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Acervo 3

HISTORICO 1º semestre
2005

Memória Visual:

Macatuba

Peço a Palavra:

Zuleika
Alambert

Leis & Letras:

Inglês de
Sousa

Política
no Estado
Novo

O Parlamento e as Ruas Divisão de


Acervo
na Abolição Histórico da
Assembléia
Legislativa
do Estado
de São Paulo
Assembléia Legislativa
do Estado de São Paulo Índice
Apresentação.................................................... 1
Mesa Diretora
Presidente: Política no Estado Novo.................................. 2
Dep. Rodrigo Garcia
1º Secretário: PCB no Legislativo........................................ 19
Dep. Fausto Figueira
2º Secretário:
Peço a Palavra: Zuleika Alambert............... 32
Dep. Geraldo Vinholi
Secretário-Geral Parlamentar:
O Parlamento e as Ruas................................ 46
Marco Antonio Hatem Beneton
Secretário-Geral de Administração:
Papéis Avulsos: Insurreição de Escravos..... 54
Stanislav Feriancic
Departamento de Comunicação:
Leis & Letras: Inglês de Sousa..................... 71
Guilherme Wendel de Magalhães
Registro & Datas............................................ 93
Divisão de Imprensa:
Marta Rangel
Memória Visual: Macatuba

A
Serviço Técnico de Editoração e
Produção Gráfica:
Maria do Carmo Borges Damim
Departamento de Documentação cervo histórico, em seu terceiro número, aborda
e Informação: a representação política adotada durante o Estado
Maria Helena Alves Ferreira
Novo, através de um estudo sobre o Conselho Ad-
Divisão de Acervo Histórico: ministrativo do Estado de São Paulo. Pós-Estado
Adélia Ribeiro Santos Hinz, Álvaro Weisheimer
Novo, é relatada a breve atuação do Partido Comunista do
Carneiro, Christiani Marques Menusier
Giancristofaro, Dainis Karepovs, Marcos Couto Brasil no Legislativo Paulista e a cassação do mandato de
Gonçalves, Olívia Gurjão, Priscila Pandolfi, seus 11 parlamentares, além do depoimento da Deputada
Roseli Bittar Guglielmelli, Solange Regina de Zuleika Alambert, que integrava a bancada. A escravidão é
Castro Bulcão, Suely Campos de Azambuja e
Suzete de Freitas Barbosa.
outra temática enfocada nesse número, com a suposta insur-
reição dos escravos no Vale do Paraíba e a correspondência
entre as autoridades registrando a existência de um plano e
as medidas adotadas para abortá-lo e punir os envolvidos, e a
influência da sociedade civil nas decisões parlamentares so-
Editor:
bre a Abolição. Acervo histórico resgata, também, a obra de
Dainis Karepovs Inglês de Souza, Deputado Provincial em São Paulo e escritor
Editora Executiva:
das “Cenas Amazônicas”. Em sua “Memória Visual” trata da
Olívia Gurjão formação do município de Macatuba, iniciada com um peque-
no povoado, no início do século passado.
Editor Assistente:
Álvaro Weisheimer Carneiro Mantendo sua orientação de incentivar e divulgar estudos
com temas provenientes da farta documentação disponível na
Projeto Gráfico:
Lígia Gonçalves Divisão de Acervo Histórico, a revista tem ultrapassado nossas
fronteiras, chegando a instituições internacionais, como os
Diagramação e Capa:
Antonio Carlos Galban Dias Centros de Estudos das Universidades Duke, do Texas e de
Quebec. Entre seus colaboradores, estão estudiosos de várias
Fotografia:
Marco A. Cardelino e Maurício Garcia
regiões do País, interessados em debater nossa história. Não
só a Academia tem, com carinho, acolhido e contribuído para
Acervo histórico é uma publicação semestral
da Divisão de Acervo Histórico da Assem-
o crescimento deste importante difusor da atuação e dos
bléia Legislativa de São Paulo. debates parlamentares documentados ao longo dos 170 anos
Os artigos assinados refletem unicamente as
de existência da Assembléia Legislativa do Estado de São
opiniões de seus autores. Paulo, como, também, as demais Casas legislativas e órgãos
governamentais. O incentivo recebido tem nos animado a
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Tiragem: 2.000 exemplares DIVISÃO DE ACERVO HISTÓRICO
Acervo histórico

Modelo e método de
representação política
durante o Estado Novo1
Adriano Nervo Codato*

Though this be madness, yet there is method in’t. Ainda assim restava o problema: o que fazer com
Lord Polonius os “carcomidos”?
Hamlet, cena II.
Este artigo trata da instituição que regulou a re-
presentação política das elites durante o regime
O historiador Thomas Skidmore, no seu estudo do Estado Novo no Brasil: o Conselho Administra-
clássico sobre a política brasileira no século XX, tivo. Meu tema aqui é exclusivamente o Conselho
Politics in Brazil, 1930-1964, insistiu em diferen- Administrativo do Estado de São Paulo4, órgão
ciar o Estado Novo (1937-1945) dos seus congê- auxiliar de governo ao lado da Interventoria Fe-
neres europeus. Ele lembrou que, ao contrário do deral no estado.
fascismo, Getúlio Vargas não organizou nenhum
movimento político para legitimar o regime, não Criados pelo decreto-lei nº. 1.202, de 8 de abril
fabricou uma ideologia específica, ainda que às de 1939, os Conselhos Administrativos dos es-
vezes o trabalhismo tivesse desempenhado al- tados, um em cada unidade federativa, eram
gum papel, e muito menos criou um Partido para constituídos por um número variável de quatro a
o governo. Aliás, todos os partidos políticos foram dez integrantes, todos indicados pelo Presidente
abolidos em dezembro de 1937. Isso deu origem, da República. Dedicavam-se a examinar, aprovar
segundo Skidmore, a uma estrutura de poder ou rejeitar todos os atos dos prefeitos municipais
peculiar: uma política sem políticos e um modelo e do Interventor Federal, inclusive o orçamento
de dominação baseado apenas na capacidade de estadual, fiscalizando sua execução. Na prática,
manipulação e conciliação das facções políticas eles deveriam substituir com mais eficiência e
rivais nos estados. Nas suas próprias palavras: neutralidade, conforme se imaginava, as Assem-
“O sistema ‘não-político’ [sic] do Estado Novo ofe- bléias Legislativas e as Câmaras Municipais.
recia o veículo perfeito para os seus [de Getúlio Desempenhariam, também, a função informal de
Vargas] grandes talentos de conciliação e mani- “tribunal de contas”.
pulação, que por sua vez dependiam de contato
altamente pessoal, com adversários e aliados”2. Meu trabalho consiste na apresentação da com-
posição do Conselho Administrativo do Estado
Até que ponto o maquiavelismo do chefe político de São Paulo ao longo dos nove anos em que
poderia garantir a dominação social? Como, ten- ele existiu e da dinâmica burocrática resultante
do controlado os políticos de todas as tendências, do seu funcionamento entre 1939 e 1947. Na
fazer política? primeira seção do artigo discuto, em termos
bastante gerais, a organização política nacional
Uma solução administrativa para essa questão foi no pós-1930 e a ideologia antiliberal e antipar-
a reinvenção do sistema de Interventorias Fede- lamentar que a animou. Na segunda seção,
rais nos estados. Por meio desse sistema “Vargas exponho o marco legal que definiu a agenda e
pode, nos estados principais, minar os clãs políti- os poderes do Conselho Administrativo. Na ter-
cos tradicionais e criar, em lugar deles, uma rede ceira, refiro os integrantes do conselho paulista
de alianças locais de orientação nacional”3. e na quarta seção relato a freqüência de suas

*
Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em
Sociologia Política Brasileira (adriano@ufpr.br).


Acervo Dainis Karepovs

Depois de alguns meses na Rua Boa Vista, em fins de 1939 a sede do Conselho Administrativo
transferiu-se para a Praça da República, aqui vista no início da década de 1940
Acervo histórico

reuniões e a quantidade de decisões que pro- dispendioso”, um verdadeiro “obstáculo” à “obra


duziu. Na conclusão, enfatizo a impropriedade governamental”.
de assimilar os Conselhos Administrativos às
Assembléias Legislativas. O quadro sucessório em 1937, por sua vez,
havia subvertido a natureza e “as verdadeiras
I. Instituições políticas funções dos partidos políticos”, convertendo-os
em agremiações sem “princípios doutrinários”.
Na proclamação que o Presidente Getúlio Var- Na verdade, segundo Vargas, simples veículos
gas fez na noite de 10 de novembro de 1937 “ao de “ambições pessoais” e interesses “localistas”.
povo brasileiro”, dando conhecimento da revo- A disputa pela Presidência nas eleições que se
gação pura e simples da Carta de 1934 e da im- realizariam em 19387 havia denunciado também
plantação de uma nova ordem política no País, a o papel dos “quadros políticos” (agentes do pro-
passagem mais significativa – e paradoxal – do cesso de “aliciamento eleitoral”) e transformado o
seu discurso foi a seguinte: “A Constituição hoje sufrágio universal num “instrumento dos mais au-
promulgada criou uma nova estrutura legal, sem dazes e máscara que mal dissimula[va] o conluio
alterar o que se considera substancial nos siste- dos apetites pessoais”.
mas de opinião: manteve a forma democrática, o
processo representativo e a autonomia dos Esta- Ora, a conseqüência dessa situação de “caos”,
dos, dentro das linhas tradicionais de federação segundo o Presidente Vargas e o Ministro Fran-
orgânica” 5. cisco Campos, era nada menos do que o risco da
restauração das oligarquias derrotadas pela Re-
Para além do palavrório bacharelesco do discur- volução em 1930: “O caudilhismo regional, dissi-
so redigido a quatro mãos pelo Presidente e pelo mulado sob aparências de organização partidária,
Ministro da Justiça e Negócios Interiores, o que a armava-se para impor à Nação as suas decisões,
Constituição de 1937 fez foi justamente o oposto constituindo-se, assim, em ameaça ostensiva à
do anunciado: revogou a forma democrática de unidade nacional” 8. Daí que o 10 de novembro de
governo, aboliu o processo representativo e pôs 1937 fosse, ou melhor, se justificasse, como a jus-
fim ao federalismo que havia caracterizado a ta e exata continuação do 3 de outubro de 1930.
organização política nacional no período 1889-
1930. Embora essa seja uma das idéias-força do dis-
curso ideológico dos intelectuais autoritários
O regime político do Estado Novo, nascido da (Francisco Campos em primeiro lugar, mas tam-
crítica às práticas oligárquicas e liberais e aos bém Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Monte
seus mecanismos representativos, cuidou de, tão Arrais etc.), que construíram toda uma mitologia
logo quanto possível, edificar uma nova estrutura política em torno da controvertida equação 1937
político-institucional com base numa ideologia = 1930, é possível compreender a sua verdade
antiliberal. num sentido menos apologético e mais preciso.

De acordo com a avaliação de Getúlio Vargas, o Luciano Martins igualmente sustentou que a Re-
momento político da segunda metade da década volução de 1930 só se consumou politicamente
de trinta ordenava “a adoção de medidas que com o Estado Novo porque foi tão-somente sob
afet[e]m os pressupostos e convenções do regi- esse regime ditatorial que se encontrou, no fim
me [constitucional vigente], os próprios quadros das contas, as soluções para três questões-chave
institucionais, os processos e métodos de gover- que surgiram já na década de vinte e que estão na
no”. A extensão e a profundidade dessas medidas base do movimento de trinta: a questão da federa-
exigiriam uma autêntica “reforma política”, o que ção, a questão da representação e a questão da
implicava, em primeiro lugar, em restaurar a “au- dominação. Esses problemas postos para as eli-
toridade nacional” através do “reforço do poder tes políticas e para as classes dominantes podem
central”, mediante a criação de uma série de “ins- ser expressos assim:
trumentos de poder real e efetivo” 6.
(i) “como assegurar a integração dos sub-
O regime da Constituição de 1934, plasmado “nos sistemas [políticos e econômicos] regionais
moldes clássicos do liberalismo e do sistema re- no sistema nacional, de forma a assegurar
presentativo”, havia, de acordo com a peculiar ló- a conservação de diferentes estruturas de
gica oficial, comprometido a “eficiência” do Estado dominação”, tais como o coronelismo e o
e denunciado a inoperância do poder legislativo mandonismo, “e, simultaneamente, garantir
– no fim das contas, um “aparelho inadequado e a unidade nacional”?;


(ii) “como organizar a representação políti- traço característico da liderança populista de


ca das elites [...] de forma a fazer com que Vargas, não seria garantida, no caso das pri-
o processo de diferenciação natural de seus meiras, graças apenas ao carisma. E, no caso
interesses fosse resolvido no âmbito do das segundas, graças somente às lealdades
universo das [próprias] elites e, simultane- pessoais, devidas pelos Interventores Federais
amente, não pusesse em xeque a coalizão nos estados, ao Presidente da República que os
básica existente entre elas [...]”?; e, enfim, havia nomeado11. Da mesma maneira, o caráter
personalista do novo regime, que transformou
(iii)“como estruturar a dominação [nas] Getúlio no centro político do Estado Novo e
cidades, em face da emergência de um projetou sua imagem como árbitro da Nação e
proletariado em início de expansão e em salvador do Brasil12, não seria o produto neces-
face das novas formas de estratificação sário da “falta de mediações organizatórias entre
das ‘camadas médias’”? 9 Vargas e o país, salvo a das Forças Armadas” 13,
mas, ao contrário, o resultado de um conjunto de
Para cada um desses problemas o Estado Novo aparelhos e instituições e práticas específicas:
deverá criar um conjunto de “órgãos apropria- ideológicas (o DIP e os DEIPs, por exemplo),
dos”10, alterando completamente a estrutura her- econômicas (o CNPIC, a CME ou a CPE, por
dada do “Estado oligárquico”. Logo, é um erro exemplo) e também políticas14. As circunstân-
assimilar o antiliberalismo que animou a ideolo- cias do Estado Novo, visto dessa perspectiva,
gia oficial no período, e que na prática implicou ressaltam na verdade a organização de um novo
na abolição da representação política pelas vias sistema político (centralizado, hierarquizado e
usuais, a uma disposição antiinstitucional. burocratizado), e não simplesmente o regime
arbitrário do “ditador”, como os paulistas se refe-
A crítica da política liberal, para ser conseqüen- riam ao chefe político nacional.
te ideologicamente e politicamente eficaz, não
poderia se limitar a destruir os partidos, fechar Tendo presente essa lembrança sobre a impor-
os parlamentos e perseguir os políticos profis- tância da estrutura institucional para a compre-
sionais. Ela teria de criar instituições políticas ensão do período que se abre em 1937, vejamos
adequadas ao espírito do tempo. Isso por uma como a questão da federação, a questão da
razão trivial: a decantada capacidade de mani- representação e a questão da dominação foram
pulação (das massas) e conciliação (das elites), equacionadas.
Arquivo do Estado. Coleção Adhemar de Barros

O presidente Getulio Vargas e o interventor paulista Adhemar de Barros a caminho do aeroporto (1938)
Acervo histórico

O primeiro problema – a questão da federação um novo padrão de relação entre o Estado, de


– encontrará sua solução na fórmula político- um lado, e os trabalhadores urbanos e as baixas
econômica adotada pelo regime. No curso camadas médias, de outro.
da modernização da sociedade brasileira,
a integração dos subsistemas (políticos e Resultam daí os traços mais significativos assu-
econômicos) regionais ao sistema nacional midos pelo aparelho do Estado nesse período.
se fará mediante dois processos paralelos e Trata-se de uma instituição forte, centralizada e
simultâneos: através da centralização de funções autônoma. Forte em função da sua capacidade
e decisões administrativas no aparelho central de intervenção na vida social – pela via policial e
do Estado e da concentração do poder político ideológica – e do seu poder de regulamentação
na Presidência da República (note bem: essa da vida econômica; centralizada em função da
operação terá, de resto, uma relação direta com o concentração das decisões político-administrati-
fortalecimento do “poder pessoal” do Presidente vas no executivo federal; e autônoma em função
Getulio Vargas, sendo, na verdade, o segundo da sua distância diante da sociedade. Se essa
conseqüência da primeira, e não o contrário). força decorre da centralização de funções, sua
Em conjunto, isso implicará numa redefinição autonomia permite que esse “Estado forte” passe
das autonomias dos estados (seja em termos a agir não mais em nome exclusivamente dos in-
políticos, seja em termos econômicos) e numa teresses agro-exportadores, mas cada vez mais
expropriação do poder das oligarquias regionais, em nome dos interesses urbano-industriais.
em especial na diminuição da sua influência
sobre a definição da política econômica. Ao Contudo, não se deve entender as transforma-
lado da criação dos institutos do pinho, do mate, ções do aparelho do Estado – a criação de inú-
do açúcar etc., a nacionalização da política do meros conselhos e órgãos técnicos depois de
café, através de um departamento específico (o 1937 – tão-somente em função do processo de
Departamento Nacional do Café), é aqui o melhor industrialização da economia e modernização da
exemplo do poder da burocracia federal face aos sociedade18, desprezando-se com isso seja o jogo
aparelhos regionais do Estado e aos seus antigos político intra-elites (que não desaparece), seja o
controladores. novo marco institucional que regulará essas dis-
putas, e que não está previsto na Carta Constitu-
A segunda questão – o problema da represen- cional do Estado Novo.
tação de interesses – encontrará sua solução
na fórmula político-institucional assumida pelo Mais precisamente: as formas corporativistas de
Estado Novo: ao invés de um sistema pluralista participação das elites econômicas nas decisões
de partidos, eleições e parlamentos, o governo econômicas não poderiam, por si mesmas, resol-
irá criar uma rede de conselhos, comissões ver também a questão da representação dos inte-
e institutos com formas “corporativistas” de resses sociais no sistema político. Há um proble-
participação direta das elites econômicas no ma especificamente político que é o problema do
processo decisório15. Tanto a representação de poder residual das oligarquias estaduais, variável
interesses quanto a competição serão monopo- de estado para estado, mas significativo em São
lizadas pelo Estado e ocorrerão, a partir daí, Paulo, por exemplo. A campanha de 1932, ainda
no seu interior. O funcionamento do Conselho que derrotada, denunciou a urgência do combate
Federal de Comércio Exterior, um dos muitos às fontes de poder e de autonomia oligárquicos.
aparelhos criados na década de trinta, é um E mesmo o sistema de interventorias, criado em
exemplo eloqüente do processo oculto (em re- 1930, ao lado do Conselho Consultivo do Estado,
lação à sociedade), negociado (com a burocra- de 1931 (uma espécie de ensaio do Conselho
cia) e tutelado (pelo Estado) de formulação da Administrativo), mostrou-se pouco eficaz para o
política comercial16. tamanho dessa tarefa.

A última questão – o problema clássico da domi- Em suma, temos diante de nós uma equação
nação – encontrará sua solução na fórmula polí- política complexa: ao mesmo tempo em que o
tico-ideológica encarnada por Vargas: “serão os Interventor Federal nomeado pelo Presidente
controles e as práticas populistas estabelecidos e para cuidar da política nos estados deveria ser
desenvolvidos pelo Estado Novo”17, que conjuga- “burocraticamente” forte (para impor as decisões
ram repressão (a atividades políticas autônomas do governo central) e politicamente autônomo
das massas populares urbanas) e concessão (em relação às elites regionais), ele deveria
(de direitos sociais, sendo o caso da CLT o mais ser também em alguma medida fraco para não
paradigmático a respeito), que irão estabelecer constituir um novo pólo de poder paralelo ou,


no limite, contrário ao Executivo federal. Reto- com o Código Administrativo, que dois terços dos
mando a questão feita a propósito desse mesmo representantes do Conselho Administrativo (art.
problema por Campello de Souza: “quem guar- 22) se opusessem às medidas dos executivos
daria os guardas?”19. Resposta: os Conselhos municipais ou da Interventoria Federal para vetar
Administrativos dos Estados (CAEs). Isto é: uma suas decisões, cabendo, contudo, a deliberação
agência que garantisse a cooptação política das final, caso houvesse recurso dos “interessados”,
elites. Ela deveria tornar-se o mecanismo ideal ao próprio Presidente Vargas (art. 19), que seria
para regular (isto é, filtrar e hierarquizar) a ex- informado dos possíveis processos pelo Ministro
pressão dos interesses dos grupos políticos es- da Justiça, Francisco Campos (art. 20).
taduais, controlar o Interventor Federal e garantir
o papel de última instância do sistema decisório Na avaliação ambiciosa de um dos membros
à Presidência da República, que arbitraria essa do Conselho de São Paulo, a instituição, nesse
relação complicada entre elites e contra-elites. sentido,
Ao menos em tese.
“substitui[ria] a ação legislativa das As-
Daí, cabe a pergunta: quais os poderes desse sembléias do Estado, do antigo Senado
Conselho Administrativo? No caso da unidade e da Câmara dos Deputados; substitui[ria]
mais problemática do País, quem deveria com- as Câmaras Municipais de todo o estado;
por o Conselho Administrativo de São Paulo? substitui[ria] o Tribunal de Contas na mis-
Como ele funcionou? Qual a freqüência de suas são que hoje lhe cabe de superintender a
reuniões? Qual a quantidade de decisões que aplicação das verbas orçamentárias e a
produziu? É o que se verá a seguir. fiel execução da lei de meios. Realiza[ria]
também o Conselho Administrativo a
II. O marco legal missão de um órgão de consulta, de um
verdadeiro Conselho de Estado, quando
“[...] Observa-se, em todos os países, uma esclarece e instrui os recursos cujo conhe-
indiferença crescente pelo que se passa cimento final pertence ao Sr. Presidente
nos parlamentos. Ninguém, hoje, tem dúvi- da República, opinando antes dessa de-
das de que o meridiano político não passa cisão final”21.
mais pelas suas antecâmaras ou pelas
suas salas de sessões. [...] Para as deci- Os CAEs não podem, entretanto, ser tomados
sões políticas uma sala de Parlamento tem sem mais como substitutos das casas legislativas
hoje a mesma importância que uma sala de nos níveis federal, estadual e municipal. Isso
museu”20. porque não produzem leis, mas resoluções.
Francisco Campos Sua capacidade de iniciativa é, aliás, bastante
limitada. Podem, no máximo, “propor, do ponto
No primeiro semestre de 1939, Getúlio Vargas, ao de vista da economia e eficiência”, alterações
que parece por sugestão de Francisco Campos, burocráticas em órgãos da administração
resolveu dotar os estados de uma instituição que estadual ou municipal (art. 17, alínea “e”). Nesse
ordenasse o processo decisório e regulasse a contexto institucional, os Conselhos eram mais
política regional. instâncias de revisão do que de legislação.
Assimilá-los aos legislativos é, no caso, aceitar
O “Código Administrativo”, como ficou conhecido a publicidade oficial do regime e a ideologia
o decreto-lei n. 1.202, publicado no Diário Oficial antiparlamentar da época. Adiante comentarei
da União em 10 de abril de 1939, repartiu as mais detidamente este ponto. Por ora, vale
funções governativas entre duas entidades: a sublinhar que essa recepção incompleta de
Interventoria Federal, de um lado, e o Conselho papéis sugere que é em outra dimensão que
Administrativo, de outro (art. 2º.). Os interventores se deve buscar sua importância: em sua
teriam o poder de nomear os prefeitos municipais composição. E sua composição indica tratar-se
e administrar seus estados por decreto (artigos de uma agência para representação/expressão
5º. a 12); os membros do Conselho Administrativo dos interesses políticos da elite política. Essa
seriam escolhidos diretamente pelo Presidente função, frise-se, não se realizava sob a forma
da República (art. 13) e deveriam examinar todos “parlamentar”, mas sob a forma burocrática. O
os projetos de decretos-lei baixados pelo Inter- que faz toda a diferença.
ventor ou pelos prefeitos, além dos projetos de
orçamento e a execução orçamentária do estado Se esse é o aspecto fundamental, quem são os
e dos municípios (art. 17). Bastaria, de acordo integrantes dessa elite?
Acervo histórico

III. A elite política membros. Nos estados politicamente mais impor-


tantes foram indicados sete representantes: São
“A criação do Departamento Administrativo Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Nos es-
realça o governo de sua Excia. o sr. Pre- tados não tão importantes assim (ou não mais tão
sidente [Getulio Vargas], pois que substitui importantes), cinco: Pernambuco, Rio de Janeiro,
com vantagem, e relativo pequeno dispên- Bahia, Ceará e Pará. Nos demais, quatro.
dio, as Câmaras em que pacatos conser-
vadores ou dispersivos livre-atiradores O Conselho Administrativo do Estado de São
– sem maior exame e quase sempre sem Paulo, formado de acordo com esses critérios
discussão aproveitável – aprovavam a obra por sete membros, tinha um presidente e seis
pessoal e imperativa dos chefes eventuais conselheiros, sendo um deles também o seu
do Poder Executivo” 22. vice-presidente. Em 1939, no primeiro ano do
José Adriano Marrey Júnior. seu funcionamento, todos os membros do CA-
ESP eram “políticos profissionais”, com ou sem
O artigo 13 do Código Administrativo estipulou que experiência legislativa (para mais informações
os Conselhos Administrativos dos Estados seriam sobre seus integrantes, ver o Anexo com as bio-
“constituído[s] de 4 a 10 membros”, deveriam ser grafias políticas resumidas). E essa seria a regra
“brasileiros natos”, e “maiores de 25 anos”, sendo que iria vigorar nos oito anos seguintes (com
“nomeados pelo Presidente da República” 23, e uma única exceção: Braz Arruda, que passou
não pelo Interventor. pelo órgão em 1947).

Na prática, o número de integrantes de cada O Quadro 1 apresenta, ano a ano, a formação do


Conselho variou bastante e nunca chegou a dez Conselho paulista.

Quadro 1

Membros do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo por ano (1939-1947)

1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947


Goffredo Goffredo Goffredo Goffredo Goffredo Goffredo Goffredo Sebastião Christiano
Teixeira da Teixeira da Teixeira da Teixeira da Teixeira da Teixeira da Teixeira da Nogueira Altenfelder
Silva Telles Silva Telles Silva Telles Silva Telles Silva Telles Silva Telles Silva Telles de Lima Silva (P)
(P) (P) (P) (P) (P) (P) (P) (P)
Alexandre Alexandre Alexandre Miguel Miguel Miguel João Christiano João
Marcondes Marcondes Marcondes Reale Reale Reale Galeão Altenfelder Galeão
Filho (VP) Filho (VP) Filho (VP) Carvalhal Silva (VP) Carvalhal
Filho Filho
Carlos Carlos Carlos Carlos Carlos Carlos Carlos Luiz Braz de
Cyrillo Cyrillo Cyrillo Cyrillo Cyrillo Cyrillo Cyrillo Pereira de Souza
Júnior Júnior Júnior Júnior Júnior Júnior Júnior Campos Arruda
Vergueiro
Arthur Arthur Arthur Arthur Arthur Arthur Arthur Innocencio Innocencio
Pequeroby Pequeroby Pequeroby Pequeroby Pequeroby Pequeroby Pequeroby Seraphico Seraphico
de Aguiar de Aguiar de Aguiar de Aguiar de Aguiar de Aguiar de Aguiar de Assis de Assis
Whitaker Whitaker Whitaker Whitaker Whitaker Whitaker Whitaker Carvalho Carvalho
(VP) (VP) (VP) (VP) (VP)
Antonio Antonio José Cesar José Cesar José Cesar José Cesar José Cesar Synésio José de
Gontijo de Gontijo de de Oliveira de Oliveira de Oliveira de Oliveira de Oliveira Rocha Moura
Carvalho Carvalho Costa Costa Costa Costa Costa Rezende
Plinio Plinio Antonio Antonio Antonio Antonio Antonio Lincoln Lincoln
Rodrigues Rodrigues Ezequiel Ezequiel Ezequiel Ezequiel Ezequiel Feliciano Feliciano
de Morais de Morais Feliciano Feliciano Feliciano Feliciano Feliciano da Silva da Silva
da Silva da Silva da Silva da Silva da Silva
Mario Renato José José José Armando Armando José José
Guimarães Paes de Adriano Adriano Adriano da Silva da Silva Adriano Adriano
Barros Lins Barros Marrey Marrey Marrey Prado Prado Marrey Marrey
Júnior Júnior Júnior Júnior Júnior
OBS.: A composição refere-se a julho dos respectivos anos. Legenda: P = Presidente; VP = Vice-presidente


Olhada mais de perto, dessa simples relação de Rocha torna-se secretário de estado e Sebastião
nomes podem-se extrair algumas conclusões. Nogueira de Lima e Campos Vergueiro transfe-
rem-se para o Tribunal de Contas de São Paulo.
Do ponto de vista da sua composição, o CAESP
teve três fases: a fase da Interventoria de Adhe- Para além desse processo monótono de substi-
mar de Barros, até meados de 1941; a fase da tuição e troca de nomes, é obrigatório enfatizar
Interventoria de Fernando Costa, até o fim do o que me parece o aspecto mais decisivo aqui:
regime do Estado Novo, quando o Decreto-Lei n. o tamanho desse grupo. Vinte e dois indivíduos
8.219 extinguiu os Conselhos Administrativos do (o total de membros que passaram pelo CAESP
Estado; e a fase da Interventoria de Macedo Soa- entre 1939 e 1947), sete de cada vez, deveriam
res, após o Decreto-Lei n. 8.974 que restaurou os concentrar, resumir e expressar toda a complexi-
CAEs, no início de 1946. A cada uma delas cor- dade da cena partidária paulista das décadas de
respondeu um perfil político bem determinado24. E vinte e trinta. Eles haviam se tornado nada mais,
as grandes modificações na formação do Conse- nada menos, que os herdeiros políticos de toda
lho coincidiram justamente com as substituições elite política estadual antes reunida e dividida nas
dos Interventores Federais. siglas do PRP, PD, FUP, PC e AIB25. Na verdade,
essa é ao mesmo tempo a razão objetiva da sua
Em 1941, depois da demissão de Adhemar, metade força (ou do seu poder) enquanto indivíduos, e da
dos conselheiros foi trocada. Entraram: Cesar Cos- sua relativa fraqueza, enquanto grupo.
ta, Antonio Feliciano e Marrey Júnior, todos em 18
de junho, duas semanas depois da posse do novo Sua força individual como políticos (pois é disso
nomeado, Fernando Costa. Quando o CAESP é que se trata, enfim), num regime que baniu o po-
recriado em 1946, tendo já na chefia do governo lítico “profissional” e estigmatizou a política como
Macedo Soares, a formação é totalmente diferente atividade menor, é a expressão do poder pessoal
em relação àquela que terminara em 1945 junto que reúnem em função do lugar que ocupam.
com o Estado Novo. Mas note que agora se todos Eles são os responsáveis por examinar, julgar e
eram antigos na política estadual, a maioria (exce- decidir todas as questões de governo, inclusive as
to Marrey Júnior) era nova na casa. da administração dos duzentos e setenta municí-
pios do Estado de São Paulo.
Durante a Interventoria de Adhemar a única alte-
ração que ocorre é resultado, na verdade, de uma Sua fraqueza política, enquanto os únicos repre-
promoção: Renato Paes de Barros foi nomeado sentantes do conjunto da elite, vêm da dificul-
na vaga de Mario Lins quando esse último tornou- dade de, a longo prazo, cumprir esse papel de
se Secretário da Educação e Saúde Pública. Na representação tal como planejado. As numerosas
Interventoria de Fernando Costa, descontadas as relações de interdependência ou de subordinação
já citadas, as substituições também são motivadas entre facções de elite, as rivalidades e oposições,
por promoções: o perrepista Marcondes Filho, a os interesses políticos de indivíduos ou grupos e,
convite de Vargas, assume o Ministério do Traba- principalmente, os interesses sociais que estão
lho, Indústria e Comércio e cede sua cadeira ao in- na base dessa elite política e que nem sempre
tegralista Miguel Reale. Em 1944, Armando Prado são conciliáveis, dificilmente poderiam encontrar
é empossado no CAESP no lugar de Marrey Junior uma solução adequada numa arena tão restrita.
quando esse último torna-se Secretário da Justiça Em outros termos: há um limite para o “Estado de
e Negócios Interiores. Somente em março de 1945 Compromisso”.
há uma substituição cuja motivação é resultado de
um conflito ideológico: Miguel Reale rompe publi- Por ora, vale sublinhar o primeiro aspecto: o poder
camente com o Estado Novo, renuncia ao posto e desse pequeno grupo da elite. Para dimensioná-
é substituído por João Carvalhal Filho. lo, veja-se o funcionamento concreto do Conselho
Administrativo do Estado de São Paulo.
Em 1947 há mais uma renovação considerável:
entram dois novos membros (Moura Rezende e IV. O processo decisório
Braz Arruda), um retorna (João Carvalhal Filho)
e Christiano Altenfelder torna-se o presidente do “O certo é que o trabalho imenso e intenso
Conselho. Essas alterações não dizem respeito nos absorvia, mas havia uma compensa-
nem à conjuntura eleitoral, nem refletem a busca ção: bem poucas vezes se legislou com
por parte dos conselheiros de uma carreira parla- tanto sentido de aderência à realidade
mentar de fato com a reabertura das assembléias [...]”26.
legislativas e câmaras de vereadores. Synésio Miguel Reale.
Acervo histórico

IV.1 As sessões não foi tão expressiva assim: 378 reuniões contra
quase o mesmo número de 1942, 384. À primei-
O Conselho Administrativo foi, em São Paulo, mui- ra vista, por esses dados, vê-se que quando os
to atuante. Entre 14 de julho de 1939 e 8 de julho Conselhos Administrativos são ressuscitados em
de 1947 realizou mais de duas mil e duzentas 1946 não têm a mesma força de antes. Fora do
sessões (descontado o ano de 1945 para o qual contexto ditatorial o número de sessões cai signi-
não há dados). Considerando-se que nos anos de ficativamente para menos da metade em relação
1939 e 1947 o Conselho Administrativo só funcio- a 1943 e em 1947 diminuem ainda mais (apenas
nou no segundo e primeiro semestres, respectiva- 138 reuniões).
mente, temos os dados constantes do Gráfico 1.
A média de sessões por semana dá uma idéia
Se a quantidade de vezes que o CAESP se reuniu mais nítida desses valores e dessa curva, que
para deliberar sobre os projetos de decreto-lei da parece acompanhar mais o contexto político na-
Interventoria ou das prefeituras é indicativa de cional que a dinâmica burocrática.
alguma coisa, então sua importância, tanto do
ponto de vista administrativo, quanto do ponto de Sobrepondo-se um gráfico a outro, a história que
vista representativo é inegável. eles contam é quase a mesma. Com uma fre-
qüência de encontros mais tímida em 1939 (2,4
Entre 1940 e 1946, excetuando-se 1945, houve por semana), mesmo considerando os poderes
uma média de 338 sessões por ano, praticamente nos quais foi investido pelo Código Administra-
uma por dia, todos os dias. tivo, até o máximo de 8,6 sessões por semana
em 1943, o Conselho de São Paulo foi uma das
Há, como se nota, uma curva ascendente de várias instituições políticas que concretizou,
1939 a 1943, o que coincide com o esplendor do ao lado do DASP27 e do DIP, a aspiração da
regime ditatorial. E mesmo a queda do número centralização/concentração do poder durante o
de sessões em 1944 em relação ao ano anterior Estado Novo.

Gráfico 1

Número absoluto de sessões ordinárias, extraordinárias e total


do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo por ano
(1939-1947)
11

IV.2 As deliberações – da Secretaria de Governo, encaminhando


os projetos de decreto-lei do Interventor
Como qualquer organização, o Conselho tinha Federal;
suas rotinas.
– das Secretarias estaduais, com pedidos
Uma reunião típica obedecia em geral à seguinte específicos ao Conselho Administrativo ou
seqüência: após a chamada nominal para a ve- dando conta das informações requisitadas
rificação da presença dos conselheiros, havendo para melhor informar os processos em an-
número legal, o Presidente declarava aberta a damento;
sessão.
– do Departamento das Municipalidades,
De acordo com o regimento interno, iniciava-se encaminhando projetos de decreto-lei das
então o “Expediente”. O segundo secretário pro- Prefeituras Municipais;
cedia à leitura da ata da reunião anterior que era
debatida (muito raramente) e aprovada (freqüen- – das próprias Prefeituras Municipais, com
temente), com retificações, caso fossem necessá- prestações (ou pedidos) de informações;
rias. O primeiro secretário procedia à leitura dos
“ofícios” – isto é, as demandas dos prefeitos e do – de outras autoridades governamentais; e
Interventor. por fim

Esses documentos eram em geral provenientes: – de cidadãos solicitando providências em


relação ao descumprimento das deci-
– do Ministério da Justiça, comunicando as sões do CAESP por parte dos prefeitos
decisões do Presidente da República nas municipais (aposentadorias, pensões,
matérias que dependiam de sua aprovação promoções, revisões de ordenados
direta28; etc.).

Gráfico 2

Média de sessões por semana do Conselho Administrativo


do Estado de São Paulo ao ano
(1939-1944 e 1946-1947)
Acervo histórico

Os projetos de decretos-lei encaminhados ao aprovação, aprovação com emendas, ou não


Conselho Administrativo versavam sobre os mais aprovação dos projetos de decreto-lei das Prefei-
diferentes assuntos, indo da fixação do horário turas Municipais ou da Interventoria Federal.
de funcionamento do comércio de um município
qualquer, até a abertura de crédito especial para Podia ocorrer que, tomando conhecimento dos
a realização de obras públicas pela Interventoria pareceres, os interessados contatassem o con-
Federal; da mudança da denominação de um selheiro-relator a fim de tentar convencê-los de
nome de rua ou praça pública, até a reorgani- suas questões. O conselheiro submetia então ao
zação do quadro de funcionários e a fixação dos Presidente do Conselho Administrativo um requeri-
respectivos vencimentos; da aquisição de imó- mento pedindo vista do processo e o adiamento da
veis e da desapropriação de terrenos, à fixação discussão e votação do projeto de resolução. Uma
de novas taxas e impostos municipais. vez tomada a decisão, publicava-se a resolução
final do Conselho Administrativo no Diário Oficial
Todos os ofícios eram então despachados à Se- do Estado.
cretaria do Conselho para informação ou anexa-
dos aos respectivos processos. O Gráfico 3 ilustra o número de pareceres produ-
zidos por sessão ao ano (exceto 1945).
Passava-se daí à “Ordem do Dia”, em que eram
discutidos, debatidos, votados e aprovados, com Olhando para a produtividade do conselho
emendas ou não, ou rejeitados os projetos de re- paulista o que se constata é o seguinte: mesmo
solução. A discussão desses últimos se fazia com em 1939, no início da sua atividade, ou em 1946-
base nos “pareceres” elaborados pelos conselhei- 1947, sob o regime liberal da Carta de 1946,
ros, publicados todos no Diário Oficial do Estado quando houve menos sessões (ver Gráfico 2),
de São Paulo. Nesses documentos, de especial ele foi, ou melhor, continuou sendo, a fonte
interesse, cada conselheiro oferecia suas razões de um volume impressionante de decisões de
(em geral sob a forma de “conclusões”) para a Estado.

Gráfico 3

Média de pareceres emitidos por sessão no


Conselho Administrativo do Estado de São Paulo ao ano
(1939-1944 e 1946-1947)
13

Graças à centralização decisória que o Estado política paulista, ele foi, num contexto antiliberal,
Novo promoveu, ao transferir para instâncias su- a única possível. E como o golpe de Estado em
periores da administração pública as mais triviais 1937 havia suprimido todos os canais para a par-
decisões, o Conselho Administrativo tornou-se, ao ticipação política, mesmo os antigos mecanismos
lado da Interventoria Federal, o ponto central de que tinham garantido a presença dessa elite nas
todo o sistema decisório estadual. “decisões de Estado”, a integração de líderes tra-
dicionais ao governo odiado na véspera não foi
V. Conclusão um sacrifício tão insuportável assim.

O regime do Estado Novo procurou, tão rápido Que essa função política – a representação de
quanto possível, criar duas instituições que pu- interesses – tenha assumido uma forma buro-
dessem concretizar, na ponta do sistema político, crática é uma razão adicional da importância dos
o projeto de centralização das decisões do Estado. Conselhos Administrativos para a história política
Essa foi uma das muitas vias, aliás, que permitiu brasileira. Pelo menos por duas razões.
a concentração do poder no Executivo federal. Ao
lado das Interventorias, os Conselhos Administra- O fato da intensa atividade do Conselho paulis-
tivos tornaram-se, penso eu, o modelo burocrático ta aparecer aos olhos dos próprios membros do
mais curioso encontrado para compensar o peso CAESP, e da literatura especializada, como uma
da Presidência da República diante de elites po- função meramente “administrativa” 29 é o índice por
líticas regionais ainda relativamente influentes e excelência da (altíssima) eficácia ideológica do re-
importantes sem, contudo, rebaixar de uma vez gime do Estado Novo sobre todos os observadores
por todas sua influência e importância. e protagonistas, e não a constatação da superio-
ridade do julgamento técnico e imparcial sobre a
Por isso há certos aspectos que decorrem da sim- política interesseira e miúda. Ao tomar a forma pela
ples existência do Conselho Administrativo no or- função – ou o nome (“Conselho Administrativo”)
ganograma estadual e que ultrapassam a questão pela coisa em si mesma – o que se perde de vista é
de saber se suas decisões eram importantes de justamente que essa forma burocratizada, sinuosa,
fato para a vida político-administrativa do estado mediada por um papelório sem fim e por incontá-
ou não. Esses aspectos ajudam a compor um perfil veis reuniões com todos os ritos que a burocracia
mais nítido do regime ditatorial, relativizando o de- teria direito encobria uma ação que era, no fim das
cantado “poder pessoal” do Presidente ou a influ- contas, política. O processo decisório do Conselho
ência política do Interventor, permitem entender a Administrativo exprimia uma teia bastante complexa
complicada morfologia do sistema estatal no perío- de relações políticas: dos conselheiros com a sua
do e evidenciam uma das várias modalidades que clientela preferencial (os prefeitos), do Conselho
a liderança de Getúlio Vargas assumiu nos esta- com a Interventoria Federal, do Interventor com a
dos. Mesmo em São Paulo. Por mais arbitrário que Presidência, do Presidente com o Ministério da Jus-
tenha sido o governo, havia método nisso tudo. tiça, do Ministro com o Conselho Administrativo e
deste com o Departamento das Municipalidades.
A complexidade do problema da representação
dos interesses das elites no sistema decisório Contudo, reconhecer esse fato político não auto-
(sejam as elites econômicas, sejam as políticas, riza a ver no Conselho Administrativo o substituto
sejam as ascendentes, sejam as decadentes de funcional da Assembléia Legislativa dos estados.
ambos os tipos) exigiria, como se viu, uma solu- Esse é um segundo erro que tem sua origem na
ção menos eventual e mais institucional. Note que ideologia antiparlamentar difundida pelo Estado
se o corporativismo econômico resolveu o emba- Novo, já que assimila, agora em sentido inverso,
raço com as primeiras, a resposta automática do a função (supervisionar o Executivo estadual) à
Executivo federal às segundas foi reeditar o es- forma (uma câmara de representantes “da so-
quema das Interventorias, tal como tentado entre ciedade”). Como se recorda, a composição do
1930 e 1934. Todavia, quando a partir de 1938 Conselho Administrativo não era burocrática, mas
ele se revelou demasiado estreito para conciliar política; sua ação não era administrativa, mas po-
tantos e tão diferentes interesses, o Conselho lítica; e sua função não era técnica, mas política.
Administrativo apareceu, em 1939, como uma Entretanto tudo isso num sentido bem preciso.
saída peculiar para garantir algum grau de “plura- Tratava-se efetivamente de um canal privilegiado
lismo” ao regime e flexibilidade ao sistema como de ligação das elites políticas estaduais, através
um todo. Daí que ainda que o Conselho Adminis- de uns poucos políticos, ao Executivo federal, e
trativo do Estado de São Paulo não tenha sido a vice-versa, e não de uma casa de elaboração de
maneira mais eficaz de expressão política da elite leis. Esta, só viria com a redemocratização.
Acervo histórico

ANEXO Biográfico
Alexandre Marcondes Filho (31 ago. 1892 - 16 out. 1974)
Marcondes Filho nasceu em São Paulo (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em
1914. Secretário particular de Bernardino Campos (1914). Vereador em São Paulo (1926-1928) pelo
Partido Republicano Paulista (PRP). Líder da bancada situacionista na Câmara dos Vereadores de
São Paulo (1926). Deputado federal (1927-1929; 1930). Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio
(1941-1945). Ministro da Justiça e Negócios Interiores (1943-1945). Senador à Assembléia
Constituinte (1946). Senador (1946-1950; 1951-1954). Vice-presidente do Senado Federal (1951-
1954). Presidente do Senado Federal (1954). Ministro da Justiça e Negócios Interiores (1955).
Faleceu em São Paulo em 16 de outubro de 1974.
Marcondes Filho foi vice-presidente do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo entre 1939
e 1941.

Antonio Ezequiel Feliciano da Silva (22 abr. 1899 - 22 jul. 1986)


Antonio Feliciano nasceu em Paraibuna (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo
em 1919. Vereador em Santos (1926-1928; 1936-1937). Deputado estadual (1928-1930). Deputado
constituinte (1946). Deputado federal (1946-1950; 1951-1953; 1959-1962; 1963-1966; 1967-1970).
Prefeito de Santos (SP) (1953-1957). Vice-líder do Partido Social Democrático na Câmara dos
Deputados (1952; 1962). Ministro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (1958). Faleceu
em Santos (SP) em 22 de julho de 1986.
Antonio Feliciano participou do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo de 1941 a 1945.

Antonio Gontijo de Carvalho (29 jul. 1898-4 ago. 1973)


Antonio Gontijo nasceu em Uberaba (MG). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em
1923. Funcionário da Secretaria de Agricultura de São Paulo (1927-1930). Secretário-geral do
Departamento Nacional do Café (1936). Funcionário do Ministério da Agricultura (1938). Chefe
da Casa Civil do governo do Estado de São Paulo (1939). Membro da Comissão de Negócios de
São Paulo (1941-1944). Presidente da Subcomissão de Organização e Finanças (1943-1944).
Deputado federal suplente (1946-1950) pelo PSD. Faleceu em São Paulo, em 4 de agosto de
1973.
Antonio Gontijo foi conselheiro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo de 1939 a
1941.

Armando da Silva Prado (11 mar. 1880-4 dez. 1956)


Armando Prado nasceu em São Paulo (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São
Paulo em 1902. Vereador em São Paulo (1911-1913; 1914-1916; 1917-1919; 1920-1922)
pela sigla do PRP. Deputado estadual (1922-1924; 1925-1927; 1928-1930). Deputado federal
(1930). Procurador da Justiça Eleitoral (1935). Procurador-geral interino em São Paulo (1938).
Presidente do Tribunal Federal de Recursos (1949-1956). Faleceu em São Paulo em 4 de
dezembro de 1956.
Armando Prado foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo entre 1943 e
1945.

Arthur Pequeroby de Aguiar Whitaker (4 out. 1881 - 20 abr. 1947)


Arthur de Aguiar Whitaker nasceu em Araras (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São
Paulo em 1907. Promotor Público (1908). Advogado em Jaboticabal e em São Paulo. Deputado
estadual (1916-1918; 1919-1921; 1922-1924; 1925-1927 e 1928-1930). Segundo Suplente de
Secretário da Mesa da Câmara Estadual (1916-1918). Segundo Secretário da Mesa da Câmara
Estadual (1919-1924). Primeiro Secretário da Mesa da Câmara Estadual (1925-1927). Prefeito
Municipal de Jaboticabal (SP) (1926). Presidente da Câmara Estadual (1928-1930). Membro da
Comissão Executiva do Partido Republicano Paulista (1928-1930). Presidente do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo (1928-1930). Secretário de Estado da Justiça e Negócios Interiores
(1946). Fundador e membro da Comissão Executiva do Partido Social Democrático. Faleceu em
São Paulo em 20 de abril de 1947.
Arthur de Aguiar Whitaker foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo entre
1939 e 1941 e seu vice-presidente de 1941 a 1945.

