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SANTOS, Milton. Técnica, Tempo, Espaço. Revista Paranaense de Geografia, Nº 7, Curitiba, p.

115-120, 2002

TÉCNICA, TEMPO, ESPAÇO

Resumo
Técnicas agrícolas, industriais, comerciais, culturais, políticas, da difusão da informação, dos
transportes, das comunicações, da distribuição etc., são, todavia, um dos dados explicativos
do espaço. Tais técnicas não têm a mesma idade e desse modo se pode falar do anacronismo
de algumas e do modernismo de outras, como, naturalmente, de situações intermediárias. Em
qualquer que seja a fração do espaço, cada variável revela uma técnica ou um conjunto de
técnicas particulares. Trata-se, também, na verdade, da história dos instrumentos e meios de
trabalho postos à disposição do homem. A combinação, num lugar, de técnicas de idades
diferentes, significa, em cada momento histórico, possibilidade local de acumulação ou
desacumulação do capital em virtude da rentabilidade diferencial devida aos modos de
produção concretos.
Palavras-chave: trabalho, técnicas, espaço, história, tempo

Técnicas agrícolas, industriais, comerciais, culturais, políticas, da difusão da


informação, dos transportes, das comunicações, da distribuição etc.; técnicas que, aparentes
ou não em uma paisagem, são, todavia, um dos dados explicativos do espaço. Tais técnicas
não têm a mesma idade e desse modo se pode falar do anacronismo de algumas e do
modernismo de outras, como, naturalmente, de situações intermediárias. Essas técnicas se
efetivam em relações concretas, relações materiais ou não, que as presidem, o que nos
conduz sem dificuldade à noção de modo de produção e de relações de produção.
Em qualquer que seja a fração do espaço, cada variável revela uma técnica ou um
conjunto de técnicas particulares. Pode-se, também, dizer que o funcionamento de cada uma
dessas variáveis depende, exatamente, dessas técnicas. Tomando como referência a História
mundial, cada técnica poderá ser localizada no tempo. Trata-se, também, na verdade, da
história dos instrumentos e meios de trabalho postos à disposição do homem. Quando um
novo instrumento ou meio ou forma de trabalho torna-se uma forma de ação, constitui-se
uma espécie de certidão de nascimento ou data de origem. De tal maneira, seu emprego num
determinado lugar – emprego imediato ou posterior – atribui a esse lugar, ao menos para o
mencionado instrumento, condições técnicas do momento em que, pela primeira vez, esse
instrumento de trabalho se incorporou à História. Mas o tempo do lugar, o conjunto de
temporalidades próprias a cada ponto do espaço, não é dado por uma técnica, tomada
isoladamente, mas pelo conjunto de técnicas existentes naquele ponto do espaço.
Por isso, a idade das variáveis presentes em cada lugar termina sendo medida com
referência a fatores externos, sobretudo nos países subdesenvolvidos, onde a história da
produção é intimamente ligada à criação, nos países do centro, de novas formas de produzir.
Tomadas desse modo, essas variáveis de idades diferentes são na realidade passíveis
de quantificação e contabilidade, já que cada qual provoca combinações específicas, de
produto: por unidade de tempo, unidade de capital e unidade de trabalho. A combinação,
num lugar, de técnicas de idades diferentes, significa, em cada momento histórico,
possibilidade local de acumulação ou desacumulação do capital em virtude da rentabilidade
diferencial devida aos modos de produção concretos.
Na verdade, se um instrumento de trabalho, por exemplo uma fábrica, em virtude
das suas características técnicas, apenas pode alcançar determinado desempenho (por
exemplo, uma certa produção, utilizando uma certa quantidade de energia, capital de giro,
mão-de-obra etc.) a idade dos instrumentos de trabalho tem implicações com o resto da
economia (em virtude das possibilidades concretas de relações) e com o emprego (em virtude
das possibilidades concretas de oferta de postos) e assim por diante. Como essas relações
presidem à hierarquia entre lugares produtivos, as possibilidades de expansão ou de
estancamento diferem para cada lugar. Fique claro que isso não é, apenas, um resultado do
que nesse lugar se produz, mas, e sobretudo, do que é produzido no conjunto dos lugares de
um espaço dado. A posição relativa de cada lugar é dada, em grande parte, em função das
técnicas de que é portador o respectivo meio de trabalho.
Dessa maneira, a técnica constitui um elemento de explicação da sociedade, e de
cada um dos seus lugares geográficos. É evidente que a técnica por si só não explica nada. A
