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31 Prova - Conhecimentosemdisputa
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CONHECIMENTOS EM DISPUTA
NA BASE NACIONAL COMUM
CURRICULAR
Campo Grande
2019
Música E Educação Básica:
sentidos em disputa
Luciana Del-Ben
Marcus Vinicius Medeiros Pereira
A
presença da música nos currículos escolares é tema que tem ocupado de modo
recorrente diversos sujeitos envolvidos com a educação musical escolar. Na
literatura podemos encontrar uma ampla variedade de trabalhos dedicados,
por exemplo, a analisar aspectos legais e normativos referentes ao ensino de música, descrever
e compreender práticas educativo-musicais que acontecem nas escolas e também denunciar a
ausência das mesmas, apresentar fundamentos para a organização curricular e propostas a serem
desenvolvidas nas escolas e discutir a natureza da música e da educação musical, assim como jus-
tificativas para sua inclusão na educação básica (ver DEL-BEN, 2013).
A área de educação musical também tem se dedicado a produzir relatos de experiências e
materiais didáticos, trazendo não só diversas estratégias de ensino, mas também diferentes pers-
pectivas e abordagens metodológicas. A área dispõe, ainda, já há algum tempo, de propostas e
procedimentos de ensino sistematizados e estruturados, como exemplificam os trabalhos de Paz
(2013) e Mateiro e Ilari (2011).
Acompanhando essa produção, acadêmico-científica e didática, tem sido constante a luta
da área para que o espaço da música nos currículos escolares seja legitimado por vias legais (ver
MACEDO, 2015; QUEIROZ, 2012). Cabe ressaltar que é claro na literatura o entendimento da área
de que a legislação não garante, por si só, a presença da música nos currículos e, também, que essa
presença não depende somente de normatizações legais. Tanto que, apesar de não ser compo-
nente curricular obrigatório, a música não desapareceu das escolas (SANTOS, 2005; SOUZA et al.,
2002), como nos mostram diversos trabalhos realizados em diferentes cidades e estados do país.
A inexistência de garantias legais não impediu que professores, escolas e mesmo redes de ensino
se mobilizassem, organizassem e concretizassem práticas diversas de educação musical. A legiti-
mação via legislação, entretanto, é uma estratégia para garantir a presença do ensino de música em
todas as escolas de educação básica do país.
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Marcus Vinicius Medeiros Pereira
Apesar dessas práticas, dessa atuação e produção, não identificamos na área a consolidação
de um pensamento curricular voltado especificamente para a educação básica, o que pode estar
relacionado a mudanças frequentes na forma de a legislação educacional definir a presença da mú-
sica neste contexto, à escassez de “estudos de pesquisa aplicada em currículo de música no Brasil”
(OLIVEIRA, 1996, p. 39) e de estudos históricos sobre a trajetória do ensino de música nos currí-
culos escolares (JARDIM, 2012) ou, ainda, ao pouco diálogo da área de educação musical com o
campo do currículo (SOBREIRA, 2014). Essa não consolidação tem reflexos no trabalho cotidiano
de professores de música, especialmente os iniciantes, que enfrentam dificuldades em sua busca
por referências sobre o que trabalhar nas aulas de música ao longo da educação básica (PUERARI,
2011, p. 59) ou pela “falta de um norte” para decidir o que e como ensinar em contextos específicos
(GAULKE, 2013, p. 97).
Há ainda que se considerar que a não consolidação de um pensamento curricular para a
educação básica não significa que a área de música não apresente uma tradição curricular, ou que
não seja possível observar a invenção de uma tradição para o trabalho com música nas escolas de
educação básica.
Pereira (2016), ao investigar traços da história do currículo para a educação musical escolar
a partir de livros didáticos adotados em diferentes épocas, no Brasil, observou uma permanência
significativa da seleção de princípios da teoria musical direcionados, muitas vezes, para um pos-
terior emprego na prática musical – em especial nos cantos coletivos, bem como de aspectos de
história da música. O autor analisou cinco obras produzidas entre 1940 e 1977, além do primeiro
livro didático adotado nas escolas brasileiras: o “Compendio de musica para o uso dos alumnos
do imperial collegio ‘D. Pedro II’”, de Francisco Manuel da Silva, publicado em 1838, no Rio de
Janeiro, pela Typographia de Silva Porto & C.A.
