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PÁSSARO VIVO APERTADO NA MÃO

YERMA - Um poema trágico de Federico Garcia Lorca

CANÇÃO DA DESPEDIDA YERMA E CORO

CENA DO RITUAL.

CASA DE DOLORES

FINAL DO RITUAL.

DOLORES – Foste corajosa. Não há no mundo como a força do desejo. Mas a rua
estava escura demais. Muitas vezes tenho feito estas orações no cemitério com
mulheres que querem ter filhos, e todas elas tiveram medo, menos tu.

YERMA – Eu vim pelo resultado. Acho que tu não és uma mulher que engana.

DOLORES – Eu não sou não. Que a minha língua se encha de formigas, assim como a
boca dos mortos se alguma vez eu menti. A última vez que fiz a reza com uma mendiga
que esteve seca há muito mais tempo do que tu. Seu ventre se adoçou de maneira tão
milagrosa que teve duas crianças ali em baixo, perto do arroio, por que não deu nem
tempo de chegar ao povoado. Ela mesma me trouxe as crianças enroladas em panos
para que eu as arranjasse.

YERMA – E ela veio andando lá do arroio?

DOLORES – Veio. Com o vestido e os sapatos encharcados de sangue, mas com a cara
rebrilhante.

YERMA – E não aconteceu nada com eles?

DOLORES – O Que podia acontecer. Deus é deus.

YERMA – É, Deus é deus . Não podia acontecer nada mesmo. Só agarrar as crianças e
lavar com água fresca. Os animais lambem não é? Eu não tenho nojo de meu filho. Eu
imagino que as recém paridas estão como que iluminadas por dentro . e as crianças
dormem horas e horas em cima delas ouvindo este arroio de leite morno que vai
enchendo os peitos para que eles mamem e brinquem até não querer mais, até
tirarem a cabeça: “um pouquinho mais menino?” ... e ficam com a cara e o peito cheio
de gotas brancas.

DOLORES – Agora tu vais ter um filho. Pode ter certeza.

YERMA – Eu tenho que ter, por força. Ou eu não entendo o mundo. As vezes quando
estou certa que nunca.... sobe como um fogo vindo dos pés, e ficam vazias para mim
todas as coisas. E os homens que andam pela rua, e os bois e as pedras me parecem
como coisas feitas de algodão. Eu pergunto para mim mesma por que estão ali.

DOLORES – É bom que uma casada queira filhos. Mas se não tem por que este
desespero? O importante, neste mundo , é se deixar levar pelo tempo. Não estou te
criticando. Viu como estou empenhada em te ajudar. Mas que terra espera dar a teu
filho, que tipo de felicidade ou cadeira de prata?

YERMA – Eu não penso no amanhã; penso no hoje. Tu já estas velha e já vê tudo como
um livro lido. Eu penso que tenho sede mas não tenho liberdade. Eu quero ter o meu
filho nos braços para poder dormir tranquila. Me escuta e não te espanta com o que
vou te dizer. Mesmo que eu soubesse que meu filho iria me martirizar e me odiar, e
que um dia iria me arrastar pelos cabelos pela rua, eu receberia com gosto o seu
nascimento. Por que é muito melhor chorar por um homem vivo que nos apunhala, do
que chorar por este fantasma sentado anos e anos em cima do meu coração.

DOLORES – Ouve meu conselho. Enquanto esperas a graça de Deus, deves te ampara
no amor de teu marido.

YERMA – Agora tu enfiaste o dedo na chaga mais funda que existe na minha carne.

DOLORES – Teu marido é um homem bom.

YERMA – É bom, é bom oxalá fosse mau. Mas não. Ele vai com as cabras pelo seu
caminho, e de noite conta o dinheiro. Quando nos juntamos cumpre o seu dever, mas
reparo que é frio como se tivesse o corpo morto, eu que sempre tive nojo das
mulheres fogosas, queria ser naquele instante uma montanha de fogo.

DORLORES – Yerma.

YERMA – Não sou uma casada indecente, mas sei que os filhos nascem de um homem
e de uma mulher. Ai se pudesse ter sozinha.

DOLORES – Pensa que ele também sofre.

YERMA – Não sofre não. O que acontece é que não quer ter filhos.

DOLORES – Não diz isso.

YERMA – Vejo isso nos olhos dele. E como não quer, não me dá.. Não o quero mais,
não quero, e no entanto ele é a minha única salvação, por honra e por casta, minha
única salvação.

DOLORES – Vai começar a amanhece daqui a pouco. Deve ir para casa. Daqui há pouco
vem os pastores com seus rebanhos.

YERMA – Precisava desabafa. Quantas vezes devo repetir a reza?


DOLORES – A do loureiro duas vezes, e todos os dias ao meio dia a oração de Santana.
Quando te sentir prenhe traz o ramo verde que te pedi. Agora vai. Por cima do monte
já começa a clarear. Vai pelo lado do arroio para que não te vejam.