Braz de Souza Arruda (3 fev. 1895 - 24 jun. 1963)


Braz Arruda nasceu em Campinas (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1916.
Diretor da Faculdade de Direito de São Paulo (1949-1955). Faleceu em 24 de junho de 1963.
Braz Arruda foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em 1947.
15

Carlos Cyrillo Júnior (25 dez. 1886 - 31 maio 1965)


Cyrillo Júnior nasceu em Curitiba (PR). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1908.
Deputado estadual (1925-1927; 1928-1930; 1935-1937). Líder da oposição na Assembléia Constituinte
de São Paulo (1935-1937). Deputado federal (1930). Secretário-geral do Partido Social Democrático de
São Paulo (1945). Deputado constituinte (1946). Deputado federal (1946-1950); Líder da bancada do
Partido Social Democrático de São Paulo (1946). Presidente da Câmara dos Deputados (1949-1950).
Presidente do Partido Social Democrático (1949-1951). Ministro da Justiça e Negócios Interiores (1958-
1959). Embaixador do Brasil na Bélgica (1960-1963). Faleceu em São Paulo em 31 de maio de 1965.
Cyrillo Júnior foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo de 1939 a 1945.
Christiano Altenfelder Silva (15 fev. 1899 - 8 jul. 1985)
Christiano Altenfelder nasceu em São Carlos (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São
Paulo em 1920. Promotor Público (1922-1924). Cônsul do Brasil na Venezuela (1933). Secretário
de Educação e Saúde Pública (1933-1934). Chefe de Polícia (1934). Secretário de Justiça (1934-
1935). Deputado estadual classista (1935-1937). Vice-presidente da Assembléia Legislativa (1936).
Membro da Comissão de Finanças da Assembléia Legislativa. Secretário da Agricultura, Indústria e
Comércio (1945-1946). Faleceu em São Paulo em 8 de julho de 1985.
Christiano Altenfelder foi vice-presidente do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em
1946 e seu presidente em 1947.
Goffredo Teixeira da Silva Telles (17 abr. 1888 - 30 jul. 1980)
Goffredo da Silva Telles nasceu no Rio de Janeiro (DF). Graduou-se na Faculdade de Direito de São
Paulo em 1910. Vereador do PRP em São Paulo (1926-1928; 1929-1930). Prefeito de São Paulo
(1932). Faleceu em São Paulo em 30 de julho de 1980.
Goffredo da Silva Telles foi presidente do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo de 1939 até
1945.
Innocencio Seraphico de Assis Carvalho (14 dez. 1887- 1952)
Innocencio Seraphico nasceu em Pernambuco. Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo
em 1921. Vereador em São Paulo (1926-1928; 1929-1930). Deputado estadual (1935-1937).
Membro do diretório metropolitano do Partido Social Democrático de São Paulo. Faleceu em 1952.
Innocencio Seraphico foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em 1946 e
seu vice-presidente em 1947.
João Galeão Carvalhal Filho (1884 - 9 set. 1955)
João Carvalhal Filho nasceu em Santos (SP). Graduou-se na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais
do Rio de Janeiro em 1904. Deputado estadual (1925-1927) pelo PRP. Secretário do Interior do Estado
de São Paulo (1927). Deputado federal (1930). Faleceu em São Paulo em 9 de setembro de 1955.
João Carvalhal Filho participou do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em 1945 e em
1947.
José Adriano Marrey Júnior (7 ago. 1885 - 14 mar. 1965)
Marrey Júnior nasceu em Itamarandiba (MG). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em
1906. Vereador em São Paulo (1914-1916; 1917-1919; 1936-1937; 1948-1951). Deputado estadual
(1919-1921; 1922-1924; 1925-1927). Membro da Comissão Executiva do Partido Democrático (1926-
1927 e 1930-1931). Deputado federal (1927-1929). Secretário da Justiça e Negócios Interiores do
Estado de São Paulo (1943-1945). Presidente da Câmara Municipal de São Paulo (1948 e 1950).
Deputado federal (1951-1953). Secretário de Negócios Internos e Jurídicos da Prefeitura de São
Paulo (1953). Presidente do Conselho do Tribunal de Contas de São Paulo. Presidente do Tribunal
de Alçada (1958). Faleceu em São Paulo em 14 de março de 1965.
Marrey Júnior foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em duas ocasiões:
entre 1941 e 1943 e entre 1946 e 1947.
José Cesar de Oliveira Costa (8 mar. 1891 - 6 maio 1951)
Cesar Costa nasceu em Taubaté (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1912.
Prefeito de Taubaté (1917-1921; 1928-1930). Deputado estadual (1922-1924; 1925-1927) do PRP.
Deputado constituinte (1946). Deputado federal (1946-1950). Membro do Conselho Superior da
Caixa Econômica Federal (1946). Faleceu em São Paulo em 6 de maio de 1951.
Cesar Costa foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo de 1941 até 1945.
José de Moura Rezende (26 out. 1896 - 20 dez. 1965)
Moura Rezende nasceu em Caçapava (SP). Graduou-se na Faculdade de Ciências Jurídicas
e Sociais do Rio de Janeiro em 1919. Vereador em Caçapava (1923-1925; 1926). Prefeito de
Caçapava (1926-1930). Deputado estadual (1935-1937). Vice-líder e líder da minoria na Assembléia
Legislativa do Estado de São Paulo (1935-1937). Diretor do Departamento Estadual do Trabalho
Acervo histórico

(1938). Chefe da Casa Civil (1938-1939). Secretário da Justiça e Negócios Interiores do Estado de
São Paulo (1939-1941). Interventor Federal substituto em São Paulo (10 nov. 1939 - 26 nov. 1939).
Secretário da Educação (1950; 1953-1954). Deputado federal (1951-1953). Líder da bancada do
Partido Social Progressista na Câmara dos Deputados (1953). Ministro do Tribunal de Contas de
São Paulo (1954). Presidente do Tribunal de Contas de São Paulo (1959-1960). Faleceu em São
Paulo em 20 de dezembro de 1965.
Moura Rezende integrou o Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em 1947.
Lincoln Feliciano da Silva (20 jun. 1893 - 19 ago. 1971)
Lincoln Feliciano nasceu em Paraibuna (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em
1915. Prefeito de Palmas (SP). Prefeito de Santos (SP) (1935-1937). Prefeito nomeado de Santos
(1945). Deputado estadual (1947-1951; 1951-1955; 1959-1963) pelo PSD. Presidente da Comissão
de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa (1947). Presidente da Assembléia Legislativa de
São Paulo (1948-1949). Secretário da Justiça (1955-1957). Secretário da Agricultura (1957-1959).
Deputado federal (1955-1958). Membro da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos
Deputados. Interventor em São Vicente (SP) (1966). Faleceu em 19 de agosto de 1971.
Lincoln Feliciano participou do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em 1946 e 1947.
Luiz Pereira de Campos Vergueiro (19 ago. 1882 - 5 abr. 1953)
Campos Vergueiro nasceu em Viena (Áustria). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em
1904. Vereador em Sorocaba (SP) pelo PRP. Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba. Prefeito
de Sorocaba (1926-1927). Deputado estadual (1910-1912; 1913-1915; 1916-1918; 1919-1921; 1922-
1924; 1925-1927) pelo PRP. Segundo Secretário da Câmara Estadual de São Paulo. Primeiro Secretário
da Câmara Estadual (1925-1927). Senador estadual (1926-1927). Deputado constituinte (1935-1937).
Procurador-chefe da Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Serviços Públicos de São Paulo (1938).
Diretor-geral do Departamento Estadual do Trabalho (1941-1944). Diretor-geral do Departamento das
Municipalidades (1945-1946). Ministro do Tribunal de Contas de São Paulo (1947-1950). Presidente do
Tribunal de Contas de São Paulo (1949-1950). Faleceu em São Paulo em 5 de abril de 1953.
Campos Vergueiro foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em 1946.
Mario Guimarães Barros Lins (17 de set. 1894 - 20 de ago. 1959)
Mario Lins nasceu em Recife (PE). Graduou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em
1916. Membro do Diretório Central do PRP. Prefeito eleito de Jardinópolis (SP) pelo PRP de 15 de
janeiro de 1929 a 25 de outubro de 1930. Prefeito nomeado de Jardinópolis (1931-1933). Prefeito
nomeado de Jardinópolis (1933-1934). Prefeito eleito de Jardinópolis (1936-1939). Secretário da
Educação e Saúde Pública do Estado de São Paulo (1940-1941). Diretor da Cia. Mogiana das
Estradas de Ferro (1951-1955). Vereador em Jardinópolis (1955-1958). Presidente da Câmara
Municipal. Faleceu em Ribeirão Preto (SP) em 20 de agosto de 1959.
Mario Lins foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo de 1939 a janeiro de 1940.
Miguel Reale (6 nov. 1910)
Miguel Reale nasceu em São Bento do Sapucaí (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São
Paulo em 1934. Secretário Nacional de Doutrina da Ação Integralista Brasileira (1936). Secretário
de Justiça e Negócios Interiores de São Paulo (1947). Presidente do Instituto Brasileiro de Filosofia
(1949). Reitor da Universidade de São Paulo (1949-1950; 1969-1973). Vice-Presidente do Partido
Social Progressista. Secretário de Justiça de São Paulo (1963-1964). Membro da Academia
Brasileira de Letras (1975). É advogado em São Paulo.
Miguel Reale integrou o Conselho Administrativo do Estado de São Paulo entre 1942 e 1945.
Plinio Rodrigues de Moraes (30 abr. 1896 - 14 jul. 1941)
Plinio de Morais nasceu em Tietê (SP). Graduou-se na Escola de Farmácia de São Paulo em 1918.
Membro do diretório do Partido Republicano Paulista (1927-1930). Suplente de deputado federal
(1934-1935). Vereador em Tietê (SP) (1936-1937). Prefeito de Tietê (1938-1941). Faleceu em São
Paulo em julho de 1941.
Plinio de Morais foi conselheiro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo entre 1939 e
1941.
Renato Paes de Barros (1885 - 18 set. 1951)
Renato Paes de Barros nasceu em Itu (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em
1906. Delegado de Polícia (1902-1912). Procurador-Geral do Estado de São Paulo (1938-1941).
Membro do Conselho Técnico de Economia e Finanças do Estado. Administrador da Caixa de
Previdência Social dos Ferroviários da Estrada de Ferro Sorocabana. Faleceu em Roma (Itália) em
18 de setembro de 1951.
Renato Paes de Barros integrou o Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em 1940 e 1941.
17

Sebastião Nogueira de Lima (3 nov. 1880 - 2 ago. 1964)


Sebastião Nogueira de Lima nasceu em Casa Branca (SP). Graduou-se na Faculdade de
Direito de São Paulo em 1904. Vereador em Piracicaba (SP) (1920-1922; 1923-1925) pelo PRP.
Presidente da Câmara Municipal de Piracicaba. Reitor da Universidade Popular de Piracicaba.
Curador de Acidentes do Trabalho. Curador de Menores. Procurador-geral do Estado (1943).
Secretário da Educação e da Saúde Pública (1943). Secretário de Justiça e Negócios Interiores
(1945). Interventor Federal em São Paulo (1945). Ministro do Tribunal de Contas do Estado de
São Paulo. Presidente do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (1947-1948). Faleceu em
São Paulo em 2 de agosto de 1964.
Sebastião Nogueira de Lima foi presidente do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em
1946.
Synésio Rocha (5 jun. 1893 - 15 jul. 1957)
Synésio Rocha nasceu em São Paulo (SP). Graduou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em
1919. Vereador em São Paulo (1926-1928; 1929-1930; 1936-1937) pelo PRP. Procurador-geral do
Estado (1942-1945). Secretário do Trabalho, Indústria e Comércio (1946). Secretário do Estado de
Negócios Internos e Jurídicos (1948-1949). Secretário da Justiça (1950-1951). Ministro do Tribunal
de Contas de São Paulo (1952). Faleceu em São Paulo em 15 de julho de 1957.
Synésio Rocha foi membro do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em 1946.

NOTAS

1
As informações aqui utilizadas foram compiladas a partir da pesquisa documental realizada na
biblioteca particular do Dr. Goffredo da Silva Telles Jr., ao qual agradeço a amável acolhida, e na
Divisão de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Registro igualmente
o apoio dado a essa pesquisa pelos funcionários do Acervo Histórico, Solange de Castro Bulcão
e Olívia Gurjão, e por seu diretor, Dainis Karepovs. Julio Cesar Gouvêa merece o crédito pelos
gráficos e pela compilação das informações do anexo biográfico.
2
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, 1930-1964. 10ª. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992, cap. I, p. 62.
3
SKIDMORE, Thomas. Ibid., p. 60.
4
A primeira denominação do órgão foi “Departamento Administrativo”. O Decreto-Lei nº. 5.511, de
21 de maio de 1943, art. 2o, modificou sua nomenclatura para “Conselho Administrativo”. Utilizo em
todo o artigo esta última denominação, mesmo para o período anterior a 1943.
5
VARGAS, Getulio. Proclamação ao povo brasileiro (“À Nação”. Lida no Palácio Guanabara e irra-
diada para todo país na noite de 10 de novembro de 1937). In: _____. A nova política do Brasil. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1938, vol. V: O Estado Novo (10 de Novembro de 1937 a 25 de Julho de
1938), p. 28, grifos meus.
6
Todas as passagens entre aspas são de VARGAS, Getúlio. Proclamação ao povo brasileiro, op. cit.,
p. 19; 30; 23; 23; e 32, respectivamente. O pronunciamento presidencial de 10 de novembro (assim
como a Constituição) foi redigido por Francisco Campos a partir de anotações com instruções gerais
preparadas por Getúlio Vargas. Ver a entrada do dia 7 de novembro de 1937 em: Getúlio Vargas: diá-
rio. São Paulo, Siciliano; Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1995, vol. II (1937-1942), p. 82.
7
Os principais candidatos eram Armando de Sales Oliveira (oposição) e José Américo de Almeida
(situação).
8
Todas as passagens entre aspas são de: VARGAS, Getulio. Proclamação ao povo brasileiro, op.
cit., p. 23; 24; 24; 25; 20; 30; 20; 20; 29; 31; e 22, respectivamente.
9
MARTINS, Luciano. A revolução de 1930 e seu significado político. In: CPDOC/FGV. A revolução
de 1930: seminário internacional. Brasília: Ed. UnB, 1983, p. 686.
10
VARGAS, Getulio. Proclamação ao povo brasileiro, op. cit., p. 32.
11
Como sustentou MARTINS, Luciano. Estado Novo. FGV-CPDOC. Dicionário histórico-biográfico
brasileiro (1930-1983). Rio de Janeiro: Forense-Universitária/Finep, 1983, p. 1198.
Acervo histórico

12
Para que não restem dúvidas: “O presidente da República é o centro da nova organização estatal.
Nele concentram-se atribuições atinentes à garantia da unidade nacional, da segurança do Estado
e da estabilidade da ordem social”. CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estrutura; seu
conteúdo ideológico. 2a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 97.
13
Essa é a opinião de SOLA, Lourdes. O golpe de 37 e o Estado Novo. In: Carlos Guilherme Mota
(org.), Brasil em perspectiva. 19a. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 258
14
DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda; DEIP, Departamento Estadual de Imprensa e
Propaganda; CNPIC, Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial; CME, Coordenação da
Mobilização Econômica; CPE, Comissão de Planejamento Econômico.
15
V. MARTINS, Luciano. A revolução de 1930 e seu significado político, op. cit., p. 686.
16
V., sobre esse ponto, DINIZ, Eli. Empresário, Estado e capitalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1978.
17
MARTINS, Luciano. A revolução de 1930 e seu significado político, op. cit., p. 686.
18
Esta parece ser a posição de DINIZ, Eli. O Estado Novo: estrutura de poder; relações de classes.
In: FAUSTO, Boris (org.), História geral da civilização brasileira. Tomo III: O Brasil Republicano, 3o.
Vol. Sociedade e Política (1930-1964). 5a. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
19
V. CAMPELLO DE SOUZA, Maria do Carmo C. Estado e partidos políticos no Brasil (1930 a 1964).
3ª. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 95-98 e 103-104.
20
CAMPOS, Francisco. O Estado nacional, op. cit., p. 27 e 28.
21
Renato Paes de Barros, em discurso pronunciado por ocasião da passagem do primeiro aniver-
sário do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo em 11/07/1940. CAESP, Anais de 1940,
Vol. I (Sessões), 2a­ parte, p. 1217. Para a mesma constatação, v. Boris Fausto, História do Brasil. 2a
ed. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo/Fundação do Desenvolvimento da Educação,
1995, p. 366. Cf. igualmente: Boris Fausto, Pequenos ensaios de história da República: 1889-1945.
São Paulo, Cadernos CEBRAP no. 10, 1972, pp. 87-88.
22
MARREY JÚNIOR, J. A. No Departamento Administrativo de São Paulo: discursos e pareceres
(18/6/1941-31/12/1942). São Paulo: s. ed., 1943, p. 12.
23
O art. 14. fixava algumas restrições à essa regra geral. “As nomeações de membros do Conselho
Administrativo não podem recair em quem: a) tenha contrato com a administração pública federal,
estadual ou municipal, ou com ela mantenha transações de qualquer natureza; b) seja funcionário
público estadual, salvo quando em disponibilidade, ou municipal; c) exerça lugar de administração
ou consulta, ou seja proprietário ou sócio de empresa concessionária de serviço público ou que
goze de favor, privilégio, isenção, garantia de rendimentos ou subsídio do poder público; d) tenha
contrato com empresa compreendida na alínea anterior, ou dela receba quaisquer proventos”.
24
Interventorias em São Paulo na década de 40: Adhemar de Barros (de 27 abril de 1938 a 4 junho
de 1941), Fernando Costa (de 4 junho de 1941 a 27 outubro de 1945) e José Carlos de Macedo
Soares (de 3 novembro de 1945 a 14 março de 1947).
25
PRP, Partido Republicano Paulista; PD, Partido Democrático; FUP, Frente Única Paulista; PC,
Partido Constitucionalista; AIB, Ação Integralista Brasileira.
26
REALE, Miguel. Memórias: destinos cruzados. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 171.
27
Departamento Administrativo do Serviço Público.
28
Cf. o art. 31 do decreto-lei 1.202/39.
29
Na interpretação usual, os Conselhos Administrativos foram assimilados a uma espécie de divisão
regional do DASP – os “daspinhos”. Cf. LOEWENSTEIN, Karl. Brazil under Vargas. New York: The
Macmillan Company, 1944, p. 59; GRAHAM, Lawrence S. Civil Service Reform in Brazil: Principles
versus Practice. Austin and London: University of Texas Press, 1968; SOLA, Lourdes. O golpe de
37 e o Estado Novo, op. cit., p. 268-269; e CAMPELLO DE SOUZA, Maria do Carmo C. Estado e
partidos políticos no Brasil, op. cit., p. 96-97.
19

O PCB no
Legislativo paulista
1947-1948
Eduardo José Afonso*

P artidos políticos, organizações sociais diversas, tral altamente burocratizado, tentava-se, agora,
eleições diretas para a escolha do presidente e manter “democraticamente” o controle sobre os
de deputados, além da convocação de uma As- Estados. As transformações processaram-se
sembléia Constituinte. Era como se o Brasil fosse vagarosamente. Primeiro, tivemos a forma-
passado a limpo. O Departamento de Imprensa e ção dos partidos – poderíamos dizer invenção
Propaganda (DIP) tinha sido extinto, as greves, –, que se tornaram oficiais, a manutenção da
apesar da legislação que as proibia, estavam pre- Constituição da ditadura e a permanência das
sentes, provando a força do operariado. Os meios interventorias; depois, as eleições federais e a
de comunicação podiam expressar suas opiniões escolha do presidente para, finalmente, serem
e a população saia às ruas para comemorar um autorizadas as eleições estaduais, de forma a
tempo novo. O fim da Guerra e o fim da Ditadura. que os Estados pudessem voltar à normalidade
Era a liberdade que se descortinava diante de to- democrática.
dos. Era a Democracia.
O Estado de São Paulo escapou dos planos tra-
Os depoimentos colhidos dão conta da par- dicionais. O poder político, aqui, não pôde ser tu-
ticipação de operários neste período e são telado pelos partidos da elite, como queria Eurico
unânimes em descrevê-lo como um tempo de Gaspar Dutra, nem contou com a ajuda de Getúlio
abertura e de liberdades democráticas. Em um Vargas. O Partido Social Democrático (PSD) e a
lapso de tempo, parecia que o poder estava União Democrática Nacional (UDN), que eram
com o povo e o destino do país pudesse ser oposição “cordial”, tiveram que dividir seu pre-
traçado por todos. Tanto aquele momento do tendido controle sobre o Estado com o Partido
pós-guerra, como o do fim da Ditadura Militar, Comunista do Brasil (PCB), o Partido Trabalhista
simbolizado pelo Movimento das “Diretas-Já”, é Brasileiro (PTB) e uma nova força política que
representativo e ao mesmo tempo didático. Há surgia, o Partido Social Progressista (PSP), de
que se perguntar: Adhemar de Barros.

– Afinal, num país sem tradição democráti- Findas as eleições em 19 de Janeiro de 1947,
ca, o que é Democracia? São esses lapsos Adhemar e os comunistas1 seriam os grandes
como o é a felicidade? vitoriosos. A Assembléia Legislativa seria reaber-
ta e o governador tomaria posse em seu recinto,
Com o fim do Estado Novo, a reorganização confirmado pelos 75 deputados que comporiam
política dos Estados estava na ordem do dia. A este novo cenário político.
democracia não seria construída com a partici-
pação popular. Era um presente. Edificada de A Assembléia Legislativa de São Paulo foi rea-
cima para baixo, alicerçando-se num poder cen- berta em novas instalações2 – no Palácio das

*
Graduado em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda – pela Fundação Armando Álvares Penteado e
em História pela Universidade de São Paulo. Mestre pela Universidade de São Paulo com a dissertação O PCB e o
poder. 1935 – O Poder pela força. 1945 – O Poder pelo voto (Os comunistas na Assembléia Legislativa – 1947-
1948). São Paulo, FFLCH-USP, 2004. É autor dos livros A Guerra do Contestado e a Guerra dos Emboabas
(Ática), Os povos das florestas (Editora do Brasil), Rússia Ontem e Hoje, 500 anos de América e Apartheid (IBEP)
(tchorla@ig.com.br).
Acervo histórico

Indústrias – no dia 14 de março de 1947. O Partidos representados na


presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE- Assembléia Legislativa de São Paulo
SP), desembargador Mario Guimarães, abriu os
trabalhos da Assembléia Constituinte Estadual, 1º Legislatura – 1947/1951
marcando o retorno de São Paulo à vida política
constitucional. Partido Social 26
PSD 34,7%
Democrata deputados
Sem perda de tempo, no dia 18 de março, foi
composta a Comissão para estudar a matéria do Partido Trabalhista 14
PTB 18,7%
Regimento Interno e apresentar proposta, que Brasileiro deputados
ficou pronta no dia 26. Após a apreciação das Partido Comunista 11
emendas, o Regimento Interno da Constituinte PCB 14,7%
do Brasil deputados
foi aprovado, em sessão extraordinária. Estava
pronto o caminho para o início dos trabalhos. Partido Social 9
PSP 12,0%
Progressista deputados
Os embates que se seguiram, assim como as União Democrática 9
emendas propostas e os projetos de lei apre- UDN 12,0%
Nacional deputados
sentados, seriam reflexos dos acontecimentos
– incertezas do mundo frente à Guerra Fria e situ- Partido 3
PR 4%
Republicano deputados
ação político-econômica interna, particularmente
do Estado de São Paulo – que exerciam grande Partido Democrata 2
PDC 2%
influência sobre os deputados. Cristão deputados
Partido da
A participação do PCB na Assembléia Legislativa 1
Representação PRP 1,3%
de São Paulo, a partir de 1947, não é a mesma deputado
Popular
apresentada na Câmara Federal em 1946. O
partido, desde seu III Congresso (julho de 1946),
havia mudado sua postura. Os comunistas sa- A população paulista estava exultante, a im-
biam que não eram mais vistos com bons olhos portância do fato era inegável, o fim do Estado
pelas elites, como ocorrera até aquele momen- Novo abria grandes perspectivas e esperanças,
to. Temerosos diante dos acontecimentos, que não só para os deputados eleitos, como também
prenunciavam a cassação do registro de seu para todos os que acreditavam estar vivendo um
partido, mas ainda apostando que os pedidos novo momento, sem repressão e de liberdades
de cassação não fossem atendidos, confiavam democráticas. Para os comunistas, essa etapa
na “força moral da Democracia”. Essa crença os reforçava a crença de que as instituições demo-
levou a determinar uma nova linha política, que cráticas eram sólidas e inabaláveis.
propunha como recurso as “formas de luta cada
vez mais altas e vigorosas”, desde que dentro da Assumidos os seus postos, composta a Mesa e
legalidade. iniciados os trabalhos da Assembléia Constituin-
te, o PCB vivenciaria, na prática, aquilo que seu
Nas eleições de 1947, o PCB, que já mostrara discurso privilegiara até aquele momento em São
sua pujança política nas eleições anteriores, no Paulo. Nem sempre seria fácil unir a prática e o
Brasil inteiro sagrou 46 deputados em quinze dos discurso.
vinte e um Estados e ficou em terceiro lugar na
DAH - ALESP

Assembléia Legislativa de São Paulo, com 11 Os trabalhos da


representantes. Constituinte tiveram
a presença marcante
Havia 11 deputados comunistas, contra 64 de do PCB que, pre-
outras tendências. Entre os pecebistas que as- tendendo manter-se
sumiram as cadeiras da Assembléia Legislativa coerente com seus
de São Paulo, sete eram operários (Armando princípios e as deter-
Mazzo, Clóvis de Oliveira Neto, Estocel de minações do Comitê
Moraes, João Sanches Segura, Lourival Cos- Central, lutou na de-
ta Villar, Mautílio Muraro e Roque Trevisan) fesa dos interesses
e quatro intelectuais (Caio Prado Jr., Catullo dos trabalhadores e
Branco, João Taibo Cadorniga e Milton Cayres Deputado da população paulis-
de Brito). Clóvis de Oliveira Neto ta mais carente.
21

Desde o início dos trabalhos, os comunistas se para o início das discussões e a aprovação de
destacaram. A primeira comissão, que teve como emendas, a bancada comunista estava prepa-
finalidade a elaboração do Regimento Interno da rada. O Deputado Catullo Branco, nos debates
Constituinte, contou com a presença de Caio Pra- sobre a situação do funcionalismo público, de-
do Jr., que a presidiu. fendeu a substituição do conceito de “concurso”

DAH - ALESP
No dia 1º de abril, foi pelo de “prova de habilitação”. Fundamentou
criada a Comissão sua defesa no argumento de que os concursos
Especial de Consti- eram ineficientes, já que, freqüentemente, eram
tuição, encarregada burlados pelo protecionismo. Nos debates sobre
de elaborar o ante- as “comissões mistas”, o mesmo Catullo Branco
projeto, analisar as apontou o fracasso do Departamento Administra-
emendas e redigir o tivo do Serviço Público
texto final da Cons- (DASP) no trato com

DAH - ALESP
tituição, da qual a questão dos con-
participaram Milton cursos e admissões.
Cayres de Brito, líder Discutindo a mesma
da bancada comunis- Deputado questão, propôs a cria-
ta, e Caio Prado Jr. Caio Prado Junior ção de comissões mis-
tas dentro das reparti-
“Eles dividiam as teses e os trabalhos... ções, justamente para
Então, se era um projeto mais ligado aos evitar o “filhotismo” e
operários e tal, ia ele [Deputado Sanches o apadrinhamento no
Segura], o Mazzo, ou outro. Se era um pro- serviço público. Suas
blema de energia, era o engenheiro Catullo propostas, no entanto,
Branco. (...) Eles dividiam e davam tarefas. não foram acatadas. Deputado Catullo Branco
Tinha o secretário dos deputados, tinha
bancada, eles faziam reunião permanente Nas discussões que envolveram a questão da
e distribuíam o trabalho”, esclarece Dona aposentadoria, a bancada comunista defendeu
Adoração3. que ela se desse aos 65 anos, por não consi-
derar adequado o limite para 70 anos, já que a
Além de primar por organização e respeito à es- média de vida do brasileiro, naquela época, era
trutura interna, os trabalhos da bancada do PCB, de 45 anos. Propôs o estudo do aumento dos
no decorrer de todo o processo constituinte, foram valores da aposentadoria, tendo em vista as
baseados em seu programa mínimo, que defendia dificuldades que o brasileiro enfrentava para so-
basicamente: soberania da Constituinte; aumento breviver naquelas condições do pós-guerra. No
geral de salários, estímulo à produção agrícola, debate sobre desapropriação de terras, o líder
terras para os camponeses, reforma dos contra- da bancada, Deputado Milton Cayres de Brito,
tos de arrendamento, combate ao “câmbio negro”; criticou o latifúndio, apontando que se dedica-
reaparelhamento das vias férreas, aplicação do vam, como no período colonial, à monocultura
“fundo de melhoramentos” de transporte, explora- para a exportação, razão pela qual se verificava
ção de todo o serviço ferroviário. Propunha, tam- a carência de produ-
bém, que os municípios recebessem, por parte do tos de primeira ne-
Acervo Iconographia

Estado, a garantia de empréstimos ou assistência cessidade. Definiu o


técnica para a solução de seus problemas; o en- regime social brasi-
sino público e gratuito, a melhor remuneração aos leiro como “semifeu-
professores e a criação e ampliação da rede de dal” – como queriam
saúde; habitação barata e a obrigatoriedade, por os teóricos do PCB
parte dos fazendeiros, de construir casas para os –, com relações de
colonos; reajuste dos vencimentos dos funcioná- produção pré-capi-
rios públicos e efetivação dos extranumerários. talistas, e sustentou
Esse programa tornou-se um anteprojeto e foi que, devido a todas
oferecido à Comissão Especial de Constituição, essas condições, ain-
sem, no entanto, ser discutido por ela. da existia no campo Deputado
semi-servidão. Milton Cayres de Brito
Quando a Comissão Especial terminou seus tra-
balhos, em 28 de abril de 1947, e o anteprojeto de O Deputado Caio Prado Jr., na discussão parla-
Constituição foi distribuído pela Mesa ao plenário, mentar sobre a arrecadação tributária, defendeu
Acervo histórico

a predominância do Imposto Territorial sobre o Im- Governador e limitar o raio de ação dos partidos
posto de Vendas e Consignações, propôs que se de esquerda na Assembléia – naquele momento,
o Estado fizesse um levantamento do número de representados pelo PTB e pelos comunistas.
imóveis rurais e seus valores venais fossem atu- Alicerçado pela união com PSP, PTB e Partido
alizados a uma taxa de 7%, afirmando que esse Republicano (PR), o PCB conseguiu combater a
imposto suplantaria a arrecadação do Imposto de proposição do “Ato Constitucional”, que foi retira-
Vendas e Consignações (IVC). do pelo “Bloco Parlamentar”. Sua tranqüilidade,
no entanto, seria perturbada ainda durante os
Em votação nominal, quando o projeto de Consti- trabalhos constituintes. No mês de maio, dia 7, o
tuição estava sendo debatido, a Emenda nº 405, PCB teve seu registro cassado.
que propunha o fim da progressividade do Impos-
to Territorial, foi aprovada por 38 votos a 25, e a A Constituição foi promulgada em 9 de julho de
Emenda 409, que mantinha a vigência do Imposto 1947, com grande festa e participação popular. O
de Vendas e Consignações, também foi aprova- povo de São Paulo via na consecução desse feito
da, por 44 votos a 18. a construção da democracia no Estado. Entretan-
to, a liberdade peculiar da democracia não atingi-
Como os anais da Assembléia nos mostram, ria o PCB na Assembléia. Cassado o registro do
Caio Prado Jr. e a bancada comunista apre- partido, temia-se pelos mandatos dos deputados
sentaram 24 emendas, e subscreveram soli- comunistas. Os seis meses que separaram a
dariamente mais 7, ao Projeto de Constituição. promulgação da Constituição da cassação dos
Essas emendas referiam-se: à atualização de mandatos foram tempos de batalha. Os represen-
vencimentos de inativos, à duração de dois anos tantes comunistas lutariam para permanecer pre-
de mandato de deputados, à extinção do Depar- sentes, não só na Assembléia, como no cenário
tamento Estadual de Ordem Política e Social de político-institucional brasileiro.
São Paulo (DEOPS), à constituição de comissão
para resolver sobre classificação e promoção de Após a eliminação do PCB, urgia, então, a cas-
funcionários na esfera do Ministério Público, ao sação dos mandatos de seus deputados. Essa
levantamento aerofotogramétrico do Estado de era uma questão delicada, juridicamente mais
São Paulo, ao ensino público e gratuito em todos embaraçosa, porque fugia da alçada do Tribunal
os níveis, à fiscalização da ação da polícia pela Superior Eleitoral (TSE), sendo de competência
Promotoria Pública, aos critérios para auxílio e do Legislativo. O Executivo manteve pressões
subvenção do Estado às instituições particula- sobre o Legislativo para alcançar seu intuito.
res de assistência social, à abolição da polícia Entre a ilegalização do PCB e a cassação dos
política e especial, e à extensão das garantias mandatos de seus representantes, oito meses
trabalhistas aos operários do Estado e dos mu- transcorreram.
nicípios.
Em São Paulo, o PCB realizou um comício no
Durante os trabalhos constituintes, o PCB en- Anhangabaú em desagravo à cassação5. Na
volveu-se na defesa das emendas propostas e Assembléia Legislativa, a bancada comunista,
na construção de uma Constituição legítima, e pondo em prática as decisões de sua direção,
também em outras questões importantes, como simplesmente denunciava a violência policial em
a discussão da proposta apresentada pela UDN, seus comícios e aguardava a decisão judicial
o “Ato Constitucional”4 que dava ensejo à luta da sobre o recurso impetrado, enquanto se prepa-
oposição pelo impedimento de Adhemar de Bar- rava para as eleições municipais de novembro
ros. Naquela ocasião, o PCB ainda acreditava em de 1947.
Adhemar e esperava que ele cumprisse as pro-
messas assumidas no acordo firmado antes das Promulgada a Constituição Estadual, em 9 de ju-
eleições; por isso, não defendia essa idéia. lho de 1947, apesar das pressões continuamente
sofridas, os comunistas mantiveram-se atuantes.
O PCB entendia, também, que essa manobra da Caio Prado Jr., por exemplo, passou a integrar a
UDN e do PSD era uma tentativa de, ao propor Comissão Permanente da Constituição e Justiça,
urgência na imposição do “Ato Constitucional”, onde ocupou o cargo de vice-presidente, além de
excluir das discussões os “dispositivos proble- compor a Comissão do Regimento Interno, de
máticos” que se referiam a matérias de interes- modo a reformulá-lo para os trabalhos legislativos
se popular. Além disso, a formação do “Bloco ordinários. Atuou, também, como relator e mem-
Parlamentar”, encabeçado pelos proponentes bro substituto nas Comissões Permanentes de
da emenda, tinha o intuito de cercear a ação do Finanças e Orçamento e de Redação.
2

Cancelado o registro do PCB, a aliança com Partido Democrata Cristão (PDC), por exemplo,
Adhemar começava a se romper. Se no início, apesar de não esconderem sua posição contrá-
esse acordo garantiu-lhe apoio pessepista, ria ao comunismo, criticavam aquele ato como
agora, depois de efetivada a cassação, o PSP e antidemocrático. O Partido da Representação
Adhemar sentiam-se livres – e, ao mesmo tem- Popular (PRP), inimigo figadal do PCB, criticava
po, pressionados pelas forças federais – para se a cassação dos registros partidários porque te-
livrarem dos comunistas. Toda a repressão que mia que fosse envolvido, a exemplo do PCB, em
se abateu sobre o PCB teve o apoio do gover- acusação baseada no artigo 141 § 13 da Consti-
nador6, que ignorou e não coibiu os excessos da tuição Federal.
polícia, constantemente denunciados na Assem-
bléia Legislativa. Os deputados comunistas, antevendo a ação fe-
deral na cassação de seus mandatos, enviaram à
Os vários partidos presentes na Assembléia, Mesa da Assembléia Legislativa Paulista a Moção
apesar de todo o discurso de defesa do Estado nº 2 de 1947, pedindo o apoio da Casa.
de Direito e do respeito à Constituição e à De-
mocracia, se posicionavam em função de seus O Deputado Auro de Moura Andrade, da UDN,
interesses próprios. A UDN, por exemplo, apesar contrário à cassação dos mandatos, justificou sua
de manifestar-se contra a cassação, somente o posição falando em nome de seu partido e lem-
fazia porque temia reflexos sobre si, já que ainda brando que essa moção fora assinada por repre-
era oposição ao governo estadual e federal. O sentantes de vários partidos, porém teria desapa-
PSD, naturalmente, seguia os ditames de sua recido misteriosamente, o que fez com que o PCB
direção e o PTB, dividido como estava, repartia a enviasse novamente naquela data. O líder da
igualmente suas posições. A ala pró-Borghista, bancada do PSD, Deputado Padre Carvalho, leu
PPT – Partido Popular Trabalhista7 – , que apoia- declaração de sua bancada, afirmando que não
va Adhemar e não votava a favor dos comunistas, a apoiava. O Deputado Salomão Jorge, do PSP,
era ligada a Vargas (PTB), que fazia oposição ao em seu voto declarou solidariedade à Moção nº 2
governador, defendia os comunistas e combatia por ser defensor dos princípios democráticos e da
a cassação. Os partidos menores, como PR e educação liberal. Apesar da defesa que fez dos
Arquivo do Estado. Coleção Adhemar de Barros

A Aliança PCB e PSP nas eleições de 1947: Luiz Carlos Prestes e Adhemar de Barros
Acervo histórico

mandatos comunistas, contestava, também, a rizado pelo Governador, foram bem aproveitados
cassação do mandato do Senador Euclides Vieira pela imprensa burguesa11. Como era de costume
(PSP). A bancada do PSP não esteve completa nesses momentos de crise – ainda mais diante da
no dia da votação. ilegalização do PCB –, a imprensa acusava os co-
munistas, responsabilizando-os pelos distúrbios.
Muitos deputados estiveram ausentes para não Muitos foram presos e acusados sem provas ca-
terem de votar a Moção nº 2. O Deputado Lourival bais. Esse episódio foi tema de grandes debates
Villar, em sua oração, na Assembléia, com a participação, principalmen-
DAH - ALESP
no dia posterior à te, dos deputados do PSD, UDN – defensores da
votação, denunciou intervenção federal no Estado – e do PCB, que
a saída de deputados exigiam responsabilidade civil do Governador,
de várias bancadas contra o PSP, PDC e PR, que o defendiam de tais
da Assembléia para acusações.
não votarem a Moção
nº 2. Eram neces- A situação do PCB – agora na ilegalidade – e de
sários 38 deputados seus representantes, que lutavam para continuar a
e havia somente 29 exercer o seu poder de representação, ficava cada
deles. A bancada do vez mais difícil, pois não só a lei proibia comícios
PTB, por exemplo, sem autorização, o que limitava a organização das
não se fez presente Deputado massas contra a cassação dos mandatos, como o
naquela sessão. Lourival Costa Villar Ministro da Justiça de Dutra, Benedito da Costa
Neto, lançava um projeto de lei que propunha a
Os Anais da Assembléia nos dão conta de que reedição da Lei de Segurança Nacional.
o assunto era uma pauta polêmica. A Moção nº
2 havia sido proposta pela bancada comunista. A tribuna da Assembléia era o palco de luta e das
Votar a favor era comprometer-se com o PCB, denúncias dos deputados e, também, de operá-
o que não interessava a nenhum partido naquele rios organizados que, através de abaixo-assina-
momento. dos, enviavam seus protestos contra a situação
vigente no Estado e no País. A ação da bancada
Os deputados do PCB não só movimentavam comunista na Assembléia não se restringiu às
a Assembléia contra a cassação dos mandatos denúncias e às críticas. Enquanto apontavam
como, também, apresentavam denúncias mos- a violência policial nos comícios e lutavam pelo
trando o quanto as forças estaduais e federais respeito às “imunidades parlamentares”, não re-
estavam envolvidas no projeto de eliminação da conhecidas pelas autoridades policiais, continua-
representação comunista. vam a defender seu projeto naquela Casa.

Enquanto o Deputa- A defesa do petróleo como fonte de independên-


DAH - ALESP

do Roque Trevisan cia econômica para o Brasil era uma preocupação


denunciava a ação do PCB, dentro de seu “programa mínimo”, que
violenta da polícia defendia o capitalismo nacional versus o imperia-
na repressão a um lismo norte-americano.
comício patrocinado
pelos comunistas no Armando Mazzo apresentou em 5 de setembro
Largo da Concórdia8, de 1947, um quadro completo, a propósito da
seu par, Mautílio Mu- situação do trabalha-
DAH - ALESP

raro, em sessão sub- dor paulista – colabo-


seqüente9, ligava os rando com a comis-
fatos ao Governador são da Assembléia,
Deputado Mautílio Muraro
Adhemar de Barros encarregada de rea-
e, repetindo o que Luiz Carlos Prestes já havia lizar estudos acerca
feito no Senado, pedia a renúncia de Dutra. Ca- dos trabalhadores no
racterizando Adhemar como um traidor, solicita- Estado de São Pau-
va que fosse processado de acordo com o artigo lo – apresentando
44 letra B da Constituição Estadual10. índices de inflação,
desemprego, custo
Os incidentes ocorridos em 1º de agosto de 1947, de vida e situação
por razão do aumento dos ônibus e bondes, auto- da industria nacional, Deputado Armando Mazzo
2

com relação às industrias estrangeiras. Suas so Nacional, sob pressão do Executivo, aprovou
palavras demonstram que, apesar de todas as decreto que permitia a demissão de todos os fun-
pressões contra a bancada, a posição do PCB, cionários públicos suspeitos de filiação ao PCB. No
frente a seus projetos, continuava a mesma. dia 21, o Brasil rompeu relações diplomáticas com
a União Soviética e, no dia 22, Dutra sancionou
Todos os representan- a Lei nº 121, que declarava alguns municípios16

DAH - ALESP
tes da bancada comu- como bases ou portos militares de excepcional
nista, atendendo aos importância para a defesa externa do País e para
anseios dos eleitores, outros fins determinados no § 2º do art. 28 da
foram incansáveis Constituição Federal. Dessa forma, esses municí-
defensores de seus pios teriam seus prefeitos escolhidos pelo gover-
direitos. Enquanto o nador de seu estado. Coincidentemente, muitos
Deputado Roque Tre- desses municípios apresentavam altos índices de
visan defendia, por simpatia a candidatos
exemplo, a “liberdade comunistas à vere-

DAH - ALESP
de sindicalização e ança e à prefeitura
dos organismos mais e as eleições seriam
representativos dos Deputado realizadas no início
João Sanches Segura
trabalhadores, fecha- de novembro daquele
dos por decretos inconstitucionais”12, o Deputado ano. O Deputado Es-
João Sanches Segura denunciava “injustiças con- tocel de Moraes de-
tra operários da fábrica de botões Corozita”13 e a nunciou, em plenário,
Deputada Zuleika Alambert apontava a discrimina- o intuito da Lei nº 121
ção contra a mulher no trabalho, pedindo equipara- e o oportunismo do
ção de salários entre homens e mulheres, além de PSP e de Adhemar Deputado
garantias para o trabalho feminino14. em referendá-lo: Estocel de Moraes

Os meses de agosto e setembro de 1947 mar- “Vários Srs. Deputados já fizeram, desta
caram a Conferência de Petrópolis, que levou tribuna, o seu patriótico protesto contra a
à assinatura do “Tratado Interamericano de cassação da autonomia de nossa capital e
Assistência Mútua”. Na Assembléia Legislativa da cidade de Santos, dois grandes centros,
Paulista, o Deputado Décio de Queiroz Telles, do onde o proletariado e o povo, em geral, al-
PR, foi o primeiro a elogiar esse “Acordo de Paz” cançaram maior esclarecimento político. E
para as Américas, denunciado pelos comunistas para exemplificar, cito um fato: é o caso do
como um controle militar do continente pelos maior centro industrial do País, Santo An-
norte-americanos. dré, cujo Prefeito, Sr. Alfredo Maluf, mem-
bro do Partido Social Progressista, partido
O primeiro pacto da Guerra Fria dava aos EUA do Sr. Adhemar de Barros, em desespero,
condições de controle do continente e, ao mesmo pela simples possibilidade de o povo eleger
tempo, combatia as “influências externas”. Diante um Prefeito comunista, ou, pelo menos, um
do cerco que se fechava, o PCB passou a adotar homem de idéias avançadas, procurou, por
uma política de enfrentamento, substituindo o todos os meios possíveis, indo inclusive à
suave reformismo de frente popular, voltado para Capital Federal, fazer com que fosse in-
temas domésticos, pela retórica revolucionária15. cluída no monstruoso projeto do Conselho
de Segurança Nacional, a cidade de Santo
Ao mesmo tempo em que o PCB, na Assembléia, André, como base militar.”17
defendia seus princípios e apontava o desrespeito
às garantias constitucionais por parte dos gover- Diante das criticas e denúncias dos comunistas
nos federal e estaduais, os outros partidos (PR, à Lei nº121 e das grandes perspectivas de vitória
PDC, PRP, PSP, PSD, PTN – Partido Trabalhista dos “candidatos de Prestes” em muitas cidades, o
Nacional) apresentavam uma animosidade cada governo adiantando-se e conseguiu a aprovação
vez maior para com os comunistas, acusando-os no Senado do projeto de lei que determinava a
de “lacaios de Stálin” e “agentes de Moscou”. cassação dos mandatos dos representantes co-
munistas, em 27 de outubro18.
O mês de outubro foi particularmente importante
como indicador da guerra aberta que o governo Tencionava o Governo Dutra, diante do projeto
declarou ao PCB. No início desse mês, o Congres- de Lei nº 900, do líder da maioria no Senado, Se-
Acervo histórico

nador por Santa Catarina Ivo D’Aquino Fonseca Com respeito às eleições municipais, o PCB
(PSD), eliminar de vez o “incômodo comunista” do iria negociar acordos em cada município, com
cenário político brasileiro. O projeto se aplicava partidos que estivessem dispostos a aceitar seu
aos comunistas quando incluía, entre os casos Programa Mínimo, integral ou parcialmente. Tal
de extinção, a cassação do registro do respectivo estratégia levou o Partido Comunista a um acor-
partido por ser considerado “extremista” (artigo do com o minúsculo Partido Social Trabalhista
141 da Constituição de 1946). (PST). Em Santo André, por exemplo, onde os
comunistas eram mais fortes, usariam essa le-
Foi ainda no mês de outubro, dia 21, que na Ca- genda.
pital Federal o principal órgão do PCB, Tribuna
Popular, foi atacado e destruído19. Isso provocou O PST tinha diretório estadual em São Paulo
indignação, não somente nos representantes do e foi precisamente nele, a 18 de outubro, que
PCB, como também em muitos outros deputados o PCB fechou acordo, apresentando, através
da Assembléia Legislativa Paulista. O Deputado dessa agremiação, a chapa dos “candidatos de
Caio Prado Jr., em explicação pessoal, ocupou Prestes”. Dois dias após essa reunião, última data
a tribuna para protestar e pedir a solidariedade para o registro de candidatos às eleições de 9 de
da Casa. Depois de dar detalhes e apontar a novembro, o PCB registrou no TRE-SP os candi-
conivência das autoridades com o vandalismo, datos comunistas, que foram confirmados no dia
previa a continuidade desses acontecimentos. 7 de novembro. O Partido Comunista ainda apre-
Os deputados foram quase unânimes na conde- sentou candidatos, em todo o Estado, por vários
nação a esses atos como um desrespeito à livre outros partidos, tais como: PSP, UDN, PTB, PSD,
expressão, característica básica da democracia. PTN, PSB e coligações partidárias.
No entanto, não chegaram a estabelecer, como
faziam os comunistas, ligações obrigatórias entre As eleições transcorreram com muita dificuldade,
essas ocorrências e as ações do governo rumo à principalmente no interior, pois a máquina pesse-
cassação dos mandatos. pista reprimiu e limitou a ação dos partidos que
não apoiavam Adhemar.
A partir de outubro, combatendo as ações da
reação e do governo, o PCB revigorou sua luta Na Assembléia Legislativa, as denúncias eram
e adotou táticas de “Propaganda Democrática”, diárias, as táticas usadas pelo PCB, de apoiar
lançando, através de seu jornal A Classe Ope- visitas de operários às Assembléias, estavam
rária, estratégias de luta contra a cassação dos sendo colocadas em prática e o expediente das
mandatos e pela mobilização das massas rumo “mesinhas” 20 era corrente.
às eleições vindouras.
Nem toda a repressão e censura foi suficiente
Paralelamente ao grande esforço do PCB na luta para sufocar a ação dos comunistas, que se apre-
por continuar a existir, tínhamos a preparação dos sentavam às prefeituras – pelo menos, àquelas
comunistas para as eleições de 9 de novembro, que estavam fora da Lei nº 121 –, com grande
em São Paulo. O PCB havia apoiado, para a vice- receptividade dos eleitores. Na cidade de São
governança, o nome de Cyrillo Jr., do PSD, que, Paulo, o PCB foi o grande vitorioso, conseguiu
avaliavam, era o mais comprometido com a causa formar a maior bancada, 17 vereadores e, em
popular. O apoio a um partido que, até então, tinha Santo André, o Deputado Armando Mazzo, que
estado na luta contra os comunistas, e do qual tinha se licenciado para disputar o pleito, foi eleito
partiu a denúncia que os levou à perda do registro, prefeito, com uma bancada significativa21. O Par-
foi alvo de grandes ataques. As críticas vinham tido obteve, também, bancadas majoritárias em
dos meios de comunicação e, na Assembléia, de Santos e Sorocaba. Segundo o jornal A Classe
muitos deputados que não aceitavam esse acor- Operária22, os comunistas fizeram 190 vereado-
do, do qual fazia parte, também, Getúlio Vargas. res no estado.

