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EDUFAC
GILBERTO FRANCISCO DALMOLIN
EDUFAC
Dalmolin, Gilberto Francisco.
D148pe
O papel da escola entre os povos indígenas: de
instrumento de exclusão a recurso para emancipação
sociocultural / Gilberto Francisco Dalmolin. -- Rio Branco:
Edufac, 2004.
267 p.
ISBN ...............................
a
CDD: 371.9798 (20 )
DALMOLIN, Gilberto Francisco. O papel da escola entre os povos indígenas da Amazônia
Ocidental: de instrumento de exclusão a recurso para emancipação sociocultural. 2004. 267 f.
Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos.
RESUMO
Esta tese analisa a escola nos confrontos de exclusão e no seu papel na construção de relações
de igualdade com respeito às diferenças socioculturais, entre povos indígenas e demais
segmentos populacionais da sociedade nacional. Enfoca esse papel da escola nas práticas de
exclusão e relações, na região ocidental da Amazônia brasileira, que compreende o estado do
Acre, o sul do Amazonas e o noroeste de Rondônia. O estudo realizado, parte das concepções
construídas no âmbito da cultura ocidental para caracterizar e orientar as ações dos
colonizadores no trato com os povos nativos do continente americano, apontando que, para os
povos indígenas, essas perspectivas nortearam apenas o tratamento preconceituoso e formas
de exclusão da sociedade dominante para com eles. Com este referencial e visando a
superação da tradicional narrativa positiva dos fatos, na revisão histórica da colonização e
formação da sociedade regional, é destacada a construção da negação de direitos aos
indígenas como forma de legitimar o domínio colonial/capitalista sobre territórios, povos
nativos e riquezas naturais da Amazônia. Dentre os direitos negados é ressaltado o
impedimento, ao indígena da Amazônia ocidental, de ter acesso à escrita e a matemática do
colonizador, como forma mantê-los em regime de servidão. Avançando o estudo para a época
atual, num contexto de luta por emancipação sociocultural dos segmentos historicamente
subjugados, o enfoque desta tese é posto na resistência dos povos indígenas da Amazônia
ocidental, os quais, respaldos em direitos conquistados, elaboram mecanismos de resistência,
construindo um dos movimentos sociais mais ativos na região. O pesquisador, adotando o
diálogo como principal instrumento de pesquisa, na participação com representantes de povos
indígenas em espaços públicos nos quais são formuladas e controladas as políticas públicas,
analisa o papel da educação escolar, que fora negada a estes povos, e, atualmente, é
reivindicada como instrumento de resistência, apontada como indispensável para desconstruir
as formas de exclusão, sobretudo o preconceito mantido pela sociedade dominante para com
os indígenas. Por fim, conclui que com o novo papel atribuído à escola é desencadeada a
construção de práticas escolares diferenciadas, moldando esta instituição como escola
indígena, justificada como necessária para restabelecer o bem viver com dignidade, condição
para afirmação das identidades socioculturais dos povos remanescentes bem como para
garantir o estabelecimento de relações respeitosas numa sociedade plural.
ABSTRACT
This paper examines school in confrontations of exclusion and in its role in the building of
equality relationships, regarding sociocultural differences between indian populations and the
rest of populational groups in the society as a whole. This role of the school is focused in the
actions of exclusion and in the relationships in the Western part of the Brazilian Amazon,
which includes the state of Acre, South of the state of Amazonas and Northeast of the state of
Rondonia. The starting point of this paper are the concepts built by western culture to
charecterize and guide the acts of the colonizers in their relationships with the native
populations of the American continent, pointing out that for the indian populations these
concepts only led to prejudiced treatment and forms of exclusion from the dominant society
towards them. Bearing this in mind, the building of denial of rights to the indians as a form of
legitimizing the colonial/capitalist domination of territories, native people and natural wealth
of the Amazon is highlighted. Among the rights withheld from the Western Amazon indian,
the denial of access to the writing and arithmetic of the colonizer is emphasized as a way of
keeping them in a servitude regime. Moving the study to the present day, in a context of
struggle for sociocultural emancipation of the historically subjugated segments of society, the
focus of this thesis lies on the resistance of the indigenous people of the Western Amazon,
who backed by rights already gained create resistance mechanisms, constructing one of the
most active social movements in the region. The researcher adopted dialogue as the main tool
for research; representatives of indigenous populations took part in these dialogues, where the
role of school-that was denied to these people and is today claimed as an instrument of
resistance to destroy forms of exclusion- is analyzed. The conclusion is that with the new role
given to school the construction of new differenciated school habits is triggered, shaping this
institution as indigenous school,considered necessary to re establish dignity and the
affirmation of sociocultural identity to the remaining populations as well as guarantee
respectful relationships in a plural society.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 01
CAPÍTULO I:
OS MODELOS DE EXCLUSÃO NA CONSTRUÇÃO DO DISCURSO UNIVERSALISTA 25
1 A exclusão da identidade cultural dos povos nativos no discurso civilizatório.......................... 26
2 A exclusão das identidades culturais com base no discurso científico da assimilação à
“Cultura Nacional” .................................................................................................................... 36
3 A recomposição do discurso hegemônico e a educação escolar na perspectiva de
mercado....................................................................................................................................... 44
CAPÍTULO II:
A FORMAÇÃO DA AMAZÔNIA BRASILEIRA E AS PRÁTICAS DE EXCLUSÃO DOS
INDÍGENAS................................................................................................................................... 48
1 A invasão colonial sobre as nações amazônicas....................................................................... 50
2 A “ocupação” da Amazônia ocidental e o processo de “apagamento” do indígena.................... 65
3 As práticas integracionistas e de negação da escola ao indígena................................................. 81
CAPÍTULO III:
OS MOVIMENTOS SOCIOCULTURAIS E AS RELAÇÕES CONTRA-HEGEMÔNICAS 92
1 A desconfiança na cultura hegemônica e o movimento de afirmação das identidades
étnicas e culturais em sociedades plurais................................................................................. 93
2 O movimento indígena nas lutas contra-hegemônicas de emancipação...................................... 121
3 O debate sobre a escola entre os movimentos socioculturais..................................................... 124
CAPÍTULO IV:
A RESISTÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS NA AMAZÔNIA OCIDENTAL.................... 136
1 Os povos que resistem, em suas identidades indígenas, na Amazônia ocidental ........................ 137
2 Os mecanismos de resistência do movimento indígena regional................................................. 159
CAPÍTULO V:
A CONQUISTA DA ESCOLA E SUA RESSIGNIFICAÇÃO COMO RECURSO
FAVORÁVEL AOS PROJETOS INDÍGENAS......................................................................... 173
1 A política atual de educação escolar indígena.............................................................................. 173
2 A construção da escola indígena nas estratégias de resistência sociocultural.............................. 184
CAPÍTULO VI:
A ESCOLA NOS PROJETOS DE EMANCIPAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS................ 197
1 O persistente preconceito como mecanismo de exclusão dos indígenas...................................... 198
2 O papel da educação escolar na perspectiva dos indígenas.......................................................... 202
3 A relação escola e movimento indígena...................................................................................... 213
4 A cultura e a escola na afirmação da identidade indígena........................................................... 220
5 As propostas para avançar na construção de relações respeitosas............................................... 224
CONCLUSÃO................................................................................................................................ 232
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................... 260
PROFESSORES E LIDERANÇAS INDÍGENAS CITADAS1
1
Professores e lideranças indígenas com os quais dialogamos em nossa pesquisa. Atores sociais, dentre muitos
outros, que fazem o movimento indígena da Amazônia ocidental, região formada pelo estado do Acre, o sul do
estado do Amazonas e o noroeste do estado de Rondônia.
INTRODUÇÃO
2
“Bem viver” é uma expressão a que recorremos com freqüência neste estudo, por considerar ser uma condição
indispensável para que sejam estabelecidas relações interculturais. Trata-se de uma formulação que representa
uma condição ideal de vida que cada povo constrói considerando seus valores, seus modos de vida, suas
aspirações, compreendendo apreciações subjetivas e ideológicas próprias ao contexto em que cada povo se
insere, enfim, um referencial particular do que seja viver bem. Portanto, o bem viver não obedece a critérios
universais, mas, pressupõe a existência de condições que garantam a integridade, a dignidade, o direito à vida,
condições que satisfaçam as necessidades básicas, biológicas e culturais de cada povo. Outro aspecto a ser
considerado, tem a ver com a dinamicidade dos diferentes povos e suas culturas, cujos valores e ideais variam
conforme a época. Ou seja, o bem viver é uma construção histórica e cultural de valores variáveis no tempo e no
espaço compreendendo as formas de vida consideradas as melhores em determinado lugar e em determinada
época.
indígenas. Considerando relevante, para a área educacional, este papel atual, destinado à
escola entre os indígenas, especulamos também sobre o desafio que é transformar a educação
escolar de instrumento de homogeneização cultural em espaço, no qual são vivenciadas
práticas educativas interculturais.
Tratamos da temática escolar no contexto mais amplo possível da luta dos
povos indígenas, tendo, como situação concreta, comunidades sob crescente pressão do
entorno formado pela sociedade regional. Isto é, povos imersos em um contexto no qual
prevalecem as dimensões nacionais de regulação e emancipação social, mas mesmo assim,
pautando suas existências em culturas próprias, constituindo coletividades com diferentes
valores e com outras verdades que não as elaboradas pelo saber ocidental. Verdades que são
preponderantes nos meios sociais nas quais são compartilhadas e devem ser respeitadas tanto
quanto forem as verdades da cultura dominante como a possibilidade para que sejam
estabelecidas relações de diálogo entre povos que se reconhecem como diferentes.
Por um lado a emancipação sociocultural dos povos indígenas, sob estados
nacionais, e a relação de diálogo respeitoso estão também respaldados no direito
internacional, que trata das minorias étnicas e constitui pleito de mobilização destas minorias.
Por outro lado, faz parte das novas políticas requeridas pelos movimentos socioculturais,
abrangendo a luta de todos os movimentos organizados pela emancipação social em contextos
plurais.
No âmbito acadêmico, tal debate extrapola a área da educação, constituindo-se
temática de relevante interesse nas ciências sociais e amplamente discutida por autores de
diferentes áreas. Partindo da crítica às concepções civilizatórias universalistas, com base na
cultura ocidental, tratam das reconfigurações da cultura e da política em estados nacionais,
também concebidas como alternativas contra-hegemônicas de emancipação social.
Ainda contextualizando a temática de estudo, pautamo-nos na compreensão de
que, mesmo considerando a persistente co-existência de identidades culturais, as pessoas que
mantém fortes vínculos com seus lugares de origem e tradições não, necessariamente,
permanecem estáticas, fixas. Significa dizer que as pessoas e as coletividades estão sujeitas ao
plano da história, principalmente no momento atual, no qual estados nacionais estão sujeitos a
instrumentos globalizantes que obrigam as pessoas a submeterem-se ou a negociarem com as
novas culturas em que vivem e que lhes afetam. As mudanças reivindicadas para a escola
estão inseridas neste meio de afirmação de diferenças e de dinâmica cultural.
Na mesma linha de compreensão, as mudanças também são operadas no bojo
da concepção ocidental, tendo conseqüentes reflexos nas instituições das sociedades
ocidentais e em suas práticas, em particular, a escola, no trato com as identidades culturais.
Assim, situamos a temática, também entre as mudanças na concepção dominante, defendendo
a perspectiva que surge com os movimentos de resistência socioculturais; perspectiva de
reconhecimento das nações como sociedades plurais, e nestas, políticas de relações
interculturais, vistas como possibilidade de superação dos modelos construídos pela cultura
ocidental que ainda propõe a sua visão de mundo como a mais elaborada e, portanto, enquanto
alta cultura, destino para as demais.
O movimento indígena congrega as forças de mobilização e resistência dos
povos que se reconhecem como indígenas, destaca-se e dá corpo aos movimentos de
resistência socioculturais, com suas lutas pelo restabelecimento da dignidade dos povos
nativos dominados pelos colonizadores europeus e pelas sociedades nacionais, criadas por tais
colonizadores. É neste contexto de resistência dos movimentos sociais, particularmente do
movimento indígena, e neste, a mobilização dos povos indígenas da Amazônia ocidental, que
analisamos as mudanças do papel da escola.
Dispondo geograficamente a nossa temática de estudo - o papel da educação
escolar entre os povos indígenas, de instrumento de exclusão étnico-cultural para recurso de
apoio ao processo de resistência e afirmação sociocultural - temos como campo de pesquisa a
região ocidental da Amazônia brasileira, que compreende o estado do Acre, o sul do
Amazonas e o noroeste de Rondônia. Nesta região temos, como população predominante, a
não-indígena, perfazendo algo em torno de 600 mil pessoas. Embora a população
não-indígena se caracterize por identidades culturais diferenciadas, em função do nosso foco
de interesse estar centrado na população indígena, denominamos todos os demais apenas
como população regional, diferenciando-os, desta forma, das pessoas que se reconhecem
como indígenas.
A população indígena da região, congregando aproximadamente 14 mil
pessoas, caracteriza-se pela diversidade étnica e diversidade, no grau de interação, com a
população regional. Das mais de 180 comunidades indígenas, nesta região, temos desde
comunidades que, após décadas de integração forçada à sociedade regional, pleiteiam o
reconhecimento de sua identidade como indígenas, a comunidades isoladas, sem qualquer
contato com a sociedade regional ou com povos indígenas já contatados. Quanto aos povos
que se auto-reconhecem como nativos da região, representados pelo movimento indígena,
junto à sociedade regional, estes se autodenominam: Huni Kuĩ (Kaxinawá), Shanenawa,
Katukina, Kaxarari, Jaminawa, Yawanawá, Jaminawa Arara, Shawadawa (Arara), Náua,
Poyanáwa, Nukiní, Apolima-Arara, Madijá (Kulina), Jamamadi, Kamadeni, Apurinã, Yine
(Manchineri) e Asheninka (Kampa).
Em nossa pesquisa, dialogamos com professores e lideranças indígenas,
pessoas que estão à frente do movimento, que desde o início da década de 1980, tornou-se
protagonista nas mediações de conflitos e relações dos povos indígenas acima relacionados
com o poder público e com a sociedade regional na defesa das causas indígenas. O
movimento indígena atua, substancialmente, por meio de organizações representativas: em
instância maior, congregando todas as lideranças dos setores indígenas, a União das Nações
Indígenas do Acre e sul do Amazonas (UNI); em instância intermediária, as organizações por
micro regiões, como a Organização dos Povos Indígenas do Rio Envira (OPIRE); em âmbito
local, as associações por terras indígenas ou comunitárias; e por organizações que congregam
setores específicos do movimento, como a Organização de Professores Indígenas do Acre
(OPIAC), entre outras. Estas mais de 20 organizações e associações indígenas funcionam
como interlocutoras dos interesses das comunidades nos espaços públicos.
Nossa opção por trabalhar com a perspectiva de professores e lideranças do
movimento justifica-se, por um lado, por exercerem a autoridade de mediar e falar em defesa
dos interesses das coletividades, portanto, as principais vozes no controle social das políticas
nacionais e regionais para os povos indígenas. Por outro lado, justifica-se em função da
diversidade de situações que encontraríamos, caso fôssemos trabalhar com o universo da
população indígena, tais como a de comunicação, dada a diversidade cultural e a existência de
comunidades nas quais as pessoas não dominam a língua portuguesa. As limitações maiores,
entretanto, decorrem das dificuldades de acesso às comunidades indígenas, devido às
condições amazônicas, marcadas pelas distâncias e pelo isolamento; condições que restringem
os deslocamentos a ocasiões esporádicas e com altos custos.
Outras dificuldades estão relacionadas a questões éticas. Os povos da região,
após mais de um século de espoliação, estão receosos com pesquisadores. Sempre há
interessados em pesquisar suas culturas e, neste caso, a pronta reação desses povos tem sido o
questionamento quanto a benefícios que a pesquisa trará para suas comunidades. Geralmente,
não há acordo entre o que um pesquisador, uma universidade pode reverter e o que a
comunidade quer, de imediato, para melhoria de sua qualidade de vida. A crítica aos
pesquisadores é freqüente e, para os indígenas, não há constrangimento em interromper ações
e pesquisas em que percebam que o elemento externo esteja obtendo mais vantagem que a
própria comunidade, com tais atividades. Nestas circunstâncias, considerando que são comuns
tais restrições por parte das comunidades, torna-se impossível negociar o acesso a mais de
uma centena de comunidades. Assim, em nossa pesquisa, a observação ficou restrita ao
acompanhamento do trabalho em algumas poucas comunidades, com as quais dispomos de
relações de confiança.
As referidas condições contribuíram para que privilegiássemos os espaços de
luta política, o espaço público para o diálogo com nossos interlocutores. Desta forma, a
pesquisa é realizada concomitante a atividades, nas quais dispomo-nos a contribuir nas
atividades de concepção das políticas de educação e na organização da educação escolar
indígena.
Os espaços públicos constituem, pois, arena comum de luta por novas políticas
socioculturais, tanto para os povos indígenas como para os demais segmentos excluídos dos
bens e serviços na sociedade nacional. O que significa dizer que as lideranças indígenas
participam, juntamente com outros segmentos populacionais, da consolidação de espaços
onde são definidas políticas públicas que lhes dizem respeito, dando um caráter de pluralidade
a este processo. Para nós, espaço onde se aprende, interage, acompanha e participa, com o
propósito de construir relações e garantias de bem viver para os diferentes povos, diferentes
grupos sociais que constituem a sociedade brasileira, na qual nos incluímos. Sobretudo,
espaço no qual situamos este estudo.
Assim, temos, como constatação positiva, fruto da contribuição da escola
dentro do seu novo papel, a especial relevância, o significado da participação indígena,
atitude intencional, pensada, que tem dado o caráter plural aos espaços públicos. A presença
propositiva de lideranças indígenas, no debate das políticas públicas e a competência dos
mesmos na execução de serviços e no exercício de funções, vão diluindo as imagens
preconceituosas, fato constatado pelos próprios indígenas. Com o reconhecimento da atuação
indígena e com a consciência de que a superação das formas de preconceito tem muito a ver
com oportunidades iguais, as lideranças buscam cada vez mais o acesso aos conhecimentos
técnicos e políticos da sociedade dominante a fim de que eles próprios possam garantir que
sejam reelaboradas as ações das instituições públicas de modo a terem suas comunidades
atendidas, de forma respeitosa. A presença qualificada nos espaços públicos como, por
exemplo, de advogados indígenas, como nos declararam lideranças da UNI, é necessária para
garantir o controle social das questões que lhes dizem respeito.
Apesar de constituírem um movimento organizado e atuante, isto não
representa interesses comuns entre os indígenas. Fatos como as diferenças socioculturais entre
as comunidades, ou a proximidade de cidades e a conseqüente influência dos regionais, levam
as comunidades a rumos distintos. Portanto, os projetos, na busca de ideais de bem viver, são
diferentes: que vão daqueles que trabalham no reforço da manutenção dos modelos
socioculturais próprios até mesmo a projetos que perseguem o modo de ser não-indígena.
Entretanto, no geral, os povos representados pelos nossos interlocutores anseiam pelo domínio
de mecanismos políticos e saberes da cultura nacional, cujo principal argumento é a
autodefesa nos enfrentamentos com os regionais, a viabilização de alternativas de subsistência
e a garantia de permanência das famílias nas terras indígenas.
Ainda sobre o perfil dos interlocutores, estes se destacam pela militância na
representação dos interesses dos povos indígenas da região, tendo, como uma das principais
atribuições, a prática da gestão política junto aos poderes públicos, com vistas a garantir
benefícios que, com base em promulgação atual do direito, devem ser viabilizados para seus
povos.
Portanto, na intermediação das questões que afetam as comunidades indígenas,
o movimento indígena, por meio de suas organizações, conquistou o direito de ser a instância
que detém o maior poder de decisão, na política que afeta os indígenas, seja reivindicando,
seja intervindo, nas ações vindas de fora para dentro das comunidades, inclusive a educação
escolar. Isto reforça, pois, os motivos pelos quais privilegiamos tais lideranças como
interlocutores nesta pesquisa.
O espaço de pesquisa ultrapassa as conversas e entrevistas; isto é, a coleta de
dados é ampliada aos discursos proferidos em reuniões que ocorrem, principalmente, em
espaços de instituições públicas e em espaços das organizações indígenas e indigenistas.
Portanto, temos participado de reuniões com o movimento indígena, visando a condução de
diferentes assuntos de seus interesses, dedicando maior atenção àquelas destinadas à
discussão da educação escolar e, mais substancialmente, no decorrer do presente estudo, de
reuniões e seminários realizados com vistas a pensar políticas de educação escolar indígena e
a discutir a formação de professores indígenas em nível médio e superior.
Tivemos outros espaços privilegiados para a pesquisa tais como, os Encontros
de Culturas Indígenas do Acre e sul do Amazonas, que tem a UNI como uma das instituições
promotoras, com atividades que têm vasta programação política e cultural em eventos
simultâneos; também os Encontros de Educação Escolar Indígena do rio Envira, organizado
pelos representantes locais da Comissão de Professores Indígenas da Amazônia (COPIAM);
e, ainda, os cursos de formação de professores indígenas, de responsabilidade da Secretaria de
Estado de Educação (SEE). Essas ocasiões constituíram-se em espaços para diálogo,
conversas, entrevistas e acompanhamento do processo de construção da concepção de
educação escolar, na perspectiva do movimento indígena.
Durante a participação em Encontros, Seminários, Cursos e Reuniões,
convivemos, de forma mais próxima, com dezenas de professores e lideranças indígenas,
ocasiões em que nos foi possível registrar os discursos e acompanhar o debate sobre a
educação escolar. As fontes para produzir esta tese são complementadas, também, com as
conversas freqüentes com indigenistas de instituições governamentais e não-governamentais,
que acompanham o cotidiano das comunidades. Além de tais conversas, reunimos
publicações, teses, dissertações, relatórios e matérias publicadas na imprensa local, que
ampliam a compreensão da temática.
Em determinadas ocasiões, ampliamos o diálogo para as pessoas das
comunidades indígenas, com as quais temos mais contato, porém os nossos principais
interlocutores são as lideranças da UNI e professores indígenas. Dentre os professores, há um
grupo mais experiente, cuja presença vem se tornando indispensável nos espaços de discussão
das políticas educacionais - dada a autoridade representativa perante a população indígena e o
domínio das questões relacionadas à educação escolar – pessoas, cujo papel é decisivo,
sobretudo, no contexto atual de formulação de políticas em educação. Reforça tal situação o
fato de os próprios professores indígenas reivindicarem a responsabilidade da condução do
processo de ressignificação das escolas em suas comunidades: de escolas para índios em
escolas indígenas. Essa situação passou a exigir professores com maior domínio, não só da
cultura dominante mas, sobretudo, da cultura de seu povo, da língua indígena e demais
saberes culturais.
Os professores indígenas, particularmente os 230 do estado do Acre, estão em
processo contínuo de formação, com programas direcionados ao estudo e à pesquisa de
saberes de sua cultura e ao conhecimento de saberes da cultura dominante. Esta ênfase na
formação, acrescida da experiência acumulada, por parte significativa dos professores, torna-
os referências políticas nas comunidades, articuladores dos discursos internos e externos,
relativos à cultura e à escola. Tal experiência e formação têm favorecido a condução
autônoma das questões afetas, principalmente, à educação escolar indígena, o que resulta no
crescente processo de organização política dos professores, seja pela participação na
COPIAM, seja pela atuação na OPIAC e em outras associações, por regiões, como a dos
professores da região do rio Envira. Alguns professores já acumulam 20 anos de experiência
no magistério, histórico que têm lhes proporcionado o domínio do papel da escola e do
trabalho para tornar diferenciada a escola em sua comunidade. Embora não disponham das
credenciais de titulação, como o profissional formado na academia, fazem valer, com
autoridade, suas posições, nas questões que lhes dizem respeito.
A liderança exercida pelos professores e a parcela significativa de contribuição
destes, no movimento, são fatos que não podem ser ignorados pelo pesquisador. Outro
aspecto importante para esta pesquisa está na dupla função de muitas lideranças do
movimento indígena, pois eles atuam como professores ou passaram pela função de professor
em suas comunidades, fato que lhes favorece, deixando-os à vontade para falar da escola.
Pudemos constatar a preocupação destes líderes, em diversas ocasiões, com o papel da escola,
questionando os possíveis resultados a serem obtidos com o trabalho dos indígenas, como
professores, em escolas organizadas, de forma similar, à escola não-indígena. Questionam
sobre até que ponto o sistema oficial estava apenas transferindo para os indígenas a função de
continuar o processo de integração do indígena à cultura nacional.
Nos diálogos, nas conversas com as lideranças do movimento e com as demais
pessoas envolvidas nas políticas de interesse dos povos indígenas, adotamos, como princípio,
partir sempre da abertura, da necessária incompletude, que requer o estabelecimento de
relações. Essa postura representou um esforço de sair do enfoque de objetos do saber para ir à
direção dos sujeitos do saber. Tal como recomenda Jovchelovitch (1998, p. 74):
O outro não está simplesmente lá, esperando para ser reconhecido pelo sujeito do
saber. Ao contrário, o outro está lá, ele próprio, enquanto eu, com projetos que lhes
são próprios, desejos que lhes são próprios, perspectivas que lhes são próprias. Ele
não é redutível ao que o eu pensa ou sabe sobre ele, mas é precisamente “outro”,
irredutível na sua alteridade.
Desse modo, a coleta de dados para esta tese esteve baseada no diálogo entre
pessoas diferentes em suas identidades culturais, com experiências, saberes e visões de mundo
próprias. Diálogo entre pessoas, que lutam em torno de objetivos comuns, nos quais nos
incluímos, na construção de relações solidárias e de um mundo, onde a dignidade de todos
seja respeitada.
Enfocando a relevância dos resultados desta pesquisa, convém destacar que
esta se insere num projeto maior da instituição, a que estamos vinculados, a Universidade
Federal do Acre (UFAC), que atendendo às demandas socioculturais da região amazônica,
vem ampliando sua atuação com os povos da Amazônia. A UFAC tem, pois, investido no
aperfeiçoamento de seus profissionais para melhor interagir com as diferentes identidades
culturais, com a perspectiva dos diferentes povos e, desta forma, enquanto Universidade,
contribuir, de forma coerente e respeitosa, com as demandas que lhes são postas na produção
de novos conhecimentos, na valorização dos conhecimentos dos povos amazônicos, junto à
sociedade dominante, e na formação de profissionais voltados para os contextos locais,
sobretudo professores. Assim, incluímos esta pesquisa entre os esforços da UFAC, no
reconhecimento, respeito e defesa das concepções dos povos com os quais interage,
constituindo-se em um passo importante na construção relações interculturais.
Num âmbito mais geral, este estudo traz muito do que já é conhecido, mas traz
também avanço, seja pelo aprofundamento do papel da escola em contextos diferenciados ou,
até mesmo, pelo próprio exercício a que os interlocutores são postos, ao serem provocados de
forma a manifestar pontos de vista conflitantes, que são inevitáveis, sobretudo por
trabalharmos num terreno incômodo, ao dar voz aos destinatários de políticas nem sempre
executadas como reivindicadas pelo movimento e pelas comunidades. Conseqüentemente, são
reveladas práticas auto-suficientes ou insuficientes de setores oficiais e não-oficiais. As ações
externas, hoje, levadas às comunidades, sem a devida participação de indígenas, resultam em
muitas críticas.
Embora tivéssemos em vista um propósito delimitado, trabalhar com a
perspectiva do movimento indígena da Amazônia ocidental, pautamos a nossa abordagem em
um contexto maior, que compreende o nosso envolvimento com o trabalho indigenista. Desse
modo, consideramos a nossa interação com os movimentos sociais, sobretudo com o
movimento de resistência indígena, um fator que contribuiu para o estudo da problemática a
que nos propusemos tratar nesta pesquisa.
Assim como o envolvimento com a questão indígena, também a formação e a
experiência voltadas para o trabalho escolar constituem vantagens importantes para o trato da
problemática, em questão. Significa dizer que a abordagem deste estudo sustenta-se também
em nossa vivência com educação escolar e na formação em nível médio e superior com forte
influência da Teologia da Libertação e do pensamento pedagógico de Paulo Freire. A partir de
então, conciliamos o trabalho, na educação, com a militância em movimentos sociais.
Quanto ao nosso envolvimento com as lutas dos povos indígenas, este ocorrerá
a partir do período pós-constituinte, quando tivemos a oportunidade de trabalhar no Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), ocasião em que nos foi possível acompanhar a mobilização
indígena pela garantia dos direitos conquistados, na Constituição de 1988. Momento forte na
luta dos povos indígenas, com apoio de organizações indigenistas, particularmente do CIMI.
Época em que afloravam as organizações indígenas, o esforço em reunir povos diferentes na
luta contra as adversidades regionais e em torno da regulamentação dos direitos
constitucionais. Deste trabalho, no contato com a diversidade de povos indígenas, conhecendo
a luta destes povos, aprendemos o quão é relevante a mobilização popular de resistência em
uma sociedade submetida às concepções homogeneizadoras e aos mecanismos de exploração
do capitalismo.
A partir de 1991, iniciamos nosso trabalho com educação escolar, na região da
Amazônia ocidental, particularmente, no estado do Acre. Região, cujos movimentos
socioculturais sempre tiveram destaque, dada a luta da população tradicional em defesa da
floresta e de formas alternativas ao modelo capitalista de exploração dos recursos naturais,
conseqüentemente, lutas por novas políticas que contemplassem o saber construído pelos
povos que, tradicionalmente, vivem na região.
Nesta região, atuando como docente na UFAC, conciliamos o trabalho
acadêmico, de formação de professores, com a participação nas lutas dos movimentos
socioculturais. Acreditando e participando na transformação social, política e cultural da
região, concentramos nosso estudo no processo de construção da educação escolar
diferenciada nas comunidades indígenas, temática a que nos dedicamos no Mestrado em
Educação, em cuja dissertação (DALMOLIN, 1998 passim) tratamos da Política Nacional de
Educação Escolar Indígena, com enfoque na luta das comunidades Shanenawa e Kaxinawá da
região do rio Envira, no município de Feijó, AC, no que diz respeito ao processo de conquista
da escola. Comunidades, destacadamente politizadas, nas quais a educação escolar não se
desvincula das bandeiras de luta das organizações Indígenas: locais e regionais, e da, então,
Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Acre e Roraima (COPIAR), hoje,
COPIAM.
Desde então, participamos efetivamente do debate para formulação de uma
política educacional para as comunidades indígenas na região ocidental da Amazônia
brasileira. Interagindo com o movimento indígena e com os órgãos oficiais, contribuímos por
meio de projetos de extensão e pesquisa direcionados para a formação de professores
indígenas - maior reivindicação do movimento indígena, junto à UFAC.
Por ocasião dos estudos do doutorado, surgiu a oportunidade de conhecer outra
perspectiva, em outro contexto de luta, a do povo Kaiowá/Guarani, em Mato Grosso do Sul.
Nesta oportunidade, em 2001, acompanhamos algumas situações da movimentação política
em torno das questões de interesse indígena naquele estado. E, mais efetivamente, na
observação e acompanhamento dos debates e ações que vêm sendo conduzido pela população
indígena da Reserva Indígena de Caarapó em conjunto com a Universidade Católica Dom
Bosco (UCDB), por meio do Programa Kaiowá/Guarani, com apoio de outras instituições,
tais como: Prefeitura Municipal de Caarapó, MS e Diocese de Dourados, MS.
Naquela ocasião, tivemos a oportunidade de conviver com professores
indígenas e pesquisadores da UCDB, no exercício de diálogo e práticas interculturais
envolvendo escola, comunidade indígena e universidade em experiências, nas quais, os
pesquisadores, partindo das perspectivas, exigências e especificidades da cultura
Kaiowá/Guarani, assumiram o desafio de contribuir com ações em favor do povo. Em outras
palavras, iniciativas concebidas a partir da soma da sabedoria tradicional ao saber acadêmico
científico, subsidiando formas de melhor utilização, recuperação e conservação do potencial
dos recursos naturais na terra indígena, cujo principal objetivo é contribuir para a melhoria da
qualidade de vida da população. Ações nas quais a escola exerce papel decisivo, seja pela
sistematização das experiências em saberes escolares, seja como instituição que concentra e
difunde o processo através do qual se busca restaurar a dignidade, o bem viver da população.
Embora os problemas enfrentados pelos povos indígenas do Mato Grosso do
Sul representem uma situação distinta do contexto amazônico, o avanço da “empresa”
capitalista e de seus modos de produção, já se impõe, para algumas comunidades amazônicas,
em condições semelhantes às enfrentadas pelos indígenas em Mato Grosso do Sul, isto é,
impondo a necessidade de se organizarem em novos espaços, reordenando alguns dos antigos
papéis e práticas sociais (VIETTA, 1998, p. 53). Procuramos ter presente essa experiência no
debate com professores e lideranças indígenas da Amazônia ocidental.
Desta experiência, mantidas as ressalvas decorrentes das diferenças étnicas e
de contextos socioculturais, dentre os muitos aprendizados, ficou patente a identidade cultural
do povo, cujos elementos, que marcam a diferença, extrapolam aspectos de bases
essencialistas. Apesar das condições adversas, impostas pela exploração capitalista, persistem
referências culturais que denotam a visão de mundo, que os torna únicos enquanto povo.
Aspectos que reforçam a idéia de identidade cultural e formas próprias de organização social
dos diferentes povos, e que justificam, tal como defendemos nesta tese, novas políticas
interculturais em sociedades plurais. A título de exemplo, dentre os aspectos próprios do
modo Kaiowá/Guarani de ver o mundo, apesar de fortemente pressionado pela ocupação
regional, no processo de exploração capitalista, está a dimensão de território, compreensão
que corresponde ao espaço em torno de cada uma das aldeias ocupadas por famílias,
constituindo a unidade territorial fundamental para a continuidade do seu modo de ser. Este
espaço, ocupado pela aldeia, denominado tekoha, vem a ser o lugar onde a família extensa
vivia de acordo com os seus costumes. Brand (1998, p. 23) afirma que:
É a aldeia, efetivamente, o espaço onde se fundem terra, território, subsistência,
relações sociais e festas religiosas [...] É o espaço necessário para os
Kaiowá/Guarani realizarem e concretizarem seu modo-de-ser específico e fundador
de sua identidade.
A contribuição obtida a partir da nossa vivência com esta comunidade, mesmo
que breve, sobretudo no que diz respeito ao acompanhamento do trabalho dos professores
indígenas e ao acompanhamento do trabalho de pesquisadores, representou, também, uma
experiência de especial relevância, tanto na temática educacional como na temática ecológica-
ambiental. Registramos esta experiência numa monografia (DALMOLIN, 2001), atentando,
particularmente, para os processos participativos entendidos como propulsores das
perspectivas emancipatórias e de sobrevivência (SORRENTINO, 2001, p. 08).
Os diferentes contextos, entre outros fatores, determinam as especificidades de
luta e não permitem comparação, principalmente por tratarem-se de povos distintos.
Entretanto, a experiência do povo Kaiowá/Guarani e dos pesquisadores da UCDB nos
fornecem elementos para interagir em nosso campo de trabalho e estudo, na região da
Amazônia ocidental. Enfim, consideramos esta nossa bagagem e as referências da luta de
outros povos em outras regiões como pontos de apoio no diálogo com as lideranças do
movimento indígena do Acre e sul do Amazonas sobre políticas, particularmente de educação
escolar.
Ainda no tocante ao papel do pesquisador, voltando ao espaço onde realizamos
a pesquisa, as boas relações que construímos com nosso trabalho, enquanto docente da
UFAC, favoreceram as atividades de pesquisa. Boas relações construídas, tanto com as
lideranças das organizações indígenas e professores indígenas quanto com as organizações
indigenistas e órgãos governamentais, que têm atuação junto aos povos indígenas. Condição
que nos favoreceu, no período de 2002 e 2003, no que se refere ao acompanhamento das
reuniões envolvendo tais segmentos, pois, além de participar do debate sobre as questões de
interesse dos povos indígenas, aproveitamos para levantar dados para esta pesquisa.
Nossa presença nos espaços de discussão política do movimento indígena é
justificada pela posição de profissional da área da educação da UFAC, mais especificamente
para sermos um dos interlocutores, da instituição, para uma das principais demandas dos
povos indígenas da região: a formação de professores. Com este propósito e como
contrapartida, participamos dos espaços de luta do movimento indígena, também respondendo
a incumbências que a própria instituição tem nos delegado para dar resposta às demandas
levadas à Universidade pelo movimento indígena. Fato é que a nossa atuação, assim como a
de outros pesquisadores da UFAC, vem sendo repensada a partir de um processo que envolve
aprender e construir juntos, tal como recomenda Cardoso de Oliveira (1988, p.101): ao
aprender a vida do Outro (indivíduo, grupos ou povos), o faz em termos de historicidade,
num tempo histórico do qual ele próprio, pesquisador, não se exclui.
No trabalho com os povos indígenas, acreditamos que a postura adequada pode
ser ilustrada por uma citação de Garcia (1994, p. 65) ao referir-se a um diálogo entre uma
indígena australiana e um técnico, de outro país, supostamente bem-sucedido, que ponderou
da seguinte forma: Se você veio para me ajudar, pode tomar o seu caminho de volta. Mas se
crê na minha luta como parte de sua sobrevivência, então talvez possamos trabalhar juntos.
Quanto ao nosso posicionamento, nosso papel, no trato com o discurso do
outro, esforçamo-nos em controlar nossa análise, enquanto pesquisadores, que, está balizada
no saber dominante. Valendo-nos das palavras de Guareschi (1998, p. 160), para sermos
éticos, enquanto pesquisadores, esforçamo-nos em descer da oligarquia cultural acadêmico-
universitária para saber-ouvir a voz que vem do além, [...] desde a exterioridade da
dominação.
Desse modo, envidamos nossos esforços para escapar da tendência objetiva,
como parasita do processo de pesquisa, admitindo a subjetividade do pesquisador, a partir da
qual o interlocutor não é mais uma entidade isolada. Conforme Coulon (1995, p. 54), o
interlocutor:
Está sempre em inter-relação com a pessoa que o estuda; não existe corte
epistemológico, [...] os métodos usados dependem mais da análise qualitativa, a
única que pode ser significativa, assim como não-mensurável; os quadros sociais
resultam de uma contínua construção, de uma permanente criação das normas
pelos próprios atores; subjetivismo reabilita o transitório, o tendencial e o singular.
Por este prisma, reafirmamos a postura referida acima, tendo como princípio
orientador da conversa, na interação com o outro, o diálogo. Citando Todorov (1999, p. 304),
embora seu comentário esteja se referindo a um trabalho de relação com o outro na história,
tentamos pautar-nos numa postura perante o outro, que se aproxime do entendimento de
diálogo assumido pelo autor:
Eu quis evitar dois extremos. O primeiro é a tentação de reproduzir a voz das
personagens como é em si mesma; de procurar eu mesmo desaparecer para melhor
servir ao outro. O segundo é submeter os outros a si, transformá-los em marionetes
e controlar-lhes os fios. Entre os dois, procurei não um campo intermediário, mas a
via do diálogo.
No âmbito da educação escolar, temos o entendimento de que a escola, quando
ressignificada e democratizada, cumpre um papel relevante junto aos diferentes segmentos da
população brasileira. Necessariamente, essa escola precisa desenvolver-se, de forma
diferenciada e, para tal, não pode estar desvinculada das lutas políticas das comunidades a
quem se destina e, além disso, deve respeitar o universo sociocultural de tais comunidades,
seus valores, seus saberes. Dessa forma, consideramos, como parte do processo de construção
de uma sociedade plural e justa, o desafio de assumir saberes diferentes na produção do
conhecimento, permitindo que os diversos grupos sociais e étnicos alcancem a cidadania
plena. No contexto indígena, a escola deve estar associada às lutas políticas do movimento
indígena bem como deve assimilar as práticas e concepções educativas, a história, a língua, a
religiosidade, a tradição, enfim, a cultura de cada povo. A escola precisa ser transformada
pela ação desses elementos, moldada em nova forma pelas “mãos habilidosas” dos próprios
sujeitos históricos a quem ela se destina.
O direito à escola ressignificada como indígena, ou até mesmo a defesa de um
sistema de ensino próprio, vêm sendo respaldados em delineamentos construídos
internacionalmente, garantindo, como pressuposto básico, o princípio de que cabe aos povos
indígenas decidirem seu futuro. Em se tratando do Brasil, a legislação do país tornou legítima
a compreensão de que os povos indígenas devam exercer o controle de suas instituições, uma
vez que a Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seu artigo 232, reconhece que os índios,
suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de
seus direitos e interesses. Este princípio responde inclusive a questionamentos - próprios da
nossa visão ocidentalizada de mundo, decorrentes, ainda, da incapacidade de entender ou
mesmo aceitar o diferente - tais como: se convém, em tempos de globalização, defender que
grupos étnicos mantenham-se em seus costumes tradicionais, ou defender que, por ser
inevitável o contato com a sociedade nacional, que estes sejam estimulados a assimilar os
“benefícios” proporcionados pelas sociedades mais desenvolvidas, tecnologicamente. As
orientações, com base no direito, são de que cabe aos povos indígenas decidir o seu futuro.
Em se tratando da relevância, da necessidade ou não da escola indígena, a
reflexão e a prática dos principais interessados, os indígenas, indicam que já se superou, há
muito tempo, esta discussão a respeito do que “convém”. Persistem as lutas para avançar na
concepção de políticas que contemplem a diversidade cultural, favorecendo a concretização,
ao menos do que já foi explicitado em Lei: a cidadania plena, satisfazendo com isto o
princípio da igualdade - Artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988) - e o
reconhecimento de uma diferença identitária dos povos indígenas como assevera o Artigo
231, da mesma Constituição: são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Explicitado o nosso posicionamento na área de estudo, apresentamos, a seguir,
o instrumental utilizado para análise e sistematização dos conhecimentos obtidos na pesquisa,
na ordem dos capítulos que compõem esta tese. Procedimentos, os quais, aliados ao espírito
de abertura e de diálogo, possibilitaram-nos alcançar os objetivos que nos propusemos
desenvolver.
