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Sistemática e Taxonomia

Sistemática e Taxonomia
conceitos fundamentais
Dalton de Souza Amorim
Depto. de Biologia, FFCLRP/USP, Av. Bandeirantes 3900, 14040-901 Ribeirão Preto SP

A parte tangível da natureza


Imagine-se em um avião sobrevoando áreas de vegetação natural. Florestas, áreas de cerrado ou
caatinga, uma área marinha rasa com o fundo mais ou menos observável ou um estuário. O elemento
“visível”, em uma perspectiva do alto, são os sistemas (ou ecossistemas), com limites mais ou menos definidos.
Dentro deles, os indivíduos das espécies estão misturados. O que se vê e o que não se vê na natureza?
“Ver” diz-se, em seu sentido objetivo, com os olhos. E isso diz respeito apenas ao que se vê imediatamente,
ou seja, no presente, no corte do tempo atual. O passado da história dos organismos não se vê (com os
olhos), nem será visto. O passado é inferido.

Noção de ordem na natureza


Há ordem na natureza? Não há apenas uma
ordem. Há ordens de vários tipos, ainda que às vezes
elas não sejam tão evidentes. Os ecossistemas são uma O que realmente se vê na natureza
forma de ordem na natureza. Ainda que não sejam biológica?
sistemas realmente fechados (isto é, com limites bem
definidos e fixos), as espécies que vivem em ambientes
desérticos de modo geral ficam no deserto, as espécies
marinhas de profundidades de modo geral ficam apenas
nesses ambientes e espécies de rios vivem em rios. Mas há outras formas de ordem.
Uma das formas de ordem da natureza mais antigas conhecidas pelo ser humano é a ordem resultante da
hierarquia de semelhanças. Que as características não são distribuídas ao acaso entre as espécies, já havia
percebido Aristóteles (384 a.C.–322 a.C.) há mais de 2.300 anos. Isto é, entre os organismos, há plantas e
animais. Entre os animais, há os que têm vértebras e, entre os que têm vértebras, há os aquáticos e os terrestres.
Entre os terrestres, há os que têm sangue frio e os que têm sangue quente. Entre os de sangue quente, há os que
têm pêlos e os que têm penas.
Há alguns casos de alteração dessa ordem,
mas as semelhanças que alterariam essa ordem eram
consideradas superficiais por Aristóteles e, por isso,
Há ordem na natureza? chamado de analogia (ana, no grego, está
relacionado à idéia de uma visão de conjunto). Todas
as outras estruturas que apresentam semelhanças
em detalhes foram chamadas de homologia.
Não há peixes com folhas fotossintetizantes. Não há palmeiras com fêmures. Não há insetos com rádulas.
Não há aves com cnidoblastos. Não há orquídeas com esporos. Não apenas isso, as semelhanças são de tal modo
organizadas que elas permitem formar grupos – e grupos dentro de grupos. Dentre os vertebrados, há alguns com
mandíbulas e outros sem mandíbulas. Entre os que têm mandíbulas, há alguns que têm fêmur e outros que não têm
fêmur. Entre os que têm fêmur, alguns têm pêlos e outro não. Entre os que têm pêlos, há alguns que tem o polegar
preênsil e outros não. E esses grupos são de tal maneira reconhecidos, que podem receber nomes, facilitando
enormemente a comunicação entre as pessoas quando consideram qualquer aspecto da diversidade biológica, no
contexto cotidiano das pessoas ou no ambiente científico.

Hierarquia e classificações
Essa hierarquia de semelhanças foi representada na forma de um sistema de classes por Aristóteles,
mas também, mais tarde, por Lineu. Imaginem a comunicação entre as pessoas em geral a respeito da
diversidade biológica –que envolve hoje quase dois milhões de espécies conhecidas– se não houvesse grupos

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que reunissem as espécies. Os termos “moscas”, “pássaros”, “cogumelo”, “caramujos”, “palmeiras” não
são indicativos de espécies, mas de grupos de espécies. Esses substantivos correspondem a coletivos de
espécies e tornam muito mais fácil a referência a certas porções da diversidade biológica.

Exercício 1. Tome as seguintes espécies (ou grupos de espécies): dourado-de-rio, barata-d’água, cágado,
cotia, caravela, tênia, andorinha, bem-te-vi, carcará, lesma terrestre, lula-gigante, planária, minhocuçu. (1)
Quantas classificações possíveis se poderiam construir para reunir essas espécies? (2) Qual é seria a
melhor classificação para refletir as semelhanças entre essas espécies?

Para que houvesse um sistema universal de comunicação entre pesquisadores do mundo todo a
respeito da diversidade biológica, Lineu criou um sistema em Latim –e não um sistema em francês, sueco ou
inglês. Esse sistema foi crescendo em número de espécies ao longo dos últimos 250 anos e foi crescendo
também em precisão, no sentido de que mais agrupamentos de espécies, que não haviam sido percebidos
antes, foram descobertos e nomeados.

Existência de ordem na natureza biológica e a causa dessa ordem


A mera existência desse sistema de referência à diversidade biológica, no entanto, não deveria
obscurecer dois aspectos: (1) esse sistema existe porque há uma ordem subjacente à diversidade biológica;
(2) deveria haver uma explicação para essa ordem, ou seja, uma causa que explique essa hierarquia de
semelhanças.
Aristóteles propôs que cada característica seria a “expressão” de essências imateriais que se
manifestavam. Essas essências seriam compartilhadas entre as espécies. O fato de que as essências seriam
compartilhadas em vários níveis faria com que nós pudéssemos representar essa hierarquia de semelhanças
na forma de uma classificação hierárquica.
Cerca de dois mil e cem anos depois de Aristóteles, Alfred Russel Wallace (1823-1911) e, depois

Figura 1. Representação de Belon, de 1555, mostrando as semelhanças detalhadas entre os esquele-


tos de uma ave e de um humano.

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Charles Robert Darwin (1809-1882) encontraram uma outra explicação para essa hierarquia de semelhanças.
As espécies, nessa nova visão, teriam surgido por mecanismos naturais, assim como já se conheciam
mecanismos naturais para a questão da órbita dos planetas, a gravidade e o funcionamento de alguns órgãos.
Espécies, em uma perspectiva evolucionista, sofrem divisões, gerando novas espécies, que mudam ao longo
do tempo. Essa seqüência de espécies que se dividem formando espécies, que se dividem formando ainda
outras espécies, que, elas mesmas, se dividem etc., chama-se filogenia.

Escada ou árvore?
A representação dos diagramas da filogenia dos seres vivos com o formato de “árvore” foi muito
natural. Ela parece ter sua origem em Heinrich G. Bronn (1800-1862) (Figura 3), tendo sido utilizada por
Darwin e muito popularizada por Ernst Haeckel (1834-1919).
Ainda que a estrutura dos diagramas em árvore sejam representações extremamente adequadas
das relações existentes entre as espécies em uma hierarquia, 150 anos depois da proposição da noção de
filogenia, a imagem de uma relação linear entre as espécies ainda não se desfez.
Essa imagem de uma sequência ascendente, como uma escada, é extremamente antiga. Chamada
em latim “Scala Naturae”, a escada da natureza, ela organiza a diversidade como um todo em uma única
sequência, ou seja, com uma ordem, partindo de um ponto inicial e chegando a um ponto terminal. Nessa
sequência, o término era sempre a espécie humana. Essa idéia está preenchida por outro conceito filosófico,
o de teleologia, com um propósito para a existência da diversidade, que seria a condição humana, para o
que tudo convergiria. Há, portanto, duas questões envolvidas. Uma é gráfica, no quanto ela representa um
tipo particular de ordem – linear. A outra é de valor, em que a espécie humana é colocada em um ápice. Esta
segunda questão não nos interessa aqui. A primeira, no entanto, é mais relevante. A melhor maneira de
representar a ordem perceptível é de fragmentação gradual em uma árvore, não uma escada.
A idéia de uma filogenia é a maior novidade da teoria evolutiva de Wallace-Darwin, em relação às
idéias prévias, de que as espécies se modificam ao longo do tempo, que já havia sido proposta concreta e
corretamente, por exemplo, por Pierre-Louis Moreau de Maupertuis (1698-1759), Jean Baptiste Lamarck
(1744-1829) e Robert Chambers (1802-1871), entre muitos outros. A causa da mudança, conforme proposto
por Edward Blyth (1810-1873) e Darwin, seria a seleção natural. Evidências de variabilidade intraespecífica
já haviam sido detectadas desde o século XVIII por Maupertuis, Lamarck, mas também por Darwin e
Mendel. Evidências do processo de diferenciação de espécies, que se dividiram, foram observadas
particularmente por Wallace, no sudeste asiático, e por Darwin, na ilhas Galápagos.

