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Sistemática e Taxonomia
conceitos fundamentais
Dalton de Souza Amorim
Depto. de Biologia, FFCLRP/USP, Av. Bandeirantes 3900, 14040-901 Ribeirão Preto SP
Hierarquia e classificações
Essa hierarquia de semelhanças foi representada na forma de um sistema de classes por Aristóteles,
mas também, mais tarde, por Lineu. Imaginem a comunicação entre as pessoas em geral a respeito da
diversidade biológica –que envolve hoje quase dois milhões de espécies conhecidas– se não houvesse grupos
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que reunissem as espécies. Os termos “moscas”, “pássaros”, “cogumelo”, “caramujos”, “palmeiras” não
são indicativos de espécies, mas de grupos de espécies. Esses substantivos correspondem a coletivos de
espécies e tornam muito mais fácil a referência a certas porções da diversidade biológica.
Exercício 1. Tome as seguintes espécies (ou grupos de espécies): dourado-de-rio, barata-d’água, cágado,
cotia, caravela, tênia, andorinha, bem-te-vi, carcará, lesma terrestre, lula-gigante, planária, minhocuçu. (1)
Quantas classificações possíveis se poderiam construir para reunir essas espécies? (2) Qual é seria a
melhor classificação para refletir as semelhanças entre essas espécies?
Para que houvesse um sistema universal de comunicação entre pesquisadores do mundo todo a
respeito da diversidade biológica, Lineu criou um sistema em Latim –e não um sistema em francês, sueco ou
inglês. Esse sistema foi crescendo em número de espécies ao longo dos últimos 250 anos e foi crescendo
também em precisão, no sentido de que mais agrupamentos de espécies, que não haviam sido percebidos
antes, foram descobertos e nomeados.
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Charles Robert Darwin (1809-1882) encontraram uma outra explicação para essa hierarquia de semelhanças.
As espécies, nessa nova visão, teriam surgido por mecanismos naturais, assim como já se conheciam
mecanismos naturais para a questão da órbita dos planetas, a gravidade e o funcionamento de alguns órgãos.
Espécies, em uma perspectiva evolucionista, sofrem divisões, gerando novas espécies, que mudam ao longo
do tempo. Essa seqüência de espécies que se dividem formando espécies, que se dividem formando ainda
outras espécies, que, elas mesmas, se dividem etc., chama-se filogenia.
Escada ou árvore?
A representação dos diagramas da filogenia dos seres vivos com o formato de “árvore” foi muito
natural. Ela parece ter sua origem em Heinrich G. Bronn (1800-1862) (Figura 3), tendo sido utilizada por
Darwin e muito popularizada por Ernst Haeckel (1834-1919).
Ainda que a estrutura dos diagramas em árvore sejam representações extremamente adequadas
das relações existentes entre as espécies em uma hierarquia, 150 anos depois da proposição da noção de
filogenia, a imagem de uma relação linear entre as espécies ainda não se desfez.
Essa imagem de uma sequência ascendente, como uma escada, é extremamente antiga. Chamada
em latim “Scala Naturae”, a escada da natureza, ela organiza a diversidade como um todo em uma única
sequência, ou seja, com uma ordem, partindo de um ponto inicial e chegando a um ponto terminal. Nessa
sequência, o término era sempre a espécie humana. Essa idéia está preenchida por outro conceito filosófico,
o de teleologia, com um propósito para a existência da diversidade, que seria a condição humana, para o
que tudo convergiria. Há, portanto, duas questões envolvidas. Uma é gráfica, no quanto ela representa um
tipo particular de ordem – linear. A outra é de valor, em que a espécie humana é colocada em um ápice. Esta
segunda questão não nos interessa aqui. A primeira, no entanto, é mais relevante. A melhor maneira de
representar a ordem perceptível é de fragmentação gradual em uma árvore, não uma escada.