Os comunistas estavam muito mais interessados A grande vitória comunista, no entanto, foi abor-
em galgar as Prefeituras e as Câmaras Munici- tada. Um movimento surgiu imediatamente após
pais nas cidades onde sabiam ter grande apoio a divulgação dos resultados, suspendendo a
popular, do que em pleitear a vice-governança. O legalidade do PST, sob a acusação de que os
partido apoiou o candidato do PSD porque não candidatos de São Paulo não poderiam ter-se
queria a interferência do Governo Federal em São lançado pela legenda, uma vez que o Diretório
Paulo, tampouco aceitava o acordo de Adhemar Estadual não existia no Estado. O que não cor-
com Dutra, que o fortaleceria no Estado. respondia à verdade.
2

O senador do PSD, Vitorino Freire, entrou com Na Assembléia Legis-

DAH - ALESP
um recurso no TSE pedindo a impugnação da lativa, a 109ª sessão
candidatura dos comunistas, alegando que o Di- foi reservada à dis-
retório Estadual do PST não existia na ocasião. O cussão das arbitra-
julgamento do TSE somente ocorreria no último riedades policiais, da
dia do ano. Até essa data, tudo era incerto. Os prisão dos represen-
“candidatos de Prestes”, eleitos pelo PST, tinham tantes comunistas e
certeza de que assumiriam seus postos. da questão das “imu-
nidades parlamenta-
A Assembléia Legislativa de São Paulo tornou- res”. Os ânimos es-
se um “centro” de defesa dos ideais demo- tiveram alterados. O
cráticos. Mesmo deputados não comunistas Requerimento nº 323,
reprovavam o projeto Ivo D’Aquino e as notícias do PCB, pedia urgên- Deputado Roque Trevisan
de que os vereadores não assumiriam seus cia na deliberação sobre os fatos e a presença do
postos. Apelavam todos ao respeito às leis e à Secretário da Segurança Pública.
Democracia.
Ocupando a tribuna, o Deputado Salles Filho, líder
O Deputado Taibo Cadorniga, em longo discurso da bancada do PR, foi um grande defensor das
recorrendo à Assembléia, mostrou o sucesso das imunidades parlamentares, enquanto o Deputado
eleições municipais e a importância de tal fato Alfredo Farhat, do PDC, sem deixar de fazer a de-
para a continuidade do processo democrático. fesa das imunidades, cumprimentava a polícia por
Denunciou as táticas de Adhemar para se for- ter mantido a ordem “contra aqueles que a pertur-
talecer no interior, bavam”. A bancada comunista, protestando com
quando, usando de veemência, fez um histórico dos fatos, provando
DAH - ALESP

violência, ameaçou a arbitrariedade dos atos policiais. Os jornais, na


o jogo democrático primeira capa, noticiavam os acontecimentos do
das eleições. A par- dia anterior: “A prisão de deputados e vereadores
ticipação dos deputa- suscita cinco horas de debates na Assembléia”.
dos de outros partidos
foi de apoio, inclusive Os acontecimentos envolvendo o PCB não para-
do Deputado Lino de ram por aí. No dia 1º de dezembro, novamente,
Matos, do PSP, que, os comunistas eram notícia de jornal. Atendendo
apesar de não ter à campanha contra a cassação dos mandatos,
gostado das críticas proposta pelo PCB, uma grande delegação co-
ao Governador, ma- locou-se diante da Assembléia para solicitar aos
nifestou-se também Deputado deputados providências quanto ao repúdio ao
contrário à cassação. João Taibo Cadorniga projeto Ivo D’Aquino. A polícia esteve presente
para “garantir a ordem” no local; no entanto, nada
Tal iniciativa da bancada comunista, na sensi- fez para coibir a ação de outro pequeno grupo,
bilização e no chamamento à solidariedade de liderado por um caminhão com alto-falante, que
todos, gerou a apresentação da Moção nº 23, protestava contra os comunistas. Os ocupantes
proposta em 26 de novembro, que manifestava do caminhão, depois de muitas ameaças, pas-
repúdio ao projeto de cassação dos mandatos e saram a atacar a delegação com fortes bombas
fazia um apelo à Câmara dos Deputados para de gás e de efeito moral. A polícia, à guisa de
que não lhe aprovasse. dispersar a manifestação, atacou a multidão com
cassetetes e jatos d’água; foram disparados tiros
Apesar da coesão de propósitos da Assembléia, e a cavalaria lançou-se sobre os manifestantes.
os comunistas ainda enfrentariam muitos reve-
ses. Neste dia, os vereadores escolhidos da A sessão do dia 1º foi interrompida devido aos
cidade de São Paulo foram diplomados pelo graves acontecimentos e somente terminou de-
TRE-SP; ali estavam os comunistas eleitos pelo pois de votada a Moção nº 25, proposta por Caio
PST. Após a diplomação, na Praça do Patriarca, Prado Jr., com substitutivo do Deputado Sylvio
quando participavam da recolha de assinaturas Pereira. O dia 2 de dezembro esteve reservado à
contra a cassação dos mandatos, sofreram vio- discussão da questão.
lenta repressão da polícia, tiveram a “mesinha”
destruída e foram detidos, junto com os Deputa- A Assembléia Legislativa, em 4 de dezembro de
dos Lourival Villar e Roque Trevisan. 1947, votou o Requerimento a fim de nomear
Acervo histórico

uma Comissão para apurar os fatos do dia 1º de munistas. A Lei nº 211 foi decretada e sancionada
dezembro. Os comunistas pouco puderam fazer pelo Presidente da República, no mesmo dia.
contra essa situação. Seus dias estavam conta-
dos naquela Casa. A bancada comunista, diante do ato consumado,
ainda lutava desesperadamente, denunciando a
Mesmo sabendo que sua presença na Assem- inconstitucionalidade do fato. O deputado pece-
bléia não era aceita pelas forças federais e esta- bista Celestino dos Santos, em 8 de janeiro de
duais, a bancada ainda manteve-se na defesa de 1948, fez seu protesto contra a cassação dos
seus projetos. Numa discussão que se arrastou mandatos26.
por dois dias, quase ininterruptos, para debater
o aumento do IVC Caio Prado Jr., no dia seguinte, servindo-se do
(Projeto de Lei nº comentário do Deputado Osny Silveira sobre a
DAH - ALESP

333), os comunistas predominância da Constituição Estadual em rela-


limitaram o acrésci- ção à Lei 211, declarava:
mo pretendido pelo
governo do Estado. “A Constituição Federal, regulando a au-
Segundo o Deputado tonomia dos Estados, estabelece como
Sanches Segura, dor- princípio básico desse regime, o seguinte
miram na Assembléia preceito incluído no artigo 18, da Constitui-
(ele e Mario Schen- ção Federal: ‘Cada Estado se regerá pela
berg) para assumir a Constituição e pelas leis que adotar, ob-
tribuna, no outro dia, servados os princípios estabelecidos nesta
assim que tivessem Deputado Constituição’. (...) No exercício dessa sua
início os trabalhos. Mario Schenberg autonomia constitucional, os constituintes
de São Paulo, que somos nós mesmos,
O Projeto de Lei nº 370, que concedia o “Abono (...) incluíram em nossa Constituição, o
de Natal” aos servidores do estado, foi, também, princípio estabelecido no artigo 15, que é
uma proposição da bancada comunista. Apresen- o seguinte: ‘As vagas na Assembléia dar-
tado pela Deputada Zuleika Alambert, foi votado e se-ão somente por falecimento, renúncia
rejeitado no dia 31 de dezembro de 1947. expressa ou perda de mandato’. Os casos
de perda de mandato estão definidos no
Foi também no dia 31 de dezembro que o TSE, artigo 13 e seu § único. Não vou ler todo
no Rio, aprovou o Recurso nº 659, de São Paulo, esse artigo, porque é muito longo, compon-
contra o registro dos candidatos comunistas ins- do-se de várias alíneas, mas em nenhuma
critos pelo PST, tornando nulos os registros de delas, nem no § único, se inclui a extinção
todos os candidatos do Partido Social Trabalhista de mandatos, se exclui a perda de manda-
de São Paulo23. tos para cassação, como se está fazendo
com a Lei nº 211. (...) Não está incluída em
Como Adhemar corria o risco de ser enqua- nenhum desses casos a monstruosidade
drado no Projeto de Lei nº 900-A, “Projeto Ivo jurídica estatuída na pseudo Lei nº 211, de
d’Aquino”24, e ainda pairava sobre sua cabeça, cassação de mandatos. Não está estatuí-
nesses fins de 1947, a interdição federal, lançou da. Portanto, a Lei nº 211 choca-se com a
toda a carga contra os comunistas. Logo no início nossa Constituição Estadual.”27
do ano de 1948, as “forças” estaduais invadiram
o órgão de imprensa paulista do PCB, o jornal O deputado pecebista acrescentava, ainda, que
Hoje. Suas instalações foram destruídas, houve esta não era uma questão jurídica e sim política,
trocas de tiros e prisões de seus funcionários. cobrava a posição de cada um dos deputados na
Novamente, a Assembléia protestou contra esse Assembléia e solicitava a análise da situação pela
ato arbitrário do Governador do Estado25, porém, Comissão de Constituição e Justiça.
apesar das criticas feitas pelos deputados quan-
to à liberdade de imprensa, todos já estavam no O requerimento, assinado por Caio Prado Jr., Osny
compasso de espera para a efetivação da cassa- Silveira, da UDN, e outros tantos deputados, 27 no
ção dos mandatos. total, que pedia o pronunciamento da Comissão
de Constituição e Justiça sobre a matéria referen-
A votação do projeto Ivo D’Aquino na Câmara te à extinção de mandatos, não teve tempo de ser
Federal se deu no dia 7 de Janeiro de 1948. Apro- votado, pois quando isso ocorreu, os comunistas
vado, cassava os mandatos dos deputados co- não estavam mais presentes na Assembléia.
2

DAH - ALESP
A luta legal e política travada pelos comunistas se Mas uma coisa
arrastou até o dia 12 de janeiro, quando, ainda ainda resta de
numa cartada final, a bancada comunista reque- toda esta far-
reu que fosse a matéria sujeita a debate e votação sa (...). Resta
em Plenário, depois de ouvida a Comissão. para o povo a
lembrança, a
O Deputado Valentim Gentil, diante da solicita- certeza do uso
ção da bancada pecebista, preferiu, de modo que foi dado
a ganhar tempo – já que segundo ele o reque- ao mandato
rimento vinha desacompanhado do pedido de confiado aos
urgência –, publicá-lo para, depois, considerá-lo. deputados co-
Anunciava o Presidente da Mesa que, após a pu- munistas. (...) Deputado
blicação, o processo figuraria na Ordem do Dia Celestino dos Santos
do dia seguinte. Um dia nós todos compareceremos na his-
tória que estamos escrevendo com nossos
Apesar dos protestos do Deputado Caio Prado atos. Destes dias, que estamos vivendo,
Junior, o Presidente da Mesa preferiu fazer cum- essa história fará justiça àqueles que ho-
prir a lei federal. nestamente cumpriram o seu dever. (...)
Era o que tinha a dizer sr. presidente (Muito
O destino dos comunistas estava traçado e a bem! Palmas).”29
discussão que se seguiu mostrava que contra a
determinação federal não cabiam argumentos. Como a sessão do dia 12 de janeiro não esteve
Estavam cassados os mandatos dos comunistas. reservada unicamente para a comunicação da
Após o embate entre Caio Prado Jr. e o Presi- cassação dos mandatos, as orações levaram,
dente da Mesa, este passou à leitura da Ata da também, os deputados a fazerem críticas ao Go-
reunião da Mesa da Assembléia Legislativa do verno Adhemar de Barros e a denunciar a forma-
Estado, realizada em 12 de janeiro de 1948. O ção do “Bloco Democrático Independente”.
Presidente declarou que o objeto da reunião era
tomar conhecimento do telegrama do Sr. Ministro Terminada a sessão, DAH - ALESP
Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que os deputados co-
dava conta da extinção dos mandatos dos repre- munistas saíram da
sentantes do PCB. Assembléia, em com-
boio. Havia muita gen-
O que se seguiu foi a estupefação da bancada, te fora do recinto e,
que, daquele momento em diante, não tinha mais segundo depoimentos
assento naquela Casa. Cada deputado28 deixou da Deputada Zuleika
lavrado para a história, como eles mesmos dis- Alambert e do Depu-
seram, seu protesto nas páginas dos Anais da tado João Sanches
Assembléia. Segura, foram segui-
dos por “capangas do
O último discurso dos comunistas na Assembléia Adhemar”, conseguin- Deputada
Zuleika Alambert
Legislativa de São Paulo foi o do ferroviário Ce- do despistá-los.
lestino dos Santos:
Sem os comunistas na Assembléia, o “Bloco
“SR. CELESTINO DOS SANTOS: Sr. Parlamentar”, auto-intitulado “Bloco Democrático
Presidente, senhores deputados, embo- Independente”, passou a dominar a cena política,
ra amanhã, talvez, não estejamos nesta fortalecendo, assim, o Governador Adhemar de
Casa (...) Aquelas onze cadeiras vazias, Barros naquela Casa Legislativa.
em sua mudez, representarão o protesto
dos trabalhadores de São Paulo, que fo- Quanto às vagas deixadas pelos comunistas30,
ram esbulhados, que viram sua escolha li- apesar da legislação determinar a organização
vre das urnas, de um momento para outro de novas eleições, não foram preenchidas. Para
escamoteada, como passe de mágica.(...) John French, “a realização de novas eleições
essas onze cadeiras vazias. (...) repre- desencadearia, entre os demais partidos, uma
sentarão , sempre, dentro desta Casa , a competição pelo apoio do PCB e de seu conside-
nossa presença, porque (...) são nossas, rável bloco de eleitores. Por outro lado, a decisão
(...) porque nos foram confiadas pelo povo. do TSE de dividir os assentos do PCB entre os
Acervo histórico

candidatos perdedores dava aos partidos não-co- de 194832. Tática que, segundo, Salomão Ma-
munistas uma participação na cassação do PCB e lina33 e Moises Vinhas34, caracterizou-se como
tornaria mais difícil fazer alianças no futuro.”31 “uma guinada radical à esquerda”. A nova de-
terminação do Pleno condenava a “linha de 45”,
Esbulhados em seu direito, os comunistas pas- segundo a qual, “a via eleitoral é uma ilusão
saram a adotar nova tática, determinada pelo burguesa, mas todas as demais formas são
Comitê Central, no Pleno Ampliado de janeiro justas e necessárias”.

NOTAS
1
O PCB estava na legalidade desde 1945 e tinha feito acordo com o PSP em São Paulo em 1947.
2
A primeira sede da Assembléia Legislativa funcionou no antigo Palácio do Governo, no Pátio do
Colégio, entre 1835 a 1879. A segunda sede instalada em 1879 e que funcionou no mesmo local até
1937, estava localizada no Largo de São Gonçalo. Desde junho de 1946 a secretaria da Assembléia
já estava funcionando, provisoriamente, à rua da Liberdade, 32, 8º andar, ultimando os preparativos
para o dia 14 de março de 1947.
3
Entrevista do ex-Deputado Sr. João Sanches Segura e sua esposa, dona Adoração Villar Segura,
realizada em São Paulo, bairro de Itaquera, em 15/08/2003.
4
Também conhecido como “Emenda nº 5”
5
Jornal Hoje. São Paulo,19/06/1947, p.1.
6
Diante do receio de ser decretada a interdição de seu Governo, Adhemar cumpre as determina-
ções da justiça, expede mandatos de fechamento das sedes do Partido, confisca seus bens e proíbe
seus comícios e manifestações operárias. Uma maneira “legal” de se livrar daquele incomodo que
tinha caracterizado o início de sua gestão.
7
Borghi foi expulso do PTB, no início de março de 1947. O partido dividiu-se ao meio. Na Assem-
bléia Legislativa tínhamos o PTB, com 7 deputados, representando a ala antiborghista, e o PPT
– Partido Popular Trabalhista –, igualmente com 7 deputados, representado pela ala borghista.
8
Cf. Anais da Assembléia Legislativa. Vol. I. 9ª sessão ordinária, 21/07/1947, p.293.
9
Cf. Anais da Assembléia Legislativa.Vol. I. 17ª sessão ordinária, 30/07/1947, p.597.
10
Secção III – Da responsabilidade do Governador. Art. 44 - São crimes de responsabilidade do
Governador os atos que atentarem contra: ... letra B – A Constituição Federal ou a do Estado.
11
“O Show Vermelho de Piratininga” foi o título da reportagem com que a revista O Cruzeiro descre-
veu os distúrbios, cuja responsabilidade creditou aos comunistas. Trezentos veículos entre bondes
e ônibus foram depredados pela população, devido à alta do custo das passagens dos coletivos,
autorizada pelo Governador.
12
Cf. Anais da Assembléia Legislativa. Vol. I. 7ª sessão ordinária, 18/07/1947, p.227.
13
Cf. Anais da Assembléia Legislativa. Vol. III. 45ª sessão ordinária, 02/09/1947, p. 596.
14
Cf. Anais da Assembléia Legislativa. Vol. V. 76ª sessão ordinária, 11/10/1947, p. 160.
15
SANTANA, Marco Aurélio. Homens Partidos. Comunistas e Sindicatos no Brasil. Rio de
Janeiro,Unirio - Boitempo, 2001, p. 69 (Nota nº 5).
16
São Paulo, Santos, Guarulhos, Recife, Manaus, Belém, Natal, Recife, Salvador, Niterói e Angra
dos Reis, Florianópolis, São Francisco, Porto Alegre, Rio Grande, Santa Maria, Gravataí e Canoas
e Corumbá.
17
Cf. Anais da Assembléia Legislativa. Vol. V. 84ª sessão ordinária, 22/10/1947, p. 698.
18
Aprovado em primeira e segunda votações no Senado, em outubro de 1947, o projeto, então, foi
enviado à Câmara dos Deputados para ser votado, o que somente ocorreu em 7 de janeiro de 1947.
31

19
O jornal ressurge mais tarde com o nome “Imprensa Popular”.
20
Tática usada pelo Partido Comunista de armar “mesinhas” em praças públicas para arrecadar
assinaturas contra a cassação dos mandatos dos representantes comunistas na Assembléia Legis-
lativa Paulista.
21
“O total dos votos válidos apurados, inclusive os em branco, na eleição de vereadores chegou
a 20.434. Este total, dividido pelo número de lugares a preencher na Câmara Municipal de Santo
André, resultou em 659 o quociente eleitoral. O quociente partidário obtido pelo PST alcançou 3.162
votos, propiciando ao partido sete lugares na Câmara e mais seis de sobra.” (MEDICI, Ademir. 9 de
novembro de 1947: A vitória dos candidatos de Prestes. Santo André, Fundo de Cultura do Municí-
pio, 1999, p.22/23.)
22
A Classe Operária. Rio de Janeiro, 25/11/1947, p. 15.
23
Segundo a legislação vigente, cancelados os registros dos candidatos do PST, deveria haver
nova eleição para o preenchimento de suas vagas, nas câmaras. Acontece, porém, que como não
haviam assumido suas cadeiras, apesar de já terem sido diplomados, não haveria necessidade, de
acordo com o TRE, de se processar novo pleito, já que segundo a lei eleitoral, “para que houvesse
nova eleição, nos termos do artigo 95 § 3º, seria preciso que a nulidade atingisse a mais da metade
da votação nos municípios. Ora, ao pleito de 9 de novembro, na cidade de São Paulo, por exemplo,
compareceram 345.971 eleitores. Os votos anulados, que conseguiu o PST, montavam apenas
79.975. Estava, por conseguinte, bem longe da metade que justificaria outras eleições. Sendo as-
sim o quociente eleitoral foi refeito e os candidatos de outros partidos que não haviam conseguido
número suficiente, com a nova contagem puderam assumir os postos dos vereadores comunistas
em seus respectivos municípios.
24
A partir de 12/1947, o projeto 900, ganhou uma emenda, tornando-se 900-A, quando passou a
prever a cassação do mandato de representantes do Executivo que tivessem suas candidaturas
registradas pelo PCB.
25
Ocorreram, na mesma época, atentados contra A Hora e o O Esporte .
26
Cf. Anais da Assembléia Legislativa. Vol. IX. 136ª sessão ordinária, 08/01/1948, p. 551.
27
Cf. Anais da Assembléia Legislativa. Vol. IX. 137ª sessão ordinária, 09/01/1948, p. 637.
28
Falaram deixando mensagens de protesto, nesta ordem, os seguintes deputados da bancada
pecebista: Catullo Branco, Caio Prado Jr., Mario Schenberg, Lourival Villar, Zuleika Alambert, Taibo
Cadorniga e Celestino dos Santos.
29
Cf. Anais da Assembléia Legislativa. Vol. IX. 139ª sessão ordinária, 12/01/1948, p. 814.
30
Todos os deputados e vereadores – e o senador Prestes – eleitos pelo PCB perderam seus man-
datos. Restaram apenas dois comunistas no Congresso, Diógenes Arruda e Pedro Pomar, eleitos
em São Paulo na legenda do PSP.
FRENCH, John D. O ABC dos operários. Conflitos e alianças de classe em São Paulo,1900 -1950.
31

São Paulo, Hucitec - Prefeitura de São Caetano do Sul, �������������


1995, p.237.�
32
Este Pleno foi, também, influenciado pelo Relatório Zdanov de 1947, que considerava o mo-
mento político o resultado do “aguçamento geral da luta de classes em escala internacional”, que
dividia o mundo em dois campos. “O PCB mudou inteiramente sua tática e sua interpretação dos
processos e instituições políticas brasileiras. A linha anterior, classificada de ‘oportunista’, foi re-
jeitada em favor de outra mais agressiva, orientada para a derrubada do Governo.” RODRIGUES,
Leôncio Martins. “O PCB: os dirigentes e a organização” In FAUSTO, Boris (Dir.). História Geral
da Civilização Brasileira – O Brasil republicano: Sociedade e política (1930-1964). T. III, vol.3. São
Paulo, Difel, 1981, p. 413.
33
ALMEIDA, Francisco Inácio de (Org.) O Último Secretário – A luta de Salomão Malina. Brasília,
Fundação Astrojildo Pereira, 2002, p.114.
34
VINHAS, Moisés. O Partidão – A luta por um partido de massas: 1922-1974. São Paulo, Hucitec,
1982, p.95.
Acervo histórico

Peço a Palavra
Deputada Zuleika Alambert

Zuleika Alambert, nascida em 23 de dezembro mandatos de parlamentares, apresentada dia 20


de 1922, na Rua 7 de Setembro, no bairro do de dezembro de 1947, aprovada em 19 de janeiro
Paquetá, em Santos. A primeira dos seis filhos de 1948 e encaminhada em 23 de janeiro daquele
de Juvenal Alambert e Josepha Prado Alambert ano. Por Ato da Mesa Diretora da Assembléia
iniciou sua militância política nos anos 1940. Em Legislativa do Estado de São Paulo, seu mandato
1943 participou da criação da Associação Feminina e o dos demais deputados comunistas foram
pela Cultura da Mulher, em São Vicente, e na de declarados extintos em 12 de janeiro de 1948,
14 departamentos femininos anexos aos Comitês em conformidade com a Lei Federal 211, de 7 de
Populares Pró-Democracia. Atuou intensamente janeiro do mesmo ano. Se sua passagem pela
durante a II Guerra Mundial e, após seu término, Assembléia foi rápida, Zuleika Alambert registra
ainda no Estado Novo, nas ações e atos realizados uma longa trajetória de lutas, que conquistou um
na Baixada Santista em defesa dos presos políticos, lugar na recente história do Brasil. Sua atuação
da anistia geral e irrestrita, da redemocratização nos movimentos políticos e sociais é registrada
do País e da convocação da Assembléia Nacional em livros, páginas eletrônicas, teses e memórias.
Constituinte. Em 1947, a menina de tranças, cheia Consta, também, como um dos 1.500 verbetes
de vigor, respeitada pelos trabalhadores do cais do Dicionário Mulheres do Brasil1, ocupando com
do porto, elege-se primeira suplente a Deputada destaque os da letra Z.
Estadual pelo Partido Comunista do Brasil. No
mesmo ano, o partido é declarado ilegal. No ano Na década de 1950, Zuleika participou ativamente
seguinte, em 1948, ela e os demais deputados em campanhas pela Soberania Nacional e pelo
comunistas têm o mandato cassado pelo Supremo Estado de Direito. De 1951 a 1954, foi secretária-
Tribunal Eleitoral e é expedida ordem de prisão geral da Juventude Comunista. No início dos anos
por haverem assinado um manifesto em defesa 1960, de forma semilegal atuou junto à diretoria
da autonomia de São Paulo. Inicia assim sua
clandestinidade.
Acervo Zuleika Alambert

O breve período que ocupou uma cadeira


na Assembléia Legislativa, onde assumiu o
mandato em substituição ao Deputado Clóvis
de Oliveira Neto, durante seu impedimento no
período de 26 de setembro a 14 de novembro
de 1947, ocupando uma cadeira efetiva a partir
de 15 de novembro daquele ano, em função
da renúncia de mandato do Deputado Mautílio
Muraro, foi bastante intenso. Apesar da pequena
produção legislativa, a deputada se caracterizou
pela defesa dos interesses dos trabalhadores
públicos. Apresentou o Projeto de Lei nº 370/47,
que propunha a concessão de Abono de Natal
para os servidores do estado; e as Indicações
para a efetivação das serventes da Prefeitura
Municipal de Santos e para o pagamento de
gratificação a que tinham direito os servidores da
Assembléia, em data anterior a 24 de dezembro.
Tardiamente o Legislativo aprovou uma de suas
propostas, a de Requerimento à Câmara Federal
de mensagem de protesto contra a cassação de Zuleika Alambert aos 19 anos


da União Nacional dos Estudantes, entre outras, em áudio. Foi realizada em dois encontros
nas campanhas pela Lei de Diretrizes e Bases da ocorridos em 23 de março e seis de junho de
Educação Nacional e na Defesa do Monopólio 2004, na casa de Zuleika Alambert, no Rio de
Estatal do Petróleo. Teve destacada participação Janeiro, conduzida pelos professores Ricardo
na Campanha de Alfabetização de Adultos e na José de Azevedo Marinho (ricardo.marinho
criação e desenvolvimento dos Centros Populares @unigranrio.edu.br), da Escola de Ciências,
de Cultura. Tecnologia e Arte da Universidade do Grande
Rio (UNIGRANRIO), e Renata Bastos da Silva
Após o golpe de 1964, foi perseguida pelo Serviço (rerota@nitnet.com.br), do Departamento
Secreto do Exército, teve sua casa invadida e de Ciências Econômicas da Universidade
depredada, voltando à clandestinidade, desta vez Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
com os direitos políticos cassados por 5 anos. ambos diretores do Núcleo de Estudos Antonio
Com a aprovação da Lei de Segurança Nacional Gramsci. Agradecimentos especiais à equipe da
e a decretação do AI-5, sai do País em 1969 e Divisão Técnica de Taquigrafia e à sua diretora
vai para Budapeste, na Hungria, como ativista da Vera Márcia Máximo de Carvalho Garbosa pela
Federação Mundial da Juventude Democrática, transcrição das fitas.
ajudando a organizar a campanha pelo término
da Guerra do Vietnã. Em 1971 foi para Santiago, Acervo histórico – Como iniciou seu interesse
no Chile para participar do Encontro da Juventude pela política?
Mundial contra a Guerra no Vietnã e lá permanece,
participando da criação do Comitê de Mulheres Zuleika Alambert – Resumindo... era estudante,
Brasileiras no Exílio e nos movimentos chilenos tinha uns 15 anos, (...) estudava no Liceu
em defesa do Governo de Salvador Allende. Feminino Santista, depois estudei no Tarqüínio
Silva. O Liceu formava as dondocas da cidade,
Após o golpe militar no Chile, se refugia na mas eu fui para lá porque uma senhora – a minha
embaixada da Venezuela. Em 1974,
com a proteção da ONU instala-se em
DAH-ALESP

Paris, onde forma o Comitê de Mulheres


Brasileiras no Exterior. Em 1979, com a
anistia, retorna ao Brasil e é recepcionada
pelas entidades de mulheres brasileiras.
Em 1983 deixa o PCB e se dedica à
questão da mulher, tendo participado
do grupo de estudos para a criação do
Conselho Estadual da Condição Feminina,
no qual ocupou praticamente todos os
cargos. A história de Zuleika Alambert está
intimamente relacionada à história da luta
pela promoção dos Direitos Humanos e
da condição da mulher em nosso País.
Recebeu inúmeros títulos e condecorações
e participou como conferencista em mais
de duzentos eventos, como o Fórum das
ONGs da América Latina e do Caribe, na
Argentina; da Conferência de Pequim, na
China, e da Conferência Mundial da ONU
sobre habitação (Habitat II), na Turquia.

A entrevista a seguir faz parte do projeto


de História Oral da Divisão de Acervo
Histórico, no qual os depoimentos de
ex-deputados e funcionários, registrados
em áudio e vídeo, são transcritos e
ficam, juntamente com a documentação
coletada para as entrevistas, à disposição
dos pesquisadores e interessados. A O Palácio das Indústrias, no Parque D. Pedro II, foi a sede do
entrevista a seguir foi registrada apenas Legislativo Paulista de 1947 a 1968
Acervo histórico

mãe era cozinheira – pagou os meus estudos, por Santos. (...) Quando nós rompemos com o eixo,
isso eu fui estudar lá, fiz o Ginásio, depois como na minha casa – tudo acontecia na orla marítima
eu não quis parar, eu fiz Administração e Finanças – todo mundo tinha que pôr panos pretos na
no Tarquínio Silva, que nunca usei, porque eu não janela para não verem as luzes dentro de casa. E
gosto de dinheiro. Morava na orla do mar, em nós enfrentamos o racionamento das coisas para
São Vicente. Eu estudava o Ginásio, mas fazia o comer. Na minha casa não tinha pão, a minha
balé também, tanto que eu cheguei a dançar no mãe comprava macarrão, macarrão do empório,
Municipal, no Jardim do Templo Chinês. (...) Era ela comprava para amassar e fazer pão. Era um
muito inquieta, (...) morando numa rua humilde, momento muito especial. Então os navios foram a
com terrenos baldios do lado, como uma pessoa pique2 e ali começou aquele mal-estar dentro da
assim busca um caminho? Escrevendo fases da população, eram crianças, velhos e tudo foi para
minha vida é que eu começo a pensar, eu tirava o fundo do mar. Então, saímos para a rua pedindo
leite de poste como a gente diz na gíria. Estudei que o Brasil declarasse guerra ao Eixo, essa era a
cedo mesmo, devia ter 16 anos, nem 17 anos primeira coisa, porque o Getúlio estava de braços
tinha, eu era teosofista, trabalhava na Igreja dados com o Hitler, com as forças do Eixo. E
Teosófica, que tinha uma grande biblioteca e eu depois, na segunda etapa da guerra, nós fomos
usava a biblioteca. A loja era ecumênica, tinha de trabalhar para mandar uma tropa para o fronte (...)
tudo. Tanto que eu fiz palestra sobre vida, porque participei de tudo que era problema neste País.
tinha tudo ali, eu tinha 16 anos. Eu fui estudar a Eu fui à rua para pedir que o Brasil declarasse
vida. Por quê? Porque queria me libertar, queria guerra, depois eu fui para a rua para pedir que o
me liberar, eu era uma pessoa condicionada com Brasil mandasse uma tropa expedicionária, que foi
a família, com a sociedade, com tudo, aquilo era para a Itália e mais razão ainda, porque a cidade
um arcabouço de ferro. (...) Imagina nascida na toda ficou ocupada pelos pracinhas e eu ganhei
década de 20, em 1923, você imagina meu pai? um noivo lá. – Sessenta anos depois ele ainda
Tinha que dar a benção e tudo, achava ridículo, me telefona. (risos) São as histórias de amor. – Aí,
mas tinha que fazer. Como eu não tinha visão quando eles foram para o fronte, nós começamos
política, fui estudar Teosofia, fui fazer teatro, fui a trabalhar como madrinhas de guerra, a gente
nadadora... Meu pai era do PSD [Partido Social juntava lã, sapatos, meias, remédios, tudo para
Democrático] e me colocou lá, ele queria que mandar para eles. A minha política foi a guerra, a
eu fizesse política, só que eu passei de um lado coisa mais política.
para outro. Assim que pude cai fora. É toda uma
busca de caminho... Com a guerra, a guerra já AH – Essa foi a contribuição para a Guerra?
colocou um problema mais político na cabeça,
porque os navios foram afundados, os alemães ZA – Sem falar da Força Expedicionária Brasileira
que viviam na orla marítima tiveram que ir para (...) da nossa brilhante cooperação, e destacar o
o interior. A minha professora de balé, Rosa, era serviço ativo da frente interna do País, milhares de
alemã e ela teve que ir para o interior. Eu comecei braços mobilizados, trabalhando a terra enquanto
a me interessar por política, mas uma política outros trabalhavam na indústria pesada. Centenas
que não era partidária, era uma política geral. e centenas de mãos retalhavam cascas virgens de
E eu buscava a arte, o esporte, a convivência nossas seringueiras, retirando o látex, empregado
com as pessoas de cabeça... Era aluna da dona no fabrico da borracha, gênero de primeira
Alzira, que é mãe da Cacilda Becker, da Cleide e necessidade na alimentação do maquinário de
da Dirce. A Cacilda era bailarina, depois que ela guerra. Outros semeiam café, bebida estimulante,
participa de teatro. que irá para as nossas Forças Armadas e para
todas aquelas que lutam para o completo êxito
AH - Ela era a sua professora de quê? das armas aliadas. Outras que plantam o algodão
e uma infinidade de gêneros que vão vestir e
ZA – Dona Alzira era professora do ginásio, alimentar os povos do exterior...
comecinho do Ginásio, ela era uma mulher muito
aberta. A Dirce era minha colega de escola, mas AH – E o episódio do azeite?
já estava no segundo ano, a Cleide no terceiro
e a Cacilda no quarto. É tanta coisa na minha ZA – E eu nesse período... Faltava azeite na
cabeça... Se eu fosse o computador, para alinhar cidade, e o azeite estava estocado na Prefeitura,
tudo direitinho, você ia ver a busca desesperada esperando o preço aumentar para venderem. Um
que eu procurava por uma coisa, que eu não dia sai na rua, peguei e fiz uma faixa e coloquei
sabia o que era. (...) Eu fazia a travessia do canal assim “vamos buscar o azeite”, eu coloquei
a nado, desde o Forte do Itaipu até a Cidade de uma mulher aqui e outra ali e sai pelo bem da


cidade, “vamos buscar o azeite, vamos buscar o deixando os navios espanhóis descarregarem as
azeite”, aí os estivadores nos viram e ensinaram mercadorias no cais, era um boicote mundial. Eu
que tínhamos de fazer uma comissão para falar disse “o Brasil tem que fazer isso também”, e vai
com o Prefeito. Os estivadores tinham apelidos ser pelo Porto de Santos. Eu com a dona Jovina
engraçados, um era Cabelo de Rato, outro era Pessoa, que era mulher do Samuel Pessoa5, e a
Barriga Cortada, outro era Cor da Praia, Chaves... mulher do Graciliano Ramos [Heloísa Ramos],
Esse Chaves, depois, até me ajudou muito sobre nós três íamos para o cais e fazíamos o diabo lá,
Reforma Agrária, ele foi de um piquete que se convencendo os estivadores e doqueiros a não
formou no Rio Grande do Sul. Revolucionário! Mas desembarcarem os navios. Até que chegou o dia
voltando ao azeite, lá fomos nós, na Prefeitura. “A dos navios, o navio veio entrando com a bandeira
senhora quer o azeite, então a senhora leva o espanhola, e o cais inteiro parado, nem se ouvia
azeite todo para casa, a senhora vende o azeite mugido, e nós lá! Não descarregaram nada e o
e me traz o dinheiro”, e eu não titubeei, mandei navio teve de voltar outra vez para a Espanha.
buscar o azeite, eles levaram tudo pra minha
casa num caminhão e minha mãe quase morreu. AH – Foi um período de grande mobilização?
Aquela fila de mulheres para pegar o azeite...
ZA – O partido nessa época parecia que estava
AH – E como surgiu a militância partidária? crescendo e eu fui me projetando em porta de
fábrica. E o nosso período de legalidade foi
ZA – Então, era uma menina que estudava exatamente fins de 46/47, em 48 eles cassaram.
e despertei para a vida política, sem saber o Então, a minha experiência legal foi muito
que estava fazendo, (...) entrei para o Partido pequena, mas foi o suficiente para ser candidata
Comunista e depois eu explico por que. Então, foi a deputada do Estado, eu fiz a candidatura
essa a minha primeira escola. A segunda escola federal – não fui candidata, era muito menina –,
foi a vida partidária. Eles [militantes do Partido eu fiz a campanha de Osvaldo Pacheco, que foi
Comunista do Brasil] me levaram para fazer a eleito. Quando vem a campanha dos deputados
solidariedade aos pracinhas, depois veio a luta estaduais, eles me candidatam, eu não tinha
contra todas as mazelas do Estado Novo, pela bagagem, nada. Era nadadora, trabalhava em
democratização do País e eu estava nessa. E teatro, a minha vida é múltipla...
até que um dia a Rute me recrutou da seguinte
maneira, a gente quando é jovem é muito ousado,
Acervo Zuleika Alambert

ela era militante de São Vicente, não lembro o


nome completo, me disse “olha, eu pertenço a
um partido que muitos militantes morreram dando
com a cabeça na grade, na prisão, de tanto que
eles sofreram dentro do Presídio Maria Zélia3.
Você quer entrar para esse partido?” E eu quis,
não só quis, como eu filiei toda a minha família,
depois a minha família mandou desfiliar, porque
eles não queriam nada. Eu me filiei ao partido,
aí eu comecei a trabalhar, isso já é fim de 46,
fazia esse trabalho o de recrutar e eu falava nos
comícios, esse período para mim é muito rico,
porque eu fiz coisas incríveis. O meu primeiro
comício foi na porta de um curtume em São
Vicente, tinha uns dezoito trabalhadores. Eu dizia
“hoje estou falando para esses homens, mas
amanhã eu quero falar na Vila Melo”. Vila Melo
era a principal cidade de São Vicente. Aí eu fui
falar lá e aquilo já era pequeno para mim. Pensei:
“daqui quero falar na Praça da República”, que era
Santos, depois quando mudo para Santos é que
eu entro em contato com o pessoal das docas.
Eu não me lembro bem a data, a Espanha era
governada por Franco4 e ele estava matando todo
mundo, então eu lia que marinheiros, doqueiros, Cartaz de peça teatral que Zuleika Alambert protagonizou
estivadores de todo o mundo não estavam (1941)
Acervo histórico

AH – E você disse que as prostitutas a apoiaram me arrumar? Tinha que parecer um pouco com
na sua campanha? homem. Eu achava que isso colocava respeito...
(risos) Um dia a Helena, mulher do Caio Prado11,
ZA – Apoiaram, elas trabalhavam no cais, naquele foi na Assembléia e achou que eu estava vestida
tempo os contêineres derrubavam muito café... e como homem, usava sapato de homem. Ela até
tudo! Agora é diferente. E elas catavam, catadeiras me ofereceu uns vestidos... Assumi em 1947,
de café, elas catavam café. Os homens não fiquei seis meses no Parlamento, não mais do que
iam catar café não. Quem apadrinhou a minha isso, com 4.654 votos pelo Partido Comunista,
candidatura foram os estivadores e doqueiros. E que era legalmente constituído – porque em 1947
os estivadores me levaram para fazer a campanha foi cassado [o registro para funcionamento legal]
na Alta Paulista. Seis ou sete estivadores, cada e nós, que tínhamos mandato, continuamos no
um com revólver na cinta, porque o pau quebrava Parlamento, depois é que veio a busca, fomos
mesmo. Olha, era uma contradição, mas era um cassados de casa em casa. E aí eu comecei a
período de luz e sombra, como chamam. E eu fui rodar de casa em casa, de casa em casa, na
fazendo a minha campanha alegre e feliz por aí. ilegalidade, até que o partido um dia me mandou
para o Rio, mas demorou. Ainda tinha o problema
AH – Na Alta Paulista? de ser mulher, chegava lá, a mulher dona da
casa ficava com ciúmes do marido. Era muito
ZA – É... até Tupã, Marília, toda essa zona, que atrasado. Fiquei um bom tempo na casa do Milton
era minha zona de trabalho. (...) quando eu fui de Brito12.
candidata fazia um cartaz, “Zuleika vem falar hoje
de noite”, bairro chinês... Eu ia com aquela pasta, AH – E seu convívio com a deputada Conceição
pregava lá, a mulherada queria, porque todo da Costa Neves? Eram só as duas mulheres...
mundo queria ver, uma menina que era candidata,
de tranças, falando... e depois me davam lanche, ZA – É, não tinha mais ninguém... O dia que eu
(...) uma campanha muito diferente de hoje, não fui tomar posse – com aquela roupa esquisita
tinha televisão, a gente distribuía o santinho de – fiquei sentada na sala do café, esperando que
casa em casa. os deputados me introduzissem no plenário, ela
chegou e disse: “você quer buscar um café para
AH – Eles centraram em algum candidato lá em mim, que eu quero tomar café”, eu respondi:
Santos? “moça não sou empregada, eu vim tomar posse”.
Ela ficou espantada e me disse: “se você quiser
ZA – No Martorelli e no Taibo6. Eu não era usar o meu toalete, é privativo”. Eu nunca entrei
preferencial, era candidata, mas não era no toalete dela, eu ia ao toalete das funcionárias,
preferencial; o [Victorio] Martorelli era jornalista por isso que eu fiz muita amizade com as
e tinha o Estocel de Moraes7. Os três eram muito funcionárias. Eu nunca pedi um toalete.
mais experientes do que eu. E trabalhamos os
três, quando veio a contagem de votos quem AH – Existia uma postura machista entre os
ganhou foi o Taibo Cadorniga e o Estocel de comunistas?
Moraes. Eu não fui eleita, mas fui a primeira
suplente. Tinha um deputado que se chamava ZA – Sempre houve, mulher era para fazer
Clóvis de Oliveira Neto8 – o partido naquele cafezinho, para fazer datilografia, taquigrafia (...)
tempo era terrivelmente preconceituoso, ele teve eles tinham um certo respeito por mim e tinham
que deixar porque quando a gente entrava já de dizer que o partido cuidava das mulheres.
assinava o ato de renúncia, titubeou toca fora... Mas o partido era machista, sempre foi. Essa
Quando ele saiu9 – tinham mandado ele renunciar mentalidade era desde a União Soviética. (...)
–, eu entrei, fiquei deputada, e quem encontro Perguntei pela Pagu13 e me disseram que ela
lá? A Conceição Neves Santa Maria10, a famosa era uma mulher da vida. Foi a informação que
Regina Maura, do Teatro Rebolado. Ela casou me deram, da Pagu! Ela e a Eneida14, que eram
com o Santa Maria, que era um médico rico. Era as mulheres que naquele tempo nem sonhavam
uma diferença muito grande entre eu e ela. Eu em fazer nada. Mas o marxismo foi um dos
era uma menina, não tinha nada na cuca, maluca movimentos que primeiramente convocou e
que só, e ela já era uma mulher chiquérrima e eu demonstrou a importância das mulheres, o papel
estava na fase da auto-afirmação, usava sapato das mulheres. Inclusive, deu voz a elas, mas eu
de homem, tinha um casaco marrom... não queria quero deixar isso bem claro, chamou a atenção
saber, não entendia nada de beleza, tinha a das mulheres, mas para usar a mulher como
beleza da juventude. Eu era assim, me pintar, instrumento, nesse sentido. Tanto que eu tinha


Acervo Zuleika Alambert meus companheiros de partido – me oferecendo


carona. “Mas você é muito moça, muito bonita,
como você fica dando dinheiro para o partido,
não tem carro, não tem nada, venha comigo...”
E mais, quando eu ocupava a tribuna, diziam
“o que você está fazendo aqui? Vai lavar roupa,
volta para a sua casa, vai casar, ter filhos”, era
um negócio sério, não é como hoje, hoje é sopa.
Mas eu era cara de pau, naquele tempo não tinha
conversa, eu brigava mesmo. Eu xingava, era
terrível. Quando eu assumi eles disseram: “então
vem para cá mais uma flor”, porque tinha a Santa
Maria, mas aí completaram: “cuidado que essa
Panfleto da campanha eleitoral a deputada estadual
flor tem espinho”. (...) Eu dava uma parte grande
do dinheiro para o PCB. Nunca comi tão mal na
uma frase, mas veja, eu a incorporei e depois minha vida, dormia no chão, pegava ônibus – só
eu mudei, a mulher precisa da democracia para quem tinha carro era o Caio, o líder da bancada
se organizar, para se mobilizar etc. e depois – não era como hoje, era uma sala para todo
acrescentei, a mulher precisa da democracia e a mundo, a assessoria era coletiva, uma assessoria
democracia precisa da mulher, porque enquanto para assessorar a bancada, e a gente passava o
a mulher não for paritária com o homem no poder, dia inteiro em função daquilo, do parlamento. Aí,
em geral, a democracia é uma mentira. final de semana, ia viajar no interior para fazer a
base eleitoral, então eu ia para Alta Paulista, até
AH – O partido, de certa forma, usava as Marília, Tupã, aquelas bandas de lá. E depois
mulheres? voltava.

ZA – Esse é o problema. O partido via a mulher AH – Seu mandato foi curto, mas intenso...
como um instrumento que ele precisava, ele
precisava para quê? Para fazer comício, para ZA – Foi... Veja este recorte. “Zuleika Alambert,
distribuir santinho, para tomar conta das crianças a quem se deve a iniciativa do projeto de lei
quando faziam reuniões grandes, para dar café concedendo abono de Natal, virá a esta cidade
para os homens, quando tinha um congresso para entrar em contato com a sua população e,
internacional. Nunca se mandou mulher nenhuma muito especialmente, com o elemento feminino,
para um Congresso. Tinha as comissões de com as donas de casa, com as jovens, com a
trabalho, a reunião do Comitê Central, estadual, classe estudantil feminina, com mulheres de todas
que seja, mas tinha sempre uma comissão que as classes sociais, a fim de com elas debater os
chamava comissão da feijoada, por quê? Era problemas da situação brasileira. Em homenagem
onde estavam as mulheres, por que feijoada? a essa ilustre parlamentar, vai se realizar para
Porque tudo que as outras comissões não uma grande reunião, onde todos terão o prazer
queriam, política externa, política monetária... de ouvir a palavra dessa jovem lutadora. A
Quando ninguém queria, caia naquele grupo, reunião se encerrará com baile, nos intervalos de
naquela comissão da feijoada, como se chamava. contra-danças se farão ouvir diversos oradores
E tem aquela teoria, tem que ter um negro, tem na defesa da Constituição e alerta ao povo para
que ter um índio, tem que ter uma mulher, você protestar contra esse abominável Projeto de Lei
me entende, (...) uma colher de chá que você está de cassação de mandatos, golpe de morte em
dando para as mulheres, mas você aproveita isso, nossa democracia”. Eu fiz uma miséria lá em 13
formando a consciência da mulher, não porque de dezembro, em Barretos...
isso vai resolver.
AH - Dançou?
AH – E o comportamento dos deputados?
ZA - Dançava, era jovem... Depois fiz uma visita
ZA – Os deputados da bancada me apoiaram. na Vila dos Urubus. “Cassação não, abono de
A bancada me apoiou muito, toda vez que eu ia Natal”, eu fui nessa Vila dos Urubus, era uma
falar a bancada me cercava, e quando eu me coisa horrível, só tinha barraco, era um lugar
atrapalhava um pouco eles entravam, então eu miserável, Vila dos Urubus, “pequeno pedaço
tive muito apoio da bancada. Mas quando eu de terra mineira, esquecido, espezinhado pela
descia, sempre tinha aqueles deputados – não os maioria dos governantes, que nada tem feito
Acervo histórico

pelo povo e tal”. Fazia o contato com o povo, de Romênia [Festival da Juventude da Romênia, em
porta em porta, de rua em rua. Fomos nós, em 1961], eram mais de 200 homens. Eu conheci os
nossa campanha, fotógrafo do Jornal do Povo horrores da guerra, o que ela deixou... Aprendi
e os candidatos de Prestes, ouvir as queixas... muito sobre jovens. Ajudei a formar o comitê
Entramos em diversos barracos, todos pequenos, universitário, fui secretária de massa, como eles
escuros, sem água, sem luz e sem ventilação... chamavam, ocupando as tarefas de luta pela paz,
defesa do petróleo. Depois, vem a minha terceira
AH – Como foi seu relacionamento com os escola, que foi o exílio. Eu fui exilada em função
deputados comunistas? de toda essa trajetória.

ZA – O Caio Prado era o líder da bancada. Nós AH – Exilada no golpe de 1964?


tínhamos muitas pessoas interessantes lá, tinha
o Lourival, que era borracheiro, o Sanches, que ZA – Sim, eu agüentei até 1969, continuei no
era tecelão, o Armando Mazzo... não sei o que ela Brasil. Fiquei cinco anos penando, depois eu
era, foi prefeito de Santo André, enfim, era uma saio para ir trabalhar na Hungria, na Federação
bancada, se não me engano, tinham 1415 e eles Democrática Internacional da Juventude. Quando
me ajudavam, rapidamente me entrosei. Eu era eu saio, passo pelo Uruguai, pelo Paraguai, pela
muito individualista e não tinha essa noção do Argentina, e de lá eu vou para Hungria. Cheguei
trabalho coletivo, eu acho que eles entenderam na Hungria e depois voltei numa delegação para o
isso e me ajudaram. Foi uma escola minha vida Chile, do Governo Allende18 e fiquei lá, resolvi não
parlamentar. Depois, em 1948, tchau. Então, voltar mais do Chile. Em 1964, no dia do golpe,
a minha presença foi muito insignificante, mas assisti tudo, ainda fui para uma casa que ninguém
nesse pouco período eu fiz tudo o que eu podia, sabia onde era, dali ia para sauna, ficava o dia
ia para porta de fábrica e falava, ia para o cais inteiro ouvindo a conversa daquela mulherada de
e falava. Eu lembro que um dia estava falando milico. Olha, eu fiz o diabo, mas chegou um ponto
no centro da Praça da República em Santos, de que não dava mais para ficar no Brasil, porque o
repente ouvi, parecia uma voz que vinha do mar serviço secreto estava atrás de mim, por causa
do cais: “Muito bem companheira”. Os doqueiros! da União Nacional dos Estudantes. Eles achavam
Eu fui falar na Praça da República e eles meteram que tudo o que acontecia na UNE a responsável
as patas de cavalo16 e acordei em outro lugar era eu. Não era não, tinha muita gente ali que
desmaiada. Você vê que era uma situação muito
dura, e em 1948 cassam os mandatos e a gente
Acervo Zuleika Alambert

ainda fica um pouquinho ali, até que um belo dia


vem a cassação definitiva. Em 1948 ainda fiquei
um tempo relativamente grande em Santos, São
Vicente, fazendo comícios... Cassaram o partido,
continuamos funcionando. Depois cassaram a
gente. Depois do Golpe do Getúlio eu não voltei
mais para Santos, não tinha condições, eu fui
para o Rio.

AH – E depois da cassação?

