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COORDENAÇÃO

ESA – OAB/RS

Rosângela Maria Herzer dos Santos


Fernanda Corrêa Osorio
COMISSÃO DA MULHER ADVOGADA DA OAB/RS
Claudia Sobreiro de Oliveira
Alba Elizabeth Pias Coelho
Luceline Teixeira Prado
Fabiana Ribeiro
Maiaja Franken de Freitas

ELAS NA ADVOCACIA II

Porto Alegre

2021
Copyright © 2020 by Ordem dos Advogados do Brasil

Todos os direitos reservados

Presidente da Comissão da Mulher Advogada - CMA-OAB/RS


Claudia Sobreiro de Oliveira

Capa
Carlos Pivetta

Elas na advocacia II/, Rosângela Maria Herzer dos Santos e Fernanda


Osorio...[et.al] (Coordenadoras). – Porto Alegre: OAB/RS, 2021. p. 984
ISBN: 978-65-88371-03-9

1. Direito. 2.Advogados I Título.


CDU: 347.965

Bibliotecária Jovita Cristina Garcia dos Santos – CRB 10/1517

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ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - CONSELHO FEDERAL
DIRETORIA/GESTÃO 2019/2021

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Vice-Presidente: Luiz Viana Queiroz
Secretário-Geral: José Alberto Simonetti
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ESCOLA NACIONAL DE ADVOCACIA – ENA

Diretor-Geral: Ronnie Preuss Duarte

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL

Presidente: Ricardo Ferreira Breier


Vice-Presidente: Jorge Luiz Dias Fara
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Secretária-Geral Adjunta: Fabiana Azevedo da Cunha Barth
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ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA

Diretora-Geral: Rosângela Maria Herzer dos Santos


Vice-Diretor: Darci Guimarães Ribeiro
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Diretora de Cursos Permanentes: Fernanda Corrêa Osório, Maria Cláudia Felten
Diretor de Cursos Especiais: Ricardo Hermany
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Josana Rosolen Rivoli,
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Presidente: Jorge Luiz Dias Fara


Diretora Administrativa: Claudia Regina de Souza Bueno
Diretor Financeiro: Ricardo Ehrensperger Ramos
Diretor de Benefícios: Luiz Augusto Gonçalves de Gonçalves

COOABCred-RS

Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel


Vice-Presidente: Márcia Isabel Heinen
6

SUMÁRIO

PALAVRA DO PRESIDENTE – Ricardo Breier ........................................................... 11

MENSAGEM - Daniela Lima de Andrade Borges .......................................................... 12

PREFÁCIO – Rosângela Maria Herzer dos Santos e Fernanda Corrêa Osorio ......... 13

APRESENTAÇÃO – Claudia Sobreiro Oliveira............................................................ 14

O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL E A GRADUAÇÃO À


DISTÂNCIA ADAPTADA AO SÉCULO XXI - Adriana Bitencourt Bertollo ............. 16

A EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 103 DE 2019 E A RESTRIÇÃO DOS


DIREITOS DAS MULHERES - Adriana de Góes dos Santos e Natacha Bublitz Camara
............................................................................................................................................. 26

VINGANÇA PORNOGRÁFICA NO DIREITO BRASILEIRO: A


RESPONSABILIZAÇÃO PENAL - Aline Pacheco Batista........................................... 47

A FRAGILIDADE DA LGPD PERANTE OS HIPERVULNERÁVEIS - Amanda Israel


Fraga e Vitória Bastos Bernardi ........................................................................................ 66

AS MULHERES COMO PROTAGONISTAS, NA TOMADA DE DECISÃO: UMA


ESTRATÉGIA EM BUSCA DA AUTONOMIA, DESENVOLVIMENTO E
SUSTENTABILIDADE - Andréa Marta Vasconcelos Ritter .......................................... 76

A CELERIDADE NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENVOLVENDO ENTES


PÚBLICOS E OS JUIZADOs ESPECIAIS - Andréia Atti Simões................................ 89

A APLICABILIDADE DA SOCIOLOGIA DA DOMINAÇÃO WEBERIANA NA


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA: ANÁLISE DOS MODELOS
PATRIMONIALISTA E BUROCRÁTICO - Ariane Faverzani da Luz e Isabela Bohnen
........................................................................................................................................... 109

A ATUAÇÃO DO TERCEIRO SETOR COMO EXERCÍCIO DA CIDADANIA -


Bárbara Bidese ................................................................................................................. 128

PRECEDENTES NO DIREITO BRASILEIRO - Camila Paese Fedrigo .................. 148


7

CONSEQUÊNCIAS DO PRECONCEITO E MARGINALIZAÇÃO SOFRIDA POR


MÃES QUE ENTREGAM SEUS FILHOS PARA ADOÇÃO E O IMPACTO NA
SAÚDE SOCIAL - Carla Alvez Santanna ...................................................................... 164

CONTRATOS AGRÁRIOS: NECESSIDADE DE ATUALIZAÇÃO LEGISLATIVA


- IMPORTÂNCIA DOS PRESCEDENTES E DA GESTÃO DE RISCO DAS
CLÁUSULAS CONTRATUAIS - Carla Alvez Santanna ............................................. 183

O PAPEL DA MODA NA LUTA PELA IGUALDADE DE GÊNERO - Carolina Dutra


Normey e Liane Martins Caon ......................................................................................... 200

A PERCEPÇÃO POPULAR SOBRE A MULHER ADVOGADA: UM ESPAÇO DE


NÃO PERTENCIMENTO - Carolina Höhn Falcão e Ingrid Fagundes Ziebell ........ 215

A IMPORTÂNCIA DA ATUAÇÃO DO ADVOGADO NA MEDIAÇÃO COMO


MEIO DE TRATAMENTO ADEQUADO DO CONFLITO - Cassiana Campos dos
Anjos de Oliveira .............................................................................................................. 227

A MATERNIDADE EM XEQUE COM A CODIV-19 - Cindel Gabriele de Queiroz 249

“INEXECUÇÃO CONTRATUAL POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO –


POSSIBILIDADE DA EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS” - Cristina
Dal Sasso .......................................................................................................................... 264

O DIREITO À IMAGEM DA CRIANÇA NA ERA DO FENÔMENO SHARENTING:


UMA PERSPECTIVA PORTUGUESA - Daiane Pompeo Barcelos .......................... 276

A HERANÇA DIGITAL NA SOCIEDADE WEBCONECTADA: A NECESSIDADE


DA MODERNIZAÇÃO DO DIREITO SUCESSÓRIO - Daiane Schneider Leviski 285

IMPACTOS DA ADVOCACIA FEMININA NA SEGURANÇA PÚBLICA - Daniela


Provin ................................................................................................................................ 306

AUTOCOMPOSIÇÃO: A MEDIAÇÃO COMO FORMA DE RESOLUÇÃO DE


CONFLITOS PARA O ALÍVIO DO PODER JUDICIÁRIO - Daniela Salhenaves
Antolini.............................................................................................................................. 317

A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO POLÍTICO PELA MULHER E A VIOLÊNCIA


POLÍTICA COMO UMA DAS FACES DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO - Danielli
Zanini ............................................................................................................................... 333
8

UNIÃO ESTÁVEL E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART 1790 DO CC


FRENTE À DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - Delma Silveira Ibias
........................................................................................................................................... 346

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU INTRAFAMILIAR: CONSEQUÊNCIAS NO


DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA; DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR
COMO MEDIDA DE PROTEÇÃO CONTRA A VIOLÊNCIA INFANTIL - Dioneia
Cristina Caron .................................................................................................................. 384

CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE OS DIREITOS DA MULHER EM


ATENAS, ESPARTA E NA SOCIEDADE VIKING - Elisângela Sampaio Teixeira e
Cinara Liane Frosi Tedesco ............................................................................................. 402

A NECESSIDADE DE VALORAÇÃO DA PROVA PERICIAL PSICOLÓGICA NOS


CRIMES DE ESTUPRO COM VÍTIMA MULHER - Ellen Souza Martins ............. 415

A FRAGILIDADE DAS PROVAS DEPENDENTES DA MEMÓRIA E O IMPACTO


DAS FALSAS MEMÓRIAS SOBRE ELAS - Érika Streppel Rocha Prates............... 432

A TELEMEDICINA EM TEMPOS DA PANDEMIA DO COVID-19 À LUZ DO


ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO - Evânia Romanosky ........................ 451

MULHERES, FILHOS E ADOÇÃO: AVANÇOS SOCIOCULTURAIS FEMININOS,


REFLEXOS NA IGUALDADE ENTRE FILHOS E A IMPORTÂNCIA DE UM
OLHAR MAIS EFETIVO AO PROCESSO DE ADOÇÃO - Helena Gil Klein ........ 464

IMPACTOS A.C E D.C NA SAÚDE SUPLEMENTAR X MERCADO


CONSUMIDOR - Jaqueline Wichineski dos Santos ..................................................... 480

TUTELAS PROVISÓRIAS SOB A LUZ DO PROCESSO JUSTO - Jaqueline


Wichineski dos Santos ...................................................................................................... 491

O CUMPRIMENTO PROVISÓRIO DA SENTENÇA E O NOVO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL - Jennifer dos Santos Carvalho ..................................................... 507

OS EFEITOS DAS MEDIDAS PROTETIVAS E A NECESSIDADE DE POLÍTICAS


PÚBLICAS PARA PROTEÇÃO DA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA - Jéssica Teixeira Amaral ....................................................................... 526

A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO MÉTODO DE PACIFICAÇÃO E


HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES - Joice Raddatz ................................................. 546
9

MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA E A HIPÓTESE CRIMINALIZADORA:


REFLEXÕES NECESSÁRIAS - Josiane Petry Faria e Cátia Conteratto Damo ........ 560

DISCRIMINAÇÃO NO AMBIENTE LABORAL – A ESCRAVIDÃO ESTÉTICA -


Jovana De Cezaro e Maíra Angélica Dal Conte Tonial.................................................. 576

A NECESSÁRIA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR INFANTIL DIANTE DE SUA


HIPERVULNERABILIDADE NA SOCIEDADE DE CONSUMO - Jovana De Cezaro
........................................................................................................................................... 594

A PROMOÇÃO DAS CIDADES RESILIENTES ENQUANTO INSTRUMENTO DE


EFETIVAÇÃO DO DIRETO À CIDADE - Karina Mombelli Sant'Anna.................. 612

AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA E SUA


EFICÁCIA - Lauren Hanel Lang Tabolka e Lilian Hanel Lang .................................. 625

OS EFEITOS JURÍDICOS DO RECONHECIMENTO DA FAMÍLIA


ANAPARENTAL - Letícia Alvarez Ucha ..................................................................... 640

A INCIDÊNCIA DA MULTA NOS EMBARGOS DECLARATÓRIOS


MANIFESTAMENTE PROTELATÓRIOS - Letícia Marques Padilha .................... 652

A IMPORTÂNCIA DA TUTELA PROVISÓRIA PARA O ORDENAMENTO


JURÍDICO - Lizandra Duarte Rodrigues ....................................................................... 669

FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E SEUS DESDOBRAMENTOS NAS RELAÇÕES


MULTIPARENTAIS - Lorrayne dos Santos Alves e Marigley Leite da Silva de Araujo
........................................................................................................................................... 689

CADASTRO AMBIENTAL RURAL E DIREITO À INFORMAÇÃO AMBIENTAL:


UMA ANÁLISE À LUZ DA TEORIA DE HABERMAS - Luiza Maria Oliboni ...... 709

UMA BREVE LEITURA CRIMINOLÓGICA A RESPEITO DOS CRIMES DE


COLARINHO BRANCO E DA APLICAÇÃO DO ACORDO DE LENIÊNCIA NO
BRASIL - Luma Costa Minotto Pereira ......................................................................... 726

O SISTEMA DA JUSTIÇA MULTIPORTAS COMO POLÍTICA PÚBLICA DE


TRATAMENTO DOS CONFLITOS FRENTE À CRISE QUANTITATIVA NOS
TRIBUNAIS BRASILEIROS - Marina Finger de Moura ........................................... 743
10

CASO FORTUITO, FORÇA MAIOR E ONEROSIDADE EXCESSIVA: O


PRINCÍPIO DA BOA-FÉ COMO PILAR DA AUTOCOMPOSIÇÃO EM TEMPOS
DE PANDEMIA - Mônica T. Medeiros Lopes Scariot . ................................................ 764

DESPORTO FEMININO: DIREITO DE IGUALDADE E RECONHECIMENTO


DAS DIFERENÇAS - Natália Gehres Trapp ................................................................. 779

A CONCRETIZAÇÃO DO DIVÓRCIO ONLINE EM TEMPOS DE


DISTANCIAMENTO SOCIAL - Natália Lanfredi Pinto da Rocha e Fernanda
Castellano Laguna ............................................................................................................ 798

A AUTONOMIA DO IDOSO FRENTE À ESCOLHA DO TRATAMENTO MÉDICO


- Nathalia Santos .............................................................................................................. 816

A PRÁTICA DA VAQUEJADA: INCONSTITUCIONALIDADE, VEDAÇÃO À


CRUELDADE ANIMAL E O EFEITO BACKLASH - Nicolle Bittencourt Rocha .... 835

HOMO SAPIENS X HOMO TECNOLOGICUS: A QUEM PERTENCEM AS


PROFISSÕES DO FUTURO? - Priscila Gonçalves Krieger e Camile Serraggio Girelli
........................................................................................................................................... 855

A DESIGUALDADE DE GÊNERO NO CAMPO – UM RETRADO DE EXCLUSÃO


DAS TRABALHADORAS NAS COMUNIDADES RURAIS TRADICIONAIS -
Quélen Kopper e Francine Nunes Avila .......................................................................... 886

OS DESAFIOS DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO E NA


ADVOCACIA - Rafaela Berton Bristott e Jeane Taysa Andreolli............................... 898

MULHERES RURAIS, MULHERES DE DIREITOS: ASPECTOS


PREVIDENCIÁRIOS E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA DE 2019 - Rosane
Marizeti Brum Vargas e Diocelia Martins Teixeira ....................................................... 913

EMBARGOS À EXECUÇÃO: A DEFESA DO EXECUTADO NO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL - Sara Daniela Silva de Souza ....................................................... 932

O DEVER FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE - Sheila


Pegoraro ............................................................................................................................ 949

O CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE: UMA ANÁLISE SOBRE OS


ASPECTOS PREJUDICIAS AO EMPREGADO - Thaís Vanessa dos Santos da Silva
........................................................................................................................................... 968
11

PALAVRA DO PRESIDENTE

A capacidade de superação da advocacia feminina é uma realidade inquestionável.


Fruto da qualificação, capacitação e liderança, as advogadas conquistaram seus espaços de
forma legítima, e se mostram dispostas a novos desafios.

Ao receber a relação dos artigos do e-book "Elas na Advocacia II", duas situações
imediatamente me chamaram a atenção: a diversidade dos temas propostos e a intensidade
da participação das advogadas. Discriminação, segurança, maternidade, filhos e impactos
profissionais, saúde e desporto feminino, mulheres protagonistas, Direitos Humanos e temas
constitucionais de grande relevância, entre outros, fazem parte da diversidade de assuntos
abordados. É essa riqueza de abordagens que permite afirmar que se trata de uma obra de
leitura obrigatória na realidade atual.

Não bastasse esse leque de ricas e diferentes abordagens, existe um engajamento


salutar. Se na primeira edição do livro havia 50 artigos, o segundo e-book nos brinda com
57 textos, registrando um crescimento merecedor de nosso reconhecimento. Esta é uma
marca da nossa OAB/RS: a crescente participação da advocacia, compreendendo que
existem valiosos espaços para a divulgação de meritórias contribuições.

Estamos passando por um tempo difícil, em razão da pandemia do novo Coronavírus.


Inúmeros obstáculos surgiram para impactar a rotina da advocacia. Mas nem essa complexa
realidade impediu essa maior participação das colegas. Sinal do quanto o comprometimento
com a profissão e com a Ordem é valorizado.

Em nome da presidente da Comissão da Mulher Advogada (CMA-OAB/RS),


Claudia Sobreiro de Oliveira), parabenizo as advogadas responsáveis pelos artigos do e-book
"Elas na Advocacia II".

Boa leitura!

Ricardo Breier
Presidente da OAB/RS
12

MENSAGEM

A Comissão da Mulher Advogada do Rio Grande do Sul e a Escola Superior da


Advocacia do Rio Grande do Sul entregam à advocacia brasileira valiosa contribuição
acadêmica com a publicação da obra Elas na Advocacia.

Existem muitos fatores que fazem com que as mulheres não encontrem as mesmas
condições que os homens para ocuparem espaços e darem visibilidade a seu trabalho na
advocacia: desigualdades visíveis e invisíveis que, em razão do gênero, impõem às mulheres
desafios e obstáculos a mais.

Atenta a essa realidade na qual historicamente nem sempre é garantido às


mulheres espaços para manifestação de suas ideias e visibilidade de seus trabalhos, esse
extraordinário projeto da CMA RS e ESA RS, já em seu segundo volume, impulsiona as
vozes femininas da advocacia gaúcha.

Artigos que decorrem do conhecimento e experiência das advogadas gaúchas nas


mais diversas áreas de atuação: direitos das mulheres, direito de família, do consumidor,
dos contratos, criminal, trabalhista, tributário, administrativo, empresarial, direitos
humanos.

A Seccional do Rio Grande do Sul mais uma vez valoriza o trabalho das
advogadas gaúchas garantindo a elas o direito de mostrarem sua competência e de
ocuparem espaços de notoriedade. A Comissão da Mulher Advogada e a Escola Superior
da Advocacia da Seccional do Rio Grande do Sul estão de parabéns.

Daniela Lima de Andrade Borges


Presidente da CMA Nacional
13

PREFÁCIO

Apresentar o e-book “Elas na Advocacia II” reveste-se, para nós, de um orgulho


especial. A coletânea de artigos, lançada no mês em que se reafirma a luta pela igualdade de
direitos entre os gêneros, reforça a visibilidade do protagonismo da advocacia exercida pelas
mulheres. Na apresentação desta obra homenageamos as setenta e três autoras que, apesar
das dificuldades inerentes à pandemia e a distribuição desigual das tarefas durante o longo
período de isolamento social, contribuíram para a materialização do conhecimento
produzido através das experiências femininas na advocacia.

Os cinquenta e sete artigos trazidos nesse e-book tratam dos mais diversos temas
relevantes para a advocacia e sobre eles são lançados múltiplos olhares promovendo uma
abordagem interdisciplinar dos fenômenos e da ciência jurídica. A coletânea, nesse sentido,
retrata a relação dialogal que a Escola Superior da Advocacia do Rio Grande do Sul
(ESA/OAB-RS), braço cultural da Ordem dos Advogados do Brasil, mantém com Comissão
da Mulher Advogada da OAB-RS (CMA/OAB-RS), reproduzindo a relação indissociável
entre educação e direitos humanos, tendo a igualdade de gênero como uma das suas metas e
o conhecimento como caminho para a construção de uma sociedade solidária, comprometida
com o respeito pela dignidade de todos.

Aos leitores e às leitoras, desejamos uma boa e profícua leitura e que esta obra sirva
de inspiração para que a advocacia siga combativa na busca pela igualdade entre mulheres e
homens, pela liberdade e autonomia na vida cotidiana, sobretudo, nos espaços de liderança
e de poder.

Porto Alegre, março de 2021.

Rosângela Maria Herzer dos Santos


Diretora Geral da Escola Superior da Advocacia da OAB/RS

Fernanda Corrêa Osorio


Diretora de Cursos Permanentes da Escola Superior da Advocacia da OAB/RS
14

APRESENTAÇÃO

A Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS, Gestão 2019/2021 disponibiliza à


comunidade jurídica uma de suas realizações mais importantes, o E-book ELAS NA
ADVOCACIA II.
O intuito da obra foi, uma vez mais, prestigiar o coletivo, propiciando um canal de
divulgação do alto grau de capacitação das advogadas gaúchas, muitas das quais atuam na
CMA.
Na Advocacia, assim como em toda a sociedade brasileira, as mulheres enfrentam
inúmeras barreiras para a real participação em todos os ambientes públicos e privados,
dependendo ainda de legislações diversas, ações afirmativas, dentre outras iniciativas para
ter o devido acolhimento e respeito.
Neste segundo E-book seguimos pensando em ampliar o espaço da atuação das
Advogadas, com reconhecimento técnico pela excelência dos artigos submetidos e
caminhando todas, lado a lado, em busca da igualdade de gênero no mundo jurídico e na
Seccional gaúcha
A igualdade em todas as esferas da OAB vem chegando com a Paridade aprovada no
CFOAB, em sessão histórica de 14.12.2020. Teremos mais mulheres em todos os espaços
da nossa Seccional e no interior do Estado.
Já na esfera política a situação é diversa. Poucas conseguem se eleger, ausência de
verbas e as que chegam, valores irrisórios, chegam uma semana ou duas antes da eleição. O
desrespeito com as mulheres, eleitas ou não, é imenso, chegando a configurar assédio
político ou violência política nos casos mais graves.
Somados a todos estes fatores estamos enfrentando uma pandemia que não ocorria
desde os últimos cem anos, portanto desconhecida de todas nós. Como presidente da CMA,
posso afirmar que foi um grande desafio. Pesquisas nacionais e internacionais mostram que
as mulheres foram as mais atingidas. Houve um decréscimo na produção acadêmica porque
cumularam vários papéis no cenário doméstico, tais como professora, cozinheira, lavadeira,
faxineira e geralmente responsáveis pelas idas ao supermercado. Isto tudo sem abandonar o
trabalho, embora o maior número de desempregadas sejam as mulheres.
Estes acontecimentos me fizeram crer que a adesão ao E-book fosse menor que na
primeira edição e não fiquei insistindo, pois, os entraves eram de grande monta.
Para minha surpresa, o chamado foi tão atendido, que tivemos mais artigos que no
ano passado, o que me enche de orgulho e gratidão a cada uma das autoras. É uma obra que
se consolida cada vez mais contando hoje com cinquenta e nove (59) artigos.
Os temas jurídicos abordados seguem de livre escolha das autoras interessam a
diversas áreas do Direito, como por exemplo, direito ambiental, dir. processual civil, direito
de família, direito penal, mediação de conflitos, direito do consumidor, direito internacional,
desporto feminino, previdenciário, desigualdade de gênero no campo, dentre outros também
muito instigantes.
15

É também o momento de agradecer o trabalho e a dedicação das minhas colegas na


Diretoria da CMA, Alba Elizabeth Pias Coelho, Luceline Teixeira Prado, Elisa Oliveira
Branco, das Coordenadoras do GT de Produção Científica, Fabiana Ribeiro e Maiaja
Franken de Freitas e ao apoio de todas as demais Coordenadoras da Comissão da Mulher
Advogada.
À Escola Superior de Advocacia do RS, na pessoa de sua Diretora-Geral, Rosangela
Herzer dos Santos e toda a Diretoria, especialmente os Diretores Fernanda Correa Osório,
nosso profundo agradecimento pela excelência do trabalho realizado e pelo acolhimento
dispensado à CMA, possibilitando publicação da presente obra.
À Ordem dos Advogados do Brasil -Seccional RS, na pessoa do Ilustre Presidente
Ricardo Breier e toda a sua Diretoria, nossa gratidão pelo apoio incansável à Comissão da
Mulher Advogada e por acreditar na necessidade de maior inserção da Mulher Advogada na
OAB/RS.
A todas as Colegas Autoras registro meu agradecimento e reconhecimento por
estarem conosco uma vez mais. Vocês servirão sempre de exemplo e inspiração para as
próximas Colegas que assumirem a Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS.

Porto Alegre, março de 2021.

Claudia Sobreiro de Oliveira


Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS
16

O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL E A GRADUAÇÃO À


DISTÂNCIA ADAPTADA AO SÉCULO XXI

Adriana Bitencourt Bertollo1

Resumo: Esse breve estudo visa refletir sobre a superação das dificuldades que obstam a
proposta de implementação de cursos de graduação em Direito integralmente à distância,
especialmente diante de consequências sociais e profissionais apontadas a partir da
fiscalização implementada pelo Ministério da Educação e pela Ordem dos Advogados do
Brasil, indicativas da má qualidade do ensino, gerando massivas reprovações no Exame de
Ordem e falta de atingimento das metas para obtenção de selo de qualidade pela OAB. O
estudo alerta quanto à necessidade de superação dos antigos métodos de ensino, calcados
num aprendizado tradicional, dogmático, alijado do aluno como centro desse aprendizado e
inibidor de uma visão intercultural e globalizante.

Palavras-chave: Ensino jurídico – Metodologias ativas. Globalização.

INTRODUÇÃO

O ensino jurídico no Brasil vem passando por questionamentos e turbulências, sendo


constantes as propostas legislativas para alteração das regras legais que regulamentam
profissões jurídicas, em especial a advocacia. Seguidamente reverberam manifestações em
desfavor do Exame de Ordem, assim como já houve proposição para criação de cursos
jurídicos que respaldassem a figura do profissional “Paralegal”, entendido como aquele que
pode atuar em um cenário jurídico que dispensa a exigência de aprovação aos quadros da
OAB, espécie de “gestores de escritório de advocacia” (BERTOLLO, 2017, p.
27). Estruturas curriculares são questionadas e, atualmente, a sociedade e a comunidade
jurídica convivem com a possível realidade de cursos jurídicos de graduação integralmente à
distância, proposta que pode vir a ser respaldada pelo atual período de pandemia declarado
pela Organização Mundial de Saúde2.
Desse modo, urge a observação crítica acerca de mais uma onda modificadora do
ensino jurídico, a fim de afastar possíveis consequências nefastas advindas

1
Mestranda em Direito das Relações Internacionais e da Integração na América Latina (UDE-Uy). Especialista
em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Especialista em Direito Processual Civil. Professora do
Instituto Brasileiro de Direito (IBIJUS). Advogada Pública - OAB/RS nº 47.576.
2
Em 11 de março de 2020, a OMS declarou pandemia causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2).
17

de eventual deficiência em sua qualidade. Torna-se essencial ao exercício da cidadania, a


reflexão sobre a espécie de profissionais que pretendemos formar e quais as expectativas
desses futuros profissionais frente ao mundo globalizado.
O ensino à distância, sem dúvida, é uma ferramenta da modernidade, da atual era da
Revolução da Informação. Entretanto, é preciso ter cautela e questionar se a derrubada dos
muros das faculdades físicas é realmente uma proposta que atende às demandas de um
mundo globalizado.
A democratização do acesso ao ensino deve ser avaliada à luz dos diversos fatores
sociais, entre eles razões mercadológicas e políticas, a fim de evitar-se grave prejuízo social
futuro e o sentimento de vazio de quem eventualmente venha a buscar navegar em águas
mais tranquilas e, ao final da jornada, não encontre o oásis pretendido.
Esse trabalho adota pesquisa bibliográfica, amparo em buscas legislativas e matérias
jornalísticas, no escopo de propor uma reflexão sobre mais uma etapa do que
convencionamos denominar de onda renovadora do ensino jurídico.

1. BASTA A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO AO ENSINO


JURÍDICO VIRTUAL?

O direito à educação está elencado no artigo 6º da Constituição da


República, compondo o rol de direitos sociais de segunda geração ou segunda dimensão. A
garantia constitucional da educação, em nosso país, corresponde a uma categoria de direitos
que exigem um agir estatal, dependem da execução de políticas públicas e compõe uma
plêiade de condições para satisfação dos demais direitos básicos, que perfazem a teia apta a
amparar a visada “dignidade da pessoa humana”.
Sobre os direitos de segunda geração ou dimensão, Guilherme Peña de Moraes (2016,
p. 647) leciona acerca da necessidade do agir estatal apto a proporcionar efetivação aos
direitos sociais, como é o caso da educação. Tais garantias dependem de um sistema de
freios e contrapesos que atuem conforme a geração de políticas públicas, a fim de que se
proclame um mínimo existencial, ou seja, um conteúdo de direitos sem o qual “a pessoa
humana não vive, vegeta” (DÜRIG; MAUNZ, 1987, p.43).
18

Esse contexto social conduz à necessária conclusão de que o direito à educação está
ligado a propósitos constitucionais maiores, que cravam pilares no tecido social, visando
o desenvolvimento do país, a ampliação da pesquisa científica e tecnológica.
Com efeito, a finalidade do ensino jurídico é entregar profissionais com capacidade
reflexiva e crítica, capazes de atuar na proteção aos direitos fundamentais, dentro de um
sistema que preste homenagem aos valores e princípios. Não é sem razão que, segundo
o artigo 133 da Constituição da República, “o advogado é essencial à administração da
justiça”.
Nesse contexto, as novas diretrizes curriculares da graduação em Direito, estipuladas
na Resolução CNE/CES nº 5, de 17 de dezembro de 2018 do Ministério da Educação (MEC),
estabelecem que os cursos de Direito devem contribuir com a formação do perfil do
graduando, mediante o atingimento de determinadas competências que perpassam uma
formação geral, humanística, domínio da terminologia jurídica, capacidade de
argumentação, aliado a uma postura reflexiva e cidadã3.
Dessa forma, a implementação de cursos jurídicos integralmente à distância terá de
propiciar ao estudante o desenvolvimento dessas competências necessárias ao exercício
profissional, missão que deve se socorrer do uso de metodologias ativas e de todas as formas
de ensino mais consentâneas com a formação condizente aos estudantes do século XXI.
A partir desse contexto, que exige capacidade crítica e comprometimento social,
pretende-se promover a reflexão a fim de averiguar se basta aos propósitos de
desenvolvimento social no país, o mero acesso ao ensino integralmente à distância, despido
da avaliação de todo o entorno pelo qual trafegam os profissionais do Direito.
Faz-se mister, inclusive, adequar o ensino jurídico dentro desse novo cenário virtual,
concatenando o conteúdo à tecnologia da informação, sem perder de vista as habilidades
comportamentais (soft skills) cada vez mais pertinentes ao bom profissional, habilidades
estas que complementam o perfil técnico do profissional (hard skills).

3
Art. 3º O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral,
humanística, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, capacidade de
argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, além do domínio das formas
consensuais de composição de conflitos, aliado a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a
capacidade e a aptidão para aprendizagem, autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício do Direito,
prestação da justiça e ao desenvolvimento da cidadania.
Parágrafo único. Os planos de ensino do curso devem demonstrar como contribuirão para a adequada formação
do graduando em face do perfil almejado pelo curso
19

O caminho não é simples pois o acesso ao ensino não pode ser divorciado das suas
finalidades: obtenção de emprego, formação profissional adequada, satisfação pessoal,
preparação ao mercado de trabalho saturado e competitivo, desempenho de um serviço
adequado como propósito de cidadania e, daqui em diante, igualmente adequado às normas
de biossegurança.
Nesse cenário, também pesam os números expressivos de reprovações no Exame de
Ordem, o alto investimento exigido à preparação dos candidatos aos concursos públicos, alta
competividade no mundo do trabalho, inevitáveis frustações e tudo o mais que pese sobre os
ombros quando os sonhos não se sustentam em sólidas bases.
Antes da abertura desordenada das portas do ensino jurídico, merecem destaque
vozes que clamam pela sua urgente melhoria. Nesse sentido a lição de Rafael Fonseca
Ferreira (2016, p. 23-24) acerca da crise no ensino jurídico brasileiro:

O Direito no Brasil sofre de um déficit hermenêutico-constitucional que atravessa


desde a academia até a prestação jurisdicional, inclusive, a própria jurisdição
constitucional. São todos, em regra, reféns de um modelo liberal-individualista-
patrimonialista de Direito baseado em teorias ultrapassadas, recepções
equivocadas, metodologias antiquadas, do modo pragmático de ensino –
concurseiro, calcado em repertório jurisprudencial e ancorado em doutrinas que
repetem verbetes e ementários, uma doutrina que não doutrina.

Portanto, em um mundo globalizado, é interessante questionar em que moldes deverá


ocorrer a democratização do acesso ao ensino jurídico mediante a sua total virtualização, sob
pena de ser confeccionada com elementos frágeis e incompatíveis para resistir às intempéries
do mundo lá fora.

2. A MERCANTILIZAÇÃO DO ENSINO EM UM MUNDO GLOBALIZADO

Dentre os negócios internacionais, cada vez mais presentes em virtude da


globalização, não é diferente a oferta mercadológica atinente aos serviços na área
educacional.
A tese de doutoramento de Lucas da Silva Tasquetto (2014) aborda o tema da
liberalização comercial dos serviços educacionais e sua consequência social quando
inexistente um prudente sistema regulatório:
20

Ao mesmo tempo em que a liberalização do comércio de serviços pode ter efeitos


positivos sobre a dimensão liberal do direito à educação em relação à liberdade de
ensino – o financiamento não discriminatório e o reconhecimento de diplomas, por
exemplo -, a concorrência internacional acentuada pelos compromissos em
serviços educacionais também orienta as políticas educacionais nacionais em
matéria de garantia da qualidade, taxas escolares e pesquisa. Dessa forma,
restringe a margem de manobra do Estado na realização da dimensão
intervencionista do direito à educação, e mais precisamente na implementação de
um direito de acesso em plena igualdade a um ensino superior de qualidade, sob o
risco de acentuar o desenvolvimento de uma educação com níveis cada vez mais
díspares de qualidade.

Não são novidade os estudos que alertam acerca da mercantilização do ensino, a


exemplo da experiência empírica acompanhada por Carlos Eduardo Pereira Siqueira
(2016), com um grupo de estudantes de Direito, que cursavam cadeiras de estágio de prática
jurídica, na Universidade Federal de Sergipe (UFS). A proposta da pesquisa foi analisar o
comprometimento do ensino jurídico superior com a “formação de pessoas autônomas e
capazes de criar e recriar a história”. Para o autor, as universidades prezam mais pela
preparação ao mercado de trabalho, deixando a descontento a reflexão e a produção de
conhecimento científico apto a promover a transformação social (SIQUEIRA, p. 74-75).
Noam Chomsky (2017, p. 215) também reflete acerca dos perigos da educação
voltada ao mercado, que se opõe aos propósitos maiores da educação superior, gerando mais
desigualdade econômica, menor voz ativa à população, mediante a quase inexistente
regulamentação por governos incompetentes, burocráticos e parasitários (CHOMSKY,
1999, p.3).
Desse modo, o ensino jurídico, na visão competente de Ângela Kretschmann e
Jaqueline Mielke Silva (2014, p. 63), jamais pode ser divorciado ou alheio às exigências
sociais, identificando as autoras que uma das causas da crise contemporânea é o alijamento
acerca da análise de princípios e da própria realidade social.
Com efeito, é preciso orientar a criação de cursos de graduação à distância alinhada
à nova era digital em que vivemos, cuja popularização do conhecimento é notória e,
justamente por isso, demanda que a formação dos profissionais em Direito seja realizada por
professores comprometidos com uma nova proposta pedagógica, consentânea ao ensino no
século XXI.
21

3. A EDUCAÇÃO JURÍDICA NO SÉCULO XXI

Situada a problemática da crise do ensino jurídico superior em um cenário de


globalização, no qual se deu a expansão do acesso ao ensino, especialmente após a facilitação
pelo ingresso de grupos econômicos nesse mercado educacional, além de outros problemas
metodológicos do próprio ensino, torna-se interessante questionar cada vez mais o aspecto
qualitativo, que merece se sobrepor ao viés meramente quantitativo e
supostamente democratizador.
A educação no Brasil tem assento constitucional, especialmente nos artigos 206 e
207 da Constituição da República, que prezam pela adoção de um sistema baseado em
princípios que elejam condições de igualdade de acesso e permanência na escola, mediante
um sistema que valorize os profissionais e a respectiva qualidade do ensino ministrado,
garantindo a autonomia didático-científica às universidades (artigo 207, CR/1988). A partir
das premissas constitucionais, o ensino no Brasil é regulamentado pela Lei das Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), a Lei Federal nº 9.394/1996, além dos decretos e
portarias ministeriais, da lavra do Ministério da Educação (MEC).
Conforme a portaria mais atual, editada no período de pandemia, sob nº 343,
especificamente em 18 de março/2020, houve autorização pelo MEC, em caráter
emergencial, para “substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que
utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabelecidos pela
legislação em vigor (...)”. Entretanto, essa autorização para virtualização de atividades não
inclui os cursos de Medicina, bem como disciplinas que envolvam “práticas profissionais e
de laboratórios nos demais cursos” (art. 1º, § 3º da Portaria 343/2020).
Nesse ponto, é prudente reafirmar a importância da formação profissional, que
hodiernamente se destaca com a preservação do ensino de graduação em Direito no formato
híbrido, ou seja, resguardando o maior percentual para atividades presenciais, que irão
contribuir com o futuro desempenho profissional do aluno.
Nesse compasso, o tema da migração do ensino superior em Direito para a
modalidade integral à distância, ainda é alvo de opiniões divergentes, embora Salum, Gomes
e Ramires (2018, p. 138) destaquem que esse formato de ensino seja realidade em países da
Europa, a exemplo da Inglaterra e Espanha.
Essa comparação é necessária sobretudo quando se pensa em um mundo globalizado,
no qual as oportunidades de interação cultural podem se ampliar. Ademais, um dos objetivos
22

para um plano mundial de desenvolvimento sustentável, formulados pela Organização das


Nações Unidas (ONU) é, justamente, uma proposta de “assegurar uma educação inclusiva e
equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida a
todos e todas” (ODS 4). Esse objetivo de promoção de uma educação de qualidade, também
se conjuga a outros objetivos mundiais de sustentabilidade, a exemplo do alcance do trabalho
decente e crescimento econômico (ODS 8), redução das desigualdades (ODS 10) e,
especialmente, erradicação da pobreza (ODS 1)6, propostas formuladas pela ONU em sede
da Agenda 2030.
Não é de se olvidar, que a República Federativa do Brasil, forte no artigo 4º da
Constituição Federal, preza pelo desenvolvimento das relações internacionais, bem como
das trocas culturais que advém desse contexto, especialmente no âmbito da comunidade
latino-americana. Assim, é imperioso promover o ensino jurídico a um patamar mais
universalizante, mas, antes disso, suprir as deficiências de ensino ultrapassado.

4. PROPOSTA DE UMA METODOLOGIA DE ENSINO INOVADORA

Portanto, foram pautadas as principais dificuldades que emperram o ensino jurídico


superior de qualidade no Brasil, especialmente resultando em instituições que não
oportunizam aos seus alunos uma base sólida para aprovação no exame da OAB, concursos
públicos ou desempenho profissional geral, além de não lograrem êxito como instituições
reconhecidas pela OAB (selo de qualidade)4.
Inobstante isso, a pergunta a ser feita não é “se” a proposta do ensino de graduação
em Direito à distância será efetivada algum dia, mas “quando” esses percalços serão
superados e essa proposta poderá se tornar uma realidade que permita a interculturalidade.
Vozes modernas acenam com inovadoras propostas que questionam a antiga noção
do professor como detentor maior do conhecimento, aquele que distribui “verticalmente” o
saber (BRITO, 2019, p. 109). Na atual quadra da história o professor passa a ser um
orientador do aluno, especialmente na era em que o conhecimento se encontra a um clicar
de dedos.

4
” Pesquisa realizada pela FGV Projetos mostra que, nos últimos 4 anos, 8 em 10 candidatos são reprovados
no Exame de Ordem da OAB (Ordem de Advogados do Brasil). A taxa de reprovação é de 82,5%”. Disponível
em: <https://www.editoraforum.com.br/noticias/de-cada-10-candidatos-8-sao-reprovados-no-exame-de-
ordem/#:~:text=Pesquisa%20realizada%20pela%20FGV%20Projetos,%C3%A9%20de%2082%2C5%25.>.
Acesso em 03 agosto 2020.
23

O olhar lançado por Bacich e Moran (2018), no prefácio que inaugura a obra
“Metodologias Ativas para Uma Educação Inovadora” é inspirador nesse sentido:

Os estudantes do século XXI, inseridos em uma sociedade do conhecimento,


demandam um olhar do educador focado na compreensão dos processos de
aprendizagem e na promoção desses processos por meio de uma nova concepção
de como eles ocorrem, independentemente de quem é o sujeito e das suas
condições circundantes. No mundo atual, marcado pela aceleração e pela
transitoriedade das informações, o centro das atenções passa a ser o sujeito que
aprende, a despeito da diversidade e da multiplicidade dos elementos envolvidos
nesse processo.