A idéia de uma filogenia é a maior novidade da teoria evolutiva de Wallace-Darwin, em relação às
idéias prévias, de que as espécies se modificam ao longo do tempo, que já havia sido proposta concreta e
corretamente, por exemplo, por Pierre-Louis Moreau de Maupertuis (1698-1759), Jean Baptiste Lamarck
(1744-1829) e Robert Chambers (1802-1871), entre muitos outros. A causa da mudança, conforme proposto
por Edward Blyth (1810-1873) e Darwin, seria a seleção natural. Evidências de variabilidade intraespecífica
já haviam sido detectadas desde o século XVIII por Maupertuis, Lamarck, mas também por Darwin e
Mendel. Evidências do processo de diferenciação de espécies, que se dividiram, foram observadas
particularmente por Wallace, no sudeste asiático, e por Darwin, na ilhas Galápagos.
Figura 2. Diagrama filogenético de Charles R. Darwin, única ilustração do livro Origem das Espécies.
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população.
Assim, resta o conceito de indivíduo. Mas
A seqüência de eventos de divisão de os indivíduos precisam ser vistos sem ingenuidade.
espécies, que se dividem formando espécies, O zigoto unicelular de uma pessoa é o mesmo
que por sua vez também se dividem, chama- indivíduo que aquele que resulta de seu
se filogenia. desenvolvimento ontogenético que chegou ao estado
adulto. Como não vemos o estágio unicelular quando
olhamos um adulto, não se pode dizer que se vê um
indivíduo inteiro. O que vemos é um corte temporal
da existência de um indivíduo. A partir da observação de diferentes indivíduos em diferentes estágios
ontogenéticos, fazemos uma reconstrução do que é um indivíduo em sua totalidade.
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“A espécie A é filogeneticamente mais próxima da espécie B que qualquer uma das duas em relação a
qualquer outra espécie.”
Uma espécie pode ser ancestral, por exemplo, de cinco espécies atuais, não sendo ancestral de
outras, permitindo uma afirmação sobre parentesco filogenético do mesmo tipo (quaisquer duas espécies
desse grupo são mais aparentadas entre si que com
qualquer outra espécie que não integra esse grupo).
Essa espécie ancestral, portanto, é exclusiva desse
A descoberta de uma ordem subjacente à
grupo. Assim, “reconstruir as relações filogenéticas diversidade biológica precedeu, na história
entre espécies” e “encontrar espécies ancestrais humana, a proposição de uma causa natural
exclusivas” correspondem a duas faces de uma para essa ordem.
mesma moeda ou duas maneiras diferentes de dizer
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Figura 6. Duas filogenias levemente diferentes com 20 espécies terminais. Essas são duas entre 8,2
sextilhões de árvores alternativas possíveis.
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demonstrado que os jacarés e crocodilos são filogeneticamente mais próximos de aves que dos demais
répteis. Assim, Reptilia, que incluem quelônios, lagartos, cobras e jacaré, formam um grupo parafilético.
O que fazemos com os grupos parafiléticos? Há algum debate sobre essa questão. Alguns dos
grupos que hoje se imagina que são parafiléticos foram propostos muito antes da idéia de filogenia e de
evolução. Outros grupos foram propostos inicialmente pensando-se que eram monofiléticos, mas depois se
descobriu que essa era uma inferência equivocada.
O grande problema dos grupos parafiléticos é que eles são táxons (ou seja, grupos nas classificações)
como quaisquer outros. Quem lê a classificação e não conhece a filogenia do grupo pode pensar que eles
são monofiléticos e, portanto, fazer uma série de inferências evolutivas totalmente equivocadas a respeito
ou deixar de compreender bem aspectos evolutivos importantes. É bem conhecido, por exemplo, que os
Crocodylia têm coração com quatro câmaras. Não é à toa. Essa é uma característica apomórfica (em
relação a três câmaras) compartilhada com as Aves e, de fato, fazem parte das evidências que mostram que
Crocodylia é o grupo atual mais aparentado com as Aves. Olhando “Reptilia” como um grupo completo e
separado, tenderíamos a imaginar que o surgimento
das quatro câmaras no coração de jacarés e
crocodilos teria sido independente das aves. Espécies são entidades transtemporais e
Há uma tendência a eliminar os grupos não podem ser observadas diretamente.
