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POESIA BARROCA

POESIA - SÉRIE RAÍZES


DIREÇÃO: MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL

POESIA
BARROCA
ANTOLOGIA DO SÉCULO XVII
EM LÍNGUA PORTUGUESA

Nadiá Paulo Ferreira

Apoio: Fundação Cultural e


de Pesquisa Noel Rosa, da UERJ

EDITORA
ÁGORA DA ILHA
1
NADIÁ PAULO FERREIRA

Ficha catalográfica
FERREIRA, Nadiá Paulo
Poesia Barroca - Antologia do século XVII em
língua portuguesa/ Nadiá Paulo Ferreira

204 páginas - Rio de Janeiro, março de 2000


Editora Ágora da Ilha - ISBN 86854
Poesia portuguesa
CDD - 869.1P

COPYRIGHT: NADIÁ PAULO FERREIRA

DIREÇÃO DA SÉRIE RAÍZES: MARIA DO AMPARO TAVARES MALEVAL

CONSELHO EDITORIAL
ANDRÉA C. FRAZÃO DA SILVA (UFRJ)
CARLOS PAULO MARTÍNES PEREIRO (UNIVERSIDADE DA CORUNHA)
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DIETER KREMER (UNIVERSIDADE DE TRIER)
NADIÁ PAULO FERREIRA (UERJ)
SUELY REIS PINHEIRO (UFF)
YARA FRATESCHI VIEIRA (UNICAMP)

CAPA: PAULO FRANÇA


ILUSTRAÇÃO DA CAPA: PENITÊNCIA, DE VELÁSQUEZ
REVISÃO DOS TEXTOS COMPILADOS: ROBSON DUTRA
DIGITAÇÃO GERAL: LUCIANA BARBOSA DUARTE E MARCELO BASTOS
MATOS, BOLSITAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DO INSTITUTO DE LETRAS
DA UERJ
EDITOR: PAULO FRANÇA

RIO DE JANEIRO, MARÇO DE 2000

EDITORA ÁGORA DA ILHA


TEL.FAX: 021 - 393 4212
E-mail agorailh@ruralrj.com.br

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POESIA BARROCA

Sumário

PSICANÁLISE E LITERATURA: CAMINHOS CRUZADOS -


Sérgio Nazar David................................................................9

O BARROCO NA POESIA..............................................11
Contexto histórico.............................................................13
Movimento artístico-literário..............................................21
Poesia lírica.....................................................................26
Poesia satírica..................................................................27
Cancioneiros....................................................................28
Formas poéticas................................................................30
Amor e sublimação...........................................................31
Quadro sinótico..................................................................39

ANTOLOGIA.....................................................................41

ANASTÁCIO AYRES DE PENHAFIEL..............................43


Labirinto Cúbico................................................................43

ANTÓNIO BARBOSA BACELAR.....................................45


Amoroso desdém num belo agrado (soneto)............................45
A um bem perdido (soneto)..................................................46
A um peito cruel (soneto)....................................................46
A um sonho (soneto)..........................................................47
A uma ausência (soneto).....................................................47
A uma despedida (soneto)...................................................48
A umas saudades (soneto)....................................................48
Conformando-se com a sua tristeza (soneto)..............................49

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NADIÁ PAULO FERREIRA

De consoantes forçados (soneto)............................................49


Queixando-se (soneto)........................................................50

ANTÓNIO SERRÃO DE CRASTO.....................................51


A uma dama chamada Grácia muito interesseira (décima)....51
A uma dama que desmaiou de ver uma caveira (mote/glosa)....52

BERNARDO VIEIRA RAVASCO........................................55


Pelos mesmos consoantes aplicando-as a um cadáver..............55

D. FRANCISCO MANUEL DE MELO................................59


Antes da confissão (soneto)..................................................59
Apólogo da morte (soneto)..................................................60
A uma N. de Lima, que não respondia às cartas (décima).........60
Contra as fadigas do desejo (soneto).....................................61
Em dia de Cinza, sobre as palavras - Quia pulvis es (soneto).....61
Escusa-se ao Céu com a causa do seu delírio (soneto).............62
Memórias e queixas (soneto)...............................................62
Mundo é comédia (soneto)..................................................63
Mundo incerto (soneto)......................................................63
Ao descuido da vida (ode)...................................................64

D. FRANCISCO DE PORTUGAL......................................67
Só contra vós pequei, Senhor divino (salmo)..........................67

D. TOMÁS DE NORONHA..............................................71
Amor me tem por vós negro ferrado (soneto)........................71
A um casamento que fez em Lisboa um fulano de Mello com uma
fulana de Mello, ambos velhos.............................................72
A uma freira que lhe mandou pedir meias e sapatos para entrar em
uma comédia, e um vestido (canção)....................................72
A uma mulher que sendo velha se enfeitava (canção)..............75
A uns noivos, que se foram receber, levando ele os vestidos
emprestados, e indo ela muito doente, e chagada...........................77
A uma mulher acautelada em fechar a porta, mas diziam que andava
com o cura........................................................................78
Às poesias que se fizeram a uma queimadura da mão de uma senhora
(soneto)...........................................................................78
Figura do Entrudo (soneto).....................................................78
O sofrimento meu cordeiro mudo (soneto).............................79
Pragas se chorar mais por uma dama cruel (soneto)................80

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POESIA BARROCA

EUSÉBIO DE MATOS......................................................81
Retrato de uma Dama (oitavas)............................................81

FRANCISCO DE PINA E DE MELO..................................85


A uma estátua de Baco; em cima de uma pipa de água com uma
caneca na mão, que o escultor delineou rindo, e hoje com os golpes
que lhe tinha dado o tempo parecia chorando (soneto).............85
Ao mesmo assunto na circunstância de a coroar depois de morta
(soneto)..................................................................................86
Delírios da natureza (soneto)................................................86

FRANCISCO DE VASCONCELHOS COUTINHO.................87


À fragilidade da vida humana (soneto)......................................87
A uma suspeita (soneto)......................................................88
Aos gostos breves do mundo (soneto)......................................88
Comoção do universo na morte de Cristo (soneto)..................89
Comparando o seu amor ao Fênix (soneto)............................89
Dor de Maria Madalena na paixão de Cristo (soneto)...............90
Mais sente quem se queixa, que quem se cala (soneto)..............91
Maria, a mãe-virgem (soneto)...............................................91

FREI ANTÓNIO DAS CHAGAS (António da Fonseca Soares)


.........................................................................................93
A Santa Maria Madalena (soneto)........................................93
A uma dama, que deu uma queda indo espevitar uma vela
(romance).........................................................................94
A uma caveira (soneto).......................................................95
À vaidade do mundo (soneto)..............................................95
Aos olhos de Fílis enfermos com umas névoas, e por isso ausentes
(soneto)............................................................................96
Fugida para o deserto e desengano do mundo.........................97

GREGÓRIO DE MATOS GUERRA...................................101


A Cristo crucificado (soneto)...............................................101
A uma mulata por nome Catona..........................................102
Agradecimento de uns doces a sua freira (soneto)...................103
Ao desembargador Belchior da Cunha Brochado...................104
Defende-se o bem que faltou nas ânsias do esperado, pelos mesmos
consoantes (soneto)...........................................................105
Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da república,
em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos

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NADIÁ PAULO FERREIRA

é a Bahia (epílogos)..........................................................105
À cidade da Bahia (soneto)................................................107
Ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi vigário da
freguesia do Passé (sátira)..................................................108
Define a sua cidade (mote/glosa)..........................................110
Conselhos a qualquer tolo para parecer fidalgo, rico e discreto
(soneto)..........................................................................112
Ao mesmo com presunções de sábio, e engenhoso (soneto)....112
Segunda impaciência do poeta (soneto)...................................113
A uma saudade (soneto)....................................................113
Admirável expressão de amor mandando-se-lhe perguntar como
passava (soneto)................................................................114
Solitário em seu mesmo quarto à vista da luz do candeeiro porfia o
poeta pensamentear exemplos de seu amor na borboleta (soneto)...115
Definição do amor (romance)..............................................115
A N. Senhor Jesus Cristo com atos de arrependido e suspiros de
amor (soneto)..................................................................122
Achando-se um braço perdido do menino Deus de N. S. das
Maravilhas, que desacataram infiéis na Sé da Bahia (soneto)....123
No sermão que pregou na Madre de Deus D. João Franco de Oliveira
pondera o poeta a fragilidade humana (soneto)......................123
Desenganos da vida humana metaforicamente (soneto)..........124
Pretende o poeta moderar o excessivo sentimento de Vasco de
Souza de Paredes na morte da dita sua filha (soneto)..............124
Perguntou-se a um discreto (mote/glosa)..............................125
Responde a um amigo com as novidades que vieram de Lisboa no
ano de 1658 (soneto)........................................................126
Ao casamento de Pedro Álvares da Neiva (soneto)................127

JERÓNIMO BAÍA...........................................................129
A uma crueldade formosa (madrigal)......................................129
A uma formosa cruel (madrigal).............................................130
A uma trança de cabelos negros (soneto).................................130
Ao menino Deus em metáfora de doce (romance)..................131
Achando alívio nas suas penas (soneto)................................133
Dando-lhe uma rosa (madrigal)...........................................133
A uma rosa (soneto)..........................................................134
A umas beatas (romance satírico burlesco)...........................135

JORGE DA CÂMARA......................................................147
Ao tempo (soneto)............................................................147

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POESIA BARROCA

De um engenho a um cavaleiro em resposta de lhe perguntar de


que cor era seu amor (soneto)............................................148

MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA................................149


Comparações no rigor de Anarda (décima)..........................149
Pintura de uma dama conserveira Rosa e Anarda (soneto)......149
Rosa e Anarda.................................................................151

SÓROR MADALENA DA GLÓRIA...................................153


A minha cega porfia (décima).............................................153
A uma caveira pintada em um painel que foi retrato (soneto)....154
A uma saudade (soneto).....................................................154
Tenho amor, sem ter amores (mote e glosa).............................155
Como dá vida o que mata (mote/glosa)....................................156
Queixas da sorte (soneto)...................................................156
Se meu peito ainda ferido (décima).........................................157

SÓROR MARIA DO CÉU.................................................159


Amor perfeito amor de Deus (glosa) .......................................159
Amoras amores (glosa)......................................................160
Cântico ao Senhor pelas frutas............................................160
Frutas novas mocidade......................................................162
Mortal Doença (oitavas).....................................................163
Madre Silva desdém de freira.............................................164
Para pensar ao Menino Jesus.............................................164

SÓROR VIOLANTE DO CÉU..........................................167


Amor, se uma mudança imaginada (soneto)..........................167
Coração, basta o sofrido (décimas).........................................168
Enfim fenece o dia (madrigal).............................................169
Se apartada do corpo a doce vida (soneto)................................169
Solilóquio da alma com o Senhor crucificado em a última hora, e agonia
da morte, para se ler, e dizer a qualquer agonizante (romance).....170
Vida que não acaba de acabar-se (soneto)............................177
Vozes de uma dama desvanecida de dentro de uma sepultura, que
fala a outra dama, que presumida entrou em uma igreja com os
cuidados de ser vista e louvada de todos; e se assentou a um túmulo,
que tinha este epitáfio que leu curiosamente (soneto)..............178

TOMÁS PINTO BRANDÃO..............................................179


A uma dama, que trazia uma memória no dedo, cuja pedra era

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NADIÁ PAULO FERREIRA

uma caveirinha (soneto).....................................................179


A uma fonte, que secou, tendo em cima uma estátua de Cupido,
foi assunto acadêmico (romance)..........................................180
A um relógio de areia que esta era das cinzas de um basalisco; e foi
assunto acadêmico (epigrama)...............................................181
Queixam-se todos os defuntos, que houve na epidemia que padeceu
Lisboa, o ano de 1723 (soneto).............................................181

GLOSSÁRIO...................................................................183

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................199

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POESIA BARROCA

APRESENTAÇÃO
Psicanálise e Literatura -
caminhos cruzados
SÉRGIO NAZAR DAVID

Do mesmo modo que os estudos brasileiros perdem cada vez


mais espaços no exterior, também aqui no Brasil temos observado
algo bastante semelhante com relação aos estudos de literatura e
de cultura portuguesas. Os argumentos para tal seguem os trilhas
de um tacanho suposto realismo que quer reduzir o ensino a noções
básicas, já que o mercado de trabalho e a urgência da vida moderna
não podem mais esperar – é o que dizem – anos e anos por uma
formação sólida. Encurtam-se e pulverizam-se os cursos de
graduação em Letras com reformas curriculares, e a palavra da
hora é enxugar. Nesta maré, vão-se ao ralo os estudos clássicos, a
literatura portuguesa, depois irá a brasileira também. Os
responsáveis costumam posar depois na fotografias dos afeitos
ao seu tempo, que sempre existiram em todas as épocas.
Nadiá Paulo Ferreira, no entanto, decidiu remar contra a corrente.
Dedica seu tempo aos estudos portugueses e à difusão da cultura
portuguesa. E como se isto já não fosse muito, opta por uma leitura
nada reconfortante, a partir da psicanálise. Digo isto, por acreditar,
assim como Nadiá, que a psicanálise é um saber novo. Novo por
considerar a singularidade, pondo em suspenso tudo que se soube
até então. Novo também porque se articula à experiência. E ainda
mais porque aqui é preciso contar com o tempo. Portanto, tudo

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NADIÁ PAULO FERREIRA

que se quiser construir sem implicação subjetiva para a psicanálise


tem pouco ou nenhum valor.
Nesta antologia comentada da poesia barroca, Nadiá Paulo
Ferreira insere-se numa tradição de estudiosos do período em
suas particularidades na literatura portuguesa, tradição que passa
por Spina e Santilli, Natália Correia e Maria Lucília Gonçalves
Pires. Ao fazê-lo preenche uma lacuna do ensino universitário
brasileiro, disponibilizando em livro ao estudante textos que no
momento circulam, na melhor das hipóteses, xerocopiados.
Em sua já longa trajetória como professora universitária e
psicanalista, Nadiá optou por defender e sustentar aquilo que une
literatura e psicanálise. Jacques Lacan afirmava, ao falar aos seus
pares psicanalistas, que é preciso saber escutar os poetas. Freud
formulou sob a forma de articulações teóricas vários conceitos
até então ignorados, e para discuti-los não cansou de recorrer a
Shakespeare, Sófocles, Dostoiévski, entre outros. Não se trata,
em hipótese alguma, de psicanalisar o escritor nem muito menos
o personagem. Mas sim de observar sob que prisma este ou aquele
drama humano é-nos apresentado. Sim, e não por qualquer um,
mas por alguém que pode às vezes mover pequenos mundos e
fundos através da palavra escrita.
Portanto, esta antologia de poetas barrocos que a professora e
psicanalista Nadiá Paulo Ferreira nos apresenta é singular, pelo
que defende – a literatura portuguesa e a psicanálise – e sobretudo
pelo modo pelo qual o faz, trazendo à literatura barroca,
especialmente à poesia barroca, uma visão nova, fora da tradição
estilística, afeita ao estudo de tais autores sustentado na
enumeração de figuras de linguagem simplesmente, e fora também
da tradição culturalista, que costuma ver o texto como resultado
da história. A contribuição singular deste trabalho liga-se ao fato de
reunir informações básicas e de somar a estas uma leitura nova,
dialogando com um outro campo de saber – a psicanálise –, e abrindo
nos estudos literários trilhas até aqui inexploradas.
É de se esperar que este trabalho cumpra então o seu papel, o
de auxiliar professores de literatura portuguesa no estudo da literatura
barroca, seja sob esta ou aquela perspectiva teórica, mas também o
de levar adiante aquilo que vem marcando ao longo do tempo o
caminho da professora Nadiá, hoje ocupando mais do que
merecidamente o posto de professora titular de Literatura Portuguesa
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Sérgio Nazar David - Professor de Literatura Portuguesa da UERJ.

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POESIA BARROCA

O barroco
na poesia

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POESIA BARROCA

Contexto histórico
Absolutismo
O século XVI já é marcado pela tendência ao regime absolutista,
que atingirá seu apogeu no século XVII, coincidindo, portanto, com
o barroco. O declínio desse regime político começa em 1789,
estendendo-se, a partir daí, até o século XIX, com exceção da
Inglaterra, onde entra em decadência anteriormente.
O que entendemos por Absolutismo? Vou responder a essa
questão, recorrendo à definição de Jacques Bénigne Bossuet (1624-
1704), em Política tirada das próprias palavras das Sagradas
Escrituras, quando define as quatro características ou qualidades
essenciais da autoridade real: é sagrada, é paternal, é absoluta e está
sujeita à razão.
A riqueza, advinda do comércio marítimo, permitindo a
expansão da máquina burocrática, a criação de órgãos destinados à
organização militar e à política exterior, as guerras internacionais,
fortalecendo o poder do estado, e a Revolução Protestante, rom-
pendo com a unidade do catolicismo, foram as principais causas do
fortalecimento do poder real (Absolutismo).

Declínio econômico das cidades italianas (1600-1800)


Depois do saque de Roma, em 1527, quando as tropas
espanholas e alemães, sob o comando do rei espanhol Carlos V,
saquearam a cidade de Roma, causando uma destruição lamentável,
a Itália começa seu declínio econômico. Os príncipes italianos,
favoritos de Carlos V, continuaram como governantes dos estados
italianos, presidindo suas cortes, protegendo as artes e ornamentando

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NADIÁ PAULO FERREIRA

as cidades com edifícios suntuosos; mas na verdade eram


verdadeiros títeres espanhóis. A partir de 1600, esse declínio político
liga-se ao econômico em função do deslocamento das rotas comer-
ciais do mediterrâneo para o Atlântico, após a descoberta da América.
As cidades italianas vão perdendo a supremacia como centros do
comércio mundial.

Em França, supremacia de Richelieu (1624-1642)


A França se envolve numa guerra com a Espanha enquanto,
em seu território, se trava uma luta sangrenta entre católicos e
huguenotes (calvinistas).
Em 1593, Henrique IV (Henrique de Navarra, 1598-1610), o
fundador da dinastia Bourbon, embora pertencesse à facção
huguenote, renuncia ao calvinismo e se converte ao catolicismo, já
que tinha percebido que os franceses não aceitariam um rei que não
seguisse Roma. Em 1598, com a promulgação do Edito de Nantes,
Henrique IV garante a liberdade religiosa e os direitos políticos dos
protestantes. Apaziguadas as controvérsias religiosas, Henrique IV
começa um trabalho de reconstrução do seu reinado. Assassinado
por um fanático religioso, em 1610, deixa como herdeiro Luís XIII,
que, na época, tinha apenas nove anos de idade. A França é governada
por sua mãe, Maria de Médicis, até 1624. Luís XIII, livre da regência
materna, escolhe para a administração de seu reino o clérigo Richelieu,
a quem nomeia primeiro-ministro. Richelieu dedicou-se a dois
objetivos: fortalecer a autoridade real, eliminando todos os obstáculos
à sua frente, e tornar a França uma grande potência européia,
libertando-a do que ele chamava o anel Habsburgo.
A dinastia Bourbon, assegurada pelo poder divino, permanece
no governo até a queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789.

Domínios dos Habsburgo e poderio espanhol


Os séculos XIV e XV, na Alemanha, foram marcados pela luta
dos príncipes entre si e contra os imperadores. Só a partir de 1450,
os príncipes alemães acabaram com as disputas, o que possibilitou
o fortalecimento dos Habsburgo da Áustria, que teriam um papel
preponderante no século XVII.
Enquanto Luís XI, na França, e Henrique VIII, na Inglaterra,
fortaleciam o poder real, Fernando e Isabel faziam o mesmo em
Espanha. As lutas entre Castela e Aragão, na Idade Média tardia,
chegaram ao fim com o casamento de Fernando, herdeiro de Aragão,
e Isabel, herdeira de Castela. Em 1550, a Espanha, unificada por

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POESIA BARROCA

Isabel e Fernando, já era um reino forte e poderoso.


Em 1516, o neto dos reis católicos, Isabel e Fernando, se torna
Carlos I, cujo pai pertencia ao ramo dos príncipes Habsburgo,
herdando o reino de seus avós. Três anos depois, Carlos I é eleito
imperador do Sacro Império Romano como Carlos V (1519-1546),
unindo, assim, a Espanha à Europa central e ao sul da Itália. Carlos
V desejava ser o restaurador da unidade religiosa da Cristandade,
rompida pela revolução protestante, tornando-se, assim, o sucessor
da Roma imperial.
Aos 56 anos, abdica do reino e se retira para um mosteiro. Os
príncipes alemães do ramo Habsburgo escolhem um irmão,
Fernando I, para suceder Carlos V como imperador do Sacro Império
Romano. As possessões espanholas e italianas e as colônias ultra-
marinas passaram para seu filho, que se tornou rei da Espanha
como Filipe II (1556-1598).
Filipe II reina durante o apogeu da glória nacional e estimula a
violência da Inquisição espanhola. Seu maior erro político foi a
guerra contra a Inglaterra. Filipe II, enfurecido pelos ataques dos
navios ingleses ao comércio espanhol, envia, em 1588, “a invencível
Armada” para destruir a esquadra da rainha Elisabeth I. A maior
parte dos navios espanhóis foi afundada no Canal da Mancha e o
reino nunca se recuperou inteiramente desta derrota.
Em Portugal, D. João III e a Rainha D. Catarina, depois de
assistiram à morte de nove filhos, tiveram dois filhos que
sobreviveram, D. João e D. Maria.
A filha, D. Maria, se casou com o príncipe Felipe II, morrendo
logo depois do nascimento do seu filho, príncipe D. Carlos.
O filho, D. João, desde o nascimento era muito fraco e doente.
Seus pais resolveram, então, providenciar seu casamento o mais
rápido possível. Com quatorze anos de idade, D. João se casa com
a prima, D. Joana, morrendo de uma crise de diabetes, antes do
nascimento de seu filho, D. Sebastião. Segundo os historiadores,
D. João amava intensamente sua jovem esposa e eles foram sepa-
rados, assim que souberam que D. Joana estava grávida. A morte
do marido foi escondida até que seu filho nascesse.
D. Sebastião morre sem deixar herdeiros, em Alcácer Quibir
(batalha contra Marrocos), em 4 de agosto de 1578. Dois anos
depois, Portugal é incorporado ao reinado de Filipe II, permanecendo
até 1640 (dinastia filipina em Portugal: Filipe II - 1580/1598, Filipe
III - 1598/1621 e Filipe IV - 1621/1640).

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NADIÁ PAULO FERREIRA

A Reforma (revolução religiosa)


A revolução religiosa contra o catolicismo está diretamente ligada
à formação de uma consciência nacional no norte da Europa e ao
fortalecimento do Absolutismo.
Em 1521, na Alemanha, que ainda pertencia ao Sacro Império
Romano, sob o reinado de Carlos V, Martinho Lutero (1483-1546)
rompe com o poder eclesiástico de Roma, recusando-se a se retratar
das críticas que vinha fazendo à venda de indulgências, e é excomun-
gado como herege pelo papa Leão X. A partir daí, até sua morte, em
1546, Lutero se empenhou por uma igreja alemã, autônoma e
independente do Catolicismo.
O sul da Alemanha permaneceu fiel ao catolicismo e o
Protestantismo, criado por Lutero, irá se espalhar pela Dinamarca,
Noruega e Suíça.
O grande líder da revolução protestante na Suíça foi Ulrich
Zwingli (1484-1531), que organizou as forças anti-católicas, fazendo
com que, em 1528, quase todo o norte da Suíça já tivesse
abandonado o Catolicismo e aderido ao Protestantismo.
João Calvino (1509-1564), de nacionalidade francesa, depois
de ter estudado na Universidade de Paris, vai estudar direito em
Orléans, onde se converte aos ensinamentos de Lutero, tornando-
se suspeito de heresia, o que fez com que fosse se refugiar, em
1534, na Suíça. Em 1541, passa a governar a cidade de Genebra
até a sua morte, em 1564.
Na Inglaterra, o golpe à Igreja Romana é dado por Henrique
VIII, que se elege, em 1531, chefe da Igreja Anglicana, independente
de Roma e submetida exclusivamente à sua autoridade. Os conflitos
entre Henrique VIII e o papa encontraram receptividade na maioria
da população, que simpatizava com as revoluções religiosas contra
o Catolicismo. Além disso, nos meio intelectuais, tínhamos a forte
influência do humanista Thomas More, que condenava uma série
de rituais católicos, considerando-os meras superstições.
A ruptura entre Inglaterra e Roma tem como cenário a demora
do papa Clemente VII em responder ao pedido de anulação do
casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, com quem
estava casado há dezoito anos. O rei estava apaixonado por Ana
Bolena e não tinha tido um filho homem para sucedê-lo no trono.
Irritado, Henrique VII, em 1531, convoca uma assembléia de
prelados, onde é reconhecido como chefe da igreja inglesa. Em
seguida, o Parlamento decreta uma série de leis, cortando todos os
pagamentos feitos a Roma e proclamando a Igreja Anglicana inde-

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POESIA BARROCA

pendente e submetida, exclusivamente, ao poder do rei.

Contra-Reforma ou Reforma Católica (Concílio de Trento,


1545-1653)
A Contra-Reforma ou Reforma Católica se caracterizou pela
reação do Catolicismo às revoltas religiosas, que começaram a
ameaçar a sua hegemonia.
Apesar das reações ao Protestantismo terem começado com os
papas Adriano VI (o único não italiano em quase um século e meio,
e o último até 1978) e Clemente VII (um Médici), é com Paulo III,
1434-1549, e seus três sucessores (Paulo IV, 1555-1559; Pio V,
1556-1572; e Sisto V, 1585-1590) que o Catolicismo sofrerá uma
grande reformulação: administração severa das finanças papais,
preenchimento dos cargos eclesiásticos com padres austeros e
combate aos clérigos que insistiam na ociosidade e no vício.
É com o objetivo de redefinir as doutrinas da fé católica que o
papa Paulo III faz a convocação de um concílio, em 1545, que se
reúne na cidade de Trento. Este concílio, conhecido como o Concílio
de Trento, passou a se reunir, entre alguns intervalos, desde a
primeira convocação até 1653.
Uma das principais deliberações desse Concílio foi a censura
estabelecida oficialmente: o Índice dos Livros Proibidos, cuja
primeira lista foi publicada em 1564.
Um dos efeitos mais imediatos da Reforma foi o aumento da
perseguição religiosa e a instauração de julgamentos em toda a
Europa. Giordano Bruno, um dos principais defensores da teoria
heliocêntrica de Copérnico, foi julgado pela Inquisição romana, fun-
dada em 1542, e queimado na fogueira em 1600.

A fundação da Companhia de Jesus (1534)


A Reforma Católica contou com o apoio incansável dos jesuítas,
os membros da Companhia de Jesus.
Essa instituição religiosa, fundada, em 1534, por Inácio de
Loyola, nobre espanhol da região basca, foi aprovada pelo papa
Paulo III, em 1540. A Companhia de Jesus foi a mais militante das
ordens religiosas e teve um papel importantíssimo na expansão do
catolicismo. Além do trabalho de catequização dos povos desco-
bertos, foram os principais responsáveis pela volta ao catolicismo,
em lugares que tinham aderido ao Protestantismo, como a Polônia
e algumas regiões do sul da Alemanha.
Os jesuítas se consideravam os soldados de Cristo e tinham

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NADIÁ PAULO FERREIRA

uma disciplina rígida, que se baseava na mais absoluta obediência


ao princípios da Igreja. Não se contentavam em defender a fé e
combater os protestantes e hereges. Desejavam propagá-la até os
mais longínquos recantos do mundo: conversão ao catolicismo dos
budistas, dos muçulmanos, dos persas da Índia (antigos persas
zoroatristas, que, para escapar à perseguição dos muçulmanos, se
refugiaram na Índia) e dos povos indígenas dos continentes recém-
descobertos. Os missionários jesuítas se espalharam na África, no
Japão, na China, na América do Norte e do Sul, fundaram colégios e
seminários na Europa e na América. Até o século XVIII, a Companhia
de Jesus teve o monopólio da educação na Espanha e grande influên-
cia na França.

Revolta dos Países Baixos (1567-1609)


Os países baixos, hoje conhecidos como Bélgica e Holanda,
continuavam sendo governados pela coroa espanhola. A Holanda
tinha se tornado refúgio dos judeus peninsulares, dos dissidentes
ingleses aos Stuarts e dos huguenotes franceses (protestantes). Com
o correr do tempo, os calvinistas foram aumentando e passaram a
constituir maioria dos citadinos nas províncias holandesas do norte.
Filipe II, rei da Espanha, insistia em tratar os Países Baixos como
meras províncias e considerava todos os protestantes como traido-
res. Além disso, contribuíram para a revolta de 1565 razões
econômicas, tais como a tributação elevada e a restrição ao comércio
em benefício dos espanhóis. Com o objetivo de erradicar os protes-
tantes dos territórios sob o seu domínio, Filipe II enviou, em 1567, o
duque de Alba com dez mil soldados para acabar com a revolta
deflagrada em 1565. A guerra, sangrenta e violenta por ambas as
partes, prosseguiu até 1609 e terminou com a vitória dos protestantes.
Como resultado temos a fundação de uma república holandesa inde-
pendente, compreendendo os territórios hoje incluídos na Holanda e
o retorno ao domínio espanhol das províncias do sul ou belgas, nas
quais a maioria da população era católica.

Guerra dos 30 anos (1618-1648)


Os Habsburgos dominavam a Boêmia há mais de um século,
embora os tchecos conservassem seu próprio rei. Quando o trono da
Boêmia ficou vago, em 1618, Matias, imperador do Sacro Império
Romano, resolveu que devia subir ao trono um parente seu, o duque
Fernando de Estíria. Mediante pressões induziu à eleição de Fernando
II como rei da Boêmia. O resultado foi a invasão do palácio do

18
POESIA BARROCA

imperador, em Praga, por nobres tchecos, e a proclamação da Boêmia


como um estado independente, tendo como rei Frederico, o eleitor
calvinista do Palatinado. Estoura a guerra, os Habsburgos vencem,
Frederico é punido e suas terras do vale do Reno são tomadas.
A vitória dos Habsburgos provoca a reação dos governantes
protestantes da Europa setentrional. Os príncipes alemães, os reis
Cristiano IV da Dinamarca e Gustavo Adolfo da Suécia, se unem e
declaram guerra aos Habsburgos. A França se torna aliada dos pro-
testantes. O conflito não é mais religioso mas uma disputa entre os
Bourbons e os Habsburgos pelo domínio do continente europeu. Os
protestantes e os franceses aliados vencem a guerra, que teve a paz
estabelecida pelo Tratado de Vestfália, em 1648. O Sacro Império
Romano reduziu-se a uma mera ficção: a França tem confirmada a
posse de antigos territórios alemães na Lorena e na Alsácia, a Suécia
ganhou territórios na Alemanha, é reconhecida a independência da
Holanda e da Suíça. Os príncipes alemães são reconhecidos como
governantes com autonomia para governar os seus estados e com
poder de fazer guerra e firmar paz, fazendo com que o Sacro Império
Romano se tornasse uma ficção.

Apogeu do mercantilismo e afirmação do comércio


(1600-1700)
O mercantilismo nada mais é do que um conjunto de práticas que
depois foram seguidas por doutrinas, visando à organização das
atividades comerciais e industriais, para promover o fortalecimento do
poder do estado.
As principais mudanças, na vida social européia do século XVII,
foram marcadas pela revolução comercial, o que se deu
concomitante ao fortalecimento do poder real (Absolutismo) e à
formação dos grandes impérios coloniais. A principal causa dessa
transformação são os efeitos dos sucessos das navegações, tendo
os portugueses como pioneiros.
O comércio se expande e sai dos limites do Mediterrâneo. O
pequeno e sólido monopólio do comércio mantido pelas cidades
italianas é desfeito. Gênova e Veneza são substituídas pelo portos
das cidades de Lisboa, Bordéus, Liverpool, Bristol e Amsterdã.
Além das especiarias, passamos a ter o fumo (América do Norte),
o melado e o rum (Índias Ocidentais), o cacau, a quina e a cochonilha
(América do Sul), o marfim, os escravos e as penas de avestruz
(África ). Além desses produtos, aumentou o comércio do café, do
açúcar, do arroz e do algodão, que deixaram de ser mercadorias de

19
NADIÁ PAULO FERREIRA

luxo. Sem falar no aumento de suprimento dos metais preciosos


(ouro e prata).
A revolução comercial, em função da expansão ultramarina,
originou a ascensão do capitalismo, na medida em que se produzem
radicais transformações nos processos de produção. A manufatura,
criada pelo sistema de corporações de ofício na Idade Média tardia,
dominadas pelo mestre, entra em decadência e tende a desaparecer
para dar lugar a novas indústrias.
Para ilustrar essa transformação, vou dar como exemplo o processo
de industrialização da lã. O empresário comprava a matéria-prima (o
fio) e distribuía, primeiro, aos fiandeiros e, depois, sucessivamente,
aos tecelões (os que trabalhavam na máquina de tear), aos pisoeiros
(os que apertavam e batiam o pano com o pisão, máquina em que se
aperta e bate o pano para torná-lo mais consistente) e aos tingidores.
Todos esses trabalhadores recebiam um salário, estando, agora, sujeitos
ao desemprego e aos acidentes de trabalho. Quando o pano estava
pronto, o empresário o vendia no mercado livre pelo mais alto preço
que conseguisse.
Além das mudanças no processo de produção, a revolução
industrial propiciou, também, o desenvolvimento da atividade bancária
que, em função do pecado da usura, estava restrita aos judeus, e a
criação da sociedade por ações. Esta última se caracterizava pela
reunião de um grupo de investidores que compravam ações. Estes,
por sua vez, podiam ou não tomar parte dos negócios da companhia,
mas eram co-proprietários, tendo o direito de participar dos lucros na
proporção do capital investido em quotas.