Para a descrição teórica elaborada nos capítulos primeiro e terceiro, recorremos
a autores de Ciências Sociais, História e Educação, sendo que, no capítulo primeiro, nosso
propósito foi o de apresentar concepções da cultura dominante que nortearam a intervenção
das sociedades modernas no modo de vida dos povos indígenas, particularmente no Brasil,
enfocando, principalmente, concepções que embasaram o modelo de instrução que restringiu
ou negou, aos indígenas, os direitos de existirem como tais, inclusive, o direito de acesso ao
saber escolar elaborado.
No capítulo segundo, trabalhamos, mais diretamente, com a intervenção
colonial e posterior da sociedade brasileira sobre o mundo dos povos amazônicos, tendo a
preocupação em enfocar, substancialmente, o período e a região onde centramos nosso estudo.
Desse modo, destacamos as práticas de negação da escola para os indígenas da Amazônia
ocidental, pontuando, também, os norteamentos oficiais até a época atual, sob o enfoque das
concepções que negam a possibilidade de os povos indígenas viverem conforme orientações
socioculturais próprias. Para elaborarmos este capítulo, fizemos o esforço de ficar atentos para
procedimentos e abordagens contemporâneas nos estudos de história da educação, embora
tenhamos consciência de que estamos ainda impregnados do modo de ver positivista, que
influencia as nossas opções técnicas e metodológicas. Apesar disto, empenhamo-nos em
confrontar nossas análises às críticas à concepção positivista, postura que não constitui
novidade, como indica Foucault (2000, p. 56), certamente a história há muito tempo não
procura mais compreender os acontecimentos por um jogo de causas e efeitos na unidade
informe de um grande devir, vagamente homogêneo ou rigidamente hierarquizado.
As ressalvas, no que se refere a produção deste capítulo, estão situadas na
dificuldade comum a estudos que visam desvendar a postura dominante em educação, em
diferentes contextos históricos, isto é, a ausência da perspectiva dos dominados. Soma-se a
isto, além da incapacidade do indivíduo “ocidental” de compreender e até mesmo aceitar a
cultura dos nativos americanos, outro grande limitador, que é o de consistir nos mecanismos
de memória das informações históricas. Estas chegam, até nós, por intermédio do sistema de
registro e comunicação da cultura dominante, que se estabeleceu, anulando, eliminando,
excluindo outras possíveis formas de narrativas.
Partimos, pois, do fato de que não é possível o registro objetivo da realidade.
Diante de tais limitações, somadas a outras, como a impossibilidade de se abarcar todo o
universo de concepções e acontecimentos num estudo, ou mesmo, em decorrência das
condições nas quais as imagens, os fatos observados, os relatos registrados, as falas
selecionadas, são feitas segundo seus (nossos) interesses, crenças, valores, preconceitos etc.
(BURKE, 1992, p. 27), temos consciência de que os dados e a bibliografia utilizada para a
produção deste e de outros capítulos são filtrados pela visão dominante, registrados nos
códigos e pelo prisma desta concepção.
Assim, a sistematização desta etapa tende, entre outros aspectos, para a
crescente expansão nas formas de olhar, de retornar aos contextos passados, com vistas a
obter outros “ângulos” de acontecimentos e outras perspectivas de pessoas e sociedades. Este
modo de enfocar a história é caracterizado por Burke (1997, p.12) como:
A substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história
problema. [...] [Trata-se] da história de todas as atividades humanas e não apenas
história política [...] em colaboração com outras disciplinas tais como a geografia,
a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a antropologia social, e tantas
outras.
No terceiro capítulo discorremos sobre as bases que sustentam as perspectivas
atuais, contra-hegemônicas, nas quais situamos o movimento indígena e a escola diferenciada,
que concebe as culturas indígenas, assim como a cultura tida como “universal”, como
legítimo objeto de aprendizado na escola. Neste capítulo, apresentamos os fundamentos para
que sejam firmadas relações respeitosas entre pessoas que se reconhecem como diferentes.
Trata-se da base teórica que recorremos para dialogar e refletir sobre assuntos afins ao que
temos como objeto neste estudo e, substancialmente, o referencial no qual situamos a base
que dá suporte à construção da educação escolar como recurso favorável à emancipação dos
povos indígenas.
No quarto capítulo situamos a resistência atual dos povos indígenas na
Amazônia ocidental, apresentando algumas considerações sobre os povos indígenas da
Amazônia ocidental e sobre estratégias de resistência do movimento formado por estes povos,
no momento atual. Justificamos este capítulo no fato da diversidade e da resistência terem
vínculo indissociável com o processo de construção de escolas indígenas. Trata-se de
considerar que a escola concebida como recurso favorável aos projetos de vida e de futuro dos
povos indígenas - além de ser pensada no conjunto de medidas que visam a compensação das
conseqüências históricas e atuais do processo de dominação e negação - deve ajustar-se à
diversidade étnica, de situações e de interesse das comunidades; deve estar vinculada às
bandeiras de luta do movimento indígena, tendo como ponto de partida (e de chegada) a
identidade cultural, a visão de mundo, enfim, a cultura do povo desta comunidade, tal como
será explicitado nos capítulos seguintes.
Assim, tivemos a preocupação de apresentar, no quarto capítulo, mesmo que de
forma resumida, um texto sobre a diversidade atual dos povos indígenas na região que
compreende o Acre, sul do Amazonas e noroeste de Rondônia bem como sobre a resistência
indígena, sobretudo a atuação do movimento e o seu papel no controle das políticas públicas.
Nossas ressalvas quanto a este capítulo são postas na grande complexidade que é tratar da
diversidade cultural sem, com isso, incorrer no risco de caricaturizar ou minimizar a
totalidade que compreende o mundo do outro. Considerando que, nos dias atuais, há consenso
“científico” sobre a complexidade que é retratar uma cultura como um observador oriundo de
outra cultura, conseqüentemente, as descrições do outro se constituem em reduções, como
analisa Malerba (2000, p. 273):
O problema maior que enfrentam os estudos culturais, entre eles o da história da
cultura, é o da irredutibilidade do conjunto de códigos de um grupo humano a
outro, separados pelo tempo e pelo espaço; em uma palavra, o problema das
diferenças culturais. Em outros termos, um grupo humano quando se vê diante de
outro que desconhecia [...], quais os limites de possibilidade de compreensão do
outro, sem que inevitavelmente um grupo “traduza” (ou reduza) o outro, a partir de
sua própria visão de mundo?
Como exemplo, temos as condições a que foram submetidos os indígenas bem
como o negro e a mulher, historicamente construídos por representações marcadas pela
violência simbólica e por um conjunto de exclusões. História escrita por homens e brancos.
Na produção dos capítulos segundo e quarto, recorremos a dados
bibliográficos, incluindo teses e dissertações, publicações com enfoque regional, artigos,
relatórios e documentos obtidos no acompanhamento das atividades do movimento indígena.
Com relação à apresentação da história recente sobre os povos e o movimento indígena,
consideramos também as informações obtidas com a observação no decorrer do trabalho de
pesquisa, bem como, no acompanhamento que temos feito da conjuntura regional, desde a
década de 1990. Entendemos como parte desse processo de observação o acompanhamento
das ações do movimento, a participação nas mobilizações, seminários, encontros, cursos e
reuniões; enfim, a interação com as pessoas indígenas e não-indígenas envolvidas com as
lutas de interesse dos indígenas, seja de educação escolar, seja nas demais questões de
interesse destes povos.
Para tratarmos da escola e dos saberes indígenas, nas estratégias de resistência,
descrevemos, no capítulo quinto, os avanços oficiais obtidos pelos povos indígenas, com
ênfase nas mudanças refletidas na legislação orientadora da política oficial, que revoga o
propósito integracionista, e redefine o papel do Estado obrigado a garantir que os povos
indígenas tenham condições de viver conforme suas culturas. Sob este enfoque de redefinição
do papel do Estado, destacamos o processo oficial de regulamentação da educação escolar
indígena visando o tratamento diferenciado e específico desta educação, e, em termos de
implementação desta orientação diferenciada, apresentamos a política de educação escolar
indígena no estado do Acre.
Considerando que as normas e as condições pedagógicas não garantem que a
escola torne-se recurso favorável aos projetos de emancipação sociocultural, neste mesmo
capítulo explicitamos algumas ponderações políticas e culturais relacionadas à construção da
escola indígena, abordando alguns aspectos sobre os saberes indígenas em “negociação”, na
construção da escola.
No capítulo sexto, discorremos sobre a perspectiva das lideranças do
movimento indígena. Para tal, reproduzimos falas de professores e lideranças, obtidas em
conversas dirigidas, entrevistas, artigos na imprensa, publicações com depoimentos e
documentos produzidos pelo movimento. O material é composto por diálogos ilustrativos
sobre o processo de luta do movimento indígena pelo restabelecimento de sua dignidade na
luta contra o preconceito, sobre o papel da escola no processo de resistência indígena e nos
projetos de futuro, sobre a cultura e a identidade indígena, por fim, expressa proposições com
vistas ao estabelecimento de relações respeitosas entre os diferentes, em direção a uma
sociedade plural.
Tais discursos constituem representações que refletem opiniões já, de certa
forma, difundidas socialmente no meio indígena e, portanto, confiáveis. Essas opiniões
tendem a servir de referencial nos processos decisórios nos quais o professor ou a liderança
participa. Isto é, os discursos das lideranças indígenas tendem a representar, com as devidas
ressalvas, as escolhas da coletividade, refletidas na opinião das lideranças do movimento.
Assim, as falas caracterizam-se por um saber que mobiliza as atitudes e estão
articuladas com a vida coletiva da comunidade ou com as bandeiras do movimento.
Normalmente, as falas dos professores são construções ligadas ao lugar a que representam, ou
seja, sua comunidade, portanto, são falas influenciadas pela identidade cultural e pelos
interesses comuns.
Não nos ocupamos em classificar as falas, nem em avaliar o cunho ideológico
de seu conteúdo. Centramos nossa atenção e procuramos dar destaque aos posicionamentos.
Por exemplo, em relação à educação, é do conhecimento de todos que a escola real está longe
de constituir a escola desejada. Entretanto, no momento atual, em tempos de construção de
políticas públicas, é relevante que professores e lideranças debatam, reflitam e se posicionem.
Ainda com relação ao cunho ideológico das falas, tomando como referência
comentários de Foucault (2001), por definição, ideologia opõe-se a algo que se apresenta
como “a verdade”. Este autor argumenta, quanto ao uso da noção de ideologia no quadro
metodológico, que o problema não está em separar entre o que num discurso revela da
cientificidade e da verdade e o que revelaria outra coisa; mas de ver historicamente como se
produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem
falsos (FOUCAULT, 2001, p. 7). Desse modo, considerando o norte que tivemos nesta
pesquisa, em que partimos da tentativa de desvincular o poder da verdade das formas de
hegemonia (social, econômica, cultural), trabalhamos pela reabilitação dos saberes
desprestigiados por tal verdade hegemônica. Portanto, nosso entendimento é de que não cabe,
neste trabalho, a adoção do viés ideológico para análise das representações obtidas junto aos
nossos interlocutores.
Assim, pautando-nos em Foucault (2001, p. 12), partimos do entendimento de
que os efeitos de verdade são produzidos dentro de discursos que em si mesmos não são nem
verdadeiros nem falsos. Desse modo, num espaço em constante reelaboração, no qual os
indígenas vêm conquistando o direito de definir as políticas para suas comunidades, os
discursos deles, enquanto lideranças, representando povos, são carregados de peso político
que os legitima e possui grande significado para seu povo. Segundo este entendimento, não
cabe verificar se tal fala, se este ou aquele saber é mais ou menos verdadeiro. Embora o saber
indígena tenha sido historicamente desqualificado pela cultura dominante, no âmbito local, na
cultura, na sociedade onde ele é produzido e veiculado, seu poder de verdade é incontestável.
Portanto, não se trata de fazer comparações entre verdades, uma vez que seja o discurso
fundamentado no saber tido como científico ou o discurso fundamentado em saberes locais,
de um grupo étnico, ambos possuem status de verdade no meio em que é produzido.
Em se tratando do discurso de uma liderança do movimento indígena, a
representação, o saber ali veiculado, não passa pelo julgamento de legitimidade, pois uma vez
que este interlocutor apropria-se, reelabora um discurso, dada a sua posição enquanto
representante de um povo, tem um papel de intelectual, assumindo responsabilidades
específicas que têm a ver com questões socioculturais de seu povo, portanto, tem sua
importância. Enquanto intelectual específico, como argumenta Foucault (2001, p. 12;14),
queira ou não ele é obrigado a assumir responsabilidades políticas e complementa, seria
perigoso desqualificá-lo em sua relação específica com um saber local. Este discurso,
enquanto elaboração, torna-se importante, como diz Foucault, porque a verdade não existe
fora do poder ou sem poder. A verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a
produzem e apóiam e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem.
Na conclusão, enfatizamos algumas considerações sobre a questão central do
nosso estudo, retomando aspetos sobre a exclusão no processo histórico e suas formas atuais
que dificultam o acesso dos indígenas à escola e, substancialmente, enfatizamos o significado
que esta instituição exerce, na época atual, nos projetos indígenas, articulando os
condicionantes apontados no capítulo quarto e quinto com as falas de professores e lideranças
do capítulo sexto, situadas no debate que apresentamos no capítulo terceiro.
Os depoimentos contribuem também, na análise das múltiplas correlações e
interdependências, com o processo histórico dos problemas e conquistas indígenas na região,
por trazer marcas da diversidade de povos e, nesses, as variações em suas perspectivas. Desse
modo, preocupamo-nos em olhar a educação escolar no contexto histórico, em suas
contradições e conflitos, seu processo de construção, desenvolvimento e transformação nas
diferentes comunidades.
Com os procedimentos que adotamos, buscamos manter uma visão crítica,
considerando o conjunto de fatores imbricados no contexto, no qual, indivíduos, interesses
políticos e econômicos, projetos distintos estão em processo, em conflito. Para isto, foi
necessário um trabalho de crítica, interpretação e avaliação dos fatos - processo em que a
atividade do homem, do cientista é condição necessária ao conhecimento objetivo dos fatos
(KOSIK, 1976, p. 45).
Ainda com relação ao aspecto metodológico, para melhor atentar para o
discurso social, apreender as diferenças que compreendem aspectos culturais próprios do
outro, buscamos ter presentes algumas orientações etnográficas, sempre que possível, obtidas
na observação dos acontecimentos e situações concretas, atentando para suas relações com os
discursos produzidos. Assim, os princípios etnográficos nos ajudaram a lidar com as
diferentes construções, com as formas como os discursos e os acontecimentos são produzidos,
percebidos e interpretados. Esses discursos revelam, desde a preservação e reforço dos valores
culturais do próprio povo à reelaboração ou assimilação de valores, seja da comunidade
regional - indígena e não-indígena - seja do discurso/projeto apresentado por indigenistas que,
no trabalho de apoio, socializam experiências/projetos desenvolvidos por outros povos.
Embora não tivéssemos como propósito interpretar os discursos, não ficamos
alheios aos fatos, por exemplo, a proximidade com cidades, como é o caso de algumas
comunidades indígenas, ou mesmo, à influência exercida por órgãos oficiais e Organizações
Não-Governamentais (ONGs), gerando disputas de concepções e interesses entre segmentos
dentro das comunidades. Enfim, é próprio das culturas o seu caráter dinâmico, ilustrando que
as experiências concretas de vida se modificam. Nesse processo, as pessoas precisam
encontrar novos símbolos, que traduzam ou expressem os significados que elas mesmas vão
atribuindo às novas situações vivenciadas. Assim, novas concepções entram em conflito com
a concepção dominante na comunidade, resultando na reelaboração da mesma por meio da
incorporação de novos símbolos.
O recurso ao enfoque etnográfico ajuda-nos a, mais do que falar o que os
indígenas querem, buscar conversar com eles e não apenas com estranhos (GEERTZ, 1989,
p. 24). O grande desafio está em superar uma postura decorrente da ânsia de falar sobre o que
é passar a falar por este alguém. A meta seria “procurar o comum” em determinadas culturas,
ressaltando o grau no qual o significado do comportamento humano varia de acordo com o
padrão de vida através do qual ele é informado (GEERTZ, 1989, p. 24). Enfim, temos que
considerar que:
O que inscrevemos (ou tentamos fazê-lo) não é o discurso social bruto ao qual não
somos atores, não temos acesso direto, a não ser marginalmente, ou muito
especialmente, mas apenas àquela pequena parte dele que os nossos informantes
nos podem levar a compreender. [...] isso torna a visão da análise antropológica
como manipulação conceptual dos fatos descobertos, uma reconstrução lógica de
uma simples realidade, parecer um tanto incompleta ( GEERTZ, 1989, p. 30).
A problemática enfrentada por povos, tal como o povo Kaiowá/Guarani em
Mato Grosso do Sul, bem como as estratégias para solucioná-los, firmando parceria com
instituições com predisposição a trabalhar junto e a partir do contexto local, com as devidas
ressalvas, auxilia-nos na análise dos problemas que ocorrem na Amazônia ocidental bem
como nas possibilidades de enfrentamento, como as próprias lideranças enfatizam sobre o
papel das parcerias, buscando, junto, soluções para problemas com origem similares: a
pressão, o desprezo e a indiferença da sociedade dominante.
Culturas de povos indígenas da Amazônia ocidental, de uma ou outra forma já
constam em dissertações e teses, em sua maioria estudos antropológicos e lingüísticos,
tratando, pontualmente, de alguns povos. Frente a isto, esta pesquisa é construída, tal como
descreve Geertz (1989, p. 35), também sobre outros estudos. Acontecimentos, saberes,
conceitos anteriormente desenvolvidos são usados, sem perder de vista, que um estudo é um
avanço quando é mais incisivo do que aqueles que o precederam.
A importância a ser dada ao trabalho está relacionada ao fato de conseguirmos
fazer com que tais informações - resultantes da pesquisa - possam balizar não só o agente
externo, influenciando nas políticas de educação escolar, mas, principalmente, possam
subsidiar o próprio movimento na relação com o poder público, garantindo que a escola
indígena considere a perspectiva do povo, das comunidades, ao estabelecer políticas que lhes
afetem. Assim, no exercício do diálogo poderemos avançar com mais propriedade na
construção conjunta de relações interculturais.
Antecipamos também, alguns conceitos que consideramos esclarecedores para
o entendimento da abordagem que optamos adotar nesta tese. Assim, no tocante ao campo de
interação com os interlocutores, referimo-nos ao espaço público, onde são debatidas tanto as
questões de interesse dos povos indígenas quanto as dos demais segmentos sociais. É nesse
espaço que se exerce o controle social das ações. Tal idéia de espaço público está associada ao
exercício de superação da visão de homem como “categoria universal”, espaço público que
vem se constituindo, cada vez mais, em espaço de pluralidade humana. Nota-se o crescimento
da consciência de que enquanto pessoa ou coletividade, gozam de direitos, inclusive de fazer
gestão política, participando nas decisões sobre questões que lhes afetam estabelecendo, com
esta prática, um caráter de respeito ao plural implícito na sociedade nacional.
Este espaço a que nos referimos corresponde a um espaço de ação e discurso,
onde as pessoas exercem suas capacidades de falar e agir. Espaço público que pode se
concretizar na aldeia ou na cidade, em momentos e lugares nos quais o falar e o agir são
exercidos em torno de questões que dizem respeito ao público. É a arena de encontros da
vida pública que garante as condições para descobrir preocupações comuns do presente,
projetar o futuro e identificar aquilo que o presente e o futuro devem ao passado
(JOVCHELOVITCH, 1999, p. 68). Em se tratando de espaços onde cidadãos se encontram e
falam uns com os outros, tendo em vista a garantia de acesso a todos, o espaço público vem a
ser o espaço onde acontecem as lutas pela emancipação social, lutas que existem para que
sejam restabelecidos a dignidade e o bem viver das pessoas e das coletividades.
No que diz respeito aos encontros de diferentes, da pluralidade de povos co-
existindo sob um domínio, procuramos distinguir as formas como se processam os contatos,
fazendo uso da expressão “relações” para designar os contatos nos quais há interação, diálogo
entre as partes em comunicação. Portanto, a palavra “relações” está sendo usada no sentido
oposto ao confronto que gera exclusões, aos contatos nos quais há incompatibilidade de
valores culturais e intolerância ao diferente. O sentido da expressão, que é mais bem
explicitada na psicologia social, a qual, conforme Guareschi (1998, p. 151), é:
Um adjetivo que provém de “relação” é “relativo”. E relativo é o contrário de
“absoluto”. Nesse sentido, sempre que falo em relação, estou falando de um ser
que, como tal, necessita de outro, isto é, aberto, incompleto, por se fazer. Falar de
“relações” é falar de incompletudes, e pensar em algo aberto, em algo que pode ser
ampliado e transformado. Nesse sentido, uma análise dos grupos, ou da sociedade,
a partir do conceito de “relação”, é sempre uma análise aberta, uma análise que
deixa espaço para mudanças, uma análise que implica relatividade, que apenas
feita já pode estar se transformando.
Esta compreensão da expressão “relações” constitui um aspecto essencial no
enfoque deste trabalho que trata da construção de novas políticas entre povos, entre culturas,
isto é, a interculturalidade, o diálogo de saberes, que pressupõe predisposição entre as partes,
sobretudo esta abertura expressa na forma de incompletude. A ausência desta abertura para
relações, por exemplo, quando a pessoa ou grupo fecha-se em seu discurso, em suas verdades,
resulta em situações de preconceito, intolerância e negação do outro.
Assim, a tônica no contato entre os diferentes é o “conflito”, no qual
distinguimos o confronto que gera exclusões e o conflito natural que provoca a busca do
diálogo, de construção de relações, onde são preservados os diferentes modos de ser e de ver
o mundo. No tocante ao conflito, seja pelo seu aspecto construtivo, seja pelo seu
entendimento como confronto, o termo não contempla toda a problemática compreendida nos
enfrentamentos étnicos. Para melhor designar este contato de não-relação, Cardoso de
Oliveira (2000, p. 183) orienta que as palavras “conflito” ou “fricção” não são suficientes
para indicar o conteúdo substantivo das relações entre índios e brancos. O mesmo autor
sugere que a expressão “exclusão” situa melhor a condição de conflito, que identificamos
como confronto, esclarecendo que o eufemismo “conflito” não indica claramente o que são
estruturas de dominação, exploração, alienação do outro. Desse modo, a não-relação é mais
bem entendida como “exclusão” do outro da respectiva comunidade de comunicação.
Dessa forma, nosso enfoque à expressão “exclusão” compreende as dimensões
culturais e sociais do contexto no qual estão inseridos “indígenas e brancos”, porém,
submetidos à lógica perversa do modelo sócio-cultural branco, de origem européia, ocidental,
que privilegia os “brancos” e exclui os povos indígenas da condição moral de dignidade, de
bem viver. Nos aspectos a serem levantados no capítulo primeiro, buscamos caracterizar tais
confrontos de não-relação e as concepções que norteiam o modo de conceber o outro,
tornando excluídos os segmentos dominados. Essa perspectiva refletirá na análise histórica do
contato entre o elemento invasor e as nações indígenas da Amazônia, retratado no capítulo
segundo.
Finalizando, convém ressaltar que, embora as políticas que preconizem
relações de comunicação, de respeito aos valores e culturas dos diferentes povos, constituam-
se como questão de interesse amplo, sobretudo entre grupos sociais que foram historicamente
subjugados, neste estudo atemo-nos às formas de contatos, conflitos e relações dos povos
indígenas com a sociedade nacional e, nesta, o papel da educação escolar, enfocando o
contexto da região ocidental da Amazônia, o estado do Acre e o sul do Amazonas.
Portanto, o resultado deste estudo constitui-se num ponto de vista, ou melhor,
uma representação parcial de um amplo contexto de luta travadas pelos povos indígenas, na
forma de movimento sociocultural de resistência, tendo a escola como recurso favorável no
processo de afirmação de suas identidades étnico-culturais, pela igualdade de direitos, enfim,
pela dignidade e pelo bem viver.
CAPÍTULO I
II 2 - OoS MODELOS DE EXCLUSÃO NA CONSTRUÇÃO DO
DISCURSO UNIVERSALISTA
3
Conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)), em estudo sobre desenvolvimento,
população e pobreza no Brasil, divulgado no dia 03 de dezembro de 2002, o Brasil tem 170 milhões de
habitantes, 54 milhões de miseráveis, destes, 77,1% se declararam de cor negra ou parda e o restante branco
(FOLHA ONLINE, 2002a). Publicado por:
Folha Online. http://www.folhaonline.com.br. Consulta realizada em 03.12.2002.
que vitimou o maior número de povos na história mundial. foi a colonização do “novo
mundo”. O continente americano, ao qual a queque os europeus chamaram também de
N“novo Mmundo”, era visualizado visto por eles como inexperiente, jovem, selvagem e
pagão, “que seria conduzido à maturidade, à civilização e à fé, com a experiência do „“velho
continente”‟ europeu” (HOORNAERT, 1994, p. 31). Esse empreendimento que inaugura a
modernidade na cultura ocidental,. mModernidade construída com investidas exploratórias e
civilizatórias, e ou melhor, traduzida no domínio exercido sobre povos e na apropriação de
seus mundos, que rendendo os benefícios prometidos no discurso justificador somente aos
europeus, propiciando-lhes o aperfeiçoamento do seu instrumental cultural e o acúmulo de
riquezas materiais, a ponto de consolidar sua cultura como cultura universal, excluindo e,
desclassificando outras culturas.
No tocante à colonização do Ccontinente aAmericano, particularmente do
Brasil, enfocamos duas faces interdependentes da problemática que se estabeleceu com o
enfrentamento entre os colonos europeus, e as centenas de povos pré-colombianos. Uma das
faces tem a ver comé confirmada pela a apropriação e exploração de novas terras e povos nela
existentes, estabelecendo-asidos como seu domínio, garantido pela força das armas, graças aà
superioridade bélica, e pelo controle burocrático que o europeu impôs sobre territórios e
nações. Portanto, eEsse domínio representou a exploração das terras e de suas riquezas,
extensiva à força de trabalho dos povos nativos.: Num primeiro momento, estes povos eram
induzidos a colaborar, ao passo que secaso se opusessemopunham à vontade do colonizador,
estavam sujeitos ao aprisionamento eeram submetidos ao trabalho escravo, ou a serem
eliminados.
A “autoridade” do colonizador para adotar circunstâncias extremas, tais como a
escravidão ou a eliminação dos povos dos territórios colonizados, assenta-serepresenta na o
que consideramos a outra face da colonização, e tem a ver comassenta-se na hegemonia
estabelecida por meio da imposição de um discurso, de uma narrativa única como verdade e
faz, fazendo valer para os povos colonizados da América os valores, as leis e as instituições
do colonizador. Esta segunda dimensão do colonialismo era posta de forma explícita, uma vez
que constituía um “ideário de verdades”, que caracterizava a “civilização” e tranqüilizava a
consciência do colonizador, mesmo quando suas investidas “civilizatórias” resultavassem em
atrocidades.
Tal dualidade do projeto colonizador ficou registrada na literatura que visava
representar as conquistas do colonizador, conforme Cashmore (2000, p. 174), “embora o
objetivo encoberto dos europeus fosse explorar os recursos naturais das colônias, o expresso
era „“civilizar”‟ os Outros, subjugando-os. Isso articula-se na literatura, que é uma
representação do mundo nas fronteiras da civilização”.
Enfim, a interdependência das ações exploratórias e civilizatórias concorriam
para um propósito comum, a colonização,. eExpressão, esta, que é melhor entendida quando
associada a outros termos que a acompanham,. Conforme Cashmore (2000, p. 130), colônia
tem a ver com “soberania” política sobre territórios, com o “imperialismo” que está associado
ao desejo de adquirir colônias e dependências, tomar terras e recursos para exploração. Ainda
quanto às prioridades do colonizador sobre o continente americano, estava evidente - de
acordo com o volume dos investimentos - que a prioridade do Estado colonizador eram as
ações de exploração e comércio de riquezas e a segurança destas. Por outro lado, a atividade
civilizatória representava uma parcela mínima nos investimentos. O que não significa, em
momento algum, o abandono das investidas civilizatórias, sobretudo quando estas concorriam
para garantir a segurança dos objetivos exploratórios e comerciais.
Interessa-nos ressaltar, neste processo, a imposição de uma cultura,
autodenominada civilizada, processo que contou com um fator decisivo, que foi a aliança da
Igreja Católica com o sistema colonial, possibilitando a expansão de um modelo de
cristianismo, conforme Hoornaert (1994, p. 10), elaborado e testado junto a sociedades da
Europa ocidental, durante séculos. Considerando que a Igreja detinha o controle das formas de
acesso aos conhecimentos, a sua associação à empresa colonial inaugura, também, a
colonização dos saberes, das linguagens e dos imaginários de outros povos, nas colônias.
Na investida colonial, sob os métodos da Igreja, o outro é considerado como
merecedor de atenção., No entanto, a intenção é impor-lhe a cultura civilizada. Os efeitos
serão tão nocivos quandto os provocadaos pelas armas dos colonos em suas frentes
exploratórias. Equüivalem-se por negar a possibilidade do outro existir em sua dignidade.
Para o colonizador, o “índio” sempre será inferior, “objeto” a ser desprezado enquanto que,
na perspectiva dos religiosos, o modo de ser, as crenças e os valores, a identidade do
“indioíndio” é são os elementos que devem ser elimidadaseliminadoas.
O processo colonial, na ação civilizatória, pretendeia substituir a “confusão”, o
incompreensível do modo de ser do outro pelo modo de ser do colonizador, embora tal ação
não garantisserá o acesso do “índio” à condição de igualdade humana com o europeu, pois a
igualdade implicaria na concessão de direitos. Enfim, o que se buscava era o respaldo à ação
exploratória e isto se processava no discurso do “intento de catequizar e civilizar os
colonizados conduzindo-os a um modo de pensar e viver o mais possível próximo do
europeu” (MORAIS, 1989, p. 65),. Eeste objetivo torna-se viável, dado o atrelamento entre a
Igreja e a CorôaCoroa portuguesa.
O amparo e os serviços religiosos estavam garantidos pelo poder concedido
pelo Papa ao Rei de Portugal que, em contrapartida, expandiria os domínios da Igreja a novos
mundos. Neste serviço, teve destaque, entre os religiosos que acompanharam os
empreendimentos exploratórios, a Companhia de Jesus (os jJesuítas), cujos destacaram-se
figuras, dentre os religiosos, cujos papéis estavam voltados mais para a dimensão
civilizatória., a Companhia de Jesus (Jesuítas). A atuação desta ordem religiosa correspondeu
à convicção de Manoel da Nóbrega, liderlíder do primeiro grupo de jesuítas a chegar no
Brasil, que afirmou: “o Brasil é nossa empresa” (SEBE, 1982, p. 58). A preocupação
preponderante dos Jesuítas foi a conversão dos índios ao catolicismo, para isso eles
desenvolveram mecanismos talis como o sistema de aldeamentos, para facilitar a implantação
da política da vida cristã e a luta contra a antropofagia, e outros aspectos da cultura dos
nativos que se contrapunham aos valores da “civilização”. A Companhia levou “às últimas
conseqüências seu projeto missionário, cuja tônica era mais civilizacional do que religiosa”
(VAINFAS, 2000, p. 327). O sucesso da colonização do Brasil deve-se muito a esta
“empresa”, ., cComo afirma Sebe ” (1982, p. 64), “não faltaram aos jesuítas, para garantir o
Brasil como propriedade espiritual, em moldes estritamente europeus, vontade e trabalho;
não existiram outras condições”.
A concepção que orientava os jJesuítas, em sua missão civilizatória, a
concepção filosóficoa-religiosa, assentava-se na cultura medieval, na filosofia da essência,
oriunda da Antigüidade grega, que concebia como seres humanos os homens livres, só nestes
a essência humana se realizadva, ao passo quequanto aos escravos, estes não eram
considerados seres humanos, sendo portanto, despossuídos de essência humana. Na Idade
Média, a essência humana foi articulada, também, com a criação divina, onde para a qual o
mundo era dado por Deus, perpassado e preenchido pela presença divina,; um mundo
sacralizado. Ao homem não cabia a concepção de identidade enquanto indivíduo soberano,
que pudesse influenciar em seu destino. O sujeito tinha seus apoios estáveis nas tradições e
nas estruturas divinamente estabelecidas.
Com base nesta visão de mundo, o colonizador, apoiado na tradição, deveria
impor a verdade, a ordem divina das coisas, sentindo-se autorizado a submeter os pagãos -
não tementes a Deus, despossuídos da essência humana - tomando seus bens e reduzindo-os à
escravidão. Confirmando tal entendimento, Gomes (1991, p. 66) comenta que Portugal
achava-se acautelado por sanção papal desde 1454, quando Nicolau V, pela bula Romanus
Pontifex, garantira-lhe o direito de conquistar terras novas, de “bárbaros” ou de infiéis, e
submeter seus povos à servidão pelo uso da guerra.
Este princípio de submissão dos “negros” da terra, os povos indígenas, terá
recorrência na política indigenista para o Brasil até o século XIX. Conforme Gomes
(Ibid.1991, p. 73), em diversas cartas régias serão concedidas aos exploradores autorização
para promoverem guerras ofensivas aos indígenas, inclusive com o direito a escravizá-los.
À motivação determinada pela crença religiosa, somou-se o surgimento na
Europa, dno século XVI, a pretensão ocidental de transferir ao mundo inteiro o seu modo de
desenvolvimento, de sua religião e de sua visão de mundo, inaugurando o movimento de
significar como universal, o que era regionalmente europeu. Esse iImpulso que acompanha
sempre o interesse exploratório, como comenta Morais (1989, p. 60):
Braços escravos estavam também sendo procurados pelos europeus, coisa que se
torna curiosa quando se pensa que desejavam expandir também seu modo de pensar
e de crer. Ressaltamos o sentido de predestinação civilizatória e de proseletismo
religioso dos colonizadores, que desciam nas terras do Novo Mundo com a Bíblia
em uma das mãos e um bacamarte na outra.
Do ponto de vista educacional, no Brasil, o projeto civilizatório é inaugurado
com a delegação oficial dada à Companhia de Jesus:, a tarefa de converter os indígenas.
Morais (Ibid1989., p. 72) descreve que:
Nos Regimentos, de 17/12/1548, D. João III estabelece a nova política de
colonização, registrando a diretriz segundo a qual deviam vir para cá religiosos
para converter os indígenas à fé católica mediante a instrução. Tal diretriz punha
em ação a Companhia de Jesus, a qual principiou toda a história da educação por
aqui.
A catequese constituiu-se, basicamente, na totalidade da “assistência” oferecida
pelos conquistadores aos povos indígenas da América portuguesa, o Brasil. Do período dDe
sua chegada até o advento da Rrepública, a ação missionária da Igreja correspondia ao que
existia em concessões para com os indígenas. Isto porque o poder espiritual e o Estado
português eram complementares, apesar de existirem posturas discordantes, a aliança
concorria para a expansão do processo civilizatório.
Convém enfocar que a concepção filosófico-religiosa não foi hegemônica no
período colonial, ou seja, houve dissonâncias entre as concepções colonialistas da Europa
ocidental, tal como enfocaremos a seguir.
4
Estudo da ONU (Organização das Nações Unidas (ONU), publicado em 03.12.2002, aponta um aumento na
desigualdade entre ricos e pobres no mundo. A diferença entre o rendimento per capita dos 20% mais ricos e dos
20% mais pobres aumentou de 30 para 1, em 1960, para de 78 para 1, em 1994. Isso ocorreria,S segundo o
relatório, em razão dos baixos investimentos em educação básica têm contribuído para este distanciamento. Em
uma ampla série devários países em desenvolvimento estudados, concluiu-se que a porcentagem maior das
despesas públicas com educação vai para ações de governo em favor dos ricos. O investimento nos serviços de
saúde básicos também estaria bem abaixo do necessário. De acordo com o relatório, os países pobres gastariam
21 dólares per capita ao ano com todos os tipos de cuidados com a saúde, a maior parte desse dinheiro é gasto
em terapia, não em profilaxia (tratamento preventivo). (FOLHA ONLINE, 2002b).
2.2 - A exclusão das identidades culturais com base no discurso científico da assimilação
à ““Ccultura Nnacional”
5
Segundo o documento, "Situação dos Adolescentes Brasileiros", divulgado em 11.12.2002 pelo Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef), dos cerca de 10 milhões de adolescentes, na faixa etária de 12 a 17 anos,
existem hoje, no país, mais de 1,1 milhão de adolescentes analfabetos e cerca de 8 milhões com baixa
escolaridade.
Em sua configuração dominante, a tônica da política educacional no âmbito
dos sistemas, acompanha as novas dimensões da ordem mundial. Para não ficar de fora do
circuito do mercado global, eEstados nnacionais, como o Brasil, reorganizam suas instituições
na lógica de continuidade e mudanças, que caracterizam as formas históricas de reciclagem
das concepções e dos discursos de dominação das sociedades ocidentais capitalistas,
adequando suas instituições ao modelo que requer o mercado.
As críticas a esta tendência mercantilista, também caracterizada como
"globocolonização"Conforme os críticos em educação,, colocam tal modelo consiste
numacomo sendo uma versão reelaborada do liberalismo, ou, neoliberalismo:,
iIsto é, uma alternativa dominante à crise do capitalismo contemporâneo através do
qual pretende-se levar a cabo um profundo processo de reestruturação material e
simbólica das nossas sociedades. O neoliberalismo deve ser compreendido como um
projeto de classe que orienta, ao mesmo tempo e de forma articulada, um conjunto
de reformas radicais no plano político, econômico, jurídico e cultural (GENTILI,
2001, p. 102).
Os grupos dominantes nos setores: econômico, político e cultural,
compartilham, de forma mais ou menos consensual, desta alternativa capitalista. - cCom seus
interesses representados pela formulação abstrata e dissimulada, o “mercado”, que se
apresenta como uma entidade “virtual”, sem pátria, cuja ação se sobrepõe aos governos e, aos
povos. A crise, já na perspectiva de mercado, decorre da incapacidade estrutural dos Estados
na administração das políticas sociais. A solução estaria estaria em se “promover uma
profunda reforma administrativa que reconheça que tão somente o mercado pode
desempenhar um papel eficaz [...] na implementação de mecanismos competitivos” (Id.,
Ibid.GENTILI, 2001, p. 19) e fazer, no caso da educação escolar, uma verdadeira revolução
educacional.
A escolar ajustada ao mercado - com a transferência das responsabilidades
educacionais da esfera política para a esfera da competição privada - visa adequar a educação
escolar “ao modelo de homem neoliberal [...] o cidadão privatizado, responsável, dinâmico: o
consumidor” (GENTILI, 2001Id., Ibid., p. 20).
Nessta perspectiva, o homem moderno consolida sua condição de indivíduo
submetido ao mercado, e é identificado como consumidor e os direitos de cidadania
transformados em Código de Defesa do Consumidor. Esta reconfiguração da cultura
hegemônica, insiste em esconder séculos de história, marcadamarcados pela apropriação
desigual; e, coloca todos, “teoricamente”, na arena comum do mercado, para competir como
indivíduos “livres”. Nesse mercado,, no qual, sóssomente os "melhores" triunfam, o sucesso e
o fracasso são privatizados.
É característicoa ndas reformas educacionais, submetidas ao receituário deste
modelo hegemônico, a validação democrática, porém, sob uma democracia ressignificada -
caracterizada como “democracia mínima”, com limites estritos, esvaziada de atribuições
morais, de atendimento a expectativas, algo como um método subordinado ao mercado, ou
sejaisto é, um procedimento que não viole as regras de mercado, a propriedade privada - que,
na prática, funcionaria como uma “simulação democrática”. Assim, obedecendo a tal método,
as reformas são conduzidas de forma “negociada” sendo que, na verdade, as reformas
acontecem esta se dá a partir de pauta, já delimitada, que não pode ser extrapolada;, portanto,
os interessados são chamados para “pactuar”, consensuar. Neste caso, questionar a pauta é
questionar a própria democracia. “Quando a comunidade educacional é convocada a
“„participar‟”, espera-se que concorde de forma cega com parâmetros ou conteúdos
básicos” (GENTILI, 2001Id,. Ibid., p. 66), elaborados por “experts”: homens de negócio, bem
sucedidos, especialistas, intelectuais, técnicos competentes, que, “ouvindo” os interessados, à
distância, elaboram as decisões necessárias, de forma consensual. Como as reformas estão sob
as “regras democráticas” (minimalistas), qualquer contestação é taxada de “antidemocrática”.
Um dos principais argumentos desta nova perspectiva hegemônica assenta-se,
conforme o ideário de tal perspectiva, na “vocação” própria da natureza humana,: o
“indivíduo livre” a ser alcançado com o pleno estabelecimento da ordem civilizatória,
processo de superação da ordem primitiva, coletivista. Portanto, contrapõe-se, radicalmente,
às novas políticas, defendidas pelos movimentos de resistência. No caso, Aas políticas contra-
hegemônicas de defesa de coletividades, dase culturas locais, representariam uma volta ao
primitivismo, em sua versão tribal. Gentili (2001, p. 52) descreve os fundamentos propostos
pelos ideólogos do neoliberalismo, como:
aA ordem extensa de cooperação humana (estágio superador da ordem primitiva)
encontra seu fundamento na eliminação das tendências instintivas que promovem o
solidarismo comunitarista e o altruísmo tribal. O processo civilizatório - e em
conseqüência o liberalismo que, como atitude espiritual coincide com ele -
fundamenta-se numa rejeição elementar contra qualquer forma de igualitarismo
gregário (Id., Ibid, p. 52).
