Resumo
Este relato de experiência tem como foco questões pedagógico-musicais nas aulas de canto
em grupo em um projeto social. O objetivo é refletir sobre a aula de canto em grupo, sua
organização, a escolha do repertório, e as formas de ensinar/aprender. Com base nessa
experiência, entende-se que as práticas musicais, nesse espaço, e a forma de
ensino/aprendizagem do canto em grupo são complexas e transitam entre as ações do
professor de música e dos alunos, enquanto participantes na composição da aula de canto em
grupo.
Introdução
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Mestre em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia.
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Uma autora que discute sobre a aprendizagem musical em projetos sociais é Kleber
(2008). Ela discute em sua tese os processos pedagógico-musicais em ONGs, e menciona que
esse espaço é “uma multiplicidade de contextos conectados” (p. 219).
Apesar de a aula de canto em grupo abordar questões sobre o cantar, ela também tem
outros objetivos relacionados diretamente aos alunos, aos seus gostos, às suas dificuldades, às
suas possibilidades vocais. Os interesses musicais e como a equipe do projeto proponente
pensa em como estão sendo realizadas as aulas, também vão definir as práticas nas aulas.
Neste relato, discorro sobre a aula de canto que acontece nesse espaço, como eles
aprendem a cantar, como o repertório é pensado, como são preparadas as músicas, como são
realizados os aquecimentos, as atividades para as vozes e as organizações dos grupos vocais.
Neste projeto, em outras oficinas, os alunos são divididos por idade, os mais novos,
com idade até 8 anos, fazem parte da turma A, os de idade de 9 até 10 e 11 anos da turma B,
e os acima de 12 anos da turma C. Nas aulas de canto em grupo, bem como nas aulas de
percussão e violão, com o professor Zezinho, os alunos foram organizados de forma diferente.
A princípio a direção do projeto propôs que as aulas de canto em grupo fossem realizadas
com as turmas A, B e C separadamente. Iniciei as aulas, mas entendi que não havia
necessidade de três turmas, já que havia poucos alunos que se interessavam em fazer as aulas
de canto em grupo. Mas houve algo peculiar nessa situação. Entendi que os alunos da turma A
poderiam perfeitamente cantar com os alunos da turma B, assim com os da turma C, e vice-
versa. A questão do cantar, e do aprendizado musical por meio da voz, não é delimitada por
uma idade específica. Logo, os mais velhos puderam cantar com os mais novos, e os mais
novos com os mais velhos.
Enxergar dessa forma levou a aula de canto em grupo a ser pensada em sintonia com
aquelas crianças, com aqueles adolescentes.
Na aula de canto em grupo muitos dizem “eu não quero cantar” e depois se envolvem
aparecendo “na janela” para aprenderem, o que na verdade muitas vezes, já o sabem. Em
outros casos, alguns dizem “eu já sei cantar”, por já terem experiências em casa, ou na igreja,
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mas, que não estão adaptados com o cantar em grupo, e que precisam de determinado tempo e
trabalho musical para cantarem juntos na aula. Dessa forma, os alunos da aula de canto em
grupo são, em sua maioria, vozes com características variadas. Essas características variam
entre o saber cantar, o não afinar, o nunca ter cantado, e alunos com sonhos de serem
cantores. O continuar ou sair da aula depende deles mesmos, de seus interesses, de como
lidam com o aprender, com o repetir, com a emissão da voz.
Aos poucos fui entendendo que a escolha pelo grupo de alunos em cada turma não
era apenas minha, a decisão de quem iria ou não participar das aulas. Foram realizadas
algumas triagens, com perguntas: você quer participar da aula? Também houve o momento de
organizar os alunos, aqueles que deveriam ficar juntos. Mesmo tentando organizar a lista de
participantes, para que eles ficassem juntos, eles também tomaram decisões se iriam participar
da aula. Durante todo o semestre a lista de participantes foi mudando, e não teve uma
definição final, até o momento.
Algo característico nessas turmas foi que eles cantavam juntos, aqueles que sabiam
emitir alturas e os que ainda não sabiam o que seria emitir ou imitar uma altura. Algo que
separou os alunos e os selecionou, foi a questão da disciplina. Eles mesmos, falavam entre si,
comentavam uns dos outros sobre os que deveriam ou não continuar na turma. Nesse
momento tentei intervir, pois ensinava que precisamos acreditar nas pessoas que, por sua vez,
podem mudar, podem aprender a aceitar as pessoas novas, os novos alunos, os alunos que não
têm boa disciplina, dando-lhes outra oportunidade de participar.