Figura 2. Diagrama filogenético de Charles R. Darwin, única ilustração do livro Origem das Espécies.

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Deve haver uma explicação, ou seja, uma


causa para a existência dessa ordem
subjacente à diversidade biológica.

Padrão e processo em Sistemática Biológica


Assim, ao longo da história da ciência, a
descoberta de um padrão de relacionamento entre
as espécies (por causa do relacionamento entre as
características delas) antecedeu a proposição de uma
explicação – um processo – para esse padrão. Esse
padrão hierárquico, como vimos, foi explicado como
sendo resultado, alternativamente, de diferentes
causas, recebeu diferentes explicações, as mais
conhecidas sendo a de Aristóteles (essências
compartilhadas) e a de Wallace-Darwin (filogenia).

Coleções e classificações: a natureza de selos,


latas de cerveja e espécies biológicas
Nesse momento, é necessário atentar para
algo que passa desapercebido mesmo a muitos
pesquisadores de Biologia: a relação entre a natureza
de objetos classificados e a natureza de classificações
criadas. Os “objetos” das classificações biológicas
são indivíduos ou organismos, que têm conexões Figura 3. Representação de Bronn na forma de
históricas entre si no passado (genealogias de árvore para refletir as relações de parentesco entre
indivíduos) e que se conectam por relações
espécies.
reprodutivas que lhes dão continuidade no futuro.
Essas conexões, ainda que não formem sistemas fechados, geram entidades naturais, que são denominadas
de espécies biológicas; espécies biológicas, por sua vez, em uma ontologia evolutiva, estão todas conectadas
entre si de maneira a constituir uma filogenia. Além disso, as características dos indivíduos que constituem
espécies e grupos de espécies não são como se vê em qualquer outro corpo de objetos: elas se modificaram
ao longo do tempo, gerando homologias compartilhadas. Assim, coleções biológicas têm uma semelhança
apenas superficial e nenhuma semelhança ontológica com outros tipos de coleções, como de selos, maços
de cigarro, latas de cerveja e jóias. Esse erro básico de compreensão dessa diferença ontológica faz com
que uma enorme quantidade de pesquisadores de destaque veja a taxonomia como algo trivial. E faça
afirmações completamente equivocadas sobre a natureza da taxonomia e seu papel dentro das ciências
biológicas. As conexões entre as espécies, refletidas nas classificações biológicas, são hipóteses que precisam
ser construídas utilizando métodos complexos e apurados. Além disso, as hipóteses de relacionamento
filogenético entre espécies têm implicações diretas e profundas sobre nossas explicações sobre o processo
de evolução das características que as espécies apresentam.

Novamente, o que é observável no mundo biológico?


O que é, de fato, observável (nosso sentido de ver com os olhos ou perceber com os sentidos) da
natureza biológica? Nós vemos espécies? Se seres humanos que já morreram pertencem à espécie humana
e não podem ser observados, isso significa que uma espécie (no sentido da totalidade de seus indivíduos) não
pode ser literalmente observada. Isso é consequência de a espécie ser uma entidade transtemporal, isto é,
sua existência dá-se através do tempo. Portanto, qualquer afirmação sobre uma espécie é uma inferência,
incluindo o estabelecimento de seus limites em relação a outras espécies. Se não vemos espécies, o que
vemos? Nós vemos populações? Aplica-se o mesmo problema. Pessoas que já morreram da população de
uma ilha evidentemente são parte da população dessa ilha, de maneira que populações também são entidades
transtemporais e não podem ser literalmente observadas. O que se pode inferir de uma maneira mais ou
menos direta (e ainda sujeito a problemas de amostragem) são cortes temporais de uma espécie ou de uma

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população.
Assim, resta o conceito de indivíduo. Mas
A seqüência de eventos de divisão de os indivíduos precisam ser vistos sem ingenuidade.
espécies, que se dividem formando espécies, O zigoto unicelular de uma pessoa é o mesmo
que por sua vez também se dividem, chama- indivíduo que aquele que resulta de seu
se filogenia. desenvolvimento ontogenético que chegou ao estado
adulto. Como não vemos o estágio unicelular quando
olhamos um adulto, não se pode dizer que se vê um
indivíduo inteiro. O que vemos é um corte temporal
da existência de um indivíduo. A partir da observação de diferentes indivíduos em diferentes estágios
ontogenéticos, fazemos uma reconstrução do que é um indivíduo em sua totalidade.

Parentesco entre espécies e reconstrução do parentesco entre espécies


Se espécies, assim, são reconstruídas, a relação de parentesco entre elas, aprofundando-nos no passado,
são hipóteses ainda mais complexas, o que demanda cuidados adicionais – isto é, um método rigoroso – na
reconstituição dessa história. Ainda que Wallace e Darwin tenham proposto a idéia de uma filogenia,
conectando todas as espécies atuais em uma estrutura que se estende no passado, e Haeckel tenha proposto
muitas “árvores filogenéticas”, nenhum deles propôs como encontrar qual é a filogenia de um grupo.
Esse é um problema muito mais complexo do que pode parecer. Dadas três espécies atuais, em
princípio não sabemos quais são filogeneticamente mais próxima entre si. “Filogeneticamente mais próximo”
significa duas espécies compartilharem ao menos uma espécie ancestral que não é compartilhada pela
terceira espécie. Por exemplo, dados o buriti, uma espécie de grilo e uma paca, em princípio: (1) o grilo pode
ser mais próximo da paca que do buriti; (2) o grilo pode ser mais próximo do buriti que da paca; e (3) a paca
pode ser mais próxima do buriti que da paca. Uma outra maneira de expressar essas três alternativas é: (1)
o grilo e a paca têm ao menos uma espécie ancestral delas duas que não é ancestral do buriti; (2) o grilo e
o buriti têm ao menos uma espécie ancestral delas duas que não é ancestral da paca; e (3) a paca e o buriti
têm ao menos uma espécie ancestral delas duas que
não é ancestral do grilo.
Esse é um caso bastante óbvio, pois grilo e paca
são animais e o buriti é uma planta. Assumindo que as
espécies de animais hoje são todas descendentes de
uma mesma espécie ancestral, automaticamente
assume-se que paca e grilo, ainda que relativamente
distantes, estão mais próximos entre si na filogenia que
qualquer um dos dois em relação a uma espécie de
planta. De fato, apenas uma das três alternativas é
verdadeira em termos de expressar a filogenia que já
ocorreu. O que importa realçar aqui é que a filogenia
com as duas espécies de animais saindo juntas é uma
de três alternativas possíveis (Figura 5).
Quando o número de espécies passa de três
para quatro, o número de diagramas alternativos
possíveis conectando essas espécies (das quais
apenas um é uma representação verdadeira da
filogenia de um grupo) passa de três para 15. Isto é,
há 15 diagramas possíveis diferentes que expressam
relações de parentesco distintas entre essas quatro
espécies. Quando o número de espécies passa de
quatro para cinco, o número de diagramas alternativos
possíveis passa de 15 para 105. Quando o número
de espécies alcança dez, o número de alternativas
passa para 34.459.425; quando são 20 espécies, as
alternativas são 8 sextilhões. Ou seja, a representação
que conecta essas vinte espécies em ancestrais em
Figura 4. Árvore filogenética de Haeckel. diversos níveis e representa a história real do grupo

