Tornando visível uma “impressionante
diversidade cultural que engloba 235 povos falando 180 línguas diferentes, organizados em
milhares de comunidades ou aldeias, muitas delas com grande autonomia umas em relação
às outras no mesmo povo” (HECK, 2002, p. 5).
Os dados mais concretos desta revolução democráticatransformação podem ser
constatados com os muitos povos que mantinham sua identidade oculta e voltaram a se
assumir como indígenas. Terras foram retomadas e os índios residentes nas cidades
começaram a se manifestar, fazendo com que as estatísticas populacionais, que acusavam
100.000 índios em 1970, passassem a registrar, hoje, um considerável aumento, estimando a
população indígena em 735.000 pessoas, conforme o senso populacional realizado no ano
2000, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O significado histórico dessas mudanças extrapola ao campo de interesse dos
povos indígenas, tornando-se referência para outros grupos excluídos, discriminados nas
127

sociedades nacionais. Enquanto novos sujeitos históricos emergentes na cena brasileira, os


movimentos indígenas são é interpretados como novos movimentos sociaisl, protagonistas de
significativas rupturas aàpara tendências homogeneizantes dos modelos dominantes de
organização social. As lutas socioculturais, levadas a efeito, pelos povos indígenas,
historicamente associaram reivindicações econômicas básicas, como as da defesa e
demarcação de suas terras, àquelas relacionadas à afirmação de suas identidades, como o
direito de aprender e expressar-se em suas línguas maternas e cultivar, inclusive na escola,
seus valores e tradições.
A relação intrínseca entre os movimentos indígenas e as propostas
educacionais, em andamento, em áreas de suas comunidadesvisando a população indígena, de
responsabilidade estatal, moldada nos paradigmas da educação diferenciada, é apontada por
Lopes da Silva (2001b) como fato marcante que acompanha a história do movimento social,
político e cultural dos pPovos iIndígenas no Brasil. A autoraLopes da Silva (2001b, p. 101)
destaca que:
a A idéia de que a escola poderia ser um instrumento favorável à autonomia
indígena - e não uma instituição colonizadora - ganhou força no Brasil desde os
primeiros momentos de constituição de um movimento social indígena organizado,
nos primeiros anos da década de 1970. (Ibid., p. 101)
Convém destacar, ainda, o surgimento de uma geração de lideranças, junto ao
movimento, constituindo-se como sujeitos coletivos e individuais. São os interlocutores das
bases indígenas no processo de lutas sociais. Interlocutores que mantêém sempre presentes,
no espaço público, as reivindicações por direito à terra, direito àa cidadania plena, em
particular, a educação escolar. Esta, sem negar as tradições e os valores étnicos, próprios a
cada nação indígena, dimensão de vital importância para seus povos, abrindo a perspectiva de
futuro, de construção de relações interculturais que superem o integracionismo, relações que
apontem para a reorganização política da sociedade nacional, como pluriétnica e
plurilíngueplurilíngüe.

3.3 - AO debate sobre a escola entre os movimentos socioculturais educação escolar


intercultural na alternativa contra-hegemônica dee o movimento indígena diálogo
intercultural

No debate político, envolvendo movimentos sociais e escola, acredita-se que a


educação escolar possa contribuir no equilíbrio entre a manutenção de pertença às culturas de
origem, ao mesmo tempo participando de atividades que articulem valores de outras culturas,
128

proporcionando às pessoas habilidades necessárias para moverem-se em ambientes diferentes.


Esta mobilidade assenta-se na dinamicidade das culturas e nas potencialidades dos seres
humanos, capazes de criar, aprender coisas novas, tornando as culturas, os saberes - valores
de infinito significado, onde na qual a incompletude do nosso saber abastece-se doé provida
pelo saber produzido por outra cultura - papel da escola.
O grande tema vem a ser o diálogo intercultural na escola, no qual, o que está
em questão não é apenas a troca de diferentes saberes, mas, também, a relação entre diferentes
culturas, ou sejaisto é, entre universos de sentidos diferentes. NeEssetá aspecto está situadoaí
a complexidade do que seja implantar uma escola que se proponha a ser intercultural. Só a
idéiaComplexidade que parte da própria idéia de escola enquanto tal, na sua estrutura e
organização, constitui-se como uma construção da cultura ocidental dominante. Desta forma,
considerando a singularidade de cada povo e a ignorância destas singularidades, por parte da
sociedade nacional, o desafio está em estabelecer, nesta instituição, algo que não seja,
puramente, imposição;, absorção por meio de algo como uma “canibalização cultural”.

3.3.1 - A perspectiva multicultural

Na construção de perspectivas contra-hegemônicas, embora as relações


multiétnicas e, multiculturais não constituam temáticas exclusivas do espaço escolar, na
opinião de autores como McLaren (1999, p. 53), a escola pode vir a ser um espaço
privilegiado para se construir um projeto que requeira um novo tipo de solidariedade entre
povos, como afirma o autor:
Uma solidariedade que nos permitirá trabalhar juntos, apesar das nossas muitas
diferenças, não a serviço do desenvolvimento de uma cultura comum, mas, ao invés
disso, na reunião da construção de uma base comum de luta – um point d‟appui a
partir do qual faremos da justiça cultural, social e econômica a metanarrativa (ao
invés da narrativa mestra) contra a qual poderemos medir nossos passos na medida
em que trabalharmos juntos no espírito de um mandato renovado pelo renascimento
e transformação da democracia. (MCLAREN, 1999, p. 53).
McLaren trabalha sob o prisma do multiculturalismo crítico como pedagogia,
para escolas em sociedades que se reconhecem como plurais, mesmo que em condições
desiguais. Contextos, nos quais, a escola, ainda, é um campo de lutas para que sejam
atendidas as demandas das diversidades culturais. Defendendo o multiculturalismo em
educação, McLaren condiciona esta possibilidade ao papel do educador crítico, comprometido
com as possibilidades de tornar a sala de aula um “espaço de luta por relações sociais
democráticas”, no qual “os estudantes possam aprender a situar-se, criticamente, em suas
129

próprias identidades”. McLaren (2000, p.23) propõe uma pedagogia crítica como prática de
libertação, cuja luta dos educadores é “guerrear pelo interesse sagrado da vida humana, pela
dignidade dos desfavorecidos do mundo e pelo direito de viver em paz e em harmonia”.
Gadotti (1999), em apresentação àa obra de McLaren, defende como necessária
a educação multicultural diante do contexto de globalizações dos dias atuais. Conforme o
autor, “a educação multicultural e intercultural procura familiarizar as crianças com as
realizações culturais, intelectuais, morais, artísticas, religiosas, etc, de outras culturas,
principalmente das culturas não dominantes”. Gadotti (Ibid1999., p. 16) destaca ainda, a
relevância da educação multicultural, na qual:
as crianças que não aprenderem a estudar outras culturas perderão uma grande
oportunidade de entrar em contato com outros mundos e terão mais dificuldades de
entender as diferenças; fechando-se para a riqueza cultural da humanidade, elas
perderão também um pouco da capacidade de aprender e de se humanizar. O
pluralismo, como filosofia do diálogo para o entendimento e para a paz, deverá
fazer parte integrante e essencial da educação do futuro.
Embora alguns autores não façam distinção entre o multicultural e intercultural
em educação, permanecemos no entendimento apresentado em itens anterioresacima, no qual,
explicitamos que a idéia de multicultural tende a ser associada a uma realidade plural de
simples coexistência e que, não necessariamente, os grupos culturais em questão, manifestem
intenção de estabelecer diálogo entre culturas. É o que comenta Fleuri (2000, p. 03):
O multiculturalismo reconhece que cada povo e cada grupo social desenvolve
historicamente uma identidade e uma cultura próprias. Considera que cada cultura
é válida em si mesma, na medida em que corresponde às necessidades e às opções
de uma coletividade. Ao enfatizar a historicidade e o relativismo inerentes à
construção das identidades culturais, o multiculturalismo permite pensar
alternativas para as minorias. Mas também pode justificar a fragmentação ou a
criação de guetos culturais, que reproduzem desigualdades e discriminações
sociais.
As ressalvas, a assim então chamada educação multicultural, encontra-se, pois,
no modo de se conceber a relação entre estas diferentes culturas, particularmente, na prática
educativa. Deste modo, “uma perspectiva multicultural limita-se a considerar a coabitação das
diferenças culturais como um processo histórico natural, espontâneo, do qual se pode tomar
consciência para se adaptar-se a ele” (NANNI, 1998 Aapud FLEURI, 2000, p. 05). Nesta
perspectiva, o processo educativo, de modo geral, as culturas diferentes constituiem-se como
objeto de estudo, matéria a ser aprendida, sem necessariamente, se estabelecer-se o confronto
e, o diálogo entre pessoas e culturas diferentes.
A perspectiva a que se pretende chegar - dada a mais que inevitável, a
necessária relação entre pessoas, entre povos culturalmente diferentes - implica em propor que
pessoas com concepções de mundo diferentes firmem relações intencionais, e que a escola
130

também seja moldada para além da oposição reducionista entre o monoculturalismo e o


multiculturalismo. Desste modo, com os movimentos sociais, emerge a perspectiva da escola
intercultural, que trabalhe com o reconhecimento do sentido e a identidade cultural de cada
grupo social, sem desconsiderar o potencial educativo dos conflitos. Conforme Fleuri
(Ibid2000), uma escola que busque desenvolver a interação e a reciprocidade entre grupos
diferentes, como fator de crescimento cultural e de enriquecimento mútuo;. Ccomo forma de
atender àas demandas das novas políticas socioculturais, as práticas educativas, numa
perspectiva intercultural, contribuiriam na construção de novas estratégias de relação entre
sujeitos e entre grupos diferentes, promovendo a construção de identidades sociais e o
reconhecimento das diferenças culturais, sem anular a relação crítica e solidária entre elas.

3.3.2 - A Educação escolar intercultural

A escola intercultural obtém espaço nas políticas educacionais, à medida em


queà medida que se torna inevitável o reconhecimento de nações como sociedades plurais. Os
Estados nacionais, e pós-coloniais, da América Latina rendem-se à resistência dos pPovos
iIndígenas, cuja luta pelo reconhecimento implica na inclusão de seus valores, e de seus
saberes;, enfim, suas culturas nas instituições, nos espaços públicos. Na década de 1990,
mesmo que limitado às escolas destinadas aos pPovos iIndígenas, o princípio da
interculturalidade consolida-se nos discursos educacionais como característica a ser almejada
em tais escolas. Entretanto, a idéia de relações interculturais não é algo novo. Desde os
missionários jesuítas, no século XVI, aos missionários evangélicos no século XX, se lança-se
mão de recursos, artifícios interculturais, porém, com propósitos colonialistas, como forma de
apressar a integração, entendidas como assimilação ou incorporação à civilização.
Atualmente, aA “interculturalidade” associada à escola na época atual tem o
seu sentido ressignificado, acompanhando a perspectiva das novas políticas de valorização
das diferenças, tal como abordamos neste trabalho, portanto, submetida às mesmas bandeiras
políticas dos movimentos de resistência socioculturais., Enfim, é parte das lutas de resistência
dos povos excluídos na co-existência entre diferentes. Convém, pois, ressaltar, que a
interculturalidade desvinculada das lutas pela emancipação sócioculturalsociocultural torna-se
um caminho fácil, instrumentalizado e respaldado para apressar a integração à nova “ordem
civilizatória” preconizada pelo “mercado”.
A perspectiva intercultural em educação, quando desvinculada dos movimentos
131

socioculturais,, perde sentido, uma vez que esta forma de educação pressupõe a focalização da
reflexão na própria prática, onde ocorre a dialética identidade/alteridade. Ou sejaIsto é, a
interculturalidade consiste em “estimular a consciência das diferenças e das relações entre os
agentes e os pontos de vista que nele se articulam” (FLEURI, 2000, p. 04). Trata-se de uma
perspectiva problematizadora em educação, desenvolvida em condições de conflito e
interação crítica de valores e identidades culturais diferentes que, inseridas na perspectiva dos
movimentos socioculturais, movimentos de base, resultam na complementação mútua entre
prática educativa e ações práticas das pessoas e, dos grupos no espaço sociocultural. Na
explicitação de Fleuri (Ibid2000., p. 03), a educação intercultural:
eEmerge no contexto das lutas contra os processos crescentes de exclusão social.
Surgem movimentos sociais que reconhecem o sentido e a identidade cultural de
cada grupo social. Mas, ao mesmo tempo, valorizam o potencial educativo dos
conflitos. E buscam desenvolver a interação e a reciprocidade entre grupos
diferentes, como fator de crescimento cultural e de enriquecimento mútuo. Assim,
em nível das práticas educacionais, a perspectiva intercultural propõe novas
estratégias de relação entre sujeitos e entre grupos diferentes. Busca promover a
construção de identidades sociais e o reconhecimento das diferenças culturais. Mas,
ao mesmo tempo, procura sustentar a relação crítica e solidária entre elas.
Os movimentos de base, por meio dos quais se travam as lutas pela
emancipação social e pelo reconhecimento das identidades culturais, propiciam as condições
nas quais se exercitam situações de comunicação, se administram os conflitos e se constroóem
modelos de relações respeitosas;, enfim, processos históricos, nos quais, intencionalmente,
identidades culturais entram em contato entre si e interagem. Tal intencionalidade de em se
firmarem relações entre pessoas de culturas diferentes é o objetivo que se busca nos projetos
educativos, é a principal característica da escola intercultural. Nas palavras de Fleuri
(Ibid.2000, p. 05),:
A relação intercultural indica uma situação em que pessoas de culturas diferentes
interagem, ou uma atividade que requer tal interação. A ênfase na relação
intencional entre sujeitos de diferentes culturas constitui o traço característico da
relação intercultural. O que pressupõe opções e ações deliberadas, particularmente
no campo da educação.
Portanto, a intencionalidade, como pressuposto básico da inter-relação
requerida e seu desenvolvimento em condições respeitosas de valorização das diferenças
culturais, constitui a ênfase da escola intercultural. A partir daí, as concepções de
interculturalidade tendem a divergir, dada a complexidade dos interesses, das bandeiras de
luta e das diferenças regionais. Querer,N no entanto,Assim, querer estabelecer princípios
norteadores para caracterizar uma escola intercultural cai é cair nodescambar para o mesmo
problema da tentativa de definir princípios para classificar grupos culturais como grupos
étnicos,. Ddada a íntima relação da escola intercultural com a complexidade de cada grupo ou
132

povo, o princípio relativista deve, também, ser levado em conta do entendimento desta prática
educativa.
No entanto, o respeito às divergências, principalmente quando relacionadas a
aspectos próprios de cada cultura, não desqualifica o levantamento de características
pressupostos recorrentes e imprescindíveis, em certos contextos, ou sejaisto é, válidos para o
debate sobre escola e interculturalidade. É o caso do diálogo como princípio básico, tal como
discorremos em item anterioranteriormente, diálogo que pressupõe as condições de igualdade
social, pressupõe e o reestabelecimento da dignidade, do bem viver, em situações em que
partes envolvidas na relação estejam submetidas a condições desfavoráveis. O diálogo, na
verdade, torna-se elemento indissociável, confunde-se com a interculturalidade.
Ao diálogo e àa interculturalidade, tal como já nos referimos neste trabalho,
pressupõem condições de autonomia. N, no caso da escola, autonomia daqueles a quem se
destina àa escola, de tal forma que os trabalhos escolares sejam orientados por pedagogias
próprias, envolvendo a participação da comunidade na escola. Participação, entendida como
atuação efetiva das comunidades, na concepção e na implementação da educação escolar,
moldando a escola a partir da cultura da comunidade.
Outros pressupostos são assinalados por Fleuri (Ibid.2000, p. 06),devem ser
considerados. eEntre os quais, a forma como são encaradas as culturas, ou sejaou melhor, é
preciso tê-las como saberes de povos e pessoas históricas., Nnesste caso, a ênfase da educação
é posta nos sujeitos da relação., “
Neste sentido, a estratégia intercultural consiste, antes de tudo, em promover a
relação entre as pessoas, enquanto membros de sociedades históricas, caracterizadas,
culturalmente, de modo muito variado, nas quais são sujeitos ativos (FLEURI, 2000, p. 06)”.
Portanto, a educação intercultural busca desenvolve-se comoconstruir
relaçõesão entre pessoas de culturas diferentes e não entre “"culturas”" entendidas de modo
abstrato. “Valoriza-se, prioritariamente, os sujeitos que são os criadores e sustentadores das
culturas” (Id., IbidFLEURI, 2000, p.05). Subentende-se que, na perspectiva intercultural,
professor e alunos não se limitam a estudar outras culturas como se fossem objetos de estudo
a mais. A, as outras culturas são vistas como modos próprios de grupos sociais verem e
interagirem com a realidade. Fleuri (Ibid.2000, p.06), comentando o pensamento de Antonio
Nanni, caracteriza também, a educação intercultural:
cComo um processo, ou seja, um caminho aberto, complexo e multidimensional,
pois envolve uma multiplicidade de fatores e de dimensões: a pessoa e o grupo
social, a cultura e a religião, a língua e a alimentação, os preconceitos e as
expectativas. A educação intercultural não se reduz a uma simples relação de
conhecimento: trata-se da interação entre sujeitos. Isto significa uma relação de
133

troca e de reciprocidade entre pessoas vivas, com rostos e nomes próprios,


reconhecendo reciprocamente seus direitos e sua dignidade. Uma relação que vai
além da dimensão individual dos sujeitos e envolve suas respectivas identidades
culturais diferentes.
Tais pressupostos correspondem a aspectos mais comuns, no processo de
construção da escola intercultural, normalmente lembrados em políticas de educação voltadas
para o atendimento a minorias em situação de desvantagem frente a grupos socioculturais
dominantes.
Voltando ao que nos referimos, anteriormenteno primeiro parágrafo, em termos
práticos, as políticas de interculturalidade, também, são exercitadas em países da Europa,
voltadas, principalmente, para as minorias estabelecidas em países europeus, resultado, em
parte, dos deslocamentos forçados ou voluntários durante o período colonial. Porém, as
experiências mais consistentes ocorrem em Estados nacionais originados no período pós-
colonial, onde a resistência da população nativa em torno de suas culturas, forçou o
remodelamento das políticas públicas, em particular para com a educação escolar. O México é
referência, com sucessivas reformas educativas, desde o princípio do século XX, nas quais
foram sendo gestadas experiências de interculturalidade. Longe ainda de ser atingido um
modelo ideal para as populações indígenas, fruto, em grande parte, das condições de
desvantagem econômica a que estas populações estão submetidas. Mesmo assim, com
políticas consolidadas, a interculturalidade torna-se um princípio educativo para programas
nacionais de educação, como perspectiva, também, para as escolas não-indígenas.
Outros países latino-americanos já dispõem de experiências consolidadas de
educação escolar indígena intercultural, dada a densidade populacional e o conseqüente poder
de pressão, obtido com as melhorias das relações democráticas, no embate com as forças
dominantes. Além do México, também Nicarágua, Equador, Colômbia, Peru e Bolívia
possuem experiências, que vêem sendo tomadas, como referência, por povos minoritários em
outros países,; em situações cuja relação com a sociedade dominante é extremamente
desigual, principalmente, em questões numéricas., como no caso brasileirEm se tratando do
Brasilo, dada a diversidade étnica e povos indígenas com população reduzida, sobressaem
algumas experiências bem sucedidas. Na prática, temos uma legislação favorável e uma
enorme dificuldade na viabilização política da escola intercultural, dificuldade em estender a
todos os povos as experiências bem sucedidas.

3.3.3 - A eEscola indígena interculturalindígena


134

No Brasil, a temática multicultural e intercultural vem despertando interesse de


educadores, em geral, preocupados em compreender a problemática das diferenças em sala de
aula, no intuito de construir práticas mais coerentes com os diferentes contextos socioculturais
de seus alunos. No entanto, o debate é mais profícuo quando se discute a escola nas
comunidades indígenas. Há um aprimoramento significativo dos discursos sobre a
escolarização indígena, ressignificada de instrumento de civilização para instrumento de
autodefesa na inevitável convivência com a cultura nacional. Entretanto, a concretização do
discurso da escola indígena intercultural esbarra na ideologia dominante, onde aà idéia de
escola acompanha uma estrutura tradicional do Estado nacional, de raízes históricas, cujas
ações têm caráter integracionista e, os objetivos estão voltados para a diluição das diferenças
culturais. Ou sejaIsto é, uma escola intercultural de fato, requer um Estado que se reconheça
como pluricultural e, reconheça a pluralidade lingüística do conjunto da população.
Apesar da distância do ideal, em termos de reconhecimento dos povos
indígenas no Brasil, não desconsideramos o significativo avanço obtido na regulamentação da
Educação Escolar Indígena. Assim, seguindo aos princípios inscritos na Constituição Federal
em 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9394/96 oficializou esta
especificidade em educação. A partir de então, o Ministério da Educação, por meio do
Conselho Nacional de Educação tem atuado na regulamentação do funcionamento da Escola
Indígena. No próximo capítulo 5 detalharemos a política oficial de educação escolar indígena,
tal como vem sendo construída no Brasil.
Mesmo que distante da organização política ideal, os discursos sobre escolas
em comunidades indígenas avançam, com uma característica quase que unânime, que são os
pressupostos: diferenciada, intercultural e bilíngüe. De onde tais pressupostos surgem outros
os desafios - considerando a grande variedade de povos e conseqüente variedade lingüística -
a construção de currículos interculturais, que proporcionem a cada comunidade a autonomia
na transmissão de seus valores simultaâneamente à transmissão dos saberes de outras culturas,
principalmente da cultura nacional, que lhes afeta, mais diretamente.

Valendo-menos do que assinala Tassinari (2001) sobre a escola em


comunidades indígenas, enquanto espaço de encontro e conflito de saberes, de visões de
mundo, esta instituição compreende algo como uma “fronteira”, idéia que representa melhor
as situações intersticiais de seu funcionamento. Enquanto fronteira, o cotidiano escolar
representa o espaço onde se desenrola a tensão e a explicitação entre conhecimentos indígenas
e ocidentais, entre políticas públicas e políticas das comunidades, portanto, palco para o
135

diálogo e o conflito entre políticas e tradições do pensamento ocidental e políticas e tradições


do pensamento do povo indígena em cuja comunidade a escola esteja inserida.
Tornar a escola uma situação de fronteira demanda que as organizações dos
processos de produção e aprendizagem de conhecimentos, nela desenvolvidos, confirmem e
promovam o seu direito à manutenção de suas formas específicas de viver e de pensar, de suas
línguas e culturas, de seus modos próprios de produção, reelaboração e transmissão de
conhecimentos, ao mesmo tempo em que se constituam em espaço de compreensão
extracomunidade, propiciando o domínio de conhecimentos e tecnologias que lhes favoreçam.
Tal situação só poderá surgir do diálogo, do envolvimento e do compromisso dos respectivos
grupos, como agentes e co-autores de todo o processo educativo.
Assim, como nos movimentos socioculturais mais amplos, também neste no
contexto indígena, a escola que não pode estar dissociada da luta política, dno cenário mais
abrangente amplo em que se encontram os diferentes povos, que são decisivos para seus
projetos de futuro. A escola não pode desconsiderar os inevitáveis processos de mudanças
socioculturais a que os povos estão sujeitos, sobretudo com o próprio processo de
escolarização. A escola deve ser constantemente questionada quanto ao seu lugar “nesse
processo mais amplo de transformação cultural e criação de novas formas de organização
sociopolítica e de reflexão, por meio das quais as populações indígenas atuais dialogam com
a história” (LOPES DA SILVA, 2001a, p. 24).
Tomando a questão em condições pedagógicas práticas, a construção da escola
indígena pressupõe que esta integre a totalidade maior que é a cultura do povo a quem a
escola se destina, e isto requer que, para se garantir a elaboração da escola intercultural, que
contemple a diversidade de modelos culturais que interagem na formação dos educandos, tal
escola deve estar, antes, ancorada na perspectiva que legitima,. fundamenta a identidade
cultural dos educandos. Assim, partimos da premissa de que a educação sempre emerge de
uma cultura, onde se firma a identidade das pessoas, que lhes dá sentido às suas existências,
daí um argumento mais para que o professor seja indicado pela própria comunidade, que
compartilhe valores, tradições, língua e eduqueca com seu modo de agir. Este professor, em
seu processo de formação terá presente as variaçãoões socioculturais, em jogo, nos âmbitos
regional, nacional e global necessários à formação plena dos educandos para que possa
relacionar-se, solidariamente, com os diferentes.
Portanto, considerando que a educação não se processa de maneira isolada, e
sim como parte da cultura, na qual, a linguagem é parte primordial, também para a escola,
sobretudo quando se pretende que seja intercultural, a língua é fator primordial. Isto porque, a
136

escola faz da linguagem o objeto de uma atenção particular, de uma manipulação consciente,
voluntária e intencional., Éé por meio da linguagem que a criança é levada a interagir com
novas formas sociais e culturais. A linguagem funciona como uma ferramenta, um
instrumento cultural que não pode ser tomadoa de forma isenta., o O domínio prático da
linguagem amplia os ângulos do universo cultural.
Por fim, Cconceber a escola indígena intercultural é admitir culturas diferentes
em “relaçãões”;o, é admitir que, na maioria das escolas em comunidades indígenas ao menos
duas línguas estarão interagindo, delegando outra grande responsabilidade que, por princípio,
cabe ao povo da comunidade avaliar e determinar qual será o grau de participação da língua
indígena e da língua dominante e outras, caso haja, no processo educativo. No entanto, a
tradição escolar, com séculos de sistematização de saberes numa língua nacional - língua na
qual é veiculada as forma de poder, expresso em sua forma escrita - torna-se um fator a mais
de relação desigual na presença de uma e outra cultura na prática educativa. A escola
indígena, para manter-se como intercultural, para os povos que assim o quiserem, precisa
compensar a pressão da língua nacional com o desenvolvimento da escrita nas línguas
indígenas,; mais ainda, deve expandir-se para incluir os conteúdos, os instrumentais
tecnológicos desenvolvidos pela cultura dominante.
Diante de tais condições, torna-se essencial a permanente formação dos
educadores:,
T“talvez o problema decisivo, do qual depende o sucesso ou o fracasso da proposta
intercultural. O que está em jogo na formação dos educadores é a superação da
perspectiva monocultural e etnocêntrica que configura os modos tradicionais e
consolidados de educar, a mentalidade pessoal, os modos de se relacionar com os
outros, de atuar nas situações concretas” (NANNI, 1998 apud FLEURI, 2000,
p.06).
Os educadores, enquanto intelectuais da cultura, através da síntese de saberes
indígenas e não-indígenas, devem ter presente a sua responsabilidade, cuja prática educativa,
por eles organizada, resulta na reconstrução de uma nova identidade indígena.
Responsabilidade que reforça a formação de qualidade para os professores indígenas, cujo
trabalho possa estar mais próximo da educação indígena intercultural, requerida por suas
comunidades. Educadores que sejam capazes de dialogar com diferentes etnias, dominem
diferentes formas de aprender, diferentes linguagens e principalmente, diferentes formas de
compreensão da realidade. Portanto, professores, cujas atribuições os coloca-os, também, em
num entendimento muito mais amplo, como comenta Dias da Silva (1999, p. 67):
O conceito de professor indígena está ligado, como parte integrante, a uma
definição mais ampla: a proposta de uma escola indígena. Significa que seu
trabalho só pode se realizar eficazmente, segundo os ideais afirmados, num modelo
137

realmente indígena de escola e que este só pode ser construído com a participação
efetiva de todos: professores, lideranças, alunos e comunidade indígena.
Outros aspectos se fazem necessários em termos de política educacional, que
extrapolam as condições locais:, a igualdade de oportunidades para os indígenas em qualidade
de ensino, bem como, no acesso aos demais níveis. ;A a superação do caráter monocultural da
escola requer não só repensar as funções, os conteúdos e os métodos da escola, mas, também,
investimentos na produção dos livros didáticos e demais materiais de apoio educativo;. A a
organização da prática educativa requer muitas reservas quanto aos procedimentos de
avaliação que, comumente, transmitem comportamentos alienígenas, criticados, inclusive, nas
escolas não- indígenas.
Enfim, a afirmação étnica entre os povos indígenas, tal como é declarado emm
por meio dosdocumentos, produzido pelo movimento indígena movimentos, compreende
algumas bandeiras comuns preconizadas, na luta pela terra, fator principal para garantia de
condições dignas de bem -viver. Mas Em tais documentos, sobretudo o direito à educação
escolar sempre consta nas pautas de reivindicações de inúmeros encontros regionais,
nacionais e internacionais expressos em diversos documentos, é implícito, como necessário,
para garantir condições de bem -viver, também o direito à educação escolar. Em tais
manifestações por. escolasPara os quais, mesmo que sejacientes de tratar-se de uma
instituição produzida pela sociedade ocidental, e que tenha servido como instrumento de
“civilização” impondo uma cultura alheia à cultura população indígena, para os tempos atuais,
ela é necessária e faz parte da luta por autonomia. PortantoNeste caso, na ótica do movimento,
a educação reivindicada não está restrita somente ao direito à escola, e, sim, a uma escola
ressignificada, que reconheça processos próprios de aprendizagem;, isto é, cada povo ter
direito à sua própria forma de aprender e de ensinar na sua cultura. Trata-se de estabelecer o
diálogo com a cultura hegemônica. A luta pela autonomia, com a contribuição da escola, se
traduz na reivindicação de um processo educativo, que lhes possibilite conhecer o discurso
revelado e velado da sociedade hegemônica, estabelecerndo com ela relações, diferentes da
imposição ou da negação, tal como sempre se praticou com a “escola para índios”.

3.3.4 - A escola intercultural no movimento de resistência indígena no


Brasil.

No Brasil, Aapesar do significativo debate indigenista entre pesquisadores


vinculados a universidades, Organizações Não-Governamentais (ONGs) e setores do poder
138

público sobre educação, revisando, de forma crítica, o papel da escola historicamente


identificado com a “civilização dos índios”, há uma distaância marcante entre a transposição
prática do discurso destes setores e os reclamos da parte interessada, os povos indígenas. Do
debate que o movimento indígena trava com tais setores “críticos” da atuação da cultura
dominante, resultam elaborações que os próprios indígenas vêem construindo, denunciando a
referida distância, ao mesmo tempo em que expressam alguns pontos que vêem constituindo a
perspectiva indígena sobre a escola e seu papel.
Com as devidas ressalvas às condições específicas de cada região, de cada
povo e de cada comunidade, onde as adversidades e os interesses se particularizam, há
princípios de unidade entre os povos indígenas, assentadas mais em condições políticas, a
serem enfrentadas, no âmbito dos movimentos organizados, a começar pela própria rotulação
comum: “indígenas”, que os coloca no mesmo lado na luta. É, portanto, no âmbito deo
movimento que se busca o diálogo, digamos assim, em primeira instância, entre os povos
indígenas, tirando elaborando pontos comuns, afinando o discurso, uma vez que tratam com
um poder central comum que os uniformiza. Portanto, do diálogo entre os povos que se auto-
identificam como indígenas, são tirados elencados pontos comuns, que tendem a ser bandeira
de luta no discurso dos interlocutores indígenas.
Destse modo, as organizações indígenas, no tocante à educação escolarizada,
empenham-se na luta pela transformação da escola. Transformação que deve ser processada
pela própria ação das comunidades. Entretanto, para que a escola se torne,-se realmente
diferenciada, onde a cultura e a organização social e política indígena dêem dão as regras, a
mudança requerida vai muito mais além dasultrapassa as “concessões” permitidas pelo
sistema - direito de elaborar o currículo escolar e a contratação de professores indígenas - “é
preciso mudar toda a estrutura e toda a forma de organizar a educação escolar indígena”
(ENCONTRO NACIONAL... DE PROFESSORES INDÍGENAS E MISSIONÁRIOS, 2002,
p. 16).
Para que a escola converta-se em um serviço da e para a comunidade, é preciso
que a mesma esteja submetida aos mesmos princípios e critérios de organização social,
cultural e política da comunidade. Ou seja, não será uma escola indígena se não estiver nas
mãos da comunidade.
A participação e o controle mais efetivo das escolas pela comunidade implica
em estruturação em instâncias específicas e autônomas, concebida pelo movimento como
“distritos”, com autonomia administrativa e financeira e, com poder de decisão sobre as
políticas, tal como no controle das ações. Este sistema descentralizado vincularia a educação
139

escolar de cada distrito, organizado por povo ou Terra Indígena, vinculadas ao Órgão Federal
de Educação, instância governamental ao queal compete, constitucionalmente, a defesa e a
proteção dos bens indígenas. Tal autonomia é necessária para que sejam respeitadas as
distintas realidades, a diversidade social, cultural e lingüística dos povos.
A educação escolar, diferenciada e intercultural, organizada de forma a dar
autonomia aos povos no controle deste serviço é recorrente nos documentos do movimento
indígena, tal como manifestam os professores indígenas da Amazônia:
Os órgãos governamentais, não governamentais e instituições de ensino público
têm a obrigação de nos ouvir e consultar, discutindo com nossas lideranças,
organizações e comunidades, antes de formular e implantar políticas e/ou
programas que respondam às demandas e aspirações dos nossos povos e
comunidades, entendendo que os serviços e o atendimento diferenciado que exigem
os nossos povos na educação, e em outras áreas, constituem o reconhecimento dos
nossos direitos originários como povos cultural e historicamente diferenciados
(DECLARAÇÃO DA da II assembléia... GERAL DO CONSELHO DOS
PROFESSORES INDÍGENAS DA AMAZÔNIA, 2002).

Concluindo, entendemos que a afirmação da dignidade de coletividades, as


emancipações sociais, com respeito às diferentes identidades socioculturais, exigem novas
propostas políticas de relações entre povos, inclusive nas relações entre os povos sob um
mesmo Estado-nação, determinando novas políticas a serem exercitadas em instituições como
a escola. Assim, procuramos situar o papel da escola como instrumento das demandas de
Estados plurais, ressignificada de seu caráter monocultural para um formato intercultural. Para
ser coerente a com contextos de diferentes identidades culturais, a escola precisa manter,
necessariamente, vínculo com os movimentos sociais. Gentili (2001, p. 123) enfatiza que
uma escola inanimada perante a mudança social é uma escola comprometida com a
conservação da ordem, com o mascaramento das condições de miséria e exploração,
existentes em nossas sociedades, e ressalta que “não se trata de adicionar ou sobrepor
discursos „“alternativos”‟ sobre o social. Trata-se de ganhar a batalha discursiva que se
trava dia a dia na escola sobre o próprio conteúdo socialsocial (GENTILI, 2001, p. 123)”.
CAPÍTULO IV
A RESISTÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS NA
AMAZÔNIA OCIDENTAL

Antes de situarmos o processo de construção da escola, inserida na perspectiva


das relações contra-hegemônicas e como instrumento favorável à luta dos povos indígenas
pela emancipação social, convém apresentarmos algumas considerações sobre os povos
indígenas da Amazônia ocidental e sobre o movimento de resistência destes povos no
momento atual, propósito principal deste capítulo.
Justificando melhor, a escola como instrumento favorável na resistência
indígena, além de não poder estar alheia às históricas e atuais formas de exclusão, tal como
nos referimos nos capítulos anteriores, terá que ser pensada e articulada a outros aspectos
factuais, tais como a diversidade de povos e situações, representadas nas várias comunidades
indígenas da região, e o forte poder de controle político e social do movimento indígena. Sem
desconsiderar outros aspectos, como o universo cultural de cada povo ou, para ser mais
preciso, os valores e os conhecimentos, as ciências produzidas, reelaboradas em cada
comunidade: temática que abordaremos no próximo capítulo.
Assim, neste capítulo, numa primeira parte, apresentamos a diversidade
formada pela população indígena atual, na região, isto é, as denominações, entre a população
da Amazônia ocidental, cuja identidade sociocultural assenta-se na condição de povos nativos
da região. Mesmo minoritários e não dispondo das condições ideais de bem viver, pode-se
inferir que as conquistas obtidas nos últimos anos consolidam a continuidade, a resistência de
grupos, na sociedade regional, que se autodenominam indígenas, constituindo 185
comunidades, com 14 denominações diferentes do Acre, ampliando para 18 povos, quando
englobados os povos do sul do Amazonas e noroeste de Rondônia.
As peculiaridades, por exemplo, para um trabalho escolar coerente, são muito
maiores e mais complexas que tais divisões. Assim, os aspectos aqui apresentados apenas
sinalizam as particularidades mais evidentes.
Da breve caracterização dos povos indígenas, avançamos para o principal
ponto de referência, no que diz respeito à resistência de tais povos, o movimento indígena.
Embora, enquanto movimento, contemple toda a mobilização indígena em favor do interesse
destes povos, enfocamos, substancialmente, os organismos políticos do movimento, e a
137

atuação sistemática destes organismos, através de suas lideranças, administrando o controle


social das políticas e ações destinadas aos povos indígenas da região.
No que diz respeito à educação escolar, apesar do movimento não ter investido
na definição de uma política em educação, o peso político das lideranças do movimento tem
conseqüências tanto na oferta quanto no papel da educação escolar para indígenas. Fato que
justifica nossa opção em destacar a atuação do movimento indígena, a atuação de seus
organismos políticos, os espaços e conquistas obtidas, mais recentemente.
Para produzir este capítulo, fundamentamo-nos em materiais obtidos na
pesquisa bibliográfica, bem como documentos e anotações colhidos durante o trabalho de
pesquisa, junto ao movimento indígena e instituições indigenistas. Na apresentação sobre os
povos indígenas do Acre e região, trabalhamos tanto com as informações colhidas nas
conversas e entrevistas, quanto em teses, dissertações e publicações regionais.

1 Os povos que resistem, em suas identidades indígenas, na Amazônia ocidental

Indígenas, no Acre e região, compreende os segmentos populacionais, que


resistiram em suas identidades socioculturais, com traços étnicos originários dos povos
nativos da Amazônia. Estes formam um amplo contexto de diversidades e, diante da
complexidade que constitui os sistemas de cada povo, não comporta, neste trabalho,
“descrições” etnográficas pois estariam sujeitas a reduções e generalizações que não
corresponde ao que compreende cada povo. Nosso propósito, com os registros que
apresentamos abaixo é caracterizar a diversidade formada pelos povos que tomam parte do
movimento indígena da região, que são envolvidos na atuação e, ao mesmo tempo,
representados, politicamente, pela União das Nações Indígenas do Acre (UNI) e, como
assinalamos acima, explanar a diversidade a ser considerada quando se pensa a escola
indígena na região.
Para caracterizar quais são os povos indígenas do Acre e região, ou região
Juruá-Purus, convém ressaltar que tais povos não tiveram a intermediação de missionários ou
do Estado na época da invasão, como comenta Ribeiro (1996, p. 58):
Ali os coletores de drogas da mata não tiveram predecessores, missionários ou
quaisquer outros – foram eles próprios os desbravadores da terra, os descobridores
das tribos e seus algozes. Nenhuma outra região apresenta, por isso tanta
dificuldade para o etnólogo e para o lingüista. Não somente pouco se sabe sobre as
tribos que a habitavam, como há enorme confusão, a começar pelos nomes. O
seringueiro não estava interessado em distinções lingüísticas e culturais; com uns
poucos nomes batizou todas as tribos, fazendo-os recair sobre grupos
138

completamente diferentes. Isto indica bem a superficialidade dos contatos, que mal
permitiram uma identificação grosseira dos índios.
A limitação de informações sobre os povos indígenas da região persiste mesmo
com os estudos atuais, estando restrita algumas pesquisas, teses e dissertações. Portanto,
embora alguns povos da região, de uma forma ou outra, tenham sido sujeitos de estudo em
dissertações e teses, mesmo assim, não há estudos aprofundados bem como não há fontes
documentais, históricas, que tragam informações consistentes sobre esta população. Esta
ausência de informações é assinalada por Picolli, como resultado da falta de estudos assentes
na história oral destas sociedades; do colonialismo cultural, perpetrado, sutilmente, pelas
instituições e agentes da sociedade nacional; e do, ainda, etnocentrismo teórico e prático dos
pesquisadores e da burocracia administrativa. O mesmo autor, com larga atuação com
assessoria e pesquisa, junto aos povos indígenas na região, detalha, melhor, as dificuldades
quando se trata de descrever sobre as diversas etnias da região:
Em primeiro lugar, há uma carência generalizada de fontes da literatura científica,
sobretudo as de natureza etnológica e etnográfica. A bibliografia disponível
relaciona poucas obras sobre os povos indígenas. Os poucos trabalhos existentes
constituem estudos lingüísticos e históricos; raras vezes, possuem caráter
etnológico. Estes últimos são escassos e de elaboração recente. Resulta daí as
primeiras dificuldades e restrições em se estabelecer, de maneira segura e precisa,
a identidade das diversas etnias oriundas da região e de estabelecer seus
respectivos territórios de ocupação tradicional, bem como de descrever os seus
principais componentes sócio-culturais (PICOLLI, 1993, p. 62).
Feitas as ressalvas, relacionamos, a seguir, os 18 povos indígenas conhecidos
na região, considerando que há povos em isolamento “voluntário”, ou seja, não contatados por
outros grupos. Em termos de classificação lingüística, os 18 grupos étnicos da região estão
distribuídos em 3 famílias lingüísticas: os povos de língua Pano, em maior número no Acre,
são os Huni Kuĩ (Kaxinawá), Shanenawa, Katukina, Kaxarari, Jaminawa, Yawanawá,
Jaminawa Arara, Shawadawa (Arara), Náua, Poyanáwa, Nukiní e Apolima-Arara; os povos
classificados como falantes da família lingüística Arawá, na região, consistem nos Madijá
(Kulina), Jamamadi, e, incluímos também, o povo Kamadeni, embora haja controvérsias, tal
como explicitaremos abaixo, ao nos referirmos a este povo; por fim, os povos de língua Aruak
compreendem os povos Apurinã, Yine (Manchineri) e Asheninka (Kampa).
Em termos territoriais, a situação dos povos indígena na região está distribuída
da seguinte forma: 14 povos no Estado do Acre, em 28 terras indígenas, com pouco mais de
dois milhões de hectares, abrangendo 14,6% das terras do Estado15. Tal percentual reflete a
dimensão das perdas territoriais quando confrontado com os poucos registros históricos e
levantamentos arqueológicos, os quais apontam que a pouco mais de um século atrás, 100%

15
Fonte: KAXINAWÁ, 2002.
139

da Amazônia ocidental já estava, tradicionalmente, delimitada entre as dezenas de nações


nativas da região, que não venderam, não arrendaram, e, sim, tiveram subtraídos seus direitos
enquanto nações.
Considerando os povos Apurinã, Jamamadi e Kamadeni dos municípios de
Boca do Acre, AM, e Pauini, AM, e o povo Kaxarari, do município de Porto Velho, RO, ou
seja, considerando a região de nosso interesse, são em número de 44 as terras indígenas, cuja
situação fundiária é a seguinte: 18 terras registradas, 10 homologadas, duas
declaradas/delimitadas, e 14 terras indígenas a serem regularizadas no Acre e sul do
Amazonas16. Conforme a UNI, nas 44 terras indígenas da região estão instaladas
aproximadamente 185 aldeias com 14.360 indígenas (JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
Convém explicitar ainda que, na questão de fronteiras e territórios situamo-nos
em delimitações geográficas que obedecem à compreensão da sociedade dominante. Já entre
os povos indígenas as formas de relações revelam outras compreensões, refletidas na fala do
professor Julio Barbosa Kaxinawá, vice-diretor da Funai regional:
Os povos indígenas não tem limites [territoriais dos países], tanto faz Peru, Bolívia,
Venezuela, onde tiver índios eles estão freqüentando outros índios, quer dizer, tem
índio peruano nos Asheninka, tem índio peruano com os Kaxinawá e outros índios
aqui em volta (Julio Barbosa Kaxinawá, programa Gazeta Entrevista, TV Gazeta, 31
mai. 2003).
Por outro lado, a delimitação que apresentamos abaixo, dos grupos étnicos,
também obedece à lógica da compreensão da sociedade dominante, enquanto que entre os
povos indígenas a proximidade ou distância não se estabelece, exatamente, como a sociedade
nacional os concebe. Há divisões entre comunidades/aldeias, que se reconhecem pela mesma
denominação, que os mantém em permanente oposição, por outro lado, em determinados
casos, grupos distintos compartilham grandes afinidades. Julio Barbosa Kaxinawá,
exemplifica esta complexidade, na seqüência da fala citada acima:
Todos os povos têm um sentimento que comove nas aldeias, a consciência de cada
nação, de povo, seja Kaxinawá, Asheninka, Shanenawa, Jaminawa. Num outro
sentido, nós temos uns primos chamados Madijá [Kulina] que tem uma briga
interna que nunca se acaba, por exemplo, uma aldeia Madijá, vai noutra aldeia e
faz conflito, assassina 2, 3, essa aldeia vem prá cá e mata do mesmo jeito e aí vai
crescendo, vai crescendo, vai crescendo e aquilo nunca acaba. [...] acho que a gente
precisa entender para poder começar avaliar (Julio Barbosa Kaxinawá, programa
Gazeta Entrevista, TV Gazeta, 31 mai. 2003).
Passamos, a seguir, aos breves comentários apresentando os povos indígenas
da Amazônia ocidental.
O povo Madijá, no contato com os “brancos”, em meados do século XIX,

16
Fonte: CIMI - Regional Amazônia Ocidental.
140

recebeu a denominação Kulina, expressão que se sobrepôs à autodenominação Madijá.


