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TRANSIÇÃO
YERMA – Fui levar comida para meu marido que trabalha na roça.
VELHA – Por que não?(longa pausa) Eu também fui levar comida para o meu marido,
está velho mas ainda trabalha. Tenho nove filhos como nove sóis, mas como nenhum é
mulher aqui ando eu de um lado para o outro.
VELHA – Ah! Enrique o pastor! Eu conheci, era boa gente. Levantar, suar comer um
pouco de pão e morrer. Nada de divertimento, “as folgas são para os outros”,
silencioso. Podia ter casado com um tio teu sabia? Mas que nada, eu fui uma louca,
corri para o primeiro pedaço de melão que apareceu. Sabe que quando era moça,
muitas vezes eu ficava na porta de madrugada , parecia que ouvia uma música vinda
de longe... mas era o vento. Tu vais até rir de mim. Tive dois maridos, quatorze filhos,
cinco morreram... Mas eu não estou triste e queria ainda viver muito mais. É o que eu
digo, as árvores como duram, as casas como duram, é só nós a endemoniadas
mulheres que com qualquer coisa viramos pó.
YERMA – Queria te fazer uma pergunta.
VELHA – O que é? (Pausa) Já sei o que quer saber, só que destas coisas eu não posso
falar nada.
YERMA – Porque não? Fiquei cheia de confiança te ouvindo falar. Faz tempo que
queria conversar com uma mulher mais velha. Porque eu preciso saber.... E a senhora
vai me dizer...
YERMA – Tudo que a senhora sabe. Por que eu estou assim seca? Vou ficar a vida
inteira assim? Cuidando de galinhas, lavando e costurando. A senhora tem que me
dizer o que é que eu tenho que fazer, que eu faço, seja o que for. Mesmo que a
senhora me mande cravar agulhas dentro dos olhos... Eu vou fazer.
VELHA – Mas eu não sei de nada. Eu me deitei de costas e comecei a cantarolar e... os
filhos... eles vieram como água. Você tem um corpo formoso, pisa que no final da rua o
cavalo relincha... mas me deixa porque eu penso muitas coisas que nem é bom falar...
YERMA – Por que não? Com meu marido eu não falo de outra coisa.
YERMA – Como?
VELHA – Não treme como uma vara verde quando ele chega perto de ti? Não te dá
assim como uma espécie de sono quando beija a tua boca? Me fala...
YERMA – Com ele não... Mas talvez eu tenha sentido isso uma vez quando Vitor...
VELHA – ...Continua.
YERMA – Quando ele me pegou pela cintura uma vez... E eu não pude fazer nada, por
que eu não podia nem falar. Uma outra vez quando eu tinha 14 anos ...O mesmo Vitor,
ele era um pastor e tanto... Ele me pegou nos braços para saltar uma poça de água e...
me deu um tremor que eu acho que até dava para ouvir os meus dentes batendo...
VELHA – Pois comigo foi tudo ao contrário. Talvez por isso que tu não tivestes filho
ainda. É preciso que os homens nos agradem, que desfaçam nossas tranças, e que nos
deem água para beber na sua própria boca. Assim anda o mundo minha filha.
YERMA – O seu mundo, porque o meu não. Eu penso muitas coisas, e eu estou certa
de que meu filho vai realizar a coisas que eu penso . Foi por ele que eu me entreguei
ao meu marido e continuo a me entregar para ver se ele chega... mas nunca para me
divertir... nunca.
YERMA – Seca não, por que eu estou e me enchendo de ódio. E me fala...a culpa é
minha? É preciso buscar num homem apenas um homem e nada mais? O que eu tenho
que pensar quando ele me deixa na cama com os olhos tristes e perdidos no espaço,
dá meia volta na cama dorme? Tenho que ficar pensando nele , ou no que pode sair
brilhando do meu ventre um dia? Eu não sei... Mas me falas tú por caridade.
VELHA – Ai que flor aberta! Que criatura mais triste... (longa pausa) Mas me deixa
quieta, não me faz falar mais, senão vou acabar falando o que não devo. Isso são
assuntos de honra, e eu não toco na honra de ninguém. Mas acho que tu devias ser
menos inocente.