É no Regulamento do Colégio Pedro II, de 1838, que incluía Música Vocal como matéria
distribuída nas oito séries do curso, que se encontra a primeira referência oficial de inclusão da
música no currículo no país. O ensino especializado de música era uma demanda cultural e so-
cial da época, uma vez que, no Rio de Janeiro, não havia instituições de ensino especializado de
música que atendessem às expectativas de formação da elite, habituada ao teatro lírico e às ceri-
mônias religiosas com grande aparato musical, instrumental e vocal. Para suprir essa demanda,
propunha-se, nos três primeiros anos, uma formação teórica elementar, que abordava todos os
pontos necessários para o domínio da leitura musical. Nos anos seguintes, estabelecia-se o estudo
vocal, mais prático, uma vez que o entendimento da leitura (parte teórica) já estaria assimilado
(cf. JARDIM, 2008, p. 83-84).
Nos livros didáticos para o canto orfeônico, constituído como matéria obrigatória do cur-
rículo do ensino secundário, em 1931, e, posteriormente, de todos os estabelecimentos escolares,
permaneciam esses conhecimentos nucleares da disciplina, embora a serviço de uma prática cole-
tiva disciplinadora, incutidora de estados de espírito ligados ao amor e exaltação à pátria e ao ci-
vismo. A partir da década de 1970, o enfoque polivalente no ensino das artes, o experimentalismo
e a pró-criatividade assumem o protagonismo com a educação artística, implementada pela Lei n.
5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971), que, segundo Penna (2008, p. 123-124), apenas ofi-
cializa uma tendência já dominante na prática pedagógica escolar. Entretanto, nos livros didáticos
ainda é possível encontrar como corpus do conhecimento musical selecionado elementos ligados à
decodificação da notação musical.
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A partir desses traços curriculares mapeados, Pereira (2016) entende que a escola acaba
por consolidar, ao longo dos anos, uma cultura própria fortemente influenciada pelo ensino
especializado de música, em que a história da música (ocidental, erudita, branca e europeia) e
a teoria musical (ligada à decodificação da partitura e à exploração dos chamados parâmetros
sonoros) são aceitas como algo natural, inerente, inseparável e necessário para qualquer prática
musical. Constrói-se uma crença sobre o que constitui a disciplina escolar música: com o passar
dos anos, a manutenção do trabalho com esses “elementos rudimentares” da música acaba por
consagrar o estudo dos parâmetros do som e da notação musical como uma tradição curricu-
lar da educação musical escolar. As mudanças que ocorreram ao longo do tempo, conforme
a análise realizada, deram-se num sentido mais metodológico do que propriamente curricular.
Haveria, portanto, uma tradição seletiva e inventada que se consolida ao longo tempo. A na-
turalização dessa tradição inventada, com fortes influências da instrução musical especializada,
contribui para inibir o desenvolvimento de uma tradição de currículo pensada especificamente
para a escola de educação básica.
Uma tradição inventada significa um conjunto de práticas e ritos: práticas que são regidas
por normas expressas ou tacitamente aceitas e ritos que procuram fazer circular certos valores e
normas de comportamento mediante repetição, o que automaticamente implica uma continuida-
de com o passado (GOODSON, 2013, p. 27). Entretanto, Goodson (2013, p. 27) destaca que essa
tradição curricular não é algo pronto de uma vez por todas, mas algo a ser defendido, em que,
com o tempo, mistificações tendem a se construir e reconstruir. E, como defende Sobreira (2012,
p. 50), “os sentidos do que deva ser validado como Educação Musical não são fixados, mas estão
em permanente disputa e (...) tais embates fazem parte do processo de disciplinarização deste
componente” curricular.
É nesse sentido que acreditamos que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) repre-
sentou – e representa – para a área de educação musical uma oportunidade para refletirmos sobre
modos de ocupar o espaço que foi garantido à música na educação básica; uma oportunidade para
buscarmos construir consensos, mesmo que provisórios, sobre como tornar a música objeto de
ensino nas escolas, sobre como pensar o ensino de música como parte dos currículos escolares,
entendidos como caminhos a serem trilhados em direção à concretização de projetos formativos
de crianças, jovens e adultos que se desenvolvem na educação básica.
Assumimos, neste trabalho, a definição de Goodson (2013, p. 21) acerca do currículo escrito
como referencial:
Nosso propósito é apresentar uma análise do tratamento dado à música em três versões
da BNCC: a primeira, um documento preliminar lançado em setembro de 2015 e disponibilizado
para consulta pública; a segunda, uma versão revisada lançada em maio de 2016, posteriormente
posta em debate nos Seminários Estaduais promovidos pelo Conselho Nacional de Secretários
de Educação (Consed) e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime)
em todas as unidades da federação; e a versão final, homologada em dezembro de 2017, referente
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somente à educação infantil e ao ensino fundamental. Essas três versões da BNCC são por nós en-
tendidas como documentos curriculares que testemunham os sentidos em disputa para legitimar
a escolarização da música.