ZA – Aqui, a gente não tinha partido, a gente


enfiava os nossos candidatos nos outros partidos.
Eu não fui mais candidata a nada, eu só fui do
PCB. Apoiava os candidatos do partido. Os
candidatos do Prestes. Quando nos cassaram,
cassaram todos os eleitos, como eles diziam, sob
a legenda do Prestes, não era legenda do partido,
o Prestes era unificador do partido. Então, aí o
partido me deu algumas missões – ainda estava
na vida partidária – Secretária Geral da Juventude
Comunista, o presidente era João Saldanha17;
ilegalmente eu levei duas grandes delegações,
uma para a Alemanha [Festival da Juventude Panfleto anunciando a chegada da Deputada Zuleika
de 1952], logo depois da guerra, e outra para a Alambert em Barretos
39

fazia. Eu fiz um livro, que se chama “Estudantes casa, aquilo me preocupou. Eu era uma mulher
fazem a história”, dez mil que foram queimados política, mas elas não eram. Comecei a ver como
em praça pública, tem um exemplar na biblioteca poderia integrar aquelas mulheres na vida chilena
do Exército... Eu tinha feito um levantamento sem perderem as suas raízes brasileiras. Criei
desde 1710 da luta dos estudantes (...) Não teve um Comitê de Mulheres Brasileiras no Exílio,
jeito, tive que ir embora daqui. O meu primeiro eu inventei de criar um núcleo de brasileiros
exílio foi em Santiago do Chile, quando eu exilados e fazia reunião que vinha brasileiros
cheguei, comecei a ver que as mulheres dos exilados nos diferentes países da Europa e até
caras que estavam indo para o Chile não sabiam da África. Até que veio o golpe. Entrei para a
nada, eram caseiras, comecei agrupá-las para, Embaixada Venezuelana, tive uma experiência
de um lado, fazer solidariedade ao povo brasileiro do exílio chileno, organizamos o pessoal dentro
e, em segundo lugar, para começarem a se da embaixada, levantava cedo, tomava banho,
enfronhar nos seus problemas. Então, formei um e esse menino aí...da Força Sindical, que hoje é
grupo de mulheres brasileiras no exílio, eu e não sei o que...
mais umas duas ou três. Até que vem o golpe
de Santiago. Lá eu tive muitas experiências, fui AH – O Luiz Antonio Medeiros?
trabalhar em fábrica de autopeças, fui colher
legumes na agricultura, dei curso falando da ZA – O Medeiros e o outro... a gente pegava o
experiência do golpe no Brasil, enfim, eu trabalhei jornal, lia o jornal, tomava banho... Tinha gente
muito e o partido chileno, a Unidade Popular, me que dormia na piscina, porque não tinha lugar.
ajudava. Uns dias antes do golpe chileno fui na Então, a minha outra experiência foi essa dentro
sede do partido e disse “olha, eu vou dizer uma da Embaixada Venezuelana em Santiago do Chile,
coisa para vocês, vai chegar o golpe no Chile e até que a situação começa a ficar insuportável,
todos nós vamos ser presos, eu quero saber o até que um dia eu consegui criar um ambiente
que eu faço?” Aí eles disseram: “mas aqui não para sair de Santiago exilada. Sai escoltada...
vai acontecer nada, porque nós temos a estação Levaram-me até o aeroporto, a Venezuela me
de TV, tem rádio”, eu digo: “vão fechar tudo”, e deu um passaporte, eu sai e fui, me levaram dali,
eles me mandaram voltar para casa, só que a fui até o aeroporto, cheguei lá e não tinha avião...
mamãe aqui não foi para casa, eu já fui dormir Como eu era exilada na Embaixada da Venezuela,
fora e aí começa a minha saga, no exílio do exílio. eu fui para Venezuela e ali não deu tempo de fazer
Eu me lembro de um dia que saí com o Ferreira grandes coisas, porque eu tinha que me safar e ir
Gullar19 e o Sérgio, que a gente chamava Sérgio para Europa. Ajudaram-me a sair da Venezuela,
Moraes – ele é maravilhoso e é meu amigo até com visto da Embaixada Soviética. Precisava
hoje –, bem, voltando a Ferreira Gullar, nós fomos entrar em tratamento de saúde. Fiquei com o
andando e a cidade estava toda embarricada, cabelo branco, branco. Foi muito difícil depois do
fomos andando encostados na parede, foi uma golpe, ainda fiquei um tempo lá. De lá, me tiram
coisa muito difícil e muito dura e eu dizia para o para Moscou e de Moscou eu volto para Paris; de
Gullar, de tarde, antes de acontecer essas coisas, Paris para o Rio de Janeiro. Em Moscou, fui direto
eu disse “olha vai acontecer amanhã, amanhã para o Hospital, quando tive que operar os rins,
vocês me pegam de manhã e me tiram da minha tive de fazer um tratamento todo porque eu estava
casa”, fomos andando, voltamos para casa e de ruim de saúde, muito ruim. E fiquei lá. Mas sabe, lá
manhã eu já estava de malas prontas, com o meu não se podia fazer grande coisa, porque a União
gato embaixo do braço. Fui para o sítio, ali reunia Soviética não permitia fazer grandes coisas.
todo pessoal... Então, fui agüentando, até que resolvi ir para
Paris. O partido francês me recebe e eu fui ficar
AH – Encontrou algum deputado? na casa do Oscar Niemeyer. Lá fundei o grupo de
mulheres brasileiras no exterior, que era as que
ZA – A minha casa era freqüentada por Almino vinham exiladas e se espalharam pela Europa...
Afonso, [José] Serra, todo mundo. Foi muito São Tomé e Príncipe... Foram para Itália, foram
interessante essa minha estadia em Santiago, para Bruxelas, se espalharam. Em Paris continuei
eu aprendi uma coisa, você pode morrer com a minha solidariedade ao povo brasileiro, lá nós
um povo, mesmo que ele não seja seu, é a fizemos muitos trabalhos, fizemos jornais... a
solidariedade. Já era um conteúdo muito concreto situação era outra, então eu freqüentei tudo que
do internacionalismo proletário. Como já disse, tinha de bom para cultura, inclusive tive contato
chego lá e encontro mais de 200 mulheres que com as feministas, não passei a ser feminista
chegaram antes de mim, fugidas daqui, com os não, mas dizia que era uma mulher marxista, que
seus maridos, seus filhos, a maioria dona de estudava feminismo, estudava as mulheres. Lá
Acervo histórico

eu consegui carteira de exilada, viajava por toda as mulheres se uniram e disseram “é a Zuleika
Europa, fazia aqueles trabalhos de solidariedade, Alambert e acabou”.
saía da Europa, eu ia para outros países, viajava
organizando as mulheres. Fiquei lá até o dia que AH – A senhora saiu do partido e não entrou em
veio a anistia. Então, por isso que eu digo, a nenhum outro?
guerra, o partido, o exílio, o feminismo... aprendo
lá, mas não assumo. Venho para cá, desço no ZA – Eu ajudava o PMDB, depois houve a divisão,
aeroporto com gato, violão, levei uns dias e tive eu ajudei o PSDB, porque as minhas amigas
um comício para falar na Casa Grande, tinha ficaram no PSDB. Eu trabalhei com a Ruth
mil e tantas mulheres, me colocaram na parede, Cardoso; Covas22 e Montoro me prestigiaram
“você é feminista”, eu dizia que não, “eu sou uma muito, quando mudou e veio o Quércia, eu fui lá
mulher marxista, que estudo as mulheres”. Tinha depor o meu cargo, eu tinha um resto de mandato
um convite para falar no Teatro Ruth Escobar em na Presidência e ele disse “não, você vai terminar
São Paulo, digo: “não vou, primeiro vou estudar o seu mandato, nós somos do mesmo partido e
melhor esse negócio de feminismo”, porque a tal”, mas cada presidente, cada governador tem
minha fala era que as mulheres precisam da um estilo de trabalho, eu não concordo muito com
democracia para se organizar, para lutar etc. Elas o seu estilo... depois ainda fiquei, fui eleita para
é que precisavam da democracia. Para fazer esse outra gestão, trabalhei para a outra presidente,
discurso para o grupo de mulheres, eu disse que acho que foi a Ida Maria, a 2ª Presidente. Isso tudo
a democracia precisava das mulheres, como as é história para toda vida. E ali eu fiquei ajudando e
mulheres precisavam da democracia, acabei me em todos os cargos. Eu fui a única presidente do
mudando para São Paulo, fui morar lá na capital Conselho que não saiu nem para ser governadora,
e trabalhar com a Ruth Escobar, no Parlamento, nem senadora, nem cargo executivo, eu comecei
assessora técnica parlamentar... a ocupar as coisas abaixo do presidente e eu
aprendi tudo ali dentro, não sendo presidente.
AH – Retornou a velha Casa e o feminismo, Todas precisavam da minha ajuda.
assumiu?
AH – A senhora chegou a acompanhar a
ZA – Comecei em Casa Grande, no Teatro Constituinte do Estado em 1989?
Ruth, depois eu entrei no Núcleo de Mulheres
Feministas de São Paulo e comecei o meu ZA – Fui recebida pela comissão pró-constituinte
trabalho feminismo... até que me assumo como como deputada, que não era mais. “A Deputada
feminista. Comecei a participar das coisas, mas Zuleika Alambert...” Fizemos vários debates na
aí começam as minhas contradições com o Constituinte dentro e fora da Assembléia, no
partido. Eu achei que podia reformar o partido conselho. Quando o Conselho fez 15 anos eu digo
por dentro e não consegui. Então, quando eu “chega, eu já formei muita gente, tem muita jovem
vi que não dava para reformar por dentro eu que pode continuar a minha luta aqui”. Eu estava
resolvi cair fora. Saí em 1983. Houve uma doente, me desgastei muito. Fiz o último discurso,
reunião no centro de São Paulo, semi-ilegal, deixei formada a nova direção e fui embora para
para ver que caminho seguir, eu escrevi um o Rio de Janeiro, tinha cumprido a minha tarefa
vasto documento sobre o tema, cheguei lá a em São Paulo, onde fiquei 15 anos. No Rio já
Polícia Federal estava em cima, prendeu todo foi diferente, eu já cheguei doente, escrevia,
mundo, fomos presos e ali eu me afastei e eles dava entrevista, ajudava no que eu podia, fazia
me afastaram, porque estava metida com o palestras, em especial para mulheres, senhoras
feminismo. Em São Paulo fundei o Conselho da terceira idade... Até que fui internada. Hoje
da Condição Feminina, que era um órgão não posso mais ficar à frente de um trabalho
governamental, porém não parasita do governo. público, ainda fiz uma viagem para Brasília para
O governo Montoro20 assumiu, depois veio o receber o título de Cidadã Bertha Lutz23. Ajudo as
Governo Quércia21 e continuou. O Conselho da meninas do GAF – Grupo de Ação Feminista –,
Condição Feminina se tornou o primeiro órgão junto ao PPS, recebo o material do Brasil inteiro,
governamental formado no Brasil, daí nasceu elas me mandam. As coisas estão se fazendo
o de Minas Gerais, e depois o nacional. Fui e vou dando as minhas entrevistas... então
presidente, vice-presidente, assessora especial, aconteceu algo novo. Eu tinha estado com o
secretária, trabalhei no arquivo, não se fazia Mário Schenberg24, foi ele que pela primeira vez
nada no Conselho que eu não tivesse feito. Fui me falou em energia nuclear... Nós fomos amigos
a única presidente do Conselho que não tinha na Assembléia e quando começaram a cassar
esquema político, fui imposta pelas mulheres, os deputados eu fui para a casa dele. A gente
41

conversava muito, ele era crítico de arte... Ele me que estimular, o desenvolvimento sustentável,
dizia: “nada está parado Zuleika, tudo se move”, que colhe material do lixo (...) fazem vestidos
a minha mentalidade era física velha, clássica, de chapinha, fazem uma série de coisas (...)
e parava aí. As conversas do Mário ficaram que trabalha com material local, não estraga o
torrando na minha cabeça. Eu precisava fazer material, tudo é replantado e reconstruído e usa
tratamentos e fui parar no Ortomolecular, então, mão-de-obra nacional, emprega mão-de-obra.
o que aconteceu foi o seguinte: eu comecei a Segunda questão, que eu chamo a paridade,
ler e aprendi que tinha a Física clássica, que eu homem e mulher na democracia, essa democracia
agora estou tentando recuperar e essa física. de fachada, ela é representativa, só que os
Tudo estava novo, você vê a dialética, que me excluídos não se representam, nós queremos
entusiasmou... você está morto, você morre, uma democracia representativa, participativa e
nascemos, crescemos, desenvolvemos, como paritária, que significa 30 senadores homens e
todo mundo, a sociedade, tudo! E morremos. Mas 30 senadoras mulheres. Um país é democrático
nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. na medida em que ele incorpora os excluídos, e
A energia de fazer com que você funcionasse em as mulheres sempre foram excluídas. Enquanto
pensamento, consciência, tudo isso não evapora, a mulher não tiver representação paritária com o
porque é energia pura. É energia, que os físicos homem no poder, a democracia será uma mentira,
não enxergaram, eles só começam a enxergar um porque exclui a parte maior da população. Esse
pouco agora. (...) Ver que o mundo é energia pura que é o problema e o partido via a mulher como
com mutação. A gente tem de trocar de paradigma um instrumento que ele precisava.
e ver as coisas em contínua mudança, o mundo
está em plena mudança. AH – Como analisa a reserva de um percentual
para candidatas mulheres?
AH – E como vê essas mudanças?
ZA – Veja bem, não estou subestimando as ações
ZA – A terceira idade faz ginástica, faz positivas, porque as ações positivas educam as
hidromassagem, faz passeatas... Eles não mulheres, educam os homens também. Você
envelhecem como os nossos avós, fazendo pode fazer uma discussão das cotas (...) A
crochê. A mente não pode ter fronteiras, quando paridade significa a mulher entrando no poder,
ela tem fronteira, você cai no sectarismo do xiita, é o que a gente chama dar poder às mulheres.
um absurdo. Então, você vai se reciclando... O mundo só mudará quando a mentalidade
Hoje, depois de anos, acho pouco dizer que eu humana mudar, assumir outro paradigma, esse
sou feminista, eu me digo eco-feminista, por mundo novo, que estou dando exemplo de
quê? Porque eu faço parte da coisa universal. nascer, crescer e encostar na parede o velho
Então, eu sou eco por isso, porque eu critico as mundo, a velha física, os velhos paradigmas. Eu
outras feministas que ainda estão naquela de tenho ilusão nessa nova mentalidade que está
aborto etc... Não é que eu seja contra, mas não nascendo, que já existe. Os velhinhos dançam
basta isso, porque dentro
de uma nova percepção,
DAH-ALESP

novos paradigmas, a mulher


tem de participar da luta por
um desenvolvimento sus-
tentável e o que existe de
desenvolvimento sustentável
está sendo feito pelas mu-
lheres. Os ambientalistas...
onde tem um grande número
de mulheres. Incorporar essa
mentalidade é um grande
trabalho cultural que a mulher
tem de fazer, trabalhando
isso na educação formal, na
educação informal. Tem o
Brasil bonito e tem o Brasil
feio, que a mídia mostra,
assaltos, roubos, violências...
Essa coisa nova, nós temos Dados de Zuleika Alambert no Livro de Assentamento dos Deputados da ALESP
Acervo histórico

ali naquela praça, são todas ONGs que estão sempre digo isso para as mulheres, façam uma
fazendo um enorme trabalho, exposições... Sou vida em comum, onde um não se sobreponha ao
uma eco-feminista, que está estudando o eco- outro... O meu segundo marido morreu, ele tinha
feminismo, que é a minha última escola, não creio um problema degenerativo... Essa foi a minha
que eu vá muito além disso. Porque estou muito vida, eu não prego da minha boca coisas que
tempo nisso, mas o que eu puder eu vou fazer. não têm amor, realidade...
Não tenho nem condições de fazer uma palestra,
mas dou entrevista e vou fazendo a minha parte, AH - E você tem filhos?
“se cada um carregar uma gotinha d’água você
apaga o incêndio”. ZA - Não, isso foi uma opção, eu queria fazer
uma vida e não queria empurrar os meus filhos
AH – A senhora falou de grandes paixões. E as para a minha mãe, que também foi uma mulher
outras grandes paixões? que lutou muito. Minha mãe dizia “não quero para
as filhas a vida que eu tive”, cozinheira, doceira,
ZA - Fui noiva de um pracinha, que saiu daqui agricultora, cortando árvores de café, um dia eu
sargento e voltou major, ele vive até hoje, está vi a minha mãe abortando no meio do terreno...
casado, mas de vez em quando me telefona, Talvez uma ou outra vez eu me lembrava que era
é um sujeito legal porque foi herói de guerra... mulher, que tive o meu condicionamento familiar,
encontrei-me com ele 58 anos depois e ele me social... Tudo que tive que romper, uma coisa
devolveu um anel que eu dei para ele e que ele complicada. Quando eu tive as primeiras regras,
usou pendurado no pescoço durante a guerra. a minha avó virou para mim, velhinha, e disse:
Estava amassado, anel de marcassita... Depois “olha, a partir de hoje você não pode brincar com
eu conheci o Armênio25, vivi com ele 26 anos, os moleques da rua, porque essa é a vergonha
quase 27, ele me deu um aporte, me ajudou muito da mulher”, veja bem, “essa é a vergonha da
culturalmente, porque era um homem muito culto. mulher”, “você não pode”, hoje você é uma
Ajudou-me a entender música clássica, pintura, mulher adulta, tem que se conformar com isso,
enfim ele é um companheiro. E não foi assim: viu, como se fosse uma cruz nas costas da mulher.
gostou; eu fui conhecendo-o na briga, na luta... Veja, a minha mãe dizia para mim “prefiro ver a
Depois eu conheci um engenheiro, professor de minha filha morta, num caixão, com quatro velas,
Física, Matemática, muito progressista, eu ia na uma de cada lado, do que a minha filha casar e
casa dele... com ele eu casei mesmo26. Meus ter filhos”. Filhos, então, a minha mãe tinha horror
padrinhos de casamento foram o Artigas27, e a que tivesse. Minha vida foi uma prática... defesa
mulher dele Virgínia Artigas. Os dois ajudaram dos direitos humanos, defesa da mulher... Tenho
muito a fazer a minha cabeça, e esse meu um livro aí, que se chama Mulheres no Exílio,
marido, meu segundo marido, me ajudou muito onde eu digo que tinha horas que eu me sentia
a conhecer cultura geral também, ele esculpia. como um laboratório, gerando idéias, era uma
Foi amigo do Milton Santos28, ele tinha amigos coisa! Por isso que eu digo que a gente já tem
notáveis... Era um homem generoso, tirava a alguma energia acumulada, de outras épocas
camisa dele para dar para os outros e eu aprendi que você traz. Não é uma tábua rasa, não é, você
com ele sobre solidariedade, generosidade, absorve já uma consciência coletiva. Isso não tem
física, química, foi muita coisa
que eu aprendi com o meu
Acervo Zuleika Alambert

segundo marido, que tinha muito


orgulho de ser o meu marido.
Quando eu recebi o prêmio de
cidadã paulistana, medalha de
agradecimento do povo de São
Paulo, ele estava lá, ele que
recebia as flores... Não tive que
me queixar dos meus parceiros,
porque eu sempre os respeitei e
eles sempre me respeitaram. Eu
viajei o mundo, eu viajei o Brasil
e nunca ninguém disse para mim,
não vai, nem não faz, porque eu
tinha a minha personalidade e eles
faziam a vida deles também. Eu Convite para comício de Zuleika Alambert
4

DAH-ALESP o ventre no chão, não nasci para isso, eu nasci


para se águia, quero voar alto”, mas não era alto
para ter dinheiro. Não queria ficar como serpente,
ali no chão, e elas até desenharam. Eu queria ser
águia, e isso é muito dolorido, porque você acerta,
erra, volta, tem gente que se conforma, eu fui uma
inconformada.

AH - A senhora é inconformada?

ZA - Sou, mas eu tenho que aceitar o que eu sou


hoje. Porque a minha psicóloga diz isso “Zuleika,
você não tem 20, 40, 60, você está com 82 anos,
você não seria a mulher que é hoje se você não
tivesse os seus 20, 40, então você tem que fazer
as coisas considerando sua capacidade de hoje”.
Fisicamente eu não tenho condições de ir para
rua liderar uma passeata, ou sair sozinha pela rua
gritando e juntar gente. Não tenho condição, então
o que eu posso fazer hoje é dar entrevista, falar,
escrever, eu tento contribuir com todos que me
procuram, dando as minhas impressões, falando
das minhas experiências, das minhas coisas. Isso
Livro mais recente de Zuleika Alambert (2004)
eu faço! Os jovens me procuram, porque eles
não conhecem nada, então eles querem ver as
pessoas vivas, falando. Agora, não sei se eu vou
por onde. Vou fazer 82 anos, milito desde a idade viver 3 anos, 4 anos, eu tenho a impressão de que
de 13, 14 anos, milito não, faço política desde não vou viver muito não.
13, 14 anos. Andei pelo mundo inteiro, andei por
todos os municípios do Brasil, andei pelo Brasil AH – A questão do tempo...
inteiro, andei pelo mundo inteiro, idas e vindas,
legal, ilegal, então essa coisa toda criou na minha ZA – Quero aproveitar!
cabeça uma soma de material tão grande...
Ricardo Marinho

AH – Uma bagagem pesada?

ZA – O que eu aprendi foi a nadar dentro das


circunstâncias, eu não tenho nada que me
envergonhe, tanto que a abertura do meu livro é
sobre isso, que eu acho que a vida é um grande
rio que você tem que atravessar, chegar até outra
margem, tem gente que nunca chega e morre.
Tem outros que vão, põem o pé na água, sentem
frio e voltam, tem uns que vão até a metade e
voltam. Então, quando escrevi isso me senti
chegando do outro lado da margem, mas isso não
quer dizer que eu fui em braçadas, em braçadas
chegando lá, tinha dias que eu queria mergulhar,
ficar mergulhada naquelas águas, vendo o mundo
passar por cima e eu ali sem tomar conhecimento.
Mas de vez em quando eu vinha à tona outra vez
e continuava, porque o ser humano não é uma
fortaleza, são com as perdas e ganhos que você
vai mudando, se transformando. Eu tenho uma
coisa, o livro Mulheres no Exílio, elas até se
inspiraram no que eu disse, eu disse “eu não nasci Zuleika Alambert em noite de autógrafo na Livraria da
para ser cobra, para ser serpente, para viver com Travessa, em dezembro de 2004, no Rio de Janeiro.
Acervo histórico

NOTAS
1
Dicionário Mulheres do Brasil, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
2
Os submarinos alemães procuraram interceptar os principais feixes de comunicações marítimas,
conseguindo alcançar a cifra de um milhão de toneladas de navios torpedeados e afundados
mensalmente. No Brasil foram 742 vidas entre tripulantes e passageiros, mortos ou desaparecidos
em 19 navios.
3
Construída entre os anos de 1912 e 1917, pelo empresário Jorge Street, a Vila Maria Zélia foi um
empreendimento inovador. Foi a primeira vila industrial a abrigar creches, escolas, salão de bailes.
Sua história foi marcada por grandes transformações. Durante o Estado Novo, se transformou em
presídio político. Superintendido pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social, o Maria
Zélia foi palco de graves casos de violência e transgressão policial, inclusive fuzilamento.
4
Francisco Franco desencadeou a Guerra Civil Espanhola e governou o País de 1939 a 1975,
quando morreu.
5
Samuel Pessoa, médico, professor da Faculdade de Medicina da USP (cassado), desenvolveu
importantes estudos sobre moléstias parasitológicas.
6
João Taibo Cadorniga, natural de Santos, professor, representante do Sindicato dos Estivadores e
da União Geral dos Trabalhadores de Santos. Eleito Deputado Estadual em 1947, com 8.323 votos,
foi cassado e preso em 1948.
7
Estocel de Moraes, também santista, ferroviário, esteve envolvido com os portuários. Foi
eleito Deputado Estadual em 1947, com 7356 votos, teve o mandato cassado em 1948. Morreu
prematuramente, em 1954.
8
Clóvis de Oliveira Neto, ex-militar e comerciário, eleito com 6.502 votos, foi afastado, conforme
registro na Assembléia Legislativa, para tratamento de saúde. Fazia parte do Comitê Estadual do
PCB. Cassados os mandatos dos deputados, continua ligado a ala esquerdista do Exército.
9
A Deputada Zuleika Alambert, no período de 26 de setembro a 14 de novembro de 1947, substitui
o Deputado Clóvis de Oliveira Neto, licenciado de suas funções. Em 15 de novembro daquele ano,
passa a ocupar a cadeira de Deputada efetivamente, em função da renúncia do Deputado Mautílio
Muraro, metalúrgico, eleito com 10.041votos.
10
Maria da Conceição da Costa Neves (1908-1898), eleita pelo PTB com 12.119 votos, foi a única
mulher na Assembléia Constituinte Paulista de 1947. Conceição da Costa Neves, como era conhecida
nos meios políticos, foi atriz de comédia sob o nome de “Regina Maura”, foi diretora da Escola da
Cruz Vermelha Brasileira, no período da II Guerra, de 1939 a 1945. Em 1946 fundou a Associação
Paulista de Assistência ao Doente da Lepra. Na Assembléia Legislativa foi eleita para seis mandatos
seguidos. Exerceu a 1ª Vice-Presidência da Casa em 1958-1962, ocupou a Presidência da Comissão
de Finanças e Orçamento durante quatro anos e integrou a Comissão de Redação por sete anos. Foi
cassada pelo AI-5, em 1969. Faleceu em 1989.
11
Caio da Silva Prado, historiador e advogado, um dos principais intelectuais do País, fundador da
Editora Brasiliense, foi eleito Deputado Estadual em 1947, com 5.257 votos. Teve destacada atuação
parlamentar até a cassação de seu mandato, em 1947. Logo após, foi preso por três meses. Em 1955
lançou a Revista Brasiliense – que debatia problemas sociais, políticos e econômicos –, proibida pelo
golpe de 1964. Entre suas obras estão o livro História e Desenvolvimento, concluído antes do AI-5. Em
1970, um inquérito policial militar o reconduz à prisão. Militou intensamente até 1988, falecendo dois
anos depois.
12
Milton Cayres de Brito, natural da Bahia era médico e membro do Comitê Central do PCB. Em
1945 foi eleito Deputado por São Paulo na Assembléia Nacional Constituinte, promulgada em 1946.
Com mandato até 1950, abandona a Câmara Federal para assumir a vaga de Deputado Estadual
conquistada na eleição de 1947, com 17.692 votos. Cassado, recorre à clandestinidade. Reaparece
em 1958, na fundação do Jornal da Bahia, onde atua até 1964. Em 1968 participa do lançamento da
Tribuna da Bahia. Em 1979 ingressa no MDB, na ocasião era professor de publicidade da Escola de
Comunicação da Universidade da Bahia. Faleceu em 1985.
13
Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), jornalista, escritora, militante comunista, Pagu foi uma das
grandes vozes da vanguarda de seu tempo. Nascida na cidade paulista de São João da Boa Vista,
não tinha o comportamento típico das meninas do interior. Pintava os lábios de roxo, usava decotes e
roupas transparentes e fumava em público. Fez parte do movimento da Antropofagia.
14
Eneida de Morais (1904-1971), escritora e jornalista paraense, a partir de 1932 começa uma intensa
atividade política no ilegal Partido Comunista. Foi uma mulher à frente da sua época. Atuou em espaços
45

onde a presença masculina era majoritária, como as redações de jornais e o próprio PCB. Foi rotulada de
prostituta, por separar-se do marido e viver com o jornalista Oswaldo Póvoa. Durante os anos 1940 e
1950 organizava caravanas de escritores, para discutir literatura em vários pontos do País.
15
Lourival Costa Villar, João Sanches Segura e Armando Mazzo (marceneiro), deputados eleitos pelo
PCB com, respectivamente, 8.288, 6.267 e 6.140 votos. Os dois primeiros faziam parte do Comitê
Central do PCB e o terceiro, eleito prefeito de Santo André junto com os “candidatos de Prestes”
pelo PST foi impedido de tomar pose em 1º de janeiro de 1948, só o fazendo, simbolicamente, 41
anos depois, quando da posse do Prefeito Celso Daniel naquela cidade. Compõem a bancada de
11 parlamentares comunistas que, além dos já citados anteriormente, contavam ainda com Catullo
Branco, engenheiro elétrico, eleito com 5.448 votos e Roque Trevisan, tecelão, eleito com 8.530 votos.
Como três suplentes assumem o mandato: Zuleika, o ferroviário Celestino dos Santos, com 4.637,
e o físico Mário Schenberg, com 3.092 votos, o número de comunistas que ocuparam as 11 vagas
conquistadas na Assembléia Legislativa foi de 14 parlamentares.
16
Há registro em relatório do DOPS com data de 29 de novembro de 1947, de um comício,
em Santos, proibido pela Polícia. No mesmo ano, Zuleika participara, junto com o dirigente
comunista Carlos Marighela, de um comício em defesa dos mandatos comunistas, realizado no
Vale do Anhangabaú, em São Paulo, no dia 18 de junho. Ainda em 1947, no mês de novembro,
acompanhada do também Deputado Estadual Lourival Costa Villar, participa de um comício em Belo
Horizonte, que foi reprimido pela polícia.
17
João Saldanha (1917-1990), jornalista gaúcho, treinador de futebol, em 1969 dirigiu a equipe do
Brasil nas eliminatórias para o tricampeonato no México.
18
Salvador Allende, fundador do Partido Socialista Chileno, em 1970 ganha as eleições como candidato
de uma coligação de esquerda à presidência do Chile. A sua política, a “via chilena para o socialismo”,
pretende uma transição pacífica para uma sociedade mais justa. A mesma coligação obtém 43% dos
votos nas eleições legislativas de 1973. Em junho desse mesmo ano, sofre uma tentativa de golpe
de Estado. Em nova investida, em setembro, os militares de direita, chefiados pelo general Pinochet,
matam o Presidente Allende e muitos dos seus colaboradores. O regime democrático é extinto e o país
sofre um terrível banho de sangue.
19
Ferreira Gullar, José Ribamar Ferreira, nascido em 1930, na cidade de São Luiz, no Maranhão. Em
1950, após presenciar o assassinato de um operário pela polícia, durante um comício de Adhemar de
Barros, em São Luís, nega-se a ler, em seu programa de rádio, uma nota que aponta os “baderneiros”
e “comunistas” como responsáveis pelo ocorrido. Poeta, crítico, teatrólogo e intelectual, participou
ativamente das mudanças políticas e sociais brasileiras. Um dos maiores influenciadores de toda uma
geração de artistas dos mais diversos segmentos das artes brasileiras.
20
André Franco Montoro, primeiro Governador eleito de São Paulo após o golpe de 1964, nas
eleições realizadas em 1982. Assumiu seu mandato em 15 de março de 1983 e governou até 15 de
março de 1987.
21
Orestes Quércia, governador eleito de São Paulo, em 1986. Cumpriu mandato de 15 de março de
1987 a 15 de março de 1991.
22
Mário Covas, prefeito indicado de São Paulo de 1983 a 1985, pelo Governo Montoro. Foi eleito
Governador do Estado em 1994 e reeleito em 1998.
23
Diploma Mulher-Cidadã Bertha Lutz, concedido pelo Senado Federal. Bertha Maria Júlia Lutz (1894-
1976) foi uma das pioneiras do feminismo no Brasil. Era zoóloga de profissão. Foi a fundadora da
Federação Brasileira para o Progresso Feminino, em 1922.
24
Mário Schenberg, físico, terceiro suplente a Deputado Estadual pelo PCB, assumiu o mandato em 1947,
sendo cassado e preso em 1948. Em 1969, com a edição do AI-5, foi aposentado compulsoriamente do
Departamento de Física da USP, retomando suas atividades após a anistia, em 1979.
25
Armênio Guedes, jornalista e dirigente comunista, membro do Comitê Central do PCB, atuou junto
com Zuleika, em Paris, na campanha pró-anistia brasileira.
26
Virgílio Izoldi, com quem se casou em 15 de março de 1983.
27
João Batista Vilanova Artigas, arquiteto, conviveu com os artistas populares de São Paulo do grupo
Santa Helena (a chamada “família artística paulista”). Paralelamente, dedicou-se ao magistério;
inicialmente na Politécnica de São Paulo, mais tarde, no curso de Arquitetura da USP. Foi um dos mais
respeitados arquitetos brasileiros. Entre seus projetos estão o da sede da Faculdade de Arquitetura da
USP - FAUUSP e o Estádio do Morumbi. Faleceu em 1985.
28
Milton Santos, geógrafo, nasceu em 1926, neto de escravos por parte de pai, foi incentivado a
estudar sempre e muito. Exilado com o golpe de 1964, aprendeu e ensinou na Europa, Américas e
África. Escreveu mais de quarenta livros em diversas línguas. Morreu em 2001.
Acervo histórico

O Parlamento
e as Ruas
Joseli Maria Nunes Mendonça*
Acervo do Arquivo Edgard Leuenroth, Campinas, Unicamp

Ângelo Agostini, editor da Revista lIlustrada, aludia ao fato de os escravos não serem indiferentes ao que ocorria no
Parlamento (nº 467, 1887)

Q uando, em 10 de maio de 1888, a proposta de preconizara que a abolição, no Brasil, deveria


abolição da escravidão foi aprovada pela Câmara ser feita “por uma lei que tenha os requisitos,
dos Deputados da Assembléia Geral, Joaquim externos e internos, de todas as outras”. Não seria
Nabuco foi um dos parlamentares que, de forma nas “fazendas ou quilombos” que se ganharia a
mais enfática, expressou o grande júbilo que ex- “causa da liberdade”. A condução da questão pelo
perimentava naquele momento. Parlamento, segundo Nabuco, asseguraria que a
escravidão fosse suprimida de modo a se manter
Com efeito, a bem sucedida passagem do projeto a ordem, preservando a sociedade do caos1.
nº 1A pela Câmara e os prognósticos positivos
sobre sua aprovação pelo Senado representavam, Em maio de 1888, quando se alegrava com a
para Nabuco, o coroamento não só dos objetivos aprovação do projeto nº 1A na Câmara, este as-
que firmara para a ação política empreendida há pecto era ressaltado pelo parlamentar. “A vitória
vários anos, mas também a maneira pela qual final do abolicionismo no Parlamento”, apontou
havia defendido que a chamada “questão servil” ele então, “não é a vitória de uma luta cruenta,
devia ser resolvida. Desde 1883, quando formulou não há vencidos nem vencedores nesta ques-
sua teoria abolicionista de forma mais bem tão”2. O ideal abolicionista e sua realização, para
acabada escrevendo O Abolicionismo, Nabuco o deputado Nabuco, estiveram sempre acima

*
Doutora em História pela Unicamp, professora do curso de História na Universidade Metodista de Piracicaba
(jmendon@unimep.br)
47

das divergências partidárias e dos conflitos fir- te encaminhado por meio do Parlamento e com
mados por interesses particulares. Resultado da interferência culminante da regente Isabel ficou
vontade geral da nação em todos os seus seto- como que cristalizado na memória que, já a partir
res “respeitáveis” – excluídos escravos e libertos de 1888, ia sendo construída sobre a Abolição.
–, a lei em vias de ser aprovada devia ser vista
como a vitória final das batalhas abolicionistas, Não obstante, uma análise mais detalhada do
decorrência de um processo pacifica e gradual- processo revela os muitos conflitos e incertezas
mente encaminhado. nele instaurados e a estreita confluência que ha-
via entre o Parlamento e as ruas.
Como dissera João Alfredo, então presidente do
Conselho de Ministros, ao contrário do que ocor- Os momentos de discussão de projetos relativos
rera nos Estados Unidos, em cujo solo “inundado à chamada “questão servil” eram permeados de
de sangue” a escravidão fora destruída “brusca exacerbadas conturbações, mesmo muito antes
e violentamente”, no Brasil o encaminhamento que o tema da abolição da escravidão entrasse
parlamentar da questão pudera assegurar que na pauta dos debates parlamentares. O grau
a abolição se fizesse gradualmente, “dentro da explosivo das questões se evidenciou, por exem-
lei, sem ofensa dos princípios fundamentais da plo, no período de 1848-1850, quando debates
sociedade, como o rio, que embora volumoso relacionados à regulamentação legal da repres-
e rápido, corre pacificamente em seu leito, sem são ao tráfico provocaram tumultos não só nos
transbordar”3. espaços que, no Parlamento, eram destinados
aos parlamentares, mas também nas galerias, de
As concepções expressas por Nabuco foram onde o público interessado – e por vezes exaltado
argumentos poderosos em outros momentos em – podia assistir as sessões e, não raras vezes,
que o Parlamento brasileiro se defrontou com nelas interferir. Quando da votação do projeto de
a tarefa de se posicionar em relação a propos- repressão ao tráfico em 1850 – do qual decorreu
tas de definição de leis emancipacionistas. Em a lei conhecida como Eusébio de Queiroz –, al-
1884, quando da apresentação do chamado pro- gumas propostas mais delicadas ou controversas
jeto Dantas – do qual, pouco depois, adviria a lei (como a que definia que o tráfico fosse equipa-
que ficou conhecida como dos Sexagenários –, rado juridicamente à pirataria) chegaram a ser
o deputado Moreira Barros ponderava que tratar votadas em sessão secreta5.
da “questão servil” no Parlamento significava co-
locá-la na esfera da legalidade, “retir[ando-a] das Também a tramitação do projeto do qual resultou
ruas, onde só se agita e nada se resolve”4. a lei de 1871 (do Ventre Livre) evidencia as con-
turbações que decorriam da introdução no Parla-
O modus operandi defendido por Nabuco ou as mento de medidas legislativas referentes à escra-
concepções expressas pelo ministro João Alfre- vidão. O percurso dos debates que antecederam a
do em 1888, ou pelos deputados em meados aprovação da lei de 1871 iniciou em 1867, quando
dos anos 1880, além de definir uma imagem algumas propostas elaboradas pelo conselheiro
específica do processo de abolição, marcada José Antônio Pimenta Bueno –então Visconde de
pelo congraçamento e pela ausência de conflitos São Vicente – foram submetidas à apreciação do
decisivos, indicam também uma percepção sobre Conselho de Estado6. Naquela ocasião, um forte
a atuação política do Parlamento. Vista como sa- argumento dizia respeito à impropriedade de se
neadora das agitações das ruas, a instituição era agitar uma questão sobremaneira delicada, quan-
concebida como um espaço apartado da socieda- do o país já experimentava grande instabilidade
de, que pairava sobre ela, demovendo os perigos, em razão da Guerra que travava com o Paraguai.
neutralizando a mobilização social, evitando con- Os conselheiros, então, apelaram para a necessi-
flitos, preservando a harmonia da nação. dade de prudência, e as propostas apresentadas
por Pimenta Bueno – dentre elas, a de libertação
Um abismo perigoso: dos filhos nascidos de escravas – foram deixadas
no Parlamento se agita para momento menos inoportuno7.

Embora despontasse dos discursos parlamen- Um tanto reformuladas, as propostas de Pimen-


tares e se configurasse como um argumento ta Bueno foram apresentadas à Câmara dos
político importante, especialmente destinado Deputados da Assembléia Geral em maio de
a demover a oposição dos mais resistentes às 1871, por iniciativa do Ministério da Agricultura.
propostas de uma legislação emancipacionista, a A passagem do projeto (depois batizado como
imagem de um processo de abolição pacificamen- projeto Rio Branco, então presidente do Conse-
Memória Visual
Macatuba: A Princesinha dos Canaviais
Álvaro Weissheimer Carneiro*

A
formação do pequeno povoado, em Lençóes, em ofício datado de 22 de dezembro
meados de 1900, deve-se ao pionei- de 1923, Bocayuva registrava 10 mil habitantes
rismo de alguns sitiantes e lavradores – sendo mil na cidade –, cento e trinta prédios,
que, a procura de melhores condições de vida uma cadeia pública em construção, 4 escolas
e trabalho – na busca por terras boas para reunidas em prédio próprio, com uma renda
criar e cultivar –, instalaram-se na região. estimada para o ano de 1924 em 54:000$000
(cinqüenta e quatro contos de réis).
Pelo santo de devoção e protetor denomina-
ram o lugar de Santo Antonio do Tanquinho, Durante o Estado Novo de Getúlio Vargas é
uma vez que havia no rio Lençóes vários imposto pelo Decreto-Lei nº 14.334, de 30 de
bebedouros (tanques naturais) para os ca- novembro de 1944, a mudança do nome para
valos. E foram, justamente, os cavalos que Macatuba (ajuntamento de macaúbas, palmei-
propiciaram os primeiros passos de desen- ra que, aliás, nem existia no local).
volvimento do lugar; ficaram famosas, duran-
te os festejos e fins de semana, as corridas Conforme consta, não houve boa aceitação
de cavalos disputadas no centro da cidade, ao nome, pois uma parte dos moradores do
atraindo centenas de moradores de toda a município preferia o nome Jauí – que significa
região, proporcionando um maior rendimento rio dos jaús, peixe abundante nas águas de
ao comércio local. Lençóes –, mas o novo nome acabou prevale-
cendo pelo apoio da maioria dos munícipes.
Com o advento do café, o progresso chegou
definitivamente à vila que, em 1912, pela Lei nº A sua denominação promocional é justa e
1337, de 7 de dezembro, recebe a denominação concordante – “a princesinha dos canaviais”
de Bocayuva – em homenagem ao Senador – é uma cidade bonita e aprazível e em fran-
Republicano Quintino Bocayuva (1836 – 1912) ca expansão, situada no centro do Estado,
– e passa a pertencer ao distrito de Lençóes pertencente a 7ª Região Administrativa, com
(atual município de Lençóis Paulista). uma população de aproximadamente 16 mil
habitantes, com um clima quente e inverno
Em 4 de dezembro de 1923, o ex-vereador e seco. Nos seus 225 quilômetros quadrados,
ex-prefeito de Lençóes, o deputado estadual em terreno levemente acidentado, tem na agri-
Elias de Oliveira Rocha apresenta ao Congres- cultura – café, cana-de-açúcar, arroz e milho
so Legislativo do Estado de São Paulo o Pro- – e na indústria – cerâmicas, olarias, produtos
jeto nº 48, onde eleva a categoria de município alimentícios, vestuário, álcool, artefatos de
o distrito de paz de Bocayuva, do município cimento e beneficiamento de arroz e café – a
de Lençóes, na Comarca de Agudos; sendo base de sua economia.
aprovado e em seguida promulgado pelo Dr.
Carlos de Campos, Presidente do Estado de O conjunto de imagens apresentadas nesta
São Paulo, na forma da Lei nº 1975, de 1º de “Memória Visual”, pertinentes ao Projeto nº 48
outubro de 1924. de 1923, faz parte da coleção de documentos,
abrangendo o período de 1819 a 1947, con-
Conforme informações do Vereador Octavio servados pela Divisão de Acervo Histórico, já
Pereira, Presidente da Câmara Municipal de digitalizados e disponíveis para consulta.

*
Agente Técnico Legislativo, pesquisador da área de Pesquisa Iconográfica e Montagem de Exposições da Divisão
de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e responsável pela seção “Memória Visual”
desde o primeiro número de “Acervo Histórico” (baldebranco@bol.com.br).
Acervo histórico

Em razão da carência de professores foram criadas as chamadas “Escolas Reunidas”, que agrupavam as escolas u
urbanas e as escolas rurais, em cujas instalações eram ministradas aulas para uma ou mais séries ao mesmo tempo
“...o distrito de paz de Bocayuva é hoje um dos mais ricos núcleos agrícolas do Estado, estando grande
parte de seu território ocupada por excelentes lavouras de café em franca produção...” (Representação dos
munícipes de Bocayuva, datado de 8 de outubro de 1923)
“Prova maior ainda da importância do distrito e da decisiva justificativa da sua elevação a município é o fato de
possuir uma lista de leitores que passa de 500 e, finalmente, poder contar desde já, sem necessidade de elevar a
tabela dos impostos que a que agora está sujeito, com uma renda de 30:000$00, importância esta que lhe basta
para custear as suas despesas.” (Representação dos munícipes de Bocayuva, datado de 8 de outubro de 1923)
“A intensidade da sua vida econômica e social reflete
igualmente no movimento considerável e crescente
do seu cartório de paz, onde se lavram mensalmente
para mais de 30 escrituras e procurações, pelo
registro civil que acusa uma cifra de 10 casamentos
e 30 nascimentos, em média, também mensalmente.”
(Representação dos munícipes de Bocayuva, datado
de 8 de outubro de 1923)

“...tenho a honra de declarar a V.Excia para os devidos fins, que há, efetivamente, toda conveniência no projeto
da elevação do distrito de paz de Bocayuva, desta comarca, a município, não só porque o seu progresso tem
sido vertiginoso, como também, porque esta tenha a acentuar-se com o aumento da população e conseqüente
aproveitamento de vasta extensão de terra...” (Ofício do Juiz de Direito da Comarca de Agudos, Dr. Alcebíades
Draco de Albuquerque, prestando informações sobre o projeto de criação do novo município, ao 1º Secretário
da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo, e datado de 21 de dezembro de 1923)
Acervo histórico

lho de Ministros) pelo Parlamento foi marcada dos projetos dos quais resultou a lei de 1885 (a
por intensos debates e uma forte oposição tanto chamada dos Sexagenários). Seu trâmite – mais
de conservadores quanto de liberais, que con- ainda que o da lei de 1871 – foi marcado por ex-
sideravam que as medidas de “abolição direta” trema agitação política, porque agregou elemen-
representavam uma indevida intervenção do tos de instabilidades próprios do jogo político par-
poder público nas relações até então privadas lamentar do Império. Durante a passagem desta
entre senhores e escravos e seriam como explo- lei pelo Parlamento ocorreu a dissolução de uma
sivos ameaçando a sociedade e a prosperidade legislatura da Câmara, a conseqüente realização
da nação. de eleições e a demissão de dois Ministérios. Ve-
jamos como e porque.
Com efeito, o projeto Rio Branco foi a primeira
iniciativa concreta do poder público no sentido Em 15 de julho de 1884, por iniciativa de um
de firmar medidas emancipacionistas. Além de Gabinete liberal chefiado pelo ministro Dantas,
outros aspectos, de que falaremos um pouco foi apresentado à Câmara dos Deputados o pro-
adiante, o projeto previa que os filhos de escra- jeto de lei que, entre outras medidas, propunha
vas nascidas posteriormente à sua aprovação a emancipação dos escravos com idade igual ou
deveriam ser considerados livres. Este foi um superior a 60 anos. Desde a data de sua apresen-
dos principais pontos a levantar a oposição ao tação, era evidente que o chamado projeto Dantas
projeto. O argumento central era o de que tal me- provocaria uma grave crise no interior da Câmara
dida desrespeitava o “direito de propriedade” dos e do governo. As duras críticas a ele desferidas
senhores. Postos diante da proposta de libertar por membros do próprio Partido Liberal – que for-
o ventre das escravas, muitos parlamentares mava maioria naquela legislatura – prenunciavam
defenderam a necessidade de que o Estado in- dificuldades para o Ministério. Naquela ocasião,
denizasse os proprietários, privados de sua pro- como em 1871, o principal “pomo de discórdia”
priedade pela anulação do princípio que definia também dizia respeito ao tão propalado direito de
a condição escrava para crianças nascidas de propriedade: o projeto Dantas não previa a inde-
mães escravas. Por não pressupor a indeniza- nização pelos escravos velhos cuja emancipação
ção, defendiam os opositores, o projeto estaria propunha. Nas críticas em relação à proposta de
violando o direito de propriedade constitucional- libertação dos sexagenários, a defesa do direito
mente firmado8. de propriedade foi, também desta feita, o estribi-
lho mais entoado no recinto parlamentar.
A mobilização em torno do projeto – defendendo
ou rechaçando-o – foi grande não só no recinto Assim, menos de 15 dias após o projeto ter sido
parlamentar como em vários espaços da socie- apresentado e sem sequer ter sido posto em dis-
dade. Associações de proprietários inundavam cussão, a Câmara, por iniciativa de um deputado
a Câmara com representações; artigos favorá- liberal, votou e aprovou uma moção em que fir-
veis e contrários às medidas propostas eram mava sua incompatibilidade com o Ministério. Evi-
publicados na imprensa; a população parecia denciada a perda do apoio parlamentar, Dantas
acompanhar os debates, fosse nas galerias da encaminhou ao Imperador o pedido de dissolução
Câmara, pelos jornais que os publicavam ou da Câmara. A Constituição Imperial estabelecia
em conversas de rua. As sessões da Câmara que os impasses existentes entre a Câmara e o
eram acompanhadas não só pelas pessoas que Ministério seriam resolvidos pelo Imperador que,
acorriam às galerias do recinto parlamentar, mas no exercício do Poder Moderador, optaria entre a
também nas conversas decorrentes da leitura e demissão do Gabinete ou a dissolução da Câma-
audição dos jornais que as reproduziam em suas ra. O Imperador, desta feita, decretou a dissolu-
páginas. ção da Casa Legislativa.

Um importante aspecto relacionado à atuação Realizadas as eleições e constituída a nova legis-


parlamentar e o encaminhamento de propostas latura, a situação do Ministério Dantas e de seu
candentes como eram as relativas à escravidão, projeto permaneceu confusa. O Partido Liberal
portanto, é a extrema publicidade que os debates tinha mais uma vez a maioria na Câmara, mas
no recinto legislativo conferiam à questão e a di- muitos dos opositores do projeto Dantas retorna-
luição que provocavam nos limites entre o Parla- ram aos lugares que a dissolução havia deixado
mento e as ruas. vazios.