parafiléticos das classificações biológicas. Esses Espécies –seus limites e suas características
táxons induzem a erro. Porque nos acostumamos a
– são reconstruídas e, portanto, quaisquer
esses grupos, no entanto, no início essa eliminação
causa um pouco estranheza. Parece que
afirmações sobre espécies são hipóteses, não
compreendemos algo claro quando dizemos “peixes” são observações.
ou “répteis” ou “algas”. Mas do que estamos
realmente falando, quando nos referimos a esses
táxons? De agnados, na base da evolução de vertebrados, ou de peixes pulmonados, irmão de Amniota?
Quando se fala “répteis”, se está referindo a quelônios, na base de Reptiliformes, ou a Crocodilia, perto de
Aves? Quando se fala de “algas”, se está referindo a algas verdes (que em si são parafiléticos em relação
às plantas terrestres) ou a algas vermelhas ou a algas marrons, cujas relações mais diretas talvez sequer
seja com as plantas? Apesar da aparência, esse táxons fornecem informação equivocada.
Homologia e comparação
Como são feitas as reconstruções de parentesco? Se não enxergamos o passado, a reconstrução
sobre como a filogenia se formou só pode ser feita a partir de indícios. Os indícios são as características que
os indivíduos das espécies atuais apresentam. Assim, a base de dados para análises de relações de parentesco
são matrizes de táxons versus caracteres. Entretanto, há um problema imediato: o que nos permite comparar
estruturas em organismos diferentes? Essa é a pergunta subjacente ao problema da homologia.
Em princípio, a questão da homologia está relacionada à questão da semelhança. Aristóteles, que
cunhou os termos homologia e analogia, já havia observado que algumas semelhanças são, na verdade,
superficiais. Isto é, as estruturas são consideradas semelhantes porque são resultado de uma observação
superficial. Quando se lhes observamos mais detalhadamente, percebe-se que não são tão semelhantes
quanto pareciam. O exemplo mais clássico talvez seja o de asas de aves e morcegos. A análise detalhada do
sistema de ossos envolvidos, a posição das membranas etc. mostra que essas duas são, na verdade, duas
condições bastante distintas de asas. De fato, são membros anteriores e, de fato, são utilizados para voar.
As asas de morcego, no entanto, correspondem a membranas que ligam dedos muito alongados, enquanto
que as asas de aves têm uma estrutura de tecido que conecta basicamente os membros anteriores ao corpo.
Em alguns outros casos, no entanto, o que parece diferente, estudando-se em detalhe, mostra-se
muito semelhante. O que se chama de fêmur em um jaboti e em um humano, a despeito das diferenças
óbvias, têm semelhanças peculiares: ambos inserem-se em uma bacia ou cintura escapular na extremidade
basal e articulam-se em um par de ossos alongados distalmente. As semelhanças existentes, apesar das
diferenças, são profundas.
A interpretação sobre a natureza ou a causa das homologias depende da visão de mundo ou da
ontologia do observador. Para Aristóteles, a homologia seria resultado do compartilhamento de essências.
As semelhanças eram tantas, em tantas partes diferentes dos organismos, que ele admitia que eram resultados
de expressão da mesma essência em espécies distintas. Em uma visão evolutiva, alternativamente, a homologia
é vista como resultado do compartilhamento de estruturas que existiam no ancestral comum mais recente
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células com contratilidade ou sem contratilidade; proteínas na parede celular com poros que permitem a
passagem apenas de água ou que são seletivos para íons; pelos marrons, pretos ou brancos na pelagem de
primatas; nervuras alares de insetos ramificadas ou simples.