YERMA - As mulheres criadas na roça como eu, encontram todas as portas fechadas,
tudo são meias palavras, gestos tortos, e dizem que tem coisas que não podemos
saber, por que? E tu também ficas calada e vai embora com ar de doutora, sabendo
tudo e negando um pouco de água para quem morre de sede.
VELHA – Com outa mulher... com uma mulher mais serena eu falaria. Contigo não... eu
sou velha e sei o que o que digo.
VELHA – Deus? Não... Não acredito em deus, quando vai chegar a entender que ele
não existe? Os homens é quem tem que te amparar minha filha.
VELHA – Mas sabe que devia sim existir deus, nem que fosse um deus pequenininho
que jogasse um raio contra todos os homens de semente prodre, que secam a alegria
dos campos.
YERMA – Eu não entendo o que quer dizer.
VELHA – Com o tempo tu vai me entender. Aguenta firme, tu ainda é muito moça...
Ainda é tempo.
YERMA – tempo...
................
CANÇÃO DA DESPEDIDA YERMA E CORO
CCENA DO RITUAL.
CASA DE DOLORES
FINAL DO RITUAL.
DOLORES – Foste corajosa. Não há no mundo como a força do desejo. Mas a rua
estava escura demais. Muitas vezes tenho feito estas orações no cemitério com
mulheres que querem ter filhos, e todas elas tiveram medo, menos tu.
YERMA – Eu vim pelo resultado. Acho que tu não és uma mulher que engana.
DOLORES – Eu não sou não. Que a minha língua se encha de formigas, assim como a
boca dos mortos se alguma vez eu menti. A última vez que fiz a reza com uma mendiga
que esteve seca há muito mais tempo do que tu. Seu ventre se adoçou de maneira tão
milagrosa que teve duas crianças ali em baixo, perto do arroio, por que não deu nem
tempo de chegar ao povoado. Ela mesma me trouxe as crianças enroladas em panos
para que eu as arranjasse.
DOLORES – Veio. Com o vestido e os sapatos encharcados de sangue, mas com a cara
rebrilhante.
YERMA – É, Deus é deus . Não podia acontecer nada mesmo. Só agarrar as crianças e
lavar com água fresca. Os animais lambem não é? Eu não tenho nojo de meu filho. Eu
imagino que as recém paridas estão como que iluminadas por dentro . e as crianças
dormem horas e horas em cima delas ouvindo este arroio de leite morno que vai
enchendo os peitos para que eles mamem e brinquem até não querer mais, até
tirarem a cabeça: “um pouquinho mais menino?” ... e ficam com a cara e o peito cheio
de gotas brancas.
YERMA – Eu tenho que ter, por força. Ou eu não entendo o mundo. As vezes quando
estou certa que nunca.... sobe como um fogo vindo dos pés, e ficam vazias para mim
todas as coisas. E os homens que andam pela rua, e os bois e as pedras me parecem
como coisas feitas de algodão. Eu pergunto para mim mesma por que estão ali.
DOLORES – É bom que uma casada queira filhos. Mas se não tem por que este
desespero? O importante, neste mundo , é se deixar levar pelo tempo. Não estou te
criticando. Viu como estou empenhada em te ajudar. Mas que terra espera dar a teu
filho, que tipo de felicidade ou cadeira de prata?
YERMA – Eu não penso no amanhã; penso no hoje. Tu já estas velha e já vê tudo como
um livro lido. Eu penso que tenho sede mas não tenho liberdade. Eu quero ter o meu
filho nos braços para poder dormir tranquila. Me escuta e não te espanta com o que
vou te dizer. Mesmo que eu soubesse que meu filho iria me martirizar e me odiar, e
que um dia iria me arrastar pelos cabelos pela rua, eu receberia com gosto o seu
nascimento. Por que é muito melhor chorar por um homem vivo que nos apunhala, do
que chorar por este fantasma sentado anos e anos em cima do meu coração.
DOLORES – Ouve meu conselho. Enquanto esperas a graça de Deus, deves te ampara
no amor de teu marido.
YERMA – Agora tu enfiaste o dedo na chaga mais funda que existe na minha carne.