Este aspecto foi marcante também em 1884- A força da oposição ao projeto, entretanto, não
1885, quando da passagem pelo Parlamento tardou a manifestar-se. Em 4 de maio de 1885,
4

a Câmara votou e aprovou outra moção de des- Com efeito, o projeto Saraiva, apresentado em
confiança ao Ministério Dantas. O Imperador, 12 de maio de 1885 em substituição ao projeto
tendo que optar entre dissolver uma Câmara Dantas, definia que “os escravos de sessenta
recém-eleita ou demitir um Ministério que talvez anos serão obrigados, a título de indenização
avaliasse impossibilitado de arregimentar apoio pela sua alforria, a prestar serviços aos seus ex-
consistente ao projeto, demitiu Dantas e convidou senhores por espaço de três anos”. Fixada como
o Senador José Antônio Saraiva para compor um forma de indenização, a obrigação de prestação
novo Gabinete. de serviços cessaria para os escravos que atin-
gissem 65 anos, não importando que tivessem
Embora pertencesse às fileiras do Partido Liberal, cumprido um tempo de serviços menor que os
o novo presidente do Conselho de Ministros tinha três anos10.
trânsito fácil entre os conservadores e fora muito
bem recepcionado por boa parte dos deputados De fato, com Saraiva à frente do Ministério, o
que haviam feito oposição ao Ministério Dantas. projeto foi discutido, emendado e aprovado. O
Já na apresentação de seu programa de gover- clima de extrema instabilidade política, entretan-
no, o ministro Saraiva contemplara a questão to, não se dissipara. No dia 14 de agosto, quan-
do “elemento servil”, cuja “solução”, para ele, do foi publicado na forma em que seria remetido
deveria “apressar o mais possível a libertação ao Senado, já se aventava a possibilidade de
de todos os escravos, dando porém tempo à [...] que a Câmara negasse confiança ao Ministério
indústria agrícola para reorganizar o trabalho, Saraiva. Antes que tal idéia se tornasse concre-
e até auxiliando essa reorganização com uma ta, entretanto, o ministro encaminhou ao Impera-
parte do valor do escravo”9. Essas palavras já dor um pedido de demissão. D. Pedro II, depois
pareciam soar como promessa de indenização de aceitar a demissão de Saraiva, compôs um
aos senhores que tivessem escravos libertados Ministério de minoria liderado por um “velho
pela lei. fazendeiro-político pró-escravatura” – o conser-
Acervo do Arquivo Edgard Leuenroth, Campinas, Unicamp

O deputado Andrade Figueira, como foi representado na Revista Illustrada (nº 436, 1886)
Acervo histórico

vador barão de Cotegipe. Sob este Gabinete, e é levar em conta a ambigüidade que caracteri-
enquanto mais uma vez a Câmara era dissolvida za o encaminhamento parlamentar da questão
pelo Imperador, o projeto foi enfim aprovado pelo servil. Mesmo considerando as vantagens de
Senado. canalizar-se os anseios abolicionistas através
da intervenção legislativa, o deputado chamava
Assim, 440 dias após a proposta ser introduzi- a atenção para os perigos de abrirem-se as por-
da na Câmara, depois da dissolução de duas tas do Parlamento para os assuntos da abolição.
legislaturas da Câmara e da demissão de dois Qualquer medida que fosse encaminhada pela
Gabinetes, o Imperador sancionava a lei também via parlamentar devia resolver a questão de
conhecida como Saraiva-Cotegipe ou dos Sexa- forma definitiva para que não se tivesse a neces-
genários. sidade de uma legislação posterior; isto porque,
dizia ele, “a natureza da questão não permite
As conturbações experimentadas quando da tra- tocar nela todos os dias”13. Para os mais ciosos
mitação do projeto pelo Parlamento, entretanto, defensores dos interesses senhoriais, esta era
não se restringiram ao interior do jogo político- uma das primeiras dificuldades a se enfrentar
parlamentar. O próprio processo eleitoral ocorrido pela introdução no Parlamento da discussão de
no período contribuía na publicidade que a ques- um projeto sobre a “questão servil”. A discussão
tão servil tomava, ao adentrar no ambiente par- no Parlamento poderia avivar ainda mais a agi-
lamentar. Em 1884, nas eleições que definiriam tação social, acirrando os ânimos dos abolicio-
os mandatos da legislatura que deveria substituir nistas ou reavivando as “esperanças escravas”.
aquela dissolvida pelo Imperador, a escravidão e O encaminhamento parlamentar do processo de
a abolição tornaram-se temas centrais na cena emancipação tinha, portanto, este aspecto que
política. O deputado Andrade Figueira deixou não se pode desconsiderar.
registrado nas atas da Câmara que na campanha
eleitoral que empreendeu naquela oportunidade, A concretização de um novo instrumento legal a
costumava abordar seus possíveis eleitores en- dar os rumos para a emancipação colocava-a em
feixando o seguinte diálogo: evidência e fazia com que o momento fosse re-
conhecido como prenhe de muitas possibilidades,
“– Tem alguma coisa a perder, amigo? porque o próprio resultado estaria na dependên-
– Tenho (Riso). cia da atuação de múltiplos agentes, com interes-
– Pois então está aqui a chapa (Hilaridade); ses e projetos conflitantes.
se não tem, seja abolicionista (Hilaridade
prolongada).”11 O próprio Nabuco, quando falava aos compa-
nheiros deputados em maio de 1888 sobre a
Foi o próprio Andrade Figueira que, certa feita, proposta de abolição da escravidão que lhes
considerou que levar ao Parlamento a “questão havia sido apresentada, conclamava-os a vo-
servil” significava agitá-la ainda mais, dando-lhe tarem prontamente o projeto, aprovando-o com
o “aval da autoridade”. “Se a história chegar rapidez, porque sua apresentação havia instau-
a ser escrita com imparcialidade sobre estes rado uma “crise nacional” e melhor seria que ela
acontecimentos”, disse ele então, “emitirá o fosse “fechada quase imediatamente, para que
juízo de que foi pachilice acabada tirar uma ninguém [ficasse] em dúvida, nem o escravo,
questão da rua, donde não pode ser tirada; o nem o senhor”14.
que se fez apenas foi agitar as massas com a
cumplicidade e a autoridade do governo; não Leis “impolíticas” e perigosas
houve mais nada”12.
Nas ocasiões em que se debruçaram sobre pro-
Um outro deputado, em 1885, comparava o postas de criação ou alteração de dispositivos
quadro social do País a uma “locomotiva pas- legais reguladores das relações de escravidão,
sando por cima de um abismo”, e considerava muitos parlamentares – especialmente aqueles
que o Parlamento poderia, de fato, representar mais ciosos da defesa dos interesses senhoriais
uma forma bastante conveniente de encaminhar – obstinavam-se em apontar os perigos que po-
aquilo que nas ruas só se “agitava”. Mas, como deriam decorrer desta “intromissão” do Poder
se tratava de passar por abismos, havia que se Público nas relações entre senhores e escravos.
ter muita cautela, pois “uma ligeira imprudên- Um desses problemas, segundo indicavam, era
cia, um simples descuido” poderia pôr a perder o comprometimento do controle social sobre os
a locomotiva, “com todas as vidas e riquezas escravos e os libertos, que acarretaria o agrava-
que conduz”. O que faz este deputado, afinal, mento da indisciplina nos plantéis.
1

Mesmo a libertação de escravos ainda não nasci- [a liberdade] aos que ficam em escravidão, é
dos, sob esta ótica, era avaliada como uma medi- porque seus senhores a isto se opõem”. Os es-
da bastante imprópria. Foi no sentido de apontar cravos estariam, pelo argumento encaminhado
para seus perigos que o Visconde de Itaboraí se por Itaboraí, reconhecendo seus senhores como
manifestou no Senado, avaliando o projeto Rio opositores de uma liberdade que o Estado atri-
Branco. “Não estão os escravos tão embruteci- buía a outros. Havia que se considerar, dizia o
dos”, dizia ele, senador, que os escravos vinham nutrindo espe-
ranças embaladas “pelos escritos, pelos discur-
“que não reconheçam, que o mesmo direi- sos, pela propaganda que se tem espalhado pelo
to que têm os filhos vindouros à liberdade, Império”. O malogro desta esperança, somado à
devem ter seus próprios pais; que o mes- “convicção” de que não se tornavam livres por
mo princípio que determina a liberdade de oposição de seus senhores, seriam elementos
uns, deve determinar a de outros; que se que, inevitavelmente, alterariam “as relações
há razão, se é justo que seus filhos (...) de benevolência entre os senhores e escravos”,
sejam livres de ora em diante, a mesma provocariam a “irritação” dos escravos, a “aver-
razão, os mesmos princípios, a mes- são” aos seus senhores.
ma justiça exigem a liberdade de todos
(...)”15. Também a libertação dos escravos sexagenários
foi avaliada nesta perspectiva e considerada uma
De fato, o estabelecimento da liberdade para medida ainda mais perigosa que a própria liber-
alguns escravos, ainda que vindouros, poderia, tação do ventre, porque ela significava uma inter-
como indicava o Parlamentar, tornar muito mais venção muito mais direta no domínio de senhores
problemática a justificativa da permanência de sobre seus escravos.
outros em estado de escravidão. Mas, segundo
ainda o Visconde de Itaboraí, havia um outro gra- De fato, nem as leis de 1831 ou de 1850, nem
ve problema decorrente do estabelecimento da a libertação do ventre representaram medidas
liberdade para os nascituros. Segundo ele, era que tirassem escravos do domínio de senhores.
preciso considerar-se que os escravos não se As leis antitráfico legislaram sobre proibição de
encontravam também tão embrutecidos a ponto aquisição de escravos “vindouros” da África; a
de não perceberem que, “se o legislador não dá libertação do ventre legislou sobre indivíduos
Acervo Iconographia

Proclamação da libertação dos escravos, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em 13 de Maio de 1888
Acervo histórico

ainda não nascidos. Ambas não libertaram es- abolicionistas ampararam causas de escravos
cravos existentes e, ainda que não deixassem que transformavam seus senhores em réus nos
de perturbar o domínio, não intervinham direta- tribunais de Justiça. Além das ações na Justiça,
mente sobre ele. A libertação dos sexagenários, embasadas pelo direito de comprar a própria li-
essa sim, uma vez viabilizada, interviria direta- berdade, os escravos ainda podiam alegar que
mente na relação de um determinado escravo tinham deixado de ser registrados em matrícula
com seu respectivo senhor, pondo fim a ela. (o que a lei de 1871 obrigava)17.
Libertados pelo Estado, os sexagenários seriam
“arrancados” dos seus senhores. Neste sentido, A partir dessas indicações, já é possível ponde-
podia ser vista com bons olhos a indenização rarmos sobre um outro aspecto relevante para
que previa um período de prestação de serviços análise da condução legislativa do processo de
dos libertos pela lei – tanto os velhos, como os abolição. A atuação do Parlamento, além de
“ingênuos”. avivar os debates sobre a escravidão e seu des-
tino, além de dar extrema publicidade ao tema,
Antes de finalizar este texto, não posso deixar de tornando-o ainda mais candente por torná-lo
abordar ainda um outro aspecto das leis eman- central nas disputas partidárias e eleitorais,
cipacionistas que dificultavam a manutenção do além disso tudo, a entrada da “questão servil”
domínio senhorial e, neste sentido, ajudavam a no Parlamento não pode ser interpretada sem
provocar a derrocada das próprias relações de que se leve em conta um aspecto que é inerente
escravidão. Embora tenham se tornado conhe- à sua existência: os dispositivos legais resultan-
cidas por determinadas disposições – a liberta- tes da atuação do Legislativo foram apropriados
ção do ventre e dos escravos velhos – as leis pelos grupos sociais, cujas expectativas e inte-
chamadas emancipacionistas continham outros resses eram díspares e conflitantes.
dispositivos pouco ressaltados nas abordagens
da história e da memória que foram construídas Assim, devemos já considerar que o signifi-
sobre esses documentos legais. cado das medidas postas pela legislação só
pode ser apreendido a partir da apropriação
Ambas as leis, por paradoxal que possa pare- que delas fizeram sujeitos históricos. Como as
cer, outorgaram direitos aos escravos. Um deles ações de tais sujeitos se orientaram por inter-
vinha firmado pela lei de 1871, que determina- esses múltiplos e diversos, a “aplicação” da lei
va que o escravo que, por meio de doações, compreende um processo de disputas. Assim
subscrições, legados ou mesmo de seu próprio sendo, somente nesse contexto, a definição e
seu trabalho, constituísse um pecúlio; com ele redefinição do aparato jurídico pode ser conve-
poderia se alforriar sem que seu senhor pudesse nientemente compreendida e a chamada con-
opor-se a isso16. dução parlamentar do processo de abolição
pode ser melhor entendida. Longe de estar
Esse direito firmado pela lei consignou aos marcado pelo consenso ou pela neutralização
escravos a possibilidade de acionarem seus de conflitos e disputas – como quis fazer crer
senhores na Justiça quando estes se opunham Joaquim Nabuco em 1888 – a condução da
às pretensões de alforria, amparados na legis- abolição pelo Legislativo foi repleta de incerte-
lação. Especialmente nos últimos anos da dé- zas e de possibilidades que as confluências
cada de 1870 e na de 1880, vários advogados entre o Parlamento e as ruas estabeleciam.

NOTAS
1
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. 5ª edição, Petrópolis, Vozes, 1988 (publicado originalmente
em 1883), p. 40.
2
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Anais do parlamento brasileiro – Câmara dos Deputados (doravan-
te, APB-CD), Sessão de 10 de maio de 1888. Vol. I, 1888, pp. 66-7.
3
SENADO. Anais do parlamento brasileiro – Atas do Senado (doravante, APB-S). Sessão de 13 de
maio de 1888. Vol. I, 1888, p. 38-42. Vários debates das sessões em que foram tratadas questões
referentes à abolição estão compiladas em BRUNO, Fábio Vieira. O Parlamento e a Evolução Na-
cional. Brasília, Senado Federal, 1979.
53

4
APB-CD . Sessão de 18 de julho de 1884. Vol.V, p. 352.
5
Ver: RODRIGUES, Jaime. O infame comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de afri-
canos para o Brasil (1800-1850). Campinas, Editora da Unicamp - Cecult, 2000, especialmente p.
107-119.
6
O Conselho de Estado, dentro do quadro político e administrativo do Império, teve uma função
consultiva e não decisória. Cabia à instituição emitir pareceres sobre consultas efetuadas pelo Im-
perador no exercício dos poderes a ele outorgados (moderador e executivo). Sobre o Conselho, ver:
MACHADO, Fernando. O Conselho de Estado e sua história no Brasil. São Paulo, Escolas Profissio-
nais Salesianas, 1912 e RODRIGUES, José Honório. Introdução histórica. In: SENADO FEDERAL.
Atas do Conselho de Estado (doravante ACE). Brasília, Centro Gráfico do Senado Federal, 1973-
1978, vol.1, p. 22.
7
Ver, entre outras, Atas de 2 e 9 de abril de 1867. ACE, v. 6, p. 188-244. Também: NABUCO,
Joaquim. Nabuco de Araújo, Um estadista do Império. Sua vida, suas opiniões, sua época Tomo
3º. Rio de Janeiro, Garnier, s.d., (1866-1878). Outros aspectos referentes aos debates sobre as
propostas de Pimenta Bueno foram por mim abordadas em: MENDONÇA, Joseli M. Nunes. No
processo de abolição, embates em torno da liberdade. Revista Impulso, vol. 9 , nº 18, 1995, p.
53-67.
8
Os argumentos contrários à libertação do ventre sem indenização foram feitos pelo deputado Bar-
ros Cobra e citados por Rui Barbosa. Emancipação dos Escravos – Parecer Formulado pelo deputa-
do Ruy Barbosa em nome das Comissões Reunidas de Orçamento e Justiça Civil. Obras Completas
de Ruy Barbosa. Vol. XI, Tomo I. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1945, p. 94.
9
APB-CD – Histórico de 1885, vol. III, p. 7.
10
Projeto nº 1 de 1885 – Extinção Gradual do Elemento Servil. APB-CD. Apêndice, 1885, vol. IV, p.
80 e segs.
11
APB-CD. Sessão de 31 de julho de 1885. Vol. III, p. 259.
12
APB-CD. Sessão de 31 de julho de 1885. Vol. III, p. 256.
13
Deputado Almeida Oliveira em APB-CD.- Sessão de 29 de maio de 1885. Vol. I, p. 167.
14
APB-CD. Sessão de 8 de maio de 1888. Vol. I, 1888, p. 43. Também Fábio Vieira Bruno. O Parla-
mento e evolução nacional, op. cit., p. 367.
15
Apud Deputado Aristides Spínola em APB-CD. Sessão de 13 de julho de 1884. Vol. V, p. 185.
16
Lei 2040 de 28 de setembro de 1871. COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL – ATOS DO
PODER LEGISLATIVO. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1871, p. 147 e seguintes. As possibili-
dades de escravos obterem rendas a partir de seu próprio trabalho, não tendo sido irrestritas, não
eram tampouco inexistentes. Fiz uma discussão acerca da questão em MENDONÇA, Joseli Nunes.
Cenas da Abolição, escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo, Editora Fundação
Perseu Abramo, 2001, especialmente p. 39-42 e 55-59.
17
Além dos estudos que desenvolvi para elaboração de Cenas da abolição, já mencionado, e Entre
a mão e os anéis. A lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas, Editora
da Unicamp – Cecult - Fapesp, 1999, vários historiadores se dedicaram a estudar as disputas que
escravos e senhores travaram na arena judicial. Entre outros, o precursor: CHALHOUB, Sidney. Vi-
sões de liberdade: As últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Companhia das Letras,
1990. Também: GRINBERG, Keila. Liberata: A Lei da Ambigüidade. As ações de liberdade da Corte
de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994 e XAVIER,
Regina Célia. A Conquista da Liberdade: Libertos em Campinas na segunda metade do século XIX.
Campinas, CMU - Editora da Unicamp, 1996.12 Cf. Anais da Assembléia Legislativa. Vol. I. 7ª sessão
ordinária, 18/07/1947, p.227.
Acervo histórico

Papéis Avulsos
A insurreição dos escravos.
no Vale do Paraíba
Marcos Couto Gonçalves*

A escravidão brasileira é estudada há muito abordam a visão do dominador – é necessário


tempo por diversos pesquisadores e permanece examinar as mudanças engendradas nas formas
um tema atual. Hoje possuímos muitas informa- de controle e dominação.
ções que nos ajudam a entender como essa ins-
tituição legitimava-se, como os escravos reagiam Como forma de resistência dos negros há registros
à sua condição e como os senhores e o Estado de quilombos desde 1559 e em número crescente
exerciam a punição. até a Abolição, constituídos como redutos de liber-
dade e resistência em selvas distantes ou regiões
No entanto, os escravos que foram sujeitos dessa pouco populosas. Os escravos abandonavam seus
história não deixaram registros. As fontes de que senhores e os trabalhos forçados em troca de uma
se utilizam os historiadores são, basicamente, do- vida precária e difícil, cuja fonte de sobrevivência
cumentos oficiais da época, correspondências en- muitas vezes era a pilhagem e o roubo.
tre autoridades, relatos de viajantes, gravuras. Os
escravos, às vezes, aparecem nos depoimentos Os quilombos cresciam, importantes lideranças
tomados por autoridades em inquéritos policiais surgiam e os quilombolas ameaçavam a ordem
de rebeliões. Mas não sabemos quão fiéis eram e a tranqüilidade das cidades. Progressivamente,
as transcrições de suas falas. Casos como o de o problema de ordem privada – escravos fugidos
Luiz Gama1, que passou da escravidão ao mundo de propriedades particulares – tornava-se de
dos que a história registra, são raríssimos. ordem pública, com constantes ataques e res-
gates de escravos nas fazendas. Foram criadas
A leitura de documentos da época, de tendência legislações e penalidades públicas aos escravos
pró-escravatura, deixa perceptível que as vítimas e empregado o dinheiro público nas capturas. A
da escravidão não eram passivas, tendo resistido administração pública agia na mesma dimensão
fortemente a seus opressores e que, de toda ma- do senhor de escravos, aplicando castigos e ado-
neira possível, buscavam suplantar a condição tando mecanismos de controle de fugas.
do cativeiro com a fuga individual ou coletiva.
O domínio violento da escravidão praticada no É necessário compreender que o trabalho escra-
Brasil não permitiu às suas vítimas organização e vo era o elemento vital da economia brasileira,
estratégia, o que historicamente dá uma grande não somente na lavoura, no qual foi aplicado
relevância ao papel das ações externas (exte- amplamente, mas também na economia de sub-
riores ao sujeito), como a prática abolicionista sistência e em todo tipo de ofício.
elitista aliada ao ideário liberal do século XVIII
e a necessidade de contratar mais mão-de-obra. Pretende-se com esse trabalho, fazer uma re-
Portanto, para analisar a ação do sujeito histórico flexão sobre esta mácula indelével na história
através de relatos exteriores e não isentos – que brasileira: os três séculos e meio de escravidão,

*
Advogado graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, bacharel em Letras Clássicas e
Vernáculos pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador da
Divisão de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (ma.couto@uol.com.br).


utilizando como fonte principal documentos en- tanto que estava prevista no Código Criminal do
contrados no Acervo Histórico da Assembléia Império, sendo severamente punida, como vere-
Legislativa do Estado de São Paulo. mos adiante.

Os documentos, em várias páginas, consistem Grande parte das rebeliões de escravos concen-
na troca de correspondência entre autoridades: trou-se no período de 1807 a 1830, período de
o Primeiro-Secretário da Assembléia Legislativa instabilidade política advinda do rompimento dos
Provincial, a Presidência da Província e o dele- laços coloniais. As freqüentes agitações políticas,
gado de polícia de Lorena. Também figuram nos embora elitistas – e mesmo as mais radicais – não
documentos os vereadores da Câmara Municipal tinham caráter antiescravagista; mas era comum,
de Silveiras e o Juiz de Direito de Guaratinguetá. nessas ocasiões, romperem rebeliões populares
De sua leitura depreende-se que as autoridades nas quais estavam presentes negros e mulatos
preocupavam-se com uma suposta insurreição libertos e, não raro, os próprios escravos. O co-
dos escravos, que deveria ocorrer no dia de São nhecido levante dos malês, uma importante re-
João ou de São Pedro daquele ano de 1848. A belião de escravos na Bahia, inscreveu-se neste
notícia mobilizou o delegado e o Juiz Municipal de contexto, em 1835.
Lorena, o Vice-Presidente e o Presidente da Pro-
víncia de São Paulo e, finalmente, a Assembléia Alguns historiadores também mencionam a forte
Legislativa Provincial, que se manifestou através presença de escravos africanos nas rebeliões,
de seu Primeiro Secretário. Como este requisitou fazendo distinções de camadas entre os homens
informações da autoridade local e os autos do negros. Na linguagem da época, o termo “preto”
processo instaurado em Lorena, o Acervo Histó- era utilizado sempre para os africanos; os negros
rico guarda uma parte substancial das diligências nascidos no Brasil eram denominados “crioulos”,
e providências das autoridades. A transcrição fiel existindo ainda os “mulatos”, filhos de homens
de todos os documentos pode ser lida no anexo brancos e os “cabras”, que estavam em uma po-
ao final do texto. sição intermediária entre o crioulo e o mulato. No
período de 1846 a 1849, um grande contingente de
Cartas “reservadas” do Vice-Presidente da Provín- negros africanos chegou ao País através do tráfico
cia, Bernardo José Pinto Gavião Peixoto, revelam ilegal. Esses escravos foram trazidos em grande
que Sua Majestade Imperial tomara conhecimen- parte da região da baía de Benin, com forte predo-
to do caso e exigira “detalhados esclarecimentos” mínio dos povos conhecidos como iorubas (ou na-
a respeito, particularmente, sobre a suposta gôs). A chegada desses novos africanos escraviza-
participação estrangeira no planejamento da in- dos correspondeu ao período em que aumentou a
surreição; expressava, também, a preocupação revolta dos escravos. Muitos historiadores afirmam
com o envolvimento de uma suposta sociedade que as rebeliões eram sempre mais freqüentes
secreta, ora referida como Sociedade Gregoriana, onde predominavam escravos africanos.
ora como Sociedade Sansimoniana2.
Os escravos nascidos no Brasil, os crioulos, des-
Neste momento, concentrar-me-ei na suposta in- cendiam de outros povos africanos: os bantos (de
surreição e no seu abortamento, para depois lan-
çar um olhar mais abrangente sobre a escravidão
DAH-ALESP

no Brasil Imperial, o comportamento dos legislado-


res quanto ao que era chamado eufemisticamente
de “elemento servil”, as formas de resistência dos
negros e a importância dessa resistência, que foi
fator decisivo quando se deu a confluência de ou-
tros fatores externos (pressões diplomáticas) e in-
ternos (escassez da mão-de-obra e o movimento
conhecido como abolicionismo) para derrubar de
vez a resistência da aristocracia escravista.

A RESISTÊNCIA DOS ESCRAVOS

Havia várias formas de resistência dos escravos:


o suicídio, o assassinato do senhor, o envenena-
mento, a fuga, a insurreição3. Esta última preo- Retrato de Luiz Gama feito por Ângelo Agostini na
cupava muito as autoridades e os proprietários, Revista Illustrada (Nº 313, 26/08/1882)
Acervo histórico

Angola e do Congo). Tendo nascido no Brasil, já Nas décadas de 1870 e 1880, alguns advogados
como escravos, os crioulos não tinham a experiên- abolicionistas, nomeadamente Luiz Gama e An-
cia anterior de homens livres, como os africanos re- tônio Joaquim Macedo Soares, libertaram muitos
cém-chegados. A sua resistência à escravidão era, escravos com base nesta velha lei, “supostamen-
portanto, diferente. Porém, os bantos deram origem te revogada pelo desuso”.
aos quilombos, tradicional forma de resistência es-
crava, desde os primórdios da escravidão. Um fato notável, relatado por Jacob Gorender4,
ilustra bem o desrespeito das próprias autoridades
As diferenças de camadas entre os escravos, bem à legislação e às decisões judiciais favoráveis à
como as diferenças étnicas foram utilizadas como emancipação: em 1854, uma correspondência re-
elementos desagregadores pelos proprietários e servada enviada pelo Ministro-Chefe do Gabinete
úteis no controle das rebeliões. Esse conflito ét- Imperial, Nabuco de Araújo, ao então Presidente
nico esteve presente na revolta dos malês, onde da Província de São Paulo, José Antônio Saraiva,
70% dos aprisionados eram iorubas. Os rebeldes recomendava a ele que descumprisse uma deter-
africanos hostilizaram tanto os crioulos como os minação judicial de emancipar um escravo pela
mulatos, considerados pertencentes ao mundo aplicação da lei de 1831, tendo em vista a desor-
dos brancos. No relato de denunciantes, negros ganização da produção que tais decisões trariam
libertos, se a insurreição tivesse sucesso e os e evocando o “direito do senhor”.
malês tomassem o poder, os brancos e os criou-
los seriam mortos e os mulatos seriam poupados, Assim, essa lei logo acabou sabotada por uma
para, posteriormente, serem escravizados. série de subterfúgios com o objetivo de fazer dela
letra morta ou, como se passou a dizer desde en-
As leis imperiais tão, uma lei “para inglês ver”.

O tratado de 13 de março de 1827, celebrado Os juristas abolicionistas freqüentemente bran-


entre Brasil e Inglaterra, dava um prazo de três diam a lei de 1831 para conseguir a alforria de
anos para que fosse proibido o tráfico de escra- escravos na Justiça. Se a lei fosse levada a
vos, considerando-se pirataria a prática desse sério, não só o escravo deveria ser libertado,
comércio. Em cumprimento ao tratado, sobreveio como também o senhor deveria ser processado
a lei de 7 de novembro de 1831, declarando livres criminalmente pelo delito do artigo 179: reduzir à
todos os escravos que, vindos de fora, entrarem condição de escravo pessoa livre.
em território do Brasil. No entanto, alguns anos
depois da sua decretação, já não mais se exigia Contradizendo o próprio espírito do tratado de
a repatriação dos escravos importados. Ficavam 1827, o Código Criminal de 1830 continha um
eles entregues a alguns fazendeiros. Esse afrou- artigo específico para os réus escravos:
xamento correspondia à predominância da elite
cafeeira do Vale na política. “Art. 60 - Se o réu for escravo, e incorrer
em pena que não seja a capital ou de galés,
Os africanos que entraram no País a partir de 7 será condenado na de açoites e, depois de
de novembro 1831 eram legalmente emancipa- os sofrer, será entregue ao seu senhor que
dos, segundo o artigo primeiro da lei antitráfico se obrigará a trazê-lo com ferro pelo tempo
dessa data. Porém, o governo brasileiro jamais e maneira que o juiz designar.
tomou quaisquer medidas para devolver a liber- O número de açoites será fixado na sen-
dade aos africanos escravizados ilegalmente. tença e o escravo não poderá levar por dia
Até 1872, não havia necessidade de registrar mais de 50.”
os escravos e os proprietários não tinham reci-
bos para os escravos importados ilegalmente. O jurista Thomaz Alves Junior5 a respeito desse
O Imperador e a maioria da imprensa do Brasil artigo afirmou o seguinte:
ignoraram o destino dessas inúmeras pessoas.
O Governo, tão negligente com relação à lega- “As circunstâncias especiais do País leva-
lidade das posses, permitia que o contrabando ram o legislador a consignar no seu Código
de negros fosse coisa desenvolvida e estável. Penal a pena de açoites, que jamais se
Porém, há referências oficiais das entradas dos devera escrever em um Código de nação
africanos, que eram conhecidas e controladas culta que tem foros de nação civilizada.
pelos impostos. Em 1846 entraram no Brasil Não seja, porém, por isso amaldiçoado o
50.324 escravos; em 1847, 56.172; em 1848, 60 nosso Código desde que entre outros po-
mil; em 1849, 54 mil e em 1850, 23 mil. vos mais antigos e mais civilizados do que


nós o castigo corporal até é consignado e iníquas, a que mais de uma vez tem su-
como pena nos seus códigos penais. cumbido o pobre infeliz escravo!
Se ali, independente da necessidade nas- Em tal caso é ir além da pena; quando o
cida da escravatura, a pena do castigo cor- legislador adotou o castigo corporal não
poral é admitida, por que o não seria entre quis decerto que sob a pena desse casti-
nós, onde a existência fatal da escravatura go exalasse o infeliz escravo o seu último
justifica essa necessidade palpitante? suspiro.
Estudando as circunstâncias do infeliz es- A condição de sofrer só cinqüenta açoites
cravo, conclui-se facilmente que nenhuma por dia não é bastante para contrabalançar
das penas das estabelecidas no Código o arbítrio, e evitar um triste resultado, talvez
pode satisfazer a correção de seus delitos. seja muitas vezes a causa de maus resulta-
O Código admite somente que das penas dos, e até da morte.
gerais se lhes possa aplicar a de morte e a Entendemos que se deveria limitar o casti-
de galés, e que no caso de outra qualquer go às forças do indivíduo que o tem de so-
pena se lhes aplique a de açoites. frer, de maneira que se não fosse além do
Admitida como está entre nós a pena de efeito da pena, e assim corrigia-se o arbítrio
morte, não havia razão para ser dela isento do Código.
o escravo, e ainda foi ampliada pela lei ex- É ainda notável que os artigos 406 e seguin-
cepcional de 10 de julho de 1835. tes do Regulamento nº 120 de 31 de janeiro
Se as nossas galés estivessem bem or- de 1842, que tratam da execução das pe-
ganizadas, se elas representassem um nas, nada digam sobre a pena de açoites,
trabalho rude e áspero, decerto que se- de maneira que ainda maior é o arbítrio.
ria essa pena própria para aplicar-se ao Este artigo tem dado lugar a várias ques-
escravo; mas a pena de galés como está tões, que provocaram decisões do poder
entre nós acreditamos que oferece um es- competente.
tado mais suave que o próprio cativeiro: e Em primeiro lugar, diremos que já a Consti-
então, em vez de ser uma pena que intimi- tuição do Império havia abolido os açoites;
de o escravo, talvez não erremos dizendo mas esse artigo constitucional não obsta a
que tenha sido mais de uma vez incentivo, disposição do artigo 60 do Código, porque
que no desespero do cativeiro leve o es- ele não se aplica a escravos.”
cravo a cometer o crime.
A condição, pois, do escravo legitima a pena O mesmo jurista, 21 anos depois, na segunda edi-
de açoites de que fala o presente artigo. ção de suas Anotações ao Código Criminal do Im-
Se a existência da escravatura desculpa o pério do Brasil, mudara radicalmente de opinião,
nosso legislador admitir a pena de açoites, já que “a evolução de idéias fora tão progressiva
não podemos deixar de censurá-lo por ter que resistir à sua influência seria crime”. E pon-
deixado a aplicação ao arbítrio do juiz, de derava que deveria ser abolida não só a pena de
maneira que dá lugar a sentenças bárbaras açoites, mas a própria escravidão.
Coleção Dainis Karepovs

Jean-Baptiste Debret retratou negros no “tronco” (1834)


Acervo histórico

A seção do Código Criminal do Império, tratando providenciar enfim para que a revolução,
do delito de insurreição, determinava: que não pode ser abafada, seja dirigida com
sabedoria e discrição, triunfe um dia cheio
“Art. 113 – Julgar-se-há cometido este crime de glória, sem abalo do bem-estar do país e
reunindo-se vinte ou mais escravos para ha- sem ruína da fortuna pública e particular.
verem a liberdade por meio da força. A questão é urgente, acreditamos que no
Penas: aos cabeças, de morte no grau má- próximo século a escravidão será para to-
ximo; de galés perpétuas no médio, e por dos os povos cristãos um fato histórico e de
quinze anos no mínimo; aos mais açoites. tradição.
Art. 114 – Se os cabeças da insurreição fo- E se assim é, se a escravidão é um fato con-
rem pessoas livres incorrerão nas mesmas denado pela razão, tolerado apenas por cau-
penas impostas no artigo antecedente aos sa da ordem social e política, para que con-
cabeças quando são escravos. sagrá-la em um Código de homens livres?
Art. 115 – Ajudar, excitar ou aconselhar Seja ela consagrada em lei especial, porque
escravos a insurgirem-se fornecendo-lhes no dia da completa abolição essa lei sem
armas, munições ou outros meios para o mais aplicação será queimada; pelo contrá-
mesmo fim. rio ficará sempre consagrada sem proveito,
Penas: de prisão com trabalho por vinte sem utilidade e sem aplicação, e somente
anos no grau máximo, por doze no médio, como despertador da lembrança triste desse
por oito no mínimo.” passado em que foram obrigados a consen-
ti-la e a sustentá-la no interesse e circuns-
O mesmo jurista comentou: tâncias peculiares de nossa sociedade.
Aceitando a doutrina como se acha escrita
“O nosso legislador em frente da escravidão tratemos de explicá-la, e de entendê-la em
admitida e tolerada no país não quis deixar sua aplicação prática.
de consignar nas páginas do Código o crime O crime de insurreição é até certo ponto
de insurreição, que, sem dúvida alguma, en- uma sedição, quando exige o número de
tra na classe dos crimes contra a segurança vinte pessoas para o ajuntamento, distin-
interna do Império e pública tranqüilidade. guindo-se que na sedição as vinte pessoas
Se porém não podemos deixar de reco- são livres, e na insurreição são escravas.
nhecer a boa previdência do legislador, Nota-se porém uma sensível diferença. Na
quiséramos antes que ele não fizesse sedição as vinte pessoas hão de estar ar-
entrar nas disposições do Código seme- madas, ou pelo menos em parte; na insur-
lhante disposição, que com melhor razão reição não se faz questão desta cláusula,
deveria ser prevista em uma lei especial. estejam ou não armadas, em todo ou em
A escravidão é um fato triste e excepcional, parte, há sempre o crime de insurreição.
que a nação encontrou em seu berço, foi Se esta latitude do art. 113 importa mais ri-
uma herança que se viu obrigada a aceitar, gor, esse rigor é limitado pelo fim expresso
e carregar com os seus ônus. A escravidão que a lei dá à reunião, porque é preciso que
forma uma população excepcional com o ajuntamento dos vinte escravos tenha por
direitos e deveres diversos dos demais in- fim haver a liberdade por meio da força, logo,
divíduos ou pessoas que formam a nação, se não houver esse fim, não há insurreição.
portanto nem esses direitos nem esses de- Não deverá porém o ajuntamento sem esse
veres podem ser definidos e classificados fim merecer a atenção do legislador e ser
em um Código comum. punido? Qual o crime, qual a pena?
Seus crimes revestem-se de caráter e gravi- Eis o que se não diz, tudo fica entregue ao
dade especiais, pelo que se faz preciso que arbítrio da polícia, à vontade despótica do
uma lei especial os defina, os puna, e lhes senhor! Tais são os reflexos das disposi-
dê a forma do processo e do julgamento. ções do Direito Romano.
A voz que condenou que condenou a escra- Há demais alguma injustiça e desigualda-
vidão soou no dia em que nasceu o Cristia- de, pune-se o ajuntamento de escravos
nismo, os anos foram-se passando, e ela foi que tramam a conquista da liberdade pela
sendo abolida aqui e ali, pouco resta a fazer força, e não se pune a trama dos escravos
nessa cruzada da civilização. A nação brasi- que pretenderem saciar suas paixões más,
leira bem o sabe e compreende, cumpre que seus ódios, seus rancores, suas vinganças
quanto antes os poderes do Estado tratem de sangue contra seus senhores e adminis-
de formar princípios, estabelecer regras, tradores?


Na falta dessa definição ou clareza, tudo se média, que era conhecida como de galés – que su-
diz insurreição, eis como praticamente se jeitava o escravo a realizar trabalhos forçados com
resolve; porém é certo que a filosofia ou es- calceta no pé e corrente de ferro – e a de açoites.
pírito da lei protesta contra essa interpreta- Conforme determinação do artigo 113 do Código
ção, que só o rigor da necessidade justifica. Criminal, a pena de açoites constituía por excelên-
Tais são os frutos da escravidão!” cia a punição dos escravos rebeldes. Não havia li-
mites para o número de açoites, que ficava a critério
Como os delitos cometidos por escravos contra a do juiz. Muitas vezes o escravo escapava da pena
vida de seus senhores estivessem em ascensão de morte apenas para morrer no açoitamento exor-
(durante a insurreição de Carrancas, ocorrida na bitante prescrito pelo juiz. Observações indicavam
Vila de Ouro Preto em 1833, vários senhores fo- que 200 açoites era o limite humanamente tolerável
ram assassinados por seus escravos), a Assem- (apenas 50 açoites por dia, durante quatro dias).
bléia Legislativa Geral aprovou uma lei excepcio-
nal para os escravos: a lei de 10 de junho de 1835. Na documentação encontrada no Acervo Históri-
Conforme o texto aprovado, os escravos que fos- co há uma interessante indicação da Assembléia
sem réus de homicídio qualificado contra o senhor Legislativa Provincial à Assembléia Geral: em
e sua família ou o feitor e sua família seriam jul- 1853, os deputados paulistas pediram que fosse
gados por um júri convocado extraordinariamente extinta a pena de galés para os escravos porque,
para esse fim. Se a sentença fosse pela pena de afirmavam, ela não era eficaz quando o conde-
morte, não cabia qualquer recurso ao réu, a não nado era um escravo: muitos deles estariam co-
ser o pedido de graça a Sua Majestade Imperial. metendo “delitos” para sofrerem esta penalidade,
Mas se a sentença fosse pela absolvição, o Juiz pois seria mais branda do que os trabalhos força-
de Direito tinha que apelar de ofício. Sob essa lei, dos da sua condição de escravo nas fazendas. “A
uma legião de escravos foi condenada à morte e penalidade de trabalhos forçados não existe para
executada de forma sumária. o escravo, que já está submetido a condições de
trabalho mais gravosas do que a pena de galés
Os escravos podiam sofrer esses três tipos de pena: estabelecida em lei, a qual somente faz sentido
a máxima, que era de morte por enforcamento, a para o homem livre”.
Coleção Dainis Karepovs

Desenho de Jean-Baptiste Debret retratando a punição ao escravo fugido (1834)


Acervo histórico
Coleção Dainis Karepovs

Imagem de Jean-Baptiste Debret mostrando castigos aplicados aos escravos (1834)

Apesar da representação dos deputados paulistas, mentos: a terra, as construções e os escravos.


a pena de galés não foi abolida para o réu escravo. Tudo levava a que cada vez mais se recorresse
Já a pena de açoites, a mais aviltante de todas, aos mercados africanos. A procura de negros
foi revogada apenas dois anos antes da abolição, aumentou. Enquanto nos tratados políticos o
juntamente com a lei excepcional de 1835, ficando Brasil se comprometia a fazer cessar o tráfico,
o escravo submetido à legislação comum. o interesse da lavoura exigia cada vez mais
mão-de-obra escrava abundante e o tráfico se
O CAFÉ E O VALE DO PARAÍBA intensificava.

De 1830 a 1880, aproximadamente, toda a energia A lavoura cafeeira no século XIX provocou uma
econômica voltou-se para o cultivo do café, que inflexão na fixação e no ritmo de crescimento da
era vendido, sem concorrência, ao mercado euro- população escrava na Província de São Paulo.
peu em expansão. Tornou-se, por isso, o estabili- Segundo Emília Viotti da Costa, os fazendeiros de
zador da economia do Império, a ponto de se dizer, café preferiam introduzir os africanos (“boçais”),
na época, que “O Brasil é o Vale”, devido à fixação que o tráfico despejava ano após ano nos merca-
do café no Vale do Paraíba. Porém, a economia dos consumidores, do que os escravos nascidos
cafeeira não alterou os quadros sociais herdados no Brasil (“ladinos”), tidos como propensos a in-
do passado colonial. Ao contrário, fortaleceu a es- surreições e atos de rebeldia.
cravidão, a grande propriedade, a monocultura e a
produção voltada para o mercado externo. O súbito crescimento da população escrava na
região causava grande preocupação à população
O café trouxe o escravo para a região sudeste, livre. A grande preocupação, porém, era com as
onde até então o negro existia em pequeno núme- revoltas coletivas e volta e meia corriam boatos
ro. Daí o também conhecido aforismo dessa épo- de rebeliões, não confirmadas, como a que es-
ca, “o café é o negro”, a que se refere Robert Con- touraria em Areias, Bananal e vilas fluminenses.
rad6. Só entre 1830 e 1850 as fazendas de café, Em 1848, os boatos foram se avolumando e as
somadas aos engenhos de açúcar, fizeram entrar autoridades abriram a devassa.
no Brasil, pelo tráfico ilegal, 700 mil africanos.
Referindo-se aos fazendeiros da região, a histo-
O cultivo do café se consolidava definitivamente riadora Emília Viotti da Costa diz que “o temor das
por volta de 1830, nas regiões do Vale do Pa- insurreições apavorou-os durante todo o período
raíba. A cultura do café exigia grandes investi- da escravidão”. E prossegue:
61

“Ao menor boato, medidas severas eram lavoura cafeeira, assim como a preocupação das
postas em prática com o objetivo de repri- autoridades que, frente aos constantes incidentes
mir a subversão da ordem. Viviam a tomar de reação dos escravos, temiam ser vítimas de
precauções que impedissem revoltas e uma rebelião como a ocorrida no Haiti, que culmi-
agressões. Multiplicavam as proibições: os nou com um massacre.
escravos só podiam sair da fazenda com
permissão do senhor ou do feitor; à noite, Na Vila de Lorena, a preocupação positivou-se
eram trancados nas senzalas, cuja disposi- nas Posturas aprovadas em 1832, que impunham
ção arquitetônica já testemunhava o intuito multa de 10$000 (dez mil réis) para quem consen-
de promover fugas ou ajuntamentos de tisse em sua casa ajuntamento de escravos para
cativos nas horas tardas da noite. Havia se- divertimentos e jogos; os escravos eram punidos
nhores que impediam seus escravos de sair com 50 açoites, e os donos que negavam consen-
aos domingos, dando-lhes outro dia de folga timento a essa pena sofriam multa de 10$000.
na semana, de modo a impedir que se reu-
nissem ao pessoal das fazendas próximas. Em 1835 e 1839 há registros de assassinatos de
[...] Aos escravos não era permitida posse feitores e senhores, cujos escravos foram punidos
de armas e procurava-se cercear de todas com o enforcamento. A forca era armada no Lar-
as maneiras sua aquisição. A comunicação go do Cemitério ou no Largo Imperial para cada
entre eles não era fácil, em vista dos empe- execução.
cilhos antepostos à sua circulação. Tornava-
se, assim, impossível a trama de uma revol- Também eram comuns as fugas e capturas dos
ta de largas proporções. Por outro lado não fugitivos. Em 1835, uma fuga de 21 escravos no
faltavam denúncias capazes de frustrar os porto de Mambucaba, terminou com a captura,
projetos nascentes. [...] Em sessão de 09/ em Lorena, de 6 africanos novos e 6 “ladinos”,
05/1854, a Assembléia Legislativa de São conforme ofício de 23/10/1835. Os fugitivos ata-
Paulo resolvia que o Governo da Província cavam e roubavam para matar a fome. Ofício da-
mandaria pagar ao escravo que denunciara tado de 16/08/1843 registra a ocorrência no bairro
o plano de insurreição em Taubaté a quantia do Vinagre, quando uma mulher foi atacada por
de dois contos, o que equivalia, nessa épo- um fugitivo que já havia matado seu dono.
ca, ao preço de sua alforria.[...] Por isso os
movimentos de grandes proporções, tão te- Em 1842 aprovaram-se na Assembléia Legislati-
midos nas áreas em que a população escra- va Provincial artigos de posturas de Lorena. Entre
va predominava largamente sobre os livres, seus dispositivos estavam os que permitiam aos
foram raros nas zonas cafeeiras.” 7 escravos “os reinados que costumam fazer em
certos dias do ano, contanto que se dissolva o
Em muitos casos, os boatos de insurreições eram ajuntamento antes da noite”. Dispunham tam-
provocados em épocas de eleição, pois a inquie- bém que os subdelegados de polícia poderiam
tação da população era permanente e, por meio “suspender e desfazer tais ajuntamentos”, se sus-
do incremento da insegurança pública, poder-se- peitassem de “algum resultado mau”. Previa-se
ia conseguir que o Governo da Província enviasse também a necessidade de um “bilhete” do senhor
tropas, quando não a Guarda Nacional. para que o escravo pudesse dirigir-se para fora do
distrito em que residia, sob pena de prisão.
As formas de controle da escravidão eram exer-
cidas com rigor nas zonas cafeeiras. Portanto, as Em 1846 novos artigos de posturas aprovados
formas de resistência mais freqüentes entre os na Assembléia previam que o escravo preso na
escravos eram os crimes, as fugas e os pequenos rua após o toque de recolher seria punido com
quilombos e, raramente, aconteciam levantes cole- 50 açoites.
tivos, o que talvez explique a violência da punição
aplicada às lideranças da insurreição em Lorena. Disposições como essas foram comuns a vários
municípios da Província de São Paulo, conser-
Lorena vando-se várias delas entre a documentação da
Divisão de Acervo Histórico.
No município de Lorena há registros de vários
incidentes com a escravatura. Em 1833 foram A insurreição de 1848
registrados 1.187 escravos e 2.442 habitantes
livres e 600 fogos (unidades residenciais), sendo No início de 1848, as autoridades abriram uma in-
que este número aumentou com a expansão da vestigação sobre o suposto plano de insurreição
Acervo histórico
DAH-ALESP

A pena de 1.400 açoites

de escravos, que deveria eclodir no dia de São certamente devido a mais desmedida ambição,
João ou de São Pedro e irradiaria de Lorena para egoísmo ou inveja e ciúme, que excita o Brasil a
Silveiras, Parati e Baependi, em Minas Gerais. O algumas nações”.
caso chegou até o Presidente da Província, avisa-
do pelo chefe de polícia do Rio de Janeiro, sendo Os escravos interrogados sofriam açoites públi-
que o Vice-Presidente da Província, Gavião Pei- cos, mesmo quando inocentes e entregues aos
xoto, avocou a centralização das informações e seus senhores. O desfecho do processo se deu
providências. Os cabeças seriam Vicente, crioulo, com a condenação de Francisco e Vicente à pena
escravo de Faustino Xavier de Morais; Francisco, de 1.400 açoites – pena que exorbitava a todas
escravo de D. Maria Pereira da Guia, e o mais as condenações conhecidas – além de usarem
importante, Agostinho, crioulo, forro do finado ganchos de ferro no pescoço por 3 anos, e a im-
Antônio Gaspar Martins Varanda, que sabia ler e pronúncia do estrangeiro Jacques Troller.
escrever e que acabou fugindo, após descoberto
o movimento. A Vila teve rondas e patrulhas nas ruas enquanto
durou o processo, e também se aproveitou para
Descobriu-se que as idéias da Rebelião eram in- pedir o destacamento de 30 praças da Guarda
sufladas pelo francês Jacques Troller, republicano Nacional. O apavorado governo provincial aten-
e abolicionista, amigo do Sr. Varanda, que passa- deu prontamente, enviando também armamentos
va semanas em sua residência onde comumente e munição.
lia jornais e livros estrangeiros e comentara, na
presença de Agostinho, sobre a insurreição do CONCLUSÃO
Haiti. Afirmava, também, que os escravos recebe-
riam ajuda dos ingleses. Diante da apresentação e contextualização dos
documentos e abordagens, pretendemos também
Jacques Troller declarou em depoimento que não contribuir com os esforços que procuram demons-
tinha envolvimento com o plano dos escravos e trar as contradições e os conflitos existentes no
o motivo de ser lembrado como autor do plano escravismo a partir do escravo e suas relações,
ou apoiador da insurreição pelo réu Agostinho e visto que ele é o elemento vital da estrutura e da
outros seria o fato de sempre ter argumentado riqueza colonial, sendo também o pressuposto
calorosamente sobre a necessidade da abolição básico do acúmulo de riquezas que impulsionou o
da escravatura no Brasil. salto para o sistema capitalista. De modo algum,
nega-se a importância do aspecto econômico e
O juiz municipal argumentava saber de iguais social e as pressões externas para a abolição da
preparativos ou tendências de insurreição em escravidão, mas é de extrema relevância consi-
alguns lugares da Província de Minas Gerais e derar o conflito interno da produção escravista,
que os escravos presos confessaram sobre o demonstrando que os escravos resistiam e, de
dia de São João, declarava, ainda, que vira uma toda maneira possível, iam em busca da liberda-
carta de pessoa de confiança que asseverava te- de, decorrendo daí a violência e perversidade da
rem sido encontrados os estatutos sobre o plano exploração escravista no Brasil.
da rebelião, o que o levava à convicção de que
tudo havia sido premeditado “ramificado em al- A repressão da revolta de Lorena não foi caso iso-
gumas províncias e quiçá pelo Brasil todo, plano lado, nem no Vale do Paraíba, nem no Brasil. E a
63

violência privada dos senhores, amedrontados ou Seu nome era Luiz Gonzaga Pinto da Gama, que
simplesmente cruéis, não cessou. Em sua obra fugira de sua fazenda após receber as primeiras
Viagem às províncias do Rio de Janeiro e de São letras de um visitante de seu senhor e, assim,
Paulo”, o suíço Johann Jakob von Tschudi nos re- ter descoberto que, pela lei, era livre. Tornou-se
vela que em agosto de 1861, em uma fazenda de advogado de causas de alforria de escravos na
Lorena, o fazendeiro português Antonio Pereira Justiça, promovendo centenas de ações de liber-
Cardozo assassinara de modo bárbaro quinze de dade e ganhando muitas delas. Foi talvez o único
seus escravos. As notícias de tal crime chegaram escravo da história do Brasil cuja voz ainda pode-
às autoridades, que abriram investigações e Car- mos ouvir. Foi uma grande ironia da história que
dozo suicidou-se. tão cruel senhor tenha deixado fugir aquele que
seria um ícone do abolicionismo. E quis a história
Este senhor tivera entre seus escravos um jovem coroar a ironia com mais ironia: Luiz Gama fugiu
negro, filho de um homem branco com uma escra- de seu cruel senhor assim que percebeu que era
va, vendido por seu pai para pagar suas dívidas, livre. O ano de sua fuga: 1848, o ano da grande
e que fora arrematado em leilão por Cardozo. repressão dos escravos de Lorena.