Absolutamente todas as características biológicas têm uma origem evolutiva e, portanto, podemos
nos perguntar: em que nível da evolução elas surgiram? Do formato do bordo das folhas à velocidade de
transmissão de impulso elétrico em um axônio. Do formato de um osso particular no crânio à arquitetura do
ninho de um grupo de vespas. As condições homólogas diferentes entre si têm uma distribuição nas filogenias,
ou seja, há os conjuntos de espécies que apresentam as condições (duas ou mais) de uma estrutura, o que
permite começar a compreender sua história.
A representação gráfica da distribuição dessa característica entre espécies nos leva a um diagrama
não enraizado. Isso representa o fato de que temos, no mesmo horizonte temporal, condições diferentes
das mesmas estruturas (isto é, homólogas, diferentes entre si). Essa percepção das diferenças entre os
organismos atuais como se eles apenas fossem o que são – isto é, sem a profundidade do tempo – é a visão
ingênua da diversidade biológica. Agora temos que aprofundar nossa visão da diversidade, conectando
organismos e suas estruturas no passado.
Se nossa interpretação para a hierarquia de semelhanças é a evolução biológica e se as estruturas
que comparamos são homólogas entre si, as condições diferentes apresentadas por essas estruturas homólogas
têm idades diferentes. Isto é, uma é a condição mais antiga da qual a outra se derivou. Quem introduziu essa
compreensão da dimensão temporal para as relações entre estruturas homólogas e diferentes entre si –
passo indispensável para a elaboração de um método de reconstrução filogenética – foi o entomólogo
alemão Willi Hennig, em 1950. Para duas condições homólogas e diferentes entre si, uma delas é a mais
antiga e foi a base de onde a outra surgiu, constituindo uma série de transformação. Hennig chamou de
plesiomórfica a forma mais antiga e apomórfica a forma mais recente ou derivada.
Assim, por exemplo, há pernas anteriores apoiadas no solo em vertebrados terrestres (quadrúpedes)
e pernas anteriores em princípio não utilizadas para locomoção (bípedes). Há crânios sem um osso articulado
na parte ventral distal anterior e há crânios com mandíbulas. Há asas posteriores em insetos alados usados
para voar e há halteres. Há invaginações do corpo recobertas com coanócitos, que capturam partículas e
fazem digestão intracelular, e há cavidades digestivas em que as células da epiderme secretam enzimas
digestivas, havendo digestão extracelular, além de digestão intracelular. Esses são vários casos de condições
homólogas e diferentes entre si em espécies diferentes.
Uma vez que as estruturas nos organismos não vêm com nenhuma indicação sobre qual é o grau de
antiguidade relativa entre estruturas homólogas, temos agora que encontrar um meio de determinar, de
pares de estruturas homólogas entre si, qual é a mais plesiomórfica e qual é a mais apomórfica. Essa é uma
parte extremamente interessante da visão filogenética do mundo –agora sob uma ontologia evolutiva, podemos
enxergar a biodiversidade (isto é, espécies e suas características) espalhada na dimensão do tempo. Não
apenas espécies são interligadas no passado. As características das espécies também são interligadas. Com
o auxílio do método filogenético, olhamos o presente e podemos “enxergar” o passado.
“Sabemos” que a condição quadrúpede é mais antiga (ou plesiomórfica) que a condição bípede.
Sabemos que a ausência de mandíbulas em vertebrados (Agnatha) é plesiomórfica e sua aquisição, apomórfica.
Sabemos que asas posteriores utilizadas para voar é plesiomórfico em relação a halteres. Sabemos que uma
coanoderme é plesiomórfica em relação a uma gastroderme. Por que nos parecem tão óbvios esses casos?