Movimento artístico-literário
Para a maioria dos historiadores, a Reforma não faz parte do
Renascimento. Os humanistas estão para o Renascimento assim
como os reformadores estão para o Barroco.
O protestantismo não teria se difundido tanto, no norte da Europa,
se não estivesse associado ao desenvolvimento do comércio, à
formação de uma consciência nacional e ao fortalecimento do poder
do Estado.
É nesse contexto de profundas mudanças, contestações e reações
que nasce a arte barroca. Entre os católicos e os insurrectos ao
poder eclesiástico de Roma não há lugar para temperança. A religião
se torna o palco de guerras fratricidas, que se tecem em um cenário

20
POESIA BARROCA

onde o crescimento do comércio e o aparecimento da indústria


acionam uma acirrada luta pela hegemonia econômica e política. A
Igreja e o Estado fazem alianças e agenciam guerras, polarizando
uma tomada de posição. Estamos diante de um tempo em que o
amor e o ódio explodem e a arte se inscreve na ordem do excesso.
O golpe decisivo no pensamento humanista é dado por
Copérnico. A terra deixa de ser o centro do universo e o homem
não é mais visto como a criação mais importante de Deus. O universo
passa a ser concebido como sendo constituído por partes iguais
submetidas às suas leis (uma máquina de relógio ideal) e o homem
se apresenta como um fator pequeno e insignificante. Diante de um
mundo em contínua transformação que escapa ao saber humano,
resta a fé e o desencanto com a existência. A Igreja, ao mesmo
tempo que reage violentamente às idéias de Copérnico, tem que
combater os protestantes que ameaçam a unidade católica na
Europa, colocando em cheque o poder eclesiástico de Roma. Nesse
panorama, é necessária a união entre a Igreja e o poder secular, que
tende para o absolutismo monárquico, numa tentativa de salvar
uma ordem que vem se constituindo há muitos séculos. Dessa aliança
surge a necessidade de apoiar uma arte cuja função social deveria
ser a propagação do catolicismo. O barroco é a arte que irá
desempenhar essa função.
Sérgio Nazar David, lendo esse texto para fazer a apresentação
do livro, lembrou-me de que o fato de a Igreja ter se apropriado e
feito do Barroco uma espécie de arte contra-reformista não significa
que o Barroco seja a arte da contra-reforma. É claro que não. Não
há dúvida de que o Barroco desempenhou a função de propaga-
ção do catolicismo, principalmente, através dos grandes oradores,
como é o caso do Padre António Vieira. Entretanto, é preciso deixar
bem claro que abraçar a fé católica em escritos e sermões não é
sinônimo de estar a serviço daqueles que detém o poder. O próprio
Vieira é um exemplo disto, terminando por se exilar entre nós.
No século XVI, a palavra “barroco”, tanto em português quanto
em castelhano, pertence ao campo semântico da ourivesaria,
designando as pérolas que apresentavam uma forma não redonda e
que, justamente por isso, eram consideradas “de valor inferior ao
das pérolas perfeitas”.1 Só a partir do século XVIII é que o termo
“baroque” começa a ser usado para designar uma criação artística.
Inicialmente, essa nomeação é empregada para identificar um tipo
de música, transferindo-se, depois, para a arquitetura e para as
artes plásticas. Esse deslocamento do significante produz um novo

21
NADIÁ PAULO FERREIRA

sentido, fazendo com que a palavra adquira um sentido pejorativo.


Chamava-se de arquitetura barroca às construções que eram
consideradas ridículas e bizarras, e de pintura barroca aos quadros
que eram avaliados como decadentes em relação ao padrão estéti-
co do Renascimento. Segundo os estudos de Vítor Manuel de Aguiar
e Silva, somente em 1860 “Carducci aplica pela primeira vez o
vocábulo e o conceito de barroco à história literária”.2
Em síntese, no século XVIII, o termo barroco com sentido
pejorativo, significando desmedido, confuso e extravagante, é usado
para designar as produções artísticas que rompiam com o ideal
estético da Renascença. Até hoje este sentido pejorativo se mantém.
Quando se diz que os filmes de Glauber Rocha e o estilo de Jacques
Lacan são barrocos, o que se está querendo dizer é que são herméticos
e pecam por falta de clareza.
A identificação do barroco como um estilo, que predominou na
literatura do século XVII, inicialmente, define este estilo como um
discurso que se caracteriza pelo pictórico, pela acumulação e pela
coordenação de motivos. Estes procedimentos são compreendidos
como a continuação de uma das tendências do classicismo3 .
Hauser4 , discordando radicalmente de Wölfflin, considera sua
posição dogmática, antissociológica e antihistórica, já que o barroco
assinala uma mudança radical de discurso, contrapondo-se não só
ao classicismo mas também à visão humanista do Renascimento.
Para Hauser, o barroco não tem uma unidade estilística, existindo
uma diferença fundamental entre o barroco das comunidades
burguesas e protestantes e o barroco dos ambientes cortesãos e
católicos. O barroco romano, como o gótico francês, se internacio-
nalizou. O papa Urbano VIII transformou Roma numa cidade
barroca, que deixa de ser o centro desta arte, quando, em função
do empobrecimento dessa cidade, o centro da arte barroca se des-
loca para as monarquias absolutistas e católicas. As estreitas rela-
ções, no século XVII, entre as literaturas portuguesa e espanhola e
a importância dos domínios político e econômico dos Habsburgos,
na formação de um império colonial, contribuem para a importância
do barroco ibérico, um dos principais representantes da vertente
barroca cortesã e católica. Segundo Vítor Manuel Aguiar e Silva, o
barroco na literatura portuguesa se situa entre a segunda e a terceira
décadas do século XVII, portando durante o domínio filipino.
Os espanhóis, José Luis Velásquez e Juan López de Sedano5
apontam para a existência de duas tendências estilísticas no barroco
das monarquias católicas: o cultismo (ou culteranismo), também

22
POESIA BARROCA

chamado de gongorismo, porque um dos principais representantes


seria o poeta espanhol Góngora (1561-1627)6 e o conceptismo,
que tinha como principal representante Quevedo (1580-1645).7 O
cultismo (culteranismo ou gongorismo) se caracteriza pela
valorização do olhar (imagens cromáticas), pela descrição dos
objetos, pelos neologismos e pelos arcaísmos. O conceptismo apre-
senta uma lógica discursiva que privilegia os silogismos8 , as antíteses
ideativas e os equívocos. Vítor Manuel não concorda com essa
abordagem, considerando-a simplista e inexata. Esta classificação
implica, inclusive, para este autor, na suposição de que existiram
duas escolas barrocas ibéricas, engendrando dois estilos antagônicos.
Góngora, por exemplo, se apresenta ora conceptista ora cultista.
O traço estilístico predominante, portanto, presente tanto no
cultismo quanto no conceptismo, é a ornamentação do discurso e o
virtuosismo com o emprego da palavra. Para o psicanalista Jacques
Lacan, o barroco se caracteriza por apresentar corpos gloriosos e
martirizados a serviço da escopia, corpos exuberantes que expressam
“tudo que desaba, tudo que é delícia, tudo que delira”9 . Estamos
diante de representações que são testemunhas “de um sofrimento
mais ou menos puro”10 , e de corpos que gozam um gozo para
além do falo (ou seja um gozo não sexual).
Saber fazer poesia para o poeta seiscentista é saber fazer
concatenações com a palavra, esgarçando a distância que separa o
significante do significado, criando uma proliferação de sentidos
que permitirá, através dos séculos, sempre uma nova leitura.
Convencionou-se chamar esse fazer poético de construtivismo.
O construtivismo implica, também, numa concepção do lírico.
Os poetas românticos, por exemplo, entendem o lírico como uma
expressão anímica que brota da inspiração (sentimento). A poesia
como retrato da alma humana é a expressão da Verdade, ou seja,
entrelaça-se à noção de Bem. O Realismo, o Naturalismo e o Neo-
realismo abandonam essa noção de inspiração anímica, mas
permanecem fiéis ao compromisso romântico com a Verdade. Só
que, para os realistas, os naturalistas e os neo-realistas, a Verdade
do coração é substituída pela Verdade da Razão, da Ciência e do
Social, respectivamente.
O poeta como artesão da palavra marca uma das tendências da
literatura através dos séculos. Na época medieval, as leis de cortesia
amorosa fabricaram o amor cortês com a função de sublimação.
Trata-se de um amor que se inscreve na estrutura da privação.
Justamente por isso, a Dama, enquanto objeto amado, está

23
NADIÁ PAULO FERREIRA

interditada e só pode comparecer como inacessível. A condição


para ingressar nas cortes literárias de Amor era o sofrimento escrito
(morrer-de-amor) por um amor impossível. As Leis d’Amor nada
mais eram do que um artifício para a mestria do saber trovar.
Na Idade Média, além das cantigas de amor, podemos identificar
o construtivismo em outros gêneros líricos. As cantigas de mestria11
galego-portuguesas são composições líricas ou satíricas que visam
mostrar a arte de bem saber trovar. A poesia provençal cultivou o
trobar clus, escur ou cobert (poesia encoberta ou obscura) e o
trobar ric (poesia rica feita com rimas raras), onde o trabalho com
a palavra faz com que o poeta crie elipses e metáforas que se originam
em identificações inesperadas. Esta forma de trovar não vamos
encontrar nas cantigas galego-portuguesas. Mas, temos o descordo,
que é uma composição com um “tipo métrico complicado e
caprichoso pelos contrastes da medida versificatória”12 . O descordo
de Nun’ Eanes Cerceo (“Agora me quer’eu já espedir”) é, inclusive,
considerado por Rodrigues Lapa uma pequena obra-prima, digna
de um poeta moderno13 . Vale a pena citar um trecho dessa cantiga,
onde a síntese é levada ao ponto de reduzir, em algumas estrofes, o
verso a uma palavra:
Pe[n]sar
d’achar
logar
provar
quer’eu, veer se poderei.
O sém.
d’alguem
ou rem
de bem
me valha, se o em mi ei!14

A síntese (economia do significante: a produção da polissemia


com o menor número possível de palavras) no lugar do discursivo é
um dos procedimentos que irá marcar o construtivismo na
modernidade. Mallarmé, 1842-1898 (Un Coup de Dés, 1897), o
Futurismo, 1909, o Cubismo, 1913, o Cubo-futurismo, 1913,
Apollinaire, 1880-1918, e seus caligramas, Maiakovsky, 1894-1930,
Eliot, 1819-1880, Ezra Pound, 1885-1972, Cummings ilustram bem
esta tendência do construtivismo, a partir do modernismo. No Brasil,
o poeta modernista Oswald de Andrade, 1890-1954, e os poetas que
fizeram parte do Concretismo, 1958, seriam, entre outros, os repre-

24
POESIA BARROCA

sentantes do construtivismo. Na poesia portuguesa contemporânea,


essa tendência pode ser encontrada em Alberto Pimenta, em Alexandre
O’Neill, em Ana Hatherly, em Melo e Castro, entre outros. Em alguns
poetas portugueses do século XIX, tais como Cesário Verde, 1855-
1886, e Camilo Pessanha, 1867-1926, vamos encontrar também
uma poesia que opera não só um enxugamento do discurso, mas
também enfatiza a sintaxe em detrimento da adjetivação verborrágica.
O construtivismo, além de não associar o lírico à inspiração
(Romantismo), como já vimos, também se opõe à teoria poética
do Acaso (Dadaísmo, 1916) e à formulação da Escrita Automática
(Surrealismo, 1924). No lugar da inspiração, a construção com a
palavra.
Aliás, o material da poesia é o significante verbal e não o signo. O
que difere um dizer da poesia não é o que se diz mas o modo pelo
qual se diz. Não é outra concepção que vamos encontrar em Fernando
Pessoa, 1888-1935, quando define o poeta, no poema
“Autopsicografia”:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.15

Justamente por isto, irá dizer em outro


poema, “Isto”:
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.16

O construtivismo barroco não se fundamenta na síntese. Muito


pelo contrário, construir com a palavra para o poeta seiscentista
implica esmerar-se na ornamentação, no rebuscamento e na
engenhosidade. A prolixidade é o traço do construtivismo barroco.
O requinte do dizer é, sem dúvida, a marca desse estilo. O apuro
extremo com a palavra leva ao excesso e à torcedura da disciplina
outrora exigida em Nome-da-Razão pelo Renascimento. Aliás, o
gosto pela torção já vinha sendo realizado pelo Maneirismo
quinhentista, tanto nas artes plásticas quanto na literatura17 . Ao
questionar o racionalismo humanista, o Maneirismo produz uma
subversão às leis de unidade e de harmonia clássicas, dando

25
NADIÁ PAULO FERREIRA

preferência, na poesia, às imagens verbais que se constroem pelo


paradoxo18 , indicando, assim, uma tendência ao rebuscamento da
linguagem, que atingirá seu ápice no barroco. O gosto maneirista
pelo paradoxo é substituído no barroco pelo da antítese, onde as
palavras com significação antônima se sucedem umas às outras,
num jogo verbal requintado, que tem como visada a engenhosidade.
A palavra engenho vem do latim ingeniu e significa faculdade
inventiva. Para Baltasar Gracián (Agudeza e Arte de Ingenio), todo
discurso deve ser engenhoso, ou seja, deve visar à beleza. E, para
isto, é preciso que seja tecido por agudezas (sutilezas), que se
sucedem umas às outras ou se ordenam em uma composição
geométrica. Para Gracián, a agudeza é a própria alma do discurso,
é o estilo, é o espírito de dizer. O artifício é indispensável para a
realização do engenho, já que é através dele que se podem
estabelecer as relações de similaridade por semelhança ou por
dessemelhança, o que Gracián denomina de correspondências. Estas
conexões devem partir de algo raro, excepcional, porque não é
qualquer correspondência que contém a sutileza. O artifício deve
recorrer às regras retóricas para a construção das figuras que irão
ornamentar o discurso. Segundo esta concepção, para se produzir
um discurso engenhoso é preciso lançar mão dos artifícios da
antítese19 , da hipérbole20 , do oxímoro21 , das alusões22 , das
homonímias23 e das paronímias24 .
A ostentação, a teatralidade, a metáfora, a hipérbole, o
hipérbato25 , a antítese, o registo erudito da língua (latinismos e
helenismos), as alusões, as perífrases26 e os neologismos marcam
a tessitura de um discurso que visa à engenhosidade.

Poesia lírica
Os principais temas são o amor divino, o amor profano e a dor
de existir num mundo em desencanto.

Amor profano
O objeto amado é dado como perdido para sempre. Sem
esperanças, este objeto só pode ser recordado como um bem passado
que anula o sentido de existir no mundo. O presente sem futuro,
vivido sob a forma de um esvaziamento do ser (destituição de todos
os significantes, o que é impossível), leva o sujeito a conviver com
um vazio, que é imaginado como a experiência da própria morte. A

26
POESIA BARROCA

convocação da morte em vida se declina em sofrimento, do qual se


retira uma experiência de gozo que não passa pelo sexual (um gozo
para além do falo).

Amor divino
A matriz deste amor é a paixão de Cristo. O homem, por ser
pecador, divido entre a carne e o espírito, clama pela misericórdia
divina. Cristo flagelado e crucificado representa o padecimento de
um corpo até a morte. Em nome do amor ao Pai, o sofrimento de
Cristo é a prova cabal da misericórdia divina. Reviver o sofrimento
de Cristo é imaginado como um despojamento absoluto do ser
(anulação dos significantes), onde o vazio, como metáfora da própria
morte, conduz a uma experiência de gozo místico, ou seja, um
gozo não sexual. Religiosidade e erotismo se mesclam, fazendo com
que todos os sentidos se tornem fonte de deleite e volúpia. A Virgem,
cultuada pelos devotos da Idade Média, é substituída por Madalena,
símbolo do pecado e do arrependimento humanos. O profano
(erotismo) e o sacro contracenam, rompendo, assim, os limites entre
o sublime e o mundano.

A dor de existir no mundo


Um culto ao sofrimento, onde o sacro se erotiza e o profano se
diviniza, fazendo com que o sublime contracene com o grotesco,
conduz à valorização de certos temas e símbolos que ora aparecem
isolados, ora se articulam com o tema do amor, tanto divino quanto
profano. São eles: a fruição do tempo, onde as principais figuras
emblemáticas são o espelho, o relógio e a água; a transitoriedade da
vida e das coisas (metamorfose); a beleza, como um dos símbolos
mais dramáticos da corrosão imposta pelo tempo; o espetáculo de
um mundo em ruínas; o naufrágio como símbolo da precariedade
da vida humana; a caveira como espelho cruel do homem; e o mito
de Ícaro27 .

Poesia satírica
A ironia e o deboche são os tons que predominam nas poesias
satíricas. Critica-se não só a moral hipócrita da sociedade, a
devassidão, o clero, a nobreza e as frivolidades mundanas da
aristocracia mas também o gosto pelo excesso do estilo barroco e o
modo pelo qual o amor é abordado na poesia. A tradição satírica

27
NADIÁ PAULO FERREIRA

do trovador renasce em novas formas poéticas que utilizam a


paródia28 para, através da ironia, colocar lado a lado o grotesco e o
sublime. A sátira barroca chega inclusive a ser auto-corrosiva, na
medida em que o poeta se utiliza do gosto ornamental e antitético
das imagens verbais para desconstituir o estilo com o qual se
identifica. A ironia, da qual nem o próprio autor escapa, expressa o
luto pela morte dos ideais que tinham se constituído até então em
torno do homem. Aqui, em vez do registro erudito da língua, temos
o registro coloquial, incluindo o uso de expressões vulgares e gros-
seiras. As freiras e os frades não escapam à crítica virulenta dos
poetas, assim como as beatas e as frivolidades excessivas da corte.

Cancioneiros
As antologias impressas mais conhecidas da poesia seiscentista
portuguesa são Fênix29 renascida e Postilhão de Apolo30 .
Fênix renascida ou Obras poéticas dos melhores engenhos
portugueses compõe-se de cinco volumes, organizados por Matias
Pereira da Silva. O primeiro volume é publicado em 1715 e os
outros quatros são publicados, espaçadamente, até 1728. Em 1746,
sai uma nova publicação com acréscimos. Além dos poetas
seiscentistas, Vítor Manuel faz questão de ressaltar que “figuram
também, embora em pequeno número, obras de poetas
quinhentistas”31 .
Vítor Manuel comenta
que a principal dificuldade com que
se defrontou Matias Pereira da Silva
consistiu na averiguação da autoria das
composições poéticas incluídas na sua
coletânea. Por um lado, havia a conside-
rar o problema das obras que corriam
anônimas; por outro, o das obras com
diferentes atribuições de autoria ou com
atribuição inexata.32

Outras questões, também levantadas por esse estudioso do


barroco português sobre essa antologia, são:
1o) A representatividade: “diversos poetas do século XVII não
estão representados, ou estão-no apenas escassamente”.
2o) A não inclusão de poesias dos poetas mais representativos:

28
POESIA BARROCA

Quanto a importantes poetas que es-


tão representados com relativa
abundância na Fênix renascida, tais como
D. Tomas de Noronha, António Bacelar e
Frei António das Chagas, verifica-se, pela
análise de diversos cancioneiros
manuscritos, que a sua produção é
incomparavelmente mais extensa do que
a coligida por Matias Pereira da Silva.33

3o) A fidedignidade textual:


Na breve advertência ao leitor que
figura no início do tomo I da Fênix
renascida, Matias Pereira da Silva
confessa que, perante o que ele considerou
corrupções ou alterações dos textos origi-
nais, introduzidas por incúria ou ignorân-
cia nos manuscritos, retocou esses textos,
auxiliado pelo juízo, em seu entender
autorizado, de alguns amigos34 .

Ainda, na referida advertência, o organizador adverte que não


tem intenção de incluir em sua coletânea os poemas que ofendem
os “bons costumes”. O mais grave não é a exclusão,
pois a análise comparativa de deter-
minados poemas publicados na Fênix
renascida e de versões desses mesmos
poemas conservados em manuscritos
demonstra irrefragavelmente que Matias
Pereira da Silva não teve pejo em mutilar,
por vezes profundamente, e em modificar
aquelas composições poéticas que, pelo
seu realismo, pela sua irreverência em
matéria de religião e pelo seu pendor
erótico ou obsceno, não tinham cabimento
nos limites pedagógicos-moralísticos de
antemão assinalados à coletânea35 .

O título completo de Postilhão de Apolo, ilustra de maneira


exemplar o gosto pelo excesso: Postilhão de Apolo ou Ecos que o
clarim da Fama dá – Postilhão de Apolo, montado no Pégaso,

29
NADIÁ PAULO FERREIRA

girando o Universo, para divulgar ao orbe literário as peregrinas


flores da Poesia Portuguesa, com que vistosamente se esmaltam
os jardins da Musas do Parnaso – Academia Universal em que se
recolhem os cristais mais puros que os famigerados engenhos
lusitanos beberam nas fontes de Hipocrene, Helicona e Aganipe.
Trata-se de dois volumes ou Ecos, organizados por Joseph Maregelo
de Osan, anagrama de D. José Ângelo de Morais (supõe-se que
tenha sido cônego regrante de Santo Agostinho) e publicado em
1761-62.
Vítor Manuel considera essa antologia inferior à Fênix renascida
com os seguintes argumentos:
1o) “no total, ocorrem no Postilhão de Apolo oitenta e duas
poesias que já estavam publicadas na Fênix renascidas, sendo
apenas de sessenta e uma o número das poesias que naquela
coletânea não são comuns a esta”;36
2o) a maioria dos poemas, que não estão no Postilhão de Apolo
e são incluídos por Joseph Maregelo de Osan em sua antologia,
pertencem “já ao século XVIII e reflete um gosto estético diferente
do gosto que consideramos extremamente barroco”37 .

Formas poéticas
Vamos encontrar, além do soneto38 , que é a forma culta
predominante; as seguintes formas poéticas:
1 - formas cultas do Renascimento italiano: canção clássica39 ,
elegia40 , égloga41 , madrigal42 e ode43 ;
2 - formas poéticas tradicionais de origem popular: romance44 ,
décimas45 e redondilhas46 ;
3 - formas com mote e glosa, herdadas da tradição medieval e
cultivadas pelos poetas do Cancioneiro geral de Garcia de Resende47 ;
4 - formas com mote e glosa, inovadas pelos maneiristas - um
soneto é considerado como mote e geralmente glosado em quatorze
oitavas (soneto de Francisco Rodrigues Lobo glosado por Antônio
Barbosa Bacelar em “Fermoso Tejo meu, quão diferente”) -, a própria
oitava48 em verso decassílabo pode constituir um mote glosado em
oitavas, como é o caso da glosa de Bacelar (Fênix renascida, v. I) à
oitava camoniana “Estavas, linda Inês, posta em sossego”.

30
POESIA BARROCA

Amor & sublimação


Depois da literatura medieval (amor cortês), vamos reencontrar,
na literatura portuguesa, o amor com a função de sublimação na
poesia barroca. A fruição de “tudo o que é delícia” comparece na
decantação de um objeto amado, que está para sempre perdido.
Deste objeto perdido só restam as saudades, como é o caso de Violante
do Céu, ou as lembranças de uma imagem petrificada, como é o caso
de Jerônimo Baía, onde a amada perde qualquer resquício de vida,
transformando-se numa estátua para ser admirada por um olhar, que
se torna fonte de gozo. Não há esperança para o amor no barroco,
assim como também não há no amor-cortês.
Em Violante do Céu, o vazio da alma (um ser despojado de
significantes) se torna gozo de uma fala, que demanda a morte
para conviver com a vida. Em Jerônimo Baía, nos madrigais, “A
Uma Crueldade Formosa” e “A uma Formosura Cruel”, o objeto
amado é representado, tal qual a Dama das cantigas de amor, pelo
traço da mais absoluta indiferença:

Seja fria no amar, cruel no rôgo,


Fria, se é toda jaspe, e toda neve,
Cruel, se é toda sangue, e toda fogo.

Mas, ao contrário do trovador, o amante em vez de se colocar a


serviço da Dama para com isto gozar, serve-se dela para gozar. A
coisa amada se reduz à beleza de um corpo captado pelo olhar. O
que resta deste objeto, que se apresenta como a causa de todos
tormentos, senão um retrato para ser contemplado? Eis as imagens
despedaçadas de uma mulher, sendo descritas por metáforas que
não só produzem um efeito de deslumbramento plástico-visual (ouro,
prata, safira, rubi, pérola, jaspe), mas também configuram o seu
corpo interditado (mármore, metais, pedras). Os significantes
escolhidos não têm outra função senão reiterar o caráter desumano
de um objeto, a fim de que se interponha uma barreira intransponível
entre aquele que ama e o objeto para quem esse amor é dirigido. Mas
mesmo assim este objeto se torna a sua amada (a minha bela). Para
que se ama? Para sofrer? Não, para gozar as delícias de um olhar.
Em Jerônimo Baía as imagens que descrevem o corpo da mulher
amada metaforizam a beleza desse corpo pela via da metonímia, já
que essa mulher é reduzida a pedaços de uma estátua quebrada
sem reparação. E, justamente por isto, a indiferença da amada se

31
NADIÁ PAULO FERREIRA

torna sinônimo de um Bem para sempre impossível. Da contem-


plação destes restos e do sofrimento surge um gozo para além do
falo (gozo não sexual).
Em Violante do Céu, a morte do objeto engendra uma demanda
para que a morte contracene com a própria vida, que, por se
esvaziar de sentido, transforma-se em puro gozo. Um corpo sofrido
com a alma vazia é a versão que Violante do Céu nos apresenta
do amor. Um corpo dessignificantizado, sustentado no circuito
pulsional, para fazer da escrita um ato que se traduz em uma fala
que aponta para um furo com o qual se goza masoquisticamente.
Por isto Lacan define o barroco como “a regulação da alma pela
escopia corporal”49 .
Os milagres do amor operam pela via do discurso a união
entre um corpo real e um corpo imaginário que é chamado de
alma, a fim de que pela via do simbólico (linguagem, portanto leis
do significante) haja referência à castração.50 Lacan, no Seminário
XX - Mais, Ainda, 1982, afirma que um “corpo é tomado pelo
que representa ser a alma” e isto “não é outra coisa senão a iden-
tidade suposta a esse corpo”51 . É neste sentido que ele afirma
que o homem pensa com sua alma. Se o homem pode dizer o
que pensa é porque há uma estrutura chamada linguagem. A
inserção do gozo no aparelho da linguagem pela inscrição do sig-
nificante grava a letra que marca no próprio corpo o enigma sem
decifração da sexualidade humana. Deste corte sem costura emerge
a falta que engendra a suposição de um gozo-a-mais. Se existisse
este outro gozo, ele estaria para além do falo, o que implicaria e
excluiria o significante. Se uma das vias para a experiência do
gozo fálico (gozo sexual) é a cópula, isto não significa que ele
tenha alguma coisa a ver com a relação sexual. A relação sexual é
impossível52 porque o real não cessa de se inscrever. E onde ele
se inscreve? No Outro, enquanto lugar onde se engendra a fala e
se funda a verdade, sob a forma de um furo que aponta para a
falta de um significante, o do Outro-sexo53 .
Um das versões dessa verdade para o barroco é a experiência
de um gozo, que se declina sob a forma de um amor que vem em
suplência a esse impossível da relação sexual. Eis uma modalidade
de amor que imagina o que de real há no corpo de um ser que fala:
um vazio e um falta-a-gozar que não suturam a estrutura do
significante. Trata-se de uma concepção de amor em que o
imaginário é tomado como meio do amor, o que não significa que
esta modalidade se inscreva numa estrutura psicótica. Trata-se da

32
POESIA BARROCA

convocação de um gozo para além do falo independente de qualquer


posição sexual identificada com a anatomia dos corpos. Os poetas
barrocos se situam do lado feminino e falam como mulheres.

___________________
1
AGUIAR E SILVA, 1973, p. 364.
2
AGUIAR E SILVA, 1973, p. 368.
3
v. WÖLFFIN, 1952.
4
v. HAUSER, 1965.
5
v. SILVA, 1971.
6
Principais obras de Luis de Góngora y Argote: Fábula de Polifemo e
Galatéia, Panegírico ao Duque de Lerma e o livro inacabado As soledades.
7
v. SILVA, Vitor Manuel Pires de Aguiar. Maneirismo e barroco na poesia
lírica portuguesa. Op. cit. id. ibid.
8
Silogismo: Grego, syllogismós, conjunto, pelo latim sillogismu (m), a forma
mais perfeita do raciocínio. O silogismo é um dos preceitos do discurso oratório,
desenvolvidos, principalmente, pelo filósofo grego Aristóteles, pelo orador latino
Quintiliano e pelo poeta latino Horácio, na antigüidade clássica. O discurso oratório,
apesar de algumas diferenças entre os autores citados, deveria apresentar três
partes:
1a) Exórdio (ou proêmio ou princípio), que se subdivide em duas partes: a
proposição, que se caracteriza pela apresentação do assunto, e a divisão, que
consiste na enumeração do que será seguido pelo orador.
2a) Desenvolvimento, que se divide em narração, a exposição minuciosa do
que foi apresentado de forma sintética na proposição, e em argumentação, a parte
mais importante do discurso. Esta parte, que já devia vir sendo preparada pelo
exórdio e pela narração, se fundamenta no silogismo, podendo lançar mão do
exemplo (prova trazida de fora, da história – exemplo histórico – e da fábula –
exemplo poético).
3a) Peroração (ou conclusão ou epílogo) que, apesar da discordância entre os
autores, tem como função essencial o convencimento e como virtude a brevidade.
9
LACAN, 1982, p. 158.
10
LACAN, 1982, p. 158.
11
Cantiga de mestria, em oposição à cantiga de refrão, não tinha estribilho.
12
LAPA, 1964, p. 137.
13
LAPA, 1964, p. 137.
14
GONÇALVES, RAMOS, 1985, p. 257.
15
PESSOA, 1977, p.164.
16
PESSOA, 1977, p.165.
17
Nas artes plásticas, a serpentinata é a figura de estilo que melhor representa
o gosto pela virtuose e pelo excesso do Maneirismo quinhentista. Essa figura tem
a forma de uma chama ondulante, assemelhando-se à letra S. Miguel Angelo, que
descreve esta figura como sendo a contorção de uma cobra viva em movimento,
multiplicou-a por três, retomando o contraposto do clássico da antigüidade (as
partes do corpo são representadas assimetricamente de modo que a rotação da
cabeça se opõe à rotação dos quadris).