NOTAS
1
Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) nasceu em Salvador, filho de um fidalgo português e
de uma africana livre. Vendido como escravo pelo seu pai endividado, trabalhou em Lorena, na
fazenda do português Antônio Pereira Cardoso, até 1848, quando, tendo aprendido a ler e escrever,
descobriu que era livre pelas leis vigentes (já que sua mãe não era escrava) e fugiu para São
Paulo. Foi escritor, editor e participou dos jornais humorísticos Diabo Coxo, fundado por ele, e do
Cabrião, este último como colaborador. Empregado como amanuense da Força Pública, começa a
estudar as leis e a defender inúmeras ações de liberdade, conseguindo alforriar na Justiça mais de
mil escravos. Demitido em 1869, quando houve a queda do Gabinete Liberal e as conseqüentes
“derrubadas” nas Províncias, passa a participar como redator do Radical Paulistano e, depois, do
Polichinelo. Em seu último ano de vida, foi advogado do Centro Abolicionista de São Paulo. Morreu
em 24 de agosto de 1882, aos 52 anos, vítima de complicações do diabetes.
2
A pesquisadora Fabíola Lins Caldas encontrou uma extensa documentação referente a
insurreições e sublevações existentes no Arquivo Público Estadual de Pernambuco, através das
comunicações dos delegados locais ao presidente da província sobre suspeitas de sublevações,
insurreições e até assassinatos dos senhores, de 1842 até 1866. Eram procedimentos semelhantes
aos documentos ora apresentados. De forma geral, o padrão das insurreições pesquisadas é
semelhante ao da insurreição de Lorena: há o escravo que delata seus companheiros, por medo do
castigo ou esperança de recompensa – quiçá a própria alforria –, as confissões dos escravos nos
interrogatórios, sem que saibamos por quais métodos eram extraídas, os boatos, os pedidos das
autoridades locais para o Presidente da Província enviar armas e tropas.
3
Clóvis Moura desdobrava as formas de resistência dos escravos em passivas e ativas. Entre as
primeiras, enumerava: o suicídio, a depressão psicológica (banzo), o assassínio dos próprios filhos
ou de outros elementos escravos, a fuga individual ou coletiva e a organização de quilombos longe
das cidades. Já as formas ativas seriam: “1) as revoltas citadinas pela tomada do poder político; 2) as
guerrilhas nas matas e estradas; 3) a participação em movimentos não escravos; 4) a resistência armada
dos quilombos às invasões repressoras; 5) a violência pessoal ou coletiva contra senhores ou feitores.”
In: MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. 3ª ed. São Paulo, Ciências Humanas, 1981, p. 251.
4
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo, Ática, 1978
5
ALVES JUNIOR, Thomaz. Anotações Teóricas e Práticas ao Código Criminal. Rio de Janeiro,
Francisco Luiz Pinto e Cia Editores, 1864.
6
Os tumbeiros... [apud Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo, Cia das Letras, 2002]:
“Os juízes dos distritos em que os escravos eram desembarcados passaram a receber comissões
regulares, referidas como sendo fixadas em 10,8% do valor de cada escravo desembarcado. Os
escravos eram trocados diretamente por sacas de café nas praias, reduzindo assim a fórmula
econômica – ‘o café é o negro’ – a uma realidade”.
7
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3ª ed. São Paulo, Editora UNESP, 1998, p. 353-354,
357-358.
Acervo histórico

ANEXO
Os documentos sobre a tentativa de insurreição dos escravos do Vale do Paraíba em 1848

A correspondência entre as autoridades dando conta da existência de um plano de insurreição que romperia em
Parati, alastrando-se pelo Vale do Paraíba, em combinação com escravos de Lorena e Silveiras, está preservada na
Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo porque seu Regimento Interno (Lei nº 23 de 12 de fevereiro de 1836)
previa que “sua correspondência exterior será feita pelo intermédio do primeiro Secretário, e sendo com o Governo
da Província será dirigida ao Secretário do mesmo, e por ele respondida.” (art.3º) e que, caso o relator de alguma
comissão quisesse informações ou documentos do Secretário do Governo, “o Primeiro Secretário expedirá as ordens.”
Assim, a correspondência entre o Governo da Província e o Juiz Municipal (e também delegado de polícia) da Vila de
Lorena foi requisitada pela Assembléia Legislativa Provincial, juntamente com os autos do processo que se instaurara
em Lorena.

CJ48.7.1: Ofício dirigido pelo Secretário do Governo da Província de São Paulo ao Senhor Doutor Francisco
Antônio do Nascimento Lessa, 1º Secretário da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, em 30 de
junho de 1848, em resposta a outro, deste Secretário, em 27 de junho.

“Ilustríssimo Senhor ,

Foi presente de Sua Excellencia o Senhor Presidente da Provincia o Offíicio de V. I. com data de 27 do corrente em
que declara haver a Assembléa Legislativa Provincial deliberado que lhe pedissem os seguintes esclarecimentos.
1º A remessa da correspondencia reciproca com as autoridades da Villa de Lorena sobre a tentativa de insurreição,
que teve lugar ultimamente na dita villa.
2º Se foi preso e processado o francez indicado como agente da insurreição, e que outras providencias deu o Governo
a respeito.
3º Que juizo forma o Governo sobre a importancia da tentativa, e se houveram receios de desenvolver-se.
E de ordem do mesmo Exmo. Sr. passo a responder:
Ao primeiro com a remessa da correspondencia reciproca havida entre o Governo e as autoridades de Lorena e
Silveiras sobre o referido plano de insurreição.
Ao segundo que foi preso, processado e pronunciado o suisso Jacques Troller, indiciado como agente da insurreição,
mas que interposto recurso da sentença de pronuncia para o Juiz de Direito da respectiva Comarca, obteve favoravel
o deferimento, sendo aliviado da prisão em que se achava com os fundamentos constantes dos autos do recurso que
remeto a V.I. para serem presentes a Assembléa, cumprindo-me acrescentar que a este respeito pende atualmente
uma correspondencia reservada entre Sua Excellencia e o governo imperial.
Ao terceiro que igualmente de ordem de Sua Excellencia passo as mãos de V.I. para também ser presente a Assembléa
o proprio processo instaurado na Villa de Lorena por ocasião do referido plano que as respectivas autoridades
qualificaram tentativa de insurreição a fim de que por sua leitura possa a mesma Assembléa ser devidamente
informada de toda a marcha judiciaria deste negocio.
A opinião de Sua Excellencia é que houve realmente um plano de insurreição no Municipio de Lorena, como bem
se manifesta do processo, plano que se procurava estender a outros Municipios mas que seo desenvolvimento
foi felismente atalhado pela providencia das Autoridades, e cautelas tomadas pelos Fazendeiros, e Senhores de
escravos, parecendo que nada há presentemente a recear-se por este lado.
Quanto porem a importancia, extensão, e origem desse plano e sua ligação ou não com outros de igual natureza, que
tem apparecido em diversas Provincias, entende Sua Excellencia que é cousa ainda não bem averiguada, e sobre
a qual fora pouco seguro interpor desde já um juizo definitivo, apesar da opinião em contrario do Juiz de Direito da
Primeira Comarca, opinião constante da copia junta de seo Officio com data de oito do corrente mez, respondendo a
outro reservado, em que Sua Excellencia pedia alguns esclarecimentos e recomendava certas providencias.
Entende, finalmente, Sua Excellencia que com quanto na actualidade não haja serio motivo de receio, não deve
contudo dar-se por satisfeito com as informações obtidas, tendo por conveniente entrar no exame deste negocio até
encontrar o fio que o prende.
Terá V.I. a bondade de devolver-me quanto os processos, que envio (e que sua Excelência mandou vir à sua presença
com o fim de obter um conhecimento cabal de seu objeto), por quanto é indispensável com toda a brevidade ao juízo
d’onde foram tirados.
Deos Guarde a V.I.
Secretaria do Governo de São Paulo, em 30 de junho de 1848.
Ilmo. Dr. Flamínio Antônio do Nascimento Lessa, 1º Secretário da Assembléia Legislativa Provincial.”
65

CJ48.7.2: Carta de 02/03/1848 do Vice-Presidente da Província Bernardo José Pinto Gavião Peixoto ao
Delegado de Polícia de Lorena.

“Reservada
O Vice Presidente da Província vio com admiração e estranheza um offício reservado que o Chefe de Polícia da
Província do Rio de Janeiro dirigio em data de 16 de fevereiro último ao d’esta Província, por isso que n’elle se contém
dous factos extraordinários;
1º Os indícios de uma insurreição da escravatura no Districto da Villa de Lorena, de combinação com escravos do
Município de Paraty;
2º que esta notícia fosse communicada pelo senhor doutor José Rodrigues de Sousa, Delegado de Polícia da referida
Villa de Lorena ao Delegado d’aquella Cidade, sem que ao mesmo tempo fizesse chegar ao conhecimento d’este
Governo a notícia hum projecto, que quando realisado, não só comprometteria a segurança e as vidas dos habitantes
do Município de Lorena cnomo dos circunvizinhos. Exige portanto que o referido Senhor Delegado dê sem deshora a
razão de uma semelhante omissão, e exponha mui circunstanciadamente qual a denúncia ou os indícios que teve de
um tão horroroso plano; se para ele tem sido os escravos instigados, animados, e protegidos por pessoas de outras
classes; quaes as medidas tomadas para prevenir que este plano se realise ; se tem sido descubertos os cabeças, e
quaes as providências tomadas a respeito d’elles, e finalmente que meios de polícia se tem posto em prática para os
conservar na devida obediência e sugeição.
Palácio do Governo de São Paulo, 02 de março de 1848
Bernardo José Pinto Gavião Peixoto.

CJ48.7.3: Ofício de 07/03/1848. Dirigido pelo Juiz Municipal ao Vice-Presidente da Província.

“Ilmo. Exmo. Snr. : Cumpre-me participar a V. Exa. o Offício reservado de data de 2 do corrente em que V. Exa. estranha
a omissão de minha parte de não ter feito chegar ao conhecimento d’esse Exmo. Governo o objecto que deo motivo o
offício reservado do sr. Chefe de Polícia do Rio de Janeiro visto que pela gravidade do objecto se realisado fora não só
comprometteria as vidas dos habitantes d’este Município como nos circunvizinhos. E depois ordena-me V.Exa. que exponha
circunstanciadamente qual a denúncia, ou indícios que teve d’este horroroso plano de insurreição da escravatura se para
elle tem sido os escravos instigados, animados e protegidos por pessoas de outras classes, se tem sido descubertos os
cabeças, quaes as providências tomadas a respeito d’elles, e finalmente que meio de polícia tenho posto em prática para
os conservar na devida obediência e sugeição ao que tudo passo a expor a V. Exa.: A mais de mez pouco mais ou menos
deo-me huma pessoa d’esta Villa de todo o conceito uma denuncia que os pretos desta villa estavam apromptando para
um rompimento ou levante que devia ter logar em São João ou São Pedro, isto lhe fôra communicado em segredo por
uma pessoa, que tinha rasão de saber, porém que promettera a essa pessoa um inviolavel segredo de jamais declarar em
tempo algum o seo nome, visto que debaixo d’esta promessa que lhe fôra communicado, passados alguns dias continuou
esta pessoa a dar mais explicações a respeito do plano da insurreição, onde inferi que algum camarada, ou mesmo preto
lhe communicara , então que officiei ao Delegado de Paraty que havia suspeita de uma insurreição de escravos d’esta Villa,
e d’outros Municipios no mez de São João, e que este plano era de combinação com os escravos d’aquella Cidade, e por
isso que aquelle Delegado averiguasse se com effeito havia disso indicios, e me avisasse, por occasião d’este Officio por
mim dirigido elle participou ao Sr. Chefe de Policia do Rio de Janeiro. Entretanto tive uma denuncia de um Fazendeiro, que
um seo escravo, a quem elle suppunha sabedor do plano, e mesmo n’elle entrado lhe tivera confessado, que era verdade
existir o plano da insurreição, que taes e taes escravos eram os compromettidos combinando eu esta denuncia com
aquella primeira, do que achei ser verdadeira pela coincidencia de certos factos, e como estivesse exercendo a vara de
Juiz de Direito substituto remetti ao Delegado a denuncia, e instrucções para dirigir-se n’este negocio, mandou-se prender
os pretos indiciados entre os quaes estão dous directores do plano, que segundo as averiguações devem ser considerados
cabeças, evadindo-se um, que era mais influente té o presente não se pôde capturar, e depois de presos confessaram
tudo, e se está organisando o competente Processo, no primeiro interrogatorio declarou um mais compromettido que se
acha preso, que n’esta Villa pessoa livre não tem aconselhado e nem é entrado no plano, porém que nos Silveiras havia um
estrangeiro, que mandava recados, e os dirigia, porém que o não conhecia, e nem sabia de signaes alguns caracteristicos
que este estrangeiro se correspondia com Agostinho, como o verdadeiro director, este Agostinho foi que evadio-se , e sobre
quem os outros lançam toda a culpa, e como fallasse em estrangeiro tornei a fazer chegar á minha presença o escravo
Vicente, que o considero o mais compromettido, e que mais parte tem tomado, para interrogal-o a respeito do estrangeiro,
elle confessou, que além do primeiro que tinha declarado havia outro de nome Jacob no districto dos Silveiras, que deo
o plano, e que aconselhou o escravo Agostinho para este rompimento de quem era muito amigo, e que lhe declarou o
escravo Agostinho do rompimento ser dirigido por branco, e que assim teria bom exito, e por esse motivo elle entrou, e
começou a convidar pretos da Fazenda, mandei este interrogatorio para os Silveiras afim de tomarem as providencias a
respeito d’este estrangeiro, e entrar-se n’este conhecimento. Resumindo tudo tenho a declarar a V. Exa. que se acham
Acervo histórico

presos sete escravos tres os mais compromettidos, e quatro como socios dos clubs, e menos compromettidos, estou
organisando o Processo, e continuando nas indagações precisas, como já participei ao Dor. Chefe de Policia , e Juiz de
Direito da Comarca tenho requisitado soldados da Guarda Nacional e Policial para guardarem a Cadêa e sahirem de
patrulhas, e rondas para evitarem a entrada dos pretos da Fazenda, apesar que estão em sugeição, e não há o menor
indicio de rompimento. Aproveito a occasião para pedir a V. Exa. algum armamento, pois que a Gda. Nal. não tem, muito
menos a Policia é necessario para as diligencias as pessoas particulares. Resta-me finalmente responder a V. Exa. que não
levei este facto ao conhecimento do Exmo. Governo foi por motivo de não dar uma noticia atterradora sem ter fundamento
para isso nem ao menos indicios , esperava occasião opportuna, e ter dados depois do que faria, como já fiz ao Dor. Chefe
de Policia, e Juiz de Direito, e não por omissão, ou falta de cumprimento dos meus deveres, em que empenho todas as
minhas forças para corresponder a confiança do Exmo. Governo, e ainda mais dos habitantes d’este Município, cujos
destinos me foram confiados, se não cumpri exactamente minha missão será devida á intelligencia, e não á vontade.
Deos guarde a V. Exa. por mtos. annos.
Lorena 7 de Março de 1848.
Ilmo. Exmo. Sor. Vice Presidente d’esta Província
José Rodrigues de Sousa
Juiz Municipal.

CJ 48.7.4: Ofício de 11 de março de 1848 de José Rodrigues de Sousa, Juiz Municipal e Delegado de Polícia de
Lorena ao Vice-Presidente da Província Bernardo José Pinto Gavião Peixoto.

“Ilmo. Exmo. Snr.


Achando-se próximo o dia de S. Pedro marcado um plano para o rompimento da insurreição dos escravos não só d’este
Município como de outros pontos, ora descoberto pelas provas do summario instaurado por este juízo, urge, a bem
da segurança e tranqüilidade publica d’esta Villa, activar a Policia com a mais enérgica vigilância, afim de acautelar
qualquer delicto que por ventura tentem commetter ditos escravos; sendo portanto necessário a conservação de um
destacamento de trinta Praças da Guarda Nacional, commandados por um Official subalterno para, com as Praças
de Permanente aqui destacadas, guarnecerem esta Va. com patrulhas e mais serviços que a necessidade exigir.
Tomamos pois V. Exa. na devida consideração a expendir se dignará ordenar ao Chefe do Batalhão da Guarda
Nal. d’esta Va. a prestação do dito destacamento em ordem militar, e pelo tempo que V. Exa. julgar conveniente;
fornecendo-o do necessário armamento e[ilegível}, vista a falta absoluta que há n’esta Villa de taes objectos, como em
outra occasião já fiz ver a V. Exa. a quem Deos guarde por muitos annos.
Villa de Lorena 11 de Março de 1848.
Ilmo. Exmo. Sr. Vice Presidente da Província Bernardo José Pinto Gavião Peixoto.
José Rodrigues de Sousa
Juiz Municipal.

CJ48.7.5: Oficio de 22 de março de 1848 do Vice-Presidente da Província ao Delegado de Polícia de Lorena.

O Vice-Presidente da Província reflectindo sobre tudo quanto expoem o Sor. Juiz Municipal e Delegado de Policia da Villa
de Lorena em seus Officios de 7, e 11 de corrente mez, tem a dizer-lhe que felismente se devem reputar desvanecidos
os projectos sinistros de uma parte dos escravos d’esse Municipio, a vista das medidas tomadas a tempo, captura dos
indigitados como cabeças, e sua punição, como for de Direito: isto porem não deve obstar que se redobre de vigilancia,
e que se esteja prevenido para os reprimir, tambem a tempo, quando, não escarmentados, intentem novamente levar á
effeito um tão desastroso plano, e para isso este Governo reforçará quanto for possivel o Destacamento de Permanentes
ahi existente, e brevemente remetterá alguma porção d’armamento e correame d’esta Capital. Como porém não está ao
arbítrio do mesmo Governo empregar em serviço de Destacamento effectivo na mesma Villa os Guardas Nacionaes do
Respectivo Municipio, sem auctorisação do Governo Imperial, por falta de quota para o pagamento de soldo aos mesmos,
ordena n’esta data ao Tenente Coronel Commandante do Batalhão da Guarda Nacional d’essa Villa que forneça contingentes
dos Guardas moradores dentro da Villa, e dos mais proximos a ella, para, alternadamente com os Permanentes, e Guardas
Policiaes, rondarem de noite e mesmo de dia, sendo preciso, e fazerem todas as diligencias em auxilio da Justiça, de
maneira que os seos Mandados sejam promptamente cumpridos; e outro sim que tenha o restante do Batalhão do seo
Commando prevenido para apresentar-se ao primeiro aviso, e armados como for possivel. O mesmo Governo confia do
zelo e patriotismo de todas as Auctoridades do Municipio, que desenvolverão em tão melindrosa conjunctura a maior
energia, circumspeção, e prudencia, convergindo todas, e auxiliando-se reciprocamente, para o mesmo fim, isto é, religiosa
observancia das Leis, manutenção da tranquillidade publica, e segurança individual e de propriedade.
Palácio do Governo de São Paulo 22 de Março de 1848.
Bernardo José Pinto Gavião Peixoto
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CJ48.7.6: Ofício de 27 de março de 1848 do Juiz Municipal de Lorena ao Vice-Presidente da Província.

Ilmo. Exmo. Snr.


Tenho a honra de accusar o recebimento do officio endereçado por V. Excellencia em 22 do corrente em que V. Exa.
attendendo a minha requisição deo as providencias necessárias para desvanecerem os justos receios dos habitantes
d’este Município, em consequencia de um horroroso plano de insurreição que premeditarão por em pratica os escravos
porém felizmente foi descoberto a tempo de evitar-se assim funestas consequencias. Cumpre-me participar a V. Exa..
que não poupei diligencias, e as mais minuciosas pesquisas para esta descoberta, estiveram vinte e tantos pretos
presos, e os hia soltando depois das indagações, visto que as provas não poderião ser sufficientes para pronuncia,
e alem disto a fraqueza da Cadea não offerecia segurança, e estes mesmos pretos antes de serem soltos soffrerão
castigo publicamente a requisição de seos Senhores, para exemplo dos outros, em resultado do Processo por mim
organizado achão-se pronunciados um Estrangeiro de nome Jacques Troller como cabeça da tentativa da insurreição,
e um escravo de nome Agostinho o qual evadio-se no principio das indagações, tenho feito todas as diligencias, não
foi possível capturar-se e mais dous escravos que tomarão uma parte bastante activa forão pronunciados na segunda
parte do Artº 113 do Cod. Penal, isto hé a açoites, todos estes vão ser submettidos ao julgamento do Jury no dia
quatro do provindo futuro mez de Abril. Dando parte a V. Exa. do occorrido, não posso deixar em silencio a franca
cooperação e appoio que tive dos habitantes d’este Município, prestando se voluntariamente para rondas, e todas
as diligencias precizas, como urgia a gravidade das circunstancias, pelo Delegado forão cumpridas suas obrigações,
descobrindo os cabeças da tentativa da insurreição não poupando meios ao seo alcance para colligir provas, cumpre
ao Tribunal do Jury fazer o resto na punição do delicto para cujo fim estão os criminosos a sua disposição. Não foi
Exmo. Snr, o plano especial a este Município, em Minas igual tentativa teve lugar em Baependy estão os pretos em
castigo e segundo communicação que d’aquelle lugar tenho tido, estavão sete escravos presos, e confessarão que em
São João pretendião por em pratica esse horrível plano contra os brancos, e este mesmo plano foi descoberto depois
que estava organizado o processo e muito concorreu a confissão dos pretos d’este Município, para despertarem a
vigilancia dos Senhores da Província de Minas, onde estão applicando todos os meios para descobrirem os auctores
segundo participações que tenho tido; he o que tenho a levar ao conhecimento de Vossa Excellencia.
Deos guarde a Vossa Excellencia por muitos annos.
Lorena vinte e sete de Março de mil oitocentos e quarenta e oito.
Ilustríssimo Excelentíssimo José Rodrigues de Sousa
Delegado de Policia

CJ48.7.7: Carta do Vice-Presidente da Província ao Delegado de Polícia de Lorena.

“Reservada: O Vice Presidente da Província esperando com anciedade a continuação das noticias sobre o que de
mais se tem colhido alem do que communicou o snr. Juiz Municipal da Villa de Lorena, em seo officio de 7 do corrente
acerca da projectada insurreição da escravatura n’aquele Município, e no de Silveiras, acresse o dever em que se
acha de dar informações circunstanciadas a respeito ao Governo Imperial, como Elle acaba d’exigir, e por isso ordena
ao referido Snr. Juiz Municipal que transmitta com urgencia huma detalhada exposição do que houver colhido por meio
do Processo que instaurou, declarando se hua tão criminoza combinação pode ser filha ou de inspirações próprias,
ou de sugestões tramadas por alguma Sociedade Gregoriana, ou agentes dos princípios abolicionistas da escravidão,
ou outra qualquer influencia estrangeira, que conspire a colocar a Administração em circunstancias difficeis para
depois impor-lhe condicções, ou finalmente se por espírito da malvadeza hum outro Estrangeiro isoladamente tem
acoroçoado e instigado os escravos para cometterem semelhante crime.
Palácio do Governo de São Paulo 28 de Março de 1848.
Bernardo José Pinto Gavião Peixoto”

CJ48.7.8: Ofício de 11 de abril de 1848 dirigido ao Vice-Presidente da Província pelo Juiz Municipal de Lorena,
em que noticia a condenação de dois escravos à pena de 1.400 açoites cada um, entre outras coisas.

“Ilmo. Exmo. Snr.


Accuso a recepção do Officio de V. Exa. em data de 28 do mez de Março pp., ordenando-me transmitta com urgência uma
detalhada exposição do que houver acolhido pelo Processo, por este juízo organizado, acerca da projectada insurreição
da escravatura deste Município declarando se uma tão criminosa combinação pode ser filha, ou de inspirações próprias,
ou de sugestões tramadas por alguma Sociedade Gregoriana, ou agentes dos princípios abolicionistas da escravidão,
ou outra qualquer influencia estrangeira, que conspire a colocar a Administração em circunstancias difficeis, para depois
impor-lhe condições, ou se finalmente por espírito da malvadeza um ou outro estrangeiro izoladamente tem e instigado
os escravos para commetterem semelhante attentado, o que sobre tudo passo a responder a V. Exa..: Quanto a tentativa
Acervo histórico

dos escravos deste Município, o principio, e meios como foi descoberta, que um estrangeiro de nome Jacques Troller
e um crioulo Agostinho forão pronunciados no artº 113 do Cod. Crim. modificado pelo artº 34, e os escravos Vicente e
Francisco igualmente pronunciados na segunda parte do artº citado assim como a [ilegível] vidos outros muitos escravos,
que apesar [ilegível] serem convidados e estarem promptos [ilegível] dia do rompimento, não derão com [ilegível] passo
algum a respeito, os quaes forão entretanto publicamente castigados por consentimento de seus senhores, para exemplo
de outros escravos, já minuciosamente participei a esse Exmo. Governo, tendo agora a accrescentar que no dia 5 do
corrente forão pelo Jury d’esta Villa pronunciados, isto é julgados, os pretos Francisco e Vicente, e condemnados segundo
a decisão do Jury pelo Dr. Juiz de Direito em mil e quatrocentos açoutes cada um, e trazerem no pescoço ferro de gancho
por espaço de três annos. Não entrárão em julgamento os réos Jacques Troller e o escravo Agostinho, considerados
cabeças do crime de tentativa de insurreição, aquelle por ter interposto recurso da pronuncia, e achar-se ainda pendente
no Juízo de Direito o mesmo recurso, e este por ter-se evadido logo em princípio das indagações policiaes, não tendo
sido possível conseguir-se sua captura, apesar de insessantes deligencias. Quanto porem, se esta insurreição é própria
dos escravos, ou filha de combinação, ou influencias estranhas supra referidas, cumpra-me observar a V. Exa. que
não poderei com certeza affirmar, ser ella devida aos agentes dos princípios abolicionistas da escravidão ou outra
qualquer influencia estrangeira, ou mesmo devido a malvadeza, ou outro estrangeiro [ilegível] sim posso affirmar com
toda a certeza que este plano não foi filho das inspirações próprias dos escravos, devido a esse sentimento imnato de
liberdade, mas sim de hábeis pensamentos que com mão occulta o dirige: é um plano a tempo combinado com bastante
premeditação, pelo que se deprehende do Processo respectivo, e interrogatórios dos pretos quando declarão serem
convidados para pegarem em armas para o fim de haverem suas liberdades por meio da força, para o que os Inglezes
os coadjuvarião visto que o Brasil acha-se bastantemente empenhado para com aquella Nação da Inglaterra, e tanto
mais por haver cessado o trafico da escravatura, e outras proposições desta natureza, não próprias de escravos que
nem sabem ler. O réo estrangeiro Jacques Troller em sua interrogação declarou ter sempre argumentado e com bastante
calor, mostrando a necessidade da abolição da escravatura no Brasil, e que estes sentimentos sempre francamente
manifestava quantas veses nisso se tratava, o que sem dúvida daria motivo a ser lembrado pelo réo Agostinho, e outros,
como autor do plano, ou apoiador da insurreição. Alem disto a coincidência de descobrir-se iguaes preparativos ou ter-se
denuncias de insurreição em alguns logares [ilegível] Provincia de Minas Geraes, confessa [ilegível] escravos presos que
se achava marcado o dia de São João para o rompimento da insurreição; e tendo visto uma carta de pessoa fidedigna
em que assevera se terem achado estatutos do plano para essa insurreição, sendo autor dos mesmos um Francez ,
tudo isto, e outros mais factos me levão a convicção, que há um plano a muito premeditado, ramificado em algumas
Províncias, e quiçá pelo Brasil todo, plano certamente devido a mais desmedida ambição, egoísmo, ou a inveja e ciúme
que excita o Brasil a algumas Nações, ou finalmente quaes quer outros motivos que se achão occultos sob o véo do
mistério, mas que tarde ou cedo será descoberto.
Deos guarde a V. Exa.. por muitos annos.
Lorena 11 de Abril de 1848.
Ilmo. Exmo. Senr. Vice Presidente da Província Bernardo José Pinto Gavião Peixoto
José Rodrigues de Souza, Juiz Municipal”

CJ48.7.9: Carta de 28 de março de 1848 dirigida pelo Vice-Presidente da Província ao Delegado de Polícia de
Silveiras, pedindo informações sobre o estrangeiro que seria o líder da revolta dos escravos.

“Reservada – O Vice Presidente da Província á vista da participação que lhe dirigio o Juiz Municipal da Villa de Lorena
sobre hum plano de insurreição dos escravos em combinação com os do Município da Villa dos Silveiras, constando
pelas revelações já feitas por algum dos cabeças que forão presos, haver um Estrangeiro de nome Jacob que com
elles se communicava e os aconselhava; ordena ao Snr. Delegado de Policia da referida Villa dos Silveiras que com
urgencia informe se tem instaurado Processo a respeito, que esclarecimentos por elle tem colhido; se com effeito esse
Estrangeiro se acha implicado em hum tão horroroso plano, com que fim, se de combinação com outros, ou alguma
sociedade occulta, que tenha em vista a emancipação da escravatura; tudo enfim que possa prestar detalhados
esclarecimentos para serem levados ao conhecimento do Governo Imperial como Elle acaba d’exigir. O mesmo Vice
Presidente reitera as recomendações já feitas para que as Auctoridades constituídas se conservem vigilantes, e não
poupem medidas, e providencias tendentes a tirar toda a possibilidade de realização de um semelhante crime.
Palácio do Governo de São Paulo 28 de Março de 1848.
Bernardo José Pinto Gavião Peixoto.”

CJ48.7.10: Ofício do Delegado Suplente de Polícia de Silveiras, de 6 de abril de 1848, em resposta ao anterior.

“Ilmo. Exmo. Snr. : Accusando a recepção da Portaria de V. Exa. de 28 do mez pp. ordenando-me informe sobre o
que tenho procedido sobre a insurreição dos escravos cumpre-me significar-lhe que tendo eu remetido preso para a
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Villa de Lorena o Estrangeiro Jacob por requisição do Juiz Municipal d’aquella Villa tenho a certeza que n’esse Juízo
foi pronunciado como cabeça d’esse crime, e continuo a dar as mais enérgicas providencias, afim de descobrir os
implicados n’essa insurreição, certificando a V. Exa. que de tudo que occorrer participarei a V. Exa. como me ordena.
Deos guarde a V. Exa. por muitos annos.
Villa dos Silveiras 6 de Abril de 1848
Ilmo. Exmo Snr. Vice-Presidente desta Província
Joaquim Ferreira da Cunha – Delegado Supplente da Policia.”

CJ48.7.11: Ofício da Câmara Municipal de Silveiras ao Vice-Presidente da Província, de 3 de março de 1848, em


que se pede oito soldados e um cabo.

“Ilmo. Exmo. Snr. : A Câmara Municipal da Villa dos Silveiras leva ao conhecimento de V. Exa. que este Município
acha-se affectado de uma insurreição de escravos, o que já se tem exuberantemente provado pelos interrogatórios
dos indigitados em processo formado na Villa de Lorena; e que sendo inquestionável q. a Policia não pode ter a
necessária acção sobre os criminosos, por isso respeitosamente requer a V. Exa. digne-se mandar destacar para
esta Villa uma força de 1ª linha composta ao menos de oito soldados e um cabo, para estar a ordem do Delegado de
Policia; com o que ficará mantida a ordem publica. A Câmara espera q. V. Exa. annuirá á sua supplica.
Deos guarde a V. Exa.
Paço da Câmara Municipal dos Silveiras aos 3 de Março de 1848.
Ilmo. Exmo. Vice-Presidente d’esta Província.
Anacleto Ferreira Pinto, Cláudio Ribeiro da Silva, Manoel Ignácio da Silveira, Domingos Pereira da Silva, Manoel
Guedes da Cunha, Manoel Bueno de Siqueira.”

CJ48.7.12: Em 6 de abril de 1848, o Vice-Presidente da Província comunica o envio de armas aos Comandantes
dos Batalhões da Guarda Nacional em Lorena e Silveiras.

“O Vice Presidente da Província communica ao Snr. Tenente Coronel Joaquim Honorato de Castro, Commandante
do Batalhão d’Infantaria da Guarda Nacional da Villa de Lorena que pelo conductor Antonio de Moraes lhe serão
entregues seis caixões com rotulo para Lorena, contendo trinta armas novas de igual adarme, trinta patronas
com corrêas, trinta cinturões com cananas, trinta banhinhas de baionetas, trinta bandoleiras, e huma porção
de pedras de ferir, para o serviço que se offerecer, certo porém, de que as deverá conservar em arrecadação,
cuidando na sua limpeza, pois que se forem distribuídas pelos Guardas, não só terão d’ellas pouco cuidado, como
mesmo as estragarão em caçadas como he costume, quando pelo contrário, sendo espingardas novas, devem
estar de sobrecellente para servirem somente em casos urgentes, para o que também envia cento e oitenta
cartuxos embalados; devendo este cartuxame ser entregue ao Delegado de Policia d’essa Villa, sob cuja guarda e
responsabilidade deverá ficar.
Palácio do Governo de S. Paulo 06 de Abril de 1848.
Bernardo José Pinto Gavião Peixoto
Do mesmo theor ao Major Jozé Ferreira de Abreu, Commandante das Companhias D’Infanteria da Guarda Nacional
da Villa de Silveiras, quatro caixões contendo vinte armas, vinte patronas etc, e cento e vinte cartuxos embalados.”

CJ48.7.13: Na mesma data do comunicado acima, o Vice-Presidente da Província comunica os Delegados de


Polícia de Lorena e de Silveiras que enviou as armas.

“O Vice Presidente da Província communica ao Snr. Delegado de Policia da Villa de Lorena que ao Tenente Coronel
Commandante do Batalhão da respectiva Guarda Nacional envia n’esta occasião pelo conductor Antônio de Moraes
seis caixões com rotulo para Lorena, contendo trinta armas novas de igual adarme, trinta patronas com corrêas, trinta
cinturões com cananas, trinta banhinhas de baionetas, trinta bandoleiras, e huma porção de pedras de ferir, para
servirem somente em casos urgentes, e ao mesmo Snr. Delegado remette cento e oitenta cartuxos embalados, para
serem de igual modo conservados sob sua guarda e responsabilidade, pois que só em casos extremos, e de baixo
d’esta mesma responsabilidade, poderá distribuir aos Guardas Nacionaes o numero necessário, arrecadando depois,
se não for preciso empregar como he d’esperar.
Palácio do Governo de S. Paulo 06 de Abril de 1848
Bernardo José Pinto Gavião Peixoto.
Igual para o Delegado de Policia da Villa dos Silveiras sendo os objectos remettidos em quatro caixões os seguintes: vinte
armas novas de igual adarme, vinte patronas com corrêas, vinte cinturões com cananas, vinte banhinhas de baionetas,
vinte bandoleiras, e huma porção de pedras de ferir. Remette também cento e vinte cartuxos embalados para ser etc.”
Acervo histórico

CJ48.7.14: Ofício do Juiz de Guaratinguetá ao Presidente da Província, em 8 de junho de 1848, em que desfaz as
suspeitas sobre o estrangeiro Jacques Troller e declara ser o liberto Agostinho o verdadeiro líder da insurreição.

Illustrissimo e Excellentissimo Senhor: Uma das Portarias de V. Exa. de vinte e nove de Maio d’este anno me determina
que informe com brevidade o que tiver occorrido á respeito de um processo instaurado ao estrangeiro de nome Jacob,
e a um seo companheiro residente em Lorena, em consequencia d’um plano de insurreição d’escravos. Cumprindo-
me informar a Vossa Excellencia com maior individuação expedi n’esta ordem ao Juiz Municipal d’aquella Villa, para
quanto antes mandar-me cópia do processo, e do recurso, que aquelle Estrangeiro Jacques ou Jacob interpoz ao
Juiz de Direito, as quaes logo que cheguem terei a honra de submetter ao conhecimento de Vossa Excellencia, como
suplemento á minha informação. Posso porem já dizer alguma coisa á Vossa Excellencia a respeito do facto occorrido,
por que fui o Juiz, que presidi os Jurados no julgamento de dous corréos, e que provi o recurso do Estrangeiro Jacob:
e demais vendo que tão cedo não poderei mandar a cópia segundo as rasões que aparecem no Officio do Juiz
Municipal, que junto remetto, devo na occurrencia servir-me da lembrança que tenho do processo para esclarecer
a Vossa Excellencia: Direi primeiro que os complicados no processo, ou pronunciados são quatro, a saber, Jacques
Troler, Vicente creoulo escravo de Faustino Xavier de Moraes, Francisco de Nação escravo de D. Maria Pereira da
Guia, e Agostinho, que foi escravo do finado Antonio Gaspar Martins Varanda. Os dous reos Vicente e Francisco
forão julgados a quatro de Abril d’este anno no Jury de Lorena, e sentenciados a mil e quatrocentos açoutes cada
um, e trazerem ferro de gancho no pescoço por tres annos. O Agostinho anda occulto, e consta-me por informação,
e tambem se deprehende do processo, que é muito sagaz, sabe ler e escrever, e foi o principal agente da projectada
insurreição. O Estrangeiro Jacques interpoz recurso antes da Sessão do Jury, e obteve provimento favoravel pelo
Juizo de Direito no dia vinte e dous d’Abril, e hoje se acha solto por virtude d’esta decisão, e a vista da qual me parece
não poder cumprir a determinação de Vossa Excellencia sôbre a detenção do mesmo na prisão. Ajuisando agora da
moralidade d’estes factos, direi a Vossa Excellencia que a deliberação tanto do Jury, como do Juizo de Direito forão no
meo entender as que cumprião ser, por quanto os dous correos Vicente e Francisco confessarão terem-se envolvido
n’uma tentativa, para a qual dizem testemunhas, e pretos interrogados que elles aliciavão outros: porém pelo que
respeita a Jacob não apareceo uma prova cabal; e esta falta coincidindo com as rasões expendidas em seo recurso, e
com a boa reputação de que gosa dos homens mais interessados na manutenção da ordem pública, e de maior critério
d’esta Comarca, fizerão crer, que esses pretos em seus interrogatorios procuravão um meio de minorar a gravidade
de seos crimes, involvendo algum individuo sobre quem pudesse recahir a maior somma d’imputação, que de facto
as respostas de alguns pretos faz pesar sôbre o Estrangeiro Jacob, mas que julguei não dar importancia e peso: por
quanto fui informado que este Jacob homem republicano de Nação, e por princípios, tinha amisade estreita com o
finado Varanda, senhor que foi do Agostinho principal agente da tentativa, ia por veses á sua casa, onde demorava-
se por semanas, e ahi lia os jornaes, e noticias estrangeiras sem reserva na vista do escravo Agostinho, pagem do
Varanda, e a quem por morte se disforrára: faria mesmo observações relativas ao estado actual do Brasil, reprovando
a escravidão, e ponderando as consequencias, que podião seguir-se a similhança das da Ilha de S. Domingos. Ora
nada mais natural do que Agostinho, preto sagaz e atilado projectar a insurreição á vista do que ouvia, insinuando que
Jacob era quem fornecia os meios. E por que aparecem respostas de pretos escravos talvez de boa fé n’este sentido,
e que forão aplaudidos por certos individuos, que querião d’este facto tirar proveito, guiados pela má fé, e infame
especulação. Pode porém V. Exa. ficar certo que a insurreição, ou projecto d’ella não se estendia a mais do que as
circumvizinhanças da Villa de Lorena, não tinha essa extenção e alcance, que alguem lhe queria dar, e menos erão
involvidos Estrangeiros por principios de Sociedade Gregoriana, ou Sansimoniana. Eu que com quanto certo d’isto
devo desconfiar para acautelar-se possibilidades d’esta ordem, não esitei em fazer o Officio ao Doutor Chefe de Policia
interino d’esta Provincia em data de oito d’Abril pedindo providencias para se fazerem effectivas as Leis policiaes
quanto a Estrangeiros, que vagão pelo centro de nossas povoações, e fazendas, e que por ventura podem incutir
idêas de liberdade sempre perniciosas a escravos, que naturalmente tendem para sacudirem o jugo da escravidão; e
ainda mais por que observo, que na mor parte estes Estrangeiros não curão dos meios mais honestos de viver. Fique
pois Vossa Excellencia descançado a este respeito; pois que na actualidade nenhua desconfiança existe de nova
tentativa de insurreição, sendo bastante o exemplo que se deo em Lorena para aquietar os espiritos, e desvanecer
esses desejos da parte de escravos. Ao meo cuidado fica fazer remetter a Vossa Excellencia o processo original,
ou por copia, segundo fôr mais fácil, e d’elle Vossa Excellencia melhor se informará, tirando a illação conveniente, e
dando as providencias que sua sabedoria achar a proposito.
Deos Guarde a Vossa Excellencia muitos annos.
Guaratinguetá oito de Junho de mil oitocentos e quarenta e oito.
Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Domiciano Leite Ribeiro, D. Presidente d’esta Provincia.

O Juiz de Direito da primeira Comarca


Francisco Lourenço de Freitas
1

Leis&Letras
A narrativa das
cenas amazônicas
de Inglês de Sousa
Marcus Vinnicius C. Leite*

Um certo dia, Inglês de Sousa procurando, num se transfere para a Faculdade de Direito de São
“sebo”, o seu romance História de um Pescador, Paulo, onde finaliza seu curso — em 1876. É
ouviu do velho alfarrabista a informação de em Santos que o escritor produz e publica suas
que o livro era uma raridade bibliográfica. Ele o obras. Será editor de vários jornais liberais, nos
informou que a obra fora escrita por um médico quais, através de folhetins, dá conhecimento ao
italiano de São Paulo, um tal de Luís Dolzani. público de sua produção literária. Exerce atividade
O escritor paraense perguntou que fim levou política como Deputado Provincial, em São Paulo
esse Luís Dolzani. O livreiro respondeu que ele
morreu há muito tempo... Como se sabe, Inglês
Acervo Dainis Karepovs

de Sousa assinou todos os seus romances


com o pseudônimo de Luís Dolzani, que era
o sobrenome de sua avó materna (Carlota
Dolzani). Este acontecimento é paradigmático
do destino infeliz que se apossou da obra do
intelectual paraense: não tendo quase nenhuma
repercussão no seu tempo, hoje é ainda mais
desconhecida — com exceção do romance O
Missionário. Quem é, então, Herculano Marcos
Inglês de Sousa? O que ele produziu? Qual é sua
importância para a região Amazônica?

Inglês de Sousa nasceu na cidade de Óbidos, às


margens do Amazonas, em 28 de dezembro de
1853. Fez sua formação básica em São Luís e no
Rio de Janeiro e, em 1871, entrou na Faculdade
de Direito de Recife. Os anos de faculdade foram
de intensa vivência intelectual, principalmente
na leitura de romancistas franceses (Balzac,
Flaubert etc.) e nas idéias do jurista Rodolf von
Ihering. Com a mudança do seu pai (Marcos
Antonio Rodrigues de Sousa) para Santos, ele Herculano Marcos Inglês de Sousa (1853 – 1918)

*
Professor da Universidade da Amazônia - PA, doutorando em Ciência Socioambiental – Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos/Universidade Federal do Pará. Autor de Cenas da Vida Amazônica. Ensaio sobre a narrativa de Inglês
de Sousa (Belém: UNAMA, 2002). (marcusvcleite@aol.com).
Acervo histórico

(durante duas legislaturas, de 1880 a 1883), Amazônia está na sua capacidade de plasmar
e depois como presidente de duas Províncias as relações sociais e históricas que se entretece
(Sergipe e Espírito Santo). Em 1890, deixa a na forma literária. Na História de um Pescador,
política para se dedicar à carreira de advogado. podemos ver o primeiro esboço de “luta de
Dois anos depois, transfere-se para a cidade do classe” na ficção brasileira — de um tapuio contra
Rio de Janeiro, onde ganha a notoriedade com um potentado local —, expressa na forma social
jurisconsulto, lecionando na Faculdade Livre da fantasmagoria da dívida. N’O Cacaulista e
de Ciências Jurídicas e Sociais, e como literato O Coronel Sangrado, temos a radiografia da
ao participar da fundação, como o primeiro formação de compromisso que argamassa a
tesoureiro, da Academia Brasileira de Letras. sociedade local através da rede clientelística.
Exerce, também, a direção daquela Faculdade
e a presidência do Instituto dos Advogados do A RECEPÇÃO DA OBRA INGLESIANA
Brasil (1907). Falece no Rio de Janeiro em 6 de PELA CRÍTICA LITERÁRIA
setembro de 1918.
Em meados da década de 1940, a crítica mineira
A produção intelectual de Inglês de Sousa se Lúcia Miguel Pereira publicou um artigo no
restringe a cinco obras literárias e algumas de Correio da Manhã sobre a obra do escritor Inglês
direito (principalmente comercial). Ainda em de Sousa. Nele, ressaltou o destino infeliz que
Recife, ele escreveu O Cacaulista, que seria se assenhoreou dos três primeiros romances do
publicado em folhetins no Diário de Santos autor: O Cacaulista, História de um Pescador e O
em 1876, junto com alguns contos que seriam Coronel Sangrado, que formam o ciclo das Cenas
reunidos, em 1893, nos Contos Amazônicos — da Vida do Amazonas. Os três romances não
editados no Rio de Janeiro. O romance História tiveram, no seu tempo, repercussão merecida,
de um Pescador saiu no mesmo ano daquele assevera a crítica mineira, talvez por não haver
escrito no Nordeste, só que impresso pela gráfica ainda um ambiente literário para recebê-los,
da Tribuna Liberal de São Paulo. O Coronel pois foram eclipsados pelo alvorecer da escola
Sangrado, mesmo já tendo seu anúncio de naturalista1. Os romances foram escritos a
publicação em 1877, só foi editado em 1882 em partir dos cânones realistas — os primeiros
São Paulo. A sua mais conhecida obra literária, na ficção brasileira, segundo Lúcia M. Pereira
O Missionário, só ganhou notoriedade após a — e não lançaram mão dos tiques e das fórmulas
segunda edição, com o prefácio do crítico Araripe tão típicas daquela escola. Em termos de
Júnior, em 1899 (a primeira edição foi em Santos composição, estariam mais próximos de Flaubert
em 1891). De seus trabalhos jurídicos destacam- do que de Zola. Não falavam em hereditariedade,
se Títulos ao Portador no Direito
Brasileiro (1898) e o Projeto
Marcus Leite

do Código Comercial (1912).


Contudo, a síntese de seu
pensamento jurídico pode ser
encontrada na conferência à
colação de grau dos alunos da
Faculdade de Direito do Rio, em
1910 — publicada na Revista
Americana, em fevereiro de 1911.
Nesta palestra, ele apresenta
a necessidade de procurarmos
um outro direito, pois “o mundo
não é mais romano”. Ainda
nesta conferência, defende
o divórcio, pois “a família,
liberta dos preconceitos da
superioridade do homem [...]
tende a reorganizar-se sobre
os fundamentos do amor e do
consentimento recíproco”.