Considerando que nossa atuação, tanto no ensino quanto na pesquisa, tem focalizado a
formação de professores em cursos de licenciatura em música, que irão atuar, prioritariamente,
nas etapas dos ensinos fundamental e médio, e que a Base para o ensino médio não havia sido
homologada quando da elaboração deste capítulo, limitaremos nossa análise ao ensino fundamen-
tal, com destaque para os objetivos de aprendizagem – assim nomeados na primeira versão, mas,
posteriormente, objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, na segunda versão, e habilidades,
na versão final homologada –, já que é neles que se evidenciam os conhecimentos em disputa e,
mais que isso, a relação desses conhecimentos com as finalidades da educação básica.
Retomamos, aqui, textos desenvolvidos para os fóruns promovidos pela Associação Bra-
sileira de Educação Musical (Abem) para a discussão da BNCC com seus associados e ideias
apresentadas durante a elaboração da segunda versão da BNCC, de que participamos como re-
presentantes da Abem. Essa participação ensejou em nós questionamentos e reflexões constantes
não só sobre a necessidade, mas também sobre a possibilidade de se chegar a uma base curricular
nacional e comum, num país de tantas diferenças e diversidade como o nosso. Permitiu-nos, ainda,
vivenciar várias das dificuldades e desafios envolvidos nesse processo e nos exigiu uma vigilância
constante, no sentido de respeitar a autonomia das escolas e dos professores e a diversidade de
contextos deste país continental. Nosso envolvimento nesse processo, portanto, indica que a lei-
tura deste capítulo precisa ser perspectivada.
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Na Base, portanto, isto a que chamamos música é concebido como uma forma de expres-
são e participação no mundo, um modo de ação e interação e de construção de significados. Esse
entendimento, entretanto, vai se diluindo à medida que nos aproximamos das particularidades
das artes e dos seus objetivos de aprendizagem, especialmente desses últimos. Dilui-se, também,
a busca por uma formação que vise à interação e participação dos sujeitos escolares em práticas
sociais mediadas pelas artes. É a ideia de processo criativo – como se criatividade ou criação fos-
sem exclusivas às artes – e a atitude desinteressada da experiência estética que parecem orientar as
ideias apresentadas. As dimensões enfatizadas no componente Arte envolvem sensibilidade, ética,
estética e poética, em detrimento de dimensões sociais, culturais, históricas ou políticas.
O afastamento da ideia de linguagem vai se consolidando à medida que a experiência es-
tética atravessa toda a proposta para as artes, que prescreve: “O ensino de Arte deve articular, de
forma indissociável e simultânea, seis dimensões de conhecimento que caracterizam a singularida-
de da experiência estética: ‘estesia’, ‘fruição’, ‘expressão’, ‘criação’, ‘reflexão’ e ‘crítica’” (BRASIL,
2015, p. 84). Não há justificativa, no entanto, para que as práticas com as linguagens artísticas sejam
reduzidas a experiências estéticas. Especificamente em relação à música, tanto estudos e pesquisas
quanto práticas cotidianas e práticas educativas deixam claro que os usos da linguagem música,
as práticas sociais mediadas pela música não têm apenas finalidades estéticas; as relações que se
estabelecem com música, os usos que dela fazem os sujeitos e os significados que a ela atribuem
não são somente estéticos. Reduzir a experiência com música à experiência estética é limitar o
potencial dos encontros com/mediados pela música.
Esses deslizamentos entre diferentes modos de entender a música e seus sentidos na edu-
cação básica parecem dificultar a própria apresentação da linguagem ou do chamado subcompo-
nente, a seguir reproduzida:
Não há, propriamente, uma definição da área, seja como experiência estética ou prática
artística, seja como prática social, atividade ou modo de ação e interação humana, por exemplo.
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Nem mesmo uma referência aos sons e sua organização no tempo, aspectos centrais para a con-
figuração do que costumamos chamar de música, é apresentada. O que se observa são considera-
ções sobre “o processo pedagógico em música”, não sem imprecisões conceituais, talvez porque
o texto parece tomar como base o artigo do alemão Rudolf Dieter Kraemer (2000), que discute
a epistemologia da educação musical, e não da música. Não está claro o significado dos termos
sensoriais, analíticas e discursivas para qualificar práticas musicais. Fruir, refletir e fazer música não
se caracterizam como princípios, mas como formas de se relacionar com música, embora esses
não sejam termos correntemente utilizados pela área de educação musical.