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é apenas uma entre trilhões e trilhões e trilhões de


possibilidades (Figura 6). Todos os outros diagramas
seriam representações falsas ou incorretas de qual
tenha sido a filogenia do grupo. Para 80 espécies, o
número de alternativas é maior do que o número de
átomos do cosmo. A diversidade biológica, no entanto,
é um maior que essas 80 espécies! Composta de
milhões de espécies, talvez sequer seja possível
calcular o número de hipóteses há para organizar
toda a diversidade biológica.
O significado desses números é que encontrar
qual é a filogenia de um grupo e propor uma
classificação que reflita essa filogenia é uma tarefa
extremamente complexa. Olhando de outro ponto de
vista, isso significa que uma classificação biológica
traz uma gigantesca organização do conhecimento
sobre a diversidade – ou ainda, uma facilidade
gigantesca para as pessoas que não conhecem muito
das espécies, organizando a diversidade.
Se as espécies fossem organizadas em ordem
alfabética, não teríamos nenhuma idéia mais clara sobre
qual fosse a relação entre espécies das quais nunca
ouvimos falar. Uma classificação biológica, portanto, é
Figura 5. (buriti + (paca + grilo)) e A(BC), B(AC) o resultado da organização da diversidade biológica em
e C(AB). grupos e subgrupos, nos permitindo ver um conjunto
organizado, simplificando enormemente a compreensão
desse conjunto por não especialistas.
A composição de um método filogenético foi sendo feita gradualmente, mas foi um entomólogo alemão,
Willi Hennig, quem compilou algumas dessas idéias iniciais e propôs em 1950 um método consistente de
reconstrução de filogenias. Os detalhes desse método foram sendo polidos desde então, não apenas
aperfeiçoando alguns aspectos, como também tornando possível que análises mais complexas fossem feitas
em computadores.

A natureza de uma filogenia


Há algo que muitas vezes é pouco claro: o que constitui, de fato, uma filogenia? Uma filogenia, na verdade,
é constituída apenas de espécies. Espécies atuais e espécies ancestrais. Os diagramas mais simples conectam
espécies, sustentadas por características compartilhadas – são chamados cladogramas. Se há apenas espécies
atuais em um cladograma, o diagrama indica também que a conexão entre essas espécies atuais é feitas por
espécies ancestrais. Ou seja, uma filogenia é constituída de espécies da base até o topo.
Algumas espécies ancestrais muito recentes conectam apenas duas espécies atuais. Assim, essas
duas espécies têm uma espécie ancestral delas que não é ancestral de nenhuma outra espécie. Isso permite
fazer uma afirmação (isto é, uma hipótese) do tipo

“A espécie A é filogeneticamente mais próxima da espécie B que qualquer uma das duas em relação a
qualquer outra espécie.”

Uma espécie pode ser ancestral, por exemplo, de cinco espécies atuais, não sendo ancestral de
outras, permitindo uma afirmação sobre parentesco filogenético do mesmo tipo (quaisquer duas espécies
desse grupo são mais aparentadas entre si que com
qualquer outra espécie que não integra esse grupo).
Essa espécie ancestral, portanto, é exclusiva desse
A descoberta de uma ordem subjacente à
grupo. Assim, “reconstruir as relações filogenéticas diversidade biológica precedeu, na história
entre espécies” e “encontrar espécies ancestrais humana, a proposição de uma causa natural
exclusivas” correspondem a duas faces de uma para essa ordem.
mesma moeda ou duas maneiras diferentes de dizer

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Figura 6. Duas filogenias levemente diferentes com 20 espécies terminais. Essas são duas entre 8,2
sextilhões de árvores alternativas possíveis.

a mesma coisa. A natureza dos organismos em uma ontologia


Na interface entre classificação biológica e evolutiva (que os conecta em espécies e em
filogenia, temos dois conceitos importantes. Quando grupos de espécie que se modificam) faz com
temos um grupo taxonômico particular cuja que a natureza das classificações biológicas
composição inclui apenas uma espécie ancestral e seja profundamente diferente de classificações
todas suas descendentes, tem-se um grupo de objetos comuns. A trivialização da
monofilético. Se temos um grupo taxonômico cuja taxonomia tem implicações graves para a
definição acaba resultando em uma composição que compreensão da evolução e para a toma-
inclui uma espécie ancestral e apenas parte de suas da de decisões sobre conservação.
espécies descendentes, esse grupo, na verdade,
corresponde a um grupo parafilético. Ou seja,
quanto às relações de parentesco, os grupos propostos na literatura podem ou não corresponder a grupos
monofiléticos.
Alguns dos exemplos mais claros de grupos monofiléticos são as Angiospermas, os Metazoa, os
Vertebrata, os Hexapoda ou as Orchidaceae. Esses táxons foram propostos até mesmo antes do surgimento
da teoria da evolução e, depois, verificando as relações de parentesco entre as espécies que os compõem,
eles se mostraram monofiléticos. Por outro lado, exemplos clássicos de grupos parafiléticos são Pisces,
Algae, Reptilia, Bacteria, Protista ou Protozoa. É bem conhecido o fato de que os peixes pulmonados são
mais aparentados aos vertebrados terrestres que aos demais peixes. Assim, os Amniota, ou seja, os vertebrados
terrestres, são descendentes do ancestral comum entre feiticeiras, tubarões, peixes ósseos e peixes
pulmonados, mas não são incluídos entre os Pisces. De fato, peixes pulmonados estão mais aparentados aos
anfíbios e mamíferos, por exemplo, que aos demais grupos de peixes. Isso caracteriza um grupo parafilético.
Alguns grupos de Chlorophyta, por exemplo (as algas verdes), são mais filogeneticamente próximos de
Embryophyta (as plantas terrestres) que das demais algas, como é o caso de Charales, o que faz com que
Chlorophyta corresponda, na verdade, a um grupo parafilético. Entre os vertebrados terrestres, já foi

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demonstrado que os jacarés e crocodilos são filogeneticamente mais próximos de aves que dos demais
répteis. Assim, Reptilia, que incluem quelônios, lagartos, cobras e jacaré, formam um grupo parafilético.
O que fazemos com os grupos parafiléticos? Há algum debate sobre essa questão. Alguns dos
grupos que hoje se imagina que são parafiléticos foram propostos muito antes da idéia de filogenia e de
evolução. Outros grupos foram propostos inicialmente pensando-se que eram monofiléticos, mas depois se
descobriu que essa era uma inferência equivocada.
O grande problema dos grupos parafiléticos é que eles são táxons (ou seja, grupos nas classificações)
como quaisquer outros. Quem lê a classificação e não conhece a filogenia do grupo pode pensar que eles
são monofiléticos e, portanto, fazer uma série de inferências evolutivas totalmente equivocadas a respeito
ou deixar de compreender bem aspectos evolutivos importantes. É bem conhecido, por exemplo, que os
Crocodylia têm coração com quatro câmaras. Não é à toa. Essa é uma característica apomórfica (em
relação a três câmaras) compartilhada com as Aves e, de fato, fazem parte das evidências que mostram que
Crocodylia é o grupo atual mais aparentado com as Aves. Olhando “Reptilia” como um grupo completo e
separado, tenderíamos a imaginar que o surgimento
das quatro câmaras no coração de jacarés e
crocodilos teria sido independente das aves. Espécies são entidades transtemporais e
Há uma tendência a eliminar os grupos não podem ser observadas diretamente.
parafiléticos das classificações biológicas. Esses Espécies –seus limites e suas características
táxons induzem a erro. Porque nos acostumamos a
– são reconstruídas e, portanto, quaisquer
esses grupos, no entanto, no início essa eliminação
causa um pouco estranheza. Parece que
afirmações sobre espécies são hipóteses, não
compreendemos algo claro quando dizemos “peixes” são observações.
ou “répteis” ou “algas”. Mas do que estamos
realmente falando, quando nos referimos a esses
táxons? De agnados, na base da evolução de vertebrados, ou de peixes pulmonados, irmão de Amniota?
Quando se fala “répteis”, se está referindo a quelônios, na base de Reptiliformes, ou a Crocodilia, perto de
Aves? Quando se fala de “algas”, se está referindo a algas verdes (que em si são parafiléticos em relação
às plantas terrestres) ou a algas vermelhas ou a algas marrons, cujas relações mais diretas talvez sequer
seja com as plantas? Apesar da aparência, esse táxons fornecem informação equivocada.