Portanto, a luta desenvolvida pela OAB no sentido de exigir a transformação de


alunos em cidadãos críticos é mais do que oportuna e salutar em uma era conhecida como a
era do conhecimento. Não se pode desejar menos.
Nesse compasso, é preciso conjugar o programa dado em sala de aula, com toda a
riqueza cultural e vivências que podem ser trazidas pelos alunos. Nesse sentido,
metodologias como a “sala de aula invertida” urgem como propostas importantes.
Segundo Brito (ano, p. 108) “a sala de aula invertida possibilita que os professores
conheçam melhor seus alunos e identifiquem as habilidades e fragilidades de cada um”. É o
aluno protagonizando o saber e proporcionando, ao lado de seus pares, um verdadeiro
compartilhamento das informações, com o professor na condição de bússola e, por que não
dizer, eterno aprendiz.

CONCLUSÃO

Esse breve ensaio, longe de deslindar o caminho da virtualização do ensino jurídico


brasileiro, ou de vislumbrar o cenário pós-pandemia, pautou-se na mera identificação do
ensino à distância como uma das propostas para uma educação globalizante.
A formação de profissionais na área jurídica com capacidade de
raciocinar criticamente e, bem assim, entregar respostas mais efetivas aos anseios sociais em
sua área de atuação, certamente pode exsurgir a partir de qualquer meio de formação, seja
no âmbito presencial ou virtual.
Não há um único caminho a seguir. Há, sim, um futuro antecipado pela pandemia,
exigindo a assimilação de competências imprescindíveis nesse cenário imposto por um
mundo que adoeceu e necessita reinventar-se. Um mundo forjado na rapidez de uma
24

sociedade em rede5, na aventura da inteligência artificial, cuja modernidade desafia cada vez
mais um olhar humanizante.

REFERÊNCIAS

BACICH, Lilian. MORAN, José. Org. Metodologias Ativas para uma Educação
Inovadora: uma abordagem teórico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018.

BERTOLLO, Adriana Bitencourt. Reflexão Sobre a Qualidade do Ensino Jurídico no


Brasil a partir da Justificativa ao Projeto de Lei que Cria a Figura Profissional do
“Paralegal” e a Possibilidade de Afronta ao Direito como Integridade na Visão de
Ronald Dworkin. Ensino Jurídico no Brasil: 190 anos de história e desafios/ Petry,
Migliavacca, Osório, Danilevicz, Fuhrmann (Org); Bertollo...[et al.]. 1ª ed. Porto Alegre:
OAB/RS.2017.999p.

BRASIL. Planalto. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 10 de
junho de 2020.

BRASIL. Planalto. Lei nº 9.394/1996. Dispõe sobre as diretrizes e bases da educação


nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em
08 de Julho de 2020.

BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 5749/2013. Altera a Lei 8.906, de 04 de julho de 1994,
dispondo sobre a criação da figura do paralegal. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=580518>.
Acesso em 06 de junho de 2020.

BRITO, Daniel Higa Souza. A Sala de Aula Invertida e o Ensino Jurídico no Brasil:
desafio na incorporação do uso das tecnologias da informação e comunicação como
instrumentos no processo de construção do conhecimento. Educação de Qualidade e
Desenvolvimento na Lusofonia. coord. COUTINHO, Francisco Pereira; OLIVEIRA,
Emillin de. Editora Universidade Nova de Lisboa. Portugal: 2019, p. 103-14. Disponível em:
<https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-
>PT&as_sdt=0%2C5&q=A+Sala+de+Aula+Invertida+e+o+Ensino+Jur%C3%ADdico+no
+Brasil%3A+desafio+na+incorpora%C3%A7%C3%A3o+do+uso+das+tecnologias+da+in
forma%C3%A7%C3%A3o+e+comunica%C3%A7%C3%A3o+como+instrumentos+no+pr
ocesso+de+constru%C3%A7%C3%A3o+do+conhecimento&btnG=>. Acesso em 03 de
agosto de 2020.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Tradução Roneide Venancio Majer. 17ª


edição, revista e ampliada. São Paulo: Paz e Terra, 2016.

5
Castells (2016, p. 128), na obra a Sociedade em Rede, refere “o paradigma da tecnologia da informação não
evolui para seu fechamento como um sistema, mas rumo à abertura como uma rede de acessos múltiplos. É
forte e impositivo em sua materialidade, mas adaptável e aberto em seu desenvolvimento histórico.
Abrangência, complexidade e disposição em forma de rede são seus principais atributos”.
25

CHOMSKY, Noam. O Lucro ou as Pessoas. Bertrand Brasil, 2002. Disponível


em: http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Noam%20Chomsky-
1.pdf

___________ Optimismo Contra El Desaliento: sobre el capitalismo, el imperio y el


cambio social. Tradução de Francesc Reyes Camps. 1ª edição. Espanha, 2017.
FERREIRA, Rafael Fonseca. Internacionalização da Constituição: Diálogo
hermenêutico, perguntas adequadas e bloco de constitucionalidade. 1ª edição. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2016.

FREIRE. Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos.


Apresentação de Ana Maria Araújo Freire. Carta-prefácio de Balduino A. Andreola. São
Paulo: Editora UNESP, 2000.

INSTITUTO DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Parecer nº 01/2014. Comissão de Direito


Administrativo. Disponível em: http://www.iabnacional.org.br/noticias/quatro-pareceres-
contrarios-a-criacao-do-paralegal. Acesso em 30 de Junho de 2017.

KRETSCHMANN, Ângela. SILVA, Jaqueline Mielke. Crise no Ensino Jurídico – um


enfrentamento a partir da obra de Ronald Dworkin. Anais da VIII Mostra Científica do
CESUCA – nov./2014, p. 60-76. Disponível em:
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MAZZAFERA, Bernardete Lema. DEL ARCO, DANILO. Ensino Superior à Distância a


Partir da Constituição Federal de 1988: base normativa do ensino híbrido. Revista de
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MORAES, Guilherme Peña. Curso de Direito Constitucional. 8ª edição. São Paulo: Atlas,
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<http://www.oabrs.org.br/mobile/noticias/lamachia-e-bertoluci-repudiam-projeto-
paralegal-para-nao-aprovados-no-exame-oab/15828>. Acesso em 01 de julho de 2017.

TASQUETTO, Lucas da Silva. Educação e Comércio Internacional: Impactos da


Liberalização Comercial dos Serviços sobre a Regulação da Educação Superior no
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22102014-175236/pt-br.php>. Acesso em 10 de janeiro de 2017.

SALUM, Mirella Franchini de Almeida Prado. GOMES, José de Anchieta. RAMIRES,


Débora Costa. As Desvantagens do Ensino à Distância para o Curso de Graduação em
Direito. Revista Eletrônica Científica da FAESB. Set 2018, vol. 1, nº 5, p. 135-150.
26

A EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 103 DE 2019 E A RESTRIÇÃO


DOS DIREITOS DAS MULHERES

Adriana de Góes dos Santos1


Natacha Bublitz Camara 2

Resumo: A atualidade do tema foi imprescindível para sua escolha, diante de um quadro de
alterações legislativas previdenciárias constantes, e também pelo fato de os direitos das
mulheres serem alvo de grandes restrições pela Emenda Constitucional n.º 103/19, que
afastam a concretização do princípio da isonomia e promovem ainda mais desigualdade
social. Com enfoque na perspectiva de gênero, o presente artigo analisará a diferença no
acesso a proteção social previdenciária para o risco de velhice entre homens e mulheres, bem
como a ausência de superação das discriminações de gênero no mercado de trabalho que
justifiquem o aumento do critério etário para aposentadoria das mulheres. O objetivo central
deste artigo é demonstrar que as restrições as prestações previdenciárias impostas as
seguradas, ferem vários princípios, de forma ainda mais acentuada o da igualdade material
e isonomia de tratamento. Nesta pesquisa será utilizado o método de abordagem dedutivo,
uma vez que, se partirá de generalidade e premissas relacionadas ao tema proposto, para
sugerir a aplicação das conclusões obtidas em casos particulares.
Palavras-chave: Mulheres. Direitos. Igualdade Material. EC n.º 103/2019

INTRODUÇÃO

O presente artigo intitulado a Emenda Constitucional n.º 103 de 2019 e a restrição


dos direitos das mulheres, tem por objetivo debater acerca do confronto entre as alterações
promovidas em relação a concessão de benefício de aposentadoria para as seguradas e a
ofensa ao princípio da igualdade consagrado em nosso ordenamento jurídico e assegurado
como direitos humanos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Pela nova redação dada ao §7 do artigo 201 da Constituição Federal, o novo benefício
de aposentadoria programada no Regime Geral da Previdência Social, passou a exigir a idade
mínima de 62 anos para a mulher, observado o tempo mínimo de contribuição de 15 anos.
Por outro lado, não se observou mudança da regra em relação ao sexo masculino.

1
Advogada, especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Anhanguera de Passo Fundo, em Direito
do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Meridional IMED, e Direito Previdenciário pela a
Faculdade Damásio de Jesus, OAB/RS 80.684, e-mail: adrianagoesadv@gmail.com.
2
Advogada. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pós Graduanda
em Direitos Humanos e Constitucional pelo Ius Gentium Conimbrigae da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra. E-mail: natachabublitz@gmail.com.
27

A Emenda Constitucional, em atenção ao princípio da confiança legítima, previu uma


regra de transição que estipula um aumento progressivo da idade mínima, aplicáveis as
mulheres que já estiverem filiadas ao Regime Geral da Previdência na data da promulgação
da Emenda Constitucional.
Por meio desta pesquisa primeiramente pretende-se realizar uma reflexão sobre a
inclusão das mulheres no mercado de trabalho, desafios históricos e o tratamento dispensado
pela legislação previdenciária, que visava compensar as discrepâncias existentes entra a
empregabilidade masculina e feminina assegurando uma igualdade formal.
Serão abordadas as dificuldades na participação das mulheres no mercado de trabalho
e a desigualdade de oportunidades face a segregação horizontal e vertical, bem como a
dificuldade de permanência e constância no mercado de trabalho face a economia de
cuidado, em que o trabalho não remunerado e voluntário de cuidado dos filhos, doentes,
idosos e de pessoas com deficiência é realizado majoritariamente realizado pelas mulheres.
Através de um enfoque de perspectiva de gênero, será analisada as diferentes formas
que as mulheres e homens participam do mercado de trabalho e como se dá a desigualdade
estrutural da nossa sociedade que perpetua as desavenças das mulheres no mercado de
trabalho e seus impactos na proteção social previdenciária.
Posteriormente, faremos uma reflexão acerca das restrições impostas pela Emenda
Constitucional n.º 103 de 2019, que limitou drasticamente o acesso da mulher a prestação
previdenciária de aposentadoria por idade, ao aumentar o requisito etário, sem que tenhamos
alçado à igualdade material.
A aplicação do enfoque de perspectiva de gênero reconhecendo que não existe,
atualmente, uma situação neutra de gênero, uma vez que as mulheres possuem dificuldade
no permanência no mercado de trabalho e consequente dificuldade no acesso aos benefícios
previdenciários, demonstra que o aumento progressivo da idade de aposentadoria de
mulheres implica na dificuldade de acesso a proteção social garantida constitucionalmente,
bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
A igualdade nos requisitos da aposentadoria é uma das metas propostas pela
Organização Iberoamericana de Seguridade Social para alcançarmos a equidade de gênero,
porém enquanto não tivermos uma sociedade neutra quanto gênero no mercado de trabalho
e consequentemente na cobertura previdenciária, com a efetiva igualdade tanto formal
quanto material, ainda se fará necessário a utilização de regras diferenciadas para mulheres
28

e homens como instrumento de correção das desigualdades, sob pena de perpetuarmos uma
posição desigual entre mulheres e homens nas prestações previdenciárias e na cobertura dos
riscos socias.

1. DESAFIOS DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO

A Lei Áurea modificou as relações de trabalho no Brasil, eliminando o trabalho


escravo, surgindo assim às primeiras relações assalariadas no país. Essa transição do regime
escravista para o empregatício foi feita gradualmente “Trata-se de período em que a relação
empregatícia se apresenta de modo relevante, apenas no seguimento agrícola cafeeiro
avançado de São Paulo e, principalmente, na emergente industrialização experimentada na
capital paulista e no Distrito Federal. ”3
Dessa forma, acredita-se que a origem do tratamento diferenciado dispensado as
mulheres adveio das relações de trabalho escravas, visto que após serem libertadas grande
parte dessa massa de trabalhadoras foi absorvida no campo ou permaneceu laborando para
pessoas e famílias em suas residências.
A Constituição Federal de 1934, pela primeira vez, mencionou o princípio da
igualdade, ao dispor “Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções,
por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza,
crenças religiosas ou ideias políticas”4, sendo proibidas as diferenças de salários para um
mesmo trabalho, por motivo de sexo.
Por outro lado, a Constituição de 1946, representou um grande retrocesso para as
mulheres, pois retirou a expressão "sem distinção de sexo" quando dizia que todos eram
iguais perante a lei:
Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º Todos são iguais perante a lei. 5

3
DELGADO, Maurício Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 7. ed. São Paulo:
LTR, 2001, p 107.
4
BRASIL. Constituição Federal de 1934. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm >, acesso em 06 de janeiro de 2020.
5
BRASIL. Constituição Federal de 1946. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm >, acesso em 07 de janeiro de 2020.
29

No entanto, somente com o advento da Constituição Federal de 1988 que homens e


mulheres foram tratados de forma igual, extinguiu-se a figura do “chefe da família”, tendo
ambos os cônjuges obrigações e responsabilidades igualitárias no que tange ao sustento do
lar, art. 5º, I: 6
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição;

Em relação a proteção previdenciária, merece ser referida a posição de Berwanger:

A partir do texto da Constituição Federal de 1988, houve equidade de gênero em


relação aos direitos previdenciários, notada principalmente na possibilidade de os
homens, mesmo não sendo considerados inválidos, receberem pensão por morte
de seu cônjuge. Essa modificação no sistema previdenciário foi um
reconhecimento da importância do labor da mulher para as famílias e para a
sociedade, em detrimento da visão do trabalho feminino como subalterno ao do
homem.7

Relativamente às mulheres trabalhadoras rurais, a Constituição de 1988 ao instituir a


categoria de “segurados especiais” promoveu sua inclusão:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta
e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes
contribuições sociais:
§ 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal,
bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de
economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade
social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização
da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei. 8

Diante da necessidade de efetivar e regulamentar os direitos reconhecidos aos


empregados domésticos9 pela Emenda Constitucional de n.º 72/2013, foi sancionada a Lei

6
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>, acesso em 06 de janeiro de
2020.
7
BERWANGER, Jane L. W; VERONESE, Oscar. Constituição: Um Olhar sobre Minorias Vinculadas à
\fyucSeguridade Social. Curitiba: Juruá, 2014.
8
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>
9
Art. 1º da Lei 5.859/72, revogada pela LC 150/2015 - Ao empregado doméstico, assim considerado aquele
que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito
residencial destas, aplica-se o disposto nesta lei.
30

Complementar n.º 150/2015, representando um grande avanço também no que tange aos
direitos previdenciários, pois estendeu ao segmento as prestações de salário família e auxílio
acidente.
A evolução legislativa foi significativa em relação aos direitos das mulheres, uma
vez que a categoria de empregados domésticos era – e ainda é – ocupada majoritariamente
por mulheres.10
As dificuldades de inserção e manutenção das mulheres no mercado de trabalho são
históricas. No ano de 1979 ocorreu a Convenção da ONU (Organização das Nações Unidas)
sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que objetivou o
combate à discriminação contra a mulher por razões de casamento ou maternidade, também
englobando a necessidade de a remuneração ser igual entre homens e mulheres para trabalho
de igual valor.11
A quarta Conferência sobre a Mulher das Nações Unidas, realizada em Pequim em
1995, identificou os problemas relacionados à igualdade de gênero e os dividiu em doze
áreas críticas, entre elas a desigualdade quanto à participação nas estruturas econômicas, nas
atividades produtivas e no acesso a recursos. Entre as inovações consubstanciadas na
Conferência, a conceituação de gênero como “um produto de padrões determinados social e
culturalmente e, portanto, passiveis de modificação veio juntar-se a ênfase no tratamento da
situação da mulher sob a perspectiva de direitos, o que implica reconhecer que a
desigualdade entre homens e mulheres é uma questão de direitos humanos, e não apenas uma
situação decorrente de problemas econômicos e sociais a serem superados. ” 12
Em 2010, ocorreu a chamada Pequim mais 15, oportunidade em que foi apresentado
entre os principais avanços a revogação de leis discriminatórias. No mesmo ano, foi criada
a ONU Mulher, tendo em seus objetivos promover a igualdade de gênero e empoderamento
das mulheres.
Apesar de as reivindicações referentes às condições de trabalho equânimes entre
homens e mulheres surgirem há muito tempo, permanecem atuais as situações de

10
MATIJASCIC, Milko. Previdência para as Mulheres no Brasil: reflexos da inserção no mercado de trabalho.
Texto para Discussão, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2016, acesso em 07 de janeiro de
2020.
11
BERWANGER, Jane L. W.; VERONESE, Osmar. Constituição: Um Olhar sobre Minorias Vinculadas à
Seguridade Social. Curitiba: Juruá, 2014.
12
Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a mulher – Pequim, 1995 – Disponível
em < http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf> Acesso em 24 de
maio de 2020.
31

desigualdade. É o que se depreende, por exemplo, dos dados divulgados pela ONU
(Organização das Nações Unidas) em 2019, no relatório “Progresso das Mulheres no Mundo
2019-2020: Famílias em um mundo em mudança” ao analisar como as mulheres são afetadas
pelas mudanças que estão ocorrendo nas famílias:

A incorporação das mulheres no mercado de trabalho continua a crescer


significativamente, mas o casamento e a maternidade reduzem as taxas de
participação no mercado de trabalho e, portanto, de renda e benefícios associados
à participação. No mundo inteiro, pouco mais da metade das mulheres com idades
entre 25 e 54 anos são economicamente ativas, proporção que sobe para dois em
cada três no caso de mulheres solteiras. Por sua vez, 96% dos homens casados
estão economicamente ativos, de acordo com os dados do novo relatório. Uma das
principais causas destas desigualdades é que as mulheres continuam a realizar
trabalho doméstico triplo e cuidados não remunerados do que os homens, na
ausência de cuidados acessíveis. 13

No âmbito regional a redução da participação da mulher no mercado de trabalho


mostra-se alarmante. É o que se verifica na pesquisa intitulada Inserção da Mulher no
Mercado de Trabalho da Região Metropolitana de Porto Alegre, realizada pelo
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, relativa a março de
2018:
A taxa de desemprego total das mulheres aumentou pelo terceiro ano consecutivo,
passando de 11,2% em 2016 para 12,4% da PEA em 2017. A taxa de desemprego
aberto subiu de 10,2% para 11,4%, e a taxa de desemprego oculto manteve-se
estável em 1,0% no último ano. Para os homens, a taxa de desemprego total
permaneceu estável em 10,2% em 2017. Destaca-se que a desigualdade entre as
taxas de desemprego total feminina e masculina passou de 1,0 p.p em 2016, para
2,2 p.p em 2017, mais que dobrando (Gráfico A). 14

Além, das dificuldades em se manter no mercado de emprego, atualmente as


mulheres continuam ganhando salários inferiores aos homens para as mesmas ocupações.
Em 2018, o rendimento médio das mulheres ocupadas com entre 25 e 49 anos de idade (R$
2.050) equivalia a 79,5% do recebido pelos homens (R$ 2.579) nesse mesmo grupo etário.
Considerando-se a cor ou raça, a proporção de rendimento médio da mulher branca ocupada

13
ONU – ORGANIZAÇAO DAS NAÇÕES UNIDAS. Progresso das Mulheres no Mundo 2019-2020:
Famílias em um mundo em mudança, disponível em <http://www.onumulheres.org.br/noticias/novo-relatorio-
da-onu-mulheres-apresenta-uma-agenda-politica-para-acabar-com-a-desigualdade-de-genero-nas-familias/>.
Acesso em 07 de janeiro de 2020.
14
DIEESE – DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS
SOCIOECONÔMICOS. A Inserção da Mulher no Mercado de Trabalho da Região Metropolitana de Porto
Alegre. Disponível em < https://www.dieese.org.br/analiseped/2018/2018pedmulherpoa.html >, acesso em 07
de janeiro de 2019.
32

em relação ao do homem branco ocupado (76,2%) era menor que essa razão entre mulher e
homem de cor preta ou parda (80,1%), segundo pesquisa elaborado pelo IBGE.15
No que toca aos motivos do menor nível de participação feminina no mercado de
trabalho, Flaviano Nicodemos de Andrade Lima demonstra que um dos principias motivo
da dificuldade de permanência no mercado de trabalho é a divisão sexual das tarefas:

Segundo o IBGE, entre as mulheres, na força de trabalho potencial, que estavam


disponíveis para trabalhar, mas que não procuraram trabalho, 20,7% afirmaram
que não tomaram providência para conseguir uma ocupação por ter que cuidar de
afazeres domésticos, de filho ou de outro parente. O mesmo motivo representou
apenas 1,1% das respostas dos homens. Já entre as mulheres na força de trabalho
potencial indisponíveis para começar a trabalhar, a maioria apresentou como
principal motivo para a indisponibilidade ter que cuidar de afazeres domésticos,
de filho ou outro parente. Os dados da PNAD 2017 mostram ainda que as mulheres
dedicam 20,9 horas semanais aos afazeres domésticos, enquanto os homens
dedicam 10,8 horas. 16

Percebe-se que vários são os motivos que afastam as mulheres em idade ativa do
mercado de trabalho, seja pela discriminação histórica, que oferece melhores condições de
empregabilidade aos homens, seja pela maternidade, casamento ou cuidados com o lar, o
fato é que há grande dificuldade para que a segurada atinja os requisitos a concessão das
prestações previdenciárias.
Ainda que a participação da mulher no mercado de trabalho tenha aumentado nos
últimos anos e que a discriminação por razão de sexo seja proibida pela legislação,
configurando uma igualdade formal, percebe-se que os homens e as mulheres possuem uma
posição desigual na sociedade, bem como que ascendem de forma diferenciada aos recursos,
não possuindo uma igualdade material.
A participação das mulheres em atribuições de liderança e comando das organizações
encontra barreiras sutis discriminatórias e perceptíveis que influenciam em oportunidades
de carreiras ao gênero feminino e progressão profissional, caracterizando o fenômeno
denominado teto de vidro.

15
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Mulheres no mercado de
trabalho. Disponível em < https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
noticias/releases/23923-em-2018-mulher-recebia-79-5-do-rendimento-do-homem>, acesso em 08 de janeiro
de 2019.
16
Lima, Flaviano Nicodemos de Andrade; Kertzman, Ivan (Org.); Amado, Frederico (org). O fim da
aposentadoria por tempo de Contribuição. In: Estudos Aprofundados sobre a Reforma da Previdência:
Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
33

A fenômeno teto de vidro corresponde a existência de uma quantidade menor de


mulheres em cargos de maior remuneração e de tomada de decisões, configurando uma
discriminação vertical. A ausência de uma participação no mercado de trabalho em
igualdade de oportunidades nos cargos de liderança impacta diretamente em contribuições
previdenciárias menores e consequente no valor das prestações mensais percebidas pelas
mulheres. De modo que a desigualdade na atividade econômica influência no nível da
contribuição das mulheres e na futura renda dos benefícios previdenciários.
A discriminação também ocorre de forma horizontal, através da concentração de
mulheres e homens entres os setores econômicos. Tradicionalmente, as mulheres têm se
concentrado nos setores e empregos menos valorizados economicamente, implicando em
menor prestígio, valoração social e menor média salarial, configurando o “piso pegajoso”.
Enquanto as mulheres tendem a se concentrar no setor terciário, os homens concentram-se,
preferencialmente, nos setores primário e secundário, percebendo remunerações elevadas e
desfrutando de melhores condições de trabalho. De modo que o chamado “piso pegajoso”,
espécie de discriminação horizontal das mulheres gera reflexo no valor da contribuição
social e futura renda nos benefícios previdenciários.
Tanto na segregação horizontal, onde mulheres tendem a laboral em trabalhos menos
valorizados, dando ensejo à fenômeno “piso pegajoso”, quanto na segregação vertical,
através do fenômeno conhecido como teto de vidro, no qual barreiras sutis dificultam a
ascensão profissional, fica evidente que tratam-se de fatores determinantes para que os
salários de mulheres e homens permaneçam em patamares distinto e repercutam na
seguridade social. Tais fenômenos demonstram que a sociedade não é neutra relativamente
ao gênero e ainda possui um longo caminho a percorrer para alcançarmos uma equidade de
gênero.

2. DIREITOS PREVIDENCIÁRIOS E AS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA EC


103/19

A edição da Constituição Federal de 1988, foi um marco da inclusão previdenciária


para as mulheres, uma vez que além da previsão de redução de cinco anos na aposentadoria
34

por idade em relação ao homem, também previu a diminuição de cinco anos no tempo de
trabalho, na sua modalidade integral ou proporcional17:

Art. 202. É assegurada aposentadoria, nos termos da lei, calculando-se o benefício


sobre a média dos trinta e seis últimos salários de contribuição, corrigidos
monetariamente mês a mês, e comprovada a regularidade dos reajustes dos salários
de contribuição de modo a preservar seus valores reais e obedecidas as seguintes
condições:
I - aos sessenta e cinco anos de idade, para o homem, e aos sessenta, para a
mulher, reduzido em cinco anos o limite de idade para os trabalhadores rurais de
ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia
familiar, neste incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal;
II - após trinta e cinco anos de trabalho, ao homem, e, após trinta, à mulher, ou
em tempo inferior, se sujeitos a trabalho sob condições especiais, que prejudiquem
a saúde ou a integridade física, definidas em lei;
III - após trinta anos, ao professor, e após vinte e cinco, à professora, por efetivo
exercício de função de magistério.
§ 1º É facultada aposentadoria proporcional, após trinta anos de trabalho, ao
homem, e após vinte e cinco, à mulher.18

Pelas regras atuais todos as prestações previdenciárias são extensíveis as mulheres.


Ressalta-se como benefício previdenciário de grande relevância para a manutenção da
mulher no mercado de trabalho o salário-maternidade, previsto pela Lei 8.213/91 e contando
atualmente com a redação dada pela Lei nº 10.710, de 2003, e alterações feitas pela Lei n.º
12.873, de 2013:
Art. 71. O salário-maternidade é devido à segurada da Previdência Social, durante
120 (cento e vinte) dias, com início no período entre 28 (vinte e oito) dias antes do
parto e a data de ocorrência deste, observadas as situações e condições previstas
na legislação no que concerne à proteção à maternidade.
Art. 71-A. Ao segurado ou segurada da Previdência Social que adotar ou obtiver
guarda judicial para fins de adoção de criança é devido salário-maternidade pelo
período de 120 (cento e vinte) dias.
Art. 71-B. No caso de falecimento da segurada ou segurado que fizer jus ao
recebimento do salário-maternidade, o benefício será pago, por todo o período ou
pelo tempo restante a que teria direito, ao cônjuge ou companheiro sobrevivente
que tenha a qualidade de segurado, exceto no caso do falecimento do filho ou de
seu abandono, observadas as normas aplicáveis ao salário-maternidade.19

Ainda, sobre a maternidade e a manutenção da segurada no mercado de trabalho,


deve ser mencionada a decisão recentemente prolatada pelo Juiz Guilherme Maines Caon,

17
A modalidade de aposentadoria proporcional não estava disponível para as mulheres por ocasião da edição
da Lei Orgânica de Previdência Social - Lei 3.807/60.
18
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em <
https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_202_.asp>, acesso em 08 de
janeiro de 2020.
19
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>, acesso em 08 de janeiro de 2020.
35

da 2ª Vara Federal de Carazinho/RS (29.07.2019), em que este concedeu o benefício de


auxílio doença parental, possibilitando a uma mãe afastar-se do atual emprego, com o fim
de cuidar da filha que possuí uma doença rara20.
O auxílio doença é o benefício devido ao segurado que, havendo cumprido, quando
for o caso, o período de carência21 exigido pela lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou
para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos, art. 59 da Lei
8.213/91.22
O auxílio doença parental é um benefício devido ao cuidador de uma pessoa enferma,
permitindo seu afastamento de suas atividades laborativas, inspirado na “licença por motivo
de doença em pessoa da família” da Lei 8.112/90 (art. 83), que trata do Regime Jurídico dos
servidores públicos federais.23 Não existe previsão para esta prestação no Regime Geral de
Previdência social.
A decisão judicial que concedeu o auxílio doença parental foi pautada nos princípios
constitucionais e direitos fundamentais, entre eles o direito à vida e ao trabalho, isonomia e
dignidade da pessoa humana, mostrando-se uma grande evolução ao permitir que a segurada
pudesse se afastar do trabalho para realizar o tratamento de saúde de sua filha, sem que isso
implicasse no seu desemprego.
O Juiz ao conceder o auxílio doença parental aplicou a teoria pentadimensional do
direito, eis que a partir da norma utilizou os princípios normatizados como ferramenta para
incluir atores sociais excluídos e nova relações sociais que não foram amparadas pela norma,
prestigiando os princípios constitucionais e assegurando um direito e garantia fundamental.
Nesse contexto, Hélio Gustavo Alves preleciona, acerca da aplicação da sua teoria
pentadimensional:
Portanto, pela teoria pentadimensional, jamais um juiz poderá e conseguirá aplicar
somente sua vontade, pelo contrário, terá que, na decisão judicial (ao incluir atores
sociais ou nova relação social em normas omissas) fundamentar em

20
Disponível em <https://www2.jfrs.jus.br/noticias/jf-em-carazinho-concede-auxilio-doenca-parental-para-
mae-cuidar-da-filha-com-grave-enfermidade/>, acesso em 08 de janeiro de 2020.
21
Período de carência é o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário
faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências, (art.
24 da Lei 8.213/91).
Art. 25. Da Lei 8.213/91 - A concessão das prestações pecuniárias do Regime Geral de Previdência Social
depende dos seguintes períodos de carência, ressalvado o disposto no art. 26:
I - auxílio-doença e aposentadoria por invalidez: 12 (doze) contribuições mensais; [...]
22
BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>, acesso em 08 de janeiro de 2020.
23
BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm>, acesso em 08 de janeiro de 2020.
36

princípios ou como o diálogo das fontes existentes, pois não há como aplicar a
teoria pentadimensional sem demonstrar no mínimo a isonomia afetada ou outras
ilegalidades que há na norma julgada. 24

Considerando que desempenho das atividades de cuidado são majoritariamente


exercidos pelas mulheres, gerando a necessidade de afastamento do mercado de trabalho, a
concessão do auxílio doença parental possibilitou a manutenção do vínculo previdenciário,
consistindo em um grande progresso na equidade de gênero.
Se por um lado, a concessão do auxílio doença parental está em consonância com os
princípios constitucionais e ordem social, através da cobertura do novos riscos sociais, por
outro, em total ofensa aos direitos sociais, a Emenda Constitucional n.º 103/2019, restringiu
a prestação de aposentadoria por idade concedida as mulheres, elevando o requisito etário
de sessenta para sessenta e dois anos, art. 201, § 7º:

§ 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos


da lei, obedecidas as seguintes condições:
I - 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 62 (sessenta e dois) anos de
idade, se mulher, observado tempo mínimo de contribuição; (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 103, de 2019)
II - 60 (sessenta) anos de idade, se homem, e 55 (cinquenta e cinco) anos de idade,
se mulher, para os trabalhadores rurais e para os que exerçam suas atividades em
regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o
pescador artesanal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)25

Registre-se que ao menos em relação a idade da mulher trabalhadora rural nada foi
alterado, que continua a aposentar-se aos 55 anos. Por outro lado, a aposentadoria por idade
“híbrida”, em que o Segurado pode somar períodos de trabalho rurais e urbanos para
preencher a carência de 180 contribuições, deverá observar o requisito etário de 62 anos após
a alteração do texto constitucional.
A mulher professora, além do tempo mínimo de 25 anos na função de magistério,
passou a ser exigida a idade mínima de 57 anos, requisito inexistente na legislação anterior.
Destaca-se que em relação ao homem professor o tempo na atividade de magistério passou
de 30 para 25 anos, o que até poderia ser considerado um benefício, não fosse a limitação de
60 anos imposta.

24
Alves, Hélio Gustavo. Teoria Pentadimensional do Direito. São Paulo: LTr, 2019.
25
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>, acesso em 08 de janeiro de
2020.
37

Paras as servidoras que ingressaram no serviço público até a publicação da EC


nº 20/98, não havia limite de idade para aposentadoria, no entanto, as que entraram até a
edição da EC 41/03, precisavam cumprir o requisito etário de 55 anos, agora serão
necessários 57 anos, além do preenchimento dos demais requisitos:

Art. 4º O servidor público federal que tenha ingressado no serviço público em


cargo efetivo até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional poderá
aposentar-se voluntariamente quando preencher, cumulativamente, os seguintes
requisitos:
I - 56 (cinquenta e seis) anos de idade, se mulher, e 61 (sessenta e um) anos de
idade, se homem, observado o disposto no § 1º;
II - 30 (trinta) anos de contribuição, se mulher, e 35 (trinta e cinco) anos de
contribuição, se homem;
III - 20 (vinte) anos de efetivo exercício no serviço público;
IV - 5 (cinco) anos no cargo efetivo em que se der a aposentadoria;
§ 1º A partir de 1º de janeiro de 2022, a idade mínima a que se refere o inciso I
do caput será de 57 (cinquenta e sete) anos de idade, se mulher, e 62 (sessenta e
dois) anos de idade, se homem.26

As policiais civis do Distrito Federal, legislativa federal, policial federal, rodoviárias


e ferroviárias, e as agentes federais penitenciárias ou socioeducativas, precisam atingir a
idade mínima de 55 anos, da mesma forma que os homens.
E ainda a mulher, que laborou exposta a agentes nocivos e prejudiciais a sua saúde
que poderia obter a concessão da aposentadoria especial aos 15, 20 ou 25 anos, sem limitação
de idade, deverá agora possuir respectivamente 55, 58 ou 60 anos.
Após minimamente apresentarmos algumas alterações em relação ao requisito etário
para as mulheres, registrando que todas acompanham regras de transição, que não foram
mencionadas neste momento, eis que não são objetos do presente artigo, passaremos a
analisar essas modificações a luz dos princípios constitucionais.

3. PRINCÍPIOS

Os princípios são à base do ordenamento jurídico, ou seja, o ponto de partida para as


demais normas que deverão estar em harmonia com estas linhas diretivas, as quais deveriam
nortear a produção legislativa.
Sobre o conceito de princípios, cabe referir à definição apresentada por Robert Alexy:

26
BRASIL,Emenda Constitucional n.º 103/2019, em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm>, acesso em 08 de janeiro de
2020.
38

Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são


caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a
medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas,
mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é
determinado pelos princípios e regras colidentes. 27

A cerca da natureza jurídica dos princípios cabe referir que:

A função fundamentadora dos princípios (ou função normativa própria) passa,


necessariamente, pelo reconhecimento doutrinário de sua natureza de norma
jurídica efetiva e não simples enunciado programático não vinculante. Isso
significa que o caráter normativo contido nas regras jurídicas integrantes dos
clássicos diplomas jurídicos (constituições, leis e diplomas correlatos) estaria
também presente nos princípios gerais do direito. Ambos seriam, pois, norma
jurídica, dotados da mesma natureza normativa.28.

No mesmo sentido, sobre a força normativa dos princípios, Canotilho afirma que “A
teoria da metodologia jurídica tradicional distinguia entre normas e princípios [...]
Abandonar-se-á aqui essa distinção para, em sua substituição, se sugerir: (1) as regras e
princípios são duas espécies de normas; (2) a distinção entre regras e princípios é uma
distinção entre duas espécies de normas. ”29
No caso em apresso estar-se-á a analisar a violação não somente de princípios, mas
de direitos fundamentais das mulheres, porquanto ao analisar o tratamento dispensado a
segurada aspira-se a cidadãs, que possuem garantias mínimas.

Merece ainda, ser referido o princípio do não retrocesso social, que consiste na
proteção conferida aos direitos sociais conquistados, que sob nenhuma hipótese poderão ser
suprimidos ou diminuídos, neste sentido cabe referir José Joaquim Canotilho, pois segundo
o autor:
Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos
trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um
determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma
garantia institucional e um direito subjectivo. A “proibição do retrocesso social”
nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica),
mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.:
segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação
do principio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito

27
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo: alheiros,
2008, p. 90.
28
DELGADO, Maurício Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 7. ed. São Paulo:
LTR, 2001, p 20.
29
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7. Ed. Coimbra:
Almedina, 2003, p.1160.
39

econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente


ao respeito pela dignidade da pessoa humana. 30 (Grifo nosso)

Nesta seara, o princípio da vedação ao retrocesso social não significa a manutenção


das normas, mas a garantia do seu núcleo essencial mínimo.
No ano de 1995, o Decreto Legislativo n. 56, aprovou os textos do Protocolo sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), adotando no
ordenamento jurídico a proibição do retrocesso, bem como vedando a retirada, restrição ou
diminuição por parte do Estado, dos direitos fundamentais sociais já reconhecidos,
implementados e positivados no ordenamento jurídico de um país.31
Assim, o princípio da vedação ao retrocesso social adotado pelo nosso ordenamento
jurídico deve nortear as mudanças legislativas, de modo a não esvaziar o núcleo essencial
que ordenamento jurídico visa proteger.
O princípio da igualdade está previsto nos artigos 3º, IV e 5º, caput da Constituição
Federal, e também em seu Preâmbulo.32 Impera o artigo 5°: “todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza”. Certo é que a antiga máxima de Aristóteles, “tratar
desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”, não pode ser ignorada, pois
constitui requisito essencial à consecução da igualdade material, mas não serve de desculpa
para a promoção de iniquidades.
No entanto, não se deve olvidar que o princípio da igualdade como é
formalmente expresso em lei, sem diferenciação entre homem e mulher, envolve

30
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7. Ed. Coimbra:
Almedina, 2003, p.1298.
31
Brasil, Decreto nº 56 de 1995. Disponível em
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1995/decretolegislativo-56-19-abril-1995-358490-norma-
pl.html> Acesso em 24 de maio de 2020.
32
PREÂMBULO
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. [...]
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...]
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade. (grifo nosso)BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>, acesso em 06.01.2020.
40

frequentemente uma discriminação oculta entre as mulheres, assegurando tão somente uma
igualdade formal e a vedação a não discriminação.
O princípio da igualdade, é subdividido em duas vertentes, a saber: a) a igualdade
formal, que garante tratamento igualitário para todos; e b) a igualdade material, que verifica
o tratamento igual ou desigual, dependendo das situações.
Portanto, a igualdade material pressupõe a eficácia do tratamento isonômico.
Assim, em que pese a melhora na participação das mulheres no mercado de trabalho,
o aumento da exigência etária para as mulheres, sem a efetiva constatação de redução de
desigualdade social, demonstra um retrocesso social incompatível com a ordem
constitucional vigente. Vejamos, não se pretende defender que o princípio da vedação ao
retrocesso social impede a alteração da legislação diante da evolução natural da sociedade,
mas que a mitigação dos direitos sociais deve levar em consideração o núcleo essencial da
norma e, somente alterar quando não houver ofensa ou violação ao seu núcleo essencial, sob
pena de retrocesso social.
A diferenciação no critério etário tem sua origem quanto a participação desigual das
mulheres no mercado de trabalho, de modo que o núcleo essencial da norma consiste na
efetivação do principio da igualdade visando compensar a desigualdade histórica no mercado
de trabalho em consonância com o principio da dignidade da pessoa humana.
A eliminação da diferença na idade de aposentadoria entre mulheres e homens
consiste em um dos objetivos da equidade de gênero, de modo que alteração da legislação
igualando as regras de idade entre mulheres e homens, mesmo que de forma progressiva,
somente não será um retrocesso social quando não houver desigualdade entre gêneros na
sociedade brasileira.
Desta forma, a Emenda Constitucional n.º 103/2019, feriu vários princípios, entre
eles o da igualdade material e a dignidade da pessoa humana, ignorando a luta histórica das
mulheres para obter o mesmo tratamento do que os homens, enquanto buscam conciliar a
vida profissional e os cuidados com a família e a maternidade.

