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VAI E POE

UMA
SENTINELA
ffARPER
LEE

VAI E POE
UMA
SENTINELA
Tradução de
Isabel Nunes e Helena Sobral

� EDITORIAL PRESENÇA
FICHA TÉCNICA

Título original: Go Seta Watchman


Autora: Harper Lee
Copyright© Harper Lee 2015
Tradução© Editorial Presença, Lisboa, 2015
Tradução: Isabel Nun es e Helena Sobral
Ilustração e design da capa:Jarod Taylor
Fotografia da autora: Mi chael Brown
Composição, impressão e acabamento: Multitipo - Artes Gráficas, Lda.
l.ª edição, Lisboa, outubro, 2015
Depósito legal n.º 397 958/15

Reservados todos os direitos


para a língua portuguesa (exceto Brasil) à
EDITORIAL PRESENÇA
Estrada das Palmeiras, 59
Queluz de Baixo
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Em memória de Mr. Lee e de Alice
PARTE I
1

Desde a partida de Atlanta que olhava pela janela da carrua­


gem-restaurante com um deleite quase físico. Sentada à mesa do
pequeno-almoço, bebia o café enquanto observava as últimas ele­
vações da Geórgia a ficarem para trás e a darem lugar à terra ver­
melha e, com ela, às casas de telhado de zinco plantadas nos pátios
de terra varrida e nos quintais, onde crescia a inevitável verbena
dentro dos pneus pintados de branco. Esboçou um sorriso largo
quando avistou a primeira antena de televisão erguida no topo de
uma casa de negros, sem pintura, e a sua alegria aumentou ao veri­
ficar que se multiplicavam.
Jean Louise Finch costumava fazer aquela viagem de avião, mas
na quinta deslocação anual para casa decidiu ir de comboio de Nova
Iorque até ao ramal de Maycomb. Por um lado, apanhara um susto
de morte da última vez que andara de avião, pois o piloto decidira
voar pelo meio de um tornado. Por outro lado, ir de avião signi­
ficava que o pai tinha de se levantar às três da manhã e conduzir
cento e cinquenta quilómetros para a ir buscar a Mobile, ao que
se seguia um dia normal de trabalho. Ele tinha setenta e dois anos
e já não era justo obrigá-lo a tal.
Estava satisfeita por ter decidido ir de comboio. Os comboios
haviam mudado desde a sua infância, e a novidade da experiência
divertia-a: qual génio anafado, um bagageiro materializou-se quando
ela carregou num botão da parede; com uma ordem sua, uma bacia
de aço inoxidável destacou-se de outra parede, e havia uma sanita
onde se podia apoiar os pés. Decidiu não se deixar intimidar pelos

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vários avisos impressos em redor do compartimento - designado
por couchette -, mas, quando se fora deitar na noite anterior, con­
seguira ficar entalada contra a parede porque ignorara a indicação
de PUXAR ESTA ALAVANCA SOBRE OS SUPORTES, situação
remediada pelo funcionário para seu embaraço, pois tinha o hábito
de dormir apenas com a parte de cima do pijama.
Felizmente, o homem patrulhava o corredor quando aquela
armadilha se fechara com ela lá dentro. «Eu tiro-a daí, miss», disse
em resposta às pancadas que se ouviam lá de dentro. «Não, por
favor » , respondera ela. «Diga-me só como faço para sair. » «Con­
sigo fazê-lo de costas voltadas » , afiançara o homem e assim fora.
Quando acordou na manhã seguinte, o comboio serpenteava,
ruidoso, pelos ramais de Atlanta, mas, obedecendo a um outro
aviso na carruagem, deixou-se ficar na cama até ver passar o sinal de
College Park. Vestiu-se, envergando as roupas de Maycomb: calças
cinzentas, uma blusa preta sem mangas, meias brancas e mocassins.
Embora ainda faltassem quatro horas para chegar, conseguia ouvir
a fungadela desagradada da tia.
Bebia a sua quarta chávena de café quando o Crescem Limited
grasnou, qual ganso gigante, ao seu homólogo, que corria para
norte, e ribombou através do Chattahoochee à entrada do Alabama.
O Chattahoochee é um rio largo, raso e lamacento, naquele
dia com pouca água. Um banco de areia amarelado reduzira-lhe a
corrente a um fio de água. Talvez cante no inverno, pensou. Não me
lembro de um único verso desse poema. Tocando flauta pelos vales, bravio? 1
Não. Foi escrito para uma ave aquática ou para uma queda-d'água? 2
Reprimiu firmemente a sua tendência para uma certa turbulên­
cia ao refletir que o poeta Sidney Lanier devia ter sido um tanto
parecido com o seu primo Joshua Singleton St. Clair, há muito
desaparecido, e cujos temas literários se estendiam do Black Belt3

1
Primeiro verso do poema «lntroduction to the Songs of Innocence», de
William Blake. (NT)
2
Confusão entre os termos «waterfowl» e «wacerfall». (NT)
3
Zona do Sudeste dos Estados Unidos com uma extensa população afro­
-americana que vive em situação de pobreza, com grandes deficiências a nível
de saúde, educação e emprego. (NT)

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até Bayou La Batre4 . A tia de Jean Louise costumava lembrar-lhe
que o primo Joshua era um exemplo familiar que não se devia
desaprovar com ligeireza: fora um homem com uma figura esplên­
dida, um poeta, desaparecido no auge da vida, e era bom que Jean
Louise se recordasse de que era um crédito para a família. As suas
fotografias não envergonhavam os seus: fazia lembrar o descabelado
poeta e dramaturgo inglês Algernon Swinburne.
Jean Louise sorriu para si própria ao lembrar-se do pai a contar­
-lhe o resto da história. O primo Joshua desaparecera certamente,
não pela mão de Deus mas pelas hostes de César.
Ao frequentar a universidade, o primo Joshua estudava dema­
siado e pensava demais; na verdade, imaginava-se como uma
personagem literária saída diretamente do século XIX. Envergava
uma capa escocesa e usava botas militares que mandara fazer a um
ferreiro segundo um desenho seu. Sentiu-se frustrado com as auto­
ridades ao disparar sobre o presidente da universidade, o qual, na
sua opinião, não passava de um especialista de limpeza de esgotos.
Isso era certamente verdade, mas tratava-se apenas de uma desculpa
frívola para atacar alguém com uma arma mortal. Depois de uma
quantia considerável ter mudado várias vezes de mão, o primo
Joshua foi levado e internado numa instituição estatal para os inim­
putáveis, onde permaneceu pelo resto dos seus dias. Constou que
se mostrava razoável em todas as questões até alguém mencionar o
nome do presidente, momento em que o seu rosto se contorcia e ele
assumia a posição de um grou-branco, a qual mantinha por oito ou
mais horas. Nada nem ninguém conseguia levá-lo a baixar a perna
até ele se ter esquecido do homem. Nos dias límpidos, lia em grego
e deixou um fino volume de versos, impressos em privado por uma
firma de Tuscaloosa. A poesia era tão avançada em relação ao seu
tempo que ainda ninguém a entendera, mas a tia de Jean Louise
exibia-a casualmente em grande destaque numa mesa da sala.
Riu-se em voz alta e depois olhou em volta a ver se alguém
a ouvira. O pai tinha uma forma especial de minar os sermões da

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Vila piscatória do Alabama que vive da indústria de transformação de
peixe e marisco. (NT)

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irmã sobre a superioridade inata de qualquer Finch. Contava sem­
pre à filha o resto da história, calmamente e com toda a solenidade,
mas ela pensava detetar por vezes um brilho claramente profano no
olhar de Atticus Finch, ou seria apenas a luz a refletir-se nas suas
lentes? Nunca teve a certeza.
Os campos e o comboio haviam abrandado para um rolar suave,
e, da sua janela até ao horizonte, Jean Louise nada mais avistava
para além de pastagens e vacas pretas. Interrogou-se por que
motivo nunca considerara bonito o seu país.
Em Montgomery, a estação aninhava-se numa curva do rio
Alabarna, e, ao sair do comboio para esticar as pernas, o regresso
do que lhe era familiar, com a sua monotonia, a luz e os odores
curiosos, veio ao seu encontro. Falta alguma coisa, pensou. Os
rolamentos aquecidos, é isso. Havia um homem que passava com uma
alavanca e se enfiava debaixo do comboio. Ouvia-se um estrépito seguido
de um silvo, e erguia-se um fumo branco que nos fazia pensar que nos
encontrávamos no interior de um aquecedor de pratos. Agora estas coisas
funcionam a óleo.
Sem razão aparente, invadiu-a um medo antigo. Havia vinte
anos que não voltava àquela estação, mas quando era criança e fora
à capital com Atticus, sentira-se aterrorizada, não fosse o com­
boio, que balançava, precipitar-se pela margem do rio e afogá-los
a todos. Quando, porém, voltou a embarcar, rumo a casa, esqueceu­
-se disso.
O comboio sacolejava através de pinhais e apitou, zombeteiro,
a urna peça de museu em forma de campânula, pintada de cores
vivas estacionada numa clareira. Ostentava o letreiro de urna
empresa madeireira, e o Crescem Lirnited podia tê-la engolido
inteira e ainda lhe sobrava espaço. Greenville, Evergreen, ramal
de Maycornb.
Dissera ao revisor para não se esquecer de a deixar sair e, por­
que ele era já velhote, Jean Louise contava com urna brincadeira:
iria entrar no ramal de Maycornb corno se fosse perseguido por
demónios e parava o comboio quatrocentos metros para lá da
pequena estação. Depois, quando se despedisse dela, iria dizer-lhe
corno lamentava, que quase se esquecera. Os comboios mudavam,

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os revisores não. Brincar com as jovens em paragens a pedido era
uma marca da profissão, e Atticus, que conseguia prever as ações
de todos os revisores de Nova Orleães até Cincinnati, esperá-la­
-ia, consequentemente, a menos de seis passos do local onde iria
desembarcar.
O seu lar era o condado de Maycomb, uma divisão arbitrária
com cerca de cem quilómetros de comprimento e menos de
cinquenta no seu ponto mais largo, uma terra bravia semeada
de lugarejos, sendo Maycomb, a sede do condado, o maior. Em
termos históricos, o condado de Maycomb mantivera-se, até uma
altura comparativamente recente, tão isolado do resto da nação que
alguns dos seus cidadãos, desconhecendo as predileções políticas do
Sul nos últimos noventa anos, continuavam a votar nos republi­
canos. Os comboios não passavam por lá - o ramal de Maycomb,
uma designação de cortesia, localizava-se no condado de Abbott,
a uma distância de trinta quilómetros. O serviço de autocarros era
inconstante e parecia não ter nenhum destino específico. Todavia, o
governo federal impusera a construção de uma ou duas autoestradas
pelo meio dos pântanos, dando assim aos cidadãos a oportunidade
de partir de livre vontade. Pouca gente, porém, aproveitava essas
estradas. Por que motivo o haveriam de fazer? Para quem não que­
ria muito, o que existia era bastante.
O condado e a cidade haviam recebido o nome de um certo
coronel Mason Maycomb, um homem cuja autoconfiança inapro­
priada e excessiva obstinação tinham dado origem à perplexidade
e à consternação de todos os que com ele cavalgaram nas guerras
contra os índios Creek. O território em que operava era vagamente
montanhoso a norte e plano a sul, nos limites da planície costeira.
O coronel Maycomb, certo de que os índios odiavam lutar em
terras planas, esquadrinhou o território até ao seu limite norte
em busca deles. Quando o seu general descobriu que Maycomb
vagueava pelos montes enquanto os Creeks se escondiam nas matas
de pinheiros do sul, enviou um batedor índio amigável ao coronel
com a seguinte mensagem: «Avance para sul, c'os diabos. » May­
comb, convencido de que se tratava de um ardil dos Creeks para
o apanhar (então não havia um demónio de olhos azuis e cabelos

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ruivos a comandá-los?), aprisionou o batedor índio e deslocou-se
ainda mais para norte, até as suas forças se perderem sem remédio
nas antigas florestas, onde permaneceram até ao fim das guerras,
em total desnorte.
Depois de terem passado os anos suficientes para o convencer
de que talvez a mensagem tivesse sido verdadeira, o coronel deu
início a uma marcha resoluta para sul. Durante o trajeto, as suas
tropas encontraram colonos que se deslocavam para o interior e que
lhes disseram que as guerras contra os índios tinham terminado.
As tropas e os colonos mostraram-se suficientemente amigáveis e
transformaram-se nos antepassados de Jean Louise Finch. O coronel
Maycomb continuou a avançar até ao que é presentemente Mobile,
a fim de se certificar de que as suas façanhas recebiam o crédito
que lhes era devido. A versão que ficou para a história não coincide
com a verdade, mas são estes os factos, uma vez que foram passando
de boca em boca ao longo dos anos, e todos os filhos de Maycomb
os conhecem.
- .. . vá buscar as suas malas, miss - disse o bagageiro. Jean
Louise seguiu-o da carruagem-restaurante até ao seu comparti­
mento, onde tirou dois dólares da carteira: um que já era habitual
e outro por a ter libertado na noite anterior. Como era esperado, o
comboio passou pela estação como se fosse perseguido por demó­
nios e acabou por parar cerca de cento e oitenta metros mais à
frente. O revisor apareceu a sorrir e disse que lamentava, que quase
se esquecera. Jean Louise devolveu-lhe o sorriso e esperou, impa­
ciente, que o bagageiro montasse o degrau amarelo. Ele ajudou-a
a descer, e ela deu-lhe as duas notas.
O pai não estava à sua espera.
Olhou ao longo da linha para a estação e viu um homem alto,
de pé, na pequena plataforma, que saltou para baixo e correu ao
seu encontro.
Ele deu-lhe um abraço apertado, afastou-a um pouco, bei­
jou-a com força na boca e depois com mais ternura. - Aqui não,
Hank - murmurou ela, muito agradada.
- Cala-te, menina - retorquiu ele, segurando-lhe o rosto.
- Até te beijo nos degraus do tribunal se me apetecer.

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O dono do direito a beijá-la nos degraus do tribunal chamava­
-se Henry Clinton, um amigo de longa data e companheiro do
irmão, que, se continuasse a beijá-la assim, se transformaria em seu
marido. Ama quem quiseres, mas casa-te com os teus era, para ela,
uma máxima quase instintiva. Henry Clinton pertencia aos seus e,
naquele momento, a máxima não lhe parecia particularmente dura.
Caminharam de braço dado pela linha para ir buscar a mala.
- Como está o Atticus? - perguntou ela.
- Hoje as mãos e os ombros estão a fazê-lo passar um mau
bocado.
- Não pode guiar quando está assim, pois não?
Henry dobrou os dedos da mão direita até meio e disse: - Não
consegue fechá-los mais do que isto. Miss Alexandra tem de lhe
apertar os sapatos e abotoar-lhe a camisa quando está assim. Nem
sequer consegue segurar a lâmina de barbear.
Jean Louise abanou a cabeça. Era demasiado velha para se
insurgir contra tal iniquidade, mas demasiado nova para aceitar
a doença incapacitante do pai sem protesto. - Não há nada que
eles possam fazer?
- Sabes bem que não - respondeu Henry. - Ele toma quatro
mil e quinhentos miligramas de aspirina por dia e nada mais.
Henry pegou na mala pesada, e dirigiram-se ao carro. Jean
Louise pensou como reagiria quando chegasse a sua vez de ter
dores quase todos os dias. Certamente não seria como Atticus: se
lhe perguntassem como estava, ele daria uma resposta, mas nunca
se queixava. O seu temperamento não mudara e, assim, para saber
como se sentia, era necessário perguntar-lhe.
Henry só o descobriu por acaso. Um dia, estavam eles no cofre
dos registos do tribunal, em busca de uma certidão predial, quando
Atticus puxou de um pesado livro de hipotecas, ficou branco como
a cal e o deixou cair. «Que se passa? » , perguntara Henry. «Artrite
reumatoide. Podes pegar-lhe tu?», esclareceu Atticus. Henry per­
guntou-lhe havia quanto tempo sofria da doença, e Atticus respon­
deu seis meses. Jean Louise sabia? Não. Então, era melhor contar-lhe.
«Se o fizeres, ela vem para cá tentar cuidar de mim. O único remédio
é não nos deixarmos vencer. » E o assunto ficou encerrado.

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- Queres guiar? - perguntou Henry.
- Não sejas tolo - retorquiu ela. Embora fosse uma condutora
razoável, odiava manipular objetos mecânicos mais complicados
que um alfinete de segurança: dobrar cadeiras de jardim era uma
fonte de profunda irritação; nunca aprendera a andar de bicicleta
nem a escrever à máquina e pescava com uma vara. O seu desporto
favorito era o golfe porque o princípio essencial se limitava a um
pau, uma bola pequena e um estado de espírito.
Verde de inveja, observou a facilidade com que ele dominava o
automóvel. Os carros são escravos dele, pensou. - Direção assistida?
Transmissão automática? - quis saber.
- Podes crer - disse ele.
- Bem, e se tudo isso se avariar e não tiveres mudanças para
meter? Seria um sarilho, não é?
-Mas nada se vai avariar.
-Como é que sabes?
- Chama-se fé. Anda cá.
Fé na General Motors. Pousou a cabeça no ombro dele.
- Hank - acabou por dizer -, o que é que aconteceu na
verdade?
Tratava-se de uma velha piada entre ambos. Uma cicatriz rosada
começava por baixo do olho direito, passava pelo canto do nariz e
atravessava-lhe o lábio superior em diagonal. Por baixo do lábio,
havia seis dentes da frente falsos que nem a própria Jean Louise
conseguia convencê-lo a tirar para lhe mostrar. Voltara com eles da
guerra. Um alemão, mais para exprimir o seu desagrado com o fim
do conflito do que por qualquer outra razão, golpeara-lhe o rosto
com a coronha de uma espingarda. Ela decidira fingir que acreditava
na história: com armas que disparavam a longa distância, «fortalezas
voadoras» B-17, bombas V e coisas semelhantes, era provável que
Henry nunca tivesse estado nem sequer perto dos alemães.
- Está bem, querida - disse ele. - Estávamos numa cave em
Berlim. Toda a gente bebera demais, e começou uma luta. Gostas
de ouvir coisas verosímeis, não é? E agora, casas comigo?
- Ainda não.
- Porquê?

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- Quero ser como o doutor Schweitzer e divertir-me até chegar
aos trinta.
- E olha que ele bem se divertiu - comentou Henry, sombrio.
Jean Louise aninhou-se debaixo do seu braço. - Sabes bem
o que quero dizer - declarou ela.
- Pois sei.
Não havia jovem melhor que Henry Clinton, segundo as pes­
soas de Maycomb, e Jean Louise concordava. Nascera na ponta sul
do condado. O pai abandonara a mãe pouco depois de Henry nas­
cer, e ela trabalhara dia e noite na sua pequena loja numa encru­
zilhada para que Henry pudesse frequentar as escolas públicas de
Maycomb. Desde os seus doze anos que vivia como hóspede do
outro lado da rua, em frente da casa dos Pinches, e só este facto
colocava-o num plano mais elevado: era dono de si próprio, livre
da autoridade de cozinheiras, capatazes e pais. Também era quatro
anos mais velho que ela, o que, naquele tempo, fazia diferença.
Ele gozava com ela, ela adorava-o. Quando tinha catorze anos,
a mãe morrera, deixando-lhe praticamente nada. Atticus Finch
cuidou do pouco dinheiro que resultara da venda da loja - as
despesas do funeral levaram grande parte -, acrescentou algum
seu em segredo, e arranjou trabalho a Henry como marçano no
Jitney Jungle depois da escola. O rapaz terminou o liceu e foi
para a tropa; depois da guerra, frequentou a universidade, onde
cursou Direito.
Por volta dessa altura, o irmão de Jean Louise morreu subi­
tamente, e, passado esse pesadelo, Atticus, que sempre pensara
deixar o seu escritório ao filho, começou à procura de outro rapaz.
Empregar Henry foi uma coisa natural e, a seu tempo, o jovem
transformou-se numa espécie de assistente, nos seus olhos e nas suas
mãos. Sempre respeitara Atticus Finch, e, em breve, o respeito deu
lugar à afeição. Henry considerava-o um pai.
Jean Louise, porém, não era considerada uma irmã. Nos anos
em que esteve ausente, na guerra e na universidade, ela pas­
sara de uma rapariga agressiva e irritante que vestia jardineiras
a uma reprodução razoável de um ser humano. Começou a sair
com ela durante a visita anual de duas semanas a casa e, embora

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ela ainda se movesse como um rapaz de treze anos e repudiasse
a maior parte dos ornamentos usados pelas mulheres, ele encon­
trava-lhe algo tão intensamente feminino que se apaixonou.
Na maior parte do tempo, era agradável olhar para ela, e a sua
companhia era cativante, mas não era certamente uma pessoa
fácil. Atormentava-a uma certa inquietude espiritual que ele
não entendia, mas sabia que, para si, era ela a tal. Protegê-la-ia.
Casaria com ela.
- Farta de Nova Iorque? - perguntou.
- Não.
- Dá-me rédea solta estas duas semanas que eu faço-te ficar
farta dela.
- Isso é uma sugestão imprópria?
- Sim.
- Então, vai pro inferno.
Henry parou o carro. Desligou o botão da ignição, virou-se e
olhou para ela. Jean Louise sabia quando ele ficava sério em relação
a alguma coisa: o cabelo muito curto eriçava-se qual escova irritada,
corava e a cicatriz avermelhava-se.
- Querida, queres que fale como um cavalheiro? Miss Jean
Louise, alcancei já um estatuto económico que me permite susten­
tar duas pessoas. Tal como no Israel do Antigo Testamento, laborei
sete anos nas vinhas da universidade e nas pastagens do escritório
do teu pai por ti...
- Vou dizer ao Atticus que te peça mais sete anos.
- Que horror.
- Além disso - prosseguiu ela -, tratava-se de Jacob. Não,
eles eram o mesmo. Mudavam sempre de nome de três em três
versos. Como está a tia?
- Sabes muitíssimo bem que ela está bem há trinta anos. Não
mudes de assunto.
As sobrancelhas dela vibraram. - Henry - disse afetada­
mente -, posso ter um caso contigo, mas não me caso.
Era isso mesmo.
- Não sejas criança, Jean Louise! - balbuciou e, esquecendo-
-se da última inovação da General Motors, fez menção de agarrar a

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alavanca das mudanças e carregou com o pé, em busca da embraia­
gem. Como isso não resultasse, torceu violentamente a chave da
ignição, premiu alguns botões, e o grande carro deslizou lenta e
suavemente pela autoestrada.
- É lento a arrancar, não é? - comentou ela. - Não presta
para conduzir na cidade.
Henry mirou-a, furioso. - Que queres dizer com isso?
Daí a pouco aquilo estaria transformado numa verdadeira dis­
cussão. Ele falara a sério. O melhor seria deixá-lo furioso para que
ficasse em silêncio, de forma a ela poder pensar no assunto.
- Onde é que arranjaste essa gravata horrível? - perguntou.
Agora.
Estava quase apaixonada por ele. Não, isso é impossível, pensou.
Ou se está ou não se está. O amor é a única coisa inequívoca do mundo.
Há certamente diversas formas de amor, mas com todas elas é uma premissa
de sim ou sopas.
Jean Louise era o tipo de pessoa que, quando confrontada
com uma saída fácil, escolhia sempre a mais difícil. A saída
fácil naquele caso seria casar com Hank e deixá-lo trabalhar para
ela. Passados uns anos, quando as crianças lhe chegassem à cin­
tura, apareceria o homem com quem devia ter casado. Haveria
corações em dúvida, febres e ansiedade, longos olhares trocados
nos degraus dos correios e infelicidade para todos. Terminados
os gritos e as moralidades, restaria apenas mais um caso amoroso
indigno, à moda dos membros do country club de Birmingham, e
um inferno privado, criado por eles com os últimos eletrodomés­
ticos Westinghouse.
Não. De momento, iria prosseguir o caminho pedregoso das
solteiras. Dedicou-se à tarefa de restaurar a paz com honra.
- Querido, lamento, lamento a sério - disse, o que era
verdade.
-Não faz mal - respondeu Henry, dando-lhe uma palmada
no joelho. - É só que às vezes fico com vontade de te matar.
- Sei bem que sou odiosa.
Henry mirou-a. - És esquisita, querida. Não consegues fingir.
Ela olhou para ele. - De que é que estás a falar?

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- Bom, como regra geral, a maior parte das mulheres, antes
de os apanharem, mostra aos seus homens um rosto sorridente e
agradável. Escondem os pensamentos. Mas tu, querida, quando
te sentes odiosa, és mesmo odiosa.
- Não é mais justo para um homem poder perceber em que é
que se está a meter?
- Sim, mas não vês que assim nunca apanhas homem nenhum?
Ela mordeu a língua perante aquela evidência e disse: - E como
é que eu faço para ser uma feiticeira?
Henry começou a falar, entusiasmado. Aos trinta anos, gostava
de dar conselhos, talvez por ser advogado. - Primeiro - afirmou
com toda a calma -, cala-te. Não discutas com um homem, em
especial se souberes que lhe podes ganhar. Sorri muito. Fá-lo sentir­
-se grande. Diz-lhe como é maravilhoso e serve-o.
Ela lançou-lhe um sorriso vivo e disse: - Hank, concordo com
tudo o que disseste. És o indivíduo mais perspicaz que conheço,
tens um metro e noventa e será que posso acender-te o cigarro?
Que tal?
- Horrível.
E ficaram amigos de novo.

22
2

Atticus Finch sacudiu o punho esquerdo da camisa para fora


e em seguida ajeitou-o para trás com cautela. Havia dias em que
usava dois relógios, e aquele era um deles: o antigo relógio de cor­
rente - com o qual os filhos tinham crescido e a que se tinham
habituado - e um no pulso. O primeiro usava-o por hábito, e o
outro para ver as horas quando não conseguia mover os dedos para
os levar ao bolso. Fora um homem grande antes de a idade e a
artrite o terem definhado até uma estatura normal. Fizera setenta
e dois anos no mês anterior, mas Jean Louise pensava sempre nele
como se ainda andasse pelos cinquenta e tantos anos - não se
lembrava dele mais novo e parecia-lhe que não envelhecia.
Estava sentado numa cadeira frente a uma estante de partituras
em metal, sobre a qual repousava O Estranho Caso de Alger Hiss.
Atticus inclinava-se ligeiramente para a frente a fim de melhor
criticar o que estava a ler. Um estranho não veria qualquer abor­
recimento no seu rosto, pois era raro demonstrá-lo; um amigo,
porém, ficaria à espera de que em breve soltasse um seco «Hum»:
as sobrancelhas arqueadas e a boca numa linha fina e agradável
denunciavam-no.
- Hum - proferiu.
- O que foi, querido? - quis saber a irmã.
- Não compreendo como é que um homem destes pode ter a
lata de exprimir as suas opiniões sobre o caso Hiss. É como se fosse
o Fenimore Cooper a escrever Waverley, o romance de Walter Scott.
- Porquê, querido? - inquiriu ela.

23
- Possui uma fé quase infantil na integridade dos funcionários
públicos e parece pensar que o Congresso equivale a uma aristo­
cracia do funcionalismo. Não tem qualquer entendimento da polí­
tica americana.
A irmã espreitou a sobrecapa do livro. - Não conheço esse
autor - declarou, perentória, reprovando o livro para todo o
sempre. - Bom, não te preocupes com isso, querido. Eles não
deveriam já ter chegado?
- Não estou preocupado, Zandra. - Divertido, Atticus olhou
de relance para a irmã. Era uma mulher impossível, mas sempre
era melhor que ter Jean Louise sempre em casa e infeliz. Quando
a filha ficava infeliz, costumava rondar, à espreita, e Atticus gos­
tava das suas mulheres descontraídas, sem estarem constantemente
a despejar cinzeiros.
Ouviu-se um automóvel virar para o acesso à garagem, duas
portas a bater, seguindo-se a porta da frente. Com cuidado, afastou
a estante com os pés, tentou em vão erguer-se do cadeirão fundo
sem a ajuda das mãos, conseguiu-o numa segunda tentativa e estava
a equilibrar-se quando Jean Louise chegou ao pé dele. Aguentou o
abraço e retribuiu-o o melhor que pôde.
- Atticus... - cumprimentou ela.
- Põe a mala dela no quarto, por favor, Hank - disse Atticus
por cima do ombro da filha. - Obrigado por teres ido buscá-la.
Jean Louise deu um beijo fugaz à tia no ar, tirou um maço
de cigarros da mala de mão e arremessou-a para cima do sofá.
- Como é que vai do reumatismo, tia?
- Um pouco melhor, querida.
- E o seu, Atticus?
- Um pouco melhor, querida. Fizeste boa viagem?
- Sim, pai. - Deixou-se cair no sofá. Hank regressou das suas
tarefas, disse-lhe: «Chega-te para lá», e sentou-se a seu lado.
Jean Louise bocejou e espreguiçou-se. - Novidades? - inqui­
riu. - Tudo o que consigo saber é de ler nas entrelinhas do May­
comb Tribune. Ninguém me escreve.
Alexandra informou: - Viste a notícia da morte do filho do
primo Edgar. Foi uma coisa muito triste.

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Jean Louise viu Henry e o pai trocarem um olhar. Atticus expli­
cou: - Chegou à tardinha todo transpirado do treino de futebol
e assaltou o frigorífico dos Kappa Alpha. Comeu uma dúzia de
bananas acompanhadas de meio litro de uísque. Morreu uma hora
depois. Não foi triste, de maneira alguma.
Jean Louise exclamou: - Ena.
Alexandra interveio: - Atticus! Sabes bem que era o filho que­
rido do Edgar.
Henry confirmou: - Foi terrível, Miss Alexandra.
- O primo Edgar ainda a corteja, tia? - perguntou Jean
Louise. - Parece que depois de onze anos já a deveria ter pedido
em casamento.
Atticus arqueou as sobrancelhas num sinal de aviso. Observou
o mau génio a apossar-se da filha e a dominá-la por completo: de
sobrancelhas arqueadas, tal como as suas, os olhos de pálpebras
pesadas abriam-se-lhe, redondos, e um dos cantos da boca subia
perigosamente. Quando ficava assim, só Deus e Robert Browning
sabiam o que poderia dizer.
A tia protestou. - Francamente, Jean Louise, o Edgar é nosso
primo direito, meu e do teu pai.
- Nesta altura do campeonato, isso não devia fazer grande di­
ferença, tia.
Atticus apressou-se a perguntar: - E como estava a grande
cidade quando a deixaste?
- Agora quero é saber desta grande cidade. Vocês os dois nunca
me escrevem nada sobre os podres. Tia, confio em si para me dar as
notícias de um ano em quinze minutos. - Deu uma palmadinha
no braço de Henry, mais para evitar que iniciasse uma conversa
de caráter profissional com Atticus que por outro motivo qual­
quer. Ele, por seu turno, interpretou-a como um gesto carinhoso
e retribuiu.
- Bem.. . - começou Alexandra -, bem, deves ter ou­
vido o que se passou com os Merriweathers. Isso é que foi mui­
to triste.
- O que aconteceu?
- Separaram-se.

25
- O quê? - exclamou Jean Louise, genuinamente espantada.
- Quer dizer, divorciaram-se mesmo?
- Sim - assentiu a tia.
Virou-se para o pai. - Os Merriweathers? Estavam casados há
quanto tempo?
Atticus fitou o teto a tentar recordar-se. Era um homem pre­
ciso e exato. - Quarenta e dois anos - proferiu. - Fui ao casa­
mento deles.
Alexandra esclareceu: - Começámos a desconfiar que havia
qualquer coisa de errado quando iam à igreja e se sentavam em
lados opostos da congregação...
Henry acrescentou: - Deitaram olhares furiosos um ao outro
domingos a fio...
Atticus continuou: - E, passado algum tempo, estavam no
escritório a pedir-me que lhes tratasse do divórcio.
- E o pai tratou? - quis saber Jean Louise de olhos pos-
tos nele.
- Tratei.
- Com que fundamentos?
- Adultério.
Jean Louise abanou a cabeça, incrédula. Deus meu , pensou, deve
haver qualquer coisa na água .. .
A voz da tia interrompeu-lhe os pensamentos: - Jean Louise,
vieste de comboio assim, nesses preparas?
Apanhada desprevenida, levou uns momentos a certificar-se do
que a tia queria dizer com a expressão «nesses preparas».
- Oh... sim s'nhora - respondeu -, mas espere, tia. Saí de
Nova Iorque de meias altas, de luvas e calçada. Vesti isto quando
passámos Atlanta.
A tia fungou. - Espero sinceramente que desta vez tentes ves­
tir-te melhor enquanto aqui estiveres. As pessoas da cidade ficam
com uma impressão errada. Pensam que tu estás a vestir-te... hã. . .
como se estivesses a visitar u m bairro de barracas.
Jean Louise teve um pressentimento. A Guerra dos Cem Anos
entre ambas já ia em cerca de vinte e seis sem sinais de algo mais
do que alguns períodos de tréguas difíceis.

26
- Tia - argumentou -, vim a casa passar duas semanas e
tenciono não fazer nada, pura e simplesmente. Duvido que saia
alguma vez. Mato a cabeça a trabalhar o ano inteiro...
Levantou-se, dirigiu-se à lareira, fitou a consola e virou-se.
- Se as pessoas de Maycomb não ficarem com uma certa impres­
são, ficam com outra. Não é que estejam habituados a ver-me
muito bem vestida. - Um tom paciente tomou-lhe a voz ao acres­
centar: - Olhe, se eu lhes aparecesse toda elegante de repente,
diriam que me transformara numa nova-iorquina. Agora a tia diz
que eles acham que eu não me importo com o que pensam se andar
por aí de calças. Deus meu, tia, a cidade sabe que nunca usei outra
coisa senão jardineiras até me vir a «história» ...
Atticus esqueceu-se das dores nas mãos. Dobrou-se para refazer
um laço nos atacadores já de si perfeitamente atados e endireitou­
-se, de rosto ruborizado mas sério. - Já chega, Scout - admoes­
tou -, pede desculpa à tia. Não comeces a discutir assim que
chegas a casa.
Jean Louise sorriu ao pai. Ao mostrar a sua reprovação, ele tinha
por hábito voltar ao nome familiar que lhe era dado na infância.
Ela soltou um suspiro. - Desculpe, tia. Desculpa, Hank. Sinto-me
oprimida, Atticus.
- Nesse caso, volta para Nova Iorque e vive desinibida.
Alexandra ergueu-se e alisou as diversas barbas de baleia que lhe
corriam ao longo do corpo. - Comeste no comboio?
- Sim s'nhora - mentiu ela.
- E se for um café?
- Sim, por favor.
- Hank?
- Sim s'nhora, se faz favor.
Alexandra saiu da sala sem consultar o irmão. Jean Louise per-
guntou ao pai: - Ainda não se habituou a bebê-lo?
- Não - respondeu ele.
- E uísque, também não?
- Não.
- E cigarros e mulheres?
- Não.

27
- O pai agora diverte-se com alguma coisa?
- Cá me vou arranjando.
Jean Louise fez o gesto de pegar num taco de golfe. - Como
é que é? - quis saber.
- Não tens nada com isso.
- Ainda consegue usar um taco?
- Sim.
- Costumava sair-se muito bem, sendo quase cego.
Atticus contrapôs: - Não há nada de errado com os meus. . .
- Nada, exceto o facto de que não vê nada.
- Gostarias de fazer prova disso?
- Sim, senhor. Amanhã às três, OK?
- Está bem. . . não. Tenho uma reunião marcada. Que tal na
segunda-feira? Hank, temos alguma coisa na segunda à tarde?
Hank mudou de posição. - Apenas aquela hipoteca à uma da
tarde. Não deve levar mais de uma hora.
Atticus dirigiu-se à filha: - Então, está combinado. E pelo que
estou a ver, menina sabichona, será o cego a liderar outro cego.
Junto à lareira, Jean Louise pegara num velho taco de madeira
enegrecida, que durante anos cumprira a dupla função de avivar
o lume da lareira. Esvaziou um enorme escarrador muito antigo
do seu conteúdo, bolas de golfe, deitou-o de lado; com o pé
levou as bolas para o meio da sala e estava a enfiá-las com tacadas
quando a tia reapareceu, trazendo uma bandeja com café, chávenas,
pires e bolo.
- Entre ti, o teu pai e o teu irmão - anunciou ela -, esse
tapete ficou uma vergonha. Hank, quando vim tomar conta da casa,
a primeira coisa que fiz foi tingi-lo o mais escuro que consegui.
Lembram-se de como estava? Tinha uma mancha negra daqui até
à lareira, e não havia nada que a tirasse...
Hank retorquiu: - Lembro-me bem, minha senhora. Lamento
dizê-lo, mas também contribuí para isso.
Jean Louise arrumou o taco junto à tenaz, juntou as bolas e
atirou-as para dentro do escarrador. Sentou-se no sofá e ficou a ver
Hank, que recolhia as bolas tresmalhadas. Nunca me canso de o ver
em movimento, pensou.

28
Hank regressou ao seu lugar, bebeu a chávena de café a ferver
a uma velocidade alarmante e alvitrou: - Mr. Finch, é melhor
eu regressar.
- Espera um pouco, e eu vou contigo - disse Atticus.
- Apetece-lhe vir?
- Claro que sim. Jean Louise - inquiriu de súbito -, quanto
do que acontece por aqui é publicado nos jornais?
- Está a falar de política? Bom, sempre que o governador
comete alguma indiscrição, isso chega aos tabloides, mas de resto,
mais nada.
- Estou a falar da decisão do Supremo Tribunal que lhe há de
dar um lugar na história.
- Ah, isso. Bom, para citar o Post, linchamo-los e comemo-los
ao pequeno-almoço; o]ournal não dá importância à coisa; e o Times
está de tal maneira obcecado com o seu dever para com a posteri­
dade que se torna uma maçada. Não tenho ligado ao assunto com
exceção dos boicotes aos autocarros e da questão do Mississípi.
Atticus, o facto de o estado não ter conseguido uma condenação
nesse caso foi a nossa pior asneira desde a batalha de Pickett.
- Sim, foi. Suponho que os jornais se tenham aproveitado
disso, não?
- Ficaram doidos.
- E a NAACP 5 ?
- Não sei nada sobre esse grupo, exceto que algum funcionário
se enganou e me mandou selos de Natal da NAACP no ano pas­
sado, e eu usei-os em todos os cartões que enviei para cá. O primo
Edgar recebeu o dele?
- Recebeu e deu algumas sugestões sobre o que eu devia fazer
contigo - respondeu o pai, sorrindo abertamente.
- Tais como?
- Que eu devia ir a Nova Iorque, agarrar-te pelos cabelos e
dar-te uma tareia de cinto. Ele sempre te criticou, diz que és dema­
siado independente...
5
Nacional Association for the Advancemenc of Colored People (Associação
Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor), organização americana que lutou
pelos direitos civis das minorias, especialmente dos negros. (NT)

29
- Nunca teve uma ponta de sentido de humor, aquele velho
pomposo. Um peixe-gato, é o que ele parece com aquelas suíças
espetadas, aqui e aqui, e a boca de peixe. Acho que deve pensar
que o facto de eu viver sozinha em Nova Iorque é, só por si, viver
em pecado.
- Equivale a isso - reconheceu Atticus. Ergueu-se do cadeirão
com dificuldade e fez sinal a Hank para se irem embora.
Henry virou-se para Jean Louise. - Sete e meia, querida?
Ela assentiu, após o que mirou a tia de lado. - Tudo bem se
eu usar calças?
- Não, minha s'nhora.
- É assim mesmo, Hank - comentou Alexandra.

30
3

Não restava qualquer dúvida: Alexandra · Finch Hancock era


imponente de qualquer ângulo. Vista por trás era tão comprome­
tedora como vista pela parte da frente. Apesar de nunca ter per­
guntado, Jean Louise interrogara-se muitas vezes onde compraria
a tia os espartilhos. Estes empurravam-lhe os seios até alturas
estonteantes, estreitavam-lhe a cintura, alargavam-lhe o traseiro e
conseguiam criar a sugestão de que Alexandra tivera em tempos
uma figurinha elegantíssima.
Entre todos os seus familiares, a irmã do pai era quem mais
se aproximava de a deixar permanentemente irritada. Nunca se
mostrara propositadamente maldosa - nunca o fora para qualquer
criatura viva, à exceção dos coelhos que lhe comiam as azáleas e
que ela envenenava -, mas, no passado, infernizara a vida de Jean
Louise a seu bel-prazer. Agora que a sobrinha crescera, nunca con­
seguiam manter uma conversa de quinze minutos sem exprimirem
pontos de vista irreconciliáveis, o que numa relação de amizade
podia ser revigorante, mas que nas ligações familiares próximas
causava apenas uma cordialidade incómoda. Havia tantas coisas
na tia que a deliciavam secretamente quando meio continente as
separava, mas que se revelavam cáusticas uma vez juntas. Essas
coisas, porém, anulavam-se, quando Jean Louise tentava examinar
os motivos da tia. Alexandra era uma dessas pessoas que tinham
atravessado a vida sem sofrimento; tivesse sido obrigada a pagar um
preço emocional durante a sua vida terrena, a sobrinha imaginava-a
a parar no posto de admissão ao céu a exigir um reembolso.

31
A tia fora casada durante trinta e três anos, e se isso tivera nela
algum impacto, nunca o revelara. Dera à luz um filho, Francis,
o qual, na opinião de Jean Louise, parecia e comportava-se como
um cavalo, e que há muito saíra de Maycomb em troca da glória
de vender seguros em Birmingham. Felizmente.
Alexandra fora e era ainda tecnicamente casada com um
homem corpulento e sereno de nome James Hancock, que dirigia
um armazém de algodão com grande rigor durante seis dias da
semana e pescava ao sétimo. Certo domingo, havia quinze anos,
mandou recado à mulher através de um pretito do acampamento
no rio Tensas, onde costumava pescar, que ia lá ficar e não voltava.
Depois de Alexandra se certificar de que não havia outra mulher
envolvida, não se ralou absolutamente nada. Francis fez desta
questão a sua cruz: nunca compreendeu por que motivo o tio
Atticus mantinha uma relação excelente mas distante com o pai
(pensava que Atticus devia fazer «alguma coisa») nem por que
razão a mãe não se mostrava prostrada devido ao comportamento
excêntrico, e logo imperdoável, do marido. O tio Jimmy veio a
saber da atitude de Francis e enviou uma outra mensagem dos
bosques a dizer que estava pronto e disposto a encontrar-se com
ele, se o filho quisesse ir lá dar-lhe um tiro, algo que Francis
nunca fez. Uma terceira comunicação acabou por chegar às mãos
de Francis, cheia de presença de espírito: se não vieres cá como um
homem, cala-te.
A deserção do tio Jimmy não causou qualquer mossa nos
horizontes brandos da tia Alexandra: os lanches de caridade con­
tinuavam a ser os melhores da cidade, as suas atividades nos três
clubes culturais de Maycomb multiplicaram-se e melhorou a sua
coleção de peças em vidro opalino quando Atticus tirou o controlo
do dinheiro das mãos do tio Jimmy. Em resumo, desprezava os
homens e vicejava longe da sua presença. O facto de o filho ter
desenvolvido todas as características latentes de um larilas passou­
-lhe completamente ao lado. Apenas lhe interessava que gostava
que ele vivesse em Birmingham, pois ele dedicava à mãe uma
devoção opressiva, o que significava que ela se sentia na obrigação
de retribuir, algo que não podia fazer de forma espontânea.

32
Para todos os presentes e participantes na vida do condado,
porém, Alexandra era a última da sua linhagem: tinha o compor­
tamento esperado de quem frequentara o colégio interno e
pertencia às antigas famílias; defendia qualquer questão moral
que se levantasse; a censura era-lhe natural e era uma coscuvilheira
sem remédio.
Quando foi para o colégio de etiqueta e boas maneiras, a falta
de autoconfiança não constava de nenhum manual escolar, portanto
desconhecia o significado da expressão. Nunca se entediava e,
sendo-lhe dada a mais pequena hipótese, exercia os seus privilégios
régios: punha e dispunha, recomendava, advertia, aconselhava.
Não tinha qualquer consciência de que, com os seus comen­
tários retorcidos, podia mergulhar Jean Louise num tumulto
moral, fazendo com que a sobrinha duvidasse dos seus próprios
motivos e das suas melhores intenções, ao beliscar as cordas pro­
testantes e filistinas da sua consciência até vibrarem como uma
cítara espectral.
Se Alexandra tivesse alguma vez tocado conscientemente os
pontos mais vulneráveis da sobrinha, podia ter acrescentado outro
escalpe à sua coleção, mas, após anos de estudo tático, Jean Louise
conhecia o seu inimigo. Embora a conseguisse derrotar, ainda não
aprendera a reparar os estragos do adversário.
A última vez que brigara com a tia fora na altura da morte
do irmão. Após o funeral de Jem, encontravam-se na cozinha a
limpar os restos do banquete tribal que faz parte da morte em
Maycomb. Calpurnia, a velha cozinheira dos Pinches, fugira da
casa ao tomar conhecimento da morte de Jem e não voltara. Ale­
xandra atacou como o general Hannibal: «Sou de opinião, Jean
Louise, que chegou a altura de ficares em casa. O teu pai precisa
muito de ti. »
Fruto de uma longa experiência, ela irritou-se imediatamente.
A tia está a mentir, pensou. Se o Atticus precisasse de mim, eu saberia.
Não consigo fazê-la compreender como saberia porque não consigo comunicar
consigo. «Precisa de mim? » , questionou.
«Sim, querida. Certamente que compreendes, não devia ser
preciso dizer-to. »

33
Dizer-me. Fazer-me assentar. Aí está a tia, a invadir grosseiramente
o nosso território privado. Bom, eu e ele nem sequer falamos disso.
«Tia, se o Atticus precisar de mim, sabe bem que fico. Neste
momento, precisa tanto de mim como de uma bala na cabeça.
Aqui juntos, em casa, seríamos infelicíssimos. Ele sabe-o, e eu
também. A tia não vê que, a não ser que voltemos ao ponto em
que nos encontrávamos antes de isto acontecer, a nossa recuperação
será muito mais lenta? Tia, não lhe posso explicar, mas realmente
a única forma de cumprir o meu dever para com o Atticus é fazer
o que estou a fazer: sustentar-me e viver a minha própria vida.
A única altura em que o Atticus vai precisar de mim é quando lhe
faltar a saúde, e não preciso de lhe dizer o que farei então. Não
está a ver? »
Não, não via. Alexandra via o que Maycomb via. A cidade espe­
rava que as filhas cumprissem o seu dever, e o dever de uma filha
única para com o pai viúvo, depois da morte do seu único filho,
era claro: Jean Louise regressava e viveria com Atticus. Era isso
que uma filha fazia e, se o não fizesse, não era digna de ser cha­
mada filha.
«... podes arranjar um emprego no banco e ir até à costa aos fins
de semana. Agora em Maycomb há um grupo de gente engraçada,
uma série de gente nova. Gostas de pintar, não gostas?»
Gostas de pintar? Que diabo pensaria a tia que ela fazia com os
seus serões em Nova Iorque? Provavelmente, o mesmo que o primo
Edgar. A Liga dos Estudantes de Arte todas as noites durante a
semana, às oito. As jovens desenhavam, pintavam aguarelas e com­
punham parágrafos curtos de prosa imaginativa. Para Alexandra,
havia uma diferença nítida e desagradável entre uma pessoa que
pinta e um pintor, uma que escreve e um escritor.
«. .. há uma série de paisagens bonitas na costa, e terias os fins
de semana livres. »
Santo Deus. Apanha-me quando estou quase de cabeça perdida e traça as
avenidas da minha vida. Como pode ela ser irmã do Atticus e não fazer a
mínima ideia do que se passa na cabeça dele, na minha, na de qualquer pes­
soa? Ó meu Deus, por que motivo não nos destes outra língua para explicar
as coisas à tia Alexandra? « Tia, é fácil dizer a alguém o que fazer... »

34
«Mas muito difícil obrigá-lo a fazer. É essa a causa da maior pane
dos problemas do mundo, as pessoas não fazerem o que lhes mandam. »
Estava definitivamente decidido. Jean Louise ia ficar em casa.
Alexandra informaria Atticus, o que faria dele o homem mais feliz
do mundo.
«Tia, eu não fico cá, e, se ficasse, o Atticus seria o homem mais
triste do mundo... mas não se preocupe, o meu pai compreende
perfeitamente e sei que, assim que a tia deitar mãos a isso, fará
com que Maycomb compreenda. »
De súbito, a faca penetrou bem fundo. «Jean Louise, o teu
irmão ralou-se com a tua falta de consideração até ao dia da sua
morte! »
Naquela tarde quente, chovia brandamente no túmulo dele.
Nunca disseste isso, nem sequer o pensaste. Se o tivesses pensado, dizia-lo.
Eras assim. Descansa em paz, ]em.
Ela esfregou sal na ferida: Sim, sou irrefletida. Egoísta, teimosa, como
demais e sinto-me uma traidora. Que Deus me perdoe por não fazer o que
devia ter feito e por fazer o que não devia - oh, que diabo.
Jean Louise regressou a Nova Iorque com a consciência a latejar,
algo que nem Atticus conseguiu acalmar.
Isto passara-se dois anos antes, e Jean Louise havia muito que
deixara de se preocupar sobre a sua falta de consideração. A tia
desarmara-a ao levar a cabo o único ato generoso da sua vida: quando
Atticus começou a sofrer de artrite, foi viver com ele, o que deixou
a sobrinha profundamente grata. Tivesse Atticus sabido da decisão
secreta entre a irmã e a filha, nunca lhes teria perdoado. Não precisava
de ninguém, mas era uma ideia excelente ter alguém por perto para
o vigiar, abotoar-lhe as camisas quando as mãos se revelavam inúteis
e tomar-lhe conta da casa. Fora Calpurnia a fazê-lo até seis meses antes,
mas estava tão velha que Atticus tratava mais da casa do que ela, e a
cozinheira regressou aos Casebres para gozar a sua honesta reforma.
- Eu lavo isso, tia - disse Jean Louise quando Alexandra
reuniu as chávenas de café. Ergueu-se e espreguiçou-se. - Assim
ficamos com sono.
- São só umas chávenas - afirmou Alexandra. - Trato disso
num instante. Fica quietinha.

35
A sobrinha assim fez e olhou em volta da sala. A velha mobília
ficava bem na casa nova. Lançou o olhar para a sala de jantar e viu
no aparador o pesado jarro de água em prata da mãe, cálices e um
tabuleiro, que brilhavam contra a parede pintada de verde-pálido.
É um homem incrível, pensou. Fecha-se um capítulo da sua vida,
manda deitar abaixo a casa velha e constrói uma nova noutra parte da
cidade. Eu não seria capaz. Construíram uma gelataria no lugar da outra
casa. Quem será que a dirige?
Foi até à cozinha.
- Bem, e como é que está Nova Iorque? - perguntou Ale­
xandra. - Queres outra chávena antes que eu deite isto fora?
- Sim s'nhora, por favor.
- Oh, a propósito, na segunda de manhã vou dar um café em
tua honra.
- Tia! - gemeu Jean Louise. Dar um café era especialmente
próprio de Maycomb. Destinava-se a raparigas que tinham regres­
sado a casa e que eram exibidas às 1 Oh30 da manhã com o objetivo
explícito de permitir às mulheres da mesma idade, que tinham
ficado isoladas em Maycomb, examiná-las. Nestas condições, era
raro as amizades de infância serem retomadas.
Jean Louise tinha perdido o contacto com quase toda a gente
com quem crescera e não desejava especialmente redescobrir as
companheiras da sua adolescência. O tempo da escola havia sido o
período mais infeliz da sua vida, e era tão pouco sentimental em
relação à universidade feminina que frequentara que chegava a raiar
a insensibilidade. Nada lhe desagradava mais que estar sentada no
meio de um grupo de pessoas a jogar ao «Lembram-se?» .
- Acho a perspetiva de a tia dar um café infinitamente hor­
rível - declarou -, mas adorava uma chávena.
- Bem me pareceu, querida.
Foi invadida por uma onda de ternura. Nunca poderia agrade­
cer suficientemente a Alexandra por ter vindo viver com Atticus.
Achava-se horrível por ter sido sarcástica com a tia, a qual, apesar
dos espartilhos, era de certa forma uma pessoa desamparada e que,
além do mais, possuía uma fineza que ela própria nunca teria.
É mesmo a última da sua linhagem, pensou. lntocada pelas guerras,

36
vivera três; nada perturbara esse seu mundo, onde os cavalheiros
fumavam no alpendre ou reclinados em redes, e onde as senhoras
se abanavam ao de leve com um leque e bebiam água fresca.
- Como vai o Hank?
- Vai lindamente, querida. Sabias que foi eleito Homem do
Ano pelo Clube Kiwanis? Deram-lhe um pergaminho lindo.
- Não, não sabia.
Homem do Ano pelo Clube Kiwanis, uma inovação do pós­
-guerra em Maycomb, queria normalmente dizer «jovem que
vai longe» .
- O Atticus ficou tão orgulhoso dele. Diz que ele ainda não
sabe o significado da palavra «contrato» , mas que vai bem nos
impostos.
Jean Louise fez um sorriso largo. O pai dizia que se levava pelo
menos cinco anos a conhecer a lei depois de se sair da faculdade:
praticava-se economia durante dois anos, estudava-se o Código
Processual do Alabama mais dois, relia-se a Bíblia e Shakespeare
no quinto. Estava-se, então, totalmente equipado para aguentar
quaisquer condições.
- Que diria a tia se o Hank viesse a ser seu sobrinho?
Alexandra parou de secar as mãos no pano da louça. Virou-se
e olhou bruscamente para Jean Louise. - Estás a falar a sério?
- Talvez.
- Não tenhas pressa, querida.
- Pressa? Tenho vinte e seis anos, tia, e conheço o Hank desde
sempre.
- Sim, mas. . .
- Que se passa, não o aprova?
- Não é isso, é... Jean Louise, sair com um rapaz é uma coisa,
mas casar com ele é outra. Deves tomar tudo em consideração.
O passado familiar do Henry...
- ... é literalmente o mesmo que o meu. Crescemos juntos.
- Há tendência para beber na família...
- Tia, há tendência para beber em todas as famílias...
Alexandra retesou as costas. - Na família Finch não há.
- Tem razão. Limitamo-nos a ser todos malucos.