quantidade de capital circulante que é afetada a uma dada máquina ou conjunto de máquinas,
ou a um escritório, ou a outra qualquer forma de atividade humana, não é conseqüência
exclusivamente da estrutura material, nem do arranjo físico de objetos.
No plano puramente formal, haveria que levar em conta outros dados, como por
exemplo as formas organizativas do trabalho, seja no espaço, seja no tempo, seja no domínio
das relações entre os agentes. Mas a explicação ainda não se encontra aí. Na realidade, as
formas organizativas, assim como as formas de mercadeio, ou ainda as de previsão, são hoje
dados essenciais da explicação da rentabilidade das firmas, e todas são dados subordinados
ao poder da firma, poder que não é apenas econômico, mas também político. O poder
econômico da firma seria dado exclusivamente pela maior ou menor capacidade de combinar
eficazmente os fatores da produção de que dispõe, de um ponto de vista eminentemente
técnico, o que concerne a produção imediata. Na verdade, a força da firma vem, hoje, muito
mais da sua capacidade de modificar, no momento hábil, regras do jogo econômico, em sua
própria área de atividade e em função dos seus interesses emergentes. Referimo-nos, entre
outros dados, a sua maior ou menor capacidade de utilização de fatores produtivos que estão
fora do âmbito da própria firma, à força de criar, a seu serviço, esses fatores externos decisivos
quanto ao montante dos lucros, e à rapidez com que regressam, isto é, à velocidade da
acumulação, verdadeiro barômetro das possibilidades de competição e de ampliação do
próprio mercado.
O estudo das técnicas ultrapassa, desse modo, largamente, o dado puramente
técnico e exige uma incursão bem mais profunda na área das próprias relações sociais. São
estas, finalmente, que explicam como, em diferentes lugares, técnicas, ou conjuntos de
técnicas semelhantes, atribuem resultados diferentes aos seus portadores, segundo
combinações que extrapolam o processo direto da produção e permitem pensar num
verdadeiro processo político da produção.
Para que a geografia possa aspirar ao seu reconhecimento como uma filosofia das
técnicas, deve levar em consideração as implicações de fatos como esses, aplicando-lhes,
como em qualquer outro esforço de natureza filosófica, um sistema de referências cuja base
fundamental é a interpretação global do mundo e, por seu intermédio, a interpretação de
cada um dos seus aspectos ou partes. Nunca nos devemos esquecer de que o que torna
mensuráveis, ou, em todo caso, significativas, as variáveis de análise não é o seu valor
absoluto, o que, de resto, aliás, elas não têm. O seu valor é sempre relativo e surge no interior
do sistema em que se encontra e em relação com as demais variáveis presentes.
Esse exercício de interpretação deve levar em conta que esse sistema está, em
relação com outros situados em escalas superiores e inferiores. Esse enfoque sistêmico é
fundamental. Lembremo-nos, também, de que se limitássemos a pôr lado a lado variáveis da
mesma natureza, apenas chegaríamos a relações numéricas desprovidas de significação. São
relações entre variáveis de natureza diferente que permitem aproximação da noção de
estrutura. Ora, tanto o espaço global, como cada lugar, são realidades estruturais. As
estruturas, além do movimento que as impele para as mudanças, dispõem de arranjo material
e organização funcional, uma forma de ser e uma de existir.
A noção de idade das variáveis, de que falamos previamente, inclui duas noções
paralelas, a de idade tecnológica e a de idade organizacional.
A noção de idade tecnológica é dada em função da idade das técnicas presentes. A
noção de idade organizacional está ligada à forma como são dispostos, em termos de espaço
e de tempo, os fatores de trabalho correspondentes aos dados técnicos em questão. A
combinação dessas duas idades nos explica, em primeiro lugar, uma certa combinação de
capital e de trabalho aplicada ao ato de produzir. Essa noção pode ser concretizada com a
ajuda dos conceitos de composição técnica e composição orgânica do capital; em segundo
lugar, somos levados a entender como se dá uma determinada combinação de bens e de
serviços consumidos. No primeiro caso, estamos tratando essencialmente do fenômeno da
produção direta (produção propriamente dita) e no segundo estamos nos referindo sobretudo
ao fenômeno do consumo. O primeiro e o segundo aspecto são interligados e isso ajuda a
explicar, em cada lugar, a presença de certa combinação de tipos de infra-estruturas.
Nas condições da economia atual, é praticamente inexistente um lugar em que toda
a produção local seja localmente consumida ou, vice-versa, em que todo o consumo local é