CONCLUSÃO

Tecemos algumas considerações, acerca dos desafios enfrentados pelas mulheres no


mercado de trabalho, sendo que pesquisas apontam que elas apresentam dificuldades para
41

ingressar neste ambiente e ainda ganham salários mais baixos em relação aos homens, em
que pese, exercerem as mesmas atividades. Ainda, foi verificado a desigualdade tanto no
nível de participação das mulheres no mercado de trabalho quanto no menor nível
remuneratório.
O acesso a previdência social é desigual para as mulheres em virtude da desigualdade
de gênero na permanência no mercado de trabalho gerado pela economia de cuidado. Além
disso, em relação ao valor dos benefícios previdenciários, que possuem como sua base de
cálculo a renda auferida com o trabalho, o menor rendimento das mulheres no mercado de
trabalho resulta em uma menor contribuição previdenciária e, consequentemente, em uma
aposentadoria de valor médio inferior aquelas auferidas pelos homens.
Diante de uma perspectiva de gênero, restou demonstrada a ausência de isonomia
entre homens e mulheres para acesso a proteção social do risco de velhice, bem como a
ausência de superação das discriminações de gênero no mercado de trabalho que justifiquem
o aumento do critério etário para aposentadoria das mulheres.
Esclarecemos, alguns direitos previdenciários das mulheres e em breve síntese as
alterações promovidas pela promulgação da Emenda constitucional n.º 103 de 2019, em
relação ao requisito etário dispensado as seguradas. Por fim, confrontamos estas mudanças
com alguns princípios consagrados no nosso ordenamento jurídico. Verificamos que os
critérios atuais, além de limitarem direitos consagrados historicamente distanciam o alcance
da prestação previdenciária da realidade social das beneficiárias.
A desigualdade de gênero foi utilizada como base para a diferenciação da idade entre
mulheres e homens para atingir o requisito etário de aposentadoria. No entanto, apesar das
grandes mudanças ocorridas nas últimas décadas, persiste a desigualdade no mercado de
trabalho, sendo necessária a adoção de medidas para reconfiguração da sociedade no que
tange a modificação da segregação horizontal denominada piso pegajoso e da segregação
vertical conhecida como teto de vidro. Da mesma forma, é necessária a adoção de política
pública de cuidado, estimulando uma corresponsabilidade nas atividades de cuidados de
filhos, idosos e deficientes.
Assim, a equalização dos requisitos de aposentadoria entre homens e mulheres, deve
ser considerada com norte a seguir, porém sem perder de vista como pressuposto para sua
implementação a efetivação do princípio da igualdade material.
42

Somente quando nossa sociedade for neutra, bem como quando através da promoção
de medidas de fortalecimento das regulações no mercado de trabalho obtivermos a igualdade
material, a igualdade progressiva da idade de aposentadoria de mulheres e homens será uma
medida de reforço de equidade de gênero na previdência social.
Nesse sentido sob a ótica de análise e função dos direitos fundamentais e princípios,
em especial o da isonomia de tratamento e dignidade da pessoa humana consagrado pela
Carta Constitucional, constata-se que as seguradas receberam tamanha discriminação a
ponto de ser elevado o requisito etário, sem a correspondente alteração em relação aos
segurados homens, afastando da valorização do trabalho da mulher e efetivação dos direitos
previdenciários.
Joana Mostafa e Outros na Nota Técnica DISOC nº 35/2017 propõe que a medida
que os indicadores da redução da desigualdade de gênero fossem alterando, poderia ocorrer
uma redução do diferencial de idade, levando em consideração a diferença na quantidade de
horas gastas tanto em trabalho produtivo quanto reprodutivo entre homens em mulheres.
Ainda, propõe que deva ser considerado o percentual de homens nos cuidados, diferencial
nas taxas de desemprego e de rendimentos entre os sexos, bem como a taxa de participação
feminina no mercado de trabalho.
Na mesma senda, a adoção de um conjunto de medidas na economia de cuidado
estimulando a corresponsabilidade e adoção de políticas públicas que auxiliem na
diminuição do afastamento da mulher do mercado de trabalho podem ser medidas positivas
para alcançar a equidade de gênero.
Conclui-se que o aumento da idade mínima, apesar de ser meta para eficácia da
equidade de gênero, diante das problemáticas no mercado de trabalho, demonstram que o
aumento da idade mínima fere os princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana.
Verifica-se que atualmente somente alcançamos igualdade formal, para tanto a
adoção de políticas de igualdade material são o caminho para fazer prevalecer a equidade de
gênero, oportunidade em que a igualdade da idade para fins de aposentadoria efetivará o
principio da igualdade tanto formal quanto material.
Enquanto não tivermos uma igualdade material, restrições pela Emenda
Constitucional n.º 103/19 dos direitos das mulheres afastam a concretização do princípio da
isonomia, promovendo ainda mais desigualdade social.
43

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47

VINGANÇA PORNOGRÁFICA NO DIREITO BRASILEIRO: A


RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

Aline Pacheco Batista1

RESUMO: este estudo trata sobre os danos decorrentes da Reveng Porn, também conhecida
como vingança pornográfica, à luz da legislação brasileira. Analisa os conceitos dessa
conduta que tem ganhado espaço no Brasil, tendo em vista o avanço das tecnologias e acesso
à rede mundial de computadores, que afeta principalmente pessoas do sexo feminino,
baseando-se na atual legislação, como Constituição Federal de 1988, Código Penal, Lei
Maria da Penha (Lei 11.340/06), Lei Carolina Dieckmann (Lei 12.737/2012), Marco Civil
da Internet (Lei 12.965/14), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Tendo
como objetivo identificar o que é a pornografia por vingança e como ocorre, diferencia dos
outros crimes que também tratam de divulgação de fotos íntimas sem consentimento, mas
com outro objetivo que não seja a vingança. Busca expor as consequências e os problemas
decorrentes da divulgação dessas imagens para as vítimas, além das dificuldades enfrentadas
para remoção e punição de quem divulgou o conteúdo. O método de abordagem é o dedutivo
e o método de pesquisa utilizado foi o bibliográfico feito através de livros, artigos, teses,
legislações, bem como a jurisprudência. O artigo está vinculado à linha de pesquisa
Criminologia, Violência e Direitos Fundamentais, sendo a área temática o Direito Penal.

PALAVRAS-CHAVE: Vingança Pornográfica; Responsabilização Penal; Imagem;


Alteração Legislativa.

INTRODUÇÃO

O tema deste artigo é vingança pornográfica e como delimitação do tema tem-se a


vingança pornográfica no direito brasileiro: a responsabilização penal.

Com advento da tecnologia surgiram inúmeros meios de comunicação, dentre eles a


internet, a qual, além de outras funções, facilita compras, troca de mensagens, pesquisas,
compartilhamento de conteúdos, como de fotos e vídeos em geral, que podem ser acessados

1Pós-graduada em Direito e Processo Civil, inscrita na OAB/RS sob nº 116.883, e-mail:


adv.alinepacheco@gmail.com
48

de forma rápida e prática. No entanto, há casos em que a praticidade é utilizada com fins de
vingança, como nos casos de divulgação de fotos íntimas (nudes ou durante o sexo) sem
consentimento, principalmente praticadas por cônjuges ou ex-companheiros, que podem
gerar inúmeros transtornos à vítima, que são na maioria dos casos do sexo feminino.
Portanto, questiona-se como o direito brasileiro responsabiliza o autor da chamada
“vingança pornográfica”.

Como hipóteses estabeleceu-se que a primeira delas é de que a vingança pornográfica


ou “revenge porn” é um novo comportamento social ligado às relações sociais/virtuais em
que é necessária a divulgação de imagens íntimas através dos meios de comunicação e
pesquisas virtuais, fato que alguns anos atrás não era comum no mundo forense, uma vez
que a internet não fazia parte do dia a dia das pessoas. A legislação brasileira, diante desse
novo comportamento social, fruto do avanço tecnológico, bem como resultado das recentes
atualizações legislativas, está apta para proteger a vítima da “vingança pornográfica”, pois
trouxe benefícios à vítima e punição para o autor da pornografia por vingança.

Como objetivo geral para o desenvolvimento da presente pesquisa buscar-se-á


identificar na legislação nacional as possibilidades de punição para a vingança pornográfica,
e como objetivos específicos: a) conceituar a vingança pornográfica e identificar como o
direito brasileiro tutela os direitos da vítima; b) verificar como era a punição antes da
atualização legislativa; c) demonstrar como está sendo a punição após a tipificação do crime,
com as leis que alteraram o Código Penal e a Lei Maria da Penha.

Justifica-se, portanto, a importância desse tema tendo em vista o progresso da


informática que mudou expressamente o comportamento das pessoas, principalmente
quando se trata dos meios de comunicação, trazendo um novo comportamento social através
das relações sociais virtuais. Nessa esteira, é possível observar que ocorreu uma mudança
significativa, principalmente no que se refere à troca de mensagens, tendo em vista a
agilidade através do avanço da internet, fato inimaginável antes do advento da informática.
Assim, considerando essa transformação, se faz necessário analisar se há malefícios.

Considerando o avanço apresentado, se faz importante como meio de pesquisa para


os operadores do direito, uma vez que essa mudança de comportamento social gerou a
alteração de duas legislações, o Código Penal, com a inclusão de artigo que tipifica como
crime a exposição de imagens íntimas na internet por motivo de vingança (vingança
49

pornográfica), bem como na Lei Maria da Penha considerando como forma de violência a
violação da privacidade.
Assim, tendo em vista que a alteração da legislação é recente (ano de 2018), se faz
necessário analisar como os casos de pornografia por vingança eram juridicamente punidos,
uma vez que, analisados os casos concretos através de julgados, verifica-se que havia forte
divergência quanto a classificação do crime, pois alternava, principalmente, entre injúria e
difamação, ambos os crimes com penas inferiores frente a nova tipificação.
Por fim, serão utilizadas técnicas de pesquisas bibliográficas que se fará por meio de
livros, artigos, teses e legislações. Ainda, será empregada a técnica de pesquisa
jurisprudencial, tendo em vista a necessidade de analisar como eram julgados os casos de
vingança pornográfica no país.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONCEITO DA VINGANÇA PORNOGRÁFICA

Por volta de 1946 foi criado o primeiro computador eletrônico, sendo assim foi dado
o primeiro passo para o avanço tecnológico que, com o passar dos anos, foi ganhando força
através das inúmeras facilidades, principalmente de comunicação, conquistando assim os
adeptos às novas tecnologias2. Além disso, estudos realizados no ano de 2018 mostraram
que, no Brasil, em torno de 74,7% da população tem acesso à internet 3, ou seja, haviam
aproximadamente 134 milhões de internautas espalhados pelo país4. Segundo pesquisa
realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da
Informação (TIC Domicílios 2019, cetic.br), entre os meios disponíveis para acesso, 99%
das pessoas pesquisadas utilizam o celular para se conectar, 42% os computadores, seguidos
das TVs (37%) e por último os videogames, com 9%5.

Em vista disso, os avanços relativos aos meios de comunicação são notórios e,


inclusive, já são reconhecidos nas decisões prolatadas pelos Tribunais. Em 2016, por
exemplo, em pronunciamento no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Edison Fachin
afirmou que, em vista do atual cenário brasileiro, principalmente quanto à modernidade, a

2João Brunelli Moreno, Tecnoblog, https://tecnoblog.net/56910/eniac-primeiro-computador-do-mundo-


completa-65-anos (acesso 06 mai. 2018).
3EBC, Agência Brasil, https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-
brasileiros-nao-tem-acesso-internet (acesso 20 ago. 2020).
4EBC, Agência Brasil, https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-05/brasil-tem-134-milhoes-de-
usuarios-de-internet-aponta-pesquisa (acesso 20 ago. 2020).
5Idem
50

internet se tornou o meio mais abrangente de comunicação além de ser “[...] objeto de
diversos estudos acadêmicos pela importância que tem como instrumento democrático de
acesso à informação e difusão de dados de toda a natureza”6.

Esse entendimento também já se faz presente no Senado Federal, pois foi divulgado
na Revista de Informação Legislativa do mês de março 2017 um dos posicionamentos de
como a internet e a divulgação de imagens é entendida. Ademais, considerando que a internet
avança a passos largos, é necessário que haja mecanismos que evitem possíveis danos a
terceiros. Nesse sentido:

A Internet permite que pessoas de lugares diferentes e com graus diversos de


educação possam ter acesso ao mesmo conteúdo, bem como propicia o incremento
de mecanismos que facilitam a participação popular na própria elaboração dos
conteúdos divulgados, ampliando o rol de atores envolvidos na construção da rede.
Entretanto, ainda que a Internet seja o espaço por excelência da liberdade, nem
toda informação será digna de proteção jurídica, podendo circular de forma ampla
e livre; por vezes, será necessário avaliar, entre outros fatores, o interesse público
e a utilidade socialmente apreciável de sua divulgação. 7(TEFFÉ, 2017, p. 173)

Por isso, pode-se observar que a internet está presente na vida dos brasileiros e está
sendo utilizada para os mais diversos fins. No entanto, considerando que há uma facilidade
no acesso aos mais variados conteúdos e há também uma agilidade na troca de mensagens
com os mais diversos teores, surgem novos meios de comunicação, que podem se dar de
maneira positiva ou negativa. Deve-se observar as possíveis formas de danos através da
internet, que variam de acordo com a complexidade do caso, como por exemplo:

[…] a divulgação não autorizada de imagens íntimas e/ou de cenas de nudez em


aplicativos e sites de compartilhamento de conteúdo; a criação de perfis falsos em
redes sociais virtuais; a indexação por provedores de pesquisa de conteúdo em
desacordo com as características atuais do indivíduo; a criação de página com
mensagens ofensivas a determinada pessoa ou com atribuição de características
em desacordo com a atual personalidade do retratado; e a exposição abusiva da
imagem de uma determinada pessoa em notícia jornalística ou em quadro de
humor. Atreladas ao uso indevido de imagem encontram-se também práticas de
intimidação e de agressão a terceiros na internet, como o cyberbullying e a
chamada pornografia de vingança 8. (TEFFÉ, 2017, p. 173)

6BRASIL. Superior Tribunal de Justiça,


http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28ADPF+403%29&base=baseInfor
mativo&url=http://tinyurl.com/yyx44huo (acesso 16 mar. 2018).
7 Chiara Antonia Spadaccini de Teffé. Senado Federal,
https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p173 (acesso 21 abr. 2018).
8 Idem
51

A internet, portanto, é capaz de tornar-se um mal se usada de forma incorreta como,


por exemplo, para a divulgação de imagens íntimas, os chamados nudes ou similares ou para
a divulgação de imagens feitas durante o ato sexual de um casal que, em determinados
momentos, podem ser usadas na internet como forma de vingança pelos ex-companheiros.
Na maioria dos casos, essas imagens são divulgadas pelo (ex) parceiro e essa vingança é
motivada geralmente pela não aceitação do término de um relacionamento, ou seja, vingança
esta ocasionada pela separação do casal que podemos denominá-la como “vingança
pornográfica” ou “revenge porn”9.

A pornografia por vingança consiste “[...] em divulgar em sites e redes sociais fotos
e vídeos com cenas de intimidade, nudez, sexo [...]10 ou coisas similares”, cujo objetivo é a
humilhação da vítima como forma de vingança, que geralmente ocorre após o fim de um
relacionamento11. Ou seja, a vítima, durante o relacionamento produz ou compartilha o
arquivo (fotográfico ou audiovisual) com seu parceiro ou parceira, tendo consentimento, isto
é, por livre e espontânea vontade, porém após o fim do relacionamento esse conteúdo é
divulgado sem a sua devida autorização com intuito de vingança12. Neste sentido, é
importante salientar que, mesmo que o relacionamento tenha acabado, as imagens
produzidas durante esse período podem ainda existir e serem usadas sem consentimento,
uma vez que foi autorizada apenas a produção do conteúdo e não a divulgação. Com isso, o
ex-parceiro se aproveita do teor do conteúdo e utiliza para consumar a vingança
pornográfica.

Assim, conceitua Barreto (2016):

A vingança pornô não surgiu com a internet, apenas foi facilitada com ela. Antes,
as imagens ou vídeos que eram compartilhados apenas por SMS, e-mail ou por
meio físico agora são postadas em redes sociais ou em grupos de apps de troca de
mensagens e em pouco tempo tornam-se virais, chegando ao conhecimento da
vítima e de todos de seu convívio social 13.

9BRASIL, Senado Federal, http://legis.senado.leg.br/sdleg-


getter/documento?dm=6459378&disposition=inline (acesso 20 ago. 2020).
10Fátima Burégio, Jusbrasil, https://ftimaburegio.jusbrasil.com.br/artigos/178802845/pornografia-da-
vinganca-voce-sabe-o-que-e-isto (acesso 20 abr. 2018).
11Idem
12BRASIL, Senado Federal, http://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=6459378&disposition=inline (acesso 20 ago. 2020).
13BARRETO, Alessandro Gonçalves; BRASIL, Beatriz Silveira. Manual de investigação cibernética à luz do
marco civil da internet – Rio de Janeiro: Brasport, 2016. p. 162
52

Nesse sentido, percebe-se a gravidade e os transtornos que a vingança pornográfica


pode causar à vítima, uma vez que são avassaladores e pode motivar muitos traumas. Além
do mais, pode-se analisar que os casos de divulgação de fotos íntimas independem de idade,
ou seja, as vítimas podem ter idades variadas. Esses casos originam grande constrangimento,
vexame e humilhação, tendo em vista que o conteúdo pode ser acessado por um público
inimaginável, uma vez que poderá ser divulgado tanto por redes sociais ou até mesmo em
sites de teor pornográfico e, muitas das vezes, jamais poderão ser deletados14.

Para melhor entender a vingança pornográfica é de suma importância ter


conhecimento de sexting, sextorsão e estupro virtual, uma vez que, apesar das semelhanças,
não podem ser confundidos. Entende-se sexting como:

[…] um termo de origem anglo-saxônica resultante das palavras sex e texting,


utilizado inicialmente para denominar a prática segundo a qual se enviavam
mensagens de textos por meio de telefone móvel (texting) com conteúdo “picante”
ou excitante (sex). Hoje o sexting passou a incluir fotografias (ou vídeos) de alto
conteúdo erótico e inclusive pornográfico que são enviadas por meio de telefones
celulares e smartphones. Como ocorria originalmente com a mensagem, a imagem
é produzida pelo remetente fotografando (ou filmando) seu próprio corpo. 15
(FERNÁNDEZ, 2013, p. 72)

Dessa maneira, obtendo o conteúdo do sexting, o indivíduo, conhecido da vítima ou


não, passa a ameaçá-la alegando que tornará a imagem pública se ela não oferecer favores
sexuais (virtuais ou reais) ou até mesmo passa a exigir valores em dinheiro, assim estamos
diante da sextorsão16. Observa-se que a sextorsão possui diferentes formas de
constrangimento, que pode ser moral ou patrimonial.

Caso o possuidor das imagens exigir vantagem patrimonial o delito será enquadrado
como crime de extorsão, previsto no artigo 158 do Código Penal. No entanto, se a vantagem
for sexual, sem a exigência de vantagem pecuniária, o indivíduo cometerá crime de estupro
prescrito no artigo 213 do Código Penal, que pode ser tentado ou consumado, que também
pode ser denominado como estupro virtual. Além disso, se o autor passar a constrangem a

14BRASIL, Senado Federal, https://legis.senado.leg.br/sdleg-


getter/documento?dm=6459378&disposition=inline (acesso 20 ago. 2020).
15FERNÁNDEZ, Jorge Flores. Sexting, Sextorsão e Grooming. In: ABREU, Cristiano Nabuco;
EISENSTEIN, Evelyn; ESTEFENON, Susana Graciela Bruno. Vivendo esse mundo digital: Impactos na
Saúde, na Educação e nos Comportamentos Sociais. 1ed. São Paulo: Artmed, 2013. p. 72
16DE ABREU, Cristino Nabuco; EISENSTEIN, Evelyn; ESTEFONON, Susana Graciela Bruno. Vivendo esse
mundo digital: impactos na saúde, na educação e nos comportamentos sociais. Porto Alegre: Artmed, 2013. p
72-75.
53

vítima a fazer algo que a lei não permite ou não a obriga, poderá ser acusado como autor do
delito de constrangimento ilegal, conforme dispõe o artigo 146 do Código Penal. Assim, a
punição da sextorsão vai depender do caso concreto, ou seja, quando não há intenção de
constranger a honra que alguém17.

Por fim, verifica-se que a vingança pornográfica não se enquadra nos casos frutos do
sexting, tendo em vista que o autor não busca da vítima nenhum tipo de recompensa, seja
ela qual for, pois pretende divulgar a imagem apenas como forma de vingança. O principal
objetivo da pornô vingança é “[...] colocar a pessoa em uma situação constrangedora diante
de amigos, da família, de colegas de trabalho ou mesmo de um grupo indeterminado de
pessoas [...]”18 e fará isso para vingar-se da vítima, o que geralmente ocorre em virtude do
fim do relacionamento.

2. A TUTELA DAS VÍTIMAS DA VINGANÇA PORNOGRÁFICA NO DIREITO


BRASILEIRO ANTES DA ATUALIZAÇÃO LEGISLATIVA

A mudança de comportamento social que surgiu com o avanço da internet foi capaz
de modificar tudo, inclusive a forma de vingança, como no caso de divulgação de fotos
íntimas sem consentimento, ou seja, a vingança pornográfica. No entanto, a legislação
brasileira só acompanhou essa modificação de comportamento em 2018. Antes desse
período não havia entendimento consolidado, tampouco tipificação que enquadrasse tal
conduta, por isso a grande divergência doutrinária e jurisprudencial quanto a qual tipo penal
a ser aplicado nos casos de pornô vingança, mesmo que o direito à imagem e à segurança da
integridade da mulher estejam garantidos em lei específica e na Constituição Federal.

Primeiramente, o direito da imagem é garantia fundamental elencada no artigo 5º,


inciso X da Constituição Federal de 1988, já que considera como inviolável a imagem das
pessoas, bem como “[…] intimidade, vida privada e a honra”19. Importante salientar que

17Spencer Toth Sydow; Ana Lara Camargo de Castro, Revista dos Tribunais,
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bib
li_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RTrib_n.959.09.PDF (acesso14 out. 2017).
18Chiara Antonia Spadaccini de Teffé, Senado Federal,
https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p173.pdf (acesso 21 abr. 2018).
19BRASIL, Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
(acesso16 abr. 2018).
54

quando se fala de intimidade, deve-se observar, como por exemplo, “[…] suas relações
familiares e de amizade, enquanto vida privada envolve todos os demais relacionamentos
humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo
etc.”20. Por esse ângulo, há entendimento de que a garantia constitucional pode ser analisada
de forma ampla onde:

O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos pessoais em geral, às


relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao
conhecimento público. O objeto do direito à intimidade seriam as conversações e
os episódios mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizades mais
próximas21. (MORAES, 2003, p. 53)

Ademais, a dilatação dos meios de comunicação atingiu fortemente a intimidade do


indivíduo, uma vez que a imagem atribuída através da internet pode ser usada de maneira
diversa da pretendida. Isso é o que ocorre com a divulgação das fotos íntimas na internet,
pois, a intenção da produção da imagem é apenas a intimidade do casal. No entanto, a
vingança pornográfica, além da falta de consentimento, está ligada à intimidade da vítima22.
A Lei 12.737, de 30 de novembro de 2012 (Lei Carolina Dieckmann) foi uma das
atualizações legislativas desenvolvidas para acompanhar o avanço tecnológico, tendo em
vista o crime envolvendo divulgação de fotos íntimas da atriz. A lei incluiu no Código Penal
a tipificação criminal quanto aos delitos informáticos, ou também conhecidos como “crimes
cibernéticos próprios” e está disposta no artigo 154-A. O artigo dispõe que é crime a invasão
de dispositivo de informática, de forma indevida e sem autorização com pena de detenção
de 3 (três) meses a um ano cumulado com multa. Ainda, a pena aumenta em um terço se
praticado contra membros da administração pública23. Portanto, deve-se observar que a lei
12.737/2012 pune o indivíduo que invade dispositivo, além de alterar ou destruir dados, sem
nenhum tipo de autorização, e com o objetivo de obter vantagem. Esse indivíduo é
popularmente conhecido como hacker24.
Além disso, foi criado o Marco Civil da Internet (Lei 12.965, de 23 de abril de 2014)
que tem o objetivo de estabelecer o controle do uso da Internet no Brasil, indicando

20MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13º. ed. - São Paulo: Atlas, 2003. p 53.
21MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional – 12 ed. rev.
e atual. – São Paulo: Saraiva, 2017. p. 280
22SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. Contornos do direito à imagem. Revista trimestral de direito civil:
RTDC, v. 4, n. 13, p. 33–71, jan./mar. 2003. p. 44
23BRASIL, Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm (acesso 16
abr. 2018).
24Deivid Pimentel Barbosa de Siena, Jus, https://jus.com.br/artigos/24406/lei-carolina-dieckmann-e-a-
definicao-de-crimes-virtuais (acesso 08 mai. 2018).
55

princípios, direitos e deveres, ou seja, “[...] é uma espécie de "constituição" que vai reger o
uso da rede no Brasil definindo direitos e deveres de usuários e provedores da web no país”25.
Além de reger como deve ser o uso da internet no território brasileiro, e lei também indica
mecanismos e regras para remoção de imagens íntimas que foram divulgadas sem
autorização, sem a necessidade de ordem judicial, com a responsabilização subsidiária do
provedor26.
Importante salientar que o STJ já decidiu com base no Marco Civil da Internet temas
relacionados à pornografia por vingança. Em 19 de maio de 2020, a Terceira Turma do
Supremo Tribunal Federal considerou que:
[…] A "exposição pornográfica não consentida", da qual a "pornografia de
vingança" é uma espécie, constituiu uma grave lesão aos direitos de personalidade
da pessoa exposta indevidamente, além de configurar uma grave forma de
violência de gênero que deve ser combatida de forma contundente pelos meios
jurídicos disponíveis. 5. Não há como descaracterizar um material pornográfica
apenas pela ausência de nudez total. Na hipótese, a recorrente encontra-se
sumariamente vestida, em posições com forte apelo sexual. 6. O fato de o rosto da
vítima não estar evidenciado nas fotos de maneira flagrante é irrelevante para a
configuração dos danos morais na hipótese, uma vez que a mulher vítima da
pornografia de vingança sabe que sua intimidade foi indevidamente desrespeitada
e, igualmente, sua exposição não autorizada lhe é humilhante e viola
flagrantemente seus direitos de personalidade. 7. O art. 21 do Marco Civil da
Internet não abarca somente a nudez total e completa da vítima, tampouco os "atos
sexuais" devem ser interpretados como somente aqueles que envolvam conjunção
carnal. Isso porque o combate à exposição pornográfica não consentida - que é a
finalidade deste dispositivo legal - pode envolver situações distintas e não tão
óbvias, mas que geral igualmente dano à personalidade da vítima. 8. Recurso
conhecido e provido.27

Com isso, para atender a essa determinação legislativa, bem como evitar a divulgação
de imagens íntimas sem consentimento (vingança pornográfica), a conhecida rede social
“Facebook”, no ano de 2019, anunciou que usaria de inteligência artificial para combater a
pornografia por vingança. Tal mecanismo prevê a seguinte forma de atuação:

“[…] usando o aprendizado de máquina e a inteligência artificial, agora podemos


detectar proativamente imagens ou vídeos íntimos que são compartilhados sem
permissão”, disse a gigante das redes sociais em um post no blog. “isso significa
fizer que podemos encontrar este conteúdo antes que alguém o denuncie”. Um
membro da equipe de operações da comunidade do Facebook iré rever o conteúdo
encontrado pela nova tecnologia, e se for considerado uma imagem ofensiva, irá

25BBC, BBD News Brasil,


https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/03/140219_marco_civil_internet_mm (acesso 30 ago. 2020).
26BRASIL, Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm#art21
(acesso 30 ago. 2020).
27STJ - REsp: 1735712 SP 2018/0042899-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento:
19/05/2020, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/05/2020.
56

removê-la ou desativar a conta do responsável por espalhá-la, acrescentou a


imprensa28. (MARQUES, 2019)

Além disso, desde 2017, o site conta com um sistema que busca, através de denúncia
dos próprios usuários da rede, para impedir o compartilhamento das imagens. Essa
ferramenta também poderá ser usada nos aplicativos Messenger e Instagram:

Um software de análise de imagens vai manter as fotos fora da rede social, bem
como do serviço de fotos Instagram e do bate-papo Messenger. Os usuários que
compartilharem imagens de vingança pornográfica poderão até ter suas contas
suspensas na rede social, afirmou a companhia 29. (REUTERS, 2017)

Assim como as redes sociais, os sites de pesquisas também estão aderindo a não
proliferação da pornô vingança. Por isso, a empresa Google, conhecida como plataforma de
pesquisa na internet, divulgou uma nota que as imagens relacionadas a este tipo de vingança
poderiam ser retiradas independente de pedidos legais, uma vez que não faz parte do objetivo
da empresa. Segundo o vice-presidente da empresa Amit Singhal “[…] as imagens
relacionadas à pornografia de vingança são intensamente pessoais e emocionalmente
prejudiciais, e servem apenas para degradar as vítimas - predominantemente mulheres”30.
No entanto, é importante lembrar que a empresa não consegue retirar as imagens de sites.
Através dessa análise, percebe-se que as principais redes sociais e sites relacionados
à pesquisa estavam se adaptando ao novo comportamento social, através da criação de
mecanismos para proteger a vítima da pornografia por vingança, principalmente no que se
refere à retirada das imagens da rede mundial de computadores. No entanto, se tratando da
responsabilização penal do indivíduo que divulgou as imagens, até o ano de 2018 não havia
punição específica no ordenamento jurídico, o que gerava grande divergência quanto à
punição a ser aplicada.
O Código Penal apenas elencava os crimes contra honra, como difamação e injúria,
que estão devidamente tipificados nos seus artigos 139 e 140. Assim, verifica-se que o valor
protegido pelo artigo 139 (difamação) é o da honra objetiva e na injúria busca proteger a
honra subjetiva, bem como:

28Pablo Marques, Notícias R7, https://noticias.r7.com/tecnologia-e-ciencia/facebook-usara-tecnologia-para-


limitar-a-pornografia-de-vinganca-15032019 (acesso 20 ago. 2020).
29Reuters, Globo.com, https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/facebook-anuncia-sistema-para-barrar-
vinganca-porno-na-rede-social-instagram-e-messenger.ghtml (acesso 15 mai. 2018).
30João Kurtz, Techtudo, https://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2015/06/google-comeca-a-remover-
links-sobre-pornografia-de-vinganca-das-buscas.html (acesso 20 abr. 2018).
57

Uma das críticas enfrentadas pela imagem-atributo é a de que esse conceito se


confundiria com o de honra objetiva. Todavia, é pacífico o entendimento de que a
honra objetiva se encontra ligada à consideração que terceiros têm em relação a
determinada pessoa. A honra objetiva estaria, portanto, vinculada à reputação e às
qualidades atribuídas a um indivíduo. Nesse sentido, verifica-se que eventual
ofensa à imagem-atributo não atingirá, necessariamente, a honra objetiva, visto
que a falsa representação das características do indivíduo nem sempre conterá
conteúdo negativo31. (TEFFÉ, 2017, p. 173)

A revenge porn podia ser tipificada como injúria, pois a intenção é ofender a
dignidade e o decoro da vítima, uma vez que quem divulga os arquivos busca denegrir a
imagem da(o) ex-companheira(o) e transmitir a mensagem que ela(e) é desonrada(o), tendo
em vista que criou e compartilhou fotos e/ou vídeos eróticos. Isto é, a conduta “consiste na
imputação (atribuição) de fato determinado, que embora sem revestir de caráter criminoso é
ofensivo à reputação da pessoa que se atribui”32.
Vale lembrar que a pena do crime de injúria é de 1 (um) ano a 6 (seis) meses e multa,
ou seja, se enquadra como crime de menor potencial ofensivo (até 2 anos) o que possibilita
a aplicação das medidas despenalizadoras do Juizado Especial Criminal, regidos pela Lei
9.099/95, que busca maior agilidade e possível conciliação entre as partes 33, além de
procederem mediante queixa.
Divergiu do entendimento doutrinário a 16ª Vara Criminal de Belo Horizonte, uma
vez que entendeu ser difamação a conduta do pron revenge. O caso aconteceu após o fim de
um relacionamento que durou cerca de 04 anos onde o ex-companheiro não aceitou o fim e
passou a ameaçar a vítima “[…] dizendo que divulgaria imagens dela nua se ela não reatasse
o namoro ou se relacionasse com outra pessoa”34. Consequentemente a vítima se recusou a
reatar o relacionamento e teve suas fotos divulgadas através dos aplicativos WhatsApp e
Instagram. Na sentença, a juíza afirmou que:

As contradições apresentadas nos interrogatórios do réu decorrem de um só


motivo, ele não consegue explicar o inexplicável. Tentou por todos os meios negar
a autoria da divulgação das fotos e vídeos íntimos, através de desculpas
contraditórias muito pouco convincentes. […] além de atingir gravemente a honra

31Chiara Antonia Spadaccini de Teffé, Senado Federal,


https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p173.pdf (acesso 21 abr. 2018).
32CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361). 9º ed. rev. ampl. e
atual. Salvador: JusPODIVM, 2017. p. 188-191
33Idem
34Fernanda Valente; Hysa Conrado, Justificando, http://justificando.cartacapital.com.br/2016/07/11/juiza-
condena-ex-namorado-que-praticou-porn-revenge-como-difamacao/ (acesso 08 mai. 2018).
58

da vítima, com a exposição da intimidade desta, devastou a vida dos seus pais que
com ela sofreram a cruel e covarde exposição35. (VALENTE; CONRADO, 2016)

Outrossim, já houve entendimento jurisprudencial no sentido de que quem divulga o


material pornográfico sem consentimento comete crime de injúria e difamação. O Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná em sede de apelação entendeu que a divulgação de fotos
íntimas de ex-namorada sem consentimento na internet com intuito de “[…] retratá-la como
prostituta expondo-se para angariar clientes e programas” está praticando os crimes contidos
nos artigos 139 e 140 do Código Penal. No caso em tela, foi comprovado que as imagens
estavam guardadas no computador do agente que as divulgou e, além do mais, que ele criou
e estava administrando um blog “[…] com o nome da vítima. Conduta essa que visava
destruir a reputação e denegrir a dignidade da vítima”36.
Ademais, não pode passar desapercebido os casos envolvendo menores de idade,
uma vez que o Estatuto da Criança e Adolescente também não tipifica a divulgação das fotos
íntimas como crimes frutos da vingança pornográfica, tendo em vista o disposto nos artigos
240 e 241 do Estatuto. Observa-se pelo que aconteceu na cidade de Vacaria (Rio Grande do
Sul) onde foi verificado um caso de vingança pornográfica contra adolescente de 15 (quinze)
anos. A vítima teve um relacionamento íntimo com o acusado que durou aproximadamente
1 (um) ano e 8 (oito) meses, inconformado com o término do relacionamento, ele passou a
ameaçá-la de forma contínua “[…] prometendo, por palavras, divulgar arquivos digitais
(fotografias e vídeos), nos quais apareceria em situações íntimas, de nudez e em situações
com conotação sexual”37.
Através de acesso indevido ao celular da vítima, o acusado passou a divulgar fotos
íntimas através de aplicativos de troca de mensagens, além de perturbá-la através de ligações
e mensagens em horários diversos. Após a instrução do feito, a sentença em primeiro grau
(16.05.2016), julgou parcialmente procedente a denúncia, condenando o réu por ameaça
(artigo. 147, caput, do Código Penal “[…] e artigo 65 do Decreto-Lei nº 3.688/41, (...), cada
um combinado com o art. 71, caput, do CP, e artigos 241-A e 241-B, ambos do ECA, todos

35Idem
36Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Jusbrasil, https://tj-
pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20132845/apelacao-crime-acr-7563673-pr-0756367-3?ref=juris-tabs
(acesso: 01 abr. 2018).
37RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Crime nº
70072018161. 2017. Des. José Antônio Deltoé Cezar (Presidente e Revisor) e Desª Lizete Andreis Sebben. DJ:
07 fev. 2017.
59

na forma do artigo. 69, caput, do CP, à pena de 01 mês e 20 dias de detenção; 25 dias de
prisão simples e 04 anos de reclusão.”38. Por fim, em sede de apelação, a pena de reclusão
foi alterada para restritiva de direitos, sendo revogada a prisão39.
Com isso, é possível perceber a dificuldade que existia para a tipificação desse crime,
uma vez que não havia uma posição doutrinária nem jurisprudencial pacífica quanto a qual
crime cometia o divulgador das imagens íntimas sem consentimento. Nesse sentido lastimou
a juíza Marixa Rodrigues pois, “lamentavelmente, no Brasil ainda não existe o tipo penal
específico de pornografia de vingança”40. Ademais, a falta de tipificação quanto ao tipo penal
dificultava principalmente a punição do autor do fato, o que aumentava a insegurança da
vítima do reveng pron.

AS PRINCIPAIS MUDANÇAS LEGISLATIVAS COM O ADVENTO DAS LEIS


13.178/2018 E 13.772/2018

Como já mencionado, a mudança de comportamento social que surgiu com o avanço


da internet foi capaz de modificar tudo, inclusive a forma de vingança, como no caso de
divulgação de fotos íntimas sem consentimento, ou seja, a vingança pornográfica. No
entanto, a legislação brasileira apenas acompanhou tal mudança no ano de 2018, com o
advento das Leis 13.718, de 24 de setembro de 2018 e da Lei 13.772, de 19 de dezembro de
2018, com a modificação do Código Penal e Lei Maria da Penha.
A Lei 13.718, de 24 de setembro de 2018 acrescentou o art. 218-C no Código Penal,
incluindo o crime de divulgação de cena de estupro ou cena de estupro de vulnerável, de
cena de sexo ou de pornografia. O artigo tem a seguinte redação:

Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda,


distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de
comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo
ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de
vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento
da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia: Pena - reclusão, de 1 (um) a 5
(cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. 41

38Idem
39Idem
40Gabriel Reis Cheves, Ipecont, http://www.ipecont.com.br/blog/wp-content/uploads/2016/07/Pressclipping-
em-18-julho-2016.pdf (acesso em 26 mai. 2018).
41BRASIL, Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm (acesso 20 de
ago. 2020).
60

Considerando que na maioria dos casos o crime ocorre por vingança de atuais ou ex-
companheiros por problemas do relacionamento, como eventuais brigas, o artigo inclui o
seguinte aumento de pena “§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se
o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a
vítima ou com o fim de vingança ou humilhação”. Ademais, no parágrafo 2º, houve a devida
ressalva quanto a exclusão da ilicitude do crime, como nos casos de publicação de natureza
jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a
identificação da vítima, sendo necessária a prévia autorização nos casos de maior de 18 anos.
Ainda, foi acrescido o art. 225, o qual determina que a prática de qualquer ação descrita no
caput se procede mediante ação penal pública incondicionada.
A Lei 13.772, de 19 de dezembro de 2018 reconheceu a violação da intimidade da
mulher como violência doméstica e familiar, bem como criminalizou o registro não
autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e
privado. Tal lei alterou o art. 7º da Lei Maria da Penha, que enumera as formas de violência
doméstica e familiar contra a mulher, especificadamente o inciso II, incluindo no rol das
ações que configuram violência psicológica a violação da intimidade. Ou seja, a violência
física, psicológica, sexual, patrimonial e moral são algumas das formas de violências, que
estão dispostas nos incisos do artigo42.
O direito da mulher também está protegido através da Lei Maria da Penha que, como
elencado no artigo 6º desse diploma legal, considera violência doméstica contra a mulher
casos de sofrimento psicológico e dano moral, bem como trata como violação dos direitos
humanos. O artigo 5º da lei 11.340/2006 conceitua a violência contra a mulher da seguinte
maneira: “[…] qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial [...]” (BRASIL,
2006)43. Assim, Cunha (2017) complementa que:
Se a conduta é cometida contra a mulher na forma de um dos incisos do art. 5º da
lei nº 11.340/06, aplica-se o sistema de proteção especial em decorrência de
violência doméstica e familiar, pois, como estabelece o caput do mesmo art. 5º,
caracteriza-se esta espécie de violência inclusive nas situações em que da conduta
resulta sofrimento psicológico. 44

42BRASIL, Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm (acesso 20


ago. 2020).
43Idem
44CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361). 9º ed. rev. ampl. e
atual. Salvador: JusPODIVM, 2017. p. 191.
61

Além disso, acrescentou o Capítulo I-A no Código Penal que trata da exposição da
intimidade sexual, incluindo o art. 216-B que considera crime o registro não autorizado da
intimidade sexual. O artigo diz:

Art. 216-B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo
com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem
autorização dos participantes: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e
multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem realiza montagem em
fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em
cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo” 45.

