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Grupo de percussão da UEFS: uma experiência de ensino coletivo

decolonial

MODALIDADE: RELATO DE EXPERIÊNCIA

Aaron Roberto de Mello Lopes


Universidade Estadual de Feira de Santana – armlopes@uefs.br

Marley Araújo Silva


Universidade Estadual de Feira de Santana – marleyaraujo664@gmail.com

Resumo. Esse artigo se trata de um relato de experiência sobre as atividades desenvolvidas, no ano
de 2019, pelo grupo de percussão da UEFS, o qual busca ter uma proposta de um ensino coletivo
(TOURINHO, 2007; CRUVINEL, 2003, 2005; DANTAS, 2010) decolonial (CARVALHO, 2020), através
da valorização das matrizes musicais afro-brasileiras. Para tanto, o grupo realizou um estudo de
repertório de toques sagrados de candomblé, ritmos tradicionais de origem negra, além de um
aprofundamento no repertório do grupo “Os Tincoãs”. Devido ao seu caráter que valoriza a diversidade
cultural, a existência desse conjunto para a formação dos discentes do curso de música e da
comunidade da UEFS em geral.

Palavras-chave. Percussão; Ensino coletivo; Decolonialidade.

Title. The UEFS percussion group: one experience of collective decolonial teaching.

Abstract: This article is an experience report of the activities developed in 2019 by the UEFS
Percussion Group, wich seeks to have a colletive teaching (TOURINHO, 2007; CRUVINEL, 2003, 2005;
DANTAS, 2010) decolonial (CARVALHO, 2020) proposal, through the valorization of afro-brazilian
musical matrices. To this end, the group conducted a study of the repertoire of sacred rhythms of
candomblé, traditional rhythms of black origins, in addition to deepening the repertoire of the group “Os
Tincoãs”. Due to is character that balues cultural diversity, the existence of this group for the training of
students in the music course and the UEFS community in general.

Keywords. Percussion; Collective Teaching; Decoloniality

1. A criação do grupo de percussão como decolonização do ensino de


música.
O grupo de percussão da UEFS é um grupo residente do Programa de
Extensão ensino coletivo de instrumentos musicais (ECIM), que desenvolve atividades
de ensino de percussão e performance musical em conjunto com outros grupos do
ECIM, como a Orquestra Sinfônica e o Grupo de Choro da UEFS. A existência de um
grupo de percussão era uma antiga demanda dos alunos percussionistas ou
interessados em aprender percussão do curso de Licenciatura em música (LICEMUS)
da UEFS, que até então não contava com atividades de ensino dessa natureza. Nesse
sentido, a primeira iniciativa de criação de um grupo de percussão no LICEMUS viria
a surgir em 2017, através de um espetáculo multidisciplinar intitulado “Mitologia dos
Orixás”, produzido pela disciplina “Formação de Contadores de Histórias” (BRAGA,

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SOUZA e LOPES, 2017). Neste espetáculo, alunos da disciplina “História e
Diversidade da Música Brasileira I”, ministrada pelo Professor Aaron Lopes, foram
convidados a se juntar ao grupo musical da apresentação realizando a parte
percussiva, através dos toques sagrados dos orixás do candomblé baiano.
A partir dessa iniciativa e partindo de uma perspectiva de decolonização de
componentes curriculares do curso de música da UEFS, o professor Aaron Lopes
passou a ofertar disciplinas (a exemplo de “Música e Cultura Baiana” e “Mitologias e
práticas musicais afro-brasileiras”) que buscaram valorizar as matrizes afro-brasileiras
através da sua prática musical, além de realizar reflexões teóricas sobre a importância
do estudo e valorização dessas matrizes, bem como a sua aplicação futura, por parte
dos alunos licenciados, dentro de espaços educativos. Após esse primeiro momento,
foi criado, em 2018, o grupo de percussão da UEFS que, no biênio 2019-2020, contou
com o apoio do bolsista de extensão (PIBEX-UEFS) Marley Araújo.
Segundo Carvalho (2020), é fundamental essa busca por uma decolonização
dos currículos, como uma maneira de valorizar os saberes de matrizes negras e
indígenas, até então marginalizadas pela universidade:

A condição de criação mesma das nossas universidades foi colonizada.