A resposta é relativamente simples. A partir de outras fontes, há evidências de que alguns grupos são
monofiléticos. Assim, se uma característica varia dentro de um grupo monofilético e um membro externo a
esse grupo tem uma dessas condições, então provavelmente ela é a mais antiga (isto é, plesiomórfica), a
partir da qual a outra condição surgiu, apenas dentro do grupo. Assim, entre os animais com simetria bilateral
(isto é, Bilatéria), encontramos grupos com tubo digestivo completo, com boca e ânus, e grupos com uma
única abertura da cavidade digestiva, como em Platyhelminthes. Uma vez os Ctenophora e os Cnidaria têm
uma única abertura da cavidade digestiva, conclui-se que a condição em planárias é plesiomórfica, a mais
antiga, a partir da qual a condição apomórfica, o tubo digestivo completo, surgiu.
Esse raciocínio chama-se, usualmente, de comparação com grupos externos. Uma maneira mais
técnica de compreender essa dedução, no entanto, é perceber que, quando enraizamos um diagrama não
enraizado (como na Figura 7), automaticamente estabelecemos a polaridade dos caracteres. Se tivéssemos
um diagrama não enraizado dos metazoários (Figura 7A), não poderíamos inferir qual seriam as condições
plesiomórfica e apomórfica para o tubo digestivo. Mas colocando a raiz entre Porifera e todos os demais
metazoários (Figura 7B), automaticamente (por causa do que é externo ou interno a Bilateria) conclui-se
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que uma única abertura do tubo digestivo é plesiomórfico. Apenas para ilustrar, em uma situação absurda,
em que a raiz de metazoários fosse entre Mollusca e os demais metazoários, a condição de tubo digestivo
completo seria plesiomórfica.
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desde sua separação. Mas mesmo espécies próximas têm conjuntos de estruturas – bioquímicas,
comportamentais, fisiológicas, histológicas, morfológicas, biológicas etc. – que sofrem mudanças. Isso nos
permite somar evidências de diferentes tipos para a reconstrução das relações entre espécies.
Há diversas situações em que as evidências de vários caracteres se somam na mesma direção. Isto
é, as evidências fornecidas por vários caracteres apontam na direção de monofiletismo dos mesmos grupos.
A Figura 9 fornece um exemplo exato nesse sentido.
Em outros casos, no entanto, as evidências podem ser contraditórias. Ou seja, os grupos que
compartilham determinadas apomorfias não são compatíveis com os grupos que compartilham outras
apomorfias. Ainda que o raciocínio para a reconstrução filogenética seja bastante simples – sinapomorfias
são evidências de ancestralidade comum exclusiva –, há diversos problemas que dificultam sua aplicação.
Um deles é a própria construção dos caracteres, ou seja, o estabelecimento correto de homologias, a
codificação das diferentes condições (isto é, o estabelecimento de quais sejam os limites entre os diferentes
estados), a verificação nos exemplares dessas condições e os casos em que as condições em certas espécies
Figura 9. Vários caracteres que apontam um conjunto congruente entre si de hipóteses de monofiletismo.
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não são comparáveis (a perda de uma estrutura não permite a verificação de sua forma, por exemplo).
Um problema mais complicado, no entanto, é que as mesmas condições apomórficas podem surgir
mais de uma vez na evolução, gerando o que se chama de homoplasia (que compreendem paralelismos e
convergências evolutivas), e que algumas condições apomórficas sofram mudanças que fazem com que
estruturas adquiram uma condição modificada semelhante à que é plesiomórfica na série de transformação,
o que se denomina reversão. Dito de outra maneira, apesar de sinapomorfias serem evidências de grupos
monofiléticos, há casos em que não podemos reunir espécies mesmo que compartilhem apomorfias, pois
elas há evidência de que essas apomorfias teriam surgido em dois ou mais ancestrais independentemente. O
exemplo mais clássico é o das asas em morcegos e asas em aves, que não constituem evidência de que
morcegos formem um grupo monofilético com aves. Há também casos em que um grupo aparentemente
plesiomórfico para uma característica na verdade faz parte de um grupo maior em que essa característica
é derivada ou apomórfica. Um caso exemplar é o de pulgas, que não têm asas e, mesmo assim, são
considerados insetos holometábolos, ou seja, estão dentro de Pterygota, de maneira que eles perderam suas
asas.