Homologia e comparação
Como são feitas as reconstruções de parentesco? Se não enxergamos o passado, a reconstrução
sobre como a filogenia se formou só pode ser feita a partir de indícios. Os indícios são as características que
os indivíduos das espécies atuais apresentam. Assim, a base de dados para análises de relações de parentesco
são matrizes de táxons versus caracteres. Entretanto, há um problema imediato: o que nos permite comparar
estruturas em organismos diferentes? Essa é a pergunta subjacente ao problema da homologia.
Em princípio, a questão da homologia está relacionada à questão da semelhança. Aristóteles, que
cunhou os termos homologia e analogia, já havia observado que algumas semelhanças são, na verdade,
superficiais. Isto é, as estruturas são consideradas semelhantes porque são resultado de uma observação
superficial. Quando se lhes observamos mais detalhadamente, percebe-se que não são tão semelhantes
quanto pareciam. O exemplo mais clássico talvez seja o de asas de aves e morcegos. A análise detalhada do
sistema de ossos envolvidos, a posição das membranas etc. mostra que essas duas são, na verdade, duas
condições bastante distintas de asas. De fato, são membros anteriores e, de fato, são utilizados para voar.
As asas de morcego, no entanto, correspondem a membranas que ligam dedos muito alongados, enquanto
que as asas de aves têm uma estrutura de tecido que conecta basicamente os membros anteriores ao corpo.
Em alguns outros casos, no entanto, o que parece diferente, estudando-se em detalhe, mostra-se
muito semelhante. O que se chama de fêmur em um jaboti e em um humano, a despeito das diferenças
óbvias, têm semelhanças peculiares: ambos inserem-se em uma bacia ou cintura escapular na extremidade
basal e articulam-se em um par de ossos alongados distalmente. As semelhanças existentes, apesar das
diferenças, são profundas.
A interpretação sobre a natureza ou a causa das homologias depende da visão de mundo ou da
ontologia do observador. Para Aristóteles, a homologia seria resultado do compartilhamento de essências.
As semelhanças eram tantas, em tantas partes diferentes dos organismos, que ele admitia que eram resultados
de expressão da mesma essência em espécies distintas. Em uma visão evolutiva, alternativamente, a homologia
é vista como resultado do compartilhamento de estruturas que existiam no ancestral comum mais recente

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das espécies que a compartilham e herdadas dessa


ancestral. Humanos e jabotis compartilham o fêmur A explicação de Aristóteles para a natureza
porque o ancestral comum mais recente entre ambos das semelhanças homólogas é que elas
já tinha o fêmur, que foi transmitido a seus seriam resultado de essências comparti-
descendentes até chegar a cada um deles. A
lhadas. Em uma visão evolutiva, semelhan-
homologia do fêmur, em uma ontologia evolutiva, é
ças homólogas são resultado de herança
resultado da herança desde ancestrais comuns; as
diferenças entre os dois fêmures, por sua vez, são de características desde o ancestral
resultado da evolução posterior independente nos comum mais recente.
ramos que resultaram na espécie humana e em uma
espécie de jaboti.
Na terminologia de Aristóteles, como vimos, o que é semelhante, mas não é homólogo chama-se
análogo. É indiferente se estruturas não homólogas tenham ou não a mesma função. Na visão de Aristóteles,
elas apenas seriam resultado de essências diferentes, ainda que semelhantes. Em uma visão evolutiva,
estruturas não homólogas resultam do surgimento evolutivo independente, por casualidade, de estruturas
semelhantes. Em uma visão evolutiva moderna, o termo analogia perdeu um significado maior. Semelhanças
análogas são apenas casos de não homologias.
Essa explicação, de fato, segue um raciocínio lógico na visão evolutiva. No entanto, há um problema
sutil e de modo geral pouco perceptível. Se o significado de homologia evolutiva está relacionado a sua
herança a partir de um ancestral comum (que está no passado e não pode ser observado diretamente), como
sabemos que estruturas são homólogas e quais são apenas semelhantes? Ou seja, a confirmação de que há
homologia de fato entre estruturas em indivíduos de duas espécies diferentes dependeria de uma observação
do passado, da espécie ancestral comum. Como as espécies ancestrais não podem ser observadas, as
afirmações sobre homologia – e, portanto, a própria confirmação de que duas estruturas são comparáveis
evolutivamente – são sempre hipóteses.
A solução para esse problema não é trivial e retornaremos a ela mais tarde. Por agora, basta dizer
que uma afirmação sobre homologia entre estruturas em indivíduos diferentes sempre é uma hipótese. Ela
pode ser corroborada por outros indícios ou derrubada porque os indícios apontam em outra direção. Logo,
uma afirmação sobre homologia entre estruturas significa que ela é a explicação mais simples, dado um
conjunto de evidências, para a semelhança entre dois indivíduos ou duas espécies em uma análise global das
semelhanças entre esses indivíduos ou espécies.
Ainda que pareça óbvio, o motivo para que tomemos o crânio de um gato e o crânio de um cachorro
como homólogos não é porque são parecidos, mas
porque é a explicação mais simples ou parcimoniosa.
Homologia evolutiva é um tipo de relação en- Em princípio, se poderia montar uma hipótese de que
tre estruturas de dois ou mais organismos – da o crânio do gato fosse homólogo à cauda de um
mesma espécie ou de espécies diferentes, idên- cachorro e vice-versa. Mas essa hipótese particular
ticas ou diferentes entre si – em que cada uma de homologia exige um número tão grande de
delas é cópia de uma mesma estrutura original hipóteses auxiliares que é evidente que ela é uma
presente no ancestral mais recente comum aos hipótese inverossímil. Ou seja, até mesmo hipóteses
organismos que as possuem. “óbvias” precisam sustentação em um esquema
global de parcimônia.
Finalmente, precisamos voltar a um problema
anterior. Como vimos, as inferências sobre a filogenia
na realidade correspondem a inferências sobre quais subconjuntos de espécies atuais têm espécies ancestrais
exclusivas. Entretanto, vimos também que espécies ancestrais não podem ser observadas diretamente: elas
se dividiram, dando origem a suas próprias espécies descendentes. Assim, se não observamos as espécies
ancestrais, como podemos inferir as filogenias? As únicas fontes de evidências são as semelhanças
compartilhadas, de maneira que essa é nossa fonte de informação para a reconstrução filogenética.