A importância da obra artística


de Inglês de Sousa para a Casa de Inglês de Sousa em Óbidos (1996)
73

não recorriam a dogmas científicos, portanto não a ressonância obtida pela publicação da segunda
eram bastante modernos para o seu tempo e não edição do Missionário. É este romance que entrará
mereceram a reedição — diz a autora. como “o” representante do trabalho ficcional do
escritor paraense no “museu” da história literária.
A citada intérprete considerou a obra de Inglês Ao examinar este romance, não podemos deixar
de Sousa, no seu conjunto, um documento social de observar que, se, por um lado ele permitiu uma
de grande valor, na medida em que buscava leitura a partir dos pressupostos do naturalismo, por
retratar as condições da região amazônica, o outro, é possível empreender leituras rompendo
que já transparece no subtítulo dado aos livros, com essa interpretação. É necessário fugir da
“Cenas da Vida do Amazonas”. No romance classificação, que subsume as obras literárias a
História de um Pescador, ela vê “a nossa primeira partir de características definidas a priori.
obra de ficção em que se esboça a luta de classe
— a revolta do tapuio contra o proprietário que o A questão do regionalismo é posta como o
explora”2. Contudo, acrescenta que este era ainda vetor que costura a obra de Inglês de Sousa,
literariamente fraco e com um tom panfletário. Em pelos comentários de Lúcia M. Pereira, ou, mais
relação aos dois outros romances, Lúcia Miguel precisamente, a representação das condições
Pereira os julga de melhor qualidade literária, sociais da região amazônica. Esta tendência
pois neles o autor alcança um dos ideais dos é fundante na tradição da prosa brasileira que,
romancistas: resumir o geral no particular. “Através segundo Antonio Candido6, nasceu “regionalista
de Óbidos, reflete-se toda a existência das vilas e de costumes”, com uma ânsia em tatear a
de província durante o império”3. Finaliza seu topografia e em expressar literariamente o
artigo afirmando que, com estes três romances, espaço geográfico do país. Talvez, sustenta
Inglês de Sousa introduz no movimento literário Candido, o legado dos romances oitocentistas
brasileiro o romance social, ao fixar o conteúdo seja menos em representar tipos, enredos e
social de sua região. peripécias do que tornar literárias certas regiões,
fazendo com que a seqüência narrativa, ao
A importância da interpretação feita por Lúcia fixar-se no ambiente, torne-a quase escrava
M. Pereira do citado ciclo romanesco pode ser dele. Aqui está talvez o critério que pautou
percebida, por um lado, na sua sagaz constatação quase toda a crítica literária da época até a
da falta de elementos da escola naturalista, na primeira metade do nosso século, a saber: a
qual a história da literatura brasileira insiste em procura da verossimilhança nas narrativas dos
enquadrar a obra de Inglês de Sousa, numa romances, assevera Candido. Isso pode ser
repetição constante; por outro, na sua inserção visto na resenha que José Veríssimo, crítico
na tradição dos romances sociais, fundada pelos e conterrâneo do escritor, escreveu sobre O
literatos franceses na década de 18304. Os seus Missionário. Considerando-o um dos melhores
comentários vieram quebrar um círculo vicioso romances da prosa ficcional brasileira, apresenta,
que sempre depositou os romances de Inglês contudo, uma ressalva: “a desproporção entre
de Sousa numa senda pela qual escorrem as o assunto e o desenvolvimento que lhe deu o
mesmas imagens, a saber, de regionalista e de autor”7, o que se justifica com o comentário de
naturalista. que o drama é acanhado em comparação com
o “cenário” e que o “painel” se expõe muito
A primeira manifestação da crítica literária que dilatado em relação à “pintura”, levando ao
constrói essa tradição partiu de Sílvio Romero, excesso, à minúcia de descrições e à ampliação
famoso protagonista do movimento do Recife de episódios. Mas, continua Veríssimo, tudo isso
e crítico literário. Na sua História da Literatura tende a desaparecer na fluência da narrativa e na
Brasileira, publicada em 1888, Inglês de Sousa é excelente descrição do caráter das personagens.
citado através do pseudônimo Luís Dolzani, com o Mais adiante, ele ressaltará que o romance é
qual assinava os seus romances. Romero considera um quadro vivo e exato da vida amazônica e,
o moderno naturalismo no romance brasileiro também, uma representação de um aspecto
como um produto do “movimento do Norte”, que moral desta vida. Porém, “um quadro cuja
possuía em suas fileiras “o distinto escritor Franklin realidade tenha sido, muito ao de leve, embora,
Távora e o esperançoso Luís Dolzani”5. Com diminuída pela pintura de memória”8. O critério
essa primeira avaliação, inicia-se um processo de de verossimilhança era complementado, para
transmissão daquelas imagens nas interpretações certos críticos, com a adequação aos princípios
ulteriores, as quais configuraram a percepção que de nacionalidade de sua representação. Isto é,
nos chegou sobre a obra de Inglês de Sousa. identificar a cor local nas narrativas em oposição
Contudo, sua sedimentação só se cristaliza com à influência alienígena. Independente disso,
Acervo histórico

o regionalismo foi um fator determinante na romances esgotados, respectivamente em 2003


autonomia literária brasileira, atesta Candido. e 2004, pela mesma editora — somado com a
edição em 2004 dos Contos Amazônicos pela
Segundo o historiador paraense Vicente Salles, Martins Fontes — possamos ter uma retomada
a explicação da capacidade do autor em dos estudos sobre sua obra12.
apresentar uma ampla visão acerca da região
amazônica, mesmo tendo dela se afastado já A FORMA SOCIAL AMAZÔNICA E A
na sua adolescência e nunca mais retornado, NARRATIVA INGLESIANA
está na influência da figura do seu pai, juiz de
Direito no Baixo Amazonas, Marcos Antônio Ao estudar os mecanismos de dominação
Rodrigues de Sousa. É muito difícil que Inglês sobre os índios do rio Putumayo na Amazônia
de Sousa tenha construído os seus romances a colombiana, o antropólogo Michael Taussig
partir da memória de infância e, se o fez, decorre tem a leitura de que “não eram os rios que
“mais por informação do que por vivência”9. A aglutinavam a bacia amazônica em uma unidade,
proposição do historiador é que o pai de Inglês mas que esses incontáveis laços de débitos e
de Sousa possibilitou os argumentos, a partir de créditos se enrolavam em torno das pessoas”13.
suas memórias, para os romances. A riqueza do Nesse espaço social e natural, que é a região
vocabulário, dos usos e costumes, só poderia amazônica, o comércio da mão-de-obra era
ter sido gerada por alguém que tenha vivido praticado a partir do entendimento de que o credor
cotidianamente aquela realidade. Por isso, a obra de um trabalhador poderia vendê-lo a outro. Esse
do autor permite estudos sobre a “linguagem “vender” não se refere à força de trabalho, que
popular e do folclore da região, identificando-se formalmente não existia, mas à dívida, o débito
vertentes indígenas e negras”10. do peão com o seu patrão. Dito de outro modo, o
sistema de endividamento repousa na aparência
Entretanto, entendemos que o regional em Inglês de um comércio, no qual o devedor não é
de Sousa não é a representação do particular, do escravo nem trabalhador assalariado, mas “um
típico e do pitoresco. Sérgio Buarque de Holanda comerciante, sujeito à férrea obrigação de pagar
já afirmava que não existe algo mais distante de adiantadamente”14. Desta forma, o comerciante
Inglês de Sousa do que o “gosto do documento ou patrão prende o seu freguês numa realidade
folclórico e regional que já então era obsessivo fictícia, constata o antropólogo.
em nossos novelistas”11. Como indicou Lúcia M.
Pereira, sua obra resume o geral no particular, Taussig dá-nos uma sagaz interpretação das
além de inseri-lo na tradição do romance social. relações sociais na Amazônia quando identifica a
Esta tem como característica marcante a dívida ou a relação entre crédito e débito como a
definição social dos personagens, que possibilita forma social predominante nesta região. Contudo,
sua leitura universal. Esta mesma sensibilidade discordamos dele quando a denomina de uma
pode ser comprovada no escritor paraense, “realidade fictícia”. Buscaremos construir os
como afirma a crítica mencionada, ao esboçar nossos argumentos através da apresentação da
no entrecho de História de um Pescador luta de forma literária de Inglês de Sousa, principalmente
classes. Ele destoa dos seus
companheiros coetâneos
Acervo Dainis Karepovs

de letras, ao expressar
vários motivos como o
conflito social. Mesmo com
a publicação, na década
de 1960, de uma coletânea
dos textos de Inglês de
Sousa, organizada por Bela
Josef, e a reedição d’O
Coronel Sangrado (1968) e,
posteriormente, O Cacaulista
(1973), pela editora da
Universidade Federal do
Pará, não tivemos um maior
conhecimento sobre sua
produção literária. Talvez,
com a recente edição destes A cidade de Óbidos, em desenho de Rudolf Riehl
75

na História de um Pescador. Consideramos que de transição, pois a personagem do pescador


o romance plasmou essa problemática a partir não se configura como mão-de-obra em relações
de várias pistas, deixadas desintencionalmente. de trabalho compulsórias (escravista), nem nos
Apresentemos a questão no romance. moldes do modo de produção capitalista, que
exige um mercado de trabalho, no qual a força
Assim que o tapuio José chegou à fazenda de de trabalho está separada de seus meios de
Fabrício, este se aproximou com “ar falsamente produção e de sobrevivência. Na medida em
jovial” e, batendo-lhe no ombro, disse: “— Ara que não existe naquela região àquele tempo,
muito bem, seu José, gostei da sua história. Fez formalmente estruturada, o domínio pela
muito bem em ter vindo trabalhar para pagar as propriedade territorial, a terra apresentava-se
dividas do seu pai”. O rapaz mostra-se admirado livre. Portanto, a dominação desloca-se para
com as palavras do fazendeiro, que, notando sua outras formas de organização/coerção da força de
expressão, continua com volubilidade: trabalho, no caso, a dívida. Esta situação ambígua
produz uma condição, na qual a personagem
“— Como! Pois não sabe que o Anselmo era sofre, por um lado, a dependência pessoal das
meu devedor? Eu podia ficar com o sitio, que classes dominantes, por outro, não transfere
não vale nada, mas tenho pena de vocês, e de forma direta os frutos do seu trabalho. Para
prefiro que você trabalhe para pagar-me. [...] que isso aconteça, é necessário que se instaure
Olhe, agora mesmo estou para levantar uma uma relação mistificada, que permita dominá-la e
casinha, e preciso de madeira. Vá cortar-me extrair o seu trabalho excedente. À forma desta
cem esteios para começar.”15 relação chamamos de fantasmagoria da dívida.

O narrador, ao construir o encontro do capitão Nas interpretações da sociedade amazônica,


Fabrício com José, molda-o indicando as focaliza-se o sistema de aviamento, como
intenções astuciosas, que, em gestos sorrateiros “senha de identidade”17, estruturado como
(“falsamente jovial” e volúvel), armam o bote ao uma “ideologia”18 ou transação mercantil
rapaz. O capitão escorregadiamente impinge fictícia, que encobre uma forma de exploração
em José a marca de uma herança de dívidas. “paternalista”19. Porém, independente de suas
E, a partir dela, instaura-se como o credor. várias caracterizações, ele é um sistema do
Esse mesmo ato pressupõe a existência de um adiantamento de mercadorias a crédito, no qual
devedor que não é outro senão o herdeiro da o comerciante ou patrão avia bens de consumo
dívida, José. O que legitima esses papéis de ou instrumento de trabalho para um camponês
credor e de devedor? Não se trata de simples que, ao contrair tal dívida, paga com produtos
posições individualizadas, eles têm um caráter de extrativos ou agrícolas. Os vários estudos que
exemplaridade na sociedade amazônica. tiveram como foco as relações de produção na
Amazônia sempre enxergaram esse sistema,
O que a forma literária de Inglês de Sousa desde seu apogeu na economia da borracha
problematiza é a posse da condição de trabalhador até na contemporaneidade, “mascarado” por
livre da personagem José, que é reprimida, uma dupla face: trocas mercantis, sugadoras
cerceada pela existência de uma obrigação do trabalho excedente para o mercado mundial
moral de saldar uma dívida e atender aos capitalista e relações de dependência pessoal.
pedidos do capitão. Este “constante mourejar”16 O sociólogo Carlos Teixeira, ao abordar o
canaliza, diariamente, os esforços de José para aviamento no seringal do município de Humaitá
satisfazer os desejos do capitão, que via perder (AM) a partir da análise das relações sociais
progressivamente a sua liberdade. que são construídas para arrancar o trabalho
excedente dos extratores da borracha, apresenta-
Nas situações clássicas de dependência pessoal, nos a dívida de barracão como resultado da
as relações se assentam numa troca direta, isto é, manipulação ideológica de categorias mercantis
o dependente tem consciência que está cedendo como o débito e o crédito, sendo usadas “menos
um produto para o seu senhor. No caso da relação que a expressão de um balanço real, acima de
de dependência na Amazônia oitocentista, temos tudo um recurso destinado a reter a mão-de-
um elemento obliterante, a saber, a dívida. Esta é obra”20. O barracão na Amazônia tem, portanto,
a cadeia à qual a personagem José está apeada. um caráter comercial (econômico) e representa
No romance, ela é o índice da especificidade da uma instituição social (espaço de convivência
organização do trabalho na região-palco, na qual e de costumes e formador de uma ética social).
é encenada a obra de Inglês de Sousa. Ela é Contudo, seu elemento caracterizador, a
configuração de uma formação socioeconômica contabilidade é mais ilusória do que real.
Acervo histórico

Concebe Teixeira a necessidade de se estudar a A explicação do padre Samuel a José pode ser
dívida “enquanto instrumento de coerção”21, isto considerada a tentativa de expor a sua atenção ao
é, busca compreender o significado da dívida funcionamento da economia mercantil. Ele pede a
como instrumento de controle. O endividamento José que dê um preço ao seu trabalho (monetarize
do seringueiro possui sua expressão contável sua força de trabalho). Em outras palavras, padre
(haver/ativo versus dever/passivo ou saldo Samuel, o representante do esclarecimento em
credor versus devedor), mas é ideológica, pois meio à floresta equatorial, quer introduzir José no
ela não passa de uma forma aparente, uma jogo do mercado, no qual o preço assume a ex-
expressão de manipulação, na medida em que pressão aparente de um equivalente.
cria uma convicção do seu natural resgate pelos
seus participantes. Estes acreditam que estão Deixemos de lado o discurso esclarecido do pa-
envolvidos numa verdadeira relação mercantil dre e destaquemos uma observação dele: José,
e não numa relação espoliativa. A dívida, como mesmo educado, sabendo contar, não consegue
mecanismo contábil, criava no trabalhador a idéia escapar das astúcias de Fabrício. O narrador já
de que, trabalhando muito, ele poderia obter saldo havia chamado a atenção sobre este paradoxo:
para pagá-la e até acumular algum dinheiro. A “se por um lado a educação[...] lhe facilitava o
dívida só formalmente expressaria uma relação salvar-se das astucias habituaes dos regatões,
fundada na troca de equivalente, pois nas [...] por outro lado o capitão Fabricio absorvia
relações sociais entre seringueiros e seringalistas todo o producto dos seus esforços”25. Como in-
ela se apresenta como um elemento da “ideologia terpretar este paradoxo? Tentemos uma resposta
do aviamento”22. A ideologia é expressão da que, também, contribuirá para o deciframento da
relação necessária entre formas invertidas de fantasmagoria da dívida.
consciência e a existência material dos homens.
Ela é uma distorção do pensamento que nasce das Os regatões na sociedade amazônica são os
contradições sociais e as oculta. Portanto, para suportes do capital comercial. E, como tais, es-
superá-la, dando conseqüência ao comentário de tão submetidos à lei do movimento deste capital:
Teixeira, bastaria mostrar o processo que a dívida “Comprar barato, para vender caro”26, pois só
esconde, a saber, as trocas desiguais. É neste pode extrair seu lucro do preço das mercadorias
sentido que a personagem padre Samuel explica que vende. O lucro obtido desta venda é igual à
a situação de endividamento de José junto ao diferença entre o preço de compra e o de venda.
capitão Fabrício. Vejamos. Para efetivar este movimento, utilizam-se o lo-
gro e a trapaça para auferir maiores lucros. Os
A cabeça de José ruminava umas idéias: regatões estabelecem com os camponeses um
“Sacrificar a felicidade da minha vida inteira! intercâmbio de mercadorias, por exemplo: meios
Eu que tenho trabalhado tanto, [...] por causa de produção ou produtos supérfluos por produ-
de um dever, supposto talvez...”23. Na busca tos extrativos, no qual objetivam apoderar-se do
de solucionar este conflito interior, resolve José trabalho excedente em decorrência da diferença
procurar o seu padrinho, o padre de Alenquer entre o preço de venda e o de compra. Contu-
(cidade do Estado do Pará), Samuel. do, não se utilizam de nenhum artifício para a
obtenção dos produtos, somente estimulam a
Após contar seu drama, José escutou as palavras necessidade do produtor direto para as suas
de padre Samuel em tom de censura: mercadorias, o que os levará a permutar pelos
produtos de seu trabalho. O mesmo não acon-
“Que elle fizesse isso com teu pai que tece com o proprietário Fabrício, que se utiliza
era um homem ignorante, vá, mas que tu, do instrumento da sujeição da vontade do traba-
um rapaz que mandei educar, um rapaz lhador José para apropriar-se do sobretrabalho
que sabe lêr, escrever e contar, te deixes em benefício da sua acumulação. Façamos um
enganar pelo capitão Fabricio...! [...] Por confronto desta questão com o estudo de Leo-
que não tomas nota de tudo que dás ao narda Musumeci sobre o camponês de fronteira
capitão, pedindo-lhe que faça um preço? no Estado do Maranhão, no final da década de
Assim breve te verás livre dessa divida que 1970, no qual temos a apresentação, sob uma
te acabrunha.”24 outra abordagem, da mesma problemática.

Ouvindo essas palavras, o pescador sentiu-se Musumeci pergunta: “como se explica a subordi-
tomado de vergonha, porém passageira em com- nação do pequeno produtor ao ‘capital mercantil-
paração ao seu estado de alegria pelo peso que usurário’ [categorização do patrão] num contexto
o seu padrinho havia tirado, comenta o narrador. em que dispõe da terra e dos meios de produção”?
77

A maioria dos estudos que tentam responder a tal outros meios de produção, só resta ao patrão
questão deixam de fora “os aspectos extra-eco- construir uma rede de fidelidade afetiva com o
nômicos das relações de patronagem”27. A autora produtor. O objetivo é prender o maior número
chama de patronagem a complexa política de re- de lavradores como dependentes de um único
lações sociais, que envolve negociações, troca de patrão, que somente é alcançado com a constru-
favores e a cooperação, até o recurso à violência ção da rede de reciprocidades.
aberta. O ponto chave na relação patrão/freguês
é “a confiança recíproca, ou pelo menos um relati- O paradoxo apontado pelo narrador de História
vo equilíbrio dos interesses mútuos, nem sempre de um Pescador e pela personagem do padre
fácil de se obter e de se reproduzir”. Estas rela- Samuel só existe para quem fica preso à trans-
ções são baseadas numa sociabilidade, na qual o parência das relações econômicas. E, por isso,
compromisso moral é mais privilegiado do que as é estranho que, na relação com os regatões,
obrigações contratuais (jurídico-legais). Portanto, José se saia bem e o mesmo não ocorra em
a representação do vínculo de patronagem é “ relação a Fabrício. Enquanto naquela relação,
‘pacto de reciprocidade’ “28. os regatões, como “veículo de troca mercantil”,
não exercem nenhuma coerção fantasmagórica¸
Nessa relação, espera-se do patrão a generosi- na relação com o capitão temos a mediação da
dade no atendimento das demandas pecuniárias dívida que serve como nexo de ofuscação30 das
dos fregueses. Ele deve considerar o freguês relações sociais no contexto da Amazônia. Por-
“como ‘pessoa’ (vizinho, amigo, parente, com- tanto, para “José o que lhe acontecia era natu-
padre, afilhado...) e não como ‘indivíduo’, a ele ral”. Aquele nexo de ofuscação não o deixava ver
vinculado apenas por uma obrigação contratual que o “mal do Amazonas está na escravidão do
e por um interesse específico”. Da parte do fre- trabalho, que o governo central creou com o fim
guês, naquela relação, espera-se que responda de ter eleições victoriosas”31 — expõe o narra-
à generosidade e à tolerância do patrão com a dor. Aqui, como no conto “Voluntário”, a força do
fidelidade e respeito, atitudes que se traduzem, poder central, mediado pelos potentados locais,
materialmente, com o pagamento das dívidas. é a peça central na maquinaria de dominação
Temos, afirma Musumeci, “um vínculo sustenta- oitocentista no Brasil.
do na ideologia da reciprocidade, mas não pro-
priamente da reciprocidade horizontal, supondo Com os trabalhos de Carlos Teixeira e Leonarda
indivíduos ou grupos colocados em posições Musumeci, podemos assinalar, nas interpretações
perfeitamente simétricas”29. A autora define tal de hoje, o lugar no qual se apresenta o enigma
reciprocidade num tipo de vínculo que parece re- plasmado na forma literária de Inglês de Sousa.
produzir aquilo que Maria S. de Carvalho Franco Enquanto Teixeira enfatiza o elemento ideológico
chama de “obrigações entre pais e filhos, essa da dívida, Musumeci desvenda a importância da
ambivalente relação de poder e sujeição estabe- coesão extra-econômica representada pela patro-
lecida entre indivíduos que não se vêem como nagem e o pacto de reciprocidade. Com efeito, te-
essencialmente diferentes mas como potencial- mos novas expressões para aquela forma social
mente iguais”. Sem o monopólio da terra ou de amazônica, a fantasmagoria da dívida.

NOTAS
1
Essa escola tinha como características impor o exame do homem como se fosse um animal de laboratório e
evocava o meio só para explicar as reações das personagens; seu grande divulgador foi Emile Zola, que as su-
marizou no trabalho O Romance Experimental, de 1880. No Brasil, Aluísio Azevedo foi o grande vulgarizador
dessa escola, com o livro O Mulato, de 1881.
2
PEREIRA, Lúcia M. Inglês de Sousa versus Luiz Dolzani. In: ______. Escritos de Maturidade. Rio de
Janeiro, Graphia, 1994, p. 66.
3
PEREIRA, Lúcia M. Op. cit., p. 67.
4
Em uma entrevista dada a João do Rio, em RIO, João do. O Momento Literário. Rio de Janeiro, Garnier, [s.d.],
Inglês de Sousa dirá que sofreu a influência de Balzac, Dickens, Flaubert, entre outros.
5
ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Vol. 4. 7ª ed. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/
INL, 1980, p. 1187. Grifo do autor.
Acervo histórico

6
CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: Momentos decisivos. Vol. 2. São Paulo, Martins,
1975, p. 114.
7
VERÍSSIMO, José. Um Romance da Vida Amazônica. In: ______. Estudos Brasileiros. 3ª série. Rio de
Janeiro, Garnier, 1903, p. 22.
8
VERÍSSIMO, José. Op. cit., p. 26.
9
SALLES, Vicente. Introdução. �������������������
In: DOLZANI, Luiz. História de um pescador. Scenas da vida do Amazonas.
2ª ed. Belém,
�������������������������������
FCPT/SECULT, 1990, p. 8.
10
SALLES, Vicente. Op. cit., p. 12.
11
HOLANDA, Sérgio B. de. O Missionário. Revista do Brasil (3ª fase), vol. 4, n. 35, maio 1941, p. 148.
12
JOZEF, Bella (Org.) Inglês de Sousa. Textos escolhidos. Rio de Janeiro, Agir, 1963; SOUSA, Herculano
M. Inglês de. O Coronel Sangrado. Belém, EDUFPA, 1968; SOUSA, Herculano M. Inglês de. O Cacaulista.
Belém, EDUFPA, 1973; SOUSA, Herculano M. Inglês de. O Coronel Sangrado. 2. ed. Belém, EDUFPA, 2003;
SOUSA, Herculano M. Inglês de. O Cacaulista. 2 ed. Belém, EDUFPA, 2004; SOUSA, Herculano M. Inglês
de. Contos Amazônicos. 3ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2004.
13
TAUSSIG, Michael. Xamanismo, Colonialismo e Homem Selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura. Rio
de Janeiro, Paz & Terra, 1993, p. 81.
14
TAUSSIG, Michael. Op. cit., p. 79.
15
DOLZANI, Luiz (Herculano M. Inglês de Sousa). História de um pescador. Scenas da Vida do Amazonas. 2ª
ed. Belém , SECULT, 1990, p. 34 (Edição fac-similada da 1ª. Edição.). Mantenho a ortografia original.
16
DOLZANI, Luiz. Op. cit., p. 48.
17
ARAMBURU, Mikel. Aviamento, Modernidade e Pós-modernidade no interior Amazônico. Revista
Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 9, n. 25, 1994, p.82-99.
18
TEIXEIRA, Carlos Corrêa. O Aviamento e o Barracão na Sociedade do Seringal. (Estudo sobre a produção
extrativa de borracha na Amazônia). Dissertação (Mestrado). São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP, 1980.
19
GEFFRAY, Christian. Chroniques de la servitude en Amazonie brésilienne. Paris, Karthala, 1995.
20
TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Op. cit., p. 5.
21
TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Op. cit., p. 197.
22
TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Op. cit., p. 248.
23
DOLZANI, Luiz. Op. cit., p. 82. ������������
Grifo nosso.
24
DOLZANI, Luiz. Op. cit., p. 84-85. ������������
Grifo nosso.
25
DOLZANI, Luiz. Op. cit., p. 35.
26
MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. �����������������������������������������������
L. III, vol. 5. 4ª ed. São
�����������������������
Paulo, DIFEL, 1985.
27
MUSUMECI, Leonarda. O Mito da Terra Liberta. São Paulo, Vértice/ANPOCS, 1988, p. 297 e 299. Grifo
nosso.
28
MUSUMECI, Leonarda. Op. cit., p. 336 e 337. �������������������������������������������������������������
O pacto de reciprocidade assenta-se na relação entre forte e
fraco, no qual se exerce uma pressão social e moral sobre o forte, que cria a obrigação de ajudar o mais fraco.
Este pacto pode ser interpretado como uma expressão da formação de compromisso, ainda que reciprocidade
não seja igual a compromisso. A primeira pressupõe uma implicação de troca ou permuta entre duas pessoas; a
segunda implica um acordo entre litigantes de um pleito.
29
MUSUMECI, Leonarda. Op. cit., p. 338 e 339. Grifo da autora.
30
Esta é uma expressão de Theodor Adorno. Segundo Gabriel Cohn (Difícil reconciliação. Adorno e a Dialética
da Cultura. Lua Nova. São Paulo, n.20, p.5-18, maio 1990), o nexo refere-se a uma conexão cujas articulações se
consolidam e se furtam à consciência precisamente em virtude da ofuscação, que aqui não significa cegueira ou
deslumbramento em geral, mas incapacidade de reflexão, subordinação regressiva a relações naturalizadas.
31
DOLZANI, Luiz. Op. cit., p. 49-50.


PRONUNCIAMENTO DE Eu estabeleço uma profunda diferença entre o ensino


INGLÊS DE SOUSA normal e o ensino secundário.

39ª Sessão Ordinária, realizada A nobre Comissão, pelas disposições do seu projeto,
em 6 de abril de 1880. parece confundir um com o outro.

O Sr. Inglês de Sousa: – Sr. Presidente, eu não preten- Os característicos principais do ensino normal são a sua
dia tomar tempo à Assembléia na discussão do projeto limitação e a sua profundeza. Esses característicos são
da escola normal, no ponto em que estão os nossos as qualidades essenciais do mesmo ensino. Ministrar
trabalhos e quando está próximo o encerramento da aos alunos uma instrução sólida e limitada, eis a missão
presente sessão, tanto mais que, se não puder passar de uma escola normal bem organizada; e para que esse
esse projeto, devemos fazer sempre alguma coisa, pois ensino seja bastante profundo e possa produzir verda-
que o ensino da escola normal é uma necessidade evi- deiros professores, é indispensável que seja limitado.
dente que não precisa de demonstração.
Quando reduzi a quatro cadeiras o número das maté-
Mas, Sr. Presidente, autor de um projeto primitivo sobre rias, não o fiz por precipitação, nem por falta de estudo;
o qual a nobre Comissão de Instrução Pública deu seu fi-lo propositalmente, porque entendi que tratando-se
parecer, apresentando um substitutivo, corre-me de al- de professores, era preciso ensinar-lhes o que mais
guma forma o dever de justificar as idéias contidas no tarde deveriam ensinar aos seus alunos.
projeto que apresentei, tanto mais quanto foram elas
censuradas na imprensa como fruto da precipitação, e Trata-se de organizar uma escola normal primária, e se-
da falta de exame da questão. gundo a legislação que rege essa matéria na província,
o ensino é um e bem determinado. O que deve fazer
Corre-me o dever de justificar as restrições por mim o legislador que trata de organizar uma escola nessas
postas no referido projeto, filhas de um sistema que condições? Ter em vista, e é essencial esse ponto, as
me pareceu bem pensado, em relação às matérias do matérias que formam o ensino elementar do país.
ensino do curso normal.
Qual a missão da escola normal entre nós? Criar pro-
Farei, Sr. Presidente, consistir a defesa do projeto pri- fessores que possam ensinar as matérias elementares
mitivo, no ataque das diversas disposições do projeto aos que iniciam a sua carreira literária. Sob esse ponto
da nobre Comissão, visto como um é exatamente o de vista é claro que toda e qualquer matéria que se
contrário do outro. introduzir no ensino normal, sem ser da ordem das que
lhe são essenciais, será pelo menos dispensável, e a
As idéias contidas em um são radicalmente opostas escola normal, como já disse alguém, só deve ocupar-
às contidas em outro. Nesse intuito encararei o subs- se de matérias indispensáveis. Temos um exemplo no
titutivo sob diversos pontos de vista, já em relação à nosso país. As faculdades superiores do Império, pela
extensão e qualidade do ensino,
já em relação à duração do cur-
Acervo Dainis Karepovs

so, já em relação à divisão das


matérias por ano.

Falarei das lacunas que encontro


no projeto substitutivo e do seu
preço.

A primeira questão, Sr. Presiden-


te, a mais importante e que sepa-
ra a Comissão do obscuro autor
do projeto primitivo é a questão de
extensão e qualidade do ensino
que se há de ministrar aos alunos
mestres da escola normal.

Entendo, Sr. Presidente, que a


nossa divergência está limitada a
esse ponto ao modo de entender A terceira sede da Escola Normal de São Paulo, criada em 1880 a partir de um
o ensino. substitutivo do Deputado Inglês de Sousa, ficava na Rua do Tesouro
Acervo histórico

grande extensão que se tem dado ao ensino, hão pro- trata de formar políticos, nem homens que mais tarde
duzido efeitos contrários ao que se desejava. Vemos, possam desempenhar qualquer emprego, qualquer en-
dessas faculdades, sair grande número de alunos que, cargo do país; trata-se de formar professores, trata-se
tendo uma tintura geral das matérias que estudam, de uma profissão certa e determinada, de um ofício, se
não conhecem profundamente nenhuma delas, e são assim me posso exprimir.
incapazes, muitos, logo que deixam os bancos da aca-
demia, de exercerem a profissão para que estudaram De certo que a ilustrada Comissão de Justiça e Instru-
cinco ou seis anos. ção Pública, se tratasse de organizar uma escola de
ferreiro, não iria exigir para o ferreiro conhecimentos
Principalmente nas academias de direito temos visto do serralheiro. Ora, o ofício de professor é um ofício
constantemente que o ensino de matérias inúteis, como outro qualquer; a escola normal trata de formar
algumas até ridículas, sobrecarregando a inteligência professores e portanto as matérias que estes têm
do aluno, tem trazido como conseqüência, apenas uma de ensinar é que devem formar o ensino da mesma
ilustração superficial (quando essa mesma existe) e escola.
incapaz de produzir os frutos que todo homem sensato
deve ter em vista. Expondo essa teoria, não o faço de autoridade própria,
que é nenhuma (não apoiados). Se as minhas palavras
Ora, Sr. Presidente, se observamos esse fenômeno em não têm autoridade, iremos buscar nos países onde a
relação às escolas superiores de direito e de medicina instrução está muito adiantada argumentos em favor
em nosso país, se observamos esse fenômeno em rela- da doutrina.
ção a essas escolas que têm por fim habilitarem o aluno
a uma profissão certa e determinada, ou pelo menos ao Nos Estados Unidos, Sr. Presidente, país que a muitos
emprego único daquelas matérias que aprendem, maior outros se avantaja pelo desenvolvimento da instrução
razão temos nós para temer que na escola normal, exis- popular, reconheceu-se a supremacia a esse respeito;
tindo o ensino por demasia, no fim de dois ou três anos, em um país europeu muito atrasado em outras coisas,
quando se encerrar o curso, tenhamos professores com na Prússia, onde o ensino normal tem tido grande de-
algumas noções das matérias que estudaram, mas senvolvimento. E, irei buscar em fonte insuspeita o re-
completamente ineptos para ensiná-las. Não é esse o conhecimento dessa autoridade da Prússia; tenho aqui
resultado que podia ter em vista a ilustrada Comissão, algumas palavras do relatório apresentado, em 1871,
apresentando o seu parecer, porque deve saber que a pelo Diretor da Instrução Pública ao Ministro do Interior
escola normal é criada para formar professores de cer- da União Americana. (lê)*:
tas e determinadas matérias, e portanto sob esse ponto
de vista é que devia firmar-se a base do estudo, procurar Desde muito tempo, Sr. Presidente, que a questão de
estabelecer o ensino em ordem a produzir um resultado instrução pública e, especialmente a questão de escola
seguro e ilustrar o professor tanto quanto possível, nas normal, ocupa a atenção dos estadistas prussianos. Um
matérias que tem de ensinar. ministro prussiano, Bechedorff, em seus Anais Prussia-
nos, publicados em 1825, disse o seguinte: (lê):
Nem se diga, Sr. Presidente, que a ilustração maior
pode ser proveitosa ao professor, porque, para essa Essas palavras, de um bom senso admirável, e que
ilustração ser proveitosa, era indispensável que tivesse mostram que naquele Estado se compreende perfei-
conhecimentos seguros das matérias que ia ensinar, e tamente qual seja a missão das escolas normais, não
que essas noções gerais, sobrecarregando a inteligên- ficaram sem efeito; e se em 1825 elas foram escritas,
cia do professor, não viessem prejudicar o ensino das em 1854, nos famosos regulamentos da instrução
matérias essenciais. pública da Prússia, tiveram a sua aplicação e foram
perfeitamente contempladas.
Eu sei, Sr. Presidente, que para o homem político, para
o homem literato, para aquele que se encaminha à car- Creio que toda a Casa conhece os regulamentos de
reira das letras, e mesmo para qualquer homem que 1854 que reformaram a instrução pública da Prússia e
quiser figurar na sociedade, são indispensáveis certos especialmente o primeiro, que se ocupa da organiza-
conhecimentos; mas, a redução das matérias da esco- ção das escolas normais evangélicas.
la normal não impede aos professores de, mais tarde,
irem buscar esses conhecimentos, como também eles Ora, estudemos nas diversas disposições desses regu-
não poderão produzir efeito algum, desde que não pre- lamentos a matéria em questão, e veremos que ali em
judiquem o ensino das matérias indispensáveis. seis anos de curso muito poucas matérias se exigem;
são apenas: a língua alemã, cálculo, geografia, história
Sr. Presidente, na escola normal não se trata de formar pátria, canto e ginástica. Entretanto, Sr. Presidente,
literatos, não se trata de formar palradores, nem se o parecer da Comissão exige, além de todas essas
81

matérias, substituindo a língua alemã pela portuguesa, Portanto, longe de ser para nós uma vantagem, a
química, física, noções de história universal, francês e adoção da língua francesa com exclusão dessas ou-
outras coisas. tras duas, será até prejudicial, porque obstará que se
enriqueça a literatura pátria com a tradução das obras
Ora, se na Alemanha se julgou que seis anos eram alemãs e inglesas, e com o estudo mais profundo da
apenas indispensáveis para ministrarem-se ao aluno ciência pedagógica.
conhecimentos limitadíssimos como esses, como pre-
tende a nobre Comissão, em dois anos, sobrecarregar Assim, Sr. Presidente, se se exigir para o curso da
a inteligência do aluno com conhecimentos tão varia- escola normal a língua francesa, exija-se também as
dos e tão importantes? inglesa e alemã; como a Comissão entendeu, e muito
bem, dever excluir estas, acho que, para ser coerente,
Sei que a opinião da Comissão encontrará talvez eco deve excluir também aquela.
nesta Casa, e nem eu pretendo destruir o seu projeto,
e muito menos fazer prevalecer as idéias que tenho Para ensinar língua portuguesa, doutrina cristã, enfim
sobre a matéria; mas, como disse a princípio, cabe-me aquilo que o nosso regulamento sobre instrução pública
a responsabilidade de sustentar o meu projeto e, como exige para escolas elementares, não é preciso saber
as idéias se acham em antagonismo, eu prosseguirei francês, alemão e inglês. Nunca ninguém disse que para
na demonstração das verdades como as entendi, para se saber a língua portuguesa era preciso conhecer a
chegar a conclusão de que, se as nossas idéias diver- francesa. Nós vemos que nos nossos homens de letras,
gem, os nossos sentimentos são os mesmos. O pensa- nos antigos discípulos da nossa Faculdade de Direito,
mento que me levou a elaborar aquele projeto foi todo quando os preparatórios eram limitadíssimos, encon-
de ordem de utilidade pública. tram-se muitos que conhecem perfeitamente os prepa-
ratórios que estudaram no seu tempo, mais do que nós
Continuarei, pois, apesar do receio que tenho, na dis- hoje, que se exigem dez preparatórios, e o resultado é
cussão. que a maior parte dos alunos não sabe a metade deles.

Sei, Sr. Presidente, que a maior parte das pessoas pen- Entre os nossos antigos legistas encontram-se homens
sa que a língua francesa e a história universal são ma- que conhecem perfeitamente o latim; hoje é raro o discí-
térias indispensáveis em um curso de escola normal; pulo da Faculdade de Direito que conhece essa língua.
e o argumento valioso, o argumento maior que se tem
oferecido em discussões particulares em favor do fran- Entre os nossos literatos mais distintos, que tanto ilus-
cês é que é uma língua universal, é que os compêndios tram a literatura portuguesa, como a brasileira, muitos
de pedagogia são escritos nessa língua. deles não sabiam francês, ou tinham noções muito
secundárias. Citarei, por exemplo, um grande literato
Em favor da história o argumento é que todos devemos e gramático, senão da escola moderna, pelo menos da
conhecer a história universal. antiga, porém muito abalizado, que foi meu mestre, o
Sr. Sotero dos Reis, que do francês tinha apenas im-
Quanto ao primeiro, eu objeto que a língua francesa perfeito conhecimento.
não está hoje tão generalizada como se pensa e, se é,
a alemã é tanto como ela e a inglesa ainda mais. Ora, se é certo que, para ensinar a língua portuguesa
não é necessário saber a francesa, vejamos se ela se
Se esse argumento tem valor, devemos concordar faz necessária para o ensino das outras matérias do
que mais são necessárias à escola normal as línguas curso elementar.
alemã e inglesa, tanto mais que todas as obras de
pedagogia são escritas nessas duas línguas, que os Vejamos quanto à doutrina cristã.
maiores mestres de pedagogia têm escrito em alemão
e inglês; muito poucos, não conheço nenhum, em As fontes da doutrina cristã, que são os catecismos dos
francês. nossos bispos diocesanos, são escritos em português
bem como todos os livros que se ocupam da matéria.
Pode-se, porém, me objetar que os franceses traduzem
tudo quanto os alemães publicam sobre a matéria. Direi Com relação à contabilidade dá-se o mesmo, assim
que a tradução nunca vale o original, e que esse argu- como com a geografia e história pátria. Resta, portanto,
mento prova de mais, porquanto seria uma vantagem a questão de pedagogia, mas eu já disse que a mesma
para nós que os nossos literatos, aqueles que conhe- razão que havia para exigir o francês para o ensino
cem as línguas alemã e inglesa, se dessem ao trabalho da pedagogia, havia para se exigir também o alemão
de enriquecerem a nossa literatura traduzindo essas e o inglês; tanto mais que o professor não vai ensinar
obras e fazendo-lhes anotações. pedagogia, ele deve conhecê-la para saber reger a
Acervo histórico

sua cadeira; mas não vai ensiná-la a seus discípulos, Nós todos sabemos quais os resultados funestos que
porque não é do curso, porque isso não é do programa têm vindo para o verdadeiro conhecimento da história
de ensino entre nós. Portanto, desaparece completa- universal, das noções espalhadas em livrinhos sem im-
mente, a meu ver, a razão que milita no pensamento da portância, e que têm a funesta conseqüência de detur-
Comissão de Fazenda, do ensino da língua francesa na par completamente a verdade histórica, de embaraçar
escola normal. a inteligência do aluno e de viciar o ensino. Nós sabe-
mos o que o estudo da história universal mal feito, mal
Resta-me, Sr. Presidente, e é questão mais difícil, a aplicado, tem dado em resultado; nós sabemos quais
questão do ensino da história universal. foram as noções falsíssimas que existiam entre o povo
português sobre a própria história do país, quanto mais
Nos tempos que correm, a história universal tornou-se sobre a história de outros povos, até que o gênio de
de alguma forma o conhecimento indispensável de Alexandre Herculano, com o conhecimento das línguas
todo homem de letras. A história universal deve porém, dos povos, predecessores da nação portuguesa, viesse
ser conhecida a fundo, sob pena de ser inteiramente descobrir a verdade histórica no meio daquele montão
desconhecida. Conhecer noções de história universal e de crendices e prejuízos populares.
não conhecer história universal, é a mesma coisa, por-
que a história universal, segundo a ciência moderna, é Nós sabemos as noções falsíssimas que pode ter sobre
uma parte da ciência sociológica, tem a sua filosofia, a história universal todo e qualquer povo, todo e qual-
e não consiste o seu estudo na simples enumeração quer indivíduo que não conhecer a verdadeira filosofia
dos fatos. Conhecer, portanto, noções de história será, da história.
quando muito, ter algumas idéias de cronologia, mas
nunca será saber história universal. A história hoje, Sr. Presidente, é uma ciência positiva,
que se baseia sobre dados de experiência, e sobre
Ora, Sr. Presidente, se a Comissão de Justiça e Instrução verdades reconhecidas, segundo o método da escola
Pública entendeu que bastava para os alunos da escola positiva.
normal o conhecimento de algumas noções de história
universal, eu pretendo que essas noções são inúteis e A história é uma ciência complexa, cheia de leis, ou
dispensáveis; inúteis, porque, como já disse, conhecer formada de leis gerais, a que muitas vezes pode preju-
noções de história universal ou não conhecer história dicar o estudo da cronologia simples, quando mal apli-
universal vem a ser uma e a mesma coisa, porque o cado. O que não será, portanto, em relação à história,
estudo da história depende de outros estudos anteriores, quando se trata de ministrar ao aluno simplesmente
depende de estudos que não podem ser feitos na escola noções de história universal?
normal, nem podem ser feitos em curso nenhum secun-
dário. O estudo da história, pelo menos estudo profundo, O que entende a ilustrada Comissão de Justiça e Ins-
o estudo útil, depende do conhecimento de ciências mui- trução Pública por noções de história universal?
to importantes, e que não podem entrar no programa da
organização de ensino em uma escola normal. Refere-se à cronologia, ou refere-se à filosofia da histó-
ria, ao princípio geral, às leis da sociologia?
As noções de história universal, Sr. Presidente, além de
serem por esse lado inúteis, são inconvenientes porque Se refere-se à cronologia, teremos que esse estudo,
trazem o viciamento do ensino. como já disse, viciará o verdadeiro estudo da história
Acervo IEB-USP

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Acervo IEB-USP
Acervo Dainis Karepovs

Segunda edição 1876 Segunda edição 1876


(1968) (1899)
83

universal. Se se trata, porém, do estudo filosófico, te- como não se trata de dar noções superficiais das di-
remos que ele é por demais superior à inteligência do versas matérias, mas formar professores perfeitamen-
aluno. te habilitados, parece óbvio que o tempo de três anos
é pelo menos indispensável; e se ainda me é permitido
Sim, Sr. Presidente, não é com simples preparatórios do fazer citações, eu citarei as escolas da Prússia, em
curso anexo da escola normal que se há de habilitar o que se limitando o ensino a muito menos do que eu
aluno para estudar as verdades filosóficas da história. peço, todavia se marca o prazo de quatro anos.

Portanto, entendo que não só essas noções de história Em dois anos é absolutamente impossível estudar as
universal são inúteis, como prejudiciais; inúteis, porque matérias que a Comissão entendeu dever formar o
não ensinam coisa alguma, prejudiciais porque viciam programa da escola normal. Em dois anos, uma inteli-
o estudo da história. gência de primeira força não pode, absolutamente, dar
conta da tarefa.
Sr. Presidente, resta-me ainda falar em relação à exten-
são do ensino, do estudo da química e da física. Não se estuda gramática da língua portuguesa, matéria
que deve ser essencial, em dois anos; só essa matéria
Eu pergunto, senhores, em que ocasião o professor precisa de grande desenvolvimento, quanto mais peda-
do curso elementar de letras, do curso primário terá de gogia, metodologia, física, química, noções de história
aplicar em relação a sua escola, os seus conhecimen- universal, geografia, francês e outras matérias; é abso-
tos de física e de química? lutamente impossível, e não há inteligência alguma que
possa nesse prazo apresentar resultados satisfatórios,
Pergunto ainda, se o ter a noção vaga dessas duas quando qualquer dessas matérias pode preencher no
ciências pode constituir a ilustração de alguém? Se o seu estudo esse lapso de tempo.
saber definir um objeto segundo as leis da física ou da
química pode melhorar em alguma coisa a instrução Quem é capaz de estudar todas essas matérias em
pública entre nós, e a condição do aluno em relação ao dois anos? (lê): “Gramática e língua portuguesa, arit-
seu professor? mética, geometria, geografia, história, etc, etc.” E ainda
mais o francês, língua estranha. Portanto, acho que
Pergunto ainda, Sr. Presidente, se esses conhecimen- três anos são indispensáveis para o conhecimento das
tos, que eu suponho que a Comissão teve em vista mi- matérias do meu projeto, e se passar como é possível e
nistrar, não estão compreendidos na cadeira do projeto até provável, o projeto da Comissão, apresentarei uma
primitivo e do projeto substitutivo que vou ter a honra emenda para ampliar o tempo a quatro anos.
de apresentar à Casa, de pedagogia, metodologia, e
noção de coisas? Quero ser lógico: – se para o meu projeto peço três,
para o da Comissão não posso deixar de pedir quatro
Tenho me estendido demais sobre esse primeiro pon- anos.
to da questão, Sr. Presidente, e receio bem que não
possa chegar ao desenvolvimento completo do meu O terceiro ponto que me separa da Comissão refere-se
pensamento nessa matéria; passo, porém, embora um à divisão das matérias do ensino. Ainda nesse ponto a
pouco fatigado, a tratar do segundo ponto em que eu minha divergência é profunda.
discordo do parecer da ilustrada Comissão de Justiça e
Instrução Pública. O projeto que tive a honra de apresentar à consideração
da Casa dividia as matérias por cadeiras. A Comissão no
Esse segundo ponto refere-se ao tempo do concurso; seu substitutivo dividiu as matérias por ano e arbitraria-
e sobre ele pouco direi, em vista do que já tenho dito, mente. Basta ler as disposições do projeto da Comissão,
porque essa segunda questão acha-se intimamente para chegar-se ao conhecimento dessa verdade.
ligada à primeira.
Vejamos (lê):
Se eu entendo, Sr. Presidente, que as matérias do
curso normal devem ser muito limitadas, para que se “1º ano, 1ª cadeira. – Gramática nacional (exame par-
possa aprofundar o conhecimento delas, está claro que cial). Doutrina cristã (exame final). Aritmética (exame
o tempo de dois anos marcado pela ilustrada Comissão parcial). Sistema métrico e noções geométricas (exa-
é por demasia insuficiente. me parcial destas e final daquele). Estudos práticos de
ensino.”
Se a missão principal da escola normal é ministrar
conhecimentos profundos, embora limitados, quanto Só na primeira cadeira do primeiro ano, incumbida a um
maior for o tempo, melhor profundeza se obterá, e professor, estão as matérias que acabo de numerar, de
Acervo histórico

forma que um professor, para que seja bom, para que “Gramática nacional, origem e períodos de língua, estu-
possa ensinar razoavelmente, precisa ser profundo em do de redação, ensaio de estilo e declamação. História
todas essas matérias. sagrada. Pedagogia teórica.”

Na segunda cadeira, vê-se (lê): 2ª cadeira do 1º ano (lê).

“Noções de história universal e elementos de geografia “Noções de história universal e elementos de geografia
(exame final). Francês (exame parcial).” (exame final). Francês (exame parcial).”

Não basta que o professor seja um gramático distinto, e 1ª cadeira do 2º ano (lê).
que tenha conhecimento de história universal; é preciso
que saiba francês para ensinar. “Gramática nacional, origem e períodos de língua, estu-
do de redação, ensaio de estilo e declamação. História
3ª cadeira (lê): sagrada. Pedagogia teórica.”

“Noções de física e química com aplicação à higiene, De forma que estuda história universal com um e histó-
agricultura e indústria (exame final).” ria sagrada com outro.

1ª cadeira do 2º ano (lê): As noções de física e química que poderiam ser úteis
ao estudo da pedagogia estão contempladas na tercei-
“Gramática nacional, origem e períodos de língua, estu- ra cadeira do primeiro ano, ao passo que a pedagogia
do de redação, ensaio de estilo e declamação. História faz parte da segunda cadeira do segundo ano.
sagrada. Pedagogia teórica.”
Na segunda cadeira do primeiro ano está o estudo da
Não é somente o desconhecimento dos princípios da língua francesa; na terceira cadeira do segundo ano
especialidade do professor que se deu aqui; há ainda ainda o estudo da língua francesa.
mais: confusão das matérias do
DAH-ALESP

ensino. Não é somente querer


que um professor seja bom em
várias matérias completamente
diferentes; quer-se ainda mais
que o aluno comece a aprender
gramática com um professor e
acabe com outro; e bem assim
aritmética; quer-se que a peda-
gogia, que é questão de méto-
do, principie com um professor
e acabe com outro; porque, na
primeira cadeira do primeiro
ano, está contemplada a maté-
ria; mas a segunda cadeira do
segundo ano trata da mesma
coisa. Vejamos.

1ª cadeira do 1º ano (lê).

“Gramática nacional (exame


parcial). Doutrina cristã (exame
final). Aritmética (exame par-
cial). Sistema métrico e noções
geométricas (exame parcial
destas e final daquele). Estu-
dos práticos de ensino.”