37
- Isso não é verdade, e sabe-lo muito bem - contrapôs Ale­
xandra.
- O primo Joshua era maluco, não se esqueça.
- Sabes que herdou isso do outro lado. Jean Louise, não há
melhor rapaz neste condado que o Henry Clinton. Dava um belo
marido para qualquer rapariga, mas .. .
- Mas está a dizer que um Clinton não é suficientemente
bom para uma Finch. Querida tia, esse tipo de coisa desapa­
receu com a Revolução Francesa, ou começou com ela, não sei
bem qual.
- Não estou a dizer nada disso. É só que devias ter cuidado em
relação a essas coisas.
Jean Louise sorria, as defesas a postos. la começar tudo outra
vez. Santo Deus, por que razão abordei eu o assunto? Teve vontade de
dar um pontapé a si própria. Se lhe dessem oportunidade, a tia
Alexandra escolhia uma bonita moçoila das berças para Henry e
dava-lhes a sua bênção. Era esse o lugar dele neste mundo.
- Bom, não sei até que ponto se pode ter cuidado, tia. O At­
ticus adoraria ter o Hank como membro oficial da família. Sabe
que lhe dava um prazer enorme.
Era bem verdade. Atticus Finch observara a corte inconstante
que Henry fazia à sua filha com uma objetividade benigna, dando
conselhos quando lhe era pedido, mas recusando totalmente deixar­
-se envolver.
- O Atticus é um homem. Não percebe muito destas coisas.
Os dentes de Jean Louise começaram a doer-lhe. - Que cai­
.
sas, tia.")
- Olha lá, menina, se tivesses uma filha que querias tu para
ela? Só o melhor, naturalmente. Parece que não te dás conta,
tal como a maior parte das pessoas da tua idade, mas gostavas
de saber que a tua filha ia casar-se com um homem cujo pai o
abandonou, a ele e à mãe, e morreu de bebedeira nas linhas do
comboio em Mobile? A Cara Clinton era uma boa alma, e teve
uma triste vida, e foi tudo uma grande tristeza, mas tens de pensar
sobre o que significa casar com o produto de uma tal união. É uma
questão séria.

38
Não havia dúvida. Jean Louise vm o brilho dos óculos com
aros dourados projetado sobre um rosto amargo que espreitava
por baixo de uma peruca à banda, um dedo ossudo que se agitava.
Declamou:

- T he question, gentlemen - is one o/ liquor;


You ask for guidance - this is my reply:
He says, when tipsy, he would thrash and kick her,
Let's make him tipsy, gentlemen, and try! 6

Alexandra não achou divertido, tendo ficado até extremamente


aborrecida. Não conseguia compreender as atitudes da gente
nova. Não que fosse necessário compreendê-las - os jovens eram
iguais em todas as gerações -, mas aquela insolência, aquela
recusa em levar a sério as questões mais graves da vida, provo­
cava-a e deixava-a irritada. Jean Louise estava prestes a cometer o
pior erro da sua vida e citava-lhe aquela gente sem hesitar, fazia
pouco dela. A rapariga devia ter tido uma mãe. Atticus deixara-a
à solta desde os dois anos de idade e eis o que colhera. Agora pre­
cisava de ser metida na ordem e de forma severa, antes que fosse
demasiado tarde.
- Jean Louise - principiou -, gostava de te recordar alguns
factos da vida. Não - e Alexandra ergueu a mão a pedir silên­
cio -, tenho a certeza de que esses já tu conheces, mas há umas
coisas que, com essa tua atitude de gozo, desconheces e que, Deus
seja bendito, te vou contar. És tão inocente como um ovo acabado
de ser posto, apesar de viveres na cidade. O Henry não é nem
nunca será adequado para ti. Nós, os Pinches, não nos casamos
com os filhos de gentalha branca e iletrada, que é exatamente o
que os I? ais do Henry eram quando nasceram e continuaram a
ser durante toda a vida. Não há termo melhor para os definir.
A única razão pela qual o Henry é o que é presentemente deve-

6
Excerto da ópera Triai by ]ury, de Gilbert e Sullivan.
A questão, senhores, trata do néctar; / Pedem-me conselho, respondo-vos assim:
! Tocado, ele diz que lhe malha e que a chuta, / Vamos entorná-lo, senhores, a ver se
tenta .' (NT)

39
-se ao facto de o teu pai lhe ter dado a mão quando era rapaz e
porque veio a guerra que lhe pagou os estudos. Por melhor rapaz
que seja, não se consegue livrar das suas origens.
»Já reparaste como lambe os dedos quando come bolo? Ralé.
Já o viste tossir sem tapar a boca? Ralé. Sabias que desgraçou uma
rapariga na universidade? Ralé. Já alguma vez o viste enfiar o dedo
no nariz quando acha que ninguém está a olhar? Ralé...
- Isso não é ser ralé, é mostrar o homem que há nele, tia -
respondeu com brandura. Por dentro, espumava de raiva. Vou dar­
-lhe mais uns minutos que ela volta a ficar de bom humor. Nunca chega
a ser ordinária, como eu estou prestes a ser. Nunca se mostra popularucha,
como eu e o Hank. Não sei o que ela é, mas é melhor calar-se ou dou-lhe
motivos para falar. . .
- . . . e, para coroar tudo isto, ele acha que pode subir nesta ci­
dade à boleia da posição do teu pai. Imaginem só, a tentar ocupar
o lugar do teu pai na igreja metodista, a tentar assumir o con­
trolo do seu escritório de advocacia, a guiar pelo país todo no seu
carro. Quer dizer, ele age como se esta casa já fosse dele, e que faz
o Atticus? Aceita, eis o que ele faz. Aceita e adora. Quer dizer, a
cidade inteira já fala de como o Henry Clinton se está a apoderar
de tudo o que o Atticus tem...
Jean Louise parou de passar os dedos em volta da borda de uma
chávena molhada no lava-louça. Sacudiu uma gota de água do dedo
para o chão e esfregou-a no linóleo com o sapato.
- Tia - disse com toda a cordialidade -, por que razão não
deixa de mijar fora do penico?

***
O ritual levado a cabo nos sábados à noite por Jean Louise e
pelo pai era demasiado velho para ser quebrado. Ela entrou na sala,
parou defronte da cadeira dele e clareou a garganta.
Atticus pousou o Mobile Press e olhou para a filha, que deu uma
volta lenta.
- O fecho-éclair está todo corrido? As costuras das meias estão
direitas? O remoinho está achatado?

40
- Sete horas e está tudo em ordem - pronunciou Atticus .
- Foste mal-educada para com a tua tia.
- Não fui nada.
- Ela disse-me que sim.
- Fui bruta, mas não prague j ei com ela. - Quando Jean
Louise e o irmão eram pequenos , Atticus mostrava-lhes por vezes
com clareza a distinção entre escatologia e blasfémia. Tolerava a
primeira, mas detestava envolver o nome de Deus . Consequente­
mente , ela e o irmão nunca praguej avam na sua presença. - Ela
deixou-me fula, Atticus .
- Não lhe devias ter permitido. O que é que lhe disseste ?
Jean Louise contou-lhe, e Atticus retraiu-se . - Bom, é melhor
fazeres as pazes com ela. Querida, por vezes ela dá-se ares de impor­
tante, mas é boa pessoa . . .
- Era sobre o Hank e fiquei furiosa.
Atticus era um homem sensato e , assim, não insistiu no assunto .
A campainha da porta dos Pinches era um instrumento mís-
tico, sendo possível adivinhar o estado de espíri to de quem tocava.
Quando fazia um determinado som , Jean Louise sabia que Henry
estava lá fora a carregar no botão , todo feliz. Apressou-se a abrir.
O cheiro dele , agradável e vagamente masculi no , i nvadiu-a
quando ele entrou, mas o creme de barbear, o tabaco, o carro novo
e os livros poei rentos esbateram-se ao recordar-se da conversa na
cozinha. De súbito abraçou-o pela cintura e ani nhou a cabeça
no seu peito.
- A que se deve isso ? - perguntou Henry, deliciado.
- Ao general Princípios Básicos, que lutou na Guerra Peni n-
sular. Vamos i ndo.
Henry enfiou a cabeça pela porta da sala e olhou para Atticus .
- Eu trago-a cedo, Mr. Finch . - Atticus sacudiu o j ornal na
direção dele .
Quando desapareceram na noite , Jean Louise interrogou-se
sobre o que Alexandra faria se soubesse que a sobrinha estava mais
próxima de se casar com alguém da ralé do que nunca.

41
PARTE l i
4

A cidade de Maycomb, no Alabama, devia a sua localização à


presença de espírito de um certo Sinkfield, que, nos primórdios
do condado, possuía uma hospedaria numa encruzilhada de dois
trilhos, a única taberna do território. O governador William Wyatt
Bibb, com vista a promover a tranquilidade doméstica do novo
condado, enviou uma equipa de agrimensores para determinar a
localização exata do seu centro e aí estabelecer a sede de governo:
não fosse Sinkfield ter tido um golpe de génio para preservar a sua
propriedade e Maycomb teria sido plantada no meio do pântano de
Winston, um local desprovido do mais pequeno interesse.
Ao invés, a cidade cresceu e desenvolveu-se a partir do seu
núcleo, a taberna do Sinkfield, pois uma noite o homem embebe­
dou os agrimensores, convenceu-os a abrir os seus mapas e cartas,
cortou um pedaço aqui, acrescentou outro ali e assim ajustou o cen­
tro do condado segundo as suas conveniências. Mandou-os embora
no dia seguinte com os seus mapas e cinco litros de álcool ilegal
nos alforges - dois para cada um e o outro para o governador.
Jean Louise nunca conseguira decidir se a artimanha de Sink­
field havia ou não sido acertada. Colocara a jovem cidade a mais
de trinta quilómetros do único meio de transporte público desses
dias - o barco fluvial -, e assim um habitante da ponta sul do
condado levava dois dias de viagem para ir fazer compras à loja. Em
consequência, a cidade manteve-se da mesma dimensão durante
mais de cento e cinquenta anos. A sua primeira razão de existência
fora ser a sede de governo, e o que a salvava de se ter tornado em

45
mais uma comunidade do Alabama pequena e sórdida era a per­
centagem elevada de habitantes com profissões qualificadas: ia-se
a Maycomb tirar um dente, arranjar a carroça, auscultar o coração,
depositar o dinheiro, levar as mulas ao veterinário, salvar a alma,
prolongar a hipoteca.
Era raro instalarem-se pessoas novas na cidade. As famílias
casavam-se entre si até as relações se emaranharem sem remédio
e os membros da comunidade se parecerem monotonamente uns
com os outros. Até à Segunda Guerra Mundial, Jean Louise era
aparentada, por laços de sangue ou de casamento, com quase toda
a gente da cidade, mas de forma comedida, comparando com o que
se passava na metade norte do condado de Maycomb: aí havia uma
comunidade chamada Old Sarum, constituída por duas famílias, ao
início distintas e separadas, mas que infelizmente tinham o mesmo
apelido. Os Cunninghams e os Coninghams casaram-se entre si até
a grafia dos nomes passar a ser académica - a não ser que um Cun­
ningham quisesse ludibriar um Coningham a propósito de títulos
de propriedade, caso em que recorria à justiça. A única vez que Jean
Louise vira o juiz Taylor debater-se com um impasse tremendo em
plena audiência fora durante uma disputa daquela natureza. Jeems
Cunningham declarou que a sua mãe ocasionalmente escrevia Cun­
ningham em documentos e coisas afins, mas que na realidade era
uma Coningham. Não sabia escrever lá muito bem e tinha o hábito
de ficar a olhar ao longe, quando se sentava na varanda. Após nove
horas a escutar as excentricidades dos habitantes de Old Sarum,
o juiz Taylor declarou que o tribunal não tinha competência para
julgar aquele caso com o fundamento de pleito frívolo e afirmou
que esperava sinceramente que os litigantes estivessem satisfeitos
por terem tido oportunidade de dizer em público a sua versão.
E estavam. Afinal, nunca tinham desejado outra coisa.
Maycomb não tivera uma única rua alcatroada até 1 93 5 - por
cortesia de F. D. Roosevelt -, e mesmo nessa ocasião não fora pro­
priamente uma rua a ser pavimentada. Por motivos desconhecidos,
o presidente decidiu que uma clareira, que ia da porta da frente
da escola primária de Maycomb até aos dois trilhos contíguos às
instalações da escola, necessitava de melhoramentos, o que foi feito,

46
resultando em joelhos esfolados e cabeças partidas para as crianças
e numa declaração do diretor da escola que proibia os alunos de
brincar à apanhada em tal pavimento. Fora assim que nos corações
da geração de Jean Louise haviam sido plantadas as sementes dos
direitos estaduais.
A Segunda Guerra Mundial teve consequências na cidade: os
rapazes que regressaram da guerra chegaram com ideias bizarras
sobre fazer dinheiro e uma ânsia de recuperar o tempo perdido.
Pintaram as casas dos pais em cores atrozes; caiaram as lojas de
branco e mandaram pôr letreiros de néon; construíram as suas pró­
prias casas em tijolo vermelho, onde anteriormente crescia o milho
e o pinhal. Arruinaram a aparência da antiga cidade. As ruas não só
foram alcatroadas como batizadas (Avenida Adeline, em homena­
gem a Miss Adeline Clay), mas os mais velhos recusavam-se a usar
os nomes, pois a «rua que passa pelo sítio do Tompkins» bastava­
-lhes para se orientarem. Depois da guerra, jovens que arrendavam
terras no condado afluíram a Maycomb, ergueram pequenas casas
em madeira e constituíram família. Ninguém sabia exatamente
como ganhavam a vida, mas faziam-no e teriam criado um novo
estrato social na cidade se o resto de Maycomb tivesse reconhecido
a sua existência.
Embora a aparência da cidade se alterasse, eram os mesmos cora­
ções que ansiavam por batedeiras Mixmasters, sentados em frente
aos aparelhos de televisão nas suas casas novas. Podia-se pintar de
branco o que se quisesse e exibir letreiros de néon, mas as casas
de madeira antiga continuavam a resistir.
- Não gostas, pois não? - perguntou Henry. - Vi a tua cara
quando entraste.
- Apenas uma resi stência conservadora à mudança, nada
mais - retorquiu ela, por trás de uma garfada de camarão frito.
Estavam na sala de jantar do Hotel Maycomb, sentados em cadeiras
cromadas a uma mesa para dois. O ar condicionado roncava baixi­
nho. - A única coisa que me agrada é que o cheiro desapareceu.
Uma mesa longa carregada com muitos pratos, e o cheiro a mofo e
a gordura quente. - Hank, o que era aquilo da «gordura quente
na cozinha» ?

47
- Sim?
- Era um jogo ou uma coisa assim.
- Queres dizer «ervilhas quentes» , querida. É um jogo de
saltar à corda, quando dão à corda muito depressa para tentar que
a pessoa tropece.
- Não, tinha a ver com a apanhada.
Não conseguia lembrar-se. Recordar-se-ia talvez quando esti­
vesse às portas da morte, mas naquele momento só lhe vinha à
memória o lampejo vago de uma manga de ganga e um grito
rápido: «Hotgreaseinthekit-chen! 7 » Perguntou a si mesma quem
seria o dono da manga, o que teria sido feito dele. Poderia ter
constituído família numa daquelas casinhas pequenas. Teve
a sensação estranha de que o tempo a ultrapassara.
- Hank, vamos ao rio - sugeriu.
- Não pensaste que não íamos, pois não? - Henry sorria-lhe.
Nunca soubera porquê, mas Jean Louise voltava a parecer a mesma
de antigamente quando ia à Plantação Finch: parecia retirar algo
do ar que aí respirava. - Tens uma personalidade do tipo Jekyll
e Hyde - declarou ele.
- Tens andado a ver demasiada televisão.
- Às vezes parece que te tenho aqui. - Henry apertou a mão.
- E depois, quando penso que te tenho segura, foges de mim.
Jean Louise arqueou as sobrancelhas. - Mr. Clinton, se me
permite uma observação vinda de uma mulher do mundo, está
a mostrar o seu jogo.
- Como?
Ela esboçou um sorriso largo. - Não sabes como conquistar
uma mulher, querido? - Esfregou um corte de cabelo curto ima­
ginário, franziu o sobrolho e disse: - As mulheres gostam dos
homens imperiosos e ao mesmo tempo distantes, se conseguires.
Fá-las sentir-se desamparadas, especialmente quando sabes que
conseguem pegar numa carga de pinho para a lareira sem qual­
quer problema. Nunca duvides de ti na presença de uma mulher
e, sobretudo, jamais lhe digas que não a entendes.

7
Referência a um jogo i nfantil . (NT)

48
- Touché, querida - retorquiu Henry. - Mas tenho uma
pequena objeção quanto à tua última sugestão. Sempre achei que
as mulheres gostavam de ser consideradas estranhas e misteriosas.
- Não, apenas gostam de parecer estranhas e misteriosas.
Depois de transpores todos os artifícios, o que todas as mulheres
deste mundo querem é um homem forte que as conhece como um
livro, que não é apenas um amante, mas também aquele que guarda
Israel8 • Estúpido, não é?
- Nesse caso, querem é um pai em vez de um marido.
- Equivale a isso - concordou ela. - Nisso, os livros es-
tão certos.
Henry observou: - Estás muito sábia esta noite. De onde é que
vem essa sapiência toda?
- De viver em pecado em Nova Iorque - respondeu ela.
Acendeu um cigarro e inalou profundamente. - Aprendi-o
ao observar os jovens casados e elegantes da Avenida Madison;
conheces a linguagem deles, querido? É muito divertida, mas
tem de se ter ouvido para ela; executam uma espécie de dança
tribal, mas pode ser aplicada universalmente. Começa com as
mulheres aborrecidas de morte porque os maridos andam tão
cansados a fazer dinheiro que não lhes prestam atenção. Mas,
quando elas desatam aos gritos, em vez de tentarem perceber
porquê, eles limitam-se a arranjar um ombro compreensivo onde
chorar as suas mágoas. Depois, quando se fartam de falar sobre
si próprios, voltam para as suas mulheres. Fica tudo cor-de-rosa
durante uns tempos, mas os homens ficam outra vez cansados e
elas começam outra vez aos gritos, e recomeça tudo. Os homens
de hoje transformaram a «outra» num sofá de psiquiatra, e com
muito menos despesa.
Henry olhava-a fixamente. - Nunca te vi ser tão cínica - afir­
mou. - O que se passa contigo?
Jean Louise pestanejou. - Desculpa, querido. - Apagou
o cigarro. - É só que tenho tanto medo de fazer o disparate
de me casar com o homem errado... quer dizer, com o tipo errado

8
Referência ao Salmo 1 2 1 : 4 . (NT)

49
de homem para mim. Não sou diferente das outras mulhe­
res, e o homem errado tornar-me-ia numa bruxa ululante em
tempo recorde.
- O que te faz ter tanta certeza de que te vais casar com o
homem errado? Não sabias que eu sempre fui do tipo de bater
em mulheres?
Uma mão negra estendeu a conta numa bandeja. A mão era-lhe
familiar, e ela ergueu os olhos. - Olá, Albert - cumprimentou.
- Puseram-te um casaco branco.
- Sim, minha s'nhora, Miss Scout - respondeu ele. - Como
é que está Nova Iorque?
- Está bem - retorquiu Jean Louise, interrogando-se quem
mais em Maycomb se recordaria de Scout Finch, a bandoleira juve­
nil, a maior desordeira de todos os tempos. Ninguém, com exceção
talvez do tio Jack, que por vezes a envergonhava sem piedade em
frente de outras pessoas com descrições flamejantes dos seus delitos
de infância. Encontrá-lo-ia no dia seguinte, na igreja, e far-lhe-ia
uma longa visita da parte da tarde. O tio Jack era uma das alegrias
duradouras de Maycomb.
- Por que razão - inquiriu Henry lentamente - é que bebes
apenas metade da segunda chávena de café depois da ceia?
Jean Louise mirou a sua chávena com surpresa. Qualquer refe­
rência às suas excentricidades pessoais intimidava-a, mesmo que
viesse de Henry. Que perspicaz da sua parte. Por que motivo teria
ele esperado quinze anos para lho dizer?

50
5

Quando ia a entrar no carro, bateu com a cabeça no tejadilho


com toda a força. - Maldita coisa! Por que raio não fazem esta
porcaria com a altura suficiente para podermos entrar? - Esfregou
a testa até a visão se focar de novo.
- Estás bem, querida?
- Sim, estou.
Henry fechou a porta devagar, deu a volta, entrou e sentou-se a
seu lado. - Isso é de viver tanto tempo na cidade - comentou.
- Lá nunca andas de carro, pois não?
- Não. Daqui a nada constroem os automóveis com meio
metro de altura. Para o ano andamos neles de bruços.
- Parece um tiro de canhão - disse Henry. - Vai de May­
comb a Mobile em três minutos.
- Eu cá ficava satisfeita com um Buick dos velhinhos. Lembras-
-te deles? Sentávamo-nos pelo menos a metro e meio do chão.
- Lembras-te de quando o ]em caiu do carro? - pergun-
tou Henry.
Ela riu-se. - Isso deu-me cá um poder sobre ele durante sema­
nas! Quem não conseguia ir até Barker's Eddy sem cair do carro
era um caguinchas.
No passado distante, Atticus possuíra um carro com capota
de lona e, certa vez, ao levar Jem, Henry e Jean Louise a nadar,
o carro passou sobre um alto especialmente mau da estrada e fez
com que ]em desse um salto e caísse do automóvel. Atticus con­
tinuou a guiar descansado até chegarem a Barker's Eddy, uma vez

51
que a filha não tinha qualquer intenção de revelar ao pai que Jem
não estava presente. Impediu Henry de o fazer, agarrando-lhe o
dedo e dobrando-o para trás. Ao chegarem à margem do ribeiro,
Atticus virou-se para trás com um animado «Todos lá para fora! » ,
mas o sorriso morreu-lhe no rosto: «Onde está o ]em?» Jean Louise
afirmou que devia estar a chegar a qualquer momento. Quando o
irmão apareceu a bufar, suado e imundo devido à corrida involun­
tária, passou por eles a correr e mergulhou no ribeiro todo vestido.
Passados segundos, um rosto com uma expressão homicida surgiu à
superfície, a dizer: «'Bora prà qui, Scout! Desafio-te, Hank! » Eles
aceitaram o desafio, e quando Jean Louise pensava que Jem a ia afo­
gar de vez, ele acabou por a largar. Afinal, Atticus estava presente.
- Construíram uma serração no fundão - disse Henry. - Já
não se pode lá nadar.
Guiou até à E-Lite Eat Shop e tocou a buzina. - Traz aí
os ingredientes, Bill, por favor - pediu ao rapaz que o foi atender.
Em Maycomb, ou se bebia ou não se bebia. Quando se bebia,
ia-se para trás da garagem, pegava-se numa cerveja e emborcava­
-se; quando não se bebia, pedia-se os ingredientes na E-Lite Eat
Shop a coberto do escuro. Um homem tomar uma ou duas bebi­
das antes ou depois do jantar em sua casa ou na companhia do
vizinho era virtualmente desconhecido. A isso chamava-se «beber
em sociedade» . Quem fazia isso ainda não pertencia bem à nata da
sociedade, e, uma vez que em Maycomb roda a gente achava que
era esse o seu lugar, não havia lugar para «beber em sociedade» .
- Não carregues muito na minha, querido - pediu ela. - Dá
só uma corzinha à água.
- Ainda não aprendeste a aguentar a bebida? - perguntou
Henry. Enfiou a mão debaixo do banco e tirou de lá uma garrafa
escura de uísque Seagram's Seven.
- A forte, não - confessou ela.
Henry tingiu a água no copo de papel dela. Para si, serviu uma
bebida própria de um homem, mexeu-a com o dedo e, entalando
a garrafa entre os joelhos, voltou a fechá-la. Enfiou-a de novo
debaixo do banco e pôs o carro a trabalhar.
- Vamos embora - anunciou.

52
Os pneus do carro eram como um murmúrio sobre o asfalto e
faziam-na sonolenta. O que mais gostava em Henry Clinton era
que a deixava ficar em silêncio quando lhe apetecia. Não tinha de
o distrair.
Ele nunca tentara maçá-la quando se sentia assim . Tinha uma
atitude liberal e sabia que ela lhe agradecia a paciência. Jean
Louise desconhecia, porém, que Henry andava a aprender essa
virtude do seu pai. - Descontrai -te, filho - dissera-lhe Atticus
num dos seus raros comentários sobre a filha. - Não a pressiones.
Deixa-a seguir o seu próprio ritmo. Se a pressionares, será mais
fácil viver com as mulas do condado todas juntas.
A turma de Henry Clinton da Faculdade de Direito era com­
posta por jovens veteranos inteligentes e desprovidos de humor.
A competição era tremenda, mas ele estava habituado a trabalhar
duramente. Embora conseguisse acompanhar os estudos e sair­
-se bem, aprendeu pouco com valor prático. Atticus Finch tinha
razão ao dizer que a única coisa boa que a universidade fez por
Henry foi dar-lhe a oportunidade de travar amizade com os futu­
ros políticos, demagogos e estadistas do Alabama. Só se começava
a fazer uma ideia da natureza da lei quando chegava a altura de a
praticar. O processo penal geral e o do Alabama, por exemplo,
tinham uma natureza tão etérea que Henry só passou decorando
o manual. O homenzinho amargo que dava essa cadeira era o
único professor da escola com a coragem suficiente para o tentar,
e mesmo ele revelava a rigidez de uma compreensão imperfeita.
«Mr. Clinton » , dissera ele, quando Henry se atreveu a fazer per­
guntas sobre um exame especialmente ambíguo, «o senhor pode
escrever até ao dia do Juízo Final, tanto se me dá, mas se as suas
respostas não coincidirem com as minhas, estão erradas. Erradas,
senhor. » Não era para admirar que Atticus lhe causasse perplexi­
dade nos primeiros tempos da sua associação ao dizer-lhe: «O pro­
cesso de defesa é pouco mais do que pôr no papel aquilo que
queremos dizer. » Com paciência e discrição, Atticus ensinara-lhe
tudo o que Henry sabia da sua arte, mas o jovem perguntava-se
às vezes se teria de chegar à idade de Atticus para dominar com­
pletamente a lei. Veio-lhe à memória um verso. Tom, Tom, o filho

53
do limpa-chaminés 9 • Referir-se-ia ao caso do depositário legal?
Não, era o primeiro dos casos em que foi decidida a posse de um
tesouro encontrado: a posse confirma-se perante o requerente, caso
o verdadeiro dono não o reclame. O rapaz encontrou uma joia, um
alfinete de peito. Olhou para Jean Louise, que dormitava.
Era ele o seu verdadeiro dono, isso era-lhe bem claro. Desde
a altura em que ela lhe atirava pedras, em que quase estourou os
miolos a brincar com pólvora, em que saltava sobre ele por trás, o
apanhava com um golpe de braço que o imobilizava e o obrigava
a gritar que se rendia, quando, doente e delirante num certo verão,
gritava por ele, por Jem e por Dill... Perguntou-se onde estaria
Dill, ela saberia, pois mantinham-se em contacto.
- Querida, onde está o Dill?
Jean Louise abriu os olhos. - Em Itália, da última vez
que soube.
Ela remexeu-se no assento. Charles Baker Harris. Dill, o seu
amigo do coração. Bocejou e ficou a ver a frente do carro devorar
a linha branca do asfalto. - Onde estamos?
- Faltam quinze quilómetros.
- Já se sente o rio - comentou ela.
- Deves ser meio jacaré - disse Henry. - Eu não sinto nada.
- O Tom Dois Dedos ainda faz das suas?
Tom Dois Dedos vivia onde quer que houvesse um rio. Era um
génio: abria túneis por baixo de Maycomb e comia as galinhas
das pessoas à noite; uma vez foi perseguido desde Demopolis até
Tensas. Era tão velho como o condado.
- Talvez o vejamos esta noite.
- O que é que te fez pensar no Dill? - quis ela saber.
- Não sei, lembrei-me.
- Nunca gostaste dele, pois não?
Henry sorriu. - Tinha ciúmes. Ele tinha-vos a ti e ao Jem
durante todo o verão, ao passo que eu tinha de ir para casa assim
que a escola acabava. Lá não havia ninguém com quem brincar.
9
Referência a um poema de William B lake e alusão a um famoso caso j ul­
gado em Inglaterra sobre um limpa-chami nés a quem foi permitido ficar com
a posse de uma joia encontrada na chaminé. (NT)

54
Ela ficou calada. O tempo parou, alterou-se e entrou em marcha­
-atrás, vagaroso. Aí era sempre verão. Hank estava em casa da
mãe, indisponível, e ]em tinha de se contentar com a companhia
da irmã mais nova. Os dias eram compridos, Jem tinha onze anos,
e o esquema era sempre o mesmo.
Encontravam-se no alpendre de trás, o lugar mais fresco da casa.
Dormiam ali todas as noites desde o início de maio até aos finais
de setembro. ]em, que estivera deitado na sua cama desmontável a
ler desde o nascer do dia, atirou-lhe à cara uma revista de futebol,
apontou para uma fotografia e perguntou: - Quem é este, Scout?
- O Johnny Mack Brown 10. Vamos representar uma história.
]em abanou a página na cara dela. - Então, quem é este?
- És tu - respondeu ela.
- OK. Chama o Dill.
Não era preciso chamá-lo. As couves tremeram na horta de
Miss Rachel, a vedação de trás gemeu, e o Dill apareceu. O rapaz
era uma curiosidade porque vinha de Meridian, no Mississípi, e o
mundo não tinha segredos para ele. Passava todos os verões em
Maycomb com a tia-avó, que morava na casa ao lado da dos Pin­
ches. Era um miúdo baixo, de ombros largos, convencido, com um
rosto de anj o e a astúcia de um arminho. Um ano mais velho que
ela, Jean Louise ganhava-lhe em altura por uma cabeça.
«Ei » , disse Dill. «Hoje vamos brincar ao Tarzan. Eu sou o Tarzan. »
«Não podes » , contrapôs ]em.
«Eu sou a Jane » , disse ela.
«Bom, não vou fazer de macaco outra vez » , recusou Dill.
«Tenho sempre de ser o macaco. »
«Então, queres ser a Jane? » , perguntou ]em. Espreguiçou-se,
vestiu as calças e declarou: «Vamos brincar ao Tom Swift. Eu sou
o Tom. »
«Eu sou o Ned» , bradaram Dill e Jean Louise em simultâneo.
«Não, não és nada » , disse-lhe ela.
O rosto de Dill ficou corado. «Scout, tens de ser sempre o
segundo. Eu nunca sou o segundo. »

10
Jogador de futebol americano e estrela de c i nema. (NT)

55
«Queres resolver a questão? » , perguntou ela, educada, a cerrar
os punhos.
]em interveio: «Podes ser Mr. Damon, Dill. Ele é sempre engra­
çado e salva toda a gente no fim. Sabes, ele traz sempre sorte. »
«Sorte o tanas » , ironizou Dill, prendendo os polegares nuns
suspensórios invisíveis. «Oh, está bem. »
«Ao que é que vai ser? » , perguntou Jem. «Ao aeroporto oceâ­
nico ou à máquina voadora? »
«Estou cansada dessas » , protestou ela. «Inventa lá uma. »
«OK. Scout, tu és o Ned Newton. Dill, tu és Mr. Damon. Bom,
um dia o Tom está no laboratório a trabalhar numa máquina que
pode ver através de uma parede de tijolo quando entra um homem
e diz: "Mr. Swift? " O Tom sou eu, por isso digo: "Sim? " »
«Não há nada que consiga ver através duma parede » , afiançou Dill.
«Esta coisa conseguia. Bom, o tal homem entra e diz: "Mr. Swift?" »
«]em» interrompeu ela, «se vai haver este homem, vamos
precisar de outra pessoa. Queres que vá a correr chamar o Bennett? »
«Não, ele não dura muito, por isso eu digo as falas dele. Tens
de começar uma história, Scout... »
O papel do homem consistia em informar o jovem inventor que
um importante professor se perdera no Congo Belga ia para trinta
anos e era mais do que tempo que alguém tentasse ir buscá-lo.
Viera naturalmente procurar os serviços de Tom Swift e dos seus
amigos, e Tom agarrou logo a oportunidade de uma aventura.
Os três subiram para a sua máquina voadora, que era composta
de umas tábuas largas que eles tinham havia muito pregado nos
ramos mais grossos do cinamomo.
«Aqui está um calorão » , queixou-se Dill. «Huh-huh-huh. »
«Que foi? » , perguntou Jem.
«Está um calorão aqui em cima, tão perto do Sol. Ainda bem
que trago roupa interior especial. »
«Não podes dizer isso, Dill. Quanto mais se sobe, mais frio fica. »
«Eu acho que fica mais quente. »
«Bem, não fica. Quanto mais alto mais frio, porque o ar fica
mais fino. Agora tu, Scout, dizes: " Tom, para onde vamos? " »
«Pensei que íamos para a Bélgica» , disse Dill.

56
«Tens de perguntar para onde vamos, porque o homem disse-me
a mim, não te disse a ti, e eu ainda não vos disse, percebes? »
Eles perceberam.
Quando Jem explicou a missão, Dill disse: «Se ele está perdido
há tanto tempo, como é que sabem que está vivo?»
Jem esclareceu: «O tal homem disse que recebera um sinal da
Costa Dourada a dizer que o professor Wiggins vivia... »
«Se ele teve notícias dele, como é que está perdido? » , questio­
nou ela.
«... com uma tribo perdida de caçadores de cabeças » , continuou
Jem, ignorando-a. «Ned, tens a espingarda com a visão de raios X?
Dizes que sim. »
Ela disse: «Sim, Tom. »
«Mr. Damon, abasteceu a máquina voadora com provisões
suficientes? Mr. Damon!»
Com um estremeção, Dill pôs-se atento. «Pelos meus santinhos,
Tom. Sim, s'nhor! Huh-huh-huh! »
Aterraram na periferia da Cidade do Cabo, e Jean Louise lem­
brou a Jem que ele não lhe dava nada para dizer havia dez minutos
e que, se não desse, não ia brincar mais.
«OK, Scout, tu dizes: "Tom, não há tempo a perder. Vamos
direitos à selva. " »
Ela disse a frase.
Marcharam pelo pátio das traseiras, retalhando a folhagem,
parando ocasionalmente para matar um elefante tresmalhado ou
lutar contra uma tribo de canibais. Jem seguia à frente. Por vezes
gritava «Recuem! » , e eles caíam de bruços sobre a areia morna.
Uma vez salvou Mr. Damon das cataratas de Vitória, enquanto ela
se mantinha ali, amuada, porque a única coisa que fazia era agarrar
na corda que segurava Jem.
Jem acabou por gritar: «Estamos quase lá, vamos! »
Avançaram sobre a garagem, uma aldeia de caçadores de cabe­
ças. Jem deixou-se cair de joelhos e começou a mover-se como um
encantador de serpentes.
«Que estás a fazer? » , quis ela saber.
«Chiu! Um sacrifício.»

57
«Pareces aflito » , reparou Dill. «O que é um sacrifício? »
«Faz-se para manter os caçadores de cabeças longe de nós. Olha,
ali estão eles!» Jem emitiu um zumbido grave, disse algo como
buja-buja-buja, e a garagem ficou cheia de selvagens.
Dill revirou os olhos de uma forma repugnante, ficou rígido
e caiu no chão.
«Apanharam Mr. Damon! » , bradou Jem.
Levaram Dill, teso que nem um poste, para o sol. Juntaram
folhas de figueira e alinharam-nas ao longo do seu corpo, da cabeça
até aos pés.
«Achas que vai resultar, Tom? » , perguntou ela.
«Talvez. Ainda não sei. Mr. Damon? Mr. Damon, acorde! » Jem
bateu-lhe na cabeça.
Dill ergueu-se, espalhando as folhas. «Para lá com isso, Jem
Finch » , bradou, voltando a estatelar-se no chão. «Não fico aqui
muito mais tempo. Está a ficar calor. »
Jem fez uns passes pontifícios misteriosos sobre a cabeça de Dill
e exclamou: «Olha, Ned, está a voltar a si. »
Dill pestanejou e abriu os olhos. Levantou-se e cambaleou pelo
pátio a balbuciar: «Onde estou? »
«Aqui mesmo, Dill » , sossegou-o Jean Louise, um tanto
alarmada.
Jem olhou-a, zangado. «Sabes que isso não se faz. Tu dizes:
"Mr. Damon, está perdido no Congo Belga, onde o enfeitiçaram.
Eu sou o Ned, e este é o Tom. " »
«Também estamos perdidos? » , perguntou ele.
«Estivemos, enquanto esteve enfeitiçado, mas já não estamos » ,
disse Jem. «O professor Wiggins está preso numa cabana além
e temos de o ir... »
Tanto quanto sabia, o professor continuou preso, pois Calpurnia
quebrou os feitiços todos ao enfiar a cabeça pela porta das traseiras e
berrar: «Querem limonada? São dez e meia. É melhor virem beber
uma ou são cozidos vivos debaixo desse sol! »
Calpurnia pousara três copos e um grande jarro cheio de limo­
nada dentro da porta do alpendre de trás, um plano destinado a
garantir que ficavam à sombra por pelo menos cinco minutos.

58
Limonada a meio da manhã era uma ocorrência diária durante
o verão. Emborcaram três copos cada um e constataram que não
tinham mais nada para fazer o resto da manhã.
«Querem ir à Pastagem do Dobbs? » , perguntou Dill.
Não.
«E que tal fazermos um papagaio? » , propôs Jean Louise.
«Podemos pedir farinha à Calpurnia... »
«Não se pode pôr um papagaio a voar no verão » , lembrou Jem.
«Não sopra nem uma brisa. »
No alpendre de trás, o termómetro marcava 3 3 graus, a garagem
tremeluzia levemente ao longe, e o par de cinamomos gigantes
estava perfeitamente imóvel.
«Já sei » , disse Dill. «Vamos fazer um revivalismo. »
Os três entreolharam-se. A ideia tinha o seu mérito.
Os dias de brasa em Maycomb implicavam pelo menos um
revivalismo, e naquela semana decorria um. Era costume as três
igrejas da cidade - a metodista, a batista e a presbiteriana -
unirem-se e ouvirem um pastor convidado, mas, por vezes,
quando as igrejas não chegavam a acordo sobre o pregador ou o
seu salário, cada congregação realizava o seu próprio revivalismo,
estendendo o convite a toda a gente. Assim, a população podia
por vezes contar com três semanas de um novo despertar reli­
gioso. Era um tempo de guerra: guerra ao pecado, � Coca-Cola,
aos filmes, à caça ao domingo; guerra à tendência crescente de
as jovens se pintarem e fumarem em público; guerra ao uís­
que - nesta questão, pelo menos cinquenta crianças todos os
verões iam ao altar e juravam que não beberiam, fumariam ou
diriam pragas até aos vinte e um anos; guerra a algo tão obscuro
que Jean Louise nunca conseguiu perceber o que era, exceto não
haver nada a jurar a esse respeito; e guerra entre as senhoras
da cidade sobre quem oferecia a melhor mesa ao evangelista.
Os pastores habituais de Maycomb também comiam de graça
por uma semana, e certos grupos irreverentes insinuavam que
o clérigo local levava deliberadamente as suas igrejas a reali­
zar serviços separados, ganhando assim mais duas semanas de
honorários. Isto, porém, era mentira.

59
Nessa semana, Jean Louise, )em e Dill tinham ficado sentados
durante três noites na secção infantil da igreja batista (eram eles
os anfitriões do momento), a escutar as mensagens do reverendo
James Edward Moorehead, um famoso palestrante do Norte da
Geórgia. Foi pelo menos isso que lhes haviam dito, pois pouco
compreendiam o que ele dizia, à exceção dos seus comentários sobre
o Inferno. Para Jean Louise, o Inferno era e sempre seria um lago
de fogo exatamente com o tamanho de Maycomb, no Alabama,
cercado por um muro de tijolo de sessenta metros de altura. Os
pecadores eram espetados com forquilhas e levados por cima do
muro por Satanás, ficando a ferver em fogo lento por toda a eter­
nidade numa espécie de caldo de enxofre líquido.
O reverendo Moorehead era um homem triste, alto e curvado
com a tendência de dar aos seus sermões títulos surpreendentes.
(Falaríeis a Jesus se o encontrásseis na rua? O reverendo duvidava
que isso fosse possível, mesmo que se quisesse, porque Jesus falava
provavelmente em aramaico.) Na segunda noite em que pregou, o
tópico era O Preço do Pecado . Nessa altura, o cinema da terra exibia
um filme com o mesmo título (quem tivesse menos de dezasseis
anos não era admitido). Maycomb pensou que o reverendo ia pregar
sobre o filme, e apareceu a cidade inteirâ para o ouvir falar. Ele,
porém, não fez nada disso. Durante três quartos de hora, apontou
diferenças irrelevantes na correção gramatical do seu texto, assina­
lando distinções de tanta profundidade que nem Atticus Finch
percebeu qual era a sua intenção.
Jean Louise, Jem e Dill ter-se-iam aborrecido de morte não fosse
o reverendo Moorehead possuir um talento deslumbrante que fasci­
nava as crianças: ciciava. Tinha um espaço entre os dois dentes da
frente (Dill jurava que eram falsos e tinham sido feitos assim para
os fazer parecer naturais) que produzia um som desgraçadamente
divertido quando ele pronunciava uma palavra com um «s» ou
mais. Perversão, Jesus, Cristo , salvação, sucesso eram palavras-chave
que esperavam ouvir todas as noites, e a sua atenção era recom­
pensada de duas formas: naquele tempo, nenhum pastor conseguia
terminar um sermão sem as usar todas, o que lhes garantia deli­
ciosos paroxismos de riso abafado pelo menos sete vezes por noite;

60
em segundo lugar, uma vez que prestavam uma atenção tão rigo­
rosa ao reverendo, os três amigos foram considerados as crianças
mais bem comportadas da congregação.
Na terceira noite do revivalismo, quando se chegaram à frente
com várias outras crianças e aceitaram Cristo como seu salvador
pessoal, mantiveram os olhos pregados no chão porque o reverendo
dobrou as mãos sobre as suas cabeças e disse, entre outras coisas:
«Abençoado seja o que não se senta no assento do desdenhoso. »
Dill foi acometido de um ataque de tosse tão forte que o reverendo
murmurou a Jem: «Leva a criança lá para fora. Ele está subjugado. »
)em declarou: «Já sei, podemos acabar isto no teu jardim, junto
ao lago dos peixes. »
Dill disse que seria ótimo. «Pois, )em. Podemos ir buscar uns
caixotes para fazer de púlpito. »
Um acesso de gravilha dividia o jardim dos Pinches do de Miss
Rachel. O lago dos peixes ficava do lado de Miss Rachel e rodea­
vam-no azáleas, roseiras, cameleiras e jasmins. No lago viviam
uns quantos peixes-dourados gordos, juntamente com várias rãs
e lagartos aquáticos, à sombra de grandes nenúfares e ramadas de
hera. Uma grande figueira espalhava as suas folhas venenosas sobre
a área circundante, tornando-a na mais fresca da vizinhança. Miss
Rachel dispusera algumas peças de mobiliário de jardim em volta
do lago, e havia uma mesa de cavalete debaixo da figueira.
Encontraram dois caixotes vazios no fumeiro de Miss Rachel e
montaram um altar defronte do lago. Dill posicionou-se atrás dele.
«Eu snu Mr. Moorehead » , declarou.
«Eu é que sou Mr. Moorehead » , contrapôs )em. «Sou o mais
velho. »
«Oh, está bem» , acedeu Dill.
«Tu e a Scout podem fazer de congregação. »
«Não teremos nada para fazer» , comentou ela. «Macacos me mor­
dam se fico aqui sentada durante uma hora a ouvir-te, )em Finch. »
«Tu e o Dill podem fazer o peditório» , sugeriu )em. «Também
podem ser o coro. »
A congregação puxou duas cadeiras de jardim e sentou-se de
frente para o altar.

61
]em disse: «Agora cantam qualquer coisa. »
Ela e Dill cantaram:

Sublime Graça, oh quão doce é o som


Que salvou um miserável como eu;
Estava perdido mas agora me encontrei,
Estava cego, mas agora eu vejo. Á-men.

]em passou os braços em volta do púlpito, inclinou-se para


a frente e afirmou num tom confidencial: «Ena, é bom ver-vos a
todos esta manhã. A manhã está linda. »
Dill disse: «Á-men. »
«Esta manhã alguém se sente com vontade de abrir o peito e de
cantar a seu bel-prazer? » , perguntou ]em.
«Sim, senhor » , respondeu Dill, o qual, dada a sua figura robusta
e falta de altura, estava para sempre condenado a fazer o papel de
homem; ergueu-se e, perante os olhos deles, transformou-se num
coro de uma só voz:

Quando a trombeta do Senhor soar e o tempo acabar,


E a manhã romper, eterna, gloriosa e justa;
Quando os redimidos da terra se reunirem na outra margem,
E a chamada for feita ao longe, lá estarei.

O pastor e a congregação juntaram-se ao coro. Enquanto canta­


vam, Scout ouviu Calpurnia a chamar ao longe, mas afastou o som
dos seus ouvidos como se de um mosquito se tratasse.
Dill, de rosto muito corado devido a todo aquele esforço, sen­
tou-se no lugar das beatas.
J em prendeu um pince-nez invisível no nariz, clareou a garganta
e principiou: «O texto de hoje, meus irmãos, é tirado dos Salmos:
"Aclamai o Senhor, terra inteira. " »
Tirou o pince-nez, e, enquanto o limpava, repetiu numa voz
grave: «Aclamai o Senhor, terra inteira. »
Dill declarou: «São horas de fazer o peditório » , e exigiu a Scout
os dois níqueis que ela tinha no bolso.

62
«Devolves-mos depois do serviço, Dill » , lembrou ela.
«Calai-vos » , pediu ]em . «É altura do sermão. »
]em pregou o sermão mais longo e mais aborrecido que ela
ouvira na vida. Disse que o pecado era a coisa mais pecaminosa de
que se lembrava e que ninguém que pecasse podia jamais vir a ter
sucesso e abençoado o que se sentava no lugar do desdenhoso; em
resumo, repetiu a sua versão do que tinham ouvido nas últimas
três noites. Baixava a voz até um registo mínimo e erguia-a depois
num guincho, esgatanhando o ar com as mãos como se o chão se
estivesse a abrir debaixo dos seus pés. Perguntou uma vez: «Onde
está o Demónio? » , e apontou a direito para a congregação. «Aqui
mesmo em Maycomb, no Alabama. »
Começou a discursar sobre o Inferno, mas a irmã interveio:
«Acaba lá com isso, ]em. » A descrição do reverendo Moorehead
fora o suficiente para lhe durar uma vida inteira. Jem deu meia­
-volta e abordou o céu: o céu estava cheio de bananas (a predileção
de Dill), batatas gratinadas (as favoritas dela) e, quando morressem,
iam para lá e comiam coisas boas até ao dia do Juízo Final, mas,
nesse dia, Deus, que escrevera num livro tudo o que tinham feito
desde o dia do nascimento, atirava-os para o Inferno.
]em terminou o serviço, perguntando a todos os que desejassem
reunir-se a Cristo que avançassem. Ela assim fez.
]em pousou-lhe a mão na cabeça e perguntou: «Menina, estás
arrependida? »
«Sim, senhor » , respondeu ela.
«Foste batizada? »
«Não, senhor » , respondeu ela.
«Bom... » Jem molhou a mão na água negra do lago dos peixes
e pousou-a na cabeça dela. «Eu te batizo... »
«Ei, espera lá! » , gritou Dill. «Isso não está certo! »
«Acho que está » , retorquiu Jem. «Eu e a Scout somos metodistas. »
«Certo, mas isto é um revivalismo dos batistas. Tens de a
enfiar lá dentro. Acho que também quero ser batizado. » Dill
começava a aperceber-se das ramificações da cerimónia e lutou
duramente por aquele papel. «É pra mim » , insistiu. «Eu é que
sou batista, por isso acho que devo ser eu a ser batizado. »

63
«Ora escuta lá, Dill Pickle Harris » , disse Scout em tom amea­
çador. «Não fiz coisíssima nenhuma toda a manhã. Tu fizeste
de beata, cantaste um solo, recolheste o peditório. Agora é a mi­
nha vez. »
Tinha os punhos cerrados, o braço esquerdo empertigado e os
dedos dos pés cravados no chão.
Dill recuou. «Acaba lá com isso, Scout. »
«Ela tem razão, Dill » , interveio Jem. «Podes ser meu assistente. »
O irmão olhou para ela. «Scout, é melhor tirares a roupa, vai
ficar molhada. »
Ela livrou-se das jardineiras, a única peça de roupa que trazia.
«Não me segures lá em baixo » , lembrou, «e não te esqueças de
me apertar o nariz. »
Postou-se na berma de cimento do lago. Um peixe-dourado
vetusto veio à superfície e mirou-a com ar ameaçador, desapare­
cendo em seguida na água escura.
«Esta coisa é muito funda? » , quis ela saber.
«Tem pouco mais de meio metro » , informou-a ]em, virando-se
para Dill em busca de confirmação. Este, porém, deixara-os.
Viram-no a dirigir-se como um raio à casa de Miss Rachel.
«Achas que é doido? » , perguntou ela.
«Não sei, esperamos a ver se volta. »
]em disse que era melhor enxotarem os peixes para a outra
ponta do lago não fossem magoar algum, e estavam dobrados sobre
um dos lados a agitar a água quando uma voz agourenta bradou
atrás deles: «Huuuu... »
«Huuuu... » , repetiu Dill por baixo de um lençol de casal no
qual cortara dois buracos para os olhos. Ergueu os braços acima
da cabeça e atirou-se a Jean Louise. «Estás pronta? » , perguntou.
«Despacha-te, ]em. Estou a ficar com calor. »
«Pelas tuas alminhas! » , exclamou ]em. «Que te passou pela
cabeça? »
«Sou o Espírito Santo » , explicou Dill com modéstia.
]em pegou na mão de Scout e levou-a para dentro do lago.
A água estava quente e lodosa, e o fundo era escorregadio. «Só me
mergulhas uma vez » , avisou ela.

64
]em ficou parado na beira do lago. A figura debaixo do lençol
juntou-se-lhe, esbracejando como um louco. Jem segurou a irmã
pelos ombros e empurrou-a para baixo de água. No momento
em que a sua cabeça mergulhou sob a superfície, ela ouviu Jem
a entoar: «Jean Louise Finch, eu te batizo em nome de . . . »
Zás!
O chicote de Miss Rachel fez um contacto perfeito com o tra­
seiro da aparição sagrada. Uma vez que não queria recuar para o
meio da chuva de chibatadas, Dill deu um passo em frente com
toda a ligeireza e juntou-se a Scout no lago. Miss Rachel malhava
sem piedade num emaranhado arquejante composto de nenúfares,
um lençol, braços e pernas e hera retorcida.
«Sai já daí! » , gritava Miss Rachel. «Eu já te dou o Espírito
Santo, Charles Baker Harris! Arrancaste os meus melhores lençóis
da cama, não foi? E cortaste-lhes buracos, não foi? Invocaste o
nome do Senhor em vão, não foi? Toca a sair daí! »
«Acabe lá com isso, tia Rachel! » , gorgolejava Dill, a cabeça
meio enfiada dentro de água. «Deixe-me sair! »
Os esforços de Dill para se desenredar com dignidade não esta­
vam a ter muito êxito: ergueu-se do lago qual diminuto monstro
aquático fantástico, coberto de limos verdes e de um lençol a pin­
gar. Uma gavinha de hera enrolava-se-lhe em volta da cabeça e
do pescoço. Abanou violentamente a cabeça para se libertar,
e Miss Rachel deu um passo atrás para evitar os borrifos.
Jean Louise saiu atrás dele. Sentia um formigueiro horrível no
nariz por causa da água que entrara, e doía-lhe quando fungava.
Miss Rachel recusou-se a tocar em Dill, fazendo-lhe sinal com
o chicote que se despachasse, dizendo: «À minha frente. Marche!»
Ela e Jem ficaram a vê-los até desaparecerem no interior da casa
de Miss Rachel, e Scout não pôde deixar de ter pena do amigo.
«Vamos para casa » , disse Jem. «Devem ser horas do jantar. »
Viraram-se na direção da casa e deram de caras com o pai, pos­
tado no caminho.
A seu lado encontrava-se uma senhora que não conheciam e
o reverendo James Edward Moorehead. Tudo indicava que já ali
estavam havia algum tempo.