Tempo e semelhança: plesiomorfia e apomorfia


As afirmações sobre homologia em comparações entre estruturas (morfológicas, de comportamentos,
hábitos etc.) de espécies diferentes é apenas o primeiro passo na reconstrução das relações de parentesco.
Assim, se reconhecemos duas estruturas como homólogas e diferentes entre si, temos um caráter que
vamos usar na análise. Bicos de aves curtos ou longos; porções do tubo digestivo com cecos ou contínuas;

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células com contratilidade ou sem contratilidade; proteínas na parede celular com poros que permitem a
passagem apenas de água ou que são seletivos para íons; pelos marrons, pretos ou brancos na pelagem de
primatas; nervuras alares de insetos ramificadas ou simples.
Absolutamente todas as características biológicas têm uma origem evolutiva e, portanto, podemos
nos perguntar: em que nível da evolução elas surgiram? Do formato do bordo das folhas à velocidade de
transmissão de impulso elétrico em um axônio. Do formato de um osso particular no crânio à arquitetura do
ninho de um grupo de vespas. As condições homólogas diferentes entre si têm uma distribuição nas filogenias,
ou seja, há os conjuntos de espécies que apresentam as condições (duas ou mais) de uma estrutura, o que
permite começar a compreender sua história.
A representação gráfica da distribuição dessa característica entre espécies nos leva a um diagrama
não enraizado. Isso representa o fato de que temos, no mesmo horizonte temporal, condições diferentes
das mesmas estruturas (isto é, homólogas, diferentes entre si). Essa percepção das diferenças entre os
organismos atuais como se eles apenas fossem o que são – isto é, sem a profundidade do tempo – é a visão
ingênua da diversidade biológica. Agora temos que aprofundar nossa visão da diversidade, conectando
organismos e suas estruturas no passado.
Se nossa interpretação para a hierarquia de semelhanças é a evolução biológica e se as estruturas
que comparamos são homólogas entre si, as condições diferentes apresentadas por essas estruturas homólogas
têm idades diferentes. Isto é, uma é a condição mais antiga da qual a outra se derivou. Quem introduziu essa
compreensão da dimensão temporal para as relações entre estruturas homólogas e diferentes entre si –
passo indispensável para a elaboração de um método de reconstrução filogenética – foi o entomólogo
alemão Willi Hennig, em 1950. Para duas condições homólogas e diferentes entre si, uma delas é a mais
antiga e foi a base de onde a outra surgiu, constituindo uma série de transformação. Hennig chamou de
plesiomórfica a forma mais antiga e apomórfica a forma mais recente ou derivada.
Assim, por exemplo, há pernas anteriores apoiadas no solo em vertebrados terrestres (quadrúpedes)
e pernas anteriores em princípio não utilizadas para locomoção (bípedes). Há crânios sem um osso articulado
na parte ventral distal anterior e há crânios com mandíbulas. Há asas posteriores em insetos alados usados
para voar e há halteres. Há invaginações do corpo recobertas com coanócitos, que capturam partículas e
fazem digestão intracelular, e há cavidades digestivas em que as células da epiderme secretam enzimas
digestivas, havendo digestão extracelular, além de digestão intracelular. Esses são vários casos de condições
homólogas e diferentes entre si em espécies diferentes.
Uma vez que as estruturas nos organismos não vêm com nenhuma indicação sobre qual é o grau de
antiguidade relativa entre estruturas homólogas, temos agora que encontrar um meio de determinar, de
pares de estruturas homólogas entre si, qual é a mais plesiomórfica e qual é a mais apomórfica. Essa é uma
parte extremamente interessante da visão filogenética do mundo –agora sob uma ontologia evolutiva, podemos
enxergar a biodiversidade (isto é, espécies e suas características) espalhada na dimensão do tempo. Não
apenas espécies são interligadas no passado. As características das espécies também são interligadas. Com
o auxílio do método filogenético, olhamos o presente e podemos “enxergar” o passado.
“Sabemos” que a condição quadrúpede é mais antiga (ou plesiomórfica) que a condição bípede.
Sabemos que a ausência de mandíbulas em vertebrados (Agnatha) é plesiomórfica e sua aquisição, apomórfica.
Sabemos que asas posteriores utilizadas para voar é plesiomórfico em relação a halteres. Sabemos que uma
coanoderme é plesiomórfica em relação a uma gastroderme. Por que nos parecem tão óbvios esses casos?
A resposta é relativamente simples. A partir de outras fontes, há evidências de que alguns grupos são
monofiléticos. Assim, se uma característica varia dentro de um grupo monofilético e um membro externo a
esse grupo tem uma dessas condições, então provavelmente ela é a mais antiga (isto é, plesiomórfica), a
partir da qual a outra condição surgiu, apenas dentro do grupo. Assim, entre os animais com simetria bilateral
(isto é, Bilatéria), encontramos grupos com tubo digestivo completo, com boca e ânus, e grupos com uma
única abertura da cavidade digestiva, como em Platyhelminthes. Uma vez os Ctenophora e os Cnidaria têm
uma única abertura da cavidade digestiva, conclui-se que a condição em planárias é plesiomórfica, a mais
antiga, a partir da qual a condição apomórfica, o tubo digestivo completo, surgiu.
Esse raciocínio chama-se, usualmente, de comparação com grupos externos. Uma maneira mais
técnica de compreender essa dedução, no entanto, é perceber que, quando enraizamos um diagrama não
enraizado (como na Figura 7), automaticamente estabelecemos a polaridade dos caracteres. Se tivéssemos
um diagrama não enraizado dos metazoários (Figura 7A), não poderíamos inferir qual seriam as condições
plesiomórfica e apomórfica para o tubo digestivo. Mas colocando a raiz entre Porifera e todos os demais
metazoários (Figura 7B), automaticamente (por causa do que é externo ou interno a Bilateria) conclui-se

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Sistemática e Taxonomia

Figura 7. Enraizamentos da filogenia de metazoários. A. Em uma árvore não enraizada simplificada,


apenas com cinco táxons terminais, a raiz pode cair em sete posições alternativas. Em cada uma delas, um
cladograma enraizado resultante teria relações filogenéticas diferentes. B. O enraizamento entre
Choanoflagellata e Porifera, o mais aceito, considerando inúmeras características dos grupos externos a
Metazoa, implica em vários grupos monofiléticos importantes, como Metazoa (Porífera + Cnidaria +
Ctenophora + Bilateria), Eumetazoa (Cnidaria + Ctenophora + Bilateria) e Triploblastia (Ctenophora +
Bilateria).

que uma única abertura do tubo digestivo é plesiomórfico. Apenas para ilustrar, em uma situação absurda,
em que a raiz de metazoários fosse entre Mollusca e os demais metazoários, a condição de tubo digestivo
completo seria plesiomórfica.

Do compartilhamento de apomorfias aos grupos monofiléticos


Esse raciocínio permite estabelecer um eixo temporal para homologias, mas ainda não permite reconstruir
a filogenia. Filogenia, como vimos, é o estabelecimento de relações entre conjuntos de espécies atuais que
compartilham espécies ancestrais exclusivas (ou seja, que não são ancestrais de outras espécies).
Reconstrução filogenética é a busca de ancestrais compartilhados, como vimos. O passo seguinte, no entanto,
é simples. É reunir o conjunto de espécies que compartilha as mesmas apomorfias. Apomorfias compartilhadas
são evidências de monofiletismo, ou seja, de descendência de uma mesma espécie ancestral. O motivo é
que as espécies que compartilham uma apomorfia seriam descendentes da espécie ancestral na qual a
condição plesiomórfica sofreu mutações e passou à condição apomórfica observada.
Se o que buscamos, portanto, são evidências de que um conjunto de espécies é descendente de uma
ancestral, as apomorfias compartilhadas são exatamente as “rastreadoras” das modificações surgidas nessas
espécies. De um conjunto grande de espécies atuais, por exemplo, buscamos apomorfias compartilhadas
que mostrem que espécies formam pequenos grupos monofiléticos. Sinapomorfias (apomorfias
compartilhadas) são evidências de ancestralidade comum exclusiva.
No exemplo da Figura 8, vemos que, dentro os membros de um grupo hipotético, alguns têm a
condição chamada “0” para uma característica e outros têm a condição “1”. Se a verificação dos grupos
externos indicar que a condição “0” é aquela encontrada fora do grupo, então podemos reunir o conjunto de
espécies que compartilha a condição “1” em um subgrupo monofilético dentro de um grupo maior.