YERMA – É bom, é bom oxalá fosse mau. Mas não. Ele vai com as cabras pelo seu
caminho, e de noite conta o dinheiro. Quando nos juntamos cumpre o seu dever, mas
reparo que é frio como se tivesse o corpo morto, eu que sempre tive nojo das
mulheres fogosas, queria ser naquele instante uma montanha de fogo.
DORLORES – Yerma.
YERMA – Não sou uma casada indecente, mas sei que os filhos nascem de um homem
e de uma mulher. Ai se pudesse ter sozinha.
YERMA – Não sofre não. O que acontece é que não quer ter filhos.
YERMA – Vejo isso nos olhos dele. E como não quer, não me dá.. Não o quero mais,
não quero, e no entanto ele é a minha única salvação, por honra e por casta, minha
única salvação.
DOLORES – Vai começar a amanhece daqui a pouco. Deve ir para casa. Daqui há pouco
vem os pastores com seus rebanhos.
DOLORES – A do loureiro duas vezes, e todos os dias ao meio dia a oração de Santana.
Quando te sentir prenhe traz o ramo verde que te pedi. Agora vai. Por cima do monte
já começa a clarear. Vai pelo lado do arroio para que não te vejam.
YERMA – Não sei bem por que vim.
YERMA – Não.
BATIDAS NA PORTA
DOLORES – Quem é?
DOLORES ABRE A PORTA. ENTRAM AS DUAS CUNHADAS LOGO ATRAZ ENTRA JOÃO.
JOÃO – O que está fazendo aqui neste lugar? Se pudesse gritar, acordaria toda a aldeia
para que vissem por ande anda a honra de minha casa. Mas tenho que afogar tudo e
me calar, por que é minha mulher.
YERMA – Se eu pudesse grita eu também gritaria para fazer levantar até os mortos e
vissem esta limpeza que me cobre.
JOÃO – Não. Isso não. Aguento tudo, menos isso. Tu me enganas, me enredas e como
sou um homem que trabalha a terra, não consigo entender tuas atitudes.
DOLORES – João.
JOÃO – Desde o dia do casamento que está fazendo. Olhando para mim como duas
agulhas, passando noites e noites em claro ao meu lado enchendo de mau agouro os
meus travesseiros.
JOÃO – Eu já não posso mais. Por que é preciso ser de ferro paa viver ao lado de uma
mulher que quer te enterrar os dedos no coração. E que de noite sai de sua casa em
busca de quê? Fala! Procurando o quê? As ruas estão cheias de homens. Nas ruas
existem flores para se cortar.
YERMA – Eu não vou te deixar falar mais nenhuma palavra. Nem mais uma. Acha que é
só tu e tua gente que tem honra? Esquece que minha casta nunca teve nada para
esconder. Anda. Chega perto de mim e cheira meu vestido: Vem! Vê se encontra um
outro cheiro que não seja o teu, que não seja o de teu corpo. Pode me colocar nua no
meio da praça e cospe-me. Pode fazer comigo o que quiser, já que sou tua mulher,
mas para de pôr nome de homem em cima de meus peitos.
JOÃO – Não sou eu quem põe; és tu mesma com tua conduta. E o povo já começa a
falar. Mas quando chego a uma roda todos se calam, quando vou buscar a farinha,
todos se calam, até de noite no campo parece que se calam as plantas e as ramas da
árvores.
YERMA – Eu não sei de onde vem o mau vento que balança as árvores e me fala, as
árvores não são boas?
JOÃO – Eu não sei o que busca uma mulher a toda hora fora de casa.
YERMA – (Avançando violentamente contra ele) Busco a ti, busco a ti, e tu que busco
dia e noite sem encontrar sombra onde respirar. É o teu sangue é teu amparo que
desejo.
JOÃO – (Segura ela pelo braço com violência) Para com isso.
YERMA – Olha como estou só. Como a lua que procura por si mesma pelo céu.
YERMA – (Desesperada) Quando sai para procurar meus cravos eu tropecei na parede.
YERMA – ( Aos gritos) Maldito seja o meu pai que me deixou seu sangue de pai de cem
filhos. Maldito seja o meu sangue que o busca aos trancos e barrancos pelas paredes.
YERMA – Calar a boca. Isso calar a boca, é assim. É inútil retorcer minhas mãos. Uma
coisa é querer com a cabeça...