Naturalmente, que tal perspectiva choca-se com o muro da miséria e da
exclusão a que estáão submetidosa a imensa maioriagrande parte das pessoas. Dessta
contradição, tal como enfocaremos mais adiante, é que surgem as novas formas organizativas,
assentadas na consciência de que o conjunto de direitos sociais, mesmo que possuídos por
poucos, ainda tomam conta do imaginário social, motivando as lutas pela conquista de tais
direitos na esperança de, também, se alcançar a emancipação social. Como resultado, temos a
“politização do social, do cultural [...] tornando possível organizar novas formas de
cidadania coletivas e não meramente individuais” (SOUSA SANTOS, 2000ba, p. 263);,
novas formas políticas de participação e representação democrática, também influenciando as
mudanças na escola, na luta contra o monopólio do conhecimento e contra sua transformação
em mera mercadoria.
Assim, considerando que os instrumentos apelativos não se fazem acompanhar
de formas comunicativas respeitosas para com outras culturas, denotando sempre a postura
“ocidentalcêntrica” de intolerância ou indiferença para com o outro, trataremos, no próximo
capítulomais adiantena etapa seguinte, dos pressupostos necessários para que seja possível
firmar relações com base no diálogo, sem que uma das partes envolvidas seja inferiorizada.
CAPÍTULO II
A FORMAÇÃO DA AMAZÔNIA BRASILEIRA E A INSTRUÇÃO
DESTINADA AOS INDÍGENAS
de embaixadores ou “etnólogos” para registrar quem eram e como eram os povos nativos que
seriam dominados. Obviamente, povos foram exterminados sem que tenha ficado qualquer
registro.
Para início de detalhamento do contexto amazônico, o importante a ser
destacado, como comenta Bessa Freire (1991 p. 15):
É o fato de que a região que chamamos Amazônia não começa a existir a partir da
colonização européia [...] e que as nações indígenas que ocupavam este território,
além de possuírem pelo menos mais de 10.000 anos de história, possuíam uma
organização social própria, uma economia adaptada às condições naturais da
região, que os permitia viver com abundância de alimentos, obedecendo a códigos
morais particulares a cada uma dessas nações.
A pouca ou quase nenhuma relevância dada pela cultura ocidental às nações
nativas do continente americano reflete-se na narrativa da “história da humanidade”. As
civilizações milenares, constituídas no ambiente peculiar da região amazônica, não tiveram
chance de fazer valer seu legado de experiência humana. Com base em estimativas feitas, a
partir dos dados acima referidos, dos poucos registros, que restaram do período colonial,
estudiosos afirmam que no século XVI havia algo em torno de 2,5 milhões de pessoas na
região que hoje compreende a Amazônia brasileira. População essa, distribuída em centenas
de nações distintas; povos que tiveram o curso de suas histórias impactado pelo processo de
“assalto”, imposto por colonizadores oriundos da Europa ocidental.
Assim, na perspectiva ocidental européia, o século XVII marca o início do
“povoamento” da Amazônia. Estudiosos em busca de desmentir a história fabricada pelos
colonizadores declaram que, caso a história fosse contada pelas nações nativas, este seria o
início da grande catástrofe demográfica. Bessa Freire (1991, p. 16) relata que, na verdade:
Com o início do processo de colonização da Amazônia, o contato entre o nativo e o
invasor destruiu as organizações tribais, introduziu na Amazônia longas jornadas
de trabalho e a diferenciação em classes sociais, alterou as rotas de comércio,
subverteu as crenças religiosas aqui existentes, quando não significou o seu
extermínio total. Do ponto de vista econômico, transformou povos agricultores em
coletores.
A colonização da Amazônia, no relato de Meggers, caracteriza o início de um
período de rápidas e drásticas mudanças, sobretudo com a disseminação de doenças novas e
mortais, que dizimaram a população nativa, além da substituição de atitudes culturais que se
tinham criado durante milênios de seleção natural, pela cultura estrangeira, na prática:
Aos olhos dos estrangeiros, a Amazônia era principalmente uma fonte de produtos
exóticos que podiam ser vendidos por preços elevados e o fito de lucros imediatos
teve primazia sobre as vantagens da produtividade em longo prazo. Os recém-
chegados mantiveram sua dieta alimentar tradicional preferida, constituída de
carne, arroz e café e continuaram a se comportar como uma extensão da sociedade
européia na qual uma divisão de trabalho altamente diversificada se ligava a um
complexo sistema de troca comercial (MEGGERS, 1987, p. 221).
52
outro lado, os intrusos que, para obterem êxito em sua empresa colonial, viam-se obrigados a
modificar a situação, como forma de estabelecer sua hegemonia na região. Deste modo, para
o colono mandar e o índio obedecer, para o missionário ensinar e disciplinar, colonos e
missionários tinham duas alternativas: tentar aprender a infinidade de línguas indígenas, ou
estabelecer uma língua de comunicação regional (BESSA FREIRE, 1991, p. 35).
Como recurso, os portugueses buscaram uma língua variante do tupi, falada no
litoral brasileiro, o Nheengatu, que se tornou a língua de comunicação entre os portugueses e
os diferentes povos indígenas da Amazônia, e foi também definida como “língua geral”.
Imposta, inclusive, para comunicação com povos de línguas totalmente distintas. Como
afirma Bessa Freire (1991, p. 35):
Esta variante foi imposta também aos índios [falantes de línguas] Aruak e Karib
amontoados indiscriminadamente nas aldeias de repartição. E o Nheengatu, ainda
hoje falado na região do rio Negro, transformou-se na língua falada no Estado do
Maranhão e Grão-Pará, pelos portugueses, índios e mestiços.
Este foi um aspecto decisivo para o controle das populações nativas. A adoção
da “língua geral” favorecia, também, ao sistema instrucional, catequético, recurso de que se
valeram as missões religiosas, destacadamente os jesuítas, para ter acesso e controle destas
populações.
Considerando que para colonizadores e missionários as culturas nativas nada
valiam, exceto pelos conhecimentos que pudessem trazer lucro imediato, as ações de ambos
resultavam na desorganização social dos povos indígenas, decorrente de sua destribalização.
Os sobreviventes eram forçados a fazer uso desta “língua geral” como instrumento de
comunicação. Convém destacar, obviamente, que à substituição da língua acompanhava a
substituição de instituições, normas e valores por outros que não se referiam a nenhuma
cultura indígena, em particular, mas decorriam de uma cultura genérica e empobrecida, fruto
da situação colonial e de sua variante missionária (MOREIRA NETO, 1988, p. 43).
Um aspecto que favoreceu a adoção do Nheengatu como “língua geral” foi o
grande número de povos, cujas línguas eram do tronco lingüístico Tupi. O mesmo autor
descreve que:
A expansão da língua geral, principalmente em seus primeiros estágios, auxiliou a
atividade intelectual de missionários, especialmente os jesuítas, que se dedicaram
ao estudo das línguas indígenas da colônia. A presença maciça de grupos indígenas
de língua Tupi no litoral brasileiro deu azo para que fossem elaborados
vocabulários, gramáticas e outros instrumentos de domínio dessa língua. [...] As
comunidades Tupinambá da baía de São Marcos e da ilha de São Luís e os vários
grupos Tupi que se dispunham pela costa, em direção ao Pará, penetrando a foz e
os afluentes do baixo curso do Amazonas [...], justificavam o uso dessa língua como
instrumento de comunicação e de dominação colonial e missionária (MOREIRA
NETO, 1988, p. 43-44).
56
conquistadas, inclusive seus habitantes, eram pela graça de Deus, oportunidade de estender a
fé cristã aos bárbaros que, porventura, estivessem em tais territórios.
Há que se fazer uma distinção natural quanto ao tipo de educação e seus
destinatários, particularmente no que diz respeito a ação jesuítica, na região amazônica, onde
o interesse sobre o trabalho braçal do indígena estava em primeiro plano, na perspectiva dos
colonizadores. A educação destinada aos índios restringia-se ao elementar, ao necessário para
o melhor desenvolvimento da catequese e, conseqüentemente, para que não se contrapusesse
àquilo em que eram mais úteis: o trabalho.
Diante da natural ordem, que distinguia os seres mais dignos, de acordo com a
ideologia civilizatória ocidental da época, a educação de fato, ministrada nos colégios, era
restrita a poucos. Havia mecanismos de discriminação, que permitiam o acesso aos colégios,
somente aos filhos de casamentos legítimos de colonos e, principalmente, aos futuros
sacerdotes (os principais, na linguagem da época), ou a educação do “minúsculo estrato
social de letrados” que, de um modo geral, ajudava a perpetrar os interesses metropolitanos
portugueses no Brasil colonial (FERREIRA JUNIOR; BITTAR, 2000, p. 19).
Na colônia portuguesa, na Amazônia, evidencia-se a ambigüidade do projeto
colonial. Embora a Companhia de Jesus mantivesse, em primeiro plano, sua missão
evangelizadora - o fim com que os jesuítas vieram ao Brasil foi a catequese (BITTAR;
FERREIRA JÚNIOR, 2000, p. 454), expandir o cristianismo - entretanto, esta ação ocorria
integrada à empresa exploratória visando a obtenção de lucros com mercadorias
comercializáveis, tal como já explicitamos.
Assim, ao tornar cristãos os filhos da terra, os jesuítas tinham também como
princípio torná-los úteis ao sistema político da época, uma vez que a ação educativa concorria
para levar os indivíduos a uma integração harmoniosa como súdito no corpo político do
Estado (HANSEN, 2000, p. 25). Essa política católica era levada a efeito como catequese e
conquista espiritual das novas terras ocupadas pela expansão mercantilista da monarquia
portuguesa. Não se concebia o Estado, a economia, a cultura, a sociedade de forma
desvinculada da religião. Na prática, a ação catequética dos missionários atendia a objetivos
econômicos a serviço do colonialismo europeu, ou seja, por trás da obra da conversão e
evangelização dos índios ao cristianismo, realizado através da comunicação e catequese
(gramática, vocabulários e catecismo), estavam os interesses econômicos da empresa
colonial metropolitana (FERREIRA JUNIOR; BITTAR, 2000, p. 18).
Tanto era fato a participação dos religiosos na “empresa” econômica, que na
Amazônia eles se tornaram os maiores concorrentes dos colonos. O conflito entre colonos e
60
missionários foi grave, sobretudo com a situação desfavorável dos primeiros em relação aos
segundos, uma vez que a Coroa Portuguesa entregou o controle dos aldeamentos aos
missionários. E, numa região onde não é rico quem tem muitas terras, mas aquele que tem a
maior quantidade de índios (BESSA FREIRE, 1991, p. 45), os missionários sofriam ataques
freqüentes de colonos em suas aldeias de repartição, onde eram alojados os indígenas antes de
serem “alocados” para o trabalho. Conforme o mesmo autor, os missionários eram acusados
pelos colonos de negar-se a distribuir e alugar os índios de repartição aos moradores porque
esses índios eram todos empregados nas rendosas empresas missionárias.
Fato é que missionários e colonos puderam acumular riquezas às custas da
exploração na mão-de-obra indígena, embora isso nunca tenha ocorrido de forma tranqüila:
açoites até a morte, torturas de crianças indígenas e de mulheres, para que confessassem o
paradeiro de índios fugidos, longas jornadas de trabalho e fome constituíam uma prática
corrente na Amazônia (BESSA FREIRE, 1991, p. 47). Essas condições de trabalho e de vida
contribuíram para o extermínio dos indígenas. Aqueles que não eram mortos nos assaltos a
suas aldeias eram, desgraçadamente, explorados no trabalho escravo, até que suas forças se
extinguissem.
Em meados do séc. XVIII os indígenas ainda constituíam motivo de
preocupação, interesse e disputa. Aos poucos, foi se diferenciando o foco, uma vez que aos
colonos interessava expandir seus domínios territoriais e obter mais mão-de-obra escrava,
enquanto que entre os jesuítas tomava corpo o empenho de livrar os indígenas da escravidão,
reforçando sua missão de salvar almas através da catequese, sem descuidar do funcionamento
de suas propriedades. Em parte, a atuação missionária minimizava a violência contra os
indígenas. Ao valer-se de sua autoridade religiosa e política, os jesuítas aldeavam os indígenas
protegendo-os da ganância dos colonos. Este, entre outros aspectos, reforçou as medidas
tomadas por Marquês de Pombal contra os jesuítas. A expulsão da Companhia de Jesus, em
1759, quebra a maior força de resistência contra as ações de extermínio e apresamento dos
nativos da terra.
A expulsão da Companhia de Jesus dos domínios portugueses, na segunda
metade no séc. XVIII, atendeu, entre outros, os interesses dos colonos, dando-lhes maior
liberdade para a ocupação das terras e para o embate com os nativos. Os povos indígenas,
embora desrespeitados em sua cultura, tinham os jesuítas como seus intercessores, no que diz
respeito a sua integridade física. Alden contextualiza a trama que levou à expulsão dos
jesuítas, destacando a atuação de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal e,
também, governador e capitão-general do Estado do Maranhão, por sete anos e meio, desde
61
1751, constituindo-se num dos principais mentores da expulsão dos jesuítas, em 1759. O
mesmo autor comenta a atuação de Mendonça Furtado:
Fossem quais fossem as outras proesas que podiam tê-lo impressionado, ele
certamente se deu conta de haver desempenhado importante papel na tarefa de
convencer as mais altas autoridades régias, sobretudo seu irmão [...] de que os
jesuítas não eram mais úteis à Coroa e se tinham transformado em séria ameaça a
ela. Foi em boa parte graças a seus informes tendenciosos que a Coroa retirou dos
índios amazônicos o já tradicional manto protetor dos missionários, expondo o
gentio à exploração desenfreada, posta em prática pelos rivais seculares dos padres
(os colonos), apesar de uma lei que no papel deixava os indígenas em liberdade
(ALDEN, 1970, p. 60).
É difícil determinar qual era a “opinião pública” sobre os jesuítas no Brasil do
século XVIII, em parte, por falta de meios adequados de expressão, e, também, porque o que
se sabe das opiniões dos colonos vem-nos, principalmente, da pena de funcionários régios,
quase nunca imparciais. Enfim:
A carta régia de 3 de setembro de 1759, exilou definitivamente os jesuítas de todos
os domínios portugueses. [...] em 19 de janeiro de 1759 o Rei assinou uma ordem
confiscando todos os bens dos jesuítas do reino, sob o pretexto de que os padres
haviam insuflado a guerra guaranítica e o atentado contra a sua pessoa (ALDEN,
1970, p. 61,63).
Com o regime pombalino, nova ordem é imposta. Moreira Neto comenta que,
definitivamente, o fim da política não era o índio, mas a conservação e o aumento do domínio
colonial. Conforme o autor, o instrumento mais eficaz, concreto e durável na política
pombalina, o “Directório”, que devia ser observado nas povoações dos índios do Pará e
Maranhão, consistia um claro instrumento de intervenção e submissão das comunidades
indígenas aos interesses do sistema colonial. Neste sentido, amplia e completa a obra de
desorganização da vida indígena tribal inaugurada pelas missões (MOREIRA NETO, 1988,
p. 27). Tem origem, sob a ótica da historiografia oficial, um período considerado vazio na
história da Amazônia. Esse período compreende a época da desorganização da estrutura
missionária até a época da borracha.
A política pombalina pretendia, para os índios, algo semelhante à política
“moderna”, que vigorava até recentemente como política oficial do estado brasileiro - abolida
com a Constituição de 1988 - “integrar” os índios à sociedade nacional, exigindo destes a
“nacionalização” ou, ao menos, uma identificação aceitável ao que se pretendia nos domínios
portugueses. Neste aspecto, é marcante a pressão sobre as línguas nativas, como diz Moreira
Neto (1988, p. 26): Daí a insistência em proibir a língua geral e a obrigatoriedade do uso do
vernáculo.
As medidas adotadas por Pombal também foram vistas como novas bases de
colonização efetiva que, conforme Bessa Freire, pressupunha o cumprimento de uma paz
62
mais meio século e será o Estado brasileiro o encarregado de modificá-la, com uma
política igualmente colonialista.
No período imperial acontecerão ainda conflitos, ações devastadoras,
intencionais, preocupadas com a sobreposição, inclusive numérica, dos brancos sobre os
homens de cor. Enfim, a seqüência do relato do acontecido permite que se deduza, conforme
Brito (2001, p. 52), que:
O propósito de todos os colonizadores sempre foi escravizar através do domínio
físico, intelectual e político, jamais civilizar, levando, quase sempre, à destruição
dos valores da cultura primitiva considerada selvagem e atrasada. O encontro ou
contato interétnico entre o índio e o branco colonizador não tinha como finalidade
construir e desenvolver um sistema interétnico, mas desconstituir ou aniquilar os
grupos e as identidades étnicas existentes.
Após efetivado o domínio total sobre os territórios, bem como, sobre as nações
nativas e suas culturas, é estabelecida a hegemonia do discurso dominante, a hegemonia
cultural ou, nas palavras de Bessa Freire (1991, p. 36):
Silenciados os índios, os portugueses retomam a palavra. O primeiro ensaio da
história da Amazônia é de autoria de Bernardo Berredo, um “capitão de cavalos”
de nacionalidade lusa, que foi governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará
(1718-1722). [...] A partir de Berredo até os dias de hoje, a história da Amazônia se
resume a uma parcialidade primária “visão dos vencedores”.
Como conseqüência, tomando a análise, sob o aspecto dos saberes, das ciências
das civilizações amazônicas, com a vitimização de tais civilizações pelo processo violento de
dominação, foram extintos, com elas, diferentes estilos de vida, línguas, visões de mundo,
modos próprios de se relacionar, de se organizar; enfim, com a eliminação desses povos,
foram eliminadas culturas originais, com saberes milenares; apagados pela ânsia das nações
ocidentais em obter ganhos fáceis, domínios limitados à sua estreita noção de valor.
Com o domínio e a submissão de tais povos, foram interrompidos o
desenvolvimento de ciências construídas e aperfeiçoadas, através dos tempos, a partir das
riquezas naturais do ambiente, fato que afetou, inclusive, a maioria dos povos que
sobreviveram. Os povos remanescentes foram forçados a abandonar a dinâmica de suas
ciências de suas culturas, ou pela intrusão da cultura estranha, tiveram descontinuado as
condições autônomas de manifestação e bem viver. Fato é que a forma de intervenção
adotada, pelo elemento colonizador, marcou, decisivamente, o trato com as populações
nativas, deixando impregnados preconceitos que persistirão como emblemáticos nas relações.
Seja pela força ou pela natureza dinâmica das culturas, são visíveis as
mudanças no aspecto da cultura material. Houve uma apropriação pelos indígenas de
tecnologias comuns na região tanto que, à primeira vista, a impressão é de que há uma cultura
homogênea. Meggers (1987 p. 211-212), referindo-se a tal homogeneização, resultante do
processo de colonização, afirma que:
64
6
A Seringueira ou seringa, consiste na hevea brasiliensis, da qual, é retirado o látex. Nativa da Amazônia:
cresce esparsa na mata, exigindo a abertura de “estradas” que fazem a ligação entre as árvores e a casa do
seringueiro. A casa é construída na beira de um rio ou igarapé, em local denominado colocação; um conjunto
de colocações forma um seringal, cujo ponto central é a colocação onde está localizado o barracão do patrão
(armazém de mercadorias, escritório das famosas cadernetas nas quais anota-se as quantidades de borracha
entregues e as mercadorias retiradas por cada seringueiro) [...] A seringueira é sulcada e sua seiva escorre
como num ferimento raso que não mata; ela é perene e a mata deve permanecer intacta para que o sistema de
extração possa reproduzir-se (RANGEL, 1994, p. 40, 45). Tal organização espacial e de prática de coleta
assentou-se em conhecimentos tradicionais indígenas.
67
se em tragédia, pois eles não dispunham de aparato militar para resistir aos invasores e já não
tinham para onde fugir. Os brasileiros avançavam subindo os rios e, em direção oposta,
vinham os peruanos, descendo em busca do caucho7, árvore que era destruída para extração
da goma elástica. Estes últimos eram exploradores sem a preocupação de fixar posse nos
locais que exploravam. Eram caçadores de árvores, passavam pela selva extraindo,
derrubando, destruindo (RANCY, 1992, p. 38), sobretudo a população nativa. Os caucheiros
ficaram na lembrança dos sobreviventes indígenas pelas atrocidades que cometiam. Deste
modo, os indígenas que fugiam dos brasileiros eram encurralados pelos peruanos que, com
práticas tão ou mais cruéis que as dos brasileiros, destruíam comunidades, aliciando povos
para atacar outros, no intuito de “limpar” a área para extração do caucho. De acordo com
relato dos professores indígenas do Acre:
Os caucheiros peruanos andavam pelas matas em busca de caucho e os nordestinos
subiam os rios em busca de seringa. Com essas duas frentes de invasão, a situação
das nações indígenas piorou bastante. Quando os índios tentavam fugir de uma
invasão, davam de cara com outra. Os invasores vinham a procura de seus
interesses: a riqueza do caucho e da borracha (KAXINAWÁ, 2002, p. 92).
Na descrição de Aquino e Iglesias, a exploração das extensas áreas de floresta
banhadas pelas bacias formadoras dos altos rios Purus e Juruá, desenrolou-se, sobretudo, a
partir das duas últimas décadas do século XIX, período em que é intensificada a penetração
das duas frentes de expansão extrativistas: a itinerante e de curta duração, dos peruanos, que
visavam a exploração do caucho e de outros produtos florestais, como peles de animais e
madeira-de-lei, e a outra, maciça e duradoura, constituída por brasileiros que passaram a
trabalhar nos seringais. Ambos adotaram práticas similares no ataque às comunidades
indígenas, conforme os mesmos autores:
A passagem dos caucheiros pela região do Alto Juruá foi marcada pela violência
extrema contra as populações nativas. Nas suas perambulações pela floresta,
comumente promovida nos meses da estação seca (maio a setembro), os caucheiros
promoviam correrias contra as populações indígenas, procurando dizimá -las e
amedrontar seus integrantes (sobreviventes) para forçá-los a abandonar seus locais
de moradia. Por outro lado, índios eram capturados e escravizados para
desempenharem diferentes tarefas durante as expedições (às vezes até cairem
mortos por esgotamento físico e maus-tratos) [...] Os caucheiros freqüentemente se
aproveitavam de tradicionais conflitos inter-tribais, aliando-se a uma das partes,
fornecendo-lhes armamento, munição e outros produtos industrializados para que
realizassem correrias e escravizassem membros das populações derrotadas
(AQUINO; IGLESIAS, 1994, p.8).
7
O caucho, castilloa elástica, árvore mais comum nas matas da Bolívia e do Peru, cuja exploração consistia em
outra forma de extração do látex, era feita derrubando a árvore depois do que era atorada de metro em metro;
abria-se no chão cavidades rasas retangulares nas quais eram depositadas durante uma semana até que
escorresse todo o látex. [...] Deste modo, em pouco tempo esgotava-se o cauchal. Como as árvores do caucho
crescem em grupos separados uns dos outros, os caucheiros deslocavam-se ao esgotamento do
cauchal.(RANGEL, 1994, p. 39).
68
8
Sobre o termo “nawá”, Coffaci de Lima (1994, p. 4) comenta que entre os grupos pano, sobre os quais há
registros etnográficos, é usado tanto para a auto quanto para a alo-referência. Nawá significa num gradiente, o
“nós” o “outro” (grupos pano) e o “estrangeiro” ou “inimigo”.
69
mando dos seringalistas, a instrução dos indígenas. O impedimento de ter acesso às letras e
números, a que comunidades indígenas estavam submetidas, até época recente, sustentou o
sistema de servidão.
O seringalista produzia os números, de acordo com os seus interesses,
reduzindo o trabalhador a uma situação de dívida perpétua, irresgatável. Sendo o patrão a
única autoridade, valia a sua “lei”. Ao trabalhador, indígena ou nordestino, desprotegido e
endividado restava a servidão total. Não podia afastar-se enquanto não pagasse suas dívidas;
fugir era impossível pela distância a percorrer, buscar outro patrão não era possível devido ao
acordo firmado entre patrões, de não aceitarem empregados antes destes saldarem suas
dívidas. Confirmando o esquema de cativeiro, extensivo aos indígenas, os patrões adotavam
táticas, como relatam os indígenas:
Felizardo [Felizardo Cerqueira] “amansava” caboclo e depois botava a marca FC
para os outros patrões saberem que aquele caboclo era dele, que ele que tinha
amansado. Nicolau Costa, Regino, Chico Curumim, Romão Sales, Valdemar
Damião, esses caboclos Kaxi mais velhos, ainda carregam essa marca do Felizardo
no braço (KAXINAWÁ, 2002, p. 108).
Embora o discurso oficial insista em minimizar a participação indígena no
empreendimento extrativista no Acre e região, lembrada mais como obstáculo selvagem -
fácil de transpor, devido à inferioridade militar - para a expansão capitalista/extrativista na
Amazônia, qualquer análise mais detalhada constata que:
A sociedade que se implanta ali constrói-se durante um século sobre território e
trabalho indígena. Mesmo sendo a região um canal de chegada de migrantes, o
trabalho indígena não pode ser dispensado. Os índios foram incorporados nos
trabalhos dos seringais, não enquanto homens isolados mas, enquanto
comunidades; [...] os conquistadores dependeram do conhecimento indígena para
dominar a região (RANGEL, 1994, p. 48).
Assim, a “empresa” seringalista assentou-se nos territórios indígenas, valeu-se
dos saberes e do trabalho indígena, mas o nordestino é que será lembrado como trabalhador,
como seringueiro. Mesmo assim, não se pode negar a grande leva de nordestinos deslocados
para a região, sobretudo a partir da década de 1870, atraídos por campanhas que prometiam
muitos ganhos e benefícios, promessas logo desfeitas, ao se perceberem presos a um sistema
de exploração de retorno impossível. Vindos aos milhares para a Amazônia, os nordestinos
eram oriundos da zona sertaneja do Ceará, complementada por elementos da Paraíba, do Rio
Grande do Norte e de Pernambuco (RANCY, 1992, p.65). Eles foram explorados tanto no
trabalho escravo quanto como combatentes contra indígenas e bolivianos, conforme relatam
Aquino e Iglesias (1994, p.6):
Os governos Imperial e da Província do Amazonas, bem como as casas-aviadoras
de Belém e Manaus possibilitaram o direcionamento do fluxo migratório (composto
principalmente por homens solteiros) para os afluentes dos altos rios Acre, Purús e
71
últimos anos, registrou-se nova situação de crise para todos os grupos indígenas da
Amazônia.
Com o avanço extrativista sobre a Amazônia Ocidental, no apogeu da
economia da borracha (1870 a 1910), a região foi assaltada por uma febre de lucros sem
precedentes. Como mencionamos acima, a região, sobretudo a que hoje corresponde ao estado
do Acre, num primeiro momento foi alvo de disputa entre brasileiros, bolivianos e peruanos.
Em 1867, o Brasil reconheceu, oficialmente, como boliviano tal território. Mas, exploradores
brasileiros, sobretudo donos de casas aviadoras e empresas de navegação, apoiados pelo
governo do Amazonas e aproveitando-se de grave seca, ocorrida na região nordeste do Brasil,
em 1877, incentivaram a migração de nordestinos para trabalhar como mão-de-obra na
extração do látex. Desse modo, aumentavam a densidade populacional de brasileiros para
ocupar a região.
A empresa extrativista sempre esteve associada às condições peculiares da
região, sobretudo quando se trata de locomoção e de transporte. Os rios e as chuvas foram e
continuam sendo essenciais para a vida e para a economia na região, uma vez que só é
possível a navegação em seus leitos com a alta precipitação pluviométrica, no período de
novembro a abril, denominado “inverno”. As águas do período chuvoso possibilitam o
escoamento dos produtos acumulados no verão, de maio a outubro. Desse modo a indústria
extrativista assentou-se, de acordo com Rancy (1992, p. 15):
No equilíbrio das duas estações, uma vez que o período seco, ou verão, apesar de
favorável e necessário à produção, não permite a navegabilidade de embarcações
de médio e grande porte. Este transporte, exclusivo no período chuvoso, é o
responsável ainda hoje pelo abastecimento dos seringais e pelo escoamento da
matéria-prima produzidas nestas unidades (RANCY, 1992, p. 15).
Portanto, a vida de grande parte da população da região ocidental da
Amazônia, sobretudo no Estado do Acre, tem dependência direta dos afluentes da margem
direita do Amazonas, o Juruá e o Purus, complementada pelo rio Acre, afluente do Purus.
Vias fluviais, por meio das quais os colonizadores-extrativistas avançaram sobre a região.
Considerando a persistência da empresa extrativista, apesar das limitações na
locomoção, permite que se tenha uma idéia da importância da região do Acre, no final do
século XIX, tanto que a produção de borracha, na área que hoje corresponde a este Estado,
correspondia a 60% da produção de toda a Amazônia. Esse fato motivou o governo do
Amazonas, apesar da isenção do Governo Federal, a financiar o Movimento Insurrecional
denominado “Revolução Acreana” que tornou a região “Estado Independente do Acre”, em
1902. A definição da soberania sobre a região só ocorreu com a atuação do Barão do Rio
Branco, sob o comando da diplomacia brasileira, articulando o desfecho sobre a polêmica
73
entre Brasil e Bolívia, finalizada em 1903, quando o Brasil comprou o território da Bolívia,
em acordo diplomático, que ficou conhecido como Tratado de Petrópolis.
Em 1904, a região passou a constar sob um novo modelo político
administrativo, entre as unidades da Federação, recebendo a denominação de “Território do
Acre”. Esse modelo perdurará até 1962, com a elevação do Acre à categoria de Estado.
A partir de 1910, a indústria extrativista entrou em crise por causa da
concorrência com produtos mais baratos vindos da Ásia. Essa crise foi acentuada após a 2ª
Guerra Mundial, fato que desarticulou um pouco o sistema de concentração das propriedades
na mão de seringalistas e o domínio destes sobre a população local. Na década de 1920, a
produção de borracha na Ásia retirou a hegemonia da produção brasileira. Entretanto, na
década de 1940, o Brasil aliado às potências imperialistas, estabeleceu o monopólio estatal
sobre a produção da borracha, deslocando, ainda mais, trabalhadores nordestinos para a
Amazônia, no intuito de suprir, com borracha, a indústria bélica dos Estados Unidos da
América e seus aliados. A exploração dos trabalhadores permaneceu a mesma, considerando
que o Governo apenas substituiu o papel das casas aviadoras, permanecendo os patrões como
intermediários e exploradores da mão-de-obra. Terminada a Guerra, a produção da borracha
perdeu sua importância. Em algumas localidades da região do Estado do Acre, a indústria
extrativista, em menor escala, passou a ser complementada com a coleta da castanha.
Enfim, a região foi formada, sob vínculos de dependência, primeiro dos
grandes capitalistas, donos das casas aviadoras sediadas em Manaus e Belém e,
posteriormente, a partir da década de 1940, da intervenção governamental. Com o declínio do
extrativismo, a manutenção do lucro fácil dos empresários (comerciantes) da borracha é
depositada no governo, com a garantia de incentivos que permitiam manter a rentabilidade
dos intermediários. Passou-se a usar argumentos de cunho social como “manutenção de
empregos”, para manter um sistema que, até então, não provera nenhuma forma de benefícios
para a região. Na verdade, esses empregos consistiam sistema de servidão, tal como
explicitado acima. O subsídio tornou-se insustentável, uma vez que as indústrias do pós-
guerra, na mão da iniciativa privada, obtinham a matéria-prima - borracha vegetal - de forma
muito mais barata com a importação, do que com o extrativismo na Amazônia, afastando, de
vez, a viabilidade desta atividade econômica, na região, como fonte de altos lucros.
Neste meio tempo, os indígenas negociavam sua integração, como brasileiros,
para vender o que lhes restou: sua força de trabalho, única via que lhes foi oferecida como
alternativa de sobrevivência, uma vez que seus territórios foram loteados entre os
seringalistas. Não mais com suas identidades étnicas, enquanto nações de tradição milenar, e
74
sim, como caboclos, uma condição sociocultural inferior. Não restou outra alternativa aos
povos nativos desta região, pois sobreviver no território de seus antepassados pressupunha
assumir esta nova identidade, submeter-se aos exploradores no trabalho escravo, negando sua
identidade e “calando” o uso de sua língua nativa bem como o uso de qualquer manifestação
de valores culturais próprios. Foram, portanto, forçados a integrar-se à cultura do explorador.
Como comenta Wagley (1977, p. 50):
A escravização indígena perdurou ao longo dos tributários do Amazonas até mesmo
durante o nosso século [XX]. A escravatura é, portanto, um fenômeno relativamente
recente no Vale Amazônico e os descendentes de escravos índios ocupam uma
posição econômica social inferior, comparável à do negro em outras regiões do
Brasil.
A negociação da “integração”, decorrente do desejo de deixar de ser índio,
como estratégia de sobrevivência na época do cativeiro, foi traduzida como virtude indígena,
na narrativa histórica da sociedade dominante, tal como é citado por Kaxinawá (2002, p. 221):
O maior desejo que têm os Kaxinawá, ou quaisquer outros índios, desde que entram
em relações amistosas com os cariús é o de ser batizados, pois observam logo que
os seringueiros só matam os que não são, embora esses já sejam amigos ou mansos,
como dizem aqueles que não têm o menor escrúpulo de atirarem num índio pagão,
embora manso, só pelo prazer de verificar a boa pontaria de seu rifle. [...] O índio
batizado identifica-se logo com os seringueiros, julga-se um outro homem, um
“carua” ou civilizado, e não admite que o chame mais de índio.
O processo de descaracterização indígena passou também pelo processo de
troca de nomes pessoais, ou seja, tanto os patrões quanto o Estado não admitiam as
denominações indígenas. Por exemplo, entre os Huni Kuĩ, os nomes eram e são escolhidos
pela avó ou avô, paterno ou materno quando a mãe está grávida (KAXINAWÁ, 2002, p.
221). Na convivência com a sociedade regional estes valores são ignorados pelos não-índios,
que os ridicularizam e negam-lhes este direito. Conseqüentemente, os nomes passam a ser
escolhidos por não-índios; os brancos que mantinham contato com a comunidade. Essa prática
teve início com os “brancos”, que ao contatarem os grupos atribuíram nomes, por vezes
pejorativos, com os quais os povos ficavam sendo conhecidos, por exemplo, o povo que se
autodenomina Asheninka foi denominado Kampa (provavelmente em função do costume
deste povo, em determinado período do ano, de acampar nas praias dos rios); o povo que se
reconhece como Huni Kuĩ foi denominado pelos “brancos” como Kaxinawá (gente do
morcego). Enfim, a maioria dos povos foram nomeados ao sabor da conveniência, ou
ignorância, dos colonizadores.
No decurso do século XX, a situação vivida pelos povos indígenas
remanescentes foi de submissão aos patrões instalados sobre seus territórios. Esta presença
contínua do invasor levou a um processo de dispersão e desagregação quase sem volta, como
75
acompanhava a promessa de abrir um corredor de exportação, por meio de rodovia que ligaria
o Brasil ao Pacífico.
O “movimento” das elites capitalistas, autodenominado “setor produtivo”, olha
o mundo pela ótica da exploração econômica. É nesta perspectiva estreita, que a Amazônia é
visualizada. Desse modo, enquanto esta região não estiver cravejada de empresas explorando
todo o seu potencial em riquezas, sempre será uma “selva”, um imenso vazio. Foi com base
nesta perspectiva que se fundamentou a propaganda para sustentar o novo projeto de
“ocupação” da Amazônia. Rangel (1994, p. 51), confirma esta perspectiva:
No final dos anos 60 o debate nacional em torno da ocupação da Amazônia reedita
também a visão que se tem a respeito da região. [...] em abril de 1967 a Folha de
São Paulo publica um suplemento especial com o título “Amazônia: um vazio cheio
de riquezas”.
A exploração da região é passada para o controle de novos especuladores que
não tinham interesse no extrativismo, ou na agricultura de subsistência, muito menos de
conciliar a exploração econômica com as peculiaridades amazônicas. O novo projeto
exploratório assentou-se no modelo comum, adotado em outras regiões do país: a exploração
madeireira, a pecuária extensiva e a terra como investimento de especulação fundiária. É
inaugurada uma nova fase de conflitos, tendo, de um lado, índios e seringueiros que
permaneciam nas áreas, estorvos para os novos proprietários, situados no outro lado do
embate. Essa situação estendeu-se a regiões do sul do Amazonas, como relata Rangel (1994,
p. 4):
Em 1970 o município de Boca do Acre [AM] também era envolvido pela última fase
de ocupação da Amazônia que teve como característica a tentativa de implantação
de fazendas de gado, a procura exacerbada por madeira de lei e as pesquisas de
prospecção de minérios. Tudo isso levou a redefinição da propriedade privada da
terra, cuja conseqüência inevitável foram os conflitos violentos entre os ex-
seringueiros e aqueles que exibiam títulos de propriedade.
No Acre, é ilustrativo o depoimento dos Yawanawá, sobre a nova frente
exploratória, na região dos afluentes do rio Juruá. Para eles, nada mudou no que se refere ao
tratamento dos novos “donos” das terras para com os indígenas:
Depois chegaram os representantes da PARANACRE, uma empresa do sul do país.
Esses paulistas chegaram dizendo que tinham comprado todo o rio Gregório do
Altevir Leal, com nós, índios, dentro. A PARANACRE fez lei igual à do barracão do
patrão seringalista. Ficou tudo no mesmo cativeiro velho. Os índios continuaram
vivendo ali. Batiam campo para a firma colocar seu gado. (KAXINAWÁ, 2002, p.
116).
Nesta época, o processo de “apagamento” da população nativa já havia
ocorrido, ao menos na perspectiva dos não-índios. Na década de 1970, tanto a opinião pública
quanto o poder público do estado do Acre não reconheciam a existência de povos indígenas
neste Estado. O antropólogo Terri Vale de Aquino, um dos primeiros indigenistas da Funai
77
saída, por rodovia, para o Pacífico. Além disso, também está sendo feita a pavimentação de
rodovias, que cortam a região, inclusive territórios indígenas, cujo acesso, até então, só era
possível por via fluvial e aérea.
Embora o atual governo defenda a exploração racional dos recursos naturais,
até o momento, entre os representantes do “setor produtivo”, permanece inalterável a
perspectiva econômica predatória, para a qual a Amazônia ainda é um “vazio” de riquezas a
serem exploradas. O discurso, que é ensaiado em alguns estados da Amazônia, sobretudo no
Acre, propõe o “desenvolvimento” elaborado a partir de uma terminologia apropriada aos
novos tempos de preservação dos recursos naturais: o “desenvolvimento sustentável”. Esse
discurso pretende conciliar a exploração capitalista da floresta, sem devastá-la. Neste caso, o
“setor produtivo” é chamado a “modernizar” sua tecnologia de exploração. Os riscos são
postos quando a ressignificação não ultrapassa o discurso do “desenvolvimento” como
sustentável. Uma vez apropriado pelas grandes corporações capitalistas, em termos imediatos
provoca o “des-envolvimento”, o não-envolvimento da população tradicional, cuja economia
é de subsistência, baseada num modelo econômico familiar, seja agrícola ou extrativista.
Além da exclusão da população que não integra o “setor produtivo”, na
exploração extensiva das riquezas, basicamente madeira, não há precedente que demonstre ser
possível o controle sobre a exploração promovida pela indústria madeireira e pelos
interessados no desmatamento para formação de campos para pecuária. A comprovação de tal
afirmação é que, apesar dos esforços em torno da exploração racional da floresta, todo ano
repete-se a situação trágica de poluição atmosférica na região, resultado das queimadas, nos
períodos de julho a setembro. Outro fato, os dados oficiais demonstram que, 70% da produção
comercializada na região da Amazônia ocidental provém da madeira. Eles indicam a
persistente perspectiva exploratória presente nos métodos convencionais.
Em termos concretos, o estágio atual dos “projetos” para a Amazônia, os quais
já estão impactando sobre as comunidades indígenas, caracteriza-se pelo avanço das obras nas
rodovias federais. A contrapartida do poder público tem se dado através de medidas
mitigatórias e/ou compensatórias, por meio de obras, instalações e programas de
sustentabilidade. As obras em execução, nas comunidades indígenas, consistem na construção
de escolas, açudes e Kupixáwas9. As instalações correspondem à construção ou ampliação das
sedes para as organizações indígenas, ao passo que, os programas de sustentabilidade
9
Kupixáwa consiste numa edificação, que comporta espaço para reunião de toda a comunidade, onde são
realizadas atividades culturais do povo, tais como: cantos, danças, reuniões, confecção de artesanato e
transmissão de conhecimentos.
81
contemplam ações de assistência técnica para a produção de alimentos e para futura geração
de renda.
A boa vontade por parte do poder público, assim como os recursos para
execução das obras não têm sido o bastante. As obras já executadas, que tinham como
propósito compensar impactos, têm gerado, em grande parte, mais impactos. Tanto as
empresas empreiteiras responsáveis pelas obras, como as obras por elas edificadas são alvo de
constantes críticas, porque seguem a prática comum da maioria das ações conduzidas por não-
indígenas em comunidades indígenas: são executadas por pessoas que não possuem nenhuma
orientação para o trato respeitoso com outras culturas. Conseqüentemente, algumas das obras
que pudemos observar, apresentam-se de forma estranha, deslocadas do cotidiano da
comunidade. A péssima qualidade das obras, denúncia recorrente no relato de pessoas das
comunidades e do movimento indígena, confirma a observação.
Portanto, nas novas frentes exploratórias, mesmo diante de circunstâncias
favoráveis aos indígenas, ainda assim, a relação de poder é muito desproporcional. Entre os
indígenas e o “setor produtivo”, qualquer que seja o governo, este tenderá a fazer inevitáveis
concessões ao “setor produtivo”. Desse modo, o que se visualiza são inevitáveis pressões da
força motora dos interesses econômicos sobre os mundos indígenas. Esse fato justifica o foco
de atenção do movimento indígena, na educação escolar, para formação de quadros indígenas,
que pensem estratégias para o futuro.
estava do outro lado e foi vencido antes mesmo dos bolivianos. A conquista, para o
colonizador, assenta-se sobre seu real interesse: territórios com riquezas a serem exploradas.