Articulando várias evidências


Na evolução das espécies, todo o genoma está sujeito a mudanças. Isso significa que sempre há uma
diversidade de estruturas que são diferentes entre si quando se comparam espécies diferentes. Grupos mais
distantes (ou seja, cuja divergência é mais antiga) apresentam diferenças mais evidentes que se acumularam

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Dalton de Souza Amorim

Figura 8. Matriz com um único caráter e o grupo monofilético correspondente.

desde sua separação. Mas mesmo espécies próximas têm conjuntos de estruturas – bioquímicas,
comportamentais, fisiológicas, histológicas, morfológicas, biológicas etc. – que sofrem mudanças. Isso nos
permite somar evidências de diferentes tipos para a reconstrução das relações entre espécies.
Há diversas situações em que as evidências de vários caracteres se somam na mesma direção. Isto
é, as evidências fornecidas por vários caracteres apontam na direção de monofiletismo dos mesmos grupos.
A Figura 9 fornece um exemplo exato nesse sentido.
Em outros casos, no entanto, as evidências podem ser contraditórias. Ou seja, os grupos que
compartilham determinadas apomorfias não são compatíveis com os grupos que compartilham outras
apomorfias. Ainda que o raciocínio para a reconstrução filogenética seja bastante simples – sinapomorfias
são evidências de ancestralidade comum exclusiva –, há diversos problemas que dificultam sua aplicação.
Um deles é a própria construção dos caracteres, ou seja, o estabelecimento correto de homologias, a
codificação das diferentes condições (isto é, o estabelecimento de quais sejam os limites entre os diferentes
estados), a verificação nos exemplares dessas condições e os casos em que as condições em certas espécies

Figura 9. Vários caracteres que apontam um conjunto congruente entre si de hipóteses de monofiletismo.

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Sistemática e Taxonomia

não são comparáveis (a perda de uma estrutura não permite a verificação de sua forma, por exemplo).
Um problema mais complicado, no entanto, é que as mesmas condições apomórficas podem surgir
mais de uma vez na evolução, gerando o que se chama de homoplasia (que compreendem paralelismos e
convergências evolutivas), e que algumas condições apomórficas sofram mudanças que fazem com que
estruturas adquiram uma condição modificada semelhante à que é plesiomórfica na série de transformação,
o que se denomina reversão. Dito de outra maneira, apesar de sinapomorfias serem evidências de grupos
monofiléticos, há casos em que não podemos reunir espécies mesmo que compartilhem apomorfias, pois
elas há evidência de que essas apomorfias teriam surgido em dois ou mais ancestrais independentemente. O
exemplo mais clássico é o das asas em morcegos e asas em aves, que não constituem evidência de que
morcegos formem um grupo monofilético com aves. Há também casos em que um grupo aparentemente
plesiomórfico para uma característica na verdade faz parte de um grupo maior em que essa característica
é derivada ou apomórfica. Um caso exemplar é o de pulgas, que não têm asas e, mesmo assim, são
considerados insetos holometábolos, ou seja, estão dentro de Pterygota, de maneira que eles perderam suas
asas.
O que nos permite indicar que morcegos não são aves (apesar de terem asas) e que pulgas estão
dentro dos insetos alados? A resposta é que o conjunto de evidências que apontariam que os morcegos são
mamíferos é maior (em termos de número de caracteres) que as evidências que apontariam que os morcegos
pudessem ser aves. O conjunto de evidências que apontariam que as pulgas sejam parte dos insetos alados
é maior que as evidências de que eles não pertencessem, de fato, a esse grupo.
Isso se chama parcimônia. Parcimônia é um dos conceitos mais gerais em ciência e é fundamental
na reconstrução filogenética em particular. No primeiro dos casos acima, o conceito de parcimônia implica
que é mais econômico, em termos do número de hipóteses assessórias, explicar os morcegos como sendo
mamíferos alados que explicá-los como aves vivíparas, peludas, com glândulas mamárias etc.
Na Figura 10, vemos dois exemplos. Em um deles (Figura 10A), vários caracteres em níveis diferentes
(caracteres 12, 13, 14, 15, 16, 17) mostram que o grupo E forma um grupo monofilético com F, sendo que um
único caráter apomórfico é compartilhado entre F e A. Ainda que F e A compartilhem uma característica
apomórfica (a característica 11), a aceitação de que eles formem um grupo monofilético implicaria que
todos os demais caracteres que reúnem F e E seriam homoplásticos. Ou seja, ainda que pudesse ser possível
que (A + F) forme um grupo monofilético, essa é uma hipótese muito menos parcimoniosa (ou econômica)
que aceitar que (E + F) forme um grupo monofilético (Figura 11). No outro exemplo (Figura 10B), uma
espécie S é plesiomórfica para o caráter 2, mas essa espécie compartilha diversas características apomórficas

Figura 10. Dois casos de caracteres incongruentes com um conjunto de caracteres congruentes entre si.
A. A filogenia com as relações entre os grupos A-F tem dez caracteres de origem única e um caráter
homoplástico entre A e F. A hipótese de surgimento homoplástico (isto é, paralelo ou convergente) do
caráter 11 entre A e F é muito mais econômica que admitir que A e F formam um grupo monofilético, com
os caracteres 12-17 sendo homoplasias. B. A filogenia com as relações entre os grupos G-K tem 13
caracteres de origem única e uma condição plesiomórfica do caráter 2 em K. Na filogenia apresentada,
ela é considerada uma reversão à condição plesiomórfica. A alternativa para explicar essa condição
plesiomórfica seria considerar K grupo-irmão de todo o restante do táxon, mas isso implicaria em aceitar
homoplasias ou reversões para os caracteres 1, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.

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Dalton de Souza Amorim

com as espécies T, R e Q, de maneira que essa


característica plesiomórfica é melhor compreendida
como resultando de uma reversão secundária à
condição semelhante à plesiomórfica em S. Isto é,
ainda que a condições plesiomórficas do caráter 2
em K pudesse apontar que K fosse grupo irmão de
todos os demais membros do grupo (que
compartilhariam o caráter 2 como sinapomorfia), isso
implicaria, alternativamente, que todos os demais
caracteres que sustentam K como grupo-irmão de J
(os caracteres 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10) fossem
homoplasias entre K e I, e entre K e J (ou casos de
reversões). Isto significa que a hipótese de
Figura 11. Mesmo caso que o da Figura 10A, mas monofiletismo entre K e J é a mais econômica ou
em que o caráter 11 é tomado como sinapomorfia parcimoniosa.
e todas as demais características incongruentes Parcimônia não é uma afirmação sobre a
natureza da evolução. Nem sempre o processo de
tomadas como homoplasias.
mudanças de caracteres corresponde a um conjunto
“parcimonioso” de mudanças. Parcimônia é um princípio metodológico, da mesma maneira como se utiliza
em todo o restante da ciência. Sua aplicação uniforme em todos os casos simplesmente gera uma probabilidade
de errar um menor número de vezes. Ainda que excepcionalmente a evolução de um caráter possa ter
ocorrido mais de uma vez em um grupo, resultando em um maior número de passos evolutivos para esse
caráter, é pouco provável que um grande número de caracteres idênticos tenham surgido por evolução
independente exatamente nos mesmos grupos.
Em qualquer área da ciência, podemos propor explicações absurdas, que dependem de um número
grande de hipóteses auxiliares. Essas explicações são rejeitadas porque não correspondem às propostas
mais simples ou econômicas. A hipótese de que a Lua fosse de queijo demandaria uma enorme gigantesca
de leite ser produzida, processada, para produzir esse queijo todo, e deslocada, sabe-se lá por quem, para a
órbita da Terra. Se rejeitamos o princípio da parcimônia em reconstrução filogenética, se poderia considerar
a possibilidade de que os periquitos fossem formas de planta muito semelhantes a psitacídeos. Ainda que
isso fosse admissível inicialmente como hipótese, ela exigiria tantos paralelismos, convergências e perdas
secundárias, que seria uma hipótese rapidamente descartável. Aberto mão do princípio básico da parcimônia
como eixo da formulação de hipóteses científicas, não há onde fazer algum outro corte objetivo entre hipóteses
aceitáveis ou não aceitáveis que não seja um critério inteiramente de conveniência pessoal.
Na prática de análises filogenéticas, a aplicação do conceito estrito de parcimônia corresponde, para
uma determinada base de dados (ou matriz de caracteres, como a da Figura 9), em aceitar a árvore que
implica o menor número de mudanças. Na Figura 11, temos a mesma base de dados que a da Figura 10A.
No entanto, enquanto que na árvore da Figura 10A o conjunto de caracteres é explicado por 23 mudanças,
para a Figura 11 é necessário admitir 28 mudanças, cinco a mais (acima de 20% de custo em relação à
hipótese mais econômica), de maneira que a árvore obtida na Figura 10A é considerada mais parcimoniosa,
para essa base de dados, que a da Figura 11.
Não é objetivo deste texto aprofundar-se em métodos de análise. Hoje há programas de computador
capazes de realizar com seguranças reconstruções filogenéticas que encontram, para uma determinada
base de dados, qual é ou quais são as árvores com o mesmo e menor número de passos. O número de
características com desenvolvimento homoplástico encontrado nos mais amplos estudos, seja de dados
moleculares, seja de dados morfológicos ou comportamentais, por exemplo, é alto o suficiente para que seja
necessária uma abordagem metodológica que use a discriminação proporcionada pelo princípio da parcimônia.
Além disso, os problemas relacionados à própria
construção de caracteres (como a escolha de genes
não homólogos, o alinhamento errado de bases em Em uma série de transformação entre duas
genes de espécies diferentes, a interpretação condições homólogas entre si, a condição
equivocada de homologia entre diferentes estruturas mais antiga é chamada de plesiomórfica e
ou entre partes diferentes de estruturas homólogas) a mais recente, de apomórfica.
são complexos o suficiente para resultar em erros
adicionais.