65
Atticus dirigiu-se a eles e despiu o casaco. Scout sentiu um
aperto na garganta, e tremeram-lhe os joelhos. Quando o pai lhe
cobriu os ombros com o casaco, apercebeu-se de que estava comple­
tamente nua na presença de um pastor. Tentou correr, mas Atticus
agarrou-a pelo pescoço e disse: « Vai ter com a Calpurnia. Entra
pelas traseiras. »
Calpurnia esfregou-a com violência na banheira, a resmungar:
«Mr. Finch telefonou esta manhã a dizer que trazia o pastor e a
mulher para jantar. Gritei por vocês até ficar sem ar. Por que razão
não me responderam? »
«Não te ouvimos», mentiu.
«Bom, tive de escolher entre pôr um bolo no forno ou ir à vossa
procura. Não podia fazer as duas coisas. Deviam ter vergonha,
a ralarem o vosso pai desta maneira! »
Scout pensou que o dedo ossudo de Calpurnia lhe ia furar o
ouvido. «Para com isso » , pediu.
«Se ele não vos chegar a roupa ao pelo, chego eu » , garantiu ela.
«Agora saia dessa banheira. »
Calpurnia quase lhe arrancou a pele com a toalha áspera e
mandou-a erguer as mãos acima da cabeça. Enfiou-a num vestido
cor-de-rosa teso de goma, segurou-lhe firmemente o queixo entre
o polegar e o indicador e alisou-lhe o cabelo com um pente de
dentes aguçados. Atirou-lhe com um par de sapatos de verniz aos
pés e ordenou: «Calce-os. »
«Não consigo abotoá-los » , lembrou ela. Calpurnia fechou
com estrondo a tampa da sanita e sentou-a. Scout ficou a ver
os grandes dedos assustadores realizarem a complexa tarefa de
enfiar os botõezinhos de pérola em buracos demasiado pequenos,
e maravilhou-se perante o poder das mãos de Calpurnia.
«Agora vá ter com o seu pai. »
«Onde está o ]em? » , quis ela saber.
«A limpar-se na casa de banho de Mr. Finch. Nele posso confiar. »
Na sala, ela e ]em sentaram-se sossegados no sofá. Atticus
e o reverendo Moorehead conversavam de coisas sem interesse, e
Mrs. Moorehead mirava as crianças sem disfarce. Jem olhou para
a senhora e sorriu, mas o sorriso não obteve resposta e ele desistiu.

66
Para alívio de todos, Calpurnia tocou a sineta para o jantar.
A mesa, ficaram um momento sentados num silêncio desconfor­
tável, até Atticus pedir ao reverendo que desse graças. Em vez de
pedir uma bênção impessoal, o pastor aproveitou a oportunidade
para informar o Senhor das faltas dos dois irmãos. Quando o reve­
rendo se resolveu por fim a explicar que aquelas crianças eram órfãs
de mãe, Scout sentiu-se totalmente esmagada. Deu uma espreita­
dela a Jem: o irmão tinha o nariz quase enfiado no prato e as orelhas
vermelhas. Duvidou que o pai conseguisse voltar a erguer a cabeça,
e as suas suspeitas confirmaram-se quando o pastor disse finalmente
«Ámen» e Atticus ergueu o olhar. Duas grandes lágrimas haviam­
-lhe rolado por baixo dos óculos e escorrido pelas faces. Desta vez
tinham-no magoado a sério. De súbito, o pai disse: «Desculpem­
-me», levantou-se abruptamente e desapareceu na cozinha.
Calpurnia entrou com todo o cuidado, carregando um tabuleiro
pesado. Na presença de visitas, ela exibia as suas melhores maneiras:
embora soubesse falar num inglês tão impecável como qualquer outra
pessoa, na presença de convidados pronunciava mal os verbos; foi
passando com toda a altivez as travessas de vegetais, parecendo não
parar para respirar. Quando chegou ao seu lado, Jean Louise disse:
«Desculpem-me, por favor», esticou-se e puxou a cabeça de Calpurnia
para junto da sua. «Cal», sussurrou, «o Atticus está mesmo zangado?»
A cozinheira endireitou-se, olhou para ela do alto e disse para
a mesa em geral: «Mr. Finch? Não, Miss Scout. ' T á no alpendre
de trás a rir! »

***
Mr. Finch? 'Tá a rir. O som de pneus a rolarem do asfalto para
a terra acordou-a, e Jean Louise passou os dedos pelo cabelo. Abriu
o porta-luvas, encontrou um maço de cigarros, tirou um e acendeu-o.
- Estamos quase a chegar - informou-a Henry. - Onde
estiveste tu? Em Nova Iorque com o teu namorado?
- Estive só a sonhar acordada - disse ela. - Lembrei-me
daquela altura em que fizemos um revivalismo. Tu falhaste essa.
- Graças a Deus! É uma das preferidas do doutor Finch.

67
Ela riu-se. - O tio Jack contou-me essa história durante quase
vinte anos e continua a deixar-me envergonhada. Sabes, o Dill foi a
única pessoa que nos esquecemos de avisar quando o ]em morreu.
Alguém lhe mandou um recorte de jornal, e foi assim que ele soube.
Henry comentou: - É sempre assim. Esquecemo-nos dos mais
antigos. Achas que ele vai regressar?
Jean Louise abanou a cabeça. Quando o Exército enviou Dill
para a Europa, ele ficou por lá. Nascera com alma de vagabundo.
Transformava-se numa pequena pantera se ficasse confinado às mes­
mas pessoas e ao mesmo lugar durante muito tempo. Jean Louise
perguntou-se onde iria ele estar quando a sua vida chegasse ao fim.
Não num passeio em Maycomb, isso de certeza.
O ar fresco do rio invadiu a noite quente.
- O ancoradouro dos Pinches, minha senhora - anun­
ciou Henry.
O ancoradouro da Plantação Finch consistia em trezentos e
sessenta e seis degraus que desciam por uma falésia e terminavam
num cais que se estendia rio adentro. Chegava-se lá através de uma
extensa clareira com cerca de trezentos metros de largura que ia
da berma da falésia até ao bosque. Uma estrada com dois sulcos
corria da borda da clareira, desaparecia entre o arvoredo sombrio
e terminava numa casa branca de dois andares com alpendres em
toda a volta, quer no piso térreo quer no primeiro andar.
Longe de se encontrar num estado avançado de ruína, a velha
casa dos Pinches gozava de excelente conservação: era um clube
de caça. Uns homens de negócios de Mobile haviam alugado a terra
circundante, comprado a casa e criado o que Maycomb considerava
um antro de jogo privado. Isso não era exato: nas noites de inverno,
as divisões da velha casa ressoavam com o regozijo dos homens e
ouvia-se ocasionalmente o tiro de uma caçadeira, não de raiva mas
devido a uma boa disposição notável. Eles que jogassem póquer
e se embriagassem à vontade, tudo o que Jean Louise queria era
que cuidassem da velha casa.
A história da casa era típica do Sul: fora comprada pelo avô de At­
ticus Finch ao tio de um conhecido mulherengo que operava em ambos
os lados do Atlântico, mas que era oriundo de uma velha família do

68
Alabama. O pai de Atticus nascera lá, tal como ele próprio, Alexandra,
Caroline (que casara com um homem de Mobile) e John Hale Finch.
A clareira era utilizada para reuniões de família até estas passarem de
moda, algo de que Jean Louise ainda se lembrava muito bem.
O trisavô de Atticus Finch, um metodista inglês, instalou-se
junto ao rio perto de Claiborne e produziu um filho e sete filhas,
que casaram com os filhos das tropas do coronel Maycomb, foram
fecundas e estabeleceram aquilo a que o condado chamava as Oito
Famílias. Ao longo do tempo, quando os descendentes se reuniam
anualmente, tornara-se necessário que o Finch que morava na plan­
tação debastasse os bosques mais um pouco a fim de criar espaço para
os piqueniques, o que explicava o tamanho atual da clareira. Esta
era, porém, utilizada com outros fins para além das reuniões familia­
res. Os negros jogavam lá basquetebol, o Klan reunia-se aí nos seus
dias de glória e, no tempo de Atticus, realizava-se um grande tor­
neio, no qual os cavalheiros do condado se batiam, quais cavaleiros
medievais, pela honra de levar as suas damas até Maycomb para um
grande banquete. Alexandra confessou que o que a levara a casar-se
com o tio Jimmy fora vê-lo enfiar uma vara num aro, a galope.
Foi igualmente no tempo de Atticus que os Pinches se mudaram
para a cidade. Atticus estudou Direito em Montgomery e regressou
a Maycomb para exercer. Alexandra, vencida pela destreza do tio
Jimmy, acompanhou-o para a cidade; John Hale Finch foi estudar
Medicina em Mobile, e Caroline fugiu para casar aos dezassete
anos. Quando o pai morreu, arrendaram as terras, mas a mãe
recusou-se a sair da velha casa. Lá permaneceu, a ver as terras em
seu redor serem arrendadas e vendidas pedaço a pedaço. Quando
morreu, restava apenas a casa, a clareira e o ancoradouro. A casa
ficou vazia até os cavalheiros de Mobile a comprarem.
Jean Louise pensava lembrar-se da avó, mas não estava bem
certa. Ao ver o seu primeiro Rembrandt, uma mulher de boina
e gola de rufo, declarou: «Está ali a avó. » Atticus disse que não,
que nem sequer era parecida, mas a filha tinha a impressão de que,
algures na velha casa, fora levada a um quarto mal iluminado onde,
no centro, se sentava uma senhora muito velha vestida de preto
e ostentando uma gola de renda branca.

69
Os degraus que levavam ao embarcadouro eram naturalmente
conhecidos por Escada Bissexta, e, quando Jean Louise era criança
e ia às reuniões anuais, ela e uma multidão de primos obrigavam os
pais a ir constantemente até à berma da falésia, preocupados com os
filhos, que brincavam nos degraus, até as crianças serem apanhadas
e divididas em duas categorias, os que sabiam nadar e os que não
sabiam. Os que não sabiam eram relegados para o lado da clareira
junto ao bosque, onde se viam forçados a brincar a jogos inócuos;
os que sabiam nadar tinham o comando dos degraus, vigiados com
indiferença por dois jovens negros.
O Clube de Caça manteve a escada em bom estado e usou o anco­
radouro como doca para os seus barcos. Eram homens indolentes: era
mais fácil descer a corrente e remar até ao pântano de Winston do que
abrir caminho por entre a vegetação rasteira e os golpes dos pinheiros.
Mais longe, no rio, para além do ancoradouro, existiam vestígios do
velho cais do algodão, onde os negros dos Pinches carregavam fardos
e produtos variados, e descarregavam blocos de gelo, farinha e açúcar,
utensílios agrícolas e artigos de senhora. O ancoradouro era apenas
usado pelos viajantes: os degraus davam às senhoras uma excelente
oportunidade para desfalecer; a bagagem era deixada no cais do
algodão, pois desembarcar aí, em frente dos negros, era impensável.
- Achas que ainda são seguros?
Henry respondeu: - Claro, o clube mantém-nos. Estamos
a invadir propriedade alheia, sabias?
- Uma ova! Gostava de ver o dia em que um Finch não pode
passar pelas suas próprias terras. - Interrompeu-se. - Que que­
res dizer?
- Venderam o que restava há cinco meses.
- Não me disseram absolutamente nada - afirmou ela.
O com da sua voz fez com que Henry parasse. - Não te impor­
tas nada, pois não?
- Não, de facto, não. Só gostava que me tivessem dito.
Henry não ficou convencido. - Por amor de Deus, Jean Louise,
que proveito dava a Mr. Finch e aos outros?
- Absolutamente nenhum, com os impostos e tudo isso.
Só gostava que me tivessem dito. Não gosto de surpresas.

70
Henry riu-se. Baixou-se e pegou numa mão-cheia de areia acin­
zentada. - A armares-te em sulista para cima de mim? Queres
que faça de Gerald O'Hara?
- Para com isso, Hank. - A sua voz era agradável.
Henry disse: - Acho que és a pior deles todos. Mr. Finch,
apesar dos seus setenta e dois anos, é um jovem, e tu és centenária
no que respeita a isto.
- Só não gosto que me perturbem o meu mundo sem me avi-
sarem. Vamos descer até ao ancoradouro.
- Apetece-te?
- Ganho-te sem problema.
Correram até aos degraus. Quando Jean Louise começou a rápida
descida, os seus dedos sentiram o toque frio do metal. Deteve-se.
Desde que lá estivera no ano anterior tinham instalado um cor­
rimão feito de tubo de ferro. Hank ia demasiado distante para o
apanhar, mas tentou.
Quando chegou ao ancoradouro, sem fôlego, Henry estava já
esparramado sobre as tábuas. - Tem cuidado no alcatrão, que­
rida - avisou ele.
- Estou a ficar velha - comentou ela.
Fumaram um cigarro em silêncio. Henry passou-lhe o braço por
baixo do pescoço e virava de vez em quando a cabeça e beijava-a.
Ela olhava para o céu. - Quase podemos esticar o braço e tocar­
-lhe, tão baixo que está.
- Falavas a sério há bocado quando disseste que não gostavas
que te perturbassem o teu mundo? - perguntou Henry.
- Quê? - Jean Louise não sabia, mas achava que sim. Tentou
explicar. - É só que, de cada vez que venho a casa nos últimos
cinco anos, até mesmo antes disso, desde a universidade, há algo
que mudou mais um bocado...
- E não sabes bem se te agrada, não é? - Henry fazia um
sorriso aberto, e ela conseguia vê-lo devido ao luar.
Sentou-se. - Não sei se te consigo explicar, querido. Quando
se vive em Nova Iorque, tem-se muitas vezes a sensação de que a
cidade não é o mundo. O que quero dizer é que, sempre que
venho a casa, sinto como se regressasse ao mundo, e quando deixo

71
Maycomb é como deixar o mundo. É uma tolice. Não sei explicar,
e o que o torna tudo ainda mais tolo é que, se vivesse em Maycomb,
ficava doida varrida.
Henry contrapôs: - Não ficavas nada, sabes. Não quero
pressionar-te para me dares uma resposta, não, não te mexas,
mas tens de tomar uma decisão em relação a uma coisa, Jean
Louise. Vais assistir a mudanças, vais ver Maycomb mudar de
aspeto completamente durante a tua vida. O teu problema é
que queres sol na eira e chuva no nabal, queres parar o relógio,
mas não podes. Em breve terás de decidir se queres Maycomb
ou Nova Iorque.
Ele quase a compreendia. Caso contigo, Hank, se me trouxeres para
aqui, para a plantação, para vivermos. Troco Nova Iorque por este lugar,
mas não por Maycomb.
Ela olhou para o rio. A margem do lado do condado de May­
comb tinha falésias altas, a do condado de Abbott era plana.
Quando chovia, o rio galgava as margens, e podia-se remar um
barco nos campos de algodão. Olhou para montante. A Luta das
Canoas ficava lá para cima, pensou. Sam Dale apanhara os índios
de surpresa, e Águia Vermelha saltara da falésia.

And then he thinks he knows


The hills where his life rose,
And the Sea where it goes. 1 1

- Disseste alguma coisa? - perguntou Henry.


- Nada. Estava só a ser romântica - retorquiu ela. - A pro-
pósito, a tia não te aprova.
- Soube disso a vida toda. E tu?
- Sim.
- Então casa comigo.
- Faz-me uma proposta.

11
Excerto do poema «The Buried Life», de Matthew Arnold, poeta inglês,
1 82 2 - 1 888.
E então ele julga saber / Os montes onde a sua vida brotou, / E o Mar para onde
vai. (NT)

72
Henry levantou-se e sentou-se a seu lado. Penduraram os pés
da borda do ancoradouro. - Onde estão os meus sapatos? - per­
guntou ela de súbito.
- Junto ao carro, onde atiraste com eles. Jean Louise, eu agora
posso sustentar-nos. E daqui a poucos anos posso manter-nos
mesmo bem, se as coisas continuarem a expandir-se. Agora o Sul
é a terra da oportunidade. Há dinheiro suficiente aqui mesmo, no
condado de Maycomb, para afundar um... Gostavas de ter o teu
marido na assembleia legislativa?
Jean Louise ficou surpreendida. - Vais candidatar-te?
- Ando a pensar nisso.
- Contra a máquina?
- Pois. Está pronta a cair, esmagada pelo seu próprio peso, e se
eu entrar por baixo...
- Um governo decente no condado de Maycomb seria um
choque tão grande que acho que os cidadãos não iam aguentar -
comentou ela. - O que pensa o Atticus?
- Pensa que é a altura certa.
- Não te vais safar tão facilmente quanto ele. - O pai, após a
sua campanha inicial, servira na assembleia do estado pelo tempo
que lhe aprouve, sem qualquer oposição. Fora caso único na história
do condado: nenhuma máquina política se opôs a Atticus Finch,
não era apoiado por nenhuma, e ninguém se candidatou contra ele.
Depois de se reformar, a máquina engoliu o único lugar indepen­
dente que restava.
- Não, mas posso não lhes facilitar as coisas. A pandilha do
tribunal anda um bocado a dormir na parada, e uma campanha
dura talvez os vença.
- Querido, não vais ter uma ajudante - disse ela. - A polí­
tica aborrece-me de morte.
- Seja como for, não vais candidatar-te contra mim. Só isso já
é um alívio.
- És um jovem em ascensão, não és? Por que razão não me
contaste que foste eleito Homem do Ano?
- Tive medo de que te risses - confessou Henry.
- Rir-me de ti, Hank?

73
- Pois. Parece que estás meio a rires-te de mim a maior parte
das vezes.
Que podia ela dizer? Quantas vezes lhe ferira os sentimentos?
Disse-lhe: - Sabes que nunca sou exatamente subtil, mas juro por
Deus que nunca me ri de ti, Hank. No meu coração, nunca.
Envolveu-lhe a cabeça nos braços e sentiu o cabelo à escovi­
nha debaixo do queixo. Era como veludo preto. Henry beijou-a e
puxou-a para ele, sobre o chão de tábuas do ancoradouro.
Algum tempo depois, Jean Louise interrompeu o momento.
- É melhor irmos andando, Hank.
- Ainda não.
- Sim.
Hank disse num tom cansado: - O que mais detesto neste
lugar é que temos sempre de voltar a subir.
- Tenho um amigo em Nova Iorque que corre sempre pelas
escadas acima a quilómetro e meio por minuto. Diz que o impede
de ficar sem fôlego. Podias tentar.
- É o teu namorado?
- Não sejas tolo - respondeu ela.
- Hoje já disseste isso uma vez.
- Então, vai prà diabo - rematou ela.
- E também já disseste isso uma vez hoje.
Jean Louise pôs as mãos nas ancas. - Apetece-te ir nadar ves­
tido? Ainda não disse isto hoje. Neste momento, apetece-me mais
empurrar-te do que olhar para ti.
- Sabes, acho que até eras capaz.
- Sem problema.
Henry agarrou-lhe o ombro. - Se eu for, tu vais comigo.
- Faço uma concessão - disse ela. - Dou-te até cinco para
esvaziares os bolsos.
- Isto é de loucos, Jean Louise - protestou ele, tirando
dinheiro, as chaves, a carteira e os cigarros. Descalçou os sapatos.
Olharam um para o outro como galos de luta. Henry empurrou-a,
mas quando ela ia a cair, agarrou-o pela camisa e levou-o com ela.
Nadaram rapidamente em silêncio para o meio do rio, viraram e nada­
ram devagar até ao embarcadouro. - Ajuda-me a subir - pediu ela.

74
A pingar, as roupas coladas ao corpo, subiram os degraus.
- Quando chegarmos ao carro, estamos quase secos - comen­
tou ele.
- Esta noite havia corrente - disse ela.
- Farra a mais.
- Cuidado para eu não te empurrar da falésia. Estou a falar
a sério. - Deu uma gargalhadinha. - Lembras-te de como
Mrs. Merriweather tratava o pobre do marido? Quando formos
casados, vou tratar-te assim.
Para Mr. Merriweather era complicado se, por acaso, discutisse
com a mulher numa estrada pública. Ele não sabia guiar, e, se a
discussão chegasse a um ponto acrimonioso, a mulher parava
o carro e pedia boleia para a cidade. Certa vez, ficaram em desa­
cordo numa vereda, e Mr. Merriweather ficou abandonado durante
sete horas, até conseguir, por fim, uma boleia numa carroça
que passava.
- Quando fizer parte da assembleia, não podemos dar mergu­
lhos à meia-noite - lembrou Henry.
- Então, não te candidates.
O carro ia zumbindo baixo. A pouco e pouco, o ar fresco desapa­
receu e ficou novamente abafado. Jean Louise viu o reflexo de faróis
atrás deles no vidro de trás, e passou um carro. Em breve passou
outro, e mais outro. Maycomb aproximava-se.
Com a cabeça pousada no ombro dele, sentia-se satisfeita. Tal­
vez dê resultado, pensou. Mas eu não sou dona de casa. Nem sequer
sei como mandar numa cozinheira. Que dizem as senhoras umas às
outras quando se visitam? Teria de usar chapéu. Deixava cair os bebés
e matava-os.
Algo que parecia uma abelha preta gigante ultrapassou-os com
um rápido som sibilante e adernou ao fazer a curva seguinte. Ela
endireitou-se, assustada. - Que era aquilo?
- Uma carrada de pretos.
- Por piedade, que acham eles que estão a fazer?
- Hoje em dia, é assim que se afirmam - disse Henry.
- T êm dinheiro que chegue para comprar carros usados e vêm
para a estrada acelerar. São uma ameaça pública.

75
- Têm carta?
- Muitos não. Também não têm seguro.
- Credo, e se acontece alguma coisa?
- É uma tristeza.

***
À porta, Henry beijou-a ao de leve e largou-a. - Amanhã
à noite? - perguntou.
Ela assentiu. - Boa noite, docinho.
De sapatos na mão, entrou no quarto da frente em bicos de
pés e acendeu a luz. Despiu-se, vestiu a parte de cima do pijama,
e dirigiu-se de mansinho à sala. Acendeu um candeeiro e foi até
à estante. Ora bolas, pensou. Passou o dedo ao longo dos volumes
de história militar, demorou-se na Segunda Guerra Púnica e parou
em A Carga da Brigada Ligeira. Pensou: Mais vale marrar para o tio
Jack. Voltou para o quarto, apagou a luz do teto, puxou o candeeiro
e acendeu-o. Enfiou-se na cama em que nascera, leu três páginas e
adormeceu com a luz acesa.

76
PARTE I l i
6

- Jean Louise, Jean Louise, acorda!


A voz de Alexandra penetrou no seu estado letárgico, e ela esfor­
çou-se para saudar o novo dia. Abriu os olhos e viu a tia debruçada
sobre ela. - O que . . . - começou.
- Jean Louise, o que quer dizer. . . o que significa o facto de tu
e o Henry terem ido nadar nus ontem à noite?
Jean Louise sentou-se na cama. - Hã?
- O que pretendiam vocês, tu e o Henry, ao ir nadar no rio nus
ontem à noite? É a notícia que corre em toda a cidade hoje de manhã.
Ela encostou a cabeça aos joelhos e tentou acordar. - Quem
é que lhe disse isso, tia?
- A Mary Webster telefonou logo de manhãzinha. Disse que
vocês foram vistos despidos no meio do rio à uma da manhã!
- Quem quer que tivesse a vista tão apurada não estava a pre­
parar boa coisa. - Jean Louise encolheu os ombros. - Bom, tia,
acho que agora tenho de me casar com o Hank, não tenho?
- Eu . .. eu não sei o que pensar de ti, Jean Louise. O teu pai vai
morrer, pura e simplesmente, quando descobrir. É melhor dizeres­
-lhe tu antes que descubra na esquina da rua.
Atticus estava à porta de mãos nos bolsos. - Bom dia - sau­
dou. - O que é que me vai matar?
Alexandra declarou: - Eu não lhe vou dizer, Jean Louise. Isso
é contigo.
Em silêncio, a jovem fez um sinal ao pai, que recebeu e enten­
deu a mensagem. Atticus assumiu uma expressão séria, inquirindo:
- O que é que aconteceu?

79
- A Mary Webster telefonou. Os agentes dela viram-me a mim
e ao Hank a nadar no meio do rio ontem à noite sem roupa.
- Hum - proferiu Atticus, ajeitando os óculos. - Espero que
não estivessem a nadar de costas.
- Atticus! - exclamou Alexandra.
- Desculpa, Zandra - disse ele. - É verdade, Jean Louise?
- Em parte. Desgracei-os sem remissão?
- Pode ser que sobrevivamos.
Alexandra sentou-se na cama. - Então, sempre é verdade -
disse. - Jean Louise, para já não percebo o que estavas a fazer lá
ontem à noite. . .
- ... mas sabe muito bem. A Mary Webster contou-lhe tudo,
tia. Ela não lhe disse o que se passou em seguida? Atire-me o meu
négligé, por favor, pai.
Atticus arremessou-lhe as calças do pijama. Ela vestiu-as debaixo
do lençol, sacudiu-o para trás com os pés e esticou as pernas.
- Jean Louise . .. - começou Alexandra, interrompendo-se
de seguida. Atticus segurava um vestido de algodão, obviamente
seco mas amarrotado. Pousou-o em cima da cama e dirigiu-se à
cadeira. Pegou numas cuequinhas, também amarrotadas, ergueu-as
e deixou-as cair em cima do vestido.
- Para de atormentar a tua tia, Jean Louise. São estes os teus
trapinhos de nadar?
- Sim, senhor. Acho que devíamos pendurá-los numa cana e
passeá-los pela cidade, não?
Intrigada, Alexandra tocou nas peças de roupa de Jean Louise
e perguntou: - Mas o que te passou pela cabeça para entrar na
água toda vestida?
Quando o irmão e a sobrinha desataram a rir, declarou: - Não
tem graça nenhuma. Mesmo que tenhas entrado com a roupa
vestida, a cidade não aceitará a tua história. Bem que poderias
ter ido nua. Não consigo imaginar o que vos passou pela cabeça.
- Nem eu - retorquiu Jean Louise. - Além disso, se é que lhe
serve de conforto, tia, também não foi assim tão divertido. O que
se passou foi que começámos a picar-nos um ao outro e eu desafiei o
Hank, e ele não pôde recuar, e de repente estávamos os dois na água.

80
Alexandra não pareceu convencida: - Na vossa idade, Jean
Louise, não vos fica nada bem uma conduta dessas.
Jean Louise suspirou e saiu da cama. - Bom, desculpe - disse.
- Ainda há café?
- Tens uma cafeteira cheia à tua espera.
Jean Louise juntou-se ao pai na cozinha. Foi ao fogão, serviu-se
de uma chávena de café e sentou-se à mesa. - Como é que con­
segue beber leite gelado ao pequeno-almoço?
Atticus deu um gole. - Sabe melhor que café.
- A Calpurnia costumava dizer, quando eu e o ]em lhe pedía­
mos café, que ficávamos pretos como ela. Está zangado comigo?
Atticus bufou. - Claro que não, mas sou capaz de pensar em
diversas coisas para fazer a meio da noite bem mais interessantes.
O melhor é ires arranjar-te para a igreja.

***
O espartilho que Alexandra usava aos domingos era ainda mais
impressionante que o dos outros dias. Postada à porta do quarto
de Jean Louise, envergando a sua armadura, de chapéu, de luvas e
perfumada, estava pronta para sair.
O domingo era o dia de Alexandra: nos momentos que ante­
cediam e sucediam o serviço religioso, ela, juntamente com mais
quinze senhoras metodistas, sentava-se no auditório da igreja e
conduzia um simpósio a que Jean Louise chamava «As Notícias
da Semana em Revista» . Lamentava ter privado a tia do seu prazer
dominical; Alexandra passaria o resto do dia na defensiva; Jean
Louise, porém, esperava que ela conseguisse travar uma batalha
defensiva com quase tanto génio tático como o das suas investidas
prematuras e sair dela vitoriosa, para �sim escutar o sermão com
a reputação da sobrinha intacta.
- Jean Louise, estás pronta?
- Quase - respondeu ela. Passou um batom pelos lábios, deu
uma pancadinha no redemoinho, descontraiu os ombros e virou­
-se. - Como é que estou? - inquiriu.
- Nunca na vida te vi totalmente vestida. Onde está o chapéu?

81
- A tia conhece-me bem e sabe que, se eu entrasse na igreja
de chapéu, as pessoas iam pensar que alguém tinha morrido.
A única vez em que usara um chapéu fora no funeral de ]em.
Não sabia por que razão o fizera, mas antes do enterro Mr. Ginsberg
abrira-lhe a loja, e ela escolhera um e colocara-o na cabeça com uma
palmada seca. Sabia perfeitamente que, se ]em a pudesse ver, se
teria rido, mas ainda assim aquilo fizera-a sentir-se melhor.
O tio Jack estava nos degraus à porta da igreja quando chegaram.
O Dr. John Hale Finch não era mais alto que a sobrinha, que media
um metro e setenta. Herdara do pai o nariz direito, o lábio inferior
severo e as maçãs do rosto altas. Parecia-se com a irmã Alexandra,
mas a sua semelhança terminava no pescoço: o Dr. Finch era esguio,
quase esgalgado, ao passo que a irmã era de estrutura mais sólida.
Fora por causa dele que Atticus não se tinha casado antes dos qua­
renta. Quando chegou a hora de escolher a profissão, decidiu-se pela
Medicina. Começou a estudar num momento em que o algodão estava
a dois cêntimos o quilo e os Pinches tinham tudo menos dinheiro.
Atticus, ainda não firmado como homem de leis, gastou e pediu
emprestado todos os tostões que conseguiu encontrar para investir na
educação do irmão; a seu tempo, tudo lhe foi devolvido com juros.
O Dr. Finch tornou-se ortopedista, com consultório em Nash­
ville, jogou na bolsa com astúcia e, ao chegar aos quarenta e
cinco anos, tinha acumulado dinheiro suficiente para se reformar
e dedicar-se por completo à sua primeira e duradoura paixão, a
literatura vitoriana, uma ocupação que lhe granjeou a reputação
de ser o excêntrico mais instruído de Maycomb.
Bebera tanto e tão prolongadamente daquela mistura inebriante
que ficara imbuído dos maneirismos mais curiosos e das exclama­
ções mais estranhas. O seu discurso era pontuado de expressões
arcaicas e de breves «ahs» e «hums» , o que o fazia vacilar na sua
propensão para o emprego do calão moderno. Tinha um sentido de
humor aguçado e era distraído. Era solteiro, mas dava a impressão
de guardar recordações de tempos divertidos. Possuía uma gata
amarela com dezanove anos e era uma pessoa incompreensível aos
olhos da maioria das pessoas da cidade, pois as suas conversas eram
coloridas por alusões subtis a enigmas vitorianos.

82
A quem não o conhecia dava a ideia de ser um caso-limite,
mas aqueles que estavam sintonizados no seu comprimento de
onda sabiam que o Dr. Finch estava na posse de um juízo tão
perfeito, especialmente no que dizia respeito à manipulação do
mercado financeiro, que os amigos corriam o risco de ter de ouvir
longas palestras sobre a poesia de Mackworth Praed em troca dos
seus conselhos. Através da relação longa e próxima entre os dois
(o Dr. Finch havia tentado fazer da sobrinha uma erudita durante
a sua adolescência solitária), Jean Louise desenvolvera a capacidade
de entender os temas que lhe eram favoritos, era capaz de o com­
preender na maioria das vezes e deleitava-se com as suas conversas.
Quando ele não lhe causava um dos seus ataques de histeria silen­
ciosa, sentia-se enfeitiçada pela memória poderosa do tio e pela sua
mente impaciente.
- Bom dia, filha de Nereu! - exclamou o tio, dando-lhe um
beijo na face. Uma das suas concessões ao século xx era o telefone.
Agarrou-a à distância dos braços e observou-a com um interesse
jocoso. - Chegaste há dezanove horas e já te deste ao gosto de
te entregares a abluções excessivas, ah, ah! Um exemplo clássico
de behaviorismo watsoniano; acho que te vou pôr num artigo e
enviar-te para o AMA ]ourna/ 1 2 •
- Chiu, seu curandeiro de meia-tigela - murmurou Jean
Louise entredentes. - Vou fazer-lhe uma visita esta tarde.
- Tu e o Hank na galhofa no rio, ah! Deviam ter vergonha...
a desgraçar o nome da família. Divertiste-te?
O serviço religioso ia começar, e o Dr. Finch curvou-se numa
vénia para ela passar. - O amante criminoso está lá dentro à tua
espera - anunciou.
Jean Louise deitou-lhe um olhar que não o fulminou e avançou
pela igreja com toda a dignidade que conseguiu exibir. Sorriu e
cumprimentou os metodistas de Maycomb e, como se estivesse
na sua antiga sala de aula, instalou-se perto da janela e, como era
habitual, dormiu de olhos abertos durante toda a lição.

12
Publicação da Associação dos Médicos nos EUA. (N_T)

83
7

Não há nada como um hino de arrepiar para nos fazer sentir em casa,
pensou Jean Louise. A sensação de isolamento que podia ter sentido
definhou e morreu na presença de cerca de duzentos pecadores, que
imploravam, zelosos, que os mergulhassem num dilúvio vermelho
e redentor. Enquanto oferecia ao Senhor os resultados da alucinação
de Mr: Cowper 1 3 ou declarava que era o Amor que a elevava, Jean
Louise partilhava o fervor que impera entre indivíduos diferentes que
se encontram no mesmo barco durante uma hora todas as semanas.
Estava sentada ao lado da tia no banco do meio do lado direito
do auditório; o pai e o Dr. Finch sentavam-se igualmente lado a
lado, à esquerda, na terceira fila a contar da frente. A razão disso
era um mistério, mas era ali que se sentavam desde que o Dr. Finch
regressara a Maycomb. Ninguém os tomaria por irmãos, pensou.
É difícil acreditar que ele é dez anos mais velho que o tio Jack.
Atticus Finch era parecido com a mãe, Alexandra e John Hale
Finch com o pai. Atticus era mais alto que o irmão por uma cabeça,
o rosto largo e aberto, o nariz direito e a boca fina e grande. Havia,
porém, nos três algo que os marcava como família. O tio Jack e o Atti­
cus estão a ficar grisalhos nos mesmos sítios, e os olhos são parecidos, pensou.
É isso mesmo. E estava certa. Todos os Pinches possuíam sobrancelhas
retas e incisivas e pálpebras pesadas; quando olhavam de esguelha,
para cima ou em frente, um observador independente aperceber-se-ia
do que em Maycomb era designado por parecença familiar.

13
William Cowper, poeta e compositor de hinos inglês, 1 7 3 1 - 1 800. (NT)

84
_ A sua meditação foi interrompida por Henry Clinton. Ele
passara uma bandeja do peditório ao longo do banco atrás dela
e, enquanto esperava que a outra regressasse pela fila onde ela se
sentava, piscou-lhe o olho abertamente e com toda a solenidade.
Alexandra viu e ficou capaz de o matar. Henry e o colega seguiram
pela nave central e pararam, reverentes, defronte do altar.
Logo a seguir ao peditório, os metodistas de Maycomb davam
graças em vez de ser o ministro a orar sobre a bandeja do peditó­
rio, a fim de o pouparem ao rigor de ter de inventar mais outra
oração, uma vez que nessa altura já tinha proferido três vigorosas
invocações. Desde que ela se conseguia recordar, Maycomb dava
graças de uma única forma:

Louvai a Deus, o nosso Criador,

que era uma interpretação e uma tradição do metodismo sulista


equivalente à do Cabaz do Pastor1 4 • Nesse sábado, Jean Louise e a
congregação clareavam a garganta em toda a sua inocência para cantar
a preceito quando, sem razão aparente, Mrs. Clyde Haskins atacou o
órgão, conferindo ao hino um ritmo totalmente novo e inesperado:

LouvaiaDeus-o-nosso-criado-r,
Louvaitodos-com-fervo-r,
Louvai-0-querubin-s-do cé-u,
LouvaiaDeus-e-a-o-Filho Se-ui

Na confusão que se seguiu, se o arcebispo de Cantuária se tivesse


materializado com todas as suas vestes e insígnias, Jean Louise não
teria ficado nada surpreendida: a congregação não reparara em qual­
quer mudança na interpretação que Mrs. Haskins sempre fizera,
e entoara o cântico de louvor até ao fim como lhe fora ensinado, ao
passo que Mrs. Haskins se precipitava feita louca como algo saído
da Catedral de Salisbúria.

14
No Sul era costume ser oferecido um cabaz de víveres ao pastor (anual­
mente ou em sinal de boas-vindas). (NT)

85
O que ocorreu a Jean Louise em primeiro lugar foi que Herbert
Jemson tinha enlouquecido. Herbert Jemson era o diretor musical
da Igreja Metodista de Maycomb desde que ela se lembrava. Era
um homem grande e bom com uma voz de barítono suave, que
subtilmente dirigia um coro de solistas reprimidos e tinha uma
memória infalível para os hinos preferidos dos superintendentes
distritais. Nas diversas questiúnculas eclesiásticas que faziam parte
integrante do metodismo de Maycomb, podia confiar-se em Her­
bert para manter a cabeça fria, ser razoável e conciliar os elementos
mais primitivos da congregação com a fação dos jovens progres­
sistas. Dedicara trinta anos dos seus tempos livres à sua igreja, e ela
havia-o recompensado recentemente com uma viagem a um campo
de música metodista na Carolina do Sul.
O segundo impulso de Jean Louise foi culpar o pastor. Era um
jovem, Mr. Stone de seu nome, a quem o Dr. Finch classificava
como o maior talento para o tédio que já alguma vez vira num
homem com menos de cinquenta anos. Não havia nada de errado
com Mr. Stone, exceto o facto de possuir todas as habilitações
necessárias para ser contabilista certificado: não gostava de pessoas,
percebia de números, não tinha sentido de humor e não passava
de um idiota.
Dado que, durante anos, a cidade não fora suficientemente
grande para possuir um bom pastor e era simultaneamente dema­
siado grande para um medíocre, Maycomb ficara encantada quando,
na última conferência, as autoridades eclesiásticas tinham decidido
enviar-lhe um ministro jovem e dinâmico. Contudo, menos de um
ano depois, a impressão que o jovem pastor causara na cidade fora
tal que levou o Dr. Finch a observar distraída mas audivelmente
num domingo: «Pedimos pão e deram-nos uma pedra 1 5 . »
Havia muito que Mr. Stone era suspeito de ter tendências
liberais; alguns pensavam que era demasiado amigável para com
os seus irmãos ianques; recentemente a sua imagem havia saído
parcialmente manchada por uma controvérsia sobre o credo dos

15
Jogo de palavras com o nome Stone, que significa «pedra» em inglês.
(NT)

86
apóstolos; e, pior que tudo o resto, achavam-no ambicioso. Jean
Louise estava a construir uma acusação irrefutável contra o pastor
quando lhe ocorreu que Mr. Stone não tinha ouvido para a música.
Imperturbado pela quebra de lealdade de Herbert Jemson, dado
que não se tinha apercebido dela, Mr. Stone ergueu-se e caminhou
para o púlpito de Bíblia na mão. Abriu-a e anunciou: - O sermão
de hoje é de Isaías, capítulo vinte e um, versículo seis:

Porque assim me disse o Senhor:


Vai e põe uma sentinela que anuncie tudo o que vir!

Jean Louise esforçou-se sinceramente por ouvir o que a sentinela


de Mr. Stone tinha visto, mas, e apesar de ter tentado reprimir-se,
viu o seu divertimento transformar-se em desagrado indignado
e passou todo o sermão a fitar Herbert Jemson. Como é que ele se
atreveu a mudar o hino? Estará a tentar conduzir-nos de volta à Igreja
Mãe? Tivesse ela dado ouvidos à razão, ter-se-ia apercebido de que
Herbert Jemson era um verdadeiro metodista: era notória a sua
falta de conhecimentos teológicos e grandes as suas obras.
Adulteradas as graças, só lhes faltava o incenso... A ortodoxia é
a minha amante. Foi o tio Jack quem disse isso ou foi um dos seus velhos
bispos? Jean Louise dirigiu o olhar para o outro lado da nave e viu­
-lhe o perfil agudo. Está irritadíssimo, pensou.
A voz de Mr. Stone prosseguia, monótona, «... um cristão pode
livrar-se das frustrações da vida de hoje em dia... vindo às noites
da família todas as quartas-feiras e trazendo o mesmo prato... per­
manece convosco agora e para todo o sempre. Ámen» .
Mr. Stone tinha dado a bênção e caminhava para a porta da
frente quando Jean Louise se dirigiu à nave central para encurralar
Herbert, que ficara para trás a fechar as janelas. O Dr. Finch foi
mais rápido na manobra de aproximação.
- ... não devia ser cantado assim, Herbert - dizia ele. - No
fim de contas, somos metodistas, D. V.
- Não olhe para mim, doutor Finch. - Herbert ergueu as
mãos como para se precaver contra o que ali vinha. - É a maneira
como eles disseram para cantar no Campo Charles Wesley.

87
- Você não vai aceitar isso sem refutar, pois não? Quem é que
lhe disse para fazer assim? - O Dr. Finch mordeu o lábio inferior
até ficar quase invisível, libertando-o em seguida com um estalido.
- O instrutor de música. Deu um curso sobre o que havia
de errado na música de igreja do Sul. Ele era de Nova Jérsia -
informou Herbert.
- Ah, deu?
- Sim, senhor.
- E o que disse ele sobre o que estava errado?
Herbert continuou: - Disse que mais valia cantarmos uma
canção revivalista, dada a maneira como cantamos a maioria dos
hinos. Disse que a Fanny Crosby 1 6 devia ser banida pelas leis da
Igreja e que o hino Rochedo Forte era uma abominação ao Senhor.
- Ah, sim?
- Disse que devíamos dar um ar mais animado aos cânticos
de graças.
- Um ar mais animado? Como?
- Como o cantámos hoje.
O Dr. Finch sentou-se na fila da frente. Estendeu o braço sobre
as costas do banco e moveu os dedos com ar meditativo. Em se­
guida, ergueu o olhar para Herbert.
- Aparentemente - declarou -, aparentemente os nossos ir­
mãos do Norte não se encontram satisfeitos apenas com as atividades
do Supremo Tribunal. Agora também nos querem alterar os hinos.
Herbert prosseguiu: - Disse-nos que devíamos livrar-nos dos
hinos sulistas e aprender outros. Eu cá não gosto... aqueles que ele
dizia que eram bonitos nem sequer têm música.
O «Ah! » do Dr. Finch foi mais seco que o habitual, um sinal
certo de que estava a ficar irritadíssimo. Conseguiu controlar-se o
suficiente para repetir: - Hinos sulistas, Herbert? Hinos sulistas?
O tio pousou as mãos nos joelhos e endireitou as costas.
- Então, Herbert, vamos lá sentarmo-nos sossegados neste
santuário e analisarmos isto calmamente. Creio que o seu homem

16
Frances Jane Crosby, também conhecida como Fanny Crosby, autora de
hinos sacros ( 1 820- 1 9 1 5 ). (NT)

88
deseja que, no futuro, cantemos a ação de graças como se faz, nada
menos nada mais, na Igreja Anglicana e, no entanto, desdiz-se e
quer eliminar... o hino Ficai Comigo, Senhor ?
- Exato.
- Lyte.
- Como?
- Lyte, Lyte. E quanto ao Quando Contemplo a Maravi-
lhosa Cruz ?
- Esse é outro - informou Herbert. - Ele deu-nos uma lista.
- Ai deu-vos uma lista? Suponho que Marchai, Soldados de
Cristo também está na lista?
- Logo no princípio.
- Urr! - rugiu o Dr. Finch. - H. F. Lyte, Isaac Watts, Sabine
Baring-Gould.
Proferiu o último nome com a pronúncia do condado de May­
comb: os «ás» e os «is» rolados e longos com uma pausa entre
as sílabas.
- Todos eles ingleses, Herbert, bons e verdadeiros ingleses -
declarou. - Quer expulsá-los e no entanto quer fazer-nos cantar
as graças como se estivéssemos na Abadia de Westminster, não é?
Bom, deixe-me dizer-lhe uma coisa...
Jean Louise olhou para Herbert, que acenava a sua concor­
dância, e para o tio, que mais parecia uma personagem saída da
época vitoriana.
- ... esse seu homem é um snobe, Herbert, não há qualquer
dúvida.
- Era um bocado amaricado - retorquiu Herbert.
- Aposto que era. Vai concordar com todo este disparate?
- Deus do céu, não - retorquiu Herbert. - Pensei expe-
rimentar uma vez, só para ter a certeza daquilo que já calculava.
A congregação nunca ia aprender, e, além disso, gosto dos antigos.
- Também eu, Herbert - corroborou o Dr. Finch. Levantou-
-se e deu o braço a Jean Louise. - Vejo-o no próximo domingo
e, se der com esta igreja a pairar no ar, responsabilizo-o.
Houve algo nos seus olhos que disse a Herbert que aquilo era
uma brincadeira. Riu-se e assegurou: - Não se preocupe, senhor.

89
O Dr. Finch conduziu a sobrinha até ao carro, onde Atticus
e Alexandra aguardavam. - Quer boleia? - inquiriu esta.
- Claro que não - respondeu ele. Era seu hábito caminhar
nas suas deslocações à igreja todos os domingos, e foi isso que fez,
pois não havia tempestade, sol escaldante ou tempo gelado que
o impedissem.
Ao virar-se para se pôr a caminho, Jean Louise chamou-o: - Tio
Jack, o que quer dizer D. V.?
O Dr. Finch exalou um suspiro do tipo «a menina não é ins­
truída» , arqueou as sobrancelhas e proferiu: - Deo volente. Se Deus
quiser, menina, se Deus quiser. Uma locução católica muito fiável.

90
8

Da mesma maneira abrupta que um rapaz truculento arranca


a larva de uma formiga-leão do fundo do seu buraco para a
deixar à mercê do sol, Jean Louise foi arrebatada do seu reino
sereno e deixada sozinha a proteger a epiderme sensível conforme
podia numa tarde húmida de domingo, precisamente às 1 4h28.
As circunstâncias que levaram a um facto destes foram as que
se seguem:
Depois do jantar, durante o qual Jean Louise brindou a famí­
lia com as observações do Dr. Finch sobre como cantar um hino
com estilo, Atticus sentou-se no seu canto na sala de estar, a ler
os jornais de domingo, e Jean Louise ansiava por uma tarde hila­
riante com o tio, rematada com bolinhos e o café mais forte de
Maycomb.
Tocaram à porta. Ela ouviu o pai dizer: «Entra ! » , e a voz de
Henry em resposta, inquirindo: - Está pronto, Mr. Finch?
Deixou cair o pano da louça, mas, antes de ter tempo de sair
da cozinha, Henry espreitou pela porta e cumprimentou: - Olá.
Alexandra encostou-o à parede de imediato e atacou: - Devias
ter vergonha, Henry Clinton.
Henry, cujos encantos não eram de desprezar, concentrou-os em
Alexandra, que não mostrou quaisquer sinais de enternecimento.
- Então, Miss Alexandra - afirmou -, não consegue ficar zan­
gada connosco por muito tempo, por mais que tente.
Alexandra retorquiu: - Consegui safar-vos desta, mas posso
não estar presente na próxima.

91
- Miss Alexandra, estamos muito agradecidos. - Virando-se
para Jean Louise, acrescentou: - Hoje às sete e meia e nada de
ancoradouro. Vamos a um espetáculo.
- OK. Onde é que vão os dois?
- Ao tribunal, a uma reunião.
- Ao domingo?
- Sim.
- Pois é, esqueço-me sempre de que, nestas paragens, a poli-
tiquice se faz ao domingo.
Atticus chamou Henry para se irem embora. - Adeus, que­
rida - despediu-se ele.
Jean Louise seguiu-o à sala. Quando eles saíram e a porta bateu,
dirigiu-se ao cadeirão do pai para arrumar os papéis que ele havia
deixado ao lado, no chão. Pegou neles, pô-los por ordem e colocou­
-os no sofá numa pilha organizada. Atravessou de novo a sala para
endireitar o monte de livros na mesa de leitura do pai, quando um
panfleto com as dimensões de um envelope comercial lhe chamou
a atenção.
Na página da frente, via-se um desenho de um negro antropófago,
e por cima lia-se A Praga Negra. O autor era alguém com diversos
títulos académicos depois do nome. Abriu o panfleto, sentou-se no
cadeirão do pai e começou a ler. Ao terminar, pegou no panfleto por
um dos cantos, segurando-o como se se tratasse da cauda de um rato
morto, e entrou na cozinha. Estendeu o folheto para a tia.
- O que é esta coisa? - quis saber.
Alexandra olhou por cima dos óculos. - Qualquer coisa do
teu pai.
Jean Louise premiu o pedal do caixote do lixo e atirou o panfleto
lá para dentro.
- Não faças isso - objetou Alexandra. - Agora são difíceis
de arranjar.
Jean Louise abriu a boca, fechou-a e abriu-a de novo. - Tia,
leu aquela coisa? Sabe o que tem escrito?
- Claro que sim.
Se Alexandra tivesse proferido uma obscenidade qualquer, Jean
Louise não teria ficado menos surpreendida.

92
- Ó tia, a tia sabe que as coisas que lá estão escritas fazem
o doutor Goebbels parecer um menino de coro?
- Não sei do que estás a falar. Há muitas verdades nesse livrinho.
- Sim, decerto - retorquiu Jean Louise secamente. - Apre-
ciei particularmente a parte em que os negros, benditos sejam, não
podem deixar de se sentir inferiores aos brancos porque os seus
crânios são mais grossos e as cachimónias mais superficiais, seja lá
isso o que for, portanto temos de ser muito bondosos para com eles
e não os deixar fazer com que se magoem e mantê-los no seu lugar.
Meu Deus, tia...
Alexandra estava direita que nem um fuso. - Sim, e então? -
mqmnu.
Jean Louise retorquiu: - É que nunca pensei que a tia gostasse
de leituras escabrosas.
A tia ficou em silêncio, e Jean Louise continuou: - Fiquei
particularmente bem impressionada com a parábola sobre como,
desde o começo da História, os governantes do mundo têm sido
sempre brancos, com exceção de Gengiscão ou isso, foi muito justo
da parte do autor, e usou um argumento de peso ao dizer que até os
faraós eram brancos quando os súbditos ou eram pretos ou judeus ...
- É verdade, não é?
- Claro que sim, mas o que é que isso tem a ver com o caso?
Quando Jean Louise se sentia apreensiva, expectante ou nervosa,
especialmente quando entrava em confronto com a tia, o seu cére­
bro começava a desatinar. Três figuras alegres revolteavam-lhe na
mente - as horas passadas com o tio Jack e Dill, num rodopio de
ritmos desvairados, bloqueavam-lhe por completo o dia de amanhã
e as suas preocupações.
Alexandra estava a falar com ela: - Eu disse-te. Foi uma coisa
que o teu pai trouxe de uma reunião do conselho de cidadãos.
- Do quê?
- Do Conselho de Cidadãos do Condado de Maycomb. Não
sabias que temos um?
- Não, não sabia.
- Bem, o teu pai faz parte da direção, e o Henry é um dos
seus membros mais leais - informou Alexandra com um suspiro.

93
- Não que precisássemos realmente de um. Ainda não aconte­
ceu nada em Maycomb, mas é sempre bom estarmos preparados.
É onde eles estão agora.
- Um conselho de cidadãos? Em Maycomb? - Jean Louise ou­
via-se a si mesma a repetir as palavras estupidamente. - O Atticus?
Alexandra adiantou: - Jean Louise, acho que não estás a per­
ceber bem o que se tem passado cá em baixo...
Jean Louise virou-lhe as costas, dirigiu-se à porta da frente,
saiu, atravessou o amplo jardim e apressou-se ao longo da rua, em
direção à cidade, com a voz de Alexandra a ecoar atrás de si: «Não
vais para a cidade nesses preparos. » Esquecera-se de que havia um
automóvel em perfeitas condições na garagem e de que as chaves
estavam na mesa da entrada. Caminhou, apressada, ao ritmo de
uma cantilena absurda que lhe ressoava na cabeça.

Here's a how-de-do!
1/ I marry you,
When your time has come to perish
T hen the maiden whom you cherish
Must be slaughtered, too!
Here's a how-de-do/ 1 7

O que andam o Hank e o Atticus a fazer? O que se passa? Não sabia,


mas iria descobrir antes de o Sol se pôr.
Tinha algo a ver com aquele panfleto que encontrara em casa
- ali plantado, à vista de Deus e de toda a gente -, algo a ver
com os conselhos de cidadãos. Claro que sabia da sua existência.
Os jornais de Nova Iorque não falavam de outra coisa. Quem lhe
dera ter prestado mais atenção, mas um olhar de relance por uma
coluna em letra de imprensa era o bastante para lhe contar uma
história familiar: eram a mesma gente do Império Invisível 1 8 , gente

17
Excerto da ópera cómica The Mikado, de Gilbert e Sullivan, 1 88 5 . Tradu­
ção livre: « Mas que situação! / Se me casar contigo, / Quando chegar o momento
de pereceres / A jovem a quem queres / Deverá ser morta igualmente ! / Mas
que situação! » (NT)
18
Referência ao Ku Klux Klan. (NT)

94
que odiava católicos; ignorantes, tolhidos pelo medo, de rosto
avermelhado, grosseiros, respeitadores da lei, cem por cento de
ascendência anglo-saxónica, os seus compatriotas - escumalha.
Atticus e Hank tinham algo fisgado, estavam lá apenas para
manter as coisas debaixo de olho - a tia dissera que o pai per­
tencia à direção. Estaria enganada. Era um erro; por vezes, a tia
fazia confusões...
Abrandou o passo quando chegou ao centro da cidade. Estava
deserto, havia apenas dois carros estacionados em frente à farmácia.
O velho tribunal erguia-se, branco, na luz intensa da tarde. Um cão
preto trotava pela rua à distância, as araucárias eriçadas elevavam-se
em silêncio nos quatro cantos da praça.
Quando se dirigiu à entrada norte, viu automóveis sem nin­
guém, estacionados em fila dupla ao longo do edifício.
Ao subir os degraus do tribunal, não deu pelos velhos que
deambulavam por ali, não deu pelo dispensador de água no interior
junto à porta, não deu pelas cadeiras com assentos em palhinha,
mas reparou no cheiro adocicado e húmido a urina dos escaninhos
onde não chegava a luz do Sol. Passou pelos cubículos do cobrador
de impostos, do avaliador da coleta, do escrivão do condado, do
escrivão da comarca e do juiz das sucessões, subiu os velhos degraus
sem pintura até ao nível da sala de audiências e as escadas cobertas
que davam para a galeria das pessoas de cor; entrou e tomou o seu
antigo lugar no canto da primeira fila, onde ela e o irmão se sen­
tavam quando iam ao tribunal ver o pai.
Lá em baixo, nos bancos duros, sentavam-se não só a maioria da
escumalha do condado de Maycomb, mas também os seus homens
mais respeitados.
Olhou para a outra extremidade da sala de audiências: atrás da
balaustrada que separava o tribunal da assistência, sentados a uma
longa mesa, viam-se o pai, Henry Clinton, diversos homens que
conhecia bem de mais e um que nunca tinha visto.
Ao fundo da mesa, qual enorme lesma balofa e cinzenta, sentava­
-se William Willoughby, o símbolo político de tudo o que o seu pai
e os homens como ele desprezavam. É o último da sua laia, pensou
ela. O Atticus mal lhe dirige a palavra e, no entanto, ali está à mesma. . .