O indígena não entra em questão, como povo com possíveis direitos, diante de tais interesses
dos conquistadores.
Nesta época, o Brasil República estava suscetível a influência de novas
concepções “científicas”, que viam os indígenas como grupos a serem protegido pelo Estado.
Embora na Constituição de 1891 as questões indígenas tenham sido completamente
ignoradas, esta perspectiva de tratar a questão indígena como responsabilidade do Estado,
constituirá um princípio norteador a ser perseguido, a partir de então. No âmbito do poder
público, sob influência dos positivistas, dentre eles, Cândido Rondon10, é criado o Serviço de
Proteção aos Índios (SPI), pelo Decreto nº 8072, de 20 de julho de 1910 (RIBEIRO, 1996, p.
157), primeiro órgão oficial responsável pela política indigenista no Brasil. Com o órgão, são
estabelecidas diretrizes para nortear a ação do Estado, no trato com os povos indígenas. Tais
diretrizes consistiam num conjunto de princípios baseados no ideário positivista 11, visando
um indigenismo estatal e laico.
O propósito do SPI estava inserido entre as idéias que tomavam corpo no
movimento de ilustração brasileira: o positivismo, introduzido no Brasil em meados do século
XIX. O positivismo assume um papel relevante no destino dos povos indígenas
remanescentes. Do ideário positivista advinha a interpretação, o entendimento da fatalidade
das leis que dirigem a humanidade, firmes como as leis que dirigem o mundo físico e material
(BARROS, 1986, p. 12). Sob tal entendimento, exigia-se no que concerne aos indígenas, que
fossem possibilitadas condições para a progressiva transição de seu estado primitivo até sua
perfeita integração à sociedade nacional. Conforme o entendimento do mesmo autor, o índio
se transformava, agora, numa simples fase de um processo universal, que já superáramos.
Até a década de 1980, a legislação que norteou a ação do Estado brasileiro,
pregou a proteção e a incorporação da população indígena à sociedade brasileira. O Código
Civil, de 1916, definiu os índios como relativamente incapazes, sujeitos ao regime tutelar
enquanto não fossem adaptados à civilização do país. As Constituições de 1934, 1946, 1967 e
1969 reproduziram como modelo para o trato com os indígenas a incorporação dos silvícolas
10
Cândido Rondon comandou a implantação de linha telegráfica entre os Estados de Mato Grosso e do
Amazonas, estabelecendo contato pacífico com os índios no percurso, o que motivou o Governo a convidá-lo
para dirigir a instituição federal destinada à assistência aos índios.
11
Tal como situamos no capítulo 1, os positivistas defendiam a tese de que, oferecidas as condições favoráveis
aos índios, eles progrediriam pouco a pouco na direção da civilização. Cabia ao governo defendê-los contra o
extermínio e a opressão.
83
12
As “correrias” consistiam em expedições de extermínio patrocinadas pelos patrões seringalistas com o
propósito de quebrar a resistência de grupos indígenas em áreas de interesse para exploração. Executadas por
jagunços armados, os quais, rastreavam “índios brabos” até localizar suas aldeias, atacando-as, matando uns,
provocando correria entre os demais, mata adentro, expulsando-os para regiões distantes dos seringais que se
queria explorar.
84
A língua indígena era utilizada como “ponte”, apenas para facilitar o aprendizado
do português. É o “uso da língua sem língua”, na apropriada expressão de Meliá.
Ou seja, trabalhar com fonemas e palavras desligadas de um contexto sócio-
cultural e contribuindo, assim, para um paulatino desaparecimento da riqueza
lingüística de um povo (AMARANTE; PAULA, 2001, p. 06).
Apesar da polêmica que envolve a presença de tais missionários, estes ainda
mantém, estrategicamente, presença em aldeias na região, com suas bases fora da terra
indígena. É o caso da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), que ainda se faz presente
próximo ao povo Katukina, aproximando-se com a distribuição de medicamentos, falando,
com desenvoltura, a língua indígena e, desse modo, conquistando a confiança do povo. Uma
outra investida de tais seitas, nos dias atuais, tem sido a busca de aproximação dos índios
isolados na região da fronteira com o Peru, tentando o contato para civilizá-los. Como a
política oficial no Brasil é preservar o território e garantir a integridade daqueles que mantêm
o “isolamento voluntário”, os missionários fundamentalistas estabeleceram-se no Peru,
empenhados em, a partir daquele país, estabelecer o contato com os povos isolados, bem ao
estilo do período colonial.
Voltando à ação oficial dos poderes públicos na Amazônia ocidental, esta vai
ocorrer com a instalação da Funai, no final da década de 1970, nesta região, tal como nos
referimos anteriormente, para mediar os conflitos entre fazendeiros e comunidades indígenas.
O projeto inicial do órgão era sacramentar o entendimento das autoridades locais e da maioria
da população, de que já não havia mais índios e sim “caboclos”. Corroborando com o
preconceito regional, a interpretação do governo considerava os indígenas da região índios
aculturados, chegando a categorizá-los, por Decreto, não mais como indígenas, mas como
colonos. Esse fato ocorreu com o povo Apurinã, conforme matéria de 1988, do Jornal O São
Paulo:
Apesar das manifestações em contrário, foi criada a primeira colônia indígena no
Brasil. No último dia 20 de janeiro saiu publicada no Diário Oficial da União uma
portaria denominando a área indígena Apurinã, do quilometro 124 da BR-317,
como colônia indígena (O SÃO PAULO, 1988).
O projeto anti-indígena não teve sustentação diante das evidências
socioculturais e da persistência das comunidades em manter suas identidades indígenas.
Convém ressaltar que a resistência indígena na Amazônia Ocidental chegará aos dias atuais
com uma população bastante reduzida, muito mais pela dizimação do que pela assimilação,
confirmando as conclusões de Darci Ribeiro sobre a depopulação indígena:
A pesquisa com relação à assimilação dos povos indígenas, que me foi entregue,
deu o mesmo resultado decepcionante. Nenhum grupo indígena jamais foi
assimilado. É uma ilusão dos historiadores, que trabalham com a documentação
escrita a suposição de que havia onde havia uma aldeia de índios e onde floresceu,
depois, uma vila brasileira, tenha ocorrido uma continuidade, uma se convertendo
87
na outra. Em todos os casos examinados por nós, numerosíssimos, isso não sucedeu.
Os índios foram morrendo, vítimas de toda sorte de violências, e uma população
neobrasileira foi crescendo no antigo território tribal (RIBEIRO, 1996, p. 12).
No Acre, há alguns fatos que ilustram as conclusões de Darci Ribeiro, como o
caso do povo Náua, dado como extinto em inícios do século XX, cuja principal aldeia deu
lugar à cidade de Cruzeiro do Sul, AC. A cultura local incorporou apenas a expressão “náua”,
seja como referência à região como terra dos náuas, seja na denominação de casas comerciais
e produtos da região. Entretanto, quase um século depois, parcela significativa da população
desta cidade levanta-se contra uma comunidade, refugiada em colocação, distante da zona
urbana, comunidade que foi forçada a manifestar a identidade indígena e a reivindicar o
reconhecimento como remanescentes do povo Náua, motivados pela pressão de empresários e
ecologistas, os quais exigiam que os indígenas abandonassem seu território por estar situado
em um “parque nacional”. O presente caso é significativo na conclusão a que chegou o autor
citado acima, quando este afirma: onde quer que um grupo indígena pôde manter a
convivência familiar - os pais educandos seus filhos - permaneceu a identificação étnica
tribal (RIBEIRO 1996, p. 12). Laudos antropológicos, confirmados pelo poder judiciário,
reconheceram tal comunidade como sendo indígena.
O caso do povo Náua bem como o de vários outros povos da região é
ilustrativo da persistente luta pela identidade cultural dos indígenas, mesmo com suas culturas
ressignificadas na dinâmica que lhes é própria. A partir de estudos e trabalho com a população
indígena da região, o antropólogo Jacó Picolli confirma tal situação:
As sociedades que lograram sobreviver permanecem indígenas. Mesmo
transfiguradas resistem enquanto indígenas, na sua auto-identificação e
reconhecimento externo, diferenciando-se, nitidamente, da sociedade nacional,
apesar do amplo processo de dominação a que foram submetidas. A assimilação e
miscigenação só podem ser constatadas a nível individual e jamais a nível coletivo.
Na verdade, o que explica a diferenciação e a não diluição das sociedades e
culturas indígenas na sociedade ou cultura envolvente é a capacidade de luta e
resistência, ativa ou passiva, restaurada e renovada, oferecida pelas sociedades
indígenas ao processo de dominação e colonização que caracteriza as relações
interétnicas e, conseqüentemente, as relações interculturais (PICOLLI, 1993, p.
25).
Assim, embora a população indígena da região não tenha sido alvo de políticas
deliberadas de assimilação e tenha ficado entregue à ação das empresas exploradoras do látex,
os grupos que resistiram, à mais de sete décadas de violência e negação, resistiram,
fragilizados, mas resistiram em suas identidades étnicas. A fragilidade é posta em condições,
nas quais, são retirados dos povos os pressupostos elementares para o bem viver. Neves
(2002, p. 14), sintetiza os efeitos do processo histórico, que estabeleceu a condição desigual a
que os indígenas foram submetidos:
88
Durante sete décadas de cativeiro os povos nativos do Acre sofreram uma enorme
degradação de suas culturas tradicionais. O peso dos preconceitos da sociedade
não-índia, a expropriação de suas terras ancestrais, a falta de políticas de
assistência, de educação ou de saúde, levou-os a uma grave condição econômica e
social.
No estado do Acre, a partir do ano 2000, o poder público tem procurado fazer a
diferença nas relações com os indígenas. Na história do Acre nunca os pleitos dos indígenas
foram tão respeitados como são hoje, o poder público tem se mostrado disposto a construir
uma política de governo que contemple, também, este segmento populacional. Entretanto, as
contradições são visualizadas nas ações conservadoras das concepções universalistas,
homogeneizantes, em torno da cultura dominante promovida pelo mesmo poder público, que
reforça o preconceito e o desprezo para com os indígenas e suas culturas.
A persistente carga de preconceito continua sendo um fator determinante para
que sejam mantidas as fronteiras da exclusão dificultando a construção de relações
respeitosas, ou seja, o preconceito constitui a maior força contrária à manutenção de valores
culturais próprios dos diferentes povos, sobretudo a língua. É comum ouvirmos relatos como
o que segue, retratando a ridicularização sofrida pelos indígenas:
O povo Yawanawá foi perdendo a sua cultura, as festas e brincadeiras. Os pajés
não rezavam mais. Os pajés sabiam de tudo que estava acontecendo ali. Tudo eles
sabiam e guardavam dentro deles. Quando os Yawanawá falavam na língua
indígena, os brancos ficavam mangando e diziam para nós: - Olha, os caboclos
cortando gíria! Por isso, hoje, só os velhos falam a nossa língua Yawanawá
(KAXINAWÁ, 2002, p. 116).
Por outro lado, como nos referimos acima, na história oficial do Acre são
cultuados como heróis personagens que tomaram, de forma violenta, as terras indígenas,
terras também reivindicadas pela Bolívia e Peru, compreendendo o espaço que hoje é o estado
do Acre. A narrativa oficial encarregou-se de lapidar a imagem dos coronéis, exploradores do
trabalho escravo, na empresa extratora das riquezas da floresta. A narrativa histórica, já
revisada, enaltece como “antepassados” da população acreana, os coronéis, donos dos
seringais, e os nordestinos seringueiros. Essa historiografia, escrita pelos vencedores, não
consta que os territórios tomados pertenciam a nações milenares e minimiza a ação, não tão
nobre, dos heróis exploradores, na dizimação de muitas nações, por meio das famosas
“correrias”.
Enquanto realizávamos esta pesquisa, a população do Acre era envolvida na
celebração do centenário da “Revolução Acreana”, celebração baseada em cultos a símbolos
construídos na versão da história contada pelos colonizadores. Os festejos, iniciados em 2000,
reforçados com monumentos, museus e similares, enaltecem os vencedores dos embates do
passado, homenageados como heróis, personagens que, pelo acaso e oportunismo econômico,
89
elaboradas a partir da visão de mundo das nações da Europa ocidental, exercendo pressão
sobre as culturas que diferem de sua ordem de valores. Em contrapartida, persiste e tornam-se
mais visíveis a pluralidade e a crença na possibilidade de relações respeitosas entre povos
com valores culturais diferentes, contrariando o projeto civilizatório hegemônico. Nas
mesmas bases do debate, que reivindica relações culturais contra-hegemônicas, inserimos o
debate sobre a educação escolar nas comunidades indígenas, sobre a escola conquistada como
direito e instrumento favorável aos projetos de emancipação sociocultural, pleiteado pelos
povos indígenas, tal como trataremos nos próximos capítulos.
CAPÍTULO III
III3 OS MOVIMENTOS SOCIOCULTURAIS E AS- ressupostos para a construção de
RELAÇÕES
CONTRA-HhEGEMÔNICAS E o movimento de resitência INDÍGENABASES DAS
RELAÇÕES CONTRA-HEGEMÔNICAS, O MOVIMENTO DE RESITÊNCIA E O
DISCURSO DA INTERCULTURALIDADE NA EDUCAÇÃO ESCOLAR
vem sendo concebida neste meioa partir dos movimentos socioculturais e reivindicada pelo
movimento indígena, vinculada às bandeiras de emancipação social, com base no diálogo
entre culturas.
sociólogos pensaram muitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade,
produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma” (HALL, 2001,
p.17).
Convém alguma ressalva quanto à crise da modernidade e as alternativas
contra-hegemônicas., as quais, embora Eestas, ainda que apontem para mudanças estruturais
no mundo social, não necessariamente representam ruptura à dinâmica expanscionista,
vinculada a determinadas áreas do saber ou a instituições do mundo ocidental, ou sejaisto é,
os instrumentos de globalização, o avanço técnico-científico, têm sua dinâmica própria,
mesmo sendo criticadas como motivadoras da crise social, sobretudo, da crise política, com
insidênciaincidência sobre as identidades culturais.
Enfim, os movimentos de resistência sociocultural vêem-seestão às voltas, com
instrumentos homogeneizadores globalizantes que colocam em interconexão áreas diferentes
do globo, com fortes apelos ao consumo de produtos e conseqüente sedução das pessoas à
lógica de mercado da cultura ocidental.. SEssa sedução que se esvai quando a grande maioria
não dispõe de condições de comprar. Excluída dos benefícios que garantiriam o bem- viver
numa identidade universal, a grande massa populacional aglomera-se nas periferias das
grandes cidades, destituídas, também, das condições dignas que sustentavam suas identidades
culturais, no passado.
Resumindo, o fracasso das promessas da modernidade traz, como
conseqüência, a implantação de uma cultura consumista de mercado, difundindo toda sorte de
“enlatados” culturais pelos mecanismos de globalização, ao mesmo tempo em que não
possibilita a essa grande massa o acesso a condições para comprar tais mercadorias.
podem ser vistas comoconsideradas benéficas, mesmo que sejam para expor, visualizar
problemas sociais, graves, a em que se encontram determinados grupos sociais, determinados
povos, tal como a globalização que produz resistência política, porque atrai, claramente, a
atenção para dilemas antigos ou de aparição recente, causando, pelo menos, indignação.
Resistência essa manifesta, também, em levantes, aos moldes dos grandes movimentos por
justiça social e que também se estendem pelo globo, geralmente, denominados como
movimentos antiglobalização. No mesmo entendimento, podemos relacionar o
cosmopolitismo, enquanto modo de produção globalizada, no qual, temos o favorecimento à
valorização e ao resgate de culturas, antes desprezadas, como fundamento para mudanças
estruturais com conseqüências políticas.
Assim, com as críticas, e a conseqüente exposição das mazelas, resultantes das
políticas de exclusão e de assimilação do outro, hoje expostas pela globalização, abrem-se
espaços para movimentos de afirmação, de ressignificação das diferenças, como meio
necessário para o resgate do bem- viver, da dignidade de cada ser humano, em suas
peculiaridades locais. iIndicando, pois, que este contexto plural, num mundo onde já estão
firmadas “teias” globais, “compreender o “„outro”‟ será o maior desafio social do século 21”
(TAYLOR, 2002). O desafio está na construção de novas políticas, que trabalhem garantindo
o direito daos povos e grupos sociais em de manterem seus valores culturais, ao mesmo tempo
em que sejam estabelecidos novos elos de relações entre povos, entre culturas.
1.33.1.2É neste espaço de críticas ao modelo fracassado de igualdade universal, Formatados: Marcadores e
numeração
que se assenta o - O movimento de afirmação das diferençasidentidades étnicas e culturais,
movimento que inclui a remodelação das instituições, entre elas, a escola, tal como almejam
os indígenas, como explicitaremos a seguir.
1998, p. 157). A diferença como negação do outro, remonta a tempos imemoriais, onde
quando um determinado grupo se considerava como povo e todo o resto como “os outros”. S,
significa dizer que diferença não é um simples conceito filosófico, mas um fator concreto,
como diz Semprini em na citação acima, constatado nas práticas cotidiano, fazendo parte do
processo histórico das pessoas, dos grupos sociais. Processo no qual as pessoas “identificam-
se e são identificadas pelos outros na base de dicotomizações Nós/Eles, estabelecidas a partir
de traços culturais que se supõe derivadas de uma origem comum” (POUTIGNAT; e
STREIFF-FENART, 1998, p. 141). Portanto, as diferenças afloram com a consciência de
grupo, com o reconhecimento da pertença a uma identidade. É com a linha de demarcação
entre membros e não membros, ou então, no confronto dos modos de ser, que os atores se dão
conta das “fronteiras” que marcam o sistema social ao qual pertencem, e se dão conta das
diferenças.
É, também, na história, que se assenta àa origem do “discurso” da diferença.
Advém dos segmentos dominantes, “conservadores”, “de direita”, como afirma Pierucci
(1999, p. 29). O mesmo autor acrescenta: “a direita já escolheu, desde sempre, a diferença”
(Id., Ibid.), porém, tratava-se de uma diferença nos termos em que o oOutro é escravizável,
desigual, subordinado, inferior, passível de discriminação, humilhação, segregação e
exclusão. Obviamente, esta forma de ver a diferença não se confunde com a perspectiva
defendida pelos movimentos sociais. A expressão diferença, ressignificada por segmentos
situados no outro lado daqueles a que Pierucci identifica como “direita conservadora”, os
novos movimentos sociais, sobretudo das minorias, passouaram a investir no léxico da
diferença e a tematizar o direito à diferença. Pierucci (1999, p. 31) situa:
São divisas novas para a esquerda, vem da esquerda, não da direita. Isto
significa que, além do diferencialismo de direita, existe hoje um diferencialismo de
esquerda ou, se quiserem, uma esquerda diferencialista e seu mote é a defesa do
“direito à diferença”.
Os Estados nacionais do Ocidente apresentam-se, hoje, em contextos mais ou
menos semelhantes, tendo que administrar a realidade plural pós-colonialismo. CEsses
contextos que podem ser traduzidos na forma de movimentos similares de reivindicações pelo
reconhecimento e respeito a identidades coletivas, afirmando esta outra significação do termo
“diferente” - que compreende o entendimento de alteridade, mais coerente ao contexto atual -
que tem a verrelacionado com a expressão “distinto”, expressão que, conforme Guareschi
(1998, p. 157):,
“oO „“"outro”‟" é o „“"dis-tinto‟”" de dis e tinguere, que significa tingir, pintar;
também é separado, é o outro, não contudo arrastado para fora, mas possuindo sua
identidade e estabelecendo com o “mesmo” relações de diálogo, construtivas, [...].
Essa a verdadeira alteridade”.
101
não equüivale a à desigualdade”" (CASTAÑO apud CADAU, 2002, p. 35)”. ,O o desafio está
em construir alternativas humanas viáveis, nas quais as pessoas e os grupos sociais têem o
direito a de serem iguais e o direito a suas identidades sociais ou étnicas.
critérios de avaliação, e que, para tal hierarquização ser construída, é necessário subjugar uma
cultura aos critérios de outra”. Neste entendimento, firma-se com mais consistência, na época
atual, de que não há critérios científicos capazes deque nos forneçam bases para afirmar a
possibilidade de que uma cultura seja inferior a outra. Não existem leis naturais que digam
quesobreponham as características de uma cultura sejam como superiores a de outra.
Entretanto, a defesa da postura relativista, conforme Cardoso de Oliveira
(2000), a defesa da incomensurabilidade das culturas, torna-se problemática em certas
dimensões do relacionamento intercultural, em situações nas quais se busca consenso em
questões de que envolvem valores como moralidade e eticidade, questões relacionadas com a
idéia do “bem- viver”. O mesmo autor exemplifica as implicações, num no caso de relações
entre povos, questionando se seriam aceitáveisl práticas como o infanticídio, compreensível,
no âmbito da cultura, e inaceitável, sob a ótica da moralidade e eticidade, em no processo de
relações interculturais. Voltaremos, mais adiante, às ressalvas de Cardoso de Oliveira em item
mais adiante.
Um outro aspecto a ser destacado sobre as culturas, tem a ver comestá
relacionado a complexidade das culturasdestas dnos diferentes agrupamentos humanos, e,
também, com oao inevitável encontro entre povos, entre culturas, dada a exposição feita
provocada pelo processo de globalização, fazendo que faz com que as manifestações culturais
assumamam novos contornos, reforçando uma característica comum às culturas, sua
dinamicidade, conforme Suess (1995, p. 25):
As culturas não são algo estático. Os diferentes povos souberam adaptar suas
culturas - seus instrumentos materiais, sua organização social e política e seu
universo religioso - a novas circunstâncias históricas. [...] Pela cultura e pela
história cada povo constrói sua identidade e sua alteridade.
Este caráter dinâmico da cultura contesta a tendência, entre os defensores da
“ordem civilizatória”, de classificar o movimento de resistência à homogeneização
globalizante como um retorno ao passado. O resgate de valores locais, visto por alguns, como
um retrocesso - dada esta a dinamicidade das culturas frente a novas circunstâncias históricas
- deve ser vista como uma rearticulação entre modernidade e identidades coletivas, culturais e
comunitárias, diferente do fundamentalismo nacionalista ou étnico. Assim, se as experiências
concretas de vida se modificam, as pessoas precisam encontrar novos símbolos, de acordo
com a situação a que estão vivendo:, rearticulando identidades coletivas, culturais com novas
identificações, relacionadas a outros agrupamentos a quedos quais faça parte.
106
permite, por si própria, abranger o traçado dos limites étnicos”. Tornou-ando-se arbitrário
afirmar que, para ser considerado grupo étnico deva possuir determinados traços.
Predomina, nos tempos atuais, como critério para identificação, a
autodefinição. Assim, um alguém é Apurinã 13 pelo fato de se crer e denominar-se Apurinã,
agir de modo a validar e ser reconhecido pelo povo Apurinã. A autoridade ou a atribuição
para determinar o pertencimento é de competência do próprio grupo, a partir dos sentimentos
de pertença a um povo ou a uma comunidade formada por pessoas possuidoras de uma
herança cultural comum.
Respeitando o princípio da autodefinição, a expressão menos arbitrária para o
trato com as populações indígenas é “povos indígenas”, tendência respaldada no direito
internacional14, com respaldo, também, de organizações de mobilização pelos direitos
indígenas. Cardoso de Oliveira (2000, p. 187) destaca que tal fato representa uma conquista
“das populações indígenas [ao] serem, finalmente, reconhecidos como povos e, como tais,
[tornam-se] legítimos pretendentes à singularidade étnica e à autonomia, ainda que no
âmbito dos Estados nacionais”.
A autodefinição étnica permite, também, a explicação de situações que afetam
os povos indígenas, que, submetidos a práticas civilizatórias, assimilacionistas, lhes é
oferecidoa, como possibilidade, a mobilidade étnica. Como comenta Poutignat e Streiff-
Fenart (1998, p. 154),:
N“Nna América Latina, a fronteira que separa os indígenas dos mestiços é
suficientemente leve para que seja suficiente a um indígena que aprenda a falar
corretamente o espanhol e adquirir atributos culturais considerados como
definidores da cultura crioula para deixar de ser considerado como um indígena”.
No caso da Amazônia brasileira é ilustrativa a situação dos povos indígenas,
que, ao serem “civilizados”, eram categorizados como “caboclos”., e Ffrente a práticas
discriminatórias, deixar de ser índio, servia também como alternativa de sobrevivência.
Em se tratando dosNo que concerne aos povos indígenas no Brasil, embora
muitos grupos mantenham características próprias, as quais poderiam ser explicitadas como
essencialistas - características físicas e outros elementos que os ligam a uma ascendência
comum, pré-colombiana - assume maior relevância, na luta destes povos, a etnicidade como
expressão de interesses comuns. Com bases essencialistas ou redefinidas em novas bases, a
13
Povo indígena cujo território situa-se na região sul do Estado do Amazonas.
14
A convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata sobre povos indígenas e tribais
em países independentes, reconhece as populações indígenas como “povos com identidade e organização
própria” cuja "consciência de sua identidade indígena [...] deverá ser considerada como critério fundamental para
determinar os grupos interessados”, para identificá-los como povos.
109
democráticosSociedades plurais
respeito à coletividade maior, passando pelointeresses que incluem o bem viver, pela e a
dignidade de todos.
Tanto Em as sociedades pluralistas, que abrigam a convivência harmônica
entre grupos étnica e culturalmente diferentes e quanto as ações aceitando e incorporando os
diferentes grupos étnicos, são caracterizadas como multiculturais. Fundamentadoas no ideal
político de se estabelecer “relações” entre os grupos étnicos, as medidas multiculturais
concretas tornam-se visíveis em instituições sociais como escolas. Na educação escolar, o
multiculturalismo é expresso no currículo com a incorporação de matérias e atividades que
explicitem os valores das diferentes culturas, no intuito de promover relações positivas entre
os estudantes. Conforme Caschmore (2000, p. 372), “nos contextos educacionais, o
multiculturalismo desenvolveu-se por meio de críticas aos modelos educacionais de
assimilação que tentam impor uma educação monocultural a sociedades culturalmente
diversificadas”. Voltaremos, mais adiante à educação multicultural.
Para Não é um processo simples as sociedades se reconhecerem como
multiculturais, não é processo simples.uma vez que mMuitas culturas são mutuamente
excludentes, outras possuem princípios, valores, costumes, opiniões discordantes. É comum,
também, em Estados liberais, nos ocorrer apenas uma atualização do discurso, atitude típica
de seus modos de fazer política:, “atualizar os discursos” incorporando em sua retórica as
expressões mais acertadas para a época. , deste Desse modo, a expressão multiculturalismo
tende a ser assimilada e ressignificada, desviando a atenção do legado colonial de racismo e
injustiça social. Há, portanto, diferentes tendências de multiculturalismo. No entendimento de
McLarem (1999, p.59), “os multiculturalismos liberal e conservador são tendências de uma
política de assimilação”. O mesmo autor explica que “os grupos privilegiados ocultam
vantagens ao defenderem o ideal de uma humanidade comum ”(IBIDMCLAREN, p. 77).
Ainda na perspectiva do mesmo autor:
Devemos procurar uma visão de multiculturalismo e diferença que avance para
além da lógica da escolha entre assimilação e resistência, [mais adiante
complementa que] mesmo uma posição liberal de esquerda sobre o
multiculturalismo não consegue avançar em um projeto de transformação social.
[...] [e propõe o] multiculturalismo crítico que compreende a representação de
raça, classe e gênero como o resultado de lutas sociais mais amplas sobre signos e
significações e neste sentido enfatiza a tarefa central de transformar as relações
sociais, culturais e institucionais nas quais os significados são gerados.
(IBIDMCLAREN, p. 80, 122 e 123)..
As críticas são postas no avanço limitado das mudanças, distante da interação
ideal, que promovea a dignidade de todos. O reconhecimento da pluralidade cultural pode
induzir, em vez de relações, a apenas a uma justaposição de culturas. , umas sobre as outras.
113
Em vista disto, o que se busca não é a mera convivência entre diferentes, e sim,
elementos de unidade na diversidade, algo como diz Gutmann (1993, p. 40), que): “de esta
manera, podemos hacer de la necesidad de nuestros desacuerdos morales una virtud”.
Considerando o fato de estarmos lidando com Estados liberais capitalistas e que, sob estes, se
busca-se exercitar a capacidade de deliberar acerca das diferenças, a possibilidade de
alçarmos relações interculturais legítimas implica em ir mais além da simples possibilidade de
viver em uma sociedade multicultural, ir além da capacidade para administrar diferenças.
Ir além implica construir
1.83.1.4 - aAlternativas contra-hegemônicas de emancipação sociocultural; Formatados: Marcadores e
numeração
buscar outras referências para viabilizar novas políticas sociais, culturais e, sobretudo,
educacionais, no âmbito de Estados nacionais. A seguir, pontuamos algumas indicações sobre
este debate.al
como necessários para viabilizar novas políticas sociais, culturais e, sobretudo, educacionais,
no âmbito de Estados nacionais.
apontado por Poutignat e Streiff-Fenart, em citação acima. Semprini destaca como sendo um
dos principais desafios, retirar o poder, (até então, sob o controle dos segmentos dominantes)
de nomear e, adjetivar aos demais. Isto porque, definir os nomes, controlar os mecanismos de
designação, permite modelar o espaço sociocultural. Como exemplo, temos a luta dos negros
no Brasil, que os quais reivindicam o tratamento comoa denominação de afro-descendentes,
acompanhando aà expressão que é acompanhada de toda uma gama (histórico-cultural),
histórica de afirmação da negritude, ou o caso de comunidades indígenas, às quais, a cultura
dominante já tinha “definido” quem eram, classificadas como comunidades rurais, caboclos,
primitivos, e que, hoje, lutam pelo seu reconhecimento como povos, tal como sempre se
reconheceram.
As mudanças vão sendo operadas em várias dimensões, também inclusive no
campo do Direito. Tal como no período colonial, onde o Ddireito teve papel fundamental para
legitimar o domínio sobre as conquistas, hoje, o pPoder Jjudiciário, enquanto instituição que
se pretende independente nos Estados liberais, volta a ter importância estratégica, agora na
garantia do modelo de regulação da coexistência dos grupos étnicos, como comenta Semprini
(Ibid.1999, p. 164):, “manipulado habilmente por grupos organizados num novo clima social,
o direito tem se mostrado uma arma poderosa, um “ „pé-de-cabra”‟ nas trincas da
modernidade”. As pessoas, as coletividades, transferem seus problemas de relação
sociocultural para o espaço público, obrigando o Direito a acomodar-se às mudanças
socioculturais. Atua também nesta direção, a articulação dos movimentos em organismos
supranacionais, produzindo respaldo jurídico, pressionando as nações pela ratificação de
convenções internacionais e, destse modo, desenvolvendo o um paradigma ético em busca da
justa medida nas relações entre povos.
neste caso, conjugar igualdade e diferença tem se revelado impossível em sociedades que
identificam os princípios de uma cultura como universais. Um exemplo que ilustra essa
problemática, no âmbito global, é a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, refletindo
que reflete os valores básicos de uma cultura e formulados formula esses valores como
universais,. como comentaPara Sousa Santos (2000ab, p. 26)::
Enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos
humanos tenderão a operar como localismo globalizado -– uma forma de
globalização de cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do “choque de
civilizações” tal como concebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do
Ocidente contra o resto do mundo (“the West against the rest”). A sua abrangência
global será obtida à custa da sua legitimidade local. Para poderem operar como
forma de cosmopolitismo, como globalização de baixo-para-cima ou contra-
hegemônica, os direitos humanos têem de ser reconceitualizados como
multiculturais.
O mesmo autor explicita que as culturas tendem a considerar seus valores
máximos como mais abrangentes, mas somente a cultura ocidental formula seus valores como
universais. Sousa Santos (2000ab, p. 27) exemplifica o modelo de relações a que nos
referimos no parágrafo acima, comentando o conceito de direitos humanos, o qualque, se
assenta-se em “pressupostos claramente ocidentais e facilmente distinguíveis de outras
concepções de dignidade humana em outras culturas”. Exemplificando, destaca valores,
constantes na Declaração Universal de Direitos Humanos, marcadamente ocidentais, como o
“reconhecimento exclusivo de direitos individuais [...] [a] prioridade concedida aos direitos
cívicos e políticos sobre os direitos econômicos, sociais e culturais [...]” (Id., Ibid.SOUSA
SANTOS, 2000ab, p. 28).
Em se tratando da luta por relações de igualdade entre povos, Sousa Santos
defende que tal luta deve fundamentear-se em direitos humanos que retratem o esforço de
diálogos interculturais. Desste modo, fundamentado-se em premissas que dariam referência a
um diálogo intercultural, propõe um procedimento hermenêutico –- definido como
Hhermenêutica Ddiatópica –- no qual o diálogo intercultural parte do reconhecimento de que
os argumentos fortes de cada cultura apresentam-se incompletos, vulneráveis, quando
“usados” numa cultura diferente. S, sendo a completude algo inatingível, o objetivo seria
“ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua por meio do diálogo que se
desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro noutra” (SOUSA SANTOS,
2000ba Id. Ibid., p. 31).
Para “prevenir perversões”, Sousa Santos (Ibid.2000ab) propõe que as partes
envolvidas no diálogo devam identificar, nas diferentes versões de uma dada cultura, “aquela
que representa a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro”. A título de
119
exemplo, apresenta que a aplicação de tal procedimento, no caso da cultura ocidental, das
duas versões existentes -– a liberal e a marxista –- a marxista seria mais favorável na relação
com outras culturas, pois amplia, para os domínios econômico e social, a igualdade que a
versão liberal apenas considera legítima no domínio político. Outro imperativo intercultural a
ser considerado seria o seguinte:
Uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo
com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica, e, portanto, com
concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais
tem o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser
diferentes quando a igualdade os descaracteriza. (Id., Ibid.SOUSA SANTOS,
2000ab, p. 36).
Tendo presente a complexidade dos diferentes grupos culturais, as resistências
de muitos povos, quanto a à igualdades de dignidade humana entre os diferentes, torna-se fato
que “sempre haverá luta entre direitos universais e particulares, pois eles nunca serão
totalmente compatíveis” (MCLAREN, 2000, p. 276). No entanto, convém reforçar o aspecto
que alimenta a utopia dos movimentos de resistência, principalmente no âmbito dos Estados
nacionais, que é a constante reelaboração dos caminhos em busca de políticas
emancipatórias,. Nnestas, de alguma forma persiste como bandeira, a à superação das
desigualdades sociais, fator que mobiliza os povos e, grupos sociais em relações de diálogo.
Tomando a discussão sob a ótica de outros autores - sempre partindo do
consenso em torno da fragilização do projeto de homogeneização cultural, acrescido do
explícito fracasso das sociedades ocidentais no atendimento às demandas por condições
dignas de vida a todos - estes declaram que as sociedades se vêem cada vez mais
“atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade
de diferentes „“posições de sujeito”‟ - isto é, identidades” ( HALL, 2001, p.17). Mesmo
assim, sob este quadro, a fragmentação dos Estados nacionais não é colocadoa fragmentação
dos Estados nacionais não é colocada como perspectiva, ou, como observa Hall (2001), as
sociedades modernas não se desintegram, totalmente, não é por serem unificadas, mas pelo
fato de, em certas circunstâncias, os seus diferentes elementos e identidades poderem ser,
conjuntamente, articulados.
Para lidar com este contexto plural, outras propostas debatidas, a partir de
experiências de alguns Estados nacionais, apontam, muito provisoriamente, para a conjugação
de esferas de articulação e separação em níveis macrossocial e microssocial. Destse modo,
seriam mantidos as unidades e os limites culturais e, com eleas, “as limitações na
compreensão comum, diferenças de critério de julgamento, de valor e de ação, e uma
restrição da interação em setores de compreensão comum assumida e de interesse mútuo”
120
(BARTH, 1998, p. 196). Para tanto, devem ser encontrados, em qualquer forma de relações
entre grupos étnicos, princípios comuns que se firmem como referência para os contatos entre
tais grupos. Assim, para situações sociais de interação entre grupos, se presssupõe:
Um conjunto de prescrições dirigindo as situações de contato e que permitam a
articulação em determinados setores ou campo de atividade, e um conjunto de
proscrições sobre as situações sociais que impeçam a interação interétnica em
outros setores, isolando assim partes das culturas, protegendo-as de qualquer
confronto ou modificação. (BARTH, 1998Id., Ibid., p. 197).
Nesta perspectiva, a identidade étnica seria imperativa nas restrições sobre o
comportamento de um indivíduo que derivam de tal identidade e, conforme o mesmo autor, a
ligação entre os vários grupos étnicos, num sistema social englobante, dependeria da
complementariedadecomplementaridade, no que concerne a certos traços de suas
características culturais, constituindo-se em áreas de articulação.
As possibilidades de se firmaremr relações interétnicas respeitosas, no âmbito
de Estados nacionais, também é analisadao por Cardoso de Oliveira (2000), sob a distinção de
espaços sociais. O autor distingue três esferas, nas quais, as relações políticas e sociais entre
os grupos étnicos seriam pautadas em princípios éticos, morais. Situa a microesfera, como o
espaço das relações face a face, que se dão no meio comunitário, grupal; a mesoesfera,
correspondendo às relações sociais permeadas pela ação dos Estados nacionais, por meio das
instituições e leis por eles criadas; e, em instância maior, a macroesfera, campo onde seriam
postas as ações sociais que, por deliberação internacional, regulamentariam uma ética
planetária.
As A construção de novas políticas em Estados nacionais que preconizem o
respeito às identidades culturais, , conforme Cardoso de Oliveira (2000, p. 185), implicaria
em proporcionar, no âmbito da microesfera social, condições para que os grupos étnicos
buscariam ssem a preservação das normas morais de caráter particular. Como afirma o mesmo
autor, , normas observadas nas instâncias íntimas “com suas demandas pela defesa dos
direitos aos territórios que habitam, à identidade étnica que devem assumir livremente e aos
seus modos de vida particulares, sem os quais estariam pondo em risco sua própria
existência” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 185). Neste mesmo âmbito, situa-se o
direito de tornar a escola uma instituição da comunidade, à serviço dos interesses desta
comunidade. Na mesoesfera, conforme o autor, há, ainda, um contexto pouco afeito à defesa
da diversidade cultural, no entanto, o quadro de mudanças vem se tornando possível, dados os
movimentos de resistência, com respaldo em instâncias e fóruns internacionais, favorecidos
pelos instrumentos de comunicação global. Cardoso de Oliveira ressalta que os Estados
nacionais são compelidos por pressão internacional a administrar a conjunção entre valores
121
conforme nos referimos em item anterior, com base no que propõe Cardoso de Oliveira
(Ibid.2000), é impor reservas à idéia de incomensurabilidade das culturas e,
conseqüentemente, reservas ao relativismo cultural enquanto princípio inegociável. Significa
dizer que, no contato, ou encontro entre culturas, as comparações são inevitáveis,é inevitável
às comparações e predispor-se ao diálogo dependerá de flexibilização, de abertura das partes
envolvidas em tal ação. Entretanto, Cardoso de Oliveira (I2000bid.)o autor enfatiza outras
dificuldades a serem superadas para que seja produzido um diálogo verdadeiro, edificuldades
que são determinantes, tal como o caso onde asnas relações são profundamente assimétricas
entre as culturas, caracterizadas pela dominação de uma cultura sobre as outras.
Centrando o debate no campo cultural, diante do processo de dominação a que
os povos indígenas foram submetidos, sobretudo pela “hegemonia do discurso ocidental de
raiz européia” (Id., Ibid.CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 175), a dificuldade em se
estabelecer o diálogo está nos mecanismos utilizados para legitimar o mesmodiálogo.
Considerando a situação de interação na qual um dos interlocutores é “branco, culturalmente
europeu, ocidental”, o qual,e dispõe de requisitos básicos na para a legitimação doe seu
discurso, tais como: inteligibilidade, verdade, veracidade e retidão e, frente a uma situação de
interação, a distância cultural torna limitada a possibilidade do ouvinte, ocidental, ter
compreender e aceitar a fala do indígena obedecendo a seuscom base nos requisitos da cultura
ocidental para validá-la. Nestas circunstâncias, haveria a necessidade de redefinição de tais
requisitos legitimadores, partindo da “dignidade da pessoa” como valor maior na
comunicação. Portanto, se faz-se necessário “superar as regras estabelecidas pelo discurso
hegemônico” e instituir uma nova normatividade para o discurso, com a contribuição efetiva
da outra parte envolvida no diálogo.
mesmo de compensação.
Como expusemos nos íitensitens anteriores, a complexidade do diálogo
intercultural se acentua-se quando as diferentes culturas envolvidas no diálogo partilham de
um passado de sucessivas trocas desiguais. Complexidade que Sousa Santos (2000ab, p. 36)
expressa em questionamentos:
Após séculos de trocas culturais desiguais, será justo tratar todas as culturas de
forma igual? [...] Que possibilidades existem para um diálogo intercultural se uma
das culturas em presença foi moldada por maciças e prolongadas violações dos
direitos humanos perpetradas em nome da outra cultura? [...] dado que, no
passado, a cultura dominante tornou impronunciáveis algumas das aspirações à
dignidade humana por parte da cultura subordinada, será agora possível
pronunciá-las no diálogo intercultural sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a
sua impronunciabilidade?
