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Instituto Federal de Goiás – Câmpus Formosa

Atividade de reposição de Língua Portuguesa


Prof. Audiney J Pereira

(...)
Este homem, que traz em si uma promessa de Deus, não tem outro sítio aonde ir se não a
casa duma prostituta. Não pode regressar ao rebanho, Vai-te, disse-lhe Pastor, nem tornar à sua
própria casa, Não te cremos, disse-lhe a família, e agora os seus passos hesitam, tem medo de ir,
tem medo de chegar, é como se estivesse novamente no meio do deserto, Quem sou eu, os montes e
os vales não lhe respondem, nem o céu que tudo cobre e tudo devia saber, se agora a casa voltasse
e a pergunta repetisse, sua mãe dir-lhe-ia, És meu filho, mas não te creio, ora, sendo assim, é tempo
de que Jesus se sente nesta pedra que aqui está à sua espera desde que o mundo é mundo, e nela
sentado chore lágrimas de abandono e de solidão, quem sabe se o Senhor não resolverá aparecer-lhe
outra vez, mesmo que seja em figura de fumo e de nuvem, a questão é que lhe diga, Homem, o caso
não é para tanto, lágrimas, soluços, que é isso, todos nós temos os nossos maus bocados, mas há um
ponto importante de que nunca falámos, digo-to agora, na vida, percebes, tudo é relativo, uma coisa
má até pode tornar-se sofrível se a compararmos com uma coisa pior, portanto enxuga-me essas
lágrimas e porta-te como um homem, já fizeste as pazes com o teu pai, que mais queres, e essa
cisma da tua mãe, eu me encarrego quando chegar a altura, o que não me agradou muito foi a
história com a Maria de Magdala, uma puta, mas enfim, estás na idade, aproveita, uma coisa não
empata a outra, há um tempo para comer e um tempo para jejuar, um tempo para pecar e um tempo
para ter medo, um tempo para viver e um tempo para morrer. Jesus enxugou as lágrimas às costas
da mão, assoou-se sabe Deus a quê, em verdade não valia a pena ficar ali o dia todo, o deserto é
como se vê, rodeia-nos, cerca-nos, de algum modo protege-nos, mas dar, não dá nada, apenas olha,
e se o sol se cobriu de repente e por causa disso dizemos, O céu acompanha a minha dor, tolos
somos, que o céu, nisso, é de uma perfeita imparcialidade, nem se alegra com as nossas alegrias
nem se entristece com as nossas tristezas. Vem gente nesta direção, a caminho de Nazaré, e Jesus
não quer dar pasto aos risos, um homem inteiro e de barba na cara a chorar como uma criança que
pede colo. Cruzam-se na estrada os raros viajantes, uns que sobem, outros que descem, saúdam-se
com a conhecida exuberância, mas só depois de certificados da bondade das intenções, porque,
nestas paragens, quando se fala de bandidos, tanto pode ser de uns como pode ser de outros. Há-os
da espécie gatuna e salteadora, como aqueles malvados escarninhos que roubaram este mesmo Jesus
vai para cinco anos, quando o pobre ia procurar em Jerusalém alívio para as suas penas, e há-os da
digna espécie guerrilheira que, sendo certo não fazerem da estrada seu trânsito habitual, às vezes
por aí aparecem, disfarçados, a espreitar as deslocações dos contingentes militares dos romanos,
com vista à próxima emboscada, ou então, de cara descoberta, para deixarem sem ouro nem prata,
nem valor que se aproveite, os ricaços colaboracionistas, a quem, em geral, nem as nutridas escoltas
que trazem conseguem livrar do enxovalho. Não teria Jesus os seus dezoito anos se alguns
devaneios de bélica aventura não lhe perpassassem na imaginação diante destas solenes montanhas
em cujas ravinas, grutas e desvãos se ocultam os continuadores das grandes lutas de Judas o Galileu
e dos seus companheiros, e então pôs-se a futurar que decisão tomaria se lhe saísse ao caminho um
destacamento de guerrilheiros a desafiá-lo para que se juntasse a eles, trocando as amenidades da
paz, mesmo necessitada, pela glória das batalhas e pelo poder de vencedor, pois escrito está que um
dia a vontade do Senhor suscitará um Messias, um Enviado, para que, de uma vez, fique o seu povo
liberto das opressões de agora e fortalecido para os combates do futuro. Uma lufada de louca
esperança e de irresistível orgulho sopra, como um sinal do Espírito, a fronte de Jesus, e o filho do
carpinteiro vê-se, pelo tempo de uma rápida vertigem, capitão, general e mando supremo, de espada
ao alto, espavorindo, com a sua simples aparição, as legiões romanas, lançadas aos precipícios
como varas de porcos possessos de todos os demónios, pois então. Ai de nós, que no instante