Conforme Rangel (1994), denominação que quer dizer gente ou os seres humanos; ou ainda,
as pessoas pertencentes a seu grupo étnico em oposição aos outros. A população Madijá no
Brasil é estimada em 1.500 pessoas e seus territórios localizam-se nas bacias dos rios Juruá e
Purus, mais precisamente, na Terra Indígena Alto Rio Purus, nos municípios de Santa Rosa do
Purus, AC, e Manoel Urbano, AC; Terras Indígenas Jaminawa/Envira, Kulina do Rio Envira e
Kulina do Igarapé do Pau, no município de Feijó, AC. O povo Madijá estende-se pelo
território Peruano, região onde é numericamente superior aos que vivem no Brasil.
Os Madijá constituíram um dos grupos mais numerosos da região do Acre e sul
do Amazonas. Já nos primeiros contatos com a civilização não-indígena, houve uma drástica
redução de sua população, provocando profunda alteração em sua organização sociocultural,
de moradores tradicionais do interior da floresta para grupos dispersos, passando a viver nas
margens dos rios, ora como extratores de látex para a empresa seringalista, ora como
agricultores e caçadores a serviço dos não-índios. Como observa Rangel (1994, p. 61), este
povo tem presente na memória a história de suas andanças e de seus territórios de origem.
Andanças provocadas em busca de sobrevivência, primeiro para as cabeceiras dos rios e para
os “centros”, áreas onde não havia seringueiras, como forma de escapar das correrias. Não
havendo mais onde se esquivar do alcance da invasão, segue o período da submissão e novas
andanças para vender “seus serviços” aos patrões.
Neste mais de século de contato, são visíveis as alterações na cultura material,
na substituição do artesanato nativo por utensílios obtidos da cultura regional. Aspecto que
lhes tirou muito da sua autonomia, foram forçados a negociar com a única coisa que
interessava ao colonizador: a força de trabalho. Mesmo assim, é perceptível, nas relações com
este e outros povos da região, que os Madijá estão entre os que mais preservaram sua
integridade cultural com base em valores específicos. A presença deste povo, em cidades, tem
sido restrita a eventos de natureza política, nas mobilizações das nações indígenas ou em caso
de doenças que implica em tratamento hospitalar. A distância das cidades os mantêm
monolíngüe na língua Madijá. Apenas alguns dos mais velhos e poucos jovens conseguem
expressar-se em português.
Na relação dos Madija com a educação escolar, foi significativo o trabalho
desenvolvido pelo CIMI e COMIN, em anos passados, do qual resultou o domínio da leitura e
da escrita, na língua Madijá, por algumas pessoas.Nos dias atuais, o limitado uso da língua
portuguesa faz, da escola, uma instituição pouco expressiva entre este povo.
O povo Jamamadi vive nas Terras Indígenas Inauini Teuni e Igarapé Capana,
141

no município de Boca do Acre, AM, com uma população aproximada de trezentas pessoas.
Conforme Rangel (1994, p. 82), o povo Jamamadi aparece na literatura como Yamamadi,
sendo assim denominados por tratar-se de povo habitante das matas de cabeceiras dos
igarapés, em sua língua zama quer dizer mata, e assim permaneceram “gente do mato”.
Mesmo aceitando a denominação, segundo a mesma autora, Jamamadi não é
autodenominação, na língua Jamamadi, gente, ou seres humanos é grafado Madiha, similar a
seus parentes Madijá (Kulina), da mesma família lingüística.
Os territórios originários do povo Jamamadi - embora de uma ou outra forma
os registros estejam associados a seringais que empregavam a mão de obra indígena -
constam, como localizados no sul do Estado do Amazonas, entre afluentes da margem
esquerda do rio Purus. Conforme Rangel (1994, p. 63), comentando a fala de um velho
tuxaua, os Jamamadi:
Saíram das cabeceiras dos rios para as margens dos igarapés maiores em função
dos patrões. No tempo das malocas, o patrão chegava e todos corriam para o mato,
o tuxaua recebia o patrão e fazia as trocas. Com o tempo foram convencidos a
cortar seringa e quebrar castanha e, assim, foram espalhando-se pelas diversas
colocações. Lembra dos cariú que mataram muitos Jamamadi, [...] provocando
muitas fugas.
Conforme retrata a autora, os Jamamadi tiveram seu mundo invadido em
meados do século XIX. Foram compulsoriamente engajados no extrativismo e,
conseqüentemente em atividades comerciais, tendo sido subjugados, ao longo do século XX.
Desse modo, adquiriram hábitos de consumo de produtos industrializados, ferramentas, as
quais, já não podem abrir mão, o que continua a exigir o engajamento em atividades
econômicas com fins, exclusivamente, comerciais. Persiste entre os Jamamadi a forte tradição
na agricultura. Entretanto, as necessidades pós-contato, mobiliza os homens, nos meses de
janeiro a abril, na atividade de coleta da castanha da Amazônia para comércio.
Desde o início da década de 1980, o CIMI desenvolve um trabalho de apoio às
comunidades Jamamadi do município de Boca do Acre, com ações de apoio na educação,
saúde, transporte, desenvolvimento sócio-econômico. Há também, projetos que visam criar
novas alternativas alimentares e econômicas na perspectiva de um desenvolvimento
sustentável para estas comunidades indígenas.
O Povo Kamadeni é muito pouco conhecido. Não há estudos que façam
referência a este povo. As comunidades Kamadeni estão relativamente isoladas, ocupando
imemorialmente uma área localizada entre o médio e alto rio Mamoriá, desde a margem
esquerda do Igarapé Grande na Bacia do Purus, município de Boca do Acre, AM.
Geralmente este povo é alcançado por comerciantes aventureiros, em busca de
142

ganhos vantajosos nas trocas de produtos. Dentre os produtos de interesse dos exploradores
está a extração de madeira, onde os indígenas são explorados, subempregados na atividade de
desflorestamento de suas áreas. Dedicam-se também, na extração de óleos medicinais de
copaíba e andiroba, com os mesmos fins comerciais.
A desassistência oficial, no caso do povo Kamadeni, é agravada pelas
condições geográficas, cujo território situa-se no sul do Amazonas, dificultando a presença de
órgãos oficiais do Amazonas, ao mesmo tempo que não são beneficiados pelo governo do
Acre pelo fato de estarem situados em outra unidade da Federação.
O povo Kamadeni ilustra o grande desconhecimento da complexidade
sociocultural dos povos, sobretudo do sul do Amazonas. Conforme publicação Povos do Acre,
da Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour, em parceria com o Conselho
Indigenista Missionário, o povo Kamadeni faz parte da família lingüística Aruak, ao mesmo
tempo em que os coloca como um subgrupo Deni. Entretanto, Rangel (1994), antropóloga que
se dedicou ao estudo dos povos da região situa os Deni na família Arawá, motivo pelo qual os
situamos como tal. Ainda quanto à carência de informações, Rangel (1994, p. 12) comenta:
O quadro atual da população indígena da região onde encontram-se os Jamamadi,
[inclusive os Kamadeni, sul do Amazonas] mostra não apenas a complexidade
étnica mas, e principalmente, a imprecisão das referências históricas e etnográficas
para que seja possível compreender estes povos; o que se tem nos dias de hoje é
resultado dos deslocamentos sucessivos de parcelas destas populações, nas direções
mais variadas, cujo resultado histórico é o distanciamento entre as inúmeras
aldeias que compunham cada um dos povos da região.
Assim, do pouco que se conhece do povo Kamadeni, sabe-se que se trata de um
subgrupo Deni e sua população é estimada em 64 famílias, distribuída em 14 famílias
nucleares. Como afirmamos acima, caracteriza-se pelo isolamento, ocupando sempre o alto
dos igarapés. Possuem uma economia de subsistência, embora seja reduzida a variedade de
cultivos que desenvolvem.
O povo Apurinã, da família lingüística Aruak, se autodenomina Popingaré ou
Kangitê, habitam a região ao longo do Rio Purus e seus afluentes. Devido a organização
social do povo Apurinã se dar em pequenos grupos familiares, atualmente eles estão dispersos
em 23 Terras Indígenas, em sete municípios no estado do Amazonas. As comunidades
Apurinã, na região de nosso interesse, estão situadas nos municípios de Boca do Acre, AM e
Pauini, AM, com uma população próxima a duas mil pessoas, distribuídos em 10 Terras
Indígenas.
Tal como os demais povos indígenas da Amazônia ocidental, os Apurinã foram
contatados, pelos não-índios, na segunda metade do século XIX. Mais precisamente, a
143

invasão dos territórios Apurinã pelas empresas seringalistas consolida-se na década de 1870,
forçando os Apurinã a se tornarem seringueiros, castanheiros, entre outras ocupações de
interesse das frentes extrativistas.
O engajamento forçado na economia extrativista desarticulou a organização
sociocultural próprio deste povo. Foram forçados a abandonar a cultura apurinã, até mesmo a
língua materna, tornando-se dependentes da economia regional. Conseqüentemente, muitos
Apurinã têm migrado para as cidades de Boca do Acre, AM e Rio Branco, AC em busca de
melhores condições de vida.
Para as famílias que permanecem nos territórios tradicionais, o extrativismo,
hoje constitui-se em atividade essencial, especialmente a coleta da castanha, palhas e
sementes de palmeiras com as quais fabricam seus artesanatos. A ampliação da produção de
artesanatos, sobretudo a produção de ornamentos, é um incentivo como alternativa
econômica, ao mesmo tempo em que contribui para a afirmação da cultura Apurinã.
São do povo Apurinã algumas das lideranças expressivas do movimento
indígena da região, dentre elas, Antonio Apurinã, um dos fundadores da UNI, instituição que
coordenou por vários anos e, atualmente, suplente de Senador da República, no mandato da
Senadora Marina Silva e atual Diretor de Assistência da Funai, em Brasília.
O povo que se autodenomia Yine, de língua Aruak, foi identificado e ficou
regionalmente conhecido como Manchineri. Habitam, no Brasil, a Terra Indígena
Mamoadate, compartilhada com o povo Jaminawa, às margens do rio Purus, nos municípios
de Sena Madureira, AC e Assis Brasil, AC, com uma população aproximada de quinhentas
pessoas. A terra Indígena Mamoadate, identificada e delimitada em 1977 pela Funai e
demarcada em 1985, consiste na maior Terra Indígena do Acre, com 317.647 hectares.
Situada, mais precisamente, na margem direita e esquerda do rio Iaco, a partir do Igarapé
Mamoadate, indo até a fronteira do Brasil com o Peru.
Apesar do território vasto, esta terra situa-se numa região onde não há produtos
tradicionais de extrativismo, de comercialização imediata, tais como: seringa, caucho e
castanha. Fato que tem suscitado uma questão crucial para esta população e órgãos
indigenistas, no tocante a alternativas econômicas que garantam renda para aquisição de
produtos que atendam suas necessidades básicas.
Outro aspecto de implicações socioculturais para o povo Yine, é o problema da
Terra Indígena compartilhada com os Jaminawa. A demarcação do território pelo órgão
indigenista desconsiderou a possibilidade do surgimento de problemas com as diferenças
tanto culturais quanto a rivalidades do passado. O povo Yine, caracterizado como povo
144

guerreiro, é acusado de, no passado, ter atuado como colaborador nas correrias sofridas pelo
povo Jaminawa, embora, em situações formais, estes fatos não afetem as relações.
Caracterizaram-se também como, caçadores, pescadores e, eventualmente,
agricultores. Na cultura tradicional do povo Yine, foi distintivo a confecção e uso de uma
indumentária em algodão, similar a um “poncho”, comum entre os povos andinos, similar,
também, a indumentária do povo Asheninka, da mesma família lingüística. A Similaridade é
apenas para os não-índios, uma vez que entre os povos há distinções marcantes entre a
indumentária de um e outro.
Dentre as lideranças atuais do povo Yine (Manchineri), destacamos na
educação, o professor Jaime Manchineri, cursando Pedagogia Indígena na Universidade
Estadual do Mato Grosso. Outra liderança de destaque é Sebastião Haji Manchineri,
coordenador Geral da Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca
Amazónica (COICA) instância de coordenação das Organizações Indígenas da Bacia
Amazônica, abrangendo Venezuela, Colombia, Ecuador, Perú, Bolivia, Guyana Francesa,
Guyana Holandesa, Suriname e Brasil.
O povo Asheninka, ou Ashaninka, foi denominado pelos não-indígenas pelo
nome Kampa. Embora tenha sido um termo amplamente utilizado, Kampa não é aceito como
denominação para este povo. A autodenominação Asheninka, significa, em sua língua, “Seres
Humanos” ou “Nossa Gente”. Os Asheninka ou Ashaninka, pertencente ao ramo ocidental do
família lingüística Aruak. Juntamente com outros povos situados no Peru, formam a
população pré-andina.
No Brasil, a população Asheninka é estimada em, aproximadamente, mil
pessoas. Ocupando um conjunto de áreas que somam mais de trezentos mil hectares, situadas
no Vale do rio Juruá, Estado do Acre. Das 05 terras indígenas Asheninka no Acre, duas são
compartilhadas com outros povos indígenas. No município de Feijó, AC: a terra indígena
Jaminawa do rio Envira é compartilhada com o povo Madijá e, no mesmo município, a terra
indígena Kampa e isolados do rio Envira, neste território, além da população Asheninka há
povos isolados. As outras terras Asheninka estão situadas no município de Tarauacá, AC: terra
indígena Kampa do igarapé Primavera; e no município de Marechal Thaumaturgo, AC: terra
indígena Kampa do rio Amônia, e a terra indígena Kaxinawá/Ashaninka do rio Breu
compartilhada com o povo Huni Kuĩ.
Relatos históricos indicam que os Asheninka vieram do Peru, no final do século
XlX, durante a “febre da borracha”, possivelmente, em busca do comércio com patrões que
lhes fornecessem mercadorias e armas. Há relatos de que o deslocamento para o Alto Juruá,
145

hoje território brasileiro, tenha sido por incentivo de caucheiros peruanos. Por ser um povo
reconhecidamente guerreiro, ao ser incorporado ao sistema seringalista, foi forçado a realizar
“correrias” contra os povos de língua Pano que dificultavam a exploração da seringa na
região, onde, hoje, é o Acre.
Inseridos na conjuntura do avanço extrativista, estiveram, também, sujeitos aos
patrões seringalistas, os quais se valeram das divergências tradicionais entre povos,
patrocinando o acirramento de guerras; prática que culminou na dizimação do povo
Amawaka. Em troca desse serviço, recebiam produtos manufaturados, tornando-os
dependentes da sociedade envolvente.
A rivalidade com possíveis remanescentes dos Amawaka isolados, persiste até
hoje, sobretudo com a parcela maior dos Asheninka, que chega a 40 mil, situados no Peru. No
primeiro semestre de 2003, a imprensa noticiou episódio de enfrentamento entre Asheninka e
índios isolados, em região próximo à fronteira entre Brasil e Peru, resultando em mortes e
mobilizando autoridades de ambos os países. No relato vindo das comunidades, os isolados
confrontados seriam remanescentes dos Amawaka.
Uma característica do povo Asheninka é a mobilidade, no verão amazônico, as
famílias costumam viajar dias ou meses, para visitar parentes e realizar trocas ritualizadas,
chamadas ayumpari, ou mesmo para acampar nas praias, para pescar e coletar ovos de tracajá.
Por esse motivo são chamados pelos regionais de “povo de arribação”. Já as comunidades no
Brasil adquiriram características mais sedentárias, como o caso dos Ashaninka do rio Amônia,
que estabeleceram fortes relações com sua terra e com os regionais.
A cultura material Asheninka é um de seus maiores orgulhos, pois, apesar do
longo período de contato com os caucheiros e seringueiros, mantém grande parte de seu
artesanato que obedecem a critérios de funcionalidade, podendo ser dividido em
indumentárias, equipamentos domésticos, instrumentos musicais e armas, confeccionados
com diversas técnicas e matérias-primas. Produção artística que desperta interesse entre os
não-índios, tornando-se uma das suas principais fontes econômicas.
Os Asheninka se mostram austeros com os brancos, principalmente com
estranhos. Atitude que permite manter a organização sociocultural das comunidades em
padrões próprios. A manutenção de sua cultura não os tem impedido no investimento em
projetos que garantam melhorias ao povo; é o caso dos Ashaninka do rio Amônia, os quais,
através da associação Apiwtxa, vêm implantando projetos de desenvolvimento sustentável que
visam melhorar a qualidade de vida de suas comunidades. Mais recentemente, em meados de
2003, em parceria com ONGs, esta comunidade foi interligada num sistema de rede via
146

internet, visando a difusão de sua cultura. É também da comunidade Ashaninka do rio


Amônia duas lideranças de expressão no movimento indígena: Francisco Pianko, ocupando a
Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas do estado do Acre e Isaac Pianko, coordenador
da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC).
Entre os povos falantes de línguas Pano, na região do Estado do Acre, o mais
numeroso é o povo Huni Kuĩ (gente verdadeira). Conhecido na região como Kaxinawá,
denominação dada pelos “brancos” ou mesmo por outros grupos Pano. Tal como os demais
povos da região, foram alcançados pelas frentes extrativistas, seja de caucheiros quanto de
seringueiros, na segunda metade do século XIX.
Com uma população estimada em 5 mil pessoas, suas comunidades estão
espalhados em 12 terras indígenas no estado do Acre, algumas compartilhadas com outros
povos. As terras indígenas Huni Kuĩ, no Acre, que, somadas, abrangem mais de 600 mil
hectares, estendem-se pelos vales do Juruá e Purus, em cinco municípios do estado: Santa
Rosa, Manoel Urbano, na região do Purus; Feijó, Tarauacá, Jordão e Marechal Thaumaturgo,
na região do Juruá.
Os Huni Kuĩ possuem uma vasta cultura material que, compreende desde a
tecelagem em algodão, com tingimento natural até cerâmica feita em argila com cinzas
obtidas de animais, de árvores e ainda cacos de outras cerâmicas, onde são impressos os Kenê
(desenhos da cobra), uma espécie de marca que identifica a cultura material dos Huni Ku .
Também para este povo o artesanato se configura como uma fonte de renda para as famílias.
Embora a maioria dos Huni Kuĩ tenha sido reprimido em sua organização
sociocultural, durante o processo de colonização da Amazônia, as sociedades Huni Kuĩ têm
buscado reavivar elementos significativos em sua cultura; em suas tradições, entre as quais, o
xamanismo, que lhes propicia a ligação com o mundo espiritual, através dos poderes do Pajé.
Poderes que vão desde conhecimentos para curar doenças até poder para entrar em contato
com as forças sobrenaturais.
O povo Huni Kuĩ tem muitas lideranças expressivas, que contribuem na
sustentação ao movimento indígena. Destacamos o professor Joaquim Paulo Maná Kaxinawá,
liderança expressiva na educação, tendo organizado junto com outros professores nove
publicações, em sua maioria destinada à escola indígena. Atualmente o professor Joaquim
Maná Kaxinawá é um dos coordenadores da OPIAC, cursa Pedagogia Indígena na
Universidade Estadual do Mato Grosso e é membro da Comissão Nacional de Professores
Indígenas, junto ao MEC, representando a região do Acre. Outra liderança expressiva é
Manoel Gomes Kaxinawá, uma das lideranças com atuação mais destacada na UNI,
147

atualmente diretor da Funai regional.


O povo Kaxarari a que nos referimos aqui, tem seu território situado no
noroeste do estado de Rondônia, divisa com Amazonas, município de Porto Velho e é
incluído na relação de povos da região sobretudo pela participação no movimento indígena
regional. Há, também, comunidades que se autodenominam Kaxarari, no sudeste do
Amazonas, no município de Lábrea. Povo da família lingüística Pano, cuja denominação
Kaxarari foi atribuída pelos “brancos”. Conforme lideranças Kaxarari, a autodenominação de
seu povo assemelha-se a dos Kaxinawá: Huni Kuĩ. São falantes de sua língua, Huni Kuĩ,
sendo que apenas os homens mais jovens falam o português, enquanto que os mais velhos, as
mulheres e crianças só compreendem, não falam, a língua portuguesa. Segundo eles mesmos,
também compreendem vocábulos da língua Kaxinawá (Huni Kuĩ).
O contato dos “brancos” com o povo Kaxarari aconteceu, também, de forma
violenta, no tempo das correrias. Após décadas de “cativeiro”, tiveram seu território
garantido em meados da década de 1970, quando as lideranças Kaxarari se mobilizaram para
reivindicar a delimitação de suas terras e assistência na área da saúde. Hoje, são cerca de 300
pessoas divididos em 4 comunidades: Pedreira, Paxiúba, Barrinha e Marmelinho, que ocupam
uma área de 145 mil hectares, demarcados em 1987.
Vivem de seus roçados de subsistência, da caça, da pesca e da coleta de frutas
silvestres. Alguns trabalham como diaristas ou peões nas fazendas e seringais próximos à
terra indígena. No entanto, a principal atividade econômica é a extração da seringa e coleta da
castanha. De sua cultura material os produtos mais comuns são a rede de algodão, o cesto de
cipó titica (patxa), vassouras de cipó titica, bracelete (metamushi) de pena de carará
(mergulhão) e tucano.
Os Kaxarari já não praticam seus rituais tradicionais bem como já não vivem
mais em habitações tradicionais. Os observadores afirmam que eles estão atravessando uma
“desagregação social”, pois além do vínculo lingüístico parece haver pouca manifestação de
sua cultura tradicional. Uma de suas brincadeiras era o “bili”, um jogo de bola de caucho,
jogado com o joelho e parecido com o futebol.
Mesmo organizados, com participação no movimento indígena regional, as
comunidades indígenas Kaxarari enfrentam grandes dificuldades de assistência. Por terem seu
território situado no estado de Rondônia, em região próxima ao Acre e pelo fato da influência
do movimento indígena ser maior junto ao governo do Acre, as conquistas do movimento nem
sempre são extensivas aos Kaxarari, ao mesmo tempo que, estão muito distantes dos centros
políticos de Rondônia, resultando em sérios problemas para este povo, com falta de recursos
148

para atendimento em saúde, educação e incentivos à produção.


O povo Nukini, com uma população estimada em 500 pessoas, vive na terra
indígena Nukini, criada em 1993, com 31.932 hectares, cuja situação fundiária consta como
registrada. Está localizada na região do Vale do Juruá, na margem esquerda do rio Môa,
dentro dos limites territoriais do município de Mâncio Lima, extremo oeste do Acre.
Tradicionalmente a nação Nukini situava-se na região da Serra do Môa, no
Brasil e Vale do Ucayali no Peru, tendo sido contatados por peruanos e brasileiros, em fins do
século XIX e início do século XX. A resistência, a recusa à submissão aos caucheiros e
seringalistas resultou no massacre e quase extermínio deste povo. A violência exercida pelos
invasores forçou os Nukini a abdicar de costumes, tradições, de modos próprios de vida e até
mesmo de sua língua.
Pertencente à família lingüística Pano, hoje apenas seis pessoas Nukini falam a
língua indígena. O idioma usual é o português. Economicamente, os Nukini sobrevivem da
agricultura de subsistência e criam alguns animais (bois, porcos, galinhas), produtos, por
vezes, comercializados nas cidades de Mâncio Lima ou Cruzeiro do Sul.
Os problemas enfrentados pelo povo Nukini estão relacionados aos interesses
sobre o seu território por parte de madeireiros, pecuaristas e até mesmo como rota de tráfico
de entorpecentes. No processo de resistência atual, tal como os demais povos indígenas,
possuem uma Associação, organização indígena local, por meio da qual desenvolvem, em
parceria com instituições de apoio, projetos de desenvolvimento sustentável, visando
alternativas econômicas e revitalização cultural.
O povo Poyanáwa, da família lingüística Pano, com uma população
aproximada de 500 pessoas, é um dos povos que sofreu forte impacto em sua organização
social e em sua cultura, durante o processo de exploração promovido pelos patrões
seringalistas. As terras tradicionalmente ocupadas pelo povo Poyanáwa, às margens do rio
Môa, afluente do Juruá, ricas em seringa e caucho, foram invadidas em 1888 por caucheiros
peruanos e por seringalistas e seringueiros brasileiros. Esta ocupação foi rápida e intensa, por
estar situada próxima a uma região pólo do extrativismo, Cruzeiro do Sul, AC. Portanto,
rapidamente transformada em propriedade dos “coronéis da borracha”. Atualmente a terra
indígena Poyanáwa, com 24.499 hectares, está localizada no município de Mâncio Lima, AC.
Das mazelas, restou aos Poyanáwa um processo avançado de aculturação, com
fortes traços de miscigenação com a sociedade regional. Da proibição, por décadas, de falar a
língua Poyanáwa, os falantes desapareceram, hoje só falam o português, restando alguns
poucos idosos com conhecimentos sobre a língua nativa. Dos povos da região Juruá e Purus,
149

os Poyanáwa, pelo que se tem conhecimento, foram os primeiros e ao, que tudo indica
também os únicos que tiveram escola, no início do século XX, por iniciativa do Governo de
Cruzeiro do Sul, em 1914. Tratava-se de uma escola primária, onde as crianças e os adultos
Poyanáwa recebiam instrução. Os registros destacam a facilidade com que adquiriam o
conhecimento dos “civilizados”, porém, não há informações se a referida escola funcionou
por muito tempo.
Nos tempos atuais, a subsistência dos Poyanáwa têm base forte na agricultura.
Cada família nuclear possui sua roça, produzindo, principalmente, para o consumo familiar.
Integrados à economia regional, vendem farinha, galinha, ovos e porcos, conforme o sistema
de comércio da região, ou seja, a intermediários de Cruzeiro do Sul ou dos povoados
próximos da comunidade Poyanáwa, adquirindo, em contrapartida, roupas, sal e outros
produtos. Ainda com relação a produtos para comércio, a extração da seringa continua sendo
uma prática na região. A pesca a caça deixaram de existir desde a década de 1970, quando já
era quase inexistente em função das povoações não-indígenas estabelecidas na região há
muitas décadas.
Os Poyanáwa mais velhos ainda se referem às festas e aos rituais antigos, os
quais hoje não são realizados. As festividades realizadas, atualmente, nos aniversários e nas
brincadeiras (baile), contando com a participação dos vizinhos não-indígenas, refletindo o
bom relacionamento entre a comunidade indígena e a sociedade envolvente. Quanto à
organização sociocultural, já não existe lideranças religiosas ou políticas, nos moldes
tradicionais da cultura Poyanáwa. Tal como para os demais povos da região, têm especial
relevância na organização política das comunidades indígenas atuais as associações indígenas
locais.
O povo Náua foi dado como extinto em 1904, coincidindo com a instalação da
Prefeitura Departamental do Alto-Juruá, data da qual se teve o último registro desse povo,
cujo território situava-se às margens do rio Juruá, onde se estabeleceu a cidade de Cruzeiro do
Sul, AC. A população não indígena de Cruzeiro do Sul assimilou e ressignificou a expressão
“Naua”, atribuindo à cidade o título de “Terra dos Nauas”, expressão comum nas casas
comerciais e produtos da região. Considerando o povo extinto, permaneceria exclusivo o novo
sentido dado à expressão.
Em 1999 o CIMI fez contato com uma comunidade situada no Parque Nacional
da Serra do Divisor, cuja população se auto-reconhecia como indígenas, remanescentes dos
Náua. A partir de então, desencadeou-se a luta pelo reconhecimento étnico e pela
regularização da terra, na margem direita do rio Moa, reivindicada por esta comunidade
150

formada por 280 pessoas, com predominância de jovens e crianças.


Esta comunidade ocultou sua identidade, admitindo, como estratégia de
resistência, a aparência de comunidade ribeirinha. No final da década de 1990, ONGs
ambientalistas e setores empresariais de Cruzeiro do Sul, visando projetos preservacionistas e
de exploração turística do Parque Nacional, ameaçam o refúgio desta comunidade que, desde
então, tomando conhecimento de seus direitos constitucionais, lutam para que sejam
reconhecidos como indígenas, causando grande desconforto às vésperas do centenário de
Cruzeiro do Sul, a “Terra dos Náuas”. Setores importantes da região não admitem que esta
comunidade seja indígena, sequer “caboclos”. O laudo de reconhecimento étnico feito pela
Funai, que assegura que esta comunidade é formada por indígenas do povo Náua, vinha sendo
contestado e, em outubro de 2003, a Justiça Federal do Estado do Acre, com a participação de
representantes do Ministério Publico Federal, confirmou o referido reconhecimento étnico
perante a Justiça e órgãos que contestavam o laudo, deliberando pela criação da terra indígena
Náua.
É um povo da família lingüística Pano, mas, em função do massacre a que
foram submetidos com toda sorte de desmandos, torturas e assassinatos, ao longo da história,
obrigados a negar a sua identidade e a se “esconderem” como “ribeirinhos”, a língua
portuguesa tornou-se a língua materna. No aspecto religioso, declaram-se católicos e não
fazem uso de rituais de origem indígena, exceto em algumas ocasiões festivas, onde
costumam cantar e dançar com vestes típicas como saiotes e chapéus, além de muitos adornos
em pena e pintura corporal. Na economia, praticam a agricultura de subsistência, a caça e a
pesca. Os produtos excedentes, principalmente a farinha de macaxeira, são comercializados
em Mâncio Lima.
O povo Apolima-Arara é outro grupo em busca do reconhecimento étnico.
Com uma população de 135 pessoas, os Apolima-Arara têm origem na mistura étnica a que
povos foram submetidos, ao longo da história, resultando em comunidades formadas por
indígenas de diferentes etnias, dentre elas, Amoaka, Arara e Jaminawa. Além da
miscigenação, o nome faz referência à uma localidade no Peru, onde teriam morado algumas
pessoas destas comunidades.
Basicamente todos falam a língua materna, além do português, mas há quem
fale, também, o espanhol e o Asheninka. Predomina, no entanto, a língua Pano, falada
principalmente pelos Arara e Jaminawa que fazem parte da composição étnica do povo.
A luta pelo reconhecimento como povo indígena, teve início com a
interlocução com o CIMI, em 1999, quando esse povo resolveu se mostrar à sociedade não
151

indígena e reivindicar os seus direitos. Em agosto de 2000, a Funai divulgou o relatório de


identificação do povo, confirmando o reconhecimento dos Apolima-Arara como sendo
indígenas, indicando que precisariam ser assistidos pelo órgão indigenista oficial. A partir daí,
intensificou-se a luta pelos seus direitos, principalmente, o direito a terra.
Residem nas localidades: Pedreira, Assembléia e Jacamim, além de outras
pessoas espalhadas pela região, localidades situadas em áreas de terra pertencente ao exército
brasileiro, à reserva extrativista e a um assentamento do Incra, no município de Marechal
Thaumaturgo, AC. Os Apolima-Arara têm tido constantes conflitos com parceleiros do Incra
e com a administração municipal, que não querem que a área reivindicada se torne terra
indígena.
Consideram-se católicos, mas possuem praticam religiosas indígenas em torno
do poder espiritual do Pajé. Os nomes pessoais são dados pelos pais, tal como na maioria dos
povos da região, quase sempre em português, e lembram nomes de antigos seringalistas e
patrões. Não é raro encontrar várias pessoas com o mesmo nome e sobrenome. Por exemplo:
“Francisco dos Santos Siqueira”.
O povo Shawadawa, da família lingüística Pano, foi denominado pelos
“brancos” como Arara, atualmente, reivindica o respeito a autodenominação Shawadawa. Seu
território localiza-se no Município de Porto Válter, AC, com uma população de 275 pessoas,
numa área delimitada e não demarcada, de 86.700 ha. São falantes da língua portuguesa,
apesar do esforço em reavivar a língua Shawadawa, dominada por poucos.
Sua organização espacial, no interior da terra indígena, está distribuída em três
aldeias: Raimundo do Vale, Foz do Nilo e Boa Vista, as quais não formam conglomerados
populacionais devido às residências estarem espalhadas ao longo das margens dos rios e
igarapés. Esta forma de ocupação permite maior facilidade para transportar os produtos de
primeira necessidade e facilita no deslocamento até as cidades. Há, também, fatores culturais
e produtivos bem como diferenças entre famílias, que faz com que permaneçam em aldeias
distintas. Outro aspecto que determina tal distribuição espacial, diz respeito às atividades de
subsistência, a dispersão na terra indígena favorece na caça, pesca, prática da coleta e
agricultura.
De acordo com os poucos registros históricos sobre a ocupação do alto Juruá,
os Shawadawa foram contatados por não-indígenas, por vota de 1905. Na lembrança dos mais
velhos, ainda está presente a trajetória deste povo, as intensas movimentações, provocado
pelas correrias, pelas guerras intertribais e pelas migrações voluntárias dos grupos por um
vasto território. Devido às guerras e a casamentos intertribais, nem todos os mais velhos são
152

Shawadawa. Tais lutas fizeram com que indivíduos de outros povos se integrassem ao povo
Shawadawa.
A região atualmente habitada pelo povo indígena Shawadawa era território
dos grupos Pano e Aruak. A exploração e ocupação efetiva do território pelos seringalistas
ocorreu a partir das duas últimas décadas do séc. XIX. Desde então, os Shawadawa estiveram
sob o jugo dos patrões em atividades voltadas para a produção da borracha, na relação de
dependência do sistema de barracões. Apesar disso, os Shawadawa mantiveram um padrão
próprio de vida, na cultura Shawadawa.
A desagregação imposta pelos patrões, a depreciação decorrente do preconceito
e as precárias condições de vida na terra indígena, fizeram com que, na década de 1980,
muitos Shawadawa migrassem para as cidades, principalmente, Cruzeiro do Sul. Há
entretanto, nos últimos anos, um esforço coletivo pela permanência na terra indígena bem
como iniciativas para revitalização de valores socioculturais do povo. Preocupações
justificadas como condição para preservação da terra indígena que vem sofrendo constantes
invasões por não-indígenas.
O povo Jaminawa Arara constitui um grupo formado por descendentes dos
povos Jaminawa e Arara que, com o declínio da empresa extrativista, permaneceu nas
cabeceiras dos rios Tejo, Bagé e Humaitá, afluentes do rio Juruá. Essa junção de indígenas de
povos diferentes é resultado do avanço indiscriminado das frentes extrativistas que
provocaram um intenso processo de depopulação e dispersão dos Jaminawa e dos Arara do
vale do Juruá, processo que jogou esses indígenas na experiência do individualismo e
isolamento do sistema extrativista. Fatos que marcaram profundamente as famílias, levando,
no momento de reagrupamento, a uma solidariedade mais por parentesco do que por povo.
Portanto, dos casamentos interétnicos entre os Jaminawa e os Arara constitui-
se um novo povo: o Jaminawa Arara, que obteve o reconhecimento como povo e o
conseqüente direito a seu território, pela Funai, em 1978. Pertence à família lingüística Pano.
Atualmente o Português é a língua falada em suas comunidades e somente as pessoas mais
velhas sabem a língua tradicional Jaminawa Arara. O território deste povo localiza-se na
região do Alto Juruá, no município de Marechal Thaumaturgo, na Terra Indígena Jaminawa
Arara do rio Bagé, com uma extensão de 28.928 hectares. Está demarcada e homologada. A
população total é de aproximadamente 200 pessoas.
Os Jaminawa Arara praticam a agricultura de subsistência, tendo a caça e a
pesca entre as atividades mais comuns de subsistência. Como atividade econômica de
produção para o comércio, as famílias se envolvem no processo de produção da farinha de
153

macaxeira. Quando há viabilidade econômica para a produção de borracha, os Jaminawa


Arara voltam às atividades de corte da seringa. Tanto a farinha, quanto a borracha, são
comercializados visando a aquisição de produtos de primeira necessidade, geralmente
negociando sua produção por mercadorias.
O povo Jaminawa Arara, mesmo “transfigurado”, resistiu ao longo processo de
dominação e, atualmente, vive uma fase de retomada de sua organização sócio-cultural. A
maior dificuldade, nesse processo, é resultado dos constantes conflitos internos, dos
casamentos com regionais. Os problemas são agravados com as dificuldades de acesso à sua
terra, resultando na pouca presença das instituições indigenistas e do movimento indígena
regional.
O povo Katukina, no estado do Acre, é um povo que mantêm viva a sua
tradição cultural, diferenciando-se, substancialmente, da população regional por manter seus
próprios padrões de organização e conduta social. Povo bilíngüe, usam o português apenas
nos momentos de extrema necessidade (COFFACI DE LIMA, 1994, p. 5), mantendo, após um
século de contato com os brancos, fronteiras delimitadas entre eles e os regionais.
A denominação Katukina insere-se na problemática na qual os povos da região
foram contatados. Conforme estudo realizado por Coffaci de Lima, “katukina” é um termo
genérico que chegou ser atribuído a cinco grupos lingüisticamente distintos, atualmente
denominação usual apenas ao grupo Pano e ao grupo da família lingüística Katukina. Os
Katukina do Acre reconhecem que esta não é a sua autodenominação e atribui a origem do
nome à denominação que lhes foi dada pelo governo. A autora afirma que, mesmo aceitando o
rótulo katukina, este povo se reconhece internamente por seis autodenominações: varinawa
(povo do sol), naynawa (povo do céu), kamanawa (povo da onça), satanawa (povo da lontra),
waninawa (povo da pupunha) e numanawa (povo da juriti).
A explicação sobre a confusão relacionada à denominação Katukina, que foi
admitida entre grupos Pano é explicada por Coffaci de Lima (1994, p. 17) em duas
alternativas:
Na primeira [...] os brancos equivocadamente teriam atribuído esta denominação de
Katukina a alguns grupos pano, confundindo-os com os Katukina propriamente
ditos; e na outra, alternativa [a possível] sutil adoção do nome katukina por alguns
grupos pano ao perceberem que os assim designados tinham relações amistosas
com os brancos, ao passo que os nawa, tidos como ferozes e cruéis, eram alvos de
contínua perseguição.
Com uma população aproximada de 700 pessoas, os Katukina, da família
lingüística Pano, vivem em duas terras indígenas, uma no rio Gregório, município de
Tarauacá, terra indígena compartilhada com o povo Yawanawá, que ocupam a porção sul. E
154

outra, a terra indígena Katukina do Igarapé Campinas, município de Tarauacá, na fronteira


com o município de Ipixuma, estado do Amazonas.
A terra indígena do rio Gregório foi a primeira demarcada, no estado do Acre,
em 1984 e homologada, definitivamente, em 1991 enquanto que a terra indígena Campinas foi
demarcada em 1984 e homologada em 1993.
Durante as “correrias”, a única alternativa que restou aos katukina foi a
dispersão. Passaram de caçadores-agricultores a caçadores-coletores, alterando, assim, a base
econômica tradicional, a fim de garantir a sobrevivência física. Devido aos sucessivos
deslocamento e migrações que empreenderam, são tidos pelos regionais como “povo que não
pára quieto”, nômade. No período subseqüente à invasão de seus territórios, foram absorvidos
pela empresa seringalista, diminuindo os deslocamentos, e, com a conquista das atuais terras
indígenas, essa característica nômade deixou de existir.
No aspecto econômico, com o processo de demarcação das terras indígenas, os
Katukina criaram sua própria cooperativa, dedicando-se, inicialmente, a produção da
borracha. Com a desvalorização desse produto passaram a plantar milho e arroz para serem
comercializados. É também da agricultura que obtém a maior parte dos itens que compõem a
dieta alimentar. Portanto, a agricultura é a atividade que absorve maior tempo de trabalho de
homens e mulheres. Além dos produtos destinados ao comércio, plantam macaxeira e a
banana, principais alimentos da dieta Katukina, complementado pela batata-doce, cará, taioba,
mamão, abacaxi e cana-de-açúcar. Outras iniciativas em parceria com agentes externos são
conduzidas pelas comunidades Katukina, visando o manejo dos recursos agroflorestais nas
terras indígenas.
O povo Yawanawá, que na sua língua significa “gente queixada”, da família
lingüística Pano, habita, imemorialmente, as margens do alto rio Gregório, vale do Juruá. O
povo Yawanawá aglutina membros dos grupos Shawanawa (gente arara), Iskunawa (gente
japó, que hoje são chamados Shanênawa), Rununawa (gente cobra jibóia), Kamanawa (gente
onça), Varinawa (gente do sol), Txashunawa (gente veado) e Sainawa. Essa formação é
resultado da dinâmica própria de grupos Pano - de união e desagregação, através de
casamentos, conflitos e migrações. Entretanto, essa constituição do povo Yawanawá não
resulta em uma sistematização por clãs ou sessões.
Em 1984, o povo Yawanawá conseguiu demarcar sua terra, compartilhada com
o povo Katukina, tornando-se, junto a estes, o primeiro povo indígena a conquistar
regularização de terra indígena no estado do Acre. Hoje, a terra indígena do rio Gregório
encontra-se devidamente registrada em cartório, com uma extensão de 92.859 hectares.
155

O território do povo Yawanawá está situado no município de Tarauacá,


denominado terra indígena do rio Gregório, que atualmente é formado por 03 aldeias: Nova
Esperança, Mutum e Escondido. A região onde está situada a área é de difícil acesso, devido à
baixa navegabilidade dos rios, principalmente no verão amazônico.
Atualmente, o povo Yawanawá tem uma população estimada em
aproximadamente 700 pessoas nas aldeias, sem contar as famílias que vivem na cidade de
Tarauacá. Entre os Yawanawá há casamentos interétnicos com regionais. Reflexo dessa
relação, que pode ser facilmente notada, é o problema sociolingüístico, já que parcela de sua
sociedade usualmente faz uso somente do português, principalmente os mais jovens.
Entretanto, a preocupação com a preservação de sua língua e a cultura de um modo geral fez
com que a comunidade entrasse num processo de revitalização cultural. Atualmente, a
população Yawanawá domina a língua materna e o português.
Dentre os problemas enfrentados por este povo está a transferência de famílias
para a cidade de Tarauacá, motivado por diversas razões, tais como: a sede do escritório da
Organização dos Agricultores Extrativistas Yawanawá do Rio Gregório, em Tarauacá, e a
facilidade para o recebimento de benefícios sociais (aposentadorias) e buscar auxílio médico.
A constituição de uma organização entre os Yawanawá, tem auxiliado o povo
na representação política, na defesa dos interesses das comunidades Yawanawá e como meio
de captação de recursos, para implantação de projetos sócio-econômicos. Dentre os projetos já
realizados em parcerias com órgãos governamentais e não-governamentais, destacam-se os de
infra-estrutura da aldeia Nova Esperança, com sistema de eletrificação rural a energia solar,
posto de saúde equipado e escola de ensino bilíngüe. Atualmente, simultâneo à comunidade
Ashaninka do Amônia, esta comunidade foi incluída no sistema de inclusão digital, com a
interligação da aldeia à internet.
Dentre as alternativas econômicas buscadas pelos povos indígenas da região
destaca-se o projeto de plantio comercial de 30 hectares de urucum, firmado em 1993, entre a
Aveda Corporation, indústria produtora de cosmédicos, e a organização do povo Yawanawá,
projeto que tem fortalecido a economia deste povo. A Aveda financiou a infra-estrutura para
produção comprometendo-se a comprar toda a produção de urucum do povo Yawanawá.
O povo Shanenawa, da família lingüística Pano, com uma população
aproximadamente de 300 pessoas, está distribuído em quatro comunidades: Morada Nova,
Cardoso, Paredão e Nova Vida, situadas na terra indígena Katukina-Kaxinawá, município de
Feijó, AC. Terra indígena compartilhada com uma parcialidade do povo Huni Kuĩ.
A terra indígena possui a denominação Katukina-Kaxinawá porque, como de
156

costume, os “brancos” identificaram o povo Shanenawa como se fossem Katukina.


Atualmente este povo recusa a denominação Katukina e fazem valer sua autodenominação,
que em sua língua significa Povo do Pássaro Azul. Mesmo tendo sua terra indígena localizada
nas margens do rio Envira, os Shanenawa são originários da região do alto rio Gregório.
Dizem haver vestígios de sua ocupação em tempos remotos. Migraram para o atual território,
há algumas décadas, pressionados pela empresa extrativista. A terra indígena Katukina-
Kaxinawá, teve o seu processo de regularização, como terra indígena, iniciado logo após a
instalação da Base Avançada da Funai no Acre em 1975.
Na região as relações entre os Shanenawa e não-indígenas não ocorrem sempre
de forma harmoniosa. Conflitos acontecidos até recentemente, como o assassinato de
indígenas por policiais, faz com que os Shanenawa mantenham muitas reservas nas relações
com os não-indígenas. Os mesmos acontecimentos, também reforçam o clima pouco amistoso
por parte de regionais para com os indígenas.
Os Shanenawa, assim como a maioria da população indígena da Amazônia
ocidental possui uma cultura material bem diversificada. Os homens trabalham na fabricação
de arcos, flechas, facas, bordunas vendidos como artesanato. As mulheres fazem colares,
pulseiras, saias, chapéus, cestas e vasos de cerâmica. A produção é intermediada para fins de
comércio pela Associação Shanenawa da Aldeia Morada Nova, facilitando o processo de
distribuição e venda destes produtos.
Os Shanenawa dedicam-se, também, à economia de subsistência. Seus roçados
são feitos em lugares mais altos e bem drenados, onde cultivam macaxeira, milho, banana,
arroz, sendo que este ultimo, em maior quantidade, com objetivo comercial. A criação de
animais domésticos constitui numa importante fonte de alimentação, já que a caça na região
tem se tornado escassa. A pesca, também, faz parte de seus costumes, embora os peixes
também estejam escassos na região. Dentre outras atividade que praticam, ainda há a extração
do látex, quando há viabilidade comercial.
Embora seja comum o uso da língua materna na convivência diária, a
proximidade com a cidade torna comum o uso da língua portuguesa e a importação de
costumes urbanos. Mesmo assim, o povo Shanenawa caracteriza-se como povo consciente de
sua identidade, da importância do saber Shanenawa, um povo que luta para manter sua
tradição, sua unidade enquanto povo e a integridade de seu território.
Junto com outras etnias da região do rio Envira formam uma das organizações
indígenas mais antigas e atuantes na defesa dos interesses indígenas, a Organização dos Povos
Indígenas do Rio Envira (OPIRE). Organização de destaque, principal arma dos povos da
157

região contra as forças adversas. Convém destacar, em parte, como fruto da combatividade
desta organização, a eleição de uma de suas lideranças para uma vaga na Câmara de
Vereadores de Feijó, representando os interesses indígenas junto ao poder legislativo do
município onde se situa a terra indígena Katukina-Kaxinawá e outras seis terras indígenas.
O povo Jaminawa é originário do médio rio Ucayali, no Peru, região onde
habitavam vários grupos de família lingüística Pano. Com a chegada dos peruanos e suas
práticas violentas para exploração do caucho nos territórios indígenas, vários grupos foram
obrigados a formar um só povo com a denominação Jaminawa. Esta junção de grupos, alguns
com antigas rivalidades, dificultou a convivência, tendo como resultado uma característica
marcante deste povo, que é a divergência interna.
A pressão exercida pelos invasores resultou no deslocamento do povo
Jaminawa para a região do rio Juruá, alguns forçados a trabalhar na exploração do caucho e
da seringa e outros fugindo das ações armadas dos exploradores. Aliciados pelos patrões,
trabalharam, também, como caçadores para o comércio de pele de animais silvestre, como
mateiros florestais, nas aberturas de estradas de seringa e varadouros de escoamento de
produtos. Trabalharam, ainda, como remadores e varejadores nos barcos dos patrões. Sempre
mantiveram a agricultura de subsistência, servindo, também, como mão-de-obra nos grandes
roçados dos patrões.
Na década de 1970, com a instalação da Funai no Acre, este povo encontrava-
se debilitado por repetidas epidemias, em situação de desorganização sociocultural devido ao
processo de exploração econômica a que foram submetidos; ocasião em que a maioria dos
Jaminawa se instala na terra indígena Mamoadate, compartilhada com o povo Yine
(Manchineri), situada nos municípios de Assis Brasil e Sena Madureira.
As comunidades na terra indígena Mamoadate contam com uma população
aproximada de 660 pessoas. Na região do Juruá permaneceram grupos Jaminawa, onde está
situada a terra indígena Jaminawa do Igarapé Preto, município de Rodrigues Alves, com uma
população aproximada de 200 pessoas.
Tanto pelos atropelos da empresa seringalistas, quanto pelos conflitos internos,
prevaleceu uma característica marcante entre o povo Jaminawa, que é o seminomadismo.
Atualmente, ainda é comum as freqüentes mudanças, e a dispersão de famílias, quase sempre
motivadas pelas divergências internas. As mudanças também podem ser motivadas pela morte
de um membro da família nuclear, a fim de afastar as lembranças do falecido, ou, ainda, para
realizar passeios, para visitarem seus parentes, principalmente na época das praias, no verão
amazônico.
158

Desde 1990, o povo Jaminawa tornou-se um desafio para os órgãos


indigenistas, caracterizando um “problema” complexo até mesmo para o movimento indígena,
que consiste no deslocamento de famílias inteiras para as periferias das cidades,
principalmente, da capital, cuja alternativa para garantir a sobrevivência é esmolar pelas ruas.
Dentre as iniciativas, que visam garantir a permanência nas famílias nas terras
indígenas, está a criação da Organização das Comunidades Agro-Extrativistas Jaminawa, para
intermediar projetos de alternativas de subsistência para as comunidades. Nas lutas do povo
Jaminawa, destaca-se, como uma das principais lideranças indígenas do Acre, José Correia
Jaminawa, liderança também com forte presença nas lutas conjuntas do movimento indígena.
Apesar do histórico de violências contra a população nativa, houve povos que
resistiram a todo e qualquer tipo de contato, mantendo-se arredios, em isolamento voluntário,
ou “brabos”, na linguagem da população regional. Após sucessivos conflitos, os órgãos
indigenistas e o movimento indígena da região do Acre e sul do Amazonas tomaram um
posicionamento comum, no sentido de preservar o direito desses povos se manterem isolados
garantindo a proteção, pelo poder público, das terras em que habitam conforme seus
costumes.
Estima-se, atualmente que sejam algo em torno de 200 pessoas os indígenas
isolados no Acre. Os isolados estão situados às margens do Rio Envira, sendo encontrados,
também, vestígios de sua moradia nos rios Tarauacá, Jordão e Humaitá. A maior concentração
está na fronteira do Brasil com o Peru, transitando entre os dois países. Pela localização,
acredita-se que se comuniquem numa língua originária da família lingüística Pano. São três as
terras indígenas demarcadas como terras de direito de tais povos: no município de Feijó, AC,
a terra indígena Kampa e Isolados do rio Envira e a terra indígena Xinane; no município de
Jordão, AC, e a terra indígena Alto Tarauacá.
Dos conflitos que ocorreram entre povos isolados com os povos indígenas e
com os não-indígenas, os isolados levaram os instrumentos de trabalho e as mercadorias que
encontraram. Destes acontecidos, ficou o temor e a crença entre indígenas e seringueiros, nas
colocações mais distantes, de que os “brabos” promovem verdadeiros saques, levam terçados,
espingardas, munição, lamparinas, roupas, levando, inclusive, o que estiver cultivado nos
roçados.
159

2 Os mecanismos de resistência do movimento indígena regional

Concomitante ao trabalho do movimento indígena, na concepção e proposição


de medidas que favoreçam a garantia da subsistência aos povos indígenas, no momento atual,
há um esforço enorme a ser desempenhado para fazer frente às ações persistentes de anulação
ou negação das identidades indígenas que ainda são impostas a estes povos. São as estratégias
de “resistência” em uma conjuntura de relações desiguais e complexas. Desse modo, tantas
quantas forem as dificuldades, demandarão respostas, estratégias adequadas para cada
situação. Estas respostas indígenas tendem ao auto-empoderamento17 desta população,
representada no movimento indígena. Aspecto que vem sendo exercitado no processo de
construção da educação escolar: as iniciativas relacionadas à escola em comunidades
indígenas já não ocorrem sem a participação do movimento indígena.
A idéia de resistência sociocultural, associada às comunidades indígenas, é
algo muito mais amplo que a ação das organizações indígenas. São diversas as formas de
resistência, que estão relacionadas ao contexto histórico, às condições conjunturais ou, ainda,
relacionadas às circunstâncias nas quais as comunidades elaboraram e elaboram estratégias de
sobrevivência, tal como mencionamos no segundo capítulo. Há, também, outros fatores que
foram e são determinantes na resistência. Por exemplo, a oposição estabelecida pelo invasor e
seus métodos violentos de ocupação, negando a existência do outro ou pondo-o na condição
de inferior, de dominado, delineando e mantendo as fronteiras, quem é um e quem é outro.
Nestas circunstâncias, a condição étnica e diferenciada persiste no enfrentamento e nas formas
de exclusão do outro, por ser diferente; sujeito ao extermínio por meio de correrias, ou
admitido como mão-de-obra explorável.
A resistência caracteriza-se, também, pela estratégia de sobrevivência, seja
fugindo em busca de lugares ermos, fora do alcance dos invasores, seja aproximando-se e
admitindo a exploração, adotando elementos da economia dominante, como o extrativismo,
entre outros recursos, para sobrevivência de seu grupo. Ou, ainda, diante da desvantagem
bélica, já tendo sido expropriado de seus bens, de seus territórios, submete-se ao trabalho
escravo. Neste caso, sem opção de fuga, a sobrevivência é negociada, burlando o sistema com
estratégias que lhes reserva alguma autonomia, que mantém diferenças e unidade enquanto
grupos. Ilustrando as estratégias de resistência, as práticas defensivas, Picolli (1993, p. 48)

17
O termo é usado aqui no sentido de os povos conquistarem a capacidade de construir, por si próprios as
respostas aos desafios, e conceber, de forma autônoma, projetos de interesse de suas comunidades por meio de
estratégias e recursos organizacionais próprios.
160

comenta que o povo indígena:


Absorve alguma tecnologia da sociedade colonizadora, que vem lhe facilitar a
reorganização e a produção da subsistência e com as quais compensa a perda de
seus territórios tradicionais e dos recursos neles existentes. Procura evitar e
manter-se fora das investidas integracionistas e assimilacionistas promovidas por
“SD” [sociedade dominante]. Essa forma de resistência possibilitou a sobrevivência
física e cultural de diversas sociedades ao longo do processo colonial, apesar da
conquista, invasão, ocupação e expropriação de grande parte dos seus territórios
tradicionais.
Num outro âmbito, num contexto de conflitos sociais e culturais, os povos
indígenas resistem com base em aspectos relativos à essência; à aquilo que, inevitavelmente,
os distingue: suas feições e todos os demais traços que os caracteriza como população nativa.
Nesse aspecto, a carga de preconceito dos não-índios, negando a identidade indígena do outro,
com o rótulo: “caboclo”, também contribui para a manutenção de tais grupos como diferentes.
No mesmo sentido, apesar da pressão para que abandonem sua identidade, preservam, em sua
intimidade, elementos que os mantém na condição de diferentes. Nestes casos, a própria
autodistinção, ou a aceitação da designação atribuída pelo outro, ou ainda, pela diferenciação
do outro como nawá ou cariú, são fatores que contribuem para manutenção das fronteiras
étnicas entre os grupos.
A resistência, também, é mantida em aspectos não-essenciais, relacionais; o
indígena e o seringueiro pontuam suas diferenças, também, pelos hábitos alimentares,
costumes, organização social, entre outras formas de marcações simbólicas que determinam a
pertença ou não a determinado segmento. Mas, substancialmente, é no âmbito dos discursos
que a identidade vai sendo marcada, tanto na afirmação de suas posições quanto na
representação do outro, o cariú ou o caboclo.
Por fim, há a resistência inserida inserida no contexto dos movimentos sociais,
manifestada no que caracterizamos como “movimento indígena”. As novas mobilizações, tal
como as estratégias adotadas durante o período histórico, a partir da chegada dos “brancos”,
também estão associadas a uma diversidade de estratégias e interesses, e manifesta-se, ao
menos aos nossos olhos, de forma complexa e contraditória. Isto porque, a organização
política nem sempre os coloca em oposição, em conflito político, ideológico e nem nos
permite sinalizar qual é a posição da maioria. Por vezes, a composição é a estratégia para um
ganho imediato, individual ou de família. Entretanto, as lideranças mais experimentadas na
política do “branco”, e por exigência da própria complexificação das ações das organizações
indígenas, agem, sempre, na perspectiva da coletividade, administram, com propriedade, a
preocupação com o controle social, que abarca a todos os segmentos indígenas. Daí, ser
temeroso ou, até mesmo, leviano afirmar que o movimento indígena tem este ou aquele perfil.
161

Alguns aspectos são notáveis, os quais poderíamos considerar como posições radicalizadas,
talvez aquilo que já seja consenso, como inegociável, como o caso do direito à terra. De outra
forma, poderíamos dizer que são diferentes os caminhos, os modos de fazer política para se
obter o atendimento tanto de pleitos particulares como de direitos coletivos.
No caso da educação escolar, esta se tornou um instrumento indispensável nos
modos atuais de resistência. Ler, escrever e contar são ferramentas indispensáveis, não para
todos os indígenas, mas cada comunidade precisa de pessoas que conheçam estes
instrumentos, sobretudo, para relações comerciais. Indispensável, também, para a função de
liderança nas comunidades com contatos mais freqüentes com os não-índios, para que possam
desempenhar seu papel, com mais autonomia, e assegurar o respeito e autoridade diante da
nova geração de letrados. A partir destas demandas a questão se diversifica, à escola é
delegada diferentes atribuições, sobretudo quando o indígena fala a partir de seu povo ou de
sua comunidade, ou, ainda, do grau de relações com a sociedade regional.
Quanto à atuação do movimento, ela está inserida na realidade dinâmica a que
estão inseridas as comunidades indígenas. Os novos contextos demandam novas respostas,
como afirma Picolli (1993, p. 45): Na prática, as relações de resistência modificam-se,
reestruturam-se e transformam-se de acordo com as condições e natureza do enfrentamento
entre sociedades, classes ou etnias em relação.
A complexidade descrita acima, compreende as situações “externas” a serem
enfrentadas pelo movimento indígena. Há, contudo, “entre” a população indígena regional um
universo plural, com diferenças substanciais entre povos, entre comunidades de um mesmo
povo e entre famílias numa comunidade. Tanto os anseios quanto os caminhos, para se
alcançar as condições de bem viver, tendem a destoar entre os grupos, compreendendo outra
gama de situações e interesses, desafiando a manutenção o poder de mobilização dos
representantes desta diversidade em torno de lutas coletivas.
Visivelmente, a unidade de luta, apesar da diversidade interna, é mantida numa
linha tênue, assegurada, substancialmente, nas bandeiras políticas que dizem respeito ao
interesse da maioria dos indígenas. Não se pode negar a habilidade política das lideranças
mais experimentadas; o exercício da tolerância, a orientação pelo princípio da eqüidade e
igualdade na relação entre etnias e a priorização pelo enfrentamento, no “atacado”, de
problemas comuns a todos, garantindo às organizações indígenas o poder de mobilização das
forças vivas entre os povos indígenas, dando corpo ao “movimento indígena”.
Historiando melhor a consolidação deste movimento, sobretudo na Amazônia,
ele surge a partir da década de 1980 quando as reivindicações de direitos das populações
162

tradicionais, indígenas, são somadas à busca de tecnologias alternativas e de maior


participação dos movimentos na vida política, agregando, ainda, questões ambientais às lutas
socioculturais. O papel do movimento, representado pelas organizações indígenas, constitui-
se como interlocutor legítimo dos interesses das bases indígenas, reivindicando o controle
social das ações destinadas a seus povos, a transparência na utilização de recursos públicos e
mobilizando as comunidades, no intuito de influenciar e indicar caminhos para as políticas
governamentais, e, ainda, pressionar para que as decisões sejam tomadas, coerentes com as
causas que consideram justas.
O surgimento dos organismos políticos entre os povos indígenas do Acre e
região acontecerá neste contexto amplo de resistência, que surgiu com a luta pela terra e pela
busca de alternativas de subsistência, por ocasião da terceira grande fase de “ocupação” da
Amazônia, durante o governo militar. Um relato ilustrativo, nas palavras de um indígena, foi
o processo de organização das comunidades Huni Kuĩ do rio Jordão:
No ano de 1978, meu povo começou a lutar contra os patrões seringalistas pelo
direito a terra. No mesmo ano, os patrões começaram a sair devagarinho dos
lugares. Em 1979, o meu povo fez reuniões gerais e escolheu cada liderança das
seis comunidades e um cacique geral. Em 1980, os líderes começaram a
desenvolver seus projetos, trabalhando em suas cooperativas no rio Jordão. [...] A
partir de 1985, começaram as demarcações de nossas terras indígenas. E daí em
relação ao tempo anterior, a mudança foi boa demais. Nós empenhamos muitos
esforços para o desenvolvimento dos povos indígenas do Acre. Nosso povo lutou
muito pela conquista da nossa terra. Depois que ela ficou demarcada, melhorou a
organização, aumentando a população, produção de artesanato das mulheres.
Foram criadas várias equipes como a dos professores, as lideranças, os agentes de
saúde e os agentes agroflorestais (José Paulo Alfredo Maná Kaxinawá, In:
KAXINAWÁ, 2002, p. 127).
Neste período de retomada da terra e da conquista de direitos, houve, tal como
em outras regiões do Brasil, lideranças indígenas que, apoiadas pelas instituições indigenistas,
desempenharam um papel decisivo para estabelecer as bases da luta dos povos indígenas.
Bases, estas, representadas na luta pela terra. Dentre estas lideranças, destacaram-se no Acre e
região: Sueiro Sales Bane Kaxinawá, Pancho Lopes Kaxinawá, Mario Domingos Kaxinawá,
José Miranda Apurinã, Antonio Luiz Yawanawá, entre outros (KAXINAWÁ, 2002, p. 121).
As cooperativas assentadas a partir do extrativismo da borracha, não
subsistiram, tal como explicitamos no segundo capítulo, porém, permitiu às comunidades
avançarem nas alternativas coletivas como forma de subsistência e de relação com a
sociedade regional e poder público. A experiência das cooperativas levou as comunidades a
consolidarem como instrumento formal de mediação de suas comunidades, as “associações”,
cujo papel avançou para um leque maior, que extrapola o âmbito da subsistência, exercendo
importante papel político externo e, também, interno, na tomada de decisões coletivas e na
163

consecução de suas atividades coletivas.