Portando, consolidada essa nova dinâmica das relações sociais e dos meios de
comunicação, foi necessário modificar a legislação brasileira, pois os comportamentos vistos
hoje jamais seriam imagináveis a poucos anos atrás. A vingança pornográfica surgiu através
dessa mudança, mesmo que recente, que gera situações constrangedoras e até traumáticas
para a pessoa que tem sua intimidade compartilhada sem consentimento através da internet.
Ademais, verifica-se que esse tipo de vingança, além de ser uma grave violação a direitos
fundamentais (dignidade da pessoa humana, honra e privacidade), é uma violência de
gênero, pois, como anteriormente mencionado, a maioria das vítimas são do sexo feminino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio do presente estudo, se pôde notar que o avanço da internet modificou os
comportamentos sociais em geral. A nova dinâmica dos meios de comunicação facilitou o
acesso aos mais diversificados conteúdos disponíveis na rede mundial de computadores,
possibilitando que qualquer pessoa em qualquer lugar acesse, salve e compartilhe qualquer
tipo de conteúdo, independentemente do teor, de forma rápida, prática e eficiente.
Com isso, essa facilidade também deu origem à vingança pornográfica, que pode ser
qualificada como uma forma de vingança que utiliza dos meios de comunicação virtual para
divulgar conteúdo íntimo. A produção do conteúdo pode ser, inclusive, consensual, porém,
a divulgação não. Esses fatos geralmente ocorrem com vítimas do sexo feminino e geram
situações constrangedoras, violadoras de direitos fundamentais como o princípio da

45BRASIL, Planalto, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm (acesso 20 de


ago. 2020).
62

dignidade da pessoa humana, a inviolabilidade da honra e o direito à privacidade, uma vez


que a intimidade da vítima é divulgada para um número inimaginável de pessoas.
Nesse sentido, foi possível observar a dificuldade da punição de quem divulgava os
materiais pornográficos, uma vez que essa conduta ainda não era tipificada como crime no
ordenamento jurídico brasileiro. Percebeu-se que, em que pese os avanços que já estão
ocorrendo para controle dos conteúdos divulgados na internet, como o Marco Civil da
Internet, o Brasil somente se adaptou aos novos comportamentos sociais em 2018, com o
advento das Leis 13.178/2018 e 13.772/2018, que abarcou as novas formas de vingança, a
fim de garantir proteção jurídica às vítimas da vingança pornográfica.
Ademais, as Leis 13.178/2018 e 13.772/2018 alteraram o Código Penal, com a
inclusão dos artigos 216-B e 218-C. Além disso, a Lei 13.772/2018 alterou o art. 7º, inciso
II da Lei Maria da Pena, considerando violência psicológica a violação de sua intimidade da
mulher com o objetivo de proteger a vítima que teve suas fotos íntimas compartilhadas sem
consentimento. Assim, pôde-se verificar que a alteração legislativa trouxe benefícios à
vítima, uma vez que o art. 216-B trouxe pena de detenção, de 06 meses a um ano, e multa,
bem como o art. 218-C a pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui
crime mais grave, com aumento de 1/3 se o crime for praticado por agente que mantém ou
tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o intuito de vingança ou
humilhação.
Por fim, a vingança pornográfica não é oriunda do avanço tecnológico, apenas foi
facilitada por ele, uma vez que a internet não fazia parte do dia a dia das pessoas, inclusive
do mundo forense e hoje auxilia a concretização do objetivo do agente, ou seja, se vingar da
vítima. Assim, a legislação brasileira precisou acompanhar o desenvolvimento da sociedade
de modo geral, pois a internet alterou o comportamento social, principalmente no que diz
respeito à comunicação, o que se não observado, gera situações negativas com efeitos muitas
vezes devastadores e de graves violações a direitos fundamentais.
63

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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cibernética à luz do marco civil da internet – Rio de Janeiro: Brasport, 2016.

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milhoes-de-usuarios-de-internet-aponta-pesquisa>. Acesso em: 20 ago. 2020.
66

A FRAGILIDADE DA LGPD PERANTE OS HIPERVULNERÁVEIS

Amanda Israel Fraga1


Vitória Bastos Bernardi2

Resumo: A instituição da LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no Brasil criou
demandas ainda não tratadas – nem mesmo internacionalmente. A partir de um conceito e
analogia da hipervulnerabilidade do consumidor com o titular de dado pessoal, faz-se um
paralelo quando a lacuna encontrada na nova legislação e a necessidade de normatização e
jurisprudência a fim de ver protegida e garantida aquela parte mais fraca na relação jurídica.
Palavras chave: Hipervulnerabilidade, Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, Direito

INTRODUÇÃO

A Lei Geral de Proteção de Dados, promulgada no Brasil em 2018 e com entrada em


vigor prevista para 2020, apresenta mudanças de paradigmas nas relações atuais,
especialmente na lógica da economia digital, empoderando o titular de dados pessoais, para
que tenha autonomia de decisão e conhecimento profundo quanto ao tratamento de seus
dados por todo aquele, pessoa física ou jurídica, com finalidade comercial.

A lei reconheceu, ainda que de forma tácita, a vulnerabilidade do titular de dados, tal
qual àquela apresentada pelo Código de Defesa do Consumidor visto que, aquele que trata
dado de outrem com finalidade comercial, muitas vezes pode o fazer sem o devido cuidado
ou até mesmo, em alguns casos, ultrapassar limites mínimos da boa-fé na relação.

A norma apresentou condições especiais para o tratamento de dados pessoais de


crianças e adolescentes, visto suas condições peculiares de discernimento para consentir com
a disposição de seus dados de forma independente. No entanto, deixou desamparados outros

1
Graduada em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis – Uniritter. Especialista em Direito Civil e
Processual Civil pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. MBA em Auditoria e Compliance pela Universidade
La Salle. Membro da Comissão Especial de Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RS. Advogada –
OAB/RS 98.818. <amandaif92@gmail.com>
2
Graduada em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis – Uniritter. Especialista em Direito Civil e
Processual Civil pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. MBA em Gestão Estratégica de Negócios pela
Unopar, MBA em Auditoria e Compliance pela Universidade La Salle. Membro da Comissão Especial de
Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RS. Membro da Comissão de Direito Tecnologia e Inovação da
OAB/RS. Advogada – OAB/RS 93.589. <vitoria.bernardi@gmail.com>
67

sujeitos de direito, que são considerados hipervulneráveis, diante de suas próprias condições
especiais, tais como os idosos, os deficientes e os iletrados.

Nesse sentido, tem-se que, os titulares de dados pessoais, o que inclui os


hipervulneráveis, são dotados de autodeterminação informativa, ou seja, munidos de
elemento volitivo quanto aos tratamento de seus dados pessoais. A lei, inclusive apresentou
a autodeterminação informacional como um fundamento, especialmente porque vivemos na
era da economia digital, com dados pessoais sendo uma moeda de troca para bens de
consumo.
A disparidade das relações jurídicas é tratada pelo Direito com sensibilidade há
certo tempo. O Direito do Consumidor, por exemplo, tem por objetivo equilibrar as relações,
buscando corrigir as desigualdades. No mesmo cenário, desenvolve-se a Lei Geral de
Proteção de Dados, com o intuito de proteger a parte mais vulnerável da relação,
empoderando-a para que disponha de seus dados com qualidade, transparência, segurança e
livre acesso.

O SER HUMANO COMO FONTE DE ESCOLHAS A SEREM


RESPEITADAS

O Direito reconhece, cada vez mais, o ser humano como fonte de escolhas
íntimas que devem ser respeitadas, sejam por pessoas públicas, sejam privadas,
garantindo a autonomia moral, racional e existencial. As liberdades existenciais e a
autodeterminação crescem e ficam mais fortes neste século3.
A autodeterminação, um dos princípios fundamentais dos direitos humanos
– que significa autonomia através da auto regulação, está presente nos mais variados
campos e se mostra como um projeto de vida aos considerados incapazes pelo Direito
Civil. Neste contexto, tem-se a recente legislação de proteção de dados no Brasil (Lei
13.709/2018), que vem como forte evidência de que vivenciamos o despertar para a
proteção de novos interesses e direitos, cuidando dos mais vulneráveis.
Martins-Costa4 pontua que o termo vulnerabilidade surgiu, inicialmente, para
tratar discussões bioéticas, no Belmont Report, desenvolvido pela Comissão

3
FARIAS, Cristiano Chaves de. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil, 4ª
Ed., Editora Juspodivm, Salvador, 2019. p.328
4
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, p. 300.
68

Nacional de Proteção às Pessoas Sujeitas à Pesquisa Biomédica e Comportamental,


criada para o Congresso Americano. Contudo, desde então, foi adotado por diversas
áreas do Direito mas, principalmente, nas relações de consumo.
Além disso, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento ainda mais
abrangente, em especial se destaca o dito pelo Ministro Herman Benjamin em
Recurso Especial nº 586.316, quando afirma:

Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os


hipervulneráveis, pois são esses que, exatamente por serem minoritários
mais sofrem com a massificação do consumo e a “pasteurização” das
diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna.Ser
diferente ou minoria, por doença ou qualquer outra razão, não é ser
menos consumidor, nem menos cidadão, tampouco merecer direitos de
segunda classe ou proteção apenas retórica do legislador.

A capacidade civil pode ser considerada um direito fundamental, na medida


em que tem relação direta com a autodeterminação, na escolha de seus próprios
caminhos, na tomada de decisão em todos os aspectos da vida, sejam eles existenciais
ou patrimoniais5. Dessa forma, mais do que vislumbrar as pessoas como incapazes,
é necessário enxergá-las como vulneráveis, detentoras de um regime diferenciado de
proteção, que busque promover a autonomia, visto que, a expressão vulnerável
expressa duas ideias: tanto aquele que se encontra ferido, como também aquele que
corre o risco de se ferir6.
Com a consciência de que é dever do Direito a proteção daqueles que correm
maior risco – são mais vulneráveis em uma relação, a Lei Geral de Proteção de Dados
vem com destaque, em sua Seção III, para o tratamento de dados pessoais de crianças
e adolescentes. Da mesma forma que o Estatuto da Criança e do Adolescente também
visa a proteger pessoas consideradas pela sociedade como vulneráveis. As crianças e
adolescentes gozam dos mesmos direitos da pessoa humana que um adulto e, os
adolescentes não são tão incapazes quanto a lei gostaria de demonstrar. Percebe-se a
possibilidade de valorização do discernimento. Nesse contexto, a atuação dos pais ou
responsáveis será necessária de forma mais abrangente, quanto menor for o

5
FARIAS, Cristiano Chaves de. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil, 4ª Ed., Editora Juspodivm,
Salvador, 2019. p. 331.
6
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial
Pons, 2015, p. 300.
69

discernimento. Contudo, sua ingerência deve diminuir, incentivando o exercício


autônomo de escolhas existenciais7.
Inclusive, ao dispor sobre o tema, a Lei Geral de Proteção de Dados refere,
em seu art. 14, § 6º, que as informações sobre o tratamento de dados pessoais de
crianças e adolescentes, deverão ser fornecidas de forma simples, clara, acessível,
levando-se em conta as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais,
intelectuais e mentais do usuário, de forma a proporcionar o adequado entendimento
da criança. Nota-se também que o Regulamento Europeu e demais legislações
internacionais de proteção de dados demonstraram grande preocupação quanto ao
tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes.
Contudo, a Lei Geral de Proteção de Dados, assim como os demais
regulamentos sobre o tema ao redor do mundo, apresenta latente lacuna ao deixar de
legislar quanto à proteção de demais personagens civis que se encaixam nessa
categoria de hipervulnerabilidade.
Nessa linha, temos a mudança de paradigmas quanto aos curatelados e o
instituto da incapacidade civil, o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Pessoa com
Deficiência, legislações que visam a demonstrar essas pessoas como sujeitos de
direitos, capazes de gerir seus atos, mas que demandam proteções extraordinárias.
A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), que
entrou em vigor no Brasil em 2009, através do Decreto n. 6.949/09, tem como
objetivo promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas com deficiência,
promovendo o respeito e a dignidade inerente. Com isso, surge o Estatuto da Pessoa
com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), que visa à inclusão das pessoas portadoras de
deficiências, com garantia da cidadania.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência permitiu a reformulação do instituto
da incapacidade civil. Pessoas que antes eram consideradas incapazes (absoluta ou
relativamente) passam a ser dotadas de capacidade8, exceto nos casos em que, por
causa transitória ou permanente, não possam exprimir sua vontade. Inclusive, criou-

7
FARIAS, Cristiano Chaves de. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil, 4ª Ed., Editora Juspodivm,
Salvador, 2019. p.341.
8
ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família Contemporâneo. 1ªEd. Editora Juspodivm, Salvador,
2016. p. 461-462.
70

se a regra da Tomada de Decisão Apoiada9, visando a que as pessoas com deficiência


usufruam de sua capacidade de exercício, com igualdade real, conforme as
possibilidades do caso concreto.
O Estatuto do Idoso, por sua vez, dispõe no artigo 2º que: “O idoso goza de
todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas
as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e
dignidade.”. Referida legislação também se destina a proteger pessoas que se
encontram em situação de vulnerabilidade, perante a sociedade. O artigo 10, § 2º
inclusive destaca a necessidade de garantia da autonomia do idoso.
Nesse tópico, ainda, importante pontuar sobre o analfabeto, pessoa que não
detém habilidade para se comunicar através do alfabeto e que, portanto, em muitas
situações estará enquadrado também na condição de hipervulnerável.
Atualmente, o acesso à informação se dá em maioria das vezes através de
escritos, especialmente quando se fala em ambiente tecnológico, como sites e
aplicativos. Contudo, o analfabeto – conforme INAF (Índice de Analfabetismo
Funcional), aquele que não preenche requisitos mínimos de instrução necessários
para assinar seu nome e escrever pequenos bilhetes10 – não atingirá a devida
compreensão daquilo que não está expresso oralmente. Dessa forma, vê-se
impossibilitados de realmente entender a extensão das responsabilidade que estão
avocando.
A Lei Geral de Proteção de dados apresenta, como uma das hipótese de
tratamento de dados pessoais, o fornecimento do consentimento do titular11. Na
sociedade de tecnologia vivenciada, criou-se um ecossistema no qual transitam dados
pessoais em um fluxo volátil, incompreensível para o titular de dados pessoais, em
razão da racionalidade limitada do ser humano12, de forma que o homem médio, terá

9
Código Civil. Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência
elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança,
para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e
informações necessários para que possa exercer sua capacidade.
10
CHERTMAN, Fernando. Vulnerabilidade de consumo por analfabetos. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/8161. Acesso em 31/08/2020.
11
Art. 7º, I, LGPD.
12
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. 2ª Ed.Editora Forense. Rio de Janeiro, 2020.
p. 139-141.
71

dificuldade de compreender o caminho traçado por seus dados pessoais, ao fornecer


o consentimento ao controlador dos dados. Assim, notamos que, os hipervulneráveis
poderão ser amplamente prejudicados, pois sequer terão o discernimento e
conhecimento suficiente para consentir com o tratamento de seus dados pessoais.

A VULNERABILIDADE NO CDC

O conceito de vulnerabilidade é mais abrangente do que a ideia clássica e


formal da incapacidade no Direito Civil. A vulnerabilidade ultrapassa a ideia de
igualdade formal, pois só tem vez quando se está diante de pessoas concretas, com
análise contextual13.
O Direito do Consumidor, calcado no Código de Defesa do Consumidor,
apresenta a ideia de vulnerabilidade, protegendo a parte mais fraca da relação
jurídica. Cuida-se de uma presunção absoluta e que é relevante fator de análise para
criação de padrões diferenciados na norma. Portanto, a vulnerabilidade permeia as
controvérsias jurídicas, nas relações de consumo. Observa-se que, não basta que as
partes sejam capazes, mas é necessário que se esteja atento para as fragilidades de
cada uma, visando ao equilíbrio material entre as prestações, atentando-se para a
inexistência de abuso de direito e a boa-fé objetiva.
Nesse contexto, cabe a conceituação da hipervulnerabilidade, que demanda
situações específicas, as quais devemos estar atentos. Para que esta ocorra, estaremos
diante de um indivíduo que é duplamente vulnerável, isto é, se enquadra em mais de
uma situação de fragilidade simultaneamente.
A exemplo disso temos os consumidores idosos, que terão seus direitos
subjetivos preservados, tais como a garantia de privacidade, informação, liberdade
de escolha, somados a sua condição de idoso e às proteções a ela inerentes. Da mesma
forma, ocorrerá com o Titular de Dados Pessoais, previsto na Lei Geral de Proteção

13
FARIAS, Cristiano Chaves de. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil, 4ª Ed., Editora Juspodivm,
Salvador, 2019. p. 357.
72

de Dados, que acumula características que exigem proteção superior como as


crianças e adolescentes, os idosos, as pessoas com deficiência e os analfabetos.

A AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA
O conceito de autodeterminação informativa, em que pese estivesse previsto
na doutrina norte-americana, ganhou força com a decisão da Corte Constitucional
Alemã, a respeito do recenseamento de 1983. A sentença utilizou a expressão para
designar o direito dos indivíduos de “decidirem por si próprios, quando e dentro de
quais limites seus dados pessoais poderiam ser utilizados”14. O julgado é
paradigmático, pois abriu espaço para a discussão sobre a existência de um direito
autônomo quanto à proteção de dados pessoais em relação à personalidade, e
tratando-a como uma evolução do direito à privacidade15.
A Lei Geral de Proteção de Dados estabelece como fundamentos da proteção
de dados pessoais, a garantia dos direitos fundamentais e o livre desenvolvimento da
personalidade, além do desenvolvimento econômico-tecnológico e a inovação16.
Portanto, estabelece uma dialética normativa de conciliação dos elementos, cujo
principal vetor para alcançar este intuito é conceder ao cidadão o controle sobre seus
dados pessoais. Dessa forma, entende-se que isso vai além do consentimento do
titular ao autorizar o uso de seus dados. Com a mesma importância que o elemento
da vontade é garantir que as informações condizem com as legítimas expectativas,
pois a junção destes elementos resulta na autodeterminação informacional17.
E, por isso, a LGPD trouxe, em seu art. 2º, inciso II, a autodeterminação
informativa como um fundamento da lei. Isso porque, a quantidade de dados

14
DONEDA. Danilo. Da Privacidade à Proteção de Dados Pessoais. 2ª Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2019. p. 168.
15
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. 2ª Ed. Editora Forense. Rio de Janeiro,
2020. p. 99-100.
16
LGPD, Artigos 1º e 2º.
17
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. 2ª Ed. Editora Forense. Rio de Janeiro,
2020. p. 104-105.
73

disponíveis e a qualidade de seu tratamento, através de sistemas informatizados, são


capazes de transformar os dados pessoais em verdadeiras commodities18.
Contudo, a Lei, em sua essência ainda superficial, deixa de adentrar no
tocante à proteção de dados – e autodeterminação – de minorias consideradas
naturalmente vulneráveis e, nessa relação em específico, hipervulneráveis.

ASSIMETRIA E HIPERVULNERABILIDADE NAS RELAÇÕES


ENVOLVENDO DADOS PESSOAIS

Os dados pessoais são considerados ativos econômicos de grande valia.


Constantemente nos deparamos com a frase “dados são o novo petróleo”, o que
enseja uma corrida desenfreada para obtenção de quantidade significativa destas
informações valiosas para quem sabe como tratar e analisar. Para Bruno Bioni, há
uma contratualização da autodeterminação informativa do titular de dados, pois as
políticas de privacidade, na sociedade da tecnologia, têm se mostrado ineficazes para
capacitar o cidadão a controlar seus dados pessoais19.
O Direito tem-se mostrado sensível às relações assimétricas. Isso ocorre, por
exemplo, como já dito, pelo Direito do Consumidor, que visa a fornecer mecanismos
para que a relação de consumo se torne paritária, concedendo direitos ao cidadão,
para corrigir a desigualdade.
Da mesma forma, a Lei Geral de Proteção de Dados - não apenas no Brasil,
mas também em suas equivalentes ao redor do mundo - surge para equilibrar as
relações jurídicas, protegendo o elo mais fraco na cadeia econômica, que tende a se
submeter ao poder do controlador de dados pessoais, a fim de obter o bem fornecido.
O cidadão, em relação aos seus dados pessoais, é naturalmente vulnerável,
tendo uma fraqueza inerente, pois não dispõe de conhecimento técnico para
gerenciamento do fluxo pelo qual suas informações pessoais transitam. As normas
especiais têm o objetivo de tutelar os direitos de quem é vulnerável, na medida de
suas fraquezas. Nesse contexto, observamos que o regramento de proteção de dados

18
MALDONADO, Viviane Nóbrega. BLUM, Renato Opice, coordenadores. LGPD. Lei Geral de Proteção de Dados Comentada. Thomson
Reuters Brasil, São Paulo, 2019. p. 27.
19
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. 2ª Ed. Editora Forense. Rio de Janeiro,
2020. p. 263-264
74

apresentou dispositivos para proteção desse vulnerável, mas não dispôs sobre a tutela
dos direitos da maioria dos indivíduos em situação de hipervulnerabilidade, à
exceção das crianças e adolescentes.
Em que pese o legislador não tenha determinado preceitos de
hipervulnerabilidade na LGPD, ao emitir o Decreto 10.474/2020, que aprovou a
estrutura regimental da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), a
Presidência da República, instituiu, como competência da autoridade, garantir que o
tratamento de dados de idosos seja efetuado de maneira clara, simples, acessível e
adequada ao seu conhecimento, respeitando o disposto no Estatuto do Idoso20.
No entanto, novamente, observamos o esquecimento do poder público quanto
à tutela dos demais hipervulneráveis, que não foram contemplados na lei. Nesse
contexto, deverá ocorrer a interligação das normas, especialmente daquelas que já
tratam de fraquezas do cidadão.

CONCLUSÃO
O Poder Judiciário terá o papel fundamental de interligar as normas, fazendo
analogia da vulnerabilidade descrita no Código de Defesa do Consumidor, para
solucionar as controvérsias jurídicas. As decisões deverão levar em consideração, as
normas esparsas, tais como os estatutos, o Marco Civil da Internet e a própria
Constituição Federal.
A Lei Geral de Proteção de Dados foi criada – a nível mundial – deficitária.
Ainda que venha como uma iniciativa esperada e necessária em face do mundo digital
e tecnológico, ainda apresenta sérias lacunas que deverão ser esclarecidas e
normatizadas.
Ainda que se trate de minoria, o hipervulnerável está presente em todos os
tipos de relação jurídica e, destaca-se, a comercial. Em especial, o idoso que vem,
pouco a pouco, deixando de ser visto, inclusive, como minoria, em face do
envelhecimento longevo e saudável.
A proteção de dados precisará ser regulada no detalhe das carências sociais
de cada país em que vige e, aqui no Brasil, a Autoridade Nacional de Proteção de
Dados terá como função elaborar diretrizes para a Política Nacional de Proteção de

20
Art. 2º, XIX, Dec. 10.474/2020.
75

Dados Pessoais e da Privacidade – art. 55-J, III, LGPD – e promover na população o


conhecimento das normas e das políticas públicas sobre proteção de dados pessoais
e das medidas de segurança - art. 55-J, VI, LGPD, mantendo sempre em visão o
completo quadro de cidadãos, tanto os naturalmente vulneráveis pela própria situação
em que se encontram, mas principalmente aqueles que merecem a maior proteção, os
hipervulneráveis.

REFERÊNCIAS

BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do


consentimento. 2ª Ed.Editora Forense. Rio de Janeiro, 2020.

CHERTMAN, Fernando. Vulnerabilidade de consumo por analfabetos.


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Direito Civil, 4ª Ed., Editora Juspodivm, Salvador, 2019.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no Direito Privado: critérios para a sua


aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015.

ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família Contemporâneo. 1ªEd.,


Editora Juspodivm, Salvador, 2016.
76

AS MULHERES COMO PROTAGONISTAS, NA TOMADA DE


DECISÃO: UMA ESTRATÉGIA EM BUSCA DA AUTONOMIA,
DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE

Andréa Marta Vasconcelos Ritter1

Resumo: O objetivo deste artigo consiste em demonstrar que as mulheres são protagonistas
e fazem parte do sistema político, em seus vários órgãos e poderes, sendo importante para
estabelecer uma estratégia em busca da autonomia. As mulheres, pessoas físicas, são
diferentes dos rígidos Estados, Pessoa Jurídica de Direito Público e que as mulheres são, no
processo de tomada de decisão, as propulsoras em prol das políticas institucionais e públicas,
bem como impulsionam ações em favor da equidade de gênero, autonomia, desenvolvimento
e sustentabilidade. A pesquisa é documental e de caráter qualitativo, as autoras e documentos
referenciados são os fundamentos jurídicos e principal eixo. A conclusão é que as mulheres
de todas as qualificações, são agentes, sujeitos, capazes e que ao tomar as decisões sobre as
políticas públicas atuam em prol da coletividade e empoderadas, são de grande importância
para o desenvolvimento social e econômico da humanidade. Não se trata apenas de tornar
visível o invisível ou de retirar a neutralidade, mas de reconhecer que necessário considerar
o “recorte de gênero” para a tomada de decisão, para a formulação, planejamento e execução
das políticas públicas pelas mulheres, devendo a perspectiva de gênero ser aplicada para
reduzir as desigualdades, na consecução de um objetivo comum, entre Estado, Família e
Comunidade, com mobilidade para além do ordenamento jurídico. Eis que o
desenvolvimento requer uma visão estratégica com o empoderamento e a autonomia das
mulheres que são as reais agentes da tomada de decisão, transformando e atingindo a
sustentabilidade da vida com igualdade e paz.
Palavras-Chave: Mulheres – Agentes – Tomada de Decisão – Desenvolvimento

1. INTRODUÇÃO

As questões de gênero, nos últimos 40 anos e especificamente às referentes ao lugar


e papel das mulheres adquiriram uma grande importância nas ciências. Eis que cresceram os
Movimentos de Mulheres, as Agendas foram incrementadas pelas Resoluções das
Conferências mundiais e regionais de mulheres, mas ainda há lacunas e lutas, sendo

1
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais ( PUC 1987 ) Advogada desde 1987 e sócia de Roque e Vasconcellos
Advogados Associados ; Professora Universitária desde 1989; Bacharel em Relações Internacionais (
UNIRITTER 2016 ) , Pós Graduação em Metodologia do Ensino Superior ( UNISINOS 1991), em Direito
Público e Privado ( UNIRITTER ) e em Estratégias e Estudos Internacionais ( UFRGS 2018 ) ; Mestre em
Direito das Relações Internacionais ( UDE 2016 ) . Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS.
Inscrição OABRS 24451.
77

contínua, crescente a conscientização sobre a importância das questões de gênero e suas


peculiaridades.
Tais questões de gênero, apesar de estarem em expansão é preciso pontuar que se
apresenta um quadro de que estão sendo abandonadas pela política dos Estados em que as
políticas não são entabuladas e exercidas com os chamados “recortes de gênero”, que são
essenciais, face às necessidades e especificidades das meninas, jovens e mulheres.
As mulheres foram esquecidas, escondidas, proibidas e afastadas dos espaços de
poder e como se as questões e resultado do feminino não tiveram força suficiente para
empoderar as mulheres ou fossem simplesmente consideradas irrelevantes para as esferas
internas e externa.
Essencial superar a invisibilidade, mas sobremaneira necessário seguir avaliando,
analisando as causas que contribuem para fortalecer a luta das mulheres pelo
empoderamento, pela autonomia, pela igualdade e pela liberdade.
O processo de tomada de decisão das mulheres foi por muito tempo e ainda é
ignorado no campo das Ciências Políticas e Sociais. Não fosse isso, também existe a
definição convencionada de que o Estado é o tomador de decisão, é o responsável pela
formulação e exercício da Alta Política, isto é, as questões referentes à segurança e a
macropolítica e neste nível, as questões de gênero têm pouco ou nenhum lugar.
Mesmo o alargamento das questões, com as Agendas de Gênero, Cartas das
Conferências, as questões multiníveis e transversais não são propostas, mediadas e definidas
através dos Estados, mas sim, por meio das verdadeiras protagonistas, agentes e tomadoras
de decisão que são as mulheres, pessoas físicas, diferentes da pessoa jurídica do Estado e
que de fato decidem e devem tomar as decisões sobre as políticas institucionais e públicas.
2. AS MULHERES COMO AGENTES NA TOMADA DE DECISÃO

O terreno do poder e da prática nacional e internacional, como os Ministérios,


Secretarias e órgãos políticos, ainda são próprios e impregnados de dominação masculina,
distante das normas como a das cotas femininas, nas esferas de poder e formação de políticas
em Ministérios e Secretarias, valendo inclusive para o Sistema Internacional.
78

Para Halliday 2, na ideologia convencional, as mulheres não são preparadas para tais
atividades e responsabilidades e não se pode contar com elas em uma questão de segurança
e crise, que nada poderá estar mais distante da esfera tradicional de preocupação das
mulheres do que a segurança internacional e as outras questões globais.
Em verdade, há uma razão intencional e estrutural para a cegueira de gênero na maior
parte das relações e nos processos de tomada de decisão, além do paternalismo, machismo,
pretender uma separação entre o gênero e o processo de tomada de decisão, que é manter as
mulheres invisíveis e subjugadas, quando é através das mulheres que se alcança o
desenvolvimento e a paz.
Não há como se estudar as relações entre os Estados, Organizações Internacionais e
as pessoas, sem considerar às questões de gênero, sendo necessário o recorte para o processo
de tomada de decisão, para a formulação e execução de políticas públicas e negligenciar a
existência desta leitura particular de gênero implica em amparar a tese de que os processos
de tomada de decisão seriam neutros em gênero, ou seja, que não teriam nenhum efeito sobre
a posição e o papel das mulheres na sociedade.
Então, é mister considerar o feminismo que se preocupa com o interpessoal,
subjetivo, com o privado, com o individual, que vê as formas de domínio, ideologia,
diferenças do trabalho e sobretudo a paridade de gênero, raça e etnia.
Essencial considerar que não é o ente Estado quem de verdade realiza a tomada de
decisão, fato é que os processos de tomada de decisão possuem os efeitos de gênero e que
as mulheres são as agentes, as atoras das relações, sujeitos de direitos, protagonistas e
participantes das tomadas de decisão.
Para Darvin 3, a política do futuro será doméstica, eis que “não existe um útero
estatal, não existe seios estatais, não há substitutivo real para a beleza da maternidade
individual”. De outra sorte, vários Estados usaram até de forma brutal, este papel social e
reprodutor das mulheres, mas como agentes e tomadoras de decisão, as mulheres têm
liberdade que significa autonomia e tal gera desenvolvimento e sustentabilidade que são os
objetivos da Agenda 2030.
No debate político contemporâneo, ainda há a presença da violência, dos
dominadores, de insultos para as mulheres, tais como louca, histérica, chorona, fraca, burra,

2
HALLIDAY, Fred. Repensando as Relações Internacionais. Porto Alegre, Ed da Universidade/UFRGS,
1999.
3
DARVIN, Anna. Imperialism and Motherhood. History Workshop Journal, n.5. Spring, 1978, P.29.
79

entre outros adjetivos que reduzem e menosprezam as mulheres, mas também se verifica
mulheres que ocupam posições políticas de destaque, assegurando a contraparte masculina
e à opinião pública de que podem agir e ser tão fortes quanto os viris homens.
A emergência sobre as questões das mulheres dentro da política institucional e nos
processos de tomada de decisão envolve desafio duplo, para tais domínios que estão
separados. Se a primeira deveria reconhecer em que grau está sujeita à percepção de gênero
e o processo de tomada de decisão teria que superar a negação sobre o agente, se Estado ou
as mulheres, ou o processo e normas e formular sua análise e sugestão para apresentar um
processo em que as mulheres são agentes, formuladoras, tomadoras de decisão e exercem as
políticas destas oriundas.
Aspecto do desafio é revelar como as questões de gênero exercem e poderiam
desempenhar um papel relevante nos processos de tomada de decisão, com vistas à
formulação e realização de políticas públicas para as meninas, jovens e mulheres; e segundo,
analisar as especificidades de gênero, o denominado recorte de gênero, nas várias áreas de
atuação do Poder Público e também dos processos militares, ideológicos, políticos, sociais
que tem consequências domésticas e mudanças internas com implicância nos destinos das
mulheres e da sociedade.
Após anos da emergência do feminismo, mesmo assim, a relevância sobre as
questões de gênero nos processos de tomada de decisão, como fator de autonomia das
mulheres, de desenvolvimento e sustentabilidade é vista como evidente, principalmente
pelos Movimentos, Organizações Internacionais e pelas Conferências de Mulheres.
Os direitos humanos, por exemplo, tornaram-se muito mais importantes, na medida
em que adquiriram uma dimensão de gênero, são relevantes para a dimensão do papel dos
Estados e de outras protagonistas para a promoção ou negativa dos direitos para as mulheres.
Isso ocorre em arenas políticas mais amplas, assim como em áreas mais visíveis como as
políticas para a erradicação da violência contra as mulheres.
Se verdade que o interesse nacional enfatiza das diferenças de grupos sociais e
comunidades, bem como interesses burocráticos, étnicos e religiosos, com maior razão, as
políticas militares, econômicas ou sociais, têm efeitos variados sobre homens e as mulheres.
Não havendo neutralidade de gênero, então, mais que necessário a presença das
mulheres nos espaços de poder em todos os níveis. O recorte de gênero nos possibilita
observar as peculiaridades femininas para o processo de tomada de decisão mais específico,
80

que deve envolver todas as mulheres, considerando a variedade de raças, cor, etnias, idades,
profissões, origem, etc.
As políticas nacionais e internacionais e os processos de tomada de decisão não são
neutros de gênero e exercem importante presença na determinação do lugar das mulheres na
sociedade, que como protagonistas são livres para estar, ter vez e voz, onde desejar, bem
como na estrutura das relações sociais, econômicas e políticas entre os sexos.
Há um lugar? Há uma posição específica para as mulheres?
Na esfera política o ingresso das mulheres na vida política como eleitoras e sujeitos
políticos, um fenômeno internacional e após apresentado como nacional foi uma grande
mudança no século XX. Desde então, as mudanças políticas têm consequências diretas para
as mulheres.
Halliday 4, sem risco de exagerar, estende o slogan do movimento das mulheres- que
o pessoal é político- para afirmar que o pessoal é internacional, no sentido de que as relações
interpessoais, são bastante influenciadas pelos processos transnacionais. Isto é real e agora
comprovado pela Covid-19, cujo efeito é múltiplo nas relações de gênero e agravou mais os
problemas particulares das mulheres, como o excesso de trabalho e a violência doméstica.
De outro lado, dimensão a ser considerada, é que as mulheres, apesar da história e
estrutura de subordinação, adquirem e experimentam excelência na qualidade de
protagonistas, como agentes internacionais e nacionais. Basta verificar tal verdade em
assuntos de gênero e paz, bem como desenvolvimento econômico, sustentabilidade e
também cumprimento de Agendas, crescimento de Movimentos de Mulheres, com a
preocupação de alterar a posição e pensamento que estuda a sociedade e pessoas.
As redes, movimentos e organismos de mulheres existem desde a antiguidade sendo
exemplos de protagonismos de autoras não estatais, considerando que as mulheres como
grupos ou pessoa não detém poder Estatal em qualquer um dos países independentes do
mundo. É necessário reforçar que de fato são as agentes, as pessoas que atuam e exercem a
tomada de decisão todos os dias.
Desde o apelo do sufrágio feminino, cresceu o transnacional e as questões de gênero
devem ser tratadas em várias arenas, em multiníveis e com transversalidade entre os poderes,
matérias e ações. As questões de gênero não são pessoais ou únicas, mas formam parte de
um todo, como é evidente nas campanhas para a promoção da igualdade, as dimensões de

4
Op.cit. 1999
81

gênero da política econômica com relação ao emprego, divisão sexual do trabalho,


cuidatoria, migração, desenvolvimento e sustentabilidade recebem mais agentes e ações que
beneficiam as mulheres e a sociedade.
Em várias áreas as questões de gênero fazem intervir com valores e políticas
estabelecidas, sendo relevante o nacionalismo e a política, afirmando Jayawardena 5 que o
nacionalismo mobiliza as mulheres na vida política, exalta as tradições nacionais
particularmente com relação às mulheres e por lhes dar direitos, como cidadã fornecendo
uma fundamentação para superar as designações especiais de gênero.
Os homens utilizam o Estado e as ideologias que o legitimam como um meio de
reforçar o controle sobre as mulheres exercendo por política estatal o que consideram
melhorar a posição das mulheres. Cabe dizer que o nacionalismo não é neutro de gênero,
que busca considerar seus objetivos que são contraditórios para as mulheres.
Em verdade, a posição das mulheres mudaria se realizasse o recorte de gênero e as
dificuldades seriam resolvidas e poderia evoluir para a independência de Estado e as
mulheres consideradas agentes, protagonistas têm o direito de desafiar a autoridade do
Estado que representa a nação. Se o nacionalismo tem consequência prejudicial para as
mulheres, a disciplina de gênero deve ser realizada, privilegiada e não marginalizada ou
silenciada e tal também deve ocorrer com que a política como direito das minorias, étnicas,
trabalho ou outras designações.
Os direitos das mulheres fazem parte dos direitos humanos e estão presentes nos
assuntos de política interna e externa que também se preocupam com a pobreza, emprego e
outras formas de discriminação. Em outras palavras, não se trata apenas de entender a
relevância das relações de gênero na organização da vida social, mas como o gênero afeta as
mulheres de modo especial e o processo de tomada de decisão que na política, uma vez
realizado pelas mulheres o seu ponto de vista para a formação e execução das políticas
públicas.
Importa salientar que os Estados e Instituições como atores principais não conseguem
dispor sobre as especificidades e peculiaridades das mulheres e assim, as mulheres como
atoras no sistema e a política exercendo um impacto sobre os indivíduos, suas identidades é

5
JAYAWARDENA, Kunari. Feminism and Nacionalism in de Third World. London: Zed, 1986.
82

o poder das mulheres em postos de tomada de direção, relevante para a política nacional e
internacional que está em ascensão.
No Brasil, conforme dados do IGADE6, apesar das mulheres representarem 52,64 %
do eleitorado, a participação feminina nas esferas de poder ainda é baixa, sendo a
participação das mulheres na Câmara de 77 cadeiras, 07 cadeiras no Senado Federal e as
mulheres ocupam 11,7 % das Prefeituras do Brasil.
Mesmo com a obrigação de 30% de proporção mínima, ainda há dificuldades em
atrair as mulheres para a política, eis que os quadros dos partidos que são controlados pelos
homens que entregam poucos espaços para as mulheres nas direções e para estruturar suas
campanhas.
Além disso, as mulheres necessitam vencer as barreiras do patriarcado, da estrutura
dos partidos, elegibilidade, reeleição e permanência no sistema partidário. A situação, no
entendimento de Michele Bachelet 7 exige a criação de política transversal no mais alto nível
da gestão pública, instituições fortes, que promovam o empoderamento das mulheres, são
indisponíveis para garantir avanços e impedir retrocessos.
A visão tradicional deve ser superada, assim como a masculinidade atribuída ao
poder, bem como os preceitos e estereótipos sobre o papel dos homens e mulheres levando
em conta a participação da democracia, cultura política e as relações de gênero.
Os processos de tomada de decisão irão oportunizar a autonomia e o empoderamento
das mulheres, sendo necessário viabilizar praticas e os interesses estratégicos das mulheres.
A tomada de decisão nesse sentido aproxima o aspecto prático do aspecto estratégico e
mudanças deverão ser realizadas nestes âmbitos, com o empoderamento e a consciência na
tomada de decisão é a forma de enfatizar a existência de desigualdade de gênero e a
importância da participação e da organização social das mulheres.
Os processos de empoderamento e tomada de decisão têm por objetivo a
transformação das estruturas que reforçam a discussão de gênero e a desigualdade social,
sem ignorar processos individuais e demandas cotidianas, sendo fundamental para o
desenvolvimento do sistema e a realização dos direitos humanos.

