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“Devemos beber na fonte e devolver ao povo em forma de arte”

Solano Trindade
ARAGUAIA,
O RIO E SUA GENTE

SHEILA SIGNÁRIO JOÃO LUIZ DO COUTO


FOTOGRAFIAS TEXTO
SHEILA SIGNÁRIO JOÃO LUIZ DO COUTO
FOTOGRAFIAS TEXTO

RIO ARAGUAIA,
O RIO E SUA GENTE Barra do Garça
2021
Dedicamos esta obra a Agradecemos a:
todos os ribeirinhos que contribuiram Prefeitura municipal de Alto Araguaia MT Max Fábio
Secretária de cultura de alto Araguaia MT Albina Marcelia de Oliveira
para que este projeto acontecesse.
Secretária de Educação de alto Araguaia MT Maria Pereira Abreu
Leila Aguiar Figueira
Prefeitura municipal de Cocalinho MT Eudezio Couto
Secretária de cultura de Cocalinho MT Marcilene Maria
Secretária de Educação de Cocalinho MT Edilson Pereira Santos
Prefeitura municipal de São Felix do Araguaia MT Deijalsina Gonçalves da Silva
Secretária de Educação de São Felix do Araguaia MT Amaury da Cunha Araújo
João Batista Araújo
Prefeitura municipal de Luciara MT Rogério Noronha
Secretária de Educação de Luciara MT Milton Lopes Borges
Prefeitura municipal de Santa Terezinha MT
Secretária de Educação de Santa Terezinha MT
Prefeitura municipal de São João do Araguaia PA

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No ano de 2014 ao lado da fotógrafa Sheila Signário, descemos o Rio Araguaia da nascente à Foz, ouvindo Em maio de 2014 eu recebi o convite do escritor João Luiz do Couto para fotografar o projeto “No Remanso
e contando histórias, fotografando e colhendo depoimentos dos moradores ribeirinhos. Foram quatro meses de
do Araguaia”. Esse projeto consistia em pesquisar sobre as histórias de seres encantados que habitam no rio Ara-
vivência do Auto Araguaia MT (nascente) até São João do Araguaia PA (foz). Quatro meses de contemplação e
guaia, o rio é um dos mais importantes rios do Brasil que fica no centro-oeste.
vivência, da emoção de ver o borbulhar da nascente, o espremer-se sobre lajedos, jogar-se em cachoeira, a turbu-
O projeto que teve a duração de quatros meses, começou na cabeceira do Rio Araguaia, que se encontra nos
lência dos banzeiros, a calmaria dos remansos. A cada cidade, lugarejo, povoado que chegávamos éramos acolhidos
estados do Mato Grosso do Sul e em Goiás, na cidade do Mineiro, passamos por mais de 20 cidades e terminamos na
com aconchego, em todos os encontros uma história se juntava à nossa histó-
foz, na cidade de São João do Araguaia (TO), onde o rio Araguaia se encontra com o rio Tocantins.
ria.
Ouvimos dos ribeirinhos histórias sobre os seres encantados, que são o Nego D’agua, Buíuna e Dragão Doura-
Gratidão é o sentimento que aflora em meu coração, por todo cari-
do. Conhecemos pessoas incríveis, vimos paisagens que nossos olhos não deram
nho que recebemos de todas as pessoas que encontramos às margens do
conta de enxergar.
Rio Araguaia.
Nesse livro contém um pouquinho do que vivemos nessa jornada linda.
“Creio que seja preciso devolver os seres encantados aos
Sheila Signário
rios, para que tenhamos uma relação de respeito e amor e,
assim, conviver e preservá-los.”