33
NADIÁ PAULO FERREIRA
18
Paradoxo: Grego parádoxon, contra opinião. É um dos recursos lógicos
usado para a argumentação de um discurso oratório.
19
Antítese: Grego antí, contra, thésis, afirmação. Figura de estilo na qual se
aproximam dois sentidos opostos.
20
Hipérbole: Grego hyperbolê, excesso. Figura de linguagem que visa outorgar
ao objeto uma ênfase exagerada, que no sentido positivo, quer no sentido negativo.
21
Oxímoro: Grego oxymoros, agudamente néscio. Figura de linguagem que
consiste na fusão, em um só enunciado, de duas afirmações antagônicas, portanto,
duas declarações que se excluem.
22
Alusão: Latim allusione (m), alludere, jogar com. Toda referência, direta
ou indireta, a uma obra, a uma situação, a um personagem, a um episódio, etc.
23
Homonímia: Homônimo vem do grego, homónymos pelo latim homonymus.
Refere-se a uma palavra que se pronuncia da mesma forma que outra, mas cujo
sentido e escrita são diferentes (laço = laçada, lasso = cansado), ou uma palavra
que se pronuncia e se escreve do mesmo modo, mas cujo sentido é diferente
(falácia = qualidade de falaz, e falácia = falatório).
24
Paronímia: Parônimo vem do grego parónymos, pelo latim paronymu.
Refere-se às palavras que têm som semelhante ao de outras (descrição e discrição;
onicolor e unicolor; vultoso e vultuoso).
25
Hipérbato: Grego hyperbatón, que ultrapassa. Figura de linguagem que se
caracteriza pela inversão dos elementos constituintes da frase.
26
Perífrase: Grego perífrasis, em torno da frase. Figura de estilo que consiste
na substituição de uma palavra por uma série de outras, visando dizer, através de
um rodeio frásico, o que possibilita a criação de várias metáforas. É também no-
meado de circunlóquio.
27
Ícaro era filho de Dédalo e de Náucrates. Dédalo foi o artista ateniense mais
famoso da época arcaica. Além de arquiteto, era escultor e inventor. Exilado na ilha
de Creta, construiu o famoso Labirinto, a pedido do rei Minos: o palácio de Cnossos,
com um emaranhado de quartos, salas e corredores. Náucrates era uma escrava do
palácio do rei Minos. Dédalos, a pedido de Ariadne, filha do rei Minos que se apaixonou
por Teseu, ajudou este a matar o Minotauro (monstro antropófago, metade homem
e metade touro) e sair do Labirinto. Teseu, depois de matar o Minotauro, fugiu com
a princesa Ariadne. Minos, enfurecido, prende Dédalo e seu filho, Ícaro, no Labirin-
to. Dédalo inventa para si e para seu filho umas asas de penas, presas aos ombros
com cera. Os dois fogem, voando pelo céu. Dédalo aconselha o filho a não voar
muito alto, porque o sol derreteria a cera, nem muito baixo, porque a umidade tornaria
as penas pesadas demais. Ícaro, fascinado com o céu, esquece o conselho do pai e
chega muito perto do sol. A cera derreteu-se e ele ficou sem as asas, caindo no mar
Egeu que, a partir daí, passou a se chamar mar de Ícaro. O livro de Ovídio (43 a. C.-
18 p. C.), Metamorfoses, narra esse episódio. Junito Brandão considera que Dédalo
representa a “engenhosidade, o talento, a sutileza. Construiu tanto o labirinto, onde
a pessoa se perde, quanto as asas artificiais de Ícaro, que lhe permitiram escapar,
voar, mas que lhe causaram a ruína e a morte” (BRANDÃO, 1997, p. 590, v.1).
28
Paródia: Grego paroidía, canto ao lado de outro. Caracteriza-se pelo seguinte
procedimento: incorporação de partes do objeto a ser criticado, usando como instrumento a
ironia.
29
A palavra fênix não tem até agora uma etimologia incontestada. Como
nome de ave, sua origem remete ao Egito (culto de Ra-Herakheti, isto é, Sol vivo)
para designar uma espécie de garça real. Segundo a versão do escritor Heródoto,
tratava-se de uma ave originária da Etiópia, de cor vermelho intenso, com as asas

34
POESIA BARROCA

cor de ouro, que visitava o Egito a cada quinhentos anos. Com porte semelhante ao
de uma águia, posteriormente é descrita com plumagem de cores vermelha, azul-
claro, púrpura e ouro. Todas as versões míticas partem de sua morte e do seu
renascimento, porque é a única ave de sua espécie. É comum a todas estas versões
o fato de que a fênix reuniu plantas aromáticas e incenso para fazer seu ninho.
Algumas versões contam que põe fogo em seu ninho ou o incendeia com seu próprio
calor, para renascer das cinzas. Outras versões contam que, a cada quinhentos anos,
deita-se em seu ninho, solta sobre ele seu sêmen e morre. Do sêmen nasce a nova
fênix, que pega o corpo da fênix morta e o coloca num tronco oco de mirra e o leva
para Heliópolis. Chega a essa cidade, cercada por um bando de aves, que lhe prestavam
homenagem, e fica sobrevoando o altar do deus Ra, até a chegada de um sacerdote,
quando o tronco de mirra é queimado. Depois, retorna à Etiópia e fica se alimentando
de pérolas de incenso até chegar a hora da morte e do renascimento.
30
Apolo faz parte da segunda geração do Olimpo. É filho de Zeus e da deusa
oriental Leto e tem uma irmã gêmea, Ártemis. Hera, com ciúmes do marido,
proibiu a terra de acolher Leto, na hora do parto. Os filhos de Leto nasceram na
ilha flutuante Ortígia que, por não pertencer à terra, não tinha que temer a ira de
Hera. À luz da noite, nasceu Ártemis, a Lua. E à luz do dia, nasceu Apolo, o Sol.
Ártemis, nascendo primeiro, assistiu ao parto do irmão e ficou tão horrorizada com
o sofrimento de sua mãe que pediu ao pai para ficar eternamente virgem. Conta-
se, também, que Leto, para escapar do ódio de Hera, se transformou em Loba,
indo se esconder no país dos Hiperbóreos, onde teve seus filhos. Daí um dos
epítetos de Apolo, Licógenes, “nascido da Loba”. As consultas ao Oráculo de
Delfos eram feitas, inicialmente, no dia sete do mês Bísio, a data do aniversário de
Apolo (início da primavera). Sua lira tinha sete cordas. Sua doutrina era constituída
de sete máximas, atribuídas aos sete sábios. Justamente por isso, Ésquilo o chamou
“augusto deus sétimo, o deus da sétima porta”. Este deus oriental, através de
vários sincretismos, se torna o detentor do Oráculo de Delfos, o deus da cultura e
da sabedoria. Aliás, é justamente em função desses sincretismos que esse deus
recebe mais de duzentos epítetos e atributos, que vão desde o deus da vegetação,
dos pastores, dos rebanhos, da família, dos lares, dos marinheiros, da luz até se
transformar no deus da medicina, das artes, da música e da poesia.
31
SILVA, 1971, p. 76.
32
SILVA, 1971, p. 87.
33
SILVA, 1971, p. 78.
34
SILVA, 1971, p. 95.
35
SILVA, 1971, p. 96.
36
SILVA, 1971, p. 102.
37
SILVA, 1971, p. 103.
38
Soneto: Italiano sonetto, do Provençal sonet, som, melodia, canção.
Composição poética, inventada, aproximadamente, entre os séculos XII e XIII. É
controvertida a atribuição de quem inventou essa forma poética. Pier della Vigna,
1197-1249, ou Giacomo da Lentino, 1180-1190?, ambos poetas sicilianos da corte
de Frederico II, imperador germânico da dinastia sueca dos Hohenstaufen e rei da
Sicília. Caracteriza-se por ser forma poética constituída de quatorze versos, distri-
buídos em dois quartetos e dois tercetos. Dante, 1265-1321, e Petrarca, 1304-
1374, foram, sem dúvida, os poetas que imortalizaram essa forma, espalhando-a
por toda a Europa. Em relação à estrutura, temos o soneto estrambótico (ou de
estrambote ou de cauda), o soneto petrarqueano, o soneto inglês ou shakespeariano

35
NADIÁ PAULO FERREIRA

e o soneto spenserista. O estrambótico se caracteriza pelo acréscimo de um


estrambote ao terceto final, isto é, de uma estrofe de três versos, dos quais o
primeiro verso rima com o último verso do segundo terceto e os outros versos
rimam entre si. O petrarqueano, mais conhecido entre nós, é constituído por duas
quadras e dois tercetos. O shakespeariano é composto de três quadras e um dístico.
Quanto à concatenação de vários sonetos, temos a seguinte classificação: seqüência
de soneto, quando vários sonetos estão articulados por um tema; coroa de sonetos,
quando temos um conjunto de sete sonetos, onde o último verso de um soneto se
torna o primeiro verso do soneto seguinte, sendo que o último soneto, portanto o
sétimo, repete o primeiro verso do soneto inicial; e soneto reduplicado, quando se
ligam quinze sonetos, de forma que cada verso do primeiro soneto se torna, repe-
tidamente, o último verso de cada um dos demais sonetos.
39
Canção: Esta forma, cultivada por Dante, Petrarca e Camões, diferente da
forma cultivada pelos trovadores (Cantigas), caracteriza-se por uma série de estrofes
de número regular (vinte versos no máximo e sete no mínimo), terminando com uma
estrofe menor, chamada de ofertório, onde o poeta dedica o poema à sua amada ou
sintetiza o que vinha desenvolvendo no decorrer das estrofes.
40
Elegia: Do grego elegeia, de origem obscura. Na Grécia antiga era uma
composição poética, acompanhada de flauta, e constituída por dísticos. Na Grécia
antiga, apresentando os temas mais variados, esta forma lírica visava a um caráter
sentencioso, ou gnômico (gnôme, sentença, pelo latim gnome (m). Com o sentido
de máxima, o gnome consiste em um dizer conciso e breve. Assim, são definidos por
versos gnômicos aqueles que encerram um aforismo, uma sentença ou provérbio.
Podemos encontrar versos gnômicos em vários gêneros e formas poéticas, tais como,
o épico, o trágico e a elegia.). Os romanos acrescentaram à elegia o tema do amor.
Com o renascimento, a elegia, que estava esquecida, é retomada e cultivada por
Petrarca, Camões, Sá de Miranda, entre outros. A partir do século XVI, além do
dístico, segundo o modelo greco-latino, foram acrescentados a terza rima (terceto),
o quarteto (estrofe erudita em quatro versos que se opõe à quadra, estrofe popular
em quatro versos ) de rima cruzada (abab). As modificações formais foram acom-
panhadas da inclusão de novos temas, que tinham como traço comum a tristeza. A
partir do final do século XVII, os temas bucólicos foram também incorporados,
dando origem à elegia pastoril.
41
Égloga (ou écloga): Grego eklogê, seleção. Na antigüidade clássica, o termo
égloga significava “poema escolhido” e estava associado à poesia bucólica (com-
posição de tema pastoril e campestre). Com a Renascença, égloga se torna sinônimo
de idílico.
42
Madrigal: Italiano, madrigale, de etimologia controvertida: matricale, no
sentido popular de canto materno; materialis, no sentido de elemento poético
profano; e matricalis, no sentido de canto polifônico que era executado nas igrejas.
Até o século XV, o madrigal se caracteriza por ser um poema de forma fixa: dois
ou três tercetos seguidos de um ou dois dísticos, em versos decassílabos rimados.
Evoluiu para uma forma livre quanto ao número de versos e de rimas, embora
tenha predominado a tendência para uma única estrofe de aproximadamente dez
versos, em que alternam o decassílabo (verso de dez sílabas) e o hexassílabo
(verso de seis sílabas). A poesia satírica também se utilizou dessa forma poética.
43
Ode: Grego oidê, canto. De origem grega, a ode era uma composição
poética destinada ao canto (canto ao som da lira ou outro instrumento de corda
semelhante, que enaltecia o amor e os prazeres do vinho e da mesa ). Desenvolve-
se para uma forma dedicada aos temas heróicos, em que se enaltecem os vence-

36
POESIA BARROCA

dores da guerra e dos jogos olímpicos. A lira é substituída pela flauta e a ode
adquire uma forma mais ou menos definida. Divide-se em três partes: o encômio
inicial e final (que visa à louvação de alguém que realizou um ato heróico, principal-
mente, na guerra e nos esportes olímpico) e a narração de episódios míticos.
Esquecida, durante a Idade Média, essa composição poética é redescoberta pelos
humanistas do século XIV. A partir daí, ode é classificada em relação ao tema e
à forma. Quanto ao tema, é classificada em: heróica ou pindárica; filosófica e
moral ou sáfica; amorosa, pastoril, báquica ou anacreôntica. Quanto à forma é
classificada em: ode tripartite ou pindárica, em que a estrofe e a antístrofe (a
segunda parte) apresentam versos organizados em um padrão único (isto é, em
estâncias, termo que se emprega para nomear as estrofes regulares, que se
organizam com unidades métricas uniformes, ou seja, são estrofes isométricas) e a
épode ou epodo em um padrão diferente; ode homostrófica ou horaciana em que
as estrofes se organizam em um mesmo modelo; e a ode irregular ou livre.
44
Romance: Provençal romans, do latim romanice, em língua românica, isto é,
em oposição à língua latina. Aqui empregada com o sentido de composição poética
popular, tipicamente espanhola, na maioria das vezes constituída em redondilhas
maiores (versos de sete sílabas).
45
Décima: Latim decima (m), dez partes. Designa a estrofe ou poema em dez
versos. Da lírica trovadoresca até o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, a
décima era constituída de duas quintilhas (estrofes de cinco versos) independentes
pela rima e separadas por uma pausa. A partir do século XVI, surge a décima
clássica ou espinela (em homenagem a Vicente Espinel, a quem se atribui a invenção),
constituída de uma quadra (estrofe em quatro versos) e de uma sextilha (estrofe em
seis versos) em versos de sete sílabas (redondilha maior), separados por uma pausa,
apresentando, na maioria das vezes, os seguintes esquemas de rima: abba/accddc.
Na décima clássica ou espinela, a quadra constitui uma espécie de mote e a sextilha
corresponde a uma espécie de glosa.
46
Redondilha: Os versos de redondilha estão ligado à tradição popular. Os
versos de cinco sílabas são classificados de redondilha menor e os de sete sílabas
de redondilha maior.
47
Formas com mote e glosa do Cancioneiro Geral: a cantiga ou glosa e o
vilancete. Essas formas populares se caracterizam por uma estrofe inicial, chamada
de mote ou cabeça, que apresenta o tema a ser desenvolvido pelas voltas ou glosas.
A glosa ou cantiga apresenta um mote de quatro ou mais versos, seguidos de glosas
ou voltas. O vilancete tem por étimo o espanhol villancete, villano, vilão, habitante
de vila, daí cantiga de vilão ou de vilã. Esta forma é constituída de uma estrofe,
chamada de mote ou cabeça, constituída de dois ou três versos, seguida de um
número variado de estrofes, chamadas de voltas ou glosas de cinco a oito versos,
predominantemente de sete sílabas (redondilha maior).
48
Oitava: Latim octavu (m), oitavo. Designa a estrofe ou poema em oito
versos. Existem dois tipos: a oitava rima (ottava rima em italiano), também
denominada de oitava real, oitava heróica ou oitava italiana, que é constituída de
versos decassílabos com um esquema fixo de rimas (abababcc); e a oitava ro-
mântica ou oitava moderna, que apresenta uma variedade de metros e de rimas,
podendo, inclusive, usar versos soltos.
49
LACAN, 1982, p. 158.
50
Castração não é usada no sentido corrente, isto é, dicionarizado, onde significa
ato ou efeito de se castrar. O verbo castrar (do latim castrare) faz parte do código
de nossa língua com os seguintes significados, segundo a versão de Aurélio Buarque

37
NADIÁ PAULO FERREIRA

de Holanda Ferreira: cortar ou destruir os órgãos reprodutores; capar; impedir a


proficuidade ou eficiência; anular ou restringir fortemente a personalidade; eliminar
os estames de flor hermafrodita, antes que se abram para soltar o pólen, a fim de se
proceder ao cruzamento artificial. Estes significados são inteiramente antinômicos
ao conceito de castração em psicanálise. Ninguém se castra, a condição para um
ser falante se constituir como sujeito é se tornar um ser submetido às leis da linguagem,
cuja estrutura, além do simbólico e do imaginário, inclui o real, sob a forma de uma
falta radical. Isto é castração para a psicanálise.
51
LACAN, 1982, p. 150-151.
52
Lacan, quando afirma que não há a relação sexual, embora isto possa soar
estranho, está se referindo à impossibilidade de se atingir um gozo sexual pleno, já
que este gozo se localiza em uma parte determinada do corpo e não no corpo inteiro.
Além disso, numa cópula, o parceiro não goza com o corpo do outro, enquanto
representante do Outro-sexo, mas sim com uma parte desse corpo. É neste sentido
que se deve entender o aforismo lacaniano de que não há a relação sexual.
53
O Outro-sexo é para Lacan Mulher. O artigo feminino é barrado, porque é
impossível se definir a mulher, enquanto representante do Outro-sexo. Fala-se
sobre as mulheres e na posição das mulheres. A diferença sexual, para a psicaná-
lise, não se fundamenta numa diferença anatômica e sim numa posição discursiva
em relação ao falo. Justamente por isto, pode-se dizer que os trovadores, quando
compunham as cantigas de amigo, falavam do lugar das mulheres.

38
POESIA BARROCA

Barroco
Absolutismo
Declínio das cidades italianas
Político Em França, supremacia de Richelieu (1624-1642)
C
Domínio dos Habsburgo e poderio espanhol
O
N
T A Reforma (Revolução Protestante)
A Contra-Reforma tridentina (Concílio de Trento,
E Religioso
1545- 1653)
X A fundação da Companhia de Jesus (1534)
T
O Apogeu do mercantilismo
Econômico Afirmação do comércio
Criação de indústrias

L Cultismo
I Estilos
Conceptismo
T
E
R
amor divino
A
lírico amor profano
T a dor de existir
U Gêneros
R
A satírico

Postilhão de Apolo
Cancioneiros
Fênix Renascida

39
POESIA BARROCA

Antologia

41
POESIA BARROCA

Anastácio Ayres
de Penhafiel (?)
Segundo os Códices da Academia dos Esquecidos, trata-se de
um poeta brasileiro. O poema escolhido se encontra na antologia Po-
esia barroca, organizada por Péricles Eugênio da Silva Ramos.

AO EXCELENTÍSSIMO SENHOR VASCO FERNANDES


CÉSAR DE MENESES, VICE-REI DO ESTADO DO BRASIL

LABIRINTO CÚBICO

INUTROQUECESAR
NINUTROQUECESA
UNINUTROQUECES
TUNINUTROQUECE
RTUNINUTROQUEC
ORTUNINUTROQUE
QORTUNINUTROQU
UQORTUNINUTROQ
EUQORTUNINUTRO
CEUQORTUNINUTR
ECEUQORTUNINUT
SECEUQORTUNINU
ASECEUQORTUNIN
RASECEUQORTUNI

43
POESIA BARROCA

António Barbosa Bacelar


(1610-1663)

A maioria de sua produção poética foi publicada em Fênix renascida


e Postilhão de Apolo. Outros poemas se encontram dispersos em vários
códices e antologias.

Amoroso desdém num belo agrado,


No mais duro ferir um doce jeito,
Tirania suave em brando aspeito,
Olhos de fogo em coração nevado.

No vestir um asseio descuidado,


Ingratidão amável no respeito,
O brio, a graça, o riso em um sujeito
Variamente co grave misturado.

Animado primor da fermosura,


Luzido discursar de engenho agudo,
Custosa luz, incêndio pretendido,

Alma no talhe, garbo na postura,


Capricho no cuidado, ar no descuido,
Armas são com que amor me tem rendido.

(HATHERLY, 1997)

45
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UM BEM PERDIDO

Eu me vi neste monte noutra idade


Nos braços da ventura reclinado:
Esta fonte, esta rocha, aquele prado
Testemunhas serão desta verdade.

0h que tamanha mágoa a saudade


Me representa agora no cuidado!
Mas quando durou mais um doce estado,
Que tem a segurança na vontade?

Para igualar a glória que então tinha,


dos Astros revestido o Firmamento
Se deu (oh quantas vezes!) por vencido.

Mas que vã ignorância é esta minha:


Tão ocioso trago o pensamento,
Que me ponho a cuidar num bem perdido.

(Fênix renascida)

A UM PEITO CRUEL

O Bem passado que é? é mal presente,


O mal presente que é? é dor esquiva,
A dor esquiva que é? é morte viva,
A morte viva que é? inferno ardente,

Com mal quem poderá viver contente,


Com dor quem haverá que alegre viva,
Com morte quem não tem pena excessiva,
Com inferno quem vive alegremente?

Por bem passado mal vou padecendo,


Por alegria dor, por vida morte,
Com glória o mesmo inferno estou sofrendo:

Mas ah, peito cruel, que ainda é mais forte


A dura condição, que em ti estou vendo,
Que bem, e mal, e dor, inferno, e morte.

(Fênix renascida)

46
POESIA BARROCA

A UM SONHO

Adormeci ao som do meu tormento,


E logo vacilando a fantasia,
Gozava mil portentos de alegria,
Que todos se tornaram sombra e vento.
Sonhava que tocava o pensamento
Com liberdade o bem que mais queria,
Fortuna venturosa, claro dia.
Mas ai! que foi um vão contentamento!

Estava, ó Clori minha, possuindo


Desse formoso gesto a vista pura,
Alegres glórias mil imaginando.
Mas acordei e, tudo resumindo,
Achei dura prisão, pena segura.
Ah quem estivera assim sempre sonhando!
(Fênix renascida)

A UMA AUSÊNCIA
Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta.
O mal, que me consome, me sustenta,
O bem, que me entretém, me dá cuidado;

Ando sem me mover, falo calado,


O que mais perto vejo se me ausenta.
E o que estou sem ver mais me atormenta.
Alegro-me de ver-me atormentado;
Choro no mesmo ponto em que me rio,
No mor risco me anima a confiança,
Do que menos se espera estou mais certo;

Mas se de confiado desconfio,


É porque entre os receios da mudança
Ando perdido em mim, como em deserto.

(Fênix renascida)

47
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UMA DESPEDIDA

Agora, que o silêncio nos convida,


Discursemos um pouco, ó pensamento;
Demos um desafogo ao sofrimento,
Pois lhe demos a pena sem medida.

Enfim, chegou aquela despedida


Em que, perdido meu contentamento,
O mais que me ficou foi meu tormento,
O menos que deixei foi toda a vida.

Para que era ficar-me na memória


As lembranças de um bem tão malogrado?
Falta-me o bem, faltaram-me as lembranças.

Se verei outra vez tão doce glória?


Mas ó suave engano, ó vão cuidado!
Inda eu cuido outra vez em esperanças!

(Fênix renascida)

A UMAS SAUDADES

Saudades de meu bem, que noite e dia


A alma atormentais, se é vosso intento
Acabares-me a vida com tormento,
Mais lisonja será que tirania.

Mas quando me matar vossa porfia


De morrer tenho tal contentamento,
Que em me matando vosso sentimento
Me há-de ressucitar minha alegria.

Porém matai-me embora, que pretendo


Satisfazer com mortes repetidas
O que à beleza sua estou devendo.

Vidas me dai para tirar-me vidas,


Que ao grande gosto com que as for perdendo
Serão todas as mortes bem devidas.

(Fênix renascida)

48
POESIA BARROCA

CONFORMANDO-SE COM A SUA TRISTEZA

Estou a ser triste já tão costumado,


O prazer de tal sorte me enfastia,
Que só quem me entristece me alivia,
Quem me quer divertir me dá cuidado:

Assim o largo mal me tem mudado,


Que se não fosse triste morreria,
Fujo como da morte da alegria,
Entre penas só me acho descansado.

A vida em tanto mal tenho segura,


Pois na minha tristeza só consiste,
Que não pode faltar-me eternamente:

Ninguém teve em ser triste mor ventura!


Que hei-de viver eterno de ser triste,
E só posso morrer de ser contente.

(Fênix renascida)

DE CONSOANTES FORÇADOS

Diz, Inês, quem vos vê, que em vós não há


Coisa, que seja má por mais, que vê,
Mas se eu vos pedir conta de uma fé,
Pode ser que ache em vós já coisa má.

Ai doce amada minha, inda que já


Minha não poder ser quem de outrem é;
Se haverá por ventura um dia, em que
Um bem, que lá se foi se torne cá.

Mas já será debalde, quando for;


Que já não pode haver bem para mim,
Pois tarda o bem e a vida se me vai:

Oh acabe de uma vez com a vida a dor,


Que a vida nunca pode achar um fim,
E a morte pode ser que alcance um ai.

(Fênix renascida)

49
NADIÁ PAULO FERREIRA

QUEIXANDO-SE

O Sofrimento meu cordeiro mudo,


Por minha própria mão sacrificado,
Nunca pode deter o golpe irado,
Nem pode suspender o ferro agudo:

Inocência não vale, nem monta estudo,


Onde serve a razão, domina o fado,
Que é infeliz às vezes o cuidado,
Que é venturoso às vezes o descuido:

Pois não vale o silêncio reverente,


Quero ver se o meu grito o bem me apura,
Se um queixume falado se consente,

Mas ai! que cansa em vão, quem bem procura,


Que é mártir cada qual do mal, que sente,
Ninguém é arquiteto da ventura.

(Fênix renascida)

50
POESIA BARROCA

António Serrão de Crasto


(1610 – 1685 ?)

Alguns poemas foram publicados na Fênix renascida e nos dois


volumes das Academias dos Singulares (1665-1668).
Fonte jocosa é um conjunto de poemas que foi preparado para
impressão e não chegou a ser publicado.
O resto de sua obra poética permanece inédita em textos manuscritos.

A UMA DAMA CHAMADA GRÁCIA


MUITO INTERESSEIRA
DÉCIMA

Grácia, tão interesseira


Sois como os vossos amores,
Que alcançar vossos favores
Sente-o a bolsa e a algibeira.
Não sejais dessa maneira,
Que é pior que ser ingrata;
E pois vossa graça mata
E sois de graças tesouro,
Não vos dei, Grácia, por ouro;
Dai-vos, Grácia, gratis data.

(Fonte Jocosa)

51
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UMA DAMA QUE DESMAIOU


DE VER UMA CAVEIRA

MOTE

Já fui flor, já fui bonina,


Agora estou desta sorte,
Fui o retrato da vida
Agora sou o da morte.

GLOSA

Se desmaias de me ver,
eu também de ver-te a ti,
pois qual tu te vês me vi,
e qual me vês hás-de ser;
esta caveira hás-de ter,
se te imaginas divina,
que eu também quando menina
fui um sol, fui uma aurora,
e se sou caveira agora,
já fui flor, já fui bonina.

Se me viras Primavera,
sendo uma inveja de flores,
então mais te dera horrores,
então alento te dera;
secou esta verde hera
um cruel sopro da morte,
porque com seu braço forte
tudo prosta, tudo humilha,
que eu ontem fui maravilha,
agora estou desta sorte.

Ver-me ontem era ventura,


Hoje ver-me horrores dou;
Hoje uma caveira sou,
ontem flor da fermosura.
Foi tal a minha pintura,

52
POESIA BARROCA

tão valente e tão subida,


tão forte e tão presumida,
tão corada, tão fermosa,
que soberba e vangloriosa
fui o retrato da vida.

Acabou-se este portento,


já este sol se eclipsou,
já esta flor se murchou,
já se acabou este alento.
Como a vida foi um vento,
inda que correu tão forte,
acabou-se de tal sorte,
que sendo com meu ornato
ontem da vida retrato,
agora sou o da morte.

(Academia dos Singulares de Lisboa)

53
POESIA BARROCA

Bernardo Vieira Ravasco


(1617-1697)

Poemas publicados no Postilhão de Apolo e em diversas antologias.

PELOS MESMOS CONSOANTES


APLICANDO-AS A UM CADÁVER1

Quem vos mostra mudada a bizarria


Da cara, quem a luz dava à bela Aurora
Creio nenhuma afronta vos faria,
Se a morte contemplara em vós Senhora:
Porque sem luz vereis naquele dia
A cara, que brilhar vedes agora,
Porque então haveis ter só por estrela
Ver em cinza desfeita a cara bela.

Horror será então esse tesouro,


Que hoje naufraga em ondas de cabelo,
Trocando com mortífero desdouro
Em fealdades quanto tem de belo:
Por mais rico se vence agora o ouro,
Então a terra há de convencê-lo,
Que quem na vida vive celebrado
Perde na morte as prendas de adorado.

Esses olhos, que hoje olham tão sem tento


Então não hão de ser o que hoje são,
Porque hoje se são da luz portento,
Das trevas hão de ser admiração:

55
NADIÁ PAULO FERREIRA

Não hão de dar então consolação;


Porque verão o fim de seu desejo
Terminar nas cavernas, que eu já vejo.

A boca, que, por ser tão pequenina,


Ao cravo conquista, e ao rubi,
Trocará quanto tem de peregrina,
Pela mais triste boca, que eu já vi:
Algum dia a ouvi chamar Divina,
Mas confesso, Senhora, que o não cri,
Porque entendia que havia a vossa boca
Pela de uma caveira fazer troca.

Esse aljôfar, que agora se desata,


Para brilhar melhor nesse rosal,
Não mostrará no nácar fina prata,
Quando vir consumido o seu coral:
Esses dentes, que em golpes de escarlata
O rutilante mostram do cristal,
Então, no descorado do marfim,
Dentes se hão de ver, e não carmim.

O peito, quem hoje é frágua do amor cego


Não será frágua então, nem será peito;
Porque por dar à parca seu sossego,
Perderá quanto tinha de perfeito:
Se em algum tempo foi do fogo emprego,
Então verá em si tão rico efeito,
Que julgará perfeito a tudo o mais,
Que não chegue a ver prodígios tais.

A causa, quem algum tempo foi do amor,


Aqui vomitará tal ódio, e tanto,
Que não verá o mundo outro maior
Na fabulosa Lei de seu encanto:
Porque o que causava tanto ardor
Da fealdade mesma será espanto,
Não vendo em si figura, nem sinal
Dos dois botões, que tinha de cristal.

56
POESIA BARROCA

Das mãos hei de dizer, pois me aventuro,


Que se sua beleza agora mata,
Seu horror matará então seguro,
Quanto tímido agora desbarata:
Que se agora são prata, e cristal puro,
Então não se verá cristal, nem prata:
Pois ossos hão de ser, que vão formando,
Gadanhos, que vão mortos sepultando.

Por os olhos na cinta não me atrevo,


Porque a vejo de carne tão sucinta,
Que já me não suspendo, nem me elevo,
Da beleza, que vejo nessa cinta:
De a ver, na garganta a morte levo,
Porque a vejo tão feia, e tão distinta,
Que não acho sinal da formosura,
Mais que um osso, que serve de cintura.

Do pé ia a falar mas tate, tate,


Que não tem nada o pé de peregrino.
Oh loucura do mundo! oh disparate!
Aqui minha Senhora desatino:
Quem consumiu o pé, quem lhe deu mate?
Mas ai! que a terra o viu tão pequenino,
Que por não ver em si sua pegada;
O picante do pé tornou em nada.

(HATHERLY, 1997)

1
Segundo Ana Hatherly, o retrato pintado por Bernardo Vieira baseia-
se no poema atribuído a Eusébio de Matos (“Retrato de uma Dama”,
que se encontra nessa antologia), de que faz uma glosa em negativo, e
não é de se excluir a possibilidade de que ambos os poemas tenham
por base outros modelos semelhantes de outros autores. De qual-
quer modo, trata-se provavelmente de um exercício poético entre
colegas (amigos ou rivais), educados pelos mesmos mestres, vivendo
ao mesmo tempo e na mesma cidade uma experiência cultural idênti-
ca (HATHERLY, 1997. p. 113).

57
POESIA BARROCA

D. Francisco
Manuel de Melo
(1608 ou 11 - 1666)

D. Francisco Manuel de Melo organizou e publicou seus poemas,


em 1665, no livro intitulado Obras métricas, dividida em três partes.
A primeira e a terceira são constituídas por poemas em castelhano
e a segunda por poemas em português.

ANTES DA CONFISSÃO

Eu que faço? que sei? que vou buscando?


Conto, lugar ou tempo a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida sem mais como nem quando?

Se cuidado, Senhor, falando, obrando,


Te ofende minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza.
Donde vou? donde venho? donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus! Não uma e uma


Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se alguma


Fora mais que uma gota a ser medida
C’o largo mar de tua graça imensa?

(Obras métricas)

59
NADIÁ PAULO FERREIRA

APÓLOGO DA MORTE

Vi eu um dia a Morte andar folgando


Por um campo de vivos, que a não viam.
Os velhos, sem saber o que faziam,
A cada passo nela iam topando.

Na mocidade os moços confiando,


Ignorantes da morte, a não temiam.
Todos cegos, nenhuns se lhe desviam;
Ela a todos com o dedo os vai contando.

Então, quis disparar, e os olhos cerra:


Tirou, e errou! Eu, vendo seus empregos
Tão sem ordem, bradei: Tem-te homicida!

Voltou-se, e respondeu: Tal vai de guerra!


Se vós todos andais comigo cegos,
Que esperais que convosco ande advertida?

(Obras métricas)

A UMA N. DE LIMA, QUE NÃO


RESPONDIA ÀS CARTAS
DÉCIMA

Senhora, um vosso criado


bem merece algum conforto,
pois de Valverde e do Porto
trago o coração limado.
Bem que a lima o tem roçado,
já se me não dá que o roce:
morreremos com essa tosse
(urda a sorte o meu mal, urda!)
vós por serdes Lima surda,
eu, por que sejais Lima doce.

(Obras métricas)

60
POESIA BARROCA

CONTRA AS FADIGAS DO DESEJO

E quem me compusera do desejo,


Que grande bem, que grande paz me dera!
Ou, por força, com ele hoje fizera,
Que me não vira, em quanto assi me vejo!

O que eu reprovo, eleje; e o que eu elejo,


Ele o reprova, como se tivera
Sortes a seu mandar, em que escolhera,
Contra as quais só por ele em vão pelejo.

Anda a voar do árduo ao impossível,


E para me perder de muitos modos,
Finge que a honra é certa no perigo.

Pois se nunca pretende o que é possível,


Como posso esperar ter paz com todos,
Quando não posso nem ter paz comigo?

(Obras métricas)

EM DIA DE CINZA, SOBRE AS PALAVRAS


- QUIA PULVIS ES

Melhor há de mil anos que me grita


Uma voz, que me diz: És pó da terra!
Melhor há de mil anos que a desterra
Um sono, que esta voz desacredita.

Diz-me o pó que sou pó, e a crer me incita


Que é vento quanto neste pó se encerra;
Diz-me outro vento que esse pó vil erra.
Qual destes a verdade solicita?