Portanto, a base do movimento indígena na região tem origem nas lideranças
comunitárias, fortalecidas com as associações indígenas, firmadas como instrumento de
relações e forma de inserção na economia regional. As organizações indígenas, como
instrumento de relações, no princípio, dependiam, substancialmente, do apoio das entidades
indigenistas; tratava-se de um instrumento novo, num período de transição, até que
adquirissem domínio de instrumentos que lhes dessem autonomia na gestão destas
organizações. A situação atual confirma tal previsão, uma vez que há dezenas de organizações
e reduzido número de assessores indigenistas.
Retomando o processo histórico do surgimento das organizações, como
instrumento político do movimento indígena, no início da década de 1980, as lideranças
indígenas, consolidadas a partir da luta pela terra e das cooperativas, passam a reunir-se em
Rio Branco, AC, onde tratavam de problemas comuns, sobretudo, reivindicando da Funai a
demarcação de seus territórios e a retirada de invasores das áreas, já reconhecidas como
indígenas. Estas reuniões foram o embrião das organizações, como relatam os indígenas:
A partir de 1983, as lideranças indígenas passaram a realizar assembléias anuais
em Rio Branco. Nestes encontros, um dos temas discutidos era a criação de uma
entidade de representação política dos índios do Acre e sul do Amazonas. Em 1986,
representantes dos povos Kaxinawá, Yawanawá, Katukina, Jaminawa, Kulina,
Kampa, Nukini, Poyanáwa, Manchineri, Arara, Apurinã e Kaxarari, participantes
da 3ª Assembléia Indígena do Acre/sul do Amazonas decidiram criar a União das
Nações Indígenas do Acre e sul do Amazonas - UNI (KAXINAWÁ, 2002, p. 147).
A partir de então, as lideranças indígenas passam a ter uma presença mais
freqüente em Rio Branco, mantendo a mobilização pela demarcação de terras indígenas e,
também, para cobrar ações voltadas para programas de subsistência das comunidades bem
como o atendimento com educação escolar e saúde. Uma diferença substancial na forma
representativa do movimento irá ocorrer por ocasião da promulgação da atual Constituição
Federal, em 1988, conforme a UNI:
A mudança na legislação em 1988 possibilitou as lideranças indígenas de 111
aldeias criarem a União das Nações Indígenas do Acre e Sul do Amazonas,
permitindo aos próprios indígenas estarem à frente da instituição que os representa,
pois antes a UNI existia como Núcleo de Cultura Indígena e era dirigida por
brancos porque os indígenas eram equivocadamente considerados incapazes. A UNI
[...] centra esforços para cumprir o papel para o qual foi fundada: atuar junto aos
poderes, instituições e demais organismos na busca de apoio que garanta aos
indígenas a condição de bem viver, como é de direito de todo cidadão (JORNAL
DO ÍNDIO, abr. 2002).
A UNI, ao se estabelecer como uma organização Indígena, legalmente
constituída, com personalidade jurídica, abriu caminho para consolidar as associações
organizativas. A partir de então, as assembléias indígenas, seja por rios, seja por povos ou
164

terra indígena, foram estimuladas a buscar regularização jurídica, assim:


Em 1988 surge a Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira (OPIRE),
seguida mais tarde pela Organização dos Povos Indígenas do Rio Taraucá e Jordão
(OPITARJ) e da organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ). Algumas
dessas organizações, através de projetos, passaram a conseguir dinheiro para
realização de atividades econômicas nas comunidades que representavam
(KAXINAWÁ, 2002, p. 147).
Este artifício de mobilização e representação política foi sendo particularizado,
sem esvaziar as instâncias políticas maiores. Desse modo, surgiram, também, as associações
indígenas, representando comunidades, refletindo as feições e interesses particulares,
negociando suas demandas diretamente com órgãos governamentais e não-governamentais.
Associações que surgirão, também, de acordo com as áreas específica de atuação que os
indígenas vão conquistando, como é o caso dos professores, dos agentes de saúde e agentes
agroflorestais.
Hoje, são mais de 20 organizações/associações indígenas, em funcionamento,
na região. Conforme a UNI, o fortalecimento do movimento em organizações, associações e
demais organismos indígenas:
São considerados como fator mais positivo, lembrando que graças a eles o indígena
está presente nas tomadas de decisões em projetos que abrangem todas as áreas de
nosso interesse, está à frente de organismos internacionais que defendem a causa e
o principal, o êxito em avanços na saúde para que com saúde possamos ter força na
defesa de nossos direitos em todos os níveis (JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
Sem dúvida, num universo tão diversificado de culturas e interesses, a
consolidação da organização dos indígenas da região constitui um dos principais avanços,
pois reflete no fortalecimento de seus organismos e torna-se possível obter o sucesso na busca
de uma realidade mais justa para os povos indígenas (JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
Dentre as diferentes áreas de atuação das organizações articuladas pela UNI,
formando o movimento indígena, destacamos algumas ações que dão a dimensão da atuação
do movimento. Está em primeiro plano o envolvimento dos povos na luta pela demarcação
das terras indígenas, no Acre e sul do Amazonas. O posicionamento do movimento indígena é
exemplificado na manifestação da UNI, num dos casos de luta pelo reconhecimento como
terra indígena de um território tradicionalmente ocupado por comunidades Kaxinawá:
A luta por um território demarcado, necessário e suficiente à reprodução física e
cultural das comunidades Kaxinawá das aldeias Grota, Nova Esperança e Formiga,
não é apenas dos integrantes daquelas aldeias, mas de todo Movimento Indígena
Regional, da OPIRE – Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira e da UNI –
União dos Povos Indígenas do Acre e do Sul do Amazonas. A luta pela reconquista
de terras expropriadas por mais de cem anos de ocupação extrativista do rio Envira
é de todo o movimento indígena, que não se acovarda ou se amedronta perante
afrontas de quem quer que seja (Manoel Gomes Kaxinawá, Depoimento. A Gazeta,
Rio Branco, AC, 31 jan. 2002).
Conforme a UNI, são 12 terras indígenas com 15 comunidades indígenas de 6
165

diferentes etnias, em terras a regularizar no Acre e sul do Amazonas. Junto a esta prioridade
da terra está o avanço e conseqüente fortalecimento do movimento, traduzido na
conscientização dos povos sobre a importância da organização dos povos indígenas em
associações, buscando o fortalecimento capaz de garantir sucesso nas reivindicações
(JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
Avançando para outros setores, as organizações indígenas assumiram, como
principal atribuição: o controle social das políticas de atendimento às comunidades indígenas.
Neste aspecto, são destacadas ações em várias frentes. Inicialmente, foi preciso lidar com a
dispersão geográfica, neste caso, para exercer tal controle social, foi implantada uma cadeia
de rádio, interligando aldeias, sedes de associações, pólos base de saúde e UNI. Funcionando
com placas solares, o sistema de rádio é de grande utilidade, também, em casos de
emergência, envolvendo doenças e denúncias de invasão de terras.
Numa outra área, o movimento, por meio das organizações e associações, tem
implantado vários programas visando a auto-sustentabilidade como alternativa de subsistência
ao extrativismo; projetos na área da agricultura, piscicultura e artesanato, tanto na produção
quanto na comercialização. Outra prioridade, dentre as ações do movimento, representada
pelas organizações, está a preocupação com o meio ambiente. Nesta área estão em curso
ações que visam a capacitação de indígenas na legislação ambiental para que possam atuar
contra ações criminosas. A atuação na área da saúde é outra área que mobiliza o movimento.
Oficialmente, a UNI é co-responsável pela saúde nas comunidades indígenas, por meio de
convênio firmado com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), onde os indígenas participam
das decisões de como deve ser a prestação de serviços. Conforme as lideranças do
movimento:
A UNI é a primeira ONG indígena a trabalhar com a saúde do índio, direcionando
as atividades de modo a respeitar a cultura e firme propósito de não lidar com
doenças e sim com prevenção. O resultado tem sido uma redução considerável no
número de óbitos por diarréias, desidratação, infecções respiratórias e outros males
que podem ser prevenidos mediante a adoção de cuidados (JORNAL DO ÍNDIO,
abr. 2002).
No fazer política, o movimento não dispensa a ocupação de postos-chave em
instâncias de decisão e condução de ações que afetem a população indígena. A atuação do
movimento é ilustrada em situações como a reproduzida em jornal local:
Foi a primeira vez, em cem anos de história do Acre, que os índios subiram as
escadarias do Palácio Rio Branco para debater com o governador as políticas
públicas que lhes interessam. "Muitos governadores até diziam que no Acre não
haviam índios", reconheceu Francisco Avelino Apurinã, o "Chico Preto", presidente
da UNI (União das Nações Indígenas). As lideranças indígenas entregaram ao
governador um documento com uma série de reivindicações, entre as quais a
criação de uma secretaria para tratar de assuntos indígenas além da implantação
166

de um conselho estadual de políticas indígena. "Temos recursos humanos


suficientes para assumir essas tarefas", disse Chico Preto (A Tribuna. Rio Branco,
AC, 15 dez. 2002).
O resultado da mobilização, simbolizado no episódio relatado acima, foi a
instalação da Secretaria de Estado para tratar das questões de interesse indígena, tendo um
indígena, Francisco Pianko Ashaninka, como secretário. Quanto ao instrumento para o
controle das políticas públicas, está sendo criado o Conselho Estadual de Apoio à Política
Indígena, que visa ser o órgão deliberativo do Governo do Estado para questões de interesse
dos povos indígenas. Será composto por representantes dos povos indígenas e instituições
governamentais e não governamentais. Assim, tanto a Secretaria quanto o Conselho, não
constituem concessão, mas uma conquista, como reconhece o próprio governo do Estado:
Se estamos conversando com a sociedade, não poderíamos deixar de ouvir as
lideranças indígenas, que hoje representam um dos setores mais organizados do
movimento popular”, disse Jorge Viana. “Nós reconhecemos que as lideranças
indígenas estão mais maduras e mais seguras do que querem [...] lembrando que se,
até recentemente, os índios eram perseguidas pelas matanças das chamadas
“correrias”, hoje eles fazem parte da sociedade e têm participação nos projetos que
vão tratar do destino das pessoas (A Tribuna, Rio Branco, AC, 15 dez. 2002).
A dimensão da presença do movimento indígena regional, à medida que as
organizações políticas aprimoram sua atuação, tem se tornado significativa também na
articulação com o movimento em outras regiões:
Um dos exemplos dessas conquistas é a participação de um dos membros da UNI no
movimento indígena amazonense, como conselheiro da Coordenação dos
Organismos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). A organização com sede em
Manaus é composta por representantes de nove Estados Amazônicos, com um
escritório de representação em Brasília. A participação da UNI/Acre na Coiab
assegurou mais eficácia na regularização das 162 terras indígenas na Amazônia
Legal, assim como o melhor planejamento, deliberação e avaliação das ações da
Coiab na defesa dos direitos indígenas em saúde, educação e desenvolvimento
sustentável (JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
Ainda no aspecto da expansão do movimento indígena da região e participação
de lideranças regionais em organizações mais amplas, o atual coordenador Geral da
Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (COICA), é um
indígena do movimento indígena do Acre, do povo Yine, Sebastiao Haji Manchineri (Sabá
Manchineri). Na avaliação da UNI:
A indicação do acreano Sabá Manchineri para a Coordenação das Organizações
Indígenas da Bacia Amazônica (Coica) foi possível graças ao fortalecimento do
movimento indígena amazônico, bem como da UNI no Acre, cada vez mais
detentores de influência junto à elaboração e implementação de políticas públicas
nas esferas estaduais e federais (JORNAL DO ÍNDIO, em abril de 2002).
Com a participação indígena nos espaços públicos, as lideranças passam a ter
domínio e participação dos mecanismos políticos de Estado, admitindo, como espaço de luta
em favor do seu povo e dos demais indígenas, o pleito a cargos públicos. Desde o surgimento
167

do movimento indígena, muitas lideranças têm participado da política partidária, espaço


consolidado nas eleições municipais de 1996, nas quais se teve o maior número de índios
candidatos e eleitores no Estado do Acre. Houve 14 candidatos a vereador em diferentes
municípios e um candidato a prefeito no município de Jordão (KAXINAWÁ, 2003, p. 151),
contando atualmente com sete vereadores e um vice-prefeito, na atual legislatura, em
municípios do Acre, e um suplente de senador da república.
Essa participação soma-se ao modo peculiar de fazer política no movimento,
tendo como aspecto mais visível a conciliação de instituições e formas próprias de
organização social com os métodos e instituições da cultura dominante. Desse modo, as
lideranças são exercidas por pessoas indicadas, seja por eleição para o exercício da
coordenação de Associações ou organizações, seja pela liderança comunitária, ou, ainda, pela
autoridade tradicional, que tem ascendência com base nos valores culturais.
Os métodos políticos das lideranças, muitas vezes incômodos para os não-
indígenas - seja na busca de melhorias para suas comunidades e instituições, em âmbito local,
seja pelo protagonismo do movimento indígena na condução das questões que lhes são de
interesse no âmbito regional - tem a ver com a prática de relações como forma de obter a
cooperação de pessoas e instituições não-indígenas. Incomoda porque para muitos não-
indígenas aparenta “integração” e conseqüente descaracterização do indígena. Na prática,
funciona como estratégia de sobrevivência, ou para dar corpo à luta, sobretudo por tratar-se de
grupos minoritários. Enfim, as lideranças do movimento declaram e atuam de forma a não
dispensar o recurso de parcerias com setores da sociedade regional, desde que contribua com
seus projetos.
Portanto, é característica dos povos indígenas da região, de suas instituições
enquanto forças representativas, entre os indígenas, buscar apoio em pessoas, em instituições
públicas e civis, sobretudo, quando se trata de fazer garantir seus direitos. Assim, as relações
com Assembléia Legislativa, deputados, vereadores, prefeituras, partidos políticos, igrejas e
universidade, representam maiores possibilidades de verem concretizado seus pleitos.
Em tal processo de luta, as lideranças do movimento indígena não perdem de
vista a construção de condições que lhes propicie mais autonomia. Neste âmbito, é
manifestado um dos maiores anseios das comunidades indígenas, o domínio de instrumentos
de controle social da cultura dominante, instrumentos a que foram privados na carga histórica
de dominação. Anseio que inicia pela reivindicação básica: “escola” e aprofunda-se na busca
por formação em áreas técnicas, tais como: administração, agronomia, comunicação,
contabilidade, direito, economia, enfermagem, informática, mecânica, pedagogia, piscicultura
168

e política.
Com as conquistas até então obtidas e sabedores de seus direitos, o acesso à
educação escolar passa a constituir possibilidade para as comunidades indígenas, até então
visto como sonho distante. Desejo, sobretudo, das comunidades localizadas próximo aos
centros urbanos. Neste caso, a relevância da escola é inquestionável, considerando a relação
desigual com os “brancos”, confronto, no qual, freqüentemente são ridicularizados e
explorados, tanto no pagamento do trabalho e da produção indígena, quanto na compra de
produtos pelos indígenas. Um depoimento indígena ilustra bem a situação:
O patrão enganava muito nosso chefe, porque nesse tempo ninguém tinha o
conhecimento dos brancos. O patrão não queria que nenhum filho dos índios
aprendesse a ler e escrever. Se o índio aprendesse a ler, ele não ia mais conseguir
enganar nas contas. A intenção do patrão era ficar roubando os índios para
continuar com eles sempre no cativeiro. Ele roubava no peso da borracha, na diária
e no preço das mercadorias (Antonio Olavo Eukutsy Apurinã, In: KAXINAWÁ,
2002, p. 106).
A escola vai acompanhar todo o processo de luta dos povos indígenas. O
surgimento das organizações indígenas e o próprio movimento como um todo estará
associado à escola e ao fato de indígenas assumirem a função de professor. Joaquim Paulo
Maná Kaxinawá, um dos professores mais antigos e referência nacional pela sua atuação e
pelas suas publicações, comenta que:
Foi nos cursos de formação de professores que tivemos a visão de começar a fundar
o movimento indígena, as associações e as próprias organizações locais, de acordo
com a realidade de cada povo. Essas novas formas de organização vêm procurando
abrir novas alternativas econômicas para o desenvolvimento de comunidades que
sempre foram dominadas pelos patrões dos seringais. (KAXINAWÁ, 2002, p. 133).
Mesmo com a consolidação da UNI - enquanto principal instância política,
mediando as demandas políticas em questões relativas a terra, a projetos econômicos de
subsistência, trabalho com saúde, educação escolar e revitalização cultural - com o avanço das
conquistas as respostas requeridas do movimento passam a ser mais especializadas, as novas
exigências levam o movimento a criar organizações setoriais. É o caso da educação escolar,
neste âmbito, sobretudo com a ampliação do número de professores indígenas, estes, na
medida em que vão ampliando a compreensão do papel da educação escolar nas comunidades
indígenas, e do seu papel como executores de políticas de educação, associam-se com vistas a
responder melhor às responsabilidades que lhes são impostas. Desse modo, um primeiro
grupo de 35 professores, formados pelo magistério indígena na Escola da Floresta da
Comissão Pró-Indio, criam a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), em
2000, no intuito de promover a educação escolar indígena coerente com os interesses e
necessidade das comunidades e, ao mesmo tempo, exercer o papel político, intervindo nos
169

espaços públicos, visando representar os interesses indígenas na definição de políticas


públicas em educação. Conforme o Professor Isaac Pianko Ashaninka, presidente da OPIAC:
A Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC) [...] tem como objetivo
defender, desenvolver e divulgar a educação escolar indígena, específica e
diferenciada junto as entidades governamentais e não governamentais, [...] nós
professores indígenas através de nossa representação, queremos junto às
secretarias [...] discutir os rumos da Educação Escolar Indígena e como
desenvolve-las; de acordo com o conhecimento de cada etnia (Professor Isaac
Pianko Ashaninka, In: YUIMAK , mar. 2002).
A iniciativa deste grupo de professores motivou os demais professores, a
também formalizar juridicamente as articulações, mobilizações que já mantinham como forma
de luta. É o caso dos professores da região do Rio Envira, após a realização do Terceiro
Seminário de Educação Indígena, realizado em 2003, deliberaram por formalizar a
Associação dos professores da região do rio Envira, congregando 31 professores da região.
Também entre os professores está presente a articulação com instâncias
maiores dentro do movimento. É o caso da participação de professores indígenas do Acre nos
encontros da Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre (COPIAR),
hoje Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia (COPIAM), interlocução que tem
contribuído significativamente no aprofundamento das reflexões e práticas na construção de
escolas e políticas de educação, mais favoráveis, às comunidades indígenas no Acre.
Enfim, a educação escolar nas comunidades indígenas, dada a sua abrangência,
complexidade e o envolvimento de grande número de pessoas, para que sejam atendidos os
diferentes interesses, vêm constituindo um ponto forte do movimento indígena na região, cuja
pressão maior é pela formação de professores, e a estes é delegada a responsabilidade no
acompanhamento direto da qualidade das ações em educação escolar nas comunidades.
Ainda em torno da educação escolar, não só os professores militam de forma
organizada pelo acesso a formação, também os estudantes indígenas estão mobilizados em
busca da continuidade de seus estudos para além da escola elementar proporcionada nas
aldeias. Diante das dificuldades enfrentadas individualmente, os estudantes aliam-se às
organizações políticas do movimento, com as quais, além do respaldo em seus pleitos,
adquirem maior consciência de suas identidades étnico-cultural e da luta política do
movimento indígena. Em termos de resultado, é agregado às justificativas dos estudantes, a
relevância de seus estudos com o retorno para suas comunidades e fortalecimento do
movimento.
Desse modo, os estudantes acrescentam ao anseio pessoal de melhores
condições de vida a possibilidade de contribuir com respostas às demandas de seus povos,
170

acenando com a perspectiva de, uma vez conquistada a formação escolar em todos os níveis,
estarem aptos a contribuir com seus líderes no enfrentamento e resolução dos diferentes
problemas que enfrentam nossos povos nos diferentes níveis de sua vida: terra, alternativas
econômicas, cultura, recursos naturais, organização social, educação, saúde etc
(MANIFESTO da V Assembléia..., 2002).
O movimento de estudantes no Acre, a exemplo do Amazonas, por um lado,
converge para opinião dos órgãos representativos do movimento indígena como um todo,
sobretudo quanto ao papel da educação escolar, que está na capacitação de gestores indígenas,
que contribuirão para autonomia das comunidades indígenas e para a viabilização de seus
“projetos de futuro”. Por outro lado, considerando uma das primeiras dificuldades enfrentada
pelos estudantes indígenas - o preconceito - o movimento dos estudantes busca meios de
contrapor e atacar o problema da discriminação e do preconceito que sofrem os estudantes
indígenas nas escolas da cidade (MANIFESTO da V Assembléia..., 2002).
Os estudantes têm provocado o debate do movimento indígena com instituições
indigenistas, órgãos governamentais e, sobretudo, universidades, sobre a qualidade da
educação escolar proporcionada nas comunidades indígenas; a formação de professores e
formação de profissionais em outras áreas. Neste debate, é posto em pauta, as medidas
compensatórias e a possibilidade de vir a ser instituído um sistema de cotas nas universidades
para estudantes indígenas na Amazônia ou, ainda, outras alternativas que garantam o acesso
da população indígena a diferentes formações universitárias.
Também o movimento de mulheres indígenas vem tendo ação destacada, tanto
no movimento indígena quanto no conjunto do movimento de mulheres da Amazônia. Cientes
da relevância do conjunto do movimento, as mulheres indígenas não promoveram um
movimento contraposto ou isolado do conjunto das lutas do movimento indígena, dirigidas,
até pouco tempo, majoritariamente por homens. Ou melhor, consideram que a luta das
mulheres será mais forte se estiverem juntas com os homens na mobilização, sem
desconsiderar sua especificidade. Desse modo, partindo de organizações de mulheres
indígenas nas comunidades, estão conquistando espaço político no movimento indígena como
um todo. Conforme a UNI:
Outro ponto de destaque nas conquistas obtidas em 11 anos de criação da UNI foi a
abertura de espaço para que as mulheres indígenas pudessem participar das
decisões políticas, com representantes de diversas organizações de mulheres
indígenas atuando diretamente na UNI, defendendo o ponto de vista feminino em
todas as áreas do movimento indígena (JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
O movimento de mulheres indígenas tem atuação destacada no apoio à
produção de utensílios e ornamentos - a arte indígena - atividades que envolvem habilidades
171

das mulheres na maioria dos povos. Neste aspecto, caracterizado como cultura material,
reflete-se, também, o aprimoramento da atuação do movimento, com pesquisas conduzidas
pelo movimento de mulheres, visando a produção, a valorização e aproveitamento como fonte
de renda. As pesquisas conduzidas por este segmento do movimento visam, também, a
população indígena vivendo nas cidades, buscando descrever as condições sócio-econômicas
das famílias indígenas que optam por viver nas zonas urbanas não-indígenas. Conforme a
UNI:
A preocupação sobre a realidade indígena é outra prioridade da UNI, que
recentemente coordenou um censo para saber em que situações vivem os indígenas
que moram na Capital. A pesquisa realizada pelo Movimento de Mulheres do Acre e
sul do Amazonas durante dois meses, identificou 440 famílias e aproximadamente
2.250 indígenas morando em Rio Branco e cerca de 8 Jaminawa esmolando nas
ruas do centro. A mesma pesquisa será feita também nas cidades de todos os
municípios e nas comunidades está sendo feito um estudo minucioso sobre nutrição
(JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
A defesa dos povos isolados é uma preocupação do movimento, à medida que
aprofunda e especializa suas ações políticas, no intuito de manter o controle social sobre as
ações que digam respeito aos povos indígenas. As ações, em defesa aos povos isolados, vêm
associadas à articulação entre os movimentos indígenas das regiões de fronteira: Bolívia,
Brasil e Peru, constituindo a região MAP, correspondendo ao Departamento de Madre de
Dios, no Peru; estado do Acre, no Brasil; e Departamento de Pando, na Bolívia.
Esta articulação entre organizações indígenas dos três países, mais
precisamente Federación Nativa de Madre de Dios (Peru), União das Nações Indígenas do
Acre (Brasil) e Organizações Indígenas de Pando (Bolívia) insere-se num contexto mais
amplo de articulações de instituições governamentais e não-governamentais, universidades e
centros especializados das regiões. Articulação que vem abordando temáticas distribuídas em
questões de: equidade social, preservação ambiental, desenvolvimento econômico e política e
legislação. Temáticas que afetam a população indígena pelo fato de muitas terras indígenas
dos três países estarem localizadas em área de fronteira, sobretudo de povos isolados. Desse
modo, as relações são necessárias para que sejam garantidas políticas públicas comuns nos
três países. Políticas que resguardem os direitos dos povos indígenas.
No âmbito da promoção das culturas indígenas na região, o governo do estado
do Acre, no intuito de realizar eventos que visualizem a cultura regional, principalmente
relacionado à população da floresta, tem dado suporte à realização de Encontros de culturas
indígenas. Nestes encontros, é viabilizado o deslocamento de comissões dos 18 povos da
região para que realizem uma festa cultural em Rio Branco, AC, onde, no período de uma
semana, apresentam suas tradições artísticas, danças, cantos e cultura material (artesanato).
172

As organizações, enquanto organismos políticos do movimento indígena,


intervêm em tais encontros para que sejam deslocados à capital não apenas cantadores e
bailarinos indígenas, mas, sobretudo, as lideranças das mais de 180 comunidades e
associações indígenas. Desse modo, a UNI conquistou a participação no comando dos
encontros - contrapondo o interesse dos “brancos” em ver manifestações artísticas - pondo em
pauta questões de interesse da população indígena, dando uma conotação política a tais
encontros. Assim, mais do que visualizar para os não-índios a beleza cultural da população
indígena, os encontros de cultura tornaram-se um espaço a mais de mobilização por
resultados concretos para os povos indígenas da região. Como declara a própria UNI, por
ocasião do III Encontro de Culturas Indígenas:
Durante as festividades dessa semana estaremos apresentando ações visando o
conhecimento sobre nossa realidade, com trabalhos de pesquisas junto aos povos,
conquistas na saúde, capacitação de nossos parentes em meio ambiente,
alternativas de auto-sustentabilidade, participação em discussões de temas
importantes e atuais. Enfim, todos os rumos que devemos dar a nossa luta para que
possamos cantar e dançar fazendo jus a nossa cultura e tradição, tendo de fato o
que comemorar (JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
Considerando os altos custos que implicam os deslocamentos até à capital, e
considerando que a vinda das lideranças de grande parte das comunidades só é possível via
aérea, tais eventos, como os encontros de culturas e outros similares, tornam-se espaços ideais
para dar maior legitimidade ao movimento no avanço das lutas. Também nestes espaços é
difundida e partilhada, a conquista obtida em exaustivos anos de luta e articulações.
Mostrar os avanços conquistados, sobretudo devido à organização do
movimento indígena, permite ao conjunto de lideranças das comunidades, associações e
organizações indígenas discutir “projetos de futuro”, como o acesso a sistemas de
atendimento básico que realmente funcionem, e o principal, a regularização das terras
indígenas bem como a garantia do poder público para proteger as terras indígenas já
regularizadas.
Assim, a seu modo, e negociando com o Estado nacional, os povos indígenas
do Acre, do sul do Amazonas e noroeste de Rondônia, representados por seus organismos
políticos, resistem no direito de viver enquanto povos. Viver, também, como cidadãos,
condição a que foram postos com o Estado nacional, pós-colonial. Enquanto cidadãos, o bem
viver hoje, e no futuro, implica em dominar ferramentas da cultura dominante, como o saber
escolar. A escola e suas implicações nos contextos indígenas é tema do próximo capítulo.
CAPÍTULO V
A ESCOLA E OS SABERES INDÍGENAS NAS ESTRATÉGIAS
DE RESISTÊNCIA

Neste capítulo abordamos, na primeira parte, os avanços conquistados pelos


povos indígenas em educação escolar, avanços obtidos com a participação de organizações
não-governamentais, no conjunto das lutas dos movimentos sociais pela garantia de direitos
de cidadania e de direitos de viver, sob orientações socioculturais próprias. Tais mudanças
refletidas na legislação que orienta a política oficial teve como marco significativo a
revogação do propósito integracionista e a redefinição do papel do Estado, agora com a
incumbência de garantir que os povos indígenas vivam e tenham respeitado suas culturas e
formas próprias de organização. Tratamos, sobretudo, da educação escolar nesta nova
orientação política, assinalando o processo de tratamento diferenciado e específico da
educação escolar destinada aos indígenas, dentro do sistema nacional de ensino. Da
regulamentação desta especificidade, destacamos o que está sendo viabilizado, na prática, no
estado do Acre, ou seja, a política de educação escolar indígena no estado do Acre.
Considerando que as normas e as condições pedagógicas não são o bastante
para que a escola se torne o recurso favorável aos projetos de emancipação sociocultural,
tratamos, na segunda parte deste capítulo, sobre as implicações, sobretudo políticas e culturais
que, somados a fatores históricos, estão envolvidas na construção da escola indígena. Nesse
mesmo item fazemos alguns indicativos de saberes indígenas a serem negociados no âmbito
da construção da escola e de seu papel nas comunidades indígenas. Ainda sobre a cultura
indígena, situamos a complexidade da cosmovisão, enfocando alguns elementos de um e de
outro povo, aspecto que ilustra a dificuldade do que seja tornar indígena a escola, reforçando
o entendimento de “processo de construção”, onde é negociado saberes para serem
sistematizados como conteúdo escolar, compondo, com as ciências da cultura ocidental, o
currículo da escola indígena.

1 A política atual de educação escolar indígena

As mudanças ocorridas nas políticas oficiais para a população indígena,


retratadas neste capítulo, são frutos da mobilização social, tal como enfocamos no terceiro
174

capítulo. Nesta mobilização, nas questões de interesse da população indígena, houve a


participação de instituições não-governamentais que, a partir da década de 1970, surgiram
com o propósito de apoiar as lutas políticas dos grupos minoritários. Instituições que
contribuíram, substancialmente, nas experiências em educação escolar como recurso
favorável aos projetos indígenas.
No Acre, a atuação de indigenistas, tal como referimos no segundo capítulo,
contribuiu, significativamente, para a reorganização dos grupos indígenas no período de
acirramento da luta pela terra. Dentre as entidades não-governamentais que colaboraram no
fortalecimento e nas conquistas do movimento indígena, estão presente, ainda hoje, o
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Conselho de Missão entre Índios (COMIN) e a
Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC). Instituições, cujo papel, gradativamente é modificado,
evoluindo para parceiros, dialogando e apoiando projetos concebidos com o movimento
indígena.
No trabalho de apoio às demandas por educação escolar indígena, dentre as
instituições não-governamentais, desde o princípio da década de 1980, o CIMI e a CPI/AC
buscaram, na presença junto às comunidades, refletir e construir experiências em educação de
forma que atendessem ao anseio das comunidades pelo domínio do saber escolar, ao mesmo
tempo em que esta escola pudesse contribuir para o fortalecimento das culturas indígenas.
O CIMI iniciou sua presença junto aos povos indígenas do Acre em 1975, com
o trabalho de levantamento das áreas indígenas da região, sob protestos e ameaças de
autoridades e da maioria da população regional. Hoje, com cinco equipes, atua no apoio aos
povos do Acre e sul do Amazonas.
No debate sobre educação com as comunidades indígenas, que reivindicavam
escolas, o CIMI tem um papel precursor no Brasil. Em seu trabalho, por meio da presença de
equipes de Pastoral Indigenista, ligadas à Igreja Católica, desde a década de 1970, pautou sua
atuação, fazendo uma autocrítica às tradicionais práticas missionárias, afirmando que as
tentativas de transplantar o nosso modelo educacional são responsáveis pelo fracasso da
educação para os indígenas nestes 500 anos (AMARANTE; PAULA, 2001, p. 7). Esta
posição será fortalecida e aprimorada com o envolvimento de outras instituições e,
fundamentalmente, com o fortalecimento do movimento indígena que assume o controle
social das políticas destinadas as suas comunidades. Hoje em dia, no diálogo com os povos
indígenas:
A questão da educação escolar e da formação dos professores indígenas é vista pelo
Cimi como parte de uma totalidade maior, que são as culturas indígenas. Não é
possível tratar de maneira isolada a educação de um povo indígena, ela é parte de
175

cultura, tem base nas tradições, nas cosmovisões, nas línguas e tudo isso precisa ser
compreendido em conjunto. A escola é uma instituição que faz sentido para a vida
dos povos indígenas em um contexto de contato com a sociedade envolvente, quando
serve de instrumento a favor de suas lutas. A escola deve proporcionar os
conhecimentos necessários para a compreensão das estruturas da sociedade
majoritária, os caminhos para a conquista e garantia dos direitos e da autonomia
(CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 1999).
A Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC) é uma organização não-
governamental, constituída para atuar no indigenismo no estado do Acre, criada em 1979. Na
educação escolar obteve reconhecimento pela sua atuação, sobretudo a partir de 1983, com o
início de um projeto de formação de professores indígenas pertencentes a diferentes povos,
alcançando a formação, em nível médio, de 35 professores, em 2002. Esta experiência teve
origem, em primeiro plano, para responder as expectativas indígenas, na alfabetização em
língua portuguesa, na língua indígena e noções básicas de matemática. Entretanto, com o
aprofundamento dos estudos na construção coletiva entre indígenas e instituição de apoio, o
programa de formação de professores tornou-se “Uma Experiência de Autoria”, expressão
que denominou o projeto.
Ainda na relevância para a educação, a CPI/AC construiu e obteve o
reconhecimento oficial da Escola de Formação de Professores, obtendo, ainda o registro
oficial do Magistério Indígena. As atividades da CPI/AC, voltadas para atender demandas de
melhoria da qualidade de vida, nas comunidades indígenas, são, hoje, definidas com a
seguinte finalidade:
Apoiar as sociedades indígenas, especialmente no Acre, em suas lutas atuais pelo
exercício dos direitos relativos à terra, saúde, educação e meio ambiente, por meio
de ações de formação de professores e agentes agroflorestais indígenas
(COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE, 2001, p. 10).
A atuação destas organizações assim como o COMIN, que mantém um
trabalho significativo na assessoria jurídica às organizações indígenas, contribuíram
decisivamente, para o avanço do movimento indígena. Portanto, graças ao apoio de tais
instituições, o movimento indígena avançou para o estágio atual de autonomia.
Em 1988, a população indígena brasileira conquista direitos na Constituição
Federal, que constituem uma postura diferencial da até então prevista como tratamento pelo
Estado brasileiro para com os povos indígenas, conforme parecer do Conselho Nacional de
Educação:
A nova Constituição inovou ao garantir às populações indígenas o direito tanto à
cidadania plena (liberando-as da tutela do Estado) quanto ao reconhecimento de
sua identidade diferenciada e sua manutenção, incumbindo o Estado do dever de
assegurar e proteger as manifestações culturais das sociedades indígenas. A
Constituição assegurou, ainda, o direito das sociedades indígenas a uma educação
escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngüe, o que vem sendo
regulamentado através de vários textos legais. Com o capítulo VIII, do Título VIII,
176

da Constituição Brasileira de 05 de outubro de 1988, são-lhes restituídas suas


lídimas prerrogativas de primeiros cidadãos do nosso imenso Brasil. Afinal, não
foram os índios que invadiram o Brasil ... Suas tradições, seus costumes, seu habitat
e, especialmente suas línguas são os autóctones. A “gens” indígena é aquela
verdadeira, original e primeira nas terras “Brasílicas”. Com o artigo 231, do
capítulo VIII da Constituição de 1988 fez-se justiça: “Art. 231 - São reconhecidos
aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os
direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Idêntica é a
força redimensionadora da postura constitucional em relação aos povos e à
educação indígena que já se encontra nos artigos 210, 215 e 242 da mesma
Constituição de 1988: “Art.210, § 2º - O ensino fundamental regular será
ministrado em língua portuguesa, assegurada as comunidades indígenas também a
utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Art.
215, § 1º- O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional. Art. 242, § 1º- O ensino da História do Brasil levará em conta as
contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.”
(BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CEB nº 14, 1999).
A Constituição Federal desencadeou a proposição de uma série de alternativas
às práticas de submissão, até então, impostas aos indígenas. Partindo da garantia de seus
territórios, possibilita que cada comunidade tome para si a responsabilidade de aceitar ou não,
e de remodelar, como lhes convêm, o serviço social garantido a todos os cidadãos brasileiros.
Por exemplo, a escola, se interessar ao povo indígena, este pode fazer dela um lugar onde a
cultura e a organização social e política indígena dêem as regras. Isto é, torna-se possível
oficializar a escola entre os indígenas com um novo significado, um novo sentido, como meio
para garantir acesso a conhecimentos gerais, sem precisar negar as especificidades culturais e
a identidade de cada povo.
As propostas que foram sendo construídas na área da educação desencadearam
uma série de documentos legais, pareceres e resoluções com vistas a subsidiar a construção de
programas de educação escolar dentro das novas orientações constitucionais.
A normatização - afora às críticas quanto as amarras impostas com a adequação
a “estruturas” e formas de organizar a educação escolar - assegura aos povos indígenas o
direito a uma educação de qualidade, que respeita e valoriza seus conhecimentos e valores
culturais, e permite que tenham acesso a conhecimentos “universais”, de forma a
participarem, ativamente, como cidadãos plenos do país.
O processo de regulamentação da “escola indígena” é provocado a partir da
denúncia de indígenas e indigenistas sobre a inoperância e desmandos do órgão indigenista
oficial, a Funai, situação que não garantia a segurança de que tal órgão daria conta das novas
atribuições delegadas pela Constituição Federal. Como medida, o Governo Federal decide
pela transferência das atribuições da Funai com educação escolar para o Ministério da
177

Educação, formalizada no Decreto Presidencial n° 26 de 04 de fevereiro de 199118. A partir


de então, a responsabilidade pela educação escolar, nas comunidades indígenas, é distribuída
da seguinte forma: ao Ministério da Educação, a função de coordenar as ações referentes à
educação escolar indígena no país, enquanto que a execução passa a ser competência das
Secretarias de Educação dos Estados e Municípios.
No mesmo ano, por meio de Portaria Interministerial n° 559, de 16 de abril de
19
1991 , do Ministério da Justiça - à quem a Funai está submetida - e do Ministério da
Educação, são estabelecidos os fundamentos da educação escolar indígena, na perspectiva
oficial, reforçando os princípios já contemplados na Constituição Federal. Tal portaria institui
uma Coordenação Nacional de Educação Escolar Indígena com a finalidade de coordenar,
acompanhar e avaliar as ações pedagógicas de Educação Escolar Indígena, no país. Como
forma de viabilizar a ação nos estados, estimula a criação de Núcleos de Educação Indígena
(NEIs), nas Secretarias Estaduais de Educação com o intuito de apoiar e assessorar as escolas
indígenas. Estabelece, também, princípios que vêm caracterizar a prática diferenciada nas
escolas das comunidades indígenas; define, como prioridade, a formação de professores
indígenas, com currículos, calendários, metodologias e formas de avaliação adequadas às
especificidades socioculturais, com ensino bilíngüe e material didático, elaborado pela própria
comunidade.
Em 1992, é instituído, no Ministério da Educação (MEC), o Comitê de
Educação Escolar Indígena, por meio da Portaria n° 60/92 - MEC20, com a finalidade de
subsidiar as ações e proporcionar apoio técnico-científico às decisões que envolvem a adoção
de normas e procedimentos relacionados com o programa de Educação Escolar Indígena. Este
Comitê de Educação Escolar Indígena, em novembro de 1993, lança um documento com as
Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, com o propósito de
delinear os princípios gerais para a educação escolar indígena, com base nos direitos
constitucionais, estabelecendo que as escolas indígenas deverão ser específicas, diferenciadas,
intercultural e Bilíngüe. Como explicita o documento:
As escolas indígenas, por conseguinte, deverão ser específicas e diferenciadas, ou
seja, as características de cada escola, em cada comunidade, só poderão surgir do
diálogo, do envolvimento e do compromisso dos respectivos grupos, como agentes e
co-autores de todo o processo. [...] A interculturalidade, isto é, o intercâmbio
positivo e mutuamente enriquecedor entre as culturas das diversas sociedades, deve
ser característica básica da escola indígena. Isso significa passar da visão estática
da educação para uma concepção dinâmica. Não se pode ficar satisfeito só em

18
BRASIL, Decreto Presidencial nº 26, 1991.
19
BRASIL. Portaria Interministerial n° 559,1991.
20
BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 60, 1992.
178

“valorizar”, ou mesmo ressuscitar “conteúdos” de culturas antigas. Deve-se, pelo


contrário, ter em vista o diálogo constante entre culturas, que possa desvendar seus
mecanismos, suas funções, sua dinâmica. Esse diálogo pressupõe que a interrelação
entre as culturas, o intercâmbio entre as mesmas e as contribuições recíprocas são
processos aos quais todas as sociedades são e foram submetidas ao longo de sua
história. [...] As sociedades indígenas apresentam um quadro complexo e
heterogêneo em relação ao uso da língua materna (a língua indígena) e ao uso e
conhecimento da língua oficial (o português). A maioria dos povos indígenas se
encontra em diversas situações e modalidades de bilingüismo e/ou multilingüismo.
Essa situação sociolingüística, assim como o momento histórico atual e suas
implicações de caráter psicolingüístico, fazem com que se assuma a educação
escolar indígena como sendo necessariamente bilíngüe (BRASIL. Ministério da
Educação. Diretrizes..., 1993, p.11).
Com o advento da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), Lei n° 9.394, sancionada em 20 de dezembro de 1996, em seu título VIII – Das
disposições gerais, os princípios constitucionais são regulamentados, firmando-se a tônica da
nova política oficial para a educação escolar indígena, tal como segue:
A nova LDB define como um dos princípios norteadores do ensino escolar nacional
o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas. O artigo 78 afirma que a
educação escolar para os povos indígenas dever ser intercultural e bilíngüe para a
“reafirmação de suas identidades étnicas, recuperação de suas memórias
históricas, valorização de suas línguas e ciências, além de possibilitar o acesso às
informações e conhecimentos valorizados pela sociedade nacional”. O artigo 79
prevê que a União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino
estaduais e municipais no provimento da educação intercultural às sociedades
indígenas, desenvolvendo “programas integrados de ensino e pesquisa [...]
planejados com audiência das comunidades indígenas [...], com os objetivos de
fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna [...] desenvolver currículos
e programas específicos, neles incluindo conteúdos culturais correspondentes as
respectivas comunidades [...], elaborar e publicar sistematicamente material
didático específico e diferenciado” (BRASIL. Ministério da Educação. Parecer
CNE/CEB nº 14, 1999).
Por se tratar de algo recente, num país que investe pouco em Educação, entre
outros aspectos limitadores, o quadro geral da educação escolar indígena, no Brasil,
apresenta-se, atualmente, permeado por experiências fragmentadas e descontínuas, que estão
regionalmente, desiguais e desarticuladas.
Há escolas, em comunidades indígenas, administradas por secretarias
estaduais, outras pelas secretarias municipais de educação. Há, ainda, escolas administradas
por organizações não-governamentais de apoio aos índios, outras por missões religiosas
católicas ou de orientação fundamentalista e proselitista; e algumas poucas escolas; que foram
criadas por iniciativa das próprias comunidades indígenas e não contam com qualquer forma
de apoio financeiro, técnico ou pedagógico por parte do Estado.
Assim, o quadro atual apresenta uma diversidade de situações, que não
representam, necessariamente, a diversidade requerida em função da pluralidade cultural. A
situação diversa atual é mais fruto das desigualdades, por razões diversas. A tentativa oficial
de dar um tom mínimo de unicidade para as escolas, nas comunidades indígenas, um mínimo
179

de padrão que requer os “sistemas”, levou o Ministério da Educação a investir em propostas


que possibilitassem regularizar, juridicamente, as escolas nas comunidades indígenas. Assim,
tendo como referência as experiências bem sucedidas em curso, orienta que os sistemas nos
Estados elaborem regimentos, calendários, currículos, materiais didático-pedagógicos e
conteúdos programáticos adaptados às particularidades étnico-culturais e lingüísticas
próprias a cada povo indígena (BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CEB nº 14,
1999).
Com este intuito, em 1998 o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de
Educação Fundamental, a que a Coordenação de apoio às escolas indígenas está subordinada,
constrói o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas21, com o propósito de
detalhar os fundamentos da educação escolar indígena; fornecer “referências” para a prática
curricular nas escolas indígenas e para a elaboração dos projetos pedagógicos das escolas.
A polêmica quanto ao formato das escolas e a reivindicação por parte de
muitas comunidades de equivalência da educação escolar, proporcionada nas escolas
indígenas à educação escolar não-indígena, leva o Conselho Nacional da Educação a emitir o
Parecer nº 14 de 18 de outubro de 1999, fundamentando que:
Para que as escolas indígenas sejam respeitadas de fato e possam oferecer uma
educação escolar verdadeiramente específica e intercultural, integradas ao
cotidiano das comunidades indígenas, torna-se necessário a criação da categoria
"Escola Indígena" nos sistemas de ensino do país. Do ponto de vista administrativo,
identificar-se-á como "Escola Indígena" o estabelecimento de ensino, localizado no
interior das terras indígenas, voltado para o atendimento das necessidades
escolares expressas pelas comunidades indígenas (BRASIL. Ministério da
Educação. Parecer CNE/CEB nº 14, 1999).
Confirmando o referido parecer, o mesmo Conselho emite a resolução
CNE/CEB nº 3 de 10 de novembro de 199922, fixando as Diretrizes Nacionais para a estrutura
e o funcionamento das escolas indígenas, no âmbito da educação básica. Por meio desta
resolução, reafirma o papel da União de legislar, privativamente, sobre a educação escolar
indígena bem como o papel de definir diretrizes e políticas nacionais para a educação escolar
indígena.
Aos Estados é reafirmada a responsabilidade pela oferta e execução da
educação escolar indígena, diretamente ou por meio de regime de colaboração com seus
municípios.
Quanto ao estabelecimento de critérios específicos para criação e regularização
das escolas indígenas e dos cursos de formação de professores indígenas bem como a