João Luiz do Couto



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agua emendada
Lá na serra que ao entardecer faz sombra no quintal
Eu pegava mangaba, entre lagartos e carcaças de cigarra.
É naquela serra, que brota o rio que passa no quintal lá de casa.
A cacimba borbulhante transborda e escorre em duas direções:
As borboletas e os louva-a-deus é quem emendam a água
Que teima em se dividir em duas partes.
Uma parte forma o rio que passa atrás de nossa casa, e a
outra parte, toma a direção oposta e se descamba no meio do mundo.
Metade de mim seguia aquele igarapé que entre ligeiras
danças sobre as pedras escorregadias forma o rio, que
margeia as garças e abraça nossa casa. Aquele quintal era
do tamanho do mundo e me enchia de vazio. Isso foi em Manoel de Barros
A outra parte de mim engolia a imensidão por onde descamba a outra parte do rio.
Só pude compreender a divisão de mim e a emenda da água, quando cheguei ao mar pela primeira vez.
Sua amplitude não cabia no meu olho.

João Luiz do Couto

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de buiuna de ouvi falar. Rema mulher, rema meu fii. Vamos sair pro Agarrou-se ao galão e continuou descendo a correnteza. A
A aventura de Ze Mosquito e a Boiuna barranco do lado de cá. Boiuna ia à frente, fazendo mais correnteza e alimentando o banzei-
E começaram a remar, forte. O vulto preto cruzava o rio de ro serpenteando de lado a lado do rio.
lado a lado, preta que brilhava. Grossa que represava o rio e for- O menino, perdido da mãe, não sabia do pai, continuava nadan-
mava uma cachoeira. do em busca da margem.
Suave como uma sombra, desliza a canoa do Zé Mosquito. Ele Quanto mais eles remavam, pra longe, mais perto da boiuna eles Zé Mosquito subiu pelo galho e pulou no chão. Sabia reza de vi-
a esposa e o filho. Voltavam da pescaria.
ficavam. Parecia um imã puxando a canoa. rar bicho, mas, na água... a reza não valia. Tirou a roupa, se sacudiu,
O menino na proa era os olhos, Zé ia na poupa e dava a direção,
A Buiuna começou a se movimentar, levantou a cabeça e mer- meio que ficou seco, rezou suas rezas, disse as palavras certas e se
a mãe sentada no meio da canoa dava o equilíbrio. Remavam os
gulhou, levantando água muito alto, formou um banzeiro. A canoa transformou em um Boto. Mergulhou no rio e desceu a corredeira
três: pai, mãe e filho.
balançou. procurando o filho e a esposa.
Foi na cheia de 1980.
Naquilo, o vento chegou! E, com ele, a chuva. A canoa come- A mãe agarrada ao galão, descia a corredeira no escuro da noite
Zé Mosquito se rumava para foz. O céu se rumava pra chuva. O
çou a beber água, a Boiuna foi se aproximando. Levantou a cabeça chuvosa.
pratear do entardecer desenhava o horizonte.
lá no alto e mergulhou bem pertinho. O banzeiro foi tão forte que O menino, cansado, apenas mantinha-se flutuando.
O silêncio da tarde era quebrado na voz de Zé Pequeno.
virou a canoa, jogando seus tripulantes no rio. Levou um susto ao senti algo em baixo da água, e gritou, - Ai
“Quando o pau-d’arco floresce faz colorir sertão,
Emergiram e foram rodando. A corredeira foi ficando cada vez forte. meu Deus, mãenhê!!!
Convida a abelha a sua seiva, alegra o meu coração
A Boiuna se movimentava em zig-zag e aumentava a corredeira. O Boto entrou em baixo do menino, e o empurrou. O meni-
cai a tarde com seu manto e seu colorir de prata
Zé mosquito, sabia reza para virar bichos. Mas, dentro da água a no, sem saber o que estava acontecendo, relutava, debatia e tentava
cobrindo todas as campinas e suas lindas verdes matas.”