Nossa elite branca trouxe uma elite acadêmica europeia branca para fundar
uma universidade estritamente nos moldes das universidades ocidentais
modernas. O modelo institucional foi o humboldtiano, com a separação entre
as faculdades e os institutos de pesquisa, obedecendo à mesma divisão de
saberes da matriz europeia e inscrevendo nossa academia como uma
variante da chamada civilização ocidental. (Carvalho, 2020, p.84)
Nesse sentido, a implantação de um conjunto de percussão como grupo
musical permanente do curso de música da UEFS, buscou valorizar esses saberes e
contemplar as matrizes históricas afro-brasileiras dentro das práticas educativas do
curso, pois, segundo Souza (2019):

Reconhecer as estruturas da colonialidade no campo da educação musical e


do ensino de instrumento não é suficiente para transformar essa realidade,
considerando uma perspectiva de libertação das estruturas coloniais. A
conscientização é sim um passo importante, no entanto, quando
consideramos o giro decolonial (...) precisamos dar um passo além, que é o
da ação. É necessário ser propositivo, pois identificar e ser crítico não é
suficiente. (p.177)

Portanto, a existência do grupo de percussão trouxe uma valorização maior da


diversidade cultural dentro do LICEMUS e o seu foco no repertório de matriz africana

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e afro-brasileira foi fundamental para a busca por um ensino musical contra-
hegemônico.

2. O grupo de percussão e a prática do Ensino coletivo.


Como já dito anteriormente, o grupo de percussão iniciou, oficialmente, as suas
atividades em 2018, mas sua proposta de atividade de ensino se inicia em 2019,
através da oferta da oficina “Iniciação à percussão”. As aulas tiveram como base o
ensino coletivo, tendo como referências Cristina Tourinho1 (2007), Flávia Cruvinel
(2003; 2005) e Taís Dantas (2010). Sobre o ensino coletivo, Cruvinel destaca o seu
caráter de democratização do ensino de música:

O ensino coletivo é uma importante ferramenta para o processo de


democratização do ensino musical, contribuindo de forma bastante
significativa neste processo. A musicalização através do ensino coletivo, pode
dar acesso a um maior número de pessoas à Educação musical, aumentando
a razão professor/aluno por esforço hora/aula ministrada. (...) Pode-se afirmar
que o estudo da música, através do ensino coletivo, veio democratizar o
acesso do cidadão à formação musical. (CRUVINEL, 2003, p.2).
Sobre a prática do ensino coletivo, Cruvinel (2005) destaca, ainda, a sua
importância como prática de socialização dos indivíduos pertencentes ao grupo de
estudo. A autora frisa, também, a importância do mesmo como atividade com grande
capacidade de motivação para os alunos 2. Essa percepção é também compartilhada
por Dantas (2010), que, ao descrever os resultados finais da sua pesquisa de
doutorado, afirma que “o fator que mais contribui para a motivação no processo de
aprendizagem é a interação no grupo.” (p.406). Segundo a autora:

A convivência com os colegas foi a resposta mais citada pelos alunos, como
sendo o fator que mais motiva as aulas. O que mais surpreendeu nas
respostas indicadas pelos alunos foi o fato de que o fator “convivência” não
havia sido destacado nem pelos professores nem na literatura consultada a
respeito do tema. A segunda resposta mais indicada pelos alunos foi a
oportunidade de aprender em grupo. Sentir-se parte de um conjunto musical
e o estímulo do professor foram citadas de forma eqüitativa pelos alunos
como o sendo o terceiro fator que mais gera satisfação nas aulas coletivas.
Ressalta-se que a bibliografia consultada indica que um dos fatores que mais
motivam o aluno iniciante no instrumento de corda realizado em grupo é a

1
Neste artigo, optamos por nos referir às autoras femininas (pelo menos em sua primeira menção) com
o seu nome e sobrenome, como forma de dar visibilidade ao conteúdo produzido por mulheres.
2
“Segundo Oliveira (1998), o ensino coletivo é mais estimulante para o aluno iniciante devido ao seu
maior desenvolvimento em menos tempo de aula, em decorrência das técnicas pedagógicas usadas
no ensino coletivo”. (CRUVINEL, 2005, p. 78).

