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O Violão coletivo: múltiplas faces da pedagogia instrumental na prática

docente da UFC – Cariri


Francisco Weber dos Anjos
Universidade Federal do Ceará – UFC
weber@cariri.ufc.br

Resumo: Este trabalho consiste em um relato de experiência das práticas empregadas na


formação de educadores musicais, no curso de educação musical da Universidade Federal do
Ceará – Campus Cariri. A prática instrumental – violão no âmbito da licenciatura,
desenvolvido enquanto ferramenta didática e de modo interdisciplinar. As propostas
metodológicas do projeto político pedagógico da referida instituição, apresentam
peculiaridades que a distinguem da maioria dos programas no Brasil. A utilização do dó
móvel e do ensino coletivo como elementos norteadores da base pedagógica deste curso, se
propõem a dar uniformidade e coerência às suas unidades curriculares. As dificuldades e
superações emergentes do cotidiano da prática instrumental violão na UFC Cariri serão aqui
discutidas.
Palavras-chave: Ensino coletivo, violão, licenciatura.

Introdução

A Universidade Federal do Ceará tem uma longa história musical, uma trajetória
pautada por ações que ajudaram a construir o caminho que nos levou à criação de um curso de
licenciatura em educação musical, inicialmente em Fortaleza, depois, na região do Cariri
cearense e na cidade de Sobral. O Coral da UFC e o curso de extensão em música foram
algumas dessas ações formativas. Durante vários anos o curso de extensão em música da UFC
ofereceu à comunidade cursos nas modalidades flauta, violão e canto coral; o curso regular
tinha a duração de dois anos e oferecia disciplinas de instrumento, teoria musical e solfejo,
história da música e harmonia.
Durante os anos de 2003 e 2004 fui professor substituto no curso de extensão em
música da UFC em Fortaleza, onde pude iniciar o trabalho com ensino coletivo de violão. Ao
término do primeiro semestre já pudemos vislumbrar alguns frutos desse trabalho através da
criação da primeira camerata de violões dessa instituição, formado exclusivamente por alunos
do curso. Entretanto, é importante ressaltar que a camerata foi uma conseqüência e não um
fim daquelas atividades. A experiência de tocar juntos ajudou àquela turma inicial à por em
prática conceitos teóricos, exercitar a escuta musical, a consciência rítmica, desenvolver o
pensamento harmônico e, sobretudo, desenvolver uma atitude colaborativa durante o processo
de aprendizagem.

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Pensar as atividades musicais coletivas como formas de educar musicalmente é uma
das tônicas dos cursos superiores em educação musical da UFC. No entanto, a unidade no
discurso, nesse caso, não significa a globalização das ações, posto que, cada curso tem suas
particularidades e identidade própria. Respeitamos as diferenças e fortalecemos o que nos
une: a vontade e a missão de formar educadores musicais para as escolas brasileiras e para o
mundo, capazes de intervir em realidades diferentes e com a sensibilidade de tentar
compreender a musicalidade e o tempo de cada indivíduo.
Práticas de ensino coletivo de instrumento não são novidades para mestres de banda
de música e regentes de coral. A grande demanda para estas duas áreas fez surgir, quase por
“geração espontânea”, ações metodológicas voltadas para grandes grupos de alunos, contudo,
a sistematização e problematização acerca dessas ações têm se intensificado na última década.
O incentivo à atitudes colaborativas ou cooperativas e o respeito aos diferentes
tempos de aprendizagem, bem como o estudo do próprio mecanismo de aprendizagem, como
se apresenta em Gordon (2000), também tem colaborado de sobremaneira para a divulgação e
expansão das metodologias de ensino coletivo de instrumento. Exemplos bem sucedidos
como o método Suzuki no Japão, Jaffé no Brasil e El Sistema na Venezuela também
corroboram para esta expansão.
No entanto, as maiorias das ações pedagógicas coletivas concentram-se nos
processos de musicalização, iniciação musical ou na perspectiva da criação de grupos para
performance musical. Estas ações limitam-se, quase que por completo, aos níveis fundamental
e médio em termos institucionais. Ademais, existem inúmeras ações pedagógicas coletivas
acontecendo em ONG´s, igrejas, pontos de cultura, núcleos comunitários e associações de
bairros, como forma de inserir a música de maneira rápida e eficaz sem, contudo, prescindir
da intervenção estatal.
Em nível de graduação podemos observar que as ações pedagógicas coletivas
voltadas para a educação instrumental são bem mais tímidas. O chamado ensino superior se
mantém, talvez, tão superior que não haveria espaço para uma educação musical mais
humanizadora e solidária. Fruto disso é reproduzirmos ainda tão fielmente o modelo do
conservatório francês, onde o virtuosismo é privilegiado em diversos aspectos e instâncias.
É óbvio que alunos de prática instrumental de cursos de licenciatura em música ou
educação musical não dispõem de um professor disponível ao ensino exclusivo e tutorial. A
licenciatura tem como missão e objetivo fim formar educadores musicais; aptos à atuar em
diversos níveis e espaços, portadores de saberes musicais e pedagógicos, teóricos e práticos,
capazes de abstrair e teorizar sobre seus saberes e suas práticas.