21
BRASIL. Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, 1998.
22
BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 3, 1999.
180

autorização para o funcionamento das escolas indígenas e, ainda, o seu reconhecimento, esta
Resolução define como competência dos Conselhos Estaduais de Educação.
Direcionando a reflexão sobre as políticas públicas, visando a execução da
educação escolar indígena para a região, na qual situamos o presente estudo, embora
atentemos para Amazônia ocidental nesta pesquisa, detemo-nos à política de educação escolar
indígena, concebida pelo governo do estado do Acre. Para ser mais completo, implicaria em
fazer o levantamento das políticas municipais do sul do Amazonas, do noroeste de Rondônia e
municípios do Acre. Entretanto, no geral, ou os governos municipais não fazem diferença
entre comunidade indígena e comunidade rural, ou têm posturas anti-indígena. Resta o poder
público estadual, como instância governamental possível para se negociar a viabilização de
políticas públicas, ao menos em educação escolar, junto às comunidades indígenas. Mesmo
assim, as ações que podem ser consideradas como atividades, realmente voltadas para a
construção de políticas públicas em educação escolar indígena, no Estado do Acre,
acontecerão, apenas, a partir do ano 2000.
Portanto, apesar do pioneirismo do Acre com a “experiência de autoria”,
projeto construído pela CPI-AC, ter se tornado uma referência nacional, o referido projeto
alcançou apenas uma parcela pequena de comunidades. Na prática, nas décadas de 1980 e
1990, as iniciativas em educação escolar, em terras indígenas, foram, substancialmente,
escolas categorizadas como escolas rurais vinculadas aos municípios e ao estado.
Houve alguns ensaios, na década de 1990, visando o atendimento diferenciado
às especificidades indígenas. Assim, por pressão dos órgãos indigenistas, foi aberto vagas
para indígenas, em concurso publico realizado pelo Estado em 1992, onde foram admitidos
indígenas como professores bilíngües, em caráter precário, pelo fato de tais professores ainda
não disporem da formação requerida. Nessa época, é instituído um Núcleo de Educação
Indígena, na Secretaria de Estado de Educação, espaço figurativo, sem condições, sequer, para
mapear as escolas e a demanda por escolas nas comunidades indígenas. Portanto, sem
condições de interferir no sistema tradicional de escolas rurais, no qual foram inseridos os
professores indígenas concursados.
Somente em 1999 começa a ser organizado as ações do estado do Acre com
vista a dar resposta à pressão do movimento indígena pelo cumprimento da legislação
educacional. Em 2000, o Estado assume a política de educação nas comunidades indígenas,
iniciando com o mapeamento completo das escolas já instaladas em comunidades indígenas, o
levantamento do quadro de professores indígenas bem como da demanda por escolas e por
formação de professores.
181

Atualmente, a Coordenação de Educação Escolar Indígena da Secretaria de


Estado de Educação do Acre (SEE) mantém informações atualizadas das condições da
educação escolar indígena. Dados que permitem acompanhar o processo crescente das
demandas apresentadas pelas comunidades indígenas.
Em se tratando do atendimento, somente no estado do Acre, em fevereiro de
2003, o quadro geral da educação escolar indígena era o seguinte: 208 professores 23
trabalhando em 107 escolas indígenas, distribuídas em 83 comunidades, das 107 escolas 87
pertencem à rede estadual e 20 são municipais. Dentre os professores, apenas 5 são não-
indígenas, porém, atuando a pedido das comunidades e, também, cursando formação
específica, além de estarem integrados à vida das comunidades indígenas.
Para os responsáveis pela política de educação escolar indígena no Acre, a
formação de professores constitui a base para a implementação de escolas indígenas. Portanto,
enquanto não houver pessoas nas comunidades, aptas para conduzir o trabalho escolar, não
serão atendidas, a contento, as demandas requeridas pelos indígenas. No entanto, esta
limitação não tem sido impedimento para que escolas sejam abertas quando reivindicadas
pelas comunidades. Mesmo não dispondo de professores habilitados, as lideranças do
movimento indígena fazem gestão para que o quadro do magistério indígena seja constituído,
preferencialmente, por professores da etnia, compromissado com sua comunidade, condição,
também, para tomar parte no programa de formação inicial e continuada no magistério
indígena.
Diante das prioridades do poder público e do movimento indígena, o programa
de formação de professores indígenas, em curso, envolve todos os professores em atividade.
Concorre para que tais professores sejam habilitados a conduzir o processo de construção da
escola indígena em sua comunidade, uma formação:
Abrangente, contemplando a capacitação para a elaboração de currículo e
programas específicos para as escolas indígenas, o ensino bilíngüe, o
estabelecimento e uso de um sistema ortográfico das línguas maternas, a maioria
ainda ágrafa, a condução de pesquisas de caráter antropológico e a elaboração de
materiais didático-pedagógicos, bilíngüe ou não, para uso nas escolas indígenas24.
Todos os 238 professores (números de agosto de 2003), no quadro do
magistério indígena no Acre, estão incluídos no programa de formação de professores. Deste
quadro docente, 35 professores formados no Magistério Indígena Diferenciado, são

23
Conforme a gerência em educação escolar indígena, setor da Secretaria de Estado de Educação do Acre, em
agosto de 2003 o número de professores indígenas já era de 238, destes, 218 em sala de aula e 20 a disposição do
movimento indígena.
24
Conforme descrição das ações da Secretaria de Estado de Educação em Educação escolar indígena.
Documento mimeografado, fev. 2003.
182

acompanhados pelo Programa Um Projeto de Autoria, desenvolvido pela Comissão Pró-Indio


do Acre; 53 estão cursando a formação específica em magistério indígena, pelo programa de
formação de professores indígenas da SEE; 97 professores estão no programa de formação
inicial da SEE; e 53 com formações diversas, em nível médio e em processo de formação
continuada, visando a formação para o magistério indígena. Considerando a recente
implantação da política de educação escolar indígena, parcela significativa dos professores
estão, ainda, na fase inicial de sua própria escolarização, que vem acontecendo em serviço.
Embora a atividade de formação de professores cubra a necessidade mais
emergente, a SEE tem procurado atender as demandas apontadas pelo movimento indígena e
indigenista, reconhecendo ser necessário ampliar, ainda mais, o leque dessas atividades para
propiciar a superação do déficit, historicamente acumulado, no atendimento da Educação
Escolar Indígena. Desse modo, as metas em execução consistem em habilitar 60% dos
professores Indígenas municipais e estaduais em Magistério Indígena Diferenciado em nível
médio até 2005, e 100% até o final da década. A complementação da formação para o
Magistério Indígena, em nível superior, já está sendo gestada pela Universidade Federal do
Acre, com apoio da SEE, e instituições indigenistas, com previsão para iniciar em 2004.
Os professores indígenas dependem, também, da formação para consolidar a
implantação e regulamentação, no sistema estadual de ensino, da profissionalização e do
reconhecimento público do magistério indígena. A meta vem a ser a criação da categoria de
professores indígenas, como carreira específica do magistério, com concurso de provas e
títulos adequados às particularidades lingüísticas e culturais dos povos indígenas, garantindo a
esses professores os mesmos direitos atribuídos aos demais professores não-indígenas, com
níveis de remuneração correspondente ao seu nível de qualificação profissional.
Nos demais aspectos necessários, para atender as demandas de educação
escolar das comunidades indígenas, a Secretaria de Estado de Educação (SEE) estabeleceu um
cronograma que vem sendo executado. Assim, com vistas a dar suporte à educação escolar,
pleiteada pelas comunidades indígenas, foi estruturado o departamento de Educação Escolar
Indígena da SEE, ascendendo de coordenação para gerência, constituindo um setor específico
com dotação orçamentária própria. Complementa a estrutura, as coordenações regionais nos
municípios, que têm à frente professores indígenas.
Com relação à estrutura física das escolas, em 1999, a quase totalidade das
escolas indígena existentes estava com estrutura física bastante depredada e/ou funcionando
em espaços inadequados. A partir daquele ano, o Governo do Estado do Acre firmou parcerias
com o Governo Federal e Prefeituras Municipais, estabelecendo, como meta para até 2004,
183

atender as demandas de construção, reforma e provimento com materiais de cantina e energia


solar, dotando as escolas que têm mais de 30 alunos com TV e Vídeo. No ano de 2002, com
recursos próprios, o Governo do Estado construiu e dotou com energia solar 19 escolas de 01
sala, uma escola de duas salas e uma de cinco salas de aula. Além disso, 29 novas escolas
estão sendo construídas, desde março de 2002, com financiamentos do Governo Federal.
Dentre as ações programadas para melhoria das escolas, está firmado para, a
partir de 2002, num prazo de cinco anos: equipar as escolas indígenas com materiais didático-
pedagógicos básicos, incluindo bibliotecas, videotecas e outros materiais de apoio; criar
programas voltados à produção e publicação de materiais didáticos e pedagógicos específicos
para os grupos indígenas, incluindo livros, vídeos, dicionários, gramáticas e outros,
elaborados por professores indígenas, juntamente, com seus alunos e assessores; produzir,
editar e reeditar materiais didáticos bilíngües, com edições piloto de Cartilha de Alfabetização
das etnias Jaminawa e Nukini, em 2002, e as demais a partir de 2003.
Considerando que o atendimento escolar tem sido, substancialmente, na
alfabetização e séries iniciais do ensino fundamental, as comunidades e movimento indígena
vêm pressionando a SEE, pela ampliação do atendimento em outros níveis. Em aspectos
práticos, tal atendimento ainda está restrito a experiências-piloto, visando construir
experiências de acordo com a efetiva demanda, com programas específicos, nas áreas de
ensino infantil, fundamental completo, médio e profissionalizante.
Outras medidas estão em andamento, tais como, a elaboração dos projetos
políticos pedagógicos das escolas, com vistas ao reconhecimento oficial como “escola
indígena”. Reconhecimento necessário para que a especificidade do modelo de educação
intercultural e bilíngüe sejam asseguradas bem como também seja assegurada a autonomia
enquanto Escolas Indígenas; e, com isso, tenham a garantia de recursos financeiros para a
manutenção e desenvolvimento do ensino. Oficialmente, algumas escolas já estão
reconhecidas como “escolas indígenas”, com seus respectivos projetos político-pedagógicos
aprovados pelo Conselho Estadual de Educação.
Os avanços obtidos ainda não se traduzem em educação escolar de qualidade,
na maioria das comunidades. A carência em estrutura e equipamentos persiste na maioria das
escolas. Grande parte dos professores está em formação inicial, não dispondo das necessárias
habilidades e conhecimentos para construir uma prática e reflexão com sua comunidade e,
com isso, definir o papel que compete à sua escola. Outro grande limitador na implantação de
escolas indígenas, para que realmente exerçam seu papel, consiste na grande dificuldade em
garantir acompanhamento e assessoria ao professor, no seu local de trabalho, dadas as
184

distancias e dificuldade de acesso às comunidades.


Mesmo estando longe de ter atendido os seus direitos de cidadania, e
considerando, que até recentemente era negado aos indígenas conhecer as letras e dos
números, é notável a conquista obtida pela população indígena, nos últimos anos. A escola
está se estabelecendo de diferentes formas, assim como são diferentes as culturas e os
interesses de cada comunidade.

2 A construção da escola indígena nas estratégias de resistência sociocultural

Tratamos, neste item, das condicionantes relacionadas à construção da


educação escolar, aproximando este serviço aos mundos indígenas a ponto de tornar
“indígena” a escola. Portanto, condições que extrapolam as ações “restritas” de investimento
no “pedagógico”: professores, escola, currículo e material didático. É a escola pensada no seu
vínculo com o contexto mais amplo: nas relações com as questões do passado, com as
estratégias políticas de resistência do presente e com os projetos de futuro.
A escola pensada no contexto histórico contribui para enfatizar sua relevância
para os povos indígenas, sobretudo nas relações de produção, trabalho e comércio. Tal como
nos referimos no segundo capítulo, os indígenas da Amazônia ocidental tiveram o primeiro
contato com a escrita alfabética quando esta foi usada contra eles, como instrumento de
dominação, uma vez que, somente os patrões dominavam este instrumento de registro, com os
quais exerciam poder inquestionável sobre os indígenas que desconheciam o significado dos
rabiscos no papel. Desse modo por não terem o domínio dessa escrita, os índios eram
subordinados a dívidas impagáveis aos patrões dos seringais, que os enganavam nos preços e
pesos dos produtos do comércio (KAXINAWÁ, 2002, p. 182).
Por várias décadas, esta forma de registro e de poder foi objeto de desejo para
sair da desvantagem nas relações de trabalho e comerciais. As lideranças tinham consciência
de que eram roubados, explorados e, diante da inevitável - com a já estabelecida relação
econômica de compra e venda de produtos - para os indígenas, ter acesso à escola tornar-se-á
uma das primeiras reivindicações, junto ao direito a seus territórios:
A escrita passa a ser desejada como um instrumento de independência frente ao
controle que comerciantes e seringueiros exerciam sobre as técnicas de cálculo e
medição usados. Reforçando essa atitude, estava a conquista do direito a terra,
levando ao desaparecimento dos patrões dos seringais e ao estabelecimento de
novas relações com a sociedade regional e nacional (KAXINAWÁ, 2002, p. 182).
À medida que as instituições de apoio aos indígenas se estabelecem no Acre,
junto às demandas de luta pela terra, também o “querer escola” é levado pelas lideranças a
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estas instituições. Desse modo, as instituições de apoio como a CPI/AC, CIMI e COMIN
passam a promover ações voltadas à discussão da escola, a promover cursos de formação de
professores indígenas e a acompanhar as escolas que eram criadas, assessorando os
professores em seu trabalho docente e na elaboração de materiais didáticos.
Assim, o “querer escola” tornou-se uma necessidade premente, desde o
princípio da retomada dos direitos à terra, do descolamento do vínculo com o patrão. Mais
ainda, com a implantação das cooperativas, os indígenas depararam-se com problemas
práticos, de todos os tipos, uma vez que tinham que administrar as cooperativas, a compra e a
venda de produtos. A falência das cooperativas é atribuída, entre outros motivos, também à
falta de domínio de conhecimentos elementares de contabilidade e administração.
Portanto, o aspecto comercial sempre foi uma primeira demanda, justificando a
escola. Por estar relacionado à subsistência, conseqüentemente, com o acesso a escola, outras
demandas serão postas, as mais diversas, desde a possibilidade de revitalização da cultura
indígena ao acesso a outros instrumentais de luta. Enquanto recurso, a escola é buscada para
capacitação, tanto para atuar no movimento, quanto em outros setores da sociedade nacional.
Em outras palavras, o domínio das ciências do “branco”, num primeiro momento, atende ao
anseio de liberdade e segurança no comércio; e, aprofundando o acesso à escola, esta é
desejada como forma de independência política e administrativa para que as organizações
tenham poder para representar as questões de interesse de suas comunidades com propriedade
e competência sem mediadores não-indígenas.
As instituições indigenistas, compreendendo a relevância da escola, neste
contexto e sabedores do que esta instituição representou como arma da mão dos
colonizadores, provocam o debate sobre os saberes escolares e alertam sobre a necessidade da
preservação da cultura produzida no âmbito dos povos. Embora, hoje, a compreensão é outra,
a maioria das famílias queriam a escola apenas para o domínio do saber do branco. Quanto
aos conhecimentos tradicionais, os meninos aprenderiam com a família.
O problema ainda não foi resolvido de todo, apesar do esforço atual de
professores indígenas na tentativa de sistematizar, na forma de conteúdos escolares, os
saberes indígenas. Não se pode negar que, na educação tradicional, os saberes indígenas são
repassados às novas gerações, com muito mais eficiência. Sobretudo quando as comunidades
conseguem manter a organização social própria, em tais casos, tomando como exemplo os
Katukina, em atividades de caça, os garotos, por volta de 12 a 14 anos, começam
acompanhar seus pais na mata, para aprenderem os segredos que um bom caçador deve
saber: reconhecer os rastros dos animais, seus gritos e assobios, observar as alterações
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sazonais (COFFACI DE LIMA, 1994, p.79).


Outro exemplo da eficiência das práticas educativas tradicionais entre os
Katukina, é a “contação” de histórias, particularmente na educação das meninas, como relata
a mesma autora:
Nos limites do grupo doméstico, quando não estão empenhadas em suas atividades
produtivas, as mulheres podem ficar deitadas em suas redes ouvindo o que chamam
de “histórias para educar crianças” que as avós contam para os netos. Estas
histórias têm um cunho marcadamente disciplinador e embora as mulheres mais
jovens já conheçam permanecem por perto para aprenderem em detalhe seu
conteúdo, pois futuramente elas próprias contarão a seus netos (COFFACI DE
LIMA, 1994, p. 93).
Temos, pois, os saberes indígenas, os quais, embora depreciados frente ao
saber científico da cultura dominante, continuam sendo referência para o cotidiano das
comunidades. Entretanto, a dificuldade se instala na tarefa de passar da escola ocidental para
a escola indígena; no trabalho de construir a escola e o seu currículo; o trabalho de
sistematizar os saberes indígenas para que se constituam conteúdos de ensino.
A escola para ser indígena, necessariamente, estaria propiciando o acesso aos
saberes da cultura dominante, porém, antes disso, precisa estar priorizando a cultura local, os
saberes, a organização social e a visão de mundo do povo, que antecedem aos da cultura
dominante. Para que aconteça esta inversão de prioridade no trabalho escolar, são muitas as
dificuldades, tanto de ordem técnica, para promover a transformação, a sistematização dos
conhecimentos indígenas em conteúdos escolares, quanto a resistências internas. Isto é, além
da questão referida acima, de que o conhecimento tradicional não precisa da escola para ser
reproduzido, há outra dificuldade situada entre os indígenas, os quais, foram humilhados pelo
tratamento preconceituoso, e, com isso, foram inculcados a desprezar as “coisas” de “índio”,
tornando difícil, para os próprios indígenas, aceitar como útil ensinar “coisas de índio na
escola”.
A escola indígena, nestas circunstâncias, para acontecer, precisa se fazer
acompanhar de medidas políticas que visem o restabelecimento das condições dignas de bem
viver. Tais condições, se estabelecidas em bases associadas à cultura indígena, favorecerá o
trabalho de restabelecimento da auto-estima e conseqüente apreço à cultura indígena,
inclusive na escola.
Outro aspecto a ser levado em conta é que, para muitas comunidades, o
processo de invasão da empresa seringalista, ao se instalar a qualquer preço nos locais onde se
concentravam os seringais, provocou grande desorganização entre os povos indígenas,
forçado-os a abandonar seus territórios tradicionais, suas culturas, suas formas de
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organização. Processo que torna, ainda mais difícil a revitalização de saberes, que estão na
memória de alguns poucos. Como no caso Jamamadi, relatado por Rangel (1994, p. 136):
É difícil recuperar o padrão de organização tradicional pois, hoje em dia, conta-se
apenas, praticamente, com a memória dos velhos. Esta dificuldade provém do fato
de que a memória já está impregnada pela experiência dos deslocamentos e da
depopulação.
Contraditoriamente, embora não venham a ser restabelecidos os costumes
antigos, a memória é, facilmente, introduzida na escola; trabalhada, sobretudo, com os
conhecimentos históricos. Nesse caso, os professores vêm obtendo êxito, introduzindo os
processos educativos próprios da cultura indígena na escola, facilitado pelo especial interesse
sobre o passado, particularmente sobre o período anterior à invasão da empresa extrativista,
período tido como “tempo das malocas”, época, na qual, construíam grandes casas, próximo
aos roçados, sob a forte liderança de um Tuxaua 25; tempos em que eram senhores de seus
mundos, e que servem como referência de fartura, no bem viver.
O trabalho escolar não mais como instrumento exclusivo de valorização das
ciências da cultura ocidental, mas como instituição capaz de trabalhar, a partir dos valores
culturais do povo, da comunidade, depende de um trabalho contínuo de diálogo e
convencimento da relevância maior do saber cultural do povo para sua dignidade e para seu
bem viver. É com base nessa perspectiva que professores indígenas e instituições indigenistas,
comprometidas com a valorização e o respeito das culturas nativas, empenham-se no trabalho
daquilo que defende Foucault (2001), de desconstruir os efeitos de verdade exclusivos,
construídos no âmbito do discurso do saber dominante. Desse modo, restabelecer um dos
direitos mais legítimos de qualquer povo, que é, sobretudo em seu meio, o seu saber,
constituir, verdade maior que o saber de outros povos.
É baseada em saberes do patrimônio coletivo que se assenta a perspectiva de
construção da escola indígena. Este processo, para acontecer, depende do envolvimento da
comunidade, principalmente das “enciclopédias semoventes”, os velhos: fontes de pesquisa
dos professores e alunos, personagens cada vez mais presente nas salas de aula das escolas
indígenas, tratados pelos professores indígenas como “nossas bibliotecas”.
Além dos aspectos históricos referidos acima, a história trabalhada nas escolas
indígenas é complementada por todas as fases do contato - aspectos cujo registro mais
autêntico é a memória das “enciclopédias semoventes” - tendo como ponto de chegada o
tempo em que reconquistam direitos e alguma autonomia em suas comunidades, isto é, as

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Tuxaua é a tradução mais próxima, em português, para designar a liderança nos padrões da organização
tradicional dos povos da região.
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lutas atuais, representadas no “movimento indígena”.


Quanto à diferença no currículo da escola indígena, indicamos alguns outros
saberes que, comumente, são apontados pelos professores indígenas como conteúdos em seus
planos de ensino, com a ressalva de que estamos longe de querer explicitar amplitude de quais
sejam os saberes dos diferentes povos indígenas da região. Assim, limitamo-nos apenas à
indicação de conhecimentos elaborados pelos povos indígenas que tendem a ser
sistematizados como saberes para o currículo escolar. Saberes inclusive que já vem sendo
objeto de estudo de pesquisadores não-indígenas.
Em nossa vivência, no ambiente amazônico, por mais de dez anos, seja no
trabalho de formação de professores, seja em ações dos movimentos sociais, ou, ainda, em
atividades de pesquisa, interagimos com uma grande diversidade de pessoas cujos saberes,
conhecimentos, sobretudo ecológicos e de história natural, são próprios do ambiente
específico da região; relacionados aos territórios tradicionais dos povos que ali habitam. Essa
interação, com este mundo amazônico, nos permite assinalar, com mais segurança, aspectos
próprios de saberes construídos pelos povos da região. Restringindo ainda mais o foco,
detemo-nos a uma sub-região específica, a região acreana do rio Juruá, na qual, trabalhamos
por cinco anos.
Na região do Juruá, a população é formada, substancialmente, por ribeirinhos,
seringueiros, pequenos agricultores, descendentes dos seringueiros nordestinos do tempo
áureo da borracha, os quais constituem, com os indígenas, os povos da floresta. A população
não-indígena, integrada ao ambiente amazônico, como povo da floresta, elaborou uma cultura
própria, a partir de saberes emprestados dos indígenas, embora nem sempre admitam. Fato
que evidencia a relevância dos saberes elaborados pelos indígenas.
Mesmo que não admitam, o conhecimento que os seringueiros dispõem sobre a
floresta em geral, provém dos indígenas. Também, é incontestável, na região, a competência
indígena como artesãos e agricultores, habilidades, igualmente, compartilhadas com os não-
índios. Tal compartilhamento de conhecimentos e tecnologias não implicou no apagamento
das fronteiras entre os diferentes grupos. Assim como os grupos indígenas, no período
anterior à invasão, se conheciam e mantinham relações de trocas, através dos tempos, também
com os não-índios ocorre este processo, sem que ocorra uma uniformidade cultural; pelo
contrário, são mantidas, de forma acentuada, as marcas distintivas entre os povos da região.
Sem esconder as hostilidades, o preconceito sofrido pelos indígenas, é inegável
o compartilhamento de saberes, ao mesmo tempo em que são mantidos saberes exclusivos,
sobretudo, valores, costumes e organização social distinta. Marcadamente, as fronteiras
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étnico-culturais são preservadas e acenadas para distinguir-se dos demais. Como afirma
Carneiro da Cunha e Almeida (2002, p. 16): a cultura local é assim um conjunto de
diferenças articuladas entre si. Naturalmente, que a densidade populacional e a apropriação
de novas tecnologias por estas populações confirmam o caráter dinâmico das culturas.
Um exemplo confirmando o caráter dinâmico das culturas e da preservação da
identidade étnica-cultural é o caso da comunidade Ashaninka, no Alto Juruá, situada na divisa
do Brasil com o Peru. Esta comunidade, apesar do isolamento geográfico, sem acesso por
estradas e o acesso por barco podendo levar até duas semanas da cidade mais próxima,
constitui uma das comunidades indígenas mais organizadas da região que, apesar de manter
preservada em sua cultura, substancialmente, aspectos próprios do povo, dispõe de recursos
comuns aos centros urbanos como televisão, telefone e internet.
Por fim, em se tratando de saberes indígenas, normalmente, estes são
identificados como saberes tradicionais. Entretanto, ao se ter presente o caráter dinâmico das
culturas, as populações podem se caracterizar como tradicionais apenas pelo fato de serem
nativas da região, pois ocupam tais territórios desde tempos imemoriais. Já os saberes, os
conhecimentos estão em constante movimento; as inovações são constantes, os
conhecimentos são sempre mais ampliados com a experimentação.
O Alto Juruá, constitui uma das regiões que concentra maior diversidade
biológica na Amazônia. Fato conhecido já há algum tempo, e que deu suporte ao projeto, que
delimitou, na região, uma reserva extrativista. A excepcional diversidade biológica da região é
fato difundido e firmado em estudos, como o elaborado por dezenas de pesquisadores, cujo
resultado foi publicado como “Enciclopédia da Floresta”, coordenada por Carneiro da Cunha
e Almeida (2002). Nesta pesquisa é feito uma compilação da riqueza de conhecimentos, de
saberes dos povos Asheninkas, Huni Kuĩ (Kaxinawá), Katukina e seringueiros não-indígenas.
A riqueza, da região do Alto Juruá, está muito além da diversidade biológica. É
uma das regiões que concentra a maior diversidade sócio-cultural. Dos 14 povos indígenas do
estado do Acre, 12 têm territórios situados na região do Juruá e seus afluentes.
Na Enciclopédia da Floresta, coordenada por Carneiro da Cunha e Almeida
(2002) - apesar de restrita a saberes de apenas três povos indígenas, num pedaço da bacia do
Alto Juruá, delimitação territorial que compreende a Reserva Extrativista do Alto Juruá,
território compartilhado por povos indígenas e seringueiros - os pesquisadores dão uma
dimensão dos conhecimentos produzidos pela população local, apresentado como o somatório
de saberes individuais, por vezes compartilhado, constituindo, no seu conjunto, o patrimônio
coletivo da população. Os mesmos autores declaram: entendemos por saber formas de pensar,
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investigar, inovar, tanto quanto conhecimentos e práticas estabelecidos (CARNEIRO DA


CUNHA; ALMEIDA, 2002, p. 15). Exemplificando a complexidade dos saberes e, até
mesmo, justificando o caráter enciclopédico, os pesquisadores declaram:
O conhecimento que as populações têm da floresta que habitam é verdadeiramente
enciclopédico, no sentido de cobrir áreas variadas: desde a madeira linheira que
serve para a mão-de-força de uma casa; as enviras que prestam para amarra-la; as
fruteiras que o porquinho e o veado preferem e debaixo das quais é quase certo
caçá-los; os solos ideais para plantar o milho, o tabaco, o jerimum; a maneira de
trançar as palhas de uricuri para fazer o telhado; as iscas preferidas do caparari,
do mandim, do pacu; os sonhos, os preságios, as maneiras de ter sorte na caçada.
Os pés de seringa, cada um deles, e o modo adequado de preparar as estradas,
empausar, embandeirar, raspar, cortar a madeira. Modos de fazer, modos de
pensar, modos de conhecer. Não que cada um saiba o mesmo que todos os outros:
cada qual aprofunda conhecimento em certas áreas. Já de saída, homens e mulheres
se especializam: seringa e caçada em princípio são assunto de homem; capoeira,
horta, canteiro e parto, assunto de mulher. Homens andam na mata olhando em
volta e para o alto, com a atenção na caça; as mulheres olham para baixo,
prestando atenção nas ervas. Embora haja pessoas, em geral mais velhas, que
dominam sozinhas um imenso cabedal de conhecimentos - e essas são, cada uma,
verdadeiras enciclopédias semoventes (CARNEIRO DA CUNHA; ALMEIDA,
2002, p. 15).
No mesmo trabalho, os pesquisadores detalham o caráter dinâmico da
produção dos conhecimentos entre os povos da região do rio Juruá, destacando suas técnicas
de estudo e de reelaboração de conhecimentos, apoiadas em práticas, em tradições e em
experimentação:
Práticas e verdades culturais comandam a observação e a experimentação. A
observação é detalhada, minuciosa, e cada um está atento ao que vê e ouve. As
frutas que certos peixes e caças apreciam são investigadas a partir de suas vísceras.
Observam-se os hábitos de cada animal, a floração de cada árvore. Esta atenção
constante é posta, sem dúvida, a serviço das atividades, e o exercício dessas
atividades é crucial para que se mantenham os conhecimentos. É na caçada, no
marisco, na agricultura, no corte da seringa, nas práticas em geral que se transmite
e se amplia o conhecimento da floresta (CARNEIRO DA CUNHA E ALMEIDA,
2002, p. 13).
Naturalmente, a observação e a experimentação não se reduzem à aplicação
prática. Os povos indígenas pesquisam e especulam sobre a natureza, muito além do que seria
necessário ou racional do ponto de vista econômico:
Há um “excesso” de conhecimentos somente justificado pelo mero prazer de saber,
pelo gosto do detalhe e pela tentativa de ordenar o mundo de forma
intelectualmente satisfatória. Dentre os apetites, o apetite do saber é dos mais
poderosos. [...] as verdades culturais não impedem a prática da observação; ao
contrário, estimulam-na e orientam a especulação. [...] A experimentação também,
contrariamente ao que às vezes se pensa, é largamente praticada. [...] O
conhecimento local não é portanto apenas transmitido de geração em geração.
Envolve por um lado pesquisa, experimentação e observação; por outro, envolve
raciocínio, especulação e intuição. Supõe uma prática constante e, enfim, muita
troca de informações (CARNEIRO DA CUNHA; ALMEIDA, 2002, p. 13-14).
Em se tratando de saberes produzidos no âmbito das culturas nativas, ainda
mantidos, há, por exemplo, a questão da comunicação e dos registros que sempre estiveram
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muito além da oralidade. Neste particular, os povos da região se reconhecem e distinguem por
registros manifestos em aspectos como na pintura corporal, na pintura e técnicas presentes na
diversidade de utensílios, nas danças, nos sons por meio de instrumentos de buzina, nos sinais
e avisos feitos com materiais como folhas de determinadas plantas. Dos conhecimentos, das
técnicas aprimoradas no âmbito das culturas indígenas ainda hoje é notada tanto na
manutenção das sofisticadas técnicas de tecelagem de bordados tradicionais (kenê) e de
cerâmica (AQUINO; IGLESIAS, 2002, p. 151).
Entretanto, detendo-nos na diversidade de atividades e conhecimentos de cada
povo, que faz parte das preocupações de cada professor, ao elaborar o currículo de sua escola,
temos verificado, por exemplo, a preocupação em trazer para escola os conhecimentos
relacionados à economia e à subsistência, tais como, o manejo agrícola; onde e quando plantar
e as técnicas e solos mais indicados para cada variedade cultivada; as técnicas de medição e
os sistemas de pesos e medidas; os conhecimentos associados às fases da Lua e ao
desenvolvimento de cultivos; as proibições relacionadas a fases da Lua e a agricultura; enfim,
o calendário agrícola envolvendo os tempos para fazer os roçados, plantar, limpar e colher; a
classificação e o conhecimento dos produtos cultivados e as variedades de cada produto.
A produção da borracha ainda constitui uma atividade comum, que contribui na
subsistência das comunidades, atividade que implica uma série de conhecimentos que se
inserem no ciclo anual de atividades das famílias. Os conhecimentos relacionados a esta
atividade vão desde a diferenciação das seringas ao complexo processo de exploração,
confirmados por um vocabulário amplo, diversificado e que envolve todo o processo, desde a
preparação, corte, coleta, transformação em pélas ou pranchas; e, finalmente, a
comercialização. Saberes e atividades que, por estarem no cotidiano, não podem ser ignorados
na escola.
Um outro conjunto de saberes e atividade essencial para maioria dos povos
indígenas, levado à escola, é a caça, parte fundamental na alimentação das famílias. Nesta
atividade, há uma arte refinada, que exige uma série de qualificações. É preciso, para o
sucesso nesta atividade, o domínio da ciência na orientação na mata; o conhecimento dos
tempos e lugares, as estratégias e os recursos e armadilhas, como a caçada com cachorro; as
fases da caçada; os saberes culturais relacionados a uma caçada bem sucedida. Ainda
associado à caça; há regras tradicionais; restrições alimentares; quais animais podem ser
caçados; as dietas entre mulheres, crianças e adultos; e animais com propriedades benéficas.
A pesca também constitui atividade que envolve conhecimentos e que está
presente na cultura de todos os povos. Denominada, regionalmente, como “mariscar”, cujos
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saberes relacionados estão associadas a conhecimento dos ambientes, ao que comem os


peixes, ao calendário de sementes e frutos apreciados pelos peixes, às variedades de peixes, às
técnicas e aos instrumentos de pesca; peixes que podem ser comidos; quem pode comer tais
peixes e formas de conservação dos pescados.
Na alimentação, o cozinhar e o comer também envolvem uma grande variedade
de atividades e conhecimentos de pratos, receitas e histórias relacionadas a cada alimento. Da
mesma forma, as bebidas: há técnicas, saberes, envolvidos em sua produção. Outros produtos
envolvem conhecimentos elaborados, tais como o cipó (ayuhasca), cujas técnicas e
conhecimentos no preparo estão associados a rituais. O cipó, assim como o tabaco, são
produtos de uso dos rezadores nos ritos de cura, na religiosidade de alguns povos.
Considerando a grande diversidade biológica da região, no tocante à vegetação
cada povo percebe, identifica, nomeia e organiza esta diversidade vegetal, utilizando-os de
acordo com seus conhecimentos. Das diversas classificações quanto à utilização, destacamos
o vasto conhecimento relacionado às árvores frutíferas, as plantas alimentícias, as usadas para
caça, as usadas na pesca e, sobretudo, a discriminação do conjunto de plantas medicinais, que
são, também, classificadas seja em grau de importância seja como bravas e “de casa” e outras
formas. Também os animais obedecem as mais variadas classificações: pela relação com o
homem, aqueles que são alimento, os bichos de cabelo, de pena, as caças grandes e pequenas,
a diversidade de peixes, cobras etc. Do conhecimento dos animais, os povos têm produzido
saberes por meio da experimentação, dentre os quais está a propriedade medicinal do sapo
Kampu entre outros animais, com propriedades exploradas pelos indígenas.
A complexificação dos saberes, a serem sistematizados como conteúdos
escolares, são aqueles que, geralmente, conflitam com as “verdades” científicas do mundo
ocidental; saberes baseados em pressupostos, que são as verdades culturais:
Por exemplo, na ciência contemporânea - embora esse princípio nem sempre tenha
vigorado no Ocidente - não se admite que um indivíduo de uma espécie possa se
metamorfosear em um indivíduo de outra. No Alto Juruá, esse pressuposto não
vigora nem entre seringueiros nem entre grupos indígenas. A diferença está nos
mecanismos que, entendem eles, operam na natureza: assim, não descartam a
possibilidade da geração de certos animais a partir da lama ou de matéria vegetal,
nem a capacidade de indivíduos de diferentes espécies se metamorfosearem uns nos
outros (CARNEIRO DA CUNHA; ALMEIDA, 2002, p. 12).
Esta dimensão do saber é um desafio para a escola indígena. Por um lado,
enquanto escola “indígena”, não pode negar a cosmologia do povo da comunidade onde está
inserida, por outro lado, não é tarefa simples, sistematizar em conteúdo escolar, verdades
conflitantes com as “verdades” da cultura dominante, tornando lenta a construção da escola
indígena. A escola precisa antever os conflitos e situar as verdades, neste caso, relativas.
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Reforçando o exemplo acima, McCallum situa o significado profundo na


cosmologia Huni Kuĩ, do verbo “transformar-se” ou “metamorfozear-se”, conforme a autora,
no mito, os animais se transformam em gente e vice-versa; em estado de consciência
provocado por alucinógenos, as visões se transformam umas nas outras; no mundo natural,
os seres evoluem de um estado para outro (MCCALLUM, 2002, p. 384).
Nessas culturas, de acordo com análise de Carneiro da Cunha e Almeida,
presume-se que as espécies possam se adaptar ao ambiente de forma quase intencional. Os
mesmos autores apresentam como as práticas e os princípios se ajustam, enfatizando um
princípio que vigora em toda a Amazônia indígena: o de que os animais são transformações
de homens primordiais, ou seja, para o povo Huni Kuĩ, tal como para outros povos, são os
animais que descendem do homem, e não o homem dos animais.
Detendo-nos na questão da cosmovisão dos povos, fundamentados em
verdades culturais, aquilo que não se discute quando se é membro de uma sociedade, ao serem
analisados e interpretados para a cultura dominante constituem em processo, extremamente
complexo, uma vez que não traduzem as condições no plano da cultura do povo - condições
sociais, naturais, históricas e ideológicas - de forma tal que nenhuma definição do que seja
mito abarque a sua totalidade. Quando se trata de uma narrativa de um mito, esta constitui
apenas uma parcialidade, um fragmento de todo um conjunto mítico do povo. Deste modo,
torna-se bastante difícil sistematizar tais saberes em saberes escolares, sobretudo quando a
escola não consegue fugir ao esquema racional concebido pela cultura ocidental.
Entretanto, tais aspectos não podem ser desconsiderados pelo que eles
representam para a educação e identidade étnico-cultural, tal como analisa Rangel. A autora
indica, como caminho possível para função dos mitos, que estes apontem modelos exemplares
para as atividades humanas, seja no trabalho, na educação, e outras. A inserção do povo nas
narrativas revelam a identidade do povo que subsiste na memória - entendendo-se memória
como reinterpretação das tradições e interpretação de sua inserção na história recente - bem
como aponta os papeis dos homens e das mulheres. Isto é, são elementos essenciais nos
processos educativos tradicionais que, por serem indígenas, as escolas, para fazerem educação
devem contemplar este essencial da educação tradicional.
Ilustrando a afirmação acima, Rangel analisa os mitos entre os Jamamadi, e
nestes, o papel dos homens e das mulheres, sobretudo com as profundas transformações no
sistema produtivo com o contato com a cultura dominante, ressalta o significado dado à
mulher no mito de origem das roças, segundo a pesquisadora,
Tudo leva a crer que a sobrevivência deste mito, ou a ênfase que é dada a ele,
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atribua à mulher uma imagem simbólica através da qual os Jamamadi mantém um


dos nexos de sua identidade cultural. Deste modo o mito pode ser considerado
memória, não no sentido de meras lembranças, mas sobretudo, como forma de
reinterpretação das tradições e interpretação de sua inserção na história recente.
Resguardada nesta imagem, a mulher comporta-se como guardiã da cultura,
tornando-se um ser “conservador”, como a oleira. Melhor dizendo a mulher
representa a resistência, trabalhando para a reprodução, em todos os sentidos:
parindo, amamentando, ensinando a língua aos filhos, cozinhando, costurando,
tecendo, exigindo que os maridos cacem, façam roçados etc (RANGEL, 1994, 132).
Na perspectiva de McCallum, estudando os mitos sobre figuras ancestrais
chamadas “incas”, na cultura huni kuĩ (kaxinawá), a autora situa que entre este povo, além de
guardarem a chave de cosmologias, os mitos são histórias de tempos passados. O passado
vivido, do modo como é lembrado em outras narrativas, segue, cronologicamente, os
acontecimentos do tempo mítico. Conforme a pesquisadora, entre os huni kuĩ o social e o
histórico são construídos por meio de transformações do corpo e do espaço, por meio de
narrativas sobre elas e de acontecimentos transformadores, tais como o ritual
(McCALLUM, 2002, p. 375).
Recomendando as devidas reservas quanto à tentativa de tratar como narrativa
histórica aos moldes das ciências da cultura ocidental, McCallum apresenta o caráter
cotidiano da ação histórica entre os huni kuĩ, que está enraizada no presente, no dia-a-dia.
Daí, dentre as preocupações que permeia a vida deste povo, estar a relação entre a troca, a
produção e a exploração:
Podem-se considerar os mitos sobre os Incas como uma exploração dos complexos
associados a essa relação [troca e produção]. Na mitologia dos povos da Amazônia
Ocidental [...] a origem dos poderes produtivos indígenas é muitas vezes atribuída
aos Incas. Estes são também os senhores de materiais duráveis, como o metal,
vidros e tijolos. Nos mitos encontra-se uma ligação com outras histórias sobre a
separação primordial entre os ancestrais dos não-índios (nawá, “estrangeiros”) e
os dos índios e a subseqüente divisão de tecnologias desses dois tipos de gente.
Objetos fabricados com materiais duráveis, como o metal, pertencem, assim, à
gente não-indígena (nawá), enquanto a origem dos produtos tanto indígenas como
estrangeiros é atribuída aos Incas. Existe, porém, uma diferença fundamental entre
tipos de produtos, já que, enquanto o processo de produção indígena, aprendido
com os Incas, é transparente, o dos estrangeiros não é. Além disso, as coisas
estrangeiras são mais abundantes e melhores, o que causa um desequilíbrio que
muitos Huni Kuĩ interpretam como gerador da obrigação, por parte dos
estrangeiros, de suprir os índios. O desejo por tais coisas, assim como pelas
habilidades e medicamentos estrangeiros, está sempre presente na vida Huni Kuĩ.
Esse desejo parece gerar um sonho moldado à imagem do Inca: a integração
permanente de um estrangeiro generoso – o txai (cunhado) perfeito, um Inca sem
máculas – à comunidade huni kuĩ. As relações de troca seguiriam, assim, o curso
possibilitado pela afinidade (MCCALLUM, 2002, p.376).
Conforme a mesma autora, os mitos sobre os Incas também veiculam uma
reflexão sobre os limites da memória e o destino dos mortos, além de explorarem os
fundamentos do mundo social e da história. Mas, sobretudo, os mitos dos Incas tendem a
constituir o conjunto da mitologia Huni Kuĩ, pelo fato de os Incas constituírem os outros
195

primordiais; a origem de muitas coisas essenciais. Ainda conforme McCallum, os mitos sobre
os Incas contam a criação do mundo social dos Huni Kuĩ, desde a época mais remota, em que
viviam na ignorância, passando por uma segunda época, em que tentam alcançar a socialidade
imortal pela união a Incas perfeitos, até à época atual, na qual, os Huni Kuĩ atingiram a
socialidade mortal. Esta classificação distingue dois tipos de história: as que relatam eventos
acontecidos no passado mítico, correspondendo às duas primeiras épocas, distinguindo-se da
narrativa mítica da época atual e coincidindo com o tempo histórico; e a vida presente,
construída com os acontecimentos na memória dos vivos.
Este conjunto de narrativas Huni Kuĩ contém informações sobre o Cosmos e,
sobretudo, são veículos para a articulação e geração de conceitos importantes, como a
capacidade pessoal para produzir. Como explica McCallum, a “agência humana”, a
capacidade para produzir, advém dos Incas, e é fundamental para a vida social.
Considerando a complexidade da cosmovisão de cada povo, a escola indígena
está longe de se constituir numa instituição devidamente articulada e capaz de adequar-se ao
mundo indígena, uma vez que, enquanto escola, esta mantém, também, o propósito de
favorecer aos indígenas a escolarização, mantendo o perfil da instituição não-indígena e a
tendência de traduzir para o saber ocidental o que não é traduzível da cultura indígena.
Há outros aspectos que, embora afetem a escola, não é trabalhado muito em
função do preconceito que a cultura ocidental impôs sobre as culturas nativas, sobretudo em
questões relacionadas à religiosidade. Questões muito presente nas relações entre os povos
indígenas na região, que constituem, inclusive, mecanismos de definição das fronteiras
étnicas. Entre os grupos Pano, mais que as diferenças lingüísticas, as identidades dos povos
são marcadas por aspectos de cunho religioso, marcando, decisivamente, os distanciamentos
entre grupos e mesmo internamente em um grupo. Outros povos da região também tem o
aspecto religioso como forma de estabelecimento de fronteiras, é o que ilustra Rangel (1994,
p. 144) referindo-se ao povo Jamamadi:
As acusações de feitiçaria constituem o mais importante aspecto dos mecanismos de
distanciamento, e estão relacionados a uma intrincada rede de relações que
mobilizam a sociabilidade Jamamadi. Essas acusações são dirigidas, normalmente,
a membros de outros grupos de denominação.
Considerando que entre os povos como os Jamamadi, internamente, a
população se distribui e se reconhece por grupos com denominações específicas, ao “outro” é
depositada a culpa do feitiço, posto de diferentes formas, seja na água, em alimentos e outras
formas, os quais provocam graves doenças, podendo levar até a morte, tornando geral o temor
aos feitiços. Os feitiços são também usados como forma de assimilar e elaborar, internamente,
196

as tragédias, os fatos brutais, seja do extermínio pelas armas, seja pelas epidemias de doenças
a que os grupos estiveram submetidos no passado. Entretanto, nos dias atuais, o feitiço é um
dos principais motivos que levam à decisão de mudar o local de uma aldeia ou que motiva a
mudança de algumas famílias, entre outros fatores: as acusações de feitiçaria permanecem,
provocando cisões, assassinatos, vinganças e afastamentos entre os diversos grupos de
denominação (RANGEL, 1994, p. 166).
Por fim, diante do contexto aqui apresentado, não se discute a relevância da
escola bem como, para ser diferenciada e indígena, deve adequar-se à diversidade de povos e
comunidades; lidar com os conhecimentos próprios de cada comunidade e ser pensada nas
estratégias de resistência do movimento indígena, aspectos, de certa forma, abordados nas
falas indígenas, citadas no capítulo a seguir.
CAPÍTULO VI
A ESCOLA NOS PROJETOS DE EMANCIPAÇÃO
DOS POVOS INDÍGENAS

Fundamentando a questão central do nosso estudo, sobre o papel da educação


escolar entre os povos indígenas da Amazônia Ocidental, neste capítulo reunimos falas de
professores e lideranças indígenas onde, tais atores debatem e apresentam como esta
instituição, na época atual e para o futuro, é reivindicada, seja como estratégia de resistência e
emancipação sociocultural, seja para garantir condições de bem viver mais dignas.
As falas, aqui apresentadas, não têm o propósito de apontar “a” posição de
lideranças do movimento indígena da Amazônia ocidental. No entanto, os perfis do discurso
traduzem convicções que tendem a ser defendidas por lideranças do movimento, nos trabalhos
de elaboração de políticas de educação escolar e nas demais políticas públicas, que afetam a
população indígena. No geral, prevalece a posição, na qual a educação escolar é articulada
como instrumento favorável, nas estratégias de resistência, e como recurso para viabilizar os
projetos de vida e de futuro das comunidades indígenas, construindo relações respeitosas e
condições dignas de bem viver numa sociedade plural.
Considerando a pluralidade de povos, as diferentes situações de contato e
decorrentes interesses, embora a luta se dê coletivamente, as falas também retratam a
polifonia, visualizando diferentes perspectivas. A seleção das falas obedece a temas com os
quais lidamos em todo o trabalho, ou seja, a fala dos indígenas sobre a exclusão e suas formas
discriminatórias de manifestação, inclusive ligadas à escola; o “querer escola” como
instrumento indispensável na sustentabilidade das comunidades, avançando para recurso
estratégico, para resistência e para implementação de projetos de futuro; o discurso
indissociável da conquista da escola e o fortalecimento do movimento indígena; as culturas, a
escola e a afirmação da identidade indígena; e as propostas para o reconhecimento da
pluralidade sociocultural, requisito necessário para estabelecimento de relações respeitosas e
condições mais dignas de bem viver.
Ainda quanto às falas reproduzidas neste capítulo, elas foram obtidas na
pesquisa, a qual consideramos como atividade de estudo e aprendizado, realizada
concomitante ao trabalho com povos indígenas. Portanto, ocasiões, nas quais, tivemos a
oportunidade de registrar muitas declarações em conversas dirigidas, em reuniões, aulas,
198

assembléias. Por outro lado, acompanhamos a ressonância da atuação do movimento na


sociedade regional, ocupando-nos no arquivamento de matérias relacionadas à população
indígena, publicadas na imprensa regional, nos últimos anos bem como na aquisição de
publicações, nas quais consta a manifestação de indígenas da região. Há, ainda, os freqüentes
cursos, encontros, seminários e oficinas, ocasiões em que são sintetizadas as principais
questões em documentos, visando a formulação de políticas públicas. Deste conjunto de
registros é que selecionamos as falas.
Em se tratando do papel da escola, em particular, os discursos denotam
perspectivas, muitas já conhecidas, algumas inovadoras, mas, substancialmente, refletem o
processo e a diversidade. Processo por constituir algo que vem sendo construído junto ao
fortalecimento do movimento indígena, que tem início com a retomada de territórios. Desde
então, as forças são postas, também, no restabelecimento de elementos essenciais, que os
constituem como povos. Diversidade, dados os contextos e interesses de cada comunidade
aliado ao grau de relação com a sociedade regional e demais fatores socioculturais próprios.
Fazemos as devidas ressalvas de que as falas aqui reproduzidas não constituem
algo elaborado, que traduzam a compreensão exata do falante ou que sejam a posição
unânime no movimento. Ao colhermos declarações espontâneas, estas refletem o
entendimento do interlocutor, naquele momento. E ao ser expressa, por um legítimo
representante do movimento, tem seu peso no processo de formulação de políticas públicas.
As experiências e o aprofundamento do debate levam, conseqüentemente, a
reelaboração, confirmando determinada afirmação ou revisando-a. Interessa-nos, sim, pontuar
argumentos recorrentes em torno da relevância da educação escolar e que, por serem
manifestados por lideranças influentes, tendem a ser consideradas no movimento indígena e
veiculados no espaço público. Enfim, no diálogo, no espaço público, as falas abaixo, são
recorrentes e são respeitadas como legítimas, a partir do momento que a população indígena
conquistou o direito de falar pela própria boca.