95
William Willoughby era, de facto, o último daquele tipo de
gente, pelo menos por uns tempos. Sangrava lentamente até à morte
no meio da abundância, pois o sangue que lhe alimentava a vida
era a pobreza. Todos os condados do Sul Profundo tinham um Wil­
loughby, todos tão semelhantes que constituíam uma categoria deno­
minada de diversas maneiras: Ele, o Grande Homem, o Pequeno
Homem, permitindo assim ligeiras diferenças territoriais. Ele, ou
o que quer que os seus súbditos lhe chamavam, ocupava o cargo
administrativo mais importante no seu condado - usualmente o
de juiz, de xerife ou de juiz das sucessões; havia mutações contudo,
como o Willoughby de Maycomb, que decidiu não honrar qualquer
cargo público com a sua presença. Era raro aparecer: a sua preferência
por permanecer nos bastidores implicava a ausência de uma profunda
vaidade pessoal, um traço essencial para déspotas de meia-tigela.
Willoughby decidira gerir o condado, não no gabinete mais
confortável, mas sim a partir do que podia ser descrito como uma
capoeira - uma pequena sala escura e malcheirosa com o seu
nome na porta que continha nada mais do que um telefone, uma
mesa de cozinha e cadeiras náuticas, sem pintura, com uma pátina
considerável. Onde quer que ele fosse, era evidentemente seguido
por uma camarilha de personagens passivas e maioritariamente
nefastas, conhecida como a Pandilha do Tribunal, espécimes que
Willoughby colocara em variados gabinetes municipais do condado
para fazerem o que lhes era mandado.
Igualmente sentado à mesa ao lado de Willoughby, encontrava­
-se um deles, Tom-Carl Joyner, o seu braço-direito, todo orgulhoso
e com bons motivos: no fim de contas, estava com Willoughby
desde o início, não era? E não era ele a fazer todo o trabalho de
sapa? E, no passado, durante a Depressão, não andara a bater às
portas dos rendeiros à meia-noite, não martelara a cabeça de todos
os desgraçados ignorantes e esfomeados que tinham aceitado a
assistência pública, fosse ela um emprego ou um cheque, que
o seu voto iria para Willoughby? Quem não põe o voto, não manja à
ceia. Tal como os seus acólitos menos importantes, com o passar
dos anos, Tom-Carl tinha assumido um ar de respeitabilidade que
não lhe assentava bem e não gostava que lhe relembrassem os seus

96
nefandos princípios. Naquele domingo, sentava-se, convicto de que
o pequeno império pelo qual tinha perdido muitas horas de sono
seria seu quando Willoughby perdesse o interesse ou morresse.
Nada no seu rosto indicava que o poderia aguardar uma cruel sur­
presa: a independência que lhe advinha da prosperidade tinha já
enfraquecido o seu reino ao ponto de este estar a afundar-se; mais
duas eleições e ruiria, tornando-se tema de uma tese de sociologia.
Jean Louise examinou o seu pequeno rosto ufano e quase se riu ao
refletir como, de facto, o Sul era impiedoso ao recompensar os seus
funcionários públicos com a sua própria extinção.
Baixou o olhar até às fileiras de cabeças familiares - cabelo
branco, cabelo castanho, cabelo cuidadosamente penteado para
esconder a sua falta - e lembrou-se de como, muito tempo atrás,
com a sala do tribunal apinhada, se entretinha, sossegada, a fazer
pontaria com bolinhas de papel mastigado às carecas que brilhavam
lá em baixo. Um dia o juiz Taylor tinha-a apanhado e ameaçara-a
com uma ordem verbal de detenção.
O relógio do tribunal vibrou, a tremer de esforço, e deu as horas.
Duas. Quando o som se desvaneceu num tremelique, Jean Louise
viu o pai levantar-se e dirigir-se à assembleia no seu tom seco de
sala de tribunal:
- Meus senhores, o nosso orador de hoje é Mr. Grady O'Hanlon,
que não necessita de apresentações. Mr. Grady O'Hanlon.
Este ergueu-se e declarou: - Tal como as vacas dizem ao
homem que as ordenha pelas manhãs frias: «Obrigado pelas pal­
mas quentes. »
Nunca na vida vira ou ouvira falar do homem. Pelas suas obser­
vações iniciais, contudo, Mr. O'Hanlon mostrou exatamente o que
era: um homem normal, temente a Deus como qualquer outro,
que havia deixado o seu emprego para se dedicar exclusivamente
à preservação da segregação. Bom, ele há pessoas com umas fantasias
esquisitas, pensou.
De cabelo castanho-claro, olhos azuis e rosto obstinado, usava
uma gravata berrante e não vestia casaco. Desabotoou o colarinho,
desapertou a gravata, piscou os olhos, passou a mão sobre o cabelo
e foi direto ao assunto.

97
Nado e criado no Sul , ali frequentara a escola e ali se casara com
uma senhora do Sul, ali vivera a vida toda, e o seu interesse princi­
pal nos tempos que corriam era defender a manutenção do estilo de
vida sulista e nenhuns pretos nem nenhum Supremo Tribunal lhe ia
dizer a ele ou a outra pessoa qualquer o que fazer. . . uma raça tão dura
de cabeça como . . . inferioridade essencial . . . carapinhas encrespadas . . .
ainda em cima das árvores . . . gordurosos malcheirosos . . . casar-se
com as vossas filhas . . . mestiçar. . . mestiçar ... salvar o Sul . . . Segunda­
19
-Feira Negra ••. piores que baratas . . . Deus criou as raças . . . ninguém
sabe porquê, mas Ele quis mantê-las separadas . . . se assim não fosse,
ter-nos-ia criado a todos de uma só cor. . . de volta para África. . .
Ouviu a voz d o pai , uma voz a falar baixinho no passado tran­
quilo e aconchegado. « Meus senhores, se existe uma divisa em que
acredito neste mundo é esta: direitos iguais para todos, privilégios
espeoa1s para ninguém . »
Estes pregadores pretos são um isco . . . como macacos . . . bocas de
xarroco . . . retorcem a palavra de Deus . . . o Supremo prefere escutar
os comunistas . . . levá-los lá para fora e abatê-los a tiro por traição . . .
Veio-lhe uma memória que contradizia o zumbido da arenga
de Mr. O 'Hanlon : a sala de audiências mudou impercetivelmente,
e Jean Louise olhou para baixo para as mesmas cabeças . Ao fitar
o outro lado da sala, viu um júri na bancada, o juiz Taylor no seu
lugar habitual , e o peixe-piloto à sua mesa, mais abaixo, de frente
para o j uiz, a escrever sem parar; o pai , em pé, acabara de se levan­
tar de uma mesa na qual conseguiu ver a parte de trás de uma
carapinha encrespada . . .
Era raro Atticus aceitar um processo criminal , o exercício de
direito criminal não lhe agradava. O único motivo pelo qual tinha
aceitado aquele foi porque sabia que o seu cliente era inocente e
não podia permitir que o j ovem negro fosse para a prisão por causa
de uma defesa pouco empenhada nomeada pelo tribunal . O rapaz
chegara-lhe através de Calpurnia, contou-lhe a sua história, e o que
lhe contara era a verdade . E a verdade não era bonita.
19
Referência a Black Monday ( 1 7/ 5 / 1 9 5 4), dia da decisão do Supremo Tri­
bunal de tornar ilegal a segregação racial nas escolas; foi assim chamado pelos
seus opositores. (NT)

98
Atticus usou toda a sua experiência profissional, utilizou inteli­
gentemente uma acusação pouco cuidadosa, pronunciou-se frente
ao júri e conseguiu o que nunca sucedera antes ou sucedeu depois
em Maycomb: a absolvição de um rapaz de cor acusado de violação.
A testemunha principal da acusação era uma jovem branca.
Atticus teve duas vantagens de peso: embora a jovem tivesse
catorze anos, o réu não fora acusado de estupro por presunção de
violência, e assim conseguiu provar consentimento, o que fora mais
fácil do que em condições normais, pois o acusado tinha apenas
um braço - o outro fora decepado num acidente numa serração.
Atticus levou o caso até à sua conclusão, usando tudo o que
sabia e com um desagrado instintivo tão amargo que só o seu
conhecimento de que conseguiria viver em paz consigo próprio
fora capaz de dissipar. Depois do veredito, abandonou a sala
a meio do dia, caminhou até casa e tomou um banho quente.
Nunca estimara quanto lhe tinha custado, nunca olhara para
trás. Nunca soube que dois pares de olhos semelhantes aos seus
o espiavam da galeria .
. . . não é a questão de os pretos, com os seus focinhos animales­
cos, irem ou não à mesma escola que os vossos �lhos ou sentarem-se
nos bancos da frente do autocarro . . . é se a civilização cristã continua
a existir ou se seremos escravos dos comunistas . . . advogados pre-
tos . . . atropelam a Constituição . . . os nossos amigos judeus . . . mata-
ram Jesus . . . votaram nos pretos . . . os nossos avós . . . juízes e xerifes
pretos . . . separado é igual. . . noventa e cinco por cento do dinheiro
dos nossos impostos . . . para os pretos e os cães pisteiros . . . adorando
o bezerro de ouro . . . pregar a palavra do Senhor. . . a senhora Roose­
velt. . . amiga dos pretos . . . recebe quarenta e cinco pretos mas nem
uma angelical virgem branca do Sul. . . o Huey Long, esse cavalheiro
cristão . . . estorricados que nem tições . . . subornaram o Supremo
Tribunal. . . cristãos brancos respeitáveis . . . foi Jesus crucificado para
benefício dos pretos . . .
A mão de Jean Louise escorregou. Afastou-a da balaustrada da
galeria e mirou-a. Pingava de suor. Uma zona húmida do corri­
mão refletia a luz fraca que vinha das janelas de cima. Fitou o pai,
sentado à esquerda de Mr. O'Hanlon, e não acreditou no que via . . .

99
. . . mas eles ocupavam toda a sala de audiências. Homens sólidos,
de caráter, homens responsáveis, homens bons. Homens de todo
o tipo e reputação. . . parecia que o único homem do condado que
não se encontrava presente era o tio Jack. O tio Jack. .. ela devia ir
ter com ele entretanto. Quando?
Sabia pouco das coisas de homens, mas sabia que a presença do
pai naquela mesa com um homem que se limitava a vomitar imun­
dices... torná-las-ia menos ignóbeis? Não. Apenas as sancionava.
Sentiu náusea. O estômago embrulhou-se, e começou a tremer.
Hank.
Todos os nervos do seu corpo vibravam, tensos, e depois acal­
maram. Sentiu-se entorpecida.
Pôs-se em pé, desajeitada, e saiu da galeria aos tropeções pela
escada abaixo. Não deu conta dos passos a rasparem nos degraus
largos nem do relógio do tribunal que, a custo, dava as duas e meia;
não se apercebeu do ar húmido do rés do chão.
O brilho ofuscante do Sol fez-lhe doer os olhos, e levou as mãos
ao rosto. Quando as retirou lentamente para passar da obscuridade
à luz, viu Maycomb, deserta, a reluzir na tarde escaldante.
Desceu a escadaria até à sombra de um carvalho. Estendeu um
braço e encostou-se ao tronco. Olhou de novo para Maycomb,
e a garganta apertou-se-lhe: a cidade retribuía-lhe o olhar.
Vai-te embora, diziam-lhe os velhos edifícios. Aqui não há lugar
para ti. Não és bem-vinda. Nós temos segredos.
Obedeceu-lhes e caminhou no calor silencioso pela rua principal,
a estrada que levava a Montgomery. Continuou a andar, passando
por casas com grandes jardins nos quais se moviam senhoras com
jeito para a jardinagem e homens grandes e vagarosos. Pareceu­
-lhe ouvir Mrs. Wheeler a gritar com Miss Maudie Atkinson do
outro lado da rua; se Miss Maudie a visse, dir-lhe-ia para entrar,
que tinha acabado de fazer um bolo, que tinha feito um grande
para o doutor e um pequeno para ela. Contou as rachas no passeio,
precaveu-se para aguentar as investidas violentas de Mrs. Henry
Lafayette Dubose - «Não me digas olá, Jean Louise Finch, dizes
boa tarde! » -, estugou o passo perto da velha casa de telhado
inclinado, da moradia de Miss Rachel, e chegou a casa.

100
GELADO FEITO EM CASA .
Piscou os olhos com força. Estou a perder o juízo, pensou .
Tentou continuar o seu cami nho, mas era demasiado tarde.
A gelataria moderna, quadrada e baixa que se erguia no sítio onde
fora a sua casa estava aberta, e um homem espreitava pela j anela,
de olhos nela. E nfiou as mãos nos bolsos e retirou uma moeda de
vinte e c inco cêntimos .
- Um cone de baunilha, por favor.
- Já não vem em cones . Posso dar-lhe . . .
- Não tem importância. Dê-me lá o que sej a - interrom-
peu ela.
- É a Jean Louise Finch, nã'é ? - perguntou ele.
- Si m .
- Costumava viver neste sítio, nã' é ?
- Si m .
- A t é nasceu aqui , nã foi ?
- Sim.
- Tem vivido em Nova Iorque, nã tem ?
- Si m .
- Maycomb ' t á mudada, nã'tá ?
- Si m .
- Não se lembra de m i m , p o i s não ?
- Não .
- E ntão tam 'ém não lhe vou dizer. Pode sentar-se aí e comer o
seu gelado enquanto tenta descobrir quem eu sou e , se quiser mais,
é oferta da casa.
- Muito obrigada - agradeceu ela. - Não se importa que eu
vá lá atrás às traseiras . . .
- Claro que não . Temos lá mesas e cadeiras . As pessoas gostam
de vir comer o seu gelado à noite .
O qui ntal das traseiras estava coberto de gravilha branca. Como
parece tudo tão pequeno, sem a casa, a garagem, as árvores, pensou.
Sentou-se a uma mesa e pousou o copo do gelado em cima. Tenho
de pensar.
Tudo acontecera tão depressa que ainda sentia a ânsia do vómito.
Respirou profundamente para acalmar o estômago, mas não deu

101
resultado. Sentiu-se mais nauseada e pôs a cabeça para baixo. Por
mais que tentasse, não conseguia pensar; sabia algo, e o que sabia
era exatamente o seguinte:
O único ser humano em quem alguma vez confiara totalmente,
de coração aberto, desiludira-a; o único homem que alguma vez
conhecera a quem poderia apontar e dizer com conhecimento de
causa: «É um cavalheiro, é um verdadeiro cavalheiro», tinha-a
traído, pública, grosseira e desavergonhadamente.

102
9

Integridade, humor e paciência eram as três palavras que defi­


niam Atticus Finch. Havia igualmente uma frase: escolham ao
acaso um cidadão de Maycomb e arredores, perguntem-lhe o que
pensa de Atticus Finch e a resposta será provavelmente: «Nunca
tive melhor amigo. »
O seu segredo da arte de viver era tão simples que se tornava
complexo: onde a maioria dos homens tinha códigos e tentava hon­
rá-los, Atticus vivia a sua vida à letra sem espalhafato, sem fan­
farras e sem análises profundas. O seu caráter privado era igual
ao público. O seu código seguia simplesmente a ética do Novo
Testamento, sendo as recompensas o respeito e a devoção de todos
os que o conheciam. Até os seus inimigos o admiravam, porque ele
nunca os reconhecera como tal. Nunca foi rico, mas era o homem
mais rico que os filhos conheceram.
E estes estavam em posição de o saber, o que raramente
sucede: quando Atticus era membro da assembleia legislativa,
conheceu, amou e desposou uma jovem de Montgomery cerca de
quinze anos mais nova. Trouxe-a para Maycomb, e viveram numa
casa comprada de novo na rua principal da cidade. Quando fez
quarenta e dois anos, nasceu o seu filho, e deram-lhe o nome de
Jeremy Atticus, em honra do pai e do avô paterno. Quatro anos
mais tarde nasceu a filha, e deram-lhe o nome de Jean Louise em
honra da mãe e da avó materna. Dois anos passados, regressava
Atticus do trabalho uma tarde quando encontrou a mulher no
chão do alpendre, morta, isolada da vista pela glicínia que fazia

103
do canto do alpendre um retiro fresco e privado. Não morrera
havia muito, a cadeira de onde caíra balouçava ainda. A herança
que Jean Graham Finch trouxera para a família fora o coração que
matou o filho vinte e dois anos mais tarde no passeio em frente
ao escritório do pai.
Aos quarenta e oito anos, Atticus foi deixado com dois filhos
pequenos e uma cozinheira negra chamada Calpurnia. É de duvi­
dar que alguma vez tenha procurado um significado para o que
lhe sucedera; limitou-se a criar os filhos o melhor que sabia e,
em relação ao afeto que os filhos sentiam por ele, o seu melhor
era realmente bom. Nunca estava demasiado cansado para jogar
à bola, nem demasiado ocupado para inventar histórias mara­
vilhosas, nunca se deixava absorver tanto pelos seus próprios
problemas que não escutasse com toda a seriedade o relato de
uma calamidade. Todas as noites lhes lia em voz alta até lhe fal­
tar a voz.
Atticus matou vários coelhos de uma cajadada nessas sessões de
leitura e teria provavelmente deixado um psicólogo infantil cons­
ternado: lia a Jem e a Jean Louise o que quer que constituísse a
sua leitura do momento, e as crianças cresceram na posse de uma
erudição obscura. Ganharam experiência de vida com a história
militar, os decretos-lei à espera de aprovação, os Verdadeiros Mistérios
Policiais, o Código do Alabama, a Bíblia, e uma antologia de poesia
inglesa chamada O Tesouro Dourado.
Onde quer que Atticus fosse, Jem e Jean Louise segui-lo-iam
a maior parte das vezes. Acompanhavam-no a Montgomery, se a
assembleia se reunisse em plenário de verão; levava-os a jogos de
futebol, a reuniões políticas, à igreja, para o escritório à noite,
se tivesse de trabalhar até tarde. Depois de o Sol se pôr, era raro
Atticus ser visto em público sem os filhos atrás.
Jean Louise não conhecera a mãe e desconhecia o que significava
a sua presença, mas raramente sentiu necessidade dela. Durante a
infância, o pai nunca lhe explicara o que quer que fosse de uma
forma incorreta nem havia tentado deitar-lhe areia para os olhos,
exceto quando tinha onze anos e, ao chegar a casa da escola para
jantar, ter descoberto que lhe viera a menstruação.

104
Pensara que estava a morrer e começara a gritar. Calpurnia,
Atticus e Jem vieram a correr e, ao se aperceberem do problema,
o pai e o irmão olharam desesperados para Calpurnia, que a levou
pela mão.
Jean Louise nunca havia refletido bem no facto de ser uma rapa­
riga; passara a vida em atividades temerárias e agressivas: lutas,
futebol, trepar às árvores, manter-se a par de Jem e levar a melhor
sobre os da sua idade em qualquer atividade que exigisse des­
treza física.
Quando se acalmou o suficiente para conseguir ouvir, chegou à
conclusão de que tinha sido vítima de uma piada cruel e de mau
gosto: tinha agora de entrar num mundo de feminilidade, mundo
esse que desprezava, não compreendia e do qual não se sabia defen­
der, um mundo que não a desejava.
Jem afastou-se dela tinha Jean Louise dezasseis anos. O irmão
começou a alisar o cabelo para trás com água e a sair com raparigas.
O seu único amigo era agora Atticus. Foi então que o Dr. Finch
regressou a casa.
Os dois homens, que iam envelhecendo, acompanharam-na nas
suas horas mais difíceis e solitárias, através do limbo pernicioso
que foi a transformação de uma terrível maria-rapaz numa jovem.
Atticus tirou-lhe da mão a pressão de ar, substituindo-a por um
taco de golfe, e o Dr. Finch ensinou-a a jogar. O tio ensinava-lhe
sempre aquilo que mais o interessava. Jean Louise, por seu lado,
cumpria aparentemente o seu papel: fazia de conta que acatava os
regulamentos que governavam o comportamento das adolescentes
de boas famílias. Desenvolveu um interesse mediano por roupas,
rapazes, penteados, coscuvilhice e aspirações femininas, mas sentia­
-se inquieta sempre que se afastava da segurança dos que sabia que
a amavam.
Atticus enviou-a para uma universidade feminina na Geórgia
e, quando terminou, o pai disse-lhe que era mais do que tempo
de cuidar de si própria e perguntou-lhe por que razão não ia para
Nova Iorque ou outro lugar assim. Jean Louise sentiu-se vaga­
mente insultada, achando que a estavam a expulsar da sua própria
casa, mas, à medida que os anos passavam, reconheceu o valor

1 05
da sabedoria do pai. Atticus estava a envelhecer e queria morrer
seguro de que a filha era capaz de se desembaraçar por si própria.
Não se encontrava sozinha, mas o que a sustentava, a força
moral mais poderosa da sua vida, era o amor pelo pai. Nunca o
questionou, nunca pensou nele, nunca se tinha sequer apercebido
de que, antes de tomar uma decisão importante, lhe passava pelo
inconsciente a questão «Que faria o Atticus? » ; nunca se apercebera
de que quem a fazia fincar os pés e aguentar firme era o pai; que
aquilo que era decente e bom no seu caráter fora lá posto pelo pai.
Não sabia que o adorava.
Sabia apenas que lamentava as pessoas da sua idade que se
insurgiam contra os pais por não lhes darem isto ou os privarem
daquilo. Lamentava as matronas de meia-idade que, após uma aná­
lise profunda, descobriam que a fonte da sua ansiedade provinha da
família e da sua posição social; lamentava as pessoas que tratavam
os pais por «o meu velho» , dando a entender que eram criaturas
aparatosas, provavelmente ébrias e inúteis, que tinham desiludido
irremediavelmente os filhos ao longo das suas vidas.
Jean Louise era excessiva na sua compaixão e mostrava-se con­
descendente no aconchego do seu mundo.

106
10

Jean Louise ergueu-se da cadeira de jardim, dirigiu-se ao canto


do terreno e vomitou o jantar de domingo. Os dedos agarraram­
-se aos arames da vedação em metal que dividia o jardim de Miss
Rachel do antigo quintal das traseiras dos Pinches. Se Dill ali
estivesse, saltaria a vedação; depois chegar-se-ia a ela, beijava-a e
dava-lhe a mão; e juntos enfrentariam qualquer problema em casa.
Dill, porém, havia muito que se fora embora.
A náusea voltou com violência redobrada quando se recordou da
cena no tribunal, mas nada mais tinha para vomitar.
Se, ao menos, me tivesse cuspido na cara . . .
Podia ser um engano, provavelmente, era ainda um terrível
engano. A sua mente recusava-se a registar o que os olhos e os ouvi­
dos lhe diziam. Regressou à cadeira e ficou a olhar para o gelado de
baunilha derretido que escorria lentamente para a borda da mesa.
Avançava, parava e pingava, gota a gota. Ping, ping, ping, sobre a
gravilha branca, até a ensopar e aparecer mais uma pequenina poça.
Foste tu quem fez isto. Tão certo como estares sentada nesta cadeira.
- Já adivinhou quem sou? Ah, olhe lá, desperdiçou o seu gelado.
Ergueu a cabeça. O homem da casa de gelados debruçava-se
da janela de trás, a menos de dois metros. Retrocedeu e reapare­
ceu com um trapo húmido na mão. Enquanto limpava, inquiriu:
- Então, como é qu'eu me chamo?
Rumpelstiltskin.
- Oh, desculpe. - Fitou o homem com atenção. - É um dos
Coninghams, com c e o?

107
O homem esboçou um sorriso aberto. - Quase. Sou um dos
com c e u. Como é que soube?
- Pelos ares de família. O que o fez mudar-se para a cidade?
- A minha mãe deixou-me alguma madeira, e vendi-a. Fiz
a loja aqui.
- Que horas são? - perguntou ela.
- Vai pràs quatro e meia - respondeu Mr. Cunningham.
Ela levantou-se e sorriu em jeito de despedida, dizendo que
voltaria em breve. Dirigiu-se ao passeio. Duas horas inteiras, e eu
sem saber onde estava. Estou tão cansada.
Não regressou pela cidade. Ao invés, deu uma grande volta,
através de um pátio de escola, ao longo de uma rua bordejada de
nogueiras-pecãs, um outro pátio de escola e um campo de futebol,
em que uma vez Jem, distraído, tinha placado um companheiro de
equipa. Estou tão cansada .
Alexandra estava à porta e afastou-se para a deixar passar.
- Onde é que estiveste? - inquiriu. - O Jack telefonou há horas
a perguntar por ti. Foste fazer alguma visita a alguém que não é
da família assim, nesses preparos ?
- Não, não sei.
- O que queres dizer com isso? Jean Louise, vê se não dizes
disparates e vai telefonar ao teu tio.
Exausta, dirigiu-se ao telefone, pegou no auscultador e pediu:
- Um-um-nove.
Ouviu-se a voz do Dr. Finch: - Aqui, doutor Finch.
Jean Louise disse com suavidade: - Desculpe. Vejo-o amanhã?
O Dr. Finch retorquiu do outro lado: - Certo.
Sentia-se demasiado cansada para achar graça à forma como o tio
falava ao telefone: instrumentos daquele género enfureciam-no pro­
fundamente, e as suas conversas eram, no mínimo, monossilábicas.
Quando se virou, Alexandra comentou: - Pareces mesmo em
baixo. O que é que se passa?
Minha senhora, o meu pai tirou-me o tapete de debaixo dos pés, e ainda
pergunta o que se passa.
- É o estômago - explicou.
- Anda muito disso por aí. Dói-te?

108
Sim, dói-me horrivelmente. Dói-me tanto que nem aguento.
- Não, tia, é só uma indisposição.
- Então, vai tomar um Alka-Seltzer!
Jean Louise disse que assim faria, e fez-se luz no espírito de Ale­
xandra: - Jean Louise, foste àquela reunião com aqueles homens
todos lá?
- Sim s'nhora.
- Assim, nesses preparos?
- Sim s'nhora.
- Onde é que te sentaste?
- Na galeria. Eles não me viram. Vi tudo da galeria. Tia,
quando o Hank vier esta noite, diga-lhe que... estou indisposta.
- Indisposta?
Não conseguiu aguentar nem mais um instante. - Sim, tia.
Vou fazer o que qualquer jovem virgem branca do Sul faz quando
está indisposta.
- E o que é?
- Vou para a cama.
Jean Louise foi para o quarto, fechou a porta, desapertou o
fecho-éclair das calças e deitou-se, atravessada, na cama de ferro
forjado que pertencera à mãe. Tateou à procura de uma almofada
e puxou-a para baixo do rosto. Num minuto estava a dormir.
Se Jean Louise tivesse conseguido refletir, poderia ter evitado
os acontecimentos que se seguiram, tivesse ela considerado as
ocorrências do dia como uma história recorrente tão antiga quanto
o tempo: o capítulo que lhe dizia respeito tinha começado duzen­
tos anos antes e tivera lugar numa sociedade orgulhosa, que nem
a guerra mais sangrenta nem a paz mais dura podiam destruir;
regressava a fim de ser desempenhado de novo, em terrenos priva­
dos, no crepúsculo de uma civilização que nem a guerra nem a paz
podiam salvar.
Tivesse ela discernimento para tal e pudesse atravessar as barrei­
ras do seu mundo insular e excessivamente seletivo, poderia ter des­
coberto que toda a vida tinha sofrido de um defeito de que nunca se
tinha apercebido e assim fora negligenciado, tanto por ela própria
como por aqueles que lhe eram mais próximos: era daltónica.

109
P A RTE I V
11

Houve uma época, já longínqua, em que os únicos momentos pací­


ficos da sua existência iam do momento em que abria os olhos de manhã
até ter recuperado totalmente a consciência, uma questão de segundos
até que, finalmente acordada, entrava no pesadelo diário da vigília.
Frequentava a sexta classe, um ano memorável pelas coisas que
aprendeu na escola e fora dela. Nesse ano, o pequeno grupo de alu­
nos da cidade foi assoberbado temporariamente por um grupo de
alunos mais velhos enviados de Old Sarum porque alguém lançara
fogo à sua escola. O rapaz mais velho da turma da sexta classe de
Miss Blunt tinha quase dezanove anos, seguido de outros três da
mesma idade. Havia várias raparigas com dezasseis anos, criaturas
voluptuosas e felizes, que achavam que a escola era uma espécie de
férias em relação às suas tarefas habituais: mondar o algodão e dar
de comer ao gado. Miss Blunt tratava todos da mesma forma: era
tão alta como o rapaz mais alto e tinha o dobro da largura.
Jean Louise simpatizou logo com os recém-chegados de Old
Sarum. Depois de ter captado a atenção unânime da turma ao
introduzir deliberadamente o nome de Gaston B. Means 20 numa
discussão sobre os recursos naturais da África do Sul e de ter pro­
vado a sua pontaria durante o intervalo com uma fisga, passou a
gozar da confiança da malta de Old Sarum.
Com uma suavidade grosseira, os rapazes ensinaram-na a jogar aos
dados e a mascar tabaco sem o engolir. As raparigas passavam grande

2
° Criminoso, contrabandista, chantagista e falsário americano. (NT)

113
parte do tempo a dar risadas por trás da mão e a sussurrar entre si,
mas Jean Louise achava-as úteis para escolher a equipa de voleibol.
Tudo tomado em consideração, estava a revelar-se um ano excelente.
Excelente até ter ido a casa jantar um certo dia. Nessa tarde não
voltou para a escola, passando o resto do dia na cama, a chorar de
raiva e a tentar compreender a terrível informação que recebera
de Calpurnia.
No dia seguinte regressou à escola, caminhando com extrema
dignidade mas sem orgulho, estorvada por aprestos até então desco­
nhecidos. Tinha a certeza de que todos sabiam o que se passava com
ela, que era alvo de olhares, mas o facto de nunca ter ouvido falar
daquilo em toda a sua vida deixava-a desconcertada. Talvez ninguém
saiba nada disto, pensou. Se assim era, então tinha grandes notícias.
No intervalo, quando George Hill lhe pediu para entrar num
jogo chamado «gordura quente na cozinha » , ela abanou a cabeça.
«Já não posso fazer nada » , queixou-se, sentando-se nos degraus
e ficando a ver os rapazes aos trambolhões na areia. «Nem sequer
posso andar. »
Quando já não conseguiu suportar mais aquilo, juntou-se ao gru­
pinho de raparigas debaixo do carvalho, ao canto do pátio da escola.
Ada Belle Stevens riu-se e abriu um espaço para ela no comprido
banco de cimento. «Não 'tás a brincar porquê? » , perguntou.
«Não m'apetece » , disse Jean Louise.
Ada Belle semicerrou os olhos e contraiu as sobrancelhas claras.
«Aposto que sei o que se passa contigo. »
«O que é?»
«A história. A maldição de Eva. S'ela não tivesse comido a maçã,
não sofríamos disto. Sentes-te mal? »
«Não», retorquiu Jean Louise, amaldiçoando Eva em segredo.
«Como é que sabes? »
«Andas como se estivesses a montar uma égua » , revelou Ada
Belle. «Acabas por te habituar. Há anos que tenho a história. »
«Nunca me hei de habituar. »
Foi difícil. Quando as suas atividades ficavam limitadas, Jean
Louise cingia-se aos jogos de azar em troca de pequenas somas
por trás de uma pilha de carvão nas traseiras do edifício da escola.

114
A perigosidade inerente do empreendimento agradava-lhe mais
que o jogo em si. Não era suficientemente boa em aritmética para
se preocupar se ganhava ou perdia, não havia realmente qualquer
prazer em bater a lei das médias, mas o facto de enganar Miss Blunt
dava-lhe alguma satisfação. Os seus companheiros eram os mais
preguiçosos do grupo de Old Sarum, sendo o pior um tal Albert
Coningham, um pensador lento a quem ela prestara um serviço
inestimável durante os testes intercalares.
Certo dia, quando tocou a campainha a anunciar o fim do teste,
Albert, sacudindo o pó de carvão das calças, disse: «Espera aí,
Jean Louise. »
Ela esperou. Quando ficaram sozinhos, Albert disse: «Quero que
saibas que, desta vez, consegui um Suficiente Menos a Geografia. »
«Isso é bem bom, Albert», respondeu ela.
«Só queria agradecer-te. »
«Não tens de quê, Albert. »
O rapaz corou até à raiz dos cabelos, puxou-a para si e beijou-a.
Ela sentiu a língua húmida e quente nos lábios e recuou. Nun­
ca alguém a beijara assim. Albert largou-a e dirigiu-se à escola
com passo arrastado, seguido por Jean Louise, desorientada e vaga­
mente incomodada.
Só permitia ser beijada na face por um familiar e, mesmo assim,
limpava o beijo em segredo. Atticus beijava-a vagamente onde
quer que calhava, e ]em nunca a beijava. Pensou que Albert devia
ter calculado mal e em breve se esqueceu daquilo.
Ao longo do ano, era frequente passar o intervalo junto das rapa­
rigas debaixo da árvore, sentada no meio do grupo, resignada ao seu
destino, mas a observar os rapazes a jogar os seus jogos sazonais no
pátio. Cena manhã, tendo chegado já tarde, deu com as raparigas a
rirem-se às escondidas mais do que era habitual e exigiu saber a razão.
«É a Francine Owen » , revelou uma delas.
«A Francine Owen? Há já uns dias que não aparece » , comentou
Jean Louise.
«Sabes porquê? » , perguntou Ada Belle.
«Não. »
«É por causa da irmã. A Segurança Social apanhou-as às duas. »

115
Jean Louise deu uma cotovelada a Ada Belle, que lhe arranjou
lugar no banco.
«Que se passa com ela? »
«Está grávida, e sabes de quem? Do pai. »
«O que é estar grávida? » , quis ela saber.
Do grupo de raparigas soltou-se um gemido coletivo. « Vai ter
um bebé, estúpida » , explicou uma.
Jean Louise assimilou a definição e disse: «Mas o que é que o pai
tem a ver com isso? »
Ada Belle suspirou. «O pai dela é qu' é o pai. »
Jean Louise riu-se. «V á lá, Ada Belle. . . »
«É verdade, menina. Aposto que a Francine não 'tá é porque
ainda não começou. »
«Começou o quê? »
«A ter as regras » , respondeu Ada Belle, impaciente. «Aposto
qu'ele fez aquilo às duas. »
«Aquilo o quê? » Jean Louise sentia-se agora completamente
confusa.
As raparigas guincharam, e Ada Belle disse: «Não percebes nada
de nada, Jean Louise Finch. Primeiro, tens a... depois, se fizeres aquilo
a seguir, isto é, depois de teres a coisa, tens um bebé e pronto. »
«Aquilo o quê, Ada Belle? »
Ada Belle olhou para o grupo e piscou o olho. «Bom, primeiro é
preciso um rapaz. Depois ele abraça-te com toda a força e resfolega
e depois beija-te à francesa. É quando ele te beija e abre a boca e
te enfia a língua lá dentro. . . »
Um zumbido nos ouvidos abafou a narrativa de Ada Belle,
e Jean Louise sentiu o sangue esvair-se-lhe do rosto. Ficou com
as mãos suadas e tentou engolir em seco. Não se iria embora.
Se fosse, elas percebiam. Levantou-se, tentando sorrir, mas os lábios
tremiam-lhe. Fechou a boca com força e cerrou os dentes.
«. . . e pronto, não há mais nada. Que se passa, Jean Louise? Estás
tão branca como a cal. Não te assustei, pois não? » , disse ela com
um sorriso malicioso.
«Não » , respondeu ela. «Mas não me sinto lá muito bem. Acho
que vou para dentro. »

116
Rezou para que elas não lhe vissem os joelhos a tremer enquanto
atravessou o pátio. Na casa de banho das raparigas, dobrou-se sobre
um lavatório e vomitou.
Não havia qualquer dúvida, Albert enfiara-lhe a língua na boca.
Estava grávida.

***
O conhecimento de Jean Louise sobre a moral e os costumes dos
adultos revelara-se, até então, escasso, mas suficiente: era possível
ter um bebé sem se ser casado, isso sabia ela. Até àquele dia, não
sabia como, nem isso a preocupava, uma vez que o assunto era
desinteressante, mas se alguém tinha um bebé sem ser casado,
a sua família cairia na pior das desgraças. Ouvira Alexandra dis­
cursar sobre a tragédia que caía sobre as famílias e que envolvia
ser-se enviado para Mobile e fechado num lar, longe das pessoas
decentes. A família nunca mais podia levantar a cabeça. Uma vez
acontecera algo na rua que seguia para Montgomery e, na outra
ponta da rua, as senhoras murmuraram e palraram sobre isso
durante semanas.
Odiou-s� e odiou toda a gente. Não fizera mal a ninguém, e sentia­
-se esmagada pela injustiça de tudo aquilo: não tivera más intenções.
Saiu da escola em silêncio, deu a volta à esquina até casa, esca­
puliu-se para o pátio de trás, trepou ao cinamomo e ficou lá sentada
até à hora de jantar. A refeição foi demorada e silenciosa. Mal deu
pela presença de Jem e de Atticus à mesa. Depois do jantar, voltou
para a árvore e ficou lá sentada até ao entardecer, quando ouviu
Atticus a chamá-la.
«Desce daí » , ordenou ele. Sentia-se demasiado infeliz para
reagir ao tom gelado da voz do pai.
«Miss Blunt telefonou e disse que saíste da escola no intervalo
e não voltaste. Onde estiveste? »
«Em cima da árvore. »
«Estás doente? Sabes que se te sentires adoentada deves ir ter
logo com a Calpurnia. »
«Não, pai. »

117
«Então, se não é isso, que justificação aceitável dás para o teu
comportamento? Tens alguma desculpa? »
«Não, pai. »
«Bom, deixa-me dizer-te uma coisa. Se isto acontecer outra vez,
vais ver-me do avesso. »
«Sim, pai. »
Esteve quase a contar-lhe, transferindo assim para ele o seu
fardo, mas ficou calada.
«Tens a certeza de que te sentes bem?»
«Sim, pai. »
«Então, vem para dentro. »
À mesa, apeteceu-lhe atirar o prato cheio a Jem, que, com os
seus quinze anos, conversava com o pai como um adulto. De vez em
quando, o irmão lançava-lhe um olhar de desdém. Vais-mas pagar,
não te preocupes, prometeu-lhe. Mas agora não posso.
Todas as manhãs acordava cheia de energia e das melhores inten­
ções, mas o pavor horrível regressava; todas as manhãs procurava
o bebé. Durante o dia, o assunto nunca se afastava muito da sua
consciência, regressando intermitentemente em alturas inespe­
radas, segredando-lhe e importunando-a.
Procurou a palavra « bebé » no dicionário e pouco encon­
trou; procurou «nascimento » e encontrou ainda menos. Des­
cobriu em casa um livro antigo chamado Demónios, Drogas
e Médicos, que a assustou ao ponto de ficar muda de histeria
perante as imagens de cadeiras de parto medievais, instrumentos
de parto e a informação de que as mulheres eram por vezes atira­
das repetidamente contra as paredes para induzir o nascimento.
A pouco e pouco, foi reunindo informações das amigas da escola,
espaçando as suas perguntas com semanas de intervalo para não
levantar suspeitas.
Evitou Calpurnia enquanto pôde, porque achava que ela lhe
tinha mentido. Cal explicara-lhe que todas as raparigas tinham
aquilo, era tão natural como respirar, era um sinal de cresci­
mento e durava até chegarem aos cinquenta anos. Nessa altura,
o desespero dominava-a de tal forma perante a perspetiva de ser
demasiado velha para desfrutar do que quer que fosse quando

1 18
aquilo finalmente acabasse que se absteve de investigar mais
o assunto. Cal nada dissera sobre bebés e beijos na boca.
Acabou por sondar Calpurnia a propósito da família Owen.
A cozinheira declarou que não queria falar do tal Mr. Owen porque
o homem não merecia conviver com seres humanos. Iam mantê-lo
na prisão por muito tempo. Sim, a irmã de Francine fora enviada
para Mobile, pobre menina. E Francine encontrava-se no Lar
Batista de Órfãos no condado de Abbott. Jean Louise não devia
ocupar a sua cabeça a pensar naquela gente. Calpurnia estava a ficar
furiosa, e ela desistiu do assunto.
Ao descobrir que faltavam nove meses até à chegada do bebé,
sentiu-se uma criminosa com pena suspensa. Contou as semanas,
assinalando-as num calendário, mas não tomou em consideração
que já haviam passado quatro meses desde que começara a fazer
cálculos. À medida que o tempo se aproximava, passava os dias
num pânico desesperado, não fosse acordar e dar com um bebé
na cama, a seu lado. Eles cresciam dentro da barriga, disso tinha
a certeza.
A ideia atormentava-lhe o espírito havia já muito tempo, mas
ela recusava-a instintivamente: a sugestão de uma separação defi­
nitiva era-lhe insuportável, mas sabia que chegaria um dia em que
não podia adiar mais, não poderia continuar a esconder. Embora as
suas relações com Atticus e Jem tivessem atingido o seu ponto mais
baixo ( «Andas completamente pateta, Jean Louise», dissera-lhe o
pai. «Não consegues concentrar-te em nada durante cinco minu­
tos?»), a ideia de uma existência sem eles era-lhe insuportável, por
mais belo que fosse o céu. Todavia, ser enviada para Mobile e fazer
com que a família vivesse daí para a frente de cabeça curvada era
ainda pior. Nem sequer desejava tal coisa a Alexandra.
Segundo os seus cálculos, o bebé chegaria com o mês de outu­
bro, e, assim, matar-se-ia no dia 3 0 de setembro.

***
No Alabama, o outono chega tarde. Até mesmo no Dia das Bru­
xas nos podemos sentar nas cadeiras do alpendre, livres do peso dos

1 19
casacões. O entardecer é longo, mas a escuridão cai subitamente,
e o céu passa de um laranja-pardo a um preto-azulado num ápice
e, com a luz, esvai-se o último raio de calor do dia, e fica mais frio.
O outono era a estação mais feliz de Jean Louise. Sentia-se uma
expectativa nos sons e nas formas: o baque distante do cabedal e dos
corpos jovens no campo de treino perto da sua casa fazia-a pensar
em bandas e Coca-Cola gelada, amendoins secos e na respiração
das pessoas no ar. Havia até algo por que ansiar quando a escola
começava: a renovação de velhos feudos e amizades, semanas em
que se reaprendia o que se havia quase esquecido durante o longo
verão. O outono era a altura de refeições quentes, em que se comia
tudo aquilo que se perdera ao pequeno-almoço, quando se tinha
demasiado sono para o apreciar. O seu mundo estava no seu melhor
quando chegou a altura de o deixar.
Tinha agora doze anos e estava na sétima classe. A sua capa­
cidade de apreciar a mudança da escola primária foi limitada;
não se divertiu com o facto de frequentar salas de aula diferentes
durante o dia e de ser ensinada por professores diferentes, nem em
saber que o irmão, que frequentava a remota escola secundária, era
considerado um herói. Atticus encontrava-se em Montgomery, na
assembleia, e ela via o irmão tão poucas vezes que mais valia que
estivesse junto do pai.
No dia 30 de setembro, passou o dia na escola mas não aprendeu
nada. Depois das aulas, foi para a biblioteca e lá ficou até o porteiro
lhe dizer que tinha de se ir embora. Caminhou lentamente até à
cidade para ficar com ela o mais tempo possível. A luz do dia já
esmorecia quando atravessou as linhas da velha serração até ao depó­
sito do gelo. Theodore, o empregado, disse-lhe olá quando ela passou.
Desceu a rua e olhou para trás, para ele, até o homem voltar a entrar.
O reservatório de água da cidade ficava num campo perto do
depósito do gelo. Era a coisa mais alta que já vira. Uma escada
muito estreita subia do chão até um pequeno varandim que dava
a volta ao reservatório.
Atirou os livros ao chão e começou a subir. Quando já chegara
mais alto que os cinamomos do pátio das traseiras, olhou para baixo
e ficou tonta. Ergueu, então, o olhar para o resto do percurso.

120
Toda a cidade de Maycomb jazia a seus pés. Pensou avistar a
sua casa: Calpurnia estaria a fazer bolachas, e Jem iria regressar
em breve do treino de futebol. Olhou para a praça e teve a certeza
de ver Henry Clinton a sair do Jitney Jungle com uma braçada de
mercearias, que descarregou no banco de trás de um carro qualquer.
As luzes da rua acenderam-se todas ao mesmo tempo, o que a fez
sorrir, subitamente encantada.
Ficou sentada no varandim estreito, com os pés pendurados.
Perdeu um sapato e depois o outro. Pensou que tipo de funeral
iria ter: a velha Mrs. Duff ficaria sentada toda a noite e obriga­
ria as pessoas a assinar um livro. Iria o Jem chorar? Se sim, seria
a pnme1ra vez.
Pensou se devia dar um mergulho ou deixar-se simples­
mente escorregar da borda. Se batesse no chão de costas, talvez
não doesse tanto. Perguntou-se se eles jamais saberiam quanto gos­
tava deles.
Alguém a agarrou. Retesou-se ao sentir umas mãos a prende­
rem-lhe os braços. Pertenciam a Henry e estavam manchadas de
verde dos vegetais. Sem palavras, ele pô-la de pé e impeliu-a pela
escada íngreme.
Ao chegarem ao fundo, ele puxou-lhe o cabelo: «Juro por Deus
se, desta vez, não vou contar a Mr. Finch!», berrou. «Juro-te,
Scout! Não sabes muito bem que não deves brincar neste reserva­
tório? Podias ter-te matado! »
Voltou a puxar-lhe os cabelos, arrancando-lhe alguns, e aba­
nou-a. Desatou o avental branco, enrolou-o num chumaço e ati­
rou-o ao chão. «Não sabes que te podias ter matado? Não tens
juízo?»
Jean Louise olhava para ele sem expressão.
«O T heodore viu-te dalém e correu em busca de Mr. Finch e, como
não o conseguiu encontrar, foi ter comigo. Santíssimo Deus... ! »
A o vê-la tremer, Henry percebeu que ela não estivera a brincar.
Pousou-lhe a mão ao de leve na nuca e, a caminho de casa, tentou
descobrir o que a apoquentava, mas ela recusou-se a falar. Deixou-a
na sala e foi até à cozinha.
«Querida, o que é que andaste a fazer?»

12 1
Quando falava com ela, a voz de Calpurnia era sempre um
misto de afeto relutante e de leve censura. «Mr. Hank » , disse ela.
«É melhor voltar para a loja. Mr. Fred deve estar a pensar no que
é que lhe aconteceu. »
Calpurnia, mascando decidida um pauzinho de árvore-do­
-âmbar, olhou para Jean Louise. «Em que é que a menina se
meteu? » , perguntou. «Que estava a fazer naquele reservatório? »
Jean Louise permaneceu calada.
«Se me contar, não digo nada a Mr. Finch. O que é que a deixou
tão infeliz? »
Calpurnia sentou-se a seu lado. Já ultrapassada a meia-idade,
o corpo espessara-lhe um pouco, o cabelo encarapinhado estava a
ficar grisalho, e a miopia fazia-a entortar os olhos. Abriu as mãos
sobre o regaço e estudou-as. «Não há nada neste mundo tão mau
que não se possa contar » , declarou.
Jean Louise atirou-se para o colo dela e sentiu umas mãos áspe-
ras a afagar-lhe os ombros e as costas.
«Vou ter um bebé » , soluçou ela.
«Quando? »
«Amanhã! »
Calpurnia puxou-a para cima e limpou-lhe a cara com o canto
do avental. «Por amor de Deus, ond'é que foi buscar uma ideia
dessas? »
Entre soluços, Jean Louise contou-lhe da sua vergonha, sem
omitir nada, e implorando que não a mandassem para Mobile,
não a esticassem nem a atirassem contra a parede. «Não podia
ir para a tua casa? Por favor, Cal. » Implorou-lhe que a aju­
dasse em segredo, que podiam levar dali o bebé à noite, quando
ele viesse.
«Tem andado a carregar com isto durante todo este tempo?
Por que razão não disse nada? »
Jean Louise sentiu o braço pesado em redor de si, a confortá-la
quando não havia conforto. Ouviu-a resmungar: «... não tinham
nada de lhe encher a cabeça destas histórias. .. matava-os se lhes
pudesse pôr as mãos. »
«Cal, vais ajudar-me, não vais? » , pediu timidamente.

122
Calpurnia respondeu : « Tão certo como o bom Jesus ter nascido,
querida. Meta isto na sua cabeci nha, não 'tá grávida nem nunca
'teve . Não é assim qu'a coisa funciona. »
« Bom, se não é, então o qu'é que eu 'tou ? »
« Com tanta leitura, é a criança mais ignorante que j á conheci . . . »
A voz sumiu-se-lhe. « . . . mas acho que, pra dizer a verdade, nunca
teve hipóteses . »
Lentamente e com toda a determi nação , Calpurnia contou­
-lhe a história em toda a sua simplicidade . Enquanto a escutava,
a série de i nformações revoltantes que colecionara durante o ano
encaixou-se num novo padrão cristalino; à medida que a voz rouca
da cozinheira a livrava do terror acumulado, Jean Louise sentiu
a vida regressar. Respirou fundo e sentiu a frescura do outono
na garganta. Ouviu as salsichas a chiar na cozinha, viu a coleção
de revistas de desporto do irmão na mesa da sala, sentiu o cheiro
agridoce do champô de Calpurnia.
« Cal » , perguntou, « por que razão eu não aprendi isto tudo
antes ? »
Calpurnia franziu a testa, em busca de uma resposta. «A menina
'tá me'mo muito atrasadinha, Miss Scout. Nem é bem próprio da
sua idade . . . se tivesse crescido numa quinta, sabia isto me'mo antes
de saber andar, ou se tivesse havido aqui uma mulher. . . se a sua
mãe tivesse vivido , a menina já sabia . . . »
« A mi nha mãe ? »
« Pois. Tinha visto coisas com 'o seu pai a beijar a sua mãe e ti nha
feito perguntas assim que soubesse falar, aposto. »
« E eles faziam aquilo tudo ? »
Calpurnia deixou entrever os molares coroados a ouro . « Minha
santinha, com'é que pensa que chegou aqui ? Claro que faziam . »
« Bom, cá por mim acho que não. »
«Querida, vai ter de crescer mais um bocado antes d'isto tudo fazer
sentido, mas o seu pai e a sua mãe amavam-se muito e, quando se ama
assim uma pessoa, Miss Scout, bom , tem-se vontade de fazer aquilo.
É o que toda a gente quer fazer quando se ama alguém assim. Que­
rem casar-se, querem dar beijos e abraços e fazer aquilo e ter bebés . »
« Acho que a tia e o tio J immy não querem. »

12 3
Calpurnia pegou no avental. «Miss Scout, as pessoas casam­
-se por razões diferentes. Acho que Miss Alexandra se casou para
governar uma casa. » Calpurnia coçou a cabeça. «Mas não precisa de
se ralar com isso, não lhe diz respeito. Não se rale com os assuntos
dos outros antes de tratar dos seus. »
A cozinheira pôs-se de pé. «Agorinha mesmo, tem é de não dar
ouvidos ao qu'aquela gentinha lá de Old Sarum lhe diz. Não vale
a pena desmentir eles, só não lhes preste atenção. E se quiser saber
alguma coisa, venha ter com a velha Cal. »
«Por que razão não me contaste isto tudo antes? »
«Porque as coisas começaram um nadinha cedo prà menma,
e parecia que não tinha gostado lá muito, e achámos que tam'ém
não ia gostar do resto. Mr. Finch disse pra esperar um pouco até a
menina se habituar à ideia, mas não contámos que descobrisse tão
depressa e com tudo errado, Miss Scout. »
Jean Louise espreguiçou-se voluptuosamente e bocejou, muito
satisfeita com a sua vida. Estava a ficar com sono e não tinha a cer­
teza de conseguir manter-se acordada até ao jantar. «Hoje à noite
vamos comer pãezinhos quentes, Cal? »
«Sim, menina. »
Ouviu bater a porta da frente, e Jem entrou com grandes pas­
sadas. Iria direito à cozinha, onde abria o frigorífico e engolia um
litro de leite para matar a sede do treino de futebol. Antes de fechar
os olhos, ocorreu-lhe que, pela primeira vez na vida, Calpurnia a
tratara por «menina » e «Miss Scout » , formas de tratamento nor­
malmente reservadas para a presença de pessoas importantes. Devo
estar a ficar velha, pensou.
Jem acordou-a ao acender a luz do teto. Viu-o ir direito a si,
o grande «M » castanho bem visível na camisola branca.
«' T ás acordada, Três Olhinhos2 1 ? »
«Não sejas sarcástico » , disse ela. Se Henry ou Calpurnia lhe
tivessem contado o que acontecera, morria de vergonha, mas havia
de se vingar.