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O Curso de Educação Musical da Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri se
propõe a enfrentar um duplo desafio: formar músicos e educadores musicais. A urgência em
formar profissionais habilitados para atuar no ensino fundamental e médio acentua a
importância dessa missão. Este curso foi recentemente instalado na cidade de Juazeiro do
Norte, no interior do Ceará, região conhecida como Cariri (referência à uma importante nação
indígena que por aqui viveu), lugar que não contava, até então, com escolar formais de ensino
de música, o que não significa que não havia educação musical acontecendo em diversos
níveis e estratos sociais.
O Projeto Político Pedagógico do curso citado propõe a formação de educadores
musicais em um tempo mínimo de quatro anos, mesmo que estes não apresentem
conhecimento musical prévio. Para tanto, centra suas ações pedagógicas em propostas de
ensino coletivo de instrumentos e no método do dó móvel ou solfejo relativo. Assim como o
núcleo pedagógico e humanístico de sua grade curricular, este curso concentra suas ações
nessas duas proposições metodológicas, a fim de encontrar um equilíbrio possível entre
formação docente e praticas coletivas.

O Violão Coletivo

O violão é um dos instrumentos presentes no currículo dos alunos de educação


musical da UFC Cariri, o qual a sua escolha poderá optar por um só instrumento que deverá
se dedicar durante dois anos seqüenciais de sua formação. No entanto, a prática instrumental
aqui apresentada, privilegia no violão suas qualidades pedagógicas, harmônicas e
camerísticas. O violão enquanto instrumento de musicalização, socialização e integração,
favorecendo a ampliação das possibilidades do trabalho docente com uso do instrumento.

O violão, instrumento que alguns consideram como sendo “o instrumento


brasileiro”, oferece possibilidades de sons simultâneos e, da mesma forma
que os teclados, poderá amparar o futuro professor na execução de
acompanhamentos para canções que venham a ser executadas por seus
alunos. Ao mesmo tempo, mesmo sendo um instrumento polifônico, o violão
se presta à formação de duos, trios, quartetos, quintetos e até mesmo
pequenas orquestras (cameratas). (ALBUQUERQUE, 2009, p.18.)

Triste sina de nossos hábeis colonizadores, que ao dedicar anos à empresa de tornar
estes tristes trópicos filiais de suas poderosas nações, portugueses e espanhóis deparam-se
com um quase inacreditável “violão brasileiro”. Seresteiro, boêmio, chorão e, por vezes,
panfletário presente nas lutas sociais e nos movimentos estudantis, o violão arquitetado pelo