Pois, se mente este pó, que foi do mundo?


Que é do gosto? que é do ócio? que é da idade?
Que é do vigor constante e amor jocundo?

61
NADIÁ PAULO FERREIRA

Que é da velhice? que é da mocidade?


Tragou-me a vida inteira o mar profundo!
Ora quem diz sou pó, falou verdade.

(Obras métricas)

ESCUSA-SE AO CÉU COM A CAUSA DO SEU DELÍRIO

Pois se para os amar não foram feitos,


Senhor, aqueles olhos soberanos,
Porque por tantos modos mais que humanos,
Pintando os estivestes tão perfeitos?

Se tais palavras e se tais conceitos,


Tão divinas, tão longe de profanos,
Não destes por oráculo aos enganos,
Com que Amor vive nos mais altos peitos,

Porquê, Senhor, tanta beleza junta,


Tanta graça e tal ser lhe foi dotado,
Qual ídolo nenhum gozara antigo?

Mas como respondeis a esta pergunta


Que ou para desculpar o meu pecado,
Ou para eternizar o meu castigo?

(Obras métricas)

MEMÓRIAS E QUEIXAS

Esses mares que vejo, essas areias


Rompi, pisei, beijei hoje há sete anos;
Sete servi, sete perdi, tiranos
Sempre os fados nas vozes das sereias.
Tantos há que, arrastando cruéis cadeias,
Não guardo ovelhas, mas aguardo danos,
Das fermosas Raquéis vendo os enganos,
Sem a promessa ouvir das Lias feias.

62
POESIA BARROCA

Sofra Jacó fiel Labão mentindo,


Que, se dobra o servir, da alta consorte
Já não pode negar-lhe a mão devida.

Ai do que espera, quanto mais servindo!


Para um tão triste fim, tão leda a morte!
Para um tão largo amor, tão curta a vida 1 !

(Obras métricas)

MUNDO É COMÉDIA

Dez figas para vós, pois com furtado


Consular nome vos chamais Prudência,
Se, fazendo co’o Mundo conferência,
Discursais, revolveis, e eis tudo errado!

Quem vos vir, Apetite, disfarçado,


Digno vos julgará de reverência;
E a vós, Ódio, por homem de consciência,
Vendo-vos tão sesudo e tão pesado.

Dois a dois, três a três e quatro a quatro,


Entram, de flamas tácitas ardendo,
Astutos Paladiões em simples Tróias.

Quem enganas, ó Mundo, em teu teatro?


A mi não, pelo menos, que estou vendo
Dentro do vestuário estas tramóias.

(Obras métricas)

MUNDO INCERTO

Eis aqui mil caminhos. Por ventura


Qual destes leva a gente ao povoado?
Todos vão sós, só este vai trilhado;
Mas se, por ser trilhado, me assegura?
Não, que desde o princípio há que lhe dura
Do erro este costume ao mundo dado:

63
NADIÁ PAULO FERREIRA

Ser aquele caminho mais errado


O que é de mais passage e fermosura.

Enfim, não passarei, temendo a sorte?


Também, tanto temor é desconcerto
A quem passar avante assi lhe importe.

Que farei logo, incerto em mundo incerto?


Buscar nos Céus o verdadeiro norte,
Pois na terra não há caminho certo.

AO DESCUIDO DA VIDA
ODE

Vida, entremos em conta, já que há tanto


que sem conta vivemos;
e pois nos conhecemos
de tanto tempo de trabalho e pranto,
vamos assim fazendo uma memória
desta nossa intrincada e longa história.

Vós, vida, e eu vivente, ambos num dia


nascemos; mas de sorte
que de ambos quis a morte
logo cobrar o que nenhum devia:
bem vos alembrará que, ali comigo,
nascemos ambos com mortal perigo.

Ambos nascemos e, no mesmo ponto,


de mim e de vós, vida,
saíram, sem medida,
de um queixas, de outro lágrimas sem conto:
tão cedo fomos servos da amargura,
para crer que o nascer não foi ventura.

Que de misérias, ânsias e cuidados


não custa aquela idade!
Simples simplicidade,
todos os dotes da alma inda privados,
qual se ainda não fosse resoluto
se nascia para homem ou para bruto.

64
POESIA BARROCA

Tiram-nos do materno e doce peito,


por usos vãos e indignos;
já vamos peregrinos;
já vemos todo o afago é contrafeito,
fora da mãe, buscando outra com erro.
Logo entramos no mundo por desterro.

Que não custa o viver! Quanto o ser gente!


O calar, que castigo!
O falar, que perigo!
Tudo pesado, tudo descontente.
Certo que a Natureza arrependida
Já parece que está de nos dar vida!

(Obras métricas)

1
V. soneto de Camões, “Sete anos de pastor Jacob servia”. V. Velho
Testamento, “Gênesis, capítulo 29, Jacob e Labão (v. glossário).

65
POESIA BARROCA

D. Francisco de Portugal
(1585 - 1632)

Lucas de Portugal, seu filho, publicou as seguintes obras: Divinos


e humanos versos (1652); Tempestades y batallas de un cuydado
ausente (1683); e Arte de galanteria (1670), em prosa e verso.

SALMO

Só contra vós pequei, Senhor divino;


Foi todo o meu viver um desatino.
Mal lhe chamei viver, morte é temida,
Pois que é estar sem vós estar sem vida.
Veja-me perdoado
Por que vençais quando seja julgado.
Confunda com perdão vossa verdade
Com piedade à impiedade.

Um precipício foi cada desejo,


Cada lembrança agora um fiscal vejo;
O que acerto escolhi achei perigo,
Porque a mesma ventura era o castigo.
Desmaios em memórias
Logro nas penas que adorei por glórias,
Que o fruto são de tão perdidos anos
De enganos desenganos.

Do tempo é uso, do que estraga é queixa,


Com mais asas fugindo as penas deixa.

67
NADIÁ PAULO FERREIRA

Que passos dei guiados sem sentido!


O que não foi caída, foi perdido.
De que ação farei conta,
Se a menos licenciosa um cargo monta?
Desterros da razão, do céu desterros,
Juntar erros a erros.

Errei sabendo e trespassei os modos,


Ora exemplo de um mal ora de todos.
Desigualmente igual, sempre constante,
De um ódio a uma afeição fui variante.
Em baixesas fiz alto,
Se não falto de fé, de razão falto,
Abra as trevas luz santa e abrase logo
Tal fogo em melhor fogo.

Fiz advertido as partes da mentira.


Se a paixão me perdeu, ganhe-me a ira.
Conheci, mas não quis; perdido venho:
Nem ignorâncias que me valham tenho.
Cegamo-nos de sorte
Que, sendo fim, não desengana a morte.
Tudo é saudade, tudo põe mui cedo,
De um medo noutro medo.

Aquelas sombras vãs que a mocidade


Mistérios respeitou, são vaidade.
O que mentiu fazer no pensamento
Realidade pesou se durou vento.
Envergonhem espanto
Causas que, sendo nadas, custam tanto,
O que mais alcançou, por merecê-las,
Delas é fugir delas.

Sol reduzido a cores, tirania,


Que os pólos mede em limites de um dia;
Aquele volver de olhos tão amado
A um mesmo volver de olhos é passado,
Que os que mais resplandecem,
Mais ilusão que luz, desaparecem:
Mentirosas lisonjas que, ofendendo,
Estão sendo e não sendo.

68
POESIA BARROCA

Melhore-se clamor, luza queixume,


Salve escarmento o que danou costume.
Da servidão que me alheou de vosso
Cortem-se os nós que desatar não posso.
É tarde, não no nego:
Quem tão cego viveu, tardou por cego.
Chegar é negociar; a tempo venho,
Que a voz para vós tenho.

Em guerra tão cruel em que as vitórias,


Se escondem culpas e não coroam glórias,
Rotas armas, bandeiras adquiridas,
Também desacreditam com as feridas:
Despojos que são tais,
Que quem neles mais ganha perde mais.
Se os triunfos consistem no temer,
Vencer é não vencer.

Toquem a recolher as evidências


Que não sofrem desculpas experiências.
Se não for religião, seja vergonha;
Acorde já quem tanto há já que sonha.
Publique erros a dor,
O que foram amores seja amor.
Adoce o ser remédio ao ser preceito,
Será desfeito o feito.

Pequei, Senhor. De corações contritos


As lágrimas são gritos.
Com meus próprios suspiros me animai,
Com um ai para outro ai.

(Divinos e humanos versos)

69
POESIA BARROCA

D. Tomás de Noronha
(? - 1651)

Alguns poemas foram publicados na Fênix renascida e a maioria


da sua obra poética permanece inédita em fontes manuscritas.
Mendes dos Remédios, em 1889, publicou alguns textos inéditos.

Amor me tem por vós negro ferrado,


tanto quanto esses olhos me emperraram,
depois que eles por negros me roubaram
o que não para vós tinha guardado.

E no cabelo basto, mais frisado


do que baieta fina, se enlevaram
tanto estes meus, que logo em si criaram
um desejo negral, negro cuidado.

Assim, que o negro ser dessa Figura,


a negra graça dela, o negro rosto,
me tem de amores negros noite obscura.

Lembrai-vos pois de dar-me um negro gosto,


negra Senhora minha, pois ventura,
por vós em negro estado me tem posto.

(HATHERLY, 1997)

71
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UM CASAMENTO QUE FEZ EM LISBOA


UM FULANO DE MELLO COM UMA FULANA
DE MELLO, AMBOS VELHOS

Bizarra em cadeira ela,


Bizarro em cavalo ele,
Ele com muito ar nela,
EIa com muito ar nele.

Fidalgos ele e ela,


Não há para que dizê-lo,
Ele Mello é ramelo,
Ela Mella é ramela.

(REMÉDIOS, 1899)

A UMA FREIRA QUE LHE MANDOU PEDIR


MEIAS E SAPATOS PARA ENTRAR EM
UMA COMÉDIA, E UM VESTIDO
CANÇÃO

Vestido, meias, sapatos


Me pedis, senhora Inês,
Para entrar numa comédia
E sair num entremez.

À fé de poeta honrado,
Que ficareis desta vez,
Despida de todo o ponto,
De cabeça, perna e pés.

Porque pedir tal vestido


A quem vestido não tem,
Será deixar-vos em branco
Vestindo-vos em papel.

Pois desta sorte vestida,


De ponto em branco entrareis,
Que entrando de encamisada,
Em camisa entrais mui bem.

72
POESIA BARROCA

Despida por despedida


Praza a Deus que não fiqueis,
E vos tome sem camisa
Quem vos tomar por mulher.

Buscai, senhora, outro amante,


Que tal vestido vos dê,
Porque vos não quer vestida,
Quem só despida vos quer.

Vestido nunca peçais


A quem amor vos tiver,
Que amor como anda despido
Não dá vestido a ninguém.

Assim que estais enganada


Se cuidais, senhora Inês,
De alguns destes meus vestidos.
Fazer roupa de francês.

Vestido não quero dar-vos,


Nem vestido meu tereis,
Que para vestir um santo
Despir outro não convém.

Que dar vestido um poeta


Coisa é que se nunca fez
Pois só cortes de vestir,
Sabe um poeta fazer.

A capa sem ser vestido,


Se quiserdes vos darei,
Só por deixar-vos nas mãos
A capa como José.

Porém meias nem sapatos,


Por Deus que vos não darei,
Que é fazer gato-sapato,
De quem sapatos não tem.

73
NADIÁ PAULO FERREIRA

Pobre, senhora, de mim,


Pois se os sapatos vos der,
Não terei em toda a vida
Outros que meta nos pés.

E será coisa forçada


Se calçado não tiver,
Nos Carmelitas Descalços
Professar, em que me pês.

Nestes pontos dos sapatos


Nem das meias me faleis,
Que perco o ponto em cuidar
Nas pontas de vosso pé.

De meias podeis andar


Com quem as meias vos der,
Que eu não dou por não dar meias
Nem meias natas a el-rei.

Lá vos havei com o trino


Pedi-lhe, senhora Inês,
Que vos vista e que vos calce
Como marido a mulher.

Com botas ou borzeguins


Entrai no vosso entremez,
Que calçando desta sorte,
Calçareis ao português.

E se não nessa comédia


Entrar em pernas podeis,
Representando descalça
A figura de Moisés.

E não torneis a pedir-me


Coisa que valha um vintém,
Que o pedir é despedir-me
Para todo sempre, amem.

(REMÉDIOS, 1899)

74
POESIA BARROCA

A UMA MULHER QUE


SENDO VELHA SE ENFEITAVA
CANÇÃO

Escuta, ó Sara, pois te falta espelho


Para ver tuas faltas,
Não quero que te falte meu conselho
Em presunções tão altas;
Lembro-te agora só que és terra e lodo
E em terra hás de tornar-te deste modo;
Mas não te digo, nem te lembro nada,
Porque há muito que em terra estás tornada.

Que importa que algum tempo a prata pura


De tuas mãos nascesse,
E que de teus cabelos a espessura
As minas de ouro desse,
Se o tempo vil, que tudo troca e muda,
Somente de ouro pôs por mais ajuda
Em tuas mãos de prata o amarelo,
E a prata de tuas mãos em teu cabelo.

Se um tempo foram de marfim brunido


No século dourado,
Não vês que o tempo as tem já consumido?
Não vês que as tem gastado?
Deixa, Senhora, deixa os vãos enredos,
Pois quando toco teus nodosos dedos
Me parece, que apalpo sem enganos
Cinco cordões de frades Franciscanos.

Viciando a natureza com tuas tintas,


Com pincéis delicados
Jasmins e rosas em teu rosto pintas:
Deixa esses vãos cuidados,
Que quanto mais tua cara se alvorota,
Máscara me pareces de chacota
E se sem tintas, cuido neste passo
Que esta máscara está em calhamaço.

75
NADIÁ PAULO FERREIRA

Como pretendes pois com mil enganos


Vestir mil primaveras,
Se passou a primavera de teus anos?
Como não desesperas,
Se o tempo te pôs já no Inverno frio,
Aonde toda a fruta perde o brio.
Parecendo teu rosto, e porque enfada,
Fruta, que se secou, noz arrogada?

Se feitura de Deus Eva não fora,


Dissera sem porfias
Que de Eva foste mãe, velha senhora,
Pois te sobejam os dias
Para esta presunção, que agora tenho;
E concluindo enfim, a alcançar venho,
Pois alcançar não posso a tua idade,
Que deves de ser mãe da eternidade.

Parece que teus olhos, por consciência,


A idade os tem metidos
Em duas lapas fazendo penitência;
E estão tão escondidos,
Que quando os vou buscar, porque me choram,
Não acerto com o beco onde moram,
Porque o tempo os mudou seu passo, e passo
Da flor do rosto lá para o cachaço.

Se a meus olhos despida te ofereces,


Minha alma logo pasma,
E estética nos ossos me pareces,
Ou quando não fantasma;
E assim, senhora, se te vejo em osso,
Com essa cara posta em tal pescoço,
Me pareces, tirada a cabeleira,
Em cima de um bordão uma caveira.

Como ainda queres em desatinos


Dar a meninos mama,
Se já contigo desmamei meninos?
Deixa essa torpe fama,
Sabe que sei (e disto não me gabo)

76
POESIA BARROCA

Que te alugou sem dúvida o diabo,


Invejando teu corpo, cara e dedos,
Para fazer a Santo Antão os medos.

Deixa, Senhora, deixa o vão cuidado,


A sagrado te acolhe,
Primeiro que te ponham em sagrado;
Este conselho escolhe,
Admite o que te digo sem desgosto,
Que eu quando vejo teu funesto rosto
Já também dele o seu conselho tomo,
Porque mudo me diz Memento homo.

(Fênix renascida)

A UNS NOIVOS, QUE SE FORAM RECEBER,


LEVANDO ELE OS VESTIDOS EMPRESTADOS,
E INDO ELA MUITO DOENTE, E CHAGADA

Saiu a noiva muito bem trajada,


Saiu o noivo muito bem trajado,
0 noivo em tudo muito conchegado,
A noiva em tudo muito conchagada.

Ela uma enágoa muito bem bordada,


Ele um capote muito bem bordado,
Do mais do noivo tudo de emprestado,
Do mais da noiva tudo de emprastada.

Folgamos todos os amigos seus


De ver o noivo assim com tanto brio,
De ver a noiva assim com tantos brios.

Disse-lhe o Cura então: Confio em Deus,


respondeu o noivo, e eu confio,
E respondeu a noiva, e eu com fios.

(Fênix renascida)

77
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UMA MULHER ACAUTELADA EM FECHAR A


PORTA, MAS DIZIAM QUE ANDAVA COM O CURA

Que importa ao crédito vosso


Fechardes, todos os dias,
A porta às Ave-Marias,
Se a abris ao Padre-nosso?

(REMÉDIOS, 1899)

ÀS POESIAS QUE SE FIZERAM A UMA


QUEIMADURA DA MÃO DE UMA SENHORA

Ó mão não de cristal, não mão nevada,


Mão de relógio sim, pois que pudeste
Nesta mísera terra em que nasceste
Fazer dar tanta infinda badalada.

Que mão de almofariz enxovalhada


Foi tal, como tu foste, ó mão celeste,
Pois foste, quando mais resplandeceste,
Em tantas de papel tão mal louvada.

Nem de Cévola a mão negra e grosseira,


Queimada entre morrões publicamente,
Merecia tão míseras poesias.

Mas louvo-as de sutis em grã maneira,


Pois que para apagar a flama ardente
Se fizeram de indústria assim tão frias.
(Fênix renascida)

FIGURA DO ENTRUDO

Entrava a uma vista o santo entrudo


em cima cavalgado de um leitão,
e por lança um espeto c’um capão,
uma tortilha de ovos por escudo.

78
POESIA BARROCA

Por elmo, era a cabeça de um cornudo,


por peito, o de um peru com seu limão,
por espaldar levava um bom lacão,
os braçais de toucinho façanhudo.

Uma saia de malha de aletria,


armaduras das pernas, de filhós,
as esporas, de bicos de perdizes.

Por banda, um borrachão de malvasia,


saía com estas armas mui feroz
ao som de caldeirões e almofarizes.

(HATHERLY, 1997)

0 sofrimento meu cordeiro mudo,


Por minha própria mão sacrificado,
Nunca pode deter o golpe irado,
Nem pode suspender o ferro agudo.

Inocência não val, não monta estudo


Onde serve a razão, domina o fado,
Que é infelice às vezes o cuidado,
É venturoso às vezes o descuido:

Pois não vale o silêncio reverente,


Quero ver se o meu grito o bem me apura,
Se um queixume falado se consente.

Mas ai, que cansa em vão quem bem procura,


Que é mártir cada qual do mal, que sente:
Ninguém é arquiteto da ventura.

(Fênix renascida)

79
NADIÁ PAULO FERREIRA

PRAGAS SE CHORAR MAIS


POR UMA DAMA CRUEL

Não sossegue eu mais que um bonifrate,


De urina sobre mim se vaze um pote,
As galas que eu vestir sejam picote,
Com sede me dêem água em açafate,

Se jogar o xadrez, me dêem um mate,


E jogando às trezentas, um capote,
Faltem-me consoantes para um mote,
E sem o ser me tenham por orate,

Os licores que beba sejam mornos,


Os manjares que coma sejam frios,
Não passeie mais rua que a dos fornos,

E para minhas chagas faltem fios,


Na cabeça por plumas traga cornos,
Se meus olhos por ti mais forem rios.

(Fênix renascida)

80
POESIA BARROCA

Eusébio de Matos 1

(1629 - 1692)

Segundo a maioria dos estudiosos da poesia do século XVII, a


sua obra poética está publicada no Postilhão de Apolo. Entretanto,
no Florilégio da poesia brasileira, de Francisco Adolfo Varnhagen,
alguns poemas lhe são atribuídos.

RETRATO DE UMA DAMA2


OITAVAS

Podeis desafiar com bizarria


Só por só, cara a cara, bela Aurora,
Que a Aurora nem só cara vos faria,
Vendo tão boa cara em vós, Senhora:
Senhora sois do Sol, e luz do dia,
Do dia, em que nascestes até agora,
Que se a Aurora foi luz por sua estrela,
Duas tendes em vós a qual mais bela.

Sei que vos dera o Sol o seu tesouro,


Pelo negro gentil desse cabelo,
Tão belo, que em ser negro foi desdouro
Do Sol, que por ser de ouro foi tão belo:
Bela sois, e sois rica sem ter ouro,
Sem ouro haveis ao Sol de convencê-lo,
Que se o Sol por ter ouro é celebrado,
Sem ter ouro esse negro é adorado.

81
NADIÁ PAULO FERREIRA

Vão os olhos, Senhora estai atento:


Sabeis os vossos olhos o que são?
São de todos os olhos um portento,
Um portento de toda a admiração:
Admiração do Sol, e seu contento,
Contento, que me dá consolação,
Consolação, que mata o bom desejo
Desejo, que me mata quando os vejo.

A boca para cravo é pequenina,


Pequenina se é, será rubi,
Rubi não tem a cor tão peregrina,
Tão peregrina cor eu nunca vi:
Vi a boca, e julguei-a por Divina
Divina não será, eu o não creio,
Mas creio que não quer a vossa boca
Por rubi, nem por cravo fazer troca.

Ver o nevado aljôfar, que desata,


A Aurora sobre a gala do rosal,
Ver os raios de nácar dessa prata,
E pérolas em conchas de coral:
Ver diamantes em golpes de escarlata,
Em piques de rubi puro cristal,
É ver os vossos dentes de marfim,
Por entre os belos lábios de carmim.

Em peito não sossega esse Amor cego,


Cego só pelo amor de vosso peito,
Peito, em que o cego Amor não tem sossego,
Sossego por vos ter amor perfeito.
Perfeito foi o amor em tal emprego,
E o emprego perfeito em tal efeito,
Efeito, que é mal feito dizer mais,
Quando chega o amor a extremos tais.

Tanto se preza Amor de vosso amor,


Que o maior, que tem, é amor tanto
Tanto, que diz o Amor que outro maior
Não teve por amor, nem por encanto:
Encanto é ver o Amor em tal ardor,

82
POESIA BARROCA

Que arda também o peito por espanto,


Tendo, do fogo vivo por sinal,
Duas vivas empolas de cristal.

A dizer dessas mãos não me aventuro,


Que a ventura das mãos a tudo mata,
Mata Amor nessas mãos já tão seguro,
Que tudo às mãos lavadas desbarata:
A cuja neve, prata, e cristal puro,
Se apurou o cristal, a neve, a prata,
Belíssimas pirâmides formando,
Onde Amor vai as almas sepultando.

A descrever a cinta não me atrevo,


Porque a vejo tão breve, e tão sucinta,
Que em vê-la me suspendo, e me elevo,
Por não ver até agora melhor cinta:
Mas por seguir o estilo, que aqui levo,
Digo que é vossa cinta tão distinta,
Que o Céu se faz anel da formosura,
Só para cinta ser de tal cintura.

Vamo-nos para o pé, mas tate, tate,


Que descrever o pé tão peregrino,
Se loucura não é, é disparate,
Disparate, que passa a desatino:
Aqui desatinei, pois me deu mate
O picante do pé tão peregrino,
Que pé tomar não posso em tal pegada,
Pois é tal vosso pé, que em pontos nada.

(Postilhão de Apolo)

___________________
1
Brasileiro, nascido na Bahia, irmão de Gregório de Matos.
2
V. o comentário feito ao poema de Bernardo Vieira (“Pelos
mesmos consoantes aplicando-as a um cadáver”) que, segundo Ana
Hatherly (1997), é uma glosa a este poema de Eusébio de Matos.

83
POESIA BARROCA

Francisco de Pina e de Melo


(1695 - 1765 ou 73)

A sua produção lírica se encontra em Rimas (1727 e 1775).

A UMA ESTÁTUA DE BACO; EM CIMA DE UMA PIPA


DE ÁGUA, COM UMA CANECA NA MÃO, QUE 0
ESCULTOR DELINEOU RINDO, E HOJE COM OS
GOLPES QUE LHE TINHA DADO 0 TEMPO PARECIA
CHORANDO
HINO

Salve, ó tu sanguessuga da goteira,


Salve grão padre Baco, salve a fofa
Barriga enchouriçada, que estofa
No enlambuzado horror da borracheira.

Ó perpétuo cabide da picheira,


Que razão pode ter quem de ti mofa?
Sendo eterno centúrio da galhofa?
Sendo autor contumaz da dormideira?

Rindo te pôs o artífice, e o caminho


Dos anos maquinou na sua frágua
O choro, que hoje tens nesse focinho.

Indigno te é o gozo, e digna a mágoa;


Deves ao tempo mais, faltando o vinho;
Que deves ao Escultor, sobrando a água.
(Rimas)

85
NADIÁ PAULO FERREIRA

AO MESMO ASSUNTO NA CIRCUNSTÂNCIA


DE A COROAR DEPOIS DE MORTA

Sombra ilustre, prodígio macilento,


Cuja formosa, esplêndida ruína,
No torpe altar da infausta Libitina
Os cultos autoriza ao monumento.

Mas se ao termo fatal corre o aumento,


Do mesmo estrago agora se origina,
Aquela ardente chama peregrina
Que te livra do horror do esquecimento.

O sacrilégio bárbaro suporte


A ânsia; que maior felicidade
Lhe alcança a idéia do infeliz consorte.

Quis fazer-lhe imortal a majestade,


E só morta lha deu, pois sem a morte
Ninguém pode passar à eternidade.

(Rimas)

DELÍRIOS DA NATUREZA

Em um ponto me alegro, e me entristeço,


Choro, e rio, ouso, e temo, vivo, e morro,
Calo, e grito, contemplo, e não discorro,
Parto, e fico, não vou, e me despeço.

Lembrando-me de mim, de mim me esqueço,


Ora fujo, ora torno, paro, e corro,
Já atado, já solto, preso, e forro,
Lince, e cego, me ignoro, e me conheço.

Eu mesmo me acredito, e me desminto,


Eu mesmo agravo o mal, e peço a cura,
Eu mesmo me consolo, e me ressinto.

Saiba, pois, toda a humana criatura,


Que, para escapar deste labirinto,
Há de fugir às mãos da formosura.
(Rimas)

86
POESIA BARROCA

Francisco de Vasconcelos
(Coutinho)
(1665 - 1723)

Alguns sonetos e A fábula de Polifeno e Galateia foram


publicados na Fênix Renascida. Depois de sua morte foram
publicados: Feudo do Parnaso (1729); um panegírico em tercetos a
D. João V (1729); e Hecatombe métrico (1729), constituído de cem
sonetos, tendo como tema a redenção do homem, desde o pecado
original até à paixão de Cristo.

À FRAGILIDADE DA VIDA HUMANA

Esse baixel nas praias derrotado


Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.

Esse nácar em cinzas desatado


Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse estio em vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave, em doce agrado.

Se a nau, o sol, a rosa, a primavera


Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,

87
NADIÁ PAULO FERREIRA

Olha, cego mortal, e considera


Que és rosa, primavera, sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.

(Fênix renascida)

A UMA SUSPEITA

Amor, se uma mudança imaginada


É com tanto rigor minha homicida,
Que fará se passar de ser temida
A ser, como temida, averigüada?

Se só por ser de mim tão receada


Com dura execução me tira a vida,
Que fará se chegar a ser sabida?
Que fará se passar de suspeitada?

Porém já que me mata, sendo incerta,


Somente o imaginá-la, e presumi-la,
Claro está, pois da vida o fio corta,

Que me fará depois, quando for certa,


Ou tornar a viver, para senti-la,
Ou senti-la também depois de morta.

(Fênix renascida)

AOS GOSTOS BREVES DO MUNDO

Glória do amor, que breve que feneces!


Pena do amor, que larga te dilatas!
Que largamente um coração maltratas!
Com quanta brevidade desvaneces!

Gosto fingido no melhor pereces,


Verdadeiro tormento sempre matas,
Se te concedes, logo te recatas,
Se te apoderas, nunca te enterneces!

88
POESIA BARROCA

Pena cruel, que a alma me traspassas!


Glória caduca, que tão pouco aturas!
Quem pudera emendar tantas desgraças!

Quem tivera num ser sempre as venturas!


És doce de passar, por isso passas;
És dura de sofrer, por isso duras.

(Fênix renascida)

COMOÇÃO DO UNIVERSO NA MORTE DE CRISTO

Expira Cristo e o mundo esmorecido.


Cadáver o universo amortalhado,
Nos horrores da sombra agonizado,
Foi nas cinzas do Sol fênix nascido.

Espedaçam-se as pedras, dividido


Em pedaços do Templo o véu sagrado:
É o fogo um clamor, é o mar um brado,
É a terra um capuz, o ar um gemido.

Treme a terra e com rápidos, velozes


Raios graniza o céu cóleras loucas
De pena que da mágoa inda são mínguas;

Os ares em suspiros bradam vozes,


Os montes em rupturas abrem bocas,
O fogo em labaredas rompe em línguas.

(Hecatombe métrico)

COMPARANDO O SEU AMOR AO FÊNIX

Tu Fênix, tu do amor doce traslado,


Companheiro em meus males peregrino,
Pois se em fogo te acaba o teu destino,
Em chamas me atormenta o meu cuidado.

89
NADIÁ PAULO FERREIRA

Tu te podes queixar de um triste fado,


Eu me queixarei de um deus menino,
Pois tu por desgraçado, e eu por fino
Acabas incendido, eu abrasado.

Mas oh, que as tuas ânsias são pequenas


À vista do martírio, em que discorro,
Porque renasces em morrendo apenas;

E servindo-te as penas de socorro,


Tu renasces do fogo em tendo penas,
Eu porque muito peno, em chamas morro.

(Fênix renascida)

DOR DE MARIA MADALENA NA PAIXÃO DE CRISTO

Dous mares, um de aljôfar, outro de ouro,


Soltando a Madalena espalha e chora,
Um de perlas raudal, ciúme da Aurora,
Outro de Ofir prisão, do sol desdouro.

Quebrando a imunidade o raio ao louro,


Com louros raios melhor sol namora,
E quando perlas verte, ondas arvora,
Faz o aljôfar erário, o Ofir tesouro.

Os olhos e os cabelos aos pesares


Tremulando troféus, vertendo ensaios,
São da dor sentinelas, da ânsia rondas.

E dobrando as tormentas em dous mares,


Em pélagos de neve afoga os raios,
Em naufrágios de fogo bebe as ondas.

(Hecatombe métrico)

90
POESIA BARROCA

MAIS SENTE QUEM SE QUEIXA, QUE QUEM SE CALA

Na queixa o sentimento se engrandece,


No silêncio se afrouxa o sentimento,
Que se o lembrar da dor dobra o tormento,
Quem sufoca o pesar, menos padece.

No silêncio talvez a dor se esquece,


Na voz não pode ter esquecimento,
Com que a dor no silêncio perde o alento,
Quando a mágoa na queixa reverdece.

Se a memória do mal dobra o penoso,


E quem o diz desperta essa memória,
Mais sente, que quem dentro a pena fecha.

Porque este no silêncio tem repouso,


E aquele aumenta a dor, se a faz notória,
Pois renova o pesar, quando se queixa.

(Fênix renascida)

MARIA, A MÃE-VIRGEM

Qual sarça de Moisés que verde ardia,


Carro de Elias que o esplendor cercava,
Nas chamas os verdores conservava,
Nas luzes sem estrago os céus corria;

Qual o forno que em chamas só luzia


E todo labaredas não queimava,
Jerusalém que a chama circundava
E de um muro de fogo se cingia,

Assim Maria, carro luminoso,


Forno brilhante, ardente sarça amena,
Jerusalém que em fogo ilustra o barro,

Sem risco, eclipse, estrago, horror penoso,


No ardor, na chama, no pavor, na pena,
É Jerusalém, forno, sarça e carro.

(Hecatombe métrico)

91
POESIA BARROCA

Frei António das Chagas


(António da Fonseca Soares, 1631 - 1682)

Poemas publicados na Fênix renascida e no Postilhão de Apolo.


Depois de sua morte foram publicados: Contrição de um pecador
arrependido a Cristo Crucificado (1685); Fugida para o deserto
e desengano do mundo (1756); e Carta escrita a um amigo depois
de ser religioso (1738).

A SANTA MARIA MADALENA

De noite a Madalena vai segura,


Passa por homens de armas sem temor,
Tanto elevada vai no seu amor
Que não atende a quanto se aventura.

Indo buscar a vida à sepultura,


Quando não achou nela a seu Senhor,
Com suspiros, com lágrimas, com dor
Movia a piedade a pedra dura.

- Suave Esposo meu, todo o meu bem -


Os olhos no sepulcro, começou
- Quem vos levou, Senhor, donde vos tinha?

Quem vos levou, Senhor, onde vos tem?


Torne-me [meu] Senhor quem mo levou
Ou leve com seu corpo esta alma minha.

(Biblioteca Nacional de Lisboa, Cod. 6216, fol. 145 v)

93
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UMA DAMA, QUE DEU UMA QUEDA


INDO ESPEVITAR UMA VELA
ROMANCE

Inês, aquela deidade,


A quem chamam por aqui
A jóia deste lugar,
E o pasmo deste país.