21
Referência a um conto de fadas dos irmãos Grimm. (NT)

1 24
Ficou a olhar para o irmão. Tinha o cabelo húmido e cheirava
intensamente ao sabão dos balneários da escola. É melhor ser eu
a atacar, pensou.
«Ei, 'tiveste a fumar » , acusou-o. «Cheira-se a milhas. »
«Não 'tive nada. »
«Nem percebo com'é que consegues jogar na equipa. És um
lingrinhas. »
]em sorriu e não mordeu o isco. Contaram-lhe, pensou ela.
O irmão deu uma palmadinha no «M » . «"O Velho não Falha
Uma", sou eu. Esta tarde, apanhei sete em dez » , anunciou.
Foi até à mesa e pegou numa revista de futebol, abriu-a, fo­
lheou-a duas vezes e disse: «Scout, se alguma vez houver qualquer
coisa que te aconteça ou coisa assim, sabes, algo que não queiras
contar ao Atticus... »
«Hã? »
«Sabes, se te meteres em sarilhos na escola ou coisa assim...
dizes-me, 'tá bem? Eu protejo-te. »
Saiu da sala descontraidamente, deixando Jean Louise de olhos
abertos, a pensar se estaria bem acordada.

12 5
12

A luz do Sol acordou-a. Viu as horas. Eram cinco. Alguém a


cobrira durante a noite. Atirou a coberta para trás, pôs os pés no
chão e ficou sentada a mirar as longas pernas, admirada por já ter
vinte e seis anos. Os mocassins alinhavam-se, em sentido, no sítio
em que os descalçara doze horas antes. Uma peúga jazia ao lado,
e descobriu que tinha o seu par ainda calçado. Tirou a peúga e foi
em passos ligeiros até ao toucador, onde se viu ao espelho.
Mirou-se pesarosamente. Passaste por aquilo a que Mr. Burgess
chamaria « os horrores » , disse para si. Jesus, há quinze anos que não
acordava assim. Hoje é segunda, estou em casa desde sábado, restam-me
onze dias de férias, e acordo com um ataque de nervoseira. Riu-se de si
própria: era o mais grave jamais registado. Maior que um elefante
e sem qualquer resultado positivo.
Pegou num maço de cigarros e três fósforos, entalou-os dentro
da embalagem de celofane e foi até à entrada silenciosamente.
Abriu a porta de madeira e em seguida a de rede.
Num outro dia qualquer, teria ficado descalça na relva húmida a
escutar a primeira sessão de canto das cotovias; teria refletido sobre
a inutilidade da beleza solene e silenciosa que se renovava a cada
nascer do Sol sem ser contemplada por metade do mundo. Teria
caminhado sob os pinheiros aureolados de amarelo que se erguiam
para o céu brilhante a leste, e os seus sentidos teriam sucumbido
perante a alegria da manhã.
Tudo aguardava para a receber, mas Jean Louise não contemplou
nem escutou. Teve dois minutos de paz antes de a véspera lhe voltar

1 26
à memória: nada destrói o prazer do primeiro cigarro de uma nova
manhã. Expeliu cuidadosamente o fumo no ar quieto.
Com cautela, deixou-se levar até aos acontecimentos da véspera,
mas depois retrocedeu. Não me atrevo a pensar nisso agora, não até ter
passado tempo suficiente. É estranho, pensou, isto é como uma dor física.
Diz-se que, quando não se consegue aguentá-la, o corpo torna-se a sua
própria defesa, bloqueia-a e não se sente mais. O Senhor não nos traz mais
do que conseguimos suportar. . .
Era uma expressão antiga de Maycomb, uma paráfrase de
Coríntios usada pelas senhoras frágeis que velavam os mortos,
que devia ser de grande conforto para os enlutados. Muito bem,
ela deixar-se-ia confortar. Passaria as suas duas semanas em casa
com um desapego cortês, nada dizendo, nada perguntando,
sem condenações. Portar-se-ia tão bem quanto as circunstâncias
lhe permitissem.
Apoiou os cotovelos nos joelhos e escondeu a cabeça entre os
braços. Quem me dera ter-vos apanhado numa espelunca qualquer com
duas mulheres duvidosas. . . A relva precisa de ser cortada.
Jean Louise foi à garagem e levantou a porta basculante.
Empurrou a máquina de cortar relva, abriu a tampa do depósito e
inspecionou o tanque. Atarraxou a tampa, com um dedo deu uma
pancada seca numa alavanca minúscula, colocou um pé no cortador
de relva, fincou o outro no chão e deu um puxão rápido ao cordão.
O motor soluçou duas vezes e parou.
C'os diabos, afoguei o motor.
Empurrou a máquina até ao sol e regressou à garagem, de onde
saiu munida de uma pesada tesoura de aparar sebes. Foi até à con­
duta de água à entrada do acesso à garagem e desbastou as ervas
mais robustas que cresciam de ambos os lados. Algo se moveu aos
seus pés, e ela fechou a mão esquerda em concha sobre um grilo.
Passou a mão direita por baixo do inseto e aprisionou-o com a
outra. O grilo debatia-se em desespero entre as palmas das mãos,
e ela pousou-o de novo. - Atrasaste-te - disse. - Vai para casa
ter com a tua mãe.
Um camião subiu a encosta e parou à sua frente. Um rapaz
negro saltou do estribo e entregou-lhe três litros de leite. Jean

1 27
Louise levou-o para os degraus da frente e, de regresso à conduta
de água, tentou mais uma vez pôr a funcionar a máquina de cortar
relva, que daquela feita pegou.
Olhou para a faixa lisa atrás de si. A relva bem aparada tinha
o cheiro que se sente nas margens dos rios. O curso de Literatura
Inglesa teria, por certo, sido diferente se Mr. Wordsworth tivesse possuído
uma máquina de cortar relva, pensou.
Algo se interpôs no seu campo de visão, e olhou para cima. Ale­
xandra, junto à porta da frente, chamava-a com gestos frenéticos.
Tenho a certeza de que está de espartilho. Será que ela se vira na cama?
A tia não mostrava grandes sinais de uma atividade desse tipo,
ali parada à espera da sobrinha: o espesso cabelo grisalho estava
arranjado como era habitual; não tinha maquilhagem, o que não
fazia diferença. Será que alguma vez sentiu alguma coisa de verdade na
vida? O Francis deve magoá-la quando aparece, mas. . . será que alguma
vez foi tocada por alguma coisa?
- Jean Louise! - sibilou ela. - Estás a acordar a vizinhança
toda com essa coisa! Já acordaste o teu pai, e ele não dormiu nada
na outra noite. Para com isso imediatamente!
Ela desligou o motor, e o silêncio súbito quebrou a sua trégua
para com eles.
- Sabes muito bem que não deves manobrar essa coisa descalça.
O Fink Sewell cortou três dedos do pé assim, e o Atticus, ainda no
outono passado, matou uma cobra de quase um metro nas traseiras.
Francamente, às vezes vais aquém dos limites!
Jean Louise não conseguiu deixar de sorrir abertamente. Ale­
xandra era conhecida por, de vez em quando, cometer erros
no emprego de certas palavras, o que podia tornar-se muito
divertido; o mais notável de entre eles fora o comentário sobre
a avidez demonstrada pelo membro mais novo de uma família
judaica de Mobile ao completar treze anos: Alexandra declarara
que Aaron Stein era o rapaz mais glutão que jamais conhe­
cera, que tinha comido catorze maçarocas de milho na sua festa
da Menopausa2 2 •

22
A personagem confunde a expressão (Bar) Mitzvah com Menopausa. (NT)

128
-·Por que razão é que não trouxeste o leite para dentro? A esta
hora já deve ter talhado.
- Não vos queria acordar, tia.
- Bom, já estamos levantados - retorquiu, sombria. - Que-
res tomar pequeno-almoço?
- Só café, por favor.
- Quero que te vistas e que vás à cidade esta manhã. Vais ter
de levar o Atticus, que hoje está muito tolhido.
Desejou ter ficado na cama até o pai ter saído, mas ele tê-la-ia
acordado para o levar.
Entrou em casa, foi à cozinha e sentou-se à mesa. Observou
as ferramentas grotescas que Alexandra tinha pousado ao lado
do prato do pai. Atticus não permitia que ninguém lhe desse de
comer, e o Dr. Finch resolvera o problema atando os cabos de um
garfo, uma faca e uma colher às extremidades de grandes carretéis
de madeira.
- Bom dia.
Jean Louise ouvm o pai entrar e pôs os olhos no prato.
- Bom dia.
- Ouvi dizer que não estavas bem-disposta. Fui ver-te quando
cheguei, e estavas a dormir profundamente. Estás melhor hoje
de manhã?
- Sim, senhor.
- Não parece.
Atticus deu graças ao Senhor por aquelas e todas as outras bên­
çãos recebidas, pegou no copo e entornou o seu conteúdo sobre
a mesa. O leite escorreu-lhe para o colo.
- Desculpa - disse ele. - De manhã às vezes demora até
conseguir movimentar-me.
- Deixe-se estar, eu limpo. - Jean Louise levantou-se de um
salto e foi ao lava-louça. Atirou dois panos da louça sobre o leite,
tirou um lavado da gaveta do armário e limpou o leite das calças
e da camisa do pai.
- Agora as contas da lavandaria são gigantes - comen­
tou ele.
- Sim, senhor.

129
Alexandra serviu Atticus de ovos, bacon e torradas. Dado que a
atenção do pai se concentrava na comida, Jean Louise pensou que
podia examiná�lo sem perigo.
Não tinha mudado, o rosto era o mesmo de sempre. Nem sei por
que motivo estava à espera de que se parecesse com o Dorian Gray ou algo
do género.
Sobressaltou-se ao ouvir o telefone tocar.
Jean Louise não conseguia lidar com chamadas às seis da ma­
nhã, a hora de Mary Webster. Alexandra foi atender e regressou
à cozinha.
- É para ti, Atticus. É o xerife.
- Pergunta-lhe o que quer, por favor, Zandra.
Alexandra reapareceu, dizendo: - Qualquer coisa sobre alguém
que lhe pediu para te telefonar. . .
- Diz-lhe para telefonar ao Hank, Zandra. Seja o que for, pode
dizê-lo ao Hank. - Virou-se para a filha. - Estou contente por ter
um sócio mais novo e uma irmã. O que um não tem, tem o outro.
O que quererá o xerife a esta hora?
- Também gostava de saber - retorquiu Jean Louise num tom
inexpressivo.
- Querida, acho que devias deixar que o Allen te examine hoje.
Estás um bocadinho estranha.
- Sim, senhor.
Dissimuladamente, observou o pai a tomar o pequeno-almoço.
Manipulava os talheres incómodos como se tivessem as dimensões
e a forma normais. Olhou de relance o seu rosto e viu-lhe a barba
grisalha que despontava. Se a deixasse crescer, seria branca, mas o
cabelo só agora começava a embranquecer, e as sobrancelhas con­
tinuavam a ser negras. O tio Jack já ostentava a fronte branca, e a
tia estava toda grisalha. Quando é que será a minha vez? Por onde é
que irá começar? Mas por que razão é que estou a pensar nestas coisas?
Pediu desculpa e levou o café para a sala. Pousou a chávena
numa mesinha e estava a abrir as portadas quando viu o carro de
Hank a virar para o acesso à casa. Ele avistou-a junto à janela.
- Bom dia. Estás com um ar horrível - disse-lhe ele.
- Obrigada. O Atticus está na cozinha.

130
Henry parecia o mesmo de sempre. Depois de uma noite de
sono, a cicatriz estava menos vívida. - Estás aborrecida com
alguma coisa? - quis saber. - Ontem disse-te adeus para a gale­
ria, mas não me viste.
- Tu viste-me?
- Vi. Tinha esperança de que estivesses à nossa espera lá fora,
mas não estavas. Sentes-te melhor hoje?
- Sinto.
- Então não respingues comigo.
Jean Louise terminou o café, disse para si que queria outro e
seguiu Hank até à cozinha. Encostado ao lava-louça, ele fazia girar
as chaves do carro no dedo indicador. É quase tão alto como os armá­
rios da cozinha, pensou. Nunca mais vou conseguir dizer-lhe uma frase
com sentido.
- . . . assim aconteceu - dizia Hank. - Tinha de acontecer
mais tarde ou mais cedo.
- Estava a beber? - perguntou Atticus.
- Não, já estava bêbado. Vinha de uma noite de copos naquela
espelunca que eles têm.
- O que foi? - quis ela saber.
- Foi o filho do Zeebo - explicou Hank. - O xerife disse-me
que o tem na cadeia. Ele tinha pedido para telefonar a Mr. Finch
para o ir tirar... hum.
- Porquê?
- Querida, o rapaz vinha dos Casebres a toda a velocidade hoje
ao raiar da manhã e atropelou o velho Mr. Healy quando ele estava
a atravessar a estrada e matou-o.
- Oh, não...
- De quem era o carro? - perguntou Atticus.
- Acho que era do Zeebo.
- Eu disse-lhe para dizer ao Zeebo que o senhor não ficava com
o caso.
Atticus apoiou os cotovelos na mesa e empurrou a cadeira
para trás.
- Não devias ter feito isso, Hank - retorquiu com suavidade.
- Claro que ficamos com o caso.

131
Obrigada, meu Deus. Jean Louise soltou um suspiro ligeiro e
esfregou os olhos. O filho de Zeebo era neto de Calpurnia. Atticus
podia esquecer-se de muitas coisas, mas deles nunca se esque­
ceria. A véspera esfumava-se rapidamente numa má noite. Pobre
Mr. Healy, provavelmente estava tão embriagado que nem percebeu o que
lhe aconteceu.
- Mas Mr. Finch - interpelou Hank -, eu pensava que não...
Atticus deixou relaxar a mão sobre a cadeira. Tinha por hábito
levá-la à corrente do relógio e ficar a mexer-lhe, distraído, quando
queria concentrar-se. Naquele dia, porém, as mãos repousa­
vam quietas.
- Hank, parece-me que, assim que apurarmos os factos, o
melhor para ele será declarar-se culpado. Agora, não achas que
é melhor que o defendamos em tribunal em vez de o deixarmos
cair nas mãos erradas?
Um sorriso abriu-se lentamente no rosto de Hank. - Estou
a perceber o que quer dizer, Mr. Finch.
- Mas eu não - interveio Jean Louise. - Que mãos erradas?
Atticus virou-se para a filha. - Scout, és capaz de não saber,
mas os advogados da NAACP andam aqui sempre a rondar como
abutres, à espera que aconteçam coisas destas...
- O pai quer dizer advogados negros?
Atticus assentiu. - Sim. Agora temos uns três ou quatro no
estado. A maioria das vezes estão em Birmingham e sítios desses,
mas observam e aguardam, comarca a comarca, que algum delito
seja cometido contra um branco por um negro; nem imaginas
a rapidez com que descobrem.. . e bom, de uma forma simples
para perceberes, exigem a inclusão de jurados negros nesses casos.
Intimam os comissários dos júris, dizem ao juiz para se afastar,
aproveitam-se de todos os truques legais dos manuais, e têm mui­
tos, tentam induzir o juiz em erro. Além de tudo o mais, tentam
levar os casos a um tribunal federal, onde sabem ter as cartas a seu
favor. Já aconteceu na comarca vizinha, e não há nada que nos diga
que não pode acontecer aqui.
Atticus virou-se para Hank. - É por isso que vamos aceitar
o caso, se ele nos quiser.

132
- Eu pensava que a NAACP estava proibida de ter atividades
no Alabama - comentou Jean Louise.
Atticus e Hank olharam-na e deram uma gargalhada.
- Querida - esclareceu Hank -, não sabes o que se passou
no condado de Abbott quando aconteceu uma coisa do género.
Esta primavera achámos que ia haver sarilhos a sério. As pessoas
aqui do outro lado do rio até compraram todas as munições que
consegmram...
Jean Louise abandonou a cozinha.
Já na sala, ouviu a voz serena de Atticus: - . . . mudar a maré
para o nosso lado... foi bom que ele tivesse pedido um dos advo­
gados de Maycomb ...
Acontecesse o que acontecesse, havia de manter o café no estô­
mago. A quem é que a tribo de Calpurnia recorria sempre em pri­
meiro lugar? De quantos divórcios de Zeebo havia Atticus tratado?
Cinco, pelo menos. Qual dos rapazes seria aquele? Estava metido
num grande sarilho, precisava mesmo de ajuda, e eles continuavam
na cozinha a falar da NAACP... não muito tempo antes, Atticus
fá-lo-ia unicamente por bondade, fá-lo-ia por Calpurnia. Tenho de
ir vê-la hoje sem falta . . .
O que é esta moléstia que caiu sobre as pessoas que eu amo ? Tornou­
-se tão óbvia por eu ter estado afastada ? Ou alastrou gradualmente ao
longo dos anos? Esteve sempre aqui, debaixo do meu nariz, e eu só tinha
de prestar atenção ? Não, não foi isso. O que faz homens normais berrar
impropérios a plenos pulmões, o que fez a minha gente endurecer e dizer
«escarumba » , quando era uma palavra que nunca se usava ?
- ... mantê-los no seu lugar, espero eu - dizia Alexandra
quando entrou na sala, acompanhada de Atticus e de Hank.
- Não há motivo para preocupações - contrapôs Hank.
- Vai correr tudo bem. Hoje às sete e meia, querida?
- Sim.
- Bom, podias mostrar algum entusiasmo.
Atticus deu uma risadinha. - Já está farta de ti, Hank.
- Posso levá-lo até à cidade, Mr. Finch? Ainda é muito cedo,
mas acho que vou tratar de umas coisas pelo fresco da manhã.
- Obrigado, mas a Scout vai lá pôr-me mais tarde.

133
O emprego do seu nome de infância fez ruir o seu mundo. Nunca
mais me trate por esse nome. Vocês, os que me chamavam Scout, estão mortos
e enterrados.
Alexandra disse: - Tenho uma lista de coisas para ires buscar
à mercearia, Jean Louise. Vai mudar de roupa e podes ir lá agora,
que já está aberta, e voltas para vir buscar o teu pai.
Jean Louise entrou na casa de banho e abriu a torneira da água
quente da banheira. Foi ao quarto, tirou um vestido de algodão do
roupeiro e colocou-o sobre o braço. Descobriu uns sapatos rasos na
mala, pegou numas cuequinhas e levou tudo para a casa de banho.
Olhou-se ao espelho do armário dos remédios. E agora quem
é o Dorian?
Viam-se olheiras azul-acastanhadas sob os olhos, e os vincas que
iam das narinas aos cantos da boca sobressaíam, definidos. Não há
qualquer dúvida, estão bem vincados, pensou. Puxou uma bochecha
para o lado e observou a ruga incipiente. Quero lá saber. Quando esti­
ver pronta para me casar, hei de ter noventa anos, e então será demasiado
tarde. Quem é que me enterra? Sou a mais nova, sem dúvida; ora aí está
uma razão para ter filhos.
Temperou o banho com água fria e, quando a conseguiu aguen­
tar, entrou na banheira, esfregou-se liminarmente, secou-se e ves­
tiu-se depressa. Deu uma limpeza na banheira, enxugou as mãos,
pendurou a toalha no toalheiro e saiu da casa de banho.
- Põe batom - disse-lhe a tia, quando a encontrou à entrada.
Em seguida, Alexandra foi ao armário e de lá arrastou o aspirador.
- Eu faço isso quando chegar - ofereceu-se Jean Louise.
- Quando chegares, já eu acabei.

***
O sol ainda não queimava os passeios de Maycomb, mas em
breve o faria. Estacionou o automóvel em frente da mercearia
e entrou.
Mr. Fred apertou-lhe a mão, dizendo-se muito contente por a
ver, tirou um copo de Coca-Cola gelada da máquina, limpou-o da
humidade ao avental e deu-lho.

1 34
Esta é a única coisa boa da vida que nunca muda, pensou. Enquanto
fosse vivo, enquanto ela voltasse a casa, Mr. Fred ali estaria com as
suas. . . boas-vindas despretensiosas. Como é que era? A Alice? O Coelho
Brer 3 ? Era a Toupeira 24 • A Toupeira, ao regressar de alguma grande via­
gem, exausta, encontrava quem a esperasse com as suas boas-vindas simples.
- Eu avio isto enquanto a menina bebe a sua Coca-Cola -
sugeriu Mr. Fred.
- Muito obrigada - agradeceu ela. Olhou de relance para a
lista e abriu os olhos de espanto. - A tia está a fazer cada vez mais
compras, como o primo Joshua. Para que é que ela quer guardana­
pos de cocktail ?
Mr. Fred deu uma risada. - Suponho que esteja a referir-se
a guardanapos de festa. Nunca ouvi que tivesse bebido um cocktail.
- Nem nunca vai ouvir.
Mr. Fred foi à sua vida e, a certa altura, disse das traseiras da
loja: - Ouviu o que aconteceu a Mr. Healy?
-Ah... hum - foi a resposta de Jean Louise. Era filha de
advogado.
- Nem percebeu o que lhe aconteceu - continuou Mr. Fred.
- Nem sabia para onde ia, coitadito. Bebia mais álcool adulterado
do que qualquer pessoa que eu já vi. Era o seu único feito.
- Ele não costumava tocar música com uma botija?
- Ai isso tocava - confirmou Mr. Fred. - Lembra-se de
quando havia aqueles serões de talentos no tribunal? Ele estava lá
sempre a soprar na botija. Levava-a cheia, bebia um bocado para
baixar o som, depois bebia mais um bocado até ficar mesmo baixo
e só depois é que tocava o seu solo. Era sempre o Old Dan Tacker, e
escandalizava sempre as senhoras, mas nunca conseguiram provar
nada. Sabe que o álcool puro não cheira muito.
- De que vivia ele?
- Da pensão, acho eu. Tinha andado na guerra espanhola; para
lhe dizer a verdade, sei que andou na guerra, mas não me lembro
de qual foi. Aqui estão as suas mercearias.
23
Personagem do folclore do Sul dos Estados Unidos . (NT)
24
Personagem de Vento nos Salgueiros, obra da li teratura infantil, de Kenneth
Grahame . (ND

13 5
- Obrigada, Mr. Fred - disse Jean Louise. - Ó Deus , esque­
ci-me do di nheiro. Posso deixar a conta na secretária do Atticus ?
Ele vem cá entretanto .
- Claro, querida. Como vai o seu pai ?
- H o j e nem por i s s o , mas nem p ensar em faltar ao es-
critóri o .
- Por que razão não fica a menina e m casa desta vez ?
Baixou a guarda quando viu no rosto de Mr. Fred apenas um
bom humor desi nteressado: - Um dia, eu fico.
- Sabe , eu estive na Primeira Guerra - conti nuou ele. - Não
fui para fora do país mas vi muito aqui dentro. Não tinha grande
vontade de voltar para casa e fiquei fora dez anos , mas , quanto mais
tempo por lá ficava, mais eu tinha saudades de Maycomb . Che­
guei a um ponto em que tinha de voltar ou morria. É uma coisa
de que a gente nunca se livra.
- Mr. Fred , Maycomb é igual às outras cidades pequenas . Tira-
-se uma amostra representativa . . .
- Não é , Jean Louise . Sabe bem disso .
- Tem razão - assentiu ela.
Não era por ter sido lá que se ti nha nascido. E ra por ser lá que
muita, muita gente tinha nascido antes de nós até que o resultado
éramos nós , ali a beber uma Coca-Cola na mercearia.
Ao entrar no automóvel , bateu com a cabeça. Nunca me vou
habituar a estas coisas, o tio Jack tem alguns bons argumentos na
sua filosofia.

***
Alexandra tirou as mercearias do banco de trás . Jean Louise
incli nou-se e abriu a porta ao pai ; depois, i nclinou-se de novo à
frente dele e fechou-a.
- Precisa do carro hoje de manhã, tia?
- Não , querida. Vais a algum lado ?
- Sim s ' nhora. Não me demoro .
Concentrou toda a sua atenção na estrada. Posso fazer o que quer
que seja, exceto olhar para ele, ouvi-lo ou falar com ele.

1 36
Quando parou em frente à barbearia, disse: - Pergunte a
Mr. Fred quanto lhe devemos. Esqueci-me de tirar a conta de den­
tro do saco. Disse que o pai lhe pagava.
Quando ela lhe abriu a porta, o pai saiu do automóvel.
- Tenha cuidado!
Atticus acenou ao condutor do carro que passava. - Não me
bateu - observou.
Jean Louise deu a volta à praça e seguiu a estrada de Meri­
dian até chegar a uma bifurcação. Deve ter sido aqui que aconteceu,
ocorreu-lhe.
Viam-se manchas escuras na gravilha vermelha, onde terminava
o alcatrão, e o automóvel passou por cima do sangue de Mr. Healy.
Quando chegou a uma bifurcação na estrada de gravilha, virou à
direita, seguindo por uma vereda tão estreita que o enorme auto­
móvel não deixava qualquer espaço de cada um dos lados. Conti­
nuou até não poder avançar mais.
A estrada estava bloqueada por uma fila de carros estacionados
na diagonal, de frente para a valeta. Parou atrás do último e saiu.
Caminhou ao longo da fila, passando por um Ford 1 93 9, um Che­
vrolet que lhe pareceu ambiguamente clássico, um Willys e um carro
funerário cor de turquesa com as palavras DESCANSO CELES­
TIAL num semicírculo cromado na porta da frente. Surpreendida,
espreitou lá para dentro: atrás, viam-se filas de cadeiras aparafu­
sadas ao chão, sem lugar para um corpo na posição horizontal, vivo
ou morto. Isto é um táxi, pensou.
Retirou a argola de arame da jamba do portão e entrou. Cal­
purnia tinha o pátio varrido, e Jean Louise reparou que tinha sido
varrido havia pouco, ainda se viam as marcas da vassoura por entre
as pegadas na terra macia.
No alpendre da pequena casa, viam-se negros em trajes diversos:
algumas mulheres vestiam as suas melhores roupas, uma exibia um
avental de algodão grosso estampado, outra usava as suas roupas
de trabalho. Jean Louise identificou um dos homens como sendo
o professor Chester Sumpter, o diretor do Instituto Comercial
de Mt. Sinai, a maior escola de negros do condado de Maycomb.
Como sempre, o professor Sumpter vestia de negro. Não conhecia

137
o outro homem de fato negro, mas percebeu que se tratava de um
ministro da igreja. Zeebo envergava a sua roupa de trabalho.
Quando a viram, endireitaram-se e retrocederam, reunindo­
-se num grupo unido. Os homens tiraram os chapéus ou boinas,
a mulher de avental juntou as mãos debaixo dele.
- Bom dia, Zeebo - cumprimentou Jean Louise.
Zeebo deu um passo em frente, destacando-se do grupo.
- Como vai, Miss Jean Louise? Não sabia que 'tava em casa.
Intensamente consciente de que os negros a observavam, via­
-os respeitosos, em silêncio, mirando-a fixamente. Perguntou:
- A Calpurnia está em casa?
- Sim s'nhora, Miss Jean Louise, a minha mãe 'tá em casa.
Quer qu'a vá buscar?
- Posso entrar, Zeebo?
- Sim s'nhora.
Os negros afastaram-se para ela passar. Zeebo, sem saber como
fazer, abriu a porta e desviou-se para a deixar entrar. - Mostra-me
o caminho, Zeebo - sugeriu ela.
Seguiu-o até uma sala escura, que tinha o cheiro doce e al­
miscarado de negros asseados e que rescendia a rapé e a loção
capilar Hearts o/ Love. V ários vultos sombrios ergueram-se quan­
do entrou.
- Por aqui, Miss Jean Louise.
Foram até um vestíbulo exíguo, e Zeebo bateu a uma porta
em madeira de pinho. - Mãe - chamou -, Miss Jean Louise
está aqui.
A porta abriu-se com suavidade, e apareceu a cabeça da mulher
de Zeebo, que saiu para o vestíbulo, onde mal cabiam três pessoas.
- Olá, Helen - cumprimentou Jean Louise. - Como está a
Calpurnia?
- ' T á a aceitar tudo muito mal, Miss Jean Louise. O Frank
nunca se tinha metido em sarilhos...
Então, tinha sido o Frank. De entre os seus múltiplos descen­
dentes, era nele que Calpurnia tinha mais orgulho. Estava em lista
de espera para o Instituto Tuskegee. Era um canalizador nato e
conseguia arranjar tudo por onde passava água.

1 38
Helen, a barriga pesada a pender de ter carregado tantos filhos,
encostou-se à parede. Estava descalça.
- Zeebo - inquiriu Jean Louise -, tu e a Helen estão a viver
juntos outra vez?
- Sim s'nhora - respondeu Helen com placidez. - ' T á ve­
lho, ele.
Jean Louise esboçou um sorriso na direção do homem, que
pareceu embaraçado. Nunca na vida conseguiria deslindar a his­
tória doméstica de Zeebo. Ocorreu-lhe que Helen devia ser a mãe
de Frank, mas não tinha a certeza. Sabia que fora a sua primeira
mulher e sabia igualmente que era a mulher atual, mas quantas
teria havido de permeio?
Lembrava-se de Atticus falar do casal, quando lhe apareceu no
escritório para se divorciar. Tentando reconciliá-los, o pai pergun­
tara a Helen se recebia o marido de volta. «Nã s'nhor, Mr. Finch»,
fora a resposta lenta que dera. «O Zeebo anda aí a usar mais
mulheres. A mim não me usa, e não quero um homem que não
usa a sua mulher. »
- Posso ver a Calpurnia, Helen?
- Sim s'nhora, pode entrar.
Calpurnia sentava-se numa cadeira de baloiço num canto ao pé
da lareira. O quarto tinha uma cama de ferro com uma colcha de
retalhos desbotada no padrão «alianças entrelaçadas». Nas paredes
viam-se três fotografias enormes de negros, emolduradas a dourado,
e um calendário da Coca-Cola. A consola da lareira estava repleta
de pequenos bibelôs em gesso, louça, barro e vidro opalino. Uma
única lâmpada acesa pendia do teto, lançando sombras aguça­
das na parede por trás da consola e no canto em que Calpurnia
estava sentada.
Parece tão pequena, pensou Jean Louise. Costumava ser tão alta.
Calpurnia estava velha e magra. Falhava-lhe a vista e usava uns
óculos de aros pretos que contrastavam fortemente com o tom
castanho quente da pele. Tinha as mãos grandes pousadas no colo
e ergueu-as, abrindo os dedos quando Jean Louise entrou.
Apertou-se-lhe a garganta quando viu os dedos ossudos de
Calpurnia, dedos tão gentis quando ela estava doente e tão duros

139
quando se portava mal, dedos que, havia muito, tinham reali­
zado tarefas de uma complexidade amorável. Jean Louise levou-as
aos lábios.
- Cal - disse.
- Sente-se, menina - convidou Calpurnia. - Está aí alguma
cadeira?
- Está, sim, Cal. - Jean Louise puxou uma cadeira e sentou-
-se em frente da sua velha amiga. - Cal, vim dizer-te. . . vim
lembrar-te que tens de me dizer se precisares de alguma coisa.
- Obrigada, m'nha s'nhora - retorquiu ela. - Não há nada
qu'eu preciso.
- Quero dizer-te que Mr. Finch soube o que aconteceu hoje
de manhãzinha. O Frank pediu ao xerife para lhe telefonar, e
Mr. Finch... vai ajudá-lo.
As últimas palavras morreram-lhe nos lábios. Na antevéspera
teria declarado «Mr. Finch vai ajudá-lo» com a certeza de que
Atticus moveria o céu e a terra.
Calpurnia assentiu. Tinha a cabeça erguida e olhava em frente.
Não me consegue ver bem, ocorreu a Jean Louise. Que idade terá ela?
Eu nunca soube ao certo e duvido que ela alguma vez o tenha sabido.
Insistiu: - Não te preocupes, Cal. O Atticus vai fazer tudo
o que puder.
Calpurnia retorquiu: - Eu saber que sim, Miss Scout. Ele sem­
pre faz. Sempre faz o bem.
Jean Louise mirava a velha de boca aberta. Calpurnia estava sen­
tada, ostentando uma dignidade altiva que lhe surgia em ocasiões
solenes e, quando assim era, não falava com tanta correção. Tivesse
a Terra deixado de girar, tivessem as árvores gelado e o mar devol­
vido os seus mortos e Jean Louise não teria reparado.
- Calpurnia!
Mal ouvia o que ela dizia: - O Frank, faz mal... paga por
isso... o meu neto. Gosto dele ... mas vai prà cadeia com ou sem
Mr. Finch...
- Calpurnia, para com isso!
Jean Louise estava de pé. Sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos
olhos e foi até à janela, às cegas.

1 40
A velha não se tinha mexido. Jean Louise voltou-se e viu-a ali
sentada, parecendo respirar regularmente.
Calpurnia ostentava as suas boas maneiras, como se estivesse
com uma visita.
Sentou-se de novo frente a ela. - Cal - disse num grito -,
Cal, Cal, Cal, Cal, o que me estás a fazer? O que se passa? Sou eu,
a tua menina, esqueceste-te de mim? Por que razão é que me afas­
tas? O que me estás a fazer?
Calpurnia levou as mãos aos braços da cadeira com lentidão.
O rosto era um milhão de pequenas rugas, e os olhos pareciam
vagos atrás das lentes grossas.
- O que é que vocês todos estão a fazer a nós? - inquiriu.
- A nós?
- Sim s'nhora. A nós.
Devagar, Jean Louise disse mais para si do que para Calpur­
nia: - Nunca me passou pela cabeça que pudesse acontecer uma
coisa destas. E, no entanto, ei-la. Não consigo conversar com o ser
humano que me criou desde os dois anos... está a suceder agora,
comigo aqui sentada, e não consigo acreditar. Fala comigo, Cal.
Por amor de Deus, fala comigo como deve ser. Não estejas sentada
dessa maneira!
Olhou o rosto da velha e percebeu que era inútil. Calpurnia
mirava-a, mas não se via uma réstia de compaixão no seu olhar.
Jean Louise levantou-se para sair. - Diz-me uma coisa,
Cal - pediu -, só uma coisa antes de eu me ir embora. Por favor,
tenho de saber. Odiavas-nos?
A velha continuou sentada, em silêncio, sob o peso da idade.
Jean Louise aguardou.
Por fim, Calpurnia abanou a cabeça.

***
- Zeebo - disse Jean Louise -, se houver alguma coisa que
eu possa fazer, por amor de Deus, telefona-me.
- Sim s'nhora - retorquiu o homenzarrão -, mas parece
que nã há nada. O Frank matou o homem, e ninguém pode fazer

141
nada. C'uma coisa desta, Mr. Finch, ele nã consegue fazer nada.
E a senhora quer qualquer coisa de mim enquanto 'tá em casa?
Estavam ambos no alpendre no espaço que os outros lhes haviam
deixado livre. Jean Louise suspirou. - Sim, Zeebo, agora mesmo.
Podes vir ajudar-me a fazer inversão de marcha ou ainda vou parar
ao milheiral.
- Sim s'nhora, Miss Jean Louise.
Ficou a ver o homem a manobrar o carro no espaço limitado da
estrada estreita. Espero conseguir regressar a casa, pensou. - Obri­
gada, Zeebo - agradeceu numa voz de cansaço. - Agora não te
esqueças. - O negro levou a mão à aba do chapéu e regressou
à casa da mãe.
Jean Louise ficou sentada no automóvel, a olhar para o volante.
Por que motivo é que tudo o que eu sempre amei neste mundo me foi tirado
em dois dias? O }em, também ele me viraria as costas? Ela gostava de
nós, juro que sim. Sentada à minha frente, e não me viu, viu uma branca.
Criou-me e não se interessa por mim.
Não era isso, juro. As pessoas costumavam confiar umas nas outras,
tinham razões para o fazerem, só que já me esqueci quais eram. Dantes
não se vigiavam como abutres. Há dez anos, eu não era olhada daquela
maneira a subir aqueles degraus. Ela nunca fazia cerimónia connosco . . .
quando o ]em morreu, o seu querido ]em, isso quase a matou . . .
Jean Louise recordava-se de ter ido a casa de Calpurnia dois anos
antes, uma vez ao final da tarde. Estava sentada no quarto, tal como
naquele dia, de óculos no nariz. Tinha estado a chorar. «Sempre de
trato tão fácil » , disse na altura. «O meu menino, sem um único
sarilho toda a vida. Trouxe-me um presente da guerra, trouxe-me
um casaco elétrico. » Ao sorrir, o rosto pregueava-se num milhão
de rugas minúsculas. Dirigira-se à cama e de debaixo dela tirara
uma caixa grande. Abrira-a e segurara numa imensidão de cabe­
dal negro. Era um casaco de oficial de voo alemão. «Está a ver?» ,
disse. «Pode-se ligar.» Jean Louise examinou o casaco e viu os fios
finíssimos que o atravessavam. Num bolso, estavam as baterias.
«Mr. ]em disse que me mantinha quente no inverno. Disse para
eu não ter medo de o usar, mas para ter cuidado quando houvesse
trovoadas. » O casaco elétrico de Calpurnia era a inveja dos amigos

1 42
e dos vizinhos . « Cal » , dissera Jean Louise, «por favor, volta. Não
consigo regressar a Nova Iorque descansada se não estiveres lá. »
Então, isso parecera ajudar, pois Calpurnia endireitara-se e assen­
tira. « Sim, s'nhora, eu volto. Não se preocupe. »
Jean Louise premiu o botão de marcha, e o automóvel avançou
lentamente pela estrada. Veio-lhe à memória aquela lengalenga de
infância: Eeny, meeny, miny, moe. Catch a nigger by his toe. When he
hollers let him gi 5 • • • Deus me ajude.

25 Tradução livre: Um dó li tá / Cara de amendoá / Um soleto coloreto / Quem


está livre livre está. (NT)

143
PARTE V
13

Alexandra estava à mesa da cozinha, absorta em ritos culinários.


Jean Louise passou por ela em bicos de pés, mas de nada lhe valeu.
- Anda cá ver.
A tia afastou-se da mesa e deixou à mostra várias travessas em
vidro talhado com montinhos de três refinadas sanduíches cada.
- Isso é o jantar do Atticus?
- Não, ele hoje vai tentar comer na cidade. Sabes como ele
odeia irromper no meio de um bando de mulheres.
Pela Santíssima Trindade! O café que a tia ia dar.
- Querida, podias arrumar a sala. Elas chegam daqui a uma hora.
- Quem é que convidou?
Alexandra enunciou uma lista de convidados tão absurda que
Jean Louise soltou um grande suspiro. Metade das mulheres era
mais nova que ela, a outra metade mais velha. Tanto quanto se
lembrava, não tinham partilhado experiências, à exceção de uma
com quem tinha brigado sem cessar durante toda a escola primária.
- Onde estão as da minha turma? - perguntou.
- Por aí, suponho eu.
Ah, pois. Por aí, em Old Sarum ou embrenhadas em bosques
ainda mais recônditos. Pensou no que lhes teria acontecido.
- Foste fazer alguma visita hoje de manhã? - quis saber
Alexandra.
- Fui visitar a Cal.
A tia deixou tombar a faca em cima da mesa com estrondo.
- Jean Louise!

147
- Bom, que diabo se passa? - É a última briga que tenho com
ela, com a ajuda de Deus. Na sua opinião, nunca fiz nada de jeito
na vida.
- Acalme-se, menina. - A voz da tia era fria. - Jean Louise,
em Maycomb já ninguém vai visitar os pretos depois do que eles
têm andado a fazer-nos. Para além de preguiçosos, agora olham às
vezes para nós com uma insolência descarada, e depender deles já
passou à história.
»A tal NAACP veio cá e encheu-os de veneno até lhes escorrer
pelas orelhas. É só porque temos um xerife forte que não tem
havido problemas neste condado até agora. Tu não percebes bem o
que se passa. Temos sido bons para eles, temos-lhes pago as fianças
e as dívidas desde o princípio dos tempos, inventámos trabalho
para eles quando não o havia, encorajámo-los a melhorarem as
vidas, tornaram-se mais civilizados, mas, querida, o verniz é tão
fino que um bando de negros arrogantes lá do Norte consegue
destruir um século de avanços em cinco ...
»Não, menina, depois da forma como nos agradeceram por
termos cuidado deles, agora ninguém em Maycomb se sente
inclinado a ajudá-los quando se metem em sarilhos. Mordem a
mão de quem lhes dá de comer. Não senhor, já não, agora que se
arranjem sozinhos.
Jean Louise dormira doze horas, mas doíam-lhe os ombros
de cansaço.
- A Sarah da Mary Webster há anos que tem cartão, tal como
todas as outras cozinheiras desta cidade26 . Quando a Calpurnia se
foi embora, não estive pura e simplesmente para me incomodar
com outra, só para mim e para o Atticus. Hoje em dia, manter um
preto contente é como servir um rei . . .
A santinha da minha tia fala como M r. Grady O'Hanlon, que deixou
o emprego para se dedicar a tempo inteiro a preservar a segregação.
- . . . temos de nos esfalfar por eles até nos perguntarmos quem
é que serve quem. Hoje em dia não vale a pena... aonde é que vais?
- Arrumar a sala.

26
Referência ao facto de muitos negros se terem tomado membros da
NAACP. (NT)

1 48
Jean Louise deixou-se cair numa poltrona funda e pensou em
como tudo aquilo a fazia sentir-se infeliz. A minha tia é uma estranha
hostil, a minha Calpurnia não quer nada comigo, o Hank é louco, e o
Atticus. . . passa-se algo de errado comigo, o problema é meu. Tem de ser,
porque estas pessoas todas não podem ter mudado.
Como é que não ficam todos arrepiados? Como é que conseguem acreditar
piamente em tudo o que ouvem na igreja e depois dizer aquilo que dizem
e ouvir o que ouvem sem vomitar? Pensei que era cristã, mas não sou.
Sou outra coisa qualquer, nem sei o quê. Estas pessoas ensinaram-me tudo
o que sempre considerei certo e errado, estas mesmas pessoas. Portanto, sou
eu, não são eles. Aconteceu-me alguma coisa.
Andam todos a tentar dizer-me, à sua maneira estranha e repetitiva,
que é tudo por causa dos negros. . . mas é tanto isso como eu saber voar,
e Deus sabe que posso muito bem voar pela janela a qualquer momento.
- Ainda não arrumaste a sala? - Alexandra parara em fren­
te dela.
Jean Louise levantou-se e assim fez.

***
As gralhas chegaram às 1 0h3 0 em ponto. Jean Louise postou-se
nos degraus da frente e cumprimentou-as uma a uma à medida que
chegavam. Usavam luvas e chapéu, e cheiravam desmedidamente
a essência de rosas, perfume, água-de-colónia e pó de talco. A ma­
quilhagem teria deixado um desenhador egípcio envergonhado, e
as roupas - em especial os sapatos - tinham sem dúvida sido
compradas em Montgomery ou em Mobile: Jean Louise identificou
A. Nachman, Gayfer, Levy e Hemmel espalhados pela sala.
De que falarão elas hoje em dia? Jean Louise perdera a prática, mas
estava agora a recuperá-la. As «recém-casadas» palravam, presumi­
das, dos seus Bobs e dos seus Michaels, de como tinham casado com
eles havia quatro meses e do facto de eles terem, desde então, en­
gordado dez quilos cada um. Reprimiu a tentação de esclarecer as
jovens convidadas das prováveis razões clínicas do rápido aumento
de peso dos seus amados e virou a sua atenção para a «brigada das
fraldas», o que a afligiu desmesuradamente.

1 49
- Quando o Jerry tinha dois meses olhou para mim e disse...
devemos começar a treiná-los a ir ao bacio quando... foi batizado
puxou o cabelo a Mr. Stone e Mr. Stone... agora faz chichi na cama.
Tirei-lhe esse vício quando lhe tirei o vício de chuchar no dedo,
com... a camisola de algodão mais gi-ra, incrivelmente gira, que já
vi: tem um elefantezinho encarnado na frente com as palavras «Maré
Vermelha » ... e custou-nos cinco dólares para o mandarmos arrancar.
A «brigada ligeira » sentava-se à sua esquerda: com trinta e
poucos anos, eram mulheres que dedicavam a maior parte do seu
tempo livre ao Clube das Amanuenses, ao bridge e a ver quem
levava a melhor às outras na posse de eletrodomésticos.
- O John diz... o Calvin diz que é ... os rins, mas o Allen proi­
biu-me de comer fritos... quando fiquei entalada no fecho-éclair
gostava de nunca ter... o que será que a leva a pensar que se con­
segue safar. .. pobrezinha, se estivesse no lugar dela, eu levava...
choques elétricos, foi isso que ela fez. Dizem que ela... enrola o
tapete todos os sábados à noite quando chega o Lawrence Welk. ..
e ri-me até não aguentar mais! Ali estava ele, com. . . o meu velho
vestido de noiva, e sabem, ainda o consigo vestir.
Jean Louise mirou as três «casadoiras eternas » à sua direita.
Eram umas alegres meninas de Maycomb de excelente caráter que
tinham ficado para tias. As suas contemporâneas casadas mostra­
vam-se condescendentes e sentiam por elas uma certa pena; eram
requisitadas para sair com qualquer homem extraviado e sem par
que por acaso tivesse vindo visitar os amigos. Olhou para uma delas
com um divertimento sardónico: quando tinha dez anos, fizera a
sua única tentativa de se juntar a um grupo e, um dia, pergun­
tara a Sarah Finley: «Posso ir visitar-te esta tarde? » «Não » , res­
pondera Sarah, «a mamã diz que és demasiado grosseira. »
Agora estamos ambas sozinhas por razões inteiramente diferentes, mas
o sentimento é o mesmo, não é? , pensou.
As «casadoiras eternas » conversavam entre si em voz baixa.
- O dia mais longo que já vivi... nas traseiras do edifício do
banco... uma casa nova na rua junto a... o Centro de Formação, tudo
somado e passam-se quatro horas na igreja todos os domingos.. .
vezes sem conta que disse a Mr. Fred que gosto dos meus tomates .. .

1 50
bem picantes. Eu disse-lhes que se não pusessem ar condicionado
naquele escritório eu... acabava com tudo. Quem é que havia de
querer pregar uma partida daquelas?
Jean Louise aproveitou a deixa: - Continuas no banco, Sarah?
- Santo Deus, claro que sim. Vou lá ficar até cair para o lado.
Hum. - Olha, o que é que aconteceu à Jane. . . qual era o ape-
lido dela? Sabes, era tua amiga no liceu. - Sarah e Jane Qualquer­
-Coisa tinham sido inseparáveis.
- Oh, essa. Casou-se com um rapaz muito esquisito durante
a guerra e agora fala tão afetadamente que nem a reconhecias.
- Ai é? Onde é que vive agora?
- Em Mobile. Foi para Washington durante a guerra e ficou
com um sotaque horrível. Toda a gente pensou que estava a dar-se
ares, mas ninguém teve lata de lhe dizer, por isso continua a falar
assim. Lembras-te de como costumava andar de cabeça empinada,
assim? Continua na mesma.
- A sério?
- É.
A tia sempre serve para alguma coisa, caramba, pensou Jean Louise
ao reparar no seu sinal. Foi à cozinha e trouxe um tabuleiro com
guardanapos de cocktail. Enquanto os distribuía, teve a sensação de
estar a passar os dedos pelas teclas de um cravo gigante.
- Nunca em toda a minha vida... vi aquele quadro maravi­
lhoso. . . com o velho Mr. Healy. . . em exposição na consola da
lareira, diante dos meus olhos durante todo o tempo, não é? Cerca
de onze, acho eu... ela vai acabar por se divorciar. Afinal, a forma
como ele... massajou-me as costas de hora a hora durante todo o
nono mês... dava cabo de uma pessoa. Se o pudesses ter visto. ..
a fazer chichi de cinco em cinco minutos durante a noite. Acabei
com aquilo... a toda a gente da nossa turma exceto aquela rapariga
horrível de Old Sarum. Ela nem vai perceber a diferença... nas
entrelinhas, mas sabemos exatamente o que ele quis dizer.
De novo a dar a volta com as sanduíches.
- Mr. Talbert olhou para mim e disse... ele nunca mais aprendia
a sentar-se no bacio... de feijão todas as quintas à noite. Foi a única
coisa dos ianques que ele apanhou na... Guerra das Rosas? Não, que-

151
rida, eu disse que o Warren pediu em casamento . . . o homem do lixo.
Não pude fazer mais nada depois de ela atravessar. . . o centeio. Foi
mais forte do que eu, fez-me sentir uma grande . . . Ámen! Vou ficar
tão contente quando aquilo acabar. . . a forma como ele a trata. . . pilhas
e pilhas de fraldas e ele a perguntar por que razão estou tão cansada.
Afinal, ele estivera . . . nos ficheiros o tempo todo, era aí que estava.
Alexandra seguia atrás dela, servindo o café e abafando as teclas
até ficarem reduzidas a um zumbido suave. Jean Louise decidiu
que a « brigada ligeira» era mais a seu gosto e, puxando de um
tamborete, j untou-se a elas . Isolou Hester Sinclair do resto do
bando: - Como está o Bill ?
- Está bem . É mais difícil viver com ele a cada dia que passa.
Não foi horrível aquilo de Mr. Healy hoje de manhã?
- Pois foi .
Hester perguntou: - O tal rapaz não tinha alguma coisa a ver
com vocês ?
- Tinha, é neto da nossa Calpurnia.
- Bolas , hoje em dia já não sei quem eles são, os mais novos.
Achas que o vão j ulgar por homicídio?
- Involuntário, calculo.
- Oh. - Hester pareceu desapontada. - Sim, acho que é isso.
Ele não fez de propósito.
- Pois não, não fez.
Hester riu-se. - E eu a pensar que nos íamos divertir um bocado.
Jean Louise ficou estarrecida. Acho que estou a perder o sentido de
humor, talvez seja isso. Estou a ficar como o primo Edgar.
Hester dizia: - . . . há dez anos que não há um bom julgamento
por estas bandas . Refiro-me a um bom julgamento de um preto.
Nada para além de rixas e bebedeiras.
-. Gostas de ir a j ulgamentos ?
- Claro. Nunca tínhamos visto um caso de divórcio tão louco
como na primavera passada. Uns saloios quaisquer de Old Sarum.
É bom o j uiz Taylor já ter morrido, sabes como ele odiava aquele
tipo de coisa, sempre a pedir às senhoras que saíssem da sala. Este
novo não quer saber. Bem . . .
- Desculpa, Hester, precisas de mais café.

15 2
Alexandra segurava o pesado bule de café em prata, e Jean
Louise observou-a a servir. Não entorna nem uma gota. Se eu e o
Hank. . . o Hank. . .
Olhou ao longo da comprida sala de estar de teto baixo para a
fila de mulheres que conhecera superficialmente e percebeu que não
conseguia conversar com elas cinco minutos sem se sentir morta de
aborrecimento. Não me ocorre nada para lhes dizer. Falam sem parar
sobre as coisas que fazem, coisas que eu não sei fazer. Se nos casássemos
- se eu me casasse com alguém desta cidade -, elas seriam minhas ami­
gas, e eu não teria nada para lhes dizer. Seria jean Louise, a Silenciosa.
Nunca seria capaz de organizar uma destas reuniões, mas ali está a tia
a divertir-se ao máximo. Morreria de tédio na igreja e nas partidas de
bridge, pedir-me-iam para apresentar críticas de livros no Clube das
Amanuenses, esperariam que me inserisse na comunidade. É necessário
muito daquilo que não tenho para ser membro desta união.
- . . . uma coisa tristíssima - dizia Alexandra -, mas é assim
que eles são e não o podem evitar. A Calpurnia era a melhor deles
todos. O filho dela, o tal Zeebo, é um malandro que ainda anda
pendurado nas árvores, mas sabem uma coisa, a Calpurnia obri­
gou-o a casar-se com todas as mulheres que ele arranjou. Acho
que foram cinco, mas a Calpurnia obrigou-o a casar com todas. Eis
o que é o cristianismo para aquela gente.
Hester comentou: - Nunca se sabe bem o que lhes vai na
cabeça. À minha Sophie, um dia perguntei-lhe: «Sophie » , disse
eu, «este ano em que dia calha o Natal? » Ela coçou a carapinha
e respondeu: «Miss Hester, eu cá penso qu' este ano calha a vinte
e cinco. » Riam-se à vontade, eu cá pensei que morria. Eu queria
saber o dia da semana, não a data. Burra!
Humor, humor, humor, perdi o meu sentido de humor. Estou a ficar
parecida com o New York Post.
- ... mas sabem que eles continuam naquilo. Impedi-los só fez
com que o fizessem clandestinamente. O Bill diz que não ficava
nada surpreendido se houvesse outra revolta como a do Nat Tur­
ner27 , estamos sentados num barril de pólvora e mais vale estarmos
a postos - continuou Hester.

27 Líder de uma revolta de escravos na Virgínia em 1 8 3 1 . (NT)

153
- Hã . . . Hester, claro que não sei muito do assunto, mas pen­
sava que aquela gente de Montgomery passava a maior parte do
tempo das reuniões a rezar na igreja - disse Jean Louise.
- Ó filha, não sabes que isso é só para ganhar a simpatia dos do
Leste? É o truque mais velho da humanidade. Sabias que o kaiser
Bill rezou a Deus todas as noites da sua vida28 ?
Uns versos absurdos ressoaram na memória de Jean Louise.
Onde os teria lido ?

Por direito divino, minha querida Augusta,


Tivemos outra vitória tremenda;
Dez mil franceses mandados pro Inferno.
Louvado seja Deus, o nosso Criador. 2 9

Perguntou-se onde teria Hester arranjado as suas informações.