Os alunos se organizavam, e possuíam senso crítico entre eles, falando sobre eles
mesmos, entre eles. Durante as aulas percebi comentários que faziam uns aos outros. Em
vários momentos paramos as aulas para falarmos sobre determinadas temáticas que surgiam e
também para separar brigas, e desavenças por causa dos comentários que faziam sobre as
vozes. Quando acontecia algum erro de alguém, ou alguma forma diferente de cantar, os
próprios alunos comentavam sobre o que estava errado. O julgamento deles era apurado e,
muitas vezes, severo.
A aula de canto precisava ter algo que os levassem a um som com afinação, e que
cantassem juntos. Resolvi trabalhar sobre o ar, realizando exercícios de respiração em uma
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atividade com balões. Em uma das turmas, eles ainda cobravam os exercícios nas aulas
seguintes, e não deixam de realizá-los.
Os exercícios de aquecimento não tiveram o objetivo de trabalhar uma extensão ou
resistência vocal propriamente, mas fazer com que eles cantassem juntos, de preferência em
uníssono, dentro de uma mesma afinação. Alguns dias eles cantaram as cirandas, outros dias
cantaram música gospel, outros dias, uma sequência melódica. Nesses exercícios, eles
adaptaram as vozes aos poucos, de maneira que foram experimentando alturas. No início eles
tinham dificuldades e, aos poucos, conseguiram uma realização melhor. Eles experimentaram
vários tons diferentes de maneira que a questão melódica foi trabalhada e, como resultado,
puderam cantar um som mais uniforme.
A aula de música nesse projeto teve um misto de cantar, de descobrir o que precisava
ser ensinado, de ouvir o que eles já sabiam, de dividir o momento do cantar com outras
aprendizagens e formas de aprender os conteúdos vocais, como por exemplo, quando eles
cantavam sozinhos, quando eles cantavam outras músicas.
Nessas aulas de canto em grupo, as decisões pelo repertório estiveram relacionadas
às opiniões dos alunos durante as aulas. Por várias vezes iniciei atividades, ou um repertório e
o deixei por fazer, sem acabamento, e muitas vezes apenas apresentei a música para eles, mas
não houve continuação. Na verdade, o que foi surgindo, enquanto fomos descobrindo o que
era cantar, e o que eles gostavam de cantar, foi o que permaneceu em termos de repertório na
aula.
Compreendi que as aprendizagens dos alunos são acontecimentos ligados também às
suas vivências, criatividades e brincadeiras. Assim, as decisões metodológicas da aula de
canto em grupo, em um projeto social, estão em como lidar com o repertório e como ensinar
esse repertório nas aulas. Muitas vezes percebi que a busca pela maneira de realizar a aula de
canto esteve muito ligada com o repertório.
Nessas práticas vocais, a aula de canto em grupo, não foi apenas uma discussão sobre
as formas de articulação, afinação, entonação, mas também reflexões sobre como os alunos
passariam a emitir as alturas de uma música que ouviam, que conheciam, mas que ainda não
elaboravam fisicamente, com o corpo, aquele som.
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Notei que muitos alunos das turmas, tanto da manhã quanto da tarde, defendiam que
gostavam de cantar determinadas músicas, porém, quando iam cantar, apenas cantavam se
fosse ouvindo a música gravada no celular, próximo ao ouvido. Ao cantarem, apenas ouvia a
voz do ‘celular’, pois, muitos estavam dublando. Essa relação do que “eu gosto”, com o que
“eu ouço” é algo muito forte entre estes alunos. O cantar demonstrou que seria algo a ser
construído para alguns. Dentro dessa discussão, podem-se incluir também as mudanças vocais
dos alunos, e as inseguranças vocais decorrentes da própria musculatura.
Resolvi propor um desafio na aula, pois entendia que deveria também trabalhar com
a confiança deles. Um dos interesses da equipe de trabalho do projeto social era as crianças
também cantassem a mais de uma voz com todos os alunos, e com as professoras e
funcionários. Dentre outras músicas, propus cantarmos Cio da Terra, de Milton Nascimento e
Chico Buarque, em duas vozes. Assim que os alunos começaram a cantar juntas as duas
vozes, senti que faltava alguma coisa. Fiz uma pequena introdução para a música, para duas
flautas, com notas simples, mas que relembrava o tom de cada voz. Assim, eles já ficaram
mais seguros para cantarem. Percebi que eles estavam se sentindo sem referência. A partir do
momento que coloquei essa pequena introdução eles já ‘pegaram’ o tom. Mesmo os alunos
não tendo aulas de flauta, eles fizeram as posições e conseguiram realizar a introdução a duas
vozes na flauta.