O que nos permite indicar que morcegos não são aves (apesar de terem asas) e que pulgas estão
dentro dos insetos alados? A resposta é que o conjunto de evidências que apontariam que os morcegos são
mamíferos é maior (em termos de número de caracteres) que as evidências que apontariam que os morcegos
pudessem ser aves. O conjunto de evidências que apontariam que as pulgas sejam parte dos insetos alados
é maior que as evidências de que eles não pertencessem, de fato, a esse grupo.
Isso se chama parcimônia. Parcimônia é um dos conceitos mais gerais em ciência e é fundamental
na reconstrução filogenética em particular. No primeiro dos casos acima, o conceito de parcimônia implica
que é mais econômico, em termos do número de hipóteses assessórias, explicar os morcegos como sendo
mamíferos alados que explicá-los como aves vivíparas, peludas, com glândulas mamárias etc.
Na Figura 10, vemos dois exemplos. Em um deles (Figura 10A), vários caracteres em níveis diferentes
(caracteres 12, 13, 14, 15, 16, 17) mostram que o grupo E forma um grupo monofilético com F, sendo que um
único caráter apomórfico é compartilhado entre F e A. Ainda que F e A compartilhem uma característica
apomórfica (a característica 11), a aceitação de que eles formem um grupo monofilético implicaria que
todos os demais caracteres que reúnem F e E seriam homoplásticos. Ou seja, ainda que pudesse ser possível
que (A + F) forme um grupo monofilético, essa é uma hipótese muito menos parcimoniosa (ou econômica)
que aceitar que (E + F) forme um grupo monofilético (Figura 11). No outro exemplo (Figura 10B), uma
espécie S é plesiomórfica para o caráter 2, mas essa espécie compartilha diversas características apomórficas
Figura 10. Dois casos de caracteres incongruentes com um conjunto de caracteres congruentes entre si.
A. A filogenia com as relações entre os grupos A-F tem dez caracteres de origem única e um caráter
homoplástico entre A e F. A hipótese de surgimento homoplástico (isto é, paralelo ou convergente) do
caráter 11 entre A e F é muito mais econômica que admitir que A e F formam um grupo monofilético, com
os caracteres 12-17 sendo homoplasias. B. A filogenia com as relações entre os grupos G-K tem 13
caracteres de origem única e uma condição plesiomórfica do caráter 2 em K. Na filogenia apresentada,
ela é considerada uma reversão à condição plesiomórfica. A alternativa para explicar essa condição
plesiomórfica seria considerar K grupo-irmão de todo o restante do táxon, mas isso implicaria em aceitar
homoplasias ou reversões para os caracteres 1, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10.
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O número de combinações possíveis de árvores para um número muito grande de táxons terminais,
como vimos acima, é gigantesco. Desse modo, o tempo computacional para explorar todas as possibilidades
com bases de dados muito largas é tão grande que é inviável mesmo com clusters de computadores.
Mesmo com os melhores processadores, algumas análises de uma única matriz podem demorar muitos
meses. Isso exige procedimentos de estimativa do que se chamam de “ilhas” de maior probabilidade de se
encontrarem as árvores mais curtas, uma vez que não se podem explorar todas.
Um texto mais detalhado sobre sistemática filogenética em português é o de Amorim (2002), escrito
para alunos de graduação.
Classificação e nomenclatura
Agora é possível perceber com clareza que a filogenia das espécies, ocorrida ao longo de um período
de cerca de 3,5 bilhões de anos, é a causa de existir uma hierarquia na natureza. Ou seja, a hierarquia (de
táxons em todos os seus níveis e de suas características) existe independentemente da criação humana. Ela
é, portanto, descoberta, não inventada. A descoberta de qual tenha sido a filogenia que reúne todas as
espécies depende de um método filogenético, cujas bases vimos acima.