Os objetivos de aprendizagem estabelecidos para o subcomponente música, tanto nos anos
iniciais quanto nos anos finais do ensino fundamental, apontam, por sua vez, para a concepção de
música como atividade ou prática, aproximando-a novamente da ideia de linguagem, o que é evi-
denciado, como se pode ler a seguir, pelo uso de verbos como vivenciar, experimentar e explorar
e pela ênfase que se dá às atividades musicais de apreciação, criação e interpretação, práticas que
materializam formas de interação por meio da música de diferentes grupos, em distintas situações
e contextos.
Anos iniciais:
-- Vivenciar práticas de apreciação, criação e interpretação, considerando processos de ex-
perimentação instrumental (convencional e alternativa) e vocal, individuais e coletivas.
-- Conhecer os elementos constitutivos da música em experiências de criação, interpre-
tação e apreciação musical, contextualizando-os.
-- Experimentar sonoridades, materiais e técnicas diversas para a construção de instru-
mentos musicais.
-- Manipular fontes sonoras diversificadas, convencionais e alternativas, explorando-as
em propostas de criação e interpretação musical.
-- Conhecer e reconhecer repertório musical regional, nacional e estrangeiro, relacio-
nando códigos e convenções que são específicos da música.
-- Criar e apropriar-se de diferentes formas e técnicas de grafia musical (convencionais
e alternativas).
-- Exercitar a análise das produções musicais já consolidadas e próprias, individual e
coletivamente. (BRASIL, 2015, p. 87)
Anos finais:
-- Conhecer aspectos técnicos, estilísticos, históricos e interpretativos na prática instru-
mental (convencional e alternativa) e vocal em propostas de criação, interpretação e
apreciação musical, individuais e coletivas.
-- Compreender e apropriar-se de repertórios, códigos e convenções que constituem as
especificidades da música, identificando-os em propostas de criação, interpretação
e apreciação musical.
-- Experimentar sonoridades, materiais e técnicas diversas para a construção de instru-
mentos musicais, aperfeiçoando-os em nível de complexidade crescente.
-- Reconhecer e utilizar fontes sonoras diversificadas em propostas de criação, inter-
pretação e apreciação musical.
-- Reconhecer e utilizar diferentes formas de grafia musical (convencionais e alternati-
vas) em propostas de criação, interpretação e apreciação.
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como é o nosso, quanto ao dever de respeitar a autonomia dos professores e das comunidades
escolares na construção dos currículos, prevista legalmente.
Linguagens podem ser definidas como “formas de articular significados coletivos em códi-
gos, ou seja, em sistemas arbitrários de representação, compartilhados e variáveis, e de lançar mão
deles como recursos para produzir e compartilhar sentidos” (FILIPOUSKI; MARCHI; SIMÕES,
2009, p. 53-54). Se essa definição é aceita, trata-se, então, de buscar mais consistência interna no
exercício de indicar – com consciência da provisoriedade e da incompletude inerentes a esse exer-
cício – componentes desses sistemas de representação e formas de colocar códigos em ação para
produzir e compartilhar sentidos em diferentes situações e campos de atuação.
Nesse sentido, cabe ainda ressaltar que as ações e interações mediadas pela música contem-
pladas nos objetivos parecem restritas à sala de aula e desprovidas de significados, usos e funções
e de contextos de atuação, desconsiderando a ideia de que são as linguagens, incluindo a música,
que possibilitam aos sujeitos sua participação no mundo. Não fica claro nos objetivos como as
aprendizagens neles indicadas possibilitarão aos alunos “uma participação efetiva e competente
nas práticas sociais e profissionais que envolvem a [música]” (ver SOARES, 2004, p. 6). Entende-
mos que os objetivos deveriam indicar aprendizagens capazes de contribuir para que os sujeitos
possam se inserir num mundo que é construído também pela música, nele agir, interagir e intervir.
Por fim, também nos parece não haver um sentido de desenvolvimento dos anos iniciais para os
anos finais; vistos como um todo, os objetivos das duas fases não configuram uma trajetória a ser
percorrida pelos alunos ao longo do ensino fundamental.