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sonoridade do grupo e a oportunidade de fazer parte de um conjunto musical.
(DANTAS, 2010, p.407)

Sobre esses dados observados no decorrer das atividades da oficina, acredita-


se que o aprofundamento das relações pessoais foi notadamente desenvolvido com
o desenrolar das aulas. Além disso, percebeu-se uma maior inclusão e envolvimento
nas atividades, por parte de alunos que se mostraram inicialmente tímidos ou que
apresentavam alguma insegurança em executar os instrumentos e realizar as
atividades. Outro fator observado, que contribuiu para o sucesso dessa socialização,
foi o grupo de whatsapp criado para comunicação entre a turma, o professor e o
coordenador. Nesse sentido, a troca constante de mensagens, proporcionou uma
maior interação nas relações pessoais entre os participantes do grupo.
Quanto à abordagem metodológica, as aulas foram ministradas tendo como
base métodos de Educação Musical como “O passo” - “uma abordagem
multissensorial”, como define Lucas Ciavatta (2003). Esta se baseia num ensino-
aprendizagem de ritmo num andar especifico e orientado por eixos: corpo,
representação, grupo e cultura. Além desse método foi utilizada a apostila
metodológica do professor Ari Vinicius3- musico e educador musical residente no Vale
do Capão – Chapada Diamantina. As atividades propostas por ele são desafios
motores em níveis diferentes de coordenação com o intuito de praticar a lateralidade,
contribuindo com o domínio corporal, e também estimular e desenvolver a formação
global do ser humano.
É importante ressaltar que a oficina teve como um de seus objetivos o estudo
de padrões rítmicos de muitos gêneros musicais como o baião, forró , maracatu,
samba e samba reggae, e algumas claves rítmicas afro-brasileiras como o ijexá, congo
de ouro, agueré. Além desse estudo, foram também realizados cursos e oficinas com
percussionistas convidados, como foi o caso da oficina “Vivência em ritmos afro-
baianos”, com os percussionistas Márcio Ribeiro e Fabricio Ribeiro e da oficina
“Ritmos de candomblé”, com o percussionista Dainho Xequerê.

3
Este método ainda não foi publicado. À época, tivemos acesso ao material devido à proximidade do
bolsista com o professor.

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Figura 1: Registro da Oficina “Vivência em ritmos afro-baianos. Foto: Coordenador do grupo de
percussão.

À época, foram também realizados ensaios abertos no campus da


universidade, assim como apresentações. Além disso, o grupo de percussão também
se consolidou como um naipe da Orquestra Sinfônica da UEFS e assim, foram
realizados ensaios e a participação do grupo nas apresentações da orquestra, no
Natal Encantado e no Natal do Amor, no município de Berimbau em Conceição do
Jacuípe, em 2018, e na Feira do Livro (FLIFS), em 2019.
O grupo de percussão foi, também, convidado para compor o espetáculo
“AIMÓ: Um encontro com as yabás”, promovida pelo Observatório de Contação de
Histórias da UEFS e pelo Grupo “Conto das 7 Mulheres”. Esse espetáculo foi
apresentado no teatro do Centro Universitário de Cultura e Arte (CUCA) e na UEFS.
Importante frisar que, tanto a participação junto às atividades da orquestra, quanto ao
espetáculo AIMÓ, era facultativa e aberta a todos os alunos do grupo, independente
da experiência e habilidades individuais de cada aluno.

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Figura 2: Registro do coletivo de alunos e artistas envolvidos com a encenação do espetáculo AIMÓ.
Foto: Cesinha dos Olhos D’Água.

Figura 3: registro dos alunos do grupo de percussão no espetáculo AIMÓ. Foto: Cesinha dos Olhos
DÁgua.