6
https://igade.com.br/
7
www.brasil.gov.br/cidadanie-e-justica/2012/02/mulheres-na-política
83

O empoderamento político não está ainda consolidado, vez que as instituições do


Estado e sociais ainda não garantem para as mulheres igualdade de direitos humanos básicos,
bem como nos recursos, no emprego e, ganhar a participação social e política, requer
intervenção estratégica em todos os níveis de programação, elaboração e execução das
políticas.
As mulheres e as jovens estão sub-representadas na tomada de decisão e poucas tem
ciência de que são visíveis, protagonistas, agentes nos processos de tomada de decisão,
havendo esta sub-representação no nível dos particulares, governos, parlamentos, órgãos de
decisão regionais e locais organizadores da sociedade civil e associações.
Esta baixa representação prejudica o exercício completo da cidadania e conduz à
decisão e políticas que ignoram problemas e necessidades especiais os direitos e prioridades
devem ser garantidas e consideradas nas decisões e políticas afetando de forma direta ou não
a vida das mulheres.
Assim, necessário empoderar as meninas e jovens, alterar o funcionamento das
estruturas e aproximar a vida pública da vida privada, neste ponto, cabe ressaltar, para
exemplificar, que os horários do exercício da política do Poder Público são incompatíveis
com as necessidades da vida pessoal, familiar e considerar o envolvimento das mulheres na
política como legítimo e feminino e não como material e masculino.
O empoderamento e a autonomia, também são trazidos através dos movimentos,
redes de apoio e cooperação, que são fundamentais para a progressão política das mulheres
que serão modelos, referências, inspirações para outras mulheres devido à invisibilidade das
mulheres nos processos de tomada de decisões.
Cabe fomentar a aprendizagem e a autonomia das jovens, no que diz respeito às
competências de intervenção no domínio público, de modo que possam participar
efetivamente e eficazmente na tomada de decisão.
O fato de visibilizar, empoderar as mulheres e sensibilizar as jovens para a igualdade
de gênero é forma de conscientizar seus direitos e deveres como cidadãs e avançar para a
autonomia e participar mais ativamente em todas as dimensões da tomada de decisão política
e social, para alcançar um mundo não sexista, não racista, não homofóbico, com igualdade,
desenvolvimento e sustentabilidade.
84

O empoderamento feminino é o empoderamento das mulheres que traz nova


concepção de política, assumindo formas democráticas, constituindo novos mecanismos de
respeito coletivo e de tomada de decisões e respeito compartilhado.
Importante para o estudo considerar que a função das instituições políticas é de dar
resposta para as demandas provenientes do âmbito social e de converter as demandas em
respostas, em políticas públicas, planos programas etc. As respostas para a coletividade são
entregues na forma de decisões que irão integrar o bem comum e vincular a sociedade.
As respostas transformam o ambiente social, retroagindo, retroalimentando e nascem
novas demandas e em um processo contínuo que pode ser uma correspondente de demandas
e respostas, que podem avançar ou interromper, quando não haverá mais retroação.
O Estado e a política têm em comum o fenômeno do poder e assim se apoia a Teoria
do Estado e o processo político são definidos com a formação, distribuição e o exercício do
poder e a teoria política é considerada parte da teoria do poder.
Desde Locke é a capacidade do sujeito de obter certos efeitos e há uma relação entre
os sujeitos uma relação entre atores e o poder está estreitamente relacionado ao conceito de
liberdade.
Importam salientar que em tais relações há a presença do Poder Ideológico que se
vale de formas de saber, de doutrinas, conhecimento, informações, códigos de condições
para exercício de informações sobre comportamento de terceiros e induzem os membros a
realização ou não de ações.
De outra banda, o Poder Político é legitimado pelo indivíduo e o homem político é
livre para perseguir os próprios objetivos, sendo que os problemas de poder fazem parte das
relações de terceiros, das relações da comunidade e das relações sociais e pessoais.
Essencial entender o poder nas relações de gênero e o empoderamento das mulheres
para o desenvolvimento sustentável e entender que o poder não é só a capacidade da pessoa
de resolver sobre a sua própria vida, mas também da capacidade de decidir sobre a vida do
outro, o que transcende do poder formal do Estado, que é uma estrutura dura, tipo “bola de
bilhar”.
As relações de poder se mantém porque os atores ainda negam a existência da
desigualdade e é personificada como masculina eis que as mulheres são invisíveis e sofrem
a influencia do patriarcado estrutural e são mantidas como subalternas do outro lado do
poder.
85

Ressalta Costa8·, que muitas mulheres não podem resolver sobre suas vidas, não se
constituindo enquanto sujeitos, não exercem o poder e também, não acumulam este poder,
mas o reproduzem para elas mesmas, mas para aqueles que de fato contém o poder.
E segue dispondo o autor, que as pequenas parcelas de poder ou os pequenos poderes
que lhes tocam e permitem romper em alguns momentos ou circunstâncias, a supremacia
masculina, são poderes tremendamente designados.
Como se salientou, o domínio do patriarcado está presente na sociedade, em distante
manifestação, no mundo, domínio público e assegura poder para os homens e desiguala para
as mulheres envolvendo conteúdos de trabalho, sexo, violência, acesso restrito das mulheres
aos recursos do Estado, sociedade e participação política que distribui recursos desiguais
entre homens e mulheres, sendo que as mulheres continuam subjugadas, excluídas de
qualquer esfera de decisão.
As políticas de tomada de decisão, incluindo planejamento e execução, consideram
que as necessidades das mulheres são idênticas as dos homens ou a de grupos da sociedade
civil e assim, as mulheres são tratadas como mães, esposas e não como sujeito de direitos
com autonomia e vários projetos são inócuos, ineficazes e contraproducentes não produzindo
resultados transformadores o que não supera designação de gênero nem traz
desenvolvimento das mulheres, jovens e meninas.

3. CONCLUSÕES

Com o empoderamento as meninas, jovens e mulheres, de todas as pluralidades,


tomam conta de seus próprios assuntos, vida e consciência de sua habilidade e competência
para produzir, criar e gerir. Dentre a busca do empoderamento está à promoção da tomada
de decisão e a ação, sendo que o componente político supõe a habilitação para analisar e o
meio circunda em termos políticos e sociais que surge a capacidade para organizar promover
a mudança social, com maior igualdade e maior empoderamento.

O poder assume e torna a democracia com mecanismos de responsabilidade coletiva,


tomada de decisão, responsabilidade compartilhada e constrói uma democracia política mais
ampla.

8
COSTA, Ana Alice. As donas do Poder. Mulher e Política na Bahia. Salvador: NEIM/UFBA e Assembleia
Legislatica da Bahia, 1998 (coleção Baianas, vol 2).
86

Há uma transformação na dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, pois


com o empoderamento, segundo Léon 9, há empoderamento também dos homens, no sentido
material e psicológico, já que as mulheres logram ter acesso aos recursos materiais em
benefício da família e da comunidade, a compartilhar responsabilidade e também devido a
que permitirem-se novas experiências emocionais para os homens e os libera dos
estereótipos de desigualdade.
É um dos objetivos da Agenda 2030, a igualdade entre os gêneros e em 2005, o
Fórum Econômico Mundial, comprometido com a melhoria das condições do mundo,
finalizou com o documento “Empoderamento das mulheres – Arena das disposições Globais
e de Gênero”.
Dentre as dimensões importantes para o empoderamento consta o empoderamento
político que diz respeito à representação equilibrada de mulheres em estado de tomada de
decisão, formação, informação e ao direito à voz na formulação das políticas que afetam a
sociedade na qual está inserida a ausência de mulheres nas estruturas de governo
significando a falta de participação das mulheres na alocação dos recursos.
A experiência de vida com relação aos homens proporciona compreender as
diferenças das necessidades, preocupações e interesses, sendo princípio estratégico para o
combate da pobreza e mudança nas relações de poder, eis que o reconhecimento valoriza as
mulheres e implica na autonomia, garantindo a igualdade.
Importante salientar que o processo de empoderamento vinculado ao processo de
participação, favorece o estabelecimento de políticas e pratica de desenvolvimento que
compreende as necessidades das pessoas e por isso vital o recorte de gênero.
Desta forma, as mulheres devem fazer parte de instancias de definição, implantação
e monitoramento de políticas, programas e a cidadania facilitada em projetos para propor
políticas públicas.
Neste sentido, não é possível separar a conduta individual do sujeito, no caso as
mulheres, e as disposições sociais que regem a vida em coletivo e assim o desenvolvimento
pleno está relacionado com a expansão das capacidades individuais e com o exercício da
condição de agente.

9
LEÓN, Magdalena. El Empoderamiento en la Teoria y Práctica del Feminismo. México: Universidad del
Colima, 2002.
87

Para Sen10, a definição de agente é alguém que age, ocasiona mudanças e cujas
realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos, logo não é
o sujeito passivo receptor de benefícios e programas de assistência. Nesta perspectiva, o
empoderamento de mulheres, no sentido de obtenção do poder de escolher seu próprio
destino.
Cristalino que o poder de escolher, ter autonomia equivale à possibilidade ou não que
as mulheres têm de tomar decisões, enquanto sujeito de direitos, deveres na família, na
sociedade ou comunidade e reconhecer o direito das mulheres no seu processo de procura
de melhores condições de vida para si, para a família e para a sociedade.
Não bastam políticas de educação, saúde ou políticas contra a violência sem outros
acessos importantes, que quando totalmente implementados os beneficiários ocasionados
pela maior participação das mulheres na esfera política e instituições são transversais e
notáveis, pois as mulheres priorizam o bem estar coletivo.
A ampliação do empoderamento das capacidades de realização das mulheres e de sua
condição de agentes é transformadora, há conversão em benefícios para as mulheres e toda
a coletividade e se tal ocorre importante que os Estados e demais atores que atuam no âmbito
público considerem as mulheres, levando em conta a sua especificidade, com a consideração
de gênero.
A alta política deve ser responsável por este recorte de gênero e a participação
feminina deve ocorrer desde o âmbito de representação delegando até a formação dos grupos
de interesse ou de pressão.
Para finalizar, cabe trazer Reynolds11 que defende que as empresas e as pessoas
humanas são atores, dotados de ações e poder para a tomada de decisão e compõe o Sistema,
o que significa reconhecer as mulheres como protagonistas, como atoras, com papel
significativo para a tomada de decisão e integradas no desenvolvimento com capacidade de
desempenhar importante papel na estratégia de desenvolvimento.
É desafio o empoderamento, a autonomia das mulheres, o desenvolvimento
sustentável e a mudança com transformação que avance na igualdade de gênero, inclusão,

10
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
11
REINOLDS, P. A., Introduccion AL Estudio de Las Relaciones Internacionales. Madri, Tecnos, 1977.
88

cumprimento das políticas públicas e o cumprimento da Agenda 2030 como apontam ONU
e a CEPAL12·.

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12
COMISSÃO ECONOMICA PARA AMERICA LATINA E CARIBE (CEPAL). La autonomia de
lasmujeres em escenarios econômicos cambiantes. Santiago. 2019.
89

A CELERIDADE NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENVOLVENDO


ENTES PÚBLICOS E OS JUIZADOS ESPECIAIS

Andréia Atti Simões1

Resumo: Esta monografia tem como objetivo analisar os Juizados Especiais da Fazenda
Pública, instituídos pela Lei nº 12.153 de dezembro de 2009, que adotam rito processual
mais célere e objetivam ensejar maior facilidade de acesso aos cidadãos na resolução de
conflitos de menor complexidade entabulados pelos entes públicos. Pretende-se verificar se
esses Juizados Especiais alcançam aos jurisdicionados, no seu propósito de dotar de maior
celeridade e eficácia a prestação jurisdicional nos litígios, envolvendo a Fazenda Pública.
Neste mister, intenta-se mensurar a importância e a eficácia da inclusão dos Juizados
Especiais da Fazenda Pública, como meio mais ágil e célere de se alcançar a prestação da
tutela jurisdicional, diante do direito fundamental à razoável duração do processo, insculpido
no inciso LXXVIII, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988. O presente estudo baseia-se
na pesquisa bibliográfica em doutrinas, artigos científicos, Internet, revistas universitárias,
jurisprudências.

Palavras-chave: Juizado Especial da Fazenda Pública. Juizado Especial. Celeridade. Estado.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a analisar a eficácia dos Juizados Especiais da


Fazenda Pública como instrumentos de efetivação do acesso à justiça, capazes de dotar a
prestação jurisdicional de efetividade através da celeridade na resolução de conflitos que
envolvam os entes públicos.
Os Juizados Especiais surgem para tornar a justiça mais acessível a população,
através de um procedimento informal, efetivo e simples, na resolução de conflitos de
menor complexidade. Procedimento sumaríssimo, utilizado para acelerar a entrega da
prestação jurisdicional, dotado da incumbência de conciliar, seguindo princípios próprios,
para assim atender a demanda, mediante um procedimento ágil e sem burocracia.
O trabalho insere a importância dos Juizados Especiais, como meio mais ágil de se
alcançar a prestação da tutela jurisdicional aos cidadãos diante do direito fundamental à

1
Advogada, OAB/RS 100.966, Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho, Membro da CMA da
OAB/RS, Participações em palestras e aulas voltadas ao Direito Preventivo, nos cursos de Pós-Graduação,
simoesjuridico@hotmail.com.
90

razoável duração do processo, insculpido no inciso LXXVIII, do art. 5º, da Constituição


Federal de 1988.
O caminho se inicia pela jurisdição. Para que a prestação jurisdicional seja efetiva,
é necessário que o Estado, como detentor do seu monopólio, realize a entrega da prestação
jurisdicional de forma justa e tempestiva.
Assim, a pesquisa principia por uma abordagem da função jurisdicional como
poder-dever estatal para, em seguida, debruçar-se sobre a relevância do tempo de
tramitação do processo, elemento que contribui significativamente para essa efetividade
da tutela jurisdicional, dado que os litigantes têm direito não somente à jurisdição, mas,
também, a uma jurisdição que se ultime dentro de um prazo razoável.
Adentra no Sistema dos Juizados Especiais, abordando brevemente o seu
surgimento, deste modo, introduzindo os Juizados Especiais da Fazenda Pública,
instituídos pela Lei nº 12.153/09, analisando seu procedimento como alternativa capaz de
conferir a entrega da tutela jurisdicional de maneira célere e verdadeiramente efetiva aos
jurisdicionados nas causas que envolvem entes públicos.
Intenta-se, ao final, demonstrar que os Juizados Especiais da Fazenda Pública
contribuem para aliviar a Justiça Comum, reduzindo a sua morosidade através da resolução
de litígios por meios informais, simplificados e céleres que facilitam a entrega da prestação
jurisdicional ao cidadão em prazo razoável.

PROBLEMÁTICA

Neste mister, intenta-se mensurar a importância dos Juizados Especiais da Fazenda


Pública, apurando sua contribuição para aliviar a Justiça Comum. Tenciona, assim,
estabelecer esclarecimento ao tema, quanto ao alcance na redução da morosidade através da
resolução de litígios por meios informais, simplificados e céleres que facilitam a entrega da
prestação jurisdicional ao cidadão em prazo razoável. Por conseguinte, a proposta do artigo
é demonstrar que os que os Juizados Especiais se propõem a aliviar o abarrotamento dos
cartórios judiciais, desafogando o Judiciário, apresentando-se como meio mais eficaz para a
resolução de conflitos, reduzindo a demora na satisfação da sua prestação jurisdicional
através de métodos como o da simplificação dos procedimentos e da conciliação, ensejando,
deste modo, uma via de acesso eficiente à justiça e à efetivação dos direitos individuais.
91

1. JURISDIÇÃO E A EFETIVIDADE NA PRESTAÇÃO DA TUTELA


JURISDICIONAL

A jurisdição se apresenta como o primeiro elemento cuja compreensão se mostra


indispensável a uma análise acerca da efetividade da prestação jurisdicional.
A jurisdição, como poder e dever de aplicar o direito ao caso concreto, surge quando
o Estado avoca para si essa tarefa, proibindo a autotutela2 e disponibilizando o acesso à
justiça por meio do direito de ação. Nesse sentido é a lição de Barbosa Moreira:3
Mas, proibindo a Justiça por mãos próprias e chamando para si, com
exclusividade, a tarefa de assegurar o império da ordem jurídica, assumiu o
Estado, para com todos os cidadãos, o dever de tornar realidade a disciplina das
relações intersubjetivas previstas nas normas por ele mesmo ditadas.

A jurisdição surge a partir do momento em que o Estado assume posição de


independência, exercendo um poder mais acentuado de controle social.4 A ideia de direito,
assim, no Estado moderno, fomenta a de jurisdição, como bem referido por Ovídio A.
Baptista da Silva:5
[...] o direito, antes de ser monopólio do Estado, era uma manifestação das leis de
Deus, apenas conhecidas e reveladas pelos sacerdotes. O Estado não o produzia
sob a forma de normas abstratas reguladoras da conduta humana. Nesse estágio de
organização social e política, a atividade desenvolvida pelos pontífices, [...], não
pode ser equiparada à função nitidamente jurisdicional. A verdadeira e autêntica
jurisdição apenas surgiu a partir do momento em que o Estado assumiu uma
posição de maior independência, desvinculando-se dos valores estritamente
religiosos e passando a exercer um poder mais acentuado da vontade social.

Superada a fase da vingança privada, o Estado toma para si o monopólio da


jurisdição, cujo exercício é atribuído ao Poder Judiciário, poder autônomo e independente
que integra a estrutura estatal.6

2
De se ressalvar a existência de (poucas) hipóteses de atuação do particular por suas próprias mãos que possuem
autorização legal, como a legítima defesa, o desforço imediato e o penhor legal, por exemplo (DONIZETTI, Elpídio.
Curso didático de direito processual civil. 17. ed. rev. ampl. e atual. especialmente de acordo com as Leis nº
12.424/2011 e 12.431/2011. São Paulo: Atlas, 2013, p. 31-37).
3
MOREIRA, Barbosa, apud SOUZA, Marlene Marlei de. A efetividade da jurisdição. Revista da AJURIS, Porto
Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, v. 36, n. 113, p. 288, 2009.
4
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Teoria geral do processo civil. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009, p. 57.
5
Ibidem.
6
DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 17. ed. rev. ampl. e atual. especialmente de
acordo com as Leis nº 12.424/2011 e 12.431/2011. São Paulo: Atlas, 2013.
92

Assim, a jurisdição é função realizada pelo Estado, sendo sua missão a aplicação do
direito.7 Atua o direito objetivo na composição dos conflitos de interesses, com o intuito de
preservar a paz social e o império da norma jurídica.8
No Estado Democrático contemporâneo podem ser identificados três objetivos
primordiais da função jurisdicional: um social, um político e um jurídico. No aspecto social,
a jurisdição tem como finalidade a pacificação, por intermédio da solução dos conflitos, no
objetivo de encontrar rápida resolução às controvérsias que se encontram no meio social. No
político, a jurisdição tem por escopo fazer valer a imposição da vontade do Estado e de suas
determinações, garantindo-se a participação democrática da sociedade no exercício desse
poder político, de modo que o exercício da jurisdição atenda à pretensão da sociedade. Por
derradeiro, no objetivo jurídico, a jurisdição tem por finalidade instituir o direito a ser
observado, agindo positivamente o direito em última instância.9
Mas é justamente essa sua finalidade de pacificação social, escopo relacionado com
o resultado do exercício da atividade jurisdicional perante a sociedade, a vida e a felicidade
pessoal de seus cidadãos, o traço distintivo mais marcante da função jurisdicional com
relação às demais funções estatais.10

Destarte, a jurisdição, como função estatal, está designada a exercer o ordenamento


e a solução dos conflitos, garantidos os direitos pela Constituição Federal e seus princípios
constitucionais, valendo-se do processo como instrumento para solução de litígios e
pacificação social.11
O acesso à jurisdição é direito de todos aqueles que se sentem lesados, pleiteando
suas demandas junto ao órgão jurisdicional competente.12 A jurisdição existe para resolver
litígios, tutelando o direito subjetivo das partes ou interessados e aplicando,
imperativamente, as normas jurídicas, objetivando, conforme a natureza da controvérsia, a
solução dos conflitos; a atuação do direito material; o cumprimento das decisões judiciais de

7
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de e outro. Curso de processo civil: teoria geral do processo civil e parte
geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2010, v. 1, p. 130.
8
ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria geral do processo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 55.
9
OLIVEIRA, Marcus Vinícius Amorim de. Jurisdição, poder do Estado e acesso à justiça. Doutrina, Rio de
Janeiro, n. 8, p. 251, jan. 1999.
10
Ibidem.
11
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria geral do processo
e processo de conhecimento. 11. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 85.
12
ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo. São Paulo: Atlas, 2009, p. 64-65.
93

forma coercitiva; ou, ainda, acautelar situações de risco de lesão, evitando a concretização
do dano.13

O Estado, como detentor do monopólio da jurisdição, atribuído ao Poder Judiciário,


deve realizar a entrega da prestação jurisdicional quando provocado pelo cidadão. Essa
prestação há de ser efetiva, a fim de que a jurisdição alcance seu fim último, que é a
promoção da pacificação social.14
Neste sentir, Pontes de Miranda já salientava que aquele que busca o Estado,
desencadeando o exercício da jurisdição, é titular de uma pretensão à obtenção da prestação
jurisdicional.15 Prestação jurisdicional essa que, como bem destaca Araújo Neto, citando
Francesco Carnelutti, que “o tempo é inimigo do processo”,16 sendo a morosidade da justiça
o grande desafio imposto aos legisladores e os processualistas modernos.

Com efeito, a entrega da prestação jurisdicional a destempo coloca em xeque a


confiança da população no Direito e na Justiça,17 pois, como já advertia Rui Barbosa, justiça
atrasada não é justiça, mas injustiça qualificada e manifesta.18
Em consonância com os ditames da moderna doutrina processual, a Emenda
Constitucional nº 45/04 atribuiu nova redação ao art. 5º, inciso LXXVIII, da Carta da
República, introduzindo no ordenamento jurídico brasileiro, de forma expressa, o princípio
da razoável duração do processo. Assim, resta assegurado aos litigantes, como direito
fundamental, não só o direito à jurisdição, mas, também, o direito à entrega da prestação
jurisdicional dentro de prazo razoável.

Outrossim, a garantia constitucional da razoável duração do processo conduz os


legisladores à incessante busca pelo aperfeiçoamento do sistema processual, “instituindo

13
DESTEFENNI, Marcos. Curso de processo civil, volume 1: tomo I: processo de conhecimento convencional
e eletrônico. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 41-42.
14
GRANGEIA, Marcos Alaor Diniz. Fatores de aceleração da prestação jurisdicional. Disponível em:
http://www.enfam.jus.br/wp-co ntent/uploads/2013/02/909_Artigo_Fatores_de_AceleracaodaPresta
cao_Jurisdicional2.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2020.
15
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. tomo I, arts. 1ª
a 45. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 81.
16
CARNELUTTI, Francesco, apud ARAÚJO NETO, José Donato de. Duração razoável do processo:
inconstitucionalidade dos prazos processuais diferenciados da Fazenda Pública. Revista ESMAFE: Escola de
Magistratura Federal da 5ª Região, Recife, n. 19, t. 3, p. 270, mar. 2009.
17
NEGRÃO, Theotonio, apud CHIMENTI, Ricardo Cunha. Juizados Especiais da Fazenda Pública: Lei n.
12.153/2009. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 19-20.
18
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 53.
94

novas categorias de tutela e promovendo reformas que tornem os processos mais efetivos e
céleres.19
Do mesmo modo, os já implementados Juizados Especiais da Fazenda Pública
almejam dotar a atividade jurisdicional de maior efetividade, agilidade e simplificação,
ensejando um tramitar mais célere das demandas envolvendo entes públicos, restando,
destarte, por dar concreção à garantia constitucional da razoável duração do processo. 20

3. SISTEMA DOS JUIZADOS ESPECIAIS

O primeiro diploma legislativo que regulamentou os Juizados Especiais de Pequenas


Causas foi a Lei Federal nº 7.244, de 07 de novembro de 1984, posteriormente revogada pela
Lei nº 9.099, de 26/09/1995, ora em vigor.
Embora tenham sido criados antes do advento da Constituição Federal de 1988, esses
Juizados de Pequenas Causas já contemplavam o objetivo de garantir o acesso ao Poder
Judiciário de modo mais simples e rápido, além de amenizar a angustia do cidadão de arcar
com custas perante a justiça comum.21
Almejavam, desta feita, dotar de maior celeridade processual as causas de reduzido
valor econômico, assim consideradas, inicialmente, as ações que não excedessem a 20
(vinte) vezes o salário mínimo vigente no País. Surgiram, assim, os Juizados Especiais de
Pequenas Causas, com o intuito de permitir acesso à justiça à classe menos favorecida e de
proporcionar uma prestação jurisdicional menos burocrática e mais célere.22

Conforme Wander Paulo Marotta Moreira, os Juizados Especiais vieram


primeiramente para atender à “explosão de litigiosidade”, consequência da incorporação ao
espaço urbano da grande população, “gerando contradição entre a marginalização e a
exclusão desses grupos e o discurso jurídico de garantia de igualdade e de acesso ao
Judiciário.23

19
DIAS, Handel Martins. O tempo e o processo. Revista da AJURIS, Porto Alegre: Associação dos Juízes do
Rio Grande do Sul, v. 34, n. 108, p. 233, dez. 2007.
20
FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais da Fazenda Pública: comentários à Lei 12.153, de 22
dezembro de 2009. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
21
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria geral do
processo e processo de conhecimento. 11. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 48.
22
Ibidem.
23
MOREIRA, Wander Paulo Marotta. Juizados Especiais Cíveis. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 23-24.
95

Os Juizados Especiais surgem, para resolução de causas de menor complexidade,


visando alcançar a solução do conflito de forma mais rápida e, para tanto, apresentando uma
nova proposta de procedimento, menos formal e burocrático. Foram instaurados com o
propósito de criar um novo rito processual, com solução rápida dos litígios, reduzindo os
procedimentos formais da justiça comum, bem como, de facilitar o acesso à justiça aos
cidadãos mais humildes.
Pouco tempo após sua criação, os Juizados Especiais se tornaram um dos mais
importantes segmentos Poder Judiciário, por suas qualidades de justiça célere, acessível e
eficiente. Promovem, assim, a efetivação dos direitos dos litigantes em um período de tempo
mais razoável e compatível com a complexidade do litígio - em contraposição ao que se
verifica com as demandas ajuizadas perante a justiça comum, que tendem a se eternizar.24
José Venâncio de Miranda Neto destaca o papel dos Juizados Especiais como uma
garantia efetiva do acesso à Justiça, nos quais prepondera a tônica processual oral e informal
como caminho inarredável à almejada celeridade, sem prejuízo às garantias
constitucionais.25
O amplo acesso à justiça, o incremento do número de demandas, a crescente
densidade demográfica dos centros urbanos, a complexidade das novas relações jurídicas e
sociais são fatores determinantes para que o Estado seja, cada vez mais, acionado para o
restabelecimento e manutenção da paz social.26
A eficiência dos Juizados Especiais se revela, dentre outros fatores, pela entrega da
tutela jurisdicional em tempo razoável, com redução dos custos processuais para as partes.

4. OS JUIZADOS ESPECIAIS DA FAZENDA PÚBLICA

A criação dos Juizados Especiais da Fazenda Pública dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios complementou esse novo sistema de prestação jurisdicional que preconiza
maior facilidade de acesso aos cidadãos, com julgamentos mais céleres e com redução no

24
SCHELEDER, Adriana Fasolo Pilati. As garantias constitucionais das partes nos Juizados Especiais Cíveis.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 70.
25
MIRANDA NETO, Venâncio de. A inversão probatória do Código de Defesa do Consumidor e sua
Aplicação nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, Belo
Horizonte: Del Rey/Faculdade de Direito Milton Campos, ano I, n. 1, p. 284, 2009.
26
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Manual de procedimentos dos Juizados Especiais Cíveis. Brasília, 2009.
Disponível em: <http://www.tjsc.jus.br/institucional/especial/coordjuzesp/manualCivel.pdf>.Acesso em: 28 ago.
2020.
96

tempo de tramitação dos feitos. 27


Órgão integrante do Sistema dos Juizados Especiais por expressa previsão legal (art.
1º, parágrafo único da Lei nº 12.153/09), o Juizado Especial da Fazenda Pública destina-se
à conciliação e julgamento das causas cíveis de interesse fazendário de menor complexidade.
Representa uma grande conquista para a sociedade, propiciando agilidade nos julgamentos
e nas decisões judiciais para quem demanda em face da Fazenda Pública, apresentando-se,
nas palavras de Ricardo Cunha Chimenti, como um novo modelo de prestação do serviço
jurisdicional.28
Para melhor compreensão do tema proposto, insta traçar algumas considerações
acerca do conceito de Fazenda Pública e de sua atuação como integrante da relação jurídica
processual.
A expressão “Fazenda Pública” é usualmente identificada como área da
Administração Pública relacionada às finanças estatais, representando o aspecto financeiro
do ente público. Já no campo do direito processual, “Fazenda Pública” tem o significado de
Estado em juízo, ente público em juízo ou, também, da Pessoa Jurídica de Direto Público
em juízo. É a personificação do Estado, envolvendo as pessoas jurídicas de direito público.29
Destarte, aludir à Fazenda Pública é fazer referência à União, aos Estados, ao Distrito
Federal, aos Municípios e às suas respectivas autarquias e fundações públicas.30
Na lição de Geraldo Jobim, o Estado, como pessoa de direito público, exerce suas
demandas perante o Judiciário na defesa do interesse público, quer como sujeito ativo nas
relações processuais, quer como demandado. Assim, em sua complexa atuação, o Estado
inúmeras vezes demanda e é demandado, exigindo uma postura e representação eficaz,
organizada e estruturada através das procuraturas públicas.31
Conclui o mencionado autor, conceituando Fazenda Pública:32 “[...] é denominação que
se atribui ao ente público enquanto representante do patrimônio público, que deve resguardá-
lo e protegê-lo, visto que relevante ao interesse público, em especial, sua indisponibilidade”.

27
CHIMENTI, Ricardo Cunha. Juizados Especiais da Fazenda Pública: Lei n. 12.153/2009. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 28.
28
Ibidem, p. 29.
29
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Dialética, 2008, p. 15-17.
30
Ibidem.
31
JOBIM, Geraldo Cordeiro. As prerrogativas da fazenda pública em juízo e a efetividade processual:
ponderações sobre o tempo no processo. In: TELLINI, Denise Estrella (Org.). Tempestividade e Efetividade
processual: novos rumos do processo civil brasileiro: estudos em homenagem à professora Elaine Harzheim
Macedo. Caxias do Sul: Plenum, 2010, p. 230.
32
Ibidem, p. 231.
97

O direito processual pátrio contempla prerrogativas processuais à Fazenda Pública,


conferindo-lhe um tratamento diferenciado em razão do interesse público que defende, o
qual, ao final, é o da própria sociedade, existindo, destarte, uma supremacia do interesse
público sobre o privado.33
Uma das mais conhecidas prerrogativas processuais da Fazenda Pública é a do artigo
188 do Código de Processo Civil, que consistente na dilação do prazo processual para
contestar e recorrer:34 “Computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para
recorrer quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público”.
A doutrina é controversa acerca desse regime processual diferenciado para a Fazenda
Pública. Como asseveram os defensores desse sistema de prerrogativas, a exemplo de
Leonardo José Carneiro da Cunha, a Fazenda Pública é diferente do particular em juízo, em
razão da sua complexa estrutura administrativa (a qual, por muitas vezes, dificulta o acesso
aos fatos, elementos e dados da causa); do regime jurídico ao qual se submete, com estrita
vinculação ao princípio da legalidade, bem como pela sua vinculação aos demais princípios
constitucionais (moralidade, publicidade, eficiência etc), reduzindo, ainda mais, sua margem
de atuação. Ademais, há o volume processual, além da circunstância de que, diferente do
particular, a Fazenda Pública não pode escolher as causas em que atuará. Em se tratando a
defesa da Fazenda Pública de uma defesa do próprio patrimônio público, já que destinado à
satisfação das necessidades públicas, a manutenção das prerrogativas atuaria como forma
de se evitar a própria depreciação do patrimônio público. 35
Para o mencionado autor, tal entendimento seria condizente com o princípio da
proporcionalidade e da isonomia substancial, tratando desigualmente os que se encontram
em situações desiguais:36

[...] quando a Fazenda Pública está em juízo, ela está defendendo o erário. Na
realidade, aquele conjunto de receitas públicas que pode fazer face às despesas
não é de responsabilidade, na sua formação, do governante do momento. É toda
a sociedade que contribui para isso.
[...] Ora, no momento em que a Fazenda Pública é condenada, sofre um revés,
contesta uma ação ou recorre de uma decisão, o que se estará protegendo, em
última análise, é o erário. É exatamente essa massa de recurso que foi arrecadada
e que evidentemente supera, aí sim, o interesse particular. Na realidade, a
autoridade pública é mera administradora.

33
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Dialética, 2008, p. 35.
34
BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm>. Acesso em: 28 ago. 2020.
35
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Dialética, 2008, p. 35.
36
Ibidem.
98

Para a outra corrente, integrada, dentre outros autores, por Geraldo Cordeiro Jobim,
as prerrogativas da Fazenda Pública acarretam nítido prejuízo pela demora da prestação
jurisdicional, considerando o dever de igualdade e o princípio constitucional da razoável
duração do processo.37
No âmbito da jurisprudência, porém, o Supremo Tribunal Federal, desde há muito,
sedimentou o seu entendimento pela constitucionalidade das prerrogativas processuais da
Fazenda Pública:38

Não se equipara ao particular a Fazenda Pública. A Relevância do interesse


público, por estar preservado, separa-a, na sua natureza, do particular.
RECURSO. IGUALDADE PROCESSUAL. PRIVILÉGIO DA FAZENDA
PÚBLICA. ART. 74 DO DL 960/38. Não ofende o princípio da isonomia,
aplicável a igualdade das partes no processo, o conferimento de tratamento
especial à Fazenda Pública, o que se faz em atenção ao peso e superioridade dos
seus interesses em jogo. RE 83432, Relator Min. Leitão de Abreu, publicado no
DJU de 06.06.80.

A despeito disto, a matéria segue sendo de grande interesse dos processualistas, em


especial, diante dos princípios constitucionais da efetividade da prestação jurisdicional e da
razoável duração do processo, não sendo poucos os que, como já referido, ponderam que as
prerrogativas da Fazenda Pública vêm acarretar um prejuízo ao andamento processual e,
consequentemente, afetam a sua efetividade e celeridade.39
A controvérsia em questão não se mostra, todavia, relevante para os Juizados
Especiais fazendários, posto que estes não contemplam prazos diferenciados para as pessoas
jurídicas de direito público para a prática de qualquer ato processual - tudo em prol de uma
prestação célere e eficaz. O procedimento adotado por esses Juizados é simplificado,
buscando, sempre que possível, a conciliação e, desta forma, facilitando o desafogamento
judicial. Objetivam garantir a igualdade entre as partes, no intuito da rápida e eficaz solução
para o litígio.40
O Juizado Especial da Fazenda Pública, na condição de integrante do Sistema de

37
JOBIM, Geraldo Cordeiro. As prerrogativas da fazenda pública em juízo e a efetividade processual:
ponderações sobre o tempo no processo. In: TELLINI, Denise Estrella (Org.). Tempestividade e Efetividade
processual: novos rumos do processo civil brasileiro: estudos em homenagem à professora Elaine Harzheim
Macedo. Caxias do Sul: Plenum, 2010, p. 233-235.
38
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 83041. Relator: Min. Cordeiro Guerra. Diário de Justiça da União,
de 15 agosto de 1980.
39
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. São Paulo: Dialética, 2008, p. 36.
40
CHIMENTI, Ricardo Cunha. Juizados Especiais da Fazenda Pública: Lei n. 12.153/2009. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 38.
99

Juizados Especiais, como já referido, é informado pelos mesmos princípios da oralidade, da


simplicidade, da informalidade,41 da economia processual e da celeridade, previstos no art.
2º da Lei nº 9.099/95.
Os Juizados Especiais da Fazenda Pública, de acordo com o art. 2º, § 4º, da Lei nº
12.153/09, possuem competência absoluta nos foros onde forem instalados, incumbindo-lhe
processar, conciliar e julgar as causas cíveis de interesse dos Estados, do Distrito Federal,
dos Territórios e dos Municípios, até o valor de 60 (sessenta) salários mínimos.42
Excluem-se de sua competência as ações de mandado de segurança, de
desapropriação, de divisão e demarcação, populares, por improbidade administrativa,
execuções fiscais e as demandas sobre direitos ou interesses difusos e coletivos; também as
causas sobre bens imóveis dos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios, autarquias
e fundações públicas a eles vinculadas; as causas que tenham como objeto a impugnação da
pena de demissão imposta a servidores públicos civis ou sanções disciplinares aplicadas a
militares (conforme dispositivo no art. 2º, § 1º).43
Os Juizados Especiais da Fazenda Pública operam com juízes togados, juízes leigos
e conciliadores. A sua competência é absoluta no foro em que estiverem instalados, não
vigorando a liberdade de opção das partes entre esses Juizados e a justiça ordinária.44
Em relação às partes do processo, poderão figurar no polo ativo (autor) as pessoas
físicas (capazes e incapazes) e as jurídicas microempresas e empresas de pequeno porte.
Ressalva-se que, no caso de incapazes, é necessária a intervenção do Ministério Público. No
polo passivo (réu), poderão se encontrar os Estados, o Distrito Federal, os Territórios e os
Municípios, bem como as fundações, as autarquias e empresas públicas.45
Para dar mais celeridade aos procedimentos, bem como em respeito ao princípio da

41
Merece menção, em relação à informalidade, o quanto previsto no Enunciado 4 do FONAJEF: “Na
propositura de ações repetitivas ou de massa, sem advogado, não havendo viabilidade material de opção pela
auto-intimação eletrônica, a parte firmará compromisso de comparecimento, em prazo pré-determinado em
formulário próprio, para ciência dos atos processuais praticados”.
42
WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria geral do
processo e processo de conhecimento. 11. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.
784.
43
Ibidem.
44
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil - procedimentos especiais. 45. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2013, v. III, p. 469.
45
BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 12.153, de 22 de dezembro de 2009. Dispõe sobre os Juizados Especiais
da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L1
2153.htm>. Acesso em: 28 ago. 2020.
100

informalidade, é vedada a citação por edital. Consoante o artigo 6º da Lei nº 12.153/09, os


atos de comunicação processual obedecerão as regras do Código de Processo Civil, sendo
autorizada, também, a utilização de meios eletrônicos para as intimações. Não há previsão
de intimação pessoal para os representantes da Fazenda Pública.46
A citação deverá ser realizada com antecedência mínima de 30 dias da audiência de
conciliação. Importante salientar que o ente público fica obrigado a fornecer toda
documentação necessária para a causa até a audiência de conciliação, facilitando o
andamento do feito, tudo fulcrado no princípio de que o autor não tem o dever de mostrar os
documentos para o órgão público.47
No que concerne à dilação probatória, tem-se que a prova testemunhal poderá ser
coletada na primeira audiência de conciliação, e, entendendo-a suficiente, o juiz poderá
dispensar novos testemunhos, desde que não haja impugnação das partes (art. 16, § 2º, in
fine, da Lei nº 12.153/09). Com relação à prova pericial, dispõe que, em se fazendo
necessária, o perito nomeado deverá apresentar o laudo contábil até 5 dias antes das
audiência de conciliação ou de instrução e julgamento (art. 10 da Lei nº 12.153/09).48
Outrossim, as medidas cautelares e antecipatórias poderão ser deferidas de ofício ou
de requerimento das partes, com propósito de “evitar dano de difícil ou incerta reparação
(art. 3º)”.49
Chama a atenção o art. 8º da Lei nº 12.153/2009, que se refere aos representantes das
entidades públicas, os quais possuem poderes para conciliar, transigir ou desistir nos
processos da competência dos Juizados Especiais. É facultativa a presença do advogado para
causas de até 60 salários mínimos, assim facilitando o acesso dos economicamente
hipossuficientes.50

46
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Os Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei nº 12.153, de
22.12.2009). Palestra proferida em 19.02.2010, no III Encontro de Juízes Especiais do Estado de Minas Gerais,
e, em 26.02.2010, no I Seminário de Direito Processual Civil do Triângulo Mineiro: O Processo Civil no Século
XXI. Disponível em: <http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/pu
blicacoes/palestras/pal022010.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2020.
47
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo: teoria geral do processo.
4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 691-690.
48
CARNEIRO, Athos Gusmão, apud FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais da Fazenda Pública:
comentários à Lei 12.153, de 22 dezembro de 2009. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010, p. 168-172.
49
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil - procedimentos especiais. 45. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2013, v. III, p. 475.
50
BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 12.153, de 22 de dezembro de 2009. Dispõe sobre os Juizados
Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L1
101

No propósito de assegurar um processo mais simplificado e ágil, as sentenças


proferidas nos Juizados Especiais da Fazenda Pública não se submetem a reexame
necessário, além de consagrar a irrecorribilidade das decisões interlocutórias, salvo no caso
de medidas cautelares e antecipatórias.51
O recurso inominado contra a sentença segue o que dispõe a Lei nº 9.099/95, no
artigo 43, sendo dotado, de regra, somente de efeito devolutivo, podendo o Juiz dar-lhe efeito
suspensivo unicamente a fim de evitar dano irreparável para a parte.52 As decisões colegiadas
das Turmas Recursais podem ser objeto de irresignação mediante recurso extraordinário.
Outrossim, de salientar que nos procedimentos dos Juizados Especiais da Fazenda
Pública não há previsão de intervenção do Ministério Público, à exceção da hipótese de
incidente de uniformização perante as Turmas Recursais. Porém, havendo incapaz envolvido
na causa, a participação do órgão ministerial, na condição de custos legis, será obrigatória,
em obediência à regra geral do artigo 82, inciso I, do CPC.53
A fim de garantir agilidade e a efetividade dos Juizados fazendários, o cumprimento
das decisões será efetuado mediante ofício. Nesta lógica, a prestação de fazer, de não fazer
e de entrega de coisa deverão ser procedidas pela autoridade pública imediatamente após
trânsito em julgado da sentença ou do prazo para impugnação acordado entre as partes. Já as
obrigações pecuniárias, de pagar quantia certa, “serão objeto de ordem específica do juiz”.
Nada obstante, ainda encontramos presente o sistema de precatórios, indissociável quando
se fala no pagamento de créditos pela Fazenda Pública, o qual, por muitas vezes, ocasiona
dificuldades à efetividade jurisdicional, levando não raro as partes a renunciarem a um
determinado valor para receberem em um tempo menor por meio requisição de pequeno
valor – RPV.54

2153.htm>. Acesso em: 28 ago. 2020.