Assim, fundamentalmente, a interculturalidadefirmar relações interculturais
numa sociedade plural requer oimplica no reestabelecimentorestabelecimento da dignidade
das culturas que foram subordinadas, e tem a ver com o restabelecimento de condições de
“bem- viver” do povo, da comunidade com a qual se quer firmar relações. Dentre as medidas
adotadas para se garantir eficácia nas políticas que visaem àa dignidade igualitária, têem sido
experimentadoas medidas compensatórias destinadas a grupos que foram subjugados,
historicamente, os quais, por encontrarem-se em desvantagem, numa sociedade liberal, seriam
beneficiados por medidas discrimintatórias de ordem inversa, por exemplo, cotas no emprego
ou em universidades. Taylor (1993) comenta que “la discriminación a la inversa es defendida
como una medida temporal que gradualmente nivelará el campo de juego”. Comenta, ainda,
em outra passagem, referindo-se a obra de Kymlicka, sobre a base de certas necessidades
culturais:
Minimamente, la necesidad de un lenguaje cultural íntegro e ileso con el que
podamos definir y proseguir su propia concepción de la vida buena. En ciertas
circunstancias, para las poblaciones en desvantaja, la integridad de la cultura puede
requerir que les asignemos mayores recursos o derechos que a los demás.”
(KYMLICKA apud TAYLOR, 1993, p. 64)..
Assim, no contexto atual, a possibilidade de articulação entre diferentes
identidades, é posta como um dos grandes desafios para as sociedades ocidentais no contexto
atual, implicando na redefinição dos modos de fazer política, onde na qual as relações sejam
assentadas sobre novas bases, ou seja, tendo o diálogo como pondto de partida. Aprender a
conviver não é o bastante., O diálogo torna-se a expressão chave,. uma vez que é possível de
ser concretizado, conforme o entendimento de que as características, bem como os valores de
cada cultura não são absolutos, não são completos, estão sempre sujeitos a transformações. É
nesta incompletude das culturas que se vislumbra a possibilidade de aproximação e de diálogo
entre os diferentes., Porém, para que sejam estabelecidas relações de interculturalidade, há a
125
próprias identidades”. McLaren (2000, p.23) propõe uma pedagogia crítica como prática de
libertação, cuja luta dos educadores é “guerrear pelo interesse sagrado da vida humana, pela
dignidade dos desfavorecidos do mundo e pelo direito de viver em paz e em harmonia”.
Gadotti (1999), em apresentação àa obra de McLaren, defende como necessária
a educação multicultural diante do contexto de globalizações dos dias atuais. Conforme o
autor, “a educação multicultural e intercultural procura familiarizar as crianças com as
realizações culturais, intelectuais, morais, artísticas, religiosas, etc, de outras culturas,
principalmente das culturas não dominantes”. Gadotti (Ibid1999., p. 16) destaca ainda, a
relevância da educação multicultural, na qual:
as crianças que não aprenderem a estudar outras culturas perderão uma grande
oportunidade de entrar em contato com outros mundos e terão mais dificuldades de
entender as diferenças; fechando-se para a riqueza cultural da humanidade, elas
perderão também um pouco da capacidade de aprender e de se humanizar. O
pluralismo, como filosofia do diálogo para o entendimento e para a paz, deverá
fazer parte integrante e essencial da educação do futuro.
Embora alguns autores não façam distinção entre o multicultural e intercultural
em educação, permanecemos no entendimento apresentado em itens anterioresacima, no qual,
explicitamos que a idéia de multicultural tende a ser associada a uma realidade plural de
simples coexistência e que, não necessariamente, os grupos culturais em questão, manifestem
intenção de estabelecer diálogo entre culturas. É o que comenta Fleuri (2000, p. 03):
O multiculturalismo reconhece que cada povo e cada grupo social desenvolve
historicamente uma identidade e uma cultura próprias. Considera que cada cultura
é válida em si mesma, na medida em que corresponde às necessidades e às opções
de uma coletividade. Ao enfatizar a historicidade e o relativismo inerentes à
construção das identidades culturais, o multiculturalismo permite pensar
alternativas para as minorias. Mas também pode justificar a fragmentação ou a
criação de guetos culturais, que reproduzem desigualdades e discriminações
sociais.
As ressalvas, a assim então chamada educação multicultural, encontra-se, pois,
no modo de se conceber a relação entre estas diferentes culturas, particularmente, na prática
educativa. Deste modo, “uma perspectiva multicultural limita-se a considerar a coabitação das
diferenças culturais como um processo histórico natural, espontâneo, do qual se pode tomar
consciência para se adaptar-se a ele” (NANNI, 1998 Aapud FLEURI, 2000, p. 05). Nesta
perspectiva, o processo educativo, de modo geral, as culturas diferentes constituiem-se como
objeto de estudo, matéria a ser aprendida, sem necessariamente, se estabelecer-se o confronto
e, o diálogo entre pessoas e culturas diferentes.
A perspectiva a que se pretende chegar - dada a mais que inevitável, a
necessária relação entre pessoas, entre povos culturalmente diferentes - implica em propor que
pessoas com concepções de mundo diferentes firmem relações intencionais, e que a escola
130
socioculturais,, perde sentido, uma vez que esta forma de educação pressupõe a focalização da
reflexão na própria prática, onde ocorre a dialética identidade/alteridade. Ou sejaIsto é, a
interculturalidade consiste em “estimular a consciência das diferenças e das relações entre os
agentes e os pontos de vista que nele se articulam” (FLEURI, 2000, p. 04). Trata-se de uma
perspectiva problematizadora em educação, desenvolvida em condições de conflito e
interação crítica de valores e identidades culturais diferentes que, inseridas na perspectiva dos
movimentos socioculturais, movimentos de base, resultam na complementação mútua entre
prática educativa e ações práticas das pessoas e, dos grupos no espaço sociocultural. Na
explicitação de Fleuri (Ibid2000., p. 03), a educação intercultural:
eEmerge no contexto das lutas contra os processos crescentes de exclusão social.
Surgem movimentos sociais que reconhecem o sentido e a identidade cultural de
cada grupo social. Mas, ao mesmo tempo, valorizam o potencial educativo dos
conflitos. E buscam desenvolver a interação e a reciprocidade entre grupos
diferentes, como fator de crescimento cultural e de enriquecimento mútuo. Assim,
em nível das práticas educacionais, a perspectiva intercultural propõe novas
estratégias de relação entre sujeitos e entre grupos diferentes. Busca promover a
construção de identidades sociais e o reconhecimento das diferenças culturais. Mas,
ao mesmo tempo, procura sustentar a relação crítica e solidária entre elas.
Os movimentos de base, por meio dos quais se travam as lutas pela
emancipação social e pelo reconhecimento das identidades culturais, propiciam as condições
nas quais se exercitam situações de comunicação, se administram os conflitos e se constroóem
modelos de relações respeitosas;, enfim, processos históricos, nos quais, intencionalmente,
identidades culturais entram em contato entre si e interagem. Tal intencionalidade de em se
firmarem relações entre pessoas de culturas diferentes é o objetivo que se busca nos projetos
educativos, é a principal característica da escola intercultural. Nas palavras de Fleuri
(Ibid.2000, p. 05),:
A relação intercultural indica uma situação em que pessoas de culturas diferentes
interagem, ou uma atividade que requer tal interação. A ênfase na relação
intencional entre sujeitos de diferentes culturas constitui o traço característico da
relação intercultural. O que pressupõe opções e ações deliberadas, particularmente
no campo da educação.
Portanto, a intencionalidade, como pressuposto básico da inter-relação
requerida e seu desenvolvimento em condições respeitosas de valorização das diferenças
culturais, constitui a ênfase da escola intercultural. A partir daí, as concepções de
interculturalidade tendem a divergir, dada a complexidade dos interesses, das bandeiras de
luta e das diferenças regionais. Querer,N no entanto,Assim, querer estabelecer princípios
norteadores para caracterizar uma escola intercultural cai é cair nodescambar para o mesmo
problema da tentativa de definir princípios para classificar grupos culturais como grupos
étnicos,. Ddada a íntima relação da escola intercultural com a complexidade de cada grupo ou
132
povo, o princípio relativista deve, também, ser levado em conta do entendimento desta prática
educativa.
No entanto, o respeito às divergências, principalmente quando relacionadas a
aspectos próprios de cada cultura, não desqualifica o levantamento de características
pressupostos recorrentes e imprescindíveis, em certos contextos, ou sejaisto é, válidos para o
debate sobre escola e interculturalidade. É o caso do diálogo como princípio básico, tal como
discorremos em item anterioranteriormente, diálogo que pressupõe as condições de igualdade
social, pressupõe e o reestabelecimento da dignidade, do bem viver, em situações em que
partes envolvidas na relação estejam submetidas a condições desfavoráveis. O diálogo, na
verdade, torna-se elemento indissociável, confunde-se com a interculturalidade.
Ao diálogo e àa interculturalidade, tal como já nos referimos neste trabalho,
pressupõem condições de autonomia. N, no caso da escola, autonomia daqueles a quem se
destina àa escola, de tal forma que os trabalhos escolares sejam orientados por pedagogias
próprias, envolvendo a participação da comunidade na escola. Participação, entendida como
atuação efetiva das comunidades, na concepção e na implementação da educação escolar,
moldando a escola a partir da cultura da comunidade.
Outros pressupostos são assinalados por Fleuri (Ibid.2000, p. 06),devem ser
considerados. eEntre os quais, a forma como são encaradas as culturas, ou sejaou melhor, é
preciso tê-las como saberes de povos e pessoas históricas., Nnesste caso, a ênfase da educação
é posta nos sujeitos da relação., “
Neste sentido, a estratégia intercultural consiste, antes de tudo, em promover a
relação entre as pessoas, enquanto membros de sociedades históricas, caracterizadas,
culturalmente, de modo muito variado, nas quais são sujeitos ativos (FLEURI, 2000, p. 06)”.
Portanto, a educação intercultural busca desenvolve-se comoconstruir
relaçõesão entre pessoas de culturas diferentes e não entre “"culturas”" entendidas de modo
abstrato. “Valoriza-se, prioritariamente, os sujeitos que são os criadores e sustentadores das
culturas” (Id., IbidFLEURI, 2000, p.05). Subentende-se que, na perspectiva intercultural,
professor e alunos não se limitam a estudar outras culturas como se fossem objetos de estudo
a mais. A, as outras culturas são vistas como modos próprios de grupos sociais verem e
interagirem com a realidade. Fleuri (Ibid.2000, p.06), comentando o pensamento de Antonio
Nanni, caracteriza também, a educação intercultural:
cComo um processo, ou seja, um caminho aberto, complexo e multidimensional,
pois envolve uma multiplicidade de fatores e de dimensões: a pessoa e o grupo
social, a cultura e a religião, a língua e a alimentação, os preconceitos e as
expectativas. A educação intercultural não se reduz a uma simples relação de
conhecimento: trata-se da interação entre sujeitos. Isto significa uma relação de
133
escola faz da linguagem o objeto de uma atenção particular, de uma manipulação consciente,
voluntária e intencional., Éé por meio da linguagem que a criança é levada a interagir com
novas formas sociais e culturais. A linguagem funciona como uma ferramenta, um
instrumento cultural que não pode ser tomadoa de forma isenta., o O domínio prático da
linguagem amplia os ângulos do universo cultural.
Por fim, Cconceber a escola indígena intercultural é admitir culturas diferentes
em “relaçãões”;o, é admitir que, na maioria das escolas em comunidades indígenas ao menos
duas línguas estarão interagindo, delegando outra grande responsabilidade que, por princípio,
cabe ao povo da comunidade avaliar e determinar qual será o grau de participação da língua
indígena e da língua dominante e outras, caso haja, no processo educativo. No entanto, a
tradição escolar, com séculos de sistematização de saberes numa língua nacional - língua na
qual é veiculada as forma de poder, expresso em sua forma escrita - torna-se um fator a mais
de relação desigual na presença de uma e outra cultura na prática educativa. A escola
indígena, para manter-se como intercultural, para os povos que assim o quiserem, precisa
compensar a pressão da língua nacional com o desenvolvimento da escrita nas línguas
indígenas,; mais ainda, deve expandir-se para incluir os conteúdos, os instrumentais
tecnológicos desenvolvidos pela cultura dominante.
Diante de tais condições, torna-se essencial a permanente formação dos
educadores:,
T“talvez o problema decisivo, do qual depende o sucesso ou o fracasso da proposta
intercultural. O que está em jogo na formação dos educadores é a superação da
perspectiva monocultural e etnocêntrica que configura os modos tradicionais e
consolidados de educar, a mentalidade pessoal, os modos de se relacionar com os
outros, de atuar nas situações concretas” (NANNI, 1998 apud FLEURI, 2000,
p.06).
Os educadores, enquanto intelectuais da cultura, através da síntese de saberes
indígenas e não-indígenas, devem ter presente a sua responsabilidade, cuja prática educativa,
por eles organizada, resulta na reconstrução de uma nova identidade indígena.
Responsabilidade que reforça a formação de qualidade para os professores indígenas, cujo
trabalho possa estar mais próximo da educação indígena intercultural, requerida por suas
comunidades. Educadores que sejam capazes de dialogar com diferentes etnias, dominem
diferentes formas de aprender, diferentes linguagens e principalmente, diferentes formas de
compreensão da realidade. Portanto, professores, cujas atribuições os coloca-os, também, em
num entendimento muito mais amplo, como comenta Dias da Silva (1999, p. 67):
O conceito de professor indígena está ligado, como parte integrante, a uma
definição mais ampla: a proposta de uma escola indígena. Significa que seu
trabalho só pode se realizar eficazmente, segundo os ideais afirmados, num modelo
137
realmente indígena de escola e que este só pode ser construído com a participação
efetiva de todos: professores, lideranças, alunos e comunidade indígena.
Outros aspectos se fazem necessários em termos de política educacional, que
extrapolam as condições locais:, a igualdade de oportunidades para os indígenas em qualidade
de ensino, bem como, no acesso aos demais níveis. ;A a superação do caráter monocultural da
escola requer não só repensar as funções, os conteúdos e os métodos da escola, mas, também,
investimentos na produção dos livros didáticos e demais materiais de apoio educativo;. A a
organização da prática educativa requer muitas reservas quanto aos procedimentos de
avaliação que, comumente, transmitem comportamentos alienígenas, criticados, inclusive, nas
escolas não- indígenas.
Enfim, a afirmação étnica entre os povos indígenas, tal como é declarado emm
por meio dosdocumentos, produzido pelo movimento indígena movimentos, compreende
algumas bandeiras comuns preconizadas, na luta pela terra, fator principal para garantia de
condições dignas de bem -viver. Mas Em tais documentos, sobretudo o direito à educação
escolar sempre consta nas pautas de reivindicações de inúmeros encontros regionais,
nacionais e internacionais expressos em diversos documentos, é implícito, como necessário,
para garantir condições de bem -viver, também o direito à educação escolar. Em tais
manifestações por. escolasPara os quais, mesmo que sejacientes de tratar-se de uma
instituição produzida pela sociedade ocidental, e que tenha servido como instrumento de
“civilização” impondo uma cultura alheia à cultura população indígena, para os tempos atuais,
ela é necessária e faz parte da luta por autonomia. PortantoNeste caso, na ótica do movimento,
a educação reivindicada não está restrita somente ao direito à escola, e, sim, a uma escola
ressignificada, que reconheça processos próprios de aprendizagem;, isto é, cada povo ter
direito à sua própria forma de aprender e de ensinar na sua cultura. Trata-se de estabelecer o
diálogo com a cultura hegemônica. A luta pela autonomia, com a contribuição da escola, se
traduz na reivindicação de um processo educativo, que lhes possibilite conhecer o discurso
revelado e velado da sociedade hegemônica, estabelecerndo com ela relações, diferentes da
imposição ou da negação, tal como sempre se praticou com a “escola para índios”.
escolar de cada distrito, organizado por povo ou Terra Indígena, vinculadas ao Órgão Federal
de Educação, instância governamental ao queal compete, constitucionalmente, a defesa e a
proteção dos bens indígenas. Tal autonomia é necessária para que sejam respeitadas as
distintas realidades, a diversidade social, cultural e lingüística dos povos.
A educação escolar, diferenciada e intercultural, organizada de forma a dar
autonomia aos povos no controle deste serviço é recorrente nos documentos do movimento
indígena, tal como manifestam os professores indígenas da Amazônia:
Os órgãos governamentais, não governamentais e instituições de ensino público
têm a obrigação de nos ouvir e consultar, discutindo com nossas lideranças,
organizações e comunidades, antes de formular e implantar políticas e/ou
programas que respondam às demandas e aspirações dos nossos povos e
comunidades, entendendo que os serviços e o atendimento diferenciado que exigem
os nossos povos na educação, e em outras áreas, constituem o reconhecimento dos
nossos direitos originários como povos cultural e historicamente diferenciados
(DECLARAÇÃO DA da II assembléia... GERAL DO CONSELHO DOS
PROFESSORES INDÍGENAS DA AMAZÔNIA, 2002).
completamente diferentes. Isto indica bem a superficialidade dos contatos, que mal
permitiram uma identificação grosseira dos índios.
A limitação de informações sobre os povos indígenas da região persiste mesmo
com os estudos atuais, estando restrita algumas pesquisas, teses e dissertações. Portanto,
embora alguns povos da região, de uma forma ou outra, tenham sido sujeitos de estudo em
dissertações e teses, mesmo assim, não há estudos aprofundados bem como não há fontes
documentais, históricas, que tragam informações consistentes sobre esta população. Esta
ausência de informações é assinalada por Picolli, como resultado da falta de estudos assentes
na história oral destas sociedades; do colonialismo cultural, perpetrado, sutilmente, pelas
instituições e agentes da sociedade nacional; e do, ainda, etnocentrismo teórico e prático dos
pesquisadores e da burocracia administrativa. O mesmo autor, com larga atuação com
assessoria e pesquisa, junto aos povos indígenas na região, detalha, melhor, as dificuldades
quando se trata de descrever sobre as diversas etnias da região:
Em primeiro lugar, há uma carência generalizada de fontes da literatura científica,
sobretudo as de natureza etnológica e etnográfica. A bibliografia disponível
relaciona poucas obras sobre os povos indígenas. Os poucos trabalhos existentes
constituem estudos lingüísticos e históricos; raras vezes, possuem caráter
etnológico. Estes últimos são escassos e de elaboração recente. Resulta daí as
primeiras dificuldades e restrições em se estabelecer, de maneira segura e precisa,
a identidade das diversas etnias oriundas da região e de estabelecer seus
respectivos territórios de ocupação tradicional, bem como de descrever os seus
principais componentes sócio-culturais (PICOLLI, 1993, p. 62).
Feitas as ressalvas, relacionamos, a seguir, os 18 povos indígenas conhecidos
na região, considerando que há povos em isolamento “voluntário”, ou seja, não contatados por
outros grupos. Em termos de classificação lingüística, os 18 grupos étnicos da região estão
distribuídos em 3 famílias lingüísticas: os povos de língua Pano, em maior número no Acre,
são os Huni Kuĩ (Kaxinawá), Shanenawa, Katukina, Kaxarari, Jaminawa, Yawanawá,
Jaminawa Arara, Shawadawa (Arara), Náua, Poyanáwa, Nukiní e Apolima-Arara; os povos
classificados como falantes da família lingüística Arawá, na região, consistem nos Madijá
(Kulina), Jamamadi, e, incluímos também, o povo Kamadeni, embora haja controvérsias, tal
como explicitaremos abaixo, ao nos referirmos a este povo; por fim, os povos de língua Aruak
compreendem os povos Apurinã, Yine (Manchineri) e Asheninka (Kampa).
Em termos territoriais, a situação dos povos indígena na região está distribuída
da seguinte forma: 14 povos no Estado do Acre, em 28 terras indígenas, com pouco mais de
dois milhões de hectares, abrangendo 14,6% das terras do Estado15. Tal percentual reflete a
dimensão das perdas territoriais quando confrontado com os poucos registros históricos e
levantamentos arqueológicos, os quais apontam que a pouco mais de um século atrás, 100%
15
Fonte: KAXINAWÁ, 2002.
139
16
Fonte: CIMI - Regional Amazônia Ocidental.
140
no município de Boca do Acre, AM, com uma população aproximada de trezentas pessoas.
Conforme Rangel (1994, p. 82), o povo Jamamadi aparece na literatura como Yamamadi,
sendo assim denominados por tratar-se de povo habitante das matas de cabeceiras dos
igarapés, em sua língua zama quer dizer mata, e assim permaneceram “gente do mato”.
Mesmo aceitando a denominação, segundo a mesma autora, Jamamadi não é
autodenominação, na língua Jamamadi, gente, ou seres humanos é grafado Madiha, similar a
seus parentes Madijá (Kulina), da mesma família lingüística.
Os territórios originários do povo Jamamadi - embora de uma ou outra forma
os registros estejam associados a seringais que empregavam a mão de obra indígena -
constam, como localizados no sul do Estado do Amazonas, entre afluentes da margem
esquerda do rio Purus. Conforme Rangel (1994, p. 63), comentando a fala de um velho
tuxaua, os Jamamadi:
Saíram das cabeceiras dos rios para as margens dos igarapés maiores em função
dos patrões. No tempo das malocas, o patrão chegava e todos corriam para o mato,
o tuxaua recebia o patrão e fazia as trocas. Com o tempo foram convencidos a
cortar seringa e quebrar castanha e, assim, foram espalhando-se pelas diversas
colocações. Lembra dos cariú que mataram muitos Jamamadi, [...] provocando
muitas fugas.
Conforme retrata a autora, os Jamamadi tiveram seu mundo invadido em
meados do século XIX. Foram compulsoriamente engajados no extrativismo e,
conseqüentemente em atividades comerciais, tendo sido subjugados, ao longo do século XX.
Desse modo, adquiriram hábitos de consumo de produtos industrializados, ferramentas, as
quais, já não podem abrir mão, o que continua a exigir o engajamento em atividades
econômicas com fins, exclusivamente, comerciais. Persiste entre os Jamamadi a forte tradição
na agricultura. Entretanto, as necessidades pós-contato, mobiliza os homens, nos meses de
janeiro a abril, na atividade de coleta da castanha da Amazônia para comércio.
Desde o início da década de 1980, o CIMI desenvolve um trabalho de apoio às
comunidades Jamamadi do município de Boca do Acre, com ações de apoio na educação,
saúde, transporte, desenvolvimento sócio-econômico. Há também, projetos que visam criar
novas alternativas alimentares e econômicas na perspectiva de um desenvolvimento
sustentável para estas comunidades indígenas.
O Povo Kamadeni é muito pouco conhecido. Não há estudos que façam
referência a este povo. As comunidades Kamadeni estão relativamente isoladas, ocupando
imemorialmente uma área localizada entre o médio e alto rio Mamoriá, desde a margem
esquerda do Igarapé Grande na Bacia do Purus, município de Boca do Acre, AM.
Geralmente este povo é alcançado por comerciantes aventureiros, em busca de
142
ganhos vantajosos nas trocas de produtos. Dentre os produtos de interesse dos exploradores
está a extração de madeira, onde os indígenas são explorados, subempregados na atividade de
desflorestamento de suas áreas. Dedicam-se também, na extração de óleos medicinais de
copaíba e andiroba, com os mesmos fins comerciais.
A desassistência oficial, no caso do povo Kamadeni, é agravada pelas
condições geográficas, cujo território situa-se no sul do Amazonas, dificultando a presença de
órgãos oficiais do Amazonas, ao mesmo tempo que não são beneficiados pelo governo do
Acre pelo fato de estarem situados em outra unidade da Federação.
O povo Kamadeni ilustra o grande desconhecimento da complexidade
sociocultural dos povos, sobretudo do sul do Amazonas. Conforme publicação Povos do Acre,
da Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour, em parceria com o Conselho
Indigenista Missionário, o povo Kamadeni faz parte da família lingüística Aruak, ao mesmo
tempo em que os coloca como um subgrupo Deni. Entretanto, Rangel (1994), antropóloga que
se dedicou ao estudo dos povos da região situa os Deni na família Arawá, motivo pelo qual os
situamos como tal. Ainda quanto à carência de informações, Rangel (1994, p. 12) comenta:
O quadro atual da população indígena da região onde encontram-se os Jamamadi,
[inclusive os Kamadeni, sul do Amazonas] mostra não apenas a complexidade
étnica mas, e principalmente, a imprecisão das referências históricas e etnográficas
para que seja possível compreender estes povos; o que se tem nos dias de hoje é
resultado dos deslocamentos sucessivos de parcelas destas populações, nas direções
mais variadas, cujo resultado histórico é o distanciamento entre as inúmeras
aldeias que compunham cada um dos povos da região.
Assim, do pouco que se conhece do povo Kamadeni, sabe-se que se trata de um
subgrupo Deni e sua população é estimada em 64 famílias, distribuída em 14 famílias
nucleares. Como afirmamos acima, caracteriza-se pelo isolamento, ocupando sempre o alto
dos igarapés. Possuem uma economia de subsistência, embora seja reduzida a variedade de
cultivos que desenvolvem.
O povo Apurinã, da família lingüística Aruak, se autodenomina Popingaré ou
Kangitê, habitam a região ao longo do Rio Purus e seus afluentes. Devido a organização
social do povo Apurinã se dar em pequenos grupos familiares, atualmente eles estão dispersos
em 23 Terras Indígenas, em sete municípios no estado do Amazonas. As comunidades
Apurinã, na região de nosso interesse, estão situadas nos municípios de Boca do Acre, AM e
Pauini, AM, com uma população próxima a duas mil pessoas, distribuídos em 10 Terras
Indígenas.
Tal como os demais povos indígenas da Amazônia ocidental, os Apurinã foram
contatados, pelos não-índios, na segunda metade do século XIX. Mais precisamente, a
143
invasão dos territórios Apurinã pelas empresas seringalistas consolida-se na década de 1870,
forçando os Apurinã a se tornarem seringueiros, castanheiros, entre outras ocupações de
interesse das frentes extrativistas.
O engajamento forçado na economia extrativista desarticulou a organização
sociocultural próprio deste povo. Foram forçados a abandonar a cultura apurinã, até mesmo a
língua materna, tornando-se dependentes da economia regional. Conseqüentemente, muitos
Apurinã têm migrado para as cidades de Boca do Acre, AM e Rio Branco, AC em busca de
melhores condições de vida.
Para as famílias que permanecem nos territórios tradicionais, o extrativismo,
hoje constitui-se em atividade essencial, especialmente a coleta da castanha, palhas e
sementes de palmeiras com as quais fabricam seus artesanatos. A ampliação da produção de
artesanatos, sobretudo a produção de ornamentos, é um incentivo como alternativa
econômica, ao mesmo tempo em que contribui para a afirmação da cultura Apurinã.
São do povo Apurinã algumas das lideranças expressivas do movimento
indígena da região, dentre elas, Antonio Apurinã, um dos fundadores da UNI, instituição que
coordenou por vários anos e, atualmente, suplente de Senador da República, no mandato da
Senadora Marina Silva e atual Diretor de Assistência da Funai, em Brasília.
O povo que se autodenomia Yine, de língua Aruak, foi identificado e ficou
regionalmente conhecido como Manchineri. Habitam, no Brasil, a Terra Indígena
Mamoadate, compartilhada com o povo Jaminawa, às margens do rio Purus, nos municípios
de Sena Madureira, AC e Assis Brasil, AC, com uma população aproximada de quinhentas
pessoas. A terra Indígena Mamoadate, identificada e delimitada em 1977 pela Funai e
demarcada em 1985, consiste na maior Terra Indígena do Acre, com 317.647 hectares.
Situada, mais precisamente, na margem direita e esquerda do rio Iaco, a partir do Igarapé
Mamoadate, indo até a fronteira do Brasil com o Peru.
Apesar do território vasto, esta terra situa-se numa região onde não há produtos
tradicionais de extrativismo, de comercialização imediata, tais como: seringa, caucho e
castanha. Fato que tem suscitado uma questão crucial para esta população e órgãos
indigenistas, no tocante a alternativas econômicas que garantam renda para aquisição de
produtos que atendam suas necessidades básicas.
Outro aspecto de implicações socioculturais para o povo Yine, é o problema da
Terra Indígena compartilhada com os Jaminawa. A demarcação do território pelo órgão
indigenista desconsiderou a possibilidade do surgimento de problemas com as diferenças
tanto culturais quanto a rivalidades do passado. O povo Yine, caracterizado como povo
144
guerreiro, é acusado de, no passado, ter atuado como colaborador nas correrias sofridas pelo
povo Jaminawa, embora, em situações formais, estes fatos não afetem as relações.
Caracterizaram-se também como, caçadores, pescadores e, eventualmente,
agricultores. Na cultura tradicional do povo Yine, foi distintivo a confecção e uso de uma
indumentária em algodão, similar a um “poncho”, comum entre os povos andinos, similar,
também, a indumentária do povo Asheninka, da mesma família lingüística. A Similaridade é
apenas para os não-índios, uma vez que entre os povos há distinções marcantes entre a
indumentária de um e outro.
Dentre as lideranças atuais do povo Yine (Manchineri), destacamos na
educação, o professor Jaime Manchineri, cursando Pedagogia Indígena na Universidade
Estadual do Mato Grosso. Outra liderança de destaque é Sebastião Haji Manchineri,
coordenador Geral da Coordinadora de las Organizaciones Indígenas de la Cuenca
Amazónica (COICA) instância de coordenação das Organizações Indígenas da Bacia
Amazônica, abrangendo Venezuela, Colombia, Ecuador, Perú, Bolivia, Guyana Francesa,
Guyana Holandesa, Suriname e Brasil.
O povo Asheninka, ou Ashaninka, foi denominado pelos não-indígenas pelo
nome Kampa. Embora tenha sido um termo amplamente utilizado, Kampa não é aceito como
denominação para este povo. A autodenominação Asheninka, significa, em sua língua, “Seres
Humanos” ou “Nossa Gente”. Os Asheninka ou Ashaninka, pertencente ao ramo ocidental do
família lingüística Aruak. Juntamente com outros povos situados no Peru, formam a
população pré-andina.
No Brasil, a população Asheninka é estimada em, aproximadamente, mil
pessoas. Ocupando um conjunto de áreas que somam mais de trezentos mil hectares, situadas
no Vale do rio Juruá, Estado do Acre. Das 05 terras indígenas Asheninka no Acre, duas são
compartilhadas com outros povos indígenas. No município de Feijó, AC: a terra indígena
Jaminawa do rio Envira é compartilhada com o povo Madijá e, no mesmo município, a terra
indígena Kampa e isolados do rio Envira, neste território, além da população Asheninka há
povos isolados. As outras terras Asheninka estão situadas no município de Tarauacá, AC: terra
indígena Kampa do igarapé Primavera; e no município de Marechal Thaumaturgo, AC: terra
indígena Kampa do rio Amônia, e a terra indígena Kaxinawá/Ashaninka do rio Breu
compartilhada com o povo Huni Kuĩ.
Relatos históricos indicam que os Asheninka vieram do Peru, no final do século
XlX, durante a “febre da borracha”, possivelmente, em busca do comércio com patrões que
lhes fornecessem mercadorias e armas. Há relatos de que o deslocamento para o Alto Juruá,
145
hoje território brasileiro, tenha sido por incentivo de caucheiros peruanos. Por ser um povo
reconhecidamente guerreiro, ao ser incorporado ao sistema seringalista, foi forçado a realizar
“correrias” contra os povos de língua Pano que dificultavam a exploração da seringa na
região, onde, hoje, é o Acre.
Inseridos na conjuntura do avanço extrativista, estiveram, também, sujeitos aos
patrões seringalistas, os quais se valeram das divergências tradicionais entre povos,
patrocinando o acirramento de guerras; prática que culminou na dizimação do povo
Amawaka. Em troca desse serviço, recebiam produtos manufaturados, tornando-os
dependentes da sociedade envolvente.
A rivalidade com possíveis remanescentes dos Amawaka isolados, persiste até
hoje, sobretudo com a parcela maior dos Asheninka, que chega a 40 mil, situados no Peru. No
primeiro semestre de 2003, a imprensa noticiou episódio de enfrentamento entre Asheninka e
índios isolados, em região próximo à fronteira entre Brasil e Peru, resultando em mortes e
mobilizando autoridades de ambos os países. No relato vindo das comunidades, os isolados
confrontados seriam remanescentes dos Amawaka.
Uma característica do povo Asheninka é a mobilidade, no verão amazônico, as
famílias costumam viajar dias ou meses, para visitar parentes e realizar trocas ritualizadas,
chamadas ayumpari, ou mesmo para acampar nas praias, para pescar e coletar ovos de tracajá.
Por esse motivo são chamados pelos regionais de “povo de arribação”. Já as comunidades no
Brasil adquiriram características mais sedentárias, como o caso dos Ashaninka do rio Amônia,
que estabeleceram fortes relações com sua terra e com os regionais.
A cultura material Asheninka é um de seus maiores orgulhos, pois, apesar do
longo período de contato com os caucheiros e seringueiros, mantém grande parte de seu
artesanato que obedecem a critérios de funcionalidade, podendo ser dividido em
indumentárias, equipamentos domésticos, instrumentos musicais e armas, confeccionados
com diversas técnicas e matérias-primas. Produção artística que desperta interesse entre os
não-índios, tornando-se uma das suas principais fontes econômicas.
Os Asheninka se mostram austeros com os brancos, principalmente com
estranhos. Atitude que permite manter a organização sociocultural das comunidades em
padrões próprios. A manutenção de sua cultura não os tem impedido no investimento em
projetos que garantam melhorias ao povo; é o caso dos Ashaninka do rio Amônia, os quais,
através da associação Apiwtxa, vêm implantando projetos de desenvolvimento sustentável que
visam melhorar a qualidade de vida de suas comunidades. Mais recentemente, em meados de
2003, em parceria com ONGs, esta comunidade foi interligada num sistema de rede via
146
os Poyanáwa, pelo que se tem conhecimento, foram os primeiros e ao, que tudo indica
também os únicos que tiveram escola, no início do século XX, por iniciativa do Governo de
Cruzeiro do Sul, em 1914. Tratava-se de uma escola primária, onde as crianças e os adultos
Poyanáwa recebiam instrução. Os registros destacam a facilidade com que adquiriam o
conhecimento dos “civilizados”, porém, não há informações se a referida escola funcionou
por muito tempo.
Nos tempos atuais, a subsistência dos Poyanáwa têm base forte na agricultura.
Cada família nuclear possui sua roça, produzindo, principalmente, para o consumo familiar.
Integrados à economia regional, vendem farinha, galinha, ovos e porcos, conforme o sistema
de comércio da região, ou seja, a intermediários de Cruzeiro do Sul ou dos povoados
próximos da comunidade Poyanáwa, adquirindo, em contrapartida, roupas, sal e outros
produtos. Ainda com relação a produtos para comércio, a extração da seringa continua sendo
uma prática na região. A pesca a caça deixaram de existir desde a década de 1970, quando já
era quase inexistente em função das povoações não-indígenas estabelecidas na região há
muitas décadas.
Os Poyanáwa mais velhos ainda se referem às festas e aos rituais antigos, os
quais hoje não são realizados. As festividades realizadas, atualmente, nos aniversários e nas
brincadeiras (baile), contando com a participação dos vizinhos não-indígenas, refletindo o
bom relacionamento entre a comunidade indígena e a sociedade envolvente. Quanto à
organização sociocultural, já não existe lideranças religiosas ou políticas, nos moldes
tradicionais da cultura Poyanáwa. Tal como para os demais povos da região, têm especial
relevância na organização política das comunidades indígenas atuais as associações indígenas
locais.
O povo Náua foi dado como extinto em 1904, coincidindo com a instalação da
Prefeitura Departamental do Alto-Juruá, data da qual se teve o último registro desse povo,
cujo território situava-se às margens do rio Juruá, onde se estabeleceu a cidade de Cruzeiro do
Sul, AC. A população não indígena de Cruzeiro do Sul assimilou e ressignificou a expressão
“Naua”, atribuindo à cidade o título de “Terra dos Nauas”, expressão comum nas casas
comerciais e produtos da região. Considerando o povo extinto, permaneceria exclusivo o novo
sentido dado à expressão.
Em 1999 o CIMI fez contato com uma comunidade situada no Parque Nacional
da Serra do Divisor, cuja população se auto-reconhecia como indígenas, remanescentes dos
Náua. A partir de então, desencadeou-se a luta pelo reconhecimento étnico e pela
regularização da terra, na margem direita do rio Moa, reivindicada por esta comunidade
150
Shawadawa. Tais lutas fizeram com que indivíduos de outros povos se integrassem ao povo
Shawadawa.
A região atualmente habitada pelo povo indígena Shawadawa era território
dos grupos Pano e Aruak. A exploração e ocupação efetiva do território pelos seringalistas
ocorreu a partir das duas últimas décadas do séc. XIX. Desde então, os Shawadawa estiveram
sob o jugo dos patrões em atividades voltadas para a produção da borracha, na relação de
dependência do sistema de barracões. Apesar disso, os Shawadawa mantiveram um padrão
próprio de vida, na cultura Shawadawa.
A desagregação imposta pelos patrões, a depreciação decorrente do preconceito
e as precárias condições de vida na terra indígena, fizeram com que, na década de 1980,
muitos Shawadawa migrassem para as cidades, principalmente, Cruzeiro do Sul. Há
entretanto, nos últimos anos, um esforço coletivo pela permanência na terra indígena bem
como iniciativas para revitalização de valores socioculturais do povo. Preocupações
justificadas como condição para preservação da terra indígena que vem sofrendo constantes
invasões por não-indígenas.
O povo Jaminawa Arara constitui um grupo formado por descendentes dos
povos Jaminawa e Arara que, com o declínio da empresa extrativista, permaneceu nas
cabeceiras dos rios Tejo, Bagé e Humaitá, afluentes do rio Juruá. Essa junção de indígenas de
povos diferentes é resultado do avanço indiscriminado das frentes extrativistas que
provocaram um intenso processo de depopulação e dispersão dos Jaminawa e dos Arara do
vale do Juruá, processo que jogou esses indígenas na experiência do individualismo e
isolamento do sistema extrativista. Fatos que marcaram profundamente as famílias, levando,
no momento de reagrupamento, a uma solidariedade mais por parentesco do que por povo.
Portanto, dos casamentos interétnicos entre os Jaminawa e os Arara constitui-
se um novo povo: o Jaminawa Arara, que obteve o reconhecimento como povo e o
conseqüente direito a seu território, pela Funai, em 1978. Pertence à família lingüística Pano.
Atualmente o Português é a língua falada em suas comunidades e somente as pessoas mais
velhas sabem a língua tradicional Jaminawa Arara. O território deste povo localiza-se na
região do Alto Juruá, no município de Marechal Thaumaturgo, na Terra Indígena Jaminawa
Arara do rio Bagé, com uma extensão de 28.928 hectares. Está demarcada e homologada. A
população total é de aproximadamente 200 pessoas.
Os Jaminawa Arara praticam a agricultura de subsistência, tendo a caça e a
pesca entre as atividades mais comuns de subsistência. Como atividade econômica de
produção para o comércio, as famílias se envolvem no processo de produção da farinha de
153
região contra as forças adversas. Convém destacar, em parte, como fruto da combatividade
desta organização, a eleição de uma de suas lideranças para uma vaga na Câmara de
Vereadores de Feijó, representando os interesses indígenas junto ao poder legislativo do
município onde se situa a terra indígena Katukina-Kaxinawá e outras seis terras indígenas.
O povo Jaminawa é originário do médio rio Ucayali, no Peru, região onde
habitavam vários grupos de família lingüística Pano. Com a chegada dos peruanos e suas
práticas violentas para exploração do caucho nos territórios indígenas, vários grupos foram
obrigados a formar um só povo com a denominação Jaminawa. Esta junção de grupos, alguns
com antigas rivalidades, dificultou a convivência, tendo como resultado uma característica
marcante deste povo, que é a divergência interna.
A pressão exercida pelos invasores resultou no deslocamento do povo
Jaminawa para a região do rio Juruá, alguns forçados a trabalhar na exploração do caucho e
da seringa e outros fugindo das ações armadas dos exploradores. Aliciados pelos patrões,
trabalharam, também, como caçadores para o comércio de pele de animais silvestre, como
mateiros florestais, nas aberturas de estradas de seringa e varadouros de escoamento de
produtos. Trabalharam, ainda, como remadores e varejadores nos barcos dos patrões. Sempre
mantiveram a agricultura de subsistência, servindo, também, como mão-de-obra nos grandes
roçados dos patrões.
Na década de 1970, com a instalação da Funai no Acre, este povo encontrava-
se debilitado por repetidas epidemias, em situação de desorganização sociocultural devido ao
processo de exploração econômica a que foram submetidos; ocasião em que a maioria dos
Jaminawa se instala na terra indígena Mamoadate, compartilhada com o povo Yine
(Manchineri), situada nos municípios de Assis Brasil e Sena Madureira.
As comunidades na terra indígena Mamoadate contam com uma população
aproximada de 660 pessoas. Na região do Juruá permaneceram grupos Jaminawa, onde está
situada a terra indígena Jaminawa do Igarapé Preto, município de Rodrigues Alves, com uma
população aproximada de 200 pessoas.
Tanto pelos atropelos da empresa seringalistas, quanto pelos conflitos internos,
prevaleceu uma característica marcante entre o povo Jaminawa, que é o seminomadismo.
Atualmente, ainda é comum as freqüentes mudanças, e a dispersão de famílias, quase sempre
motivadas pelas divergências internas. As mudanças também podem ser motivadas pela morte
de um membro da família nuclear, a fim de afastar as lembranças do falecido, ou, ainda, para
realizar passeios, para visitarem seus parentes, principalmente na época das praias, no verão
amazônico.
158
17
O termo é usado aqui no sentido de os povos conquistarem a capacidade de construir, por si próprios as
respostas aos desafios, e conceber, de forma autônoma, projetos de interesse de suas comunidades por meio de
estratégias e recursos organizacionais próprios.
160
Alguns aspectos são notáveis, os quais poderíamos considerar como posições radicalizadas,
talvez aquilo que já seja consenso, como inegociável, como o caso do direito à terra. De outra
forma, poderíamos dizer que são diferentes os caminhos, os modos de fazer política para se
obter o atendimento tanto de pleitos particulares como de direitos coletivos.
