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MANA 27(1): 1-4, 2021

e271803

RESENHA

http://doi.org/10.1590/1678-49442021v27n1r803 Público do Trabalho (MPT). Os artigos


ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. dessa obra revelam uma nova dimensão
Uberização, trabalho digital e do mundo do trabalho precarizado,
indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: cujo objetivo é trazer uma melhor
Boitempo. 333 pp. compreensão dos múltiplos significados
do universo laborativo nas plataformas
digitais nos mais distintos setores
Rômulo Bulgarelli Labronici1 produtivos.
1
Programa de Pós-Graduação em Antropologia,
Aqui, o termo “uberização”, uma
Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF/
derivação do nome da plataforma de
InEAC-LAESP), Niterói/RJ, Brasil
transportes Uber, é empregado como um
https://orcid.org/0000-0002-9860-0244
processo no qual as relações de trabalho
E-mail: romulolabronici@id.uff.br
são cada vez mais individualizadas e
invisibilizadas, sendo o assalariamento e
a exploração cada vez mais encobertos.
Na contemporaneidade, as possib- Apresentado como uma espécie de
ilidades da vida e as potencialidades de generalização e espraiamento de
ação econômica encontram-se cada vez características estruturantes da vida de
mais na ponta dos dedos. Atualmente, trabalhadores da periferia, que transitam
basta o toque em um aparelho eletrônico em uma trajetória de instabilidade e
ligado à internet para que seja possível ausência de identidade profissional,
comprar, vender, produzir, trocar e permeados por insegurança e pela falta
realizar todo tipo de serviço e transação de redes convencionais de proteção. Esta
imaginável. Entretanto, para que essas é uma tendência em curso implementada
“maravilhas” (aspas minhas) do mundo por corporações globais e que se
moderno se desdobrem diante dos nossos intensificou com o advento da pandemia
olhos, novas formas de elaboração das de SARS CoV-2, que assolou o mundo
forças produtivas são criadas, produzindo nos anos 2019/2020, estando ainda em
novos arranjos no mundo do trabalho. curso. Facilitada pelas Tecnologias da
Tais arranjos geram uma série de Informação e Comunicação (TIC), a
questionamentos sociológicos para com expansão dos aplicativos desenvolve
os seus efeitos, muitas vezes danosos, e amplia de modo exponencial o
do que se convencionou chamar de infoproletariado ou ciberproletariado
“capitalismo de plataforma” (:62). É nisso (Antunes & Braga 2009).
que se desdobra a coletânea organizada O termo “indústria 4.0”, muito
pelo professor Ricardo Antunes, que traz utilizado aqui, aponta para a ampliação
19 artigos de importantes pesquisadores dos processos produtivos cada vez mais
brasileiros e estrangeiros em uma automatizados e robotizados em toda a
parceria entre a Unicamp e o Ministério cadeia de valor controlada digitalmente,
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o que, segundo os autores Ricardo prestado. Ideologicamente acionada, a