51
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Os Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei nº 12.153, de
22.12.2009). Palestra proferida em 19.02.2010, no III Encontro de Juízes Especiais do Estado de Minas Gerais,
e, em 26.02.2010, no I Seminário de Direito Processual Civil do Triângulo Mineiro: O Processo Civil no Século
XXI. Disponível em: <http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publ
icacoes/palestras/pal022010.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2020.
52
BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais
Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planal
to.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em: 29 ago. 2020.
53
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil - procedimentos especiais. v. III. 45.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 473.
54
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo: teoria geral do processo.
4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 698-699.
102

5. CONCILIAÇÃO E INTERESSE PÚBLICO

O artigo 98, inciso I, da Constituição Federal determinou a criação dos Juizados


Especiais como um mecanismo eficaz de prestação jurisdicional, com competência para a
conciliação, o julgamento e a execução das causas cíveis de menor complexidade, mediante
procedimento oral e sumaríssimo.55
A conciliação é vocacionada à pronta solução do litígio, tendo por finalidade facilitar
o acesso ao Poder Judiciário, envolvendo os descrentes, humildes e hipossuficientes, para os
quais o legislador tem procurado abrir novos caminhos para a Justiça, com objetivo de tornar
célere a entrega da tutela jurisdicional.56
Todavia, as pessoas jurídicas de direito público não podiam integrar a relação jurídica
processual que se instaurava perante esses Juizados Especiais (conforme expressa vedação
contida no artigo 8º da Lei nº 9.099/95), situação essa que somente veio a ser alterada pela
Emenda Constitucional nº 22/99, posteriormente regulamentada pela Lei Federal nº
10.259/01, a qual instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, 57
passando, assim, a admitir a Fazenda Pública Federal no procedimento por ela instituído.
Os entes de direito público estaduais e municipais, porém, permaneceram alijados
desse novo sistema. Somente com a Lei nº 12.153/09 é que se tornou admissível a
participação das pessoas jurídicas de direito público estaduais e municipais nos
procedimentos dos chamados Juizados Especiais da Fazenda Pública.58
Destarte, a Lei nº 12.153/09, segue esse verdadeiro sistema inaugurado pela Lei dos
Juizados Especiais de Pequenas Causas, instituindo os Juizados Fazendários como
instrumento de facilitação da solução de conflitos envolvendo a Fazenda Pública, em busca
da conciliação. A aplicabilidade desta nova sistemática mostra-se, a princípio, favorável à
sociedade, facilitando o acesso ao Judiciário, promovendo a entrega da prestação

55
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo: teoria geral do processo.
4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 690.
56
CERQUEIRA, Manfredi Mendes de. Conciliação e prestação jurisdicional do Estado. Doutrina-
Jurisprudência-Legislação-Ementário, Teresina: Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, v. 15, p. 13-17, 1994.
57
FERREIRA, Glayciele Rodrigues Gonçalves. O art. 61 da Lei dos Juizados Especiais Criminais estaduais
(Lei nº 9.099/95) com o advento da Lei dos Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal. Disponível em:
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ais-estaduais-lei-n-9-099-95-com-o-advento-da-lei-dos-juizados-especiais-criminais-na-justiça-fede
ral/2>. Acesso em: 18 de ago. 2020.
58
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil - procedimentos especiais. 45. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2013, v. IIII, p. 473.
103

jurisdicional de forma mais célere, visando a conciliação, nas demandas que envolvem os
entes públicos.59
Athos Gusmão Carneiro defende a conciliação nesses procedimentos especiais, a
qual afirma deve ser vista como “objeto primacial a ser perseguido”, para assim a busca em
prol da sua efetividade, facilitando o dia a dia forense nos Juizados Especiais da Fazenda
Pública.60
Todavia, a Administração Pública é regida pelo princípio da indisponibilidade do
interesse público, sendo a sua atividade voltada à consecução do bem comum. Conjugado a
esse, a Administração se vê inexoravelmente submetida ao princípio da legalidade, segundo
o qual ao administrador só é permitido fazer o que a lei determina, restringindo a atuação
estatal, para que não se desvirtue do único fim permitido – a finalidade pública –, pois,
somente assim, restará satisfeito o interesse público.61
Atualmente o direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do
indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum,
do bem-estar coletivo.62 Trata-se da dimensão pública dos interesses individuais, ou seja,
dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da sociedade.63
Destarte, para conciliar em juízo, mostra-se necessário que os entes públicos estabeleçam
os limites da conciliação e outorguem, por meio de lei específica, poderes especiais aos
advogados públicos para que possam conciliar, transigir ou desistir.64
A conciliação nos Juizados da Fazenda Pública obedece aos princípios
constitucionais norteadores da administração pública, além de atender à dignidade da pessoa
humana, ao realizar a entrega da prestação jurisdicional em prazo razoável.

59
FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais da Fazenda Pública: comentários à Lei 12.153, de 22
dezembro de 2009. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 21.
60
CARNEIRO, Athos Gusmão, apud FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais da Fazenda Pública:
comentários à Lei 12.153, de 22 dezembro de 2009. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010, p. 185.
61
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 92.
62
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 69.
63
MELLO, op. cit., p. 60.
64
SOARES, Milton Delgado. A nova lei dos Juizados Especiais da Fazenda Pública: Primeiras Considerações
e Proposta para Implementação. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/revist
aemerj_online/edicoes/revista51/Revista51_77.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2020.
104

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Jurisdição é poder-dever, função e atividade do Estado, exercida através de um poder


autônomo e independente, a quem incumbe a missão de atuar o direito para a composição
dos conflitos intersubjetivos, missão essa que realiza por meio do processo, intentando a
pacificação social.
A chamada “explosão de litigiosidade”, decorrente do aumento da população e da
sua conscientização acerca da proteção jurídica conferida pela Constituição Federal de 1988,
contribuiu decisivamente para o aumento do número de demandas judiciais.
Diante desse grande volume de processos, aliado, dentre outros fatores, a um diploma
processual carecedor de modernização, o acúmulo e a lentidão passaram a fazer parte da
rotina dos foros, impondo aos jurisdicionados uma grande demora no alcance do bem da
vida pleiteado em juízo.
Em vista desta realidade, e da perspectiva de seu agravamento, mostra-se incessante
a busca de soluções mais favoráveis à população, oferecendo uma tutela jurisdicional capaz
de satisfazer suas pretensões de forma mais ágil e célere.
Nesse contexto, o presente trabalho analisou a eficácia dos Juizados Especiais na
busca de uma prestação jurisdicional eficiente e célere, com maior facilidade de acesso aos
cidadãos, para a resolução de conflitos de menor complexidade entabulados perante a
Fazenda Pública.
Os chamados Juizados Especiais apresentam um procedimento simplificado e
desburocratizado, calcado na oralidade, na simplicidade, economicidade e na celeridade,
visando fornecer ao cidadão um mecanismo rápido para a solução de seus conflitos de
interesses, primando pela conciliação e transação das causas cíveis de menor complexidade
e, deste modo, respeitando o prazo razoável de tramitação das demandas e concretizando o
preceito constitucional do amplo acesso à justiça.
Com efeito, as garantias constitucionais somente serão efetivadas através da
tramitação processual célere que culmine em uma prestação judicial justa, eficiente e
alcançada em prazo razoável.

Inseridos no Sistema dos Juizados Especiais, os Juizados Especiais Fazendários


buscam assegurar a entrega da tutela jurisdicional de maneira rápida e verdadeiramente
efetiva nas causas de menor complexidade envolvendo entes públicos.
105

Nesse contexto, a prática da conciliação nos Juizados Especiais da Fazenda Pública


se mostra consentânea com os vetores da moralidade, da eficiência e da transparência, além
de promover a dignidade humana. Os Juizados Especiais caracterizam uma via de acesso à
justiça de forma efetiva e célere, comprovando a eficácia da conciliação como meio
alternativo de solução de conflitos. Uma alternativa para combater essa indesejada realidade,
numa tentativa de desburocratização dos atos processuais, dotando-os de maior agilidade e,
assim, facilitando a entrega da prestação jurisdicional de forma mais eficiente à população.
Em virtude de sua menor complexidade e maior celeridade, os Juizados Especiais
vem promovendo transformações nas resoluções dos conflitos. Intentam aliviar a Justiça
Comum, afastando e minimizando sua lentidão na entrega da prestação jurisdicional.
Os Juizados Especiais Fazendários assim promovem a criação de uma nova
mentalidade para o processo e para a conciliação, em prol da pacificação social, garantindo
a ordem pública e o bem-estar coletivo e viabilizando a solução de litígios por meios
informais, simplificados e céleres.
Não se pretende com isso afirmar que todas as mazelas do Judiciário se encontram
solucionadas. O Sistema dos Juizados Especiais, dentre os quais se inserem os Juizados
Especiais Fazendários, representam não mais do que um pequenino passo em direção da
justiça que desejamos.
Mudanças mais profundas e significativas se fazem necessárias. Mas, como refere o
velho provérbio oriental, “uma viagem de mil léguas começa com o primeiro passo”. Que
possamos persistir no caminho e, assim, concretizar as garantias estampadas na Carta
constitucional.

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109

A APLICABILIDADE DA SOCIOLOGIA DA DOMINAÇÃO


WEBERIANA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA:
ANÁLISE DOS MODELOS PATRIMONIALISTA E BUROCRÁTICO

Isabela Bohnen1
Ariane Faverzani da Luz2

Resumo: O presente estudo toma como ponto de partida a compreensão de Max Weber de
sociedade formulada a partir de uma realidade social alinhada com os conceitos tipo ideal.
Foi nesse contexto de “realidade ideal” que o autor se dedicou em repensar o poder sob o
ponto de vista da dominação, já que a última eleva o poder à legitimidade. Isso porque,
enquanto o poder encontra-se socialmente amorfo, a dominação consegue obediência dos
subordinados de forma legítima, já que os indivíduos obedecem porque querem. Diante
dessa vontade em obedecer à ordem dominante, atento aos fatores que a determinavam,
Weber desenvolveu uma sociologia da dominação, dividindo-a em três tipos ideais. Com
base nesses fundamentos, utilizando-se do escopo teórico-bibliográfico e do método
hipotético-dedutivo, o objetivo da pesquisa se justifica no questionamento sobre a
aplicabilidade dos tipos de dominação weberiano no desenvolvimento da administração
pública brasileira, com ênfase nas fases de gestão patrimonialista e burocrática.

Palavras-chave: Administração Pública. Dominação. Max Weber. Sociedade.

INTRODUÇÃO

Dado que a sociedade é o plano de fundo para a existência dos indivíduos e das
relações que entre os quais se seguem, o entendimento sobre as bases da sociedade e o seu
funcionamento sempre foram ideais perseguidos. Nesse contexto, a fim de propiciar uma
análise adequada de pontos fundamentais da administração pública brasileira, tomou-se
como pilar o estudo desenvolvido por um dos criadores da sociologia, o sociólogo Max
Weber, cujas contribuições são irrevogáveis.
Nessa linha, o presente trabalho pautou-se, como ponto de partida, no entendimento
de preceitos fundamentais da sociedade delineados por Max Weber, o qual, adianta-se,

1
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo.
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo (2019). Advogada inscrita na
OAB/RS sob o nº 119.128. E-mail 142261@upf.br.
2
Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo (UPF) com auxílio CAPES. Especialista em Direito
Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP-RS). Especialista
em Ciências Criminais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP-RS).
Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Meridional (IMED). Graduada em Direito pela
Faculdade Meridional (IMED). Advogada inscrita na OAB/RS sob o nº 97.174. E-mail:
arianefaverzani@outlook.com.
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lançou mão da criação de uma realidade social. Criação, sim, já que não se trata de observar
a própria realidade, mas uma realidade desenvolvida a partir de tipos ideais.
No que diz respeito à formulação dos tipos ideais, Weber não se ateve em estabelecê-
los apenas quanto à realidade social, transpondo-os para o campo das ações sociais e relações
sociais. Assim, uma vez estabelecidos diversos tipos ideais em diferentes nichos, Weber
conseguiu avançar no estudo para pensar o poder, momento em que não apenas considerou
a dominação como forma legítima de exercício do poder, como estabeleceu três tipos ideais
de dominação.
Assim, utilizando-se do escopo teórico-bibliográfico e do método hipotético-
dedutivo, em um primeiro momento, o trabalho centra-se em realizar um aprofundamento
na sociologia da dominação Weberiana, analisando os modelos de dominação, os quais
divididos em três critérios - racional, tradicional e carismático. Em seguida, diante dos
fundamentos de dominação em Weber, busca identificar a aplicabilidade da teoria
Weberiana na conformação da administração pública brasileira, valendo-se dos modelos de
gestão patrimonialista e burocrático para proceder a análise. Por fim, salienta-se que a
pesquisa objetiva construir um pensamento teoricamente crítico, o que se alcançou a partir
do fomento das reflexões acerca do poder na contemporaneidade.

1. A SOCIOLOGIA WEBERIANA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Antes de qualquer adentramento no estudo desenvolvido por Max Weber, preocupa-


se em tecer breves comentários acerca do autor. O alemão Max Weber construiu uma
brilhante trajetória que lhe rendeu a consagração como sendo um dos fundadores da
sociologia, especialmente a moderna, tamanha a sua preocupação em compreender a
sociedade. Dessa forma, “A ética protestante e o espírito do capitalismo” representa a maior
obra escrita pelo autor, haja vista o vultuoso impacto gerado na sociologia mundial, tendo
como a questão central as elações entre religião e capitalismo.
Apesar da matriz sociológica da qual Weber lançou mão para desenvolver os seus
estudos, as contribuições do sociólogo alemão vão muito além da sociologia, a julgar pela
influência do seu estudo nas mais diversas áreas, tais como, na filosofia, no direito, na
administração, na ciência política e na economia. Nesse sentido, destaca-se a atenção do
111

trabalho em tela voltado para o estudo de Weber aplicado à administração pública,


concentrada precipuamente na obra “Economia e sociedade”.
Na referida obra, Weber explora os conceitos sociológicos fundamentais, como ação
e relação social. Desta maneira, para Weber3, a sociologia pode ser concebida como sendo
“uma ciência que pretende compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-
la causalmente em seu curso e em seus efeitos”.
Infere-se, então, que a ação social atua como objeto da sociologia, devendo ser, para
tanto, estudada como ponto de partida para qualquer compreensão sobre o funcionamento
da sociedade. A relação social, por outro lado, corresponde à “conduta de múltiplos agentes
que se orientam reciprocamente em conformidade com um conteúdo específico do próprio
sentido das suas ações”4.
A par desses conceitos, Tomazzete5 assevera que “a definição weberiana de ação
social, dá o primeiro passo para colocar sua principal ênfase sociológica na conduta que o
ator subjetivamente orienta para o comportamento de outrem”. Isto é, a vida social não é
formada, senão pelo resultado das interações entre os indivíduos em suas ações e relações
sociais.
Uma vez identificada uma relação social, o próximo passo será a orientação dessa
relação por certas máximas, as quais garantirão a ordem. Weber6 aponta para duas formas
passíveis para a garantia da ordem social: a) de maneira puramente íntima: expressa por três
situações distintas, quais sejam, de maneira puramente afetiva, racional de acordo com
valores e religiosa7; e, b) também ou somente pela expectativa de determinadas
consequências externas, ou seja, por uma situação de interesses, porém por expectativas de
determinado gênero.
Ainda, uma ordem pode ser chamada de convenção ou de direito. A diferença entre
os dois conceitos concentra-se na reprovação que cada um possui diante da desobediência a

3
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Régis Barbosa
e Karen Elsabe Barbosa. 4. ed. v. 1. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 3.
4
AMORIM, Aluízio Batista de. Elementos de Sociologia do Direito em Max Weber. Florianópolis: Insular,
2001. p. 85-86.
5
TOMAZZETE, Marlon. A Contribuição Metodológica de Max Weber para a Pesquisa em Ciências Sociais.
Revista Universitas Jus, Brasília, v. 17, p. 1-30, jul./dez. 2008. p.12.
6
WEBER, 1998, p. 15.
7
1) de forma puramente afetiva: por meio de uma entrega sentimental; 2) racional de acordo com valores: pela
crença em sua validez absoluta, enquanto expressão de valores supremos geradores de deveres (morais,
estéticos, entre outros)3) religiosa: pela crença de que a sua observância depende da existência de um bem de
salvação. WEBER, 1998, p. 12.
112

uma ordem. Isso porque, enquanto na convenção, havendo uma conduta discordante por um
indivíduo dentro de um determinado círculo de homens, o resultado ao infrator será uma
reprovação geral e praticamente sensível, no direito, a estrutura detém maior rigidez. Desse
modo, a ordem garantida por um direito possui um aparato com “possibilidade de coação,
física ou psíquica exercida por um quadro de indivíduos instituídos com a missão de obrigar
a observância dessa ordem ou de castigar a sua transgressão”8.
Diante dessas conceituações, Weber9 afina a compreensão de ordem social
privilegiando a concepção do direito, pois entende que a ordem considerada mais atual pode
ser legitimada por meio da legalidade, já que ela “se caracteriza na obediência a preceitos
jurídicos positivos estatuídos segundo o procedimento usual e formalmente correto”.
Salienta-se que todos esses conceitos trazidos por Weber formam o que o autor
procura: estabelecer um “tipo ideal” de realidade. Sabe-se que é por meio dos conceitos que
se permite a compreensão de uma realidade social. No entanto, Weber não busca a
compreensão da própria realidade, mas de uma realidade ideal, o que só será possível, por
meio de conceitos ideais. Nas palavras de Karl Jaspers10, os conceitos chamados de tipos
ideais “são instrumentos para se chegar à realidade, e não à própria realidade”.
Dessa forma, a realidade social, que é o plano de fundo para qualquer compreensão
acerca da sociedade, só pode ser interpretada por meio de conceitos - os quais não figuram
como cópias da realidade, mas são eles que permitem ordenar a realidade do pensamento de
modo válido. Em outras palavras, servem como um recurso que permite a análise dessa
realidade11 12.
Segundo observa Tomazzete13, “na construção do tipo ideal, são acentuados certos
aspectos do fenômeno a ser observado, não coincidindo necessariamente com a realidade

8
WEBER, Max, 1998, p. 20.
9
WEBER, Max, 1998, p. 100.
10
JASPERS, Karl. Método e Visão do Mundo em Weber. In: COHN, Gabriel (Org.). Sociologia: para ler os
clássicos. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. p. 105-124. p. 115.
11
TOMAZZETE, 2008, p. 16.
12
De modo geral, os tipos ideais possuem três características básicas que definem suas possibilidades e limites:
(1) racionalidade (ou estrutura lógica) - quando são avaliados os meios e as consequências previsíveis,
examinadas as condições que podem afetar o plano construído abstratamente sob a forma de tipo ideal da ação
futura; (2) unilateralidade - permite dar rigor ao tipo ideal, por ser a condição ao mesmo tempo de amplificação
dos traços característicos e da elaboração do quadro de pensamentos em conjunto coerente e não contraditório;
(3) caráter utópico - o tipo ideal não é, e nem pretende ser, reflexo ou repetição da realidade. DE MORAES,
Lúcio Flávio Renault; DEL MAESTRO FILHO, Antonio; DIAS, Devanir Vieira. O Paradigma Weberiano da
Ação Social: um ensaio sobre a compreensão do sentido, a criação de tipos ideais e suas aplicações na teoria
organizacional. RAC, v. 7, n. 2, p. 57-71, abr./jun. 2003. p. 64.
13
TOMAZZETE, 2008, p. 18.
113

concreta”, já que trata de um tipo puro que empiricamente não existe. Assim, “o tipo ideal é
na verdade um recurso heurístico utópico através do qual o cientista ordena uma série de
aspectos recorrentes da realidade”14.
Indo além, para que os tipos ideais sejam definidos, é imprescindível que sejam
identificados como objetiva e subjetivamente possíveis. Assim, “é preciso ver os possíveis
para captar o real”15, mas não somente, já que se deve construir “algo que possivelmente
ocorreria diante de motivações individuais. Algo que jamais decorreria de motivos
individuais não pode ser entendido como um tipo ideal”16.
Destaca-se, portanto, a relevância do estabelecimento de um tipo ideal na orientação
do cientista social, uma vez que atua como baliza17, guiando a pesquisa do investigador.
Dessa forma, trata-se de uma metodologia pertinente para o estudo da realidade social, a
qual, reitera-se, Weber lançou mão ao explorar os conceitos imanentes da sociedade.
Esse delineamento das premissas utilizadas por Weber na construção de seu estudo
mostra-se inevitável antes de se inclinar ao aprofundamento em pontos específicos de sua
teoria. Isso porque, entende-se que a compreensão das especificidades não pode ser
alcançada de forma plena senão pela anterior gnose do todo.
Uma vez entendidas as bases teóricas vislumbradas por Weber, parte-se para o
aprofundamento do estudo no campo das ações sociais. Isso porque, é em sede de ação social
que a dominação emerge, constituindo um dos elementos mais importantes da ação social18.

2. OS TIPOS DE DOMINAÇÃO DE MAX WEBER

Como visto, as ações sociais funcionam como plano de fundo para o surgimento de
relações de dominação. Nesse sentido, Weber19 ensina que:
Todas as áreas da ação social, sem exceção, mostram-se profundamente
influenciadas por complexos de dominação. Num número extraordinariamente
grande de casos, a dominação e a forma como ela é exercida são o que faz nascer,
de uma ação social amorfa, uma relação associativa racional, e noutros casos, em
que não ocorre isto, são, não obstante, a estrutura da dominação e seu
desenvolvimento que moldam a ação social e, sobretudo, constituem o primeiro
impulso, a determinar, inequivocamente, sua orientação para um "objetivo".

14
AMORIM, 2001, p. 75.
15
JASPERS, 2005, p. 113.
16
TOMAZZETE, 2008, p. 18.
17
DE MORAES; DEL MAESTRO FILHO; DIAS, 2003, p. 64.
18
WEBER, 1998, p. 187.
19
WEBER, 1998, p. 186.
114

Apesar de evidente o papel da dominação como determinante para a organização


social, Weber assume que nem toda a ação social apresenta uma estrutura que implica
dominação, mas que, apesar disso, mesmo as sociedades que resistem à adoção da
dominação em uma primeira vista acabam reconhecendo o resultado considerável dela.
Assim, a dominação apresentou papel decisivo, tanto nas formações sociais economicamente
mais relevantes, não apenas do passado, mas também do presente, como o regime feudal e a
grande empresa capitalista20.
Recorrentemente considerada como sinônimo de poder, a dominação em Weber
consiste de fato no exercício do poder, mas de forma legitimada. Nessa mesma linha, Hannah
Arendt21 corrobora a noção de que o poder consiste em um meio para o exercício da
dominação ao mencionar que “poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples
palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem”.
Nessa mesma linha, ao se observar os ensinamentos de Foucault, que em certo
momento de sua pesquisa dedicou-se aos estudos das relações de poder, também se verifica
uma distinção entre relações de poder e dominação. Para o autor, “a dominação é uma
estrutura global de poder cujas ramificações e consequências, podemos, às vezes, encontrar
até na trama mais tênue da sociedade”22.
No entanto, essa diferenciação não se mostra de tamanha relevância para o deslinde
da sua pesquisa, tal qual a abordagem feita por Weber, que, seguramente opta pelo termo
dominação por entender que o conceito de poder se encontra socialmente amorfo.
Assim sendo, Weber23 conceitua o poder como sendo “a probabilidade de impor a
própria vontade dentro de uma relação social, até contra qualquer tipo de resistência, seja
qual for essa probabilidade, mesmo que a pessoa não queira”.
De outra banda, a dominação consiste na probabilidade de se encontrar obediência
para ordens específicas (ou todas) dentro de um determinado grupo de pessoas24. Essa
obediência é conquistada pois os subordinados encaram a ordem como legítima, passando a

20
WEBER, 1998, p. 186.
21
ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 183.
22
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault,
uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995. p. 231-249. p. 249.
23
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva Brasília. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1991. p. 33.
24
WEBER, 1998, p. 186.
115

ser influenciados pelas ordens emanadas pelo dominador. Dessa forma, muito mais que o
exercício do poder, o detentor da dominação, constitui um verdadeiro líder.
Resta evidente que poder está associado à imposição de vontade de um indivíduo
sobre outro. Com isso, haja vista a natureza de imposição, inexistindo um certo mínimo de
vontade, ou interesse do subordinado em obedecer, o exercício do poder tende a ser rápido,
difícil de ser mantido por muito tempo, já que enfrenta forte resistência, sendo, portanto,
menos eficaz que a dominação.
Quanto à dominação, conceituá-la pode significar uma tarefa complexa, tendo em
vista a existência de numerosos tipos de dominação. Nesse sentido, Weber25 menciona que
existem dois tipos de dominação radicalmente opostos, “por um lado, a dominação em
virtude de uma constelação de interesses (especialmente em virtude de uma situação de
monopólio), e, por outro, a dominação em virtude de autoridade (poder de mando e dever de
obediência)”.
Assim, enquanto o tipo mais puro da primeira dominação é a monopolizadora de
mercado, o da última é o poder do chefe de família, da autoridade administrativa ou do
príncipe. Nas palavras de Weber26:

A primeira, em seu tipo puro, fundamenta-se, exclusivamente, nas influências que


pode fazer valer, em virtude de uma propriedade garantida de alguma forma (ou
de uma habilidade disponível no mercado), e que exerce sobre a ação formalmente
"livre" e aparentemente voltada para interesses próprios dos dominados, enquanto
a última se baseia num dever de obediência, sem mais, que é considerado sem
atenção a quaisquer motivos e interesses.

Com base nesses fundamentos e apesar de reconhecer a possibilidade de transição de


uma dominação em virtude do monopólio em uma dominação decorrente da autoridade e
vice e versa, Weber27 adota para o estudo dos tipos de dominação o conceito idêntico ao
poder de mando autoritário, o que restou corroborado pelo seguinte excerto:

[...] "dominação" compreenderemos, então, aqui, uma situação de fato, em que


uma vontade manifesta ("mandado") do "dominador" ou dos "dominadores" quer
influenciar as ações de outras pessoas (do "dominado" ou dos "dominados"), e de
fato as influência de tal modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se
realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a
máxima de suas ações (“obediência").

25
WEBER, 1998, p. 188.
26
WEBER, 1998, p. 189.
27
WEBER, 1998, p. 191.
116

Nesse contexto, Weber concebe o termo dominação como legítimo, pois o dominado
aceita a dominação, independentemente de quais sejam os motivos, legitimando, assim, o
domínio exercido pelo dominador.
Partindo-se para a análise dos tipos puros de dominação legítima de Weber, sabe-se
que se consubstanciam, primordialmente em três: a dominação de caráter racional, de caráter
tradicional e a de caráter carismático.
A dominação do tipo racional “baseia-se na legitimidade das ordens estatuídas e do
direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a
dominação”28 (autoridade legal). Nesse sentido, a forma mais pura de expressão dessa
dominação é a burocracia, elemento característico do estado moderno, entendimento
consolidado por Weber29 ao dispor que “a administração burocrática constitui a célula
germinativa do moderno Estado ocidental”.
Isso porque é por meio da estrutura hierarquizada30 da burocracia que se alcança,
tecnicamente, o máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina,
rigor e confiabilidade.31 A par disso, extrai-se que o conhecimento constitui o caráter
fundamentalmente racional da administração burocrática, já que, além da posição de
formidável poder devido ao conhecimento profissional, “a burocracia tem a tendência de
fortalecê-la ainda mais pelo saber prático do serviço: o conhecimento de fatos adquirido na
execução das tarefas, ou obtido via documentação”32.
Quanto ao quadro administrativo, a dominação racional é composta por funcionários
individuais, os quais possuem como principais características, entre outras, o fato de serem
pessoalmente livres, já que só obedecem as regras objetivas estipuladas para o cargo,

28
WEBER, 1998, p. 141.
29
WEBER, 1998, p. 144.
30
Uma estrutura hierarquizada corresponde a diferentes níveis de hierarquia, isto é, há uma hierarquia em cima
de outra hierarquia de pessoas que mandam. Por exemplo, ao se fazer o passaporte, diante de uma estrutura
hierarquizada, sabe-se que a competência é da esfera federal para conceder autorização para que o indivíduo
saia da país. Trata-se, portanto, de uma estrutura de competências preestabelecida e hierarquizada.
31
A dominação puramente burocrática, portanto, a administração burocráticamonocrática mediante
documentação, considerada do ponto de vista formal, é, segundo toda a experiência, a forma mais racional de
exercício de dominação, porque nela se alcança tecnicamente o máximo de confiabilidade em virtude da
precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade – isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto
para os demais interessados – intensidade e extensabilidade dos serviços, e aplicabilidade formalmente
universal a todas as espécies de tarefas. O desenvolvimento de formas de associação “modernas” em todas as
áreas (Estado, Igreja, exército, partido, empresa econômica, associação de interessados, união, fundação e o
que mais seja) é pura e simplesmente o mesmo que o desenvolvimento e crescimento contínuos da
administração burocrático: o desenvolvimento desta constitui, por exemplo, a célula germinativa do moderno
Estado Ocidental. WEBER, 1999, p. 145-146.
32
WEBER, 1999, p. 147.
117

possuírem competências funcionais fixas, bem como qualificação racional, atestada por uma
prova de concurso. Além disso, são remunerados com salário fixo e em dinheiro, sendo esse
salário escalonado de acordo com a hierarquia que ocupa, além de terem programas de
aposentadoria33.
Percebe-se, portanto, que os funcionários de um sistema de dominação racional estão
submetidos a uma estrutura rigorosa e homogênea de disciplina de controle e de serviço,
pertencendo a um corpo de funcionários qualificados segundo critérios racionais legais. Em
função disso, a maioria exerce o cargo como profissão única ou principal.
Haja vista a dominação amparada por leis, estatutos e regras, os quais estatuídos por
um órgão impessoal, infere-se a obediência em função da ordem, não pelas características
pessoais do líder. Isso faz com que esse tipo de dominação seja o único dos três que não é
personalizada.
Diferentemente da dominação burocrática, a dominação de caráter tradicional tem a
sua legitimidade repousada na “crença cotidiana na santidade das tradições vigentes desde
sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições, representam a
autoridade”34 (autoridade tradicional).
Dessa forma, a máxima “porque sempre foi assim” é utilizada para justificar o padrão
de fidelidade dos servidores pessoais (companheiros tradicionais, súditos) ao senhor pessoal.
Nesse sentido, as monarquias são o melhor exemplo desse tipo de dominação, já que os
dominados sequer enxergam outra possibilidade senão a de obedecer àquele sistema
monárquico já existente. Ou seja, não há questionamento quanto à dominação sofrida, fator
que reforça a noção de que a legitimidade se dá pelo hábito e pelo costume em se adotar e
propagar crenças geracionais. A exemplo disso, tem-se a transição do patronado de rei pra
príncipe e em tribos também.
Nessa linha, o senhor então domina não porque houve um processo democrático de
votação, ou legisladores o indicaram, nem porque ele é um ditador que tomou o poder a
força, mas por uma legitimidade advinda da tradição35. Quanto a isso, Weber menciona que

33
WEBER, 1999, p. 144.
34
WEBER, 1999, p. 141.
35
Destaca-se que, como ensina Weber, as ordens são legitimadas de dois modos: a) em parte em virtude da
tradição que determina inequivocamente o conteúdo das ordens, e das crença no sentido e alcance destas, cujo
abalo por transgressão dos limites tradicionais poderia pôr em perigo a posição tradicional do próprio senhor e
b) em parte em virtude do livre arbítrio do senhor, ao qual a tradição deixa espaço correspondente. Esse arbítrio
tradicional baseia-se primordialmente na ausência de limitações que por princípio caracteriza a obediência em
118

o exercício dessa dominação pode ser feito tanto de forma individual quanto conjuntamente,
por meio de um quadro burocratizado, similar à burocratização existente na dominação legal.
Nessa esteira, quando organizada segundo um quadro administrativo, a estrutura não
se dará de forma racional, mas por razões históricas, já na dominação tradicional “não se
obedece a estatutos, mas à pessoa indicada pela tradição ou pelo senhor tradicionalmente
determinado”36. Isto é, os servidores estão colocados estruturalmente haja vista a sua
condição de servo, parente, cliente, colono, escravo, libertado pessoa tradicionalmente
ligadas ao senhor por vínculos de piedade, membros do clã, entre outros vínculos possíveis.
Tais afinidades podem ser observadas tanto nas relações de suserania e vassalagem, quanto
no feudalismo da idade média37.
Portanto, o dominador não é um superior, mas um senhor pessoal e seu quadro
administrativo não se compõe primariamente de funcionários, mas de servidores pessoais.
Em função disso, os dominados não são membros da associação, mas companheiros
tradicionais ou súditos.
Por fim, o terceiro tipo de dominação é a dominação de caráter carismático. Assim
como nos outros tipos de dominação, o termo adotado para descrevê-los é autoexplicativo.
No entanto, Weber assevera que não se pode confundir carisma com simpatia. Isto é, o
carisma, define Weber38, é uma “qualidade pessoal considerada extracotidiana e em virtude
da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos, ou
então se a toma como enviada por Deus, como exemplar, e, portanto, como líder”.
Feitas as considerações, Weber39 conceitua esse tipo de dominação como a
“veneração extracotidiana da santidade, do poder heroico ou do caráter exemplar de uma
pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas” (autoridade carismática).
Assim, o carisma representa uma qualidade do líder que, por meio dele, mantém um
grupo de dominados. Os dominados, aqui melhor denominados de “adeptos”, por sua vez,
legitimam a dominação exercida pelo líder carismático motivados pelo sentimento de

virtude do dever de piedade. Existe, portanto, o duplo reino: da ação do senhor materialmente vinculada à
tradição e da ação do senhor materialmente independente da tradição.” WEBER, 1999, p. 148.
36
WEBER, 1999, p. 148.
37
Weber acrescenta que os tipos primários da dominação tradicional são os casos em que falta um quadro
administrativo pessoal do senhor: gerontocracia e o patriarcalismo primário. Gerontocracia: se houver uma
dominação no grupo, essa será liderada pelo mais velho, pois é o que mais tem conhecimento. Patriarcalismo:
dentro de uma associação doméstica, a dominação é exercida por um indivíduo determinado, por regras de
sucessão: homem. WEBER, 1999, p. 153.
38
WEBER, 1999, p. 159.
39
WEBER, 1998, p. 141.
119

reconhecimento e até mesmo de idolatria. Isso se deve ao fato de os líderes carismáticos, no


sentido genuíno, serem considerados enviados de Deus, e dada essa graça divina, são vistos
como detentores de poderes extraordinários, como se fossem verdadeiros super homens.
Cumpre destacar que os maiores líderes da terra foram guias carismáticos, como
Jesus Cristo, Gandhi, Nelson Mandela Buda, e até mesmo Adolf Hittler, o qual conseguiu
através de seu carisma, mobilizar todos os alemães em prol da “raça pura”, exterminando
um grande número de judeus.
A dominação carismática, portanto, subsiste com base nas características pessoais do
líder, que detém como atributo principal o carisma e por conseguinte a boa retórica e o poder
de influenciar as massas. Weber, destaca, porém, que a dominação carismática só é mantida
e efetiva quando continuamente reafirmada pelo líder, que o faz por meio de suas ações,
consideradas como vindas de Deus, de sua magia e, acima de tudo o grupo deve considera-
las benéficas, sob pena de a autoridade carisma desvanecer40.
Com base nos principais conceitos trazidos por Weber no que tange à sociologia da
dominação, parte-se no capítulo adiante para a análise da aplicabilidade dessa teoria na
configuração da administração brasileira, especialmente quanto aos modelos patrimonialista
e burocrático de gestão.

3. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA: MODELOS PATRIMONIALISTA


E BUROCRÁTICO

O vínculo entre a dominação e a administração foi identificado por Weber41 ao


afirmar que “toda dominação se manifesta e funciona como administração”. Isso porque
“toda administração precisa, de alguma forma, da dominação, pois, para dirigi-la, é mister
que certos poderes de mando se encontrem nas mãos de alguém”42.
Inspirada nos tipos de dominação legítima propostos por Weber, a administração
pública brasileira foi marcada por três principais modelos de gestão. Segundo consta em
importante documento elaborado pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma
do Estado no ano de 1995, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE, a
administração pública brasileira se desenvolveu em três fases:

40
WEBER, 1999, p. 159.
41
WEBER, 1998, p. 193.
42
WEBER, 1998, p.193.
120

[…] partindo-se de uma perspectiva histórica verificamos que a administração


pública – cujos princípios e características não devem ser confundidos com os da
administração das empresas privadas – evoluiu através de três modelos básicos: a
administração pública patrimonialista, a burocrática e a gerencial 43.

Tendo em vista o intento do presente trabalho em demonstrar a aplicabilidade da


sociologia da dominação weberiana na conformação da administração pública brasileira, por
uma questão de logística, optou-se por balizar a referida análise nos primeiros dois modelos
de gestão: a administração patrimonialista e burocrática, já que, o adentramento na
administração gerencial renderia assunto para um trabalho inteiro.
Adiante, sabe-se que a primeira forma de administração presente brasileira foi a
patrimonialista. Esse modelo foi introduzido no Brasil quando o país era colônia, pela coroa
portuguesa, persistindo até a década de 1930. Baseado nos modelos de estados absolutistas,
essa forma de administração foi “fortemente firmada nos séculos XVII e XVIII, quando o
patrimônio do Monarca Absoluto se misturava com o patrimônio público, formando uma
linha tênue na distinção entre público e privado”44.
É evidente, portanto, a confusão entre a res pública e a res privada nas mãos do
governante (monarca) é a principal característica desse modelo de administração. Em função
disso, a preocupação maior do governante se situava em satisfazer os seus interesses
pessoais, bem como os de seus favorecidos, o que gerava um cenário administrativo
nepotista, corrupto e clientelista.
A partir dessa dificuldade em diferenciar a esfera pública da esfera privada, já que
ambas se concentravam na mão de uma única pessoa, o governante tratava dos assuntos do
Estado como se fosse uma extensão da sua vida pessoal, tendo como fio condutor de sua
administração, os seus próprios interesses. Corroborando esse cenário, historicamente, o Rei
Luiz XIV se tornou figura emblemática ao proferir a máxima “L’etat c’est moi”, colocando-
se no centro do poder, não é à toa a auto intitulação que fez como sendo, nada menos do que
o Rei Sol45.