Se, de um lado, agora há uma compreensão dessa imensa hierarquia que reúne as espécies atuais e
espécies extintas (fósseis) em grupos cada vez mais abrangentes – através da reconstrução da filogenia –
, é necessário, por outro, permitir que as pessoas que não têm contato direto com o estudo da diversidade
biológica possam também ter acesso a essa informação. Isso se faz com a classificação biológica – ou
melhor, através de uma classificação biológica que reflita a filogenia.
Classificação significa dar nomes aos táxons nos vários níveis da hierarquia. Táxon é qualquer
grupo cujos elementos sejam organismos biológicos. Uma classificação biológica, portanto, tem dois
componentes. Um deles é o dos agrupamentos – em uma classificação filogenética, apenas grupos
monofiléticos –, refletidos através de seus nomes. “Vertebrata”, “Tracheophyta”, “Proteobacteria”, “Metazoa”,
“Orchidaceae”, “Musca” ou Homo sapiens são nomes que refletem nossa compreensão sobre as relações
entre as espécies.
O outro componente é aquele que indicaria se o agrupamento é mais próximo ou mais distante do
nível dos indivíduos. Isso se chama categoria taxonômica e tem apenas esse propósito: mostrar a posição
do táxon dentro da hierarquia. Teoricamente, os níveis poderiam apenas ser chamados “1º andar”, “2º
andar”, “3º andar” etc., mas foram criados nomes para os vários níveis da hierarquia seguindo uma sequência
mais ou menos fixa. Há diferenças entre os códigos de nomenclatura da Botânica, da Zoologia e de
Microorganismos. Tradicionalmente, usa-se em Zoologia, por exemplo, espécie, gênero, tribo, família, ordem,
classe, filo, reino. Essas categoria podem ser subdivididas, com o uso dos prefixos “sub”, “infra” ou “super”.
Quando nos referimos à “família Orchidaceae”, desse modo, estamos indicando um táxon
(Orchidaceae) e o nível que ele ocupa na hierarquia (família). Esses dois componentes são completamente
independentes. Um deles – o táxon – é descoberto com a reconstrução da filogenia e a partir dos caracteres
presentes no grupo. O outro – a categoria taxonômica – não faz parte da natureza. Os táxons não são nem
“famílias”, nem “ordens”, nem “filos”. De fato, em diferentes classificações, autores distintos aceitam, por
exemplo, “Crustacea” com “subfilo” ou como “classe” – não faz a menor diferença. Tanto considerando
Crustacea como um subfilo ou uma classe, percebemos que é um táxon relativamente “alto” na hierarquia,
afastado do nível da “espécie” e perto do que se chama do nível do “filo”. Podemos inclusive ter classificações
completas sem nenhuma categoria taxonômica. Elas são até melhores. As únicas exigências dos códigos
são quanto à forma de redigir o nome das espécies – binomes –, dos gêneros e os táxons do nível de família.
Há algumas preocupações básicas que devem ser compreendidas para a construção de uma
classificação, isto é, a proposição de nomes para agrupamentos de espécies na hierarquia. As principais são
as que se seguem.
(1) A universalidade do sistema (em termos de ser utilizado por pessoas de todos os países do
mundo, de todas as línguas). Isso é resolvido com o uso do latim ou de nomes latinizados, e não das línguas
modernas, para os nomes dos táxons. Isso exige, evidentemente, algum esforço dos sistematas para dominar
os rudimentos de latim e grego para a correta construção dos nomes de espécies ou de gêneros. Ainda
assim, é melhor do que se tivéssemos que dominar a quantidade de línguas em que os nomes fossem
propostos ou que se fôssemos privilegiar uma língua moderna em detrimento das demais. Além disso, o fato
de o latim ser uma língua não utilizada coloquialmente dá muita estabilidade ao sistema, enquanto que as
línguas atuais sobre mudanças constantes, podendo trazer instabilidade a um sistema único de nomenclatura
biológica.