1 O persistente preconceito como mecanismo de exclusão dos indígenas

Na região Amazônica e, particularmente, no estado do Acre, entre os diferentes


segmentos populacionais, a parcela que está sujeita à maior carga de preconceito e
discriminação são os povos indígenas, por ser o segmento que ofereceu maior resistência aos
invasores, tal como contextualizamos no segundo capítulo. Apesar dos avanços conquistados
pelo movimento indígena, particularmente junto ao poder público, o tratamento respeitoso
199

ainda está nas esferas maiores de governo. O preconceito ainda medeia as relações entre
indígenas e não indígenas, substancialmente, por parte do segmento majoritário, os não-
indígenas. O preconceito ainda é um fator que contribui para a negação de oportunidades de
acesso, pelos indígenas, a uma educação escolar de qualidade. Isto é, movidos pelo desprezo
ao “caboclo” há quem faça gestão contra qualquer benefício, condenando a destinação de
recursos materiais a escolas indígenas ou achando absurdo o atendimento escolar que
extrapole às séries iniciais, similar à catequese no período colonial. Elencamos abaixo, entre
outros problemas, o preconceito e a discriminação sofridos pelos indígenas.
Iniciamos com o relato de experiências pessoais de vítimas do preconceito.
Fatos que marcam, decisivamente, a vida das novas gerações indígenas. A carga
discriminatória vem desde os tempos do cativeiro, persistindo no presente, na exclusão com
base no preconceito:
Há tempos atrás quando os índios trabalhavam para os patrões cortando seringa e
batendo campo, tinha sempre alguém vigiando seu trabalho, mandando refaze-lo,
dando ordens sob ameaças [...] Toda a produção era trocada por alimentos e
roupas. Era preciso trabalhar muito de sol a sol para não passar necessidade. No
momento da troca valia a esperteza do marreteiro ou do próprio patrão que na
maioria das vezes era quem negociava os produtos. Os índios além de explorados
no trabalho eram enganados nos negócios [...] nesse tempo as famílias estavam
espalhadas, o povo disperso e sem chefe. Faltava liderança para retomar a
organização tradicional a terra e a condição de povo livre (Lideranças Kaxinawá e
Shanenawa, Relatório do I Encontro, 1997).
Quanto à vergonha de ser índio por conta do preconceito [...] ser índio na década
de 1970 era cruel. Eu sou desta década, eu quando criança, eu lembro o quanto que
era chato ir pra sala de aula. Quando eu saí da minha aldeia para estudar eu fui a
única, a princípio, que agüentou. As meninas diziam assim: “caboca do barão” e eu
dizia: “sou! E tenho orgulho disso!” - “Há, índio come sapo” eu dizia: “como
mesmo, e é gostoso”. - “índio como macaxeira” e eu: “comemos, você não come?
você não como farinha?” E assim, eu nunca fiquei por baixo. Mas, outros colegas,
outros parentes, primos meus que vinham para escola não agüentavam um mês,
voltavam. Isto é muito ruim, isto impede a gente de se desenvolver (Maria Vanísia
Poyanáwa, 19 fev. 2003).
O povo da minha comunidade sofre preconceito, dos próprios policiais. Batem,
discriminam, dizem que na cidade não podem andar porque não é lugar de índio.
[...] Aqui em Rio Branco as crianças na escola são discriminadas, as outras ficam
falando, ficam assobiando, imitando os bichos. A minha menina diz: “mãe, eu não
vou mais pra escola porque ficam mangando”. A culpa é dos pais, e também dos
professores. Discriminam, dizem que o índio não tem valor, índio tem que estar na
mata, é sujo, índio come gente (Carlos Brandão Shanenawa, 07 mar. 2003).
Quando eu chegava na sala de aula aqui em Rio Branco o pessoal brincava:
“fulano é índio”. Aquilo me deixava nervoso. A gente vai ficando com medo de ser
índio, de que alguém chegue e diga: “Você é índio, você tem não sei o que!” [...]
Muitos ficam com medo e dizem: “Não, eu sou peruano ou eu sou boliviano, não
sou índio”, mas você vê que a pessoa é indígena. Você tem que ser muito forte.
Depois de um tempo as pessoas chegavam e diziam: “você é indígena” eu
respondia: “eu sou, e daí”. Até você manter a sua condição de indígena a
discriminação dói (Chola Manchinery, 07 mar. 2003).
É uma questão de educação mesmo. Hoje a gente se depara com professores
despreparados dentro da sala de aula. Os professores hoje saem da universidade
200

mas não tem o conhecimento. Aliás, o acreano não conhece a sua cultura, o seu
povo, mais ainda, ele conhece mais a cultura do europeu do que a cultura indígena,
do seu povo, do Kaxinawá, do Poyanáwa, do Shanenawa... povos que os acreanos
não conhecem. Nem deles mesmo eles sabem, nem a identidade deles eles sabem.
Eles têm a pele escura mas querem ser brancos, não querem ser negros. Portanto, o
professor está despreparado dentro da sala de aula. A gente repara muito, quando
chega dezenove de abril, é uma data assim, dia do índio é todo dia, todo dia é nosso
dia, entretanto, os professores mandam aqueles coitados daqueles alunos fazerem
trabalhos, mandam para cá com cada pergunta idiota, idiota mesmo, pergunta
besta: “o que é que o índio come? Índio anda nu?” Meu Deus, eu fico com pena dos
coitados, tem vez assim que dá vontade de dar uma resposta bem... mas os coitados
não sabem. Os professores saem da universidade, eles não sabem, não tem
conhecimento de forma alguma. Eu sei que você é professor da universidade, mas
eu acho que é ali na universidade por onde passa a questão da revolução de
mentalidade, eu acho que ali é que está o ponto (Miralda Apurinã, 19 fev. 2003).
Nota-se um receio, nos órgãos públicos como hospitais e outros setores, para com
os índios e isto não depende do governo. Hoje temos uma boa relação com os
mandantes mas os subordinados são preconceituosos. [...] em lugares pequenos, nos
municípios do interior este tipo de coisa ainda é muito forte (Auricélio Brandão
Shanenawa, 12 jun. 2003).
Tipos de discriminação: Legislação ultrapassada que nos considera incapazes;
Desrespeito ao patrimônio cultural e a diversidade; A falta de elaboração,
implementação e execução de políticas públicas que garantam a formação e a
qualificação do/da profissional indígena; Não reconhecimento da identidade
cultural do/da índio/a que mora fora da aldeia; Elaboração e execução de projetos
sem o prévio conhecimento e participação da comunidade; A falta de acesso de
índios/as qualificados/as nos órgãos do governo que trabalham com a questão
indígena; A falta de condições e recursos para a proteção das terras indígenas; Não
cumprimento da Constituição Federal de 1988, que garantia a demarcação das
terras indígenas em 5 anos; A diminuição/redução de terras indígenas; Conceito
equivocado (folclórico) do que é ser índio! (que não pode incorporar novos
conhecimentos) Política assistencialista, paternalista, integracionista e de exclusão
que causou a dependência econômica e política dos povos indígenas (Manifesto do
I Encontro de Mulheres, 2001).

O preconceito tende a se traduzir na negação da identidade étnica do indígena


quando este desfaz o viés falso da perspectiva do preconceituoso, isto é, para manter o
preconceito o não-indígena não aceita que o outro seja indígena ao vê-lo dominar, por vezes
com mais propriedade, as mesmas habilidades, os mesmos recursos que ele. Avançando na
reflexão, os indígenas analisam onde se assenta o preconceito e reforçam a perspectiva contra-
hegemônica, que apresentamos no terceiro capítulo, propondo a pluralidade, a igualdade com
respeito à diversidade sociocultural:
Para ser índia não é preciso andar pelada, não é preciso andar pintada. Veja como
o branco é preconceituoso: quando ele encontra uma pessoa que discute com ele, de
igual pra igual, que detém um pouco deste conhecimento - desta cultura que nós
precisamos até por uma questão de defesa mesmo, não só como indígena mas como
qualquer cidadão do mundo, ele precisa deste conhecimento para sua auto-
sobrevivência - ele diz: “ah, mas você não é mais índia, índio é aquele que está lá
na aldeia, tipo assim: aquele que não fala português, aquele que não entende o que
eu digo, eu posso ir lá e tirar o que eu quiser”. [...] O preconceito é muito grande.
Eu me revolto com isso porque o Brasil é um país que não dá nem para definir, é
formado por várias etnias: negros, índios, brancos, amarelos, enfim, uma
pluralidade cultural enorme e infelizmente o nosso país, após 500 anos, ainda
201

mantém o preconceito e por conta disso, várias pessoas, vários indígenas, tem
vergonha do que são, por conta do preconceito que sofrem (Maria Vanísia
Poyanáwa, 19 fev. 2003).
A valorização cultural na maioria das vezes não acontece. O Estado brasileiro não
faz um trabalho de resgate, de revalorização, para fazer com que a sociedade
branca entenda as culturas e não discriminem nem o índio, nem o negro, nem o
ribeirinho e nem o seringueiro. Somos discriminados porque a sociedade
envolvente, não sabe, não conhece a cultura de cada um destes povos diferentes.
Então se todos nós, os indígenas, os órgãos públicos, escolas, universidades e o
próprio poder público fizessem um trabalho de conscientização nós não teríamos
esta discriminação (Chola Manchinery, 07 mar. 2003).
Queira ou não, o preconceito existe. Não vamos conseguir extinguir 100% do
preconceito. Vai existir sempre porque os povos indígenas têm um modo de viver
totalmente diferente. O estranhamento com o índio acontece em qualquer espaço da
sociedade regional, acontece nos órgãos públicos, repartições, com vizinhos, são
tratados como se não tivessem valor ou se ao tocar no índio pudesse se ferir ou se
sujar (Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
A liberdade e a dignidade não estão separadas uma da outra, há a diferença de
dinheiro que faz com que algumas pessoas se sintam superiores, esta questão do
acúmulo de bens às vezes dá a entender que ele é maior, que ele é melhor e aí você
passa a achar que o seu vizinho, o seu próximo não tenha este mesmo valor. As
aldeias indígenas, povos indígenas tem o mesmo direito de estar bem de saúde, de
estar bem de educação, de estar bem materialmente e ter o poder de adquirir o bem-
estar dele com todos os benefícios, não importa onde, na aldeia, onde quer que ele
esteja. O indígena tem os mesmos direitos mas esta idéia não assenta bem pra muita
gente porque entendem que pelo fato de ser um povo que fala uma língua diferente,
pelo fato de não estar inserido no meio social [dominante] ele tenha que ser uma
pessoa pobre em conhecimentos, pobre materialmente, pobre de formação, pobre de
toda sorte, deva estar excluído. É uma grande discriminação que vem do passado e
que continua com algumas diferenças. É aí que a gente tem que trabalhar muito
para diminuir e para os outros começarem a entender que nós somos ricos
(Antonio Apurinã, 21 fev. 2003).

Enquanto não houver políticas mais efetivas para desconstruir os preconceitos,


os confrontos entre os diferentes deixam saldos de violência e outros problemas resultantes da
pressão da “civilização” sobre os indígenas. As iniciativas existentes, para diminuir os
confrontos, são tomadas pelos próprios indígenas. Entretanto, em direção oposta, há uma
parcela considerável de indígenas, que buscam, exclusivamente, mecanismos de
sobrevivência não-indígena: o assalariamento, tal como nos referimos no segundo capítulo.
Dificulta, ainda mais, o trabalho de desconstrução do preconceito, a persistência de indígenas
pedindo esmolas, problemas abordados pelas lideranças:
de 1994 até 2002, houve 10 registros envolvendo morte e espancamentos de índios
no Acre. Entre os mais graves está o assassinato do índio José Pedro Manchinery,
espancado e esfaqueado em Sena Madureira. No mesmo episódio, outros dois foram
duramente torturados. [...] confrontos entre índios e brancos [ocorrem] pelas
diferenças culturais de cada povo e pelo confronto que elas provocam entre brancos
e índios, estamos ensinando a nossos índios as formas de vivência fora das aldeias -
como são as relações sociais na cidade e como proceder diante das mais diversas
situações. [a preocupação] é com o aumento da discriminação, principalmente nos
municípios. No município de Feijó, em 96, por exemplo, o índio Silvio Shanenawa
foi morto a pauladas, por puro racismo (Sebastião Manchinery, 02 set. 2002).
202

Aqui na minha aldeia tem muitas crianças indígenas, filhos de índios com índias que
não falam nada sobre a nossa língua e nem conhecem a história do nosso povo, só
conhecem um pouco da língua portuguesa. Mas o culpado disto tudo, eu penso que
não foram os pais destas crianças porque, mesmo que eles tentassem ensinar para
os filhos deles, os cariús ficavam mangando, dizendo assim: “Olha ali o caboclo
cortando gíria” e eles ficavam todos sorrindo olhando para o índio. Aí o índio
ficava com vergonha, e não falava mais na sua língua, só falava na língua
portuguesa, por isso que nós Arara já estamos quase perdendo a nossa língua. Mas
eu tenho muita fé em Deus que eu como professor da minha comunidade vou dar um
avanço para o meu povo (Edílson Arara, In: YUIMAK , 2000).
Nas comemorações anteriores da Semana do Índio a única preocupação era
mostrar as danças, o artesanato, enfim, a cultura indígena, dando a falsa impressão
de que tudo estava bem com as comunidades indígenas mas, agora, os índios
querem mais, querem planejamento para melhorar a vida nas aldeias. [...] hoje o
massacre continua de maneira mais velada, "matando a raiz, que é nossa cultura".
Um dos ângulos deste massacre [está] na introdução de novas religiões no seio dos
povos indígenas (Francisco Avelino Apurinã, 19 abr. 2002).
O preconceito existente entre as pessoas comuns contra os índios e não é culpa
propriamente deles, mas vêm dos registros históricos feitos pela classe dominante
ao longo da História do Brasil. Há cerca de 10, 15 anos as coisas começaram a
melhorar, graças ao esforço dos índios e de entidades que abraçaram a causa
indígena (Zezinho Kaxarari, 19 abr. 2002).
ninguém nunca é 100%, tanto o índio como o não-índio, [...] sobre os índios
pedindo esmolas [...] aqui no Acre é eles que querem, não é porque são miseráveis,
não é porque eles estão sem terra, tem terra sim e até digo, isso foi um vício que
eles viram certamente nos próprios brancos pedindo esmolas e [...] acharam um
jeito de conseguir um dinheiro mais fácil, mas que não é cultura indígena, não é
cultura de ninguém estar pedindo esmolas, porque a gente sabe, nós estamos numa
terra muito rica (Manoel Gomes Kaxinawá, programa AC-TV, TV Acre, 07 jun.
2003).
A gente não trabalha pelo interesse financeiro. A gente trabalha para defender o
território, para defender a cultura, a ciência do povo, mas eu vejo uma situação
muito complicada em algumas comunidades, as pessoas querem aposentar todos os
velhos, acham que aposentar os velhos vai resolver o problema deles. O mesmo
acontece com os professores, em algumas comunidades, as lideranças estão
defendendo que os seus filhos sejam professores porque ali vai ter uma renda, um
salário, complicando, atrapalhando a organização. Se ele trabalha para isso ele
não tem consciência de que não é o salário que vai resolver o problema dele.
Pensam que tudo lá de fora vai resolver o problema. Em algumas regiões existe
muita influência político-partidária e algumas lideranças se aproveitam disso para
contratar seus filhos e com este contrato eles podem estar trazendo um problema a
mais para a comunidade (Isaac Pianko Ashaninka, 03 mai. 2002).

2 O papel da educação escolar na perspectiva dos indígenas

A educação escolar, apesar das reservas, é defendida, sobretudo como


instrumento de conscientização, como recurso que auxilia na condução de projetos de
sustentabilidade das comunidades, administração das instituições indígenas criadas pós-
contato e, substancialmente, como recurso estratégico para a resistência e implementação de
projetos de condições melhores de bem viver no futuro.
Num primeiro bloco, apresentamos falas que analisam a educação indígena e
203

sua diferença da educação escolar; os conflitos, a necessidade, o “querer escola” e o processo


de inserção da escola, nas comunidades indígenas da região:
A escola, a escrita e a leitura, por um lado, para a comunidade indígena foi um
choque. Porque quando ela chega para a comunidade é uma coisa nova uma vez
que o “indiozinho” tinha e tem a sua própria educação, tem suas formas próprias
de aprender, e a comunidade de ensinar. É uma educação totalmente diferente da
que a escola da sociedade dominante trouxe para a comunidade indígena. Porque a
educação da comunidade é através das falas, do ouvir, do ver, do fazer esta é uma
educação normal, uma educação cultural. Quando a escola chega para ampliar o
conhecimento, traz o saber da sociedade regional, por este lado foi importante, por
outro lado, trouxe prejuízo, prejuízo porque quando o índio começou a estudar e a
escrever ele começa a esquecer a educação que é dada em casa. O período que é
para ele estar aprendendo com a sua mãe com o seu pai, ele está na escola,
escrevendo, lendo. Vai servir para ele porque vai obter conhecimento da sociedade
regional, de como viver nela, isto vai ser importante, conhecer as leis, as regras,
mas por outro lado, quebram um pouco a força da cultura em termos educacionais
(Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
Eu passei a ser professor a partir de uma exigência das lideranças, quando
passaram a cobrar representatividade [...] quando a terra indígena em que eu
morava foi demarcada [...] Houve uma necessidade de a gente acompanhar isso em
termos de escrita e matemática, fazer contas. A gente estava trabalhando com a
cooperativa, com vendas e compras. O pessoal começou a pressionar que queria ter
uma escola, queria ter um professor formado, que tivesse um conhecimento da
escrita e, principalmente, da matemática, que era uma situação que a gente
precisava mesmo, pois tinha que pesar borracha, fazer os cálculos, contratos e tudo
isso. [...] o que eu queria era ter o conhecimento da questão da matemática, pois,
por mais que eu não soubesse como colocar os números e fazer aquelas somas no
papel, eu mentalmente sabia quanto eu tinha produzido e quanto eu tinha
comprado. Quando eu fazia o acerto de contas na minha cabeça, eu tinha saldo,
mas na ponta do lápis do seringueiro eu ficava devendo: isso me deixava muito
chateado e foi por isso que eu me ofereci para acompanhar este curso [curso de
formação de professores da CPI-AC] (Joaquim Paulo Maná Kaxinawá In:
GRUPIONI, 2003, p. 156).
Eu vou falar só sobre a minha comunidade. Eu já fiz muita pesquisa, acompanhei
desde o começo, porque eu fui o primeiro professor da nossa escola [Samuel
Piyãko] Quando a gente começou a dar aula o objetivo era dominar a escrita, a
matemática, para se libertar das mãos dos patrões, para administrar a cooperativa,
fazer negócios, as pessoas tinham muito isso: tem que aprender o português e eu ia
de acordo com o que a comunidade pensava, ou decidia, como até hoje. [...] Eu
comecei a jogar na reunião: olha, se a gente colocar as crianças todos os dias na
escola, ele não vai saber plantar roça, ele não vai saber pegar um animal, não vai
saber pescar, ele não vai saber cantar uma música na festa tradicional, porque a
nossa festa, ela coincide com os horários de aula, não tem hora para acontecer as
festas, os rituais. E acabou que a comunidade começou a entender. Depois de um
certo tempo começaram a falar que tem que ter a aula mas tem que respeitar a
cultura e a língua também. [...] Para nós a escrita ainda não é necessidade para
todas as pessoas, ela é uma base... no momento algumas pessoas dominam a escrita
para fazer o contato [são] os nossos representantes para outros povos, do povo
Ashaninka para os brasileiros, para fazer este diálogo, para defender o território,
para defender o entorno, [nas relações] com aquelas pessoas que estão no entorno,
[para] nos comunicar, para negociar os produtos (Isaac Pianko Ashaninka, 03 mai.
2002).
A escola é uma arma do governo fazendo com que o indivíduo aprenda a ler,
aprenda a escrever para que obedeça as Leis que regem o país. Para nós, a escola
veio praticamente nos integrar à sociedade nacional, mas, com mais reflexão a
gente percebeu que poderia dar a volta por cima com uma educação a partir da
comunidade. Em vez de nos integrar teríamos como aproveitar a escola dentro da
204

comunidade, para ter o conhecimento de como funciona a máquina, a política


dentro do governo e a partir disso começar participar junto e defender os interesses
de nossa comunidade. A escola fez com que a gente enxergasse como funciona a
política do Estado brasileiro, entender as Leis, como funciona a Lei, o direito a
terra, à sobrevivência, de que forma podemos manter a economia dentro da
comunidade, como podemos atuar dentro da sociedade brasileira e como podemos
reivindicar e defender nossos direitos, os interesses das comunidades. Então a
escola foi muito importante para nós. Neste caso, em vez de só nos prejudicar,
também nos ajudou, mas foi com a conquista da interculturalidade na educação,
onde passamos a estudar a cultura da sociedade envolvente e ter a oportunidade de
estudar a nossa própria cultura (Auricélio Brandão Shanenawa, 12 jun. 2003).

A educação, a partir da comunidade, da cultura do povo e os argumentos pela


educação diferenciada dependem da transformação do discurso em prática. Não se trata de
integrar mundos diferentes, mas de considerar as diferenças e pôr ênfase em valores próprios
do povo. Enfim, apresentamos várias falas que revelam o “processo em construção” da escola
indígena e algumas projeções da qualidade que se quer da escola:
A educação tradicional e a escola são dois amigos que sempre andam juntos, um
aprende com o outro, sem prejudicar os ensinamentos de cada um. Os velhos são a
escola viva que fala todo dia e toda hora sem parar, são arquivos de história, são os
geógrafos, são os cientistas dentro do seu mundo de conhecimento. A escola precisa
dessa parceria de trabalho para ter o que ensinar. A educação tradicional diz à
escola que é importante manter os costumes tradicionais, como língua, as festas, os
rituais, as crenças e as cantorias do povo. A escola veio para dizer que tudo que a
educação tradicional oferece é verdadeiro para a identidade de um povo, para esse
povo continuar vivendo onde estiver. A escola veio também, para ajudar a registrar,
na escrita, a língua para a futura geração. A escola garante que o povo Yawanawá
vai continuar vivendo como índio, sem perder de vista que a sociedade do povo
branco é diferente da nossa. [...] Educação diferenciada nas escolas indígenas
significa mostrar os dois mundos, deixar claro que um não é igual ao outro. A
escola diferenciada nas aldeias indígenas significa o fortalecimento das nossas
tradições e costumes para continuarmos com vida, sem destruir as belezas que a
natureza nos oferece (Fernando Luiz Yawanawá, In: KAXINAWÁ, 2002, p.
209-210).
Eu desenho muito. Eu vejo que as pessoas conversam através, é como se estivessem
produzindo um texto. Toda vez que eu peço para algum aluno desenhar, eu peço
para ele escrever um texto sobre aquele desenho. Eu não lembro mais como o
branco dá aula, eu já estudei em escola de branco durante um ano, mas não lembro
de quase nada, só sei que é muito diferente. Então eu acho que a educação tem que
ser voltada para nossa realidade, isso é educação de qualidade: cada povo estudar
o que é seu (Isaac Pianko Ashaninka, In: KAXINAWÁ, 2002, p. 188).
Na minha escola, Samuel Piyãko, a aula funciona quatro dias por semana. [...] Os
dias de quarta-feira, sábado e domingo ficam para os filhos acompanharem os pais
nas caçadas, nas pescarias, nas coletas de frutas, nos plantios de roçados e nas
festas culturais do nosso povo Ashaninka [...] para aprender os conhecimentos do
nosso mundo, o costume, que só é passado na oralidade e na prática. [...] Os meses
de férias, são os meses mais apreciados por nós Ashaninka. Esse é o momento que
todos saem para acampar nas praias do rio e é o momento em que mais a criança
aprende sobre a nossa relação com a natureza: floresta, água e animais, porque os
pais contam muitas histórias sobre fatos acontecidos e ensinam quais são os
cuidados que os filhos tem que ter, os tipos de alimentos que podem comer, por
onde tem que caminhar para não serem pegos por um animal ou inseto, ensinam as
medicinas e como fazer um tapiri para dormir. Também nessa época são praticadas
outras atividades culturais, e todas elas são consideradas por nós, professores
educadores, por isso falamos que é “ensino diferenciado”. Nas aulas, são ensinadas
205

algumas matérias, como matemática, ciência, geografia, arte, história, língua


indígena e língua portuguesa. A matéria mais importante é a língua indígena e as
mais ensinadas são matemática e ciências. Todos os conteúdos são do mundo
Ashaninka, mesmo a aula sendo em língua portuguesa. A língua indígena é a mais
importante, porque é com ela que nos comunicamos sempre, é através dela que
repassamos nossos conhecimentos, é ela que hoje identifica e dá origem ao povo
Ashaninka com sua maneira de viver (Isaac Pianko Ashaninka, In: KAXINAWÁ,
2002, p. 204-205).
A educação só vai ser diferenciada a partir do momento que tiver o reconhecimento
na prática. Quando cada povo tiver o seu currículo escolar, calendário próprio,
trabalho do professor na escola, quando tiver seus materiais didáticos elaborados
na própria língua e a própria comunidade definir de que forma será ensinado,
avaliado. Quando isso estiver acontecendo na prática aí então a educação indígena
será diferenciada. Enquanto não acontece, na prática não é diferenciada.
Teoricamente ela já existe, mas na prática poucos são os que estão fazendo. Há
ainda algumas resistências mas, as comunidades que estão sensíveis do que é, estão
fazendo educação diferenciada. Mas algumas não são, estão enfrentando uma série
de problemas por dizerem que a educação diferenciada é inferior à fundamental, Na
verdade não é inferior porque o ensino básico na comunidade apenas acrescenta
mais matérias, estuda a cultura, a língua, a música a arte... como estuda mais
matérias isto significa que ela é superior. Tudo isso vai acontecer quando o próprio
Estado der condições para que possa ser feito, enquanto não, ela está em discussão.
Na prática ela não está acontecendo, teoricamente ela já existe. Esperamos que
venha acontecer com a ajuda dos nossos parceiros, principalmente a universidade
(Auricélio Brandão Shanenawa, 12 jun. 2003).
Hoje a grande luta do movimento é fazer educação de qualidade nas comunidades.
Nós povos indígenas queremos educação diferenciada que não é a cor da letra que
o professor vai escrever no quadro. Educação diferenciada não é uma letra
diferente, é incluir os costumes as crenças e as tradições dos Povos indígenas no
currículo das escolas. A gente já está cansado de deixar algumas pessoas fazerem
do modo deles e não consultar nós, povos indígenas, acho que nós temos que ter
determinação e aceitação daquilo que a gente propõe perante qualquer trabalho
que vai beneficiar os Povos Indígenas. É preciso que o professor indígena consiga
concluir o ensino médio e partir para uma faculdade, deste modo nós
conseguiremos implantar uma escola de 1º e 2º graus dentro das terras indígenas,
para evitar a saída de estudantes indígenas de suas terras e quando chega na
cidade, além da discriminação ele não tem condições de se manter estudando, vai
trabalhar como braçal e finda não concluindo seus estudos (Chola Manchinery, 07
mar. 2003).
Educação diferenciada é considerar exatamente aquilo que é a população indígena
(Francisco Pianko Ashaninka, 30 abr. 2003).
Para se ter uma educação diferenciada, primeiro a comunidade tem que entender o
que é uma educação diferenciada e ajudar a organizar. Segundo, é preparar o
professor que vai dar a educação diferenciada para que ela venha a acontecer de
fato. Terceiro, o Estado reconhecer a educação diferenciada, aí sim o processo
começa a se diferenciar. Com um ensino diferente do branco, não pode ser entre
quatro paredes, só no quadro de giz, porque é também oral, prático, de pesquisa
dentro da comunidade, só depois disso é que vem a escrita, a leitura, porque então
já tem a educação na cultura influenciando no meio e até mesmo na frente. O
calendário, o currículo não pode ser nem sequer por povo, porque mesmo sendo
povo a organização é diferente de comunidade para comunidade. A questão dos
plantios, da colheita, da caça, pesca, das festas culturais, tudo deve ser respeitado.
Também as questões das reuniões das decisões comunitárias, tudo tem que ser
respeitado, como funciona naturalmente na comunidade. Se tudo isso for
reconhecido legalmente o processo já estará bem colocado, só falta os educadores
serem formados para dar a educação assim como a comunidade deseja (Vaulino
Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
206

Apesar das múltiplas feições assumidas pela escola, quando esta é fruto de
reflexão nas comunidades, há uma característica recorrente: tende a constituir-se num espaço
de interculturalidade:
Quando é um assunto que eu penso de fazer, que não seja daquela comunidade, mas
só para mostrar outras situações eu pego o material da secretaria, que são textos
muito bons, mas diferentes da realidade que a gente vive nas aldeias. E quando eu
quero chamar a atenção, eu trabalho na cartilha que a gente produz e que tem tudo
a ver com a situação daquele povo. Até outro dia, nós professores estávamos
fazendo uma avaliação dos livros que a gente vinha trabalhando, por exemplo,
alguns livros de língua portuguesa, distribuídos pela secretaria, têm muito a ver
com a gramática, já o livro “Aprendendo português na Escola da Floresta”, tem
essa situação que a gente convive, como tirar um documento, se cumprimentar, ter
diálogo, coisas bem diferentes do livro que a gente conseguiu na secretaria. [...]
Esse material [livro didático indígena] é mais para uma reflexão: “E tem acontecido
isso, por que? Será que não é possível a gente mudar?”, também vem a questão da
demarcação da terra, se nós pensarmos assim: “a terra está demarcada, e há dez
anos atrás, houve isso. E daqui mais dez, vai acontecer aquilo. E daqui cem anos,
como é que vai estar?” Existe alguns pontos que chamam a nossa atenção, por
exemplo, “em 1960, começou assim: por aqui existia queixada, macaco, esse lago
estava dando peixe, e já faz dez anos, e o lago não está dando mais peixe, o que
aconteceu? As pessoas aumentaram, teve muita tarrafa, começaram a usar muito
tingui, começaram a colocar leite de assacu. O que isso traz? Benefício ou
problema?” Isso são coisas que a gente tem visto muito nesses livros que estão
sendo feitos por nós, além da gente poder explicar com mais detalhes. Já os livros
de português da secretaria, não. A gente só pode trabalhar com a gramática, como
escrever uma palavra com dos ss, ou se é com z, ou c com cedilha, a questão dos
fonemas, então são coisas assim. Mas, se você pegar um texto nosso, aí vai ter
sentido para aquela comunidade (Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, In: YUIMAK ,
mar. 2002).
No meu povo a educação intercultural está acontecendo. Hoje conseguimos
incentivar os mais velhos e me orgulho em dizer que meu povo domina sua própria
música, Shanenawa, a maioria dos jovens dominam a própria língua, algumas
histórias, os mitos Shanenawa. Já os Asheninka e os Madijá nem se fala, vivem
dentro de sua própria cultura, tem sua cultura bem forte, enraizada mesmo. [...] Na
comunidade Shanenawa a escola é intercultural porque ensina a língua materna, se
fala da cultura, da história, da música e também dá o ensino fundamental, a
educação básica. Portanto, é bilíngüe e intercultural (Auricélio Brandão
Shanenawa, 12 jun. 2003).
A nossa escola é intercultural. Na escola está se falando na língua materna e o
português. Entendemos que também a saúde, as organizações e as próprias
comunidades serão culturais e interculturais (Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá,
12 jun. 2003).

Os avanços na reflexão sobre o papel da escola, entre os indígenas, tende a


levar à explicitação de objetivos da educação escolar nas comunidades:
Nosso objetivo de professor na comunidade é alfabetizar os alunos para que eles
não sejam enganados como eram nossos antepassados que trabalhavam para os
brancos e foram explorados, quase escravizados. Não queremos ser enganados no
comércio e também não é só ler e escrever é buscar nossos direitos que está na lei
mas longe da prática. Estudar para ajudar a sua própria comunidade, participando
da organização (Professores indígenas, In: Relatório do I Encontro, 1997).
[A escola] Ajuda para esse conhecimento que nós temos que ter agora, nessa fase
de você ter esse domínio da escrita, nos dois modos da escrita, que é a língua
indígena e a língua portuguesa e a matemática. Futuramente é este conhecimento
207

que eles vão ter que dominar para sobreviver nessa situação da convivência que
aconteceu ao longo dos anos do contato. [...] A escola na aldeia não está lá para
atrapalhar, está lá para ajudar. [...] A nossa preocupação não é só a questão de dar
formação desse conhecimento ocidental mas de dar a formação de dois
conhecimentos: o conhecimento da escrita e o conhecimento da cultura do povo
dele também. O aluno tem que praticar as duas coisas: ele vai ter que ler e escrever,
ele vai ter que saber pescar, caçar e construir seus materiais ou os seus artesanatos,
para que ele não fique dependendo dos outros (Joaquim Paulo Maná Kaxinawá In:
GRUPIONI, 2003, p. 157).
Não vai ser tão rápido mas nós vamos chegar a um dia em que teremos uma escola
diferenciada, assim como nós desejamos nas nossas comunidades. Vai ser um
processo lento mas um dia vamos atingir o objetivo que desejamos (Vaulino Nunes
Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).

A relevância da formação dos professores constitui consenso entre os


indígenas, condição para melhorar a qualidade do ensino. Formação que não se esgota e não
pode dispensar o direcionamento para especificidade do trabalho do professor indígena:
Nossa formação, enquanto professores, está sendo refletida de acordo com a
situação das comunidades. Quais são os problemas que já tem, o que existe de
cultura, o que está bem vivo e o que precisa melhorar, a nossa discussão e a nossa
formação vêm sendo em cima destes problemas, é trazer estes problemas para uma
discussão, fazer estes professores refletir sobre esta situação. Então eu acho que daí
é que você tem a questão da formação e a consciência do que você está passando.
Por isso que eu falo, não adianta você criar um outro modo de educação para os
professores indígenas. Inventar uma outra coisa. A educação ela já existe antes de
nós, o nosso conhecimento já existe antes de nós, apesar do contato com outra
sociedade, a gente também tem a nossa maneira de pensar e por isso que a gente
considera que o ponto importante no momento é se pensar na continuidade desta
nossa formação, porque se a gente cria uma outra maneira, uma outra forma, um
outro espaço, um outro currículo vai se contrapor a aquilo que a gente está
querendo. [...] Para ser professor indígena é preciso, pelo menos, falar a língua,
conhecer, mesmo que seja um povo que já não domine a língua [indígena], pelo
menos ter esta consciência de que o povo dele é um ponto de referência para a
formação dele. As pessoas mais velhas seriam um ponto de referência de
informação para a formação deste professor (Isaac Pianko Ashaninka, 03 mai.
2002).
O estudo, a formação que recebemos nos ajudou bastante a trabalhar pra nossa
própria economia, incentivou que nós pudéssemos, como professores, voltar na
nossa aldeia e fazer um trabalho um trabalho que não destruísse a cultura indígena
e também conhecesse os dois lados, continuando como povo indígena (Fernando
Yawanawá In: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE, 2001, p. 43).
Tem muito desconhecimento da legislação, que é uma responsabilidade dos
Estados: eles não estão fazendo a formação dos professores bilíngües, dos
professores pesquisadores. [...] Hoje mesmo a gente estava comentando que nos
próprios cursos de formação dos professores indígenas, nos Estados, tem que
colocar que estude a legislação, para que eles fiquem informados e possam cobrar.
Se a gente não tiver esse conhecimento, a gente acaba engolindo as respostas que
os técnicos passam para a gente (Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, In: GRUPIONI,
2003, p. 161).

O processo de construção da escola indígena depende da definição de matérias


de ensino e produção de materiais específicos. Tarefa que se torna complexa, tal como
assinalamos no capítulo anterior, quando se quer transpor para escola a cosmovisão indígena:
208

A gente acabou fazendo algumas coletas em conjunto: todos os professores tinham o


mesmo conhecimento, tinham passado pela mesma situação do seu pai, do seu tio,
do seu avô, de ter trabalhado num seringal, como peão, como seringueiro, como
diarista. Isso que a gente saiu nomeando que era no tempo do cativeiro. No livro a
gente fala de outros momentos dos povos indígenas [...] Eu gosto de trabalhar com
esse material para trazer as novidades que aconteceram, porque hoje nós tivemos
essa conquista de ter a terra demarcada, ter a escola, agente de saúde, agente
florestal e a questão da produção. Muita coisa mudou. Não tem mais alguém que
está mandando, agora a gente está fazendo para a comunidade. Esses são
momentos que a gente traz da história e que também serve para você refletir sobre o
futuro, ver o passado para refletir o futuro. Aquele material ficou muito legal para a
gente estar trabalhando nas escolas, com conscientização. [...] [Referindo-se à
transcrição e utilização dos mitos na escola] Já deu confusão, um velho, Seu Emídio
[...] eu contei para ele uma história que já estava escrita. Ele disse: “Não, isso está
errado porque quando chega nessa parte, tem ainda outro trecho” [...] acredito que
esses 11 mitos que eu peguei, essas 11 histórias que eu peguei com ele, se eu levasse
para uma outra pessoa que conhecesse a mesma história ia ter uma outra versão.
Assim, o primeiro trabalho que nós fizemos de recolher as histórias tinha essa idéia
que era antes de publicar, que todo mundo pudesse levar uma cópia e lesse para os
mais velhos. Aí naquele trecho que ele achasse que faltava, que ele dissesse “Aí não
sei o quê”, “Aqui tem um trecho”, “Aqui falta isso”, a gente fosse completando.
Mas foi difícil a gente fazer isso, e como nós estávamos muito ansiosos que o nosso
trabalho fosse publicado, a gente acabou publicando. Mas fizemos uma combinação
de que nós iríamos registrando as diferenças e quem sabe futuramente a gente
poderia publicar um novo livro, com esses outros trechos, completando a primeira
versão (Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, In: GRUPIONI, 2003, p. 159-160).

As dificuldades para alcançar a educação, escolar que satisfaça os projetos das


comunidades, são postas nas limitações na política educacional, ou seja, há uma enorme
dificuldade na viabilização prática daquilo que foi estabelecido em lei, refletindo, por vezes,
em práticas empobrecidas, privando o indígena do acesso aos saberes mais elaborados. As
afirmações abaixo também confirmam o pleito do movimento indígena nacional, tal como
apresentamos no terceiro capítulo, por sistemas próprios de educação escolar, descolado das
amarras do sistema nacional, homogeneizante:
Acredito hoje que na área da educação a gente tenha que ter, não apenas um
disfarce de que esteja sendo feito, mas garantir a qualidade do que se está
ensinando. O que está sendo ensinado vai repercutir no futuro das pessoas.
Geralmente estão tomando conhecimento de “enes” coisas que poderiam estar
muito mais avançado do que está hoje. Apesar da legislação dizer como deve ser
tratada a educação e tudo mais, mesmo assim ela se encontra num estado muito
complicado porque o Estado brasileiro não tem uma política definida com relação à
educação, principalmente indígena. De 1988 para cá já tem muito tempo e vemos a
atuação do governo patinando muito nesta questão da educação indígena. Eu tenho
medo do que vai dar porque antes da atual Constituição a educação era tratada
pela Funai, depois disso, as coisas foram sendo terceirizadas, passando para outros
ministérios e para os estados. Tenho medo de que um dia a gente não tenha um
ponto de reverência, de acompanhamento mais central. Na minha opinião, gostaria
que a educação ficasse no âmbito federal, ficando as universidades como
responsáveis porque nelas têm técnicos qualificados. Eu acredito que a delegação
para os estados foi uma escolha muito ruim, via universidade seria melhor porque é
uma extensão do governo federal. Se fossem as universidades, estaríamos
comprometendo os técnicos, pedagogos, antropólogos, lingüistas para poder
elaborar uma educação mais eficiente como realmente precisam os povos
indígenas. Temo que os estados passem para os municípios e se torne uma coisa
209

muito ruim, pior do que já existe. Defendo a idéia de que o índio tenha um único
órgão como referência para definir a política de educação (Antonio Apurinã, 21
fev. 2003).
Tenho duas opiniões com relação ao sistema educacional para os povos indígenas.
Uma, eu concordo com o sistema de educação diferenciada desde que a educação
diferenciada não seja inferior. Ou seja, uma educação diferenciada acrescentando
outras matérias no currículo convencional, por exemplo, poderia retirar religião
[ensino religioso] e colocar a espiritualidade. Acrescentar matérias como o idioma
de cada povo. A partir daí fazer a diferença para cada escola, dando uma educação
com mais segurança, uma educação que tenha resultados mais concretos para os
povos indígenas. A outra questão, que me parece fundamental, são os programas
para ingresso de estudantes indígenas em uma universidade. Eu acho que é um
direito de qualquer um mas tem suas complicações também, principalmente se
tender para um sistema muito específico. Um exemplo é o que acontece no Mato
Grosso, as pessoas, os parentes que foram fazer o curso eles estudaram de acordo
com o manual do programa de educação do MEC enquanto que os demais estudam
outras matérias, assim eles já entram em situação inferior, ele já entra
impossibilitado de exercer sua função com qualidade. Eu tenho dito que a educação
tem que ser feita de acordo com o sistema nacional, modificado de acordo com o
entendimento de cada povo, é o que a gente vê como melhor resultado para o
atendimento de cada povo. Tomando como exemplo outros países como o Equador,
existem muitos profissionais indígenas formados em programas interculturais
bilíngüe que são nada mais, nada menos, que programas, cursinhos dados para
índios e não passa disso. A gente gasta todos os recursos em consultoria, em
alimentação, transporte, em materiais e em publicações mas de fato, quando estes
profissionais vão advogar em determinado tribunal, nem sequer advogam porque
não têm as qualidades que deveriam ter. Aí você pode dizer: “no Equador tem dois
ministros indígenas”. Os ministros não foram formados por este sistema. Então, são
fatores que pesam no processo do sistema educacional indígena. Eu tenho dito,
inclusive discuti com os professores indígenas algumas vezes sobre esta
possibilidade, só que na época, lamentavelmente, eles me interpretaram de maneira
equivocada. Entendo o esforço que eles tem para ministrar outros conhecimentos,
mas também entendo que estes conhecimentos não são suficientes para o que a
gente espera. De fato é um processo novo, mas o que a gente está definindo nos
currículos normais, nos programas, não atende a expectativa que a gente espera,
então, estou falando de um programa que venha atender esta demanda. Na prática
não se conseguiu alcançar este objetivo da educação diferenciada (Sebastião
Manchinery, 18 abr. 2003).

Apesar das ressalvas, das dificuldades, do pouco empenho dos poderes


públicos, são inegáveis as conquistas, os avanços obtidos na educação escolar,
principalmente, se for considerado o fato de até recentemente este serviço ter sido negado aos
indígenas. Entretanto, não é uma questão comum para todos. Tal como retratamos no quarto
capítulo, há uma realidade bastante diversa e conseqüente diversidade de interesses e
necessidades:
[...] Agora a gente está tentando fazer nossos projetos, mostrando o conteúdo que a
gente vai ensinar na área de português, na área de língua indígena, e os
conhecimentos tradicionais que a escola tem que envolver. A escola não está lá
para atrapalhar, mas está lá para incentivar. Então eu, particularmente, sinto que a
escola está lá para ajudar. Eu fiz meu projeto político-pedagógico mostrando que o
aluno tem toda a liberdade de pedir para o professor e para a escola de ter tempo
para fazer o seu trabalho, e que ele não fique pegando falta por isso. Tem
conhecimento que não é a escola que vai poder dar para ele: é só a comunidade, só
o pai dele, só a família dele (Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, In: GRUPIONI,
2003, p. 157).
210

A escrita é usada, hoje, para estudar, para educar nossos parentes, filhos,
sobrinhos, e também para mandar carta para nossos parentes e para fazer alguns
documentos que são mandados para as autoridades (deputado, governador,
senador, prefeito e vereadores) (Paulo Lopes Siã Kaxinawá, In: KAXINAWÁ,
2002, p. 181).
Hoje em dia nós estamos trabalhando, temos professor índio. Primeiro nós
dependíamos muito do branco, professor branco, saúde do branco. Mas depois que
estamos vendo, estudando aqui e acolá, parente aprendeu a ensinar aos meninos.
Então primeiro era tudo do branco, mas hoje em dia é nosso. Índio mandou os
parentes para a escola, prefeitura e estado ajudam a escola, para cada comunidade.
Cada comunidade tem agente de saúde e cada comunidade tem educação. E o índio
está lutando para vencer, já não é mais dependente do branco. Agora é o índio
mesmo (Francisco Pancho Lopes In: COMISSÃO Pró-índio do Acre, 2001, p. 30).
Hoje estamos debatendo a universidade mas também a educação infantil e a
educação de adultos, debatendo como nos interessa estes níveis de educação e a
como estudar, ensinar e conhecer melhor. Nós estamos falando o que nós queremos
na educação indígena (Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
Eu vejo que as pessoas hoje não estão muito interessadas neste momento da escrita,
até mesmo os adultos. Ainda não existe uma preocupação, nem interesse mesmo, de
se desenvolver nesse mundo da escrita. Até porque essa não é mesmo a necessidade
aqui da comunidade. A necessidade da população aqui é outra. Tem que ter uma
pessoa que saiba ler, escrever, para que represente o nosso mundo lá fora (Isaac
Pianko Ashaninka, In: KAXINAWÁ, 2002, p. 187).

As falas, mais uma vez, refletem os contextos diferentes: do local de onde se


fala, ainda assim, mesmo nas comunidades mais autônomas na cultura do povo, voltadas para
a manutenção das orientações socioculturais próprias, a escola tem importância política no
cotidiano destas comunidades indígenas, exemplificado no trabalho de conscientização que o
professor e a escola podem promover na comunidade. Há, também, a certeza de que a escola
não é redentora. Ela, por si só, não constitui a solução para os problemas das comunidades
indígenas, ou seja, as falas refletem a consciência da real dimensão da escola entre as
instituições da comunidade, que deve ser vista com reservas. Entretanto, há sempre a
preocupação em manter as ressalvas de que a escola, no contexto atual das comunidades
indígenas, contribui, dando suporte no conjunto de ações pelo reestabelecimento da
dignidade, do bem viver; um “recurso” dentre outros, favorável nas lutas pela emancipação
sociocultural:
No começo do meu trabalho, as pessoas falavam: “não precisa ensinar a língua
indígena porque as pessoas já sabem falar a língua indígena. Não precisa estar
dizendo pra ir fazer caiçuma [bebida fermentada produzida a partir da macaxeira]”.
E eu ficava imaginando uma estratégia para fazer com que as pessoas entendessem
o porquê dessa minha preocupação. As pessoas sempre pensam assim: “será que o
professor vai ensinar o aluno a plantar macaxeira?” Não! O professor não vai
ensinar plantar macaxeira. Ele vai mostrar, ele vai incentivar as pessoas. Mostrar
como podem fazer pra serem independentes de outras coisas que vem de fora [...]
Nós temos que mostrar como usar toda essa riqueza que nós temos com mais
sabedoria, sem precisar destruir o queixada, o porquinho ou a mata, só pra
comprar coisas. Nossa educação está pra isso, garantindo o nosso conhecimento,
pois os brancos também estão olhando para o que é nosso... tudo isso é um processo
que quem irá fazer acontecer somos nós mesmos, os professores. Temos que buscar
211

o trabalho de pesquisa para termos um conhecimento maior. [...] enfim temos que
ser um exemplo para a nossa comunidade (Isaac Pianko Ashaninka, In: YUIMAK ,
mar. 2002).
Lá na minha escola eu vejo que hoje não é a escrita que vai resolver o problema, é
algo muito mais grande, nas outras pode até ser, mais eu acho que não, a escrita
vai ser uma peça que vai estar ali dando suporte a toda essa forma de se organizar
de se comunicar com o mundo esterno. O que vai dar garantia de sobrevivência
neste território vai ser uma política mesmo de fortalecimento, de ampliação do
conhecimento tradicional mesmo, se não, a gente vai estar perdido (Isaac Pianko
Ashaninka, 03 mai. 2002).
Nosso ponto de vista é mais a organização, a conversa, o diálogo e a orientação.
[...] Eu sempre falo na sala de aula: não é só saber ler e escrever que vai resolver
nossos problemas. Nós estamos aprendendo ler e escrever, mas a coisa mais
importante, além da escrita é o respeito que a gente tem que ter com a pessoa. É
saber nosso trabalho, como nós vivíamos antes, como vivemos hoje, quem são os
mais velhos, quem são as pessoas que podem nos ajudar, e que tem o conhecimento
do mundo Ashaninka (Isaac Pianko Ashaninka, In: KAXINAWÁ, 2002, p. 187).
Sobre o lado importante da escola, ela está ampliando o nosso conhecimento, hoje
estamos nos defendendo no movimento porque tomamos conhecimento da sociedade
de como devemos nos defender. Além disso, os professores são os próprios índios e
com isso vai se construindo um tipo de educação onde com certeza nós vamos saber
como adquirir, como levar esta educação para que um dia não seja tão quebrada
como foi anteriormente. [...] A escola na minha comunidade é um recurso para
trazer esclarecimentos do mundo da escrita. Não querendo medir a força da escola,
para nós ela é uma parceira que está contribuindo no conhecimento da sociedade. É
importante porque vai trazer conhecimentos. Lembrando que o valor principal é a
nossa cultura, porque se nós deixarmos a nossa cultura e valorizar só a escola, ela
vai ser importante, por outro lado vai matar os povos indígenas culturalmente. Para
nós a escola é uma parceira de contribuição, de formação, de conhecimento da
sociedade nacional. Por isso a cultura tem que ser forte, tem que ser prioridade
para a comunidade, é onde está a identidade da comunidade, os valores (Vaulino
Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).