43
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado. Plano
Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília, nov. 1995. p. 14-15. Disponível em:
http://www.anped11.uerj.br/planodiretor1995.pdf. Acesso em: 27 mar. 2020.
44
CAMPELO, Graham Stephan Bentzen. Administração Pública no Brasil: ciclos entre patrimonialismo,
burocracia e gerencialismo, uma simbiose de modelos. Ci. & Tróp., Recife, v. 34, n. 2, p. 297-324, 2010. p.
299.
45
CAMPELO, 2010, p. 306.
121

Tais conceitos puderam ser observados na própria Constituição Imperial de 1824,


cujo artigo 99 retrata a ideia de patrimonialismo: “a pessoa do Imperador é inviolável e
sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma”46. Tal disposição evidencia a teoria
da irresponsabilidade absoluta, chancelado pelo provérbio inglês, “the king can no do
wrong”, ou seja, o rei nunca erra47.
Com base nesses fundamentos, esse tipo de administração, na qual o rei figura como
um verdadeiro Deus na terra, pode se inferir a correspondência com o segundo tipo de
dominação proposto por Weber, qual seja, a dominação de caráter tradicional. Ora, pois, não
restam dúvidas de que a base da dominação exercida pela administração patrimonialista é a
tradição, já que, retomando os ensinamentos de Weber, a dominação de caráter tradicional
tem a sua legitimidade repousada na “crença cotidiana na santidade das tradições vigentes
desde sempre e na legitimidade daqueles que, em virtude dessas tradições, representam a
autoridade”48, em outras palavras, “porque sempre foi assim”.
Adiante, tendo em vista a predominância de uma administração pública
patrimonialista e clientelista, até o Governo de Getúlio Vargas, bem como a República
Velha, caracterizada pelo controle de oligarquias, dominadas por uma elite, esse modelo
excludente foi precursor de uma grande Revolução, a Revolução de 1930.
Nesse ínterim, se segundo Flávio Resende49, “até 1930, o Estado brasileiro era um
verdadeiro mercado de troca de votos por cargos públicos; uma combinação de clientelismo
com patrimonialismo”, após a revolução, o Estado novo buscou a centralização do poder no
governo federal, retirando, para tanto, poder e autonomia dos estados.
Assim sendo, a complexidade da sociedade fez com que o modelo administrativo
patrimonialista fosse abandonado, em prol de uma administração de modelo burocrático.
Dessa forma, conforme conceitua o PDRAE50, “surge na segunda metade do século XIX, na
época do Estado liberal, como forma de combater a corrupção e o nepotismo
patrimonialista”. Nesse sentido,

46
NOGUEIRA, Octaviano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência
e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001. p. 23.
47
CAMPELO, 2010, p. 306.
48
WEBER, 1999, p. 141.
49
RESENDE, 2004 apud PALUDO, Agustinho. Administração pública: teoria e questões. 1. ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2010. p. 97.
50
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1995, p. 15.
122

Constituem princípios orientadores do seu desenvolvimento a profissionalização,


a ideia de carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade, o formalismo, em
síntese, o poder racional-legal. Os controles administrativos visando evitar a
corrupção e o nepotismo são sempre a priori. Parte-se de uma desconfiança prévia
nos administradores públicos e nos cidadãos que a eles dirigem demandas. Por
isso são sempre necessários controles rígidos dos processos, como por exemplo na
admissão de pessoal, nas compras e no atendimento a demandas 51.

Percebe-se, portanto, a superação do modelo patrimonialista quanto à confusão da


coisa pública e privada, o que gerou proteção maior aos interesses da sociedade, bem como
ao patrimônio público contra a corrupção e o clientelismo, práticas tipicamente
patrimonialistas. Desta feita, esse avanço foi marcado pela adoção de uma estrutura rígida
de controle de processos, aonde procedimentos e atos administrativos detinham demasiado
formalismo.
É nesse cenário que a primeira noção de dominação de Weber - a dominação de
critério racional - ganha aplicabilidade na administração pública brasileira. Dessa forma, em
1938, foi criado o DASP - Departamento Administrativo do Serviço Público, que, segundo
Costa52, detinha como missão de “definir e executar a política para o pessoal civil, inclusive
a admissão mediante concurso público e a capacitação técnica do funcionalismo, promover
a racionalização de métodos no serviço público e elaborar o orçamento da União”.
Com a criação do DASP, portanto, rompeu-se com o modelo patrimonialista, o que
gerou o fortalecimento do princípio da meritocracia, já que os ocupantes de cargos públicos
passaram a ser selecionados objetivamente, de acordo com o desempenho. Isto é, os
principais elementos do quadro administrativo burocratizado de Weber, componentes da
dominação racional passaram a ser perseguidos pela administração de modelo burocrática,
quais sejam, a formalidade, a impessoalidade e a profissionalização.
Apesar dos merituosos avanços sociais conquistados pelo modelo burocrático, o
excessivo formalismo e o controle tornaram a administração pública rígida e engessada,
comprometendo a sua eficiência. Dessa forma,

O Estado volta-se para si mesmo, perdendo a noção de sua missão básica, que é
servir à sociedade. A qualidade fundamental da administração pública burocrática
é a efetividade no controle dos abusos; seu defeito, a ineficiência, a

51
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1995, p. 15.
52
COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de Administração Pública; 200 anos de
reformas. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 42, n. 5, p. 829-874, set./out. 2008. p. 846.
123

autorreferência, a incapacidade de voltar-se para o serviço aos cidadãos vistos


como clientes53.

Além desse extremismo que a administração burocrática repercutiu, ressalta-se que


“a administração pública brasileira, embora marcada pela cultura burocrática e regida pelo
princípio do mérito profissional, não chegou a se consolidar, como uma burocracia
profissional nos moldes weberianos”54. Ou seja, por mais elementos da dominação racional
de Weber que a administração burocrática brasileira tenha adotado, é forçoso afirmar que
houve uma aplicação do modelo “puro” de Weber. Isso porque, como o próprio PDRAE55
assinala, por mais que as três formas de administração se sucedam, em uma espécie de
substituição, nenhuma delas é inteiramente abandonada56.
Tais fatores levaram o modelo burocrático a percorrer uma curta duração,
diferentemente do modelo patrimonial, dando espaço para o surgimento do terceiro modelo
de gestão administrativa no Brasil, o modelo gerencial. Nesse sentido, segundo Bresser57, o
Estado Burocrático na sociedade capitalista, industrial teve vida curta, não somente “porque
a industrialização chegou tarde e logo começou a ser substituída pela sociedade pós-
industrial do conhecimento e dos serviços”, mas também porque “a reforma burocrática de
1936 também chegou tarde e foi atropelada pela reforma gerencial, que a globalização
imporia e a democracia tornaria possível”58.
Quanto à idealização de uma administração pública burocrática/racional de weber,
percebe-se que a aplicação prática desse modelo no Brasil não correspondeu às suas
expectativas. Dessa forma, os anseios por eficiência em uma organização centralizada e

53
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1995, p. 15. Nesse sentido, em um de seus importantes estudos,
menciona: “A administração pública burocrática clássica foi adotada porque era uma alternativa muito superior
à administração patrimonialista do Estado. Entretanto o pressuposto de eficiência em que se baseava não se
revelou real. No momento em que o pequeno Estado liberal do século XIX deu definitivamente lugar ao grande
Estado social e econômico do século XX, verificou-se que não garantia nem rapidez, nem boa qualidade nem
custo baixo para os serviços prestados ao público. Na verdade, a administração burocrática é lenta, cara, auto-
referida, pouco ou nada orientada para o atendimento das demandas dos cidadãos. BRESSER-PEREIRA, Luiz
Carlos. Da Administração Pública Burocrática à Gerencial. Brasília: Revista do Serviço Público, v. 47, n. 1,
p. 1-28, jan./abr. 1996. p. 05.
54
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1995, p. 19.
55
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1995, p. 14-15.
56
A exemplo disso, destaca-se o nosso contexto atual, pois temos ainda aspectos presentes que são heranças
do patrimonialismo (nomeações em cargos de confiança), aspectos da teoria da burocracia (concursos públicos
e noção de carreira, entre outros), entre outros.
57
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio;
WILHEIM, Jorge; SACHS, Ignacy. Brasil: um século de transformações. São Paulo: Cia das Letras, 2001. p.
222-259. p. 233.
58
BRESSER-PEREIRA, 2001, p. 233.
124

rigorosamente focada nas regras, findaram em um resultado oposto, haja vista inúmeros tipos
de disfunções que esse sistema gera.
Prova disso está a visão social diante da palavra “burocracia”, a qual inevitavelmente
remonta a um imaginário negativo de lentidão, atraso, dificuldade e, portanto, ineficiência.
Nesse sentido, menciona-se a colocação do crítico Michel Crozier59, ao contrário do que
pensava Weber, acreditava que o modelo burocrático reduzia a eficácia das organizações,
isto é, as instituições não poderiam operar como máquinas, ao invés disso, as organizações
deveriam ser vistas como algo que:

[...] não está apenas constituída pelos direitos e obrigações da bela máquina
burocrática, e nem muito menos pela exploração e pela resistência da força de
trabalho a ser explorada por um patrão ou por uma tecnoestrutura. Ela é um
conjunto complexo de jogos entrecruzados e interdependentes, através dos quais
os indivíduos, com oportunidades frequentemente muito diferentes de sucesso,
procuram maximizar seus benefícios, respeitando as regras não escritas do jogo
que o meio lhes impõe, tirando partido sistematicamente de todas as suas
vantagens e tentando minimizar as dos outros.

Afora os autores que apontam para as disfunções da burocracia e, portanto, o


insucesso do tipo ideal burocrático de Weber, há quem defenda o autor, situando-o como um
eterno incompreendido. Nessa linha, Humberto Falcão Martins60 destaca para o que chamou
de o primeiro problema da burocracia - o de natureza epistemológica, já que a sociologia
política de Weber “raramente conta com uma apreciação organizacional condizente com a
sua complexidade, refletindo em duas perspectivas: a da sociologia das organizações e a da
administração”.
Martins61 aponta a existência de uma sistemática incompreensão da burocracia no
contexto da sociologia política de Weber resultante de “uma compreensão organizacional da
burocracia, desconexa de uma visão da burocracia em Weber, no conjunto de sua obra”.
Dessa forma, “falham os sociólogos das organizações e os administradores ao tentar
conceituar a burocracia a partir da organização burocrática”62, pois “antes de mais nada,
burocracia é poder”63.

59
CROZIER, Michel. O Fenômeno Burocrático. Brasília: UNB, 1981. p. 50.
60
MARTINS, Humberto Falcão. Burocracia e a Revolução gerencial - a persistência da dicotomia entre política
e administração. Revista do Serviço Público, v. 48, n. 1, p. 42-78, jan./abr. 1997. p. 43.
61
MARTINS, 1997, p. 44.
62
MARTINS, 1997, p. 44.
63
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; MOTTA, Fernando Claudio Prestes. Introdução à Organização
Burocrática. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 141.
125

Quanto ao problema da epistemologia, Martins aponta apoiar-se na confusão entre


organização burocrática e no tipo ideal descrito por Weber, que de recurso puramente
metodológico, no qual não cabe identificação com a realidade é transformado em modelo
prescritivo64.
Nessa linha, Parsons65 reforça o descontentamento com o termo burocracia,
identificando o tipo ideal burocrático como um dos mais pobres utilizados por Weber ao
mencionar que a organização burocrática descrita no tipo ideal não tem nada de ideal: “se
fosse ideal não seria tipo, porque estes derivam-se da realidade empírica; se fossem tipos
não seriam ideais, porque estes derivam-se da pura abstração”. Martins66 conclui, assim, que
O problema epistemológico da burocracia, do qual Weber é, até hoje, vítima, é que
a burocracia, enquanto fenômeno de poder, prescinde de uma organização
burocrática típica. Dito de outra forma, não há organização burocrática típica,
senão aquela que se baseia, de uma forma bastante flexível no que se refere à sua
morfologia, num sistema formal-impessoal.

Destaca-se, por fim, que o problema da epistemologia remonta apenas um dos


problemas encontrados na burocracia e que, portanto, refletem na aplicação prática da teoria
weberiana quanto ao tipo de dominação racional. Assim, o próprio Weber tratou do problema
político da burocracia, considerando-o como problema central. Em outras palavras, o
problema central da burocracia, segundo Weber, não é organizacional ou administrativo, é
político67.

CONCLUSÃO

A partir do exposto, assente em uma breve trajetória sobre os principais conceitos


sociológicos trazidos por Max Weber, foi possível extrair a pertinência de refleti-los sob o
ponto de vista da contemporaneidade.
Tendo a administração pública brasileira sido escolhida como foco de análise,
percebe-se que as suas bases de conformação são, dentre outras, weberianas. Nesse sentido,
o primeiro modelo de gestão administrativa adotado no Brasil, o patrimonialismo remontou
inúmeros aspectos existentes na dominação tradicional de Weber. Isso se corroborou não

64
MARTINS, 1997, p. 45.
65
PARSONS, Talcott. The Structure of Social Action. Marxists.org, 2020. Disponível em:
https://www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/us/parsons.htm. Acesso em: 1 abr. 2020.
66
MARTINS, 1997, p. 45.
67
MARTINS, 1997, p.45.
126

apenas pela do quadro administrativo da sociedade colonial, mas pela autoridade advinda do
monarca, que representava verdadeiro líder perante os dominados.
Obviamente que a adequação não é integral, já que, como evidenciado, os modelos
administrativos evoluíram com o passar do tempo, mas sempre deixando alguns resquícios
nos modelos sucessores.
Quanto ao modelo de administração burocrática, apesar das dificuldades encontradas
em não apenas afinar, mas sobretudo, distinguir o significado de dominação do tipo
burocrática, com o termo burocracia, mostra-se inegável as raízes weberianas nessa fase da
administração brasileira. Se antes, a sociedade era administrada por um quadro nepotista,
clientelista e corrupto, agora, formalidade impessoalidade e profissionalização passaram a
ser as características preconizadas pela administração burocrática.
Por todo o exposto, conclui-se que, muito mais do que verificar se as dominações
weberianas “deram certo” na configuração da administração brasileira, o que se buscou
demonstrar é que, apesar dos percalços, controversas e dicotomias, Max Weber contribuiu,
sem dúvidas para a formação do quadro administrativo do país. Assim, apesar de a análise
ter sido concentrada em dois principais modelos de gestão, sustenta-se que, não importa em
que momento da evolução da administração pública do país se esteja, sempre existirá por
trás, uma contribuição weberiana.

REFERÊNCIAS

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WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva Brasília.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991.
128

A ATUAÇÃO DO TERCEIRO SETOR COMO EXERCÍCIO DA


CIDADANIA

Bárbara Bidese1

Resumo: A sociedade, historicamente, sempre se dividiu em dois setores: o primeiro, o


Estado e o segundo, o mercado, que é o particular que visa o lucro. Após a Reforma
Gerencial, ocorrida em 1998, surgiu o Terceiro Setor que possui como centro as entidades
sem fins lucrativos. O Terceiro Setor possui uma racionalidade diferente daquela a ser
perseguida pelo Poder Público. Em regra, é um mecanismo de retirada de funções estatais,
que repassa à entidade não estatal a prestação dos serviços públicos, o que nem sempre pode
representar uma otimização de sua qualidade e eficiência. O Terceiro Setor,
obrigatoriamente, passa por diversas formas de controle, pois como recebe recursos públicos
destinados às entidades particulares, estes devem ser acompanhados, publicizados seus
investimentos, formas de uso e aplicações. A possibilidade de fiscalizar a atuação do
Terceiro Setor frente à Administração Pública dá-se pelo efetivo exercício de cidadania,
através da participação popular, concretizando a democracia participativa.

PALAVRAS-CHAVE: Terceiro Setor; Estado; controle; participação popular; cidadania.

INTRODUÇÃO

Várias Constituições fizeram parte da história do Brasil, cada uma com um ideal
diferente, porém, sua maioria assegurando direitos e defendendo o cidadão. Com o passar
dos tempos e o aumento da população brasileira se tornou necessária a descentralização de
serviços que antes eram exclusivamente prestados pelo Estado, passando-se, assim, a serem
prestados pelos particulares.

Diante desta nova realidade, surgiu o denominado Terceiro Setor da sociedade, quem
em seu âmago buscava suprir as necessidades sociais atuando ao lado do Estado, mas, sem
interesse lucrativo. A onda de serviços sociais, no Brasil, deu-se após a Reforma Gerencial
que foi implementada pela Emenda Constitucional nº. 19, de 4 de junho de 1998. Esta inseriu
no texto constitucional o princípio da eficiência administrativa.

1
Advogada Inscrita na Ordem do Advogados do Brasil/RS 115.556. Bacharel em Direito pela Universidade
de Caxias do sul - UCS, Pós-graduanda em Direito Agrário e do Agronegócio - FMP. E-mail:
barbara.bidese@gmail.com
129

O chamado Primeiro Setor, o público, e o Segundo setor, o mercado, deixaram nas


mãos do Terceiro Setor o papel de construir um diálogo entre os dois mundos, para buscar a
evolução social, procurando apenas fazer o meio do caminho entre o público e o privado. As
entidades de Terceiro Setor possuem, sim, um fim social e de interesse público, mas são
diversificadas, em seus conteúdos e ideologias, por isso, capazes de atingir uma maior
parcela da população brasileira, mesmo não possuindo fins lucrativos.
Entender o funcionamento do Terceiro Setor é fundamental para contribuir com o
acesso a direitos fundamentais atribuídos ao público não estatal, bem como para que seja
possível efetivar o controle social, mote da administração gerencial. Por isso, necessário se
faz a promoção de informações sobre a atuação do Terceiro Setor e o controle social, não
apenas para os profissionais da área jurídica, mas também para pessoas interessadas em
integrar uma entidade de fins não lucrativos.

1. O ESTADO E OS SERVIÇOS PÚBLICOS

A Reforma do Estado, idealizada pela Emenda Constitucional nº. 19, de 4 de junho


de 1998, versou sobre a proposta de transformação da Administração Pública burocrática
para uma Administração Pública Gerencial, propiciando maior discricionariedade para as
autoridades, no poder, além de uma movimentação e uma conduta mais produtiva e eficiente
em relação aos interesses coletivos.
Os denominados Direitos Sociais são, de fato, garantias dadas aos cidadãos, com a
finalidade de melhoria de condições, visando igualdade e justiça social, ansiada por muitos.
A Administração Pública gerencial se revelou muito próspera para a efetivação de tais
direitos, pois, além de contribuir para a prestação de serviços de forma mais ágil, culminou
na busca de suprir as necessidades básicas dos mais vulneráveis.
Grande passo em favor da democracia, a Constituição Federal de 1.988 proclamou
uma nova enunciação dos direitos de cidadania; ampliou os mecanismos de inclusão política
e participação; estabeleceu larga faixa de intervenção do Estado no domínio econômico;
redistribuiu os ingressos públicos entre as esferas de governo; diminuiu o aparato repressivo
130

herdado do regime militar e institucionalizou os instrumentos de política social, dando-lhes


substância de direção.2
Os idealizadores da reforma gerencial buscavam inicialmente uma mudança em
relação ao agigantamento do Estado em relação aos governados. Basta analisar o artigo 37
da Constituição Federal de 1.988 que, implementou o princípio da eficiência, mas, por outro
lado, manteve outros princípios, como legalidade, impessoalidade e moralidade. Nota-se que
não era pretendida uma reforma de modo a inovar totalmente a forma de governança, mas
sim, buscava-se aprimorar ainda mais o que já havia sido executado até então.
Desta maneira, a Reforma surgiu com o intuito de mudar a grande concentração de
oferta dos serviços públicos que estavam na mão do Estado. Ansiava-se por uma
descentralização para permitir que estes serviços fossem prestados de forma mais eficiente
e justa possível. Antes, a administração burocrática funcionou, até certo ponto, mas o
agigantamento do Estado tornou-se algo, de certa forma, incontrolável, pois além dos
serviços básicos prestados, Este interferia muito nas relações privadas, mostrando assim que
não conseguiria atender as necessidades básicas dos cidadãos, que era seu papel
fundamental.
A Reforma, muito ao contrário do que se tanto estimava, transformou o Estado em
uma máquina maior, mais fortalecida e muito mais eficiente, com uma menor burocracia.
Porém, esta eficiência, só se torna possível, com uma gestão e organização estruturada. A
transformação da burocracia clássica, para uma gestão pública eficiente, concretiza-se com
a colaboração de organizações públicas, não estatais, com capacidade para exercer o controle
social.
O gestor público governante, após esta época de mudança, teve mais controle
direcionado à população, e é este que detém o poder para a organização estatal, exigindo do
mesmo, cada vez mais que seja capacitado e demonstre maior competência, tendo em vista,
além do mundo cada vez mais globalizado, uma necessidade de aprimorar-se para
acompanhar as mudanças que se iniciam.
Muitos dos trabalhos que o Estado assumiu sem realizá-los, histórica e gradualmente,
voltam às mãos dos particulares. Diante da nova realidade, começa-se a tomar o verdadeiro

2
COSTA, Frederico Lustosa da. Brasil: 200 anos de Estado; 200 anos de Administração Pública; 200 anos
de reformas. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro,2008. Available from:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122008000500003&lang=pt.Acesso
10/08/2020.
131

sentido do status de cidadania, ou seja, aquela que envolve a capacidade de ser sujeito das
decisões e influenciar os destinos da sociedade da qual se faz parte.3
A garantia de direitos, no ordenamento jurídico brasileiro, é de extrema importância
e deve-se partir da premissa de necessidade de proteção da população mais frágil e
vulnerável, por parte do Estado. Assim, o Estado deve garantir os direitos da população
através de sua atuação em defesa da mesma. Para que os direitos sociais sejam efetivados,
com democracia e em relação a quem precisa, deve-se ter um agir por parte dos governados
e que demonstrem preocupação e cobrança aos governantes. A população precisa
manifestar-se e encarar a democracia participativa como possibilidade de mudanças para
uma vida em sociedade, melhor e mais igualitária, para não apenas esperar do Estado à
efetivação de seus direitos positivados.
É necessário analisar que, os direitos sociais, chamados de direitos fundamentais de
segunda dimensão tiveram sua origem através da industrialização e os graves problemas
econômicos e sociais que acompanharam este processo. Conforme Pedro Lenza4:
O fato histórico que inspira e impulsiona os direitos humanos de 2.a dimensão é a
Revolução Industrial europeia, a partir do século XIX. (...) O início do século XX
é marcado pela Primeira Grande Guerra e pela fixação de direitos sociais. Essa
perspectiva de evidenciação dos direitos sociais, culturais e econômicos, bem
como dos direitos coletivos, ou de coletividade, correspondendo aos direitos de
igualdade. (...)

Coube assim, ao Estado, outorgar aos cidadãos prestações de cunho assistencial,


proporcionando saúde, educação e trabalho, efetivando um modelo de Estado mais
interventor e positivo.
Os direitos sociais, fazem parte dos serviços a serem oferecidos pelo Estado aos
cidadãos, de forma direta ou indireta, os quais também são parte integrante dos direitos da
população, que dependem da Administração Pública para tê-los efetivados.
[...] a natureza fundamental dos direitos sociais estaria vinculada a atuação do
legislador, ainda, em um momento em que se buscava a observância pelo Poder
Público das garantias e direitos constitucionais, especificamente dos direitos
sociais, que despendem por parte do Estado grande esforço econômico, a
vinculatividade estaria inerente a boa vontade do legislador em abarcar os direitos
sociais no rol dos direitos fundamentais nas Constituições. 5

3
RIPARI, Vanessa Toqueiro. Eficiência do Estado: limites e possibilidades no atual modelo de estado
gerencial. XXI Congresso Nacional do CONPEDI/UFF, 2012, Niterói, Rio de Janeiro. Disponível em:
https://www.conpedi.org.br/publicacoes/02q8agmu/9rabty0z/S2UXi2drT3p07NX6.pdf. Acesso em:
10/08/2020.
4
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado, 20th edição. Editora Saraiva. 2012. Pg. 1.157.
5
BORTOLOTI, José Carlos Kraemer; MACHADO, Guilherme Pavan. Direitos sociais como fundamentais:
um difícil diálogo no Brasil. Prisma Jurídico, São Paulo, 2017.
132

O Estado deve, obrigatoriamente, oferecer e garantir ao cidadão a concretização de


tais direitos, que são vistos como necessários à coletividade. Esses direitos serão efetivados
a população como direitos difusos.
Conforme manifestou a Declaração Universal dos Direitos Humanos6, aprovada em
Paris, em 1.948, garante direitos sociais de acesso ao serviço público por todos assegurados
pelo país aonde vivem. A caracterização de tais prerrogativas se busca através de uma
igualdade em que o Estado intervém na ordem social para pulverizar as injustiças sociais.
Tradicionalmente, os serviços públicos foram prestados pelo primeiro setor, o
Governo, que tinha em vista uma melhoria na condição de vida da população, buscando
também adequar condutas ao interesse geral. Era apenas o Governo que abrangia os mais
diversos serviços que eram postos à disposição da população.
No período da Reforma Gerencial, o Estado interferia em todas as relações, sejam de
consumo ou serviços, fato que causou um agigantamento na máquina pública, por pouco
tempo considerado louvável. Logo, passou a ser considerado um problema, pois o Estado
não conseguia mais realizar suas funções por si só, não atendendo também às necessidades
da população.
A crise deste modelo estatal burocrático começou a surgir, necessitando de
transformações. Tornou-se difícil aplicar os direitos sociais e prestação de serviços públicos
eficientes, na prática, pelo contexto de lentidão e grandiosidade do Estado, que avocou
serviços demais para si, não conseguindo prestá-los de forma digna à população:

Com essas mudanças, saiu-se de uma estrutura baseada em normas centralizadas


para outra ancorada na responsabilização dos administradores, avaliados pelos
resultados efetivamente produzidos. Esse novo modelo busca responder mais
rapidamente as grandes mudanças ambientais que acontecem na economia e na
sociedade contemporâneas. 7

Deste modo, a Reforma redefine o papel do Estado perante os governados, através


dos serviços públicos prestados, para a consecução dos objetivos de interesse público, com
maior agilidade. A busca pela tão desejada eficiência estatal, dá-se através da criação de

6
UNESCO. Declaração Universal dos Direitos Humanos, Paris, 1948, disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf . Acesso em 10/08/2020.
7
MENDES, Gilmar Ferreira. Estado de direito e jurisdição constitucional. 2002-2010. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?id=MYNnDwAAQBAJ&lpg=PP1&dq=inauthor%3A%22GILMAR%20
FERREIRA%20MENDES%20-%20MINISTRO%20STF%22&hl=pt-BR&pg=PP1#v=onepage&q&f=false.
Acesso em: 10/08/2020.
133

meios de gestão inovadores, de novo enfoque, devendo o Estado ser quem ampara e ajuda
as pessoas, diante dos novos desafios de uma sociedade complexa.

1.2 O ESTADO BRASILEIRO COMO GARANTIDOR DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

É notória, atualmente, a crítica da população em relação a prestação dos serviços


públicos estatais. O Direito Administrativo surgiu, inicialmente, para regular as práticas dos
serviços públicos. Ainda é controverso certos aspectos no tocante à conceituação dos
serviços públicos. Analisar-se-ão os elementos essenciais, no decorrer deste tema para a
construção de um conceito acerca da referida expressão jurídica.

A evolução da noção de serviços públicos é passível de ser verificada,


concretamente, com a mudança de perfil da Administração Pública no Brasil, que
migrou do perfil burocrático à perspectiva gerencial de Estado, sob os auspícios
da nova ordem global. Nesse sentido, os serviços públicos, até então prestados de
forma preponderante e quase exclusiva pelo Poder Público, foram outorgados ao
setor privado, rompendo-se, destarte, com a formatação clássica do instituto. 8

Ao Estado incumbe a prestação dos serviços públicos, obedecendo as definições da


Constituição e da legislação infraconstitucional. Conforme verifica-se no artigo 175 da
Constituição Federal de 19889. É dever do Estado efetivar direta ou indiretamente a
prestação dos serviços públicos.

Ocorre que a noção de serviços públicos foi influenciada pela doutrina mais
moderna de forma a restringir seu conceito. Com efeito, tradicionalmente, a
conceituação de serviço público era muito abrangente, abarcando toda a atuação
do Estado, na busca do interesse público, sem efetivar a distinção em relação as
demais atividades administrativas. 10

Os serviços públicos são toda a atividade material que a lei atribui ao Estado para
que exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer
concretamente as necessidades coletivas, sob o regime jurídico total ou parcial público.11

8
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Reflexões Sobre a Prestação de Serviços Públicos por Entidades do
Terceiro Setor. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, 2006. Disponível na Internet:
<http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 10/08/2020.
9
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na
forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação
de serviços públicos.
10
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 5 ed. Salvador: Juspodvim, 2018. p. 637.
11
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 139.
134

Após apresentados os conceitos acerca dos serviços públicos, deve-se distinguir que,
serviço público não é a única atividade de Estado. O Estado age em busca de interesses da
coletividade e cabe a cada governante definir o que é oportuno e o que é conveniente e
necessário para a prestação de serviços públicos sobre seus governados.
O Brasil, conforme influência europeia, sempre subsidiou os serviços públicos que
eram essenciais à população, porém, com o passar do tempo e com o surgimento de novas
práticas, transferiu aos particulares certas prestações de serviços públicos não exclusivos de
Estado.
Historicamente, o Estado, à medida que foi se afastando dos princípios do
liberalismo, começou a ampliar o rol de atividades próprias, definidas como
serviços públicos, pois passou a considerar determinadas atividades que antes
eram consideradas privadas.12

Neste contexto, verifica-se a expansão do Estado e seu agigantamento em relação ao


particular. No entanto, como visto em alhures, esse agigantamento e essa máxima
intervenção se tornou falha. O Estado não conseguia mais amparar todos os serviços, haja
vista a demanda da população. Em consequência, o Estado passou a delegar a sua execução
a particulares, por meio de contratos de concessão, e posteriormente a pessoas jurídicas de
Direito Privado criadas para este fim.

Assim, as formas de prestação dos serviços públicos atualmente definem-se que o


Estado não pode se eximir da prestação dos serviços, configurando-se em poder-
dever do ente estatal, que tem possibilidade de prestá-lo diretamente ou por
particulares, mediante contratos de concessão e a permissão. A omissão do Estado
no dever de prestação do serviço público seja na forma direta ou indireta configura
abuso de poder e justifica, inclusive, responsabilidade civil, caso algum dano ocorra
do seu não agir.13

O Estado pode executar os serviços de forma direta ou por meio de


descentralização14. É importante ressaltar que o Poder Público transfere a titularidade do
serviço apenas quando ocorrer a outorga. A titularidade deve permanecer com pessoas
jurídicas de Direito Público. Outrossim, na delegação o Estado não transfere a titularidade
do serviço público ao particular, transferindo apenas a execução de tal serviço. Às pessoas

12
ibidem. p. 136.
13
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 5 ed. Salvador: Juspodvim, 2018. p.640
14
Descentralização: As competências administrativas são distribuídas a pessoas jurídicas autônomas, criadas
pelo Estado para tal finalidade. Exemplos: autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de
economia mista. MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 7 ed. São Paulo. Saraiva. 2017.
p.197.
135

jurídicas de direito privado apenas se transferem a execução do serviço público, a


titularidade ainda permanece nas mãos da Administração Pública.
A delegação de serviço público, é mencionada no artigo 175 da Constituição Federal
de 1.988 e possui expressamente a admissão de execução de serviços públicos por
particulares por meio de concessão e de permissão definidas por lei.
Quando o Estado resolve delegar a prestação de um determinado serviço público,
este procedimento apenas será efetivado após a realização de procedimento licitatório nos
moldes do previsto na Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1.99315 e da legislação sobre concessão
ou sobre permissão, que, conforme o caso, ditará regras específicas.
De outro modo, deve-se analisar, conforme a Constituição da República Federativa
do Brasil qual a forma com que a prestação de serviços públicos é distribuída entre a União,
os Estados, os Municípios e ao Distrito Federal.
Ao longo de seu texto, a Constituição Federal dispõe expressamente as competências
acerca dos serviços públicos a serem respaldadas pelos Entes federativos.

Cabe lembrar que existem muitos serviços públicos de titularidade comum entre a
União, os estados o distrito federal e os municípios, como saúde, previdência
social e assistência social. Tais serviços sociais, também podem ser prestados por
particulares mediante autorização estatal. Porém só serão considerados serviços
públicos propriamente ditos quando prestados diretamente pelo Estado.16

É importante ter a noção de quais serviços são de responsabilidade de cada Ente,


principalmente no momento de exercer o controle social frente à Administração Pública na
reivindicação de direitos e melhorias de cada serviço prestado.
O Estado deve ter ciência dos serviços que presta e da qualidade de tais serviços que
são postos à disponibilidade para cada cidadão. A falta de recurso ou a má utilização destes
podem gerar resultados negativos em relação aos índices. Em consequência, a menor
satisfação dos usuários gera revolta pelo povo que, necessita destes serviços e não pode pagar
para ter acesso a um atendimento melhor na rede privada, dependendo da boa prestação pelo
Estado, que é direito de todos.
O Poder Público deve agir de acordo com o seu dever de garantidor de serviços
públicos adequados, tratando o usuário de forma isonômica. Como não pode se escusar de

15
LEI Nº 8.666, DE 21 DE JUNHO DE 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal,
institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
16
MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 7 ed. São Paulo. Saraiva. 2017. p. 1062
136

prestar o serviço público, a Administração Pública tem o poder-dever de executar o mesmo


da melhor maneira possível, em busca do bem-estar da coletividade.

1.3 O TERCEIRO SETOR E OS SERVIÇOS PÚBLICOS

Muito ainda é discutido na doutrina acerca do denominado Terceiro Setor. Há de se


partir da premissa de que, com a execução da Reforma da gestão pública, esta alavancou o
surgimento de um novo setor na economia, o chamado Terceiro Setor. O objetivo da reforma
era transformar a máquina pública burocrata em eficiente, forte e mais rápida em seus
serviços.
O Terceiro Setor surge na economia com o propósito de atuar ao lado da
Administração Pública, praticando atos e realizando atividades de interesse do Estado.
Designa atividades que não são governamentais, pois não fazem parte do governo, e, não
são empresariais ou econômicas, não fazendo parte também do segundo setor que é o
mercado. Entende-se, dessa forma, para tanto que o Terceiro Setor é formado entidades que
exercem um serviço social sem fins lucrativos.
O Terceiro Setor tem grande destaque em todo o mundo. No Brasil, porém, só tomou
grande proporção a partir do aumento das demandas sociais causadas pelo intenso
desenvolvimento da sociedade. Este setor ganhou dimensão com a Reforma do Estado onde
presava-se a eficiência estatal, colaborando assim para a delegação de serviços para o
Terceiro Setor.
Desta maneira, as entidades do Terceiro Setor, por não visarem lucro e terem como
propósito o trabalho voluntário de cunho social, podem receber incentivos por parte do Poder
público.

As organizações privadas do Terceiro Setor, como exercem atividades de interesse


público, recebem tratamento especial e diferenciado por parte do Poder Público
(fomento), por meio do qual o Estado estimula o desenvolvimento de suas
atividades sociais (incentivos, subvenções, convênios). Por outro lado, sujeitam-
se ao controle e à fiscalização por parte da Administração Pública e do Tribunal
de Contas.17

17
FALCÃO, Elisabeth Couto. Terceiro Setor: Fiscalização das Organizações Sociais e das Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público pelos Tribunais de Contas. Revista Controle,2007.Directory of
Open Access Journals (DOAJ) Disponível em:
http://revistacontrole.ipc.tce.ce.gov.br/index.php/RCDA/article/view/195/197. Acesso em 10/08/2020.
137

Muitas são as formas de incentivo que as entidades pertencentes ao Terceiro Setor


usufruem, cada entidade possui um estímulo diferente, que pode se dar através de recursos
financeiros até utilizar imóvel público para a realização de suas atividades.
Importante salientar que estes Entes pertencentes ao Terceiro Setor não integram a
Administração Pública, integram a iniciativa privada, porém, atuando ao lado do Estado.
Estes são criados por particulares para a execução de serviços públicos e não exclusivos do
Estado, respeitando a legislação. Não podem possuir finalidade lucrativa, no entanto, podem
cobrar pelas utilidades e serviços prestados desde que os recursos sejam limitados ao
pagamento dos próprios colaboradores e a melhoria dos serviços prestados, sem prejuízo dos
recursos repassados pelo governo.

2. TERCEIRO SETOR E AS PRINCIPAIS FORMAS DE CONTROLE DA


ATUAÇÃO

É notório que o Terceiro Setor passa por diversas formas de controle, pois como
recebe recursos públicos destinados às entidades, estes devem ser acompanhados seus
investimentos, formas de uso e aplicações.
É importante reter a ideia que rege o princípio da indisponibilidade do interesse
público. Este princípio torna-se parte central em relação a todos os controles existentes frente
à Administração Pública. A indisponibilidade do interesse público está ligada com a
necessidade de agir do ente estatal frente a uma indispensabilidade coletiva existente.
Existem, atualmente, diversas entidades integrantes do Terceiro Setor no Brasil.
Alguns doutrinadores ainda discutem quais são exatamente estas entidades. Por atuarem ao
lado do Estado, podem ser chamadas de entidades paraestatais, estas não pertencem ao
Estado, mas, atuam ao seu lado exercendo atividades de cunho social.
Pelo fato de atuarem ao lado do Estado como provedoras de serviços sociais de
interesse do mesmo, essas entidades recebem dinheiro público, incentivos e até controle
exercido pela Administração Púbica.
De acordo com a grande maioria dos doutrinadores, são cinco, as espécies de Entes
do Terceiro Setor tratados no direito brasileiro, a saber: entidades do serviço social autônomo
(sistema S), entidades de apoio, Organizações Sociais (OS), Organizações da Sociedade
Civil de Interesse Público (OSCIP), organizações da sociedade civil (OSC).
138

As formas de controle da Administração Pública são divididas em três principais


categorias: controle interno, controle externo e controle judicial que serão estudadas
individualmente.
O Controle Interno é a modalidade de fiscalização do Poder Público, constante de
um Sistema de Controle Interno, exercido pelos próprios órgãos da Administração Pública,
ligados ao Poder Executivo e positivado nos termos do artigo 70, da Constituição Federal de
1988.18
Essa modalidade de controle é a forma mais comum - o controle administrativo,
exercido dentro de um mesmo Poder e se relaciona com o poder que a própria Administração
Pública tem sobre seus agentes.

Esta formação deixa claro o intuito do legislador em manter o controle interno das
Organizações Sociais preponderantemente nas mãos do Poder Público, fato que só
corrobora a ideia de tratar-se este novel instituto de verdadeiro desvirtuamento das
características fundamentais do Terceiro Setor, dentre as quais ser controlado pela
sociedade.19

O controle interno também poderá ser dividido em controle por hierarquia ou


vinculação que é exercido pelos próprios órgãos da Administração Pública. O controle por
hierarquia é expresso pelo artigo 74 da Constituição Federal atual. Este é exercido entre os
órgãos e agentes que pertencem à mesma pessoa jurídica. O controle por vinculação, também
conhecido por tutela, refere-se à supervisão ministerial da Administração Direta sobre atos
da Administração Indireta que não caracteriza controle por hierarquia.
Os controles internos devem ser adequados à realidade e necessidades da
organização, devidamente acompanhados, a fim de detectar se estão sendo obedecidos todos
os procedimentos que garantem a confiabilidade e transparência das informações.20.

18
LUCENA, Cezar Viana. Terceiro setor: conceito, histórico e marco regulatório, instrumentos jurídicos
de formalização de parcerias entre Administração Pública e terceiro setor e fiscalização das parcerias
entre terceiro setor e Administração Pública. Disponível em:
https://monografias.brasilescola.uol.com.br/direito/terceiro-setor-parcerias-com-a-administracao-
publica.htm#capitulo_7. Acesso em: 10/08/2020.
19
PRADO, Inês Maria Coimbra de Almeida; CASTRO, Tatiane Lobato de. O controle do terceiro
setor. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, 2007. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/79474/83510>. Acesso em:10/08/2020.
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v8i2p11-33
20
MAGNUS, Cristina de Oliveira. Controle interno financeiro em uma entidade sem fins lucrativos.
Monografia apresentada à Universidade Federal de Santa Catarina , curso de Ciências Contábeis.
Floriaópolis,2007. Disponível em : http://tcc.bu.ufsc.br/Contabeis293891.pdf. Acesso em: 10/08/2020.
139

O controle externo pode acontecer de duas maneiras: parlamentar direto e pelo


Tribunal de Contas. Expresso no artigo 71 da Constituição Federal, o Tribunal de Contas
auxilia o Poder Legislativo atuando na função de controle. Sobre isso, é importante destacar
o ensinamento de Matheus Carvalho:

O Tribunal de Contas é órgão auxiliar do Poder Legislativo no controle externo.


Tem competência para a fiscalização de quaisquer entidades públicas, incluindo
as contas do Ministério Público, Legislativo e Judiciário, assim como para efetivar
seu controle sobre entidades privadas que utilizem dinheiro público para execução
de suas atividades. 21

Vale ressaltar o papel do Tribunal de Contas e saber qual é a sua relação com o Poder
Legislativo, pois atuam lado a lado, dentro do controle interno, sobre os atos praticados pela
Administração Pública e, também, pelo Terceiro Setor.