As inconsistências que identificamos podem ser justificadas pelo caráter preliminar da pri-
meira versão da BNCC, que, conforme previsto, poderia ser modificada, ampliada, revista, como,
de fato, aconteceu. Parece-nos, entretanto, que elas também refletem certa dificuldade de pensar a
educação musical escolar a partir do conceito de linguagem, como definido pelas Diretrizes Cur-
riculares Nacionais para o Ensino Fundamental, e de sinalizar como determinadas aprendizagens
musicais podem contribuir para o desenvolvimento das crianças, jovens e adultos que frequentam
o ensino fundamental e assegurar-lhes “a formação comum indispensável para o exercício da ci-
dadania”, cumprindo, assim, finalidades da educação básica previstas na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (BRASIL, 1996).
A ênfase dada às atividades de apreciação, criação e interpretação musicais, ao nosso ver,
não apenas respeita a natureza da música, mas consolida sentidos para a educação musical es-
colar com potencial para construir outras tradições curriculares para a área. Entretanto, “[n]um
contexto marcado por finalidades, propósitos e intencionalidades, como é a educação básica,
experiências musicais não podem ser imediatamente tomadas como experiências formativas”
(DEL-BEN et al., 2016). Além de serem capazes de apreciar, criar e interpretar músicas, acredita-
mos que, em seu processo de escolarização, crianças, jovens e adultos também têm o direito de
compreender que a música é uma prática construída por pessoas, entre pessoas e para pessoas,
uma prática social na sua origem e na sua realização, um modo de ação e interação humana, o
que nos demanda reconhecer os muitos significados, usos e funções de diferentes músicas na
sociedade, compreender o processo de produção, circulação e recepção da música na socieda-
de, compreender como a música constrói relações sociais e identidades individuais e coletivas,
enfim, compreender que nos expressamos e nos construímos como pessoas e coletivos também
por meio das nossas relações com música.
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A Música é uma expressão humana que se materializa por meio dos sons, que ga-
nham forma, sentido e significado nas interações sociais, sendo resultado de saberes
e valores diversos estabelecidos no âmbito de cada cultura. A ampliação e a produ-
ção dos conhecimentos musicais passam pela percepção, pela experimentação, pela
reprodução, pela manipulação e pela criação de materiais sonoros diversos, dos mais
próximos aos mais distantes da cultura musical do estudante. Na Educação Bási-
ca, o processo de formação musical garante ao sujeito o direito de vivenciar musi-
ca inter-relacionada à diversidade, desenvolvendo saberes musicais fundamentais
para sua inserção e participação crítica e ativa na sociedade. Como forma artística,
a música tem potencial para promover o trabalho interdisciplinar, seja com as de-
mais linguagens da Arte, seja com outros componentes e áreas do currículo escolar.
(BRASL, 2016, p. 116)
Anos iniciais:
-- Explorar elementos constitutivos da música em práticas diversas de composição/cria-
ção, execução e apreciação musicais, privilegiando aquelas presentes nas culturas infantis.
-- Experimentar diferentes formas de utilização de fontes sonoras, materiais sonoros e
técnicas em práticas de composição/criação, execução e apreciação musical, privile-
giando aquelas presentes nas culturas infantis.
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sociais por ela mediadas: uma materialidade – as fontes e materiais sonoros, os mais diversos
– que precisa ser experimentada, explorada, manipulada, organizada, para que se transforme
em música ou seja reconhecida como tal; técnicas, entendidas como modos de fazer, como
procedimentos, e tecnologias que permitem que se realizem essas e outras ações, como produ-
zir, registrar, compartilhar e interagir; e elementos constitutivos da música, entendidos como
códigos relativamente estruturados, que podem ser os mais variados, a depender das práticas
e tradições em questão.
Os objetivos também indicam que as pessoas se relacionam com música com alguma
intencionalidade, para agir no mundo, para interagir com outras pessoas, para dizer algo sobre
si mesmas, sobre os outros, sobre o mundo, que seriam os usos e funções da música, o que
demanda uma atitude ética. E, por se tratar de linguagem, não poderiam fazê-lo unicamente a
partir de uma perspectiva individual, o que aponta para a relevância, e mesmo necessidade, de
conhecer o patrimônio musical, de interagir com dispositivos e equipamentos, compartilhar o
que se aprende na aula de música na escola com espaços fora da aula e da escola, anunciando
possibilidades de uso da linguagem musical para a participação no mundo. A referência cons-
tante às culturas infantis e juvenis indica o reconhecimento dos saberes dos sujeitos, construí-
dos entre eles, independentemente das intencionalidades da escola, e o entendimento de que as
práticas musicais são sempre práticas culturais.