A escola é pensada e reivindicada, a partir do contexto em que está inserida: a


comunidade. Reflexão que tende a situar o papel da educação escolar na construção dos
projetos de futuro. Papéis que não serão os mesmos, a escola não atende às mesmas
necessidades de povo para povo ou de comunidade para comunidade. Por outro lado, é
decisivo o fato de os professores serem indígenas. O professor não é uma pessoa estranha à
comunidade e as escolas não estão mais subordinadas a setores antiindígenas. A partir desta
realidade, as reivindicações tendem para o debate coletivo sobre o que se quer com a escola,
ocorrendo o aprofundamento de seu perfil diferenciado. As reivindicações das famílias e das
comunidades, também, são por resultados. Como não são ingênuos, a noção de qualidade é
elaborada nos debates internos, com a contribuição de líderes politizados, conhecedores do
funcionamento das escolas nas cidades próximas. Diante deste contexto, com mais
propriedade, o debate se especializa, os documentos finais dos seminários já superaram o
“querer escola”. É preciso torna-la melhor tanto no que é ensinado quanto nas condições de
ensino, traduzido na “educação que queremos”:
212

Eu reflito muito, me referindo à minha escola hoje. Nela a gente tem um calendário,
esse calendário respeita os espaços o que é dos velhos [...] a escola é um espaço que
está mais concentrado em informar as questão de fora e de dentro, pega as duas
coisas [...] dentro da escola a gente traz e dá informação e incentiva aos alunos
para que eles participem da vida cotidiana, da maneira que sempre deu a vida ao
nosso povo, deu os conhecimentos, deu suporte a toda a nossa ciência. A escola
aqui ela é simplesmente um espaço muito novo, ela não traz a sabedoria histórica
do povo, ela apenas dá um ponto de reflexão prá você entrar neste mundo
tradicional (Isaac Pianko Ashaninka, 03 mai. 2002).
Acho que a educação escolar para um povo, não há como não trabalhar com a sua
própria realidade, buscando dentro do passado. Você estudando sua vida, sua
história, a história de todo o povo e trazendo tudo isso para sala de aula, fazendo o
aluno refletir sobre todo esse passado, pode diferenciar o que está nesse passado, o
que está mais perto do presente, também o que está no presente, para você se
planejar para o futuro. Se você começa a trazer um conhecimento lá de fora, antes
de passar para as crianças o conhecimento do seu próprio mundo, elas estarão
perdidas (Isaac Pianko Ashaninka, In: KAXINAWÁ, 2002, p. 187).
[A escola que queremos] Uma escola que atenda os interesses da comunidade
indígena; Com uma proposta curricular, pedagógica e política elaborada e pensada
conforme os valores da cultura indígena; Que seja cumprida a legislação que
assegura a formação em serviço e continuado do professor/professora, priorizando
seu conhecimento da educação indígena; Os programas de formação contemplar o
saber indígena respeitando o nível de entendimento cognitivo de cada
professor/professora e elaborado conjuntamente com a comunidade; Que a língua
materna seja predominante na escola; Que os governos assegurem nas políticas
públicas ações que contemplem a legislação, sem intervalo de governo; Oportunizar
uma formação política crítica consciente dos seus direitos para nortear as áreas de
conhecimento dos cursos de formação; Capacitar os formadores/formadoras,
técnicos - não indígenas - ligadas às várias instâncias do governo para conhecer a
realidade indígena (Manifesto do I Encontro de Mulheres, 2001).
[A educação que queremos] Ensino cultural na língua; Calendário e currículo
diferenciado reconhecido e respeitado pela sociedade; Educação de qualidade,
bilíngüe, multilíngüe, não inferior a dos não-índios; Valorização das aulas práticas
e escritas; Ajuda aos velhos pela sua participação como professores na cultura;
Visitas da coordenação mais demoradas às escolas indígenas; Elaboração das
provas pelos próprios professores com assessoria pedagógica; Aulas à noite para
jovens e adultos; Continuidade dos estudos depois da 4ª série; Completar a
formação dos professores, magistério em nível médio e superior; Reciclagem
(formação continuada); Concurso (contrato permanente); Assessoria,
acompanhamento pedagógico nas escolas; Assessoria para planejamento de curso e
das aulas; Por em prática o discurso; [...] Contratação de professor para ensinar
língua e saber da sociedade nacional (povos de menor contato); Contratação de
professor para trabalhar só na língua e cultura (Shanenawa); Coordenação
indígena não ficar presa no trabalho do núcleo [setor de educação estadual no
município de Feijó, AC]; Mais indígenas na coordenação no núcleo; Respeito aos
indígenas no núcleo; Acabar com o preconceito; Participação indígena nas
decisões das ações e políticas para as comunidades indígenas; Segurança do
salário para o professor ao assumir função na organização indígena; Produção de
material didático na língua de cada povo; Ter material didático nas escolas;
Construção de escolas; Luz elétrica e poço; Melhorar as escolas já construídas;
Escola bem estruturada com cozinha, cantina, banheiro, respeitando a cultura de
cada povo; Material permanente: carteiras, armário, quadro, mesa, mimeógrafo
(DOCUMENTO FINAL DO III SEMINÁRIO, 2003).
213

3 A relação escola e movimento indígena

O tom otimista das lideranças, sobre os espaços políticos conquistados pelo


movimento indígena, a sua presença no espaço público, fazendo o controle social das políticas
e ações destinadas aos indígenas são procedentes, sobretudo se considerarmos a história
recente de negação total de direitos. Considerando que os organismos políticos do movimento
são elaborações recentes, constituídos, substancialmente, com base em mecanismos da cultura
dominante, a escalada da autonomia requer domínio de saberes que são obtidos na escola.
Entretanto, para não esvaziar o movimento de características dos povos que representam, as
organizações também dependem da escola para que atue no reforço, revitalização e
conscientização para a importância de aspectos que são próprios das culturas indígenas. É
neste contexto que situamos as falas a seguir.
No primeiro conjunto de falas, as lideranças dimensionam os avanços obtidos
pelo movimento indígena do Acre sul do Amazonas e o processo crescente de ocupação, por
indígenas, de espaços decisórios ou de intervenção nas políticas públicas a eles destinadas:
A partir da época em que chegou a educação escolar em nossa comunidade foi
quando começamos analisar que era importante reivindicar a demarcação da nossa
terra, as alternativas de sustentação, a escola e a saúde, então partimos pra luta
pelos nossos direitos contra o preconceito. Começamos a valorizar a floresta da
nossa terra para não destruir, porque derrubar acaba com a água, peixe, caça,
tudo. Com a UNI aprendemos a lidar com o poder público, com outras
comunidades, hoje entendendo um pouco quais são os nossos direitos. Hoje temos
organizações regionais, mais de 20 associações, 185 comunidades, com quase 90%
das nossas terras demarcadas. Já temos boas relações com a sociedade e, mais do
que isso, estamos começando a valorizar nossa cultura. Hoje a responsabilidade da
UNI é muito grande, temos que ter muito cuidado. Tudo que a gente vai fazer de
grande responsabilidade nós nos comunicamos com nossas lideranças, com nossas
bases, para ter apoio para dizer sim ou não. A UNI hoje tem convênio com a
Funasa, para atender a saúde, temos convênio com o governo do estado para
resolver o problema do impacto das BRs. Temos agora o PDPI [Projetos
Demonstrativos dos Povos Indígenas] com programas de valorização da cultura
sem destruir o meio ambiente. Já temos alguns projetos aprovados para fortalecer
nossas organizações e temos ampliado nossas parcerias. Tivemos atendida a
reivindicação da Secretaria dos Povos Indígenas. Na UNI hoje temos o setor das
mulheres, o setor do PDPI, os estudantes, e a organização dos professores (Carlos
Brandão Shanenawa, 07 mar. 2003).
A UNI começou com algo em torno de 12 lideranças, hoje já são mais de 300
lideranças representadas pela UNI. As conquistas do movimento vão desde a
autodemarcação quando a UNI implantou métodos próprios de demarcação,
avançando para os convênios e parcerias, têm um suplente de senador e diretor na
Funai em Brasília. A única coisa que a gente ainda não conseguiu objetivar, no
concreto, foi a questão da educação. Hoje a UNI está aí, andando sozinha, o
movimento indígena andando sozinho, sem esquecer do apoio que nós tivemos. O
movimento indígena no Acre vem se tornando uma referência nos movimentos
sociais (Chola Manchinery, 07 mar. 2003).
O movimento indígena a partir do momento que começa atuar e ocupar seu espaço,
vai acumulando conquistas. Atuação externa, conquistando espaços junto ao
governo Federal, Estadual e Municipal, e interna: no movimento há articulação
214

entre organizações maiores e menores, as associações. Tanto as menores


reforçando as maiores quanto a maior dando crédito para as menores também
caminharem. [...] A partir do momento que o movimento começou a se integrar e a
se movimentar, as coisas começaram a acontecer. Ainda não é o bastante, sabemos
que temos que conquistar muito mais, ocupar diferentes setores porque nós sabemos
o que é melhor para nossas comunidades. Nós não queremos mais que chegue
alguém lá e diga o que nós precisamos. Nós vamos dizer o que nós queremos e
necessitamos e quando queremos que seja executado. [...] As comunidades tem
autonomia ao deliberar e encaminhar a decisão para as Secretarias de governo.
Estamos chegando a uma condição paritária entre brancos e índios nos espaços em
disputa, lutando pelas decisões que nós desejamos. Neste caso, a autonomia que a
gente quer chegar é estar disputando de igual pra igual (Vaulino Nunes Ferreira
Kaxinawá, 12 jun. 2003).
Nós temos mostrado muita coisa. Estamos demarcando nossa terra com o apoio dos
amigos, conquistando a educação, buscando a saúde. Hoje, estamos buscando o
desenvolvimento sustentável dentro da nossa comunidade, criando nossas
cooperativas, fazendo a nossa produção para garantirmos nossa sobrevivência na
floresta. Estamos conseguindo isso porque estamos nos organizando em
associações, cooperativas. Entre o índio acreano de 70 e o índio de 2002 há um
avanço muito grande. Estamos conquistando a história do nosso povo. [...] A
conquista foi difícil, pois tivemos que enfrentar muita luta (Siã Kaxinawá, In: Página
20, 15 set. 2002).

A escola nas comunidades indígenas teve participação no surgimento do


movimento indígena, dos organismos políticos e representativos das comunidades e regiões.
Em contrapartida, estas novas instituições comunitárias e regionais passam a ser a principal
referência, inclusive interferirindo no papel da escola e na política educacional:
Ao longo desses anos, foram criadas muitas associações, algumas organizações
locais com a influência desse conhecimento da leitura, da escrita, essa participação
que a gente tem junto ao programa de formação de professores (Joaquim Maná
Kaxinawá In: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE, 2001, p. 80).
A escola é uma instituição importante, mas a partir de quando é criada uma
associação dentro da comunidade esta passa a ter um papel fundamental. A
associação puxa as discussões e a escola tem o papel de formar pessoas críticas
para conduzir este trabalho. A escola veio para integrar a população indígena à
sociedade nacional mas nós revertemos o seu papel e aproveitamos o caminho e
hoje serve de auxílio, apoio nas discussões nas decisões políticas. A escola ampliou
o conhecimento. Acima da escola tem uma organização maior mas a escola
favorece para que as pessoas enxerguem num horizonte além do que está ao seu
redor, por isso é importante para as comunidades indígenas (Auricélio Brandão
Shanenawa, 12 jun. 2003).
Enquanto que avançaram as discussões em torno do sistema, na educação nós não
fizemos isso. Cada um continua com seu serviço isolado. Embora temos as leis que
ampara programas diferenciados nada foi pressionado para estruturação da
educação. Basta olharmos para ver a grande dificuldade com materiais para a
escola. Faltam escolas e capacitação de professores. Tem que ser priorizado a
capacitação de professores para melhorar as condições de estudo (Francisco
Avelino Apurinã, mar. 2003).
A participação da UNI visa acompanhar de perto as entidades que trabalham na
educação. A UNI não trabalha diretamente com educação mas vem participando de
reuniões de encontros [...] dando sugestões buscando parcerias. Não estamos
executando mas fiscalizando. A nossa participação tem sido com idéias cobrando e
esperando que possa acontecer no futuro, buscando cursos de capacitação de
professores (Lideranças da UNI, In: Relatório do I Encontro, 1997).
215

A importância que a OPIRE vem dando nesse trabalho para fortalecer a educação,
saúde e alternativa econômica, é que as comunidades possam ser independentes em
algumas partes, como saúde, educação e subsistência. Hoje a gente dá muita
importância aos estudantes que estão na cidade porque poderão ser nossos futuros
representantes na comunidade, na organização ou em qualquer lugar. Há dez anos
atrás os professores nas comunidades eram americanos [Novas Tribos]. De lá para
cá a educação para nós melhorou bastante dentro da comunidade e da organização
porque hoje temos professores indígenas que estão lutando pelo bem da
comunidade [...] o pensamento deles é fortalecer mais a comunidade e que ele possa
ser um professor de melhor qualidade, um coordenador com mais conhecimentos
(Lideranças da OPIRE, In: Relatório do I Encontro, 1997).
A importância da educação na comunidade hoje é que todas as crianças estão se
alfabetizando, trazendo nosso conhecimento dentro da comunidade. Os professores
e agentes de saúde hoje, estão ajudando o fortalecimento do trabalho dentro da
comunidade. Aplicando nosso conhecimento das leis para que possamos defender
nossos direitos que existem dentro de qualquer instituição. Nós hoje tendo nossos
estudantes no município entre esses estudantes temos hoje representantes das
nossas organizações e isso é trabalho de educação dentro da comunidade. Nós
estamos sentindo que o trabalho com a educação está se fortalecendo. A gente
busca alguma alternativa para a comunidade. A gente estando por dentro da
educação pode defender os nossos direitos e buscar a cultura dos nossos
antepassados. Se a gente conhece a lei, vamos brigar pelo nosso direito. Hoje não
está sendo muito fácil enganar as pessoas na compra e venda como antes, quando o
índio era discriminado, hoje já tem um conhecimento mais profundo (Lideranças do
povo Shanenawa, In: Relatório do I Encontro, 1997).

Pensando mais longe, no futuro das comunidades e de suas instituições, a


universidade, hoje, torna-se alvo de atenção para os indígenas. O acesso à formação superior é
visto como possibilidade de avançar da autonomia, na resolução dos problemas das
comunidades pelos próprios indígenas:
A universidade é o lugar onde se traz, abre o conhecimento de algumas pessoas. É
uma instituição formadora de pessoas para serem empregadas no mundo capitalista
e ao mesmo tempo sobreviverem. Para nós indígenas, desejamos que ela se abra
para que também tenhamos esses conhecimentos, para que nós também saibamos
dirigir, controlar ou fazer as coisas que nós temos em mãos, que nós estamos
adquirindo e resolver algumas coisas que nos interessam. Assim, capacitando o
nosso pessoal e junto com os parceiros um dia nós vamos estar de igual pra igual,
discutindo as coisas que nos interessam, quais os melhores caminhos (Vaulino
Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
Não é todo mundo que pensa como a gente. [...] A Universidade é um centro de
formação de indivíduos em busca de um lugar no mercado de trabalho. É um centro
de formação que vai formar indivíduos em medicina, advocacia, pedagogia,
engenharia, arquitetos... Para nós índios que já convivemos com a sociedade é
necessário que a universidade abra as portas. Nós que lutamos por autonomia,
queremos também índios formados em medicina, advocacia, pedagogia, engenheiro
agrônomo, engenheiro florestal, áreas que nós dependemos e para que possamos
dialogar com igualdade com a sociedade não-indígena. Neste caso a universidade é
uma parceira, assim como a Funai, governo do Estado, CIMI... para construir as
políticas (Auricélio Brandão Shanenawa, 12 jun 2003).
Nós nos preocupamos porque hoje entre nós índios não tem ninguém que saiba
fazer a contabilidade da organização, que faça uma secretaria. Não tem um bom
coordenador de um bom conhecimento com mais condição de atender as
comunidades indígenas. Viemos sempre dependendo dos brancos, mas hoje em
alguns espaços estamos sendo independentes, por que? Porque alguma coisa
sabemos fazer. Os agentes de saúde que estão na comunidade fazem o trabalho de
216

atendimento de higiene, de saneamento. Os próprios agentes já vão incentivando a


comunidade a isso. O pessoal precisa de um conhecimento melhor. Quem está se
formando hoje com o 2º grau, de hoje há 5 anos estaremos melhores. Há 10 anos
atrás não tínhamos o que temos hoje. [...] Nós que estamos na escola, na
organização estamos ficando velhos e vamos deixar espaço para outras pessoas e
esses pessoas que estão aí é que são o futuro (Lideranças da OPIRE, In: Relatório
do I Encontro, 1997)

Considerando que o preconceito constitui um dos maiores entraves para o bem


viver da população indígena, as ações das organizações são pensadas, visando, também, o
combate às discriminação contra os indígenas:
Para quebrar o preconceito tem algumas coisas que a UNI já está fazendo enquanto
movimento indígena, através de programas de rádio semanal onde é divulgado os
trabalhos e também mostrado um pouco da cultura. Todos os sábados têm um
indígena diferente mostrando suas manifestações culturais, justamente o quanto a
gente é diferente mas que também temos importância na sociedade. [...] Nas
comunidades indígenas não tratamos mal os brancos, recebemos todos eles de
braços abertos (Chola Manchinery, 07 mar. 2003).
As organizações têm mostrado para os povos indígenas do Acre, do Brasil e do
mundo inteiro que podemos nos livrar da violência e da discriminação e como
acabar com o analfabetismo e com as doenças, que sempre trouxeram o sofrimento
para o nosso povo. Através de nossas próprias organizações, continuaremos
conquistando nossos desejos, principalmente o de sermos povos indígenas sem
sofrer discriminação (Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, In: KAXINAWÁ, 2002,
p. 133).
O preconceito é muito grande. E nós, que estamos à frente do movimento, lutamos
para quebrar estas barreiras, impomos o que nós queremos, o que nós defendemos.
Nós estamos fazendo este trabalho de conscientização dos demais. Ser índio para
nós é motivo de orgulho (Maria Vanísia Poyanáwa, 19 fev. 2003).
Quando você tem conhecimento dos seus direitos, como está na Carta Magna, que
te dá o direito de ser o que você é, quando você fala com um branco e ele sabe que
tu tens o conhecimento da Lei de quais são os teus direitos ele jamais vai te
afrontar, porque ele fica com medo: “Não, para aquela pessoa ali eu não vou falar
isso”; “Não, porque ele conhece, ele sabe, se eu fizer qualquer coisa, falar isso, eu
posso me dar mal”. Então, nós estamos trabalhando com nossos parentes esta
questão do preconceito, esta questão dos direitos. Cursos sobre direitos estão sendo
ministrados. Sempre que a gente vai para uma aldeia, sempre a gente está
colocando esta questão (Miralda Apurinã, 19 fev. 2003).

Enfatizamos, nesta tese, a atuação política do movimento, o exercício do


controle social, sobretudo das ações do governo, aspecto ressaltado na fala a seguir. Por outro
lado, a experiência política das lideranças não lhes permite dispensar o apoio das parcerias
sem abrir mão da conquista da autonomia pelo movimento e comunidades indígenas:
Nós pretendemos, no movimento indígena é estar acompanhando os programas de
governo e fazer com que eles não decidam por nós mas que tenhamos participação
junto, definamos junto o que há de melhor para a população indígena. A
preocupação maior do movimento é de acompanhar, fazer o controle. Por exemplo,
na educação a legislação garante direitos como educação diferenciada e o
professor deve ter formação específica, daí então, nas políticas públicas a atuação
do movimento é fazer com que o governo entenda que há interesse da parte dos
movimentos sociais em acompanhar. É o foco maior do movimento. [...] Nós não
somos de ninguém, nem do CIMI, nem da CPI, nem do COMIN e nem da UFAC.
217

São entidades que apóiam o movimento indígena. Nós somos nós e eles apóiam as
nossas causas, o nosso movimento. Não descartamos parceria porque a gente nunca
sabe tudo, então a parceria sempre é necessária para chegar lá. [...] A autonomia
está na participação em questões que tem que ser decididas e que para serem
executadas dependem de consulta ao movimento indígena, às organizações locais e
regionais e à própria comunidade. Respeitando aquele grupo e ao movimento, nos
dá autonomia em dizer o que nós queremos e as ações a ser executadas. Autonomia
é quando o movimento tem o poder de decisão junto com as comunidades indígenas.
É isto que estamos conquistando. Vemos como uma vitória, um avanço para o
próprio movimento. A prova é que a Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas
do Estado do Acre não reflete a vontade do governo mas sim do movimento
indígena. Hoje, apesar do movimento, temos uma Secretaria de Estado para
executar os projetos nas comunidades, isto é uma forma de autonomia (Auricélio
Brandão Shanenawa, 12 jun. 2003).

Os indígenas, ao conquistaram o direito de falar, em seu próprio nome, e em


nome de suas comunidades, superaram a condição de incapazes, imposta pelo preconceito da
sociedade nacional. Resgatada a credibilidade em si mesmos, é preciso investir para destruir o
“temor” do não-indígena sobre a capacidade do indígena. Ilustramos, com o relato de três
lideranças indígenas da Amazônia ocidental, que exercem altos cargos públicos (Manoel
Gomes, administrador regional da Funai; Francisco Pianko, Secretário de Estado; e Antonio
Apurinã, diretor de assistência da Funai nacional e suplente de senador), funções, cujo
exercício pressupõe competência, os quais, assinalam a relevância da afirmação desta
competência de indígenas, consistindo numa estratégia do movimento para buscar relações de
igualdade mantendo a identidade cultural indígena, competência, como declaram, atribuída ao
movimento, aos organismos políticos do movimento:
As instituições parceiras que tem apoiado as comunidades indígenas, ajudaram no
fortalecimento das organizações de base do movimento indígena. Deram coragem
para que as lideranças de base conhecessem os seus direitos para chegar ao que
conquistamos até agora no presente. Não é um desejo, um pensamento, temos coisas
reais, na prática. Até recentemente havia uma desconfiança: “será que o movimento
indígena é capaz?”. Em 2003, fazendo uma avaliação com todos os setores do
movimento [por ocasião da Assembléia Geral da UNI]: agroflorestais, professores,
caciques, agentes de saúde, coordenadores das organizações e associações a gente
viu o quanto que os parceiros indigenistas e os próprios índios que acreditaram em
si fizeram. Não foi calar a boca, mas sim, acreditar. Apesar das diferenças, estamos
todos caminhando no mesmo rumo. Foi as instituições parceiras que fizeram com
que acontecesse o que defendiam: que os índios deviam falar com sua própria boca,
que o índio deveria andar com os seus próprios pés, que o índio tinha que fazer o
trabalho. Por mais que a gente avance nunca vamos abandonar as parcerias.
Ninguém vive isolado. Se até os países ricos precisam de parceria, porque nós
índios iríamos dispensar (Manoel Gomes Kaxinawá, 12 mar. 2003).
Não foi fácil tirar a UNI da situação de estar eternamente subordinada a
organizações. No início tínhamos que pedir autorização para o CIMI, para a CPI,
para assinarem embaixo. Nos sete anos que estive na direção da UNI conseguimos
essa mudança. [...] Hoje os índios, a UNI passaram a ser mais respeitados por
conta de toda uma história à época em que dirigi a UNI. Hoje nós temos “enes”
forma de nos organizar e “enes” demandas que a gente pode estar se
especializando como é o caso hoje da saúde, da educação, do bem-estar social,
segurança, conhecimento e defesa da terra. Na época a gente não imaginava tudo
isso e botava tudo dentro de uma idéia só e achava que tudo estava indo. Hoje é
218

preciso realmente estar separando, acima de tudo para conhecer as coisas, que
importância tem para nossas vidas. [...] As relações mais favoráveis aos povos
indígenas, hoje, também vão acontecer com o trabalho em áreas como a da
educação, e da saúde, quando nós mostrarmos que estamos fazendo isso com
grande competência. Mostrando que a gente também faz com qualidade, embora
diferente mas com sua qualidade, mostrando o grande poder de organização, de dar
conta das coisas que a gente faz. Tanto é que a gente demonstra isso no que o não-
índio chama de administrar o controle social, a forma de como fazer (Antonio
Apurinã, 21 fev. 2003).
Eu gostaria de ressaltar o excelente apoio da União dos Povos Indígenas,
representada pelo Francisco Avelino, que mostrou um grande preparo democrático,
procurando sempre ouvir os vários povos antes de propor o conjunto de itens a
serem trabalhados na nossa gestão. [o respaldo das ações do movimento e das
políticas] nunca é cem por cento, você sabe. Claro que há discordâncias, é até um
ponto positivo. É o contraditório necessário (Francisco Pianko Ashaninka, In:
Página 20, 18 fev. 2003).
A assessoria da Funai aqui no Acre, eu como índio acreano que representei ao
longo do tempo, em 12 anos de movimento indígena, a melhor assessoria é o
movimento indígena, principalmente a coordenação da União das Nações
Indígenas, com a qual a gente vem trabalhando junto, que é o Francisco Avelino
Batista, que hoje é o coodenador no seu terceiro mandato, [...] todos os outros são
colaboradores, que vão apoiar, vão falar mais na questão jurídica, que é uma coisa
que a gente não tem um [indígena] advogado, mas a questão política quem dá a
direção é o movimento indígena (Manoel Gomes Kaxinawá Programa AC-TV. TV -
Acre, 07 jun. 2003).
No início do primeiro mandato do Jorge Viana a gente apresentou a proposta de
criação da Secretaria dos Povos Indígenas, que foi engavetada. Ou seja, porque
estavam estudando: “o índio será mesmo capaz, será que não é”. As pessoas que
conheciam a gente sabiam que éramos capazes, mas não era só isso, dava a idéia de
que seria criar uma Funaizinha dentro do Estado. Quando foi reeleito, chegamos
com a mesma proposta. Reunimos todas as lideranças e fomos dizer para o
governador que quem queria a secretaria éramos nós, não eram as assessorias nem
eram as organizações não-governamentais, deixando claro que era para ajudar na
execução dos trabalhos do governo (Manoel Gomes Kaxinawá, 07 mar. 2003).

Diante das conquista obtidas com a mobilização, as lideranças apostam nesta


forma de luta para avançar os projetos das comunidades indígenas. O avanço, entretanto,
tende ao aperfeiçoamento das lutas e as especializações no movimento:
Se nós tivermos medo da nossa história, nós não vamos para frente. Para ir para
frente precisa entender, destrinchar e buscar conhecimento junto a quem sabe, que
tem um caminho aberto, tem possibilidade de fazer alguma coisa. Acaba abrindo
espaço no caminho e vamos seguindo porque nós já vivemos aqui nessa terra e nós
não podemos retroagir, temos que ir para frente. [...] Temos que entrar na política
porque ela também faz parte. Quando a gente fala de economia e mercado ninguém
sabe o resultado. A gente precisa saber disso porque a gente produz artesanato,
agricultura, criações de animais, borracha, óleo de copaíba, óleo de andiroba e
muitas outras essências florestais. Faltam instrumentos de leis e emendas
parlamentares que facilitem a ajudem na organização de nossa produção. [...] A
gente precisa viver também porque a gente é do Acre, a gente vive, a gente é
humano, a gente está aqui presente, fazendo a história de nosso estado. [...] No
passado, houve muitos saques em nossa riqueza, mas agora a gente está
controlando, pois estamos organizados. Fazemos a fiscalização através da
utilização do sistema de manejo agroflorestal. Tem o agente de monitoramento de
manejo. Aí facilita o controle, pelo menos nas comunidades que estão organizadas
(Siã Kaxinawá, In: Página 20, 15 set. 2002).
219

O movimento indígena não deve parar. Mais do que nunca nós temos mesmo que
pensar e elaborar políticas públicas e estar apresentando para o governo, batendo
na porta, dizendo: “Senhor governador, aqui existe um povo indígena, aqui tem
uma organização, um povo de expressão também. O Senhor está aí mas não foi só
os nawá que te colocaram aí não, nós tivemos a nossa contribuição”. Portanto, é
batendo lá, é continuando nas lutas que nós vamos conseguir. Porque nada do que
aconteceu, as conquistas do nosso movimento não foram de graça não, foi de luta
mesmo, é de estar indo lá, através de pressão, pressão mesmo. [...] É através das
políticas públicas mesmo, a gente tem que estar lá, batendo na porta e mostrando a
nossa cara e também através do Congresso Nacional, nesta questão do preconceito,
além das nossas, propostas, é com a elaboração de leis que venham barrar não só o
preconceito mas que venham trazer - posso até colocar - uma vida melhor para a
população indígena, para nós. É por isso que nós estamos estudando, nós estamos
fazendo de tudo para formar o nosso quadro para o movimento indígena. Nós não
queremos só ver índio na universidade, nós queremos ver deputados indígenas, ter
indígenas na câmara dos deputado e também no Senado, assim como, deputados
estaduais e vereadores. Nós estamos ocupando os nossos espaços, nós queremos
ocupar, para que? Para nós termos os nossos parentes lá e nós dando suporte aqui,
para termos as nossas conquistas, porque se não for assim, ninguém vai dar nada
não, ninguém vai abrir as portas não. Portanto, é através da elaboração de
políticas públicas e de pressão mesmo (Miralda Apurinã, 19 fev. 2003).
Entre 95 e 96, os professores passaram a se organizar, com as publicações e
criação de materiais didáticos, passaram a ter sua escola, definir um currículo
próprio, a língua garantida por constituição. Com isso, se pensou em criar uma
política pelos próprios professores, para exporem esse trabalho para a sociedade.
[...] Quando nós participávamos de um congresso de educação indígena a gente
percebia que existia um vazio no discurso. Só quem falava era o outro lado, nós
tínhamos muito mais coisas a serem ditas, e acabávamos nos tornando uma pessoa
que não sabia de nada. Então, refletimos e resolvemos criar uma organização para
falar como é nossa língua, a nossa cultura e tradição. E de que maneira isso
poderia ser implementado nas políticas públicas para que a sociedade entendesse
essa realidade (Isaac Pianko Ashaninka, In: Página 20, 15 abr. 2003).
A gente acabou decidindo que, por mais que a gente estivesse distante, era
necessário a gente criar essa organização. Pensamos isso até porque os nossos
conhecimentos e a nossa responsabilidade é muito maior que a do Estado do Acre:
tem a ver com essa organização social dos professores como categoria, dos
professores indígenas e a questão da especificidade. Mas foi só agora em 2000 que
nós sentamos, elaboramos o estatuto, a ata e legalizamos, e agora estamos correndo
atrás de projetos para a gente ter uma articulação dentro da aldeia. Nós
percebemos que mesmo existindo professores indígenas em cada povo indígena
ainda há esse problema entre professor e algumas lideranças locais que não
aceitam a educação escolar diferenciada. Talvez eles tenham uma interpretação
muito ruim, imaginando que a educação indígena é um ensino inferior. Então esse é
um dos problemas que a gente está tendo e que a nossa organização pode ajudar
(Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, In: GRUPIONI, 2003, p. 161).
A gente tem discutido muito em nosso encontros a participação de mais mulheres
como professoras, até agora é só homem, muito homem. Temos discutido que a
mulher é responsável pela educação dos filhos e não entendemos porque a maior
parte dos professores é homens, a maior parte dos agentes de saúde é homens
enquanto que as mulheres, as parteiras, as comadres é que fazem o trabalho que o
agente de saúde faz. Isto é coisa da aldeia mesmo, os cargos geralmente são só para
homens. A mulher é muito útil mas na aldeia. Por isso agora a gente exige
participação mesmo nas reuniões, nos encontros, tanto que a mulher indígena do
Acre e sul do Amazonas em quase todas as aldeias tem uma representante do
movimento de mulheres. E, apesar de muitos companheiros homens não gostarem
muito desta idéia, da mulher estar ficando muito independente, eu acredito que elas
estão abrindo os olhos. Nesta Assembléia da UNI [realizada de 14 a 18 de abril de
2003] as mulheres vão votar, estamos viabilizando a vinda de uma representante
por região (Maria Vanísia Poyanáwa, 06 mar. 2003).
220

4 A cultura e a escola na afirmação da identidade indígena

As lutas do movimento indígena não estão assentadas apenas em causas


políticas, econômicas ou materiais. Há fatores, tais como, a origem, a condição de população
nativa, denominada indígena, que aproximam lideranças de comunidades, de diferentes
povos, no movimento. A esta, são acrescentadas aspectos identitários, as manifestações
culturais e sentimentos de pertença, que os identificam, como integrantes de povos com visões
de mundo e saberes assentados num meio ambiente comum: a floresta amazônica. Todo este
contexto é fortalecido com as condições favoráveis, vindas com a descoberta e valorização,
pela sociedade ocidental, de saberes elaborados pelos povos indígenas.
Nas falas a seguir, são enfatizados os sentimentos de pertença; afirmação da
identidade e a relevância dos valores culturais para o bem viver:
Meu nome é Yakã e sou índia, porque meu pai é índio e a minha mãe é índia. Eu
não sou cabocla nem mulato e nem cafuso. Eu sou Huni Kuĩ (Aluna Kaxinawá, In:
YUIMAK , mar. 2002).
O meu sonho, a minha alma e o meu espírito são Ashaninka. Eu tenho muito
orgulho pelo povo e pelos trabalhos. Eu quero construir as coisas mais para frente,
quero ver os nossos trabalhos funcionarem e acontecerem. Ver bons resultados para
a comunidade. E além de aprender a escrever, ler, somar e tirar as contas que
existem na matemática, quero conhecer outras coisas mais, outras matérias que a
gente estuda. Também temos que valorizar e conservar os nossos costumes, cultura
e tradição e outras coisas também. Os pais e as mães das famílias ajudam com os
professores, a ensinar o que é importante na vida e para o futuro (Komãyari
Ashaninka, In: YUIMAK , mar. 2002).
A cultura é a vida de um povo e vida é indiscutível, deixar a cultura é deixar de
viver, por exemplo: teve um problema interno na minha aldeia, como em qualquer
aldeia tem e, infelizmente, uma família teve que sair de lá, provisoriamente, e ir
para a cidade até as coisas se acalmarem, foi a única forma que nós encontramos
naquele momento para amenizar a situação. Certa vez eu conversando com uma
pessoa da família que saiu, [...] ela me falava: “minha filha, eu bebo água daqui,
bebo água, bebo, mas não mata minha cede a água daqui, porque quem mata minha
cede é a água do meu igarapé, eu como aqui, como, mas parece que eu estou
comendo outra comida porque não é a comida que eu faço” [...] ela reclamava:
“onde é que ela vou tirar folha para fazer o cauá?, onde é que vou tomar banho a
vontade no igarapé, como é que vou assar a macacheira, a banana, os nawa vão
mangar”, então não é viver bem, dá para você ver que sem o nosso jeito de viver na
aldeia fica complicado. [...] A nossa cultura ela é muito valiosa, é a nossa vida, é a
vida de um povo, a cultura, o seu saber, os seus costumes, as suas histórias, é a vida
de um povo, é a nossa identidade. Do mesmo jeito que nós, vocês nawá precisam de
seu documento de identidade para se diferenciar das demais pessoas. A nossa
cultura é que nos diferencia da sociedade não-indígena e dos demais povos também,
porque cada povo tem sua cultura e diferente. Por mais que a gente pertença ao
mesmo tronco lingüístico, no caso, eu e Maristela somos do tronco lingüístico Pano,
a Miralda já é do Aruak, então, eu não entendo nada da cultura da Miralda, já eu
com a Maristela, nossas histórias, as nossas línguas são um pouco parecidas, tem
uma certa diferença, muito pouca, mas tem um pouco de diferença, porque é um
povo diferente do meu. Nós indígenas precisamos do conhecimento do branco para
nos defender. Na verdade é mais como defesa, porque nós precisamos. Nós não
somos diferente deles, como pessoas somos iguais. Somos diferentes enquanto
povos. Somos iguais enquanto seres humanos, somos brasileiros, somos gente,
221

cidadãos como qualquer um, com nossos direitos garantidos na Constituição. [...]
Infelizmente na prática não funciona. Nós precisamos deste conhecimento. Assim
como nós precisamos deste conhecimento para entender o mundo do branco eu
acredito que o branco deveria se aprofundar mais na cultura indígena, na língua,
nos costumes, para respeitar, porque nós respeitamos vocês como vocês são e
exigimos que nós também sejamos respeitados da forma que nós somos também.
Porque nós nascemos assim e gostamos de ser assim. E é isso (Maria Vanísia
Poyanáwa, 19 fev. 2003).
Não dá para nós vivermos bem sem a nossa cultura, sem o nosso saber. Até a gente
fica, vive no meio dos brancos, eu vejo a minha mãe, a minha avó, elas estão
atualmente morando aqui mas logo vão voltar para a aldeia. Elas estão aqui mas
elas fazem o beijú delas, fazem a caiçuma. Nós, estando no meio dos brancos, não
significa que nós vamos deixar de práticas da nossa cultura, de cantar, de falar na
língua. Porque, seja lá o local que você for, ali você vai ser índia, porque está
dentro de nós, está dentro da gente. Eu estou aqui, até posso ter uma cara de nawá,
de branco, mas o que está dentro de mim, eu me identifico como índia, o que eu
aprendi quando era pequena: comida, estas coisas, isto está dentro do meu sangue,
ali ninguém vai me tirar nunca. Eu posso me achar estrangeira aqui no meio dos
brancos. Eu só vou me encontrar junto com o meu povo, ali junto com o meu povo,
ali é minha terra, meu povo, minha língua (Miralda Apurinã, 19 fev. 2003).

Muitas comunidades e o movimento indígena, em geral, estão tendo a


preocupação com a promoção de valores culturais, tornando, atuais e relevantes, aspectos do
mundo indígena e reconhecendo o valor de determinados saberes, inclusive para as ciências
da cultura dominante:
Nós os Kaxinawá estivemos muito dispersos mas através do conhecimento que nós
estamos adquirindo, participando do movimento, estamos tentando não resgatar
mas reforçar o que tínhamos deixado para trás. Não acabou mas atrasou um pouco,
estamos tentando diante disso caminhar um pouco, a questão das músicas, das
pinturas, das cerâmicas, do artesanato, da língua, tudo isso não acabou. Tinha
enfraquecido e estamos tentando fortalecer mais. Pelo conhecimento obtido no
movimento estamos alertando, incentivando os mais velhos e conscientizando a
comunidade para que esteja apoiando este processo em andamento. Em 5 ou 6 anos
estaremos readquirindo uns 60%, mais da metade do que está parado na cultura
(Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
Identificamos com o Yawa a nossa cultura, identidade e espiritualidade viva em
pleno século XXI. Ele nos faz reviver os tempos remotos em que nosso povo
mantinha seus costumes e tradições originais sem influência da sociedade ocidental
envolvente. [...] Fizemos uma reflexão sobre o que tem mudado em nossas vidas
nossos hábitos tradicionais ao longo do contato com a sociedade brasileira.
Pudemos constatar que nossas danças, expressões artísticas, manifestações
culturais e espirituais não foram apagadas e esquecidas da memória de nosso povo.
Elas tinham sido apenas deixado para atrás, dando vaga aos costumes ocidentais
trazidas pelos patrões seringalistas e missionários. [...] Decidimos então trazer de
volta todos os valores inalienáveis, que nos foi dado pelo criador e que estava sendo
deixado para trás. Invocamos os espíritos da floresta pelos bens que ela oferece.
Não há palavras para descrever a sensação de estar presente numa roda de Mariri
Yawanawá na aldeia Nova Esperança. É o contato direto com a floresta e seus
habitantes (Joaquim Yawanawa, In: Página 20, 15 mai. 2003)
Na verdade, os índios detêm grande conhecimento sobre a floresta, e, como se trata
de uma área inexplorada ou pouco explorada pela ciência tradicional, acabam, por
derivação, tendo certa vantagem em relação a conhecimentos adquiridos. Está
chegando a hora em que toda a humanidade compartilhará desta sabedoria, que é
um ideal do plano de desenvolvimento sustentável. Daí porque somos tidos como o
“coração” do projeto. Mas acho que apenas soubemos nos organizar. [...] Não
222

pretendemos misturar nada, apenas conviver em paz. Também não pretendemos


impor nosso ponto de vista, porque cada nação sabe o que é melhor para si. Apenas
temos uma alternativa para um modelo caduco de desenvolvimento. Quem quiser
continuar apostando no capitalismo, esteja à vontade, mas sempre lembrando que
alguns povos indígenas foram dizimados porque acreditaram nesse sonho, que para
mim é impossível (Francisco Pianko Ashaninka, In: Página 20, 18 fev. 2003).
Se a sociedade nacional visse a forma de organização social indígena com bons
olhos seria uma coisa muito importante para eles. Se tomassem como exemplo a
sabedoria indígena, seus conhecimentos, não a sabedoria da letra, da escrita, mas a
sabedoria tradicional, da cultura resolveriam muitos problemas (Vaulino Nunes
Ferreira, 12 jun. 2003).
Meu avô foi um dos que viveu no tempo do contato com os caucheiros e
seringueiros. Eu o conheci e vi o domínio que ele tinha sobre a comunidade e até
hoje admiro. Era muito bonito, ele conduzia com prudência e mantinha todo mundo
unido, todos viviam bem. Esta sabedoria e prática diferente serviria de exemplo
para a sociedade nacional (Auricélio Brandão Shanenawa, 12 jun. 2003).
Estamos trabalhando e as experiências estão dando certo. [...] A proposta que vem
sendo feita pelos agentes agroflorestais do Acre aponta uma solução para a
discussão sobre o meio ambiente [...] Dentro desse trabalho recuperamos áreas
degradadas, fazemos a vigilância e fiscalização da nossa terra, trabalhamos com
educação ambiental com jovens e adultos, com intercâmbio e trocas de experiência,
artes e ofício, reciclagem da madeira, não somente em nossa aldeia como no
entorno. Acreditamos que o que estamos fazendo pode ser solução para as outras
terras indígenas que existem no mundo. [...] Esse é trabalho muito bom, em que os
próprios agentes de saúde, as comunidades indígenas não são mais dependentes dos
brancos. A gente leva essas experiências e podemos com isso servir de exemplo
para povos de outros países, fortalecendo a língua e a cultura [...] (José de Lima
Kaxinawá In: Pagina 20, 30 mai. 2003).
[A “cultura material” dos povos indígenas] nós consideramos arte porque cada peça
que é feita, que o parente faz, ele está voltando no tempo, ele traz um conhecimento
que vem desde os antigos, dos avós, dos bisavós, vindo a tona através daquela peça.
Portanto, é uma arte, nós consideramos arte também fazendo parte da cultura
material. Porque a cultura indígena é como um leque, é muito ampla é uma coisa
que se pode pegar então nós consideramos como cultura material (Maria Vanísia
Poyanáwa, 19 fev. 2003).

A sabedoria é manifestada no reconhecimento da importância dos saberes de


seu povo para a vida da comunidade. Em muitas comunidades, grande parte da população não
sai deste espaço comunitário, “são mais culturais”, isto é, vivem de acordo com os
referenciais do mundo de seu povo. Em outras situações, é inevitável a inserção na sociedade
nacional, fato que torna indispensável o exercício da interculturalidade, principalmente para
professores e lideranças, que tem como uma de suas atribuições, o exercício de relações com
os regionais.
Em outras realidades, a defesa da identidade indígena, afirmada na diferença,
não implica em desprezar os conhecimentos e a tecnologia não-indígenas. Explicitando
melhor, o domínio da cultura dominante, no contexto atual - em comunidades com relações
mais intensas com as cidades - tornou-se condição para que estas relações se estabeleçam em
nível de igualdade enquanto pessoas humanas:
223

As pessoas das comunidades são mais culturais. Nós que estamos no movimento
somos interculturais, multilíngües. Há momentos que estamos nos relacionando com
pessoas diferentes, a interculturalidade, queira ou não é uma exigência. É um
conhecimento que a gente adquire para se comunicar, relacionar com outras
pessoas, entender as coisas de outras culturas de outros povos. A interculturalidade
é importante pra nós no movimento (Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun.
2003).
Eu não concordo que os saberes indígena e não-indígena estejam no mesmo
patamar, colocado como igual. Porque, uma coisa é o nosso saber, a nossa língua,
é a nossa identidade “indígena”, tal como foi denominada pelo branco. Por outro
lado é também de grande importância para nós obter o conhecimento do homem
branco, porque vai ajudar a cada um de nós, [...] importante, porque quando se
detém o conhecimento do branco eu posso chegar para você e fazer um debate uma
discussão de igual pra igual. Aí é que está a questão em relação ao saber, para
poder discutir e elaborar as políticas que vem beneficiar as comunidades. É
importante este saber do homem branco, mas sim, valorizando com o nosso saber,
este que é único, é nosso, é singular, um conhecimento que é nosso. [...] Você pode
até penetrar, morar numa comunidade, querer descobrir mas você nunca vai chegar
a conclusão, dizer que tem todos os conhecimentos da nação tal, ou do povo tal,
nunca porque é singular, é único, é nosso. Daí então há uma diferença muito
grande, nós valorizamos muito isso. Com certeza o nosso saber, eu coloco acima do
saber do branco. Porque eu posso ter o conhecimento do branco e ele não pode ter
a totalidade do meu. [...] Eu gostaria de enfocar o seguinte, nós poderíamos viver
bem na comunidade usufruindo de um telefone, de ter energia elétrica, de ter uma
televisão, que são coisas que todo ser humano quer, a tecnologia está aí, então nós
podemos usufruir disso aí sem precisar mudar a nossa forma de viver, de comer o
nosso peixe amuquinhado, de falar na língua, isso não vai influenciar em nada.
Hoje nós estamos sofrendo um impacto muito grande do branco, a pressão é muito
grande e a gente é resistente. Nós somos e continuamos ser [indígena]. O que é que
nós estamos fazendo agora, os tempos mudaram, nós temos que preparar os nossos
jovens, nossas crianças reforçando mais ainda a nossa língua a nossa cultura:
“Olha, vocês têm que preservar, permanecer assim”. A gente não vai andar nu
como antigamente, porque hoje existe a vestimenta. Na verdade, nós poderemos
usufruir das coisas que o mundo oferece, do branco, e viver bem dentro de nossa
comunidade, porque nós só vamos viver bem lá. É lá que é nosso canto, é ali onde
nós nascemos, onde nossos avós foram enterrados, só vamos viver bem lá (Miralda
Apurinã, 19 fev. 2003).
Eu posso estar na cidade, o que importa é que eu tenho consciência da minha
identidade, eu falo a minha língua e falo o português para me entender com a
sociedade. Quando volto para minha comunidade eu sou aquela mesma pessoa de
quando saí de lá, significa que eu não abandonei, não perdi minha identidade. Sei
me portar dentro da sociedade que tem um comportamento diferente. Assim eu
entendo como interculturalidade, duas culturas que eu estou participando. A
interculturalidade é algo que existe no nosso meio temos que saber do ambiente
onde vivemos e do ambiente onde vai estar, esta é a importância de compreender as
culturas em que se vai conviver (Auricélio Brandão Shanenawa, 12 jun. 2003).
Quando a gente se fecha, não se assume, está permitindo que seja reforçando o
preconceito. Quando eu estive na região do rio Iaco, no ano passado, para fazer
uma oficina de trabalho na aldeia betel, eu falava muito com meus parentes sobre
esta questão de assumir sua identidade. Eu explicava muito para eles assim: olha
parente, pra gente ser “barro branco”, pra gente ser cidadão, para a nação
brasileira, a gente precisa de um documento, é preciso carteira de identidade
quando você tem esta carteira de identidade, ali está dizendo quem você é. Eu
falava para eles: nós enquanto povos indígenas - no caso, os Jaminawa - nós temos
que nos assumir como nós somos, com a nossa identidade. Porque a nossa
identidade é a nossa cara, é a nossa língua, nossa forma de falar. Como índio ou
como índia nós temos que nos assumir sim, porque a partir do momento que você
não se assume como índio, você está reforçando o preconceito das pessoas. E você
também é amparado por uma Lei e esta Lei te dá direito de você chegar para um
224

branco, para um nawá, e dizer: olha, você não pode falar isso porque a Lei garante
isso, eu posso te processar. É punindo, colocando essas pessoas na cadeia... não
sei... punindo, vai barrar um pouco esta questão do preconceito, em relação, não só
ao índio, mas também com relação ao negro, ao seringueiro (Miralda Apurinã, 19
fev. 2003).
Só acredito em melhores relações quando nós também passarmos a conhecer um
pouco mais, temos que ser instruídos, temos que nos esforçar para conhecer muito
mais o lado que não conhecemos para então estabelecer esta relação. Claro que eu
só considero uma boa relação quando o lado de lá passa a ter mais clareza de cá e
vice-versa. Senão não há nenhum tipo de coisa. Eu considero questão central o
respeito às diferenças. As diferenças não podem ser um pretexto para más relações.
Eu entendo assim e acredito que nós temos que manter este entendimento pois vai
ser assim que nós vamos alcançar novas relações (Antonio Apurinã, 21 fev. 2003).

A defesa dos saberes dos povos indígenas bem como a autodefesa em sua
cultura reforça a justificativa que explicitamos na introdução desta tese, quanto às reservas
das comunidades com pesquisadores. A afirmação e as reservas tendem a se traduzir em
posicionamentos políticos, como a defesa mais enfática do que lhes é próprio; a começar pela
autodenominação:
No Acre, nossa posição frente ao governo brasileiro é pela exigência de um plano
de proteção que de fato funcione para resguardar os direitos de nossos povos. [...]
Defendemos a continuidade do sistema social como forma de preservarmos nossas
origens e identidades (Sebastião Manchinery, In: A Gazeta, 30 jan. 2001).
As comunidades indígenas têm bastante receio em passar seus conhecimentos,
porque muitas vezes as pessoas que vão lá, pegam estes conhecimentos e fazem o
que não devem. Por isso nós indígenas ficamos muito com o pé atrás quando chega
pesquisador na Terra Indígena. Até mesmo as nossas equipes de saúde tem um
pouco de dificuldade porque as pessoas não se abrem, depende muito da confiança
que eles têm na pessoa (Chola Manchinery, 07 mar. 2003).
Embora os antropólogos usem o termo etnia, nós nos denominamos “povos”,
porque é assim que nós nos reconhecemos. A discussão a respeito de povos não é só
no Acre e sim uma discussão nacional e internacional. Nas conferências há um
consenso no termo povo, inclusive, na última conferência sobre racismo (na África
do Sul) foi aprovada a deliberação para que sejamos chamados povos. Então para
nos é povo. Quando antropólogos identificam como etnia, é eles que estão querendo
impor isso para nós. Nós somos povos e nós nos reconhecemos assim: povos
indígenas. Eu acho que isto tem que ser respeitado. É uma luta nossa, dos povos
indígenas, que já vem de muito longe, não é uma luta de um ano, de dois anos,
porque quando se conquista alguma coisa é porque houve lutas vindas de muito
tempo. [...] São décadas de discussão para que hoje pudéssemos chegar a um
denominador comum quanto ao nome a que devemos ser chamados. Então acho que
tem que ser levado em consideração (Miralda Apurinã, 19 fev. 2003).