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Sistemática e Taxonomia

O número de combinações possíveis de árvores para um número muito grande de táxons terminais,
como vimos acima, é gigantesco. Desse modo, o tempo computacional para explorar todas as possibilidades
com bases de dados muito largas é tão grande que é inviável mesmo com clusters de computadores.
Mesmo com os melhores processadores, algumas análises de uma única matriz podem demorar muitos
meses. Isso exige procedimentos de estimativa do que se chamam de “ilhas” de maior probabilidade de se
encontrarem as árvores mais curtas, uma vez que não se podem explorar todas.
Um texto mais detalhado sobre sistemática filogenética em português é o de Amorim (2002), escrito
para alunos de graduação.

Classificação e nomenclatura
Agora é possível perceber com clareza que a filogenia das espécies, ocorrida ao longo de um período
de cerca de 3,5 bilhões de anos, é a causa de existir uma hierarquia na natureza. Ou seja, a hierarquia (de
táxons em todos os seus níveis e de suas características) existe independentemente da criação humana. Ela
é, portanto, descoberta, não inventada. A descoberta de qual tenha sido a filogenia que reúne todas as
espécies depende de um método filogenético, cujas bases vimos acima.
Se, de um lado, agora há uma compreensão dessa imensa hierarquia que reúne as espécies atuais e
espécies extintas (fósseis) em grupos cada vez mais abrangentes – através da reconstrução da filogenia –
, é necessário, por outro, permitir que as pessoas que não têm contato direto com o estudo da diversidade
biológica possam também ter acesso a essa informação. Isso se faz com a classificação biológica – ou
melhor, através de uma classificação biológica que reflita a filogenia.
Classificação significa dar nomes aos táxons nos vários níveis da hierarquia. Táxon é qualquer
grupo cujos elementos sejam organismos biológicos. Uma classificação biológica, portanto, tem dois
componentes. Um deles é o dos agrupamentos – em uma classificação filogenética, apenas grupos
monofiléticos –, refletidos através de seus nomes. “Vertebrata”, “Tracheophyta”, “Proteobacteria”, “Metazoa”,
“Orchidaceae”, “Musca” ou Homo sapiens são nomes que refletem nossa compreensão sobre as relações
entre as espécies.
O outro componente é aquele que indicaria se o agrupamento é mais próximo ou mais distante do
nível dos indivíduos. Isso se chama categoria taxonômica e tem apenas esse propósito: mostrar a posição
do táxon dentro da hierarquia. Teoricamente, os níveis poderiam apenas ser chamados “1º andar”, “2º
andar”, “3º andar” etc., mas foram criados nomes para os vários níveis da hierarquia seguindo uma sequência
mais ou menos fixa. Há diferenças entre os códigos de nomenclatura da Botânica, da Zoologia e de
Microorganismos. Tradicionalmente, usa-se em Zoologia, por exemplo, espécie, gênero, tribo, família, ordem,
classe, filo, reino. Essas categoria podem ser subdivididas, com o uso dos prefixos “sub”, “infra” ou “super”.
Quando nos referimos à “família Orchidaceae”, desse modo, estamos indicando um táxon
(Orchidaceae) e o nível que ele ocupa na hierarquia (família). Esses dois componentes são completamente
independentes. Um deles – o táxon – é descoberto com a reconstrução da filogenia e a partir dos caracteres
presentes no grupo. O outro – a categoria taxonômica – não faz parte da natureza. Os táxons não são nem
“famílias”, nem “ordens”, nem “filos”. De fato, em diferentes classificações, autores distintos aceitam, por
exemplo, “Crustacea” com “subfilo” ou como “classe” – não faz a menor diferença. Tanto considerando
Crustacea como um subfilo ou uma classe, percebemos que é um táxon relativamente “alto” na hierarquia,
afastado do nível da “espécie” e perto do que se chama do nível do “filo”. Podemos inclusive ter classificações
completas sem nenhuma categoria taxonômica. Elas são até melhores. As únicas exigências dos códigos
são quanto à forma de redigir o nome das espécies – binomes –, dos gêneros e os táxons do nível de família.
Há algumas preocupações básicas que devem ser compreendidas para a construção de uma
classificação, isto é, a proposição de nomes para agrupamentos de espécies na hierarquia. As principais são
as que se seguem.
(1) A universalidade do sistema (em termos de ser utilizado por pessoas de todos os países do
mundo, de todas as línguas). Isso é resolvido com o uso do latim ou de nomes latinizados, e não das línguas
modernas, para os nomes dos táxons. Isso exige, evidentemente, algum esforço dos sistematas para dominar
os rudimentos de latim e grego para a correta construção dos nomes de espécies ou de gêneros. Ainda
assim, é melhor do que se tivéssemos que dominar a quantidade de línguas em que os nomes fossem
propostos ou que se fôssemos privilegiar uma língua moderna em detrimento das demais. Além disso, o fato
de o latim ser uma língua não utilizada coloquialmente dá muita estabilidade ao sistema, enquanto que as
línguas atuais sobre mudanças constantes, podendo trazer instabilidade a um sistema único de nomenclatura
biológica.

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Dalton de Souza Amorim

(2) Evitar que os mesmos nomes sejam utilizados para táxons diferentes. Conhecemos os
problemas de homônimos dentro da sociedade... Quando pessoas diferentes usam os mesmos nomes para
tratar de coisas diferentes, o resultado é um caos completo na comunicação. Quando nomes iguais são
usados para táxons diferentes, há uma enorme quantidade de erros resultantes.
(3) Evitar nomes diferentes para os mesmos táxons. Na sociedade, isso é correspondente à
falsidade ideológica. Quando nomes diferentes são usados para pessoas, pressupomos que estamos fazendo
referência a pessoas distintas. Em taxonomia, táxons iguais com mais de um nome também gera confusão
e erros. Nesse caso, temos sinônimos: dois nomes diferentes para a mesma coisa.
(4) Respeitar estritamente a questão da precedência na proposição de nomes, para que
haja uniformidade no uso de nomes para os mesmos táxons. A prioridade no uso de nomes exige um
acompanhamento internacional de todos os nomes propostos para táxons em todos os países – o que demanda
um enorme esforço. Isso vem sendo feito desde a metade do século XIX com publicações especializadas
que compilam todos os nomes publicados em taxonomia a cada ano –hoje isso está muito facilitado com os
recursos de redes de computadores e indexação eletrônica de revistas e trabalhos. Isso resolve tanto o
problema de homonímia, quanto de sinonímia no sistema.
(5) Que seja possível confirmar a relação de identidade entre novos indivíduos encontrados
e os táxons aos quais eles pertencem. Como posso ter certeza de que um indivíduo qualquer pertence
a uma espécie já descrita ou um gênero ou uma família? É necessário que cada táxon proposto na literatura
(isto é, um nome proposto para um agrupamento na hierarquia) esteja “amarrado” a um indivíduo (no caso
de uma espécie) ou uma espécie (no caso de um gênero). Assim, havendo qualquer dúvida mais grave sobre
a identidade (por isso se chamada “identificação” de material, melhor que “classificação” de material) de
exemplares, consulta-se o exemplar original ou a espécie original ao qual o nome está associado. Esse é o
motivo de se guardarem amostras não só dos indivíduos que permitiram a descrição de novas espécies,
chamados de holótipos, como de material utilizado em qualquer trabalho biológico, para que a identificação
possa ser reconfirmada mais tarde, se necessário. Assim, coleções biológicas em museus e herbários são a
garantia indispensável de comunicação inequívoca a respeito de tudo que diz respeito à diversidade biológica
e de repetitibilidade.