Antunes (cap. 1) e Rafael Grohmann categoria mencionada acima atua aqui
(cap. 6), vem produzindo um vilipêndio com o intuito de, por um lado, mascarar
em relação ao trabalho, destruindo a as contradições de classes produzidas
separação entre o tempo de vida dentro pelo capital, por outro, explicita e
e fora dele, originando uma “escravidão coloca em evidência suas diferenças. O
digital” (Antunes 2018). Tal separação é trabalhador converte-se assim em um
evidenciada no papel dos “parceiros” que “quase-burguês” (:16) que “autoexplora”
trabalham com/para estas plataformas, seu próprio trabalho.
tendendo a permanecer longas horas do O ambiente de trabalho moderno,
dia “on-line” para adquirir uma renda, com ênfase no curto prazo, não permite
muitas vezes insuficiente ou abaixo das que as pessoas desenvolvam narrativas
condições mínimas para a sobrevivência. coerentes para suas vidas, reforçam
A noção de “parceria” aqui empregada os autores Tonelo (cap. 9) e Filgueiras
utiliza-se largamente de tecnologias, e Cavalcante (cap. 11). Realçado pela
algoritmos e inteligência artificial, “força dos laços fracos” (Granovetter
canalizados para o lucro das empresas 1973), as for mas passageiras de
com um caráter onipresente e automático associação se apresentam mais úteis
de supervisão e controle disciplinar que as ligações de longo prazo, sobretudo
dos trabalhadores detalhadamente nas qualidades de produção de relações
explorado por Jamie Woodcook (cap. 2). sociais duráveis e sustentáveis. Tal
As parcerias, como novas modalidades argumento vai ao encontro da expressão
de trabalho digital, passam ao largo das “capitalismo flexível” (Sennet 1998) no
regulações contratuais, transformando que diz respeito à imposição feita aos
o “trabalho assalariado em prestações trabalhadores para que sejam ágeis,
de serviços” (:11). Tal forma poderia ser estejam abertos a mudanças de curto
entendida outrora a partir do conceito prazo, assumam riscos e dependam
de “infor malidade”, mas este foi cada vez menos de leis e procedimentos
historicamente esvaziado para indicar formais. Esta dinâmica entre o trabalho e
processos mais gerais de “flexibilização”, a vida pessoal não pode ser programada
“terceirização” e “desregulamentação”, e ou adequada, impondo o constante
vem sendo recorrentemente substituído receio de uma falta de disciplina ética.
pelos termos empregabilidade, ou mais Assim, é possível assimilar na obra a
ainda, empreendedorismo, como novos inexistência atual de longo prazo, pois
modos de exploração capitalista (Silva a redução do trabalhador a um fator
2002). de produção utilizado na exata medida
A categoria “empreendedorismo” das demandas do capital coloca- o
aqui é exemplar, pois trata-se de uma inteiramente disponível ao trabalho,
forma oculta de trabalho assalariado mesmo que nem sempre remunerado
apresentada como “independente e para isso.
autônoma” (:23), uma vez que impõe As empresas se apresentam como
ao trabalhador uma autoimagem de mediadoras da oferta e da procura,
proprietário e proletário de si mesmo. Ele embora sejam elas que detêm os meios
detém um grau de liberdade (por mais de controle sobre o gerenciamento, a
que ilusória) para a realização da função, distribuição e a definição de valores
sendo também ele quem assume os riscos pagos pelos serviços prestados. Aqui,
e os custos da realização do serviço a própria categoria de “trabalho”
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pode ser expressa a partir de seu (Standing 2011), distinta do assalariado,