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espanhol Antônio Torres em fins do século XIX encaixa-se perfeitamente à vida e à realidade
musical brasileira. Evidentemente, conforme nosso projeto pedagógico supracitado, um violão
que se proclama brasileiro não poderia importar, ademais, as práticas pedagógicas européias
aplicadas para sua aprendizagem.
O que nos propomos, ao destacar as qualidades harmônicas do violão
(“possibilidades de sons simultâneos...”), bem como suas possibilidades polifônicas, é
multiplicar os caminhos para sua aprendizagem, promover a interação com outras práticas
(corais, regionais de choro e grupos de câmera) e proporcionar uma aprendizagem musical
dinâmica, propulsora de uma ação educacional coletiva.
O objetivo da formação de grupos de câmera, como a Camerata de Violões da UFC,
formada por nós em 2003, é de fomentar as práticas coletivas de ensino, principal eixo de
nossa proposta de formação instrumental. O ensino coletivo de instrumento configura-se
atualmente como metodologia predominante no Curso de Educação Musical da UFC Cariri,
junto com o “solfejo relativo”, caminhamos ombreados em busca de uma sutil equação, a qual
deverá sanar, ou melhor, alimentar as inquietações de nossos futuros educadores musicais (e
as nossas, evidentemente), frente às suas demandas diárias no exercício da prática docente.
Solfejo relativo (“Dó móvel”) e ensino coletivo de instrumento, dois rios
metodológicos de um mesmo curso: ambos deságuam na aquisição de habilidades específicas
e buscam democratizar o ensino de música. Ambos prescindem de sólidas bases
epistemológicas, quebra de paradigmas e da busca de metodologias eficazes para a
aprendizagem musical. No Curso de Educação Musical da UFC Cariri, procuramos
diariamente refletir sobre essas metodologias frente aos embates letivos cotidianos,
procurando estabelecer este delicado equilíbrio entre teoria e prática, fazer e pensar, sentir e
agir.
Em primeira instância primamos pela semelhança entre as nomenclaturas: sílabas de
solfejo, alturas fixas, clave de G, clave de F, nota C, função dó, etc. Ao aluno de violão não
causa estranhamento a noção de função tonal (por vezes intuitiva) e a cifra alfabética, o que
facilita, desta maneira, sua aprendizagem do solfejo relativo. Esta prática tem contribuído na
tentativa de “unificar” nossas falas em sala de aula, evitando assim, confusões rotineiras entre
os alunos. Contudo, buscamos instantemente este equilíbrio, discutindo, questionando e
repensando nossas práticas docentes.
O curso de educação musical da UFC no Cariri cearense concentra suas ações
pedagógicas na formação do educador musical que poderá atuar na escola pública, portanto, o
conjunto de suas ações: ensino, pesquisa e extensão, caminham para este escopo. Desta feita,

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o polêmico teste de aptidão não está presente em seu processo seletivo, posto que, na região
do Cariri cearense não existem escolas de música de nível médio ou básico que forneçam
gratuitamente uma educação musical de qualidade. Entretanto, existem algumas ações
pedagógico-musicais que, de forma pontual, favorecem o ensino de música na região.
Frente à ausência de um teste de “aptidão” e turmas anuais de 40 (quarenta) alunos
previstos, dos quais cerca de sessenta por cento optam pela prática instrumental violão, nos
deparamos com dois problemas centrais e outros adjacentes. Concentremos nos dois
primeiros.
1) O desnível entre os alunos: a ausência da habilidade específica elimina uma das
etapas excludentes de ingresso no curso. Isso pode ser usado positivamente, pois uma turma
heterogênea com músicos experientes e iniciantes favorece a aprendizagem colaborativa;
todos auxiliam a todos no caminho para a aprendizagem. Os arranjos são concebidos
coletivamente e cada um contribui conforme seu nível e seu tempo de aprendizagem.
2) As turmas numerosas com até dezoito alunos: inicialmente, inviabilizaram a
aplicação do ensino coletivo de violão, mas os resultados da primeira avaliação em exercício
público nos mostraram que este não é um sistema fechado. A presença de um monitor em
sala, no entanto, viabilizou a aplicação de uma metodologia coletiva com número ampliado de
alunos, visando à prática instrumental para o educador. Considerando que nossos egressos
enfrentarão situações semelhantes: desnível entre os alunos e turmas numerosas, supõe-se que
nos, construtores do saber acadêmico, sejamos capazes de dissolver eventuais adversidades
como essas e convertê-las a nosso favor.
Desta feita, a pluralidade dos caminhos na prática docente cotidiana nos mostrou que
convicções inflexíveis, sistemas fechados e metodologias que se propõem a serem salvadoras
supremas do processo educacional, tendem a cercear a produtividade docente e engessar a
criatividade. O respeito aos saberes do outro e a todos os saberes é condição sine qua non no
processo de aprendizagem, o que figura como um dos princípios da educação musical em
Swanwick: “considerar o discurso musical dos alunos”. Ninguém chega até nós no estágio
zero, todos carregam suas bagagens e repertório com os quais se pode construir, reinventar,
ressignificar e expandir suas potencialidades.
Quanto ao conteúdo programático distribuído nos quatro semestres da prática
instrumental violão I, II, III e IV, são estes ministrados de maneira integrada com as demais
disciplinas. A prática instrumental I, por exemplo, apresenta ao aluno noções básicas da
técnica violonística integradas com conceitos teóricos fundamentais como escalas, formação
de acordes e campo harmônico maior. Particularmente estes três conceitos são ministrados