5 As propostas para avançar na construção de relações respeitosas

Enfrentar o preconceito e a discriminação, fortalecer o movimento, ampliar o


domínio de conhecimentos da sociedade dominante, concomitante a revitalização das culturas
indígenas, não são o bastante para avançar na construção de uma sociedade plural, para
garantir relações respeitosas. Entre as propostas, os professores e lideranças indígenas
225

declaram que é preciso investir junto à população não-indígena, para que também o segmento
majoritário da população brasileira tenha acesso a informações coerentes sobre a população
nativa, suas histórias e suas culturas.
As exigências, entretanto, não são postas só para o outro, também para si
próprios é preciso empenho para firmar relações respeitosas em condições de igualdade; ação,
na qual, a escola contribui em seu papel político submetida ao bem da comunidade:
Primeiro nós deveríamos nos voltar para nós mesmos enquanto pessoas enquanto
povos, não com este processo discriminatório, racista, mas como processo de
identificação de auto-afirmação, eu acho que este seria um primeiro passo para
gente eliminar parte desta situação que a gente vive hoje. A outra, é buscar novos
conhecimentos que possibilitem a gente melhorar. Muitas vezes há conhecimentos
que mais atrapalham do que ajudam (Sebastião Manchinery, 18 abr. 2003).
Após a nova Constituição houve um avanço no movimento, mas é preciso saber
lidar com os avanços, saber juntar as novas idéias, novas formas de organização,
estar adequado a esta nova realidade. Quanto mais se avança a relação entre
brancos e índios, surgem todas as especificidades, todas as diferenças culturais e aí
vem o chamado preconceito que precisa ser trabalhado. Essa relação vai exigir que
de fato se esteja qualificado, por estar diante de uma demanda um tanto quanto
complicada que hoje a gente tenta amenizar. As relações exigem da nossa parte um
grande esforço no sentido de saber quando devemos e para que devemos fazer o que
queremos com essa relação entre brancos índios. Eu acredito muito nisso (Antonio
Apurinã, 21 fev. 2003).
Eu quero que a educação da comunidade indígena seja pensada para não criar uma
dependência. A escrita deve chegar à comunidade indígena para que ela possa
através deste instrumento trabalhar sua existência, se comunicar. Aí é que está a
diferença, você não vai colocar a necessidade da pessoa se formar, ter diploma
para ser reconhecido perante a sociedade dominante (Francisco Pianko Ashaninka,
30 abr. 2003).

As medidas concretas para avançar na consolidação de uma sociedade plural


devem ser precedidas de ações práticas, do cumprimento da Lei, sobretudo no que diz respeito
ao bem viver dos povos, tal como a garantia de seus territórios:
Qualquer conquista dos povos indígenas passa pela regularização de suas terras.
Cada governo precisa fazer a sua parte para que possamos trabalhar a terra com
dignidade. Temos que reconhecer que o governo acreano tem nos ajudado muito.
Falta os outros seguir o mesmo exemplo (Santos Pinheiro Apurinã, 16 abr. 2002).
Há milhares de programas para povos indígenas, desde educação, saúde, qualquer
que seja, e neste meio nós vivemos numa situação, na qual, nós não temos sequer
condições de ir de um lugar para outro. Falta uma articulação maior entre as
instituições e falta, da nossa parte, uma posição mais consolidada de que política
nós queremos desenvolver. É preciso também que cada segmento possa entender,
que o mundo, as situações vão mudando, a gente precisa acompanhar a realidade.
O próprio governo, as ONGs, as Igrejas precisam se adaptar às realidades que nós
temos nas comunidades (Sebastião Manchinery, 18 abr. 2003).
Eu acho que o governo brasileiro, tanto no passado como agora no presente, não
tem porque estar pensando, a legislação brasileira já determina que qualquer terra
ocupada pelos povos indígenas é obrigação do governo brasileiro fazer a
demarcação. [...] Aqui no Acre e sul do Amazonas nós temos 10 terras que é preciso
fazer esta demarcação. Então a questão da demarcação de terras não tem que ser
uma briga ou uma disputa política para qualquer governo, porque a gente sabe que
a terra indígena é uma terra da União, com os povos indígenas tem uma garantia de
226

proteger e ter uma maior fiscalização, para isso é preciso de uma boa educação
com planejamento com treinamento, acima de tudo uma boa formação para as
comunidades indígenas e quem está na frente (Manoel Gomes Kaxinawá. programa
AC-TV. TV - Acre, 07 jun. 2003).

Outras exigências: condições para que ocorra mudança de mentalidade para se


firmar relações respeitosas estão relacionadas à vontade política para rever verdades, como as
históricas, fabricadas pela cultura dominante.
Para restabelecer as verdades sobre a história e culturas indígenas, nos livros
escolares, é preciso empenho do poder público e instituições da sociedade dominante para
restabelecer as verdades que foram caladas. As falas a seguir reafirmam a crítica, explicitada
no final do segundo capítulo, sobre a celebração da fundação do Acre e os heróis
ressignificados, fabricados pela narrativa dominante da história. Neste caso, é preciso sair do
discurso da valorização e fazê-la acontecer em ações concretas, condição para que se firme a
“paz” em relações respeitosas:
Eu acredito que a história indígena e a cultura indígena têm muito a ver com o
Estado brasileiro. O Estado precisa entender que sem essa parte ele não pode fazer
uma história perfeita. Eu só vou acreditar no Estado rico de seu passado quando ele
passar realmente a respeitar, que isso possa ser realmente repassado a todos,
independente de ser preto, branco ou índio, passar a conhecer de perto a sua
história, as suas origens. Porque se não conhecer nós vamos realmente continuar
mantendo esta questão da desigualdade, onde a diferença não é reconhecida e a
diferença passa a ser uma coisa que não deve estar lá. O importante é, assim como
nós reconhecemos o não-índio, os não-índios nos reconhecerem, para haver um
mútuo respeito entre culturas. Cada um terá sua identidade e não é trabalho demais
para chegar a essa compreensão, é apenas um processo necessário para o
enriquecimento do ser humano (Antonio Apurinã, 21 fev. 2003).
Para você ter uma idéia, a história do Acre vai começar de um tempo desses para
cá e, agora, tem uns livros que está até mais ou menos, mas, coloca aí uns atores
que eu não concordo, como os grandes heróis da revolução. Eu sempre tenho na
mente e vou defender - inclusive até arenguei com um professor de história na sala
de aula uma vez - que quem fez a verdadeira revolução fomos nós, os povos
indígenas. Porque nós éramos povos diferentes e nós fazíamos a revolução com os
caucheiros que vinham com os peruanos, com os bolivianos, com outras pessoas
que vinham de fora, para defender o nosso território. Tanto que meu povo quase foi
extinto lutando, guerreando, morrendo e matando para se defender, para defender
os nossos territórios. Nós e os nossos parentes como os Manchinery, os Kaxinawá e
outros que moram nas fronteiras, fizemos a verdadeira revolução, lutando contra os
peruanos, contra os bolivianos que vinham invadindo nosso território, brigando,
defendendo, porque nós éramos os vigias. Meu avô conta a história: nós tínhamos
guias, tanto que a nossa história é conhecida por outros povos como os Yawanawá,
por exemplo, eles sabem muita coisa dos Poyanáwa porque eles vigiavam, eles
tinham aquelas pessoas que saiam para vigiar, andavam o território inteiro, a terra
inteira, entravam no território de outros povos para ver quem era perigoso, quem
não era, quem era valente, quem não era, onde estava o perigo e onde não esta va.
[...] Eu não concordo com esses heróis. Eu sei, quem estuda história sabe os
interesses que estes cidadãos tinham quando vinham para cá. Não era de pegar o
Acre para o Brasil porque eram bonzinhos, nós sabemos qual era o interesse deles,
eles queriam as riquezas que tem aqui. O interesse era a borracha, o interesse
econômico. Tanto que no primeiro ciclo da borracha, os nossos parentes, os pobres
dos índios tiveram que ir para o seringal, cortar seringa. Lá na minha terra os
227

homens iam para o seringal cortar seringa e as mulheres carregar a borracha no


“can-can” e iam na chibata [...] Era no cipó, apanhavam, era escravidão mesmo.
Aqueles que tentavam fugir os cachorros iam lá e pegava, quando não matava...
(Maria Vanísia Poyanáwa, 19 fev. 2003).
Neste governo atual nós não queremos fazer um trabalho só de apagar fogo, por
exemplo, só os índios fazendo a demarcação através de morte de lideranças
indígenas importante, aqui no Acre nós nunca queremos fazer isso. Porque somos
sensíveis, reconhecemos isso, mas não queremos ter uma história, ou seja, um
avanço em cima da morte de um liderança importante nosso, nós queremos que
realmente seja valorizado as pessoas que estão ali naquela terra e valorizar é
demarcar, não é matar alguém para depois estar realmente fa lando em nome
daquela pessoa. Não podemos realmente aproveitar a perda de vida de cidadão
para depois estar dizendo, “não, fulano fez isso e por isso que eu vou...” Não. Tem
que fazer isso consciente, nós temos que fazer a demarcação das terras com o
governo brasileiro, com ajuda do governo estadual e ajuda da própria funai
(Manoel Gomes Kaxinawá, programa AC-TV, TV - Acre, 07 jun. 2003).
[o movimento de mulheres indígenas propõe] Que o Estado brasileiro nos
reconheça como povos indígenas; Imediata aprovação do Estatuto dos Povos
Indígenas; Mudança na legislação: que seja reconhecida nossa capacidade plena;
Reconhecer, respeitar e proteger os direitos intelectuais, os conhecimentos
tradicionais e a diversidade biológica (patrimônio genético); [...] Direito e acesso à
qualificação e formação de profissionais indígenas voltados a realidade de suas
comunidades; Reconhecimento e o respeito à identidade indígena, daqueles/as que
por força dos processos históricos de contato e colonização, vivem fora das aldeias
e dos povos que estão ressurgindo; Reconhecimento e organização das nações
indígenas; Acesso aos quadros dos órgãos do governo que tratam da questão
indígena; [...] Reformulação da política indigenista oficial e a urgente
reestruturação do órgão indigenista, Funai (Manifesto do I Encontro de Mulheres,
2001).
A paz entre índios e regionais no Acre e Sul do Amazonas ainda não foi
efetivamente concluída. Sua construção requer um longo processo de diálogo e
respeito, jamais atos e comportamentos contra humanidade, que remontam as
práticas genocidas do período áureo do extrativismo. As relações sociais neo-
extrativistas não podem ser construídas a partir de praxis que lembram as
“correrias” do passado. [...] A valorização das populações indígenas não deve ser
apenas retórica dos discursos oficiais ou promoção de eventos festivos para
manutenção de uma imagem pública pró-indígena, mas sim o reconhecimento
pleno: a) dos direitos históricos a territórios compatíveis nos termos estabelecidos
no § 1º do Art. 231 da Constituição Brasileira de 1988, b) do direito ao exercício do
multiculturalismo, costumes e organização social, e, sobretudo, c) do seu direito de
autodeterminação (Manoel Gomes da Silva, In: A Gazeta, 31 jan. 2002).

Para que sejam estabelecidas condições para relações respeitosas, tal como
argumentamos no terceiro capítulo, as lideranças do movimento indígena defendem medidas
políticas; ações para acabar com o preconceito e a discriminação imposta aos indígenas:
A gente sabe que toda a luta do movimento pode ser uma receita para acabar com a
discriminação. Eu digo sempre assim: não devemos dar a resposta na altura da
ignorância mas dar resposta dizendo que somos capazes de fazer e mostrando o
trabalho concreto que a gente fez. [...] A discriminação hoje está em todos os
lugares, está no posto de saúde, está nas escolas públicas e particulares, está em
todo canto. Quando a gente começa a fazer alguma coisa as pessoas começam a
falar mais baixo, aí diz: “pô, mas ele é um índio mas pô, ele está fazendo”, aí então
a melhor receita para acabar com o preconceito e a discriminação seria a educação
para todos. [...] Queremos uma educação de fazer de fato, o próprio índio fazendo
seus projetos, colocando no papel, encaminhando. Ter o índio no legislativo mirim,
como vereador, como deputado para fazer as emendas daquilo que o estado deve
228

executar dentro dos direitos indígenas. Eu acho que fazendo isso é acabar com o
preconceito e a discriminação. [...] Eu sempre falo assim: o preconceito e a
discriminação são doenças que não se acabam. Elas diminuem mas não acabam, eu
digo assim: os próprios brancos têm preconceito com os brancos, quanto mais
contra o índio que é diferente. Eu acho que a melhor ação para diminuir é trabalhar
com autonomia, porque hoje o índio é muito discriminado por dizerem que o índio
ainda precisa de alguém pra ele se manter com sustentabilidade. Para manter o
índio não precisa de sacolão, não precisa estar dando uma esmolinha, eu acho que
é dar condição, dar conhecimento para que ele faça. Dar o instrumento de trabalho,
o conhecimento principalmente das leis (Manoel Gomes Kaxinawá, 07 mar. 2003).
Primeiro tem que ter ações de governo. Depois, para acabar com o preconceito tem
que ser produzido cartilhas, vídeos, materiais sobre os indígenas. Garantir o acesso
de indígenas na universidade e assim, mostrar que o indígena é gente igual a
qualquer cidadão não-indígena. Quando vou dar palestras nas escolas percebo que
o pessoal não distingue a diferença de um Shanenawa para um Manchinery que é o
mesmo diferença de um índio para um japonês (Carlos Brandão Shanenawa, 07
mar. 2003).
O preconceito é menor quando as pessoas que estão no poder conhecem e ajudam a
combater e o poder público tem como fazer isso, investindo no esclarecimento, no
debate, em atos públicos, na valorização da cultura. Se os governantes que estão no
poder estiverem valorizando a sociedade vai entender a importância. Se não fosse
importante o governo não estaria valorizando, não estaria incentivando. Se aqueles
que estiverem no poder valorizarem as culturas aí sim se combate o racismo, o
preconceito (Auricélio Brandão Shanenawa, 12 jun. 2003).
É preciso conclamar as autoridades do governo [...] e dirigentes de entidades de
classe para a urgente necessidade de se eliminar atitudes segregacionistas contra
os indígenas da região, sob pena da História julgar negativamente tais eventos e
processos. Assim, a UNI é contrária às diferentes práticas de exclusão social, seja
através da morte lenta de pessoas e culturas produzida pela venda ilegal de bebidas
alcoólicas pelos comerciantes locais; pela manipulação de lideranças; seja pelo
descaso das autoridades frente às reivindicações dos povos indígenas Shanenawa,
Asheninka, Madija e Kaxinawá, etc. Enfim, reitera-se a necessidade de se
desenvolver uma mentalidade pública de diálogo e respeito às populações indígenas
da região. Esta é uma tarefa tão urgente quanto necessária, evitando-se, assim
formas veladas e manifestadas de discriminação étnica que podem redundar em
novos atos de violência. [...] Em suma, a União das Nações Indígenas do Acre e do
Sul do Amazonas – UNI [...] Reafirma ser inconcebível que, após 500 anos de
genocídio, escravidão, usurpação de territórios, destruição cultural, que o Acre
reproduza, as mesmas práticas etnocêntricas e discriminatórias do passado, que
foram responsáveis pela dizimação de dezenas de povos indígenas nesta região do
Acre e sul do Amazonas. A UNI está vigilante e disposta a defender de todas as
formas os direitos dos povos indígenas, porque acredita que neste país não há lugar
para aparteid étnico (Manoel Gomes da Silva, In: A Gazeta, 31 jan. 2002).

Para o resgate da dignidade dos povos indígenas, é preciso investir nas escolas
não-indígenas, desconstruindo os estereótipos imputados aos indígenas, fazer reconhecer as
culturas dos povos brasileiros, a iniciar pelos que dividem a mesma região geográfica:
O reconhecimento das diferenças culturais, a valorização das culturas e da história
indígena só vai acontecer a partir do momento em que todos tenham além do
conhecimento que já estudam convencionalmente, passe a fazer parte dos currículos
escolares a história a cultura de todos os povos do Brasil. Eu acredito que em
algum momento já estão trabalhando isso, mas precisa ser de forma mais incisiva.
Com base nas conquistas que já tivemos, eu acredito muito nisso. Em qualquer
lugar onde eu estiver eu defendo isso, chamo atenção para isso. Até porque a gente
vai tomar conhecimento de fato do Brasil quando puder realmente infiltrar as
outras culturas brasileiras em qualquer nível escolar. Não é fácil, ainda existe uma
229

resistência muito grande mas aos poucos nós vamos realmente conseguir. É possível
até porque hoje eu vejo “enes” instâncias, pessoas interessadas em compreender
isso ajudando de alguma forma a levar isso para ser discutido. Já existe um
cenário, um espaço para esta discussão, o que é uma grande coisa, o que precisa
agora é intensificar, fazer valer (Antonio Apurinã, 21 fev. 2003).
Nós que sabemos um pouco da verdadeira história sabíamos que aquilo ali não era
verdade. Sempre colocavam uma imagem, mostravam uma imagem do índio como
preguiçoso, com uma série de coisas que não é verdade. O índio trabalha e muito,
só que de acordo com a sua necessidade. E eu acredito que pra gente reverter um
pouco desta situação, os livros didáticos, a história, precisa ser contada na sua
forma verdadeira, real. E, plantada de forma verdadeira, dentro das escolas, dentro
das universidades, para os jovens, para as pessoas que estão saindo das
universidades, principalmente para os estudantes de Direito e, enfim, eu acho que
muita gente precisa ser capacitada, aprimorada, mesmo porque muitos praticam
violência, que não é só violência física, nós sabemos que violência é muito ampla
(Maria Vanísia Poyanáwa, 19 fev. 2003).
Pra você ver o quanto o índio tem contribuído com esta nação, com esta terra
chamada Acre, entretanto, é exaltada a cultura dominante, enquanto que é
reforçado o preconceito para com as culturas indígenas. [...] É preciso que mais
professores venham a abraçar esta questão, esta luta, esta causa, porque é questão
mesmo de conhecimento. De passar, de os alunos e futuros professores terem estas
informações. Eles detendo os conhecimentos no trabalho com seus alunos, apesar
da educação familiar, o professor vai influenciar muito. Os professores hoje não
sabem, eles não conhecem as culturas do Acre, eles não conhecem os povos
indígenas que moram aqui. Eles não sabem de forma alguma. Eles não sabem nem
da própria história deles, se é descendente de seringueiro, nem sabe porque veio
morar na cidade. Eu acho que está aí, a questão é a mudança de mentalidade das
gerações que estão saindo da universidade, dos professores, da educação, nas
escolas, é interagindo. Os professores buscando mais o movimento indígena, se
aproximando mais desta população, não se distanciando, não ensinando somente
através dos livros, mas sim, estar junto ali, tendo uma interação, uma troca de
informações, de cultura, eu acho que isto aí vai contribuir muito, vai ajudar.
Também nas bibliotecas, nos livros, você não vê muita informação da história do
Acre. Você vai ver no nível médio para cima mas é uma coisa passada muito por
cima, com quilômetros distância, você não tem aproximação, até dos próprios
historiadores que fazem os livros. Eu acho que tem que ter esta questão nas
bibliotecas, tem que estar lá a história do Acre, realmente como ela é, a história
indígena, a música indígena, nosso mitos, os rituais, tudo isto faz parte da nossa
vida, não adianta você esconder. Não adianta botar uma peneira no sol para cobrir
porque não vai cobrir. Eu acho que é por aí, esta revolução de mentalidade mesmo.
Eu acho que a universidade vai contribuir muito com isso, lá também, não só lá,
mas é de lá que vão sair os novos professores, os novos sociólogos, advogados. É
preciso abrir este debate na universidade e dentro das escolas também. Na
Secretaria de Educação, tem que ter o índio lá, estar participando dos
planejamentos, dos currículos pedagógicos, tem que ter uma participação indígena
porque se não tiver, vai continuar da mesma forma como está. Então, estas pessoas
que estão ali tem que mudar esta visão, esta mentalidade e estes espaços têm que
ser abertos porque é através destes espaços que vai mudando (Miralda Apurinã, 19
fev. 2003).

Neste processo de construção de relações respeitosas entre povos, a população


indígena reivindica da universidade empenho, viabilizando o acesso de indígenas à formação
superior, aos conhecimentos mais elaborados da cultura dominante, e, ainda, empenho na
valorização dos povos e culturas nativas da região, nas diferentes áreas de formação:
230

A prioridade é de dar continuidade à formação dos professores para que possam


com esta formação criar uma base de formação na sua aldeia, [...] um sistema
próprio de educação na sua comunidade (Isaac Pianko Ashaninka, 03 mai. 2002).
Em 1999, nós, da organização, começamos a levantar essa discussão sobre o nível
superior, como que iríamos fazer. Nós começamos a discutir com várias instituições
e organizações, ligadas ao ensino diferenciado indígena. E agora acreditamos que
está na hora de nós mesmos falarmos e criarmos uma proposta para o nível
superior. Não adianta as instituições criarem, nós é que temos que ser os atores,
pois vamos dar seqüência numa formação dentro de um processo que estamos
participando há tempos, não é de hoje. [...] Acreditamos que essa proposta seria
voltada para a valorização cultural da maneira dos povos indígenas. Tanto a
questão da língua, como a ciência, a história, a geografia, a nossa própria
matemática, de que maneira a gente contava, porque existe tudo isso, faz parte de
nossa cultura. Isso é uma riqueza que é contada de forma diferente, que por meio do
„contato‟, os próprios povos indígenas passaram a não dar valor a esse
conhecimento, isso devido à pressão que sofreram. Nós professores estamos vendo
essa necessidade. [...] Seria fazer um trabalho de pesquisa. A sala de aula vai ser a
nova referência para observar, investigar aquilo que queremos dentro da cultura
daquele povo. Seremos pesquisadores que vão a campo, trabalharemos criando
publicações, materiais didáticos e outros. [...] Dentro dessa investigação nós vamos
identificar o espaço, o tempo, que nossos antepassados utilizaram. Por que esse
povo viveu até hoje, mesmo sem ter o conhecimento da escrita? Acho que vivemos
até melhor. Hoje estamos mais cautelosos, para que a gente não se atropele. [o
papel do professor indígena com formação superior] fazer o papel de mediador entre
a sua cultura e a outra cultura, ele vai refletir tanto na sua como na da outra
sociedade. Ele vai saber o que pode juntar para construir uma sociedade dos povos
indígenas, sem que se interfira nas suas maneiras próprias de aprendizado, ao
contrário, com o propósito de fortalecer. Mesmo que você domine o mundo da
tecnologia da escrita, mas é preciso respeitar, o lado tradicional, essa maneira de
aprender. Precisamos respeitar o conjunto de conhecimentos que vai da família às
pessoas mais antigas. [o papel da educação escolar indígena] Acho que é uma
reflexão de acordo com que já vem sendo feito por nós, como a defesa do território.
Hoje ensinamos como utilizar os recursos do território, que esse é o ponto forte
dentro das escolas. Aí se situa o agente agroflorestal, o de saúde, o professor e as
pessoas mais velhas, os conhecedores do conhecimento. Por isso falamos dessa
forte relação com nosso trabalho em sala de aula. Tudo se situa no nosso projeto
político-pedágogico. [os professores] irão discutir com a comunidade para saber o
que pode ser complementado dentro da escola. Eles ao invés de esta rem
trabalhando somente na teoria, irão a campo como é a maneira tradicional. O
artesanato, antes era somente indumentária, hoje é comercial. Mas como iremos
utilizar esse material sem que prejudique o meio ambiente e esses recursos. As
sementes, será que vamos derrubar as árvores ou vamos coletar? A escola discute
isso. O professor neste momento não tem que ser professor somente na sala de aula,
mas nas discussões comunitárias para ajudar a refletir (Isaac Pianko Ashaninka,
In: Página 20, 15 abr. 2003).
O mais importante é fazer a parceria com todo o segmento que trabalha com a
educação, principalmente com a formação superior [...]. A universidade não é
somente um parceiro, mas responsável pela condução desse processo. Nós iremos
fazer só o acompanhamento do processo. A importância da criação do curso de
nível superior indígena, vem de encontro ao aprofundamento dos valores, tanto
culturais dos povos indígenas, como o conhecimento e políticas do 'mundo exterior'.
Isso servirá para podermos fazer um esclarecimento e montar um diálogo com a
sociedade e dizer quem nós somos. E a partir daí, trabalhar a organização da
comunidade, porque o contato fez com que muitas delas, vissem essa sociedade, a
escrita, como a solução. Nós não. Vemos um outro lado que é muito mais
importante que é a nossa tradição. Precisamos trabalhar o reconhecimento e a
valorização dos seus recursos próprios, de cada povo. E a Universidade que
apontamos vai nesse sentido. O professor vai ter que refletir tanto com essa
sociedade como com a sua (Isaac Pianko Ashaninka, In: Página 20, 15 ago. 2003).
231

Na universidade há o centro que pretendemos tornar ali um espaço que avance as


nossas discussões. Um centro que trabalhe para nós mesmos, para que possamos
obter o conhecimento necessário para fazer o papel administrativo, burocrático que
precisamos. Na universidade, uma conquista já obtida pela população indígena, e o
ingresso de 6 de seis indígenas pelas vias normais (Francisco Avelino Apurinã,
mar. 2003).
Eu acho que hoje a educação, de um modo geral, é muito fraca no nosso Estado
brasileiro, principalmente aqui no Acre. Para nós não é apenas educação mas
capacidade de mostrar que somos pessoas capazes de propor uma política pública
para que o governo do Estado, governo Federal, execute. E nós estamos buscando,
é tanto que já temos um convênio: UNI, UFAC e Fundação FORD com a intenção
de melhorar nossa organização com recursos humanos. Acreditamos que o índio
tem que administrar o seu próprio trabalho sem desprezar suas parcerias. O
próprio índio administrando, fazendo suas contabilidades, o próprio índio
defendendo os seus direitos como advogado, o próprio índio como enfermeiro para
cuidar dos seus parentes nos hospitais públicos, o próprio índio como médico para
que possa cuidar de seus parentes da forma que ele precisa, sem preconceito e sem
discriminação (Manoel Gomes Kaxinawá, 07 mar. 2003).
Para criar meios para que o índio entre na universidade não é facilitar e sim ter
uma educação de qualidade igual para todo mundo (Francisco Pianko Ashaninka,
30 abr. 2003).

Concluindo, as falas reforçam a perspectiva contra-hegemônica, que defende o


viver bem, com liberdade, e que pressupõe o conhecimento das outras culturas, dos outros
povos, à volta de seu mundo, condição para estabelecer relações com respeito à dignidade de
todos. A escola auxilia nesta tarefa de conhecer e reagir diante da pressão da cultura
dominante; conhecer e poder discernir o que é bom ou ruim desta cultura dominante e outras
culturas, para a sua. Conforme Antonio Apurinã:
A liberdade que estamos conquistando hoje, numa terra indígena ultrapassa
qualquer liberdade que você tenha, mesmo morando na cidade. Mesmo porque na
cidade você está sujeito a violência. Temos liberdade porque conhecemos as regras,
todos respeitam todos de alguma forma. Claro que tem algumas coisas ruins que a
civilização trouxe, está aí e tem que adotar. Todo e qualquer mal, hoje, dentro da
terra indígena, é proveniente do mundo civilizado, da sociedade ocidental e só está
vindo porque a gente não está muito preparado para lidar com isso. A gente precisa
conhecer estas coisas para manter um padrão de vida. Não é proibido nem é crime
você viver bem. Viver bem é você estar conhecendo direitos seus e do outro e passar
a viver mutuamente se respeitando em suas diferenças (Antonio Apurinã, 21 fev.
2003).

Por fim, as falas aqui apresentadas, apesar da polifonia - justificada por


tratarmos de uma grande diversidade de povos, em graus diferentes de relações com a
sociedade dominante - enfatizam os problemas representados no persistente preconceito que
gera exclusão. Mais ainda: enfatizam a mobilização que tem efeito positivo, fazendo com que
os indígenas acreditem em seu potencial para mudar. Para tal, a educação escolar, sem
supervalorização do seu papel, tornou-se um instrumento político necessário que se molda
para contribuir nesta mudança, em favor dos projetos de emancipação sociocultural da
população indígena.
CONCLUSÃO

Na forma de conclusão, nesta parte final do trabalho, temos como propósito


afirmar pontos relevantes e reforçar alguns conceitos, com base no aprendizado que
adquirimos no diálogo com professores e lideranças que fazem o movimento indígena.
Substancialmente, interessa-nos enfatizar caminhos possíveis para pautar o trabalho conjunto
entre “diferentes”, confirmando a escola como espaço favorável na realização desta tarefa,
espaço em processo de construção, atentando para as especificidades das comunidades
indígenas e seus projetos no diálogo com a cultura dominante.
Explicitando melhor, neste estudo, analisamos a educação escolar que, ao ser
viabilizada nas comunidades indígenas da região Amazônia ocidental, por um lado, lidará
com conseqüências históricas e atuais de exclusão, situações de negação que os indígenas
foram submetidos; e que, necessariamente, tal educação deverá ser acompanhada de medidas
que compensem as desvantagens, inclusive de subsistência. Por outro lado, estará, também,
inserida em ambientes distintos, no contexto plural formado por 185 comunidades, portanto,
influenciada e ajustada ao modo de ser de cada um dos ambientes desta pluralidade, em
processo de contínuo aprimoramento, como recurso favorável aos anseios destas
comunidades. Por fim, as políticas de educação são influenciadas pelo movimento, por meio
das organizações indígenas que pensam a escola entre as estratégias de emancipação
sociocultural. Neste particular, a educação escolar é trabalhada, conjuntamente, no exercício
de relações, de conflitos e de diálogo entre os diferentes povos indígenas; exercício cuja
prática já vem sendo construída por lideranças destes povos há 20 anos, mobilizados e
representados num organismo político regional, a União das Nações Indígenas.
Considerando tais aspectos, a escola, quando assimilada pela comunidade,
tende a ser pensada a partir do ambiente social e cultural; isto é, além de propiciar a aquisição
de conhecimentos da cultura dominante, na medida que o papel da escola é debatido pela
comunidade a própria escola se torna espaço para “educação na cultura”, trabalhando,
também, como conteúdo escolar a visão de mundo, valores culturais, saberes e valendo-se de
processos próprios de ensino e aprendizagem; tornando-se, assim, diferenciada e intercultural.
Como constitui um processo recente e considerando o crescente
empoderamento do movimento indígena, a escola é motivo de constante debate, sobretudo por
não estar apresentando os resultados esperados, fato que leva, inevitavelmente, para ter
233

qualidade, que a escola assuma contornos próprios de comunidade à comunidade,


diferenciando-se mais ou menos do formato da escola monocultural nacional. Fato que não
permite reunir numa única definição o papel exercido pelas escolas para a população indígena
regional, embora a aquisição de instrumentos da cultural dominante continua como uma
atribuição comum a todas.
Assim, trabalhamos com o conjunto, pelas razões que apresentamos no início
do trabalho e, sobretudo, por ser a forma como somos convidados a cooperar nas políticas
indigenistas. Portanto, fomos pela forma usual de se trabalhar, considerando todos os povos
indígenas da Amazônia ocidental, respeitando suas particularidades, aprendendo a trabalhar
com a pluralidade, situando o nosso pensar na “concretude dos contextos plurais”.
Em outro âmbito, não perdemos de vista a noção de que a conquista da
liberdade/dignidade é um anseio de todos. Embora tenhamos focalizado a população indígena,
não perdemos de vista a noção de que a grande maioria da população regional está excluída
de condições dignas de bem viver, assim como um terço da população mundial, motivo pelo
qual tratamos da mobilização indígena no conjunto dos movimentos socioculturais,
acreditando que só é possível uma cidadania planetária quando for conquistada a cidadania
local com vida boa, vida digna para todos.
Na produção deste trabalho, assim como na participação em outras atividades
com povos indígenas, exercitamos o diálogo intercultural, atuando, como denominam as
lideranças, entre as parcerias do movimento indígena, respeitando o protagonismo deste
movimento, tal como reivindicam. Portanto, é o “trabalhar juntos”, acreditando que as
conquistas do outro, como nos referimos na introdução, contribuem para a nossa
sobrevivência. Em outras palavras, a viabilização de projetos de vida das comunidades, o
enfrentamento dos desafios pelo reconhecimento e valorização das culturas e o conseqüente
reconhecimento de comunidades, de povos, é ponto essencial para o restabelecimento da
dignidade, do bem viver, para emancipação social de um maior número de pessoas.
A herança histórica de exclusão, enfatizada neste estudo, é uma referência para
que ações destinadas, exclusivamente, para povos indígenas não sejam caracterizadas como
assistencialismo-paternalista da sociedade ocidental, privilegiando um segmento, entre outros,
de excluídos. Trata-se de uma questão de justiça, que se reivindica para povos, pessoas que
foram espoliadas desde o direito a sua autodenominação até a condição de pessoa humana.
Por justiça, cabe-lhes o direito a medidas compensatórias.
A defesa da educação escolar, com base nos argumentos que apresentamos
neste trabalho e que reforçaremos a seguir, não se dá alheia às ressalvas, às reservas comuns
234

entre estudiosos das ciências ocidentais, que estudam o “outro”, para os quais, a escola,
sobretudo pelo que representou no passado para os povos indígenas continua uma instituição
mais perniciosa que benéfica para as culturas nativas. Ouvimos, por exemplo, que a escola é
mais perniciosa que o garimpeiro numa comunidade indígena porque o garimpeiro, eles já
sabem que é inimigo enquanto que a escola chega como amiga; assemelha-se a um “cavalo de
tróia”. Argumentos usados para contestar que a escola deva ser universalizada.
Temos uma situação concreta, na qual, se formos esperar pela sociedade
dominante, o velho projeto homogeneizante seguirá seu curso. Restrições postas ao que está
em desvantagem, num contexto de pressão e interdependência com a sociedade regional,
como a situação que analisamos, têm contribuído para retardar a possibilidade da população
indígena restabelecer sua dignidade para firmar um diálogo na condição de igual com o não-
indígena. Enquanto isso, persiste, mesmo que subjetivamente, o “medo” de que o indígena
não será “capaz” de se apropriar da escola e reelaborá-la como instrumento a favor de seus
projetos. É ilustrativa, nesta questão, a fala de lideranças, como no caso da criação de uma
Secretaria de Estado para os povos indígenas, cuja pasta, diante do poder político do
movimento, inevitavelmente seria ocupada por um indígena, para a qual o provável cotado
para a função percebe a restrição do governante, como quem diz: “será que o Índio é capaz?”.
Como argumento contrário aos “perigos” da escola, pesa a constatação que
apresentamos com esse trabalho; as condicionantes a que ela é submetida, além do fato de a
sociedade dominante dispor de mecanismos, até mais eficientes, para construir a “ordem
civilizatória”. Tomando sob a perspectiva dos povos indígenas, a escola é um direito, uma
conquista, ou, como defendem professores e lideranças da região do rio Envira: queremos
uma escola boa, de primeira qualidade, com sua estrutura completa, mas com ensino
diferenciado e professores qualificados, da própria comunidade.
Diante do fato, quem somos nós para privar o “outro” do acesso ao
instrumental, que é usado para discriminá-lo, para categoriza-lo como “primitivo”? Em tais
circunstâncias, na atuação de quem se põe no trabalho “junto com”, tal como nos propusemos,
o risco maior a ser evitado é o de ficar preso ao ideário de verdades da cultura ocidental - que
por se auto-classificar como mais evoluída, considera saber o que é melhor para o outro - e
com isso decidir pelo outro.
No caso da educação escolar, é injusto, ou uma forma de preconceito,
sobretudo com professores com 10 a 20 anos de experiência, não dar os devidos créditos a
seus esforços e aos próprios resultados obtidos em seu trabalho de tornar indígena a sua
escola.
235

São notáveis, embora ainda poucas, as experiências bem sucedidas de


professores indígenas, confirmando depoimentos de professores, nos quais, afirmam que o
aprendizado não é só caneta. Seus ex-alunos, na cidade, estão se caracterizando como índios,
contando sua história; a diferença no trabalho da escola tem motivado os alunos a aprender
com os mais velhos, com os pajés. São falas e experiências que constatam a manutenção das
identidades culturais, naturalmente que na dinâmica dos atuais processos de luta, onde não se
preserva a cultura e sim valores culturais.
Convém ressaltar ainda que as experiências bem sucedidas não representam
aproximação a um padrão único de qualidade. Os posicionamentos diversos sobre a educação
escolar requerida para as comunidades indígenas revelam que não há uma única verdade para
a população indígena, nem mesmo para um único povo. A escola não é benéfica e necessária
para todos, igualmente. Considerando tanto o debate como a observação, na convivência neste
meio, podemos afirmar que, assim como nós, da sociedade dominante, não temos a melhor
solução, também as comunidades e lideranças indígenas podem ter posições equivocadas ou
restritas quanto ao que vem do mundo exterior. A vantagem do indígena, no debate sobre
políticas, particularmente de educação escolar, é que eles falam de “dentro”, a partir de suas
comunidades e melhor podem traduzir os projetos de futuro sonhado pelos seus.
Assim, considerando as ressalvas, arriscamos inferir alguns pontos que
denotam o papel da educação escolar entre os povos indígenas da região Acre e sul do
Amazonas. Isto é, de que forma a escola a que os índios foram excluídos ou lhes foi imposta
para apagar suas identidades torna-se instrumento a favor de suas lutas enquanto povos,
atuando, favoravelmente, na perspectiva dos movimentos socioculturais, articulando
igualdade e diferença numa sociedade plural social e culturalmente.
Dentro de seu contexto, é representativa a fala de uma das lideranças citada no
capítulo anterior, para o qual, todo e qualquer mal, hoje, dentro da terra indígena, é oriunda do
mundo civilizado. Até podemos questionar a generalização, mas não se pode negar o processo
irreversível de pressão sobre as culturas locais e o comprometimento da integridade da
Pachamama (Mãe Terra) forçando as comunidades a considerarem ser a “civilização” o maior
problema a ser administrado em seus projetos de futuro.
Os problemas atuais, sobretudo os enfrentados pelos africanos, afro-
descendentes e nativos americanos, assentam-se nas concepções que nortearam a
“civilização”, passando pela dominação da natureza e das sociedades tidas como “atrasadas”.
Tinha-se, como ponto de chegada, a ocidentalização do mundo.
Dos problemas atuais enfrentados pelas comunidades indígenas, demos maior
236

destaque ao preconceito, por tratar-se de uma das forças que mais interfere no mundo
indígena. Destacamos que o preconceito está ancorado em situações históricas, enraizado, a
tal ponto, que parece ser hereditário, isto é, o desprezo que os povos nativos foram
submetidos, desde o processo de invasão colonial, é transmitido por gerações, tanto que,
adjetivações usadas pelos colonizadores no passado não soam estranhas nos dias de hoje.
Na região da Amazônia ocidental, pelo fato da colonização ter ocorrido num
período mais recente, o preconceito teve desdobramentos particulares, sobretudo com a
chegada dos nordestinos na região, quando a importância do indígena desaparece até mesmo
na narrativa da história. Os indígenas só serão lembrados na condição de brabos mobilizando
patrões e seringueiros em expedições armadas, promovendo os ataques “preventivos”, as
correrias. Aos nordestinos serão dados os créditos na formação da identidade, da cultura
acreana, mesmo que esta cultura esteja assentada em saberes das culturas indígenas. O
elemento indígena é apagado diante do prestígio das novas forças de trabalho. Desse modo, as
novas gerações, sobretudo as dos centros urbanos, foram convencidas de que o índio não
contribuiu para a história acreana, daí a indiferença ou a idéia de que não existia “índio” no
Acre. Por outro lado, entre os seringueiros e população rural, em geral, o desapreço ao ser
indígena, “seres” sujeitos ao extermínio sem que pesasse remorso ou culpa a quem o fizesse,
somando-se os conflitos ainda recentes, resultou em forte carga de desprezo às “coisas de
índio”, sobretudo, a negação da ascendência indígena, apesar dos traços visíveis das feições
indígenas só admite-se a origem nordestina.
Diante de tal carga negativa, resistir para o indígena, implicou em esconder a
identidade cultural. A estratégia possível para sobrevivência física, que restou aos nativos, foi
negar-se como indígena e disputar espaço com o seringueiro para tornar-se um igual no
trabalho para um patrão. Ao sobrevivente indígena ficou a categorização: “caboclo”, cuja
valoração varia entre os conceitos de sujo, preguiçoso, bêbado, assassino, traiçoeiro, bicho e
pobre.
Atualmente, de acordo com levantamento realizado pela Funai, no Acre o
preconceito é responsável por 90% das causas de agressões e homicídios praticados contra os
indígenas, confirmando que a eliminação física e cultural atravessa a sociedade brasileira do
passado aos dias atuais. O preconceito, hoje, como afirmam as lideranças indígenas, ocorre
entre os cidadãos comuns e nas repartições públicas, de forma explicita, incidindo na relação
direta com indígenas, impedindo a entrada em repartições, ou, de forma sutil e elaborada, na
contestação de direitos, por vezes, partindo de pessoas que deveriam mediar a extensão de
serviços às comunidades indígenas. A negação da escola também persiste, tal como faziam os
237

patrões de um período recente, o cidadão comum questiona: “pra quê o índio quer estudar?”,
“para quê curso superior pra índio?”
No âmbito da perspectiva da classe dirigente no estado do Acre, a sutileza do
preconceito manifesta-se, também, nas políticas destinadas a reforçar o sentimento de
pertença regional. O “acreanismo”, o sentimento patriótico promovido pelo poder público,
assenta-se na narrativa da história acreana com a qual se construiu uma herança cultural, um
destino histórico compartilhado, estigmatizando e minimizando o “outro”, ou ainda, na sua
comum referência apenas ao passado, anterior à chegada dos atuais antepassados, abafando a
incômoda presença atual deste “outro”.
A celebração da conquista não só não faz justiça às nações milenares que
sofreram o assalto colonial bem como soa mal diante do fato de a história regional não se
tratar de um passado longínquo. Os massacres denominados “correrias” ocorreram até a
década de 1960. Para os indígenas, a verdadeira história está viva na memória, e, ainda mais
viva, nas tatuagens com as iniciais do patrão que os escravizou. Essa forma distorcida de
contar a história reforça a condição de inferior, imposta ao indígena Pela lógica, se foi
honroso o feito do colonizador, o indígena mereceu ser vencido.
Por fim, o pouco apreço ao indígena reflete-se na desinformação e na pouca
vontade de conhecê-los, refletidas em perspectivas limitadas, como o enquadramento de
povos distintos, numa formulação única, a “raça” indígena. Tanto a imprensa regional como
técnicos de diferentes setores, dada a formação estreita, tem dificuldade de ver cada povo
indígena como uma “totalidade”. Naturalmente que este entendimento não se generaliza. Há
técnicos, embora poucos, com trabalho dedicado à população indígena, conhecendo-os
melhor.
Num outro aspecto, sobretudo quando se refere ao impacto da escola sobre as
comunidades e sua cultura, persiste a idéia de cultura como um conjunto de valores que se
perde, daí, se deduz que, na comunidade cuja população veste roupa e fala português, estes já
não são indígenas, no máximo caboclos. Com base neste entendimento, as escolas levadas às
comunidades indígenas, até o final da década de 1990, eram escolas rurais, e os supervisores
que as acompanhavam proibiam o uso da “gíria”, língua indígena, nas escolas, nas quais era
cobrado o domínio de conteúdos, exclusivamente, da escola do “branco”, com provas
elaboradas por técnicos das secretarias e inspetorias de ensino. Com base neste entendimento,
também se firma a idéia de que se a escola for implantada em uma comunidade indígena e,
sobretudo, se esta escola possibilitar a seqüência dos estudos, o indígena, fatalmente, estaria
“perdendo” a sua cultura e sendo incorporado à cultura nacional.
238