Aquela estrela em sapatos,


Aquela Aurora em chapins,
Sol humanado em mulher,
Flor trocada em Serafim.

Indo dar vida a uma luz,


Que ou morria por luzir,
Ou só por ressuscitar
Em túmulos de jasmim.

Caiu, como se este auxílio


Fora tentação, que enfim
Porque até neles se caia,
Sempre o diabo é sutil.

Moça tão bem entendida


Quem a viu jamais, se assim
Como quem não quer a coisa,
Em tudo sabe cair?

Fizeram juízo os Astros


Deste caso, e vendo ali
Como já caía o Sol,
Temeram do mundo o fim.

Esmoreceu-se a muchacha,
Mas que muito, se adverti
Que anima a um peito de alcorça
Um coração de alfenim.

94
POESIA BARROCA

Borrifaram-na as amigas,
E assim teve graças mil
Com os orvalhos da Aurora
Um rostinho tão gentil.

Contudo, ó Fábio, este caso


Nos sirva de exemplo aqui,
Que é mau querer atiçar
Quem vive de consumir.

(Fênix renascida)

A UMA CAVEIRA

Destroçado baixel da vida humana,


Eloqüente padrão de uma ruína,
De lastimoso horror pálida mina,
Arrastado troféu de pompa ufana,

Desse caos que habitas por choupana,


Dessa que ocupas urna peregrina.
Me dize quem és, que desatina
A vista no horror que te profana.

- Sou de um grande, de um vil, de um rei procedo


Mais retórico então quando mais mudo
Responde aquele assombro obscuro e quedo,

Pois o grande, o vil, o rei é tudo,


Debaixo deste sólido penedo,
Tudo igual, tudo o mesmo e cinza tudo.

(Carta escrita a um amigo seu depois de ser religioso)

À VAIDADE DO MUNDO

É a vaidade, Fábio, desta vida


Rosa que na manhã lisonjeada
Púrpuras mil com ambição coroada
Airosa rompe, arrasta presumida;

95
NADIÁ PAULO FERREIRA

É planta que de Abril favorecida


Por mares de soberba desatada,
Florida galera empavesada,
Surca ufana, navega destemida;

É nau, enfim, que em breve ligeireza,


Com presunção de fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos preza.

Mas ser planta, rosa e nau vistosa


De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?

(Carta escrita a um amigo seu depois de ser religioso)

AOS OLHOS DE FILIS ENFERMOS


COM UMAS NÉVOAS, E POR ISSO AUSENTES

Formosos olhos, se a essas luzes belas


Ofendem de uma névoa as impiedades,
Não sofra tanto raio escuridades,
Que é ofício do Sol desvanecê-las.

Se desculpais fingindo padecê-las


Não querer verme em mágoas, e saudades;
A piedade acredita as divindades,
E é o rigor desluzimento delas.

Se é porque me não mate este cuidado,


Que desgraça é morrer compadecido,
Se hei-de morrer em vos olhar premiado?

Olhos, dar-me outra morte haveis querido,


Pois quereis sobre a dor de lastimado,
Que morra dessas luzes desvalido.

(Fênix renascida)

96
POESIA BARROCA

FUGIDA PARA O DESERTO


E DESENGANO DO MUNDO

Já, meu Deus, neste deserto


Fábio vive arrependido
do regalo nos abrolhos,
do deleite nos espinhos.

Já do lascivo emendado,
já de pecador contrito,
de perverso, penitente,
de soberbo compungido;

Já todo lágrimas, pranto,


já todo fogo incendido,
já todo amargos soluços,
já todo triste suspiro.

A vós, Pai e Deus de amor,


chora amante, geme aflito,
bronze em cera transformado,
seixo em fogo convertido.

Agora, Senhor, agora


saiam desses cinco rios
lavatórios para as culpas,
e perdão para os delitos.

Saiam dessas chagas, saia


desse tesouro infinito
que amor vinculou na Cruz
para resgatar cativos;

Saiam dessas mãos abertas,


saiam desses pés feridos
liberalmente as piedades,
piedosamente os prodígios.

Desse peito nobre saiam


os afetos e os motivos
que por mal nascidas culpas
vos fizeram bem nascido.

97
NADIÁ PAULO FERREIRA

Se grandes são os pecados,


se enormes os delitos,
mais piedoso sois, meu Deus,
quando sois mais ofendido.

Se perdido andei, Senhor,


seja, Redentor Divino,
por vosso sangue ganhado
este pecador perdido.

Já, Senhor, aquela gala


que na corte foi delírio
é vento, se foi vaidade,
se foi delírio, é castigo.

Já, meu Deus, verei trocado


aquele traje lascivo:
em burel, o que foi tela,
em saiol, o que era riso.

Vossa clemência me valha


pois basta, Senhor benigno,
para clemência tão grande
qualquer pequeno motivo.

Pisando espinhos no ermo,


sangue verto entre os espinhos,
que é remédio para a culpa
verter sangue por castigo.

Aqui, Senhor, retirado,


dos apetites fugido,
mais apeteço os rigores,
os tormentos menos sinto.

Cesse pois, doce Jesus,


o rigoroso castigo,
pois amante sois piedoso,
agravado e ofendido.

98
POESIA BARROCA

Este Fábio, Senhor, é


aquele que arrependido
vem buscar vossos favores,
fugindo a vossos castigos.

Se vos ofendi pecando,


agora choro contrito,
que lágrimas penitentes
o perdão trazem consigo.

Se por meus pecados torpes


vosso amor nasceu tão fino,
é bem que logrem pecados
um amor tão bem nascido.

Aqui tendes Deus amante


já do mundo despedido
todo morto um coração
todo um sentimento vivo.

( ... )

Já, Senhor, neste deserto


onde penitente assisto
tanta duração de tempo,
o tempo vou consumindo.

Já este cadáver corpo


nos últimos paroxismos
cansado vai caminhando
pela carreira perdido.

Já, Senhor, chegando vai


àquele fim dirigido,
o último instante da vida,
triste da morte princípio.

Já, meu Deus, aquele alento


que a um sopro vosso foi vivo,
pela falência da vida
da morte vive cativo.

99
NADIÁ PAULO FERREIRA

Já sem vista a minha vista,


sem juízo o meu juízo,
sem discurso o meu discurso,
sem sentido meu sentido,

Quanto temo, tudo é sombra,


quanto temo, tudo é riso,
quanto tenho, tudo é medo,
tudo é pena quanto sinto.

Porém, meu Deus, nesta hora


em que já destituído
o corpo se vê sem forças,
o alento se vê sem brio,

A vida se vê sem curso,


o tato se vê sem tino,
o juízo sem alento,
o poder sem alvedrio,

Vossa clemência me valha,


ampare-me vosso abrigo,
vossa piedade me arrime,
socorra-me vosso auxílio.

Pequei, meu Jesus, pequei!


pois sois, meu Jesus, benigno,
nas vossas mãos, meu Jesus,
encomendo meu espírito.

(Fugida para o deserto e o desengano do mundo)

100
POESIA BARROCA

Gregório de
Matos Guerra 1

(“Boca do Inferno”, 1633 ou 36 - 1695 ou 96)

Os poemas, dispersos em vários manuscritos foram publicados em


antologias e em edições que visavam à reunião de sua produção poética.

A CRISTO CRUCIFICADO

Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,


Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei-de morrer
Animoso, constante, firme e inteiro;

Neste transe, por ser o derradeiro,


Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai, manso Cordeiro.

Mui grande é vosso amor e meu delito,


Porém pode ter fim todo o pecar
E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,


Que por mais que me piqueis neste conflito,
Espero em vosso amor de me salvar.

(Biblioteca Nacional de Lisboa, Cod. 3576, fol. 23 v)

101
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UMA MULATA POR NOME CATONA

Que pouco sabe do amor


quem não viu inda Catona,
que é nesta celeste zona
astro e luminar maior!
Também a violeta é flor,
e mais é negra a violeta;
e se bem pode um poeta
uma flor negra estimar,
também eu posso adorar
no céu um pardo planeta.

Catona é moça luzida


que a pouco custo se asseia;
entende-se como feia,
mas é fermosa entendida;
escusa-se comedida
e ajusta-se envergonhada;
não é tão desapegada
que negue a uma alma esperança,
por que enquanto a não alcança
não morra desesperada.

Pisa airoso e compassado,


sabe-se airosa mover,
calça que é folgar de ver,
e mais anda a pé folgado;
conversa bem sem cuidado,
ri sisudo na ocasião,
escuta com atenção,
responde com seu desdém,
e inda assim responde bem
e bemquista a sem rezão.

É parda de tal talento


que a mais branca e a mais bela
pudera trocar com ela
a cor pelo entendimento;
é um prodígio, um portento.
E se vos espanta ver

102
POESIA BARROCA

que adrede me ando a perder,


dá-me por desculpa amor
que é fêmea trajada em flor
e sol mentido em mulher.

(Biblioteca Nacional de Lisboa, Cod.3576, fol. 100)

AGRADECIMENTO DE UNS
DOCES A SUA FREIRA

Senhora minha, se de tais clausuras


Tantos doces mandais a uma formiga,
Que esperais vós agora que eu vos diga
Se não forem muchíssimas doçuras?2

Eu esperei de Amor outras venturas,


Mas ei-lo vai, tudo o que é dar obriga,
Ou já ceia de amor, ou já uma figa,
Da vossa mão são tudo ambrósias puras.

O vosso doce a todos diz: comei-me,


De cheiroso, perfeito e asseado;
Eu por gosto lhe dar comi e fartei-me.

Em este se acabando irá recado,


E se vos parecer glutão, sofrei-me
Enquanto vos não peço outro bocado.

(Biblioteca Nacional de Lisboa, Cod. 3238, fol. 1 v)

103
NADIÁ PAULO FERREIRA

AO DESEMBARGADOR BELCHIOR
DA CUNHA BROCHADO

Dou pruden nobre huma afáv


> to > te > no > el
> Rec cien benig e aprazív

Úni singular ra inflexív


> co > ro > el
Magnífi precla incomparáv

Do mun grave ju inimitáv


> do >
is > el
Admira gozaaplauso incrív

Po a trabalho tan et terrív


> is > to > ão > el
Da pron execuç sempre incansáv

Voss fa senhor sej notór


>a > ma >a > ia
L no cli onde nunc chega o d

Ond do Ere só se tem memór


>e > bo > ia
Para qu gar tal tanta energ

Po de toda es terr é gentil glór


> is > ta >a > ia
Da ma remota sej uma alegr

(WISNIK, 1976)

104
POESIA BARROCA

DEFENDE-SE O BEM QUE FALTOU NAS ÂNSIAS


DO ESPERADO, PELOS MESMOS CONSOANTES

O bem que não chegou ser possuído


Perdido causa tanto sentimento,
Que faltando-lhe a causa do tormento
Faz ser maior tormento o padecido.

Sentir o bem logrado, e já perdido


Mágoa será do próprio entendimento;
Porém o bem, que perde um pensamento
Não o deixa outro bem, restituído.

Se o logro satisfaz a mesma vida


E depois de logrado fica engano
A falta, que o bem faz em qualquer sorte
Infalível será ser homicida;
O bem, que sem ser mal, motiva o dano,
O mal, que sem ser bem, apressa a morte.

(Obras de Gregório de Matos, 1923)

JUÍZO ANATÔMICO DOS ACHAQUES QUE PADECIA


O CORPO DA REPÚBLICA, EM TODOS OS MEMBROS,
E INTEIRA DEFINIÇÃO DO QUE EM TODOS OS
TEMPOS É A BAHIA
EPÍLOGOS
1
Que falta nesta cidade?...........................Verdade.
Que mais por sua desonra?.....................Honra.
Falta mais que se lhe ponha?...................Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
2
Quem a pôs neste socrócio?3 ..................Negócio.
Quem causa tal perdição? .......................Ambição.
E o maior desta loucura? ........................Usura.
Notável desaventura

105
NADIÁ PAULO FERREIRA

De um povo néscio, e sandeu,


Que não sabe que o perdeu
Negócio, ambição, usura.
3
Quais são os seus doces objetos? ...........Pretos.
Tem outros bens mais maciços? .............Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?............Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
Dou ao demo a gente asnal,
Que estima por cabedal
Pretos, mestiços, mulatos.

4
Quem faz os círios mesquinhos? ...........Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas? ................Guardas.
Quem as tem nos aposentos? ................Sargentos.
Os círios lá vêm aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.
5
E que justiça a resguarda? ....................Bastarda.
É grátis distribuída? .............................Vendida.
Que tem, que a todos assusta? .............Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça,
Que anda a justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.
6
Que vai pela cleresia? ...........................Simonia.
E pelos membros da Igreja? ..................Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?.. .............Unha.
Sazonada caramunha
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja, unha.
7
E nos Frades há manqueiras? ..................Freiras.
Em que ocupam os serões? . ...................Sermões.
Não se ocupam em disputas? ..................Putas.
Com palavras dissolutas

106
POESIA BARROCA

Me concluís, na verdade,
Que as lidas todas de um Frade
São freiras, sermões, e putas.
8
O açúcar já se acabou? ...........................Baixou.
E o dinheiro se extinguiu? .......................Subiu.
Logo já convalesceu? ..............................Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece,
Cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, subiu, e morreu.
9
A Câmara não acode? ..........................Não pode.
Pois não tem todo o poder? ..................Não quer.
É que o governo a convence? ...............Não vence.
Quem haverá que tal pense,
Que uma Câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

(WISNIK, 1976)

À CIDADE DA BAHIA

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante


Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante4 ,


Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente


Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

107
NADIÁ PAULO FERREIRA

Oh se quisera Deus, que de repente


Um dia amanhecerás tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

(WISNIK, 1976)

AO PADRE LOURENÇO RIBEIRO, HOMEM PARDO


QUE FOI VIGÁRIO DA FREGUESIA DO PASSÉ5
SÁTIRA

1
Um branco muito encolhido,
um mulato muito ousado,
um branco todo coitado,
um canaz todo atrevido;
o saber muito abatido,
a ignorância e ignorante
mui ufana e mui farfante,
sem pena ou contradição:
milagres do Brasil são.
2
Que um cão revestido em padre,
por culpa da Santa Sé,
seja tão ousado que
contra um branco ousado ladre;
e que esta ousadia quadre
ao bispo, ao governador,
ao cortesão, ao senhor,
tendo naus no Maranhão:
milagres do Brasil são.
3
Se a este tal podengo asneiro
o pai o esvanece já,
a mãe lhe lembre que está
roendo em um tamoeiro:6
que importa um branco cueiro,
se o cu é tão denegrido;
mas se no misto sentido
se lhe esconde a negridão,
milagres do Brasil são.

108
POESIA BARROCA

4
Prega o perro frandulário,7
e como a licença o cega,
cuida que em púlpito prega,
e ladra num campanário:
vão ouvi-lo de ordinário
Tios e tias do Congo,
e se, suando o mondongo,
eles só gabos lhe dão,
milagres do Brasil são.
5
Que há de pregar o cachorro,
sendo uma vil criatura,
se não sabe de escritura
mais que aquela que o pôs forro?
Quem lhe dá ajuda e socorro
são quatro sermões antigos,
que lhe vão dando os amigos;
e se amigos tem um cão,
milagres do Brasil são.
6
Um cão é o timbre maior
da ordem predicatória,
mas não acho em toda história
que o cão fosse pregador,
se nunca falta um senhor,
que lhe alcance esta licença
de Lourenço por Lourença,
que as pardas tudo farão,
milagres do Brasil são.
7
Té em versos quer dar penada,
e porque o gênio desbroche,
como cão, a troche-moche
mete unha e dá dentada:
o perro não sabe nada,
e se com pouca vergonha
tudo abate, porque sonha
que sabe alguma questão,
milagres do Brasil são.

109
NADIÁ PAULO FERREIRA

8
Do perro afirmam doutores
que fez uma apologia
ao Mestre da teologia,
outra ao sol dos pregadores:
se da lua aos resplendores
late um cão a noite inteira,
e ela seguindo a carreira,
luz sem mais ostentação,
milagres do Brasil são.
9
Que vos direi do mulato,
que vos não tenha já dito,
se será amanhã delito
falar dele sem recato?
Não faltará um mentecapto,
que como vilão de encerro
sinta que dêem no seu perro,
e se porta como um cão:
milagres do Brasil são.
10
Imaginais que o insensato
do canzarrão fala tanto
porque sabe tanto ou quanto?
Não, senão por ser mulato;
ter sangue de carrapato,
ter estoraque de congo,
cheirar-lhe a roupa a mondongo8
é cifra de perfeição:
milagres do Brasil são.

(WISNIK, 1976)

DEFINE A SUA CIDADE

MOTE
De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver
um furtar, outro foder.

110
POESIA BARROCA

GLOSA
1
Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito,
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
De dous ff se compõe.
2
Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
Esta cidade a meu ver.
3
Provo a conjetura já
prontamente com um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são BAHIA,
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.

(WISNIK, 1976)

111
NADIÁ PAULO FERREIRA

CONSELHOS A QUALQUER TOLO PARA


PARECER FIDALGO, RICO E DISCRETO

Bote a sua casaca de veludo,


E seja capitão sequer dois dias,
Converse à porta de Domingos Dias,
Que pega fidalguia mais que tudo.

Seja um magano, um pícaro, um cornudo,9


Vá a palácio, e após das cortesias
Perca quanto ganhar nas mercancias,
E em que perca o alheio, esteja mudo.

Sempre se ande na caça e montaria,


Dê nova solução, novo epíteto,10
E diga-o, sem propósito, à porfia;

Que em dizendo: “facção, pretexto, efecto”


Será no entendimento da Bahia
Mui fidalgo, mui rico, e mui discreto.

(WISNIK, 1976)

AO MESMO COM PRESUNÇÕES


DE SÁBIO, E ENGENHOSO

Este padre Frisão, este sandeu,


Tudo o demo lhe deu e lhe outorgou,
Não sabe musa musae, que estudou11 ,
Mas sabe as ciências, que nunca aprendeu.

Entre catervas de asnos se meteu,


E entre corjas de bestas se aclamou,
Naquela Salamanca o doutorou,
E nesta salacega floresceu12 .

Que é um grande alquimista isso não nego,


Que alquimistas do esterco tiram ouro,
Se cremos seus apógrafos conselhos.

112
POESIA BARROCA

E o Frisão as Irmãs pondo ao pespego,


Era força tirar grande tesouro,
Pois soube em ouro converter pentelhos.

(WISNIK, 1976)

SEGUNDA IMPACIÊNCIA DO POETA13

Cresce o desejo; falta o sofrimento;


Sofrendo morro; morro desejando:
Por uma, e outra parte estou penando,
Sem poder dar alívio ao meu tormento.

Se quero declarar meu pensamento,


Está-me um gesto grave acovardando14
E tenho por melhor morrer calando,
Que fiar-me de um néscio atrevimento.

Quem pretende alcançar, espera; e cala;


Porque quem temerário se abalança,
Muitas vezes o Amor o desiguala:

Pois se aquele, que espera, sempre alcança;


Quero ter por melhor morrer sem fala;
Que falando, perder toda a esperança.

(WISNIK, 1976)

A UMA SAUDADE

Em o horror desta muda soledade,


Onde voando os ares a porfia,
Apenas solta a luz a aurora fria,
Quando a prende da noite a escuridade.

Ah cruel apreensão de uma saudade!


De uma falsa esperança fantasia,
Que faz que de um momento passe a um dia,
E que de um dia passe à eternidade!

113
NADIÁ PAULO FERREIRA

São da dor os espaços sem medida,


E a medida das horas tão pequena,
Que não sei como a dor é tão crescida.

Mas é troca cruel, que o fado ordena;


Porque a pena me cresça para a vida,
Quando a vida me falta para a pena.

(WISNIK, 1976)

ADMIRÁVEL EXPRESSÃO DE
AMOR MANDANDO-SE-LHE
PERGUNTAR COMO PASSAVA

Aquele não sei quê, que, Inês, te assiste


No gentil corpo, e na graciosa face,
Não sei donde te nasce, ou não te nasce,
Não sei onde consiste, ou não consiste.

Não sei o quando ou como arder me viste,


Porque Fênix de amor me eternizasse:
Não sei como renasce ou não renasce,
Não sei como persiste ou não persiste.

Não sei como me vai, ou como ando,


Não sei o que me dói, ou porque parte,
Não sei se vou vivendo, ou acabando.

Como logo meu mal hei de contar-te,


Se, de quanto a minha alma está penando,
Eu mesmo, que o padeço, não sei parte15 ?!

(WISNIK, 1976)

114
POESIA BARROCA

SOLITÁRIO EM SEU MESMO QUARTO À


VISTA DA LUZ DO CANDEEIRO PORFIA
O POETA PENSAMENTEAR EXEMPLOS
DE SEU AMOR NA BARBOLETA

Ó tu do meu amor fiel traslado


Mariposa, entre as chamas consumida,
Pois se à força do ardor perdes a vida,
A violência do fogo me há prostrado.

Tu de amante o teu fim hás encontrado,


Essa flama girando apetecida,
Eu girando uma penha endurecida,
No fogo, que exalou, morro abrasado.

Ambos, de firmes, anelando chamas,


Tu a vida deixas, eu a morte imploro,
Nas constâncias iguais, iguais nas famas.

Mas, ai!, que a diferença entre nós choro;


Pois acabando tu ao fogo, que amas,
Eu morro, sem chegar à luz, que adoro.

(WISNIK, 1976)

DEFINIÇÃO DO AMOR
ROMANCE

Mandai-me, Senhores, hoje,


que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.

Dizem que da clara escuma,


dizem que do mar nascera,
que pegam debaixo d’água
as armas, que Amor carrega.

Outros, que fora ferreiro


seu pai, onde Vênus bela
serviu de bigorna, em que
malhava com grã destreza.

115
NADIÁ PAULO FERREIRA

Que a dois assopros lhe fez


o fole inchar de maneira,
que nele o fogo acendia,
nela aguava a ferramenta.

Nada disto é, nem se ignora,


que o Amor é fogo, e bem era
tivesse por berço as chamas
se é raio nas aparências.

Este se chama Monarca,


ou Semideus se nomeia,
cujo céu são esperanças,
cujo inferno são ausências.

Um Rei, que mares domina,


Um Rei, o mundo sopeia,
sem mais tesouro que um arco,
sem mais arma que uma seta.

0 arco talvez de pipa,


a seta talvez de esteira,
despido como um maroto,
cego como uma toupeira.

Um maltrapilho, um ninguém,
que anda hoje nestas eras
com o cu à mostra, jogando
com todos a cabra-cega.

Tapando os olhos da cara,


por deixar o outro alerta,
por detrás à italiana,
por diante à portuguesa.

Diz que é cego, porque canta,


ou porque vende gazetas
das vitórias, que alcançou
na conquista das finezas.

116
POESIA BARROCA

Que vende também folhinhas


cremos por coisa mui certa,
pois nos dá os dias santos,
sem dar ao cuidado tréguas;

E porque despido o pintam


é tudo mentira certa,
mas eu tomara ter junto
o que Amor a mim me leva.

Que tem asas com que voa


e num pensamento chega
assistir hoje em Cascais
logo em Coina, e Salvaterra.

Isto faz um arrieiro


com duas porradas tesas:
e é bem, que no Amor se gabe,
que o vinho só fizera!

E isto é Amor? é um corno.


Isto é Cupido? má peça.
Aconselho que o não comprem
ainda que lhe achem venda.

Isto, que o Amor se chama,


este, que vidas enterra,
este, que alvedrios prostra,
este, que em palácios entra:

Este, que o juízo tira,


este, que roubou a Helena,
este, que queimou a Tróia,
e a Grã-Bretanha perdera:

Este, que a Sansão fez fraco,


este, que o ouro despreza,
faz liberal o avarento,
é assunto dos poetas:

117
NADIÁ PAULO FERREIRA

Faz o sisudo andar louco,


faz pazes, ateia a guerra,
o frade andar desterrado,
endoidece a triste freira.

Largar a almofada a moça,


ir mil vezes à janela,
abrir portas de cem chaves,
e mais que gata janeira.

Subir muros e telhados,


trepar cheminés e gretas,
chorar lágrimas de punhos,
gastar em escritos resmas.

Gastar cordas em descantes,


perder a vida em pendências,
este, que não faz parar
oficial algum na tenda.

0 moço com sua moça,


o negro com sua negra,
este, de quem finalmente
dizem que é glória, e que é pena.

É glória, que martiriza,


uma pena, que receia,
é um fel com mil doçuras,
favo com mil asperezas.

Um antídoto, que mata,


doce veneno, que enleia,
uma discrição sem siso,
uma loucura discreta.

Uma prisão toda livre,


uma liberdade presa,
desvelo com mil descansos,
descanso com mil desvelos.

118
POESIA BARROCA

Uma esperança, sem posse,


uma posse, que não chega,
desejo, que não se acaba,
ânsia, que sempre começa.

Uma hidropisia d’alma,


da razão uma cegueira,
uma febre da vontade,
uma gostosa doença.

Uma ferida sem cura,


uma chaga, que deleita,
um frenesi dos sentidos,
desacordo das potências.

Um fogo incendido em mina,


faísca emboscada em pedra,
um mal, que não tem remédio,
um bem, que se não enxerga.

Um gosto, que se não conta,


um perigo, que não deixa,
um estrago, que se busca,
ruína, que lisonjeia.

Uma dor, que se não cala,


pena, que sempre atormenta,
manjar, que não enfastia,
um brinco, que sempre enleva.

Um arrojo, que enfeitiça,


um engano, que contenta,
um raio, que rompe a nuvem,
que reconcentra a esfera.

Víbora, que a vida tira


àquelas entranhas mesmas,
que segurou o veneno,
e que o mesmo ser lhe dera.

119
NADIÁ PAULO FERREIRA

Um áspíde entre boninas,


entre bosques uma fera,
entre chamas salamandra,
pois das chamas se alimenta.

Um basalisco, que mata,


lince, que tudo penetra,
feiticeiro, que adivinha,
marau, que tudo suspeita.

Enfim o Amor é um momo,


uma invenção, uma teima,
um melindre, uma carranca,
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago,


um arrufo, e uma guerra,
hoje volta, amanhã torna,
hoje solda, amanhã quebra.

Uma vara de esquivanças,


de ciúmes vara e meia,
um sim, que quer dizer não,
não, que por sim se interpreta.

Um queixar de mentirinha,
um folgar muito deveras,
um embasbacar na vista,
um ai, quando a mão se aperta.

Um falar por entre dentes,


dormir a olhos alerta,
que estes dizem mais dormindo,
do que a língua diz discreta.

Uns temores de mal pago,


uns receios de uma ofensa,
um dizer choro contigo,
choramingar nas ausências.

120
POESIA BARROCA

Mandar brinco de sangrias,


passar cabelos por prenda,
dar palmitos pelos Ramos,
e dar folar pela festa.

Anal pelo São João,


alcachofras na fogueira,
ele pedir-lhe ciúmes,
ela sapatos e meias.

Leques, fitas e manguitos,


rendas da moda francesa,
sapatos de marroquim,
guarda-pé de primavera.

Livre Deus, a quem encontra,


ou lhe suceder ter freira;
pede-vos por um recado
sermão, cera e caramelas.

Arre lá com tal amor!


isto é amor? é quimera,
que faz de um homem prudente
converter-se logo em besta.

Uma bofia, uma mentira


chamar-lhe-ei, mais depressa,
fogo selvagem nas bolsas,
e uma sarna das moedas.

Uma traça do descanso,


do coração bertoeja,
sarampo da liberdade,
carruncho, rabuge e lepra.

É este, o que chupa, e tira


vida, saúde e fazenda,
e se hemos falar verdade
é hoje o Amor desta era

121
NADIÁ PAULO FERREIRA

Tudo uma bebedice,


ou tudo uma borracheira,
que se acaba co’o dormir,
e co’o dormir se começa.

O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas,


uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.

(WISNIK, 1976)

A N. SENHOR JESUS CRISTO COM ATOS


DE ARREPENDIDO E SUSPIROS DE AMOR

Ofendi-vos, meu Deus, é bem verdade,


É verdade, Senhor, que hei delinqüido,
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade.

Maldade, que encaminha a vaidade,


Vaidade, que todo me há vencido,
Vencido quero ver-me e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.

Arrependido estou de coração,


De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.

Luz, que claro me mostra a salvação,


A salvação pretendo em tais abraços,
Misericórdia, amor, Jesus, Jesus!

(WISNIK, 1976)

122
POESIA BARROCA

ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO DO MENINO


DEUS DE N. S. DAS MARAVILHAS, QUE
DESACATARAM INFIÉIS NA SÉ DA BAHIA

0 todo sem a parte não é todo;


A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo o todo.
Em todo o Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.

0 braço de Jesus não seja parte,


Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,


Um braço que lhe acharam, sendo parte,
Nos diz as partes todas deste todo.

(WISNIK, 1976)

NO SERMÃO QUE PREGOU NA MADRE DE DEUS


D. JOÃO FRANCO DE OLIVEIRA PONDERA O
POETA A FRAGILIDADE HUMANA

Na oração, que desaterra ..................... a terra1 ,


Quer Deus que a quem está o cuidado dado,
Pregue que a vida é emprestado ........... estado,
Mistérios mil, que desenterra ............... enterra.

Quem não cuida de si, que é terra, ...... erra,


Que o alto Rei, por afamado ................. amado,
É quem lhe assiste ao desvelado .......... lado,
Da morte ao ar não desaferra, .............. aferra.

Quem do mundo a mortal loucura ....... cura,


A vontade de Deus sagrada .................. agrada,
Firma-lhe a vida em atadura ................ dura.

123
NADIÁ PAULO FERREIRA

Ó voz zelosa, que dobrada .................... brada,


Já sei que a flor da formosura .............. usura,
Será no fim desta jornada .................... nada.

(WISNIK, 1976)

DESENGANOS DA VIDA
HUMANA METAFORICAMENTE

É a vaidade, Fábio, nesta vida,


Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,


Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,


Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos preza:

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa


De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?

(WISNIK, 1976)

PRETENDE O POETA MODERAR O EXCESSIVO


SENTIMENTO DE VASCO DE SOUSA DE PAREDES
NA MORTE DA DITA SUA FILHA

Sôbolos rios, sôbolas torrentes17


De Babilônia, o povo ali oprimido
Cantava ausente, triste, e afligido
Memórias de Sião, que tem presentes.

124
POESIA BARROCA

Sôbolas do Caípe águas correntes,


Um peito melancólico, e sentido,
Um Anjo chora em cinzas reduzido,
Que são bens reputados sobre ausentes.

Para que é mais idade, ou mais um ano,


Em quem por privilégio, e natureza
Nasceu flor, a que um sol faz tanto dano!?

Vossa prudência, pois, em tal dureza


Não sinta a dor, e tome o desengano,
Que um dia é eternidade da beleza.

(WISNIK, 1976)

MOTE

Perguntou-se a um discreto
Qual era a morte tirana.
Respondeu, que estar ausente
Daquilo, que mais se ama.

GLOSA
1.
Numa ilustre Academia,
Que, com ciências infusas,
Fizeram as nove Musas,
Onde Apolo presidia:
Depois que toda a poesia
Leu o secretário Admeto
Um problema mui seleto
Propôs, para argumentar-se,
E havendo de perguntar-se
Perguntou-se a um discreto.
2.
Ele que estava distante
E não ouviu a proposta,
Não deu por então resposta
De surdo, não de ignorante:
Mas sendo no seu semblante

125
NADIÁ PAULO FERREIRA

A Academia soberana,
Que tinha a desculpa lhana,
Lhe advertiam com agrado,
Que lhe haviam perguntado:
Qual era a morte tirana.
3.
Ele entonces como um raio,
Prontamente, e sem detença,
Tomada a vênia, e licença,
Fez consigo um breve ensaio:
O mais horrível desmaio,
Que um peito amoroso sente
É a falta do bem presente,
Ficou-lhe a resposta lhana,
E qual é morte tirana?
Respondeu, que estar ausente.
4.
Deixou a resposta absorto
Aquele douto Congresso,
Porque é já provérbio impresso,
Que ausente é o mesmo que morto:
Eu me persuado, e exorto,
Que quem se abrasa, e inflama
De amor na constante chama,
Inda que sinta abrasar-lhe,
É menor mal, que ausentar-se
Daquilo, que mais se ama.

(Obras de Gregório de Matos, 1925)

RESPONDE A UM AMIGO COM AS NOVIDADES QUE


VIERAM DE LISBOA NO ANO DE 1658

França está mui doente das ilhargas,


Inglaterra tem dores de cabeça;
Purga-se Holanda, e temo lhe aconteça
Ficar debilitada com descargas.

Alemanha lhe aplica ervas amargas,


Botões de fogo com que convalesça;
Espanha não lhe dá que este mal cresça,
Portugal tem saúde e forças largas.

126
POESIA BARROCA

Morre Constantinopla, está ungida;


Veneza engorda, e toma forças dobres;
Roma está bem, e toda a Igreja boa.

Europa anda de humores mal regida,


Na América arribaram muitos pobres:
Estas as novas são que há de Lisboa.