O sentido de desenvolvimento ao longo do ensino fundamental nos parece mais bem
evidenciado nos objetivos, já que, construídos com base nos mesmos parâmetros, eles preve-
em aquisições diferenciadas ao final de cada fase. A ideia que emerge dos objetivos é de que
os alunos partam de uma relação com música mais intuitiva e de experimentação e caminhem
em direção a uma relação mais analítica e autoral, modificando suas relações com música à me-
dida que ampliam suas referências e ações. Por exemplo, se, ao final dos anos iniciais, espera-
se que os alunos “[explorem] elementos constitutivos da música em práticas diversas de com-
posição/criação, execução e apreciação musicais, privilegiando aquelas presentes nas culturas
infantis” (BRASIL, 2016, p. 238), ao final dos anos finais, a ação esperada em relação a esses
elementos é qualitativamente diferente, qual seja, “identificar e manipular elementos constitu-
tivos da música em práticas diversas de composição/criação, execução e apreciação musicais,
privilegiando aquelas presentes nas culturas infanto-juvenis” (BRASIL, 2016, p. 398). Em rela-
ção aos usos e funções da música em seus contextos de produção e circulação, espera-se que,
ao final da primeira fase do ensino fundamental, eles sejam reconhecidos pelos alunos; ao fi-
nal do ensino fundamental, a expectativa é que eles compreendam esses mesmos usos e fun-
ções. Também é possível perceber a perspectiva de uma ampliação das relações com música
nos anos finais, pelo acréscimo de um objetivo que prevê a compreensão das “práticas musicais
nas suas relações com as esferas social, cultural, política, histórica, econômica, estética e ética”
(BRASIL, 2016, p. 398).
Ressaltamos, na nossa análise, como os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento
apresentados na segunda versão da BNCC operacionalizam o entendimento de música como lin-
guagem. Embora expressa nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, a
concepção de música como linguagem deve ser vista, tão somente, como uma possibilidade, como
um dos modos possíveis de conceber a natureza da música. Entretanto, essa parece-nos ser uma
possibilidade capaz de contribuir para o desenvolvimento de um pensamento curricular na área
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voltado especificamente para a educação básica. Isso porque o que se anuncia é a possibilidade de
se pensar o ensino de música com “intenção educacional” (BOWMAN, 2002, p. 64), perspectiva
em que a aprendizagem musical – isto é, a aquisição de informações, o domínio de habilidades e
procedimentos e a construção de conceitos, valores e sensibilidades em música e sobre música –
se alia a um sentido de formação. Na perspectiva da formação, a educação é entendida como um
encontro entre o aluno e o mundo, “no qual e através do qual [o aluno] adquire uma certa ‘for-
ma’. Esse encontro não pode ser entendido como a simples impressão da forma do mundo [no
aluno]. É um encontro no real sentido da palavra, em que algo acontece [no aluno] e no mundo”
(BIESTA, 2018, p. 22-23).
Tratar a música como linguagem, a nosso ver, acolhe o entendimento de que música é
uma atividade humana e uma prática social, é algo que vivenciamos na nossa vida, entre outros,
com outros, para outros, por meio de diferentes ações, em diversas situações e contextos, por
meio das quais interagimos, nos expressamos, nos comunicamos, nos anunciamos e nos cons-
truímos. Nisso, acreditamos, se pode perceber o potencial ou um dos potenciais formativos da
música na educação básica: a música, ou, mais precisamente, a relação com música, pode nos
ajudar a nos fazermos presentes no mundo e a estarmos nesse mundo com o outro. Caberá aos
projetos educativos nas escolas qualificar esse modo de se fazer presente e de estar no mundo
com o outro.
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E ainda:
Nos anos finais do Ensino Fundamental, Artes Visuais, Dança, Música e Te-
atro constituem as quatro linguagens da Arte, cada uma a ser ministra-
da pelo respectivo professor, formado em uma das licenciaturas: Artes Vi-
suais, Dança, Música e Teatro. A partir da construção histórica das artes na
escola brasileira e da legislação vigente, não há formação polivalente em Ar-
tes, mas licenciaturas que formam professores em um dos quatro componentes.