No caso da educação escolar, esta se tornou um instrumento indispensável nos
modos atuais de resistência. Ler, escrever e contar são ferramentas indispensáveis, não para
todos os indígenas, mas cada comunidade precisa de pessoas que conheçam estes
instrumentos, sobretudo, para relações comerciais. Indispensável, também, para a função de
liderança nas comunidades com contatos mais freqüentes com os não-índios, para que possam
desempenhar seu papel, com mais autonomia, e assegurar o respeito e autoridade diante da
nova geração de letrados. A partir destas demandas a questão se diversifica, à escola é
delegada diferentes atribuições, sobretudo quando o indígena fala a partir de seu povo ou de
sua comunidade, ou, ainda, do grau de relações com a sociedade regional.
Quanto à atuação do movimento, ela está inserida na realidade dinâmica a que
estão inseridas as comunidades indígenas. Os novos contextos demandam novas respostas,
como afirma Picolli (1993, p. 45): Na prática, as relações de resistência modificam-se,
reestruturam-se e transformam-se de acordo com as condições e natureza do enfrentamento
entre sociedades, classes ou etnias em relação.
A complexidade descrita acima, compreende as situações “externas” a serem
enfrentadas pelo movimento indígena. Há, contudo, “entre” a população indígena regional um
universo plural, com diferenças substanciais entre povos, entre comunidades de um mesmo
povo e entre famílias numa comunidade. Tanto os anseios quanto os caminhos, para se
alcançar as condições de bem viver, tendem a destoar entre os grupos, compreendendo outra
gama de situações e interesses, desafiando a manutenção o poder de mobilização dos
representantes desta diversidade em torno de lutas coletivas.
Visivelmente, a unidade de luta, apesar da diversidade interna, é mantida numa
linha tênue, assegurada, substancialmente, nas bandeiras políticas que dizem respeito ao
interesse da maioria dos indígenas. Não se pode negar a habilidade política das lideranças
mais experimentadas; o exercício da tolerância, a orientação pelo princípio da eqüidade e
igualdade na relação entre etnias e a priorização pelo enfrentamento, no “atacado”, de
problemas comuns a todos, garantindo às organizações indígenas o poder de mobilização das
forças vivas entre os povos indígenas, dando corpo ao “movimento indígena”.
Historiando melhor a consolidação deste movimento, sobretudo na Amazônia,
ele surge a partir da década de 1980 quando as reivindicações de direitos das populações
162
diferentes etnias, em terras a regularizar no Acre e sul do Amazonas. Junto a esta prioridade
da terra está o avanço e conseqüente fortalecimento do movimento, traduzido na
conscientização dos povos sobre a importância da organização dos povos indígenas em
associações, buscando o fortalecimento capaz de garantir sucesso nas reivindicações
(JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
Avançando para outros setores, as organizações indígenas assumiram, como
principal atribuição: o controle social das políticas de atendimento às comunidades indígenas.
Neste aspecto, são destacadas ações em várias frentes. Inicialmente, foi preciso lidar com a
dispersão geográfica, neste caso, para exercer tal controle social, foi implantada uma cadeia
de rádio, interligando aldeias, sedes de associações, pólos base de saúde e UNI. Funcionando
com placas solares, o sistema de rádio é de grande utilidade, também, em casos de
emergência, envolvendo doenças e denúncias de invasão de terras.
Numa outra área, o movimento, por meio das organizações e associações, tem
implantado vários programas visando a auto-sustentabilidade como alternativa de subsistência
ao extrativismo; projetos na área da agricultura, piscicultura e artesanato, tanto na produção
quanto na comercialização. Outra prioridade, dentre as ações do movimento, representada
pelas organizações, está a preocupação com o meio ambiente. Nesta área estão em curso
ações que visam a capacitação de indígenas na legislação ambiental para que possam atuar
contra ações criminosas. A atuação na área da saúde é outra área que mobiliza o movimento.
Oficialmente, a UNI é co-responsável pela saúde nas comunidades indígenas, por meio de
convênio firmado com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), onde os indígenas participam
das decisões de como deve ser a prestação de serviços. Conforme as lideranças do
movimento:
A UNI é a primeira ONG indígena a trabalhar com a saúde do índio, direcionando
as atividades de modo a respeitar a cultura e firme propósito de não lidar com
doenças e sim com prevenção. O resultado tem sido uma redução considerável no
número de óbitos por diarréias, desidratação, infecções respiratórias e outros males
que podem ser prevenidos mediante a adoção de cuidados (JORNAL DO ÍNDIO,
abr. 2002).
No fazer política, o movimento não dispensa a ocupação de postos-chave em
instâncias de decisão e condução de ações que afetem a população indígena. A atuação do
movimento é ilustrada em situações como a reproduzida em jornal local:
Foi a primeira vez, em cem anos de história do Acre, que os índios subiram as
escadarias do Palácio Rio Branco para debater com o governador as políticas
públicas que lhes interessam. "Muitos governadores até diziam que no Acre não
haviam índios", reconheceu Francisco Avelino Apurinã, o "Chico Preto", presidente
da UNI (União das Nações Indígenas). As lideranças indígenas entregaram ao
governador um documento com uma série de reivindicações, entre as quais a
criação de uma secretaria para tratar de assuntos indígenas além da implantação
166
e política.
Com as conquistas até então obtidas e sabedores de seus direitos, o acesso à
educação escolar passa a constituir possibilidade para as comunidades indígenas, até então
visto como sonho distante. Desejo, sobretudo, das comunidades localizadas próximo aos
centros urbanos. Neste caso, a relevância da escola é inquestionável, considerando a relação
desigual com os “brancos”, confronto, no qual, freqüentemente são ridicularizados e
explorados, tanto no pagamento do trabalho e da produção indígena, quanto na compra de
produtos pelos indígenas. Um depoimento indígena ilustra bem a situação:
O patrão enganava muito nosso chefe, porque nesse tempo ninguém tinha o
conhecimento dos brancos. O patrão não queria que nenhum filho dos índios
aprendesse a ler e escrever. Se o índio aprendesse a ler, ele não ia mais conseguir
enganar nas contas. A intenção do patrão era ficar roubando os índios para
continuar com eles sempre no cativeiro. Ele roubava no peso da borracha, na diária
e no preço das mercadorias (Antonio Olavo Eukutsy Apurinã, In: KAXINAWÁ,
2002, p. 106).
A escola vai acompanhar todo o processo de luta dos povos indígenas. O
surgimento das organizações indígenas e o próprio movimento como um todo estará
associado à escola e ao fato de indígenas assumirem a função de professor. Joaquim Paulo
Maná Kaxinawá, um dos professores mais antigos e referência nacional pela sua atuação e
pelas suas publicações, comenta que:
Foi nos cursos de formação de professores que tivemos a visão de começar a fundar
o movimento indígena, as associações e as próprias organizações locais, de acordo
com a realidade de cada povo. Essas novas formas de organização vêm procurando
abrir novas alternativas econômicas para o desenvolvimento de comunidades que
sempre foram dominadas pelos patrões dos seringais. (KAXINAWÁ, 2002, p. 133).
Mesmo com a consolidação da UNI - enquanto principal instância política,
mediando as demandas políticas em questões relativas a terra, a projetos econômicos de
subsistência, trabalho com saúde, educação escolar e revitalização cultural - com o avanço das
conquistas as respostas requeridas do movimento passam a ser mais especializadas, as novas
exigências levam o movimento a criar organizações setoriais. É o caso da educação escolar,
neste âmbito, sobretudo com a ampliação do número de professores indígenas, estes, na
medida em que vão ampliando a compreensão do papel da educação escolar nas comunidades
indígenas, e do seu papel como executores de políticas de educação, associam-se com vistas a
responder melhor às responsabilidades que lhes são impostas. Desse modo, um primeiro
grupo de 35 professores, formados pelo magistério indígena na Escola da Floresta da
Comissão Pró-Indio, criam a Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), em
2000, no intuito de promover a educação escolar indígena coerente com os interesses e
necessidade das comunidades e, ao mesmo tempo, exercer o papel político, intervindo nos
169
acenando com a perspectiva de, uma vez conquistada a formação escolar em todos os níveis,
estarem aptos a contribuir com seus líderes no enfrentamento e resolução dos diferentes
problemas que enfrentam nossos povos nos diferentes níveis de sua vida: terra, alternativas
econômicas, cultura, recursos naturais, organização social, educação, saúde etc
(MANIFESTO da V Assembléia..., 2002).
O movimento de estudantes no Acre, a exemplo do Amazonas, por um lado,
converge para opinião dos órgãos representativos do movimento indígena como um todo,
sobretudo quanto ao papel da educação escolar, que está na capacitação de gestores indígenas,
que contribuirão para autonomia das comunidades indígenas e para a viabilização de seus
“projetos de futuro”. Por outro lado, considerando uma das primeiras dificuldades enfrentada
pelos estudantes indígenas - o preconceito - o movimento dos estudantes busca meios de
contrapor e atacar o problema da discriminação e do preconceito que sofrem os estudantes
indígenas nas escolas da cidade (MANIFESTO da V Assembléia..., 2002).
Os estudantes têm provocado o debate do movimento indígena com instituições
indigenistas, órgãos governamentais e, sobretudo, universidades, sobre a qualidade da
educação escolar proporcionada nas comunidades indígenas; a formação de professores e
formação de profissionais em outras áreas. Neste debate, é posto em pauta, as medidas
compensatórias e a possibilidade de vir a ser instituído um sistema de cotas nas universidades
para estudantes indígenas na Amazônia ou, ainda, outras alternativas que garantam o acesso
da população indígena a diferentes formações universitárias.
Também o movimento de mulheres indígenas vem tendo ação destacada, tanto
no movimento indígena quanto no conjunto do movimento de mulheres da Amazônia. Cientes
da relevância do conjunto do movimento, as mulheres indígenas não promoveram um
movimento contraposto ou isolado do conjunto das lutas do movimento indígena, dirigidas,
até pouco tempo, majoritariamente por homens. Ou melhor, consideram que a luta das
mulheres será mais forte se estiverem juntas com os homens na mobilização, sem
desconsiderar sua especificidade. Desse modo, partindo de organizações de mulheres
indígenas nas comunidades, estão conquistando espaço político no movimento indígena como
um todo. Conforme a UNI:
Outro ponto de destaque nas conquistas obtidas em 11 anos de criação da UNI foi a
abertura de espaço para que as mulheres indígenas pudessem participar das
decisões políticas, com representantes de diversas organizações de mulheres
indígenas atuando diretamente na UNI, defendendo o ponto de vista feminino em
todas as áreas do movimento indígena (JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
O movimento de mulheres indígenas tem atuação destacada no apoio à
produção de utensílios e ornamentos - a arte indígena - atividades que envolvem habilidades
171
das mulheres na maioria dos povos. Neste aspecto, caracterizado como cultura material,
reflete-se, também, o aprimoramento da atuação do movimento, com pesquisas conduzidas
pelo movimento de mulheres, visando a produção, a valorização e aproveitamento como fonte
de renda. As pesquisas conduzidas por este segmento do movimento visam, também, a
população indígena vivendo nas cidades, buscando descrever as condições sócio-econômicas
das famílias indígenas que optam por viver nas zonas urbanas não-indígenas. Conforme a
UNI:
A preocupação sobre a realidade indígena é outra prioridade da UNI, que
recentemente coordenou um censo para saber em que situações vivem os indígenas
que moram na Capital. A pesquisa realizada pelo Movimento de Mulheres do Acre e
sul do Amazonas durante dois meses, identificou 440 famílias e aproximadamente
2.250 indígenas morando em Rio Branco e cerca de 8 Jaminawa esmolando nas
ruas do centro. A mesma pesquisa será feita também nas cidades de todos os
municípios e nas comunidades está sendo feito um estudo minucioso sobre nutrição
(JORNAL DO ÍNDIO, abr. 2002).
A defesa dos povos isolados é uma preocupação do movimento, à medida que
aprofunda e especializa suas ações políticas, no intuito de manter o controle social sobre as
ações que digam respeito aos povos indígenas. As ações, em defesa aos povos isolados, vêm
associadas à articulação entre os movimentos indígenas das regiões de fronteira: Bolívia,
Brasil e Peru, constituindo a região MAP, correspondendo ao Departamento de Madre de
Dios, no Peru; estado do Acre, no Brasil; e Departamento de Pando, na Bolívia.
Esta articulação entre organizações indígenas dos três países, mais
precisamente Federación Nativa de Madre de Dios (Peru), União das Nações Indígenas do
Acre (Brasil) e Organizações Indígenas de Pando (Bolívia) insere-se num contexto mais
amplo de articulações de instituições governamentais e não-governamentais, universidades e
centros especializados das regiões. Articulação que vem abordando temáticas distribuídas em
questões de: equidade social, preservação ambiental, desenvolvimento econômico e política e
legislação. Temáticas que afetam a população indígena pelo fato de muitas terras indígenas
dos três países estarem localizadas em área de fronteira, sobretudo de povos isolados. Desse
modo, as relações são necessárias para que sejam garantidas políticas públicas comuns nos
três países. Políticas que resguardem os direitos dos povos indígenas.
No âmbito da promoção das culturas indígenas na região, o governo do estado
do Acre, no intuito de realizar eventos que visualizem a cultura regional, principalmente
relacionado à população da floresta, tem dado suporte à realização de Encontros de culturas
indígenas. Nestes encontros, é viabilizado o deslocamento de comissões dos 18 povos da
região para que realizem uma festa cultural em Rio Branco, AC, onde, no período de uma
semana, apresentam suas tradições artísticas, danças, cantos e cultura material (artesanato).
172
cultura, tem base nas tradições, nas cosmovisões, nas línguas e tudo isso precisa ser
compreendido em conjunto. A escola é uma instituição que faz sentido para a vida
dos povos indígenas em um contexto de contato com a sociedade envolvente, quando
serve de instrumento a favor de suas lutas. A escola deve proporcionar os
conhecimentos necessários para a compreensão das estruturas da sociedade
majoritária, os caminhos para a conquista e garantia dos direitos e da autonomia
(CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 1999).
A Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC) é uma organização não-
governamental, constituída para atuar no indigenismo no estado do Acre, criada em 1979. Na
educação escolar obteve reconhecimento pela sua atuação, sobretudo a partir de 1983, com o
início de um projeto de formação de professores indígenas pertencentes a diferentes povos,
alcançando a formação, em nível médio, de 35 professores, em 2002. Esta experiência teve
origem, em primeiro plano, para responder as expectativas indígenas, na alfabetização em
língua portuguesa, na língua indígena e noções básicas de matemática. Entretanto, com o
aprofundamento dos estudos na construção coletiva entre indígenas e instituição de apoio, o
programa de formação de professores tornou-se “Uma Experiência de Autoria”, expressão
que denominou o projeto.
Ainda na relevância para a educação, a CPI/AC construiu e obteve o
reconhecimento oficial da Escola de Formação de Professores, obtendo, ainda o registro
oficial do Magistério Indígena. As atividades da CPI/AC, voltadas para atender demandas de
melhoria da qualidade de vida, nas comunidades indígenas, são, hoje, definidas com a
seguinte finalidade:
Apoiar as sociedades indígenas, especialmente no Acre, em suas lutas atuais pelo
exercício dos direitos relativos à terra, saúde, educação e meio ambiente, por meio
de ações de formação de professores e agentes agroflorestais indígenas
(COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE, 2001, p. 10).
A atuação destas organizações assim como o COMIN, que mantém um
trabalho significativo na assessoria jurídica às organizações indígenas, contribuíram
decisivamente, para o avanço do movimento indígena. Portanto, graças ao apoio de tais
instituições, o movimento indígena avançou para o estágio atual de autonomia.
Em 1988, a população indígena brasileira conquista direitos na Constituição
Federal, que constituem uma postura diferencial da até então prevista como tratamento pelo
Estado brasileiro para com os povos indígenas, conforme parecer do Conselho Nacional de
Educação:
A nova Constituição inovou ao garantir às populações indígenas o direito tanto à
cidadania plena (liberando-as da tutela do Estado) quanto ao reconhecimento de
sua identidade diferenciada e sua manutenção, incumbindo o Estado do dever de
assegurar e proteger as manifestações culturais das sociedades indígenas. A
Constituição assegurou, ainda, o direito das sociedades indígenas a uma educação
escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngüe, o que vem sendo
regulamentado através de vários textos legais. Com o capítulo VIII, do Título VIII,
176
18
BRASIL, Decreto Presidencial nº 26, 1991.
19
BRASIL. Portaria Interministerial n° 559,1991.
20
BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 60, 1992.
178
21
BRASIL. Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, 1998.
22
BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 3, 1999.
180
autorização para o funcionamento das escolas indígenas e, ainda, o seu reconhecimento, esta
Resolução define como competência dos Conselhos Estaduais de Educação.
Direcionando a reflexão sobre as políticas públicas, visando a execução da
educação escolar indígena para a região, na qual situamos o presente estudo, embora
atentemos para Amazônia ocidental nesta pesquisa, detemo-nos à política de educação escolar
indígena, concebida pelo governo do estado do Acre. Para ser mais completo, implicaria em
fazer o levantamento das políticas municipais do sul do Amazonas, do noroeste de Rondônia e
municípios do Acre. Entretanto, no geral, ou os governos municipais não fazem diferença
entre comunidade indígena e comunidade rural, ou têm posturas anti-indígena. Resta o poder
público estadual, como instância governamental possível para se negociar a viabilização de
políticas públicas, ao menos em educação escolar, junto às comunidades indígenas. Mesmo
assim, as ações que podem ser consideradas como atividades, realmente voltadas para a
construção de políticas públicas em educação escolar indígena, no Estado do Acre,
acontecerão, apenas, a partir do ano 2000.
Portanto, apesar do pioneirismo do Acre com a “experiência de autoria”,
projeto construído pela CPI-AC, ter se tornado uma referência nacional, o referido projeto
alcançou apenas uma parcela pequena de comunidades. Na prática, nas décadas de 1980 e
1990, as iniciativas em educação escolar, em terras indígenas, foram, substancialmente,
escolas categorizadas como escolas rurais vinculadas aos municípios e ao estado.
Houve alguns ensaios, na década de 1990, visando o atendimento diferenciado
às especificidades indígenas. Assim, por pressão dos órgãos indigenistas, foi aberto vagas
para indígenas, em concurso publico realizado pelo Estado em 1992, onde foram admitidos
indígenas como professores bilíngües, em caráter precário, pelo fato de tais professores ainda
não disporem da formação requerida. Nessa época, é instituído um Núcleo de Educação
Indígena, na Secretaria de Estado de Educação, espaço figurativo, sem condições, sequer, para
mapear as escolas e a demanda por escolas nas comunidades indígenas. Portanto, sem
condições de interferir no sistema tradicional de escolas rurais, no qual foram inseridos os
professores indígenas concursados.
Somente em 1999 começa a ser organizado as ações do estado do Acre com
vista a dar resposta à pressão do movimento indígena pelo cumprimento da legislação
educacional. Em 2000, o Estado assume a política de educação nas comunidades indígenas,
iniciando com o mapeamento completo das escolas já instaladas em comunidades indígenas, o
levantamento do quadro de professores indígenas bem como da demanda por escolas e por
formação de professores.
181
23
Conforme a gerência em educação escolar indígena, setor da Secretaria de Estado de Educação do Acre, em
agosto de 2003 o número de professores indígenas já era de 238, destes, 218 em sala de aula e 20 a disposição do
movimento indígena.
24
Conforme descrição das ações da Secretaria de Estado de Educação em Educação escolar indígena.
Documento mimeografado, fev. 2003.
182
estas instituições. Desse modo, as instituições de apoio como a CPI/AC, CIMI e COMIN
passam a promover ações voltadas à discussão da escola, a promover cursos de formação de
professores indígenas e a acompanhar as escolas que eram criadas, assessorando os
professores em seu trabalho docente e na elaboração de materiais didáticos.
Assim, o “querer escola” tornou-se uma necessidade premente, desde o
princípio da retomada dos direitos à terra, do descolamento do vínculo com o patrão. Mais
ainda, com a implantação das cooperativas, os indígenas depararam-se com problemas
práticos, de todos os tipos, uma vez que tinham que administrar as cooperativas, a compra e a
venda de produtos. A falência das cooperativas é atribuída, entre outros motivos, também à
falta de domínio de conhecimentos elementares de contabilidade e administração.
Portanto, o aspecto comercial sempre foi uma primeira demanda, justificando a
escola. Por estar relacionado à subsistência, conseqüentemente, com o acesso a escola, outras
demandas serão postas, as mais diversas, desde a possibilidade de revitalização da cultura
indígena ao acesso a outros instrumentais de luta. Enquanto recurso, a escola é buscada para
capacitação, tanto para atuar no movimento, quanto em outros setores da sociedade nacional.
Em outras palavras, o domínio das ciências do “branco”, num primeiro momento, atende ao
anseio de liberdade e segurança no comércio; e, aprofundando o acesso à escola, esta é
desejada como forma de independência política e administrativa para que as organizações
tenham poder para representar as questões de interesse de suas comunidades com propriedade
e competência sem mediadores não-indígenas.
As instituições indigenistas, compreendendo a relevância da escola, neste
contexto e sabedores do que esta instituição representou como arma da mão dos
colonizadores, provocam o debate sobre os saberes escolares e alertam sobre a necessidade da
preservação da cultura produzida no âmbito dos povos. Embora, hoje, a compreensão é outra,
a maioria das famílias queriam a escola apenas para o domínio do saber do branco. Quanto
aos conhecimentos tradicionais, os meninos aprenderiam com a família.
O problema ainda não foi resolvido de todo, apesar do esforço atual de
professores indígenas na tentativa de sistematizar, na forma de conteúdos escolares, os
saberes indígenas. Não se pode negar que, na educação tradicional, os saberes indígenas são
repassados às novas gerações, com muito mais eficiência. Sobretudo quando as comunidades
conseguem manter a organização social própria, em tais casos, tomando como exemplo os
Katukina, em atividades de caça, os garotos, por volta de 12 a 14 anos, começam
acompanhar seus pais na mata, para aprenderem os segredos que um bom caçador deve
saber: reconhecer os rastros dos animais, seus gritos e assobios, observar as alterações
186
organização. Processo que torna, ainda mais difícil a revitalização de saberes, que estão na
memória de alguns poucos. Como no caso Jamamadi, relatado por Rangel (1994, p. 136):
É difícil recuperar o padrão de organização tradicional pois, hoje em dia, conta-se
apenas, praticamente, com a memória dos velhos. Esta dificuldade provém do fato
de que a memória já está impregnada pela experiência dos deslocamentos e da
depopulação.
Contraditoriamente, embora não venham a ser restabelecidos os costumes
antigos, a memória é, facilmente, introduzida na escola; trabalhada, sobretudo, com os
conhecimentos históricos. Nesse caso, os professores vêm obtendo êxito, introduzindo os
processos educativos próprios da cultura indígena na escola, facilitado pelo especial interesse
sobre o passado, particularmente sobre o período anterior à invasão da empresa extrativista,
período tido como “tempo das malocas”, época, na qual, construíam grandes casas, próximo
aos roçados, sob a forte liderança de um Tuxaua 25; tempos em que eram senhores de seus
mundos, e que servem como referência de fartura, no bem viver.
O trabalho escolar não mais como instrumento exclusivo de valorização das
ciências da cultura ocidental, mas como instituição capaz de trabalhar, a partir dos valores
culturais do povo, da comunidade, depende de um trabalho contínuo de diálogo e
convencimento da relevância maior do saber cultural do povo para sua dignidade e para seu
bem viver. É com base nessa perspectiva que professores indígenas e instituições indigenistas,
comprometidas com a valorização e o respeito das culturas nativas, empenham-se no trabalho
daquilo que defende Foucault (2001), de desconstruir os efeitos de verdade exclusivos,
construídos no âmbito do discurso do saber dominante. Desse modo, restabelecer um dos
direitos mais legítimos de qualquer povo, que é, sobretudo em seu meio, o seu saber,
constituir, verdade maior que o saber de outros povos.
É baseada em saberes do patrimônio coletivo que se assenta a perspectiva de
construção da escola indígena. Este processo, para acontecer, depende do envolvimento da
comunidade, principalmente das “enciclopédias semoventes”, os velhos: fontes de pesquisa
dos professores e alunos, personagens cada vez mais presente nas salas de aula das escolas
indígenas, tratados pelos professores indígenas como “nossas bibliotecas”.
Além dos aspectos históricos referidos acima, a história trabalhada nas escolas
indígenas é complementada por todas as fases do contato - aspectos cujo registro mais
autêntico é a memória das “enciclopédias semoventes” - tendo como ponto de chegada o
tempo em que reconquistam direitos e alguma autonomia em suas comunidades, isto é, as
25
Tuxaua é a tradução mais próxima, em português, para designar a liderança nos padrões da organização
tradicional dos povos da região.
188
étnico-culturais são preservadas e acenadas para distinguir-se dos demais. Como afirma
Carneiro da Cunha e Almeida (2002, p. 16): a cultura local é assim um conjunto de
diferenças articuladas entre si. Naturalmente, que a densidade populacional e a apropriação
de novas tecnologias por estas populações confirmam o caráter dinâmico das culturas.
Um exemplo confirmando o caráter dinâmico das culturas e da preservação da
identidade étnica-cultural é o caso da comunidade Ashaninka, no Alto Juruá, situada na divisa
do Brasil com o Peru. Esta comunidade, apesar do isolamento geográfico, sem acesso por
estradas e o acesso por barco podendo levar até duas semanas da cidade mais próxima,
constitui uma das comunidades indígenas mais organizadas da região que, apesar de manter
preservada em sua cultura, substancialmente, aspectos próprios do povo, dispõe de recursos
comuns aos centros urbanos como televisão, telefone e internet.
Por fim, em se tratando de saberes indígenas, normalmente, estes são
identificados como saberes tradicionais. Entretanto, ao se ter presente o caráter dinâmico das
culturas, as populações podem se caracterizar como tradicionais apenas pelo fato de serem
nativas da região, pois ocupam tais territórios desde tempos imemoriais. Já os saberes, os
conhecimentos estão em constante movimento; as inovações são constantes, os
conhecimentos são sempre mais ampliados com a experimentação.
O Alto Juruá, constitui uma das regiões que concentra maior diversidade
biológica na Amazônia. Fato conhecido já há algum tempo, e que deu suporte ao projeto, que
delimitou, na região, uma reserva extrativista. A excepcional diversidade biológica da região é
fato difundido e firmado em estudos, como o elaborado por dezenas de pesquisadores, cujo
resultado foi publicado como “Enciclopédia da Floresta”, coordenada por Carneiro da Cunha
e Almeida (2002). Nesta pesquisa é feito uma compilação da riqueza de conhecimentos, de
saberes dos povos Asheninkas, Huni Kuĩ (Kaxinawá), Katukina e seringueiros não-indígenas.
A riqueza, da região do Alto Juruá, está muito além da diversidade biológica. É
uma das regiões que concentra a maior diversidade sócio-cultural. Dos 14 povos indígenas do
estado do Acre, 12 têm territórios situados na região do Juruá e seus afluentes.
Na Enciclopédia da Floresta, coordenada por Carneiro da Cunha e Almeida
(2002) - apesar de restrita a saberes de apenas três povos indígenas, num pedaço da bacia do
Alto Juruá, delimitação territorial que compreende a Reserva Extrativista do Alto Juruá,
território compartilhado por povos indígenas e seringueiros - os pesquisadores dão uma
dimensão dos conhecimentos produzidos pela população local, apresentado como o somatório
de saberes individuais, por vezes compartilhado, constituindo, no seu conjunto, o patrimônio
coletivo da população. Os mesmos autores declaram: entendemos por saber formas de pensar,
190
muito além da oralidade. Neste particular, os povos da região se reconhecem e distinguem por
registros manifestos em aspectos como na pintura corporal, na pintura e técnicas presentes na
diversidade de utensílios, nas danças, nos sons por meio de instrumentos de buzina, nos sinais
e avisos feitos com materiais como folhas de determinadas plantas. Dos conhecimentos, das
técnicas aprimoradas no âmbito das culturas indígenas ainda hoje é notada tanto na
manutenção das sofisticadas técnicas de tecelagem de bordados tradicionais (kenê) e de
cerâmica (AQUINO; IGLESIAS, 2002, p. 151).
Entretanto, detendo-nos na diversidade de atividades e conhecimentos de cada
povo, que faz parte das preocupações de cada professor, ao elaborar o currículo de sua escola,
temos verificado, por exemplo, a preocupação em trazer para escola os conhecimentos
relacionados à economia e à subsistência, tais como, o manejo agrícola; onde e quando plantar
e as técnicas e solos mais indicados para cada variedade cultivada; as técnicas de medição e
os sistemas de pesos e medidas; os conhecimentos associados às fases da Lua e ao
desenvolvimento de cultivos; as proibições relacionadas a fases da Lua e a agricultura; enfim,
o calendário agrícola envolvendo os tempos para fazer os roçados, plantar, limpar e colher; a
classificação e o conhecimento dos produtos cultivados e as variedades de cada produto.
A produção da borracha ainda constitui uma atividade comum, que contribui na
subsistência das comunidades, atividade que implica uma série de conhecimentos que se
inserem no ciclo anual de atividades das famílias. Os conhecimentos relacionados a esta
atividade vão desde a diferenciação das seringas ao complexo processo de exploração,
confirmados por um vocabulário amplo, diversificado e que envolve todo o processo, desde a
preparação, corte, coleta, transformação em pélas ou pranchas; e, finalmente, a
comercialização. Saberes e atividades que, por estarem no cotidiano, não podem ser ignorados
na escola.
Um outro conjunto de saberes e atividade essencial para maioria dos povos
indígenas, levado à escola, é a caça, parte fundamental na alimentação das famílias. Nesta
atividade, há uma arte refinada, que exige uma série de qualificações. É preciso, para o
sucesso nesta atividade, o domínio da ciência na orientação na mata; o conhecimento dos
tempos e lugares, as estratégias e os recursos e armadilhas, como a caçada com cachorro; as
fases da caçada; os saberes culturais relacionados a uma caçada bem sucedida. Ainda
associado à caça; há regras tradicionais; restrições alimentares; quais animais podem ser
caçados; as dietas entre mulheres, crianças e adultos; e animais com propriedades benéficas.
A pesca também constitui atividade que envolve conhecimentos e que está
presente na cultura de todos os povos. Denominada, regionalmente, como “mariscar”, cujos
192
primordiais; a origem de muitas coisas essenciais. Ainda conforme McCallum, os mitos sobre
os Incas contam a criação do mundo social dos Huni Kuĩ, desde a época mais remota, em que
viviam na ignorância, passando por uma segunda época, em que tentam alcançar a socialidade
imortal pela união a Incas perfeitos, até à época atual, na qual, os Huni Kuĩ atingiram a
socialidade mortal. Esta classificação distingue dois tipos de história: as que relatam eventos
acontecidos no passado mítico, correspondendo às duas primeiras épocas, distinguindo-se da
narrativa mítica da época atual e coincidindo com o tempo histórico; e a vida presente,
construída com os acontecimentos na memória dos vivos.
Este conjunto de narrativas Huni Kuĩ contém informações sobre o Cosmos e,
sobretudo, são veículos para a articulação e geração de conceitos importantes, como a
capacidade pessoal para produzir. Como explica McCallum, a “agência humana”, a
capacidade para produzir, advém dos Incas, e é fundamental para a vida social.
Considerando a complexidade da cosmovisão de cada povo, a escola indígena
está longe de se constituir numa instituição devidamente articulada e capaz de adequar-se ao
mundo indígena, uma vez que, enquanto escola, esta mantém, também, o propósito de
favorecer aos indígenas a escolarização, mantendo o perfil da instituição não-indígena e a
tendência de traduzir para o saber ocidental o que não é traduzível da cultura indígena.
Há outros aspectos que, embora afetem a escola, não é trabalhado muito em
função do preconceito que a cultura ocidental impôs sobre as culturas nativas, sobretudo em
questões relacionadas à religiosidade. Questões muito presente nas relações entre os povos
indígenas na região, que constituem, inclusive, mecanismos de definição das fronteiras
étnicas. Entre os grupos Pano, mais que as diferenças lingüísticas, as identidades dos povos
são marcadas por aspectos de cunho religioso, marcando, decisivamente, os distanciamentos
entre grupos e mesmo internamente em um grupo. Outros povos da região também tem o
aspecto religioso como forma de estabelecimento de fronteiras, é o que ilustra Rangel (1994,
p. 144) referindo-se ao povo Jamamadi:
As acusações de feitiçaria constituem o mais importante aspecto dos mecanismos de
distanciamento, e estão relacionados a uma intrincada rede de relações que
mobilizam a sociabilidade Jamamadi. Essas acusações são dirigidas, normalmente,
a membros de outros grupos de denominação.
Considerando que entre os povos como os Jamamadi, internamente, a
população se distribui e se reconhece por grupos com denominações específicas, ao “outro” é
depositada a culpa do feitiço, posto de diferentes formas, seja na água, em alimentos e outras
formas, os quais provocam graves doenças, podendo levar até a morte, tornando geral o temor
aos feitiços. Os feitiços são também usados como forma de assimilar e elaborar, internamente,
196
as tragédias, os fatos brutais, seja do extermínio pelas armas, seja pelas epidemias de doenças
a que os grupos estiveram submetidos no passado. Entretanto, nos dias atuais, o feitiço é um
dos principais motivos que levam à decisão de mudar o local de uma aldeia ou que motiva a
mudança de algumas famílias, entre outros fatores: as acusações de feitiçaria permanecem,
provocando cisões, assassinatos, vinganças e afastamentos entre os diversos grupos de
denominação (RANGEL, 1994, p. 166).
Por fim, diante do contexto aqui apresentado, não se discute a relevância da
escola bem como, para ser diferenciada e indígena, deve adequar-se à diversidade de povos e
comunidades; lidar com os conhecimentos próprios de cada comunidade e ser pensada nas
estratégias de resistência do movimento indígena, aspectos, de certa forma, abordados nas
falas indígenas, citadas no capítulo a seguir.
CAPÍTULO VI
A ESCOLA NOS PROJETOS DE EMANCIPAÇÃO
DOS POVOS INDÍGENAS
ainda está nas esferas maiores de governo. O preconceito ainda medeia as relações entre
indígenas e não indígenas, substancialmente, por parte do segmento majoritário, os não-
indígenas. O preconceito ainda é um fator que contribui para a negação de oportunidades de
acesso, pelos indígenas, a uma educação escolar de qualidade. Isto é, movidos pelo desprezo
ao “caboclo” há quem faça gestão contra qualquer benefício, condenando a destinação de
recursos materiais a escolas indígenas ou achando absurdo o atendimento escolar que
extrapole às séries iniciais, similar à catequese no período colonial. Elencamos abaixo, entre
outros problemas, o preconceito e a discriminação sofridos pelos indígenas.
Iniciamos com o relato de experiências pessoais de vítimas do preconceito.
Fatos que marcam, decisivamente, a vida das novas gerações indígenas. A carga
discriminatória vem desde os tempos do cativeiro, persistindo no presente, na exclusão com
base no preconceito:
Há tempos atrás quando os índios trabalhavam para os patrões cortando seringa e
batendo campo, tinha sempre alguém vigiando seu trabalho, mandando refaze-lo,
dando ordens sob ameaças [...] Toda a produção era trocada por alimentos e
roupas. Era preciso trabalhar muito de sol a sol para não passar necessidade. No
momento da troca valia a esperteza do marreteiro ou do próprio patrão que na
maioria das vezes era quem negociava os produtos. Os índios além de explorados
no trabalho eram enganados nos negócios [...] nesse tempo as famílias estavam
espalhadas, o povo disperso e sem chefe. Faltava liderança para retomar a
organização tradicional a terra e a condição de povo livre (Lideranças Kaxinawá e
Shanenawa, Relatório do I Encontro, 1997).
Quanto à vergonha de ser índio por conta do preconceito [...] ser índio na década
de 1970 era cruel. Eu sou desta década, eu quando criança, eu lembro o quanto que
era chato ir pra sala de aula. Quando eu saí da minha aldeia para estudar eu fui a
única, a princípio, que agüentou. As meninas diziam assim: “caboca do barão” e eu
dizia: “sou! E tenho orgulho disso!” - “Há, índio come sapo” eu dizia: “como
mesmo, e é gostoso”. - “índio como macaxeira” e eu: “comemos, você não come?
você não como farinha?” E assim, eu nunca fiquei por baixo. Mas, outros colegas,
outros parentes, primos meus que vinham para escola não agüentavam um mês,
voltavam. Isto é muito ruim, isto impede a gente de se desenvolver (Maria Vanísia
Poyanáwa, 19 fev. 2003).
O povo da minha comunidade sofre preconceito, dos próprios policiais. Batem,
discriminam, dizem que na cidade não podem andar porque não é lugar de índio.
[...] Aqui em Rio Branco as crianças na escola são discriminadas, as outras ficam
falando, ficam assobiando, imitando os bichos. A minha menina diz: “mãe, eu não
vou mais pra escola porque ficam mangando”. A culpa é dos pais, e também dos
professores. Discriminam, dizem que o índio não tem valor, índio tem que estar na
mata, é sujo, índio come gente (Carlos Brandão Shanenawa, 07 mar. 2003).
Quando eu chegava na sala de aula aqui em Rio Branco o pessoal brincava:
“fulano é índio”. Aquilo me deixava nervoso. A gente vai ficando com medo de ser
índio, de que alguém chegue e diga: “Você é índio, você tem não sei o que!” [...]
Muitos ficam com medo e dizem: “Não, eu sou peruano ou eu sou boliviano, não
sou índio”, mas você vê que a pessoa é indígena. Você tem que ser muito forte.
Depois de um tempo as pessoas chegavam e diziam: “você é indígena” eu
respondia: “eu sou, e daí”. Até você manter a sua condição de indígena a
discriminação dói (Chola Manchinery, 07 mar. 2003).
É uma questão de educação mesmo. Hoje a gente se depara com professores
despreparados dentro da sala de aula. Os professores hoje saem da universidade
200
mas não tem o conhecimento. Aliás, o acreano não conhece a sua cultura, o seu
povo, mais ainda, ele conhece mais a cultura do europeu do que a cultura indígena,
do seu povo, do Kaxinawá, do Poyanáwa, do Shanenawa... povos que os acreanos
não conhecem. Nem deles mesmo eles sabem, nem a identidade deles eles sabem.
Eles têm a pele escura mas querem ser brancos, não querem ser negros. Portanto, o
professor está despreparado dentro da sala de aula. A gente repara muito, quando
chega dezenove de abril, é uma data assim, dia do índio é todo dia, todo dia é nosso
dia, entretanto, os professores mandam aqueles coitados daqueles alunos fazerem
trabalhos, mandam para cá com cada pergunta idiota, idiota mesmo, pergunta
besta: “o que é que o índio come? Índio anda nu?” Meu Deus, eu fico com pena dos
coitados, tem vez assim que dá vontade de dar uma resposta bem... mas os coitados
não sabem. Os professores saem da universidade, eles não sabem, não tem
conhecimento de forma alguma. Eu sei que você é professor da universidade, mas
eu acho que é ali na universidade por onde passa a questão da revolução de
mentalidade, eu acho que ali é que está o ponto (Miralda Apurinã, 19 fev. 2003).
Nota-se um receio, nos órgãos públicos como hospitais e outros setores, para com
os índios e isto não depende do governo. Hoje temos uma boa relação com os
mandantes mas os subordinados são preconceituosos. [...] em lugares pequenos, nos
municípios do interior este tipo de coisa ainda é muito forte (Auricélio Brandão
Shanenawa, 12 jun. 2003).
Tipos de discriminação: Legislação ultrapassada que nos considera incapazes;
Desrespeito ao patrimônio cultural e a diversidade; A falta de elaboração,
implementação e execução de políticas públicas que garantam a formação e a
qualificação do/da profissional indígena; Não reconhecimento da identidade
cultural do/da índio/a que mora fora da aldeia; Elaboração e execução de projetos
sem o prévio conhecimento e participação da comunidade; A falta de acesso de
índios/as qualificados/as nos órgãos do governo que trabalham com a questão
indígena; A falta de condições e recursos para a proteção das terras indígenas; Não
cumprimento da Constituição Federal de 1988, que garantia a demarcação das
terras indígenas em 5 anos; A diminuição/redução de terras indígenas; Conceito
equivocado (folclórico) do que é ser índio! (que não pode incorporar novos
conhecimentos) Política assistencialista, paternalista, integracionista e de exclusão
que causou a dependência econômica e política dos povos indígenas (Manifesto do
I Encontro de Mulheres, 2001).
mantém o preconceito e por conta disso, várias pessoas, vários indígenas, tem
vergonha do que são, por conta do preconceito que sofrem (Maria Vanísia
Poyanáwa, 19 fev. 2003).
A valorização cultural na maioria das vezes não acontece. O Estado brasileiro não
faz um trabalho de resgate, de revalorização, para fazer com que a sociedade
branca entenda as culturas e não discriminem nem o índio, nem o negro, nem o
ribeirinho e nem o seringueiro. Somos discriminados porque a sociedade
envolvente, não sabe, não conhece a cultura de cada um destes povos diferentes.
Então se todos nós, os indígenas, os órgãos públicos, escolas, universidades e o
próprio poder público fizessem um trabalho de conscientização nós não teríamos
esta discriminação (Chola Manchinery, 07 mar. 2003).