reza não valia. A chuva derramava. O vento levantava água alimen- fugir.Mas o boto nadou muito rápido, chegou próximo à barranca
- Pai, tem uma cachoeira lá embaixo... Olha o barulho.
tando o banzeiro. A noite chegou mais rápido e tudo ficou escuro. e arremessou o menino fora da água. No barranco, o menino res-
- Cachoeira? Desde menino que ando nesse rio, e nunca vi ca-
Os três desciam o rio no escuro. Cada um por si. pirou aliviado, tomou fôlego, e saiu correndo pelo mato, sua mãe e
choeira nestas bandas. Tem cachoeira não menino!
Foram nadando, rodando, soltos na correnteza. A Serpente não seu pai continuavam no rio.
- Oia o barui, Zé! o menino tem razão!
conseguiu pegá-los, ela era muito grande, eles muito pequenos e se No caminho ia pensando, - meu tio sempre deixa o barco com o
- Que cachoeira muié? É o tempo que tá virando pra chuva. Isso
perdiam no banzeiro. motor lá no porto, preciso chegar lá. Quase não aguentando, res-
é vento na mata.
Finalmente, Zé Mosquito, alcançou a margem e conseguiu se piração ofegante, chegou ao porto, o barco estava apoitado, pulou
- Pai tem cachoeira sim! Olha lá em baixo
agarrar em um galho de Sarandi, o menino e a mãe cadê? dentro, deu partida e se jogou rio abaixo.
- é mesmo Zé olha lá...
Continuaram rio abaixo. Riscava o rio em diagonal. O banzeiro levantava o barco, o bar-
-Pai tem chifre pai! Olha!
A mãe avistou um vulto descendo próximo dela, não muito co bebia água a cada descida. O motor acelerado, o rio parecia ainda
- É a tal da Buiuna Zé!
longe, pensou que seria a canoa, nadou ao encontro do objeto ao se mais largo, mais profundo, A noite escureceu e a chuva continua-
- Eita meu Deus do Céu. Pois não é mesmo! Eu que só sabia
aproximar viu que era um galão de plástico de cor azul, estava vazio. vam derramando água.
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A Boiuna, emergia e mergulhava, aumentando o banzeiro, o vam, a mãe acendeu a lamparina, os dois ensopados, viram a rede
brilho da pele molhada da boina refletia o claro dos relâmpagos nos armada, Zé Mosquito dormia. Com respiração profunda dormia
pingos da chava. Cada vez que subia ela parecia ainda maior. um sono pesado, o filho se assustou quando viu as pernas de Zé
A mulher agarrada no galão azul descia a deriva. Mosquito sangravam muito, a rede estava ensopada de sangue, arra-
O menino avistou um vulto, embicou o barco na direção, se nhões que parecia de dois dentes enormes abria uma ferida compri-
aproximou, e era sua mãe, levada pelo galão, tentou se aproximar. da nas pernas do seu pai.
O Menino embicou o barco na direção da mãe, a boiuna subiu A mãe preparou um emplasto de mastruz, colocou sobre as feri-
alto e embicou a cabeça e se lançou em direção à mãe. das e cobriu com pano.
O menino acelerava o motor. a Boiuna chegava mais perto. Foi Zé Mosquito sabia reza de virar bicho. A reza valia até dentro água.
quando saiu da água um enorme boto, saltou em direção à cabe- E da boiuna quando se perguntam por ela a um morador do
ça da boiuna, fez um looping no ar e arremessou a calda contra Araguaia, a reposta sempre a mesma: Ela passou por aqui.
a papada da boiuna, o menino alcançou a mãe quase na boca da
boiuna, a mãe pegou na beira do barco, segurou firme e subiu, e o
menino acelerou o motor rio a cima. O boto lutava contra a boiuna,
botos surgiram de todos os lados saltando para o alto em direção
da boiuna. Em um dos saltos que o boto deu a serpente conseguiu
pegá-lo, e engoliu a metade. O boto deu uma rabanada se torceu no