seguinte se lembrou Jesus de que o poder e a glória lhe estão prometidos, sim, mas para depois da
sua morte, posto o que o melhor é que aproveite a vida, e se tivesse de ir à guerra, uma condição lhe
poria, que, havendo tréguas, pudesse ir-se das fileiras para estar uns dias com Maria de Magdala,
salvo se nas hostes dos patriotas se admitem vivandeiras de um soldado só, que mais do que isso
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seria prostituição, e Maria de Magdala já disse que se acabou. Esperemos que sim, porque a Jesus
lhe entraram renovadas forças com a lembrança dessa mulher que o curou de uma dolorosa chaga,
pondo no seu lugar a insofrida ferida do desejo, e a pergunta é esta, como vai ele enfrentar-se com a
porta fechada e assinalada, sem a certeza certa de que por trás dela só encontrará o que imagina ter
deixado, alguém que alimenta uma exclusiva espera, a do seu corpo e da sua alma, que Maria de
Magdala não aceita uma coisa sem outra. A tarde descai, as casas de Magdala já se vêem ao longe,
reunidas como um rebanho, mas a de Maria é como a ovelha que se afastou, não é possível
distingui-la daqui, entre as grandes pedras que ladeiam o caminho, curva após curva. Por
momentos, Jesus lembrou-se da ovelha, aquela que teve de matar para selar com sangue a aliança
que o Senhor lhe impôs, e o seu espírito, agora desligado de batalhas e triunfos, todo se comoveu à
ideia de que a estava procurando outra vez, a sua ovelha, não para a matar, não para a levar de novo
ao rebanho, mas para juntos subirem aonde se encontram as pastagens virgens, que as há ainda, se
procurarmos bem, no vasto e cruzado mundo, e, nas ovelhas que somos, os desfiladeiros
indevassados, se procurarmos melhor. Jesus parou diante da porta, com mão discreta verificou que
está fechada por dentro. O sinal continua dependurado, Maria de Magdala não recebe. A Jesus
bastaria chamar, dizer, Sou eu, e de dentro ouvir-se-ia o canto jubiloso, Esta é a voz do meu amado,
ei-lo que veio saltando sobre os montes, pulando sobre os outeiros, ei-lo atrás dos nossos muros,
atrás desta porta, sim, mas Jesus preferirá bater nela com o punho, uma vez, duas vezes, sem falar, e
esperar que lhe venham abrir, Quem é e o que quer, perguntaram de dentro, foi então que Jesus teve
uma má ideia, disfarçar a voz e proceder como cliente que trouxesse dinheiro e urgência, dizer, por
exemplo, Abre, flor, que não te arrependerás, nem do pago, nem do serviço, e é certo que a fala lhe
saiu mentirosa, porém as palavras tiveram de ser as verdadeiras, Sou Jesus, de Nazaré. Tardou
Maria de Magdala a vir abrir, por suspeita da voz que não condizia com o anúncio, mas também por
lhe parecer impossível que já estivesse de volta, passada apenas uma noite, passado um dia, o
homem que lhe prometera, Um dia destes virei visitar-te, de Nazaré a Magdala não é longe, quantas
vezes se disseram coisas assim, só para comprazer a quem nos ouve, um dia destes poderá significar
daqui por três meses, mas nunca amanhã. Maria de Magdala abre a porta, lança-se aos braços de
Jesus, nem quer acreditar em tamanha felicidade, e a sua comoção é tal que a leva, absurdamente, a
imaginar que ele voltou por se lhe ter aberto novamente a chaga do pé, e é a pensar nisto que o
conduz para dentro, que o senta e aproxima uma luz, O teu pé, mostra-me o teu pé, mas Jesus diz-
lhe, O meu pé está curado, não vês. Maria de Magdala poderia ter-lhe respondido, Não, não vejo,
porque essa era a verdade extrema dos seus olhos rasos de lágrimas. Precisou tocar com os lábios o
dorso do pé coberto de poeira, desatar cuidadosamente os atilhos que cingiam a sandália ao
tornozelo, afagar com a ponta dos dedos a fina pele renovada, para confirmar-se nas esperadas
virtudes lenitivas do unguento e, no mais íntimo dos pensamentos, admitir que o seu amor alguma
parte podia ter tido na cura.
Extraído de “O evangelho segundo Jesus Cristo’ – Autor: José Saramago

Atividade
Orientação da atividade: Construa um comentário crítico do texto acima. Para isso,
interprete-o, apontado as partes que podem ser citadas para justificar seu comentário. Procure
interpretar o texto e apontar reflexões que podem ser feitas na atualidade a partir desse texto.

Observação: o comentário deverá ser entregue por escrito ao professor de Língua


Portuguesa, logo depois das atividades da semana do Cerrado do IFG.

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