Não imaginava Hester Sinclair a ler o que quer que fosse para além
de revistas para donas de casa, salvo sob forte coação. Alguém lhe
contara. Quem ?
- Agora interessas-te por História, Hester?
- O quê? Oh, estava só a repetir o que diz o meu Bill. Ele
é que lê imenso. Diz que os pretos que dirigem aquilo lá no Norte
estão a tentar imitar o Gandhi e sabes o que isso significa.
- Receio bem que não. O que é ?
- Comunismo.
- Ah . . . pensava que os comunistas eram a favor de revoluções
violentas e esse tipo de coisa.
Hester abanou a cabeça. - Por onde tens andado, Jean Louise ?
Eles usam todos os meios que podem para chegar aos seus fins . São
tal e qual os católicos . Sabes como os católicos vão lá para aqueles
sítios esquisitos e adotam os modos deles só para conseguirem
convertidos . Bom, eram capazes de dizer que São Paulo era preto
se isso convertesse nem que fosse só um . O Bill diz, sabes que ele

28
Referência jocosa ao kaiser Guilherme II, acusado de ter desencadeado a
Primeira Guerra Mundial . (NT)
29
Mensagem do rei Guilherme da Prússia à mulher durante a Guerra
Franco-Prussiana de 1 870. (NT)

154
esteve lá durante a guerra, o Bill diz que , nalgumas daquelas ilhas ,
não conseguia ver a diferença entre o vodu e os católicos romanos;
diz que nem teria ficado surpreendido se tivesse visto um homem
do vodu com um colarinho de padre . Com os comunistas é a
mesma coisa. Fazem tudo , não importa o quê, para se apoderarem
deste país . Estão por todo o lado, não se consegue saber quem é
e quem não é . Bom, até mesmo aqui no condado de Maycomb . . .
Jean Louise riu-se . - Ó Hester, o que é que os comunistas
haviam de querer com o nosso condado ?
- Não sei , mas o que sei é que há uma célula lá na estrada de
Tuscaloosa, e, se não fossem esses tipos , os pretos iam à escola com
o resto deles .
- Não estou a perceber nada, Hester.
- Não leste acerca daqueles professores todos finos a fazer
aquelas perguntas naquela . . . naquela assembleia ? Bem , eles dei­
xavam-na entrar sem mai s . Se não tivessem sido aqueles rapazes
da fraternidade . . .
- Caramba, Hester, tenho andado a ler o j ornal errado. Um que
li dizia que a populaça era daquela fábrica de pneus . . .
- O que é que tu lês ? O Worker ?
Estás encantada contigo própria e dizes o que te vem à cabeça, mas o que
eu não compreendo são as coisas que te ocorrem. Apetecia-me abrir-te a cabeça,
enfiar lá dentro um facto e ficar a vê-lo abrir caminho por entre os canais do
teu cérebro até te sair pela boca. Nascemos ambas aqui, frequentámos as mes­
mas escolas, ensinaram-nos as mesmas coisas. Que será que tu viste e ouviste?
- . . . toda a gente sabe que a NAACP se dedica à destruição
do Sul . . .
Concebido na desconfiança e dedicado à premissa de que todos os homens
são criados maus.
- . . . não têm papas na língua e dizem que querem aboli r a raça
dos pretos e que o farão em quatro gerações , diz o Bill, se come­
çarem com esta . . .
Espero que o mundo muito pouco atente e muito pouco recorde30 o que
estás aqui a dizer.

3 0 Referência às palavras de Abraham Lincoln no discurso de Gettysburg,

em 1 86 3 . (NT)

155
- ... e quem pensar de forma diferente é comunista ou é como
se fosse. Resistência passiva, uma ova...
Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário
a um povo dissolver os laços políticos que o ligam a outro 3 1 , não passam
de comunistas.
- ... querem sempre casar-se com alguém um pouco mais claro
que eles, querem a mestiçagem da raça...
Jean Louise interrompeu-a. - Hester, deixa-me fazer-te uma
pergunta. Estou em casa desde sábado e, desde então, ouvi uma
data de conversa sobre a mestiçagem da raça, o que me levou a
pensar se essa expressão não será um tanto infeliz e se não devia ser
riscada do jargão sulista neste momento. Para uma mestiçagem são
precisas duas raças - se é que é essa a palavra certa -, e quando
nós, os brancos, nos pomos aos gritos sobre a coisa, será que isso
não é, de certa forma, um reflexo de nós próprios enquanto raça?
A mensagem que eu recebo é que, se fosse legal, haveria uma cor­
rida geral para casar com negros. Se eu fosse uma erudita, coisa
que não sou, diria que esse tipo de conversa tem um profundo
significado psicológico que não é especialmente lisonjeador para
quem a profere. Na melhor das hipóteses, revela uma desconfiança
alarmante na nossa própria raça.
Hester olhou para ela. - Não percebo nada do que estás a dizer.
- Eu também não percebo lá muito bem - confessou Jean
Louise -, mas o meu cabelo fica todo eriçado sempre que ouço
conversa dessa. Acho que é porque não me habituei a ouvi-la
enquanto crescia.
Hester irritou-se. - Estás a insinuar que...
- Desculpa - pediu Jean Louise -, não era isso que eu queria
dizer. Peço-te imensa desculpa.
- Jean Louise, quando disse aquilo não me referia a nós.
-Então, a quem te referias?
- Estava a falar dos. . . sabes, da escumalha branca. Dos homens
que têm mulheres pretas e esse tipo de coisa.

31
Referência ao texto da Declaração de Independência dos Estados Unidos
da América, 1 7 7 6 . (NT)

156
Jean Louise sorriu. - Isso é estranho. Há cem anos, eram os
cavalheiros que tinham mulheres de cor, agora é a escumalha.
- Isso era quando eram donos delas, tola. Não, a NAACP anda
é atrás da escumalha. Querem que os pretos se casem com eles e
que se vão casando até terem destruído todo o padrão social.
O padrão social. As colchas de retalhos com alianças entrelaçadas.
A Calpurnia não pode odiar-nos, e o Atticus não pode acreditar nesta
conversa. Lamento, é impossível. Desde ontem que sinto que estou a ser
comprimida no fundo de um . . .
- BOM, COMO ESTÁ NOVA IORQUE?
Nova Iorque. Nova Iorque? Já te digo como está. Nova Ior­
que tem as respostas todas. As pessoas vão à YMHA, à English­
-Speaking Union, ao Carnegie Hall, à New School for Social
Research em busca de respostas. A cidade vive a partir de slogans,
movimentos e respostas rápidas. Neste momento, Nova Iorque
está a dizer-me: tu, Jean Louise Finch, não estás a reagir segundo
as nossas doutrinas relativas à tua espécie, portanto não existes. As
melhores mentes do país disseram-nos quem és. Não podes fugir,
e não te censuramos por isso, mas pedimos-te que te comportes
dentro das regras que aqueles que sabem estabeleceram para o teu
comportamento e que não tentes ser mais nada.
Ela respondeu: por favor, acredita em mim, o que aconteceu na
minha família não é o que tu pensas. Só posso dizer isto: que foi
aqui que aprendi tudo o que sei sobre decência humana. De ti,
nada aprendi a não ser a suspeição. Não sabia o que era o ódio até
ter vivido no teu seio e ter-te visto odiar todos os dias. Até tiveram
de aprovar leis a impedir-te de odiar. Desprezo as tuas respostas
prontas, os teus slogans no metro e, acima de tudo, desprezo a tua
falta de boas maneiras. Nunca as terás enquanto viveres.
O homem que não conseguia ser rude para com um esquilo
permanecera no tribunal defendendo as causas de homenzinhos
mesquinhos. Vira-o muitas vezes na mercearia à espera da sua vez
na fila, atrás dos negros, e sabe-se lá de quem mais. Vira Mr. Fred
erguer as sobrancelhas na sua direção e o pai abanar a cabeça em
resposta. Era o tipo de homem que esperava instintivamente pela
sua vez. Tinha boas maneiras.

157
Olha, irmã, nós conhecemos os factos: passaste os primeiros
vinte e um anos da tua vida no país dos linchamentos, num con­
dado onde dois terços da população são negros que trabalham na
agricultura. Para de fingir.
Não vais acreditar em mim, mas eu digo-te na mesma: nunca na
minha vida, até hoje, ouvi a palavra «preto» usada por um membro
da minha família. Nunca aprendi a pensar em termos de «pretos» .
Cresci, de facto, com negros, a Calpurnia, o Zeebo, o rapaz do lixo,
o Tom, o jardineiro, e outros de que não me lembro do nome.
Havia centenas de negros à minha volta, eram trabalhadores dos
campos, que mondavam o algodão, trabalhavam nas estradas ou
serravam a madeira para fazer as nossas casas. Eram pobres, tinham
doenças e andavam sujos, alguns eram preguiçosos e apáticos, mas
nunca na minha vida me transmitiram a ideia de que devia despre­
zar algum deles, ter medo, ser mal-educada ou pensar que podia
tratar mal algum deles e sair-me bem. Enquanto povo, não entra­
vam no meu mundo nem eu no deles: quando ia caçar, não invadia
as terras dos negros, não por serem deles, mas porque não o devia
fazer a ninguém. Ensinaram-me a nunca me aproveitar de alguém
menos afortunado que eu, fosse em inteligência, riqueza ou posição
social; isso implicava toda a gente, não apenas os negros. Fizeram­
-me compreender que o contrário era desprezível. Foi assim que fui
educada, por uma mulher negra e um homem branco.
Deves ter vivido isto. Se um homem te diz: «Isto é a verdade» , e
acreditares nele e descobrires que o que ele diz não é a verdade, ficas
desapontada e certificas-te de que não serás apanhada desprevenida
por ele de novo.
Mas um homem que viveu norteado pela verdade - e tu acre­
ditaste naquilo que ele viveu - não nos deixa apenas cautelosos
quando nos falha, deixa-nos com nada. Acho que é por isso que
estou quase louca . . .
- Nova Iorque? Estará no mesmo sítio. - Jean Louise virou-
-se para a interlocutora, uma jovem com um chapelinho, feições
miúdas e pequenos dentes afiados. Era Claudine McDowell.
- Eu e o Fletcher estivemos lá na primavera passada e tentámos
apanhar-te dia e noite.

158
Aposto que sim. - E divertiram-se? Não, não me digas, deixa­
-me ser eu a dizer-te: passaram uns dias maravilhosos mas nunca
sonhariam em viver lá.
Claudine mostrou os dentes de rato. - Exatamente. Como
é que adivinhaste?
- Sou vidente. E viram as vistas?
- Claro. Fomos ao Latin Quarter, ao Copacabana e ver o Pa-
jama Game. Foi a primeira peça que vimos e ficámos bastante desa­
pontados. São todas assim?
- A maior parte. Subiram ao cimo daquilo que a gente sabe?
- Não, mas visitámos Radio City. Sabes, naquele lugar podia
viver gente. Vimos uma peça no Radio City Music Hall, e imagina,
Jean Louise, entrou um cavalo no palco.
Jean Louise respondeu que isso não a surpreendia.
- Eu e o Fletcher ficámos bem contentes ao regressar a casa.
Não percebo como consegues lá viver. O Fletcher gastou lá mais
dinheiro em duas semanas do que gastamos aqui em seis meses.
O Fletcher disse que não compreendia por que diabo as pessoas
viviam naquele sítio quando podiam ter uma casa com jardim por
muito menos aqui.
Eu posso explicar-te. Em Nova Iorque somos donos de nós próprios.
Podemos abrir os braços e abraçar Manhattan inteira numa doce solidão
ou podemos ir para o inferno, se nos apetecer.
- Bom - disse Jean Louise -, custa um bocado a habi­
tuarmo-nos. Durante dois anos, odiei. Assustava-me todos os dias,
até que, uma manhã, alguém me empurrou num autocarro e eu
empurrei-o também. Depois desse empurrão, apercebi-me de que
me tornara parte da cidade.
- São uns impertinentes, isso são. Lá em cima não têm maneiras.
- Têm, Claudine, só que são diferentes das nossas. A pessoa
que me empurrou no autocarro contava ser igualmente empurrada.
Era isso que era suposto eu fazer, não passa de um jogo. Não encon­
tras pessoas melhores nuutra cidade.
Claudine fez uma boquinha. - Bom, eu cá não me queria
misturar com todos aqueles italianos e porto-riquenhos. Um dia,
num snack-bar, olhei em volta e havia uma preta a comer o almoço

159
mesmo ao meu lado, mesmo encostadinha. É claro que eu sabia
que ela podia fazer aquilo, mas foi um choque na mesma.
- Ela ofendeu-te de alguma maneira?
- Acho que não. Levantei-me logo e saí.
- Sabes - disse Jean Louise com brandura -, lá em cima,
andam todos à vontade, todo o tipo de pessoas.
Claudine encolheu os ombros. - Não percebo como é que vives
lá com eles.
- Não damos conta. Trabalhamos com eles, comemos junto
deles, na sua companhia, andamos de autocarro com eles e não
damos conta, a não ser que seja essa a nossa intenção. Eu não reparo
que um negro grande e gordo está sentado a meu lado no auto­
carro até me levantar para sair. Não se dá conta.
- Bom, eu dei. Tu deves ser cega ou coisa assim.
Cega, é isso mesmo. Nunca abri os olhos. Nunca me ocorreu
olhar o coração das pessoas, vi-lhes apenas o rosto. Ceguinha de
todo, pior que uma pedra ... Mr. Stone. Ontem, ele pôs uma sen­
tinela na igreja. Devia ter-me arranjado uma. Preciso de uma
sentinela para andar comigo e informar-me do que vê de hora a
hora. Preciso de uma sentinela que me diga que isto é o que um
homem diz mas não é o que ele pensa, que trace uma linha pelo
meio e diga isto é um tipo de justiça e aquele é outro, e me faça
compreender a diferença. Preciso de uma sentinela que avance e
lhes anuncie que vinte e seis anos é demasiado tempo para pregar
uma partida a alguém, por mais divertida que seja.

160
14

- Tia - disse Jean Louise, quando acabaram de arrumar os


despojos da reunião matinal -, se não precisar do carro, vou a casa
do tio Jack.
- O que quero é deitar-me e fazer uma sesta. Não queres jantar?
- Não, senhora. O tio Jack dá-me uma sanduíche ou uma coisa
qualquer.
- É melhor não contares com isso. Anda a comer cada vez menos.
Estacionou o automóvel no acesso à garagem do Dr. Finch ,
subiu os degraus íngremes da frente, bateu à porta e entrou, a
cantar numa voz estridente:

0/d Uncle]ack with his cane and his crutch


When he was young he boogie-woogied too much;
Put the safes tax on it... ' 2

A casa era pequena, mas o átrio da frente era enorme. No pas­


sado, fora uma daquelas casas ligadas por uma passagem coberta,
mas o Dr. Finch fechara-a e mandara fazer estantes em todas
as paredes.
Das traseiras ouviu-se a sua voz chamar: - Eu ouvi-te, rapariga
desavergonhada. Estou na cozinha.
Ela atravessou o átrio, passou uma porta e entrou no que outrora
fora o alpendre aberto das traseiras . Agora parecia vagamente um
32 O velho tio Jack com a bengala e a m11leta / Q11ando era novo danço11 boogie-woogie
a mais.: / Ponham impostos de vendas nisso. . . (NT)

161
escritório, tal como a maioria das divisões da casa. Jean Louise
nunca conhecera uma habitação que refletisse a personalidade do
seu proprietário tão claramente. No meio da ordem, sobressaía uma
estranha qualidade de desalinho: o Dr. Finch mantinha a sua casa
escrupulosamente limpa, mas os livros tinham tendência a acumu­
lar-se onde quer que se sentasse, e como era seu hábito sentar-se
onde quer que lhe apetecesse, viam-se pequenas pilhas de livros em
toda a casa, que se tornavam numa verdadeira praga para a mulher
a dias. Ele não lhe permitia que lhes tocasse, e assim a pobre cria­
tura era obrigada a aspirar, a limpar o pó e a pôr cera em redor
deles. Uma criada desafortunada perdeu a cabeça e desmarcou-lhe
o livro Pre-Tractarian Oxford, de Tuckwell, e o Dr. Finch ameaçou-a
com uma vassoura.
Quando o tio apareceu, ocorreu a Jean Louise que, por muito
que os estilos entrassem e saíssem de moda, ele e Atticus seriam
sempre fiéis aos seus coletes. O Dr. Finch não trazia casaco e segu­
rava nos braços a sua velha gata, Rose Aylmer.
- Onde estiveste ontem, de novo no rio? - Olhou-a fixa­
mente. - Deita a língua de fora.
Jean Louise espetou a língua, e ele mudou Rose Aylmer para o
braço direito, levou a mão ao bolso do colete e retirou uns óculos
de meia-armação, abriu-os e pô-los.
- Bom, não a deixes aí de fora. Põe-na para dentro - obser­
vou. - Estás com um aspeto terrível. Vem à cozinha.
- Não sabia que o tio tinha óculos de meia-lua - comen-
tou ela.
- Ah... descobri que andava a desperdiçar dinheiro.
- Como?
- A olhar por cima dos antigos. Estes custam metade.
Na cozinha havia uma mesa ao centro e, em cima dela, um
pires com uma bolacha de água e sal, sobre a qual repousava uma
sardinha solitária.
Ela admirou-se. - É isso o seu jantar? Francamente, tio Jack,
não acha que está a ficar demasiado esquisito?
O Dr. Finch puxou um banco alto para a mesa, depositou Rose
Aylmer em cima dele e declarou: - Não. Sim.

162
Sobrinha e tio sentaram-se. O Dr. Finch pegou na bolacha e na
sardinha e apresentou-as à gata. Ela deu uma dentadinha, baixou
a cabeça e começou a mastigar.
- Parece uma pessoa a comer - comentou a sobrinha.
- Espero ter-lhe ensinado boas maneiras. Agora está tão velha
que tenho de a alimentar aos pedacinhos.
- Por que não a põe a dormir?
Ele olhou a sobrinha, indignado. - Por que motivo? O que tem
ela de mal? Ainda tem uns bons dez anos pela frente.
Jean Louise concordou em silêncio, desejando parecer compa­
rativamente tão bem como Rose Aylmer quando chegasse à idade
dela: o pelo amarelo parecia excelente, mantinha a figura, e os olhos
ainda brilhavam. Agora passava a maior parte dos seus dias a dor­
mir, e o Dr. Finch levava-a a passear de trela em volta do quintal
das traseiras uma vez por dia.
Com toda a paciência, ele persuadiu a velha gata a terminar
o seu almoço e, quando ela acabou, dirigiu-se a um armário por
cima do lava-louça e tirou um frasco, cuja tampa era um conta­
-gotas. Encheu a pipeta com uma porção generosa, pousou o frasco,
segurou na parte de trás da cabeça da gata e disse a Rose Aylmer
para abrir a boca. A gata obedeceu. Engoliu e sacudiu a cabeça.
Ele encheu a pipeta de novo e disse mais uma vez: - Abre a boca,
Jean Louise.
A sobrinha assim o fez, engoliu e balbuciou: - Deus do céu,
o que é isso?
- Vitamina C. Quero que o Allen te dê uma vista de olhos.
Jean Louise prometeu que assim faria e perguntou em que se
ocupava o tio naquele momento.
Curvando-se para o forno, o Dr. Finch respondeu: - Sibthorp.
- Como?
Para espanto dela, retirou do forno uma taça de madeira cheia
de vegetais. Espero que não estivesse ligado.
- Sibthorp, rapariga, Sibthorp - repetiu ele. - Richard
Waldo Sibthorp, um padre católico romano. Enterrado com exéquias
solenes pela Igreja de Inglaterra. A tentar descobrir outro como ele.
Muitíssimo significativo.

163
Jean Louise estava habituada ao estilo estenográfico intelectual
do tio: era seu costume anunciar um ou dois factos isolados segui­
dos de uma conclusão aparentemente não fundamentada até esse
momento. Se fosse espicaçado, o Dr. Finch passaria a desbobinar
os seus estranhos conhecimentos, lentamente e com segurança,
até revelar um raciocínio que brilhava com uma luz que lhe era
muito particular.
Contudo, ela não estava ali para ser entretida com as vacilações
de um esteta vitoriano menor. Observou o tio a misturar os vege­
tais da salada, o azeite, o vinagre e diversos ingredientes que lhe
eram desconhecidos, com o mesmo rigor e a mesma segurança que
empregava numa osteotomia complicada. Dividiu a salada por dois
pratos e ordenou: - Come, filha.
O Dr. Finch atacou a salada com ferocidade e ia olhando a sobri­
nha, que dispunha a alface, os pedaços de pera abacate, os pimentos
verdes e a cebola numa fila ordenada no prato. - Muito bem, que
se passa? Estás grávida?
- Que ideia! Não, tio Jack.
- É mais ou menos a única coisa que me ocorre que preocupa
as jovens hoje em dia. Queres dizer-me o que é? - A voz suavizou­
-se-lhe. - Vá lá, Scout.
Os olhos de Jean Louise marejaram-se de lágrimas. - O que
se está a passar, tio Jack? O que se passa com o Atticus? Eu acho
que o Hank e o Atticus perderam o juízo e sei que eu estou a per­
der o meu.
- Não notei nada de especial. Deveria . . . ?
- Devia tê-los visto ontem naquela reunião...
Ela mirou o tio, que se balançava perigosamente nas per­
nas traseiras da cadeira. Ele pousou as mãos em cima da mesa
para se equilibrar, as feições penetrantes desvaneceram-se, os
olhos iluminaram-se e soltou uma gargalhada ruidosa. As per­
nas da frente da cadeira embateram com estrondo no chão, e ele
sufocou de riso.
Jean Louise exaltou-se. Ergueu-se da mesa, atirando a cadeira ao
chão, repô-la no seu lugar e dirigiu-se para a porta. - Não vim
aqui para que façam troça de mim, tio Jack - declarou.

1 64
- Oh, senta-te e cala-te - ripostou o tio. Olhou-a com um
interesse genuíno, como se fosse algo que tivesse de observar
ao microscópio, como se se tratasse de uma qualquer maravilha
da Medicina que inadvertidamente se tivesse materializado na
sua cozinha.
- Aqui e agora, nunca pensei que o bom Deus me permi­
tisse ver alguém entrar a meio de uma revolução, pôr-se de má
catadura e perguntar: «O que se passa?» - Riu-se de novo, aba­
nando a cabeça.
- O que se passa, menina? Eu digo-te o que se passa, se te
acalmares e te abstiveres de continuar a comportar-te como. . . uma
florzinha silvestre! Interrogo-me se os olhos e os ouvidos te ser­
vem para algo mais que contactos breves e irregulares com o cére­
bro. - O semblante tornou-se-lhe sério. - Não vais ficar satisfeita
com certas coisas - avisou.
- Não me importo, tio Jack, mas diga-me apenas o que trans­
formou o meu pai num homem que odeia negros.
- Cuidado com a língua. - O tom de voz era severo. - Nun­
ca mais chames uma coisa dessas ao teu pai. Detesto tanto o som
da expressão como o que significa.
- O que lhe devo chamar, então?
O tio soltou um suspiro profundo. Foi ao fogão e acendeu o
lume à cafeteira. - Vamos considerar isto calmamente - proferiu.
Quando se virou, Jean Louise viu-lhe a expressão dos olhos passar
de indignada a divertida e fundir-se numa outra que não conse­
guiu definir. Ouviu-o murmurar: - Oh, sim, sim, o romance deve
contar uma história3 3 •
- O que quer dizer com isso? - inquiriu. Sabia que estava
a citar algo, mas não sabia o quê, nem porquê, e era-lhe indi­
ferente. O ti o conseguia exasperá-la quando lhe aprazia e,
segundo lhe parecia, decidira fazê-lo naquele momento, o que
a melindrava.
- Nada. - Ele sentou-se, tirou os óculos e guardou-os no
bolso do colete. - Querida - começou ele, e o tom era cuidadoso

·' 3 Aspetos do Romance, de E . M. Foster. (NT)

165
e intencional -, por rodo o Sul, o teu pai e homens como ele lutam
na retaguarda, adiando o momento de agir, a fim de conservar uma
certa espécie de filosofia que já quase desapareceu . . .
- Se foi isso que ouvi ontem, então j á vai tarde.
O Dr. Finch ergueu os olhos . - Estás a cometer um erro crasso
se pensas que o teu pai se dedica a manter os negros no seu lugar.
Jean Louise levantou as mãos e a voz : - Que diabo hei de
eu pensar? Aquilo pôs-me doente, tio Jack . Pôs-me simples­
mente doente . . .
O tio coçou a orelha. - Sem dúvida que, algures no processo,
ter-te-ás confrontado com certos factos e nuances históricos . . .
- Tio Jack, não me venha com esse tipo de conversa agora . . .
a guerra não tem nada a ver com isto.
- Pelo contrário, tem muito a ver se quiseres entender. A pri­
meira coisa que tens de perceber é algo . . . que Deus nos ajude . . . era
algo que três quartos da nação ainda não conseguiram compreender
até hoje. Que tipo de gente éramos nós , Jean Louise ? Que tipo de
gente somos ? De quem é que estamos mais próximos neste mundo ?
- Eu pensava que éramos apenas pessoas . Não faço ideia.
O tio sorriu, e os olhos brilharam-lhe, ímpios. Pronto, agora vai
começar a divagar, pensou ela; e nunca mais consigo apanhá-lo e trazê­
-lo de volta.
- Toma o exemplo do condado de Maycomb - continuou.
- Tipicamente sulista. Nunca te ocorreu como é curioso que quase
toda a gente do condado seja de família ou quase de família?
- Tio Jack, como é que alguém é quase de família?
- Muito simples. Lembras-te do Frank Buckland, não te lembras ?
Jean Louise não pôde deixar de se sentir lenta e i nexoravelmente
atraída para a teia do Dr. Finch. É como uma bela aranha, o velhote,
mas não deixa de ser uma aranha. Inclinou-se um pouco na direção
dele e inquiriu: - O Frank Buckland ?
- O naturalista, que andava com peixe morto na mala e tinha
um chacal nos seus aposentos .
- Sim?
- Lembras-te do Matthew Arnold, não lembras ?
Ela assentiu.

1 66
- Bem, o Frank Buckland era filho do irmão do marido da irmã
do pai do Matthew Arnold, portanto, eram quase família. Estás a ver?
- Sim, senhor, mas...
O Dr. Finch olhou para o teto. - E o meu sobrinho Jem -
continuou com lentidão - não estava noivo da prima em segundo
grau da mulher do filho do seu tio-avô?
Jean Louise escondeu os olhos com as mãos e pôs-se a pensar,
frenética. - Estava - concordou por fim. - Tio Jack, acho que
acabou de fazer uma falácia, mas não estou completamente certa.
- É tudo a mesma coisa, na verdade.
- Mas eu não estou a ver a relação.
O Dr. Finch pousou as mãos na mesa. - Isso é porque nunca te
deste ao trabalho de ver - retorquiu. - Nunca abriste os olhos.
Ela teve um sobressalto.
O tio continuou: - Aqui no condado de Maycomb ainda hoje
permanecem os homólogos vivos de todos os tontos dos celtas,
anglos e saxões alguma vez nascidos. Lembras-te do deão Stanley,
não lembras?
Os dias de horas intermináveis da infância estavam a vir-lhe à
memória. Estava em casa, em frente à lareira acolhedora, e liam­
-lhe livros que cheiravam a mofo. A voz do tio soava no seu tom
habitual de rosnado baixo ou subia estridente em risadas incontro­
láveis. Recordou-se do pequeno clérigo, distraído, o cabelo fofo,
e da mulher, sua apoiante incondicional.
- Ele não te faz lembrar o Fink Sewell?
- Não, senhor - retorquiu ela.
- Pensa, rapariga, pensa. Como não estás a pensar, dou-te uma
pista. Quando o Stanley foi deão de Westminster, exumou quase
todos os restos mortais da abadia à procura do rei Jaime I.
- Ó meu Deus - exclamou ela.
Durante a Depressão, Mr. Finckney Sewell, um habitante de
Maycomb que havia muito se tornara famoso pela sua indepen­
dência de espírito, procedera à exumação do seu próprio avô e
extraíra-lhe todos os dentes de ouro a fim de pagar uma hipo­
teca. Quando o xerife o prendeu por vandalização de túmulo e
açambarcamento de ouro, Mr. Fink objetou que, se o seu próprio

167
avô não lhe pertencia, de quem seria então? O xerife contrapôs que
o velho Mr. M. F. Sewell se encontrava em espaço público, mas
Mr. Fink ripostou, impertinente, que achava que se tratava do seu
lote do cemitério, do seu avô e dos seus dentes, e imediatamente
recusou ser detido. A opinião pública de Maycomb deu-lhe razão:
Mr. Fink era um homem honrado, estava a tentar pagar as suas
dívidas, e a lei não o incomodou mais.
- O Stanley tinha razões históricas de peso para as suas escava­
ções - refletiu o Dr. Finch -, mas a forma de pensar de ambos era
exatamente igual. Não podes negar que convidou todos os heréticos
a que conseguiu deitar mão para pregarem na abadia. Creio até que
um dia deu comunhão a Mrs. Annie Besant. E recordar-te-ás da
forma como apoiou o bispo Colenso.
Ela lembrava-se. O bispo Colenso, cujas opiniões sobre todos
os assuntos eram consideradas pouco sólidas à altura e arcaicas nos
tempos presentes, era a mascote privada do pequeno bispo. Onde
quer que o clero se reunisse, Colenso era objeto de debate acrimo­
nioso, e uma vez Stanley proferira uma prédica vibrante em sua
defesa, perguntando se a assembleia estava ciente de que Colenso
fora o único bispo colonial que se dera ao trabalho de traduzir a
Bíblia para zulu, o que era bastante mais do que fizera qualquer
dos restantes.
- O Fink era igual a ele - continuou o Dr. Finch. - Assinou
o Watt Street ]ournal nos piores tempos da Depressão, desafiando
quem quer que fosse a comentar o assunto. - Deu uma risada.
- O Jake Jeddo dos correios quase tinha um ataque de cada vez
que distribuía o correio.
Jean Louise observava o tio. Estava na cozinha dele, em plena
era atómica, e, no mais profundo da sua consciência, sabia que
o Dr. Finch estava certo nas suas comparações, o que era no mí­
nimo chocante.
- ... igual a ele - continuava ele. - Ou então vê o exemplo
da Harriet Martineau. . .
Nesse momento, Jean Louise sentiu-se como se estivesse a boiar
no Lake District.
- Lembras-te de Mrs. E. C. B. Franklin?

168
Lembrava-se, sim. Tinha sempre de se esforçar para se recordar
de Miss Martineau, mas de Mrs. E. C. B. era fácil: lembrava-se de
uma boina em croché, de um vestido em croché através do qual
espreitavam umas cuecas cor-de-rosa em croché e das meias igual­
mente em croché. Todos os sábados Mrs. E. C. B. percorria a pé
os cinco quilómetros que distavam da quinta à cidade. A quinta
chamava-se Bosque de Jasmim. Mrs. E. C. B. escrevia poesia.
O Dr. Finch inquiriu: - Lembras-te das poetisas menores?
- Sim, senhor - retorquiu ela.
- Lembras-te bem?
Quando era criança, tinha deambulado em tropelias pelo May­
comb Tribune e testemunhado várias altercações, a última das quais
entre Mrs. E. C. B. e Mr. Underwood. Este último, um tipógrafo
da velha guarda, não aturava disparates. Trabalhava o dia inteiro
com um enorme linótipo preto, refrescando-se com um gole ocasio­
nal do garrafão de três litros e meio de inofensivo vinho de cereja.
Um sábado, Mrs. E. C. B. entrou de mansinho com um texto fer­
voroso que Mr. Underwood declarou recusar imprimir, pois seria
a desgraça do Tribune - o obituário em verso de uma vaca, uma
grave violação à filosofia cristã. Mr. U nderwood argumentou que as
vacas não vão para o céu, ao que Mrs. E. C. B. retorquiu que aquela
sim, esclarecendo o conceito de liberdade poética. Mr. Underwood,
que no seu tempo havia publicado versos in memoriam de tipo inde­
terminado, reiterou que lhe era impossível publicar aquilo, pois
era blasfemo e não respeitava a métrica. Furibunda, Mrs. E. C. B.
abriu a moldura do anúncio da loja Biggs e espalhou-a pela grá­
fica. Mr. Underwood inspirou como uma baleia, sorveu um grande
gole de vinho de cereja na sua frente, engoliu-o e perseguiu-a aos
palavrões até ao tribunal. Depois disso, Mrs. E. C. B. dedicou-se
a compor versos em privado para o seu próprio aperfeiçoamento
espiritual. O condado sentiu-lhe a falta.
- E agora, estás preparada para admitir que existe uma ligeira
conexão, não necessariamente entre estes dois excêntricos, mas com
um... certo tipo de mentalidade que existe em alguns bairros do
outro lado do rio?
Jean Louise desistiu.

1 69
O Dr. Fi nch acrescentou mais para si mesmo do que para a
sobrinha: - Na década de 1 7 7 0 , de onde provinham as palavras
mais acesas ?
- Da Vi rgínia - respondeu a sobri nha, segura.
- E nos anos quarenta, antes de entrarmos na guerra, o que
fazia com que todos os sulistas lessem o seu j ornal e, horrorizados ,
ouvissem as notícias ? No fundo , no fundo , um sentimento tribal ,
minha querida. Eles bem que podiam ser uns filhos da mãe , os
britânicos, mas eram os nossos filhos da mãe . . .
O Dr. Finch refreou-se. - Agora regressemos ao passado -
disse bruscamente . - Regressemos ao início do século XIX em
Inglaterra, antes de alguns degenerados terem inventado as máqui­
nas . Como era a vida então ?
Jean Louise respondeu automaticamente . - Uma sociedade de
nobres e de pedintes . . .
- Ah , ah ! Ainda não foste tão corrompida como eu j ulgava, se
34
te lembras de Caroline Lamb , a pobrezita. Quase acertaste, mas
não completamente : era uma sociedade primordialmente agrária,
com um punhado de proprietários e uma multidão de rendeiros .
Agora, e como era o Sul antes da guerra?
- Uma sociedade agrária com um punhado de grandes proprie­
tários , uma multidão de rendei ros e escravos .
- Correto. Esquece por momentos os escravos , e o que tens ?
Umas dezenas de grandes proprietários de plantações e m i lhares
de pequenos agricultores e rendeiros . O Sul era uma peq uena
Inglaterra por herança e estrutura social . Agora, qual é a coisa
que faz bater o coração de todos os anglo-saxões (não te encolhas
toda, bem sei que hoje em dia é uma palavra feia) qualquer que
sej a a sua condi ção ou es tatuto de vida, q uaisquer que sejam as
barrei ras da ignorância, desde q ue renegaram a sua ascendên­
cia i nglesa?
- São orgulhosos . Tipo obsti nados .
- Tens toda a razão . E que mai s ?
- Não . . . não sei .

34 Aristocrata e romancista inglesa do início do século XIX. (NT)

170
- O que fez aquele pequeno exército de confederados, consti­
tuído pela ralé, ser o último da sua espécie? O que o fez ser simul­
taneamente tão frágil mas tão poderoso que operou milagres?
- Ah... o general Robert E. Lee?
- Deus meu, rapariga! - gritou o tio. - Era um exército de
cidadãos! Saíram das suas terras e foram para a guerra!
Como se pretendesse examinar um espécime raro, retirou os
óculos do bolso, pô-los, inclinou a cabeça para trás e olhou para
ela. - Não há máquina alguma que, tendo sido esmagada, se
reconstitua e funcione de novo, mas aqueles ossos ressequidos3 5
ergueram-se e marcharam e como o fizeram. Porquê?
- Acho que foi por causa dos escravos e dos impostos e coisas
dessas. Nunca pensei muito nisso.
O Dr. Finch disse baixinho: - Ó Deus.
Fez um esforço visível para se acalmar, indo ao fogão e apagando
o lume à cafeteira. Serviu duas chávenas da bebida negra escaldante
e trouxe-as para a mesa.
- Jean Louise - explicou num tom seco -, pouco mais de
cinco por cento da população do Sul chegou algum dia a ver um
escravo, quanto mais a possuir um. Agora, algo deve ter irritado
os outros noventa e cinco por cento.
Ela ficou a olhar para o tio, perplexa.
- Nunca te ocorreu, nunca, em nenhum momento recebeste
vibrações que te dissessem que este território era uma nação à
parte? Que é , independentemente dos seus vínculos políticos,
uma nação com o seu próprio povo, que existe dentro de outra
nação? Uma sociedade altamente paradoxal, com iniquidades
alarmantes, mas com a honra de possuir um exército privado
de milhares de indivíduos, quais pirilampos a piscar na noite?
Jamais uma guerra foi travada por tantas razões diferentes que
se uniram numa só, clara como a água. Eles combateram para
preservar a sua identidade. A identidade política e a identi­
dade pessoal.

35
Referência a um vale de ossadas , Ezequiel 3 7 : 1 . (NT)

171
O seu tom de voz suavizou-se. - Hoje em dia parece quixo­
tesco, com os aviões a jato e os excessos de barbitúricos, que um
homem suportasse uma guerra por uma coisa tão insignificante
como o seu estado.
Piscou os olhos. - Não, Scout, aqueles ignorantes andra­
josos lutaram até serem quase exterminados para manter algo
que, nos nossos dias, parece ser privilégio exclusivo dos artistas
e dos músicos.
Ao ouvir aquilo, Jean Louise precipitou-se numa tentativa fre­
nética de travar o tio: - Isso já foi há... quase cem anos.
O Dr. Finch sorriu abertamente. - Foi mesmo? Depende
de como vês a questão. Se estivesses sentada numa esplanada de
Paris, di-lo-ias com certeza. Mas vê bem. Os remanescentes desse
pequeno exército tiveram filhos (e como se multiplicaram, Deus
meu), e o Sul sofreu uma reconstrução com uma única mudança
política permanente: deixou de haver escravatura. As pessoas
tornaram-se não menos do que tinham sido, em alguns casos
tornaram-se terrivelmente mais. Nunca foram destruídos, foram
plantados na terra e voltaram a crescer. E assim apareceu a Estrada
do Tabaco36 e o aspeto mais feio e mais vergonhoso de tudo: uma
classe de homens brancos a viver em competição económica aberta
com os negros libertados.
»Durante muitos e muitos anos, tudo o que o homem pensava
ter que o tornava melhor que o seu irmão negro era a cor da pele.
Era igualmente imundo, cheirava igualmente mal, era igualmente
pobre. Agora que possui mais do que alguma vez possuiu, tem
tudo exceto linhagem, libertou-se de todos os estigmas, mas con­
tinua a alimentar a sua ressaca de ódio...
O Dr. Finch levantou-se e serviu mais café enquanto Jean Louise
o observava. Meu Deus, pensou, o meu próprio bisavô lutou na guerra.
O pai dele e do Atticus. E era apenas uma criança. Viu os corpos amon­
toados e o sangue escorrer pelas encostas de Shiloh 37 • • •
36
Referência à realidade descrita no romance d e Erskine Caldwell com o
mesmo nome ( 1 93 2). (NT)
37
Batalha de Shiloh ( 1 862), que resultou numa grande derrota do exército
confederado. (NT)

172
- Então, Scout - continuou o tio -, agora, neste preciso
momento, existe uma filosofia política que está a ser imposta
ao Sul e que lhe é estranha, e o Sul não está preparado para ela;
encontramo-nos de novo nas mesmas profundezas. A História
repete-se como um relógio, e não é à História que o homem vai
tirar as suas lições, tão certo como o homem ser homem. Tenho fé
em que, desta feita, a reconstrução se faça sem derramamento de
sangue, comparativamente falando.
- Não percebo.
- Vê o resto do país. Há muito que ultrapassou o Sul na sua
forma de pensar. O conceito de propriedade, consuetudinário e con­
sagrado pelo tempo (o interesse do homem pela propriedade e os seus
deveres para com ela), está praticamente extinto. As atitudes para
com os deveres de governação mudaram. Os que nada têm ergueram­
-se e exigiram e receberam o que lhes era devido, às vezes mais do que
lhes era devido. Os que têm, esses, estão impedidos de receber mais.
Agora está-se protegido dos ventos invernosos da velhice, não volun­
tariamente pelo esforço do próprio, mas por um governo que afirma
não acreditar que consigamos auferir o nosso provento e portanto nos
obriga a poupar. Todas estas coisas estranhas tornaram-se uma parte
essencial do governo deste país. A América é um admirável novo
mundo atómico, e o Sul encontra-se apenas a dar os primeiros passos
da sua revolução industrial. Olhaste em redor nos últimos sete ou
oito anos e deste conta de uma nova classe aqui mesmo?
- Uma classe nova?
- Santo Deus, menina. Onde estão os rendeiros? Nas fábri-
cas. Onde estão as mãos que trabalham a terra? No mesmo sítio.
Já reparaste em quem vive naquelas casinhas brancas do outro
lado da cidade? Esses são a nova classe de Maycomb. Os mesmos
rapazes e raparigas que foram à escola contigo e que cresceram em
pequenas quintas. A tua geração.
O Dr. Finch puxou pelo nariz. - Essas pessoas são a menina
dos olhos do governo federal. Empresta-lhes dinheiro para cons­
truírem as casas, dá-lhes instrução gratuita por servirem os exérci­
tos, assegura-lhes o provento na velhice e apoio financeiro durante
várias semanas se perderem o emprego. . .

17 3
- Tio Jack, transformou-se num velho cínico.
- Cínico, o caraças. Sou um velho saudável com uma descon-
fiança constitucional do paternalismo e do governo em grandes
doses. O teu pai é igual. ..
- Se me vem dizer que o poder tem tendência a corrom­
per e que o poder absoluto corrompe absolutamente, atiro-lhe
com o café.
- A única coisa de que tenho receio neste país é que o governo
acabe por ficar tão monstruoso que o cidadão mais insignificante
seja pisado; nesse caso, não valerá a pena aqui viver. A única coisa
que ainda torna a América ímpar neste mundo cansado é que o
homem pode avançar até onde a sua inteligência o levar ou pode ir
para o Inferno se assim desejar, mas isso não será assim por muito
mais tempo.
O Dr. Finch sorriu, um sorriso de doninha amigável. - O Mel­
bourne disse uma vez que os únicos deveres reais de um governo
eram evitar o crime e preservar contratos; uma vez que me encontro
no século xx, se bem que muito a contragosto, eu acrescentaria
uma outra coisa: e suportar financeiramente a defesa comum.
- Essa é uma afirmação nebulosa.
- É, de facto. Deixa-nos com tanta liberdade.
Jean Louise pousou os cotovelos na mesa e passou os dedos pelo
cabelo. Passava-se algo. O tio estava a fazer-lhe uma eloquente
súplica tácita qualquer, afastando-se deliberadamente do assunto.
Ora simplificava, ora escapulia-se, desviando-se e fazendo fintas.
Interrogou-se porquê. Era tão fácil ouvi-lo, deixar-se embalar pelas
suas palavras, que não deu pela falta dos seus gestos resolutos,
da chuva de «hums» e «ahs» que costumavam apimentar as suas
conversas. Ela não sabia que ele estava profundamente preocupado.
- Tio Jack - quis saber -, o que é que isso tem a ver com o
resto? E o tio sabe muito bem o que quero dizer.
- Oh - exclamou ele, ruborizando-se -, estamos a ficar inte­
ligentes, não estamos?
- Suficientemente inteligente para saber que as relações entre
os negros e os brancos estão piores do que já vi alguma vez; a pro­
pósito, o tio não as mencionou uma única vez; suficientemente

174
inteligente para querer saber o motivo pelo qual a santinha da sua
irmã age da forma que age, suficientemente inteligente para querer
saber o que diabo aconteceu ao meu pai.
O Dr. Finch entrelaçou as mãos, apoiando o queixo nelas.
- O nascimento do homem é muitíssimo desagradável. É sujo,
extremamente doloroso, às vezes perigoso. E sangrento, sempre.
Assim é a civilização. O Sul está a sofrer as últimas dores de parto.
Está a dar à luz algo de novo, algo que não tenho a certeza de
apreciar, mas não estarei cá para o ver. Tu sim, estarás. Os homens
como eu e o meu irmão são obsoletos, e temos de nos ir, mas é uma
pena que levemos connosco o mais significativo desta sociedade,
pois havia algumas coisas boas nela.
- Pare com os devaneios e responda-me!
Ele levantou-se, inclinou-se sobre a mesa e olhou-a. As rugas
que lhe nasciam no nariz iam-lhe até à boca e formavam um trapé­
zio vincado: Os olhos brilhavam-lhe, mas a voz continuava calma:
- Jean Louise, quando um homem está frente ao cano du­
plo de uma caçadei ra, pega na primei ra arma que encontra
para se defender, seja uma pedra, um lenho ou um conselho de
cidadãos.
- Isso não é resposta que se dê!
O tio fechou os olhos, abriu-os e olhou para a mesa.
- O tio tem andado com rodeios elaborados, e eu nunca o vi
fazer isso. Sempre me deu respostas diretas ao que quer que lhe
perguntasse. Por que razão não o faz agora?
- Porque não posso. Não está na minha mão, nem na minha
área de conhecimento.
- Nunca o ouvi falar assim.
Ele abriu a mão e fechou-a com força. Conduziu a sobrinha pelo
braço à sala contígua e parou em frente do espelho emoldurado
a ouro.
- Olha para ti - ordenou.
Ela assim fez.
- O que vês?
- Vejo-me a mim e ao tio. - Encarou o reflexo dele no espe-
lho. - Sabe que o tio é jeitoso de uma maneira algo trágica.

17 5
Por um instante, viu os últimos cem anos apossarem-se do
tio, que fez um misto de uma vénia e de um aceno, dizendo:
- É muito simpático da sua parte, minha senhora. - De trás
dela, agarrou-lhe nos ombros e insistiu: - Olha bem para ti. É a
única coisa que te posso dizer. Olha bem os teus olhos, olha bem
o teu nariz. Olha o teu queixo. O que vês?
- Vejo-me a mim.
- Eu vejo duas pessoas.
- Quer dizer a maria-rapaz e a mulher?
Jean Louise viu o reflexo do tio abanar a cabeça. - Não, filha.
Isso também, mas não é a isso que me refiro.
- Tio Jack, não sei por que motivo é que decidiu embrenhar-se
na bruma...
O Dr. Finch coçou a cabeça, espetando um tufo de cabelo
branco. - Desculpa - disse -, continua. Avança e faz o que
vais fazer. Não posso impedir-te e não devo impedir-te, Childe
Roland 38 • Mas vai ser perigoso e feio. Uma coisa horrível. . .
- Querido tio Jack, o senhor não pertence a este mundo.
O Dr. Finch encarou-a e manteve-a à distância do braço.
- Jean Louise, quero que me escutes com atenção. O que falámos
hoje... quero dizer-te uma coisa e ver se consegues ligar tudo. É o
seguinte: o que foi acidental na questão da nossa guerra entre os
estados também o é na guerra em que nos encontramos agora,
e também o é na tua guerra privada. Agora reflete sobre o assunto e
diz-me o que achas que eu quero dizer.
O tio esperou.
-O senhor parece um daqueles profetas menores - afir­
mou ela.
- Também me pareceu. Muito bem, agora escuta de novo:
quando não conseguires aguentar, quando tiveres o coração divi­
dido ao meio, tens de vir ter comigo. Percebes? Tens de ·vir ter
comigo. - Sacudiu-a. - Promete-me.
- Sim, senhor, prometo, mas...

38
«Childe Roland à Torre Negra Chegou», poema d e Robert Browning
( 1 8 5 5 ). (NT)

176
- Agora desaparece - disse-lhe o tio. - Vai a um sítio
qualquer e dá uns beijos ao Hank. Eu tenho mais com que me en­
treter. . .
- Com quê?
- Nada que te interesse. Vai.
Quando Jean Louise desceu os degraus, não viu o Dr. Finch
morder o lábio inferior, voltar à cozinha, fazer uma festa a Rose
Aylmer ou regressar ao escritório de mãos nos bolsos e andar de um
lado para o outro até que, por fim, pegou no telefone.

177
PARTE V I
15

Doido, doido varrido. Bem, os Pinches são todos assim, mas a dife­
rença entre o tio Jack e o resto da família é que ele sabe que é maluco.
Jean Louise estava sentada a uma mesa nas traseiras da gelata­
ria de Mr. Cunningham, a comer de um copo de papel encerado.
Mr. Cunningham, um homem de uma retidão intransigente, ser­
vira-lhe uma cerveja grátis por ela lhe ter adivinhado o nome no
dia anterior. Era uma das coisas insignificantes que adorava em
Maycomb: as pessoas lembravam-se das promessas.
Que quereria ele dizer? «Promete-me. . . acidental na questão...
anglo-saxão. .. palavrão... Childe Roland. » Espero que não perca o
seu sentido de decência, senão terão de o internar. Está tão afastado deste
século que não vai à casa de banho, vai à privada. Mas louco ou não,
é o único que não fez nada ou disse alguma coisa . . .
Por que razão voltei aqui? Só para esfregar isto bem na minha cara,
calculo. Só para olhar para a gravilha do pátio das traseiras, onde cres­
ciam as árvores, onde ficava a garagem, e perguntar-me se foi tudo um
sonho. O ]em estacionava ali o seu carrinho de ir à pesca, desenterrávamos
minhocas junto à vedação, certa vez plantei um bambu e debatemo-nos com
ele por mais de vinte anos. Mr. Cunningham deve ter salgado a terra no
sítio onde crescia, já não o vejo.
Sentada ao sol da uma da tarde, reconstruiu a sua casa, povoou
o pátio com o pai, o irmão e Calpurnia, colocou Henry do outro
lado da rua e Miss Rachel na casa ao lado.
Eram as duas últimas semanas do ano escolar, e ela ia ao seu
primeiro baile. Era tradição os alunos mais velhos convidarem os

181
irmãos e irmãs mais novos para o baile da formatura, que tinha
lugar na véspera do banquete dos alunos do secundário, que ocorria
sempre na última quinta-feira de maio.
A camisola de futebol de Jem tinha-se tornado cada vez mais
magnífica - era ele o capitão da equipa nesse primeiro ano em
que Maycomb venceu Abbottsville em treze épocas . Henry era
presidente da Sociedade de Debates do secundário, a única ativi­
dade extracurricular para que tinha tempo, e Jean Louise era uma
miúda de catorze anos gordinha, mergulhada em poesia vitoriana
e romances policiais.
Naquele tempo, em que estava na moda namorar meninas da
outra margem do rio, ]em apaixonara-se tão perdidamente por uma
rapariga do condado de Abbott que pensou seriamente frequentar
o último ano do liceu em Abbott, do que Atticus o desencorajou.
Recusou terminantemente, mas consolou o filho, adiantando-lhe os
fundos suficientes para comprar um coupé Modelo A. ]em pintou o
carro de preto brilhante, conseguiu o efeito de pneus brancos com
mais tinta, mantinha o veículo a brilhar na perfeição e conduzia
até Abbottsville todas as sextas à noite com uma dignidade calma,
sem se dar conta de que o automóvel roncava como um moinho
de café gigante e de que, onde quer que fosse, os cães se j untavam
em grande número.
Jean Louise tinha a certeza de que o irmão fizera um acordo qual­
quer com Henry para a levar ao baile, mas não se importava. No iní­
cio não queria ir, mas Atticus disse que ia parecer estranho se todas
as irmãs lá estivessem menos a de Jem, convenceu-a de que se ia
divertir e que podia ir ao Ginsberg e escolher o vestido que quisesse.
Encontrou um adorável . Branco, com mangas tufadas e uma
saia que rodopiava quando ela dava uma volta. Só havia uma coisa
errada: parecia um pino de bowling.
Consultou Calpurnia, que lhe disse que não se podia fazer nada
quanto à sua figura, ela era assim mesmo, e que todas as raparigas
de catorze anos eram mais ou menos o mesmo.
«Mas pareço tão esquisita » , queixou-se, puxando pelo decote.
« Está como de costume» , respondeu Calpurnia. « Quero dizer
que fica igual com qualquer vestido. Com esse não é diferente. »

182
Jean Louise ralou-se durante crês dias. Na carde do baile, vol­
tou à loja e escolheu um par de seios postiços, foi para casa e expe­
rimentou-os.
«E agora, Cal? » , perguntou.
Calpurnia respondeu: «A forma está cerca, mas não era melhor
cê-los usado aos poucos? »
«Que queres dizer? »
Calpurnia resmungou: «Devia cê-los usado uns tempos para se
habituar. . . agora é demasiado carde. »
«Oh, Cal, não sejas conta. »
«Bom, dê-os cá. Vou cosê-los um ao outro. »
Ao passar os seios postiços a Calpurnia, um pensamento súbito
deixou-a pregada ao chão. «Oh, caramba » ; murmurou.
«O que é que foi agora? » , quis saber Calpurnia. «Tem andado
obcecada com esta coisa há uma semana. De que é que se esqueceu? »
«Cal, acho que não sei dançar. »
A cozinheira pôs as mãos nas ancas. «Que bela altura para pen­
sar nisso » , observou, olhando para o relógio da cozinha. «São um
quarto para as quatro. »
Jean Louise correu para o telefone. «Seis-cinco, por favor » ,
pediu e, quando o pai respondeu, lamuriou-se para o aparelho.
«Fica calma e pede ajuda ao tio Jack » , sugeriu ele. «Ele era bom
no seu tempo. »
«Devia dançar muito mal o minuece » , respondeu ela, mas
telefonou ao tio, que reagiu vivamente.
O Dr. Finch treinou a sobrinha ao som do gira-discos de Jem.
«Não custa nada. . . é como o xadrez. . . é só concentrares-te. . . não,
não, não, mete o rabo para dentro.. . não estás a jogar futebol. . .
detesto danças de salão. . . parece-se demasiado com trabalho. . . não
tentes conduzir-me. . . quando ele te pisar, a culpa é tua porque
não moveste o pé. . . não olhes para baixo. . . não, não, não. . . é isso
mesmo. . . é básico, por isso não tentes coisas complicadas. »
Após uma hora de intensa concentração, conseguiu aprender
alguns passos básicos. la contando energicamente em silêncio e
admirava a capacidade do tio de falar e dançar ao mesmo tempo.
«Descontrai-te e vais sair-te bem » , dizia ele.