Queira ou não, o preconceito existe. Não vamos conseguir extinguir 100% do
preconceito. Vai existir sempre porque os povos indígenas têm um modo de viver
totalmente diferente. O estranhamento com o índio acontece em qualquer espaço da
sociedade regional, acontece nos órgãos públicos, repartições, com vizinhos, são
tratados como se não tivessem valor ou se ao tocar no índio pudesse se ferir ou se
sujar (Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
A liberdade e a dignidade não estão separadas uma da outra, há a diferença de
dinheiro que faz com que algumas pessoas se sintam superiores, esta questão do
acúmulo de bens às vezes dá a entender que ele é maior, que ele é melhor e aí você
passa a achar que o seu vizinho, o seu próximo não tenha este mesmo valor. As
aldeias indígenas, povos indígenas tem o mesmo direito de estar bem de saúde, de
estar bem de educação, de estar bem materialmente e ter o poder de adquirir o bem-
estar dele com todos os benefícios, não importa onde, na aldeia, onde quer que ele
esteja. O indígena tem os mesmos direitos mas esta idéia não assenta bem pra muita
gente porque entendem que pelo fato de ser um povo que fala uma língua diferente,
pelo fato de não estar inserido no meio social [dominante] ele tenha que ser uma
pessoa pobre em conhecimentos, pobre materialmente, pobre de formação, pobre de
toda sorte, deva estar excluído. É uma grande discriminação que vem do passado e
que continua com algumas diferenças. É aí que a gente tem que trabalhar muito
para diminuir e para os outros começarem a entender que nós somos ricos
(Antonio Apurinã, 21 fev. 2003).
Aqui na minha aldeia tem muitas crianças indígenas, filhos de índios com índias que
não falam nada sobre a nossa língua e nem conhecem a história do nosso povo, só
conhecem um pouco da língua portuguesa. Mas o culpado disto tudo, eu penso que
não foram os pais destas crianças porque, mesmo que eles tentassem ensinar para
os filhos deles, os cariús ficavam mangando, dizendo assim: “Olha ali o caboclo
cortando gíria” e eles ficavam todos sorrindo olhando para o índio. Aí o índio
ficava com vergonha, e não falava mais na sua língua, só falava na língua
portuguesa, por isso que nós Arara já estamos quase perdendo a nossa língua. Mas
eu tenho muita fé em Deus que eu como professor da minha comunidade vou dar um
avanço para o meu povo (Edílson Arara, In: YUIMAK , 2000).
Nas comemorações anteriores da Semana do Índio a única preocupação era
mostrar as danças, o artesanato, enfim, a cultura indígena, dando a falsa impressão
de que tudo estava bem com as comunidades indígenas mas, agora, os índios
querem mais, querem planejamento para melhorar a vida nas aldeias. [...] hoje o
massacre continua de maneira mais velada, "matando a raiz, que é nossa cultura".
Um dos ângulos deste massacre [está] na introdução de novas religiões no seio dos
povos indígenas (Francisco Avelino Apurinã, 19 abr. 2002).
O preconceito existente entre as pessoas comuns contra os índios e não é culpa
propriamente deles, mas vêm dos registros históricos feitos pela classe dominante
ao longo da História do Brasil. Há cerca de 10, 15 anos as coisas começaram a
melhorar, graças ao esforço dos índios e de entidades que abraçaram a causa
indígena (Zezinho Kaxarari, 19 abr. 2002).
ninguém nunca é 100%, tanto o índio como o não-índio, [...] sobre os índios
pedindo esmolas [...] aqui no Acre é eles que querem, não é porque são miseráveis,
não é porque eles estão sem terra, tem terra sim e até digo, isso foi um vício que
eles viram certamente nos próprios brancos pedindo esmolas e [...] acharam um
jeito de conseguir um dinheiro mais fácil, mas que não é cultura indígena, não é
cultura de ninguém estar pedindo esmolas, porque a gente sabe, nós estamos numa
terra muito rica (Manoel Gomes Kaxinawá, programa AC-TV, TV Acre, 07 jun.
2003).
A gente não trabalha pelo interesse financeiro. A gente trabalha para defender o
território, para defender a cultura, a ciência do povo, mas eu vejo uma situação
muito complicada em algumas comunidades, as pessoas querem aposentar todos os
velhos, acham que aposentar os velhos vai resolver o problema deles. O mesmo
acontece com os professores, em algumas comunidades, as lideranças estão
defendendo que os seus filhos sejam professores porque ali vai ter uma renda, um
salário, complicando, atrapalhando a organização. Se ele trabalha para isso ele
não tem consciência de que não é o salário que vai resolver o problema dele.
Pensam que tudo lá de fora vai resolver o problema. Em algumas regiões existe
muita influência político-partidária e algumas lideranças se aproveitam disso para
contratar seus filhos e com este contrato eles podem estar trazendo um problema a
mais para a comunidade (Isaac Pianko Ashaninka, 03 mai. 2002).
Apesar das múltiplas feições assumidas pela escola, quando esta é fruto de
reflexão nas comunidades, há uma característica recorrente: tende a constituir-se num espaço
de interculturalidade:
Quando é um assunto que eu penso de fazer, que não seja daquela comunidade, mas
só para mostrar outras situações eu pego o material da secretaria, que são textos
muito bons, mas diferentes da realidade que a gente vive nas aldeias. E quando eu
quero chamar a atenção, eu trabalho na cartilha que a gente produz e que tem tudo
a ver com a situação daquele povo. Até outro dia, nós professores estávamos
fazendo uma avaliação dos livros que a gente vinha trabalhando, por exemplo,
alguns livros de língua portuguesa, distribuídos pela secretaria, têm muito a ver
com a gramática, já o livro “Aprendendo português na Escola da Floresta”, tem
essa situação que a gente convive, como tirar um documento, se cumprimentar, ter
diálogo, coisas bem diferentes do livro que a gente conseguiu na secretaria. [...]
Esse material [livro didático indígena] é mais para uma reflexão: “E tem acontecido
isso, por que? Será que não é possível a gente mudar?”, também vem a questão da
demarcação da terra, se nós pensarmos assim: “a terra está demarcada, e há dez
anos atrás, houve isso. E daqui mais dez, vai acontecer aquilo. E daqui cem anos,
como é que vai estar?” Existe alguns pontos que chamam a nossa atenção, por
exemplo, “em 1960, começou assim: por aqui existia queixada, macaco, esse lago
estava dando peixe, e já faz dez anos, e o lago não está dando mais peixe, o que
aconteceu? As pessoas aumentaram, teve muita tarrafa, começaram a usar muito
tingui, começaram a colocar leite de assacu. O que isso traz? Benefício ou
problema?” Isso são coisas que a gente tem visto muito nesses livros que estão
sendo feitos por nós, além da gente poder explicar com mais detalhes. Já os livros
de português da secretaria, não. A gente só pode trabalhar com a gramática, como
escrever uma palavra com dos ss, ou se é com z, ou c com cedilha, a questão dos
fonemas, então são coisas assim. Mas, se você pegar um texto nosso, aí vai ter
sentido para aquela comunidade (Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, In: YUIMAK ,
mar. 2002).
No meu povo a educação intercultural está acontecendo. Hoje conseguimos
incentivar os mais velhos e me orgulho em dizer que meu povo domina sua própria
música, Shanenawa, a maioria dos jovens dominam a própria língua, algumas
histórias, os mitos Shanenawa. Já os Asheninka e os Madijá nem se fala, vivem
dentro de sua própria cultura, tem sua cultura bem forte, enraizada mesmo. [...] Na
comunidade Shanenawa a escola é intercultural porque ensina a língua materna, se
fala da cultura, da história, da música e também dá o ensino fundamental, a
educação básica. Portanto, é bilíngüe e intercultural (Auricélio Brandão
Shanenawa, 12 jun. 2003).
A nossa escola é intercultural. Na escola está se falando na língua materna e o
português. Entendemos que também a saúde, as organizações e as próprias
comunidades serão culturais e interculturais (Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá,
12 jun. 2003).
que eles vão ter que dominar para sobreviver nessa situação da convivência que
aconteceu ao longo dos anos do contato. [...] A escola na aldeia não está lá para
atrapalhar, está lá para ajudar. [...] A nossa preocupação não é só a questão de dar
formação desse conhecimento ocidental mas de dar a formação de dois
conhecimentos: o conhecimento da escrita e o conhecimento da cultura do povo
dele também. O aluno tem que praticar as duas coisas: ele vai ter que ler e escrever,
ele vai ter que saber pescar, caçar e construir seus materiais ou os seus artesanatos,
para que ele não fique dependendo dos outros (Joaquim Paulo Maná Kaxinawá In:
GRUPIONI, 2003, p. 157).
Não vai ser tão rápido mas nós vamos chegar a um dia em que teremos uma escola
diferenciada, assim como nós desejamos nas nossas comunidades. Vai ser um
processo lento mas um dia vamos atingir o objetivo que desejamos (Vaulino Nunes
Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
muito ruim, pior do que já existe. Defendo a idéia de que o índio tenha um único
órgão como referência para definir a política de educação (Antonio Apurinã, 21
fev. 2003).
Tenho duas opiniões com relação ao sistema educacional para os povos indígenas.
Uma, eu concordo com o sistema de educação diferenciada desde que a educação
diferenciada não seja inferior. Ou seja, uma educação diferenciada acrescentando
outras matérias no currículo convencional, por exemplo, poderia retirar religião
[ensino religioso] e colocar a espiritualidade. Acrescentar matérias como o idioma
de cada povo. A partir daí fazer a diferença para cada escola, dando uma educação
com mais segurança, uma educação que tenha resultados mais concretos para os
povos indígenas. A outra questão, que me parece fundamental, são os programas
para ingresso de estudantes indígenas em uma universidade. Eu acho que é um
direito de qualquer um mas tem suas complicações também, principalmente se
tender para um sistema muito específico. Um exemplo é o que acontece no Mato
Grosso, as pessoas, os parentes que foram fazer o curso eles estudaram de acordo
com o manual do programa de educação do MEC enquanto que os demais estudam
outras matérias, assim eles já entram em situação inferior, ele já entra
impossibilitado de exercer sua função com qualidade. Eu tenho dito que a educação
tem que ser feita de acordo com o sistema nacional, modificado de acordo com o
entendimento de cada povo, é o que a gente vê como melhor resultado para o
atendimento de cada povo. Tomando como exemplo outros países como o Equador,
existem muitos profissionais indígenas formados em programas interculturais
bilíngüe que são nada mais, nada menos, que programas, cursinhos dados para
índios e não passa disso. A gente gasta todos os recursos em consultoria, em
alimentação, transporte, em materiais e em publicações mas de fato, quando estes
profissionais vão advogar em determinado tribunal, nem sequer advogam porque
não têm as qualidades que deveriam ter. Aí você pode dizer: “no Equador tem dois
ministros indígenas”. Os ministros não foram formados por este sistema. Então, são
fatores que pesam no processo do sistema educacional indígena. Eu tenho dito,
inclusive discuti com os professores indígenas algumas vezes sobre esta
possibilidade, só que na época, lamentavelmente, eles me interpretaram de maneira
equivocada. Entendo o esforço que eles tem para ministrar outros conhecimentos,
mas também entendo que estes conhecimentos não são suficientes para o que a
gente espera. De fato é um processo novo, mas o que a gente está definindo nos
currículos normais, nos programas, não atende a expectativa que a gente espera,
então, estou falando de um programa que venha atender esta demanda. Na prática
não se conseguiu alcançar este objetivo da educação diferenciada (Sebastião
Manchinery, 18 abr. 2003).
A escrita é usada, hoje, para estudar, para educar nossos parentes, filhos,
sobrinhos, e também para mandar carta para nossos parentes e para fazer alguns
documentos que são mandados para as autoridades (deputado, governador,
senador, prefeito e vereadores) (Paulo Lopes Siã Kaxinawá, In: KAXINAWÁ,
2002, p. 181).
Hoje em dia nós estamos trabalhando, temos professor índio. Primeiro nós
dependíamos muito do branco, professor branco, saúde do branco. Mas depois que
estamos vendo, estudando aqui e acolá, parente aprendeu a ensinar aos meninos.
Então primeiro era tudo do branco, mas hoje em dia é nosso. Índio mandou os
parentes para a escola, prefeitura e estado ajudam a escola, para cada comunidade.
Cada comunidade tem agente de saúde e cada comunidade tem educação. E o índio
está lutando para vencer, já não é mais dependente do branco. Agora é o índio
mesmo (Francisco Pancho Lopes In: COMISSÃO Pró-índio do Acre, 2001, p. 30).
Hoje estamos debatendo a universidade mas também a educação infantil e a
educação de adultos, debatendo como nos interessa estes níveis de educação e a
como estudar, ensinar e conhecer melhor. Nós estamos falando o que nós queremos
na educação indígena (Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
Eu vejo que as pessoas hoje não estão muito interessadas neste momento da escrita,
até mesmo os adultos. Ainda não existe uma preocupação, nem interesse mesmo, de
se desenvolver nesse mundo da escrita. Até porque essa não é mesmo a necessidade
aqui da comunidade. A necessidade da população aqui é outra. Tem que ter uma
pessoa que saiba ler, escrever, para que represente o nosso mundo lá fora (Isaac
Pianko Ashaninka, In: KAXINAWÁ, 2002, p. 187).
o trabalho de pesquisa para termos um conhecimento maior. [...] enfim temos que
ser um exemplo para a nossa comunidade (Isaac Pianko Ashaninka, In: YUIMAK ,
mar. 2002).
Lá na minha escola eu vejo que hoje não é a escrita que vai resolver o problema, é
algo muito mais grande, nas outras pode até ser, mais eu acho que não, a escrita
vai ser uma peça que vai estar ali dando suporte a toda essa forma de se organizar
de se comunicar com o mundo esterno. O que vai dar garantia de sobrevivência
neste território vai ser uma política mesmo de fortalecimento, de ampliação do
conhecimento tradicional mesmo, se não, a gente vai estar perdido (Isaac Pianko
Ashaninka, 03 mai. 2002).
Nosso ponto de vista é mais a organização, a conversa, o diálogo e a orientação.
[...] Eu sempre falo na sala de aula: não é só saber ler e escrever que vai resolver
nossos problemas. Nós estamos aprendendo ler e escrever, mas a coisa mais
importante, além da escrita é o respeito que a gente tem que ter com a pessoa. É
saber nosso trabalho, como nós vivíamos antes, como vivemos hoje, quem são os
mais velhos, quem são as pessoas que podem nos ajudar, e que tem o conhecimento
do mundo Ashaninka (Isaac Pianko Ashaninka, In: KAXINAWÁ, 2002, p. 187).
Sobre o lado importante da escola, ela está ampliando o nosso conhecimento, hoje
estamos nos defendendo no movimento porque tomamos conhecimento da sociedade
de como devemos nos defender. Além disso, os professores são os próprios índios e
com isso vai se construindo um tipo de educação onde com certeza nós vamos saber
como adquirir, como levar esta educação para que um dia não seja tão quebrada
como foi anteriormente. [...] A escola na minha comunidade é um recurso para
trazer esclarecimentos do mundo da escrita. Não querendo medir a força da escola,
para nós ela é uma parceira que está contribuindo no conhecimento da sociedade. É
importante porque vai trazer conhecimentos. Lembrando que o valor principal é a
nossa cultura, porque se nós deixarmos a nossa cultura e valorizar só a escola, ela
vai ser importante, por outro lado vai matar os povos indígenas culturalmente. Para
nós a escola é uma parceira de contribuição, de formação, de conhecimento da
sociedade nacional. Por isso a cultura tem que ser forte, tem que ser prioridade
para a comunidade, é onde está a identidade da comunidade, os valores (Vaulino
Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun. 2003).
Eu reflito muito, me referindo à minha escola hoje. Nela a gente tem um calendário,
esse calendário respeita os espaços o que é dos velhos [...] a escola é um espaço que
está mais concentrado em informar as questão de fora e de dentro, pega as duas
coisas [...] dentro da escola a gente traz e dá informação e incentiva aos alunos
para que eles participem da vida cotidiana, da maneira que sempre deu a vida ao
nosso povo, deu os conhecimentos, deu suporte a toda a nossa ciência. A escola
aqui ela é simplesmente um espaço muito novo, ela não traz a sabedoria histórica
do povo, ela apenas dá um ponto de reflexão prá você entrar neste mundo
tradicional (Isaac Pianko Ashaninka, 03 mai. 2002).
Acho que a educação escolar para um povo, não há como não trabalhar com a sua
própria realidade, buscando dentro do passado. Você estudando sua vida, sua
história, a história de todo o povo e trazendo tudo isso para sala de aula, fazendo o
aluno refletir sobre todo esse passado, pode diferenciar o que está nesse passado, o
que está mais perto do presente, também o que está no presente, para você se
planejar para o futuro. Se você começa a trazer um conhecimento lá de fora, antes
de passar para as crianças o conhecimento do seu próprio mundo, elas estarão
perdidas (Isaac Pianko Ashaninka, In: KAXINAWÁ, 2002, p. 187).
[A escola que queremos] Uma escola que atenda os interesses da comunidade
indígena; Com uma proposta curricular, pedagógica e política elaborada e pensada
conforme os valores da cultura indígena; Que seja cumprida a legislação que
assegura a formação em serviço e continuado do professor/professora, priorizando
seu conhecimento da educação indígena; Os programas de formação contemplar o
saber indígena respeitando o nível de entendimento cognitivo de cada
professor/professora e elaborado conjuntamente com a comunidade; Que a língua
materna seja predominante na escola; Que os governos assegurem nas políticas
públicas ações que contemplem a legislação, sem intervalo de governo; Oportunizar
uma formação política crítica consciente dos seus direitos para nortear as áreas de
conhecimento dos cursos de formação; Capacitar os formadores/formadoras,
técnicos - não indígenas - ligadas às várias instâncias do governo para conhecer a
realidade indígena (Manifesto do I Encontro de Mulheres, 2001).
[A educação que queremos] Ensino cultural na língua; Calendário e currículo
diferenciado reconhecido e respeitado pela sociedade; Educação de qualidade,
bilíngüe, multilíngüe, não inferior a dos não-índios; Valorização das aulas práticas
e escritas; Ajuda aos velhos pela sua participação como professores na cultura;
Visitas da coordenação mais demoradas às escolas indígenas; Elaboração das
provas pelos próprios professores com assessoria pedagógica; Aulas à noite para
jovens e adultos; Continuidade dos estudos depois da 4ª série; Completar a
formação dos professores, magistério em nível médio e superior; Reciclagem
(formação continuada); Concurso (contrato permanente); Assessoria,
acompanhamento pedagógico nas escolas; Assessoria para planejamento de curso e
das aulas; Por em prática o discurso; [...] Contratação de professor para ensinar
língua e saber da sociedade nacional (povos de menor contato); Contratação de
professor para trabalhar só na língua e cultura (Shanenawa); Coordenação
indígena não ficar presa no trabalho do núcleo [setor de educação estadual no
município de Feijó, AC]; Mais indígenas na coordenação no núcleo; Respeito aos
indígenas no núcleo; Acabar com o preconceito; Participação indígena nas
decisões das ações e políticas para as comunidades indígenas; Segurança do
salário para o professor ao assumir função na organização indígena; Produção de
material didático na língua de cada povo; Ter material didático nas escolas;
Construção de escolas; Luz elétrica e poço; Melhorar as escolas já construídas;
Escola bem estruturada com cozinha, cantina, banheiro, respeitando a cultura de
cada povo; Material permanente: carteiras, armário, quadro, mesa, mimeógrafo
(DOCUMENTO FINAL DO III SEMINÁRIO, 2003).
213
A importância que a OPIRE vem dando nesse trabalho para fortalecer a educação,
saúde e alternativa econômica, é que as comunidades possam ser independentes em
algumas partes, como saúde, educação e subsistência. Hoje a gente dá muita
importância aos estudantes que estão na cidade porque poderão ser nossos futuros
representantes na comunidade, na organização ou em qualquer lugar. Há dez anos
atrás os professores nas comunidades eram americanos [Novas Tribos]. De lá para
cá a educação para nós melhorou bastante dentro da comunidade e da organização
porque hoje temos professores indígenas que estão lutando pelo bem da
comunidade [...] o pensamento deles é fortalecer mais a comunidade e que ele possa
ser um professor de melhor qualidade, um coordenador com mais conhecimentos
(Lideranças da OPIRE, In: Relatório do I Encontro, 1997).
A importância da educação na comunidade hoje é que todas as crianças estão se
alfabetizando, trazendo nosso conhecimento dentro da comunidade. Os professores
e agentes de saúde hoje, estão ajudando o fortalecimento do trabalho dentro da
comunidade. Aplicando nosso conhecimento das leis para que possamos defender
nossos direitos que existem dentro de qualquer instituição. Nós hoje tendo nossos
estudantes no município entre esses estudantes temos hoje representantes das
nossas organizações e isso é trabalho de educação dentro da comunidade. Nós
estamos sentindo que o trabalho com a educação está se fortalecendo. A gente
busca alguma alternativa para a comunidade. A gente estando por dentro da
educação pode defender os nossos direitos e buscar a cultura dos nossos
antepassados. Se a gente conhece a lei, vamos brigar pelo nosso direito. Hoje não
está sendo muito fácil enganar as pessoas na compra e venda como antes, quando o
índio era discriminado, hoje já tem um conhecimento mais profundo (Lideranças do
povo Shanenawa, In: Relatório do I Encontro, 1997).
São entidades que apóiam o movimento indígena. Nós somos nós e eles apóiam as
nossas causas, o nosso movimento. Não descartamos parceria porque a gente nunca
sabe tudo, então a parceria sempre é necessária para chegar lá. [...] A autonomia
está na participação em questões que tem que ser decididas e que para serem
executadas dependem de consulta ao movimento indígena, às organizações locais e
regionais e à própria comunidade. Respeitando aquele grupo e ao movimento, nos
dá autonomia em dizer o que nós queremos e as ações a ser executadas. Autonomia
é quando o movimento tem o poder de decisão junto com as comunidades indígenas.
É isto que estamos conquistando. Vemos como uma vitória, um avanço para o
próprio movimento. A prova é que a Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas
do Estado do Acre não reflete a vontade do governo mas sim do movimento
indígena. Hoje, apesar do movimento, temos uma Secretaria de Estado para
executar os projetos nas comunidades, isto é uma forma de autonomia (Auricélio
Brandão Shanenawa, 12 jun. 2003).
preciso realmente estar separando, acima de tudo para conhecer as coisas, que
importância tem para nossas vidas. [...] As relações mais favoráveis aos povos
indígenas, hoje, também vão acontecer com o trabalho em áreas como a da
educação, e da saúde, quando nós mostrarmos que estamos fazendo isso com
grande competência. Mostrando que a gente também faz com qualidade, embora
diferente mas com sua qualidade, mostrando o grande poder de organização, de dar
conta das coisas que a gente faz. Tanto é que a gente demonstra isso no que o não-
índio chama de administrar o controle social, a forma de como fazer (Antonio
Apurinã, 21 fev. 2003).
Eu gostaria de ressaltar o excelente apoio da União dos Povos Indígenas,
representada pelo Francisco Avelino, que mostrou um grande preparo democrático,
procurando sempre ouvir os vários povos antes de propor o conjunto de itens a
serem trabalhados na nossa gestão. [o respaldo das ações do movimento e das
políticas] nunca é cem por cento, você sabe. Claro que há discordâncias, é até um
ponto positivo. É o contraditório necessário (Francisco Pianko Ashaninka, In:
Página 20, 18 fev. 2003).
A assessoria da Funai aqui no Acre, eu como índio acreano que representei ao
longo do tempo, em 12 anos de movimento indígena, a melhor assessoria é o
movimento indígena, principalmente a coordenação da União das Nações
Indígenas, com a qual a gente vem trabalhando junto, que é o Francisco Avelino
Batista, que hoje é o coodenador no seu terceiro mandato, [...] todos os outros são
colaboradores, que vão apoiar, vão falar mais na questão jurídica, que é uma coisa
que a gente não tem um [indígena] advogado, mas a questão política quem dá a
direção é o movimento indígena (Manoel Gomes Kaxinawá Programa AC-TV. TV -
Acre, 07 jun. 2003).
No início do primeiro mandato do Jorge Viana a gente apresentou a proposta de
criação da Secretaria dos Povos Indígenas, que foi engavetada. Ou seja, porque
estavam estudando: “o índio será mesmo capaz, será que não é”. As pessoas que
conheciam a gente sabiam que éramos capazes, mas não era só isso, dava a idéia de
que seria criar uma Funaizinha dentro do Estado. Quando foi reeleito, chegamos
com a mesma proposta. Reunimos todas as lideranças e fomos dizer para o
governador que quem queria a secretaria éramos nós, não eram as assessorias nem
eram as organizações não-governamentais, deixando claro que era para ajudar na
execução dos trabalhos do governo (Manoel Gomes Kaxinawá, 07 mar. 2003).
O movimento indígena não deve parar. Mais do que nunca nós temos mesmo que
pensar e elaborar políticas públicas e estar apresentando para o governo, batendo
na porta, dizendo: “Senhor governador, aqui existe um povo indígena, aqui tem
uma organização, um povo de expressão também. O Senhor está aí mas não foi só
os nawá que te colocaram aí não, nós tivemos a nossa contribuição”. Portanto, é
batendo lá, é continuando nas lutas que nós vamos conseguir. Porque nada do que
aconteceu, as conquistas do nosso movimento não foram de graça não, foi de luta
mesmo, é de estar indo lá, através de pressão, pressão mesmo. [...] É através das
políticas públicas mesmo, a gente tem que estar lá, batendo na porta e mostrando a
nossa cara e também através do Congresso Nacional, nesta questão do preconceito,
além das nossas, propostas, é com a elaboração de leis que venham barrar não só o
preconceito mas que venham trazer - posso até colocar - uma vida melhor para a
população indígena, para nós. É por isso que nós estamos estudando, nós estamos
fazendo de tudo para formar o nosso quadro para o movimento indígena. Nós não
queremos só ver índio na universidade, nós queremos ver deputados indígenas, ter
indígenas na câmara dos deputado e também no Senado, assim como, deputados
estaduais e vereadores. Nós estamos ocupando os nossos espaços, nós queremos
ocupar, para que? Para nós termos os nossos parentes lá e nós dando suporte aqui,
para termos as nossas conquistas, porque se não for assim, ninguém vai dar nada
não, ninguém vai abrir as portas não. Portanto, é através da elaboração de
políticas públicas e de pressão mesmo (Miralda Apurinã, 19 fev. 2003).
Entre 95 e 96, os professores passaram a se organizar, com as publicações e
criação de materiais didáticos, passaram a ter sua escola, definir um currículo
próprio, a língua garantida por constituição. Com isso, se pensou em criar uma
política pelos próprios professores, para exporem esse trabalho para a sociedade.
[...] Quando nós participávamos de um congresso de educação indígena a gente
percebia que existia um vazio no discurso. Só quem falava era o outro lado, nós
tínhamos muito mais coisas a serem ditas, e acabávamos nos tornando uma pessoa
que não sabia de nada. Então, refletimos e resolvemos criar uma organização para
falar como é nossa língua, a nossa cultura e tradição. E de que maneira isso
poderia ser implementado nas políticas públicas para que a sociedade entendesse
essa realidade (Isaac Pianko Ashaninka, In: Página 20, 15 abr. 2003).
A gente acabou decidindo que, por mais que a gente estivesse distante, era
necessário a gente criar essa organização. Pensamos isso até porque os nossos
conhecimentos e a nossa responsabilidade é muito maior que a do Estado do Acre:
tem a ver com essa organização social dos professores como categoria, dos
professores indígenas e a questão da especificidade. Mas foi só agora em 2000 que
nós sentamos, elaboramos o estatuto, a ata e legalizamos, e agora estamos correndo
atrás de projetos para a gente ter uma articulação dentro da aldeia. Nós
percebemos que mesmo existindo professores indígenas em cada povo indígena
ainda há esse problema entre professor e algumas lideranças locais que não
aceitam a educação escolar diferenciada. Talvez eles tenham uma interpretação
muito ruim, imaginando que a educação indígena é um ensino inferior. Então esse é
um dos problemas que a gente está tendo e que a nossa organização pode ajudar
(Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, In: GRUPIONI, 2003, p. 161).
A gente tem discutido muito em nosso encontros a participação de mais mulheres
como professoras, até agora é só homem, muito homem. Temos discutido que a
mulher é responsável pela educação dos filhos e não entendemos porque a maior
parte dos professores é homens, a maior parte dos agentes de saúde é homens
enquanto que as mulheres, as parteiras, as comadres é que fazem o trabalho que o
agente de saúde faz. Isto é coisa da aldeia mesmo, os cargos geralmente são só para
homens. A mulher é muito útil mas na aldeia. Por isso agora a gente exige
participação mesmo nas reuniões, nos encontros, tanto que a mulher indígena do
Acre e sul do Amazonas em quase todas as aldeias tem uma representante do
movimento de mulheres. E, apesar de muitos companheiros homens não gostarem
muito desta idéia, da mulher estar ficando muito independente, eu acredito que elas
estão abrindo os olhos. Nesta Assembléia da UNI [realizada de 14 a 18 de abril de
2003] as mulheres vão votar, estamos viabilizando a vinda de uma representante
por região (Maria Vanísia Poyanáwa, 06 mar. 2003).
220
cidadãos como qualquer um, com nossos direitos garantidos na Constituição. [...]
Infelizmente na prática não funciona. Nós precisamos deste conhecimento. Assim
como nós precisamos deste conhecimento para entender o mundo do branco eu
acredito que o branco deveria se aprofundar mais na cultura indígena, na língua,
nos costumes, para respeitar, porque nós respeitamos vocês como vocês são e
exigimos que nós também sejamos respeitados da forma que nós somos também.
Porque nós nascemos assim e gostamos de ser assim. E é isso (Maria Vanísia
Poyanáwa, 19 fev. 2003).
Não dá para nós vivermos bem sem a nossa cultura, sem o nosso saber. Até a gente
fica, vive no meio dos brancos, eu vejo a minha mãe, a minha avó, elas estão
atualmente morando aqui mas logo vão voltar para a aldeia. Elas estão aqui mas
elas fazem o beijú delas, fazem a caiçuma. Nós, estando no meio dos brancos, não
significa que nós vamos deixar de práticas da nossa cultura, de cantar, de falar na
língua. Porque, seja lá o local que você for, ali você vai ser índia, porque está
dentro de nós, está dentro da gente. Eu estou aqui, até posso ter uma cara de nawá,
de branco, mas o que está dentro de mim, eu me identifico como índia, o que eu
aprendi quando era pequena: comida, estas coisas, isto está dentro do meu sangue,
ali ninguém vai me tirar nunca. Eu posso me achar estrangeira aqui no meio dos
brancos. Eu só vou me encontrar junto com o meu povo, ali junto com o meu povo,
ali é minha terra, meu povo, minha língua (Miralda Apurinã, 19 fev. 2003).
As pessoas das comunidades são mais culturais. Nós que estamos no movimento
somos interculturais, multilíngües. Há momentos que estamos nos relacionando com
pessoas diferentes, a interculturalidade, queira ou não é uma exigência. É um
conhecimento que a gente adquire para se comunicar, relacionar com outras
pessoas, entender as coisas de outras culturas de outros povos. A interculturalidade
é importante pra nós no movimento (Vaulino Nunes Ferreira Kaxinawá, 12 jun.
2003).
Eu não concordo que os saberes indígena e não-indígena estejam no mesmo
patamar, colocado como igual. Porque, uma coisa é o nosso saber, a nossa língua,
é a nossa identidade “indígena”, tal como foi denominada pelo branco. Por outro
lado é também de grande importância para nós obter o conhecimento do homem
branco, porque vai ajudar a cada um de nós, [...] importante, porque quando se
detém o conhecimento do branco eu posso chegar para você e fazer um debate uma
discussão de igual pra igual. Aí é que está a questão em relação ao saber, para
poder discutir e elaborar as políticas que vem beneficiar as comunidades. É
importante este saber do homem branco, mas sim, valorizando com o nosso saber,
este que é único, é nosso, é singular, um conhecimento que é nosso. [...] Você pode
até penetrar, morar numa comunidade, querer descobrir mas você nunca vai chegar
a conclusão, dizer que tem todos os conhecimentos da nação tal, ou do povo tal,
nunca porque é singular, é único, é nosso. Daí então há uma diferença muito
grande, nós valorizamos muito isso. Com certeza o nosso saber, eu coloco acima do
saber do branco. Porque eu posso ter o conhecimento do branco e ele não pode ter
a totalidade do meu. [...] Eu gostaria de enfocar o seguinte, nós poderíamos viver
bem na comunidade usufruindo de um telefone, de ter energia elétrica, de ter uma
televisão, que são coisas que todo ser humano quer, a tecnologia está aí, então nós
podemos usufruir disso aí sem precisar mudar a nossa forma de viver, de comer o
nosso peixe amuquinhado, de falar na língua, isso não vai influenciar em nada.
Hoje nós estamos sofrendo um impacto muito grande do branco, a pressão é muito
grande e a gente é resistente. Nós somos e continuamos ser [indígena]. O que é que
nós estamos fazendo agora, os tempos mudaram, nós temos que preparar os nossos
jovens, nossas crianças reforçando mais ainda a nossa língua a nossa cultura:
“Olha, vocês têm que preservar, permanecer assim”. A gente não vai andar nu
como antigamente, porque hoje existe a vestimenta. Na verdade, nós poderemos
usufruir das coisas que o mundo oferece, do branco, e viver bem dentro de nossa
comunidade, porque nós só vamos viver bem lá. É lá que é nosso canto, é ali onde
nós nascemos, onde nossos avós foram enterrados, só vamos viver bem lá (Miralda
Apurinã, 19 fev. 2003).
Eu posso estar na cidade, o que importa é que eu tenho consciência da minha
identidade, eu falo a minha língua e falo o português para me entender com a
sociedade. Quando volto para minha comunidade eu sou aquela mesma pessoa de
quando saí de lá, significa que eu não abandonei, não perdi minha identidade. Sei
me portar dentro da sociedade que tem um comportamento diferente. Assim eu
entendo como interculturalidade, duas culturas que eu estou participando. A
interculturalidade é algo que existe no nosso meio temos que saber do ambiente
onde vivemos e do ambiente onde vai estar, esta é a importância de compreender as
culturas em que se vai conviver (Auricélio Brandão Shanenawa, 12 jun. 2003).
Quando a gente se fecha, não se assume, está permitindo que seja reforçando o
preconceito. Quando eu estive na região do rio Iaco, no ano passado, para fazer
uma oficina de trabalho na aldeia betel, eu falava muito com meus parentes sobre
esta questão de assumir sua identidade. Eu explicava muito para eles assim: olha
parente, pra gente ser “barro branco”, pra gente ser cidadão, para a nação
brasileira, a gente precisa de um documento, é preciso carteira de identidade
quando você tem esta carteira de identidade, ali está dizendo quem você é. Eu
falava para eles: nós enquanto povos indígenas - no caso, os Jaminawa - nós temos
que nos assumir como nós somos, com a nossa identidade. Porque a nossa
identidade é a nossa cara, é a nossa língua, nossa forma de falar. Como índio ou
como índia nós temos que nos assumir sim, porque a partir do momento que você
não se assume como índio, você está reforçando o preconceito das pessoas. E você
também é amparado por uma Lei e esta Lei te dá direito de você chegar para um
224
branco, para um nawá, e dizer: olha, você não pode falar isso porque a Lei garante
isso, eu posso te processar. É punindo, colocando essas pessoas na cadeia... não
sei... punindo, vai barrar um pouco esta questão do preconceito, em relação, não só
ao índio, mas também com relação ao negro, ao seringueiro (Miralda Apurinã, 19
fev. 2003).
Só acredito em melhores relações quando nós também passarmos a conhecer um
pouco mais, temos que ser instruídos, temos que nos esforçar para conhecer muito
mais o lado que não conhecemos para então estabelecer esta relação. Claro que eu
só considero uma boa relação quando o lado de lá passa a ter mais clareza de cá e
vice-versa. Senão não há nenhum tipo de coisa. Eu considero questão central o
respeito às diferenças. As diferenças não podem ser um pretexto para más relações.
Eu entendo assim e acredito que nós temos que manter este entendimento pois vai
ser assim que nós vamos alcançar novas relações (Antonio Apurinã, 21 fev. 2003).
A defesa dos saberes dos povos indígenas bem como a autodefesa em sua
cultura reforça a justificativa que explicitamos na introdução desta tese, quanto às reservas
das comunidades com pesquisadores. A afirmação e as reservas tendem a se traduzir em
posicionamentos políticos, como a defesa mais enfática do que lhes é próprio; a começar pela
autodenominação:
No Acre, nossa posição frente ao governo brasileiro é pela exigência de um plano
de proteção que de fato funcione para resguardar os direitos de nossos povos. [...]
Defendemos a continuidade do sistema social como forma de preservarmos nossas
origens e identidades (Sebastião Manchinery, In: A Gazeta, 30 jan. 2001).
As comunidades indígenas têm bastante receio em passar seus conhecimentos,
porque muitas vezes as pessoas que vão lá, pegam estes conhecimentos e fazem o
que não devem. Por isso nós indígenas ficamos muito com o pé atrás quando chega
pesquisador na Terra Indígena. Até mesmo as nossas equipes de saúde tem um
pouco de dificuldade porque as pessoas não se abrem, depende muito da confiança
que eles têm na pessoa (Chola Manchinery, 07 mar. 2003).
Embora os antropólogos usem o termo etnia, nós nos denominamos “povos”,
porque é assim que nós nos reconhecemos. A discussão a respeito de povos não é só
no Acre e sim uma discussão nacional e internacional. Nas conferências há um
consenso no termo povo, inclusive, na última conferência sobre racismo (na África
do Sul) foi aprovada a deliberação para que sejamos chamados povos. Então para
nos é povo. Quando antropólogos identificam como etnia, é eles que estão querendo
impor isso para nós. Nós somos povos e nós nos reconhecemos assim: povos
indígenas. Eu acho que isto tem que ser respeitado. É uma luta nossa, dos povos
indígenas, que já vem de muito longe, não é uma luta de um ano, de dois anos,
porque quando se conquista alguma coisa é porque houve lutas vindas de muito
tempo. [...] São décadas de discussão para que hoje pudéssemos chegar a um
denominador comum quanto ao nome a que devemos ser chamados. Então acho que
tem que ser levado em consideração (Miralda Apurinã, 19 fev. 2003).
declaram que é preciso investir junto à população não-indígena, para que também o segmento
majoritário da população brasileira tenha acesso a informações coerentes sobre a população
nativa, suas histórias e suas culturas.
As exigências, entretanto, não são postas só para o outro, também para si
próprios é preciso empenho para firmar relações respeitosas em condições de igualdade; ação,
na qual, a escola contribui em seu papel político submetida ao bem da comunidade:
Primeiro nós deveríamos nos voltar para nós mesmos enquanto pessoas enquanto
povos, não com este processo discriminatório, racista, mas como processo de
identificação de auto-afirmação, eu acho que este seria um primeiro passo para
gente eliminar parte desta situação que a gente vive hoje. A outra, é buscar novos
conhecimentos que possibilitem a gente melhorar. Muitas vezes há conhecimentos
que mais atrapalham do que ajudam (Sebastião Manchinery, 18 abr. 2003).
Após a nova Constituição houve um avanço no movimento, mas é preciso saber
lidar com os avanços, saber juntar as novas idéias, novas formas de organização,
estar adequado a esta nova realidade. Quanto mais se avança a relação entre
brancos e índios, surgem todas as especificidades, todas as diferenças culturais e aí
vem o chamado preconceito que precisa ser trabalhado. Essa relação vai exigir que
de fato se esteja qualificado, por estar diante de uma demanda um tanto quanto
complicada que hoje a gente tenta amenizar. As relações exigem da nossa parte um
grande esforço no sentido de saber quando devemos e para que devemos fazer o que
queremos com essa relação entre brancos índios. Eu acredito muito nisso (Antonio
Apurinã, 21 fev. 2003).
Eu quero que a educação da comunidade indígena seja pensada para não criar uma
dependência. A escrita deve chegar à comunidade indígena para que ela possa
através deste instrumento trabalhar sua existência, se comunicar. Aí é que está a
diferença, você não vai colocar a necessidade da pessoa se formar, ter diploma
para ser reconhecido perante a sociedade dominante (Francisco Pianko Ashaninka,
30 abr. 2003).
proteger e ter uma maior fiscalização, para isso é preciso de uma boa educação
com planejamento com treinamento, acima de tudo uma boa formação para as
comunidades indígenas e quem está na frente (Manoel Gomes Kaxinawá. programa
AC-TV. TV - Acre, 07 jun. 2003).
Para que sejam estabelecidas condições para relações respeitosas, tal como
argumentamos no terceiro capítulo, as lideranças do movimento indígena defendem medidas
políticas; ações para acabar com o preconceito e a discriminação imposta aos indígenas:
A gente sabe que toda a luta do movimento pode ser uma receita para acabar com a
discriminação. Eu digo sempre assim: não devemos dar a resposta na altura da
ignorância mas dar resposta dizendo que somos capazes de fazer e mostrando o
trabalho concreto que a gente fez. [...] A discriminação hoje está em todos os
lugares, está no posto de saúde, está nas escolas públicas e particulares, está em
todo canto. Quando a gente começa a fazer alguma coisa as pessoas começam a
falar mais baixo, aí diz: “pô, mas ele é um índio mas pô, ele está fazendo”, aí então
a melhor receita para acabar com o preconceito e a discriminação seria a educação
para todos. [...] Queremos uma educação de fazer de fato, o próprio índio fazendo
seus projetos, colocando no papel, encaminhando. Ter o índio no legislativo mirim,
como vereador, como deputado para fazer as emendas daquilo que o estado deve
228
executar dentro dos direitos indígenas. Eu acho que fazendo isso é acabar com o
preconceito e a discriminação. [...] Eu sempre falo assim: o preconceito e a
discriminação são doenças que não se acabam. Elas diminuem mas não acabam, eu
digo assim: os próprios brancos têm preconceito com os brancos, quanto mais
contra o índio que é diferente. Eu acho que a melhor ação para diminuir é trabalhar
com autonomia, porque hoje o índio é muito discriminado por dizerem que o índio
ainda precisa de alguém pra ele se manter com sustentabilidade. Para manter o
índio não precisa de sacolão, não precisa estar dando uma esmolinha, eu acho que
é dar condição, dar conhecimento para que ele faça. Dar o instrumento de trabalho,
o conhecimento principalmente das leis (Manoel Gomes Kaxinawá, 07 mar. 2003).