ar e conseguiu escapar de dentro da boca da serpente. Os dentes
da boiuna rasgou a carne da calda do boto. Sangrando, ele se lança
em direção à borda, pois a piranhas sentiram o cheiro do sangue e
seguiram o boto em milhares, se alcançasse devoraria ele. O Boto
sabia da sua sorte.
Enquanto os outros botos saltavam e lutavam contra a boiuna,
o boto ferido nadou forte em direção à margem.
O menino acelerou o barco e chegou no barranco do rio, apeou,
ajudou sua mãe a sair do barco. O povo já “curiavam” no escuro.
Não viram mais Zé Mosquito, não sabiam dele, ninguém con-
seguia ver naquela escuridão. Subiram a pé, a mãe ia rezando pelo
caminho, o menino sonhando. Chegaram no barraco onde mora-
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Sequência das fotos com a descrição das pessoas e o local Sheila Signario, mulher negra, vem construindo sua história na Joao Luiz do Couto é mato-grossense, nascido em São Félix do
fotografia clicando os movimentos culturais na periferia da zona sul de SP. Araguaia, formado em Educação Física, foi treinador de futebol e preparador
Página 1- nascente Página 14-foto6548
Começou a fotografar em um projeto social “Um Olhar na Favela de físico, apaixonado por contar histórias, decidiu deixar os campos de futebol
Mineiro-GO
Paraisópolis” em 2008 e não parou mais. para atacar nos palcos e na literatura. Em São Paulo SP, estudou e dedicou-
Página 2 – Foto 4338 Página15-foto-6580/6950
Já participou dos seguintes eventos de fotografia PhotoDay Brasil se à vida artística, de onde saíram espetáculos teatrais e obras literárias.
Ponte Branca -GO Sr Mané Macaco- Luciara-MT/ Dona
(MG), 1º Seminário Retrato(s) da Mulher na Fotografia (PR), 3ª Edição do Membro da Academia de Letras, Artes e Cultura do Centro Oeste. Já publicou
Página 3- foto-4297 Maria- Santa Terezinha-MT
BC Foto Festival (SC)., III Mostra de Projeção Fotoativa em Belém do Pará Literatura para infância, livros de poemas e coletânea de contos. Em 2020
Rio Araguaia-Ponte Branca-GO Página16-foto-6419
e na 4º edição do Festival de Fotografia de Tiradentes-MG. recebeu homenagem da Associação Cultural Ciranda pelo Projeto João Luiz
Pagina4-foto-4345 Luciara-MT
Sheila precisou furar seus olhos para vê o mundo. do Couto e os Narradores do Araguaia, Contemplado no Edital Conexão
Ponte Branca-GO Página17-foto-7115
Mestres da Cultura Pela Lei Aldir Blanc MT, que proporcionou a
Página5 -foto- D Augusta Caseara TO
finalização do - Filme DOC – Narradores do Araguaia – Lendas, este
Apinagé-PA Página18-foto-7081
Livro de Fotografias e a Exposição de fotografias - No remanso do
Página 6 -foto- 6296 Caseara -TO
Araguaia.
São Félix do Araguaia-MT Pagina19-foto-7086
Pagina7- foto-4012 PA
Mineiro-GO Página20-foto-5783
Página 8-foto-6886 São Félix do Araguaia-MT
São Terezinha-MT Página21-foto-7178
Página 9-foto-4967 Araguacema-TO
Dona Maria Preta-Cocalinho MT Página22-foto-7197
Pagina10-foto-4980 Araguacema_TO
Dona Maria Preta Cocalinho-MT Página23-foto-7216
Pagina11-foto-6311 MA
São Félix - MT Página24-foto-7219
Pagina12-foto- 6241 MA
Sr Eduardinho-MT
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Luciara-MT

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Todos os direitos reservados à Editora Pinrolê

Fotografias: Sheila Signário


textos: João Luiz do Couto
ilustrações: Monika Papescu
projeto gráfico: Editora Papo Abissal
revisão: Press Revisão
ficha catalográfica: Kátia Possobon
impressão Gráfica Ideograf

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