18 3
O seu esforço foi recompensado por Calpurnia com café e um con­
vite para jantar, tendo ele aceitado ambos. O Dr. Finch passou uma
hora solitária na sala até Atticus e ]em chegarem. A sobrinha
trancara-se na casa de banho e lá ficara a esfregar-se vigorosamente
e a dançar. Saiu de lá esfuziante, jantou de robe e desapareceu no
quarto sem se dar conta do divertimento da família.
Enquanto se vestia, ouviu os passos de Henry à porta e pensou
que a ia buscar demasiado cedo, mas ele atravessou a entrada e
foi direito ao quarto de ]em. Aplicou Tangee Orange nos lábios,
penteou-se e alisou o remoinho com o creme do irmão. O pai e o
Dr. Finch levantaram-se quando ela entrou na sala.
«Pareces uma flor » , cumprimentou-a Atticus, beijando-a na testa.
«Tenha cuidado » , avisou ela. «Amachuca-me o cabelo. »
O Dr. Finch propôs: «Queres dar uma última volta? »
Henry deu com eles a dançar na sala. Piscou os olhos ao ver
a nova imagem de Jean Louise e deu uma palmadinha no ombro
do médico. «Posso tirar-lha? »
«Estás mesmo bonita, Scout » , disse Henry. «Tenho uma coisa
para ti. »
« Tu também estás bonito, Hank » , elogiou ela. As calças
de domingo em sarja azul estavam vincadas na perfeição, e o
casaco castanho-claro cheirava a líquido de limpeza. Jean Louise
reconheceu a gravata azul-clara de Jem.
«Danças bem » , observou ele, perante o que ela tropeçou.
«Não olhes para baixo, Scout! » , ralhou o Dr. Finch. «Disse-te que
é como levar uma chávena de café. Se olhares para ela, entorna-la. »
Atticus abriu o relógio. «É melhor o ]em pôr-se a andar se quiser
ir buscar a Irene. Aquela banheira dele não passa dos cinquenta. »
Quando ]em apareceu, Atticus mandou-o ir mudar de gravata.
Ao voltar, o pai deu-lhe as chaves do carro familiar, algum dinheiro
e uma preleção sobre não passar dos setenta quilómetros por hora.
«Escutem » , propôs Jem depois de admirar devidamente a irmã,
«vocês podem ir todos no Ford e assim já não precisam de fazer
o caminho todo até Abbottsville comigo. »
O Dr. Finch remexia nos bolsos do casaco. «É-me indiferen­
te como é que vão » , declarou. «Desapareçam e pronto. Estão a

184
deixar-me nervoso aqui de pé todos bem vestidos. A Jean Louise
está a começar a suar. Entra, Cal. »
Calpurnia esperava timidamente na entrada, a aprovar a cena
de má vontade. Endireitou a gravata de Henry, tirou um fiapo
invisível do casaco de Jem e requisitou a presença de Jean Louise
na cozinha.
«Acho que os devia coser ao vestido » , disse cheia de dúvidas.
Henry gritou para se irem embora senão o Dr. Finch tinha
um ataque.
«Vai correr bem, Cal. »
Ao voltar à sala, encontrou o tio agitadíssimo de impaciência,
num contraste óbvio com o pai, que permanecia de pé casualmente,
com as mãos nos bolsos. «É melhor irem » , observou Atticus.
«A Alexandra chega não tarda nada e depois é que ficam atrasados. »
Encontravam-se já no alpendre da frente quando Henry esta­
cou. «Esqueci-me! » , bradou e correu ao quarto de )em. Voltou
com uma caixa que ofereceu a Jean Louise com uma vénia: «Para
si, Miss Finch » , declarou. No interior viam-se duas camélias cor­
-de-rosa.
«Ha-ank! » , exclamou ela. «São de compra! »
«Encomendei-as em Mobile » , afirmou o rapaz. «Chegaram na
camioneta das seis. »
«Onde é que as ponho? »
«Santíssimo Pai do Céu, põe-nas no seu lugar! » , exclamou o
Dr. Finch. «Anda cá! »
Arrancou as camélias das mãos da sobrinha e pregou-lhas no
ombro, mirando com ar severo o seu colo falso. «E agora fazem-me
o favor de vagarem as instalações? »
«Esqueci-me da minha bolsa. »
O Dr. Finch tirou o lenço e passou-o no queixo. «Henry » ,
pediu, «vai dar à manivela daquela abominação. Eu vou ter contigo
lá à frente com ela. »
Jean Louise deu um beijo de boas-noites ao pai, que lhe disse:
«Espero que te divirtas imenso. »
O ginásio do liceu do condado de Maycomb estava decorado
com bom gosto, cheio de balões e fitas brancas e vermelhas de papel

18 5
crepom. Ao fundo via-se uma mesa comprida, e copos de papel,
pratos de sanduíches e guardanapos rodeavam duas taças de pon­
che, cheias de um líquido roxo. O chão fora encerado de novo, e os
cestos de basquetebol tinham sido dobrados contra o teto. A frente
do palco cobria-se de flores e, ao centro, por nenhuma razão espe­
cial, podiam ver-se grandes letras de cartolina vermelha: ESCM.
«Está lindo, não está? » , exclamou Jean Louise.
«Lindíssimo » , concordou Henry. «Não parece maior quando
não está a haver nenhum jogo? »
Juntaram-se a um grupo de irmãos e irmãs de várias idades que
rodeavam as taças de ponche. As pessoas mostravam-se visivelmente
impressionadas com Jean Louise. Raparigas que via todos os dias
perguntavam-lhe onde comprara o vestido, como se não fossem todas
comprá-los lá: «No Ginsberg. A Calpurnia subiu-lhe a bainha » ,
declarou. Vários rapazes mais novos com quem travara lutas terríveis
havia alguns anos travavam com ela conversas inibidas.
Quando Henry lhe passou um copo de ponche, ela murmurou-
-lhe: «Se quiseres ir ter com os finalistas ou coisa assim, eu fico bem. »
Henry sorriu-lhe. «És minha convidada, Scout. »
«Eu sei, mas não tens de te sentir obrigado a... »
Henry riu-se. «Não me sinto obrigado a nada. Quis trazer-te.
Vamos dançar. »
«OK, mas vai devagar. »
Ele levou-a para o centro da pista. Do sistema de som saía um
tema lento e, contando sistematicamente em silêncio, Jean Louise
dançou até ao fim apenas com um erro.
À medida que a noite avançava, deu-se conta de que tivera um
êxito modesto. Vários rapazes tinham-na levado para dançar, e,
quando parecia não ter par, Henry nunca se encontrava muito longe.
Teve o bom senso de não dançar o jitterbug e evitou músicas
com um toque sul-americano; Henry disse que, quando aprendesse
a dançar e a falar ao mesmo tempo, seria um sucesso. Ela desejou
que a noite durasse para sempre.
A entrada de Jem e de Irene causou grande excitação. O i rmão
fora eleito o Mais Bonito da turma de finalistas, uma avaliação
sensata: tinha os olhos castanhos e ternos como os da mãe, as

186
sobrancelhas pesadas dos Pinches e feições regulares. Irene era
a última palavra em sofisticação. Trazia um vestido em tafetá
verde cingido ao corpo e sapatos de salto alto e, quando dançava,
dúzias de escravas tilintavam-lhe nos pulsos. Tinha uns mara­
vilhosos olhos verdes e cabelo preto, um sorriso rápido e era o
tipo de rapariga por quem ]em se apaixonava com uma regula­
ridade monótona.
Ele cumpriu a dança obrigatória com a irmã e disse-lhe que
estava a ir bem, mas que tinha brilho no nariz, ao que ela respon­
deu que ele tinha batom nos lábios. A música terminou, e ]em
deixou-a com Henry. «Não acredito que vais para a tropa em
junho » , disse ela. «Faz-te parecer tão velho. »
Henry abriu a boca para falar, ficou de súbito a olhar estarrecido
e apertou-a contra ele.
«Que se passa, Hank? »
«Não achas que está calor aqui? Vamos lá para fora. »
Jean Louise tentou soltar-se, mas ele abraçou-a e levou-a a dan-
çar até saírem pela porta lateral.
«Que diabo te deu, Hank? Eu disse alguma coisa... »
Ele pegou-lhe na mão e levou-a até à frente do edifício da escola.
«Hã . . . » , principiou ele, segurando-lhe em ambas as mãos.
«Querida » , disse, «olha para a tua parte da frente. »
«Está escuro como breu. Não consigo ver nada. »
«Então apalpa. »
Ela assim fez e logo soltou uma exclamação abafada. O se10
postiço direito encontrava-se a meio do peito, e o outro estava
quase debaixo da axila esquerda. Jean Louise corrigiu-lhes a posição
bruscamente e desatou a chorar.
Sentou-se nos degraus da escola. Henry sentou-se a seu lado e
pôs-lhe o braço em volta dos ombros. Quando ela parou de chorar,
perguntou-lhe: «Quando é que reparaste? »
«Naquele momento, juro. »
«Achas que estavam a rir-se de mim há muito tempo? »
Henry abanou a cabeça. «Acho que ninguém notou, Scout.
Escuta, o ]em dançou contigo mesmo antes de mim e, se tivesse
reparado, certamente dizia-te. »

187
«Na cabeça do Jem não há mais nada a não ser a Irene. Não
via um ciclone nem que viesse direito a ele. » Jean Louise chorava
baixinho. «Nunca mais sou capaz de os enfrentar. »
Henry apertou-lhe o ombro. «Scout, juro que escorregaram
quando estávamos a dançar. Pensa lá, se alguém tivesse visto, dizia­
-te, sabes bem. »
«Não, não sei. Ficavam a rir e a segredar. Sei muito bem como
eles são. »
«Os finalistas não » , garantiu-lhe Henry serenamente. « Tens
estado a dançar com a equipa de futebol desde que o ]em
chegou. »
E era verdade. Um a um, os jogadores tinham pedido que lhes
fosse concedido aquele prazer. Era a forma discreta de Jem garantir
que ela se divertia.
«Além disso » , prosseguiu Henry, «não gosto nada disso. Não
pareces tu. »
Magoada, ela retorquiu: «Queres dizer que fico esquisita? Sem
isto, também fico. »
«Quero dizer que não és a Jean Louise. » E acrescentou: «Não
me pareces nada esquisita, a mim pareces muito bem. »
«É bonito dizeres isso, Hank, mas estás a falar por falar. Estou
gorda nos sítios errados e... »
Henry soltou uma gargalhada. «Que idade tens? Vais fazer
quinze. Ainda nem sequer acabaste de crescer. Olha, lembras-te da
Gladys Grierson? Lembras-te de lhe chamarem Belo Rabo ? »
«Hank! »
«Bem, olha para ela agora. »
Gladys Grierson, um dos ornamentos mais deliciosos da turma
de finalistas, sofrera muito da mesma queixa de Jean Louise.
«Agora está toda provocante, não está? »
Henry disse autoritariamente: «Escuta, Scout, essas coisas vão-te
aborrecer o resto da noite. É melhor tirá-las. »
«Não. Vamos para casa. »
«Não vamos nada para casa, vamos voltar a entrar e divertir­
mo-nos. »
«Não! »

1 88
«Caramba, Scout, já disse que íamos entrar, por isso tira lá
essas coisas! »
«Leva-me para casa, Henry. »
Henry enfiou os dedos furiosos e indiferentes por baixo do
decote do vestido, tirou de lá os acessórios melindrosos e atirou-os
o mais longe possível para a noite escura.
«Agora podemos ir? »
Ni nguém pareceu reparar na mudança do seu aspeto, o
que provava, lembrou Henry, que ela era vai dosa como um
pavão e que pensava que toda a gente estava sempre a olhar
para ela.
No dia seguinte havia escola, e o baile terminou às onze. Henry
fez deslizar o Ford pelo acesso dos Pinches e parou-o debaixo dos
cinamomos. Caminharam juntos até à porta da frente e, antes
de lha abrir, o rapaz abraçou-a ao de leve e beijou-a. Jean Louise
sentiu-se corar.
«Mais uma vez para dar boa sorte » , disse ele.
Voltou a beij á-la, fechou a porta atrás dela, e ela ouviu-o atra­
vessar a rua a assobiar, a caminho do seu quarto.
Cheia de fome, seguiu pelo corredor em bicos de pés até à cozi ­
nha. Ao passar pelo quarto do pai, viu uma nesga de luz debaixo
da porta. Bateu e entrou. Atticus estava na cama a ler.
«Divertiste-te? »
«Diverti-me imenso » , declarou ela. «Atticus? »
«Hum? »
«Acha que o Henry é demasiado velho para mim? »
«O quê?»
«Nada. Boa noite. »

***
Durante a chamada da manhã seguinte, Jean Louise pensou,
assoberbada, na paixoneta que sentia por Henry e só prestou aten­
ção quando a diretora de turma anunciou que haveria uma assem­
bleia especial dos alunos da escola básica e secundária logo após o
toque do primeiro tempo.

189
Dirigiu-se ao auditório a pensar apenas na perspetiva de voltar a
ver Henry, pouco interessada no que Miss Mu/fett 39 tivesse a dizer.
Era provavelmente mais uma exortação para comprar obrigações de
ajuda ao esforço de guerra.
O reitor da escola secundária de Maycomb era Mr. Charles
Tuffett, o qual, a fim de compensar o seu nome, ostentava habi­
tualmente uma expressão que fazia lembrar o índio das moedas de
cinco cêntimos. A sua personalidade era menos inspiradora: era um
homem desiludido, um professor frustrado sem simpatia pela gente
nova. Vinha da região montanhosa do Mississípi, o que era uma
desvantagem em Maycomb: a gente manhosa das montanhas não
compreende os sonhadores das planícies costeiras, e Mr. Tuffett
não era exceção. Ao chegar a Maycomb, não perdera tempo a infor­
mar os pais de que os seus filhos eram dos mais mal-educados que
já vira, que não serviam para mais nada senão tirar cursos de agri­
cultura, que o futebol e o basquetebol eram uma perda de tempo
e que ele, para sua felicidade, não defendia a existência de clubes e
de atividades extracurriculares, porque a escola, tal como a vida,
era uma questão profissional.
O corpo de alunos, do mais velho ao mais novo, reagia em con­
sonância: Mr. Tuffett era sempre tolerado, mas ignorado a maior
parte do tempo.
Jean Louise estava sentada com a sua turma na secção do meio
do auditório. A turma dos finalistas sentava-se ao fundo do outro
lado da coxia, e era fácil virar-se e olhar para Henry. Jem, sentado
a seu lado, estava meio vesgo, miasmático e mudo, como era habi­
tual de manhã. Quando Mr. Tuffett os enfrentou e leu algumas
comunicações, ela ficou contente por ele estar a ocupar o primeiro
tempo, o que significava nada de matemática. Virou-se quando
Mr. Tuffett passou aos factos.
No seu tempo, deparara-se com todos os tipos de estudantes,
principiou, alguns dos quais levavam pistolas para a escola, mas

39
Alcunha do rei tor, dada a semelhança dos nomes . No poema infantil
«Lictle Miss Muffec» surge igualmente a palavra « cuffet» no sentido de ban­
quinho. (NT)

190
nunca na sua experiência testemunhara um ato de tal depravação
como aquele com que se deparou ao percorrer o acesso à escola
naquela manhã.
Jean Louise trocou olhares com os colegas. «Que estará a
roê-lo? » , murmurou. «Só Deus sabe » , respondeu a colega da
esquerda.
Perceberiam eles a enormidade de tal atrocidade? Iria relembrar­
-lhes que o país estava em guerra, que enquanto os nossos rapazes
- os nossos irmãos e filhos - lutavam e morriam por nós, alguém
lhes desferiu um ato de profanação tão obsceno, cujo perpetrador,
de tão desprezível, não merecia menção.
Jean Louise olhou em volta para um mar de rostos perple­
xos. Em ocasiões públicas, tinha facilidade em identificar culpados,
mas de todos os lados deparou-se apenas com espanto e confusão.
Além do mais, antes de terminar a assembleia, Mr. Tuffett iria
dizer-lhes que sabia quem o praticou e que, se a pessoa em questão
desejava clemência, apresentar-se-ia no seu gabinete até às duas
horas com uma declaração escrita.
A assembleia, reprimindo um grunhido de aversão perante a
tolerância de Mr. Tuffett em relação ao truque mais antigo de um
professor, levantou-se e seguiu-o até à parte da frente do edifício.
«Ele adora confissões por escrito » , comentou Jean Louise para
as colegas. «Pensa que se tornam legais. »
«Pois, ele não acredita em nada a não ser que esteja escrito » ,
concordou uma delas.
«E depois, quando está posto por escrito, acredita em todas as
palavrinhas » , acrescentou outra.
«Acham que alguém pintou suásticas no passeio? » , pergunta
uma terceira.
«Já aconteceu» , disse Jean Louise.
Viraram a esquina da escola e pararam. Não notaram nada de
errado: o chão estava limpo, as portas da frente no seu lugar, os
arbustos não haviam sido perturbados.
O reitor esperou até que todos os alunos se juntassem e depois
apontou num gesto dramático para cima: «Olhai» , bradou. «Olhai,
todos vós. »

191
Mr. Tuffett era um patriota. Presidia a todas as recolhas de
fundos e dava palestras fastidiosas e constrangedoras durante
a assembleia matinal sobre o esforço de guerra. O projeto
que fomentou e admirava com grande orgulho era um placard
enorme que mandara erguer no pátio da frente e que apregoava
os nomes dos estudantes da escola que estavam ao serviço do
seu país. Os estudantes viam-no de uma forma menos agradável:
ele tributara vinte e cinco cêntimos a cada um e ficara com o
crédito para si.
Seguindo o dedo de Mr. Tuffett, Jean Louise olhou para o
placard, onde leu AO SERV IÇO DO SEU PAÍ. A tapar a última
letra e esvoaçando ao de leve sob a brisa matinal, viam-se os seus
seios postiços.
«Garanto-vos » , disse o reitor, «que o melhor é ter na minha
secretária uma declaração assinada até às duas horas desta tarde.
Estive nesta escola ontem à noite » , prosseguiu, enfatizando cada
palavra. «Agora ide para as vossas aulas. »
Era de calcular. Ele costumava andar furtivamente pela escola
durante os bailes, a tentar apanhar jovens a fazer marmelada.
Espreitava para dentro dos carros estacionados e para trás dos
arbustos. Talvez os tivesse visto. Henry atirara-os fora para quê?
«Ele está a fazer bluff» , alvitrou Jem no intervalo. «Mas também
pode não estar. »
Encontravam-se na cantina da escola. Jean Louise tentava não
dar nas vistas. A escola estava praticamente a rebentar de nso,
horror e curiosidade.
«Pela última vez, deixem-me dizer-lhe » , pediu ela.
«Não sejas cobarde, Jean Louise. Sabes bem qual é a opinião
dele. Afinal, fui eu que fiz aquilo » , disse Henry.
«Bom, por amor de Deus, são meus! »
«Percebo como é que o Henry se sente » , disse Jem. «Não pode
deixar-te confessar. »
«Não vejo porque não. »
«Pela enésima vez, não posso e pronto. Não percebes? »
«Não. »
«Jean Louise, ontem à noite saíste comigo... »

192
« Nunca hei de perceber os homens por mais que viva » ,
protestou ela, já não se sentindo apaixonada por Henry. «Tu não
tens de me proteger, Hank. Esta manhã já não sou o teu par, e sabes
que não podes ser tu a confessar. »
« Isso é mais que certo, Hank» , comentou ]em. «Ele não te
entregava o diploma. »
Um diploma significava mais para Henry que para a maioria dos
seus amigos . Para alguns não fazia mal serem expulsos; em último
caso, podiam ir para um colégio interno.
« Ias ofendê-lo, sabes » , prosseguiu Jem. « E era mesmo dele
expulsar-te duas semanas antes de te formares. »
« Portanto, deixem-me ir a mim » , insistiu Jean Louise. « Adorava
ser expulsa. » E era verdade, a escola era um aborrecimento insu­
portável .
«A questão não é essa, Scout . Pura e simplesmente não o podes
fazer. Eu podia explicar. . . não, também não podia » , concluiu
Henry, à medida que se apercebia das ramificações do seu ato
impetuoso. «Eu não posso explicar nada. »
« Muito bem » , afirmou Jem . « A situação é a seguinte . Hank,
eu acho que ele está a fazer bluff, mas há uma boa hipótese de
não estar. Sabes que anda sempre a rondar por aí. Pode ter-vos
ouvido, vocês estavam praticamente por baixo da janela do gabi­
nete dele . . . »
«Mas o gabinete estava às escuras » , lembrou Jean Louise.
« . . . ele gosta de ficar sentado no escuro. Se a Scout lhe contar, vai
ser mauzinho, mas, se fores tu, ele expulsa-te com toda a certeza,
e tu tens de te formar, pá. »
«]em», disse ela, « ser filósofo é muito lindo, mas não estamos
a chegar a lado nenhum . . . »
«Tal como vej o a coisa, a tua posição, Hank » , continuou Jem,
ignorando tranquilamente a irmã, «é que estás sempre tramado. »
«Eu . . . »
« Oh, cala a boca, Scout ! » , bradou Henry violentamente. «Não
vês que nunca mais vou conseguir andar de cabeça levantada se te
deixar contar? »
« Bolas , mas que heróis que vocês me saíram ! »

1 93
Henry deu um salto. «Espera aí! » , gritou. «Jem, dá-me as cha­
ves do carro e cobre-me na hora de estudo. Volto para Economia. »
Jem disse: «A Miss Muffett vai ouvir-te arrancar, Hank. »
«Não, não vai. Eu empurro o carro até à estrada. Além disso,
ele vai estar na hora de estudo. »
Era fácil um aluno ausentar-se de uma hora de estudo vigiada
por Mr. Tuffett. Ele interessava-se pouco pelos seus estudantes e
só conhecia pelo nome os mais desinibidos. Eram atribuídos luga­
res na biblioteca, mas, se alguém deixasse claro que não desejava
estar presente, as fileiras fechavam-se. A pessoa na ponta da fila do
faltoso levava a cadeira vaga para o corredor e voltava a trazê-la
quando findava a hora.
Jean Louise não prestou atenção à professora de Inglês e, passa­
dos cinquenta minutos ansiosos, foi abordada por Henry a caminho
da aula de Educação Cívica.
«Agora escuta » , disse ele, conciso. «Faz exatamente como te
vou dizer: vais contar-lhe. Escreve... » , deu-lhe um lápis e ela abriu
o bloco-notas.
«Escreve: "Caro Mr. Tuffett. Parecem os meus. " Assina o teu
nome completo. É melhor passares a tinta para ele acreditar. Pouco
antes do meio-dia vais lá e entregas-lhe. Percebeste? »
Ela assentiu. «Pouco antes do meio-dia. »
Quando foi para a aula de Educação Cívica, percebeu que todos
sabiam. Havia pequenos ajuntamentos de estudantes na entrada a
murmurar e a rir. Suportou sorrisos e piscares de olho amigáveis
com toda a calma, na verdade, quase se sentiu melhor. As pessoas
crescidas é que pensam sempre o pior, refletiu, certa de que os seus
contemporâneos não acreditavam nem em mais nem em menos do
que Jem e Henry tinham posto a circular. Mas por que razão teriam
eles contado? Iam ser gozados para sempre; não se importavam
porque se iam formar, mas ela teria de permanecer ali por mais
três anos. Não, Miss Muffett iria expulsá-la, e Atticus mandava-a
para um sítio qualquer. O pai iria aos arames quando o reitor lhe
contasse a história escabrosa. Oh, bem, livrava Hank de um sarilho.
Ele e Jem foram muito atenciosos durante um bocado, m� no fim
ela é que estava certa. Era a única coisa a fazer.

1 94
Passou a confissão a ti nta, e , à medida que se aproximava
o meio-dia, o seu estado de espírito esmoreceu. Normalmente
não havia nada de que mais gostasse do que uma discussão com
Miss Muffett, que era tão burro que se lhe podia d i zer quase tudo
desde que se tivesse o cuidado de manter uma expressão grave e
pesarosa, mas naquele dia não lhe apeteciam dialéticas . Sentia-se
nervosa e desprezava-se por isso.
Ao percorrer o corredor até ao gabi nete do rei tor, sentiu-se
levemente enj oada. Na assembleia, ele chamara-lhe um ato obs­
ceno e depravado; que iria contar à cidade ? Maycomb vicejava
com os rumores, e todo o tipo de histórias iria chegar aos ouvidos
de Atticus .
Mr. Tuffett estava sentado atrás da secretária, mi rando o tampo ,
irritado. « O que é que q ueres ? » , perguntou sem levantar o olhar.
« Queria dar-lhe isto, senhor » , disse ela, dando instintivamente
um passo atrás .
Mr. Tuffett pegou na nota, fez uma bola com ela sem a ler
e ati rou-a para o cesto dos papéi s .
Jean Louise teve a sensação d e s e r derrubada por uma pena.
«Ah, Mr. Tuffett » , disse. « Vim contar-lhe como o senhor pediu.
Eu . . . comprei -os no Ginsberg » , acrescentou voluntariamente .
« Não tive intenção de . . . »
Mr. Tuffett olhou para ela, o ros to a corar de raiva. « Não estejas
aí a dizer-me que não era tua i ntenção ! Nunca na mi nha expe­
riência me deparei . . . »
Agora é que eram elas .
Todavia, à medida que escutava, foi ficando com a impressão de
que os comentários do reitor eram de natureza geral , destinados
mais ao corpo estudantil que a ela própria, eram um eco do que
sentira de manhã . Ele concluía com um resumo das atitudes mórbi­
das geradas pelo condado de Maycomb quando ela o interrompeu:
« Mr. Tuffett, só quero dizer que não culpe toda a gente pelo
que eu fiz, não precisa de descarregar em cima de toda a gente . »
O reitor agarrou a borda da secretária e disse por entre dentes
cerrados : « Por essa insolência, ficas na escola uma hora a mais,
mi nha menina ! »

195
Ela inspirou fundo . « Mr. Tuffett » , disse ela, « acho que houve
um erro . Não percebo . . . »
« Não percebes , pois não ? Então , vou-te mostrar ! »
Pegou bruscamente numa grande pilha de folhas de apontamen­
tos e agitou-a na frente dela.
« A menina é a centésima quinta! »
Jean Louise observou as folhas de papel . E ram todas iguai s ,
e e m cada uma estava escri to: « Caro Mr. Tuffett . Parecem os
meus » , assinado por todas as raparigas da escola do nono ano
para orna.
Ficou por momentos profundamente absorta e, incapaz de dizer
alguma coisa que aj udasse o homem, saiu devagarinho do gabinete.
« Está acabado » , disse Jem, quando seguiam de carro para ir
j antar. Jean Louise sentava-se entre o irmão e Henry, que escutara
calmamente o seu relato do estado de espírito de Mr. Tuffett.
« Hank, és um génio incrível » , d isse ela. «Onde é que foste
buscar esta ideia? »
Henry deu uma longa passa no cigarro e atirou a beata pela
j anela. « Consultei o meu advogado » , declarou pomposamente.
Jean Louise levou as mãos à boca.
« Naturalmente » , prosseguiu ele. « Sabes que ele tem tratado
das minhas coisas desde que eu era miúdo, por isso fui à cidade
e expliquei-lhe tudo. Pedi-lhe um conselho , mais nada. »
« Foi o Atticus que te deu a ideia? » , perguntou ela, cheia de
admiração.
«Não , não foi , a ideia foi minha. Ele hesitou um bocado, disse
que era uma questão de equilibrar as equidades ou lá o que é , que
eu estava numa posição interessante mas delicada. Girou a cadeira
e olhou pela j anela e disse que tentava sempre pôr-se na pele dos
clientes . . . » Henry calou-se.
« Continua. »
« Bom, disse que, dada a extrema delicadeza do meu problema
e visto não · existirem indícios de intenção criminosa, não punha
de lado atirar um pouco de pó aos olhos de um j urado, seja lá isso
o que for, e depois , oh , não sei . »
«Oh, Hank , é claro que sabes . »

1 96
«Bem, ele disse qualquer coisa sobre a segurança nos números
e que, se estivesse no meu lugar, nem lhe passaria pela cabeça ser
conivente com o perjúrio, mas que, tanto quanto sabia, todos os
postiços eram iguais, e que não podia fazer mais nada por mim.
Disse que me mandava a conta no fim do mês. Ainda mal saíra do
escritório quando a ideia me veio à cabeça! »
Jean Louise perguntou: «Hank, ele disse alguma coisa sobre
o que me ia dizer?»
«Dizer-te?» Henry virou-se para ela. «Ele não te vai dizer
patavina. Não pode. Não sabes que tudo o que se diz a um
advogado é confidencial?»

***
Pás! Com uma pancada, alisou o copo de papel em cima da
mesa, estilhaçando as imagens do passado. O Sol marcava duas
horas, tal como marcara no dia anterior e marcaria no dia seguinte.
O Inferno é uma separação eterna. Que fizera ela para ter de
passar o resto dos seus dias tentando encontrá-los, cheia de sauda­
des, fazendo viagens secretas ao passado, não viajando no presente?
Sou do mesmo sangue que eles, já escavei este solo, este é o meu lar. Mas
não sou do seu sangue, ao solo é-lhe indiferente quem o escava, sou uma
estranha numa festa.

197
16

- Hank, onde está o Atticus?


Henry ergueu os olhos da secretária. - Olá, querida. Foi aos
correios. Está na hora do café. Vens comigo?
Aquilo que a levara a sair da loja de gelados de Mr. Cunning­
ham, levou-a a seguir Henry até à rua: queria observá-los de novo,
furtiva, para ter a certeza de que não haviam sofrido uma alarmante
metamorfose física, e no entanto não tinha qualquer desejo de falar
com eles ou de lhes tocar, não fosse isso levá-los a cometer mais
alguma atrocidade na sua presença.
Enquanto caminhavam lado a lado até à cafetaria, interrogou­
-se se Maycomb estaria a planear-lhes o casamento para o outono
ou o inverno. Eu sou mesmo estranha, pensou. Não consigo ir para a
cama com um homem se não estiver em sintonia com ele. Neste instante,
nem sequer consigo conversar com o Hank. Não consigo conversar com o
meu mais velho amigo .
Sentaram-se frente a frente numa mesa, e Jean Louise exa­
minou o dispensador de guardanapos, o açucareiro, o saleiro e
o pimenteiro.
- Estás muito calada - comentou Henry. - Como é que
foi o café lá em casa?
- Horrível.
- A Hester foi?
- Foi. Tem mais ou menos a tua idade e a do Jem, não tem?
- Tem, éramos da mesma turma. O Bill disse-me esta manhã
que ela estava a arranjar-se toda para ir ao café.

1 98
- Hank, o Bill Sinclair deve ser um horror.
- Porquê?
- Todas aquelas patacoadas que ele lhe enfia na cabeça...
- Que patacoadas?
- Oh, os católicos e os comunistas e Deus sabe o que mais.
Parece que tudo aquilo se misturou na cabeça dela.
Henry riu-se e declarou: - Querida, o Sol nasce e põe-se por
causa do seu adorado Bill. Tudo o que ele diz é sagrado. Ela adora
o marido.
- É isso que é adorar o marido?
- Tem muito a ver com isso.
Jean Louise ripostou: - Ou seja, perder a nossa identidade, não é?
- De certo modo, sim - admitiu Henry.
- Então, duvido que me case alguma vez. Nunca encontrei um
homem...
- Vais casar-te comigo, lembras-te?
- Hank, o melhor é dizer já e acabar com o assunto: eu não
vou casar-me contigo. Ponto final parágrafo.
Não tinha sido sua intenção dizê-lo, mas não conseguira deixar
de o fazer.
- Já ouvi isso antes.
- Bom, o que te estou a dizer é que, se alguma vez quiseres
casar-te - era mesmo ela a falar? -, o melhor é começares à pro­
cura. Nunca estive apaixonada por ti, mas tu sempre soubeste que
eu gostava de ti. Pensei que podíamos ter um casamento numa base
dessas, mas...
- Mas o quê?
- Já nem sequer gosto de ti dessa forma. Magoei-te, mas está
dito. - Sim, aquilo era ela a falar, com a sua desenvoltura habitual,
a destroçar-lhe o coração no meio da cafetaria. Mas ele também lhe
destroçara o dela.
O rosto de Henry mostrou a sua perplexidade, ele corou, e a
sua cicatriz sobressaiu. - Jean Louise, não é isso que queres ºdizer,
por certo.
- É isto exatamente o que quero dizer.
Faz doer, não faz? Tens toda a razão, dói mesmo. Agora já sabes como é.

1 99
Henry pegou-lhe na mão por C1ma da mesa. Ela afastou-a.
- Não me toques - afirmou.
- Minha querida, o que se passa?
O que se passa? Eu digo-te o que se passa. E não vais ficar satisfeito.
- Muito bem, Hank. É tão simples quanto isto: eu estive
naquela reunião ontem. Eu vi-te e ao Atticus em toda a vossa
glória, àquela mesa com... com aquela escumalha, aquele homem
horroroso, e digo-te que fiquei agoniada. É só que o homem com
quem me ia casar, é só que o meu pai, ambos me puseram tão
agoniada que vomitei e ainda não parei! Como é que, em nome de
Deus, como é que pudeste? Como?
- Temos de fazer muitas coisas que não queremos, Jean Louise.
Ela enfureceu-se. - Que resposta é essa? Eu pensei que o tio
Jack tinha perdido o tino definitivamente, mas agora já não tenho
tanta certeza!
- Querida - começou ele. Fez deslizar o açucareiro para
o centro da mesa e em seguida empurrou-o para o seu lugar.
- Vê as coisas desta maneira. Tudo o que o conselho de cidadãos
de Maycomb representa não passa de... uma forma de protesto
contra o Supremo, uma espécie de aviso aos negros para não se
precipitarem, é...
- ... uma audiência feita à medida de qualquer escroque que
queira pôr-se de pé aos gritos de «escarumba» . Como é que podes
participar numa coisa daquelas?
Henry empurrou o açucareiro na direção dela e fê-lo deslizar para
trás. Ela tirou-lho da mão e colocou-o no canto com toda a força.
- Jean Louise, como já disse antes, temos de fazer. . .
- ... muitas coisas que não ...
- ... deixas-me terminar? ... que não queremos. Não, por favor,
deixa-me falar. Estou a tentar pensar em algo que possa demons­
trar-te o que quero dizer... sabes o que é o Klan... ?
- Sim, claro que sei.
- Então, cala-te um bocadinho. Há muito tempo, o Klan
era uma organização respeitável, como os maçons. Quase todos os
homens importantes eram membros na altura em que Mr. Finch
era novo. Sabias que Mr. Finch foi membro?

200
- Nada em que Mr. Finch possa ter participado me surpreende.
Logo vi...
- Jean Louise, cala-te! Mr. Finch gosta tão pouco do Klan
como a maioria das pessoas, e na altura também não gostava.
Sabes por que razão se tornou membro? Para descobrir quem eram
os homens da cidade atrás da máscara. Que homens eram, que pes­
soas eram. Foi a uma reunião, e chegou-lhe. Por acaso, o Feiticeiro
era o pregador metodista...
- É o tipo de companhia de que o Atticus gosta.
- Cala-te, Jean Louise. Estou a tentar fazer-te ver os motivos:
na altura, o Klan era uma força política, não queimavam cruzes,
mas o teu pai sentia-se e ainda se sente muito desconfortável ao pé
de pessoas que escondem a cara. Teve de saber com quem se iria
bater se chegasse a altura. .. teve de descobrir quem eles eram...
- Então, o meu estimado pai pertence ao Império Invisível.
- Jean Louise, isso foi há quarenta anos...
- Provavelmente, hoje já deve ser o Grande Dragão.
Henry proferiu no mesmo tom de voz: - Eu só estou a tentar
fazer-te ver os motivos que estão por trás dos atos de cada um. Um
homem pode parecer fazer parte de algo aparentemente não tão
bom, mas não o julgues a não ser que conheças os seus motivos.
Um homem pode estar a ferver por dentro, mas sabe que tem mais
resultados com uma resposta serena do que ao mostrar a sua raiva.
Um homem pode condenar os seus inimigos, mas é mais avisado
conhecê-los. Eu disse que por vezes temos de fazer...
Jean Louise interrompeu: - Estás a dizer que é melhor seguir
a multidão e depois, quando chegar a altura...
Henry travou-a: - Ouve, querida. Já pensaste que os homens,
especialmente os homens, têm de aceitar certas exigências da comu­
nidade em que vivem simplesmente para a poderem servir melhor?
»O condado de Maycomb é a minha terra, querida. É o melhor
sítio que conheço para viver. Desde a altura em que vim para aqui,
em criança, consegui alcançar um bom nome. Maycomb conhece­
-me, e eu conheço a cidade. Maycomb confia em mim, e eu confio
nela. Ganho o meu pão com esta cidade, e Maycomb tem-me dado
uma boa vida.

201
» A cidade, contudo, exige algumas coisas em troca: que levemos
uma vida decente, que sej amos membros do Clube Kiwanis, que
vamos à igreja ao domingo, que nos adaptemos aos seus costumes . . .
Henry examinou o saleiro, passando o polegar pelas ranhuras .
- Lembra-te disto, querida - continuou -, sempre tive de tra­
balhar que nem um cão para ter o que tenho. Trabalhei naquela
loja do outro lado da praça; a maioria das vezes , estava tão cansado
que mal conseguia acompanhar as aulas . No verão, trabalhava na
loja da minha mãe e, quando não estava lá a trabalhar, estava em
casa a arranjar o que era preciso. Jean Louise, desde criança que
tive de labutar muito para ter o que, para ti e para o ]em, era um
dado adquirido. Nunca tive algumas das coisas que vocês sempre
tiveram de mão beijada, nem nunca terei. Só posso recorrer a mim
próprio . . .
- Tal como todos nós, Hank.
- Não, não. Não aqui .
- O que queres dizer com isso?
- Quero simplesmente dizer que há coisas que fazes que eu não
posso fazer.
- E por que motivo sou assim tão privilegiada?
- És uma Finch.
- Sou uma Finch, sim. E então ?
- Então, podes pavonear-te pela cidade de calças, com a fralda
da camisa de fora e descalça, se te apetecer. E a cidade diz apenas :
« É uma Finch, é de família» , e Maycomb sorri e vai à sua vida:
a Scout 'Finch nunca muda. A cidade fica encantada e está perfei­
tamente pronta a aceitar que tenhas ido nadar no rio completa­
mente nua. «Não mudou nem um bocadinho » , diz-se. «A Jean
Louise de sempre. Lembram-se quando . . . ? »
Hank pousou o saleiro. - Mas se o Henry Clinton mostrar
quaisquer sinais de desvio à norma, Maycomb não diz: «É típico
do Clinton » , mas antes : «É o saloio a vir ao de cima. »
- Hank. Isso não é verdade, e sabe-lo bem . É inj usto e é mes­
quinho, mas além do mais não é verdade!
- Jean Louise, é verdade - contrapôs Henry com suavidade.
- O mais provável é nunca teres pensado nisso . . .

202
- Hank, deves ter alguma espécie de complexo.
- Não renho nada. Limito-me a conhecer a cidade . Não sou
nada suscetível em relação a isso, mas, Deus meu, estou perfeita­
mente consciente do facto. Maycomb diz-me que há certas coisas
que não posso fazer e outras que tenho de fazer se . . .
- Se quê ?
- Bom, querida, eu gostaria realmente de viver aqui , e gosto
das coisas de que os outros homens gostam . Quero manter o res­
peito que a cidade tem por mim, quero servi-la, quero ter nome
firmado enquanto advogado, quero fazer dinheiro, quero casar-me
e consti ruir família . . .
- Por essa ordem, suponho!
Jean Louise levantou-se da mesa e abandonou a cafetaria. Henry
apressou-se a segui-la. À porta, virou-se para trás e gritou que viria
pagar de imediato.
- Jean Louise, para!
Ela parou.
- Sim ?
- Querida, só estou a tentar fazer-te ver. . .
- E u vejo muito bem ! - exclamou. - Vejo um homenzinho
assustado; vejo um homenzinho com medo de não fazer o que
o Atticus lhe diz para fazer, com medo de não se aguentar sozinho
nas pernas , com medo de não se sentar entre os homens que se
prezam de o ser. . .
Ela começou a andar. Pensou que caminhava na direção do auto-
móvel, que j ulgou ter estacionado em frente ao escritório.
- Jean Louise, não te importas de esperar um minuto ?
- Está bem, eu espero.
- Disse-te que havia coisas que davas por adquiridas . . .
- Sim, c'os diabos, há muitas coisas que dava por adquiridas .
Aquilo de que gostava em ti . Admirava-te tanto porque tiveste de
te matar a trabalhar para teres o que tens . E pensei que havia mui­
tas outras coisas, mas é óbvio que não. Pensei que fosses corajoso,
pensei . . .
Continuou a caminhar pelo passeio, sem se aperceber de que May­
comb a observava, de que Henry ia a seu lado, lastimoso, ridículo.

203
- Jean Louise, ouves-me por favor?
- Porra, o que é?
-Só quero fazer-te uma pergunta, uma coisa, o que diabo
queres tu que eu faça? Diz-me, o que queres tu que eu faça?
- O que eu quero? Quero que fiques longe das reuniões do con­
selho de cidadãos! Estou-me nas tintas se o Atticus está do outro lado
da mesa, se o rei de Inglaterra está à tua direita ou o próprio Deus
à tua esquerda; quero que te portes como um homem, é só isso!
Inspirou fundo. - Eu... aguentas a maldita duma guerra, e isso
faz medo, mas tu aguentas firme. E depois voltas para casa para ter
medo o resto da vida: medo de Maycomb! Maycomb, no Alabama,
por amor do Cristo!
Tinham chegado à porta do escritório.
Henry agarrou-a pelos ombros. - Jean Louise, paras um
segundo? Por favor? Ouve-me. Sei que não sou grande coisa, mas
pensa um bocadinho. Por favor, pensa. Isto é a minha vida, esta
cidade, não percebes isso? C'os diabos, pertenço aos rascas do con­
dado de Maycomb, mas pertenço ao condado. Sou cobarde, sou
insignificante, não valho o suficiente para ser morto, mas esta é
a minha casa. O que queres que eu faça, que vá gritar aos quatro
ventos que sou Henry Clinton e estou aqui para dizer que estão
todos completamente errados? Eu tenho de viver aqui, Jean Louise.
Não entendes?
- O que eu entendo é que és um grande hipócrita.
- Estou a tentar fazer-te ver, querida, que te podes dar a luxos
a que eu não posso permitir-me. Tu podes gritar aos quatro ven­
tos, eu não. Como é que posso ser de utilidade a uma cidade se
ela está contra mim? Se eu saísse . . . ouve, tens de concordar que
tenho alguma instrução e algum grau de utilidade para Maycomb...
admites isso? Um operário não faz o que eu faço. Agora, vou deitar
tudo isso a perder, voltar para a loja a vender farinha às pessoas,
se posso ajudá-las com os conhecimentos de Direito que possuo?
O que é que vale mais?
- Henry, como é que consegues viver contigo próprio?
- É relativamente fácil. Só que às vezes não voto segundo as
minhas convicções.

2 04
- Hank, estamos em polos opostos . Não sei muito, mas sei
uma coisa. Sei que não consigo viver contigo. Não consigo viver
com um hipócrita.
Atrás dela, ouviu-se uma voz agradável e seca. - Não sei por­
quê. Os hipócritas têm tanto direito à vida como qualquer um .
Ela voltou-se e ficou a olhar o pai . Tinha o chapéu puxado para
trás , as sobrancelhas arqueadas, e sorria na sua direção.

205
17

- Hank - disse Atticus -, podias ir dar uma boa olhadela


às rosas da praça. A Estelle talvez te dê uma se lhe pedires com
jeitinho. Parece que eu fui a única pessoa que o fiz hoje.
Atticus levou a mão à lapela, onde prendera um botão vermelho
e fresco. Jean Louise olhou na direção da praça e viu Estelle, recor­
tada a negro contra o sol da tarde, a sachar firmemente as roseiras.
Henry estendeu a mão para Jean Louise, deixou-a cair e afastou-
-se sem uma palavra. Ela ficou a vê-lo atravessar a rua.
- Já sabia tudo isto sobre ele?
- Certamente que sim.
Atticus tratara-o como um filho, dera-lhe o amor que teria dado
a Jem. De súbito, ela apercebeu-se de que se encontravam no lugar
exato onde Jem morrera. O pai viu-a estremecer.
- Ainda está tudo aí, não está? - perguntou ele.
- Sim.
- Não é já tempo de ultrapassares a coisa? Enterra os teus
mortos, Jean Louise.
- Não quero discutir isso. Quero falar de outra coisa.
- Então, vamos até ao escritório.
O escritório do pai fora sempre uma fonte de refúgio. Era amis­
toso, um lugar onde, mesmo que os problemas não desaparecessem,
se tornavam suportáveis. Perguntou-se se os compêndios, ficheiros
e objetos vários que via sobre a secretária seriam os mesmos de
quando entrava ali a correr, sem fôlego, desesperada por um cone
de gelado, e lhe pedia um níquel. Conseguia vê-lo a dar uma volta

206
na cadeira giratória e a esticar as pernas. Enfiava a mão no fundo
do bolso, tirava de lá uma mão-cheia de trocos, de onde escolhia
um níquel especial para ela. A sua porta nunca estava fechada para
os filhos.
Atticus sentou-se devagar e girou a cadeira na direção dela. Jean
Louise viu um lampejo de dor cruzar-lhe o rosto e desaparecer.
- Sabia tudo aquilo sobre o Hank?
- Sim.
- Não compreendo os homens.
- Bem, a alguns homens que aldrabam as mulheres no
dinheiro da mercearia não lhes passaria pela cabeça aldrabar o mer­
ceeiro. Os homens tendem a compartimentar a honestidade, Jean
Louise. Podem ser perfeitamente honestos em certas questões e
intrujarem noutras. Não sejas tão dura para com o Hank, ele está
a revelar melhorias. O Jack contou-me que estás irritada com uma
coisa qualquer.
- O Jack contou-lhe. . .
- Telefonou há um bocado e disse, entre outras coisas, que, se
não estivesses já pronta para a guerra, em breve estarias. Pelo que
ouvi, já estás.
Muito bem. O tio Jack contara-lhe. Estava já acostumada a que
a família a abandonasse, um a um. O tio era a última gota, que fos­
sem todos para o diabo. Muito bem, ia contar-lhe. Contava-lhe
e ia-se embora. Não ia discutir com ele, era inútil. Ele ganhava­
-lhe sempre. Nunca ganhara uma discussão com o pai em toda
a sua vida e não tencionava tentar agora.
- Sim, senhor, estou irritada com uma coisa. Aquele conselho
de cidadãos a que o senhor pertence. Acho que mete nojo e digo­
-lhe isso na cara.
O pai recostou-se na cadeira. Respondeu: - Jean Louise, não
tens lido mais nada para além dos jornais de Nova Iorque. Não
me restam dúvidas de que só consegues ver ameaças desvairadas
e ataques à bomba e coisas assim. O conselho de Maycomb não é
como os do Alabama do Norte e do Tennessee. O nosso é composto
e dirigido por gente nossa. Aposto que ontem viste quase todos os
homens do condado e que os conhecias a quase todos.

207
- Sim, senhor, é verdade. Todos os homens, desde aquela
víbora do Willoughby para baixo.
- É provável que cada um deles estivesse lá por uma razão
diferente - disse o pai.
«Jamais uma guerra foi travada por tantas razões diferentes. » Quem
dissera aquilo? - Sim, mas reuniram-se todos por uma única razão.
- Posso dizer-te as duas razões que me levaram lá. O governo
federal e a NAACP. Jean Louise, qual foi a tua primeira reação
à decisão do Supremo Tribunal4º?
Era uma questão segura a que ela ia responder.
- Fiquei furiosa - afirmou.
E ficara. Sabia que a decisão estava prestes a sair, sabia o que
iria dizer, pensara estar preparada, mas quando comprou um jornal
na esquina da rua e a leu, parou no primeiro bar que encontrou
e emborcou um uísque puro.
- Porquê?
- Bem, pai, ali estavam eles a dizerem-nos outra vez como
agir. . .
O pai abriu um grande sorriso. - Limitaste-te a reagir de acor­
do com a tua gente - afirmou ele. - Quando começaste a usar
a cabeça, o que é que pensaste?
- Nada de especial, mas fiquei assustada. Pareceu-me tudo às
avessas, estavam a pôr a carroça muito à frente dos bois.
- Como assim?
Ele estava a espicaçá-la. Não fazia mal, pisavam terreno seguro.
- Bom, ao tentar cumprir uma emenda, parece que apagaram
outra, a décima. É apenas uma pequena emenda, só tem uma frase,
mas parecia ser a que mais significado tinha.
- Chegaste a essa conclusão sozinha?
- Bem, sim, Atticus. Não percebo nada da Constituição . . .
- Até aqui pareces muito conhecedora. Continua.

40
Referência à famosa decisão «B rown v. Board of Educatio n » que obrigou
os estados a aplicarem a i ntegração racial nas escolas . Foi passada em 1 9 5 4 ,
tendo sido seguida por outras q u e enfatizavam o poder do Supremo Tribunal
sobre as decisões dos estados e que causaram grande descontentamento e agita­
ção em muitos estados sulistas . (NT)

208
Continuar o quê? Dizer-lhe que não conseguia olhá-lo de frente?
Se o pai queria a opinião dela sobre a Constituição, iria tê-la:
- Bem, pareceu-me que, para satisfazer as verdadeiras neces­
sidades de uma pequena parte da população, o Supremo estabe­
leceu algo horrível que pode . . . que pode afetar a grande maioria das
pessoas. Adversamente, quero dizer. Atticus, não percebo nada
do assunto. . . tudo o que temos entre nós e o que algum esper­
talhão quiser começar é a Constituição, e o Supremo foi e cance­
lou alegremente uma emenda inteira, pareceu-me a mim. Temos
um sistema de controlo e equilíbrio e coisas dessas, mas no fundo
não temos muito controlo sobre o Supremo Tribunal, portanto
quem é que assume a responsabilidade? Oh, meu Deus, pareço o
Actors Studio.
- O quê?
- Nada. Estou só a tentar dizer que, ao tentarmos agir bem,
deixámos a porta entreaberta para algo que pode ser verdadeira­
mente perigoso para a nossa forma de organização.
Passou os dedos pelo cabelo e olhou as filas de livros encader­
nados a preto e castanho, relatórios de leis, na parede em frente.
Olhou uma fotografia desbotada dos Nove Velhos4 1 na parede à
sua esquerda. O Roberts já terá morrido? Não se conseguia lembrar.
A voz do pai era paciente: - Estavas a dizer . . .
- Sim, pai . Estava a dizer que . . . que não sei muito de governo,
economia e coisas dessas, e não quero saber muito, mas sei que o
governo federal, para mim, para um pequeno cidadão, representa
principalmente corredores desoladores e longas esperas. Quanto
mais temos, mais esperamos e mais cansados ficamos. Aqueles
velhadas ali na parede sabiam-no, mas agora, em vez de se tratar da
coisa através do Congresso e das assembleias legislativas estaduais,
como devia ser, quando tentámos agir bem só lhes facilitámos
a tarefa de criar mais corredores e mais esperas. . .
O pai endireitou-se e riu-se.
- Bem te disse que não percebia nada do assunto.

41
Referência aos juízes do Supremo Tribunal, assim designados por Roose­
velt. (NT)

209
- Querida, és uma tão grande defensora dos direitos dos esta­
dos que fazes de mim um liberal à moda do Roosevelt em com­
paração.
- Defensora dos direitos dos estados?
Atticus prosseguiu: - Agora que já afinei o ouvido ao racio­
cínio feminino, acho que damos connosco a acreditar nas mes­
mas c01sas.
Quase lhe apetecera passar uma esponja sobre o que vira e
ouvira, regressar de mansinho a Nova Iorque e fazer dele uma
memória. Uma recordação dos três, Atticus, ]em e ela, quando as
coisas eram simples e as pessoas não mentiam. Mas não iria per­
mitir-lhe que tornasse o crime ainda mais grave. Não podia permi­
tir que a hipocrisia dele o agravasse.
- Atticus, se acredita em tudo isso, então por que motivo não
age corretamente? O que quero dizer é que, por mais odioso que
o Supremo fosse, tinha de haver um início...
- Queres dizer que temos de aceitar porque o Supremo assim
decretou? Não, menina. Não vejo a coisa assim. Se pensas que eu,
enquanto cidadão, vou aceitar sem protestar, estás muito enganada.
Como dizes, Jean Louise, neste país só há uma coisa acima do
Supremo que é a Constituição. . .
- Atticus, estamos a falar d e coisas diferentes.
- Estás a esquivar-te a qualquer coisa. A quê?
A torre negra. «Childe Roland à torre negra chegou. » Literatura
do liceu. O tio Jack. Já me lembrei.
- A quê? Estou a tentar dizer que não aprovo a forma como
o fizeram, que fico com um medo de morte ao pensar nisso, mas
eles tinham de o fazer. Foi-lhes enfiado debaixo do nariz, e eles
tinham de o fazer. Atticus, chegou a altura em que temos de agir
corretamente...
- Agir corretamente?
- Sim, senhor. Dar-lhes uma hipótese.
- Aos negros? Achas que não têm hipóteses?
- Bom, não, pai.
- O que é que impede qualquer negro deste país de ir para
onde quiser e de alcançar os seus objetivos?