(BRASIL, 2016, p. 394)
Todas essas passagens foram suprimidas na versão final da BNCC. Não há qualquer
menção ao ensino polivalente, nem mesmo à formação específica dos professores. Não se pode
esquecer que documentos como a BNCC são indutores de políticas públicas. Logo, explicitar a
negação de práticas polivalentes e apontar a atuação de professores com formação específica
como uma possibilidade – ainda que ideal – contribui para a construção de um novo cenário
para o ensino de artes nas escolas de educação básica. Tais trechos suprimidos funcionariam
de maneira oposta ao que se observa na versão final: como indutores de novas práticas, e não
como legitimadores de velhas posturas.
Além das supressões referidas, a criação da área temática “Artes Integradas” contribui
para a legitimação das velhas posturas polivalentes, ainda que as habilidades ali reunidas não
conduzam necessariamente a essa leitura. A versão final da BNCC assume que “as aprendiza-
gens essenciais definidas para cada etapa da educação básica (...) só se materializam mediante
o conjunto de decisões que caracterizam o currículo em ação”, entre elas, “decidir sobre
formas de organização interdisciplinar dos componentes curriculares” (BRASIL, 2017a, p. 16).
Não cabe, portanto, à BNCC sugerir uma unidade temática interdisciplinar. Essa “sugestão”
de integração dentro de um componente não ocorre em nenhum outro momento ao longo de
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toda a BNCC, apenas no componente curricular Arte, criando, assim, condições para que se
exija, de um único professor, posturas polivalentes não somente com o intuito de se cumprir
a unidade temática “Artes Integradas”, mas todas as habilidades elencadas no componente
curricular.
Ainda reforçando a ideia da polivalência, e enfraquecendo a compreensão da música como
linguagem, observamos a retomada da ênfase em uma compreensão mais estética das lingua-
gens artísticas, reforçando a subjetividade e a sensibilidade, e abandonando a ideia de campo
epistemológico da versão anterior. Nesse sentido, altera-se a definição de Música presente na
segunda versão da BNCC: entendida como “expressão humana que se materializa por meio dos
sons, que ganham forma, sentido e significado nas interações sociais, sendo resultado de sa-
beres e valores diversos estabelecidos no âmbito de cada cultura” (BRASIL, 2016, p. 116), pas-
sa a ser definida como “expressão artística que se materializa por meio dos sons, que ganham
forma, sentido e significado no âmbito tanto da sensibilidade subjetiva quanto das interações so-
ciais, como resultado de saberes e valores diversos estabelecidos no domínio de cada cultura”
(BRASIL, 2017a, p. 194, grifos nossos).
No que diz respeito às habilidades, elas “expressam as aprendizagens essenciais que
devem ser asseguradas aos alunos nos diferentes contextos escolares” (BRASIL, 2017a, p.
29). Para tanto, elas seguem uma estrutura pré-definida, em que verbos que explicitam os
processos cognitivos envolvidos na habilidade são seguidos de um complemento, que expli-
cita o objeto de conhecimento mobilizado, e de modificadores que explicitam a situação ou
condição em que a habilidade deve ser desenvolvida (BRASIL, 2017a, p. 29-30). Essa proposta,
justificada como forma de uniformização, não foi adotada para orientar a elaboração das
versões anteriores da BNCC. Assim, a construção da segunda versão da BNCC pautou-se pela
tentativa de construir objetivos de aprendizagem e desenvolvimento amplos, que asseguras-
sem a autonomia dos professores e a diversidade de práticas musicais consideradas como
objetos de estudo. A versão final alterou esses objetivos – nomeando-os de habilidades –,
dando-lhes um caráter mais de currículo do que de base, ao definir conteúdos e metodologias,
restringindo, dessa maneira, a liberdade dos professores no desenvolvimento de suas práticas
educativo-musicais nas escolas.
Essa alteração se evidencia já nos cinco objetos de conhecimento que dão corpo à
unidade temática música. Esses objetos, tanto nos anos iniciais quanto nos finais, são os
seguintes: contexto e práticas, elementos da linguagem, materialidades, notação e registro
musical, processos de criação (BRASIL, 2017a, p. 200; p. 206). Eles não são definidos nem
se apresentam argumentos que justifiquem as categorias escolhidas, que não nos parecem
consistentes. Elementos, por exemplo, por não serem universais, não podem ser tratados de
modo desvinculado de contextos e práticas. Destacar notação e registro musical, no mesmo
nível de elementos da linguagem, indica ênfase num tipo de técnica ou tecnologia – aquela
que permite diversos modos de registro –, desconsiderando técnicas que possibilitam, por
exemplo, a manipulação de instrumentos, a organização dos sons no tempo ou a circulação
de práticas musicais. Nomear processos de criação como um objeto de conhecimento sinaliza
priorizar essa forma de relação com música em detrimento de outras, como execução ou in-
terpretação e apreciação. É em torno desses objetos que são construídas as habilidades para
a música, apresentadas a seguir.