O estudo das flautas não estava no programa das aulas, a princípio. Em uma das
turmas da manhã, algumas meninas que não fazem aula regularmente pediram para aprender
alguma música na flauta. Desse modo, a flauta foi incluída no processo das aulas de canto.
Sabiam que estavam aprendendo a tocar e, em alguns momentos, falei sobre a importância do
ar, e que isso também era importante para o canto. Nessa turma, em uma das aulas, quando
falávamos sobre a importância do ar para cantarmos, e ainda tocávamos flauta, uma das
alunas viu um balão vazio na sala e teve a ideia de enchê-lo e encaixar o bocal da flauta no
balão e soltar o ar. Logo criamos uma possibilidade de tocar a flauta com o ar do balão.
Falamos sobre isso e tive a oportunidade de explicar sobre a importância de armazenar o ar,
de organizar a saída do ar.
A escolha do repertório na aula de canto em grupo é algo que a define. A escolha do
repertório aconteceu em alguns momentos, por meio de perguntas aos alunos durante as aulas,
perguntas sobre o que eles gostavam de ouvir. Em algumas aulas, quando estávamos falando
sobre “músicas bonitas”, eles me mostraram no celular uma música que eu não conhecia. Era
frequente eu não conhecer o repertório deles, mas ouvia atentamente a música.
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Em um desses momentos, ouvi uma música sugerida por uma das alunas da turma C
da tarde. Percebi que ela tinha muito a ver com o que estava propondo sobre as diferenças da
voz falada e da voz cantada, era a música Vagalumes, Pollo, tem uma parte cantada, e outra
falada, um rap, uma música para vozes masculinas. Falei com o outro professor que afirmou
já estar trabalhando essa música em outro projeto, e que seria uma boa opção para cantarem.
Essa questão da escolha do repertório, neste projeto, também tem um lado em conjunto com o
outro professor de percussão, pois nossa ideia é um trabalho em conjunto, e dentro das
possibilidades, encontrar um momento para realizar as práticas musicais em conjunto. Nessa
música foi possível trabalhar o tom mais grave da voz cantada, a fala em um rap, as
respirações, entonações do rap, o movimento corporal de um rap.
Essas questões sobre como quando eles afirmam que um funk não tem como cantar,
e o que seria o cantar, é que permeiam a aula de canto em grupo em um projeto social. A
decisão pela escolha do repertório implica em compreender o que você quer ensinar, o que
você deve ensinar, e como você vai abordar essas questões musicais na aula. Muitas vezes, o
conteúdo do que deve ser abordado na aula de canto em grupo vai sendo descoberto enquanto
a aula vai acontecendo. Não que o plano de aula não seja importante, acredito que precisamos
trabalhar com um plano, porém o percurso é o que dá o contorno aos conteúdos tratados no
acontecimento das aulas.
Nas questões pedagógico-musicais, as preferências musicais dos alunos definem
como acontecerá a aula. O canto em grupo em um projeto social não está focado
necessariamente em um repertório, mas pode abranger várias músicas de diferentes estilos e
épocas. Acredito que o professor precisa estar atento à essa diversidade de conteúdos que lhe
é apresentado na aula pelos alunos, pois eles estão, normalmente, apresentando uma sugestão
de repertório, e que esta pode mudar a cada aula, a cada hora/aula durante a sua atuação.
Alguns gostavam apenas de rock, outros apenas de funk, outros de música sertaneja, outros
apenas de música gospel. Alguns afirmaram que não cantavam que não tinham experiência
com o canto em outros espaços. Entendi que as discussões sobre as preferências musicais
estão relacionadas ao desenrolar do aprender/ensinar a cantar em grupo.
Considerações finais
Neste relato de experiência houve a busca por refletir sobre as práticas musicais em
aulas de canto em grupo que aconteceram em um projeto social. O fato de nesse espaço as
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Referências
ALFONSO, Neila Ruiz. Crianças cantando em grupo: currículo rizomático na rede cultural do
coro. In: SANTOS, Regina Marcia Simão. (Org). Música, Cultura e educação: os múltiplos
espaços de educação musical. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 127.
KLEBER, Magali. Projetos sociais e educação musical. In: SOUZA, Jusamara (Org).
Aprender e ensinar música no cotidiano. Porto Alegre: Sulina, 2008, p. 219.