(WISNIK, 1976)

AO CASAMENTO DE PEDRO ÁLVARES DA NEIVA

Sete anos a nobreza da Bahia


Servia a uma pastora Indiana bela,
Porém servia a Índia e não a ela,
Que à Índia só por prêmio pretendia.

Mil dias na esperança de um só dia


Passava, contentando-se com vê-la,
Mas frei Tomás usando de cautela,
Deu-lhe o vilão, quitou-lhe a fidalguia.

Vendo o Brasil, que por tão sujos modos


Se lhe usurpara a sua Dona Elvira,
Quase a golpes de um maço e de uma goiva:

Logo se arrependeram de amar todos,


E qualquer mais amara, se não vira
Para tão limpo amor tão suja noiva18 .

(WISNIK, 1976)

127
NADIÁ PAULO FERREIRA

___________________
1
Brasileiro, nascido na Bahia.
2
Muchíssimas: muitíssimas, castelhanismo, o que é muito freqüente
nos poetas dessa época, já que alguns escreviam poemas tanto em
castelhano quanto em português.
3
Há divergência quanto à grafia: socrócio ou rocrócio. Socrócio: furtar,
rapinar. Rocrócio: retrocesso.
4
Trocar: com duplo sentido, de comercializar e modificar. Máquina
mercante: as naus que aportam para comerciar.
5
Lourenço Ribeiro: padre e pregador, nascido na Bahia, compositor
de trovas, ironizou publicamente o autor, levando-o a fazer este soneto.
6
Tamoeiro: correia que prende a carga. José Miguel Wisnik, faz o
seguinte comentário: o pai é motivo de orgulho, a mãe é escrava
(GUERRA,1976, p. 46).
7
Frandulário: forasteiro, estrangeiro. Segundo José Miguel Wisnik,
“frandulário” está por “franduleiro”; é, pois, uma palavra criada
pela rima, recurso muito comum usado pelos poetas. Acrescenta,
ainda, que, por se tratar de um padre mulato, costumavam ouvi-lo
pregar no púlpito os seus parentes da África - tios e tias do Congo
(GUERRA,1976, p. 46).
8
Cheirar-lhe a roupa a mondongo: cheirar a tripas de porco.
9
James Amado registra abelhudo em vez de cornudo (GUERRA,1976,
p. 103).
10
James Amado registra locução em vez de solução (GUERRA,1976,
p. 103).
11
Musa, musae: palavra latina, primeira declinação: se não sabe nem a
primeira declinação, logo não sabe latim e, também, não sabe nada de
poesia e arte.
12
Trocadilho: salacega/Salamanca. O padre Frisão doutorou-se
“naquela Salamanca”(“Catervas de asnos”) e floresceu “nesta
salacega”(“corjas de bestas”) (GUERRA, 1976, p. 133)
13
Há manuscritos que atribuem esse poema a Diogo Gomes de
Figueiredo (GUERRA,1976, p. 207).
14
Afrânio Peixoto registra gosto em vez de gesto (v. GUERRA,1976,
p. 207).
15
Não sei parte: não tenho notícia, não o conheço.
16
Segundo José Miguel Wisnik, James Amado registra aterra (MATOS,
1976. p. 308).
17
V. redondilhas de Camões “Babel e Sião” e o salmo 137(Velho
Testamento).
18
V. soneto de Camões, “Sete anos de pastor Jacó servia”. V. Velho
Testamento, “Gênesis, episódio no 29, Jacó e Labão (v. glossário).

128
POESIA BARROCA

Jerónimo Baía
(1620 ? – 1688)

Além dos poemas incluídos em Fênix renascida e Postilhão


de Apolo, o resto de sua obra permanece inédita em cancioneiros
manuscritos.

A UMA CRUELDADE FORMOSA


MADRIGAL

A minha bela ingrata


Cabelo de ouro tem, fronte de prata,
De bronze o coração, de aço o peito;
São os olhos luzentes,
Por quem choro e suspiro,
Desfeito em cinza, em lágrimas desfeito,
Celestial safiro;
Os beiços são rubins, perlas os dentes;
A lustrosa garganta
De mármore polido;
A mão de jaspe, de alabastro a planta.
Que muito, pois, Cupido,
Que tenha tal rigor tanta lindeza,
As feições milagrosas,
Para igualar desdéns a formosuras,
De preciosos metais, pedras preciosas,
E de duros metais, de pedras duras?

(Fênix renascida)

129
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UMA FORMOSA CRUEL

Meu ídolo querido,


Se não vence, provoca
Com belas tranças e com luzes belas.
A linda face e boca,
Do múrice encendido,
O sangue deixa exangue,
Vertendo sangue a face, a boca sangue;
Da neve intacta e jaspe bem lavrado
Mil troféus levanta
A fronte, o colo, a mão, o peito, a planta.
Que muito, Sagitário Deus alado,
Grave por setas e por asas leve,
Seja fria no amar, cruel no rogo,
Fria, se é toda jaspe e toda neve,
Cruel, se é toda sangue e toda fogo.

(Fênix renascida)

A UMA TRANÇA DE CABELOS NEGROS

Diversa em cor, igual em bizarria


Sois, bela trança, ao lustre de Sofala,
Luto por negra, por vistosa gala,
Nas cores noite, na beleza dia.

Negra, porém de amor na monarquia


Reinais senhora, não servis vassala;
Sombra, mas toda a luz não vos iguala;
Tristeza, mas venceis toda a alegria.

Tudo sois, mas eu tenho resoluto


Que sois só na aparência enganadora
Negra, noite, tristeza, sombra, luto.

Porém na essência, ó doce matadora,


Quem não dirá que sois, e não diz muito,
Dia, gala, alegria, luz, senhora?

(Fênix renascida)

130
POESIA BARROCA

AO MENINO DEUS EM METÁFORA DE DOCE


ROMANCE

Quem quer fruta doce?


Mostre cá, que é isso?
É doce coberto,
É manjar Divino.

Vejamos o doce
E depois que o virmos,
Compraremos todo,
Se for todo rico.

Venha ao portal logo,


Verá que não minto,
Pois de várias sortes
É doce infinito.

Descubra, minha alma;


Mas ah! que diviso
Envolto em mantilhas
Um Infante lindo.

Pois de que se admira,


Quando este Menino
É doce coberto,
É manjar Divino?

Diga-o como é doce,


Que ignoro o prodígio;
Não sabe o mistério?
Ora vá ouvindo.

Muito antes de Santa Ana


Teve este doce princípio,
Porque já do Salvador
Se davam muitos indícios.

Mas na Anunciada dizem


Que houve mais expresso aviso,
E logo na Encarnação
Se entrou por modo Divino.

131
NADIÁ PAULO FERREIRA

Esteve pois na Esperança


Muitos tempos escondido,
Saiu da Madre de Deus,
Depois às Claras foi visto.

Fazem dele estimação


As Freiras com tal capricho,
Que apuram para este doce
Todos os cinco sentidos.

Afirmam que no Calvário


Terá seu termo finito,
Sendo que no Sacramento
Há de ter novo artifício.

Que seja doce este Infante


A razão o está pedindo,
Porque é certo que é morgado,
Sendo unigênito Filho.

Exposto ao rigor do tempo,


Quando tirita nuzinho,
Um caramelo parece
Pelo branco, e pelo frio.

Tal doce é, que porque farte


Ao pecador mais faminto,
Será de pão com espécies
Substancial doce Divino.

É manjar tão soberano,


Regalo tão peregrino,
Que os espíritos levanta,
Tornando aos mortos vivos.

Tão delicioso bocado


Será de gosto infinito
Manjar real verdadeiro,
Manjar branco parecido.

132
POESIA BARROCA

Que é manjar dos Anjos dizem


Talentos mui fidedignos,
Por ser pão-de-ló, que aos Anjos
Foi em figura oferecido.
(Fênix renascida)

ACHANDO ALÍVIO NAS SUAS PENAS

Se para o canto amor me infunde quanto


No coração incêndio, luz na rima,
Se como lima o peito, o verso lima,
Se dá qual morte à vida, vida ao canto.

Pintarei tão alegre, doce tanto


A pena, que me mata, e que me anima,
Que quem do meu tormento se lastima
Me deseje o pesar, me inveje o pranto.

Vossa efígie, gentil Márcia adorada,


Qual foi da vista ao peito transferida,
Será do peito ao verso trasladada:

E como vista em vós, em mim ouvida


Terá dobrado ser, vida dobrada,
Se a quem morte me dá, dar posso eu vida.

(Fênix renascida)

DANDO-LHE UMA ROSA


MADRIGAL

Rosa, tu que de Flora


Foste criada, para ser senhora
Do florescente Abril, do belo Maio,
Se padeces desmaio
Não cuides, que em meu peito só murchaste,
Porque na mão de Márcia começaste.
A mão de neve pura
Te deu larga ventura,
Mas também te causou vida tão breve,
Qual o peito de fogo, a mão de neve.

(Fênix renascida)

133
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UMA ROSA
ROMANCE

Como tens tão pouca vida?


Quem tão depressa te mata?
Flor do mais ilustre sangue,
Quem deu de Vênus a planta?

Uma Aurora só que vives,


Flores te chamam Monarca:
Na mesma terra do império,
Que foi berço, tens a campa.

Lástima da tarde chamam


A ti doce mimo da alva,
Gentil pérola nascida
Entre concha de esmeralda.

Águia nos vôos florentes


Estendes ao Sol as asas,
Mas quando os raios lhe logras,
Fênix em raios te abrasas.

Enquanto em verde clausura


Te fecha o botão as galas,
Para os logros, que desejas,
Te dão vida as esperanças.

Mas quando a púrpura bela


Te serve já de mortalha,
Sentido o Sol chora raios,
Buscando a morte nas águas.

De fermosura tão rica


Não sei quem foi o pirata
Tão atrevido, que rouba
A jóia da madrugada.

(Fênix renascida)

134
POESIA BARROCA

A UMAS BEATAS
ROMANCE SATÍRICO BURLESCO

Beatíferas Senhoras,
Em cujas venturosas casas
Como em adegas mosquitos
Andam bandos de Beatas.

Por saber que gostais delas


Vos repetirei as traças,
Que a uma nova no ofício
Dava outra jubilada.

Juntaram-se numa Igreja,


Que Jubileu celebrava,
E depois de despejarem
Cada qual sua cabaça,.

Disse a mais velha à novel:


Bofé, Madre, pouco basta
Para sustentar um corpo,
O principal é esta alma.

Com um par de bolos de azeite,


E dois arráteis de passas,
Um pão mole com manteiga,
Que trouxe esta pobre manga,

Meditarei eu agora
Até que daqui me saia
A jantar com uma devota,
Deus me aceite estas passadas.

Enquanto se fazem horas,


Pois no hábito é novata,
Lhe quero ensinar as regras
Desta procissão cansada.

E perdoe, se me atrevo
Com bom zelo a encaminhá-la,
Que este hábito me desculpa,
Pois somos Irmãs em armas.

135
NADIÁ PAULO FERREIRA

Não tenho que lhe dizer


Do repolego da toalha,
O hábito só lhe lembro
Que tenha a manga bem larga.

Porque sucede ocasião,


Que um alqueire de castanhas
Nos quer dar qualquer Senhora,
Sem homem ter onde as traga.

Sobre virtude é limpeza,


Que talvez um pano falta
Para embrulhar em uma pressa
Carne cozida, e assada.

Chapéu não traga sempre,


Mas porém tenha-o em casa,
Nunca se perde emprestá-lo
A quem quer ir embuçada.

O bordão seja o primeiro,


Porque subindo uma escada,
Já de ouvi-lo se alvorota
Quem o recadinho aguarda.

Traga contas ao pescoço,


E diga que são tocadas,
E que com orações suas
Saem das penas mil almas.

Não se lhe dê dos pantufos


Andarem cheios de lama,
Que um coração de devota
Em mau cheiro não repara.

As sapatas não faz nojo


Andarem acalcanhadas,
Isto é lavar os pés,
É coisa desnecessária.

136
POESIA BARROCA

O rosto unte com enxúndia


Quando se deitar na cama,
Pela manhã com cuspinho,
Porque lhe dá muita graça.

Algumas de nós perfumam


A toalhinha lavada,
Que convém chegar cheirosa
Às Senhoras, e Fidalgas.

Traga um anelinho preto


Junto com uma tambaca;
As mãozinhas por mimosas
Lave com limas assadas.

Visitar donas viúvas


É coisa desenganada,
Porque é ir sem sobressalto
De um marido de má laia.

As palavras lhe recomendo


Que sejam mui recatadas,
Dos limites de terceira
Atente bem como fala.

Quando nomear S. Bento,


Acuda co Patriarca,
Já sabe que a S. Francisco
O Seráfico não falta.

Dos outros com dizer Padres


Tem dito tudo o que basta;
Chame aos Capuchos santinhos,
Os mais pela mesma traça.

Os graves Religiosos,
E Pregadores de fama,
O sobrenome ao menos
É necessário que saiba.

137
NADIÁ PAULO FERREIRA

Advertindo que os mais graves


São os de maior papada,
Os que gritam com mais força,
Mas entenda-os na fala.

Celebre os Músicos logo,


De Fr. Dionísio a harpa,
Diga que é um Céu na terra
O Falsete ouvir da Graça.

O Palmela dos Cardais,


Do Órfão já se não fala,
Gabriel, o da Azambuja,
É coisa lá de outra massa.

Mas isto aqui para nós


É andar lá pela rama,
Não tarde muito em gabá-las,
Que com isto se enche a manga.

Às viúvas dê meninas,
Dê serafins às casadas,
A umas chame Rainhas,
A outras mal empregadas.

Diga que indo pela Igreja,


Eram tantos a gabá-la,
Que se ouvia um murmurinho
Por onde quer que passava.

Por aqui lhe vá dizendo,


Porque em mui breves palavras
Lhe afirme como amiga,
Que há de matar muita caça.

E para render de todo


A algumas, que são novatas,
É necessário dizer-lhe
De fulana, e de sicrana.

138
POESIA BARROCA

Isto faça, e faça estoutro,


E esteja mui descansada,
Que nem trinta mil demônios
Desfarão esta meada.

Mate-a Deus com gente nobre,


E a livre de gente baixa,
Que cuida que o ser Senhora
Consiste em ser encerrada.

Esses pontinhos no trato


Usou Maria Castanha,
Hoje que a gente é viúva,
Quanto mais nobre, mais lhana.

Não podem sempre as Senhoras


Zombar com suas criadas,
Querem quem lhes traga novas
Do que na cidade se passa.

Inda hoje falou comigo


Minha Senhora Fulana;
Na borda do seu estrado
Assentar logo me manda.

Muitas vezes merendamos


O chouriço e a salada
Tem sempre o almário provido
De doces da Mesurada.

Mui bons confeitos, e bolos,


Que os faz ricos a criada,
Isto dito, é impossível
Que não chame esta a sua Aia.

E diga: Trazei à Madre


Daquilo, que houver em casa;
E aqui entra o cumprimento:
Ai, Senhora, disso trata!

139
NADIÁ PAULO FERREIRA

Não o dizia por tanto,


Perdoe-me a confiança;
E vá fazendo entrementes
A modo de saco a manga.

Diga: Enfim já estou de posse


De ir daqui carregada.
Não faltará quem deseje
Fosse a carga de pancadas.

Logo com o rosto baixo,


E com cara envergonhada
Dirá: Pague Deus a esmola,
Bem sabe ele que andava.

Desfalecida estes dias


De jejuns de pão, e águas;
Amanhã, querendo ele,
Me hei de erguer de madrugada.

A ganhar o Jubileu,
Que nenhum deles me escapa,
Lá lhe prometo rezar
Um terço pela sua alma;

E à Madre espiritual
Direi que tenha lembrança
De a encomendar a Deus,
Porque é pessoa mui santa.

Logo feita reverência


Com a cabeça bem baixa,
A abraçará pelos pés,
Tomando logo a escada.

Em estando a manga provida,


Tola é quem mais aguarda;
Vire a cabeça dizendo:
Fique o Senhor nesta casa.

140
POESIA BARROCA

Nunca se perde fazer


Cumprimento às criadas;
Deus lhe dê boa ventura,
Veja mana, o que manda.

Vá para casa direita,


Meta na barriga a carga,
Tenha confiança em Deus;
Gente tola nunca falta.

No outro dia madrugue,


E se há de comungar, faça
Que as conhecidas a vejam,
Porque fique acreditada.

Lembre-se das cerimônias,


Beije o chão, reze em voz alta,
E de quando em quando diga:
Meu Deus, com voz entoada.

Se estiver à Pregação,
Tire da manga a cabaça,
E por debaixo do manto
Vá chupando precatada.

E quando lhe souber bem,


Dê dois ais com boa graça,
E diga: Deus te console,
Como me tens consolada.

E diga para as vizinhas:


Isto só é manjar de alma,
Estivera assim dez anos,
E nunca ficara farta.

Porém seja com recato,


Porque se for apanhada,
Dirão que em vez de devota
Está pior do que uma cabra.

141
NADIÁ PAULO FERREIRA

E se à tarde houver Completas,


Vá-se chegando com traça
Para as Senhoras viúvas,
Não lhes faltará vianda.

Em muitas destas me achei,


E do que lhes sobejava,
Trouxe uma sapata cheia,
Por não caber já na manga.

Deixe-se estar às Completas,


Que muitas vezes se alcança
Uma amizade, que rende,
Quando menos se cuidava.

E porque às vezes sucede


Que uma tripa se desata,
Do calcanhar faça rolha,
Com que deixe sair nada.

E se escapar um ventinho,
Que a nossa carne é mui fraca,
Tussa logo, que com este
O outro som se disfarça.

Depois de sair da Igreja,


Se for hora acomodada,
Venha por casa da amiga,
Que nisto sempre se ganha.

Pode alguma estar fazendo


Bolos, doce, ou marmelada,
E levará um bom dia,
Se Deus lhe der sua graça.

Chegando à casa, procure


Quem vá por meia canada,
E tendo alguma farinha,
Trate de fazer suas papas.

142
POESIA BARROCA

Porque enchem o vão, mormente


Se são bem açucaradas,
Com azeite, ou com manteiga,
Que no mais não se repara.

Pela manhã um pãozinho


De vintém quente, que escalda,
Com manteiga, e com açúcar,
Que para nós isto basta.

Mas beba-lhe uma gotinha,


Que é mezinha estremada,
E nas manhãzinhas frias
Isto é saia de malha.

Isto seja ao almoço,


Do jantar não digo nada,
Que há de ser em casa alheia,
Regra, que entre nós se guarda.

Se lhe derem sobre peixe


As fatias albardadas,
Coisa de que muito gosto,
E falar nelas regala.

Se lhe derem bom cidrão,


Ate-o na ponta da manga
Que depois lançado em vinho
Os espíritos levanta.

E se à tarde chover tanto,


Que a obrigue a estar em casa,
Passas, figos, e bolotas
É coisa desenfadada.

E disto há de estar provida,


Tendo sempre na sua arca
Estas cirandagens todas,
Que é para o tempo o que basta.

143
NADIÁ PAULO FERREIRA

Porém melhor me parece,


Por mais tormenta que faça,
Ir a fazer provimento,
Deixar o que está em casa.

Antes então me parece


Que matará muita caça,
Encarecendo a fineza
De vir assim ensopada.

Não tenha medo da chuva,


Seja quanta for a água;
A Beata verdadeira
Nenhum caso faz de lama.

Saia sempre em todo o caso,


E se for ao romper da Alva,
É remédio excelente
Para quem anda opilada.

Também se quiser, de noite


Pode sair rebuçada,
Porque em nós estes passeios
Coisa é que se não estranha.

Se morar no Bairro Alto,


Vá às Igrejas de Alfama;
Isto de andar muita terra
Em nós é coisa mui santa.

Tenha Cruz à cabeceira,


Disciplinas penduradas,
Um livrinho de orações,
E na parede uma estampa.

Entre nós, outras não se usa


Ter roca nem almofada,
Bem tem homem que fazer
Em procurar os bens da alma.

144
POESIA BARROCA

Seja enfim a sua vida


Levar vida bem folgada,
Assaz, que para doentes
No Hospital há uma cama.

E não a quero cansar


Em lhe dar regras mais largas,
Que, como creio, tem jeito
De sair boa Beata.

Pois lhe sinto condição


Boa para uma trapaça,
Este nariz de lambique,
E olhos de gata ladra.

Esses beiços chupadiços,


Essa boca revirada,
Se assim vai daqui em diante,
Virá a ser uma santa.

Vou-me, porque dão as dez,


Não quisera que tardara,
Porque estou, como lhe digo,
Para jantar convidada.

E é juramento devido
Ao jantar não fazer falta,
Antes eu por ele espere,
Que a panela requentada.

Ai, senhora, disse a outra,


Como fico consolada
De ouvir tão santos conselhos,
Dê-lhe Deus por mim a paga.

Mas ai que me falta muito


Da perfeição de Beata!
Quem me dera, minha Madre,
o saber bem imitá-la!

145
NADIÁ PAULO FERREIRA

Se assim o faz, disse quem


Esteve ouvindo estas Beatas,
Seguro-lhe em breve tempo
Uma perfeição mui rara.

Mas guarde-se de subir-me


os degraus da minha escada,
Porque se tal me fizer,
Hei de levá-la à escala.

(Fênix renascida)

146
POESIA BARROCA

Jorge da Câmara
(? – 1647 ou 49)

Publicou o livro: Banquete de Apolo. Ainda permanecem em


manuscritos os seguintes textos: Poesias várias e Fábulas de Ovídio.

AO TEMPO

O tempo de si mesmo pede conta,


é necessário dar conta do tempo,
mas quem gastou sem conta tanto tempo,
como dará sem tempo tanta conta?

Não quer levar o tempo tempo em conta


pois conta se não faz de dar-se tempo
onde só conta havia para tempo
se na conta do tempo houvesse conta.

Que conta pode dar quem não tem tempo?


em que tempo a dará, quem não tem conta?
que quem à conta falta falta o tempo.

Vejo-me sem ter tempo e com ruim conta,


sabendo que hei-de dar conta do tempo
e que se chega o tempo de dar conta.

(HATHERLY, 1997)

147
NADIÁ PAULO FERREIRA

DE UM ENGENHO A UM CAVALEIRO
EM RESPOSTA DE LHE PERGUNTAR
DE QUE COR ERA O SEU AMOR1

O meu amor é verde mas não é


pela pouca esperança com que está;
amarelo será, mas não será
porque alguma esperança tem por fé.

Dou-lhe que seja azul, mas para quê?


se o vosso amor ciúmes lhe não dá;
boa cor é a vermelha, mas tá tá,
que é guerra, e ninguém quero que ma dê.

Também o branco veste bem: mas oh!


que se me deixa em branco, é frenesi;
o negro é cortesão, mas é de dó.

Já que de todas as cores o vesti,


farei de todas elas uma só,
Porque sendo ele um só, tem tudo em si.

(HATHERLY, 1997)

1
Ana Hatherly indica a leitura dos seguintes poemas: “Voyelles” de
Rimbaud, “Correspondances” de Baudelaire, “Branco e Vermelho”
de Camilo Pessanha e “A uma Crueldade Formosa” de Jerónimo
Bahia, o qual se encontra nessa antologia (HATHERLY, 1997. p.
328, 329 e 330).

148
POESIA BARROCA

Manuel Botelho
de Oliveira
(1636 ou 37 – 1711)
Sua obra poética foi publicada no livro Música do Parnaso (1705),
contendo poemas em português, castelhano, italiano e latim.

COMPARAÇÕES NO RIGOR DE ANARDA


DÉCIMA

Quando Anarda me desdenha


afetos de um coração,
é diamante Anarda? não,
não diamante, porque é penha:
penha não, porque se empenha,
qual áspide seu rigor forte;

áspide não, que tem por sorte


ser qual tigre na crueza:
tigre não, que na fereza
tem todo o império da Morte.

(CORREIA, 1982)

PINTURA DE UMA DAMA CONSERVEIRA


No doce ofício Amarílis
doce amor causando em mim,
seja a pintura de doces,
doce a veia corra aqui.

149
NADIÁ PAULO FERREIRA

Capela de ovos se adverte


a cabeça em seu matiz,
fios de ovos os seus fios,
capela a cabeça vi.

A testa, que docemente


ostenta brancuras mil,
sendo manjar de Cupido,
manjar branco a presumi.

Os olhos, que são de luzes


primogênitos gentis,
são dous morgados de amor
donde alimento pedi.

Fermosamente aguilenho
(ai, que nele me perdi!),
bem feita lasca de alcorça
parece o branco nariz.

Maçapão rosado vejo


em seu rosto de carmim,
nas maçãs o maçapão,
no rosto o rosado diz.

Entre os séculos da boca


(purpúrea inveja de Abril)
em conserva de mil gostos
partidas ginjas comi.

Os brancos dentes, que exalam


melhor cheiro que âmbar gris,
parecem brancas pastilhas
em bolsinhas carmesins.

Com torneados candores


(deixemos velhos marfins)
toda feita diagargante
vejo a garganta gentil.

150
POESIA BARROCA

Os sempre cândidos peitos,


que escondem leite nutriz,
se não são bolas de neve,
são bolos de leite, sim.

As mãos em palmas e dedos,


se em bolos falo, adverti
entre dous bolos de açúcar
dez pedaços de alfenim.

Perdoai, Fábio, dizia,


que no retrato que fiz
fui poeta de água doce
quando no Pindo bebi.

(Música do Parnaso)

ROSA E ANARDA

Rosa da fermosura, Anarda bela


Igualmente se ostenta como a rosa:
Anarda mais que as flores é fermosa,
Mas fermosa que as flores brilha aquela.

A rosa com espinhos se desvela,


Arma-se Anarda espinhos de impiedosa;
Na fronte Anarda tem púrpura airosa,
A rosa é dos jardins purpúrea estrela.

Brota o carmim da rosa doce alento,


Respira olor de Anarda o carmim breve,
Ambas dos olhos são contentamento.

Mas esta diferença Anarda teve:


Que a rosa deve ao sol seu luzimento,
0 sol seu luzimento a Anarda deve.

(Música do Parnaso)

151
POESIA BARROCA

Sóror
Madalena da Glória
(1672 ? – 1759 ?)

Sua obra foi publicada com o nome anagramático de Leonarda Gil


da Gama, seguido da seguinte informação: natural da Serra de Cintra.
Livros publicados: Brados do desengano contra o profundo sono
do esquecimento (1739 – 1749); Reino da Babilônia ganhado pelas
armas ao empíreo (1749); e Orbe celeste (1742).

DÉCIMA

A minha cega porfia


Buscou entre nada ao nada,
A minha idéia enganada
Nada achou, enquanto via;
Acabou-se em nada o dia,
Que nada trouxe consigo;
Com que a mim mesmo me digo,
Como este nada te admira,
Se o que o mundo mais suspira
É nada, e nada o que sigo?

(Brados do desengano contra o profundo sono do esquecimento)

153
NADIÁ PAULO FERREIRA

A UMA CAVEIRA PINTADA EM


UM PAINEL QUE FOI RETRATO

Este que vês de sombras colorido,


E invejas deu na Primavera às flores,
Do pincel transformadas os primores
Desengano horroroso é do sentido.

Ídolo foi do engano pretendido,


A que a cega ilusão votou louvores,
Estrago é já do tempo, e seu rigores,
O que então foi, ao que é já reduzido.

Foi um vão artifício do cuidado,


Foi luz exposta ao combater do vento,
Emprego dos perigos mal guardado;

Foi nácar reduzido ao macilento


O culto ali nos medos transformado,
Mortalha a gala, a casa monumento.

(Orbe celeste)

A UMA SAUDADE

Marcida, nesta ausência impaciente


A vida vejo tão contrária à sorte,
Que padeço na vida a mesma morte,
Morrendo ao golpe de viver ausente.

Tão estranho é meu mal, tão diferente


Na saudade, que sinto a mágoa forte,
Que resistir não posso ao duro corte
Por mais que o peito a resistência intente.

Se dos suspiros fio o meu tormento,


Já na força da dor desalentados,
Nem para suspirar lhe vejo alento;

154
POESIA BARROCA

Em rios os meus olhos transformados,


E em tormenta desfeita o pensamento,
Só na fineza salvo os meus cuidados.

(Brados do desengano contra o profundo sono do esquecimento)

MOTE E GLOSA

Tenho amor, sem ter amores.

Este mal que não tem cura,


Este bem que me arrebata,
Este rigor que me mata,
Esta entendida loucura
É mal e é bem que me apura;
Se equivocando os rigores
Da fortuna aos desfavores,
É remédio em caso tal
Dar por resposta ao meu mal:
Tenho amor, sem ter amores.

É fogo, é incêndio, é raio,


Este, que em penosa calma,
Sendo do meu peito alma,
De minha vida é desmaio:
E pois em moral ensaio
Da dor padeço os rigores,
Pergunta em tristes clamores
A causa minha aflição,
Respondeu o coração:
Tenho amor, sem ter amores.

(Brados do desengano contra o profundo sono do esquecimento)

155
NADIÁ PAULO FERREIRA

MOTE E GLOSA

Como dá vida o que mata,


Como o que consome, alenta.

Já que morro, ingrata sorte,


Às mãos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:
Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,
Que em lágrimas persuade,
Como dá vida o que mata.

Nesta aflição importuna,


Em que meu coração passa,
Tudo é rigor que trespassa,
Nada golpe que desuna:
Que infausta a minha fortuna
Um bem, que me representa,
Cruel da vista me ausenta,
E não sabe a minha dor
Definir em tal rigor
Como o que consome, alenta.

(Brados do desengano contra o profundo sono do esquecimento)

QUEIXAS DA SORTE

Aqui de meu pesar na companhia,


Minhas mágoas ouvindo este penedo,
De tão cruel fortuna no alto enredo,
Para sentido, e desmaiado o dia.

De tão contínuas mágoas a porfia,


Quebra já o silêncio a meu segredo,
Se até aqui de queixar-me tive medo,
Diverso ar corre agora que corria.

156
POESIA BARROCA

Perdida está da sorte a esperança,


E se nada aventuro no queixume,
Porque hão-de ser cautela os desenganos?

Fiz em falsas promessas confiança,


Porém quando a fé nelas mais presume,
No mesmo que presume acha os enganos.

(Orbe celeste)

DÉCIMA

Se meu peito ainda ferido


Inteira posse te deu,
Como posso aceitar eu
Teu coração repartido:
Mas se de amor defendido
Me prometer nova lei,
Daquela antiga que dei,
Já mudada a dura frágua,
Nesta tábua em sangue e água
Novo artigo trasladei.

(Reino da Babilônia ganhado pelas armas ao empíreo)

157
POESIA BARROCA

Sóror
Maria do Céu
(1658 ? – 1752 ou 53)

Sua obra poética se encontra dispersa em algumas publicações: A


preciosa (1731-33), Enganos do bosque, desenganos do rio, em
que a alma entra perdida e sai desenganada (1736–1741), Obras
várias e admiráveis (1735).

AMOR PERFEITO AMOR DE DEUS

Amor de Deus se explica nesta flor,


Porque o de Deus é só perfeito amor,
Do outro o tíbio lume,
O apaga a mudança, ou o ciúme.
É mentira de fogo,
Relâmpago veloz, que passa logo,
Mas há ocasião,
Em que arrebenta o raio no trovão.
Só o amor Divino é sem defeito,
E por isso se diz amor perfeito,
Amor de Deus, e basta para a fé,
Que em ser amor de Deus diz o que é.

(HATHERLY, 1997)

159
NADIÁ PAULO FERREIRA

AMORAS AMORES

Amoras são amores,


E amores firmes, que não mostram flores,
Ouvi o seu reclamo,
Porque logo em nascendo dizem amo,
Sempre derramam sangue em branda lida,
Porque não há amores sem ferida,
Causam melancolia com doçura,
Que amor nos gostos o pesar mistura;
Só no do Céu amor sem descaminhos,
Se acha mel sem ferrão, flor sem espinhos,
Sol sem eclipses, Lua sem minguante,
Dia sem noite, Estrela sem errante.

(HATHERLY, 1997)

CÂNTICO AO SENHOR PELAS FRUTAS

Ao Senhor louvemos,
Pelas frutas belas
Que criou regalo
Sendo Providência.

Ao Senhor louvemos
Nas frutas primeiras
Que são frutas novas
De esperanças velhas.

Ao Senhor louvemos
Na maçã, e entra,
A que nasceu culpa
E acabou fineza.

Ao Senhor louvemos
Pelas romãs régias,
Que por dar-nos coroa
As criou com ela.

160
POESIA BARROCA

Ao Senhor louvemos
Do figo no néctar
E a melhor Mercúrio
Dedicado seja.

Ao Senhor louvemos
Na fruta das pêras
Que dão esperanças
Porque são esperas.

Ao Senhor louvemos
E a louvá-lo venha,
Pelo amo, amora,
Pelo amei, ameixa.

Ao Senhor louvemos,
Na ginja, e cereja
Para o gosto paz,
Para os olhos guerra.

Ao Senhor louvemos
Nas uvas, que emblemas
Mostram nos altares
E escondem nas cepas.

Ao Senhor louvemos
Na laranja isenta,
Que a criou esquiva
Porque a criou bela.