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Música Contexto e práticas - Analisar criticamente, por meio da apreciação musical, usos e
funções da música em seus contextos de produção e circulação,
relacionando as práticas musicais às diferentes dimensões da
vida social, cultural, política, histórica, econômica, estética e
ética.
- Explorar e analisar, criticamente, diferentes meios e
equipamentos culturais de circulação da música e do
conhecimento musical.
Reconhecer e apreciar o papel de músicos e grupos de música
brasileiros e estrangeiros que contribuíram para o desenvolvimento
de formas e gêneros musicais.
- Identificar e analisar diferentes estilos musicais, contextualizando-
os no tempo e no espaço, de modo a aprimorar a capacidade de
apreciação da estética musical.
Elementos da Explorar e analisar elementos constitutivos da música (altura,
linguagem intensidade, timbre, melodia, ritmo etc.), por meio de recursos
tecnológicos (games e plataformas digitais), jogos, canções e
práticas diversas de composição/criação, execução e apreciação
musicais.
Materialidades Explorar e analisar fontes e materiais sonoros em práticas
de composição/criação, execução e apreciação musical,
reconhecendo timbres e características de instrumentos musicais
diversos.
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partir da versão final da BNCC, o ideário polivalente a respeito do trabalho com artes – ligado às
práticas da educação artística, consagradas na década de 1970 –, que ainda prevalece em muitas
escolas brasileiras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso ponto de partida para a construção deste texto foi a constatação de que, apesar
da existência de produção crítica a respeito da educação musical escolar, não identificamos a
consolidação de um pensamento curricular voltado especificamente para a educação básica. É
nesse cenário que a área de música é levada a participar da escrita de uma Base Nacional Comum
Curricular, realizando esforços para se (re)constituir como uma linguagem artística que integra o
componente curricular Arte.
A partir da análise por nós empreendida, entendemos que a consolidação de um pensamen-
to curricular da área de música, voltado especificamente para a educação básica, dá-se a partir do
entendimento expresso na legislação educacional brasileira de que a música é uma linguagem que
medeia as interações humanas.
Na primeira versão da BNCC, essa concepção se mostra ainda frágil, prevalecendo a
atitude desinteressada da concepção estética como orientadora dos objetivos de aprendizagem.
Perde-se, portanto, o foco em uma formação que vise à interação e à participação dos sujeitos
escolares em práticas sociais mediadas pela música. As dimensões enfatizadas no componente
Arte envolvem sensibilidade, ética, estética e poética, em detrimento de dimensões sociais, cul-
turais, históricas ou políticas.
A segunda versão apresenta um avanço nesse exercício de concepção da música como
linguagem importante para a formação dos sujeitos escolares. Nessa versão, cada linguagem
artística é reiterada como possuindo um campo epistemológico próprio, singularidades que
exigem abordagens pedagógicas específicas das artes e, portanto, formação docente espe-
cializada. O texto que apresenta a área ganha mais consistência do que aquele registrado na
versão anterior, que focalizava a experiência pedagógica em música e não a música em si: a
música é entendida como expressão humana que se materializa por meio dos sons, que ga-
nham forma, sentido e significado nas interações sociais, sendo resultado de saberes e valores
diversos estabelecidos no âmbito de cada cultura. Os objetivos de aprendizagem e desen-
volvimento são pensados a partir dessa definição, procurando-se amplos o suficiente para
abarcar a diversidade de possibilidades em um país de dimensões continentais como o Brasil.
Já a versão final da BNCC, rompe com esse movimento anterior, retomando a con-
cepção estética inicial, e, de maneira mais geral, alterando a concepção da própria Base ao
assumir as competências e habilidades como conceitos-chave para a sua organização. Essa
alteração, no que se refere à “área temática” música, conferiu ao documento um caráter mais
de currículo do que de base, definindo conteúdos e metodologias, e restringindo, dessa for-
ma, a liberdade dos professores no desenvolvimento de suas práticas educativo-musicais nas
escolas.
Por fim, ainda que a versão final da BNCC para o ensino fundamental não represente uma
situação ideal, uma vez que rompe com todo o trabalho democrático que vinha sendo realizado
anteriormente, a participação da área de música nos debates acabou por contribuir para uma
(re)orientação do pensamento curricular, direcionando-o às especificidades da educação básica
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REFERÊNCIAS
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