contraponto, o “não trabalho”, haja inserido em atividades desprovidas de
vista que ambas possuem, segundo o direitos, estabilidade e garantias de
antropólogo Mariano Perelman (2014), renda, não sendo algo estático, mas um
definições historicamente carregadas processo (:77) que ora amplia, ora reduz
de sentidos objetivos e subjetivos que a capacidade de resistência, revolta e
são valorados independente da tarefa organização.
em si. Enquanto algumas atividades são Notadamente, os autores
mais legitimamente consolidadas como reforçam que é inegável apontar para
tal, outras, muitas delas exploradas pelo a importância do papel da tecnologia
capitalismo de plataforma, encontram-se na elaboração da “natureza do trabalho
em uma zona cinzenta entre o trabalho e digital” (:48). A ligação entre o tempo e
o não trabalho. A forma como são vistas a distância foi, assim, quase inteiramente
impacta os modos como as pessoas se rompida, permitindo que a questão
relacionam (consigo mesmas, umas com geograficamente localizada do trabalho
as outras e com as instituições) e como fosse superada. Tal superação insere
vivem e expressam suas conformidades uma condição de concorrência entre
e desconformidades referentes aos seus os trabalhadores de todo o mundo,
modos de vida. diminuindo cada vez mais o seu poder
A noção de “precariado ”, ou de barganha.
precariedade, conceito elaborado por Apesar de conclusões não muito
diversos autores das mais variadas esperançosas, os autores que contribuem
correntes de pensamento, é empregado nesta obra, tal como Ludimila Abílio
aqui por Graham e Anwar (cap. 3), (cap.7) e Marco Gonsales (cap.8),
Filgueiras e Antunes (cap.4) tal como na buscam finalizar com uma nota
sociologia do trabalho, tanto no sentido positiva, explorando as novas formas de
das condições de trabalho quanto na associação, sindicalização e organização
experiência subjetiva de insegurança de trabalhadores que visam contra-
vividas por empresas e por trabalhadores. atacar as narrativas empresariais e os
Se, por um lado, as empresas forçam vilipêndios aos direitos adquiridos pela
os trabalhadores à precariedade, elas nova regulação trabalhista. As disputas
também operam precariamente como pela “inovação” movem-se para o campo
plataformas enxutas. Com isso, o político e de marcos regulatórios legais
modelo imprime duas ilusões inter- que possuem um centro de gravidade
relacionadas. A primeira é a ilusão do ainda desfavorável às demandas e
controle por parte das empresas, que às exigências dos trabalhadores. A
dependem inteiramente da coleta de assimetria de forças evidenciada entre
dados para a determinação da força o capital e o trabalho não é parte de
de trabalho; a segunda é a ilusão da um processo inexorável, mas resultante
liberdade por parte dos “parceiros”, de constantes disputas na assimilação
que têm suas rotinas inteiramente desta narrativa, cuja designação entre
gerenciadas por parte das plataformas, organização da produção e do trabalho
mas sem o “espetáculo da autoridade” no capitalismo atual é respondida
(:44), muitas vezes personificada na criticamente.
figura do chefe. As pressuposições O livro fecha com uma série de
aqui são de que o “precariado” seria o capítulos que abordam estudos de
surgimento de uma nova classe social caso, pesquisas qualitativas e análises
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etnográficas que contêm discussões de abordagens e formas com as quais


e diálogos diretos, tais como: direito o capitalismo de plataforma tem se
ambiental (Schinestsck, cap. 5); direito inserido nos processos produtivos atuais.
do trabalho (Praun & Antunes, cap. 12); Assim, a obra, além de ser uma referência
cadeia de automação (Pinto, cap. 13; aos pesquisadores do tema, se torna uma
Festi, cap. 10); trabalho digital e educação leitura essencial e obrigatória para quem
(Previtali & Fagiani, cap. 14); o trabalho se interessa em explorar as questões
digital nos bancos (Nogueira, cap. 15); mais atuais e originais referentes a este
saúde de trabalhadores (Nogueira, cap. universo. É, sem dívida, uma leitura de
16); “ walmartização” (Lemos, cap. 17); peso que contribui de maneira veemente
transnacionalização (Aguiar, cap. 18) para a consolidação dos debates das
e ciberativismo e sindicalismo (Roque, ciências sociais contemporâneas.
cap. 19), evidenciando a multiplicidade

Referências bibliográficas

ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberi- SENNET, Richard. 1998. A corrosão do


zação, trabalho digital e indústria 4.0. caráter: consequências pessoais do
1. ed. São Paulo: Boitempo. 333 pp. trabalho no novo capitalismo. São
ANTUNES, Ricardo. 2018. O privilégio Paulo: Ed. Record.
da servidão: o novo proletariado se SILVA, Luiz Antônio Machado da. 2002.
serviços na era digital. São Paulo: “Da informalidade à empregabilida-
Boitempo. de (reorganizando a dominação no
ANTUNES, Ricardo & BRAGA, Ruy mundo do trabalho)”. Caderno CRH,
(orgs). 2009. Infoproletráios: degra- Salvador, n. 37:81-109, jul./dez.
dação real do trabalho virtual. São STANDING, Guy. 2011. The precariat:
Paulo: Boitempo. the new dangerous class. Londres:
GRANOVETTER, Mark. 1973. “Strength Bloomsbury Academic.
of the weak ties”. American Journal
of Sociology, 78:1360-80.
PERELMAN, Mariano. 2014. “Vivendo
el trabajo. Transformaciones sociales
cirujeo yventa ambulante”. Trabajo y
Sociedad, n. 23:45-65.

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