YERMA – Não sei bem por que vim.

DOLORES – Está arrependida?

YERMA – Não.

DOLORES – Se tens medo te acompanho até tua casa.

YERMA – Não precisa.

DOLORES – Vai com deus.

BATIDAS NA PORTA

DOLORES – Quem é?

VOZ – Sou eu.

YERMA – Abre. É meu marido.

DOLORES ABRE A PORTA. ENTRAM AS DUAS CUNHADAS LOGO ATRAZ ENTRA JOÃO.

JOÃO – O que está fazendo aqui neste lugar? Se pudesse gritar, acordaria toda a aldeia
para que vissem por ande anda a honra de minha casa. Mas tenho que afogar tudo e
me calar, por que é minha mulher.

YERMA – Se eu pudesse grita eu também gritaria para fazer levantar até os mortos e
vissem esta limpeza que me cobre.

JOÃO – Não. Isso não. Aguento tudo, menos isso. Tu me enganas, me enredas e como
sou um homem que trabalha a terra, não consigo entender tuas atitudes.

DOLORES – João.

JOÃO – Cala tua boca. Nem uma palavra bruxa.

DOLORES – Tua mulher não fez nada de mal.

JOÃO – Desde o dia do casamento que está fazendo. Olhando para mim como duas
agulhas, passando noites e noites em claro ao meu lado enchendo de mau agouro os
meus travesseiros.

YERMA – Cala a boca.


JOÃO – Eu já não posso mais. Por que é preciso ser de ferro paa viver ao lado de uma
mulher que quer te enterrar os dedos no coração. E que de noite sai de sua casa em
busca de quê? Fala! Procurando o quê? As ruas estão cheias de homens. Nas ruas
existem flores para se cortar.

YERMA – Eu não vou te deixar falar mais nenhuma palavra. Nem mais uma. Acha que é
só tu e tua gente que tem honra? Esquece que minha casta nunca teve nada para
esconder. Anda. Chega perto de mim e cheira meu vestido: Vem! Vê se encontra um
outro cheiro que não seja o teu, que não seja o de teu corpo. Pode me colocar nua no
meio da praça e cospe-me. Pode fazer comigo o que quiser, já que sou tua mulher,
mas para de pôr nome de homem em cima de meus peitos.

JOÃO – Não sou eu quem põe; és tu mesma com tua conduta. E o povo já começa a
falar. Mas quando chego a uma roda todos se calam, quando vou buscar a farinha,
todos se calam, até de noite no campo parece que se calam as plantas e as ramas da
árvores.

YERMA – Eu não sei de onde vem o mau vento que balança as árvores e me fala, as
árvores não são boas?

JOÃO – Eu não sei o que busca uma mulher a toda hora fora de casa.

YERMA – (Avançando violentamente contra ele) Busco a ti, busco a ti, e tu que busco
dia e noite sem encontrar sombra onde respirar. É o teu sangue é teu amparo que
desejo.

JOÃO – (Empurrando ela) Sai.

YERMA – (Voltando violentamente) Não me afasta, une o meu ao teu querer.

JOÃO – (Segura ela pelo braço com violência) Para com isso.

YERMA – Olha como estou só. Como a lua que procura por si mesma pelo céu.

JOÃO – (Gritando) Me deixa de uma vez.

DOLORES – João, não grita.

JOÃO – (Descontrolado joga Yerma no chão) Me deixa.

YERMA – (Desesperada) Quando sai para procurar meus cravos eu tropecei na parede.

JOÃO – Cala essa boca. Vamos embora daqui.

DOLORES – Deus meu.

YERMA – ( Aos gritos) Maldito seja o meu pai que me deixou seu sangue de pai de cem
filhos. Maldito seja o meu sangue que o busca aos trancos e barrancos pelas paredes.
JOÃO – Cala essa boca. Eu já disse.

DOLORES – Os pastores estão vindo. Falem baixo.

YERMA – Não me importa que me escutem, me deixa livre pelo menos a voz, agora
que vou entrando no mais escuro do poço. Deixa que de meu corpo saia pelo menos
esta coisa bela e que encha os ares.

DOLORES – Vão embora, por favor.

JOÃO – Cala esta boca. (segurando ela com brutalidade)

YERMA – Calar a boca. Isso calar a boca, é assim. É inútil retorcer minhas mãos. Uma
coisa é querer com a cabeça...

JOÃO – (Começa a arrastar ela) ... Cala a boca...

YERMA - ... Uma coisa é querer com a cabeça, e outra é outra coisa com o corpo,
maldito seja o corpo. Pode me arrastar, mas está escrito e não vou mais me por a lutar
braço a braço com o destino. É assim! Muda fique aminha boca.

ELE A ARRASTA A FOÇA PARA FORA DA CENA.

CENA DA ROMARIA

CANÇAO DA ROMARIA

CORTEJO DO SANTO

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