Ao Senhor louvemos
Na tâmara excelsa
Que por dar-se a Paulo
Se escondeu a Eva.

Ao Senhor louvemos
No limão que encerra
A vontade fina,
Em fruta grosseira.

161
NADIÁ PAULO FERREIRA

Ao Senhor louvemos
Do melão nas letras
Que até pelas frutas
Reparte ciências.

Ao Senhor louvemos
Na avelã, que encerra,
Em pouco miolo
Muita providência.

Ao Senhor louvemos
Pelas frutas belas,
Que criou regalo
Sendo providência.

(HATHERLY, 1997)

FRUTAS NOVAS MOCIDADE

As frutas novas dizem mocidade,


Porque todos são novos nessa idade,
Logo desaparecem,
E nisso à mocidade se parecem,
Porque a muitos sucede cada hora,
Antes de ver o Sol ficar na Aurora,
E ali no melhor,
Ficar o tronco quando cai a flor,
E em breve passa tempo,
Se lhe perdoa a morte não o tempo,
Não faças caso de tão leve folha,
Que é flor, que ou se murcha, ou se desfolha1 .

(HATHERLY, 1997)

162
POESIA BARROCA

MORTAL DOENÇA

Na febre do amor próprio estou ardendo,


No frio da tibieza tiritando,
No fastio ao bem desfalecendo,
Na sezão do meu mal delirando,
Na fraqueza do ser vou falecendo,
Na inchação da soberba arrebentando,
Já morro, já feneço, já termino.
Vão-me chamar o Médico Divino.

Na dureza do peito atormentada,


Na sede dos alívios consumida,
No sono da preguiça amodorrada,
No desmaio à razão amortecida,
Nos temores da morte trespassada,
No soluço do pranto esmorecida,
Já morro, já feneço, já termino.
Vão-me chamar o Médico Divino.

Na dor de ver-me assim vou desfazendo,


Nos sintomas do mal descorçoando,
Na sezão de meu dano estou tremendo,
No risco da doença imaginando,
No fervor de querer-me enardecendo,
Na tristeza de ver-me sufocando,
Já morro, já feneço, já termino.
Vão-me chamar o Médico Divino.

Vou ao passo do mal emudecendo,


A sombra da vontade vou cegando,
Aos gritos do delito amouquecendo,
No tempo sobre tempo caducando,
Nos erros do caminho entorpecendo,
Na maligna da culpa agonizando.
Já morro, já feneço, já termino.
Vão-me chamar o Médico Divino.

(Obras várias e admiráveis)

163
NADIÁ PAULO FERREIRA

MADRE SILVA DESDÉM DE FREIRA

Desdéns de Freiras ásperos arminhos,


Para o céu flores são, se ao mundo espinhos,
Quando mais desdenhosas,
Cercadas de esquivanças ficam rosas:
Católicas Dianas, flores vivas,
São de Deus os amores,
Cuidado; não olheis para estas flores,
Temei o forte lume,
Que é ciúme de Deus sobre ciúme,
Para os quais sem desmaio,
Se um homem tem punhal, um Deus tem raio.

(Enganos do bosque, desenganos do rio)

PARA PENSAR AO MENINO JESUS

Pensar-vos vos quero, minha Alma,


Porque sois mui pequenino
E se tendes muito amor
Também tendes muito frio.

Ora vá, meu adorado,


Agüentem-se os corderinhos,
Que o meu coração dá fogo
Se os olhos dão borrifos.

Vistamos a camisinha
E bem podeis, presumido,
Porque com ser de cambraia
Vós sois do que ela mais fino.

Agora, para abrigar-vos,


Vos quero pôr os paninhos,
Com eles ficarei pobre
Mas também ficareis lindo.

164
POESIA BARROCA

A faixa quero apertar-vos,


Mas, ai ai ai, meu querido,
Que se com amor aperto
Mais apertada me sinto.

A tirinha pela testa


Vai agora, meu Menino,
Mas não vos alvoroceis
Que não há coroa de espinhos.

O paninho da coifinha
Escolhi, dos mais branquinhos,
Para encastoar em prata
A pérola do rostinho.

A cinta também vos prendo


E se lhe faltam brinquinhos,
Tomai das minhas memórias
Que tem de vossos sentidos.

(Obras várias e admiráveis)

1
V. o trabalho com as frutas e as flores do pintor Arcimboldo (1527?-
1593) e o livro de Ana Hatherly, O ladrão cristalino. Aspectos do
imaginário barrroco, onde a relação entre o barroco e a pintura é
desenvolvida, enfatizando os temas das frutas e das flores para louvar o
Divino.

165
POESIA BARROCA

Sóror
Violante do Céu
(1601 ou 02 – 1693)

Seus poemas estão publicados em Rimas várias (1646) e Parnaso


lusitano de divinos e humanos versos (1733).
Alguns poemas dessa autora, publicados em Fênix renascida e
Postilhão de Apolo, aparecem como anônimos.

CANÇÃO

Amor, se uma mudança imaginada


É já com tal rigor minha homicida,
Que será se passar de ser temida
A ser, como temida, averiguada?

Se só por ser de mim tão receada


Com dura execução me tira a vida,
Que fará se chegar a ser sabida?
Que fará se passar de suspeitada?

Porém se já me mata, sendo incerta,


Somente imaginá-la e presumi-la,
Claro está (pois da vida o fio corta),

Que me fará depois, quando for certa,


Ou tornar a viver para senti-la,
Ou senti-la também depois de morta.

(Rimas várias)

167
NADIÁ PAULO FERREIRA

DÉCIMAS

Coração, basta o sofrido,


Ponhamos termo ao cuidado,
Que um desprezo averiguado
Não é para repetido:
Basta o que havemos sentido,
Não demos mais ao tormento,
Que passa de sofrimento,
Dar por um desdém tirano
Toda a alma ao desengano,
Toda a vida ao sentimento.

Fujamos deste perigo,


Livremo-nos, coração,
Que não é bom galardão
O que parece castigo:
Eu convosco, e vós comigo
Melhor o mal passaremos:
Pois entre amantes extremos
Tão divididos ficamos,
Que se nós comunicamos
É só quando padecemos.

Aquele bronze animado,


Por quem deixais de assistir-me,
Ai! que as finezas de firme
Troca em desdéns demudado:
Deixemos pois um cuidado,
Que serve só de homicida;
Porém se é força que a vida
Fique igualmente arriscada;
Antes que de desprezada,
Quero morrer de esquecida.

(Rimas várias)

168
POESIA BARROCA

MADRIGAL

Enfim fenece o dia,


Enfim chega da noite o triste espanto,
E não chega desta alma o doce encanto:
Enfim fica triunfante a tirania,
Vencido o sofrimento,
Sem alívio meu mal, eu sem alento,
A sorte sem piedade,
Alegre a emulação, triste a vontade,
O gosto fenecido,
Eu infelice enfim, Lauro esquecido...
Quem viu mais dura sorte?
Tantos males, amor, para uma morte?
Não basta contra a vida
Esta ausência cruel, esta partida?
Não basta tanta dor? tanto receio?
Tanto cuidado, ai triste, e tanto enleio?
Não basta estar ausente,
Para perder a vida infelizmente?
Se não também, cruel, neste conflito
Me negas o socorro de um escrito?
Porque esta dor que a alma me penetra
Não ache o maior bem na menor letra,
Ai! bem fazes, amor, tira-me tudo!
Não há alívio, não, não há escudo,
Que a vida me defenda,
Tudo me falte, enfim, tudo me ofenda,
Tudo me tire a vida,
Pois eu a não perdi na despedida.

(Rimas várias)

Se apartada do corpo a doce vida,


Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte,
Se ausente da alma estou que me dá vida?

Não quero sem Silvano já ter vida,


Pois tudo sem Silvano é viva morte;
Já que se foi Silvano, venha a morte,
Perca-se por Silvano a minha vida.

169
NADIÁ PAULO FERREIRA

Ah! suspirado ausente, se esta morte


Não te obriga querer vir dar-me vida,
Como não ma vem dar a mesma morte?

Mas se na alma consiste a própria vida,


Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.

(Rimas várias)

SOLILÓQUIO DA ALMA COM O SENHOR


CRUCIFICADO EM A ÚLTIMA HORA, E AGONIA DA
MORTE, PARA SE LER, E DIZER A QUALQUER
AGONIZANTE
ROMANCE

Aqui, Senhor, onde a vida


Entre diversos contrários,
Mais que dos males presentes,
Morre dos erros passados.

Aqui, onde me executam


Memórias daqueles anos,
Para o viver tão ligeiros,
Para o morrer tão pesados.

Aqui, onde a mesma culpa


É hoje o maior tirano
De um coração, que os delitos
Sente muito mais, que os danos.

Aqui, onde já fenecem


Por decreto soberano
Entre as certezas de um logo
As incertezas de um quando.

Aqui, onde os meus sentidos


Estão já tão perturbados,
Que com próprios desacertos
São alheios desenganos.

170
POESIA BARROCA

Aqui, onde não me valem


Ânimos afeiçoados,
Afetos compadecidos,
Remédios extraordinários.

Aqui, onde enfim me vejo


Tão perto do fim, que aguardo,
Que parece o dividido
O mesmo, que o vinculado,

Aqui, Senhor, vos confesso


Verdades, que neste passo
Nem dependem de artifícios,
Nem participam de enganos.

E se bem o referi-las
É para vós escusado,
Pois como lince divino
Vedes o interior humano.

Quero que os últimos ecos


Da voz, que apenas desato,
Chegando a vossos ouvidos,
Vão acabar no mais alto.

Quero, também, que meus erros,


(Antes do mortal letargo)
Se ofenderam cometidos,
Lisonjeiem confessados.

Eu sou aquele portento


De culpas, aquele raro
Escândalo da virtude,
Estímulo do pecado.

Sou aquela ingrata esposa,


Que neste madeiro sacro,
observando mal três votos,
Vos pus de novo três cravos.

171
NADIÁ PAULO FERREIRA

Sou a que por desconforme


Na vida, e hábito santo,
O que vai do branco ao negro,
Foi em mim ao negro, e branco.

Sou aquela, que devia,


Por respeitos duplicados,
Ser a que não tenho sido,
Pois nada sendo, fui tanto.

Sou a que das mesmas partes,


Com que ornastes este barro,
Fiz armas para ofender-vos,
Fiz setas para frechar-vos.

Sou a que a vós preferindo


Qualquer lisonjeiro aplauso,
Fiz crédito do defeito,
Fiz glória do mesmo dano.

Sou a que tão esquecida


Vivi do que estou passando,
Que me usurpei aos rigores,
E me entreguei aos regalos.

Sou a que furtando o tempo


Às obrigações do estado,
Dei a ignorantes discursos
Talvez assuntos profanos.

Sou a que o nome de néscia


Poderá só ter logrado,
Porque fiz caso das sombras,
E das luzes não fiz caso.

Sou a que excessivamente


Lágrimas desperdiçando,
Chorei por haver sentido,
Mas não por haver pecado.

172
POESIA BARROCA

Sou a que a vossas verdades


Antepondo o mesmo engano,
Fui de perigo em perigo,
E de naufrágio em naufrágio.

Sou a que se mais tempo fora,


Mais pecara, que os pecados
Só em mim ao excessivo
O sucessivo igualaram.

Sou quem já deixa de ser,


Sou quem sendo o que relato,
Não tenho no delinqüido
A desculpa do ignorado.

Porém se pelo que sou


Me estremeço, e me acobardo,
Me desalento, e me assombro,
Me confundo, e me desmaio:

Pelo que sois, Rei divino,


Ânimo recebo tanto,
Que basta só o animoso
A restaurar o animado.

Sois quem por dar confianças


A temerosos reparos,
Quis nascer entre dois brutos,
Quis morrer com dois culpados.

Sois quem por maior fineza


Quis uma porta no lado,
Para recolher suspiros,
Para conceder amparos.

Sois quem me está prometendo


Com estes abertos braços
Mais favores, que castigos,
Mais vencimentos, que estragos.

173
NADIÁ PAULO FERREIRA

Sois finalmente quem sois,


E sois o mais empenhado
Em que me salve; pois fostes
Quem por salvar-me fez tanto.

Vosso sangue foi o preço


De meu eterno descanso,
Vede se é justo, que perca
O que vos custou tão caro?

Juiz sois da minha causa,


Mas juiz apaixonado,
Pois vossa paixão divina
É quem se opõe a meus danos.

Mas se contudo quereis


Valias para o despacho,
A maior parte convosco
É a Rainha dos Anjos.

Ela foi, divino amante,


Quem vos vestiu de encarnado,
Para que em defesa minha
Saístes melhor a campo.

Ela é quem me promete


Nesse mar, em que me embarco,
Felice maré de rosas
Com as rosas do Rosário.

Ela enfim vos peça, ou mande,


Se também pode mandar-vos,
E como mãe ter império
Em que impera nos astros;

Que perdoeis tantos erros,


Pois ainda que são tantos,
Vêm a ser pequenos rios
Com piedades oceanos.

174
POESIA BARROCA

E porque os intercessores
Me valham multiplicados,
Saia também a pedir-vos
Quem também pode obrigar-vos.

Saia a pedir-vos favores


Aquele Pastor sagrado,
Que esta indigníssima ovelha
Admitiu ao seu rebanho.

Saia a tributar-vos rogos


No vosso divino paço,
Aquele Sol Domínico,
Aquele céu estrelado.

Que posto que desta filha,


Que já se está terminando
Não foi nunca obedecido
Nem nunca foi imitado:

Por lograr em todo o tempo


A ventura de imitar-vos,
Não será muito, que peça
Por quem o tem agravado.

E mais quando nesta hora


Alegre só para os Santos,
E também para os que vivem
Entre sentimentos vários.

Meu divino Patriarca


Consolações outorgando
Prometeu favorecer-nos
Em transe tão apertado.

Ele execute as promessas,


Pois em sujeitos tão altos
Vem a ser o prometido
O mesmo, que executado.

175
NADIÁ PAULO FERREIRA

Ele interceda por mim:


E aquele divino espanto,
Que foi glória dos divinos,
E crédito dos humanos:

Aquele Bautista excelso,


Que já vos teve prostrado,
Porque quisestes, que o mundo
Aprendesse a respeitá-lo:

Aquele, que à vossa vista


Motivou equivocado,
Pois sendo aurora nas luzes,
Teve do Sol muitos raios:

Ele, e os mais, que na glória


Vos estão sempre aclamando
Por deidade incompreensível,
Por Senhor três vezes santo:

Todos, meu Deus, vos obriguem


A que esquecido de agravos
Este tão amargo choro
Transformeis em doce canto:

Todos, Senhor, me granjeiem


Favores tão soberanos,
Que todos nessa capela
Cantemos Te Deum laudamus.

Mas já, dulcíssimo Esposo,


A morte me põe embargos,
E é força, que com o vivo
Feneça o articulado.

Já se desfaz esta escuma,


Já se desfolha este ramo,
Já se apaga esta candeia,
Já se deserta este laço.

176
POESIA BARROCA

Já não posso dizer mais,


Senão que creio, que amo,
Que adoro, e que me encomendo
A Jesus Crucificado.

Já o espírito me deixa,
Já chega o último prazo,
Favor, Esposo divino,
Piedade, Rei soberano.

(Parnaso lusitano de Divinos e humanos versos)

Vida que não acaba de acabar-se,


Chegando já de vós a despedir-se,
Ou deixa por sentida de sentir-se,
Ou pode de imortal acreditar-se.

Vida que já não chega a terminar-se,


Pois chega já de vós a dividir-se,
Ou procura vivendo consumir-se,
Ou pretende matando eternizar-se.

0 certo é, Senhor, que não fenece,


Antes no que padece se reporta,
Porque não se limite o que padece.

Mas, viver entre lágrimas, que importa?


Se vida que entre ausências permanece
É só viva ao pesar, ao gosto morta?

(Rimas várias)

177
NADIÁ PAULO FERREIRA

VOZES DE UMA DAMA DESVANECIDA


DE DENTRO DE UMA SEPULTURA QUE FALA
A OUTRA DAMA QUE PRESUMIDA ENTROU EM
UMA IGREJA COM OS CUIDADOS DE SER VISTA
E LOUVADA DE TODOS; E SE ASSENTOU JUNTO A
UM TÚMULO QUE TINHA ESTE EPITÁFIO
QUE LEU CURIOSAMENTE:

Ó tu, que com enganos divertida


vives do que hás-de ser tão descuidada,
Aprende aqui lições de escarmentada,
Ostentarás ações de prevenida.

Considera que em terra convertida


Jaz aqui a beleza mais louvada,
E que tudo o da vida é pó, é nada,
E que menos que nada a tua vida.

Considera que a morte rigorosa


Não respeita beleza nem juízo
E que, sendo tão certa, é duvidosa.

Admite deste túmulo o aviso


E vive do teu fim mais cuidadosa,
Pois sabes que o teu fim é tão preciso.

(Parnaso lusitano de Divinos e humanos versos)

178
POESIA BARROCA

Tomás Pinto Brandão


(1664 – 1743)

A maioria da sua produção poética foi publicada no livro Pinto


renascido empenado e desempenado (1732-1753), cujo título ironiza
a antologia Fênix renascida.
Outras publicações: Fausto do Emeneu, crônica panegírica do
casamento real, de autoria de F. José da Natividade.
Depois de sua morte, foi publicado o poema Vida e morte, na
miscelânea editada em Lisboa pela tipografia Rolandiana.

A UMA DAMA QUE TRAZIA UMA MEMÓRIA NO


DEDO, CUJA PEDRA ERA UMA CAVEIRINHA

A Morte em mãos de anéis? É boa história!


Parece que ao moral Fílis se inclina,
sem ver que se desmente de Divina,
na lembrança da vida transitória;

De Caveira na mão, coisa é notória,


que a pregar de missão se determina;
porém como lhe esquece o ser benigna,
trazendo sempre a morte na memória?

Oh não vedes, que Fílis nesta Corte


a todos faz em cinza, e quer ingrata,
dar-lhe um Memento homo, dessa sorte?

179
NADIÁ PAULO FERREIRA

Mas não, que de matar somente trata;


e a Memória no dedo, com a morte,
é só para lembrar-se de que mata.

(Pinto renascido empenado e desempenado)

A UMA FONTE, QUE SECOU, TENDO EM CIMA UMA


ESTÁTUA DE CUPIDO, FOI ASSUNTO ACADÊMICO
ROMANCE

Ai de ti pobre Cupido,
ao rigor de um Lente exposto!
Sempre a ruínas assunto,
sempre a Poetas destroço!
Ei-lo uma estátua de pedra;
ei-lo uma figura de ouro;
ei-lo de cristal buído;
ei-lo de pau carunchoso;
ei-lo logo arruinado;
ei-lo derretido logo;
ei-lo quebrado, de parte,
ei-lo queimado, de todo;
ei-lo quente, ei-lo fiambre;
ei-lo seco, ei-lo de molho;
ei-lo de osso sem tutano,
ei-lo de carne sem osso;
ei-lo nu, ei-lo coberto;
ei-lo vestido, ei-lo roto;
ei-lo pobre, e ei-lo rico;
ei-lo cego, e ei-lo torto;
em mil visages o vejo,
só à abatina o não topo;
que eu bem quisera capá-lo;
a ver se lhe punham olhos:
tudo isto por ele passa;
agora temos de novo,
depois de fome abrasado,
mostrar-se de sede morto:
vendo pois, que a correnteza
era exercício ocioso,
suspendeu-a, por ser pouca

180
POESIA BARROCA

água para tanto fogo;


mas console-se Cupido,
que tem nisso outro Deus sócio;
pois no Terreiro do Paço
o menino sucede a Apolo:
isto é o que sei do caso;
perdoem-me se foi pouco;
que também sou fonte seca,
onde há de letras um poço:
em outra serei mais fresco;
que hão de dar, como suponho,
algum Cupido esguichando,
lá para Domingo Gordo.

(Pinto renascido empenado e desempenado)

A UM RELÓGIO DE AREIA; QUE ESTA ERA DAS CINZAS


DE UM BASALISCO; E FOI ASSUNTO ACADÊMICO
EPIGRAMA

Este, a cinza reduzido,


Fênix embasaliscado,
seria a tempo queimado,
que a horas foi renascido.
E é justo que feito em pó
se veja Relógio aqui;
porém mostrando de si
a hora da morte só.

(Pinto renascido empenado e desempenado)

QUEIXAM-SE TODOS OS DEFUNTOS,


QUE HOUVE NA EPIDEMIA QUE
PADECEU LISBOA, O ANO DE 1723

Nós abaixo assinados pela terra,


clamamos, de que em tanta mortandade
não tenha entrado Médico, nem Frade;
e que só faça a morte aos pobres guerra!

181
NADIÁ PAULO FERREIRA

Dirá a morte, que pouco, ou nada erra,


em desviar de toda a enfermidade
a dois que são da sua faculdade;
porque o Médico mata, e o Frade enterra:

Replicamos; que as tumbas com freqüências,


andam cá por estreitos pecadores,
sem subirem às largas consciências:

Dirá também, que os tais são matadores;


e é preciso, que tenha dependências
a morte com Ministros, e Senhores.

(Pinto renascido empenado e desempenado)

182
POESIA BARROCA

GLOSSÁRIO
A troche-moche: confusamente, desordenadamente.
Abrolhos dificuldade, pena, desgosto, mágoa, mortificação.
Açafate: cesto pequeno de junco.
Adrede: de propósito, de caso pensado, intencionalmente.
Aguilenho: planta natural da Índia, muita cheirosa, empregada em
farmácia e em perfumaria.
Airoso: esbelto, elegante, garboso.
Alabastrino: da cor do alabastro, que apresenta as propriedades dessa
rocha.
Alabastro: rocha pouco dura e muito branca, translúcida, finamente,
granulada. Sentido Figurado: Alvura, brancura.
Albardada: iguaria coberta com ovos e frita (albardada de bacalhau).
Alcorça: variante alcorce, massa de açúcar com a qual se fazem e se
cobrem doces.
Aletria: massa de farinha disposta em fios.
Alfenim: massa de açúcar muito branca a que se dá um ponto e com a
qual se formam diferentes figuras, cobertura feita com claras de ovos e
açúcar em ponto para cobrir bolos. Sentido figurado: pessoa delicada,
melindrosa.
Alforge: duplo saco, fechado nas extremidades e aberto no meio,
formando uma espécie de dois bornais, que se enchem equilibradamente.
Assim é feito para colocar a carga transportada no lombo de cavalgaduras
ou no ombro de pessoas. Grafia atual alforje.
Algália: licor que se extrai de várias glândulas do almiscareiro
(mamífero ruminante da Ásia, o qual se caracteriza pela forte secreção
odorífera, produzida por uma glândula abdominal, a algália).
Algibeira: bolso que faz parte integrante da roupa. Pequena bolsa em
forma de saquinho que as mulheres prendiam à cintura, em geral, por
baixo dos vestidos ou aventais.

183
NADIÁ PAULO FERREIRA

Alhear: tornar alheio, desviar, afastar, apartar, desvairar, esquecer-se


de si mesmo, arrebatar-se, enlevar-se, extasiar-se, enlouquecer.
Aljôfar: pérola muito pequena, gotas de água, orvalho da manhã. Sentido
figurado: lágrimas de uma bela mulher.
Almário: armário.
Almíscar: substância odorífera de sabor amargo e cor amarelada,
segregada pelo almiscareiro e utilizada em perfumaria e farmácia.
Almofariz: vaso em que se trituram substâncias.
Alqueire: antiga unidade de medida de capacidade para secos,
equivalente a quatro quartas, ou seja, 36,27 litros.
Alva: o primeiro alvor da manhã; antiaurora.
Alvedrio: vontade própria, livre arbítrio.
Alvorotar: alvoroçar, agitar, sobressaltar.
Âmbar: substância sólida, parda ou preta, de cheiro almiscarado, âmbar-
gris.
Ambrósia: variante de ambrosia, manjar dos deuses do Olimpo, comida
ou bebida deliciosa. Doce feito com ovos e leite cozidos em calda de
açúcar.
Amodorrar: causar modorra, cair em sono profundo, letárgico.
Amouquecer: desesperar.
Aprestar: apronta, prepara.
Arcimboldo: artista italiano de origem germânica, (Milão, 1527-
Milão, 1593), que foi protegido pelos imperadores germânicos,
Ferdinand I e Maximiliano II. Trabalhou como pintor, engenheiro e
engenheiro hidráulico. A maior parte de sua obra se perdeu. A
característica fundamental de sua pintura é a utilização de elementos
da natureza para compor retratos de rostos humanos: animais, flores e
frutas. Os quadros mais conhecidos são: Primavera, Outono, Inverno
e Verão, Água, Ar, Terra e Fogo.
Arcipreste: chefe dos padres que compunham o clero de um bispo, ou
de uma comunidade rural de clérigos.
Arenga: discurso prolixo e enfadonho, lengalenga.
Argueiro: grânulo, cisco. Sentido figurado: coisa insignificante, de
pouca monta.
Arminho: mamífero das regiões polares, cuja pele é macia e alvíssima
no inverno. Por extensão a pele ou o pêlo do arminho.
Arrátel: antiga unidade de medida de peso, equivalente a 459 g ou 16
onças; libra.
Arrazoar: alegar razões pró ou contra, discorrer, raciocinar, argumentar.
Arrebol: v. candeia.
Arrimar: amparar.
Arrogado: usurpado.
Arrufo: ressentimento passageiro entre pessoas que se querem bem.
Aspeito: aspecto.
Áspide: réptil, ofídio, com presas anteriores ocas, para enxertar o

184
POESIA BARROCA

veneno, serpente.
Assolação: devastação, destruição.
Atalanta: variante de Atalante, significa sofredora. A origem desta
heroína é muito contraditória. Em algumas versões aparece como filha
de Íaso ou Iásio, filho de Licurgo, rei da Arcádia, e de Clímene, filha de
Mínias, rei de Orcômeno. Em outras, aparece como filha de Esqueneu
e de Temisto. Esqueneu só queria filhos homens, por isto quando
Atalanta nasceu, mandou-a para o monte Partênion, na Arcádia.
Alimentada por uma ursa, foi depois criada por caçadores. O “Orgulho
dos Bosques da Arcádia”, como era conhecida, participou da caçada ao
javali Cálidon, que havia sido enviado por Ártemis como castigo ao rei
Eneu, por ter esquecido de homenageá-la na época das colheitas. Por
fidelidade a Ártemis, recusava-se a casar, porque um oráculo predissera
que, se ela se casasse, seria transformada em animal. Por ser muito bela
e ter muitos pretendentes, decidiu que só se casaria com aquele que
conseguisse vencê-la numa corrida, porque sabia que isto seria impossível.
Os pretendentes derrotados pagariam com a vida. Depois da morte de
muitos pretendentes, apareceu-lhe Hipómenes (ou Melanion, segundo
outras variantes), que recebeu ajuda de Afrodite. Esta deusa lhe deu três
maçãs de ouro do Jardim das Hespérides, porque quem quer que as visse
ficava alucinado por possui-las. Quando Hipómenes percebeu que ia
perder a corrida, lançou cada uma das maçãs. Embora Atalanta as colhesse
rapidamente, terminou perdendo a corrida. Uma vez casados, entregaram-
se à paixão no santuário de Zeus ou Cibele. Como castigo foram
transformados pelo chefe do Olimpo em leões.
Azambuja: quantidade mais ou menos considerável de azambujeiros
(espécie de oliveira brava, de madeira rija) dispostos proximamente
entre si.
Baco: deus romano que corresponde ao deus Dioniso para os gregos.
A partir do século VI a.C., se tornou, essencialmente, o deus do vinho,
das festas e do teatro. Há dois dionisos. O primeiro, filho de Zeus e de
Perséfone, comumente chamado Zagreu, foi morto pelos Titãs por
ordem de Hera. Os Titãs, cortaram-no em pedaços, cozinharam-lhe as
carnes num caldeirão e as comeram. Zeus fulminou os Titãs e de suas
cinzas nasceram os homens. O segundo é filho de Zeus e de Sêmele.
Hera, enraivecida de ciúmes, planeja um ardil e o palácio de Sêmele
pega fogo. Sêmele morre carbonizada e Zeus retira o feto do seu ventre
e o coloca em sua coxa, para que seja completado o período de gestação.
Com medo de outra vingança de Hera, Zeus transformou Dioniso em
um bode, mandou Hermes levá-lo para o monte Nisa e entregá-lo aos
cuidados das Ninfas (v. verbete) e dos Sátiros (v. verbete). No monte
Nisa, havia videiras em abundância. Um dia, Dioniso colheu as uvas,
espremeu-as e bebeu o suco em sua taça de ouro, em companhia dos
Sátiros e das Ninfas. Assim nasceu o vinho. Por ocasião da colheita
das uvas, celebrava-se, em Atenas e por toda a Ática, a festa do vinho,

185
NADIÁ PAULO FERREIRA

onde todos os participantes cantavam, dançavam e se embriagavam. Com


a helenização de Roma, essas festas acabaram se transformando em
orgias. Dioniso, aquele que nasceu duas vezes, se tornou um deus tão
poderoso que chegou, inclusive, descer ao Hades para tirar sua mãe,
Sêmele, e lhe dar a imortalidade.
Baixel: barco ou navio.
Basalisco: var. basilisco. Réptil mitológico de oito pernas. Segundo
algumas versões, tem a forma de serpente e é capaz de matar pelo bafo,
pelo contato ou apenas pela vista. Segundo outras versões, tem a forma
de serpente ápode (sem pés) e um só olho na fronte. É representado
por um galo com cauda de dragão ou por uma serpente com asas de
galo. Uma das suas significações é a dos perigos mortais e inadvertidos
da vida, exigindo proteção divina.
Basto: denso, abundante.
Bergamota: “pêra do príncipe”, uma espécie de pêra sumarenta.
Bigorna: peça de ferro utilizada para malhar e moldar os metais.
Bizarria: aparato, ostentação, pompa.
Boal: uva branca muito doce.
Bofé: na verdade.
Bonifrate: fantoche.
Bonina: maravilha, beleza, encanto, fascinação.
Bordão: cajado, bastão, vara.
Borracheira: bebedeira.
Borzeguim: calçado até meia perna, bota de montaria.
Brichote: nomeação pejorativa do estrangeiro (G.M., “À Cidade da
Bahia”).
Brunido: brilhante, polido.
Bugalho: galha arredondada ou coroada de tubérculos que se forma
nos carvalhos.
Burel: tecido grosseiro de lã usado como luto. Sentido figurado: luto,
tristeza, pesar.
Cabaça: abóbora em forma de “s”, seu casco serve de recipiente para
líquidos.
Cachaço: nuca.
Caípe: rio de Pernambuco.
Camoesa: var. camoesa. Espécie de maçã cheirosa e de gosto suave.
Canastra: cesta larga e pouco alta, tecida de ripas de madeira ou de
vara flexível.
Canaz: grande cão.
Candeia: pequeno aparelho de iluminação, que se suspende por um
prego, com recipiente de folha-de-flandres, barro ou outro material,
abastecido com óleo, no qual se embebe uma torcida. Vela de cera.
Candor: candura, alvo, imaculado, inocente.
Capão: frango capado.
Capucho: frade franciscano, frade menor.