Durante o semestre de 2019.2, o grupo de percussão se uniu ao grupo de


alunos da disciplina “música e cultura baiana” para estudar, ensaiar e apresentar um
repertório que teve como referência o repertório musical do grupo “Os Tincõas”. Esse
trio baiano, formado no final de 1950, se tornou notório pelo seu repertório com foco
na música de matriz africana, notadamente na música religiosa afro-brasileira. Nesse
sentido, demos início a uma sequência de ensaios, estudando os ritmos afro-baianos,
construindo novos arranjos, que incluíam o canto coletivo em coro com divisão de

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vozes. Em dezembro de 2019, esse repertório foi apresentado na primeira mostra dos
programas e projetos de extensão do curso de música.

Figura 4: Registro da apresentação do grupo de percussão na I mostra de Extensão do curso de


música da UEFS. Foto: Coordenador do grupo de percussão.

Figura 5: Registro da apresentação do grupo de percussão na I mostra de Extensão do curso de


música da UEFS. Foto: Coordenador do grupo de percussão.

Cabe destacar os desafios enfrentados pelas atividades a partir do contexto da


pandemia, uma vez que ficamos impossibilitados de continuar com os nossos
encontros coletivos e, então, o grupo precisou recorrer às alternativas remotas nas
plataformas digitais, notadamente, o uso de redes sociais do grupo. Nesse sentido, foi
criada uma página de facebook (intitulada “Percussão na palma da mão”) com o
propósito de compartilhar videoaulas de outros percussionistas, performances
percussivas, personalidades do universo percussivo. A página tem postagens

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temáticas como: Mulheres na percussão, performances, videoaulas e curiosidades do
mundo da percussão.

3. Considerações finais
A criação do grupo de percussão da UEFS foi de grande relevância para a
decolonização das práticas musicais do curso de música na universidade, pois, até
então, não eram ofertadas atividades voltadas para o aprendizado do universo
percussivo. A partir da criação do grupo, este passou a ser uma referência para
atividades musicais e culturais da universidade que buscam dialogar com as matrizes
afro-brasileiras e o grupo passou a ser bastante requisitado por outros conjuntos
musicais e artísticos, como pôde-se perceber nos exemplos citados neste artigo.
Como atividade pedagógica, a oficina de Iniciação à percussão foi muito bem
sucedida no seu objetivo de transmitir conhecimentos sobre o universo da percussão
e os conceitos básicos de ritmo e elementos musicais, para alunos iniciantes nos
estudos em música, através da prática do ensino coletivo. Além disso, o grupo se
mostrou bastante motivado e integrado durante os encontros de ensino e de
apresentações artísticas.

Referências

BRAGA, Simone Marques; SANTOS, Luciene Souza e LOPES, Aaron Roberto de


Mello. Mitologia dos Orixás: mostra artística interdisciplinar envolvendo alunos de
licenciatura. In: Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade. UNEB.
Salvador, Vol. 26, n.48 – jan/abr.2017.
CARVALHO, José Jorge de. Encontro de Saberes e descolonização: para uma
refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In:
BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N. e GROSFOGUEL, R. (orgs.)
Decolonialidade e pensamento afrodiaspórica. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
CIAVATTA, Lucas. O Passo: a pulsação e o ensino-aprendizagem de ritmos. Rio de
Janeiro: L. Ciavatta, 2003.
CRUVINEL, Flávia Maria. Efeitos do Ensino Coletivo na Iniciação Instrumental de
Cordas: a educação musical como meio de transformação social. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2003.
CRUVINEL, Flávia Maria. Educação musical e transformação social: uma
experiência com ensino coletivo de cordas. Goiânia: Instituto Centro-Brasileiro de
Cultura, 2005.

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DANTAS, Taís. Aprendizagem do instrumento musical realizada em grupo: Fatores
motivacionais e interação social. In: I Simpósio Brasileiro de pós-graduandos em
música. Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, RJ, 2010.
SOUZA, Luan Sodré de. Educação musical afrodiaspórica: uma proposta decolonial
para o ensino acadêmico do violão a partir dos sambas do recôncavo baiano. Tese
(doutorado) – Universidade Federal da Bahia, 2019.
TOURINHO, Cristina. Ensino Coletivo de Instrumentos Musicais: crenças, mitos,
princípios e um pouco de história. In: XVI Encontro anual da ABEM/Congresso
Regional da ISME na América latina. 2007, Campo Grande, MS. Anais... Campo
grande, MS, 2007.

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