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(2) Evitar que os mesmos nomes sejam utilizados para táxons diferentes. Conhecemos os
problemas de homônimos dentro da sociedade... Quando pessoas diferentes usam os mesmos nomes para
tratar de coisas diferentes, o resultado é um caos completo na comunicação. Quando nomes iguais são
usados para táxons diferentes, há uma enorme quantidade de erros resultantes.
(3) Evitar nomes diferentes para os mesmos táxons. Na sociedade, isso é correspondente à
falsidade ideológica. Quando nomes diferentes são usados para pessoas, pressupomos que estamos fazendo
referência a pessoas distintas. Em taxonomia, táxons iguais com mais de um nome também gera confusão
e erros. Nesse caso, temos sinônimos: dois nomes diferentes para a mesma coisa.
(4) Respeitar estritamente a questão da precedência na proposição de nomes, para que
haja uniformidade no uso de nomes para os mesmos táxons. A prioridade no uso de nomes exige um
acompanhamento internacional de todos os nomes propostos para táxons em todos os países – o que demanda
um enorme esforço. Isso vem sendo feito desde a metade do século XIX com publicações especializadas
que compilam todos os nomes publicados em taxonomia a cada ano –hoje isso está muito facilitado com os
recursos de redes de computadores e indexação eletrônica de revistas e trabalhos. Isso resolve tanto o
problema de homonímia, quanto de sinonímia no sistema.
(5) Que seja possível confirmar a relação de identidade entre novos indivíduos encontrados
e os táxons aos quais eles pertencem. Como posso ter certeza de que um indivíduo qualquer pertence
a uma espécie já descrita ou um gênero ou uma família? É necessário que cada táxon proposto na literatura
(isto é, um nome proposto para um agrupamento na hierarquia) esteja “amarrado” a um indivíduo (no caso
de uma espécie) ou uma espécie (no caso de um gênero). Assim, havendo qualquer dúvida mais grave sobre
a identidade (por isso se chamada “identificação” de material, melhor que “classificação” de material) de
exemplares, consulta-se o exemplar original ou a espécie original ao qual o nome está associado. Esse é o
motivo de se guardarem amostras não só dos indivíduos que permitiram a descrição de novas espécies,
chamados de holótipos, como de material utilizado em qualquer trabalho biológico, para que a identificação
possa ser reconfirmada mais tarde, se necessário. Assim, coleções biológicas em museus e herbários são a
garantia indispensável de comunicação inequívoca a respeito de tudo que diz respeito à diversidade biológica
e de repetitibilidade.
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Bibliografia Recomendada
Amorim, D.S. 2001. Dos amazonias, p. 245-255. In: Llorente-Bousquets, J. & J.J. Morrone (Eds.),
Introducción a la biogeografia en Latinoamérica: teorías, conceptos, métodos y aplicaciones.
Facultad de Ciencias, UNAM, Mexico, D.F.
Amorim, D.S. 2002. Fundamentos de Sistemática Filogenética. Holos, Editora, Ribeirão Preto. 158 p.
Amorim, D.S. 2008. A visão sem tempo e a visão filogenética da diversidade biológica: implicações
pedagógicas. Ciência e Ambiente 36: 125-150.
Amorim, D.S.; D.L. Montagnini; R.J. Correa; M.S.M.C. Noll & F.B. Noll. 2002. Diversidade biológica e
evolução: uma nova concepção para o ensino de zoologia e botânica no 2º grau, p. 38-45. In: Barbieri,
M. (org.), A construção do conhecimento do professor. Uma experiência de integração de
professores do ensino fundamental e médio da Rede Pública à universidade. Holos, Editora,
Ribeirão Preto.
Amorim, D.S.; A.S. Sisto; D.R.N. Lopes; J.A. Braga & V.L.F.O. Almeida. 1999. Diversidade biológica e
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