Primeiro tem que ter ações de governo. Depois, para acabar com o preconceito tem
que ser produzido cartilhas, vídeos, materiais sobre os indígenas. Garantir o acesso
de indígenas na universidade e assim, mostrar que o indígena é gente igual a
qualquer cidadão não-indígena. Quando vou dar palestras nas escolas percebo que
o pessoal não distingue a diferença de um Shanenawa para um Manchinery que é o
mesmo diferença de um índio para um japonês (Carlos Brandão Shanenawa, 07
mar. 2003).
O preconceito é menor quando as pessoas que estão no poder conhecem e ajudam a
combater e o poder público tem como fazer isso, investindo no esclarecimento, no
debate, em atos públicos, na valorização da cultura. Se os governantes que estão no
poder estiverem valorizando a sociedade vai entender a importância. Se não fosse
importante o governo não estaria valorizando, não estaria incentivando. Se aqueles
que estiverem no poder valorizarem as culturas aí sim se combate o racismo, o
preconceito (Auricélio Brandão Shanenawa, 12 jun. 2003).
É preciso conclamar as autoridades do governo [...] e dirigentes de entidades de
classe para a urgente necessidade de se eliminar atitudes segregacionistas contra
os indígenas da região, sob pena da História julgar negativamente tais eventos e
processos. Assim, a UNI é contrária às diferentes práticas de exclusão social, seja
através da morte lenta de pessoas e culturas produzida pela venda ilegal de bebidas
alcoólicas pelos comerciantes locais; pela manipulação de lideranças; seja pelo
descaso das autoridades frente às reivindicações dos povos indígenas Shanenawa,
Asheninka, Madija e Kaxinawá, etc. Enfim, reitera-se a necessidade de se
desenvolver uma mentalidade pública de diálogo e respeito às populações indígenas
da região. Esta é uma tarefa tão urgente quanto necessária, evitando-se, assim
formas veladas e manifestadas de discriminação étnica que podem redundar em
novos atos de violência. [...] Em suma, a União das Nações Indígenas do Acre e do
Sul do Amazonas – UNI [...] Reafirma ser inconcebível que, após 500 anos de
genocídio, escravidão, usurpação de territórios, destruição cultural, que o Acre
reproduza, as mesmas práticas etnocêntricas e discriminatórias do passado, que
foram responsáveis pela dizimação de dezenas de povos indígenas nesta região do
Acre e sul do Amazonas. A UNI está vigilante e disposta a defender de todas as
formas os direitos dos povos indígenas, porque acredita que neste país não há lugar
para aparteid étnico (Manoel Gomes da Silva, In: A Gazeta, 31 jan. 2002).
Para o resgate da dignidade dos povos indígenas, é preciso investir nas escolas
não-indígenas, desconstruindo os estereótipos imputados aos indígenas, fazer reconhecer as
culturas dos povos brasileiros, a iniciar pelos que dividem a mesma região geográfica:
O reconhecimento das diferenças culturais, a valorização das culturas e da história
indígena só vai acontecer a partir do momento em que todos tenham além do
conhecimento que já estudam convencionalmente, passe a fazer parte dos currículos
escolares a história a cultura de todos os povos do Brasil. Eu acredito que em
algum momento já estão trabalhando isso, mas precisa ser de forma mais incisiva.
Com base nas conquistas que já tivemos, eu acredito muito nisso. Em qualquer
lugar onde eu estiver eu defendo isso, chamo atenção para isso. Até porque a gente
vai tomar conhecimento de fato do Brasil quando puder realmente infiltrar as
outras culturas brasileiras em qualquer nível escolar. Não é fácil, ainda existe uma
229
resistência muito grande mas aos poucos nós vamos realmente conseguir. É possível
até porque hoje eu vejo “enes” instâncias, pessoas interessadas em compreender
isso ajudando de alguma forma a levar isso para ser discutido. Já existe um
cenário, um espaço para esta discussão, o que é uma grande coisa, o que precisa
agora é intensificar, fazer valer (Antonio Apurinã, 21 fev. 2003).
Nós que sabemos um pouco da verdadeira história sabíamos que aquilo ali não era
verdade. Sempre colocavam uma imagem, mostravam uma imagem do índio como
preguiçoso, com uma série de coisas que não é verdade. O índio trabalha e muito,
só que de acordo com a sua necessidade. E eu acredito que pra gente reverter um
pouco desta situação, os livros didáticos, a história, precisa ser contada na sua
forma verdadeira, real. E, plantada de forma verdadeira, dentro das escolas, dentro
das universidades, para os jovens, para as pessoas que estão saindo das
universidades, principalmente para os estudantes de Direito e, enfim, eu acho que
muita gente precisa ser capacitada, aprimorada, mesmo porque muitos praticam
violência, que não é só violência física, nós sabemos que violência é muito ampla
(Maria Vanísia Poyanáwa, 19 fev. 2003).
Pra você ver o quanto o índio tem contribuído com esta nação, com esta terra
chamada Acre, entretanto, é exaltada a cultura dominante, enquanto que é
reforçado o preconceito para com as culturas indígenas. [...] É preciso que mais
professores venham a abraçar esta questão, esta luta, esta causa, porque é questão
mesmo de conhecimento. De passar, de os alunos e futuros professores terem estas
informações. Eles detendo os conhecimentos no trabalho com seus alunos, apesar
da educação familiar, o professor vai influenciar muito. Os professores hoje não
sabem, eles não conhecem as culturas do Acre, eles não conhecem os povos
indígenas que moram aqui. Eles não sabem de forma alguma. Eles não sabem nem
da própria história deles, se é descendente de seringueiro, nem sabe porque veio
morar na cidade. Eu acho que está aí, a questão é a mudança de mentalidade das
gerações que estão saindo da universidade, dos professores, da educação, nas
escolas, é interagindo. Os professores buscando mais o movimento indígena, se
aproximando mais desta população, não se distanciando, não ensinando somente
através dos livros, mas sim, estar junto ali, tendo uma interação, uma troca de
informações, de cultura, eu acho que isto aí vai contribuir muito, vai ajudar.
Também nas bibliotecas, nos livros, você não vê muita informação da história do
Acre. Você vai ver no nível médio para cima mas é uma coisa passada muito por
cima, com quilômetros distância, você não tem aproximação, até dos próprios
historiadores que fazem os livros. Eu acho que tem que ter esta questão nas
bibliotecas, tem que estar lá a história do Acre, realmente como ela é, a história
indígena, a música indígena, nosso mitos, os rituais, tudo isto faz parte da nossa
vida, não adianta você esconder. Não adianta botar uma peneira no sol para cobrir
porque não vai cobrir. Eu acho que é por aí, esta revolução de mentalidade mesmo.
Eu acho que a universidade vai contribuir muito com isso, lá também, não só lá,
mas é de lá que vão sair os novos professores, os novos sociólogos, advogados. É
preciso abrir este debate na universidade e dentro das escolas também. Na
Secretaria de Educação, tem que ter o índio lá, estar participando dos
planejamentos, dos currículos pedagógicos, tem que ter uma participação indígena
porque se não tiver, vai continuar da mesma forma como está. Então, estas pessoas
que estão ali tem que mudar esta visão, esta mentalidade e estes espaços têm que
ser abertos porque é através destes espaços que vai mudando (Miralda Apurinã, 19
fev. 2003).
entre estudiosos das ciências ocidentais, que estudam o “outro”, para os quais, a escola,
sobretudo pelo que representou no passado para os povos indígenas continua uma instituição
mais perniciosa que benéfica para as culturas nativas. Ouvimos, por exemplo, que a escola é
mais perniciosa que o garimpeiro numa comunidade indígena porque o garimpeiro, eles já
sabem que é inimigo enquanto que a escola chega como amiga; assemelha-se a um “cavalo de
tróia”. Argumentos usados para contestar que a escola deva ser universalizada.
Temos uma situação concreta, na qual, se formos esperar pela sociedade
dominante, o velho projeto homogeneizante seguirá seu curso. Restrições postas ao que está
em desvantagem, num contexto de pressão e interdependência com a sociedade regional,
como a situação que analisamos, têm contribuído para retardar a possibilidade da população
indígena restabelecer sua dignidade para firmar um diálogo na condição de igual com o não-
indígena. Enquanto isso, persiste, mesmo que subjetivamente, o “medo” de que o indígena
não será “capaz” de se apropriar da escola e reelaborá-la como instrumento a favor de seus
projetos. É ilustrativa, nesta questão, a fala de lideranças, como no caso da criação de uma
Secretaria de Estado para os povos indígenas, cuja pasta, diante do poder político do
movimento, inevitavelmente seria ocupada por um indígena, para a qual o provável cotado
para a função percebe a restrição do governante, como quem diz: “será que o Índio é capaz?”.
Como argumento contrário aos “perigos” da escola, pesa a constatação que
apresentamos com esse trabalho; as condicionantes a que ela é submetida, além do fato de a
sociedade dominante dispor de mecanismos, até mais eficientes, para construir a “ordem
civilizatória”. Tomando sob a perspectiva dos povos indígenas, a escola é um direito, uma
conquista, ou, como defendem professores e lideranças da região do rio Envira: queremos
uma escola boa, de primeira qualidade, com sua estrutura completa, mas com ensino
diferenciado e professores qualificados, da própria comunidade.
Diante do fato, quem somos nós para privar o “outro” do acesso ao
instrumental, que é usado para discriminá-lo, para categoriza-lo como “primitivo”? Em tais
circunstâncias, na atuação de quem se põe no trabalho “junto com”, tal como nos propusemos,
o risco maior a ser evitado é o de ficar preso ao ideário de verdades da cultura ocidental - que
por se auto-classificar como mais evoluída, considera saber o que é melhor para o outro - e
com isso decidir pelo outro.
No caso da educação escolar, é injusto, ou uma forma de preconceito,
sobretudo com professores com 10 a 20 anos de experiência, não dar os devidos créditos a
seus esforços e aos próprios resultados obtidos em seu trabalho de tornar indígena a sua
escola.
235
destaque ao preconceito, por tratar-se de uma das forças que mais interfere no mundo
indígena. Destacamos que o preconceito está ancorado em situações históricas, enraizado, a
tal ponto, que parece ser hereditário, isto é, o desprezo que os povos nativos foram
submetidos, desde o processo de invasão colonial, é transmitido por gerações, tanto que,
adjetivações usadas pelos colonizadores no passado não soam estranhas nos dias de hoje.
Na região da Amazônia ocidental, pelo fato da colonização ter ocorrido num
período mais recente, o preconceito teve desdobramentos particulares, sobretudo com a
chegada dos nordestinos na região, quando a importância do indígena desaparece até mesmo
na narrativa da história. Os indígenas só serão lembrados na condição de brabos mobilizando
patrões e seringueiros em expedições armadas, promovendo os ataques “preventivos”, as
correrias. Aos nordestinos serão dados os créditos na formação da identidade, da cultura
acreana, mesmo que esta cultura esteja assentada em saberes das culturas indígenas. O
elemento indígena é apagado diante do prestígio das novas forças de trabalho. Desse modo, as
novas gerações, sobretudo as dos centros urbanos, foram convencidas de que o índio não
contribuiu para a história acreana, daí a indiferença ou a idéia de que não existia “índio” no
Acre. Por outro lado, entre os seringueiros e população rural, em geral, o desapreço ao ser
indígena, “seres” sujeitos ao extermínio sem que pesasse remorso ou culpa a quem o fizesse,
somando-se os conflitos ainda recentes, resultou em forte carga de desprezo às “coisas de
índio”, sobretudo, a negação da ascendência indígena, apesar dos traços visíveis das feições
indígenas só admite-se a origem nordestina.
Diante de tal carga negativa, resistir para o indígena, implicou em esconder a
identidade cultural. A estratégia possível para sobrevivência física, que restou aos nativos, foi
negar-se como indígena e disputar espaço com o seringueiro para tornar-se um igual no
trabalho para um patrão. Ao sobrevivente indígena ficou a categorização: “caboclo”, cuja
valoração varia entre os conceitos de sujo, preguiçoso, bêbado, assassino, traiçoeiro, bicho e
pobre.
Atualmente, de acordo com levantamento realizado pela Funai, no Acre o
preconceito é responsável por 90% das causas de agressões e homicídios praticados contra os
indígenas, confirmando que a eliminação física e cultural atravessa a sociedade brasileira do
passado aos dias atuais. O preconceito, hoje, como afirmam as lideranças indígenas, ocorre
entre os cidadãos comuns e nas repartições públicas, de forma explicita, incidindo na relação
direta com indígenas, impedindo a entrada em repartições, ou, de forma sutil e elaborada, na
contestação de direitos, por vezes, partindo de pessoas que deveriam mediar a extensão de
serviços às comunidades indígenas. A negação da escola também persiste, tal como faziam os
237
patrões de um período recente, o cidadão comum questiona: “pra quê o índio quer estudar?”,
“para quê curso superior pra índio?”
No âmbito da perspectiva da classe dirigente no estado do Acre, a sutileza do
preconceito manifesta-se, também, nas políticas destinadas a reforçar o sentimento de
pertença regional. O “acreanismo”, o sentimento patriótico promovido pelo poder público,
assenta-se na narrativa da história acreana com a qual se construiu uma herança cultural, um
destino histórico compartilhado, estigmatizando e minimizando o “outro”, ou ainda, na sua
comum referência apenas ao passado, anterior à chegada dos atuais antepassados, abafando a
incômoda presença atual deste “outro”.
A celebração da conquista não só não faz justiça às nações milenares que
sofreram o assalto colonial bem como soa mal diante do fato de a história regional não se
tratar de um passado longínquo. Os massacres denominados “correrias” ocorreram até a
década de 1960. Para os indígenas, a verdadeira história está viva na memória, e, ainda mais
viva, nas tatuagens com as iniciais do patrão que os escravizou. Essa forma distorcida de
contar a história reforça a condição de inferior, imposta ao indígena Pela lógica, se foi
honroso o feito do colonizador, o indígena mereceu ser vencido.
Por fim, o pouco apreço ao indígena reflete-se na desinformação e na pouca
vontade de conhecê-los, refletidas em perspectivas limitadas, como o enquadramento de
povos distintos, numa formulação única, a “raça” indígena. Tanto a imprensa regional como
técnicos de diferentes setores, dada a formação estreita, tem dificuldade de ver cada povo
indígena como uma “totalidade”. Naturalmente que este entendimento não se generaliza. Há
técnicos, embora poucos, com trabalho dedicado à população indígena, conhecendo-os
melhor.
Num outro aspecto, sobretudo quando se refere ao impacto da escola sobre as
comunidades e sua cultura, persiste a idéia de cultura como um conjunto de valores que se
perde, daí, se deduz que, na comunidade cuja população veste roupa e fala português, estes já
não são indígenas, no máximo caboclos. Com base neste entendimento, as escolas levadas às
comunidades indígenas, até o final da década de 1990, eram escolas rurais, e os supervisores
que as acompanhavam proibiam o uso da “gíria”, língua indígena, nas escolas, nas quais era
cobrado o domínio de conteúdos, exclusivamente, da escola do “branco”, com provas
elaboradas por técnicos das secretarias e inspetorias de ensino. Com base neste entendimento,
também se firma a idéia de que se a escola for implantada em uma comunidade indígena e,
sobretudo, se esta escola possibilitar a seqüência dos estudos, o indígena, fatalmente, estaria
“perdendo” a sua cultura e sendo incorporado à cultura nacional.
238
teias globais, mantendo viva as perspectivas universalistas e, tendo como efeito, num primeiro
momento, a desconfiança das pessoas sobre seus valores culturais, sobre a língua e sistemas
educativos locais. Como conseqüência, é reeditado o desprezo à própria língua e cultura,
tornando as comunidades propensas ao abandono de tudo. Desse modo, a cultura dominante
leva adiante o projeto da nova ordem civilizatória, individualista, condenando as cidadanias
coletivas e pregando o destino comum de todos, como a Rede Globo de Televisão define:
“indivíduos consumidores”.
Nestas circunstâncias, comparando com os possíveis malefícios, levados pela
escola a uma comunidade indígena, o avanço das novas tecnologias é muito mais eficiente.
Além do grande poder de homogeneização cultural, a televisão se faz acompanhar, também,
do poder de nomear, de classificar as pessoas; tende a cegar a sociedade para as diferenças,
“vendo” todos como excluídos, à medida que estes não têm como adquirir os produtos de
consumo. Desse modo, é reelaborado o poder da sociedade dominante, poder que dá caráter
de verdade ao discurso; o poder de definir quem é quem, quem é e quem não é excluído.
É neste poder que exerce a cultura dominante, que se insere o debate sobre os
indicadores de desenvolvimento humano na Amazônia. Neste caso, como explicitamos no
segundo capítulo, os políticos do Acre têm feito defesas públicas pela “mudança” dos
indicadores sociais para aferição dos índices de qualidade de vida, na região amazônica, e
prometem, em 2004, realizar um senso para obter dados específicos e com eles debater tais
índices. O risco que se corre é de, antes de fazer valer o reconhecimento das diferenças
socioculturais, tornar oficial as desigualdades no acesso a direitos comuns a todos os
cidadãos; além do mais, a quem interessa os índices ou a mudança deles? Certamente não é à
população excluída; a estes, interessa ações concretas, que garantam melhoria de condições de
vida.
Persiste uma dificuldade enorme da parte da sociedade nacional, em refletir
com as comunidades e ver a forma mais adequada, respeitosa, na tradução dos direitos de
cidadania. Na dúvida, o poder público trata todos sem distinção, é o caso do assalariamento e
das aposentadorias. Não se trata de privar o direito de cidadania dos indígenas, e, sim, ao
estender o serviço a uma comunidade, deve haver a negociação e o direito de cidadania
adequar-se à conotação, que assume o bem viver, nesta comunidade.
Portanto, é neste engodo do poder público, que faz sentido a mobilização
indígena. As falas do sexto capítulo revelam que a estratégia do movimento indígena, diante
do preconceito, é não ficar esperando que o outro mude sua forma distorcida de tratamento e,
diante das limitações dos agentes públicos, alheios ao mundo do outro, estendendo coisas
240
vêm a necessidade de se ter algumas pessoas da comunidade que falem a língua portuguesa,
“para se defender”, como afirmam.
A escola, como uma instituição danosa, entre os indígenas, reflete-se apenas
nos discursos de lideranças politizadas, sobretudo professores. Na verdade, a maioria dos
indígenas vê a escola como um serviço básico. É consenso, entre a população indígena, quais
foram as principais conquistas, por eles obtidas, nos últimos anos, nas quais, inserem-se os
territórios, a organização, os projetos de subsistência, o atendimento de saúde e a educação
escolar mediando todo este avanço. Portanto, tal como os territórios, também a escola insere-
se no conjunto das “conquistas”. Constituindo um direito conquistado, está superado o debate
se a escola interessa ou não.
O fato de os professores serem indígenas, da educação escolar não ser um
serviço prestado por estranhos à comunidade, e pelo fato de as escolas nas comunidades
indígenas não estarem mais subordinadas a setores antiindígenas, tornou esta instituição um
espaço muito mais próximo da comunidade onde está inserida. Nestas circunstâncias, após
alguns anos de presença da escola nas comunidades, famílias e lideranças querem ver
resultados. Nas reuniões comunitárias, com o papel decisivo das líderes do movimento, a
noção de qualidade vai sendo elaborada, ilustrada no relatório de seminários, tal como
destacamos no capítulo anterior, nos quais, não se debate se o povo quer ou não escola, o
debate entre comunidade, lideranças e professores é posto em outro patamar: “da educação
que temos à educação que queremos”.
As experiências, as iniciativas em tornar diferenciada a escola em comunidades
indígenas, no estado do Acre, tal como nos referimos no quinto capítulo, remontam a 20 anos.
A falta de vontade política ou o preconceito, manifestado na forma de indiferença, retardaram
a transformação de tais experiências em resultados efetivos, em todas as comunidades.
Somente a partir de 2000, o governo do Acre assume a política de educação diferenciada para
as comunidades indígenas. Só a partir de então, são criadas condições favoráveis para uma
resposta séria em educação, atentando para a diversidade sociocultural indígena.
Assim, embora o estado do Acre tenha uma política de educação para os povos
indígenas, pautada no respeito à diversidade de povos e a diversidade de interesses das muitas
comunidades, esta é, das demandas requeridas pela população indígena, a mais demorada para
ser efetivada a contento, seja pelo lento processo de sua ressignificação, adequação ao ideal
de escola requerido, seja pelo conjunto de demandas que estão envolvidas na sua viabilização
prática. Tal como temos enfatizado, a demora está no longo processo que requer a formação
de professores e a produção de materiais e recursos específicos para funcionamento das
243
escolas. Enfim, problemas comuns que afetam as escolas, em geral, decorrentes das políticas
de baixo investimento em educação e agravados por ainda ser novidade, no sistema
educacional brasileiro, a proposta de ajustar-se à pluralidade cultural.
As divergências surgidas com o aprofundamento do debate sobre o papel da
escola exercem efeito positivo por não permitir que sejam atropelas as diferenças culturais. Os
conflitos tendem a ser comuns, sobretudo no âmbito curricular, tanto no debate dos conteúdos
de ensino, quanto nos demais aspectos relacionados a estrutura e ao funcionamento da escola.
Por outro lado, o trabalho do professor ocorre num contexto de luta pela
conquista e garantia dos territórios indígenas; luta por alternativas de sustentabilidade, pela
autonomia econômica, contra discriminação e preconceito. Este contexto é questão do
cotidiano da comunidade onde a escola, professores e alunos são envolvidos, fomentando e
difundindo estratégias, debatendo direitos; enfim, a escola exerce um papel político a partir
das questões de interesse da comunidade. Este é um caminho, também apontado nas falas do
capítulo anterior, a relevância dada à história das lutas do povo como conscientização para
que a comunidade se envolva na busca de soluções para problemas atuais. A invasão e o
cativeiro no passado e as conquistas dos últimos tempos, como conteúdo escolar, auxiliam na
construção do futuro, na afirmação da identidade, na defesa do seu território.
O vínculo indissociável da escola com as lutas políticas do povo e do
movimento são o que dão sustentação para que a escola não constitua em elemento alienígena,
a serviço da cultura dominante. Portanto, a construção de “escolas indígenas”, no contexto
político atual das comunidades indígenas, só subsiste se estiver vinculada aos interesses do
movimento indígena e aos interesses das comunidades. Dizendo melhor, vinculada aos
projetos de vida e de futuro da comunidade onde está inserida. Um exemplo de escola que não
vingou em nenhuma das comunidades da região, dado o seu perfil estranho, foi as escolas dos
missionários americanos, das missões Novas Tribos. Quando indagados sobre o por quê da
descontinuidade, os indígenas afirmam que expulsaram ou mandaram embora os
missionários, por desentendimento. Fatos que, de certa forma, confirmam que a escola, para
subsistir, é forçada a adequar-se aos projetos políticos da comunidade.
Daí, a escola ser construída a partir da cultura da comunidade, onde se parte do
respeito para a promoção de valores que são próprios do povo, aspectos que constituem a sua
cultura e lhes permite o auto-reconhecimento e serem reconhecidos como tais. Os diferentes
trabalhos, que conhecemos em comunidades indígenas, comprovam que os avanços têm
acontecido, principalmente, onde há envolvimento da comunidade, na forma de comunidade
educativa. Como declaram alguns professores, para se ter a escola diferenciada é preciso que
244
os próprios indígenas façam. Segundo eles, não é a escola indígena adaptar-se ao sistema mas
o sistema adaptar-se às comunidades.
Avançando mais na construção da escola, há a proposta do movimento
indígena, em âmbito nacional, tal como destacamos no terceiro capítulo, idéia reforçada em
depoimentos de lideranças, propondo um sistema educacional próprio, voltado para os povos
indígenas, com acompanhamento e supervisão de um órgão ligado ao governo federal.
Portanto, o movimento indígena acredita que, desvinculando a escola indígena das amarras do
sistema nacional, além de evitar a possível submissão da escola indígena aos sistemas
municipais, em sua maioria antiindígenas, propiciaria às escolas, com mais autonomia, que se
tornassem indígenas.
Concretamente, os sistemas próprios não se enquadram nas “concessões” do
projeto dominante. Apesar disso, com a mobilização indígena, as escolas vão sendo moldadas
pelas comunidades, ligadas à historia do povo e dos demais povos indígenas, às lutas pelo
reconhecimento, pelo restabelecimento de dignidade e do bem viver em seu território,
tornando-se um instrumento importante na resistência. Com autonomia restrita, o recurso é
lidar com as formas possíveis de diferenciação. É onde se insere a decisiva atuação dos
professores indígenas.
Portanto, um recurso às limitações imposta pelo sistema dominante é a
formação consistente e continuada do professor. O processo de formação, quando tende a
programas específicos - apesar das ressalvas de lideranças como as mencionadas no capítulo
anterior, quanto ao fraco domínio de conteúdos “universais” - tem um aspecto positivo, que é
o fato dele se fazer acompanhar do trabalho político de conscientização do que seja a escola,
da legislação, dos direitos, refletindo nas lutas das comunidades, tal como mencionamos
acima. Dizendo de outra forma, assim como há escolas, as quais, mesmo sendo conduzidas
por professores indígenas, não reproduzem valores culturais indígenas, é, também, no
professor com a devida formação, que se assenta a possibilidade de superação da perspectiva
monocultural e a possibilidade de driblar as amarras do sistema.
É nos cursos específicos que o professor é instigado a pesquisar, conhecer e
aprofundar mais a cultura de seu povo. As falas de professores, ao contarem sua história nesta
função, partem da escolha da comunidade ou o convite do liderança para ser professor de sua
Aldeia, passando pela participação nos cursos, de onde ampliam a compreensão do papel
político da função, concluem que foi no curso que puderam descobrir o valor que tem a
identidade indígena.
Por fim, os rumos da educação escolar, entre os povos indígenas na região,
245
Enfocando de forma mais reduzida, os interesses que são postos sobre a escola,
entre as comunidades indígenas, tal como já explicitamos, tais interesses apontam para
caminhos diversos, que vão do fortalecimento da comunidade, do povo, em torno dos valores
culturais, isto é, da emancipação sociocultural, ao mesmo desejo do não-indígena, à
possibilidade de um contrato. Sendo que, neste segundo caso, não entra em questão se
interfere ou não em seu vínculo com a identidade do povo, da comunidade. Apesar desta
diversificação, arriscamos pontuar, a seguir, atribuições que vêm sendo postas à escola;
aspectos que são recorrentes nas falas do sexto capítulo.
A escola, sobretudo para o movimento, para as organizações indígenas, é muito
importante, necessária, para que disponham de recursos técnicos para fazer o controle social,
tal como enfatizam professores e lideranças, no capítulo anterior. Controle social, que vem se
tornando a principal tarefa do movimento indígena, frente à pressão exercida pelos
mecanismos universalistas de globalização, frente o avanço acelerado dos interesses
econômicos e suas variações sobre o saber e recursos naturais, nas terras indígenas; assim
como, para enfrentar as ações alienadas do poder público, e demais pressões decorrentes do
preconceito dos não índios.
Ainda na perspectiva das lideranças das organizações, a escola tem o papel de
propiciar a aquisição de conhecimentos como forma de favorecer condições para relações em
condição de igualdade. Aspecto enfatizado nas falas do capítulo anterior, o necessário
domínio do conhecimento dominante, inclusive com acesso à universidade para aprender a
viver juntos, a viver com os outros. Neste âmbito, as relações mais favoráveis não acontecerão
apenas por causa do conhecimento, mas pelo fato de os indígenas demonstrarem que são
capazes de fazer, e com competência. Por exemplo, fazer a escola diferenciada de qualidade e
que funciona.
Para algumas lideranças e, sobretudo, na compreensão dos professores, a
educação escolar é vista como um processo de conscientização, de conhecimento da política
da sociedade dominante, conhecimento das leis, dos direitos. De alguma forma, os indígenas
concebem que o acesso aos conhecimentos, os saberes escolares não-indígenas, também
contribuem neste papel político da escola, principalmente quando se faz a distinção,
mostrando os dois mundos, como afirmam as lideranças: deixar claro que um não é igual ao
outro.
No mesmo sentido político, o papel da escola é posto como possibilidade de
aquisição do conhecimento do branco como defesa, forma como o indígena concebe a
possibilidade de relações sem ser inferiorizado, ridicularizado pelo branco, nestas relações. É
248
de viagem da cidade.
Nesta realidade diversa a escola está presente e tendendo para papéis bastante
diferentes. Para os povos Madija e Asheninka seus mundos mantêm o curso com base em sua
cultura; a maioria da população é monolíngue na língua indígena e a escola é um recurso mais
do que para escrever, para que algumas pessoas aprendam a falar o português. Na falta de
pessoas alfabetizadas para trabalhar como professor, como no caso de uma comunidade
Asheninka, estes têm apelado para indígenas de outro povo, convidando-os para ensinar
aspectos elementares da cultura nacional para auxílio nas relações comerciais e políticas com
a sociedade regional e o governo. Outro fato particular, tal como situamos no quarto capítulo,
algumas comunidades Madijá tiveram alfabetização apenas na língua materna. Também
nestas, a escola, hoje, tem o papel de proporcionar, a alguns, o domínio da língua portuguesa.
Por outro lado, sobretudo entre o povo Shanenawa, a especialização do
trabalho escolar, e o fato de os professores serem jovens, com pouco domínio dos saberes, das
tradições culturais, a reivindicação deste povo é pela contratação de “professores na cultura”,
tal como é manifestado em documento citado no capítulo anterior sobre a “educação que
queremos”. Estes novos educadores estariam incumbidos de trabalhar a língua indígena,
saberes e tradições do povo. Portanto, reivindicam o reconhecimento, inclusive com ajuda de
custo, do trabalho feito pelos velhos: as “bibliotecas”, ou “enciclopédias semoventes” com
participação regular e contínua no trabalho escolar. Afora a polêmica, sobretudo com o poder
público, para administrar as demandas que vão sendo postas, tais situações retratam o estágio
em que se encontra o debate sobre a educação escolar. Entre o povo Huni Kuĩ da região, estão
os trabalhos mais bem sucedidos em educação diferenciada de qualidade e há, também, neste
mesmo povo, professores que têm vergonha até de falar a língua indígena.
Portanto, neste contexto regional, as escolas, diferenciam-se de comunidade a
comunidade. Algumas escolas, sobretudo aquelas em comunidades próximas à cidade, tendem
a um funcionamento semelhante à escola não-indígena, dado o interesse dos jovens na
continuidade dos estudos, em nível médio, não oferecido na comunidade. Estas escolas, que
tendem a acompanhar a escola do “branco”, visam, portanto, a continuidade dos estudos, e
diferencia-se pelos professores, que são indígenas, membros da comunidade, e favorecem,
pelo menos, com o não estranhamento aos costumes e valores culturais na comunidade onde
trabalha. Diferenciam-se, também, pela inclusão de matérias relacionadas à cultura do povo
como a língua, a arte e as tradições. As escolas mais distantes caracterizam-se mais como
interculturais, considerando que a língua falada na escola é a língua indígena. A cultura
indígena está presente, em diálogo, em confronto com a língua, e instrumentos como a escrita
252
e a matemática do branco. Escolas que têm mais este caráter utilitário de domínio de
ferramentas para relações comerciais.
Por fim, referindo-nos ao conjunto das reflexões apresentadas acima, podemos
afirmar que, em grande parte, as escolas estão estabelecidas nas comunidades, como uma
instituição a mais, sob o domínio da comunidade; isto é, gradativamente, com a intervenção
política do movimento, com a confrontação com as diferenças e com os saberes, a escola vai
se caracterizando como uma instituição da comunidade e não do branco. Enquanto que os
impedimentos para que a educação escolar avance para um formato específico em cada
comunidade, integrando-se no contexto dinâmico das culturas indígenas com relações com a
sociedade não-indígena, são as restrições relacionadas, sobretudo, à frágil formação dos
professores e o insipiente acompanhamento, assessoria pedagógica que garantiria tanto o
planejamento das atividades escolares quanto à produção de material próprio.
Enfocando outro aspecto, demos destaque, nesta pesquisa, ao diálogo com os
indígenas, sobretudo professores e lideranças. No entanto, as falas, mais do que fontes
importantes para o nosso estudo, têm uma relevância muito maior como instrumento de luta.
O direito de falar por suas comunidades, no espaço público, enquanto parcela da população
regional e destinatários de políticas públicas, representa uma das principais conquistas do
movimento indígena, na qual a conquista da escola teve participação decisiva.
Portanto, considerando a herança histórica de exclusão, tem especial
significado, dentre as conquistas da população indígena, sobretudo do movimento, o direito a
falar por si, pela sua comunidade, pelo seu povo, e à medida que o movimento se fortalece,
falar, por meio dos organismos indígenas, em nome da população indígena. Até recentemente,
como declaram as lideranças, em falas citadas no sexto capítulo, era preciso de indigenistas,
de instituições governamentais ou não-governamentais, para falar por eles. A sua voz não
tinha poder de legitimidade não só pela legislação da sociedade dominante, que até 1988 os
considerava incapazes, mas pela própria sociedade, em função de toda a carga histórica de
desprezo e preconceito.
A legitimação do discurso estava assentada, exclusivamente, nos critérios de
verdade da cultura ocidental. Enquanto a dignidade não acompanhava o “ser indígena”, estes
não dispunham dos requisitos para validar suas falas. Da conquista dos territórios à conquista
da escola e do poder político, por meio das organizações, acompanhou a melhoria de
condições do bem viver, fator que atua no restabelecimento da dignidade e, com esta, refletida
inclusive na valorização da cultura indígena na escola, onde são criadas possibilidades de
restituir o poder de verdade de suas falas e o seu discurso com valor maior na comunicação. É
253
neste conjunto que se assenta a nossa insistência, neste trabalho, na questão da emancipação,
em torno da dignidade, a qual pressupõe o bem viver, pressupostos para a conquista do poder
de verdade do seu discurso, condição para a comunicação, para relações respeitosas entre os
diferentes.
O restabelecimento da dignidade do outro, também se faz necessário para
garantir o poder de verdade sobre o seu discurso com base em seus referenciais culturais. Para
a construção da escola diferenciada é muito importante o direito do indígena poder falar não a
verdade que o indigenista acha que é melhor para o indígena, fundamentado nas ciências
ocidentais, mas, sim, a verdade que é construída a partir de um histórico pessoal, de um
contexto histórico cultural em convenções coletivas.
Exercício constatado nos depoimentos exclusivos, que obtivemos junto a
professores e lideranças, em sua maioria, partem de sua trajetória de vida, onde sempre é
revelado o preconceito a humilhação sofrida até conquistar condições para afirmação de sua
identidade cultural, chegando aos avanços que vêm obtendo com seu trabalho, em sua
comunidade. Portanto, com base em sua história de luta em sua comunidade e com esta, o
professor constrói seu discurso, seus conceitos sobre a escola, sua verdade a ser defendida no
espaço público, na construção de políticas educacionais.
Diante deste contexto, considerando que as falas, nas quais nos baseamos, são
manifestações das mesmas pessoas que participam do espaço público representando a
população indígena, estas falas constituem discursos carregados de peso político das pessoas
que os manifestam. Desse modo, tanto os discursos amparados em questões e saberes locais,
em suas histórias de vida, quanto os discursos amparados na elaboração política da causa, no
coletivo do movimento, em prol de suas comunidades, são legítimos e adquirem o status de
verdade com a responsabilidade política de quem o propaga.
As lideranças das organizações foram alçadas a tais postos pelo prestígio,
respeito e voto das comunidades, assim como os professores estão na função por decisão de
suas comunidades. Portanto, exercem funções delegadas, de responsabilidade, que é acrescido
do papel de mediar o interesse das comunidades. Com base nestas responsabilidades,
elaboram as propostas e políticas, tornando-se os intelectuais do povo, obrigados a sintetizar e
representar o pensamento político da comunidade. Diante deste contexto, é perigoso
desqualificar tais discursos, uma vez que as falas assentam-se no poder da condição de
representante da comunidade, do povo ou de vários povos. Exemplificando, seria preconceito
e não cabe, sobretudo pelos argumentos apresentados acima, o descrédito à afirmações onde
os professores defendem que estão fazendo escola diferenciada sim, que estão construindo,
254
que têm capacidade para construir as próprias coisas e que são os indígenas que vão fazer a
escola diferenciada para suas comunidades.
Com a conquista da dignidade na identidade cultural, os indígenas que buscam
a escola diferenciada esforçam-se para ressignificar a diferença não mais como objeto de
discriminação e, sim, com base no direito à diferença; sem desigualdade, na verdadeira
alteridade, do outro como distinto. A escola diferenciada, que vem dando certo entre os povos
indígenas da região, é aquela que emerge da comunidade onde se firma a identidade das
pessoas, que dá sentido a suas existências. Enquanto que a interculturalidade na escola é uma
conseqüência da intencionalidade em firmar relações - sem entrar no mérito das relações, que
poderiam ser postas como necessidades - as falas do sexto capítulo denotam este propósito.
Entretanto, esta escola só se estabelece, como diferenciada e intercultural, quando a
comunidade dispõe de autonomia para administrar suas instituições e autonomia na
subsistência econômica. É sob condições de autonomia que as pessoas encontram autoridade
para confrontar conhecimentos, valores, política interna com conhecimentos, valores e
políticas da sociedade nacional.
A manutenção da escola, como diferenciada ou indígena, implica no seu
vínculo indissociável às lutas políticas de emancipação sociocultural. Enquanto mantiver esta
relação com as bandeiras do movimento, a escola constituirá, sempre, um campo de lutas para
que sejam atendidas as demandas das diversidades culturais. Os professores mais experientes
já articulam com propriedade, como declaram em suas falas, o papel de conscientização
política feito com a escola.
O significativo papel da linguagem sobretudo no que tange à unidade das
pessoas em torno de seu mundo, transferido para escola, torna mais consistente a idéia de
escola intercultural e diferenciada. Em comunidades onde a língua indígena é mantida como
língua materna, como valor de sustentação da identidade cultural, é garantido a educação “na
cultura”, como afirmam os indígenas, veiculada nos códigos exclusivos do povo. Somente a
partir de então a criança é levada a interação com novas formas sociais.
Nas comunidades mais politizadas, como pudemos ver entre o povo
Shanenawa, na relação com a sociedade não-indígena, a língua indígena também constitui
uma forma de poder. Constituindo a base de conservação de valores culturais, o uso da língua
materna na conversação diária abranda o poder da cultura dominante universalista, veiculado
na língua nacional. Entre outros povos, como em algumas comunidades Huni Kuĩ, na escola
há uma tentativa de compensação da pressão da língua nacional com o desenvolvimento da
escrita na língua indígena. No discurso de professores Shanenawa, o professor que não
255
Tal política, ainda que esteja mais no discurso do que na prática, representa o processo de
construção de uma alternativa escolar ao desgastado modelo monocultural que homogeneíza,
culturalmente, e acentua as desigualdades sociais, na medida em que concebe como destino de
todos a ordem civilizatória individualista. Alternativa com possibilidade de sucesso por
estarem assentadas em bases socioculturais, que deram certo, através dos tempos,
incorporando experiências elaboradas no contexto atual de construção, de relações
interculturais, com garantias de bem viver com dignidade. Esta experiência indígena,
conciliando valores culturais próprios às necessidades dos novos tempos, desponta como
proposta viável para os diferentes povos ou grupos sociais que constituem a sociedade
brasileira. É a solução indígena para problemas decorrentes da hegemonia que lhes vêm sendo
imposta pela cultura dominante.
Mais ainda, esta ação local demonstra ser possível, por meio de negociação, de
relações, contrapor-se a práticas, tais como a que se ressente a população mundial, na época
atual, com a política imperialista promovida por nações ocidentais, que fazem uso de recursos
bélicos contra povos, com o pretexto de “libertar”, implementar a “democracia” e, desse
modo, homogeneizar a humanidade, tornando “universal” o pensamento ocidental.
Acreditamos que este movimento insere-se na luta sociocultural contra-hegemônica, cujas
experiências, construídas com base em saberes e formas de organização próprias, atuam,
propositivamente, com novas políticas, que visam a igualdade nos direitos de cidadania, com
respeito às diversidades socioculturais.
Noutro aspecto, na Amazônia e, particularmente, no Acre, toma espaço, ao
menos no discurso, o fomento de propostas de desenvolvimento alternativo ao desgastado
modelo de modernidade ocidental. Diante da crítica da modernidade, os modelos econômicos
auto-sustentáveis das culturas são valorizados, oportunidade para que sejam evidenciados
modelos construídos pelos povos indígenas. O movimento, as comunidades indígenas,
atualizadas, informadas, tende a capitalizar, para seus contextos, estas ondas alternativas.
Fator que trabalha a favor da manutenção da identidade étnica, uma vez que é com base em
elementos próprios de sua cultura que estarão negociando relações. Aspecto, este, que a
escola também é envolvida diretamente, conscientizando alunos e comunidade sobre o
interesse externo sobre os conhecimentos, tecnologias, patrimônios do povo.
Tanto o movimento indígena quanto os gestores da política estadual de
educação escolar indígena sinalizam com a necessária investida em outras frentes em
educação, que saia do âmbito do mundo indígena. Processo necessário para reverter a
desinformação e o conseqüente preconceito para com a população indígena. Com os espaços
258
26
A título de exemplo, estão sendo preparados seminários para que ocorram simultaneamente a eventos culturais
como o Encontro de Culturas Indígenas, direcionados, num primeiro momento, para professores da educação
básica e para alunos dos cursos superiores de formação de professores. Seminários que terão como palestrantes,
professores e lideranças indígenas, falando da diversidade de povos, de suas identidades socioculturais e da
atualidade e relevância destas identidades, principalmente, no espaço próprio de seu povo, mas, também, no
contexto regional e global em tempos, nos quais, a perspectiva unilateral de civilização já não se sustenta,
portanto tornam-se atuais diante da perspectiva da pluralidade democrática.
259
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