Dentre as perspectivas mais favoráveis ao indígena, é comum, na região, a


visão romântica em torno da cultura indígena, sobretudo na relação com a floresta.
Perspectiva que contribui para falsear a realidade, por vezes assimilada e reproduzida até
mesmo em discursos de professores e lideranças indígenas. Perspectiva que não persiste ao
tempo e à conquista da autonomia. O tempo denuncia e permite que sejam dissipadas as
idealizações quando confrontadas com a imagem da situação real, da luta pela sobrevivência e
bem viver de uma comunidade, de um povo, onde são evidenciadas as contradições. No
entanto, em condições totais de dependência, para obter garantias mínimas de subsistência,
ficam sujeitos à reprodução do discurso romantizado de quem lhes possa apoiar.
À medida que conquistam autonomia, gradativamente é evidenciado o real
anseio, sonhos, projetos de futuro de um povo, até mesmo decepcionando antigos aliados, que
em dados momentos lhes foram solidários. Com autonomia, assumem o direito de falar pela
própria boca e andar com os próprios pés.
À medida que o movimento indígena se impõe nas atribuições que lhes são
próprias, no controle social das ações da sociedade dominante, destinadas à população
indígena, tal processo, não ocorre de forma tranqüila. As disputas e conflitos afloram tanto
internamente, na disputa entre povos e lideranças, mesmo que veladas, e no enfrentamento no
espaço público, seja na oposição resultante dos interesses e preconceitos da população
regional, seja no embate das proposições políticas do movimento indígena com as políticas
geradas como concessões pelos governos.
Nos dias atuais, ao menos perante o poder público, constitui um avanço o
reconhecimento dos até então “caboclos”, como indígenas, apesar da dificuldade em admitir
povos ressurgidos como os Apolima e os Náua. Porém, o problema do reconhecimento não
tem a ver só com o preconceito, o povo Náua teve como principal força opositora os
ecologistas e os empresários, interessados em explorar o turismo ecológico no parque
nacional sobreposto à terra indígena. Fato que ilustra o persistente interesse econômico,
agregado de novos setores egoístas, cujos interesses estão centrados na defesa de sua própria
sobrevivência e obtenção de lucros.
Tratando da recomposição do discurso hegemônico, com bases em mecanismos
econômico e financeiro, onde o mercado é a principal força reguladora das relações políticas e
socioculturais, esta alcança as aldeias com recursos mais eficientes que a escola. Surge, a
partir de benefícios importantes que ajudam a salvar vidas em regiões distantes, como a
energia elétrica via placas solar. Com a energia elétrica, é estendida a possibilidade do acesso
a recursos das novas tecnologias como a televisão. A partir desta, o mercado estende suas
239

teias globais, mantendo viva as perspectivas universalistas e, tendo como efeito, num primeiro
momento, a desconfiança das pessoas sobre seus valores culturais, sobre a língua e sistemas
educativos locais. Como conseqüência, é reeditado o desprezo à própria língua e cultura,
tornando as comunidades propensas ao abandono de tudo. Desse modo, a cultura dominante
leva adiante o projeto da nova ordem civilizatória, individualista, condenando as cidadanias
coletivas e pregando o destino comum de todos, como a Rede Globo de Televisão define:
“indivíduos consumidores”.
Nestas circunstâncias, comparando com os possíveis malefícios, levados pela
escola a uma comunidade indígena, o avanço das novas tecnologias é muito mais eficiente.
Além do grande poder de homogeneização cultural, a televisão se faz acompanhar, também,
do poder de nomear, de classificar as pessoas; tende a cegar a sociedade para as diferenças,
“vendo” todos como excluídos, à medida que estes não têm como adquirir os produtos de
consumo. Desse modo, é reelaborado o poder da sociedade dominante, poder que dá caráter
de verdade ao discurso; o poder de definir quem é quem, quem é e quem não é excluído.
É neste poder que exerce a cultura dominante, que se insere o debate sobre os
indicadores de desenvolvimento humano na Amazônia. Neste caso, como explicitamos no
segundo capítulo, os políticos do Acre têm feito defesas públicas pela “mudança” dos
indicadores sociais para aferição dos índices de qualidade de vida, na região amazônica, e
prometem, em 2004, realizar um senso para obter dados específicos e com eles debater tais
índices. O risco que se corre é de, antes de fazer valer o reconhecimento das diferenças
socioculturais, tornar oficial as desigualdades no acesso a direitos comuns a todos os
cidadãos; além do mais, a quem interessa os índices ou a mudança deles? Certamente não é à
população excluída; a estes, interessa ações concretas, que garantam melhoria de condições de
vida.
Persiste uma dificuldade enorme da parte da sociedade nacional, em refletir
com as comunidades e ver a forma mais adequada, respeitosa, na tradução dos direitos de
cidadania. Na dúvida, o poder público trata todos sem distinção, é o caso do assalariamento e
das aposentadorias. Não se trata de privar o direito de cidadania dos indígenas, e, sim, ao
estender o serviço a uma comunidade, deve haver a negociação e o direito de cidadania
adequar-se à conotação, que assume o bem viver, nesta comunidade.
Portanto, é neste engodo do poder público, que faz sentido a mobilização
indígena. As falas do sexto capítulo revelam que a estratégia do movimento indígena, diante
do preconceito, é não ficar esperando que o outro mude sua forma distorcida de tratamento e,
diante das limitações dos agentes públicos, alheios ao mundo do outro, estendendo coisas
240

esdrúxulas às aldeias, a estratégia consiste nas organizações fazerem o controle social


sobretudo das políticas alienígenas ou universalistas. Da parte do movimento, há mobilizações
para exigir, reivindicar políticas, propor medidas, mas, substancialmente, há um investimento
em demonstrar o seu potencial, sua capacidade enquanto pessoa humana, afirmando-se
indígena; portanto, um crescente poder político, que começa a interferir na correlação de
forças. O movimento quer interferir nos mecanismos de regulação do projeto dominante, que
tem limitado a autonomia dos povos indígenas.
Contrário à mobilização indígena, permanece o poder limitador da sociedade
dominante, as conquistas indígenas, pelo lado da sociedade dominante, são vistas como
“concessões”, as quais não se pode negar, num contexto de relações desiguais, vão até o
limite onde não ameace a supremacia do projeto dominante. É o que ocorre na política de
educação escolar, na qual, a autonomia é limitada com a sua adequação ao sistema do projeto
dominante. Numa frase, para as elites dominantes a nova liberdade só pode ir até onde a
corrente alcança.
É notável, nos dias de hoje diante da dimensão do movimento indígena e diante
dos espaços que ocupa a compreensão, a sabedoria das lideranças indígenas, à época do início
retomada de seus territórios, nas décadas de 1970 e 1980, quando concebiam como urgente o
acesso à educação escolar, ao saber do cariú, aquele que o antigo “patrão” usava para mantê-
los no cativeiro.
Indiferentes a possíveis malefícios que acompanhariam a escola, por ser um
instrumento monocultural, a serviço da cultura dominante, as antigas lideranças se
defrontavam em, primeiro plano, com uma relação desigual com os não-indígenas. Frente a
isto, previram que a perspectiva possível de emancipação social para seus povos passaria pelo
domínio de instrumentos da cultura dominante.
O mesmo fato ilustra a resistência construída em bases contraditórias, ao
menos, aos olhos ocidentais. Ninguém mais do que os indígenas da região do Acre sentiram a
opressão exercida pela palavra escrita, usada para mantê-los cativos, para nomeá-los negando-
lhes o direito à autodenominação, e ainda, usada para classificá-los como primitivos. A
mesma instituição, usada para negá-los, é reivindicada pelas comunidades indígenas. Querem
dominar tais instrumentos e ter o direito de exercer este poder; ter acesso a instituições com as
quais estão aprendendo a ser como o colonizador para poder negá-lo, afirmando-se como
singulares.
Convém reforçar o entendimento confirmado com esta pesquisa, o processo
continuado de conquista da escola. ou seja, as comunidades e o movimento indígena não se
241

satisfizeram com a escola, simplesmente. A reivindicação persiste e vai sendo direcionada


tanto na ampliação de seus serviços como em condições para que possa ser modelada, de
acordo com a cultura e interesses das comunidades.
Com um movimento ativo, a discussão não finda. Neste debate, já não é
estranha a discussão da escola vinculada a projetos de vida da comunidade, projetos de futuro
para o povo, para a comunidade. Neste aprofundamento, a escola vai ganhando contornos
mais definidos dentro do mundo indígena. Os objetivos educacionais vão sendo formulados,
visando o reforço a valores culturais conciliados com os objetivos políticos da comunidade e
do movimento. A limitação maior ainda consiste na necessária passagem do discurso para a
prática; processo que depende da escola ser pensada, construída e conduzida pelas
comunidades, e depende, também, de professores com formação nas devidas competências,
no papel de professor e domínio dos saberes na cultura indígena e na cultura nacional.
Em outras palavras, no contexto atual, os indígenas da região, em sua maioria,
estão cientes de sua cidadania e, no tocante à educação, todas as comunidades sabem que têm
direito à escola, que a escola constitui um direito de todo e qualquer cidadão. Hoje, a
reivindicação é posta em outros níveis, se diversifica, amparados no conhecimento de seus
direitos enquanto povos. Além das questões relacionadas à diferenciação da escola, as atuais
reivindicações são postas na continuidade da educação escolar para as séries finais do ensino
fundamental, para o ensino médio e formação superior bem como para alfabetização de
adultos e, até mesmo, educação infantil.
Atualmente, com o movimento indígena ocupando espaços políticos,
promovendo debates e cursos com lideranças e comunidades, são criadas condições para que
seja dada vazão às especificidades requeridas pelas comunidades. Mesmo que na prática a
escola não acompanhe o discurso, ainda há muita semelhança com as escolas rurais. Hoje, há
escola em grande parte das comunidades indígenas, que estiveram submetidas durante
décadas ao contato forçado com os invasores e posterior sociedade regional. Das comunidades
indígenas, situadas no estado do Acre, há escolas em todas que disponham do número mínimo
de interessados para que se possa abrir uma sala, e a mesma comunidade manifeste interesse
em ter esta instituição. As ressalvas, tal como explicitado no sexto capítulo, refletem a
diversidade associada ao grau de contato e a proximidade com as cidades. Portanto, assim
como há comunidades isoladas, há outras com relações mínimas com os não-indígenas.
Nestas, o desejo por escola é menos intenso, a subsistência não é tão dependente de relações
comerciais com os “brancos”, bastando que algumas lideranças dominem os mecanismos para
os esporádicos contatos. Mesmo neste segundo caso, esta instituição não é dispensada, pois
242

vêm a necessidade de se ter algumas pessoas da comunidade que falem a língua portuguesa,
“para se defender”, como afirmam.
A escola, como uma instituição danosa, entre os indígenas, reflete-se apenas
nos discursos de lideranças politizadas, sobretudo professores. Na verdade, a maioria dos
indígenas vê a escola como um serviço básico. É consenso, entre a população indígena, quais
foram as principais conquistas, por eles obtidas, nos últimos anos, nas quais, inserem-se os
territórios, a organização, os projetos de subsistência, o atendimento de saúde e a educação
escolar mediando todo este avanço. Portanto, tal como os territórios, também a escola insere-
se no conjunto das “conquistas”. Constituindo um direito conquistado, está superado o debate
se a escola interessa ou não.
O fato de os professores serem indígenas, da educação escolar não ser um
serviço prestado por estranhos à comunidade, e pelo fato de as escolas nas comunidades
indígenas não estarem mais subordinadas a setores antiindígenas, tornou esta instituição um
espaço muito mais próximo da comunidade onde está inserida. Nestas circunstâncias, após
alguns anos de presença da escola nas comunidades, famílias e lideranças querem ver
resultados. Nas reuniões comunitárias, com o papel decisivo das líderes do movimento, a
noção de qualidade vai sendo elaborada, ilustrada no relatório de seminários, tal como
destacamos no capítulo anterior, nos quais, não se debate se o povo quer ou não escola, o
debate entre comunidade, lideranças e professores é posto em outro patamar: “da educação
que temos à educação que queremos”.
As experiências, as iniciativas em tornar diferenciada a escola em comunidades
indígenas, no estado do Acre, tal como nos referimos no quinto capítulo, remontam a 20 anos.
A falta de vontade política ou o preconceito, manifestado na forma de indiferença, retardaram
a transformação de tais experiências em resultados efetivos, em todas as comunidades.
Somente a partir de 2000, o governo do Acre assume a política de educação diferenciada para
as comunidades indígenas. Só a partir de então, são criadas condições favoráveis para uma
resposta séria em educação, atentando para a diversidade sociocultural indígena.
Assim, embora o estado do Acre tenha uma política de educação para os povos
indígenas, pautada no respeito à diversidade de povos e a diversidade de interesses das muitas
comunidades, esta é, das demandas requeridas pela população indígena, a mais demorada para
ser efetivada a contento, seja pelo lento processo de sua ressignificação, adequação ao ideal
de escola requerido, seja pelo conjunto de demandas que estão envolvidas na sua viabilização
prática. Tal como temos enfatizado, a demora está no longo processo que requer a formação
de professores e a produção de materiais e recursos específicos para funcionamento das
243

escolas. Enfim, problemas comuns que afetam as escolas, em geral, decorrentes das políticas
de baixo investimento em educação e agravados por ainda ser novidade, no sistema
educacional brasileiro, a proposta de ajustar-se à pluralidade cultural.
As divergências surgidas com o aprofundamento do debate sobre o papel da
escola exercem efeito positivo por não permitir que sejam atropelas as diferenças culturais. Os
conflitos tendem a ser comuns, sobretudo no âmbito curricular, tanto no debate dos conteúdos
de ensino, quanto nos demais aspectos relacionados a estrutura e ao funcionamento da escola.
Por outro lado, o trabalho do professor ocorre num contexto de luta pela
conquista e garantia dos territórios indígenas; luta por alternativas de sustentabilidade, pela
autonomia econômica, contra discriminação e preconceito. Este contexto é questão do
cotidiano da comunidade onde a escola, professores e alunos são envolvidos, fomentando e
difundindo estratégias, debatendo direitos; enfim, a escola exerce um papel político a partir
das questões de interesse da comunidade. Este é um caminho, também apontado nas falas do
capítulo anterior, a relevância dada à história das lutas do povo como conscientização para
que a comunidade se envolva na busca de soluções para problemas atuais. A invasão e o
cativeiro no passado e as conquistas dos últimos tempos, como conteúdo escolar, auxiliam na
construção do futuro, na afirmação da identidade, na defesa do seu território.
O vínculo indissociável da escola com as lutas políticas do povo e do
movimento são o que dão sustentação para que a escola não constitua em elemento alienígena,
a serviço da cultura dominante. Portanto, a construção de “escolas indígenas”, no contexto
político atual das comunidades indígenas, só subsiste se estiver vinculada aos interesses do
movimento indígena e aos interesses das comunidades. Dizendo melhor, vinculada aos
projetos de vida e de futuro da comunidade onde está inserida. Um exemplo de escola que não
vingou em nenhuma das comunidades da região, dado o seu perfil estranho, foi as escolas dos
missionários americanos, das missões Novas Tribos. Quando indagados sobre o por quê da
descontinuidade, os indígenas afirmam que expulsaram ou mandaram embora os
missionários, por desentendimento. Fatos que, de certa forma, confirmam que a escola, para
subsistir, é forçada a adequar-se aos projetos políticos da comunidade.
Daí, a escola ser construída a partir da cultura da comunidade, onde se parte do
respeito para a promoção de valores que são próprios do povo, aspectos que constituem a sua
cultura e lhes permite o auto-reconhecimento e serem reconhecidos como tais. Os diferentes
trabalhos, que conhecemos em comunidades indígenas, comprovam que os avanços têm
acontecido, principalmente, onde há envolvimento da comunidade, na forma de comunidade
educativa. Como declaram alguns professores, para se ter a escola diferenciada é preciso que
244

os próprios indígenas façam. Segundo eles, não é a escola indígena adaptar-se ao sistema mas
o sistema adaptar-se às comunidades.
Avançando mais na construção da escola, há a proposta do movimento
indígena, em âmbito nacional, tal como destacamos no terceiro capítulo, idéia reforçada em
depoimentos de lideranças, propondo um sistema educacional próprio, voltado para os povos
indígenas, com acompanhamento e supervisão de um órgão ligado ao governo federal.
Portanto, o movimento indígena acredita que, desvinculando a escola indígena das amarras do
sistema nacional, além de evitar a possível submissão da escola indígena aos sistemas
municipais, em sua maioria antiindígenas, propiciaria às escolas, com mais autonomia, que se
tornassem indígenas.
Concretamente, os sistemas próprios não se enquadram nas “concessões” do
projeto dominante. Apesar disso, com a mobilização indígena, as escolas vão sendo moldadas
pelas comunidades, ligadas à historia do povo e dos demais povos indígenas, às lutas pelo
reconhecimento, pelo restabelecimento de dignidade e do bem viver em seu território,
tornando-se um instrumento importante na resistência. Com autonomia restrita, o recurso é
lidar com as formas possíveis de diferenciação. É onde se insere a decisiva atuação dos
professores indígenas.
Portanto, um recurso às limitações imposta pelo sistema dominante é a
formação consistente e continuada do professor. O processo de formação, quando tende a
programas específicos - apesar das ressalvas de lideranças como as mencionadas no capítulo
anterior, quanto ao fraco domínio de conteúdos “universais” - tem um aspecto positivo, que é
o fato dele se fazer acompanhar do trabalho político de conscientização do que seja a escola,
da legislação, dos direitos, refletindo nas lutas das comunidades, tal como mencionamos
acima. Dizendo de outra forma, assim como há escolas, as quais, mesmo sendo conduzidas
por professores indígenas, não reproduzem valores culturais indígenas, é, também, no
professor com a devida formação, que se assenta a possibilidade de superação da perspectiva
monocultural e a possibilidade de driblar as amarras do sistema.
É nos cursos específicos que o professor é instigado a pesquisar, conhecer e
aprofundar mais a cultura de seu povo. As falas de professores, ao contarem sua história nesta
função, partem da escolha da comunidade ou o convite do liderança para ser professor de sua
Aldeia, passando pela participação nos cursos, de onde ampliam a compreensão do papel
político da função, concluem que foi no curso que puderam descobrir o valor que tem a
identidade indígena.
Por fim, os rumos da educação escolar, entre os povos indígenas na região,
245

com as devidas ressalvas, como as diferenças, sobretudo de interesses, tende para a


especificidade cultural de cada povo. Contribui, para isto, o fato de o professor sempre ser
indicado pela comunidade, com raras exceções, os professores são pessoas do próprio
convívio da comunidade. Este é integrado a um programa de formação continuada, específica
para professores indígenas; nesta formação, se aperfeiçoa, toma parte do movimento indígena,
cooperando com as lideranças no controle social e político das ações e programas destinados a
sua comunidade. Neste intermédio, a escola é negociada entre comunidade e poder público,
resultando em projetos educativos, articulados aos projetos de sustentabilidade, projetos de
vida, de autonomia e futuro das comunidades. Mesmo que a escola esteja atrelada ao sistema
nacional e o saber indígena, na escola, ainda esteja restrito em proporção ao saber dominante,
o fato da escola partir da comunidade, e nela serem respeitados e promovidos aspectos
essenciais do povo, tais como a valorização de padrões estéticos, a recuperação da tecnologia
indígena, a introdução de processos próprios de ensino e aprendizagem, como a memória das
“bibliotecas” (os velhos) que se tornam os professores na cultura, permite o fortalecimento da
identidade do povo com base na cultura ou, como definem os professores, uma escola com
“cara e corpo indígenas”.
Por não se saber quais serão as transformações que poderão ocorrer com tais
comunidades, à medida que se aprofunda a escolarização, minimamente, dentro do que tem
sido possível, professores e, sobretudo, as lideranças do movimento, têm incluído o fator
“futuro” dos povos, das comunidades, no debate, sobretudo quando envolve políticas públicas
que impactam, significativamente, sobre estes povos. Neste particular, é ilustrativa a
experiência da comunidade Ashaninka do rio Amônia, tal como apresenta o professor da
comunidade, em relatos no sexto capítulo: a escola está inserida numa planificação maior da
comunidade e tem a ver com o que a comunidade deseja para o futuro.
Enfim, voltando à preocupação mais veiculada nos meios acadêmicos, a
disseminação desenfreada da educação escolar entre os indígenas, como instituição que
“mata” o “essencial” da cultura indígena, como afirmamos acima, esta não constitui uma
preocupação ausente, sobretudo entre os professores mais comprometidos politicamente.
Nestes, há uma constante autocrítica quanto aos resultados futuros de seu trabalho,
questionando se o seu trabalho não está sendo uma reprodução maquiada da escola do
passado, que vinha para integrá-los à “comunhão nacional”. Como resposta, há, pelo menos
no discurso, e que de alguma forma acaba refletindo na escola e na comunidade, a
conscientização de que é necessária a manutenção de valores, conhecimentos, características
que lhes são próprias enquanto povo.
246

De modo otimista, acreditamos que o discurso tende a contaminar a prática,


resultando em ações de revitalização, preservação de saberes e valores que sustentaram o
povo, através dos tempos, perspectiva possível ao considerarmos a avaliação dos professores
mais antigos, os quais, afirmam que o professor é um espelho para a comunidade.
Embora não sejam maioria, há professores indígenas realmente comprometidos
com o trabalho escolar, os quais, conseguem articular o fator atual, o trabalho político da
escola na resistência necessária da identidade cultural como estratégia de sobrevivência, com
o debate sobre o que é preciso para garantir o futuro sociocultural e econômico do povo. O
exemplo destes professores e lideranças confirma o potencial de resistência destes povos,
comprovando que são capazes de fazer uso da escola para afirmar suas identidades. São
capazes de avançar na adequação da educação escolar como instrumento que serve a esta
dinâmica do novo contexto, ao mesmo tempo em que não desacredite, ao contrário, promova
valores da cultura construída pelo povo.
Este entendimento é reforçado pela história dos povos indígenas da Amazônia
ocidental. Mesmo considerando que há um somatório de fatores que contribuem na
resistência, a história destes povos confirma que a identidade indígena persiste, mesmo
absorvendo mecanismos de outras sociedades, ressignificando-os. Isto é, o ser indígena hoje,
as próprias falas reproduzidas no capítulo anterior revelam que não está assentado em
referências, usualmente adotadas para discrimina-los, mas, sim, as comunidades permanecem
indígenas graças a elementos que poderíamos caracterizar como sendo essenciais e
relacionais, tais como, o sentimento de pertença associada à origem, à memória, à
espiritualidade, á língua e às tradições, entre outros aspectos, que vêm sendo reforçados, como
a territorialidade e a atualização de símbolos que os torna únicos, como os traços artísticos,
atualizados ao contexto atual, com as novas tecnologias do pós-contato. Neste ponto, a escola
por mais que esteja mal elaborada, enquanto indígena, o fato de enfatizar e promover o que é
próprio da comunidade, do povo, mesmo inserindo novos mecanismos, não será a
provocadora da incorporação do indígena à sociedade dominante.
A comprovação de que a escolarização indígena, na região, nos moldes como ela é
debatida, veiculada e reivindicada, não “desindianiza”, está no discurso das pessoas das
comunidades que falam dos índios escolarizados e o papel que exercem na comunidade, no
movimento. Em contrapartida, também os escolarizados falam a partir da identidade indígena;
falam a partir de sua coletividade. Naturalmente que se trata de uma identidade indígena que
vem sendo construída, reelaborada; fruto do caráter dinâmico da cultura, sem que sejam
abandonados elementos essenciais que os mantém na condição de povo.
247

Enfocando de forma mais reduzida, os interesses que são postos sobre a escola,
entre as comunidades indígenas, tal como já explicitamos, tais interesses apontam para
caminhos diversos, que vão do fortalecimento da comunidade, do povo, em torno dos valores
culturais, isto é, da emancipação sociocultural, ao mesmo desejo do não-indígena, à
possibilidade de um contrato. Sendo que, neste segundo caso, não entra em questão se
interfere ou não em seu vínculo com a identidade do povo, da comunidade. Apesar desta
diversificação, arriscamos pontuar, a seguir, atribuições que vêm sendo postas à escola;
aspectos que são recorrentes nas falas do sexto capítulo.
A escola, sobretudo para o movimento, para as organizações indígenas, é muito
importante, necessária, para que disponham de recursos técnicos para fazer o controle social,
tal como enfatizam professores e lideranças, no capítulo anterior. Controle social, que vem se
tornando a principal tarefa do movimento indígena, frente à pressão exercida pelos
mecanismos universalistas de globalização, frente o avanço acelerado dos interesses
econômicos e suas variações sobre o saber e recursos naturais, nas terras indígenas; assim
como, para enfrentar as ações alienadas do poder público, e demais pressões decorrentes do
preconceito dos não índios.
Ainda na perspectiva das lideranças das organizações, a escola tem o papel de
propiciar a aquisição de conhecimentos como forma de favorecer condições para relações em
condição de igualdade. Aspecto enfatizado nas falas do capítulo anterior, o necessário
domínio do conhecimento dominante, inclusive com acesso à universidade para aprender a
viver juntos, a viver com os outros. Neste âmbito, as relações mais favoráveis não acontecerão
apenas por causa do conhecimento, mas pelo fato de os indígenas demonstrarem que são
capazes de fazer, e com competência. Por exemplo, fazer a escola diferenciada de qualidade e
que funciona.
Para algumas lideranças e, sobretudo, na compreensão dos professores, a
educação escolar é vista como um processo de conscientização, de conhecimento da política
da sociedade dominante, conhecimento das leis, dos direitos. De alguma forma, os indígenas
concebem que o acesso aos conhecimentos, os saberes escolares não-indígenas, também
contribuem neste papel político da escola, principalmente quando se faz a distinção,
mostrando os dois mundos, como afirmam as lideranças: deixar claro que um não é igual ao
outro.
No mesmo sentido político, o papel da escola é posto como possibilidade de
aquisição do conhecimento do branco como defesa, forma como o indígena concebe a
possibilidade de relações sem ser inferiorizado, ridicularizado pelo branco, nestas relações. É
248

instrumentalizar-se, como afirmam algumas lideranças, sobretudo mostrando que é capaz.


Associada a este “instrumentalizar-se”, a escola é requerida, aleatoriamente, como capital
cultural, domínio do instrumental de comunicação da sociedade dominante, ou, ainda, como
afirmam, conhecimentos que temos que ter agora, como forma de comunicação, para produzir
e enviar correspondências e documentos.
A escola também é vista como favorecedora da instrumentação para ter
melhores condições de vida para a comunidade, sobretudo para não serem enganados como
acontecia, até recentemente, ou, ainda, para fortalecer a comunidade. Para outros, a escola
contribui na obtenção de condições de vida boa, saúde e boa alimentação. Portanto,
perspectivas que estão associadas à escolarização como forma de obter recursos para sua
comunidade ou povo. O domínio de conhecimentos capacitará indígenas na elaboração e no
gerenciamento de projetos, que reverterão em recursos para a comunidade sem ter que
depender de um assessor e de agentes externos para controlar e interferir. Com os mesmos
argumentos, a escola é defendida para obter independência e autonomia não só para se libertar
da mediação do “branco”, mas para se libertar das coisas “que vêm de fora”.
Em outro âmbito, indiferentes a possíveis impactos à cultura do seu povo, há os
que vêem na escola uma forma de ascensão social, obtenção do prestígio associado à escola.
Perspectiva que está associada à escola como um recurso, a um meio de sobrevivência. A
escolarização facilita um contrato, para viver de salário. Esta ótica da garantia de uma renda
mensal, por meio de um “contrato”, é uma forte influência da sociedade regional, fruto da
prática política, assistencialista, de distribuir contratos em troca de votos. Nesse caso, o desejo
das famílias é que seus filhos façam o segundo grau para conseguir um contrato, “mesmo que
seja de professor”. Prática que é estendida a algumas comunidades indígenas.
Em outras situações, o papel da escola é associado à função de preservar a
cultura, a língua indígena, o povo, as tradições e o território. Não, necessariamente, este papel
é posto, exclusivamente. Geralmente, ele vem associado, em primeiro plano, à função de
obter o conhecimento do branco. Para muitos professores e comunidades, a escola é vista
como garantia para que o índio continue vivendo como índio, pois está na comunidade para
ajudar, para incentivar.
Enfim, de todos esses interesses, como atribuição da escola, há pontos que são
recorrentes e indispensáveis, na opinião da maioria dos professores e lideranças, nos projetos
de resistência, de autonomia econômica e de emancipação sociocultural. Primeiro, o
importante é não perder de vista o domínio do conhecimento do branco, afinal, a escola surge
com esta reivindicação: é preciso dominar os recursos mínimos para as relações comerciais,
249

para andar na cidade. Segundo, há o papel político, de conscientização, seja do mundo


indígena, seja do mundo do branco e de como o mundo indígena está inserido neste mundo
maior, portanto, domínio político, que garante a defesa dos interesses da comunidade, mesmo
que, na prática, ainda esteja restrito a poucos, mas no discurso há uma referência constante de
que a escola deve trabalhar na cultura, trabalhar com a língua, com os costumes, tradições e
conhecimentos indígenas. Terceiro, saindo da esfera das comunidades e tomando pelo ângulo
de visão das lideranças das organizações, os indígenas precisam ter acesso à formação escolar
completa para conquistar o respeito nas relações com a sociedade dominante e, sobretudo,
para atuar em diferentes áreas, principalmente Educação, Direito, Administração, Saúde,
Ciências Agrárias e Florestais, enfim, as lideranças indígenas defendem que as soluções para
muitos dos problemas atuais; a garantia de um bem viver digno no futuro; passam pela
formação de indígenas, nestas áreas estratégicas.
Tais papéis, requeridos com o acesso à escola, têm que ser ponderados,
também, a partir das limitações do que ocorre na prática. Neste caso, o papel da escola esbarra
em dificuldades relacionadas a aspectos que vão do preconceito às dificuldades de se ter
alguém na comunidade para a função de professor, situação que, embora não desacredite a
escola no seu papel em busca de emancipação das comunidades, retarda, sobretudo, a sua
ressignificação como diferenciada.
A distância entre o atendimento escolar oferecido nas comunidades, para os
resultados esperados, sobretudo em termos de qualidade dos seus serviços, é muito grande.
Para algumas lideranças, o atendimento escolar constitui ainda um arremedo daquilo que se
espera como serviço. Os mesmos ponderam, fazendo uma “mea culpa” pelo movimento não
ter investido, há mais tempo, na definição de uma política educacional. Em certos casos, a
distância do debate escolar por parte de lideranças, que não são professores, não lhes permite
ter a dimensão do que seja fazer resultados consistentes em educação escolar, sobretudo em
moldes específicos de uma comunidade. Desconhecem a dimensão do trabalho envolvido na
construção curricular, na produção de materiais próprios e, sobretudo, o tempo que leva a
formação de professores. Processo demorado, que não é possível a solução numa medida de
pronto.
A diferença no âmbito do movimento vem sendo feita, mais recentemente, com
os professores reunindo-se em associações, tornando-se interlocutores mais especializados no
debate sobre a escola indígena, na região. Com a organização dos professores, como setor do
movimento indígena, estes estão reivindicando seu espaço na elaboração da política
educacional. Entretanto, têm consciência do quão demorado e difícil é implementar a escola
250

indígena de qualidade, portanto, mais realistas, reivindicam a divisão de responsabilidades


com outros atores, ou seja, agentes agroflorestais, agentes indígenas de saúde, caciques, pajés
e artesãs.
Afora o debate das organizações, uma das principais limitações, para que sejam
atendidos os anseios das comunidades e do movimento indígena com escola de qualidade,
está relacionada ao trabalho dos professores, num primeiro plano, com a limitação na
formação, problema que não cabe culpa nem às comunidades nem aos professores. O
professor, indicado pela comunidade, tende a ser a pessoa que reúne maiores conhecimentos
sobretudo sobre a leitura e a escrita, mesmo assim, em determinados casos, o jovem está
sendo alfabetizado e já é alçado ao posto de professor. Em tais casos o isolamento das
comunidades dificulta o aceleramento de sua formação, restrita às etapas dos cursos, em
período de férias.
Outros limitadores estão relacionados a questões de infra-estrutura e técnica
que vão desde a precariedade física de escolas e equipamentos à grande dificuldade na
construção de um currículo, a partir e com cada comunidade, que contemple os saberes
reivindicados da cultura nacional e, mais complexo, a sistematização de saberes próprios
daquele povo e do como lidar com estes saberes na escola e, conseqüente produção de
material próprio.
Entre as limitações para se alcançar a escola diferenciada de qualidade, temos
apontado a diversidade de situações entre comunidades, questão que é ilustrada entre as falas
do sexto capítulo, quando o professor afirma que para ele, até recentemente, o mundo estava
restrito à sua aldeia, sequer compreendia outras aldeias de seu povo. Tomando sob este
ângulo, onde as comunidades constituem mundos únicos, portanto, distintos, por coerência, as
instituições e serviços, que alcançarem estas comunidades, estarão sujeitos a estas
particularidades locais.
Ainda neste aspecto da diversidade, também é ilustrativa a situação das escolas
nas comunidades indígenas da região do rio Envira, realidade que acompanhamos desde 1997
em trabalhos de assessoria, pesquisa, e reuniões com professores e lideranças da região,
ocasiões onde tivemos oportunidade de constatar, na prática, tal diversidade de situações. O
ambiente só não é mais diverso pelo fato de todas as comunidades indígenas da região ainda
manterem sua língua indígena. Dos quatro povos da região, o povo Shanenawa tem sua
principal comunidade localizada próximo à cidade de Feijó, AC, enquanto que entre o povo
Huni Kuĩ, as comunidades se diferenciam, algumas com relações mais próximas, outras mais
distantes da cidade. Já os povos Madijá e Asheninka estão em regiões isoladas, a muitos dias
251

de viagem da cidade.
Nesta realidade diversa a escola está presente e tendendo para papéis bastante
diferentes. Para os povos Madija e Asheninka seus mundos mantêm o curso com base em sua
cultura; a maioria da população é monolíngue na língua indígena e a escola é um recurso mais
do que para escrever, para que algumas pessoas aprendam a falar o português. Na falta de
pessoas alfabetizadas para trabalhar como professor, como no caso de uma comunidade
Asheninka, estes têm apelado para indígenas de outro povo, convidando-os para ensinar
aspectos elementares da cultura nacional para auxílio nas relações comerciais e políticas com
a sociedade regional e o governo. Outro fato particular, tal como situamos no quarto capítulo,
algumas comunidades Madijá tiveram alfabetização apenas na língua materna. Também
nestas, a escola, hoje, tem o papel de proporcionar, a alguns, o domínio da língua portuguesa.
Por outro lado, sobretudo entre o povo Shanenawa, a especialização do
trabalho escolar, e o fato de os professores serem jovens, com pouco domínio dos saberes, das
tradições culturais, a reivindicação deste povo é pela contratação de “professores na cultura”,
tal como é manifestado em documento citado no capítulo anterior sobre a “educação que
queremos”. Estes novos educadores estariam incumbidos de trabalhar a língua indígena,
saberes e tradições do povo. Portanto, reivindicam o reconhecimento, inclusive com ajuda de
custo, do trabalho feito pelos velhos: as “bibliotecas”, ou “enciclopédias semoventes” com
participação regular e contínua no trabalho escolar. Afora a polêmica, sobretudo com o poder
público, para administrar as demandas que vão sendo postas, tais situações retratam o estágio
em que se encontra o debate sobre a educação escolar. Entre o povo Huni Kuĩ da região, estão
os trabalhos mais bem sucedidos em educação diferenciada de qualidade e há, também, neste
mesmo povo, professores que têm vergonha até de falar a língua indígena.
Portanto, neste contexto regional, as escolas, diferenciam-se de comunidade a
comunidade. Algumas escolas, sobretudo aquelas em comunidades próximas à cidade, tendem
a um funcionamento semelhante à escola não-indígena, dado o interesse dos jovens na
continuidade dos estudos, em nível médio, não oferecido na comunidade. Estas escolas, que
tendem a acompanhar a escola do “branco”, visam, portanto, a continuidade dos estudos, e
diferencia-se pelos professores, que são indígenas, membros da comunidade, e favorecem,
pelo menos, com o não estranhamento aos costumes e valores culturais na comunidade onde
trabalha. Diferenciam-se, também, pela inclusão de matérias relacionadas à cultura do povo
como a língua, a arte e as tradições. As escolas mais distantes caracterizam-se mais como
interculturais, considerando que a língua falada na escola é a língua indígena. A cultura
indígena está presente, em diálogo, em confronto com a língua, e instrumentos como a escrita
252

e a matemática do branco. Escolas que têm mais este caráter utilitário de domínio de
ferramentas para relações comerciais.
Por fim, referindo-nos ao conjunto das reflexões apresentadas acima, podemos
afirmar que, em grande parte, as escolas estão estabelecidas nas comunidades, como uma
instituição a mais, sob o domínio da comunidade; isto é, gradativamente, com a intervenção
política do movimento, com a confrontação com as diferenças e com os saberes, a escola vai
se caracterizando como uma instituição da comunidade e não do branco. Enquanto que os
impedimentos para que a educação escolar avance para um formato específico em cada
comunidade, integrando-se no contexto dinâmico das culturas indígenas com relações com a
sociedade não-indígena, são as restrições relacionadas, sobretudo, à frágil formação dos
professores e o insipiente acompanhamento, assessoria pedagógica que garantiria tanto o
planejamento das atividades escolares quanto à produção de material próprio.
Enfocando outro aspecto, demos destaque, nesta pesquisa, ao diálogo com os
indígenas, sobretudo professores e lideranças. No entanto, as falas, mais do que fontes
importantes para o nosso estudo, têm uma relevância muito maior como instrumento de luta.
O direito de falar por suas comunidades, no espaço público, enquanto parcela da população
regional e destinatários de políticas públicas, representa uma das principais conquistas do
movimento indígena, na qual a conquista da escola teve participação decisiva.
Portanto, considerando a herança histórica de exclusão, tem especial
significado, dentre as conquistas da população indígena, sobretudo do movimento, o direito a
falar por si, pela sua comunidade, pelo seu povo, e à medida que o movimento se fortalece,
falar, por meio dos organismos indígenas, em nome da população indígena. Até recentemente,
como declaram as lideranças, em falas citadas no sexto capítulo, era preciso de indigenistas,
de instituições governamentais ou não-governamentais, para falar por eles. A sua voz não
tinha poder de legitimidade não só pela legislação da sociedade dominante, que até 1988 os
considerava incapazes, mas pela própria sociedade, em função de toda a carga histórica de
desprezo e preconceito.
A legitimação do discurso estava assentada, exclusivamente, nos critérios de
verdade da cultura ocidental. Enquanto a dignidade não acompanhava o “ser indígena”, estes
não dispunham dos requisitos para validar suas falas. Da conquista dos territórios à conquista
da escola e do poder político, por meio das organizações, acompanhou a melhoria de
condições do bem viver, fator que atua no restabelecimento da dignidade e, com esta, refletida
inclusive na valorização da cultura indígena na escola, onde são criadas possibilidades de
restituir o poder de verdade de suas falas e o seu discurso com valor maior na comunicação. É
253

neste conjunto que se assenta a nossa insistência, neste trabalho, na questão da emancipação,
em torno da dignidade, a qual pressupõe o bem viver, pressupostos para a conquista do poder
de verdade do seu discurso, condição para a comunicação, para relações respeitosas entre os
diferentes.
O restabelecimento da dignidade do outro, também se faz necessário para
garantir o poder de verdade sobre o seu discurso com base em seus referenciais culturais. Para
a construção da escola diferenciada é muito importante o direito do indígena poder falar não a
verdade que o indigenista acha que é melhor para o indígena, fundamentado nas ciências
ocidentais, mas, sim, a verdade que é construída a partir de um histórico pessoal, de um
contexto histórico cultural em convenções coletivas.
Exercício constatado nos depoimentos exclusivos, que obtivemos junto a
professores e lideranças, em sua maioria, partem de sua trajetória de vida, onde sempre é
revelado o preconceito a humilhação sofrida até conquistar condições para afirmação de sua
identidade cultural, chegando aos avanços que vêm obtendo com seu trabalho, em sua
comunidade. Portanto, com base em sua história de luta em sua comunidade e com esta, o
professor constrói seu discurso, seus conceitos sobre a escola, sua verdade a ser defendida no
espaço público, na construção de políticas educacionais.
Diante deste contexto, considerando que as falas, nas quais nos baseamos, são
manifestações das mesmas pessoas que participam do espaço público representando a
população indígena, estas falas constituem discursos carregados de peso político das pessoas
que os manifestam. Desse modo, tanto os discursos amparados em questões e saberes locais,
em suas histórias de vida, quanto os discursos amparados na elaboração política da causa, no
coletivo do movimento, em prol de suas comunidades, são legítimos e adquirem o status de
verdade com a responsabilidade política de quem o propaga.
As lideranças das organizações foram alçadas a tais postos pelo prestígio,
respeito e voto das comunidades, assim como os professores estão na função por decisão de
suas comunidades. Portanto, exercem funções delegadas, de responsabilidade, que é acrescido
do papel de mediar o interesse das comunidades. Com base nestas responsabilidades,
elaboram as propostas e políticas, tornando-se os intelectuais do povo, obrigados a sintetizar e
representar o pensamento político da comunidade. Diante deste contexto, é perigoso
desqualificar tais discursos, uma vez que as falas assentam-se no poder da condição de
representante da comunidade, do povo ou de vários povos. Exemplificando, seria preconceito
e não cabe, sobretudo pelos argumentos apresentados acima, o descrédito à afirmações onde
os professores defendem que estão fazendo escola diferenciada sim, que estão construindo,
254

que têm capacidade para construir as próprias coisas e que são os indígenas que vão fazer a
escola diferenciada para suas comunidades.
Com a conquista da dignidade na identidade cultural, os indígenas que buscam
a escola diferenciada esforçam-se para ressignificar a diferença não mais como objeto de
discriminação e, sim, com base no direito à diferença; sem desigualdade, na verdadeira
alteridade, do outro como distinto. A escola diferenciada, que vem dando certo entre os povos
indígenas da região, é aquela que emerge da comunidade onde se firma a identidade das
pessoas, que dá sentido a suas existências. Enquanto que a interculturalidade na escola é uma
conseqüência da intencionalidade em firmar relações - sem entrar no mérito das relações, que
poderiam ser postas como necessidades - as falas do sexto capítulo denotam este propósito.
Entretanto, esta escola só se estabelece, como diferenciada e intercultural, quando a
comunidade dispõe de autonomia para administrar suas instituições e autonomia na
subsistência econômica. É sob condições de autonomia que as pessoas encontram autoridade
para confrontar conhecimentos, valores, política interna com conhecimentos, valores e
políticas da sociedade nacional.
A manutenção da escola, como diferenciada ou indígena, implica no seu
vínculo indissociável às lutas políticas de emancipação sociocultural. Enquanto mantiver esta
relação com as bandeiras do movimento, a escola constituirá, sempre, um campo de lutas para
que sejam atendidas as demandas das diversidades culturais. Os professores mais experientes
já articulam com propriedade, como declaram em suas falas, o papel de conscientização
política feito com a escola.
O significativo papel da linguagem sobretudo no que tange à unidade das
pessoas em torno de seu mundo, transferido para escola, torna mais consistente a idéia de
escola intercultural e diferenciada. Em comunidades onde a língua indígena é mantida como
língua materna, como valor de sustentação da identidade cultural, é garantido a educação “na
cultura”, como afirmam os indígenas, veiculada nos códigos exclusivos do povo. Somente a
partir de então a criança é levada a interação com novas formas sociais.
Nas comunidades mais politizadas, como pudemos ver entre o povo
Shanenawa, na relação com a sociedade não-indígena, a língua indígena também constitui
uma forma de poder. Constituindo a base de conservação de valores culturais, o uso da língua
materna na conversação diária abranda o poder da cultura dominante universalista, veiculado
na língua nacional. Entre outros povos, como em algumas comunidades Huni Kuĩ, na escola
há uma tentativa de compensação da pressão da língua nacional com o desenvolvimento da
escrita na língua indígena. No discurso de professores Shanenawa, o professor que não
255

preservar o que é dele não tem valor pela sua cultura.


Com a conquista do direito de falar por si e pelos seus, no espaço público, o
indígena mantém o discurso na língua indígena para diferenciar-se e assinalar que está falando
a partir de sua identidade cultural. Mesmo articulando com propriedade o discurso na língua
portuguesa ou espanhola, a liderança introduz sua fala na língua materna, falando para seus
“parentes”, exercendo efeito sobre os demais, onde afirma a identidade cultural de onde está
falando. Portanto, tem grande significado na garantia de uma sociedade plural a conquista do
poder discursivo, o indígena falar por ele próprio, eliminando o intermediário, e abrindo
espaço para outras perspectivas. Essa conquista amplia, inclusive o poder dos povos indígenas
em nomear, restabelecendo o direito à autodenominação e permite-lhes tomar parte na
modelação do espaço sociocultural nacional.
Neste contexto de afirmação, o movimento indígena - com a contribuição da
escola - vem se traduzindo numa ideologia de resistência à dominação, onde a etnicidade é
ressignificada, no âmbito da luta política. A busca de benefícios, de melhoria nos
atendimentos são negociadas com bases na valorização do indígena e sua cultura, isto é, a
identidade indígena é mantida como forma de mobilização, resistência e busca de participação
democrática nos espaços públicos. Desse modo, contribuem na construção de perspectivas
contra-hegemônicas, articulando igualdade e diferença numa sociedade plural. A identidade
cultural vai sendo reconstruída, socialmente, no processo de luta e, reforçando a afirmação
acima, a escola só se torna diferenciada se estiver inserida em tal processo.
Para muitos dos envolvidos no debate sobre políticas que respeitem a
diversidade cultural no Brasil, a prática do movimento sociocultural, apresentado aqui, não
constitui novidade. Entretanto, o substancial nos avanços conquistados é que diferencia esta
experiência regional do lugar comum dos discursos. A luta do movimento indígena do Acre e
Sul do Amazonas tem se traduzido em ações, conquistas, diminuindo a distância que separa
os sonhos de sua viabilização. Sonhos ainda traduzidos na forma de necessidades, forma de
manifestação dos anseios que denuncia a persistente relação desigual entre indígenas e não-
indígenas. Embora ainda longe de estarem garantidas as condições dignas de bem viver, os
mecanismos de luta política da população indígena da região apontam para a consolidação de
novas bases para se fazer política na sociedade regional. A perseverança e o crescimento do
movimento contribui para que sejam firmados os contornos de uma sociedade plural, onde se
reconheça e garanta condições para que comunidades, povos, se identifiquem a partir de
valores, de culturas peculiares, próprias e, ao mesmo tempo, tenham acesso, em condição de
igualdade com os demais segmentos da sociedade regional, dos direitos de cidadania.
256

Finalizando, pesquisas recentes, no âmbito das ciências ocidentais, têm


chegado a conclusões que derrubam as bases científicas que justificaram a diferenciação em
favor do segmento populacional de origem européia. Conforme geneticistas renomados, o
DNA de todos os habitantes da terra são tão semelhantes, de tal forma, que já não se
sustentam argumentos biológicos para justificar as diferenças socioculturais, ou seja, o
potencial das pessoas não é determinado pela herança biológica e sim pelas oportunidades,
experiências e atributos de cada um. Porém, o fim das “raças” não garante a dissolução do
preconceito. Há uma longa distância até que sejam desconstruídas as verdades da cultura
ocidental. Há privilégios associados ao projeto dominante que concebe a idéia de “liberdade”,
a forma de vida ocidental como a melhor e, portanto, destino de todos. Os mecanismos deste
projeto dominante retardam as ações desmobilizadoras, propostas pelos movimentos
socioculturais.
Ir contra os interesses do projeto dominante, defendendo um mundo plural, é
persistir na idéia de tornar cada vez mais presente o fato de que a perspectiva ocidental de
liberdade não é a única verdade a orientar as coletividades, e que a dignidade humana e a
garantia do bem viver, passam pelo respeito às diferentes perspectivas, construídas pelos
diferentes povos.
O movimento indígena regional, sabiamente, já fez a sua opção pelo controle
social das políticas, intervindo nos mecanismos de regulação do projeto dominante, propondo
políticas favoráveis à emancipação sociocultural de suas comunidades, portanto, favoráveis à
pluralidade. As conquistas obtidas com a auto-organização dos povos indígenas não lhes
permite contentar-se com vitórias pequenas, pois estariam, com isso, admitindo a fatalidade
da submissão ao velho projeto hegemônico, isto é, acreditam no avanço de suas lutas em
direção a um novo horizonte sociocultural plural, de cidadanias coletivas, no qual, os projetos
dos povos indígenas tornam-se referência.
É neste contexto que se situa a escola com possibilidade de firmar-se como
indígena, diferenciada e intercultural, ou seja, os povos indígenas não se contentaram com a
simples conquista da escola, antes lutam para que esta possa atender melhor aos seus projetos
de emancipação sociocultural. Tendo conquistado a escola do velho projeto hegemônico,
querem que a educação, nela produzida, lhes favoreça no acesso aos conhecimentos que, no
passado, foram usados para excluí-los, e querem avançar para formas educativas próprias, que
auxiliem na afirmação de suas identidades culturais.
Esta ressignificação da escola é declarada na proposta defendida como política
em educação, na atuação do movimento indígena nos espaços públicos, no Estado do Acre.
257

Tal política, ainda que esteja mais no discurso do que na prática, representa o processo de
construção de uma alternativa escolar ao desgastado modelo monocultural que homogeneíza,
culturalmente, e acentua as desigualdades sociais, na medida em que concebe como destino de
todos a ordem civilizatória individualista. Alternativa com possibilidade de sucesso por
estarem assentadas em bases socioculturais, que deram certo, através dos tempos,
incorporando experiências elaboradas no contexto atual de construção, de relações
interculturais, com garantias de bem viver com dignidade. Esta experiência indígena,
conciliando valores culturais próprios às necessidades dos novos tempos, desponta como
proposta viável para os diferentes povos ou grupos sociais que constituem a sociedade
brasileira. É a solução indígena para problemas decorrentes da hegemonia que lhes vêm sendo
imposta pela cultura dominante.
Mais ainda, esta ação local demonstra ser possível, por meio de negociação, de
relações, contrapor-se a práticas, tais como a que se ressente a população mundial, na época
atual, com a política imperialista promovida por nações ocidentais, que fazem uso de recursos
bélicos contra povos, com o pretexto de “libertar”, implementar a “democracia” e, desse
modo, homogeneizar a humanidade, tornando “universal” o pensamento ocidental.
Acreditamos que este movimento insere-se na luta sociocultural contra-hegemônica, cujas
experiências, construídas com base em saberes e formas de organização próprias, atuam,
propositivamente, com novas políticas, que visam a igualdade nos direitos de cidadania, com
respeito às diversidades socioculturais.
Noutro aspecto, na Amazônia e, particularmente, no Acre, toma espaço, ao
menos no discurso, o fomento de propostas de desenvolvimento alternativo ao desgastado
modelo de modernidade ocidental. Diante da crítica da modernidade, os modelos econômicos
auto-sustentáveis das culturas são valorizados, oportunidade para que sejam evidenciados
modelos construídos pelos povos indígenas. O movimento, as comunidades indígenas,
atualizadas, informadas, tende a capitalizar, para seus contextos, estas ondas alternativas.
Fator que trabalha a favor da manutenção da identidade étnica, uma vez que é com base em
elementos próprios de sua cultura que estarão negociando relações. Aspecto, este, que a
escola também é envolvida diretamente, conscientizando alunos e comunidade sobre o
interesse externo sobre os conhecimentos, tecnologias, patrimônios do povo.
Tanto o movimento indígena quanto os gestores da política estadual de
educação escolar indígena sinalizam com a necessária investida em outras frentes em
educação, que saia do âmbito do mundo indígena. Processo necessário para reverter a
desinformação e o conseqüente preconceito para com a população indígena. Com os espaços
258

políticos conquistados, a presença da liderança, do professor indígena em círculos da


sociedade não indígena vai desmistificando concepções equivocadas sobre o outro26.
Entretanto, há muito por fazer quando se trata de influenciar nos currículos
escolares, em todos os níveis, e conquistar o tratamento digno e eqüitativo às diferentes
culturas que formam a sociedade brasileira. É preciso tomar parte no processo de construção
curricular dos sistemas de ensino de forma que os indígenas, assim como os afro-
descendentes, sintam-se contemplados enquanto segmentos, enquanto povos vivos e atuais e
não apenas como uma referência histórica.
A escola, de qualidade, constitui-se hoje, para os povos indígenas da Amazônia
ocidental, com mais de século de contato, em instrumento que auxiliará no fortalecimento da
resistência da identidade sociocultural, à medida que oportuniza aos agentes ativos do
movimento indígena ampliarem a presença indígena nos espaços públicos, atuando em pé de
igualdade com os não-indígenas; favorecendo relações interculturais respeitosas e
consolidando o caráter plural da nação brasileira.
As lideranças indígenas apostam da contribuição da educação escolar como
estratégia para o fortalecimento de seu movimento. Para tal, investem em parcerias para
reforçar a gestão junto aos poderes públicos pela viabilização política das propostas indígenas.
A contrapartida, na qual tomamos parte, no trabalho junto aos povos indígenas
da região, estão concentradas no programa de ações do Centro de Antropologia da Amazônia
Ocidental (CAINAM) o qual, consiste num programa articulado de cooperação, já
estabelecido entre UFAC e UNI, com a participação de órgãos governamentais como a Funai
e Secretarias de Estado e organizações não-governamentais como CIMI e COMIN. Este
programa, partindo do respeito às formas de auto-organização, está voltado para a afirmação
das identidades culturais e ao desenvolvimento sustentável dos povos indígenas da Amazônia
ocidental, assentado em princípios como a defesa do pluralismo, fortalecimento sociocultural
comunitário, afirmação das identidades, autonomia e condições de sustentabilidade indígena.
As ações integradas, refletidas, de trabalho coletivo, previstas nesta
cooperação, consistem na contribuição na formulação de políticas públicas indigenistas e
diferenciadas; atuação na defesa da garantia territorial, defesa da livre manifestação

26
A título de exemplo, estão sendo preparados seminários para que ocorram simultaneamente a eventos culturais
como o Encontro de Culturas Indígenas, direcionados, num primeiro momento, para professores da educação
básica e para alunos dos cursos superiores de formação de professores. Seminários que terão como palestrantes,
professores e lideranças indígenas, falando da diversidade de povos, de suas identidades socioculturais e da
atualidade e relevância destas identidades, principalmente, no espaço próprio de seu povo, mas, também, no
contexto regional e global em tempos, nos quais, a perspectiva unilateral de civilização já não se sustenta,
portanto tornam-se atuais diante da perspectiva da pluralidade democrática.
259

sociocultural, atuação em programas e projetos de investigação arqueológica, estudo dos


recursos da sócio-biodiversidade regional, levantamento e organização da documentação
existente sobre os povos da região Juruá-Purus, implantação de programas de treinamento e
qualificação de profissionais indígenas e formação, em nível superior, de profissionais
indígenas em áreas mais demandadas pelo movimento e comunidades como Saúde e
Educação, entre outras áreas.
A formação de professores indígenas, em nível superior, constitui uma das
atividades que têm demandado maior atenção das pessoas e instituições envolvidas no
CAINAM, pois está previsto, para 2004, o início deste programa de formação.
Simultaneamente, está em elaboração a proposta visando o ingresso de indígenas em outras
áreas de estudo, viabilizada com a montagem de uma estrutura - na forma de cursos
preparatórios para o ingresso no ensino superior - de apoio ao ingresso em cursos oferecidos
regularmente na UFAC.
O programa CAINAM dispõe de espaço físico próprio, multifuncional para
atividades educacionais, pesquisa, documentação, museologia e manifestações socioculturais
dos povos indígenas da região.
Portanto, nossa contrapartida, na luta dos indígenas pela superação das
desvantagens históricas e atuais, insere-se nos programas de compensação, que visam o
acesso e permanência de indígenas no ensino superior; contrapartida, também, como
necessária retribuição à oportunidade de estar interagindo com o movimento indígena e
aprendendo, neste trabalho conjunto, a dialogar com os diferentes na concretude dos
contextos plurais.
Por fim, concluímos, com a certeza de que a escola, assim como a cultura, não
permanece estática, hoje ela exerce papel importante em todo este contexto de luta, que
retratamos neste trabalho, e está em constante processo de construção. Também, na
emancipação, a qual nunca atinge a totalidade, sempre haverá diferentes interpretações de
liberdade, de dignidade, de igualdade a serem pleiteadas, portanto, tanto a escola diferenciada
e intercultural quanto às relações sempre serão conflitivas. Enquanto isso, continuamos
acreditando que só será possível uma cidadania planetária quando houver a conquista da
cidadania local com vida boa, vida digna para todos.
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