YERMA - ... Uma coisa é querer com a cabeça, e outra é outra coisa com o corpo,
maldito seja o corpo. Pode me arrastar, mas está escrito e não vou mais me por a lutar
braço a braço com o destino. É assim! Muda fique aminha boca.
CANÇAO DA ROMARIA
CORTEJO DO SANTO
TODOS CANTAM.
A ROSA DA MARAVILHA
HOMEM 1
Casada e romeira
Á noite te despirei
HOMEM 2
Nesta romaria
VELHA – Vindes pedir filhos ao santo? Cada ano vem mais homens a esta romaria.
ANA – Vim com minha mãe e minha irmã. Há oito anos que ela vem sem resultado.
VELHA – pois eu vim para cuidar de meu filho, que é um reprodutor e está a espera de
uma seca que o deseje. Ano passado dois homens se mataram por causa de uma
murcha e eu quero vigiar. Vai conhecer ele.
MARIA – Vamos sair daqui Yerma, vamos para o lugar onde está o povo.
VELHA – Vá beber da água santa, atrás daquele monte. Meu filho estará lá.
MARIA – Yerma. Os filhos são para quem tem que ter. Vamos embora.
ANA – É o que eu digo. Ano passado naquela parte mais escura, uns rapazes colocaram
as mãos nos meus peitos.
YERMA – Yerma. Meu marido não pode me ver aqui. Vamos descer.
VELHA
SE VIERES A ROMARIA;
MARIA – Yerma. Vou descer, não posso ficar aqui. Sou uma casada.
ANA – Meu marido e minha mãe me esperam lá embaixo. A louca também se vai. Vais
ficar?
VELHA SE APROXIMA.
VELHA – O que já não se pode calar. O que está em cima dos telhados. A culpa é de teu
marido. Está ouvindo? Eu juro, deixaria que me cortassem as mãos, pois estou falando
a verdade. Nem seu pai nem seu avô, nem seu bisavô se portaram como machos de
casta. Para terem um filho, foi preciso que se juntasse o céu com a terra. São feitos de
saliva e areia aquela gente. Com tua família foi tudo ao contrário. Tu tens irmãos e
primos por cem léguas em redor. Vês que maldição caiu sobre a tua cabeça.
VELHA – Mas tu tens pés para fazer. Ainda é tempo de abandonar aquela casa.
YERMA – Abandonar ?
VELHA – Quando te vi na romaria, meu coração deu um baque. Aqui vem as mulheres
conhecer homens novos, e o santo faz o milagre (Ri). Meu filho está sentado atrás
daquela pedra te esperando. A minha casa precisa de uma boa mulher. Vai encontrar
ele, e viveremos os três juntos. Meu filho sim é de bom sangue como eu, Se entra na
minha casa vai ver que ainda está cheirando a berços. a cinza de tua colcha se
transformará em pão e sal para as crias. Não te importa com o que o povo fala. E
quanto a teu marido, há em minha casa trancas e armas para que não chegue nem a
atravessar o portão.
YERMA – Cala essa boca, que não é isso. Eu nunca faria isso. Achas mesmo que posso
conhecer outro homem? Onde pões a minha honra? A água não pode correr para trás,
nem a lua cheia sai ao meio dia. Vai embora. Achava mesmo que poderia me entregar
a outro homem? Que eu fosse pedir o que é meu como uma escrava? Tu não me
conheces mesmo.
YERMA – Eu sou como um campo seco, onde cabem arando mil juntas de boi. O que tu
me ofereces é um pequeno copo de água de poço. A minha é uma dor que já não cabe
na carne.
VELHA – Pois continua assim se é de teu gosto. Com os galhos de tuas terras secas,
espinhos, murcha.
YERMA – (Forte) Murcha sim, já sei. Não é preciso me esfregar isso na cara. Não venha
te diverti comigo, como divertem as crianças com a agonia de animal. Desde que me
casei eu estou dando voltas a esta palavra, mas é a primeira vez que eu a ouço, é a
primeira vez que esfregam com ela na cara. A primeira vez que eu vejo que é verdade.
VELHA – Eu não tenho pena nenhuma de ti, nenhuma. Vou procurar outra mulher para
meu filho. Afunda no teu areial. Murcha!
VELHA SAI.