Espécies com táxon ou como categoria


O termo “espécie” tem dois significados muito distintos em ciências biológicas. Isso é compreendido
por bem pouca gente, resultando em uma enorme quantidade de conflitos e confusões desnecessários. De
um lado, do ponto de vista biológico, espécie é uma entidade biológica. Existe na natureza e, portanto,
descobrimos. Há um enorme debate sobre como circunscrever ou delimitar uma espécie em relação a
outras espécies – as discussões sobre conceitos de espécie. Isso não tem nada que ver com a questão do
uso de nomes ou binomes latinos. Isso diz respeito ao reconhecimento na natureza de um nível de organização
biológica acima de organismos –e acima das populações.
O outro significado para o termo “espécie” é como categoria ou nível, na hierarquia taxonômica (da
mesma maneira que as categorias famílias, classe e ordem). Os táxons dessa categoria, pelos códigos de
nomenclatura, devem receber binomes em Latim. Lineu tinha uma crença simples e ingênua, natural para a
época, de que o que hoje chamamos de “espécies biológicas” seriam entidades estanques e fáceis de
reconhecer. Assim, ele propôs o mesmo termo – “espécie” – tanto para a entidade biológica natureza
quanto para o nível da hierarquia de categorias que corresponderia a essas entidades.
Esse uso equívoco do nome espécie é uma infelicidade. A visão de Lineu sobre a natureza do que
chamamos de espécie biológica era ingênua e incorreta. O limite entre o que é um conjunto de populações
abaixo do nível de espécie e um pequeno agrupamento imediatamente acima do nível de espécie é impossível
de estabelecer através de toda a diversidade biológica. A natureza biológica é muito mais dinâmica do que
gostaríamos e não está nem um pouco preocupada com a maneira como organizamos nossas idéias a
respeito dela. Há casos de intercruzamento entre “subespécies”, espécies irmãs, espécies próximas ou
mesmo espécies mais distantes.
Ou seja, não há um corte claro na natureza, diferentemente do que pensava Lineu, que corresponda
às espécies biológicas. De fato, quando alguém descreve uma espécie que não era conhecida está propondo,
através da descrição uma delimitação ou uma circunscrição que pode ou não ser verdadeira. Assim, cada
espécie proposta na literatura (e o mesmo vale para todos os grupos monofiléticos acima do nível de espécie)
corresponde também a uma hipótese. Há diversos nomes propostos para “espécies” ou conjunto de indivíduos
circunscritos pela descrição que, na verdade, não dizem respeito a espécie nenhuma... Nesses casos, o

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Sistemática e Taxonomia

agrupamento proposto é um equívoco de compreensão. Ou seja, não é porque há um nome de espécie em


uma classificação que existe na natureza uma entidade biológica correspondente.
Assim, a atribuição de binomes a um táxon porque esse táxon parece estar no nível das entidades
biológicas chamadas espécies é bastante arbitrária. Há binomes (ou seja, táxons no nível hierárquico da
classificação correspondente à categoria taxonômica da espécie) que parecem, de fato, corresponder a
espécies biológicas. Há outros casos em que um táxon específico inadvertidamente corresponde a um
pequeno grupo monofilético de espécies biológicas, muito semelhantes entre si. Há casos de táxons específicos
que inadvertidamente dizem respeito a pequenos grupos monofiléticos de populações, mas que não estão
isolados reprodutivamente de indivíduos de outras populações, portanto, corresponde a entidades abaixo do
nível real da espécie biológica. Há casos que inadvertidamente dizem respeito a pequenos grupos parafiléticos
de espécies próximas entre si, mas nem são uma espécie biológica, nem sequer formam um grupo monofilético
de espécies biológicas. E há binomes que inadvertidamente dizem respeito a um grupo parafilético de
populações.
Uma vez que a Sistemática é uma ciência e, portanto, produz hipóteses, é apenas natural que, com
o avanço das análises, haja ajustes graduais na estrutura de hipóteses sobre os grupos monofiléticos existentes
– os táxons da classificação –, sobre a distribuição de características nessa hierarquia e sobre o uso adequado
dos nomes para esses táxons. Em alguns casos, há alguma divergência entre autores sobre qual seja a
filogenia ou a classificação para os mesmos grupos – pode-se ter três, cinco ou dez propostas, por exemplo,
para um grupo de 30 táxons terminais (um caso típico é o de alternativas para a filogenia dos Metazoa).
Mesmo assim, isso corresponde a uma extraordinária melhora na organização do conhecimento biológico. A
falta de percepção da ordem da hieraquia que a filogenia produz corresponderia a setilhões e setilhões e
setilhões de alternativas, com o que seria muito pior trabalhar. A Sistemática corresponde a uma extraordinária
ajuda na nossa manipulação da informação sobre a diversidade biológica.

Bibliografia Recomendada
Amorim, D.S. 2001. Dos amazonias, p. 245-255. In: Llorente-Bousquets, J. & J.J. Morrone (Eds.),
Introducción a la biogeografia en Latinoamérica: teorías, conceptos, métodos y aplicaciones.
Facultad de Ciencias, UNAM, Mexico, D.F.
Amorim, D.S. 2002. Fundamentos de Sistemática Filogenética. Holos, Editora, Ribeirão Preto. 158 p.
Amorim, D.S. 2008. A visão sem tempo e a visão filogenética da diversidade biológica: implicações
pedagógicas. Ciência e Ambiente 36: 125-150.
Amorim, D.S.; D.L. Montagnini; R.J. Correa; M.S.M.C. Noll & F.B. Noll. 2002. Diversidade biológica e
evolução: uma nova concepção para o ensino de zoologia e botânica no 2º grau, p. 38-45. In: Barbieri,
M. (org.), A construção do conhecimento do professor. Uma experiência de integração de
professores do ensino fundamental e médio da Rede Pública à universidade. Holos, Editora,
Ribeirão Preto.
Amorim, D.S.; A.S. Sisto; D.R.N. Lopes; J.A. Braga & V.L.F.O. Almeida. 1999. Diversidade biológica e
evolução: Uma nova concepção para o ensino, p. 9-13. In: Barbieri, M. (org.), Aulas de Ciências.
Projeto LEC-PEC de Ensino de Ciências. Holos, Editora, Ribeirão Preto.
Carvalho, M.R. de; F.A. Bockmann; D.S. Amorim & C.R.F. Brandão. 2008. Systematics must embrace comparative
biology and evolution, not speed and automation. Evolutionary Biology 35: 97-104.
Pais, M.P.; A.D.G. Manço; E.M. Varanda & D.S. Amorim. 2000. Capítulo 1. Alguns conceitos gerais sobre
plantas, p. 13-20. In: Pais, M.P.; A.D.G. Manço; E.M. Varanda, Uma flora ilustrada: guia para
as plantas do Museu do Café. Holos, Editora, Ribeirão Preto.

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