Ao passo que no segundo ano


está a primeira cadeira com as Primeira página do manuscrito do substitutivo do Deputado Inglês de Sousa que
seguintes matérias (lê). recriou a Escola Normal de São Paulo
85

Não preciso mostrar os graves inconvenientes dessa A Comissão procurou remediar esse mal facultando
divisão do curso, feita pela Comissão; não preciso aos professores a prestação de exames vagos; mas,
demonstrar os erros que podem resultar desse sis- Sr. Presidente, é colocar o professor em obstáculos,
tema. Cada matéria tem seu método, cada professor em condições muito inferiores aos alunos da escola
seu sistema. Começar com um e acabar com outro é normal; e desde que tratamos de dar garantias aos
tornar improfícuo o ensino, é baralhar o estudo das professores, não podemos fazer tal coisa.
matérias.
O professor público que vem à capital, embora tenha a
Nesse ponto divirjo completamente do parecer da Co- vantagem de fazer exame vago, encontra dois grandes
missão e penso que não pode prevalecer semelhante obstáculos, um obstáculo material e outro intelectual; o
divisão. material porque o professor, para fazer o seu transporte
para esta capital, precisa de tempo e de dinheiro; e inte-
O quarto ponto em que estou em divergência é quanto lectual porque, fora daqui, sem recursos, sem professo-
à síntese geral do projeto que terá lacunas graves. res, sem livros e sem tempo, não poderá estudar con-
venientemente de modo a habilitar-se para o exame da
Essas lacunas podem dividir-se em relação ao ensino, escola normal. Se o aluno da escola normal tem dois ou
em relação ao professor e em relação à despesa; em três anos para o estudo, se a província lhe paga profes-
relação ao ensino, porque o projeto da Comissão não sores para explicarem as matérias, está claro que os que
especificou a divisão das cadeiras, não especificou as freqüentam as aulas estão em melhores condições do
matérias por classes, as ciências como elas devem ser, que os pobres professores do interior que vêm prestar-se
mas distribuiu noções pelos diversos anos, prejudican- a exame vago, que têm de aprender consigo mesmo.
do a boa ordem e bom conhecimento das matérias.
Parece incontestável que, nessas condições, não podere-
Esse primeiro ponto acha-se completamente ligado à mos conseguir o resultado que desejamos, que é satisfa-
questão que acabo de ventilar, e não insistirei sobre zer a causa popular, desenvolver a instrução pública por
ele; contudo, cumpre-me dizer que em relação à pe- meio de professores aptos para o ensino; não poderemos
dagogia e metodologia, houve não só baralhamento, conseguir o que desejamos, criando obstáculos como es-
como até lacunas. tes ao pobre professor do interior, que não pode estudar
na escola normal. Obstáculo intelectual, porque não pode
Fala-se em noções práticas de pedagogia, que é uma estudar na escola normal, e material, porque têm de fazer
ciência completa, e noções teóricas, quando se quer sacrifícios de tempo e de dinheiro para vir habilitar-se.
falar em pedagogia e metodologia, ciências diversas
e também completas. Ora, Sr. Presidente, nem noção Há ainda, Sr. Presidente, uma lacuna no projeto da
de ensino prático forma a pedagogia, nem noção de Comissão, em relação à despesa.
ensino teórico a metodologia; são ciências diversas e
completamente acabadas; uma, refere-se ao discípulo, Creio que de alguma forma a Comissão há de justificar
a outra refere-se ao modo de ensino. essa falta, e me parece até que não devo fazer cabedal
dela. É a questão dos ordenados da escola anexa; a
A sua lacuna em relação ao professor é mais grave. Comissão criou uma escola anexa e não criou ordena-
A Comissão, tratando de um projeto que tem por fim dos para os professores dela; porém deixo esse ponto
melhorar a instrução pública na província, esqueceu- para ocupar-me do preço do projeto, e pouco direi por-
se das garantias que devia oferecer aos professores. que já me acho fatigado como há de estar a Casa. (Não
Ora, se é verdade que sem bons professores não apoiados gerais).
podemos ter boa instrução, é certo que se esses
professores não tiverem vantagens convenientes, não Sr. Presidente, no projeto primitivo que tive a honra
teremos bons professores; a Comissão esqueceu-se de oferecer à consideração da Casa, marquei quinze
do primeiro ponto de vantagem ao professor, isto é, a contos para as despesas de instalação e expediente da
vitaliciedade; não diz se lhes é permitida a vitalicieda- escola normal e no projeto substitutivo que vou man-
de e em que caso. dar à Mesa, para despesas de instalação, aumento de
ordenados aos professores e aumento de professores,
A meu ver é uma garantia essencial ao professor e que marco 18 (dezoito) contos.
não pode ser esquecida.
A Comissão de Justiça pede 30 (trinta) contos só por-
Esqueceu-se ainda mais a Comissão de remediar os que nos dá mais noções de química e física, etc.
prejuízos a que são sujeitos os professores públicos em
exercício, que têm de vir a esta capital cursar a escola Só por essas noções temos de gastar mais doze contos
normal. de réis, e nem se diga que a questão não é importante,
Acervo histórico

é importantíssima. Nessa época em que temos de lutar nega dinheiro para estradas, enfim, a Comissão de
para a confecção de um orçamento sem déficit, em Instrução Pública pede, para o ensino de noções de
que nos vemos obrigados a desatender a importantes química, física e história universal, 12:000$. É caro.
obras públicas, em que somos obrigados a deixar de
cuidar das estradas do interior que se acham em es- São essas as objeções que eu tinha de fazer ao projeto
tado deplorável; quando nós recusamos dinheiro para da Comissão. Vou mandar à Mesa o meu substitutivo
as verdadeiras fontes de renda, que vão no-lo restituir, em que, conservando as idéias do projeto primitivo, fiz
gastamos com um diretor da escola normal, com um algumas alterações de modo que ele possa merecer as
secretário; com a papelada enfim, soma tão elevada. simpatias da maioria da Casa, que me parecem volta-
das para o lado da Comissão de Instrução Pública.
Sr. Presidente, quando se reduziu o soldo das praças
do corpo de permanentes, quando se negou aquies- Reservo-me, para na 2ª discussão, discutir artigo por
cência a diversas empresas de utilidade pública, o ar- artigo o projeto da Comissão, se o substitutivo não pas-
gumento máximo que se invocou foi a falta de dinheiro, sar, e oferecer emendas a cada um deles. (Muito bem,
o estado deplorável dos cofres públicos. Quando se muito bem.)

NOTAS
*
Infelizmente os Anais não transcrevem os trechos neste e no parágrafo seguinte lidos pelo
orador.

Um Conto de Inglês de Sousa

O Voluntário
A velha tapuia Rosa já não podia cuidar da pequena não lhe receava Rosa a competência na tecedura do
lavoura que lhe deixara o marido. Vivia só com o filho, algodão e do tucum, talento de que tinha quase tanto
que passava os dias na pesca do pirarucu e do peixe- orgulho como de haver parido o mais falado pescador
boi, vendidos no porto de Alenquer e de que tiravam daquela redondeza.
ambos o sustento, pois o cacau mal chegava para a
roupa e para o tabaco. Apesar da pobreza rústica da Pedro era em 1865 um rapagão de dezenove anos,
casa, com as suas portas de japá e as paredes de so- desempenado e forte. Tinha olhos pequenos, tais quais
papo, com o chão de terra batida, cavada pela ação do os do pai, com a diferença de que eram vivos, e de uma
tempo, tinha a tapuia em alguma conta o asseio. Trazia negrura de pasmar. A face era cor de cobre, as feições
o terreiro bem varrido e o porto livre das canaranas que achatadas e grosseiras, de caboclo legítimo, mas com
a corrente do rio vinha ali depositando. E se os tipitis, um cunho de bondade e de candura, que atraía o cora-
as cuiambucas e todos os utensílios caseiros andavam ção de quantos lhe punham a vista em cima. Demais,
sempre lavados com cuidado, as redes de dormir pare- serviçal e alegre até ali. Os viajantes, tocando no porto
ciam ter saído do tear, de brancas e novas que sempre do sítio da velha Rosa, seguindo para Alenquer ou de lá
se encontravam. Rosa tecia redes, e os produtos da voltando, ficavam cativos da doçura e da afabilidade com
sua pequena indústria gozavam de boa fama nos arre- que se oferecia o rapaz para os acompanhar à vila, ou
dores. A reputação da tapuia crescera com a feitura de dava conselhos práticos sobre a viagem e os pousos.
uma maqueira de tucum ornamentada com a coroa bra-
sileira, obra de ingênuo gosto, que lhe valera a admira- Quanto à generosidade, basta dizer que jamais lhe suce-
ção de toda a comarca e provocara a inveja da célebre dia arpoar um pirarucu sem presentear com a ventrecha
Ana Raimunda, de Óbidos, a qual chegara a formar aos vizinhos pobres, e se num belo dia lhe caía a sorte
uma fortunazinha com aquela especialidade, quando a de matar um peixe-boi no lago, havia festa em casa. To-
indústria norte-americana reduzira à inatividade os te- dos os conhecidos recebiam um naco da carne do sabo-
ares rotineiros do Amazonas. Ana Raimunda seria uma roso mamífero, bebiam um trago da cachacinha da velha
coisa nunca vista no fabrico de redes de aparato, mas e voltavam para o seu sítio, proclamando com a língua
87

grossa e pesada a felicidade da tia Rosa, que tinha um rê, cujo assovio sardônico dá ao corpo o calafrio das
filho tão amigo dos pobres. Era o mais destro pescador sezões? Em que pensa? Na vida? É talvez um sonho,
do igarapé de Alenquer. Nenhum conhecia melhor do talvez nada. É uma contemplação pura.
que ele as manhas do pirarucu e da tartaruga, nenhum
governava melhor a leve montaria, nem mandava a Dessa melancolia contínua dão mostra principalmente
maior altura a grande flecha empenada, que, revolvendo as mulheres, por causa da vida que levam. Os homens
em vertiginosa queda, vinha fisgar certeira o caso dos sempre andam, vêem uma ou outra vez gente e coi-
ardilosos batrácios. Para o Pedro da velha Rosa, todo o sas novas. As mulheres passam toda vida no sítio, no
mês era de piracema. Que se queixassem os outros da mais completo isolamento. Assim, a tapuia Rosa, que
avareza da estação. Ele voltava sempre para casa com de nada se podia queixar, com a vida material segura,
algum pescado, ao menos uma cambada de aruanás ou suprema ambição do caboclo, foi sempre dada a triste-
de tucunarés de caniço. Era um pescador feliz, o diacho zas; a fronte alta e calma, os olhos pequenos e negros
do rapaz, e a velha Rosa devia viver muito contente! e a boca séria tinham uma expressão de melancolia
que impressionava à primeira vista. Teria a natureza
E vivia. estampado naquele rosto o pressentimento de futuras
desgraças, ou a mesquinhez da alma humana ante a
A tapuia passava de ordinário os dias sentada num majestade do rio e da floresta a predispunha a não
banquinho diante do tear, trabalhando nas suas queri- oferecer resistência aos embates da adversidade? Era
das redes, que lhe pareciam superiores às dos Estados a saudade do esposo morto ou receio vago dos fracos
Unidos, com cuja concorrência vitoriosa lutava debalde diante dos arcanos do futuro?
a rotineira indústria, e fumando tabaco de Santarém num
comprido cachimbo de taquari, com cabeça de barro Ninguém o podia dizer, mas é certo que até o princípio
queimado. Quando caía a tarde, depois de ter comido a do ano de 1865 correram tranqüilos os dias no cacaual
sua lasca de pirarucu assado ou a gorda posta do fresco da velha Rosa.
tambaqui, com pirão de farinha d’água, molho de sal,
pimenta e limão, ia sentar-se à soleira da porta, de onde Quem não sabe o efeito produzido à beira do rio pela
contemplava o magnífico espetáculo do pôr-do-sol entre notícia da declaração da guerra entre o Brasil e o Pa-
os aningais da margem do rio, e ouvia o canto da cigarra, raguai?
chorando saudades da efêmera existência, que a tananá
oculta, em doce estribilho, consolava. Nas classes mais favorecidas da fortuna, nas cidades
principalmente, o entusiasmo foi grande e duradouro.
É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Mas entre o povo miúdo o medo do recrutamento para
Face a face toda a vida com a natureza grandiosa e voluntário da pátria foi tão intenso que muitos tapuios se
solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e meteram pelas matas e pelas cabeceiras dos rios e ali
distante da agitação social, concentra-se a alma num viveram como animais bravios sujeitos a toda a espécie
apático recolhimento, que se traduz externamente pela de privações. Falava-se de Francisco Solano Lopes nos
tristeza do semblante e pela gravidade do gesto. serões do interior da província como de um monstro
devorador de carne humana, de um tigre incapaz de um
O caboclo não ri, sorri apenas; e a sua natureza con- sentimento humanitário. A ignorância dos nossos rústi-
templativa revela-se no olhar fixo e vago em que se cos patrícios, agravada pelas fábulas ridículas editadas
lêem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da pela imprensa oficiosa, dando ao nosso governo o papel
inteligência ao mundo objetivo, e dele assoberbada. Os de libertador do Paraguai (embora contra a vontade do
seus pensamentos não se manifestam em palavras por libertando o libertasse a tiro), não podia reconhecer no
lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão comu- ditador o que realmente era: uma coragem de herói,
nicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão. uma vontade forte, uma inteligência superior ao serviço
de uma ambição retrógrada. Os jovens tapuios tremiam
Haveis de ter encontrado, beirando o rio, em viagem só de ouvir-lhe o nome; as mães e as esposas faziam
pelos sítios, o dono da casa sentado no terreiro a promessas sobre promessas a todos os santos do calen-
olhar fixamente para as águas da correnteza, para dário, pedindo que lhes livrassem os queridos filhos e os
um bem-te-vi que canta na laranjeira, para as nuvens maridos das malhas da rede recrutadora.
brancas do céu, levando horas e horas esquecido de
tudo, imóvel e mudo numa espécie de êxtase. Em que Coisa terrível que era então o recrutamento!
pensará o pobre tapuio? No encanto misterioso da mãe
d’água, cuja sedutora voz lhe parece estar ouvindo no Esse meio violento de preencher os quadros do exérci-
murmúrio da corrente? No curupira que vagabundeia to era, ao tempo da guerra, posto em prática com bar-
nas matas, fatal e esquivo, com o olhar ardente cheio baridade e tirania, indignas de um povo que pretende
de promessas e de ameaças? No diabólico saci-pere- foros de civilizado.
Acervo histórico

Suplícios tremendos eram infligidos aos que, fugindo de farda e baioneta, entidades não vulgares naquelas
a uma obrigação não compreendida, ousavam preferir paragens. Sem saber explicar o estranho caso, continu-
a paz do trabalho e o sossego do lar à ventura de se ara a remar e, em breve, aportara ao sítio e, puxando a
deixarem cortar em postas na defesa das estâncias canoa para terra, fora dar parte da pescaria à mãe, sem
rio-grandenses e das aldeolas de Mato Grosso. Nar- lhe falar do que vira na casa do vizinho.
ravam diariamente os periódicos casos espantosos,
reclamações enérgicas contra o arbítrio das autorida- Na manhã do dia seguinte, entretinha-se o rapaz a
des locais, mas o governo a tudo cerrava os ouvidos, fazer uma cerca de varas no terreiro, quando lhe apa-
por necessitar de fornecer vítimas às desenterias do recera pelo cacaual o velho Inácio Mendes, vizinho e
Passo da Pátria e carne brasileira aos canhões vora- amigo, o mesmo que morreu o ano passado afogado
zes de Humaitá. Foi então que se mostrou em toda a no Inhamundá, tentando salvar o filho, atraído pela mãe
sua hediondez a tirania dos mandões de aldeia. Os d’água. Como o assunto de todas as conversas da bei-
graúdos não perderam a ocasião de satisfazer ódios e ra do rio era a guerra, falou-se do recrutamento.
caprichos, oprimindo os adversários políticos que não
sabiam procurar, ao serviço de abastados e poderosos Inácio dizia-se portador de notícias frescas. O capitão
fazendeiros, proteção e amparo contra o recrutamento, Fabrício, nomeado recrutador em todo termo de Alen-
à custa do sacrifício da própria liberdade e da honra quer, recebera ordem terminante do presidente da pro-
das mulheres, das filhas e das irmãs. Sim. Não preten- víncia para mandar pelo primeiro vapor um contingente
do carregar os tons sombrios do quadro da miséria do de voluntários, custasse o que custasse. Essa ordem,
proletário brasileiro naqueles tempos calamitosos, em transmitida pelo delegado de polícia de Santarém, fora
que o pobre só se julgava a salvo do despotismo quan- trazida a toda pressa pelo sargento Moura, acompa-
do nas mãos do senhor do engenho, do fazendeiro, do nhado de cinco guardas nacionais que aquela autori-
comandante do batalhão da guarda nacional abdicava dade pusera à disposição do recrutador, prometendo
a sua independência, pela sujeição a trabalho forçado enviar-lhe logo maior força, se fosse necessário.
mal ou nada remunerado; a sua dignidade pela resigna-
ção aos castigos corporais e aos maus-tratos; e a honra – O capitão – acrescentou Inácio em voz baixa – não é
da família pela obrigada complacência com a violação lá homem para hesitar em se tratando de maldades.
das mulheres. Em Alenquer, por exemplo, o capitão
Fabrício, nomeado recrutador, alardeando serviços ao E continuara, narrando as desgraças da época. Já o An-
partido de cima, praticou as maiores atrocidades, tendo tônio da Silva fugira a todo o pano para Vila Bela, onde
por única lei o seu capricho. De toda a parte se levan- mora um negociante que é seu compadre. Na casa do
tavam clamores contra o rico e perverso fazendeiro
do igarapé, mas, cônscio do apoio dos chefes do seu
Acervo Dainis Karepovs

grupo político, continuava Fabrício obrando as maiores


atrocidades, que constituíram a sua vida até o filho do
Anselmo Marques, com um salutar tiro de espingarda,
pôr-lhe termo à ominosa existência.

Descuidado e contente, Pedro labutava em paz, apesar


das desgraças do tempo, ouvidas aos domingos, depois
da missa, no adro da matriz. E quando lhe perguntavam
se não receava o recrutamento, dizia com a candura
habitual que nunca fizera mal a ninguém, e era filho
único de mulher viúva. Não contava, porém, com a má
vontade de Manuel de Andrade, mulato que era seu rival
na pesca das tartarugas. Manuel era a alma danada do
capitão Fabrício, em cuja fazenda vivia como agregado.
Toda a gente o acusava de desapiedado executor das
maldades do fazendeiro. Era tido como homem sem es-
crúpulos, que matava por prazer. E as proezas pacíficas
do filho da velha Rosa enchiam-lhe o coração de inveja.

Numa tarde de dezembro de 1865, ou de janeiro do ano


seguinte (já não me recordo bem da data), Pedro, ao
voltar da pesca, passando pelo porto da fazenda, no-
Integrantes de companhias de índios batedores entre os
tara um movimento desusado e, observando, pensara Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai, retratados
ter visto o Manuel de Andrade e dois ou três soldados, pela Revista Illustrada, de 6/8/1865
89

Pantaleão Soares, português legítimo, o sargento Moura de, mas só descobriram os alvíssimos dentes, cerrados
varejara os quartos em que dormiam as filhas do pobre por um esforço violento. O corpo todo tremia, como se
homem, e levara o atrevimento ao ponto de revistá-las, maleitas o sacudissem e um último lampejo de razão
dizendo que podiam ser homens disfarçados. O Raimun- o impediu de atirar-se ao recrutador e de o afogar nas
do Nonato e o filho da tia Rita haviam-se metido pelo mãos robustas.
mato dentro, sem que se soubesse o seu paradeiro. Um
tapuio dos lagos, tendo vindo à vila comprar mantimen- Mas o capitão prosseguia com brandura hipócrita:
tos, vira-se perseguido pelos guardas e fora comido por
jacarés, querendo salvar-se a nado. – Ora deixe-se de tolices... afinal que é que tem ser sol-
dado? É até muito bonito, e as mulheres pelam-se pela
E terminou entre risonho e triste o velho Inácio: farda azul-ferrete e pelos botões amarelos. Não será
uma honra para a tapuia velha ter um filho oficial? Pois
– Que quer, seu Pedro? Nestes tempos, nem os pobres é o que pode muito bem acontecer, se você tiver juízo,
velhos têm a certeza de escapar. O que vale é que não beber, não furtar, não fizer nenhuma má-criação, e
Deus é grande... e o mato maior. resolver-se a aprender a leitura e a escrita, que não é lá
bicho-de-sete-cabeças. É verdade que você pode ficar
Três dias depois da visita de Inácio Mendes, pelas 7 prisioneiro dos paraguaios e mesmo morrer de uma
horas da manhã, a velha Rosa tratava do almoço, e bala na cabeça, mas isso... são fatalidades. Também se
Pedro, sentado à soleira da porta, preparava-se para morre na cama e até... pescando pirarucus e caçando
caçar papagaios, limpando uma bela espingarda de papagaios. Por isso deixe-se de asneiras, carinha ale-
dois canos, quando viu adiantar-se para o seu lado o gre e marche-marche para o sul. Mesmo porque você
capitão Fabrício, com os modos risonhos e corteses de está recrutadinho da silva, e o que não tem remédio
um bom vizinho. Pedro ergueu-se surpreso e acanhado remediado está.
e pôs-se a balbuciar cumprimentos ao fazendeiro, cujo
sorriso o enleava. O rapaz soltou um grito surdo, avançou contra Fabrício,
arrancou-lhe a espingarda das mãos e brandiu-a sobre
– Ora bom dia, seu Pedro. Então já sei que vai à caça? a cabeça do capitão, como se fora uma bengala. Quan-
E está com uma bonita arma! Quer vendê-la? do ia descarregar o golpe, sentiu-se agarrado. Eram o
sargento Moura e dois soldados, que, saindo dum ma-
E foi lha tirando das mãos, sem que o pescador, admi- tagal próximo, se haviam aproximado sem ser vistos.
rado de tão grande afabilidade, pensasse em contra- Ao ruído da luta, acudiu a velha Rosa, que, soltando
riar-lhe o gesto. brados lamentosos, tentou arrancar o filho aos solda-
dos, mas o capitão Fabrício segurou-a por um braço e
– Eh, eh! seu Pedro, você está um rapaz robusto e de- atirou-a de encontro a um esteio da casa.
via ser voluntário da Pátria. O governo precisa de gente
forte lá no sul para dar cabo do demônio do Lopez. Ora, A tapuia, caindo, feriu a cabeça, mas, erguendo-se de
é uma vergonha que você esteja a matar os pobrezi- súbito e levantando a espingarda que estava no chão,
nhos dos papagaios e a arpoar os inocentes dos pira- fez pontaria contra o sargento. A arma não estava
rucus, quando melhor quebraria a proa aos paraguaios, carregada.
que são brutos também e inimigos dos cristãos.
Foi uma cena terrível que teve lugar então. A velha
Pedro balbuciava negativas e desculpas. Era filho úni- Rosa, desgrenhada, com os vestidos rotos, coberta
co... não tinha jeito para a guerra... quem tomaria conta de sangue, soltava bramidos de fera parida. Pedro
da pobre velhinha? Mas o capitão pôs-lhe a mão no estorcia-se em convulsões violentas e os soldados não
ombro dizendo em voz repassada de mel: conseguiam arredá-lo da mãe. Fabrício, ordenando que
levassem o preso, lançara ambas as mãos aos cabelos
– Pois então tenha paciência. Se não quer ser voluntá- da velha e, puxando por eles, procurava conseguir que
rio, está recrutado. largasse as roupas do filho. Os guardas, impacientes e
coléricos, desembainharam a baioneta e começaram a
Pedro deu um pulo para trás, como se fora mordido por espancar alternativamente a mãe e o filho, animados
uma cobra. Recrutado, ele! A palavra fatídica soou-lhe pela voz e pelo exemplo do sargento, ainda pálido do
aos ouvidos como anúncio de irreparável desgraça. susto que sofrera.
O seu ar de candura e de bondade desapareceu por
encanto, e o rapaz ficou todo transformado, como o Muito tempo teria durado a luta, se não tivessem apa-
pai, quando lutava braço a braço com alguma onça recido alguns agregados do capitão, dirigidos pelo
traiçoeira. Os olhos injetaram-se-lhe de sangue. Os Manuel de Andrade, em cuja larga face morena se lia
lábios entreabriram-se para deixar sair a palavra rebel- satisfação de um ódio, até ali contido a custo.
Acervo histórico
Acervo Dainis Karepovs

português vira do seu porto passar a canoa que levava


o recruta e, desconfiando do que sucedera, viera, logo
que pudera furtar algum tempo aos seus afazeres,
informar-se do ocorrido.

Pobre tia Rosa! Em que miserando estado a encon-


trara! Seria possível que Deus permitisse tão grande
injustiça! O Inácio cortou-lhe as cordas, lavou-lhe a
ferida com água avinagrada e teve de empregar a força
para obrigá-la a deitar-se, pois ardia em febre. Depois
que a viu mais sossegada, o bom do português correu a
casa em busca da mulher para fazer companhia aquela
noite à doente, recomendando-lhe que não dormisse,
velasse toda a noite, pois o estado da tapuia era melin-
droso. Apesar da advertência do marido, a enfermeira
adormecera pela madrugada, e, quando acordara, a
Desenho de Santa Rosa para a capa da terceira edição de claridade de um dia esplêndido entrava pela transpa-
O missionário (1946)
rência do japá. A rede da velha Rosa estava vazia. A
mulher do Inácio Mendes correu ao porto e não achou
O mulato adiantou-se com ar resoluto: a montaria de pesca de Pedro.

– Ó gentes! Temos cerimônias? Estava eu a esse tempo em Santarém, preparando


uma viagem a Itaituba, a serviço da minha advocacia.
E voltando-se para os que o seguiam:
Passeando uma tarde na praia do Tapajós, abeirou-se
– Amarra porco, rapaziada! de mim uma cabocla velha em quem a custo reconheci
a industriosa e boa velhinha do igarapé de Alenquer,
Ou pela sua profissão de vaqueiros, ou porque já se em cuja hospitaleira casa dormira algumas vezes de
achassem prevenidos, traziam cordas consigo. Pedro passagem pelo sítio. Ela, porém, me reconhecera
e Rosa foram deitados por terra e amarrados de pés e facilmente e, parece até que a conselho de algumas
mãos. Depois a gente do Manuel Andrade carregou o pessoas, me procurava como o único doutor da terra,
rapaz e foi depô-lo numa grande montaria que o capitão que exercia a profissão de advogado. Contou-me a sua
mandara buscar à fazenda. história, interrompendo-se a miúdo para limpar na man-
ga do vestido as lágrimas que lhe corriam, e finalizou
Quando o preso, o sargento e os soldados se acha- entregando-me um embrulho com dinheiro, duzentos e
ram dentro da canoa, Fabrício ordenou ao Manuel poucos mil-réis, tudo quanto tinha, para que lhe livrasse
de Andrade e a outro agregado que tomassem os o filho de jurar bandeira.
remos e seguissem para Alenquer. Depois, dando
um pontapé na velha tapuia estendida em meio do Voltei imediatamente à cidade e, por intermédio de um
terreiro, seguiu com o resto da sua gente a caminho amigo comum, obtive do delegado de polícia a licença
da fazenda. de ver o recruta na cadeia, mas por uma só vez, e
como exceção rara. O tapuio estava mergulhado num
Ela desmaiara. Não dera acordo de si quando lhe silêncio apático, de que nada o fazia sair. O fatalismo
levaram o filho para a canoa, nem sequer sentira a do amazonense o convencera de que não se poderia
última e bestial expansão da ira do recrutador. Mas arrancar à irreparável desgraça que o abatia. Ou não
quando o sol, adiantando-se na carreira, veio ferir-lhe me reconheceu, ou não quis falar-me.
em cheio os olhos amortecidos, tornou a si, olhou em
derredor e, recordando o que se passara, começou a Requeri habeas corpus em favor de Pedro, alegando
agitar-se e a dar gritos que ecoavam lugubremente na a sua qualidade de filho único de mulher viúva. O juiz
floresta. Procurava pôr-se de pé, mas não o conse- de direito ordenou o seu comparecimento, inquiriu o
guia. Não podia também desprender os braços e as comandante do destacamento e algumas testemu-
pernas; as cordas eram sólidas e os nós apertados. nhas e exigiu informações do delegado. Empreguei
Sozinha, abandonada no sítio deserto, exposta no a maior atividade nas diligências necessárias, porque
terreiro, ferida e quase nua, aos raios ardentíssimos sabia que era esperado a toda a hora o vapor da
do sol, a velha Rosa, a boa e generosa velhinha, teria Companhia do Amazonas, que devia levar o contin-
sucumbido miseravelmente, se por volta de meio-dia gente de recrutas para a capital. Uma manhã, vinha
não tivesse ali chegado o vizinho Inácio Mendes. O eu da casa do juiz com as melhores esperanças de
1

êxito, pois se mostrava crente do direito que assistia da polícia ausente. Outras vezes, eram lamentações e
ao meu cliente, e compadecido da sorte da velha que condolências da sorte daqueles pobres diabos que nem
lhe não deixava a soleira da porta onde dormia. Vinha sabiam naquele momento se voltariam a ver a terra
pensando na minha viagem pelo Tapajós acima, logo adorada do Amazonas.
que terminasse a obra de humanidade que queria
praticar, quando me encontrei com o agente da Com- Os curumins anunciavam os recrutas à medida que se
panhia. aproximavam:

– Olhe, doutor, o vapor está entrando. Os voluntários – Os voluntários! Os voluntários!


estão prontos.
– Voluntários de pau e corda! – disse causticamente
Corri imediatamente à cadeia e notei o movimento que o vigário padre Pereira, fumando cigarros à porta de
produzira a ordem de embarque. Corri à praia, onde era uma loja.
imensa a aglomeração de povo à espera do vapor que
vinha entrando à boca do largo Tapajós, em busca dos Já mais adiante, os curumins repetiam numa ironia
futuros defensores da Pátria. inconsciente:

Começou logo o embarque dos recrutas. – Os voluntários, olha os voluntários!

Eram vinte rapazes tapuios os que a autoridade obri- Os recrutas caminhavam sob um sol ardente, seguidos
gava a representar a comédia do voluntariado. Vi-os das mães, das irmãs e das noivas, que soluçavam alto,
sair da cadeia, entre duas filas de guardas nacionais, e numa prantina desordenada, chamando a atenção do
encaminharem-se para o porto, seguidos dos parentes, povo. Os homens iam silenciosos como se acompa-
dos amigos e de simples curiosos. nhassem um enterro. Ninguém se atrevia a levantar a
voz contra a autoridade. Se a fuga fosse possível, ne-
Iam cabisbaixos, uns corridos de vergonha, como crimi- nhum daqueles homens deixaria de facilitá-la. Mas como
nosos obrigados a percorrer as ruas da cidade nas gar- fugir em pleno dia, no meio de tantos guardas nacionais
ras da justiça; outros, resignados e imbecis como bois, armados e prevenidos? Nada, mais valia resignar-se e
caminhando para o matadouro; outros ainda procurando sofrer calado, que sempre se lucrava alguma coisa.
encobrir sob uma jovialidade triste as amarguras íntimas;
todos marchando maquinalmente, alheios ao que se
Acervo Dainis Karepovs

passava e dizia em redor de si, oferecendo um aspecto


de apatia covarde e idiota. Vestiam calça e camisa de
algodão riscado, a mesma roupa com que uma semana
antes arpoavam pirarucus ou plantavam mandioca nas
roças da beira do rio. Alguns, aqueles de quem se des-
confiava, por mais valentes e ágeis, traziam algemas.

As portas e as janelas das ruas por onde passava a


nova leva de recrutas estavam apinhadas de gente. As
mulheres e as crianças corriam a vê-los de perto, con-
servando-se, porém, a uma distância respeitável dos
guardas nacionais, que marchavam pesadamente, aca-
nhados, vestidos na sua jaqueta de velho pano azul,
quase vermelho, e vexados com a comprida baioneta
colocada muito atrás, a bater-lhes os rins num com-
passo irregular, conforme com os acidentes das ruas
mal calçadas. O povo comentava o caso, analisava
a fisionomia dos novos soldados, daqueles heróicos
defensores da Pátria, carneiros levados em récua para
o açougue.

As exclamações cruzavam-se, as pilhérias atraves-


savam a rua e caíam duras como pedras sobre as
cabeças impassíveis dos guardas nacionais, pobres
operários, honrados roceiros, arrancados à oficina ou à
lavoura para guarnecerem a cidade e fazerem o serviço Terceira edição (2004)
Acervo histórico

Chegaram ao porto e avistaram o vapor que fumegava, Levei à conta de demência a incredulidade da velha e
prestes a partir. As canoas que os deviam conduzir para entrei na casa do juiz para informar-me do resultado do
o paquete estavam prontas. Começou o embarque em habeas corpus.
boa ordem. Nenhum dos recrutas abraçou amigos e
parentes; os adeuses trocaram-se com os olhos e com O magistrado disse-me com alguma tristeza:
as mãos, de longe.
– Escusado é tentar mais nada. O rapaz já embarcou.
Quando as canoas largaram da praia, as mulheres
romperam num clamor; e os tapuios, acocorados ao E como me visse atônito, sem ânimo de proferir pala-
fundo da igarité que os separava da ribanceira, se- vra, compreendeu o meu espanto e acrescentou:
guiam com a vista a terra que recuava, fugindo deles.
Tinham os olhos secos, mas amortecidos. Um deixava – Desconfiaram de mim. Ontem à noite mandaram-no
naquela saudosa praia a mãe doente e entrevada, ar- numa canoa bem tripulada esperar o vapor a meia lé-
rastada até ali para soluçar a última despedida ao filho gua da boca do rio.
que partia para a guerra. E o voluntário, resignado à
morte com que contava nos sertões do sul, tinha o co- A indignação fez-me ultrapassar os limites da conve-
ração apertado, pensando na miséria em que deixava niência. Perguntei, irado, ao juiz como se deixara ele
a velhinha, obrigada dali em diante a viver de esmolas. assim burlar pela polícia, expondo a dignidade do seu
Outro pensava na sua roça nova, aberta pelo S. João, cargo ao menosprezo de um funcionário subalterno.
havia seis meses apenas, com tanto amor e trabalho, Mas ele, sorrindo misteriosamente, bateu-me no ombro
e que seria dentro em breve pasto de capivaras dani- e disse em tom paternal:
nhas e de macacos gulosos; ou na montaria de pesca,
abandonada no porto, para presa do primeiro ladrão – Colega, você ainda é muito moço. Manda quem pode.
que passasse. Este sonhava com as longas horas de Não queira ser palmatória do mundo.
imobilidade ansiosa, nas brumas da antemanhã, de pé
na canoa, esperando o primeiro respirar do pirarucu E acrescentou alegremente:
possante; aquele com a gentil namorada, tanto tempo
cobiçada e quase noiva, que não teria paciência para – Olhe, sabe uma coisa? Vamos tomar café.
esperar-lhe a volta incerta. E todos pálidos, desespe-
rados, sombrios, sentiam no supremo momento da Ainda há bem pouco tempo, vagava pela cidade de
separação que tudo estava perdido, e a morte, uma Santarém uma pobre tapuia doida. A maior parte do dia
morte terrível e misteriosa os esperava lá nas terras passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no
em que dominava o monstro do Paraguai, devorador horizonte, cantando com voz trêmula e desenxabida a
de carne humana. quadrinha popular:

Apesar da tristeza do espetáculo que me compungia Meu anel de diamantes


o coração, não pude deixar de alegrar-me por não ver caiu n’água e foi ao fundo;
entre os recrutas o filho da velha Rosa. Acompanhei os peixinhos me disseram:
a leva desde o quartel até à praia, vi-a embarcar, não viva Dom Pedro Segundo!
me afastei enquanto o vapor não levantou ferros e
procurou a barra do Tapajós, soltando um silvo rouco e
prolongado. Adquiri então a certeza de que Pedro não Glossário
embarcara, de que ficara em terra, e dessa convicção
aningal – aglomerado de aningas, vegetação típica do
augurei as melhores esperanças. Se o delegado o não
limite da mata com os alagados.
enviara por aquele vapor, fora certamente por não ha-
canarana – capim que cresce na água dos rios da
ver ainda jurado bandeira, e duvidoso se fazia o caso
Amazônia.
do seu recrutamento, em face dos fundamentos do ha-
cuiambuca – o mesmo que cumbuca.
beas corpus requerido. Em todo o caso, mesmo consi-
igarité – tipo de canoa.
derando a polícia bem recrutado o tapuio, tinha diante japá – esteira feita de folha de palmeira, substitui a
de mim oito ou dez dias, o intervalo de uma chegada madeira nas portas e janelas, serve de toldo nas em-
de paquete a outra, para trabalhar em seu favor. barcações e para cobrir barracas, alpendres etc.
maqueira – rede para dormir.
Comuniquei a nova à tia Rosa que fui encontrar senta- tananá – inseto da Amazônia que emite um forte som
da à porta do juiz de direito, onde passara a noite. Não agudo.
partilhou da minha convicção. Na sua opinião, eu es- tapuio – índio ou mestiço de índio.
tava enfeitiçado. Pedro não estava no quartel e, por- tucum – fibra tirada da palmeira de mesmo nome.
tanto, seguira naquele mesmo vapor para a capital. ventrecha – posta de peixe, que se segue à cabeça.


Registro&Datas
• Exposição/Livro/Exposição Virtual Prudente Na abertura da exposição foi também lançado
de Moraes - Manuscritos, documentos originais, o livro Prudente de Moraes, Parlamentar da
painéis fotográficos, charges e notícias que mar- Província de São Paulo (1868 – 1889), com
caram a história do Brasil do final do Império à a presença do Presidente Deputado Sidney
implantação da República e registraram a pas- Beraldo, do Secretário Geral Parlamentar,
sagem do notório parlamentar paulista Prudente Auro Augusto Caliman, do Vice-Presidente da
de Moraes – primeiro presidente civil e eleito da Assembléia do Rio Grande do Sul, Deputado
República – na vida pública, ficaram expostos Manoel Maria, de parlamentares, familiares de
no Hall Monumental da Assembléia Legislativa Prudente de Moraes, pesquisadores e público
do Estado de São Paulo, dos dias 25 a 29 de interessado. As 312 páginas do livro Prudente de
outubro de 2004. Moraes, Parlamentar da Província de São Paulo
(1868 – 1889) são um importante instrumento
Organizada pela Divisão de Acervo Histórico, para a reflexão e compreensão do importante
a exposição, já disponível na página eletrônica
do Acervo – no Portal da Assembléia Legislativa
(www.al.sp.gov.br), na aba “Documentação e
Informação - Acervo Histórico” –, foi resultado
de pesquisa realizada nos Acervos do Museu
“Prudente de Moraes” de Piracicaba, do Museu
Republicano “Convenção de Itu”, do Museu da
República do Rio de Janeiro, da Faculdade de Di-
reito da Universidade de São Paulo e da Divisão
de Acervo Histórico da Assembléia Legislativa.
Ela trata de sua trajetória pessoal e política, de
vereador a presidente da República, enfatizando
sua passagem pelo Legislativo Paulista.
Maurício Garcia

Detalhe da exposição “Prudente de Moraes” no Hall Monumental do Palácio 9 de Julho


Acervo histórico
Maurício Garcia

dia 11 de janeiro de 2005, inserida


na ata de seus trabalhos e aprova-
do por unanimidade, no qual afirma
a importância da Revista Acervo
histórico, que reproduzimos:

“Registro a publicação de mais um


número da revista da Assembléia
Legislativa do Estado de São Paulo,
Acervo Histórico, que é editada pela
Divisão de Acervo Histórico daque-
la Casa. Este número publica um
estudo de Renata Bastos da Silva
sobre ‘A Política Tributária de caio
Prado Júnior na Constituinte Paulis-
ta’, de 1947. Parecerá curioso que
o autor do indispensável ‘Formação
Contemporânea do Brasil’ tenha
encontrado tempo e justificativa
para examinar a questão tributária
Na abertura da exposição “Prudente de Moraes”: Dainis Karepovs,
brasileira. Mas a professora Re-
Caio Silveira Ramos, Auro Augusto Caliman, Deputado Manoel Maria,
Deputado Sidney Beraldo (da esquerda para a direita) nata Bastos da Silva demonstra
que o então deputado constituinte
período da história brasileira e paulista, na Caio Prado Júnior dedicou sua inteligência e
transição do Império para a República; da conhecimentos para denunciar o quanto havia
monarquia hereditária e do regime escravocrata de autoritário e injusto no sistema tributário
às idéias republicanas fundadas na igualdade do imposto ao Brasil pelo Estado Novo de Getúlio
cidadão. O livro faz parte da série “Parlamentares Dornelles Vargas e que era o vigente naqueles
Paulistas”, sucedendo os dedicados a Eugênio dias – pode-se concluir que este trabalho do
Egas e Caio Prado Júnior. pensador Caio Prado Júnior se mantém atual,
mesmo porque o tributarismo brasileiro conti-
A série busca resgatar a memória daqueles que, nua questão aberta.
por suas idéias, palavras e ações, dignificaram e
engrandeceram o Brasil, São Paulo e o Parlamento Não é de menor interesse o trabalho da jorna-
Paulista. Prudente de Moraes caracterizou-se lista Olívia Gurjão, dedicado ao político Sólon
pela defesa das idéias republicanas durante a Borges dos Reis. Resultou de dois depoimen-
Monarquia e pela implantação e estabilização tos do político e educador. Também destaco o
do regime republicano, como primeiro cidadão trabalho de Zita de Paula Rosa, ‘Prática Políti-
brasileiro a ser eleito pelo voto para o mais alto ca do Legislativo Paulista’, no qual retorna ao
cargo do país. Um perfil biográfico situa-o em tema de seu livro ‘A Dominação Legitimada – A
seu tempo, seguindo-se um levantamento de Atuação dos Deputados e Senadores Paulis-
sua produção legislativa, uma seleção dos seus tas na chamada República Velha (1889-1930)’.
principais pronunciamentos e um levantamento Para não me estender mais: A Revista Acervo
iconográfico que ilustra o volume. histórico vale como exemplo para as Assem-
bléias Legislativas, inclusive a da Bahia”.
No lançamento o trineto de Prudente de Moraes,
Caio Silveira Ramos, também funcionário do A revista Acervo histórico obteve grande re-
Legislativo Paulista, fez um pronunciamento em ceptividade, principalmente no meio acadêmico.
nome da família. Além das universidades nacionais, também foi
solicitado seu envio ao Center for Latin American
• Conselho de Cultura da Bahia – O Conselho and Caribbean Studies da Duke University e à
Estadual de Cultura da Secretaria da Cultura e Nettie Lee Benson Latin American Collection da
Turismo do Governo do Estado da Bahia encami- Universidade do Texas em Austin, ambas univer-
nhou ofício à Assembléia Legislativa do Estado de sidades dos EUA, e ao Centre d’Études et de
São Paulo, comunicando o registro feito pelo Con- Recherches Sur Le Brésil – CERB (Centro de
selheiro Luís Henrique Dias Tavares, durante a Estudos e Pesquisas sobre o Brasil), da Univer-
Sessão Plenária daquele colegiado, realizada no sidade de Quebec, em Montreal, Canadá.


• Imperial Cidade de São Paulo – Para homena- os quiosques, o Teatro, o Museu do Ipiranga, a
gear São Paulo, a Capital da Província, fundada Escola Normal e as sedes da Assembléia Provin-
em 1554, o Legislativo Paulista, através da sua cial, ricamente ilustrado com fotos e documentos
Divisão de Acervo Histórico do Departamento da época, muitos deles inéditos. Esgotada, a
de Documentação e Informação da Secretaria 1ª edição pode ser consultada em Arquivos e
Geral Parlamentar, publicou o livro São Paulo – A Bibliotecas Públicas Municipais, nas Bibliotecas
Imperial Cidade e a Assembléia Legislativa Pro- das Universidades e da Assembléia Legislativa.
vincial. A edição, comemorativa aos 170 anos da
Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, A história do Legislativo e dos municípios paulistas
foi lançada no dia 1º de fevereiro, na Festa da está entrelaçada há 170 anos. Durante o Império,
Democracia e Cidadania. Presentes ao evento o a Assembléia Legislativa foi a responsável por
Governador do Estado, Geraldo Alckmin, o Presi- aprovar as leis municipais e preserva, no seu
dente da Assembléia, Deputado Sidney Beraldo, Acervo Histórico, milhares de documentos que
o 1º Secretário, Deputado Caldini Crespo, a 2ª recompõem a história da vida política de nosso
Secretária, Deputada Maria Lúcia Prandi, o Presi- Estado, a constituição de seus municípios, assim
dente do Tribunal de Justiça, Luis Elias Tâmbara, como as políticas públicas adotadas nos diferentes
o Presidente do Tribunal de Contas do Estado, períodos, o que possibilitou a publicação da obra.
Claudio Alvarenga, além de ex-Presidentes da
Casa, parlamentares e convidados. A comemo- • Agradecimentos – A Divisão de Acervo Históri-
ração contou, também, com as vozes do Coral co agradece as publicações doadas pelas seguin-
“Programa Qualidade de Vida”, da Secretaria de tes instituições e pessoas: Assembléia Legislativa
Estado da Educação. do Estado de Minas Gerais – Gerência de Biblio-
teca e Arquivo; Biblioteca Central da Universidade
O livro reconstitui, a partir da documentação Estadual de Montes Claros (MG); Centro de Pes-
preservada pela Divisão de Acervo Histórico re- quisa e Documentação de História Contemporâ-
ferente ao período de 1835, quando foi criada a nea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas; Centro
Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, Universitário São Camilo (Espírito Santo); Divisão
a 1889, o cotidiano da Cidade, temas permeados do Arquivo Histórico Municipal da Cidade de São
pelos hábitos e costumes de seu povo, a pavi- Paulo; Fundação Astrojildo Pereira; Instituto dos
mentação de suas ruas, a iluminação, a saúde Advogados de São Paulo; Marcus Vinnicius Ca-
pública e a sua modernização em meados de valcante Leite; Ministério da Fazenda (Projeto
século XIX, o Viaduto do Chá, o Jardim Público, Memória da Secretaria da Receita Federal).
Marco A. Cardelino

Os três Poderes paulistas presentes ao lançamento do livro do Acervo Histórico: o Legislativo, com o Deputado Sidney
Beraldo, o Executivo, com o Governador Geraldo Alckmin, e o Judiciário, com o Presidente do Tribunal de Justiça
Luis Elias Tâmbara (da esquerda para a direita)
Acervo histórico

Normas de redação
de Acervo Histórico
Acervo histórico é uma publicação semestral da Divisão de Acervo Histórico da Assembléia Legis-
lativa do Estado de São Paulo e tem como objetivo a divulgação de artigos e fontes de pesquisa de
História e disciplinas afins, informes parciais de pesquisa em desenvolvimento, documentos inéditos
e resenhas críticas, cujos temas estejam presentes em seu acervo - preferencialmente, trabalhos
realizados com os documentos desse acervo. Acervo histórico convida autores de instituições de
ensino e pesquisa nacionais e internacionais e também recebe colaborações espontâneas. Publica
também, em reedição e tradução, trabalhos relevantes que se caracterizem como fundamentais à
sua temática, desde que, para tanto, haja a autorização expressa do editor da publicação original.
Os artigos cujos autores são identificados representam o ponto de vista dos próprios autores e não
a posição oficial de Acervo histórico , da Divisão de Acervo Histórico ou da Assembléia Legislativa
do Estado de São Paulo.
O autor receberá, sem ônus, cinco exemplares da publicação na qual consta seu artigo.
A publicação de qualquer matéria está subordinada à aprovação prévia da Divisão de Acervo His-
tórico. Os artigos aceitos para publicação serão revisados em língua portuguesa. No caso de cola-
boradores internacionais o texto será traduzido para o português.

Apresentação dos Originais 3) Artigos com autoria em obra coletiva:


COSTA, Emília Viotti da. Brasil: A era da re-
O artigo deve ter aproximadamente 15 pá- forma, 1870-1889. In: BETHELL, Leslie (Org.). His-
ginas. Deve ser gravado, preferencialmente, em tória da América Latina: de 1870 a 1930, volume V.
programa Word for Windows, fonte Times New Ro- São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo;
man, tamanho 12, entrelinhas 1,5, margens 3cm Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 705-760.
(superior e esquerda) e 2,5cm (inferior e direita). 4) Artigos de jornais:
O espaço das notas será no final e deverá conter ARAÚJO, Olívio Tavares de. Lívio Abramo:
além das citações as referências bibliográficas, em 1903-1992. O Estado de S. Paulo, São Paulo,
fonte Times New Roman, tamanho 10. 28/04/1992. Caderno 2, p. 1.
As resenhas seguem as mesmas normas ge- KRIEGER depõe sobre a guerra da sucessão.
rais e deverão ter, no máximo, 4 páginas. Correio Braziliense, Brasília, 23/01/1983, p. 4.
Abaixo do título deverão constar o nome com- O artigo deve ser gravado em disquete 3½,
pleto dos autores e indicações quanto à titulação acompanhado de uma cópia impressa. Fotografias
acadêmica, instituição outorgante e atividades que e desenhos devem ser enviados no formato “tif “ com
desempenham na instituição a que estão vinculados definição de 300dpi ou no original para possibilitar
e e-mail. Para uso exclusivo do Editor, o endereço boa reprodução. Gráficos, quadros, tabelas, fluxo-
para correspondência e telefone. gramas, etc. devem ser enviados separadamente,
Exemplos da apresentação das referências no em outro disquete 3½ com uma cópia impressa.
espaço de notas: Textos para reedição deverão indicar sua fonte
1) Monografias: original.
COELHO, Henrique. O Direito Público do Es- Os artigos não aproveitados por Acervo
tado de S. Paulo: Breve comentário da Lei Cons- histórico não terão outra utilização e não serão
titucional de 8 de julho de 1911. São Paulo, Casa devolvidos.
Vanordem, 1920, p. 27-28; O material deve ser enviado para o seguinte
SILVEIRA, Valdomiro. Os caboclos: contos. 4a endereço:
ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, Assembléia Legislativa do Estado de São
p. XI. Paulo
2) Artigos em revistas: Divisão de Acervo Histórico
THOMSON, Alistair. Histórias (co)movedoras: AC/ de ACERVO HISTÓRICO
História Oral e estudos de migração. Revista Bra- Av. Pedro Álvares Cabral, 201
sileira de História, São Paulo, vol. 22, no 44, p. Ibirapuera – São Paulo - SP - 04097-900
341-364, 2002. Outras informações: acervo@al.sp.gov.br.

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