186
POESIA BARROCA

Carmesim: cor vermelha muito viva


Carmim: cor vermelha muito viva.
Carranca: cara disforme de madeira, pedra ou metal usada para afastar
os maus espíritos. Sentido figurado: semblante sombrio.
Carruncho: designação comum aos insetos que perfuram sobretudo
madeira e cereais. O pó que resulta da ação desses insetos. No sentido
figurado, aquilo que mina, corrói, destrói, lentamente.
Carunchoso: carcomido, cheio de caruncho, carunchento.
Cascabulho: monte de cascas.
Cenreira: briga, rixa.
Chainha: espécie de maçã de inverno, agridoce e avermelhada.
Chapim: calçado de mulher.
Chasco: zombaria, escárnio.
Chocalheiro: aquele que leva-e-traz, aquele que divulga segredos,
aquele que fala muito e com indiscrição, fofoqueiro.
Cidrão: variedade de cidra de casca grossa.
Círio: vela grande de cera, festa de romaria, procissão.
Clóris: filha de Níobe e de Anfíon. Segundo a maioria das versões
míticas, teve sete irmãos e seis irmãs. Em Homero, Níobe e Anfíon
tiveram doze filhos e, em Hesíodo, vinte filhos. Níobe considerava-se
superior a Leto, porque esta só tinha dois filhos, Apolo e Ártemis.
Leto, querendo se vingar, pede aos filhos que matem todos os filhos de
Níobe. Com suas flechas, Apolo mata os meninos e Ártemis as meninas.
Clóris, numa versão tardia, sobrevive ao massacre. Entretanto, ficou
tão chocada com o assassinato de seus irmãos, que se tornou tão pálida,
que passou a ser chamada de Clóris, a verde. Mais tarde, Clóris se casa
com Neleu, filho de Posídon, o senhor da terra, e da ninfa Tiro.
Côdea: casca.
Codorno: variedade de pêra grande e sumarento.
Coifa: touca.
Consorte: companheiro na mesma sorte, cônjuge.
Contumaz: teimoso, obstinado, rebelde.
Core-Perséfone: Core significa a jovem. No mito grego, Core
corresponde à Perséfone jovem. Perséfone, aquela que morre para
renascer, já que Plutão, por intercessão de Zeus, permite que Perséfone
saia do reino dos mortos, desde que tenha sempre que retornar. Assim,
Perséfone é o grão que morre, para renascer mais jovem, forte e bela
e, por isso mesmo, ela é Core, a Jovem (BRANDÃO, 1986, v.1, p. 304).
Cotão: lanugem de alguns frutos ou vegetais.
Coxim: almofada.
Craveiro: planta de caule reto, cujas flores (cravos) são vermelhas,
alvas ou de outras cores, sendo o fruto uma cápsula ovóide, alongada.
Cupido: deus do Amor para os romanos, corresponde à Eros, na
mitologia grega. Segundo a versão de Hesíodo (Teogonia Trabalhos e
Dias), poeta do século VIII a.C., cronologicamente depois de Homero,

187
NADIÁ PAULO FERREIRA

é o mais belo entre os deuses. Para este poeta, Eros nasceu do Caos,
junto com Géia (Terra) e Tártaro (lugar mais profundo da terra,
localizado abaixo do reino de Hades (Inferno). Uma variante da versão
de Hesíodo apresenta Caos e Nix (Noite) na origem do mundo. Nix
põe um ovo, do qual nasce Eros. Com o tempo, surgem várias genealo-
gias sobre o deus do Amor. Segundo Diotima, em O Banquete de Platão,
Eros foi concebido da união de Póros (Expediente) e de Penía
(Pobreza), no Jardim dos Deuses, depois de um banquete, em que se
comemorava o nascimento de Afrodite. Uma das genealogias mais
difundidas apresenta Eros como filho de Ártemis (Diana), a deusa da
natureza, a senhoras dos animais, e de Hermes (Mercúrio), protetor
dos viajantes, deus das estradas, cuja principal característica é a astúcia.
Nesta genealogia, Eros é descrito como um menino louro, que jamais
cresce e com asas. É considerado um deus muito perigoso. Sob a
máscara de um menino inocente e travesso, trespassa com suas flechas
envenenadas de amor o fígado e o coração dos deuses e dos homens,
tirando-lhes o juízo.
Debalde: em vão, inutilmente.
Deidade: divindade, nume, deus ou deusa. Sentido Figurado: pessoa ou
coisa que se admira e venera, mulher formosíssima.
Desbaratar: arruinar, destruir, destroçar.
Descorçoar: descoroçoar, tirar o ânimo ou a coragem a, perder a
coragem; desanimar.
Desdouro: derivado de desdourar (desdoirar), fazer perder o brilho,
tirar a douradura.
Diagargante: talhadas de açúcar em ponto.
Domínico: relativo à dominicano, pertencente ou relativo à Ordem de
S. Domingos.
Elias: profeta que, segundo o relato do Velho Testamento, em “O
Segundo Livro dos Reis”, capítulo 2, foi arrebatado por Deus aos céus,
num carro de fogo, com cavalos de fogo.
Elmo: capacete de guerra com proteção para os olhos.
Embuçado: coberto, dissimulado, disfarçado.
Empavesar: enfeitar-se, adornar-se, ataviar-se, pavonear-se.
Empavesado: ornado, enfeitado.
Empola: bolha.
Emulação: sentimento que nos incita a igualar ou superar outrem,
competição, rivalidade, concorrência, estímulo.
Enágua: variante de anágua, saia usada sob o vestido, de feitios e
materiais diversos, curta ou longa, estreita ou larga, saia de baixo.
Enardecer: inflamar-se, arder.
Enchouriçado: variante de enchoiriçado, enfatuado, inchado.
Engaço: ramificação dos cachos de uva, haste do fruto.
Enleio: ato ou efeito de enlear(-se). Confusão, perplexidade. Embaraço.
Encanto, deleite, êxtase.

188
POESIA BARROCA

Entrudo: festa carnavalesca antiga, que consistia em lançar uns aos


outros água, farinha, tinta, etc.
Enxúndia: gordura das aves, banha.
Erário: sentido figurado, tesouro.
Escarapela: briga em que os adversários se arranham.
Escaravelho: inseto que vive de excrementos de mamíferos herbívoros.
Escarlata: variante de escarlate, de cor vermelha muito viva.
Escarmentado: repreendido, castigado. Sabedor por experiência
custosa, experimentado, escaldado, desesperançado, desiludido.
Escuma: variante de espuma.
Estoraque: lusitanismo, homem leviano, doidiva nas.
Estorninho: pequeno pássaro de plumagem negra, lustrosa, malhada
de branco com reflexos verdes e purpúreos. Animal zaino com pequenas
manchas brancas.
Estropiado: mutilado, rasgado.
Fado: destino, sorte.
Fênix: v. nota no 29 de “O barroco na poesia”.
Fílis: personagem mítica de uma história de amor, cujo nome significa
a que produz folhas e frutos. Ácamas ou Demofonte, filhos de Teseu e
de Fedra, participaram da luta contra os troianos. Terminada a guerra, o
príncipe ateniense, Ácamas (em outras variantes do mito aparece
Demofonte), quando estava retornando à cidade natal, teve suas naus
desviadas da rota por uma tempestade, indo parar nas costas da Trácia.
Acolhido pelo rei desta cidade, apaixonou-se por sua filha, a princesa
Fílis, com a qual se casou e teve dois filhos, Ácamas e Anfípolis.
Ácamas, desejando voltar a Atenas para resolver algumas coisas,
prometeu a Fílis que voltaria em uma data determinada. Fílis lhe entrega
uma caixa com objetos consagrados à Réia (esposa de Crono, o que
devorava todos os filhos, e mãe de Zeus) e pede ao marido que só a
abrisse se resolvesse nunca mais voltar. Na data do regresso, Fílis fez
nove caminhadas da cidade ao porto. Este percurso passou a ser chamado
de as Nove Rotas. O marido não apareceu e Fílis se enforcou. No
mesmo dia, Ácamas, que tinha se casado de novo e estava morando em
Chipre ou em Creta, abre a caixa, de onde sai o espectro de Fílis que,
espantando seu cavalo, faz com que caia no chão sobre a ponta de sua
espada e morra. Há duas versões sobre o desfecho dessa trágica história
de amor. Uma conta que Fílis se transformou em uma amendoeira sem
folhas. Ácamas, retornando à Trácia, abraça chorando a árvore estéril
que, imediatamente, floriu com folhas e frutos. Outra versão narra que
todas as árvores plantadas sobre o túmulo de Fílis perdiam todas a folhas
e frutos na data de sua morte.
Filhós: doce feito de massa de farinha com ovos.
Flama: chama.
Folar: presente de páscoa que os padrinhos oferecem aos afilhados.
Fole: soprador, utensílio utilizado para produzir vento.

189
NADIÁ PAULO FERREIRA

Frágua: calor intenso, ardor, pena, amargura, aflição.


Gabar: fazer o elogio de, preconizar as boas qualidades de, louvar,
celebrar, elogiar. Jactar-se, vangloriar-se.
Gadanho: garra de ave de rapina, unhas.
Gala: pompa, magnífico, fausto.
Galardão: recompensa de serviços valiosos, prêmio, honra, glória.
Galera: antigo navio à vela.
Galhardia: garbo, elegância, bizarria. Sentido figurado: generosidade,
bravura, grandeza de alma, valor.
Garbo: elegância, distinção.
Ginja: fruto da ginjeira, espécie de cereja de um vermelho mais escuro
que o da comum, e de sabor agradável. Bebida feita a partir desta fruta.
Grácia, gratis data: gratia gratis data expressão latina muito usual nos
tratados de teologia, significando Deus dá ao homem a sua graça gratuita-
mente (António Serrão de Castro, “A uma dama chamada Grácia ...”).
Granjear: conquistar ou obter com trabalho ou com esforço, fazer
alcançar, valer, conquistar.
Guisa: maneira, modo, feição.
Helena: a mulher mais bela do mundo, segundo a mitologia grega. Páris,
príncipe de Tróia, chegando à Esparta, é recebido pelo rei Menelau e
por sua esposa Helena. Menelau, tendo sido chamado à ilha de Creta,
para assistir aos funerais de seu padrasto Catreu, deixa o hóspede aos
cuidados de sua esposa, a qual se apaixona por Páris e foge com ele,
levando todos os tesouros que pôde. A partir daí se desencadeia uma
série de fatos, que desemboca na guerra entre os espartanos e troianos,
contada por Homero, na Ilíada.
Hespéridas: variante de Hispéridas. O Jardim das Hispéridas, segundo
a mitologia helênica, permanece eternamente na primavera. As núpcias
de Hera (Juno) com Zeus, foram realizadas nesse Jardim. Géia deu de
presente de casamento os pomos de ouro desse jardim e Hera os achou
tão belos, que os plantou em seu jardim, nas extremidades do Oceano.
Hidropisia: acumulação anormal de líquido seroso em tecidos ou em
cavidade do corpo. Sentido figurado: excesso da alma.
Ilharga: cada uma das partes laterais e inferiores do baixo-ventre.
Intrincado: variante de intricado, obscuro, confuso, enredado,
emaranhado.
Jacob: pertence à dinastia dos descendentes de Isac e de Ismael, filhos
de Abraão. Isac casou com Rebeca, filha de Bethuel, irmão de Labão.
Eles tiveram dois filhos gêmeos: Esaú e Jacob. Esaú se tornou um
grande caçador e Jacob um pastor simples. Labão, tio de Jacob, tinha
duas filhas, Rachel, que era muito bonita, e Lia, que era a mais velha.
Jacob, apaixonado por Rachel, propõe o seguinte trato para Labão: Sete
anos te servirei por Rachel (“Gênesis”, capítulo 18). Cumprida a
promessa, Jacob se dirige a Labão: Dá-me minha mulher, porque meus
dias são cumpridos, para que eu entre a ela (“Gênesis”, 21). Labão,

190
POESIA BARROCA

usando da esperteza, oferece Lia em lugar de Raquel, dizendo: Não se


faz assim no nosso lugar, que a menor se dê antes da primogênita.
Cumpre a semana d’esta; então te daremos também a outra, pelo
serviço que ainda outros sete anos servires comigo (“Gênesis”, 26-
27). Depois de mais sete anos, Jacob recebe Raquel e serve, ainda,
mais sete anos a Labão.
Jaspe: variedade semicristalina de quartzo opaco, de cores diversas,
sendo a cor mais comum a vermelha.
Jubileu: data de aniversário de uma instituição.
Juno: deusa na mitologia romana que corresponde à Hera na mitologia
grega. A mais importante e poderosa deusa do Olimpo, Hera, a filha
mais velha de Crono e Réia, foi, como todos seus irmãos, com exceção
de Zeus, devorada pelo pai e salva por Métis, filha do Oceano e Tétis,
que deu uma droga a Crono, fazendo com vomitasse todos os filhos
que tinha engolido. O ciúme e a vingança violenta são os principais
traços do caráter de Hera. Foi ela quem impôs os doze trabalhos a
Héracles (Hércules) e quem cegou Tirésias, porque este lhe respon-
deu que o gozo da mulher era maior do que o do homem. Quando soube
que Afrodite estava grávida de seu marido, deu-lhe um soco no ventre,
o que fez com que Priapo nascesse com um membro viril descomunal.
Apesar do seu gênio, Hera é cultuada como sendo a protetora dos amores
fiéis, da justiça e da bondade.
Lacão: presunto pequeno.
Leda: alegre.
Lanceta: instrumento cirúrgico de dois gumes.
Lente: professor, leitor.
Letargo: letargia, sono profundo, apatia, abati-mento moral, inércia,
torpor.
Lhaneza: franqueza, sinceridade, lisura. Singeleza, candura,
simplicidade. Afabilidade, amabilidade, delicadeza.
Libitina: deusa da morte, posteriormente, identificada com Prosérpina
que, na mitologia romana corresponde à Perséfone dos gregos (v.
Perséfone), aquela que foi raptada por Hades ou Plutão. O rapto, aqui,
simbolizando a morte simbólica de Perséfone (BRANDÃO, 1997, p.
275).
Lince: mamífero carnívoro, da família dos felídeos, ao qual os antigos
atribuíam o poder de ver através das paredes. Daí a expressão “olhos de
lince”.
Lisonja: louvor afetado, adulação, bajulação. Figurado: mimo, afago,
carícia.
Lume: fogo, luz, brilho.
Luzido: vistoso, brilhante, pomposo.
Maçapão: bolo de farinha de trigo com amêndoas.
Macilento: pálido, magro.
Malogrado: frustrado, malsucedido.

191
NADIÁ PAULO FERREIRA

Malvasia: variedade de uva muito doce e odorífera.


Mangrado: fruto que não vingou, definhado.
Manguito: pequena manga usada como enfeite ou abrigo dos pulsos.
Manjar branco: prato à base de galinha, farinha e açúcar. Existe uma
grande variedade de manjares.
Manqueira: claudicação, no texto de G.M., “Epílogos”, com o sentido
de deslize moral.
Maracotão: fruto do maracoteiro, espécie de pessegueiro, cujo fruto
é de casca aveludada e polpa rija e aderente ao caroço.
Marau: malandro, patife, indivíduo espertalhão, astucioso, finório, que
não se deixa enganar.
Márcido: sem viço, sem frescor.
Marfado: zangado, raivoso, enfurecido, irado.
Maria Madalena: personagem bíblico do Novo Testamento. “O Santo
Evangelho Segundo S. João”, capítulo 8, narra que Jesus foi para o monte
das Oliveiras e pela manhã se dirigiu para o templo, onde o povo vinha
aprender os seus ensinamentos. Os escribas e os fariseus trouxeram uma
mulher, que tinha sido pega em flagrante, cometendo o adultério.
Dirigindo-se a Jesus, depois de afirmarem que, segundo a lei de Moisés,
ela deveria ser apedrejada, perguntam: Tu pois que dizes? (VELHO
TESTAMENTO, /s.d./, p. 109). E Jesus responde: Aquele que d’entre
vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela
(VELHO TESTAMENTO, /s.d./, p. 109). Cada um foi se retirando até
que Jesus ficou sozinho com a mulher adúltera, ocorrendo o seguinte
diálogo: – Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te
condenou? – Ninguém, senhor. – Nem eu também te condeno: vai-te,
e não peques mais (VELHO TESTAMENTO, /s.d./, p. 109). Após esse
episódio, Maria Madalena, arrependida, integrou o grupo daqueles que o
seguiam, presenciando tanto a morte quanto a ressurreição de Cristo.
Meirinho: antigo funcionário judicial, correspondente ao oficial de
justiça de hoje.
Melindre: uma coisa delicada, frágil.
Mercante: trocar com duplo sentido: comerciar e modificar. Máquina
mercante: as naus que aportam para o comércio.
Memento homo: memento particípio passado do verbo latino memini,
ter presente no espírito, lembrar-se; homo, inis, substantivo latino,
homem; recordação.
Mihi mala: minha desgraça, meu flagelo, meu mal.
Mofino: desgraçado, desditoso.
Moisés: aquele que foi tirado das águas, segundo a versão do Velho
Testamento, descendente de Levi, um dos filhos de Israel que foi para
o Egito. Assim que nasceu, foi deixado à borda do rio, porque, na época,
o rei do Egito ordenou que todos os meninos hebreus que nascessem
deveriam ser mortos. Achado e criado pela filha do Faraó, é escolhido
por Deus para livrar os hebreus da escravidão dos egípcios e levá-los

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POESIA BARROCA

para a Terra Prometida. No deserto de Sinai, Deus chama Moisés ao


monte e lhe entrega as tábuas da Lei, contendo os Dez Mandamentos.
Deus se manifestou a Moisés de várias formas, entre elas, como uma
sarça ardente.
Momo: no teatro antigo designa uma pequena farsa popular. Sentido
figurado significa zombaria.
Mondongo: pessoa desmazelada, suja.
Morgado: espécie de empada redonda cheia de especiarias coberta
com açúcar.
Mourisco: relativo aos mouros, povos que habitavam a Mauritânia;
mauritano, mauro, sarraceno. Aquele que não é batizado, que não tem a
fé cristã, infiel.
Múrice: purpurífero, que tem ou produz púrpura (v. púrpura).
Murietur: verbo latino, muriturus, a, um, particípio futuro de morior
(morrer), que vai morrer, que deve morrer.
Nácar: substância branca, brilhante, com reflexos irisados, que se
encontra no interior das conchas.
Néscio: que não sabe; ignorante.
Ninfas: divindades femininas da eterna juventude, que não habitam o
Olimpo e estão ligadas, essencialmente, à terra e à água. As principais
ninfas são: Oceânidas (do alto-mar), Nereidas (dos mares internos),
Potâmidas (dos rios), Náiades (dos ribeiros e dos riachos), Crenéias
(das fontes), Pegéias (das nascentes), Limneidas (dos lagos e das lagoas)
Napéias (dos vales e das selvas), Oréadas (das montanhas e das colinas),
Dríadas e Hamadríadas (das árvores e dos carvalhos). É preciso não
confundir as ninfas com as musas. Depois da guerra dos deuses contra
os Titãs, onde estes foram derrotados, os deuses pediram a Zeus que
criasse divindades para cantar a vitória dos deuses do Olimpo. Zeus
dormiu nove noites seguidas com Mnemósina, a deusa da memória,
filha de Úrano e Géia. Desses amores nasceram as nove musas, as
cantoras divinas, cujo nomes e atributos variavam muito, até serem
fixados na época clássica. A partir daí, temos as seguintes musas:
Calíope (poesia épica), Cilo (história), Érato (lírica coral), Euterpe
(música), Melpômene (tragédia), Polímnia (retórica), Talia (comédia),
Terpsícore (dança), Urânia (astronomia).
No puede moler molino: expressão castelhana, não pode moer
moinho.
Núncio: embaixador do Papa com sentido literal. Sentido figurado:
anunciador, mensageiro.
Obrar: converter em obra; fazer, realizar. Maquinar, urdir.
Opilado: obstrução nasal.
Orate: doido, louco, maluco, idiota.
Paladião: em strictu sensu, Paládio é uma estátua divina com
propriedades mágicas, que representa a deusa Palas Atená. Esta estátua
miraculosa se liga ao destino de Tróia, adquirindo novos sentidos, no

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NADIÁ PAULO FERREIRA

decorrer do tempo. Uma série de relatos giram em torno dela. Conta-se,


por exemplo, que o filho de Príamo, Heleno, aprisionado por Ulisses no
monte Ida, previu que Tróia jamais seria tomada, enquanto o Paládio lá
permanecesse. Justamente por isso, Ulisses, em companhia de Diomedes,
disfarçado em mendigo, entra à noite na cidade e é reconhecido por
Helena, que o ajuda a levar o objeto sagrado. Em outra variante, quem
rouba o Paládio é Diomedes, que fez dos ombros de Ulisses uma escada
para entrar em Tróia e se apoderar do Paládio. Na volta para os
acampamentos, Ulisses tenta lhe roubar a estátua para ficar com os méri-
tos da façanha, tentando, sem êxito, matar Diomedes. Versões tardias
relatam que o verdadeiro Paládio permaneceu em Tróia, tendo sido salvo
por Enéias do incêndio da cidade e guardado no monte Ida. Depois o
Paládio foi levado para a Itália pelo filho de Anquises. Mais tarde é
colocado no templo das Vestais, em Roma, passando a ser o guardião
dessa cidade. Quanto ao seu destino posterior há também várias versões.
A estátua permaneceu com Diomedes que, ao retornar de Tróia, se exilou
na Magna Grécia, entregando o Paládio a Enéias, que estava vivendo no
Lácio. Ficou como espólio de Agamênon, que a teria levado para Argos.
Ficou com o filho de Teseu, Demofonte, que participara da guerra de
Tróia e a recebera como presente de Diomedes. Demofonte, sabendo de
que Agamênom queria a estátua, entregou o Paládio a Búziges, que o
levou para Atenas. Outra variante relata que Demofonte, temendo
Agamênon, mandou confeccionar uma réplica e a colocou em sua tenda.
Assim, quando Agamênon o obrigou a devolver a estátua, Demofonte lhe
entrega a réplica. Uma última versão narra que Diomedes ao voltar da
Tróada, ancorou seus navios no porto ateniense de Falero. Não sabendo
aonde estava, praticou com seus homens uma série de vandalismo.
Demofonte, que na época era rei de Atenas, correu para defender os
cidadãos e, não sabendo contra quem lutava, apossou-se do Paládio.
Retornando a Atenas, derrubou e pisoteou com o seu cavalo um ateniense.
Em função disso, o rei foi julgado por um Tribunal do Paládio que, a
partir daí, passou a se reunir sempre em casos semelhantes.
Palas: epíteto de Atená (Palas Atená), deusa da guerra e protetora das
cidades e dos heróis. É filha de Zeus com sua primeira esposa, Métis.
Segundo a predição, se Métis tivesse uma filha e esta um filho, o neto
de Zeus o destronaria do poder supremo do Olimpo. Zeus, que na época
lutava contra os Gigantes, aconselhado por Úrano e Géia, engoliu a a
criança antes do seu nascimento. Terminado o período de gestação da
criança, Zeus começou a sentir uma dor de cabeça insuportável e pediu
a Hefesto, o deus das forjas, que lhe abrisse a cabeça com um machado.
Assim que sua cabeça foi aberta, saltou Palas, vestida e armada com
uma lança, soltando um grito de guerra. Imediatamente, juntou-se ao
pai na luta contra os Gigantes.
Parca: morte no sentido figurado. Este sentido remonta à mitologia
greco-latina. Após as epopéias homéricas, a Moira, senhora do destino

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POESIA BARROCA

de todos os homens, se dividiu em três moiras, que também são


chamadas de Queres: Cloto, a fiandeira que segura o fuso e vai puxando
o fio da vida, Láquesis, a que enrola o fio da vida e sorteia o nome de
quem deve morrer, e Átropos, a que corta o fio da vida. Em Roma, as
Parcas foram se identificando com as Moiras, incorporando todos os
atributos e funções das deusas gregas da morte.
Parnasso: a palavra significa, possivelmente, casa na montanha ou
monte Párnassos (Parnasso ou Parnaso), cidade montanhosa no centro
de Anatólia. Na mitologia grega, Parnasso, filho de Posídon e da ninfa
Cleodora, herói do monte Parnasso, consagrado a Apolo, é o deus da
ecomancia, isto é, a adivinhação pelo vôo das aves. Segundo uma
variante, as cabras, quando pastavam no monte Parnasso, despertaram a
atenção para uns vapores, que, saindo das entranhas da terra, as deixava
tontas. Os habitantes de Parnasso interpretaram que esses vapores era
uma manifestação divina e passaram a chamá-lo de Delfos, lugar da
cidade sagrada de Apolo, onde o oráculo de Apolo se instalou.
Paroxismo: exaltação máxima de uma sensação ou de um sentimento,
auge, apogeu.
Pélago: mar profundo, abismo marítimo, mar alto, oceano. Sentido
figurado: abismo, imensidade.
Pena: pequena peça de metal com que se escreve.
Penedo: grande rocha, rochedo.
Penha: rocha, pedra grande.
Perla: pérola.
Perro: cão.
Perséfone: filha de Zeus e de Deméter, divindade da terra cultivada,
deusa do trigo, ensinou aos homens a arte de semear, de colher o trigo
e de fabricar o pão. Vivia com as ninfas em companhia de Ártemis e de
Atená, quando seu tio, Hades, perdidamente apaixonado, a raptou com
o auxílio de Zeus. Deméter, depois de muito procurar a filha, descobriu
que ela estava com Hades e resolveu não voltar ao Olimpo e impedir
que toda a vegetação crescesse na terra. Com a intervenção de Zeus,
chegou-se a um acordo: Perséfone passaria quatro meses com Hades e
oito meses com a mãe no Olimpo e na terra, ou seis meses com cada
um deles. Perséfone terá que permanecer algum tempo no Hades,
porque o rei dos infernos colocou em sua boca uma semente de romã,
símbolo da fertilidade, e a obrigou engoli-la, impedindo-a, assim, de
deixar a “outra vida” (v. Core-Perséfone). Há ainda uma versão que
conta que Perséfone se apaixonou por Adônis e passou a dividir seu
tempo entre ele e Hades.
Pevide: semente de vários frutos carnosos: pevide de melão; pevide
de tomate.
Pigarça: uma espécie de pêra, pêra do conde.
Pique: lança antiga de ferro e agudo.
Podengo: cão vagabundo, usado para caçar coelhos.

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NADIÁ PAULO FERREIRA

Polé: antigo instrumento de tortura. Tormento que consistia em


pendurar o torturado, com uma corda grossa de cânhamo, pelos pulsos
e pelas mãos, com pesos de ferro presos nos pés.
Por ao pespego: submeter à força.
Porfia: insistência, pertinácia, teima.
Portento: prodígio, alguma coisa maravilhosa.
Potosi: cidade boliviana famosa por suas ricas minas de prata. Daí,
Grande fonte de riqueza, tesouro.
Primor: qualidade superior, perfeição.
Porfiar: discutir acaloradamente, debater com ardor, teimar, insistir,
obstinar-se. Competir, rivalizar, concorrer.
Prosápia: linhagem, descendência.
Púrpura: cor vermelha.
Quedo: que não se mexe, imóvel, quieto.
Quinhão: a parte de um todo que cabe a cada um dos indivíduos pelos
quais se divide, partilha, cota.
Rabuge: doença de cães, semelhante à sarna.
Raudal: tomado do castelhado, canal do rio onde a água passa muito
rápido.
Repolego: cordão para enfeitar certas peças.
Resoluto: resolvido, decidido, determinado, acertado.
Ressalgar: salgar de novo.
Reverente: reverencioso, que venera, que adora.
Roca: imagens de santos, cuja parte inferior é formada por uma armação
de madeira.
Rosal: roseiral.
Rossio: praça larga.
Rutilante: resplandecente, muito brilhante, esplendoroso.
Safira: pedra preciosa, cuja cor varia do azul celeste ao azul escuro.
Salacega: um monte de bestas.
Salamandra: animal anfíbio da região amazônica.
Sanguessuga: verme que habita as águas doces e tem ventosas com que
se liga aos animais a fim de sugar-lhes o sangue. É usada para provocar
sangrias desde a época romana. Sentido figurado: pessoa que explora
outra pedindo-lhe constantemente dinheiro, chupa-sangue.
Sansão: personagem do Velho Testamento, em “Juízes”. Célebre por
sua força física, se apaixona pela prostituta Dalila, que o trai. Segundo a
versão bíblica, os príncipes dos filisteus ofereceram cada um mil cem
moedas de pratas para que Dalila descobrisse o segredo da força
descomunal de Sansão. Dalila pede que Sansão lhe abra o coração e ele
lhe confessa que toda a sua força se deve a nunca ter cortado os cabelos.
Então ela o fez dormir sobre seus joelhos, e chamou a um homem e
rapou-lhe as sete tranças do cabelo de sua cabeça (...) e retirou-se
dele a sua força (VELHO TESTAMENTO, /s.d./, capítulo 17, p. 256).
Sátiro: também chamados de silenos, são divindades menores da

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POESIA BARROCA

natureza, que integram o cortejo de Dioniso. Seres híbridos, ora homens-


cavalos, ora homens-bodes, são representados com um pênis enorme,
sempre em ereção. Viviam nos bosques e estavam sempre perseguindo
as Ninfas para satisfazer seu desejo sexual. Quando Dioniso foi raptado
pelos piratas etruscos, acabaram prisioneiros do Ciclope Polifemo,
tornando-se seus escravos, até que foram libertados por Ulisses.
Sazonada caramunha: experimentada lamentação (G.M., “Epílogos”).
Sepulcro: sepultura.
Seráfico: relativo aos serafins, anjos da primeira hierarquia.
Sereias: filhas do rio Aquelôo (rio que corria entre a Etólia e a
Acarnânia, um dos mais célebres e mais venerados da Grécia antiga,
posteriormente personificado como deus-rio, o mais velho dos filhos
de Oceano e de Tétis) e de Melpôneme (musa que preside à música).
Segundo versão mais recente, nasceram do sangue de Aquelôo, ferido
por Heracles (Hércules), na disputa por Djanira. As Sereias eram jovens
belíssimas, que participavam do séquito de Core-Perséfone (v. verbete).
Quando Hades ou Plutão rapta Core-Perséfone. Deméter, indignada
porque os deuses não impediram o rapto de sua filha, transforma as
Sereias em almas-pássaros, dando-lhe asas para que procurassem Core-
Perséfone em toda a terra. Outra versão conta que Afrodite lhes tirou a
beleza, porque elas desprezavam o amor. Estas variantes explicam as
características físicas das Sereias: cabeça de mulher, tronco com asas
de pássaro e da cintura para baixo, forma de peixe. As Sereias acabaram
se transformando em donzelas devoradoras que atraíam e enfeitiçavam
os homens com seus cantos para depois matá-los.
Sesudo: grave, circunspeto. Prudente, sensato, moderado.
Sezão: febre intermitente ou periódica:
Simonia: ato de Simão, isto é, Simão, o Mago, que pretendeu comprar
a S. Pedro o dom de conferir o Espírito Santo. Daí, tráfico ou venda
ilícitos de coisas sagradas ou espirituais, tais como sacramentos,
dignidades, benefícios eclesiásticos, etc.
Simples: ingredientes que entram na composição de drogas (G. M. “À
cidade da Bahia”).
Solilóquio: fala de alguém consigo mesmo; monólogo.
Sopear: estorvar o movimento de, embaraçar.
Sorvado: meio podre (fruto).
Surcar: o mesmo que sulcar, ato ou preparação de sulcar, cortar as
águas de, navegar por.
Talhe: feitio ou feição de alguma coisa.
Tambaca: liga de cobre e zinco. Mistura fundida de ouro e prata. Ouro
falso.
Tântalo: filho de Zeus e de Pluto, o deus da riqueza, rei da Frígia ou
Lídia. Tântalo comete uma série de atos que deixam os deuses
indignados: recusou-se a devolver a Hermes o cão de Zeus, revelou
aos homens alguns segredos divinos, roubou o néctar e a ambrosia do

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Olimpo para oferecer aos homens e, querendo testar a onisciência dos


deuses, matou o próprio filho, Pélops, e o ofereceu como saborosa
iguaria aos deuses. Em função deste último crime, Zeus decidiu colocá-
lo para sempre no Tártaro, lugar das profundezas da terra, mais abaixo
do Hades, condenando-o ao suplício da fome e da sede.
Tarasca: boneco que representa um animal monstruoso, e que era
exibido no Pentecostes em Tarascon e noutras cidades do S. da França.
Monstro, mulher feia e de mau gênio.
Tento: atenção, cuidado.
Tibieza: fraqueza.
Tíbio: fraco, escasso.
Torpeza: procedimento ignóbil, indigno, torpe.
Traslado: imagem, efígie, retrato.
Travento: que tem sabor amargo.
Treta: ardil, estratagema.
Tropel: ruído ou tumulto produzido por multidão a andar ou a se agitar.
Unha: com o sentido de roubalheira (G.M. “Epílogos”).
Velásquez: pintor espanhol (Sevilha, 1599 – Madrid, 1660). A maioria
de suas telas se encontra no Museu do Prado (cenas religiosas, históricas
e de interiores, retratos, nus). O quadro As Meninas é considerado a sua
obra-prima. Os quadros mais conhecidos e divulgados são: Os Beberrões,
A Rendição de Breda, A Adoração dos Magos, A Vênus do Espelho e
os retratos da Infanta Margarida e do Infante Baltasar Carlos.
Ventura: destino, acaso, sorte.
Venturoso: em que há ventura ou risco, perigoso.
Vênus: deusa romana, corresponde, na mitologia grega, à Afrodite, a
que surge das ondas do mar. Em relação a sua genealogia, temos uma
dupla versão. Em Homero, na Ilíada, aparece como sendo filha de
Dione, a brilhante, a luminosa, e de Zeus; em Hesíodo, na Teogonia
Trabalhos e Dias, sua origem está ligada à mutilação de Úrano (Céu).
Todos os filhos que nasciam da união de Géia (Terra) com Úrano eram
devolvidos a terra, porque Úrano tinha medo de ser destronado por um
deles. Géia, pediu ajuda aos filhos - Titãs, Cíclopes e Hecatonquiros –
e só Crono, que odiava ao pai, resolve ajudá-la. À noite, quando Úrano
foi se deitar com Géia, Crono lhe corta os testículos, jogando-os no
mar. Estes formaram uma espuma da qual nasceu Afrodite. Em O
Banquete de Platão, a deusa do amor se biparte em Afrodite Urânia, a
Celeste, – a inspiradora do amor etéreo, imaterial e supremo – e Afrodite
Pandêmia – a inspiradora dos amores vulgares e carnais.
Vesúvio: vulcão da Itália que destruiu a cidade de Pompéia.
Vobis bona: vosso bem.
Zéfiro: vento do ocidente, vento suave e fresco; aragem, brisa.

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POESIA BARROCA

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