provido por uma produção local.
Desse modo, as infra-estruturas presentes em cada lugar não dependem
exclusivamente do tipo e volume da produção, mas também do seu destino, o que obriga a
levar em conta os processos da circulação. Em outras palavras, as infra-estruturas presentes
em cada lugar encontram, em grande parte, explicação e justificativa fora do lugar. Da mesma
maneira, uma vez que o consumo local depende de uma produção distante, a cuja lei se
submete, a distribuição dos produtos termina por influir no tipo, na quantidade, forma e
disposição das infra-estruturas correspondentes cuja existência, desse modo, torna-se ali
igualmente autônoma, em relação às condições próprias do lugar. As diversas ecologias locais
não são unicamente explicáveis por fatores exclusivamente locais.
O espaço total, sobretudo nos países subdesenvolvidos, é pontual e descontínuo.
Levando-se em conta um dado ponto no espaço, as variáveis são assincrônicas de um ponto
de vista genético, seja em comparação com a respectiva idade das variáveis no pólo, seja em
relação com outros pontos do espaço. Todavia, em cada lugar o funcionamento das variáveis
é sincrônico. Todas as variáveis trabalham juntas, por meio das relações funcionais. Cada lugar
é, desse modo, em qualquer momento, um sistema espacial, não importa qual seja a idade
dos seus elementos.
Uma vez que o espaço nunca é portador de técnicas da mesma idade ou de variáveis
sincrônicas, pode-se dizer que se trata de um espaço assincrônico, ao mesmo tempo revelador
e organizador da sincronia. Os elementos do espaço, quando considerados dentro de uma
totalidade concreta, um lugar, são vistos como sincrônicos.
Vale a pena, aqui, lembrar, por exemplo, a afirmação de Eugenio COSERIU (1959, p.
l54)1, quando diz que “a língua funciona sincronicamente e se constitui diacronicamente”, ou,
em outras palavras, que a atual linguagem é formada de palavras, expressões, frases, que
datam de diversos momentos da História e representam, desse modo, formas de ser ou de
exprimir diferentemente datadas, o que não impede ao falar de hoje, utilizar, ao mesmo
tempo, essas formas de idade tão diversas. A mesma coisa se passa com o espaço do qual um
dos componentes, a paisagem, é como um palimpsesto, isto é, o resultado de uma
acumulação, na qual algumas construções permanecem intactas ou modificadas, enquanto
outras desaparecem para ceder lugar a novas edificações. Através desse processo, o que está
diante de nós é sempre uma paisagem e um espaço, da mesma maneira que as
transformações de um idioma se fazem por um processo de supressão ou exclusão, onde as
substituições correspondem às inovações. Da mesma forma que o sistema lingüístico, cada
sistema geográfico é sucedido por um outro, o qual recria sua coerência interna, ainda que
cada variável isolada experimente um processo de mudança com ritmo próprio.
No sistema histórico, ou temporal, as variáveis evoluem de maneira assincrônica;
no sistema espacial, elas mudam sincronicamente. Dessa maneira, pode-se dizer como
Saussure (citado por SAUCEROTTE, 1971, p. 41)2 que “a diacronia interessa ao eixo das
sucessividades e a sincronia ao eixo dos estados ou situações”. Nesse caso, a sincronia e a
assincronia não são realmente opostas, mas complementares, no domínio das relações
espaciais, pelo simples fato de que as variáveis são as mesmas. Na realidade, são as
defasagens entre as variáveis que explicam as diferenças de organização do espaço entre
países, assim como as chamadas disparidades regionais.
A base técnica da sociedade e do espaço constitui, hoje, um dado fundamental da
explicação histórica, já que a técnica invadiu todos os aspectos da vida humana, em todos os
lugares. Diacronia e sincronia são, ambas, possíveis de explicarão em termos de técnica, ainda
que nada se possa entender sem que se conheçam e avaliem as respectivas formas de
organização.
Referências
1. COSERIU, Eugenio. Sincronía, diacronía y Historia. EI problema del cambio
lingüístico. Montevidéu, 1954, p. 154 (citado por Luporini et Sereni (ed.), 1973 - voltar
2. SAUCEROTTE, Antoine. Temps et marxisme, La Pensée, 158, août 1971, p. 40-
54- voltar

Notas:
[*] Texto apresentado no 5º Congresso Brasileiro de Geógrafos, em Curitiba, em 19 de julho
de 1994, publicado originalmente nos anais do congresso como fac-símile, nas pp. 381-385.
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[**] Geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,
autor de vários livros. Faleceu em 2001. - voltar

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