210
- Isso é uma pergunta viciada, e o senhor sabe-o muito bem!
Estou tão farta desta duplicidade moral que podia...
Ele atingira-a, e ela mostrara-lhe que ficara magoada, mas fora
mais forte do que ela.
O pai pegou num lápis e bateu com ele na secretária. - Jean
Louise - disse -, já alguma vez pensaste que não podes ter um
grupo de gente atrasada a viver entre gente avançada numa certa
sociedade e ter um paraíso social?
- Está a deturpar o que eu disse, Atticus, portanto vamos pôr
a sociologia de parte por um momento. É claro que eu sei isso, mas
uma vez ouvi uma coisa. Ouvi um slogan que me ficou gravado
na cabeça. Ouvi «Direitos iguais para todos, privilégios especiais
para ninguém» , e, para mim, esse slogan significava exatamente
isso. Não significava uma carta do cimo do baralho para o homem
branco e outra do fundo para o negro, significava.. .
- Vamos ver as coisas desta forma - interrompeu-a o pai -,
sabes que a nossa população negra é atrasada, não sabes? Admites
isso'? Percebes todas as implicações da palavra «atrasada» , certo?
- Sim, pai.
- Sabes que a grande maioria deles aqui no Sul é incapaz de
partilhar plenamente as responsabilidades da cidadania e qual
o motivo disso?
- Sim, pai.
- Mas queres que tenham todos os privilégios?
- Com os diabos, o senhor está a distorcer tudo!
- Não vale a pena praguejar. Pensa bem, o condado de Abbott,
do outro lado do rio, está cheio de problemas. Três quartos da
população é negra. O número de votantes é agora praticamente
metade metade, por causa daquela grande escola de formação de
professores. Se esse equilíbrio fosse alterado, que teríamos? O con­
dado não mantém um recenseamento completo, porque se o voto
dos negros ultrapassasse o dos brancos, teríamos negros em todos
os serviços públicos do condado . . .
- O que é que o faz ter tanta certeza?
- Querida - disse o pai -, usa a cabeça. Quando eles votam,
votam em bloco.

211
- Atticus, parece aquele editor que mandou um artista seu
cobrir a Guerra Hispano-Americana. « Tu desenhas, eu faço a
guerra. » O senhor é tão cínico como ele.
- Jean Louise, estou só a tentar dizer-te umas certas verdades.
Tens de ver as coisas como elas são, não apenas como deviam ser.
- Então, por que razão não mas mostrou como são quando
eu me sentava ao seu colo? Por que razão não me mostrou, por que
razão não teve cuidado, ao ler-me pedaços de história e de coisas que
eu pensava que significavam alguma coisa para si, que havia uma
cerca em volta de tudo que ostentava o aviso «Só para brancos» ?
- Estás a ser incoerente - respondeu o pai calmamente.
- Como?
- Insultas violentamente o Supremo Tribunal e depois dás uma
reviravolta e falas como se pertencesses ao NAACP.
- Santo Deus, não me irritei com o Supremo por causa dos
negros. É verdade que eles conseguiram dar a volta ao processo,
mas não foi isso que me enfureceu. Fiquei furiosa com o que
estavam a fazer à décima emenda e com todo o raciocínio vago e
confuso. Os negros estavam...
«O que foi acidental na questão desta guerra... também o é na
tua guerra privada. »
- Agora pertences à NAACP, com cartão e tudo?
- Por que razão nunca me bateu? Por amor de Deus, Atticus!
O pai suspirou, e as rugas em volta da boca acentuaram-se. As
mãos, com as articulações inchadas, mexiam desajeitadamente no
lápis amarelo.
- Jean Louise - disse ele -, deixa-me dizer-te já uma coisa,
tão claramente quanto me for possível. Sou antiquado, mas acredito
nisto do fundo do coração. Sou uma espécie de democrata à moda
do Jefferson. Sabes o que isso significa?
- Hum, pensei que o pai votara no Eisenhower. Pensei que
o Jefferson era uma das grandes almas do Partido Democrata ou
. .
coisa assim.
- Volta para a escola - aconselhou-a o pai. - Hoje em dia,
tudo o que o Partido Democrata tem a ver com o Jefferson é o facto
de pendurar a fotografia dele nos banquetes. O Jefferson acreditava

212
que uma cidadania plena era um privilégio que cada homem tinha
de ganhar, que não era uma coisa dada nem aceite de ânimo leve.
Um homem não podia votar só por ser um homem, aos olhos do
Jefferson. Para ele, um voto era um privilégio precioso que se con­
quistava numa economia de livre iniciativa.
- Atticus, está a reescrever a História.
- Não, não estou nada. Talvez te seja benéfico ires ler de novo
aquilo em que alguns dos nossos Pais Fundadores realmente acre­
ditavam, em vez de confiares tanto naquilo que te dizem agora ter
sido as suas convicções.
- Talvez o senhor pense como o Jefferson, mas não é um de-
mocrata.
- O Jefferson também não era.
- Então, como se define, é um snobe ou coisa parecida?
- Sim, aceito essa designação no que diz respeito ao governo.
Gostaria muito que me deixassem em paz para tratar dos meus
assuntos numa economia de livre iniciativa, gostava que deixassem
o meu estado em paz para que pudesse tomar as suas próprias deci­
sões sem os conselhos da NAACP, que não sabe basicamente nada
das nossas questões e muito menos se importa. Essa organização
causou mais problemas nos últimos cinco anos. . .
- Atticus, a NAACP não foi responsável nem por metade do
que vi nos últimos dois dias. Nós é que somos.
- Nós?
- Sim, pai , nós. Será que, no meio de todas as discussões e dis-
cursos inflamados sobre os direitos dos estados e sobre que governo
devemos ter, será que alguém pensou em ajudar os negros?
» Perdemos o comboio , Atticus. Pusemo-nos a descansar e
deixámos a NAACP entrar porque estávamos tão fulos com
o que sabíamos que o Supremo ia fazer, tão fulos com o que fez,
que começámos naturalmente a gritar contra os pretos. Vingámo­
-nos neles, porque estávamos ressentidos com o governo.
» Quando a decisão surgiu, não cedemos um milímetro, em vez
disso fugimos em debandada. Quando devíamos ter tentado ajudá­
-los a viver com a decisão, foi como a retirada de Napoleão de tão
depressa que fugimos. Acho que foi a única vez na nossa história

213
que o fizemos e, nesse momento, perdemos. Para onde podiam eles
ir? Para quem se podiam virar? Acho que merecemos tudo e mais
alguma coisa que a NAACP nos fez.
- Acho que não estás a falar a sério.
- Estou a falar o mais sério possível.
- Então, vamos pôr isto numa base prática. Queres carradas de
negros nas nossas escolas, nas nossas igrejas e nos nossos cinemas?
Quere-los no nosso mundo?
- São pessoas, não são? Não tivemos quaisquer problemas em
os obrigar a vir quando nos faziam ganhar dinheiro.
- Queres que os teus filhos frequentem uma escola que teve de
baixar de nível para se ajustar às crianças negras?
- O nível académico daquela escola ali ao fundo da rua não
podia ser mais baixo, Atticus, e o pai sabe isso muito bem. Eles
têm direito às mesmas oportunidades de todos os outros, têm
direito às mesmas hipóteses . . .
O pai clareou a garganta. - Escuta, Scout, estás irritada porque
me viste fazer uma coisa que achas que está errada, mas eu estou
a tentar fazer-te compreender a minha posição. A tentar desespe­
radamente. Isto é apenas para tua informação, mais nada: até agora,
na minha experiência, branco é branco e preto é preto. Até agora,
nunca ouvi nenhum argumento que me convencesse do contrário.
Tenho setenta e dois anos, mas continuo aberto a sugestões.
»Ora pensa lá no seguinte: que aconteceria se a todos os negros
do Sul fossem concedidos de repente direitos civis plenos? Eu
digo-te. Haveria outra Reconstrução4 2 • Gostavas que os gover­
nos dos estados fossem dirigidos por pessoas que não o sabem
fazer? Gostavas que esta cidade fosse dirigida por. . . espera lá um
pouco, o Willoughby é um vigarista, sabemo-lo muito bem, mas
conheces algum negro que saiba tanto como ele? O Zeebo seria
provavelmente mayor de Maycomb. Gostavas que alguém com as
capacidades dele controlasse os dinheiros da cidade? Nós estamos
em desvantagem numérica, sabes.
42
Referência ao período que sucedeu à Guerra Civil, entre 1 86 5 e 1 87 7 ,
q u e forçou os estados do Sul, totalmente devastados, a cumprir as decisões do
Congresso a fim de poderem recuperar os seus direitos constitucionais. (NT)

214
»Querida, parece que não compreendes que os negros aqui
no Sul estão ainda na infância enquanto povo. Devias sabê-lo,
observaste-lo toda a vida. Fizeram um progresso enorme para se
adaptarem ao modo de vida dos brancos, mas estão ainda muito
longe. Vão no bom caminho, estão a avançar a um ritmo que
conseguem acompanhar, há cada vez mais negros a votar. Então,
chega a NAACP com as suas exigências fantásticas e as suas ideias
de governo de segunda. Consegues culpar o Sul por levar a mal que
lhe digam o que fazer em relação à sua própria gente por pessoas
que não fazem ideia dos seus problemas diários?
»A NAACP não quer saber se um negro é dono da sua terra
ou se a arrenda, se é bom agricultor, se tenta ou não aprender
um ofício e se consegue ser independente, não, a NAACP só se
interessa por uma coisa, o voto desse homem.
» Portanto, podes culpar o Sul por querer resistir a uma invasão
da parte de gente que tem aparentemente tanta vergonha da sua
raça que se quer livrar dela?
»Como é que podes ter crescido aqui, ter tido o tipo de vida
que tiveste e só veres alguém a espezinhar a décima emenda ?
Jean Louise, eles estão a tentar dar cabo de nós . . . Por onde tens
andado?
- Aqui mesmo, em Maycomb.
- Que queres dizer?
- Quero dizer que cresci na sua casa e nunca soube o que
lhe ia na cabeça. Só ouvia o que o pai dizia. Esqueceu-se de me
dizer que nós éramos naturalmente melhores que os negros, aben­
çoadas sejam as suas carapinhas, que eles conseguiam chegar a um
certo ponto mas não iam mais longe, esqueceu-se de me dizer o
que Mr. O'Hanlon me disse ontem. Era o senhor a falar, mas deixou
Mr. O'Hanlon dizer as palavras. O pai é um cobarde e um snobe
e é também um tirano. Quando falava de justiça, esqueceu-se de
dizer que a justiça é algo que nada tem a ver com as pessoas . . .
»Ouvi-o falar do filho do Zeebo esta manhã . . . não tem nada
a ver com a nossa Calpurnia e no que ela significa para nós e
como nos foi fiel. Só viu um preto, só viu a NAACP, comparou as
equidades, não foi?

2 15
»Lembro-me daquele caso de violação que o pai defendeu,
mas não o entendi. Gosta de justiça, muito bem. De uma justiça
abstrata, anotada item a item numa peça processual. O caso dele
interferia com a sua mente metódica, e tinha de fazer prevalecer a
ordem sobre a desordem. É uma espécie de vício, e agora começa
a aperceber-se . ..
Jean Louise levantara-se e agarrara as costas da cadeira.
- Atticus, estou a atirá-lo à sua cara e vou esfregar bem:
é melhor ir avisar os seus amigos mais novos de que, se quiserem
preservar o «nosso modo de vida» , isso começa em casa. Não começa
nas escolas nem nas igrejas nem noutro lugar qualquer, começa em
casa. Diga-lhes, e use a sua filha, cega, imoral, equivocada e amiga
dos pretos, como exemplo. Caminhe à minha frente com um sino e
proclame-me «impura» . Aponte-me como um erro seu. Exiba-me:
Jean Louise Finch, que foi exposta a todo o tipo de patacoadas da
escumalha branca com quem andou na escola, escola essa que teve
tão pouca influência nela que mais valia não a ter frequentado.
Tudo o que era sagrado para ela aprendeu-o em casa com o pai.
Foi o senhor quem semeou em mim as sementes, Atticus, e agora
está a aperceber-se . . .
- Já terminaste o que querias dizer?
Ela riu-se com desdém. - Nem cheguei a meio. Nunca lhe
perdoarei pelo que me fez. Enganou-me, obrigou-me a sair da
minha casa e agora vivo numa terra de ninguém, mas ainda bem,
em Maycomb já não há lugar para mim, e nunca me sentirei com­
pletamente à vontade em mais lugar nenhum.
Falhou-lhe a voz. - Por que razão, santo Deus, não voltou a
casar? Com uma sulista simpática e burra que me teria educado
como devia ser? Que me teria transformado numa menina afetada e
fingida, bem ao gosto do Sul, que pestaneja, cruza as mãos e só vive
para o seu querido maridinho. Pelo menos, eu teria sido feliz. Teria
sido uma rapariga típica, cem por cento Maycomb. Teria vivido
a minha vidinha e ter-lhe-ia dado netos para o senhor idolatrar.
Teria engordado como a tia, abanava-me com o leque no alpendre
da frente e morria feliz. Por que razão não me ensinou a diferença
entre justiça e justiça e cerro e certo? Por que razão não o fez?

216
- Não achei que fosse necessário, e mantenho a minha opinião.
- Bom, era necessário, e o senhor sabe-o muito bem. Meu
Deus ! E por falar em Deus, por que razão não me explicou clara­
mente que Deus fez as raças e pôs os negros em África com a inten­
ção de os manter lá, para os missionários poderem lá ir dizer-lhes
que Jesus os amava mas que o lugar deles era lá? Que o facto de
os termos trazido para aqui foi_ um erro horrível, e que, portanto,
a culpa é deles? Que Jesus amava toda a humanidade, mas que exis­
tem diferentes tipos de homem, encurralados nas suas diferentes
cercas, e que Jesus queria que cada homem avançasse apenas até
onde a sua cerca lhe permitisse . . .
- Jean Louise, desce à terra.
Ele disse aquilo tão naturalmente que ela se interrompeu.
A vaga de acusações da filha abatera-se sobre ele, mas Atticus
continuou ali sentado. Recusava zangar-se. Algures no seu íntimo,
Jean Louise sentia que não era uma senhora, mas nenhum poder
terreno impediria o pai de não ser um cavalheiro. Algo dentro dela
impelia-a a continuar:
- Muito bem, vou descer à terra. Vou aterrar na nossa sala
de estar e vou ter consigo. Acreditava em si . Venerava-o, Atticus,
como nunca venerei ninguém na minha vida nem voltarei a fazer.
Se, ao menos, me tivesse dado uma dica, se tivesse faltado à sua
palavra uma ou duas vezes, se se tivesse mostrado maldisposto
ou impaciente comigo, se tivesse sido um homem menor, talvez
eu fosse capaz de engolir o que o vi fazer. Se ocasionalmente me
tivesse deixado apanhá-lo numa infâmia qualquer, então eu teria
compreendido o dia de ontem. Teria pensado é assim que ele é,
é mesmo típico do meu velho, porque me teria preparado a tempo...
A compaixão, quase uma súplica, invadira o rosto do pai.
- Parece que pensas que estou envolvido em algo decididamente
mau - disse ele. - O conselho é a nossa única defesa, Jean Louise ...
- Será Mr. O'Hanlon a nossa única defesa?
- Querida, fico contente por te dizer que Mr. O'Hanlon não
é um membro típico do condado de Maycomb. Espero que tenhas
reparado na brevidade com que o apresentei.
- Foi bastante sucinto, mas, Atticus, aquele homem...

217
- Mr. O'Hanlon não é preconceituoso, Jean Louise, é um
sádico.
- Então, por que motivo o deixaram falar?
- Porque ele quis.
- Diga?
- Oh, sim - disse o pai num tom vago. - Ele viaja pelo
estado a fazer discursos nos conselhos de cidadãos. Pediu autori­
zação para falar no nosso, e nós concedemo-la. Até acho que ele é
pago por uma organização qualquer do Massachusetts...
O pai girou a cadeira e ficou a olhar pela janela. - Tenho estado
a tentar mostrar-te que pelo menos o conselho de Maycomb é sim­
plesmente um método de defesa contra...
- Defesa, o tanas! Atticus, agora não se trata da Constitui­
ção. Estou a tentar fazê-lo ver uma coisa. Bom, o pai trata toda
a gente da mesma maneira. Nunca o vi usar aquele tratamento
insolente e desdenhoso que metade dos brancos aqui usa com os
negros quando se dirigem a eles, quando os mandam fazer uma
coisa qualquer. Ao falar com eles, não se nota na sua voz qualquer
desprezo.
»No entanto, ergue a mão na frente deles, enquanto povo, e diz:
«Parem aí. Não podem ir mais longe! »
- Pensei que tínhamos concordado que...
A voz dela escorria de sarcasmo. - Concordámos que são atra­
sados, analfabetos, porcos, absurdos, indolentes e sem préstimo, são
crianças e são estúpidos, alguns, mas não concordámos numa única
coisa e nunca concordaremos. O pai nega que são humanos.
- Como assim?
- Nega-lhes a esperança. Atticus, neste mundo, todos os
homens com cabeça, tronco e membros nasceram com a esperança
no coração. Isso o senhor não encontra na Constituição, aprendi-o
na igreja. Na sua maioria, os negros são pessoas simples, mas tal
não faz deles sub-humanos.
» O senhor diz-me que Jesus os ama, mas não muito. Utiliza
meios terríveis para justificar os fins que pensa serem para o
bem da maioria. Talvez os seus fins estejam certos, acho que eu
própria acredito neles, mas não pode usar as pessoas como peões,

218
Atticus. Não pode. O Hitler e a malta da Rússia fizeram umas
belas coisas pelos seus países e massacraram dezenas de milhões. . .
Atticus sorriu. - O Hitler, hem?
- O senhor não é melhor. Nem um pedacinho. Só que tenta
matar-lhes as almas em vez dos corpos. Tenta dizer-lhes: «Escutem,
sejam bonzinhos. Portem-se bem. Se forem bons e nos obede­
cerem, conseguem muito da vida, mas, se nos desobedecerem, não
vos damos nada e tiramos-vos o que já vos demos. »
» Bem sei que tem de se ir devagar, Atticus, sei isso muito bem.

Mas sei que tem de ser feito. Pergunto-me o que aconteceria se


o Sul tivesse uma «Semana da Bondade · com os Pretos » . Se,
só por uma semana, o Sul lhes dispensasse uma cortesia simples e
imparcial. Gostava de saber o que aconteceria. Acha que ficavam
com ar de superioridade ou um princípio de respeito por si
próprios? Alguma vez desdenharam de si, Atticus? Sabe qual é a
sensação? Não, não me diga que eles são infantis e não o sentem,
eu era criança e senti-o, portanto as crianças grandes também o
devem sentir. Um bom insulto, Atticus, faz com que se sinta tão
ascoroso que não é digno da companhia das pessoas. O facto de eles
serem tão bons como são é para mim um mistério, após um século
a negarmos sistematicamente a sua humanidade. Pergunto-me que
tipo de milagre produziríamos com uma semana de decência.
» Não valia a pena ter dito nada disto, porque sei que não cede

um milímetro nem agora nem nunca. Enganou-me de uma forma


inexprimível, mas não se preocupe, porque eu é que fiz figura de
parva. O pai é a única pessoa em quem confiei inteiramente, e agora
estou liquidada.
- Matei-te, Scout. Teve de ser.
- Não me venha com mais conversa fiada! O senhor é um velho
cavalheiro simpático e querido, e eu nunca mais acreditarei numa
única palavra sua. Desprezo-o e a tudo o que o senhor representa.
- Bem, eu amo-te.
- Não se atreva a dizer-me isso! Com que então, ama-me!
Atticus, vou-me embora daqui o mais depressa possível, não sei
para onde vou, mas vou. Nunca mais quero ver um Finch nem
ouvir falar de nenhum pelo resto da minha vida!

219
- Como queiras.
- Seu hipócrita, seu sacana de um filho da mãe! Fica aí sentado
a dizer «Como queiras» quando deu cabo de mim, me espezinhou
e me cuspiu em cima, e fica aí sentado a dizer «Como queiras»
quando tudo o que eu amava neste mundo . . . fica aí sentado a dizer
«Como queiras» e «amo-te» ! Seu filho da mãe!
- Já chega, Jean Louise.
«Já chega» , as palavras que o pai costumava usar para a pôr na
ordem nos tempos em que ela acreditava nele. Portanto, ele mata-me
e distorce a coisa. . . como é que ele pode escarnecer assim de mim? Como é
que pode tratar-me assim? Deus do céu, levai-me daqui. . . Deus do céu,
levai-me daqui.

220
P A RTE V I I
18

Nunca soube como pôs o automóvel a trabalhar, como o con­


seguiu manter na estrada, como chegou a casa sem ter um aci­
dente grave.
«Eu amo-te. Como queiras. » Se o pai não tivesse dito aquilo,
ela poderia ter sobrevivido. Se ele tivesse travado um combate leal,
ela poderia ter-lhe arremessado as suas próprias palavras, mas Jean
Louise não conseguia apanhar mercúrio e segurá-lo nas mãos.
Foi até ao quarto e atirou a mala para cima da cama. Nasci aqui
mesmo, onde a mala está. Por que motivo não me estrangulaste então? Por
que motivo me deixaste viver tanto tempo?
- Jean Louise, que estás a fazer?
- A mala, tia.
Alexandra aproximou-se da cama. - Ainda tens mais dez dias.
Passa-se alguma coisa?
- Tia, deixe-me em paz, por amor do Cristo!
Alexandra esboçou um trejeito, melindrada. - Agradeço que,
aqui em casa, não uses expressões ianques dessas! O que foi?
Jean Louise dirigiu-se ao roupeiro, arrancou os vestidos dos
cabides, voltou à cama e enfiou-os à força na mala.
- Isso não são maneiras de fazer uma mala - observou Ale­
xandra.
- São as minhas.
Em seguida, pegou nos sapatos que estavam ao lado da cama
e atirou-os para cima dos vestidos.
- O que foi, Jean Louise?

223
- Tia, pode emitir um comunicado anunciando que vou para
tão longe do condado de Maycomb que me levava u�s cem anos
para voltar! Nunca mais quero ver esta cidade nem ninguém que
cá viva, e isso inclui todos vocês, o homem da funerária, o juiz das
sucessões e o presidente do conselho da igreja metodista!
- Tiveste uma discussão com o Atticus, não foi?
- Foi.
Alexandra sentou-se na cama e entrelaçou os dedos. - Jean
Louise, não sei do que se trata e, pela maneira como estás, deve ter
sido sério, mas há uma coisa que eu sei. Os Pinches não fogem.
Virou-se para a tia. - J esus Cristo, não me venha dizer
o que um Finch faz ou não faz! Estou por aqui com o que os
Pinches fazem e já não aguento nem mais um segundo! Andou­
-me a meter coisas na cabeça desde que nasci: o teu pai isto, os
Pinches aquilo! O meu pai é inqualificável, e o tio Jack parece
a Alice no País das Maravilhas! E a tia, a tia é uma velha pom­
posa, tacanha. . . _
Jean Louise parou, fascinada pelas lágrimas que desciam pela
face de Alexandra. Nunca vira a tia chorar, e, quando chorava,
ficava igual às outras pessoas.
- Tia, por favor, desculpe-me. Por favor, diga que sim. .. isto
foi um golpe baixo.
Os dedos de Alexandra puxavam rosetas de croché da colcha da
cama. - Não faz mal. Não te preocupes.
Jean Louise deu-lhe um beijo na face. - Eu hoje não estou
nos meus dias. Acho que, quando nos magoam, o nosso primeiro
instinto é ripostar. Não sou uma grande senhora, mas a tia é.
- Enganas-te, Jean Louise, se pensas que não és uma senhora ­
afirmou Alexandra, enxugando os olhos. - Mas, às vezes, és bas­
tante estranha.
Jean Louise fechou a mala. - Tia, continue a pensar que sou
uma senhora, só mais um bocadinho, até às cinco, quando o Atticus
chegar a casa. Depois, vai ver que não. Bem, adeus.
Transportava a mala até ao automóvel quando viu o único
táxi só para brancos da cidade a chegar e a depositar o Dr. Finch
no passeio.

224
« Vem ter comigo. Quando não aguentares, tens de vir ter
comigo. » Bom, eu já não o aguento mais. Não aguento as suas parábolas
e as suas hesitações. Deixe-me em paz. É divertido e é um amor e tudo isso,
mas, por favor, deixe-me em paz.
Pelo canto do olho, observou o tio virar calmamente para o
acesso à garagem. Para um homem tão pequeno, ele dá uns passos tão
grandes, ocorreu-lhe. É uma das coisas de que me vou lembrar. Virou­
-se e enfiou uma chave na fechadura do porta-bagagens, mas era
a chave errada, e tentou outra. Abriu o fecho e levantou a tampa.
- Vais a algum sítio?
- Sim, senhor.
- Aonde?
- Vou de carro até ao ramal de Maycomb e fico lá sentada até
vir um comboio e meto-me nele. Diga ao Atticus para mandar
lá ir buscar o carro se quiser.
- Para de sentir pena de ti própria e ouve-me.
- Tio Jack, estou tão farta de vos ouvir a todos que sou capaz
de me pôr aos gritos! Deixam-me em paz? Não podem largar-me
da mão por um momento?
Bateu com a tampa do porta-bagagens com toda a força, tirou
a chave e endireitou-se, levando uma estalada em cheio na boca,
um golpe feroz e inesperado do Dr. Finch.
A cabeça foi violentamente atirada para a esquerda e apanhou
um novo golpe da mesma mão brutal. Tropeçou e tateou à procura
do automóvel para se equilibrar. Distinguiu o rosto do tio a cintilar
entre uma miríade de luzinhas que lhe bailavam à frente dos olhos.
- Estou a tentar chamar-te à atenção.
Ela premiu os dedos sobre os olhos, as têmporas, os lados da
cabeça. Lutou para não desmaiar, para não vomitar, para que a
cabeça deixasse de andar à roda. Sentiu o sangue a brotar dos dentes
e cuspiu para o chão sem conseguir ver. Pouco a pouco, as vibrações
foram-se atenuando, e os ouvidos deixaram de tinir.
- Abre os olhos, Jean Louise.
Pestanejou diversas vezes, e a imagem do tio focou-se por fim.
A bengala aninhava-se no braço esquerdo; o colete estava ima­
culado; e na lapela ostentava um botão de rosa vermelho.

22 5
Estendia-lhe um lenço. Pegou nele e limpou a boca. Sentia-se
exausta.
- E esse furor todo, já se esvaiu?
Ela assentiu. - Já não consigo bater-me com eles - con­
fessou.
O Dr. Finch levou-a pelo braço. - Mas também não consegues
juntares-te a eles, pois não? - sussurrou.
Ela sentia a boca a inchar e falou com dificuldade. - Quase me
pôs inconsciente. Estou tão cansada.
Em silêncio, o tio conduziu-a a casa, pelo átrio, até à casa de
banho. Sentou-a na borda da banheira, foi ao armário dos medi­
camentos e abriu-o. Pôs os óculos, inclinou a cabeça para trás e
retirou um frasco da prateleira de cima. Arrancou um pedaço de
algodão de uma embalagem e virou-se para ela.
- Levanta-me essa fuça - ordenou. Encheu o algodão de
líquido, virou-se para o lábio superior da sobrinha, fez uma careta
e deu pancadinhas nos cortes. - Isto evita que apanhes aí qualquer
coisa. Zandra! - gritou.
Alexandra apareceu vinda da cozinha. - O que é, Jack? Jean
Louise, achava que...
- Deixa lá isso. Há um cheirinho nesta casa?
- Não sejas tolo, Jack.
- Vá lá, eu sei que tens para os bolos de fruta. Ó mulher de
Deus, arranja-me uísque! Vai para a sala, Jean Louise.
Atordoada, obedeceu e sentou-se. O tio entrou, trazendo numa
mão um copo com três dedos de uísque e um copo de água na
outra.
- Se beberes tudo de uma vez, dou-te uma moeda - disse.
Jean Louise bebeu e engasgou-se.
- Sustém a respiração, parva. Agora, a água.
Ela agarrou no copo de água e bebeu-a rapidamente. Manteve os
olhos fechados, deixando o álcool quente tomar conta de si. Quando
os abriu, viu o tio, sentado no sofá, a contemplá-la placidamente.
Ele inquiriu: - Como te sentes?
- Quente.
-É o álcool. Diz-me o que te vai na cabeça.

226
Retorquiu em voz fraca: - Nada, senhor meu4 3 •
- Que rapariga irritante, não me venhas com citações! Diz-me,
como te sentes?
Ela franziu o sobrolho, premiu as pálpebras e, com a língua,
tocou na boca que lhe doía. - De alguma maneira, diferente.
Estou aqui sentada e é como se estivesse sentada no meu aparta­
mento em Nova Iorque. Não sei, sinto-me esquisita.
O Dr. Finch levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos, em
seguida retirou-as e juntou-as atrás das costas. - Bom. . . agora
sou eu que tenho de beber qualquer coisa à conta disto. Nunca
na vida tinha batido numa mulher. Acho que vou espancar a tua
tia e ficar a ver o que acontece. Deixa-te estar aqui um bocado,
sossegada.
Jean Louise ficou sentada e deu um risinho quando ouviu o
tio a protestar com a irmã na cozinha. - Claro que vou tomar
uma bebida, Zandra. Bem mereço. Eu não ando por aí a bater em
mulheres todos os dias e posso informar-te de que, se não estás
habituada, dá cabo de ti ... oh, ela está bem... não consigo ver
qualquer diferença entre bebê-lo e comê-lo. . . vamos todos para
o Inferno, é só uma questão de tempo. . . não sejas tão antiquada,
irmã, ainda não estou na horizontal. . . por que não tomas tam­
bém uma?
Ela sentia que o tempo tinha parado e que estava dentro de um
vácuo, não de todo desagradável. Não existia nada em redor, nem
terra nem seres, apenas uma aura de bonomia vaga naquele lugar
indiferente. Estou a ficar pedrada, pensou.
De regresso à sala, o tio bebericava de um copo alto cheio de
gelo, água e uísque. - Olha o que consegui da Zandra. Dei-lhe
cabo dos bolos de frutas.
Jean Louise tentou que se concentrasse. - Tio Jack - começou
ela -, tenho a certeza de que o tio sabe o que se passou esta tarde.
- Sei. Sei tudo o que disseste ao Atticus e quase te ouvia da
minha casa quando discutiste com o Henry.
O filho da mãe, seguiu-me até à cidade.

43
Shakespeare, Noite de Reis, ato 2, cena 4. (NT)

227
- Esteve à escuta? De tudo ...
- Claro que não. Achas que és capaz de falar sobre o as-
sunto agora?
Falar sobre o assunto? - Sim, acho que sim. Quer dizer, se falar
comigo como deve ser. Acho que agora não consigo aguentar mais
o bispo Colenso.
O Dr. Finch instalou-se no sofá e inclinou-se para ela. Proferiu:
- Falo contigo sem rodeios, minha querida. Sabes porquê? Porque
agora já posso.
- Porque pode?
- Sim. Volta atrás, Jean Louise. Regressa a ontem, à cafetaria
esta manhã e a esta tarde.
- O que sabe sobre esta manhã?
- Nunca ouviste falar de uma coisa chamada telefone? A Zan-
dra não se importou de responder a algumas perguntas criteriosas.
Tu mandas os teus palpites em todas as direções, Jean Louise. Esta
tarde tentei ajudar-te rodeando a questão, para ser mais fácil, para
te dar umas luzes, para suavizar um pouco...
- Para suavizar o quê, tio Jack?
- Para suavizar a tua chegada a este mundo.
Quando o Dr. Finch deu mais um gole na sua bebida, ela viu-lhe
os olhos castanhos sagazes, a brilhar por cima do copo. É isto que
temos tendência de esquecer nele, refletiu ela. Ele é tão irrequieto que não
reparamos que nos está a observar com atenção. É esperto, ai isso é, esperto
que nem um alho. E mais sabido que uma raposa. Deus meu, estou bêbada.
- ... volta atrás agora - dizia o tio. - Ainda te lembras de
tudo, não lembras?
Jean Louise pôs-se a pensar. Estava lá tudo, sim. Todas as pala­
vras. Contudo, havia algo de diferente. Ficou sentada em silêncio,
a recordar.
- Tio Jack - disse por fim -, está cá tudo. Aconteceu. Foi
assim. Mas, sabe, por alguma razão já o consigo suportar. É, diga­
mos, de alguma forma suportável.
Dizia a verdade. Ainda não passara o tempo suficiente para
tornar as coisas suportáveis. Hoje é hoje, pensou, olhando admirada
para o tio.

228
- Ainda bem - retorquiu ele baixinho. - E sabes por que
razão se suporta melhor agora, minha querida?
- Não, senhor. Estou resignada com o estado das coisas. Não
quero pôr questões ou dúvidas, só quero ficar assim.
Consciente de que o tio a observava, virou a cabeça. Estava longe
de confiar nele: se ele começa a falar de mais algum vitoriano obscuro e me
diz que sou igual a ele, estou no ramal de Maycomb antes do pôr do Sol.
- Vais acabar por deslindar isto por ti própria - ouviu-o
dizer -, mas deixa-me facilitar-te a vida. Agora é suportável, Jean
Louise, porque és dona de ti própria.
Eu e não os vitorianos que tanto aprecia. Ergueu o olhar para o tio.
O Dr. Finch estirou as pernas. - É bastante complicado - con­
tinuou -, e não quero que caias no erro fastidioso de te tornares
ufana dos teus complexos; ir-nos-ias aborrecer a vida inteira com
isso, portanto não vou falar desse assunto. A ilha de cada um
de nós, Jean Louise, a sentinela de cada um é a sua consciência.
A consciência coletiva, tal coisa não existe.
Vindo dele, aquilo era uma novidade. Porém , continuando a
falar, em breve se voltaria de novo para o século XIX.
- . . . agora tu, menina, nascida com a tua própria consciência,
algures no teu caminho amarraste-a à do teu pai como uma lapa.
Enquanto crescias e já em adulta, confundiste o teu pai com Deus.
Nunca o viste como um homem, com o coração e os defeitos pró­
prios de um homem; verdade seja dita que não seria fácil, pois são
poucos os erros que ele comete, mas comete-os como todos nós.
Foste uma aleijada emocional, apoiavas-te nele, era a ele que ias
buscar as respostas, pressupondo que as tuas seriam sempre as dele.
Jean Louise escutava a figura sentada no sofá.
- Quando por acaso o viste fazer· algo que te parecia ser a
verdadeira antítese da sua consciência, a tua própria consciência,
tu literalmente não o conseguiste suportar. Ficaste fisicamente
doente. A vida tornou-se-te um inferno. Tinhas de te matar ou
ele tinha de te matar para que pudesses funcionar como uma enti­
dade autónoma.
Matar-me a mim. Matá-lo a ele. Tive de o matar para viver. . .
- O tio fala como se soubesse disto há muito tempo. O senhor. . .

229
- E sei. E o teu pai também. Às vezes, interrogávamo-nos
sobre o momento em que as vossas duas consciências se separariam
e qual seria o motivo. - O Dr. Finch sorriu. - Agora já sabemos.
Dou graças apenas por estar presente quando rebentaram as hos­
tilidades. O Atticus não poderia falar contigo da mesma maneira
como eu estou a falar...
- Porque não, tio?
- Não o terias escutado. Não o poderias ter escutado. Os nos-
sos deuses, Jean Louise, são por natureza distantes de nós. Nunca
devem descer ao nível dos homens.
- Foi por isso que ele não... me atacou? Foi por isso que nem
sequer se tentou defender?
- O teu pai estava a deixar que destruísses os teus ícones
um a um. Estava a permitir que o reduzisses à sua condição de
ser humano.
«Eu amo-te. Como queiras. » Fosse com um amigo e tudo não
passaria de uma discussão animada, uma troca de ideias, um con­
flito de pontos de vista diferentes; com o pai, ela tinha atacado
para destruir. Tinha tentado aniquilá-lo, destruí-lo, eliminá-lo pura
e simplesmente. «Childe Roland à torre negra chegou. »
- Estás a entender-me, Jean Louise?
- Sim, estou, tio Jack.
O Dr. Finch cruzou as pernas e enfiou as mãos nos bolsos.
- Quando paraste de fugir e te viraste para trás, Jean Louise, isso
foi inacreditavelmente corajoso.
- Tio?
- Oh, não o tipo de coragem que leva um soldado a atraves-
sar a terra de ninguém. Essa é a coragem que ele reúne porque é
necessário. Esta é... bom, esta integra a vontade de vida de cada
um, faz parte do instinto de autopreservação. Por vezes, temos de
matar para continuar a viver, e quando não o fazemos... quando as
mulheres não o fazem, choram até adormecer e depois têm as mães
para lhes lavar as meias todos os dias.
- O que quer o tio dizer com quando parei de fugir?
O Dr. Finch deu uma risada. - Sabes - comentou ele -, és
muito parecida com o teu pai. Eu tentei salientar isso hoje; lamento

230
dizer que usei estratégias que fariam inveja ao falecido George
Washington Hill e às suas campanhas publicitárias; és muito pare­
cida com ele, mas tu és fanática e ele não.
- Desculpe?
O Dr. Finch mordeu o lábio inferior. - Hum, hum. Uma
fanática. Não uma grande fanática, apenas uma de trazer por casa.
Jean Louise levantou-se e foi à estante. Tirou um dicionário e
folheou-o. Leu: - « FANÁTICO nome alguém devotado obstinada
ou intoleravelmente à sua igreja, partido, crença ou opinião. »
Explique-se, tio.
- Só estava a tentar responder à tua pergunta sobre fugir.
Deixa-me desenvolver um pouco essa definição. O que faz um faná­
tico quando encontra alguém que contesta as suas ideias ? Não cede.
Permanece inflexível . Nem sequer tenta escutar o outro, limita-se a
contra-atacar. Agora tu, tu foste virada do avesso pelo suprassumo
de todos os pais e fugiste. E de que maneira.
» Sem dúvida que, desde que aqui chegaste, ouviste coisas muito

ofensivas, mas em vez de carregar as baterias e de atacar cegamente,


deste meia-volta e fugiste. O que de facto disseste foi : «Não gosto
do comportamento desta gente, portanto não perco tempo com
eles . » E devias ter tempo para eles, querida, ou nunca hás de
crescer. Aos sessenta, serás como hoje . . . e então ter-te-ás tornado
um caso médico e não serás a minha sobrinha. Na tua mente, tens
tendência a não dar espaço de manobra às ideias dos outros, por
mais disparatadas que as consideres .
O Dr. Finch entrelaçou as mãos por trás da nuca. - Por amor
de Deus, menina, as pessoas não concordam com o Klan, mas
certamente que não andam a impedi-los de usar o lençol e de se
exporem ao ridículo em público.
« Por que motivo deixou Mr. O'Hanlon falar? Porque ele quis . »
Ó meu Deus, o que é que eu fiz?
- Mas, tio, eles espancam pessoas . . .
- Bom, isso é outra coisa, e é mais uma que não tiveste em
consideração em relação ao teu pai . Foste exagerada com o teu fra­
seado sobre déspotas , Biders e filhos da mãe sacanas . . . a propósito,
de onde é que tal coisa te veio?

23 1
Jean Louise teve um gesto de embaraço. - Ele contou-lhe
isso tudo?
- Ah, sim, mas não te preocupes com o que lhe chamaste.
O teu pai tem couraça de advogado. Já lhe chamaram pior.
- Nunca a filha, em todo o caso.
- Bom, tal como eu estava a dizer...
Pela primeira vez, segundo se lembrava, era o tio que lhe
recordava o que estavam a discutir. Era a segunda, tanto quanto
lhe ocorria, que o tio tinha um comportamento fora do habitual:
a primeira havia sido quando estava sentado em silêncio na velha
sala de estar, e ouvira os murmúrios suaves: «O Senhor não nos traz
mais do que conseguimos suportar» ; então dissera: «Doem-me os
ombros. Há uísque nesta casa? » Este é um dia de milagres, refletiu.
- ... o Klan pode fazer os desfiles que bem entender, mas, se
começa a pôr bombas e a espancar pessoas, não sabes quem seria
o primeiro a, tentar impedi-los?
- Sei, sim senhor.
- Ele vive em obediência à lei. Faz o que lhe é possível para
impedir que uma pessoa espanque outra e depois até ataca o
governo federal, tal como tu, filha. Tu atacaste o teu próprio tigre
de papel; mas lembra-te de uma coisa, filha, ele agirá sempre den­
tro do espírito e na letra da lei. É isso que o guia.
- Tio Jack...
- Agora não comeces a sentir-te culpada, Jean Louise. Não
fizeste nada de errado hoje. E, por amor da santa, não come­
ces a preocupar-te com o facto de seres fanática. Já te disse que
não abusavas.
- Mas, tio Jack. ..
- E lembra-te disto: é sempre fácil olharmos para trás e vermos
o que fomos ontem ou há dez anos. O que é difícil é vermos o que
somos hoje. Se conseguires isso, vai correr tudo bem.
- Tio, eu achava que já tinha passado essa fase de desilusão em
relação aos pais quando terminei o curso, mas há algo...
O tio pôs-se a mexer nos bolsos do casaco. Encontrou o que
procurava, retirou um do maço e inquiriu: - Tens um fósforo?
Jean Louise ficou estupefacta.

232
- Perguntei se tinhas um fósforo.
- Perdeu a cabeça? Deu-me uma sova quando me apanhou...
seu filho da mãe!
Tinha-o feito sem cerimónias, um Natal em que a apanhara
debaixo da casa com cigarros roubados.
- É a prova de que não há justiça neste mundo. Agora fumo
de vez em quando. Privilégio da velhice. As vezes fico ansioso...
entretém-me as mãos.
Jean Louise descobriu uma carteira de fósforos na mesa ao lado
da cadeira. Riscou um e estendeu-o para o cigarro do tio. Entretém­
-lhe as mãos, pensou. Interrogou-se quantas vezes aquelas mãos
envergando luvas de borracha, i mpessoais e omnipotentes, haviam
tratado e curado crianças. É doido, sem dúvida.
O Dr. Finch segurava o cigarro com o polegar e dois dedos.
Examinou-o, pensativo. - És daltónica, Jean Louise - declarou.
- Sempre foste, sempre serás. As únicas diferenças que vês entre
dois seres humanos são na aparência, na inteligência e na personali­
dade. Nunca foste incitada a olhar as pessoas enquanto raça, e agora
que as questões raciais são o tema quente do dia, continuas incapaz
de pensar nesses termos. Apenas vês pessoas.
- Mas, tio Jack, não tenho qualquer intenção de me casar com
um negro.
- Sabes que pratiquei medicina durante quase vinte anos e
que, por isso, no geral vejo os seres humanos em termos do seu
sofrimento relativo; apesar de tudo, arrisco dizer o seguinte: não há
nada que nos diga que o facto de teres andado na escola com um
negro ou de andares na escola com dezenas deles te leve a querer
casares-te com um. É o que os supremacistas brancos mais apre­
goam. Quantos casamentos inter-raciais vês tu em Nova Iorque?
- Agora que penso nisso, mui to poucos. Relativamente,
quer dizer.
- Aí está. Os supremacistas brancos são bastante espertos,
na verdade. Se não conseguem assustar-nos com a questão fulcral
da inferioridade, envolvem-na num miasma de sexo, pois sabem
que é algo que assusta os corações fundamentalistas aqui no Sul.
Tentam aterrorizar as mães sulistas, não vão as filhas apaixonar-se

233
por um negro. Se não fizessem disso uma questão, esta rara­
mente seria levantada. E, se o fosse, seria tratada a nível privado.
A NAACP também tem culpas no cartório. Os supremacistas
brancos, porém, temem a razão, pois sabem que a razão os bate.
O preconceito, que é uma palavra feia, e a fé, que é uma boa pala­
vra, têm algo em comum: ambas começam onde a razão termina.
- É estranho, não é?
- É uma das singularidades deste mundo. - O Dr. Finch
levantou-se do sofá e apagou o cigarro no cinzeiro da mesa ao lado
dela. - Agora, minha menina, leva-me a casa. São quase cinco
horas. Está quase na altura de ires buscar o teu pai.
Jean Louise voltou a si. - Ir buscar o Atticus? Nunca mais vou
conseguir enfrentá-lo!
- Ouve, rapariga. Tens de te ver livre de um hábito de vinte
anos e rapídamente. E vais começar de imediato. Achas que o
Atticus te vai fulminar?
- Depois do que eu lhe disse? Depois de...
O Dr. Finch bateu no chão com a bengala. - Jean Louise,
não conheces o teu pai?
Não. Não conhecia e estava aterrorizada.
- Acho que vais ter uma surpresa - declarou o tio.
- Tio Jack, não consigo.
- Não me digas que não consegues, rapariga! Dizes isso outra
vez e eu dou-te com a bengala! Olha que estou a falar a sério!
Caminharam ambos até ao automóvel.
- Jean Louise, já pensaste em voltar para casa?
- Para casa?
- Se te abstiveres de repetir a última expressão ou palavra de tudo
o que digo, ficava-te muito agradecido. Para casa. Sim, para casa.
Jean Louise fez um sorriso aberto. Estava a parecer-se de novo
com o tio Jack. - Não, senhor - retorquiu.
- Bom, com grande risco de te sobrecarregar com questões
a ponderar, seria possível tentares considerar o assunto? Pode ser
que não saibas, mas há lugar para ti aqui em baixo.
- Está a querer dizer que o Atticus precisa de mim?
- Não completamente. Estava a pensar em Maycomb.

2 34
- Isso seria excelente, comigo de um lado e toda a gente do
outro. Se a vida é uma torrente interminável do tipo de con­
versa que ouvi hoje de manhã, não me parece que conseguisse
adaptar-me.
- Essa é que é uma coisa sobre o Sul que não percebeste. Fica­
vas espantada se soubesses quantas pessoas estão do teu lado, se é
que «lado» é o termo correto. Não és caso único. O condado está
cheio de pessoas como tu, mas precisamos de mais algumas.
Jean Louise pôs o automóvel em funcionamento, desceu o acesso
à garagem em marcha-atrás e inquiriu: - O que poderia eu fazer?
Não posso lutar contra eles. Já não me apetece combater...
- Não estou a falar de lutar; estou a falar de ir para o trabalho
todas as manhãs, voltar para casa à noite, ver os amigos.
- Tio Jack, não posso viver num sítio com o qual não combino
e que não combina comigo.
- Pff - soltou o Dr. Finch. - O Melbourne disse...
- Se o tio se atreve a dizer o que o Melbourne disse, eu paro o
carro e expulso-o, aqui mesmo! Eu sei que detesta andar: depois do
seu passeio de ida e volta até à igreja e de laurear a gata no jardim,
já lhe chega. Olhe que eu o expulso do carro, e não pense que não!
O Dr. Finch suspirou. - Estás a ser muito beligerante para
com um velho débil, mas se pretendes continuar na ignorância,
é teu privilégio. . .
- Débil, o diabo! É tão débil como um touro! - Jean Louise
levou a mão à boca.
- Muito bem, se não me deixas dizer o que o Melbourne disse,
transmito-to nas minhas próprias palavras: a altura em que os teus
amigos precisam de ti é quando estão errados, Jean Louise. Não
necessitam de ti quando têm razão...
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que é necessária alguma maturidade para viver
no Sul hoje em dia. Ainda não a tens, mas adivinha-se um início.
Não tens a humildade de espírito...
- Eu pensava que temer a Deus era o princípio da sabedoria.
- É a mesma coisa. Humildade.
Tinham chegado a casa dele. Ela parou o automóvel.

235
- Tio Jack - perguntou -, o que vou fazer com o Hank?
- Aquilo que acabarás por fazer - retorquiu ele.
- Acabar tudo com jeitinho?
- Hum, hum.
- Porquê?
- Não é um dos nossos.
Ama quem quiseres, mas casa-te com os teus. - Ouça, não vou dis­
cutir consigo os méritos relativos dos saloios . . .
- Não tem nada a ver com isso. Estou farto de ti . Quero
a minha ceia.
O Dr. Finch estendeu a mão e beliscou-lhe o queixo. - Boas
tardes, menina - declarou em jeito de despedida.
- Por que razão teve tanto trabalho comigo hoje? Bem sei
como detesta sair de casa.
- Porque és como minha filha. Tu e o )em foram os filhos que
nunca tive. Vocês os dois deram-me algo há muito tempo, e estou
a tentar pagar essa dívida. Ajudaram-me . . .
- Como, tio?
As sobrancelhas do Dr. Finch arquearam-se. - Não sabes ?
O Atticus nunca te disse? Ena, estou espantado que a Zandra não . . .
Deus do céu, eu achava que toda a cidade sabia.
- Sabia o quê ?
- Que eu estava apaixonado pela tua mãe.
- Pela minha mãe?
- Oh, sim. Quando o Atticus se casou com ela e eu vinha a
casa de Nashville pelo Natal, apaixonei-me perdidamente por ela.
Ainda estou . . . não sabias ?
Jean Louise pousou a cabeça no volante. - Tio Jack, estou tão
envergonhada que nem sei o que fazer. Eu a gritar consigo como . . .
era capaz de me matar!
- Eu não faria tal coisa. Já houve suicídios suficientes para
um dia.
- Todo este tempo, o tio . . .
- Claro que sim, querida.
- E o Atticus sabia?
- Claro que sim.

236
-Tio Jack, estou completamente esmagada.
- Bom, isso não era necessário. Não estás sozinha, Jean Louise.
Não és caso único. Agora vai buscar o teu pai.
- E consegue falar disso assim?
- Hum, hum. Assim. Como já disse, tu e o Jem eram muito
especiais para mim; eram os meus filhos do coração, mas, como
dizia Kipling, isso é outra história . . . visita-me amanhã e encon­
44
trarás um homem sério •
Era a única pessoa que podia parafrasear três autores numa frase
e fazer com que todos fizessem sentido.
- Obrigada, tio Jack.
- Obrigado eu, Scout.
O Dr. Finch saiu do carro e fechou a porta. Enfiou a cabeça pela
janela, arqueou as sobrancelhas e recitou numa voz discreta:

I was once an exceedingly odd young lady,


Suffering much from spleen and vapours. 45

Jean Louise ia a meio caminho quando algo lhe veio à memó­


ria. Pôs o pé no travão, espreitou pela janela e disse para a figura
já distante:
- Mas nós só nos divertimos muito respeitavelmente, não é,
46
tio Jack ?

44
Referências a Charles Lamb, Rudyard Kipling e William Shakespeare.
(NT)
45
Uma estranhíssima jovem fui outrora, / Sofrendo de impaciências e de vapores.
Ruddigore, de Gilbert e Sullivan. (NT)
46
Ruddigore, de Gilbert e Sullivan. (NT)

237
19

Jean Louise entrou na receção do escritório do pai e viu Henry


ainda sentado à secretária. Foi ter com ele.
- Hank?
- Olá - disse ele.
- Hoje à noite, às sete e meia? - perguntou ela.
- Sim.
Enquanto marcavam um encontro para se separarem, uma
maré subia e descia, e ela corria ao seu encontro. Ele fazia parte
dela, tão imutável como a Plantação dos Finches , os Coninghams
e Old Sarum. Maycomb e o condado tinham ensinado a Henry
coisas que ela nunca aprende_ra, nunca poderia aprender, e fizeram
com que ela lhe fosse inútil, a não ser como a sua amiga mais
antiga.
- És tu, Jean Louise?
A voz do pai assustou-a.
- Sim, senhor.
Atticus entrou na receção vindo do seu escritório e tirou o cha­
péu e a bengala do cabide. - Pronta? - perguntou.
Pronta. Pode bem dizer-me isso. O que é o senhor, que eu tentei destruir
e esmagar e ainda me diz «pronta » ? Não consigo vencê-lo, não consigo
juntar-me a si. Não sabia ?
Foi ter com ele. - Atticus - principiou -, estou. . .
- Podes estar arrependida, mas eu tenho orgulho em ti.
- O quê?
- Disse que tenho orgulho em ti.

238
- Não o compreendo. Não percebo nada dos homens e nunca
perceberei.
- Bom, eu certamente esperava que uma filha minha se manti­
vesse firme na sua convicção do que está certo, que me confrontasse
primeiro que tudo.
Jean Louise esfregou o nariz. - Chamei-lhe uns nomes muito
feios - admitiu.
Atticus disse: - Aceito tudo o que me chamarem desde que
não seja verdade. Nem sequer sabes amaldiçoar como deve ser, Jean
Louise. A propósito, onde é que aprendeste tantos insultos?
- Aqui mesmo em Maycomb.
- Santo Deus, as coisas que tu sabes.
Santo Deus, as coisas que eu sei. Não queria que me perturbassem o
meu mundo, mas queria destruir o homem que está a tentar preservá-lo.
Queria erradicar todos os que se parecessem com ele. Acho que é como um
avião: eles são a resistência, nós somos a propulsão, e juntos fazemos a coisa
voar. Demasiados como nós e afocinhamos, demasiados como eles e a cauda
baixa - é tudo uma questão de equilíbrio. Não posso vencê-lo e não posso
juntar-me a ele . ..
- Atticus?
- M' nha senhora?
- Acho que o amo muito.
Viu os ombros do seu velho inimigo descontraírem-se e obser­
vou-o a empurrar o chapéu para trás. - Vamos para casa, Scout,
foi um dia longo. Abre-me a porta, por favor.
Jean Louise deu um passo para o lado para o deixar passar.
Seguiu-o até ao carro e ficou a vê-lo entrar com esforço para o
banco da frente. Enquanto lhe dava as boas-vindas silenciosas à raça
humana, a pontada da descoberta fê-la tremer um pouco. Que esqui­
sito, parece que alguém passou por cima da minha sepultura, pensou.
Provavelmente foi o ]em numa missão estúpida qualquer.
Deu a volta ao carro e, desta vez, ao deslizar para o assento, teve
o cuidado de não bater com a cabeça.

2 39
R A N D E S A R R A T I V A S

Pode consultar este e outros títulos em


www.presenca.pt

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