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quase simultaneamente, de forma que o aluno compreenda os conceitos de modo
maior/menor, escalas, ciclo das quintas, função tonal, formação de acordes, tríades, primeira e
segunda inversão. A disciplina de prática instrumental II – violão dá continuidade a esta
aprendizagem, ao passo que propõe ao aluno utilizar o violão em outros espaços de
aprendizagem como as aulas de canto coral, técnica vocal e música brasileira. As demais
práticas instrumentais articulam este conhecimento com a pedagogia do violão, os métodos e
metodologias tutoriais e coletivas, fornecendo ao aluno as ferramentas pedagógicas
necessárias à sua intervenção no ensino fundamental e médio.
Buscando valorizar os saberes deste grupo de dezoito alunos de prática instrumental
violão e em sintonia com nosso projeto pedagógico, obtivemos resultados bastante positivos
nos dois últimos meses. A saber: a ampliação do número de alunos a serem atendidos
simultaneamente na prática instrumental, a construção de arranjos coletivos com a
participação de todos em diferentes níveis, a aplicação da aprendizagem colaborativa onde
todos aprendem com todos, a implantação de um programa de monitoria voluntária no sentido
de ampliar as possibilidades de aprendizagem e atendimento individual do aluno, a interação
entre a metodologia do “dó móvel” e a prática violonística e a criação da Camerata de Violões
da UFC Cariri no último dia 28 de abril, quando ocorreu sua primeira apresentação pública no
auditório desta instituição, interpretando arranjos coletivos de Asa Branca (Luiz Gonzaga e
Humberto Teixeira) e Nesta Rua (D.P). Estes resultados parciais serão posteriormente
expostos à luz de uma reflexão mais profunda e um estudo mais denso, conquanto se mostram
mutáveis, incorporados em um artigo de maior fôlego.

Considerações Finais

Os resultados obtidos nesse processo, aferidos através de vários mecanismos de


avaliação, dentre eles: a avaliação contínua, pontual, coletiva e individual, expõem de forma
exemplar os prós e contras da aplicação do ensino coletivo de instrumento com turma
expandida em quatro semestres na licenciatura em educação musical. Ademais, o quadro
discente em questão apresenta diversidade abissal entre os alunos, o que já era de se esperar
quando excluímos o teste de “aptidão” musical. No entanto, tal diversidade pode ser revertida
em nosso favor; o incentivo à atitudes colaborativas e não competitivas favorece a qualidade
da aprendizagem. Este é um processo humanizador e educativo, não deve ser encarado como
uma corrida. Alunos com tempos de aprendizagem diferentes não devem se sentir excluídos
do processo de aprendizagem ou do grupo; o sentimento de pertencimento é importante para

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elevar a auto-estima do aluno e motivá-lo à superar suas limitações, a música não é um “fogo
sagrado” dado pelos deuses a escolhidos e eleitos.
A qualidade musical e artística também será considerada, porém, mais importante
que montar uma performance musical é o processo educativo envolvido em sua montagem.
Os ensaios pedagógicos revelam as formas de ouvir o outro, de respeitar os tempos e espaços
de cada individuo. A música de conjunto não acontece se não houver a consciência do todo e
das partes; isso a que os antigos chamavam harmonia. Desta feita, os alunos são avaliados
pela sua atuação individual e arcam com as conseqüências dos resultados obtidos pelo grupo.
Assim a nota do grupo interfere na individual e vice-versa.
Portanto, são bastante positivos os resultados obtidos até então com o ensino
coletivo de violão. Alunos musicalizados durante esse processo, obviamente encontraram
maior dificuldade e tiveram de redobrar seus esforços para atingir as metas propostas. Este
trabalho se propõe a ser apenas uma entre muitas opções metodológicas para se trabalhar com
turmas expandidas, ou superior a dez alunos. Pensamos ser este um processo em contínuo
desenvolvimento, um sistema aberto à experimentações, que, de forma responsável pode nos
levar a romper o marasmo em que se encontra a educação musical brasileira formal e
institucional.

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Referências
ALBUQUERQUE, Luiz Botelho de; MATOS, Elvis de Azevedo; MORAES, Maria Izaíra
Silvino; SCHRADER, Erwin. Educação Musical – Licenciatura – Projeto Pedagógico Para
Implantação. Universidade Federal do Ceará – Campus Cariri, 2009.

GOLDEMBERG, Ricardo. Métodos de Leitura Cantada: dó fixo versus dó móvel. Revista da


ABEM, n. 5, 2000.

GORDON, E. Teoria de aprendizagem musical: competências, conteúdos e padrões. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.

SWANWICK, Keith. Ensinando Música Musicalmente. São Paulo: Moderna, 2003.

WEIZMANN, Claudio . Violão Orquestral - Volume I - Metodologia do Ensino Coletivo. 1ª.


ed. São Paulo: Rettec, 2003.

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