Os Tribunais de Contas são órgãos auxiliares do Poder Legislativo na função de


fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União
e das entidades da Administração Pública direta e indireta, quanto à legalidade,
legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncias de receitas
(arts. 70 e 71, CF/88). Nota-se que os Tribunais de Contas são órgãos auxiliares
do Poder Legislativo na fiscalização do dinheiro público. Todo o cidadão tem o
direito de denunciar a estes tribunais irregularidade e ilegalidade verificadas contra
o patrimônio público. Estas instituições exercem o controle sobre as despesas da
espécie considerando principalmente os princípios que resguardam o interesse
público.22

O Tribunal de Contas, porém, não possui competência para sustar contratos


administrativos, que deve ser efetuada pelo Poder Legislativo, pois este tem legitimidade
suficiente para fazer um controle posterior, analisando a legalidade do ato e se sua forma
obedeceu aos requisitos impostos pela lei.
Tanto na Lei nº. 9.637/98 como na Lei nº. 9.790/99 existem disposições em relação
à possibilidade de controle do Tribunal de Contas de toda a atividade das quais participam
recursos públicos e destinação do fomento. 23

21
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 5 ed. Salvador: Juspodvim, 2018. p. 400.
22
PRADO, Inês Maria Coimbra de Almeida; CASTRO, Taiane Lobato de. O controle do terceiro
setor. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, 2007. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/79474/83510>. Acesso em: 10/08/2020
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v8i2p11-33
23
PRADO, Inês Maria Coimbra de Almeida; CASTRO, Taiane Lobato de. O controle do terceiro
setor. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, 2007. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/79474/83510>. Acesso em:10/08/2020.
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v8i2p11-33.
140

As disposições citadas legitimam o Tribunal de Contas para exercer o controle


externo frente às entidades pertencentes ao Terceiro Setor. Cabe ainda, ao Tribunal de
Contas, não apenas a aprovação da boa utilização de recursos pelas entidades do Terceiro
Setor, mas, também, fiscalizar a legalidade do ato praticado.
Ressalta-se:
Além de fiscalizar eventual irregularidade na utilização das verbas públicas
repassadas, ainda pode requerer informações outras com a determinação de que os
processos submetidos à auditoria sejam instruídos com dados sobre o quanto vem
sendo cumprido dos compromissos assumidos no contrato; que tipo de
contratações foram feitas com recursos públicos e se foram com permissão
contratual e de modo adequado; se os investimentos realizados com recursos
públicos atenderam a previsão contratual e de modo adequado. 24

O controle externo é realizado da forma parlamentar direta, que nada mais é do que
a atuação do Poder Legislativo, como a Câmara dos Deputados e o Senado, ou seja. o
Congresso Nacional, que controlam os atos da Administração Pública, por meio de
Conselhos Parlamentares de Inquérito, e, no caso de municípios por comissões.
O Controle Judicial será sempre exercido pelo próprio Poder Judiciário quando este
for provocado. Também, poderá ser exercido de duas formas, o controle prévio ou posterior
ao ato praticado pela Administração Pública. Tal controle deve dar-se sobre a legalidade do
ato e não sobre o mérito dele, e o mesmo não pode ser discutido em sede de controle judicial.

É possível a provocação do judiciário para a análise de controvérsias ainda que já


se tenham esgotadas as instâncias administrativas e, independentemente disso, ou
seja, não se pode exigir a decisão final em sede administrativa como requisito para
ingresso em demanda judicial.25

Apenas o Poder Judiciário profere decisões com caráter finalístico, isto é, definitivas.
O Brasil utiliza o chamado Sistema de Freio e Contrapesos26, o que se refere à possibilidade
de os três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) atuarem no controle sobre a
Administração Pública.

24
Ibidem.
25
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 5 ed. Salvador: Juspodvim, 2018. p. 403.
26
O Sistema de Freios e Contrapesos consiste no controle do poder pelo próprio poder, sendo que cada Poder
teria autonomia para exercer sua função, mas seria controlado pelos outros poderes. Isso serviria para evitar
que houvesse abusos no exercício do poder por qualquer dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).
Desta forma, embora cada poder seja independente e autônomo, deve trabalhar em harmonia com os demais
Poderes.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Disponível em:
http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2018/consideracoes-sobre-a-teoria-dos-freios-e-
contrapesos-checks-and-balances-system-juiza-oriana-piske. Acesso em: 10/08/2020.
141

Desta forma, vale ressaltar, a importância dos controles exercidos, tanto interno,
externo e judicial, para a garantia de atividades da Administração Pública em prol do bem
comum e, de acordo com a lei, sem nenhum tipo de violação, com total transparência.

2.1 A PARTICIPAÇÃO POPULAR E O CONTROLE SOCIAL

Quando se pesquisa acerca das formas de controle sobre a Administração Pública


depara-se, como já afirmado, apenas com três configurações: controle interno, externo e
judicial que são exercidos pelos três Poderes de Estado, ou seja, pelos Poderes Judiciário,
Legislativo e Executivo.
Atualmente, muito se discute acerca do controle social e se de fato ele se consagra
ao lado das demais formas de controle já existentes. Ocorre que, com as mudanças que a
sociedade passou e ainda vem passando, o controle social faz-se necessário para uma maior
democracia na relação Administração Pública versus população.
Após a Reforma Gerencial, a Administração Pública deu um grande salto em relação
à imposição de novos princípios como o Princípio da Eficiência. Ao lado deste, tornou-se
necessária a aplicação da Publicidade, outro princípio importante relacionado à atuação do
Estado. Em decorrência da publicidade de atos da Administração Pública, abriu-se ainda
mais a possibilidade de influência popular, possibilitando, assim, uma gestão mais
democrática com participação popular e o controle social.
A transparência estatal, relacionada à Reforma Gerencial modernizou-se nos últimos
tempos. A transparência dá-se através da publicidade de dados em relação aos atos da
Administração Pública. A população pode acompanhar de forma efetiva e até online de que
forma se dão os gastos do governo, quais são os salários dos servidores e vários outros dados.

A problemática da participação democrática dos cidadãos centra-se na


possibilidade de se exigir, do Estado, a emissão de atos legislativos ou
administrativos destinados a órgãos e a estabelecer procedimentos, ou mesmo,
medidas que objetivem garantir aos indivíduos a participação efetiva na
organização da sociedade.27

27
SANTIN, Janaína Rigo. Estado, constituição e Administração pública no século XXI: novos desafios da
cidadania e do poder local. Belo Horizonte. Arraes Editores, 2017. p. 155
142

O controle social deve ser exercido pelo cidadão que respeita o interesse coletivo e
busca o bem comum, podendo, assim, fiscalizar os atos da Administração Pública. Faz-se
necessário, distinguir o controle social da participação popular:

O controle social e a participação popular são irmãos siameses, entretanto, o


controle social é distinto da participação popular. Esta ocorre no momento da
tomada de decisões, antes ou concomitante à elaboração do ato da Administração;
é um poder político de elaboração de normas jurídicas. O controle social pode
concretizar-se em dois momentos: 1) análise jurídica da norma estabelecida pela
Administração Pública, como a relação de compatibilidade com outras normas de
hierarquia superior; 2) fiscalização da execução ou aplicação dessas normas
jurídicas ao caso concreto. A participação popular ocorre antes ou durante o
processo de decisão da Administração Pública, e o controle social, após a
concretização desse processo, com o intuito de verificar se a norma jurídica foi
concretizada pela Administração na forma estabelecida. 28

A internet é um grande instrumento a ser utilizado pelos governantes e pelos próprios


governados. Com a utilização adequada dos meios de fiscalização, a democracia
participativa pode realizar-se de uma forma mais direta, por ser de fácil acesso a todos.

O grande risco, portanto, destas novas formas de interação entre público e privado,
tendo em vista a realidade de organização da sociedade brasileira, é o uso do
Estado em benefício de poucos, permitindo maior participação e maior
transparência a certos grupos sociais em detrimento de outros.29

A participação pública nos atos da Administração pode ser um ato de democracia,


bem como, direito fundamental. O cidadão deve fiscalizar o governo, pois, é de seu interesse.
Para haver mudanças é necessária uma fiscalização que deve realizada com afinco pelos
governados.
Claramente, tal controle relaciona-se com o Princípio da Supremacia do Interesse
Público, que é supremo sobre o interesse particular, e todas as condutas estatais têm como
finalidade a satisfação das necessidades coletivas.30
O controle social exercido com constância resulta em uma Administração Pública
mais transparente e é realizado pela própria sociedade sobre a mesma. Como formas de

28
SIRAQUE, Vanderlei. Controle Social da Função Administrativa do Estado. Possibilidades e limites na
Constituição Federal de 1988. São Paulo: Saraiva, 2009. Pg. 112.
29
PRADO, Inês Maria Coimbra de Almeida; CASTRO, Taiane Lobato de. O controle do terceiro
setor. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, 2007. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/79474/83510>. Acesso em: 10/08/2020.
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v8i2p11-33
30
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 5 ed. Salvador: Juspodvim, 2018. p. 385.
143

concretização do controle social destacam-se as possibilidades elencadas na Constituição


Federal e na legislação vigente.
A participação dos cidadãos deve ser posta em prática com empenho para que
efetivamente a supremacia do interesse público seja respeitada, tornando a Administração
Pública transparente, ao máximo.
É importante destacar que o surgimento da Lei de Responsabilidade Fiscal Lei
Complementar nº 101, de 4 de maio 2000, foi de suma importância na relação entre a
Administração Pública e os cidadãos:

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) surgiu em um contexto mundial de


reforma administrativa do Estado, passando pela mudança de paradigma, da
administração burocrática para a administração gerencial. A partir desse novo
modelo, a Administração Pública visa a eficiência, a eficácia e a efetividade de
seus planos, programas e ações, fundados em uma estrutura mais descentralizada,
flexível e transparente.31

O Portal da Transparência32 é um instrumento de controle social frente à


Administração Pública, que surgiu através da Lei de Responsabilidade Fiscal e funciona
como utensílio para a fiscalização dos atos do governo.
O controle social exercido pelo cidadão frente à Administração Pública é de extrema
importância no momento em que vive, enquanto sociedade. Existem diversas formas de
controle social em relação ao Poder Público. Apenas, é necessária a interação do cidadão
sobre tais meios para, assim, exercer seu direito de cidadania.
Outrossim, o controle social frente às organizações do Terceiro Setor é algo novo,
não pensado pelo legislador e pouco debatido pela doutrina pátria. O controle de atos, na
relação da Administração Pública com as entidades do Terceiro Setor é feito, como já
referido, basicamente, pelas três formas mais conhecidas: controle externo, interno e judicial.

31
SILVA. Jorge Bernardo Oliveira da. TRANSPARÊNCIA E PARTICIPAÇÃO POPULAR: DOIS
LADOS DA MESMA MOEDA. Disponível em:
https://revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?src=docnav&ao=&fromrend=&srguid=i0ad8
2d9b00000166ad6b262190790dfa&epos=2&spos=2&page=0&td=26&savedSearch=&searchFrom=&contex
t=278&crumb-action=append&crumb-label=Documento. Acesso em:25/10/2018
32
PORTAL DA TRANSPARÊNCIA: Lançado pelo Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da
União em 2004, o Portal da Transparência do Governo Federal é um site de acesso livre, no qual o cidadão
pode encontrar informações sobre como o dinheiro público é utilizado, além de se informar sobre assuntos
relacionados à gestão pública do Brasil. Desde a criação, a ferramenta ganhou novos recursos, aumentou a
oferta de dados ano após ano e consolidou-se como importante instrumento de controle social,
com reconhecimento dentro e fora do país. Disponível em: http://www.portaltransparencia.gov.br/sobre/o-que-
e-e-como-funciona Acesso em: 10/08/2020.
144

O controle social em relação aos atos das entidades do Terceiro Setor deve ser
pensado da mesma maneira com que a população pode exercê-lo frente à Administração
Pública. Mecanismos de fiscalização dos atos devem ser refletidos pelos administradores das
entidades do Terceiro Setor.
O controle social das ações de forma transparente surge como diretriz do Programa
Nacional de Publicização; mas, não há previsão de qualquer instrumento que realize este
vetor.33
É notório que, para receberem recursos, as entidades devem apresentar um plano de
execução para a Administração Pública. Porém, este não é de total acesso à população
interessada. O que deve ser buscado seria uma forma para que o cidadão tivesse acesso mais
profundo aos planos de trabalho das entidades e poder fiscalizá-lo, de forma concreta.
Muito ainda deve ser refletido quanto ao exercício do controle social sobre as
entidades do Terceiro Setor para que os cidadãos tenham acesso às informações sobre a
destinação de recursos públicos. É um direito da população e este deve ser reivindicado.

CONCLUSÃO

O Terceiro Setor, no Brasil, ainda é algo novo a ser estudado e pensado pela
sociedade, em geral. Surgiu após a Reforma Gerencial, que aconteceu em 1998, que
implementou o Princípio da Eficiência, na Constituição Federal de 1988. Pela efetivação
deste princípio, tornou-se necessária a distribuição pelo Estado da prestação de certos
serviços públicos para particulares.
Somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 é que o país pode se
espelhar no continente europeu para a efetivação do modelo de administração gerencial. O
modelo, baseado no Princípio da Eficiência Administrativa, buscava aprimorar a qualidade
dos serviços prestados pelo Estado.
Este novo Setor, conduzido por particulares, pode realizar parcerias com o Poder
Público, atuando na prestação de serviços não exclusivos de Estado. As entidades
particulares que atuam ao lado do Estado, prestando serviços de interesse público, sem a

33
PRADO, Inês Maria Coimbra de Almeida; CASTRO, Tatiane Lobato de. O controle do terceiro
setor. Revista de Direito Sanitário, São Paulo,2007. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/79474/83510>. Acesso em: 10/08/2020.
doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v8i2p11-33
145

intenção de visar lucro são rotulados como entidades paraestatais, integrantes do Terceiro
Setor. Estas entidades devem obedecer a requisitos para sua criação, determinados por lei.
O conceito acerca do tema Terceiro Setor ainda é bem vago e tratado de forma
dessemelhante pelos doutrinadores. Por este motivo, cabem aos princípios constitucionais e
os que regem à Administração Pública cumprir o papel de guiar as relações entre o poder
público e as entidades que pertencem ao Terceiro Setor.
É importante destacar, também, a importância de cada controle de atuação sobre a
Administração Pública e o Terceiro setor. O controle interno é o exercido dentro do próprio
órgão do Poder Público, realizado por comissões que avaliam a execução dos contratos e
parcerias firmadas entre o Poder Público e as entidades particulares.
O controle externo é exercido pelo Poder Legislativo com o auxílio do Tribunal de
Contas. Eles analisam se a atuação do Poder Público e da entidade foi de acordo com a
legalidade e com os princípios que regem a relação. É importante destacar que esta forma de
controle não pode exercer um controle de mérito do ato, apenas um controle da legalidade
do ato.
O controle judicial é exercido pelo próprio Poder Judiciário que atua apenas quando
for provocado. Esse controle pode ser exercido previamente à realização do ato
administrativo ou posterior a ele. Também, não pode realizar um controle de mérito, pelo
fato derivar da discricionariedade do próprio poder público. O Poder Judiciário realiza um
controle de legalidade do ato realizado, analisando se os requisitos das leis foram
devidamente respeitados ou se houve equívocos.
Cumpre destacar que, com a efetivação da democracia participativa, a população terá
uma ferramenta de fiscalização dos atos e repasses da Administração para as entidades. Com
o acelerado desenvolvimento da sociedade, o Estado acaba não conseguindo atender as
demandas da população, da maneira com que devia atuar. Caberá ao Terceiro Setor, com
suas causas sociais e inclusivas proporcionar serviços que atendam às necessidades da
parcela da população que mais precisa.
146

REFERÊNCIAS

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fundamentais: um difícil diálogo no Brasil. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 429-
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148

PRECEDENTES NO DIREITO BRASILEIRO

Camila Paese Fedrigo1

Resumo: No Brasil, em virtude de um Poder Judiciário ativista e interventor, o precedente


é pensado, criado, estabelecido e utilizado como solução do litígio, sem haver a preocupação
em obter a prestação jurisdicional que deveria ser construída pelos sujeitos do processo,
conferindo estabilidade e segurança jurídica, em respeito óbvio ao Estado Democrático de
Direito. A decisão final, como produto do processo, poderá ser alçada ao status de precedente
se tiver afastado, acolhido ou fixado os motivos determinantes deduzidos pelas partes. No
sistema civil law os precedentes não possuem caráter vinculativo, mas apenas força
argumentativa e persuasiva. O problema, entretanto, reside na utilização indiscriminada dos
precedentes por meio de enunciados genéricos e descolados da realidade ou desvinculados
dos julgamentos que lhe embasaram, como se possuíssem caráter legal ou pudessem ser
exercidos de forma dedutiva.

Resumo: Precedente. Processo. Ativismo.

INTRODUÇÃO

No Brasil, como nos demais países de direito codificado, aqueles do chamado civil
law, o precedente não tem – e não poderia ter – caráter normativo. Afinal, nos falta,
exatamente, aquele caráter consuetudinário que faz o common law funcionar, ou seja, a
vinculação aos precedentes, feita de maneira tradicional, não legislada. Não é essa a fonte
primária em nosso direito. A fonte primária de nosso direito está nas leis. Por essa razão,
devemos olhar os precedentes com diferente função e finalidade.
Os precedentes, para nós, não são normativos, mas jurisprudenciais. Buscamos neles,
não a norma, mas uma unidade de sentido para aqueles preceitos normativos encontrados
em nossas leis.

1 AS RAZÕES DOS PRECEDENTES DA JURISPRUDÊNCIA

MacCormick defende uma teoria relativamente estrita ou formalista no sentido de


uma ratio fixa e determinada, pois as decisões judiciais sobre as disputas jurídicas devem

1
Pós-Graduada em Direito. Aluna Especial do Mestrado em Direito da Universidade do Rio Grande. Advogada
OAB/RS 98.329. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0536577742508465 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8872-
8431 Contato: contato@paesefedrigo.adv.br
149

estar assentadas em regras firmes e determinadas2. É certo que o juiz não deve formular
proposições conclusivas sobre tudo o que for apresentado pelas partes, contudo deve
necessariamente produzir proposições capazes de justificar a procedência ou improcedência
das pretensões deduzidas pelas partes, salvo se a decisão sobre uma pretensão exclua
logicamente outras pretensões.
O que isso significa é que a decisão judicial deve enfrentar as pretensões aduzidas
pelas partes, nisso compreendidas as questões de interpretação das disposições jurídicas, de
classificação ou de avaliação dos fatos. Uma decisão desse tipo é tal que poderá ser colocada
em termos de universalizáveis para outros casos semelhantes, mas permanecerá sempre
aberta para justificação posterior quanto as suas consequências, consistência e coerência3.
Assim, uma ratio é uma justificação formal dada pelo juiz, suficiente para decidir as
questões jurídicas suscitadas pelas partes e necessária para a justificação da decisão judicial
mesma. Em outras palavras, a ratio decidendi corresponde à proposição normativa explícita
ou implicitamente dada pelo juiz para enfrentar os argumentos formulados pelas partes e
necessária para justificação da decisão judicial4.
O uso dos precedentes da jurisprudência na justificação das decisões judiciais
pressupõe que as razões das decisões judiciais são razões para a justificação de decisões
judiciais. É nessa condição de justificativas para decisões que as razões dos juízes e tribunais
desempenham um papel normativo.
O uso dos precedentes da jurisprudência para justificar uma decisão judicial
pressupõe a identificação e a aplicação da norma jurídica informadora das decisões judiciais
anteriores. Quando o juiz toma os precedentes da jurisprudência como razões para justificar
a sua decisão judicial, cuida-se da aplicação de uma norma jurídica – a norma jurídica do
caso já decidido, reiteradamente aplicada pelos outros juízes e tribunais. Essa é a ratio
decidendi que detém efeito vinculante ou argumentativo forte em relação às decisões
posteriores sobre casos semelhantes. Cuida-se de uma regra ou princípio decisivo para o caso

2
MacCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 146.
3
MacCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 152-153.
4
MacCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 1978, p. 215;
MacCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 153;
PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. London: Springer, 2008, p. 273.
Sobre a regra do precedente, ver Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833
(1992), In ZOLLER, Elisabeth. Grands arrest de la Cour supreme des États-Unis. Paris: Presses Universitaires
de France, p. 1123-1156, 2000.
150

julgado5, de tal modo que a decisão judicial seria outra diferente se outra fosse a sua ratio
decidendi.
É essa regra ou princípio que faz do precedente o modelo a ser generalizado para
outros casos semelhantes em seus aspectos essenciais6. Com isso, pode ser colocada a
distinção entre a ratio decidendi e a obter dicta, assim entendidas as opiniões e comentários
dos juízes que vão além do necessário para a justificação da decisão judicial. Os argumentos
sobre princípios ou sobre avaliações de outros precedentes ou, ainda, sobre as consequências
da decisão judicial, integram a classe da obter dicta7.
Segundo Marshal, o conceito de obter dicta pode ser relacionado às proposições
usadas nas razões de uma decisão judicial: (i) não relevantes para definição do caso que está
sendo julgado ou para qualquer outro caso; (ii) relevantes para a definição do caso que está
sendo julgado, mas não necessariamente; (iii) relevantes para uma questão colateral ao caso
que está sendo julgado; (iv) relevantes para a definição de questões importantes colocadas
em outros casos. A importância da obter dicta depende da sua classificação em uma dessas
quatro situações8

2 REGRAS DE APLICAÇÃO NO SISTEMA COMMON LAW

O stare decisis, abreviação da expressão latina stare decisis et non quieta movere,
que significa “mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido”9, origina-se no
common law, mas com ele não se confunde. Tal doutrina visa fundamentar a obrigatoriedade
de as cortes e os juízes observem os precedentes oriundos das cortes superiores (dimensão
vertical), ou os precedentes oriundos da própria corte que irá tomar a decisão (dimensão
horizontal).
Dentro da dimensão vertical do stare decisis, existe o chamado efeito vinculante
(binding effect), o qual, como o próprio nome diz, estabelece que os tribunais e juízos
inferiores ao tribunal do qual se origina o precedente estão vinculados à decisão proferida
por este, não podendo negar-lhes aplicação, à primeira vista.

5
MacCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 145.
6
PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. London: Springer, 2008, p. 273
7
MARSHAL, Geoffrey. What is Binding in a Precedent. In: MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert.
Interpreting Precedents. Aldeshot: Ashgate/Dartmouth, 1997, p. 515.
8
MARSHAL, Geoffrey. What is Binding in a Precedent. In: MacCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert.
Interpreting Precedents. Aldeshot: Ashgate/Dartmouth, 1997, p. 515.
9
DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 4. ed.
Salvador: JusPodivm, 2009, p.385.
151

Para que se constitua como precedente, a decisão deve enfrentar todos os


argumentos relacionados à questão do direito do caso em concreto, além de necessitar de
inúmeras decisões para ser definitivamente delineado. O precedente é a primeira decisão que
elabora a tese jurídica.
Devemos observar que o fundamento do precedente está em produzir uma norma
jurídica com potencial de aplicar-se a casos futuros, visando assegurar maior previsibilidade
na realização do direito e tratamento isonômico aos cidadãos.
Nessa senda, na doutrina do stare decisis, ou doutrina dos precedentes obrigatórios,
se entende que os juízes e tribunais devem seguir obrigatoriamente os precedentes já
existentes, no entanto, o que ocorre é que eles devem seguir a ratio decidendi, ou seja a razão
de decidir dos precedentes.
Desta forma, ao contrário da construção típica do stare decisis, as súmulas como
aplicadas em terrae brasilis tratam-se de enunciados gerais e abstratos, criados apenas para
a aplicação de casos futuros, o que é um absurdo, como tentativa de antever e aprisionar
conceitos e fatos.
Infelizmente, no ordenamento pátrio, torna-se natural conferir força de ratio
decidendi a quaisquer razões versadas nos casos, mesmo que estas não sejam necessárias aos
resultados da causa. Assim, cada um dos movimentos passa a se constituir em um ratio
decidendi (holding), sendo, portanto, vinculador de decisões relativas a análogas questões
de direito.
Por outro lado, a definição de obter dictum se dá de um modo negativo, partindo-se
da determinação do que seja ratio decidendi de um caso, ou seja, se faz uma proposição ou
regra de direito constante em um caso não faz parte de sua ratio, ela é dictum ou obter dictum,
e, por conseguinte, não obrigatória. Assim são consideradas dictum as passagens que não
são necessárias ao resultado.10
Toda decisão judicial é munida de ratio decidendi, a qual não necessariamente é
única, podendo existir uma decisão que possua diversas rationes decidendi11. É a ratio
decidendi (ou as rationes decidendi) de determinada decisão que irá fundamentar a parte
dispositiva, integrando o comando normativo.

10
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011.
11
SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2011, p.137-
138.
152

De outra banda, caso o fundamento invocado na decisão não seja relevante para a
conclusão almejada, tendo sido aduzido “de passagem”, ele não faz parte da ratio decidendi,
não sendo, consequentemente, de observância obrigatória: é o caso do chamado obiter
dictum, ou, simplesmente, dictum.
No Brasil os precedentes judiciais têm sido aplicados pelos julgadores sem ser
levada em consideração a ratio decidendi. Ou seja, consulta-se o dispositivo do precedente
(geralmente a ementa do acórdão ou o enunciado de súmula, apenas) e simplesmente o
subsume ao caso a ser resolvido, sem investigar a fundo os fundamentos que levaram o
tribunal a decidir de tal forma, como se a ratio decidendi não interessasse, como se ela fosse
uma obiter dicta de observância não obrigatória, quando, em verdade, é a ratio que
possibilita a própria existência do precedente.
Assim, como é da ratio decidendi constante em um determinado precedente que é
extraída uma regra que se pretende universalizante, passível de ser aplicada a situações ditas
semelhantes àquela que envolveu o caso que foi decidido, é inadequado aplicar tão somente
a parte dispositiva, o enunciado da súmula, sem, antes, consultar a ratio decidendi.
É por isso que a ratio decidendi possui um conteúdo flexível, pois a validade de um
precedente tem “condicionada a sua adequação à situação política, econômica e social
presente”12. Nesta senda, o tribunal ou o juiz de primeiro grau pode e deve negar aplicação
ao precedente, se verificar que ele não se conforma ao fato a ser decidido, ou se ele não mais
reflete a realidade social.
Como dito, nos sistemas de precedentes vinculantes existem, obviamente, técnicas
de aplicação e superação destes que permitem a estabilidade e uniformidade do direito e seu
natural desenvolvimento. Como técnicas principais temos o distinguishing e o overruling.
A observância de um precedente em um litígio requer uma confrontação entre fatos
materiais relevantes de dois ou mais casos, analisando assim a ratio decidendi, verificando
qual a razão de decidir do caso em julgamento. Essa técnica de confronto e diferenciação
entre fatos relevantes de dois casos é denominada distinguishing, e revela a inadequação da
aplicação da ratio decidendi do precedente ao caso sub judice, em virtude da diversidade
fática entre estes. Dessa forma, acarreta na flexibilidade do sistema, não o engessando,
fazendo justiça no caso concreto.
De outra banda, o overruling é forma de superação, isto é, de revogação de

12
SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2011, p.90.
153

precedente, ocorrendo tanto em órgão que revoga seu próprio precedente, ou em tribunal
superior que revoga precedente de um inferior hierárquico. Como requisitos para a
revogação de precedente, temos a perda da congruência social e o surgimento da
inconsistência sistêmica.
Ao contrário do que ocorre no ordenamento pátrio, para a criação e para a revogação
de um precedente, há de haver uma justificação com séria argumentação, eis que pode levar
perda de estabilidade e segurança jurídica. A perda da congruência social ocorre quando um
precedente passa a negar proposições morais, políticas e de experiência. De outro lado, a
inconsistência sistêmica se dá quando deixa o precedente de guardar coerência com outras
decisões, ou seja, quando há uma nova concepção geral em termos de teoria a evidenciar que
aquilo que se pensava acerca de uma questão ou instituto jurídico se alterou. Aqui cabem as
importantes lições de Dworkin13 sobre coerência e integridade do sistema.14
Ainda existem as técnicas do overriding e da transformaton. A primeira, é uma
técnica utilizada quando se deseja limitar ou restringir a incidência de um determinado
precedente, aproximando-se de uma espécie de revogação parcial, muito embora não se trate
de uma revogação propriamente dita.
Embasados nessa técnica, o resultado da decisão tomada pela corte julgadora é
compatível com apenas uma parte do precedente, em virtude de mudanças no entendimento
jurisprudencial no decorrer dos tempos. Assim, apesar de o overriding tratar da mesma
situação que envolve o precedente, ele não o revoga, mas, apenas, adéqua a um novo
entendimento firmado, muito embora dessa adequação possa resultar, excepcionalmente, a
revogação implícita do precedente, em sua totalidade, ao que se chama implied overruling15.
A transformation consiste na técnica adotada pelos tribunais de transformar e
reconfigurar o precedente, sem que isso importe em sua revogação explícita. Por meio dela,
a corte nega a aplicação do precedente, mas sem anunciar, expressamente, a sua revogação,
como ocorre no overruling. Em outras palavras, a transformation resulta na revogação
substantiva do precedente, e não formal. A utilização dessa técnica ocorre quando a corte
verificar que alguns fatos materialmente relevantes, que envolveram o caso discutido no

13
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
14
DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: justiça e valor. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
15
MARINONI. Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2011,
p.350.
154

âmbito do precedente, não tiveram a devida importância atribuída pelo julgador, à época.
Na transformation, muito embora o resultado a que se chega no caso julgado seja
incompatível com a ratio decidendi do precedente, se procura compatibilizar a solução do
caso com o precedente transformado ou reconstruído, mediante a atribuição de relevância
aos fatos que foram considerados de passagem.
A partir da chamada técnica de sinalização, o tribunal não pode ignorar que o
conteúdo do precedente se demonstra equivocado ou não mais deve ser observado.
Entretanto, por razões de segurança jurídica, em vez de revoga-lo, prefere apontar para sua
perda de consistência e sinalizar para sua futura revogação.16
Ainda, diz-se que embora pelo erro da tese, ou seja, razão determinante, do
precedente, admite-se que se chegou a resultado correto, porém através de equivocado
fundamento. Mas é através do overriding que a Corte limita ou restringe a incidência do
precedente, como se fosse uma revogação parcial.

3 A UTILIZAÇÃO INESCRUPULOSA DE EMENTAS E VERBETES


JURISPRUDENCIAIS

O uso inescrupuloso de ementas e verbetes jurisprudenciais sem reflexão como


âncoras facilitadora dos julgamentos tem o único fito de otimizar numericamente a
quantidade de decisões. O uso de súmulas e “precedentes” sem a devida recuperação do caso
paradigma confundem a ratio decidendi.

Daniel Sarmento17 exara que os

operadores do direito são estimulados a invocar sempre princípios muito vagos


nas suas decisões (...). Os campeões tem sido os princípios da dignidade da pessoa
humana e da razoabilidade. O primeiro é empregado para dar imponência ao
decisionismo judicial, vestindo com linguagem pomposa qualquer decisão tida
como politicamente correta, e o segundo para permitir que os juízes substituam
livremente as valorações de outros agentes públicos [como o legislador] pelas suas
próprias.

Luigi Ferrajoli direciona crítica ao uso exacerbado dos princípios como síntese de
valores e à indevida conexão entre direito e moral, asseverando que abrem espaço para o

16
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011.
17
SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. São Paulo: Coimbra,
2009. p. 112.
155

decisionismo e o ativismo judicial18. Nesse sentido é a liça de Streck:


Estamos, assim, diante de um considerável número de standards interpretativos,
que mais se parecem com topoi ou axiomas com pretensões dedutivistas. Sua
diversidade – e a absoluta falta de critérios até mesmo para a sua definição – dá
mostras da dimensão dos problemas enfrentados pelas diversas teorias que tratam
da construção das condições de possibilidade da institucionalização de princípios
efetivamente de índole constitucional. Na verdade, no modo como são
apresentados – pelo menos em sua expressiva maioria –, tais standards são
originários de construções nitidamente pragmaticistas, mas que, em um segundo
momento, adquirem foros de universalização. […] Assim, está-se diante de um
fenômeno que pode ser chamado de “pan-principiologismo”, caminho perigoso
para um retorno à “completude” que caracterizou o velho positivismo
novecentista, mas que adentrou ao século XX a partir de uma “adaptação
darwiniana”: na “ausência” de “leis apropriadas” (a aferição desse nível de
adequação é feita, evidentemente, pelo protagonismo judicial), o intérprete “deve”
lançar mão dessa ampla principiologia, sendo que, na falta de um “princípio”
aplicável, o próprio intérprete pode criá-lo.19

O termo jurisprudência indica uma pluralidade de decisões relativas a casos


concretos sobre determinado assunto, mas não sobre uma idêntica questão jurídica. No
núcleo de cada um dos pronunciamentos que formam a jurisprudência deveria haver um ato
decisório, ou seja, um precedente judicial e o alcance deste somente poderia ser inferido aos
poucos.
Todo precedente jurisprudencial é composto por duas distintas partes, que são as
circunstancias de fato que embasam a controvérsia e a tese ou o princípio jurídico assentado
na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório, que aspira a malfadada
universalidade. Outrossim, não é possível conceber um julgado como precedente se a
interpretação da norma por ele aplicada não estiver diretamente conectada ao caso concreto
que foi objeto da decisão.
A construção de verbetes sumulares remonta à tradicional prática consolidada no
sistema luso-brasileiro e não deriva da decisão de um caso concreto, mas de um enunciado
interpretativo. Assim, o dictum não faz referência aos fatos que estão na base da questão
jurídica julgada, não podendo ser considerado um precedente em sentido próprio, mas
apenas um pronunciamento judicial que traduz a eleição entre opções interpretativas
referentes a normas gerais e abstratas. Sua evidente finalidade consiste na eliminação de

18
FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo Principialista e Constitucionalismo Garantista. In: FERRAJOLI,
Luigi; et al. (org). Garantismo, hermenêutica e (neo) constitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2012.
19
STRECK, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In: FERRAJOLI, Luigi; et al.
(org). Garantismo, hermenêutica e (neo) constitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 66-
67.
156

incertezas e divergências no âmbito da jurisprudência, procurando assegurar uniformidade


na interpretação e aplicação do direito”20
O sistema civil law tem como fonte principal a lei: o parlamento ficou com a
atribuição de formulação de leis claras e objetivas, além de universais, abrangendo todas as
soluções possíveis e imagináveis para os conflitos humanos, o que se constitui claramente
uma utopia.
No sistema inglês, entretanto, berço do sistema common law, o desenvolvimento do
sistema ocorreu de forma ininterrupta, produto consuetudinário. Segundo Marinoni21, o juiz
não apenas interpretaria a lei, como dela extrairia direitos e deveres.
O precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso em julgamento, cujo
núcleo pode servir de base para julgamento a posteriori de casos análogos. Entretanto, não
é essa qualquer decisão, mas somente aquela que possui potencialidade de se firmar como
paradigma para orientação dos jurisdicionados e juízes.
Não há uma identidade entre decisão judicial e precedente, como afirma Marinoni.
Para o autor, só pode-se falar de precedentes quando há uma decisão dotada de
potencialidade de se firmar como paradigma para a orientação dos jurisidicionados e dos
magistrados.22
Assim, se todo precedente ressair de uma decisão, nem toda decisão constitui
precedente, eis que esse constitui decisão de matéria de direito, e não de matéria de fato.
Enquanto a maioria das decisões refere-se a questões de fato, no momento em que se
enfrentam questões de direito, as decisões normalmente limitam-se a anunciar o que está
escrito na lei, não revelando uma solução judicial própria para a questão de direito.23
A baixa compreensão acerca do papel dos precedentes e súmulas tem proporcionado
uma justiça que estandardiza o direito, buscando apenas a celeridade em detrimento da
qualidade.
Os juristas brasileiros restam consumidores do pensamento jurídico emanado pelas

20
TARUFFO, Michele, Las funciones de las Cortes Supremas: entre uniformidade y justicia, Proceso y
Constitución - El rol de las Altas Cortes y el derecho a la impugnación. Lima, Palestra Ed., 2015, p.136-137.
21
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011.
22
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011, p . 213-214.
23
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011, p . 213-214.
157

Cortes Superiores, e colecionadores de coisas apenas num sentido secundário e derivativo24,


sem reparar nas diferenças.
Essa formulação, contudo, não significa que uma decisão judicial tenha
necessariamente apenas uma ratio. É possível, principalmente nos julgamentos colegiados
dos tribunais, que uma decisão seja fundamentada por várias rationes, pois diferentes juízes
podem construir diferentes razões em favor de uma mesma decisão judicial concreta 25. Por
isso mesmo, um bom método para a construção da ratio decidendi é observar um conjunto
de precedentes por um razoável período de tempo26. Se a ratio são as razões necessárias para
a justificação da decisão judicial e suficientes para decidir as questões jurídicas suscitadas
pelas partes, além de universalizáveis, elas devem ser dadas conforme os critérios de
coerência e de racionalidade do sistema jurídico como um todo.
O uso dos precedentes da jurisprudência para a justificação de uma decisão judicial
pressupõe que o caso submetido ao juiz seja semelhante, em seus aspectos essenciais, aos
casos anteriormente decididos cuja ratio decidendi ganhou autoridade de regra de decisão
de aplicação universal. Se o caso concreto a ser decidido pelo juiz é semelhante, em seus
aspectos essenciais, aos casos configuradores do precedente jurisprudencial, a sua ratio
decidendi será as razões para justificação da decisão judicial concreta. Com isso, um
conjunto de regras de decisão das decisões dos tribunais configura uma rede densa de normas
jurídicas, pois cada decisão insere mais uma regra de decisão para integrar o conjunto total
e, assim, incrementa a densidade e abrangência da rede mesma.
Isso não significa que a rede de normas jurídicas dada pelas regras de decisão dos
tribunais, especialmente do STF, forma uma barreira instransponível contra a mudança e o
progresso exigidos por novas realidades e valorações. 27 A favor disso, estão as técnicas para
o uso das regras de decisão dos precedentes da jurisprudência28, tais como distinguishing,
overruling, transformation etc.

O que deve ser bem compreendido é que, por mais densa que seja a rede das regras
de decisão dos tribunais, sempre haverá possibilidade de que o caso submetido ao juiz

24
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 91.
25
MacCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 153-154.
26
PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. London: Springer, 2008, p. 273.
27
MacCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 1978, p. 219.
28
FRIEDRICH, Karl. Constitutional Government and Democracy. Waltham, Massachusetts: Blaisdell
Publishing Company, 1968, p. 109.
158

apresente características novas configuradoras de razões para uma diferenciação e, assim,


razões para a não aplicação de uma das regras de decisão já formulada. Além disso, segundo
Alexy29, a força da regra de decisão é apenas prima facie, de tal modo que uma regra de
decisão pode ser deixada de lado se razões justificativas forem apresentadas30.
O uso dos precedentes da jurisprudência como razões para a justificação das decisões
judiciais requer uma teoria adequada da justificação jurídica31. Os precedentes somente
podem ser adequadamente utilizados para a justificação das decisões judiciais se as suas
razões justificadoras são passíveis de uma identificação correta.
Uma teoria da justificação jurídica adequada somente pode ser alcançada com o
conjunto de exigências colocadas pelas regras da justificação interna e da justificação
externa. Ao lado delas, devem estar os critérios de coerência. Destaca-se, pois, a importância
da estrutura profunda alcançada pela análise da relação entre as premissas e a conclusão no
conjunto todo das razões. Somente esse exame permite identificar inconsistências e saltos
na relação entre premissas e a conclusão, seja entre os argumentos intermediários, seja no
próprio argumento final, da cadeia total dos argumentos de justificação.
Nessa análise, os critérios de coerência são decisivos para a aferição do grau de
coerência da cadeia total do sistema argumentativo. Evidentemente, que as premissas devem
ser justificadas conforme as exigências das regras da racionalidade discursiva discutidas.
Dentre essas exigências, uma das mais importantes no que diz com o uso dos precedentes da
jurisprudência para a justificação das decisões judiciais, é a que se refere à universalização
das razões. Uma justificação judicial deve satisfazer a regra que diz que a decisão judicial
deve seguir logicamente, pelo menos, de uma norma universal juntamente com outras
proposições.
O significado dessa exigência é o de que a ratio decidendi possa ser universalizada
para alcançar todas as pessoas que se encaixam nas mesmas qualificações das partes e que
estejam envolvidas em circunstâncias semelhantes às das partes. Quaisquer que sejam as
razões escolhidas, pois o juiz pode aceitar e fazer suas as razões das partes, no todo ou em
parte, assim como decidir a disputa jurídica usando razões diferentes, não trazidas pelas
partes, o que importa é que elas não sejam ad hoc e tampouco ad hominem32.

29
ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
30
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da
fundamentação jurídica. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
31
MacCORMICK, Neil. Rhetoric and the rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 144.
32
MacCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 1978, p. 148.
159

Evidentemente, essa exigência de razões universalizáveis é não absoluta, pois o juiz


não pode realizar prognoses definitivas para todas as situações da vida e tampouco as
consequências das decisões do presente podem ser tidas como definitivamente satisfatórias
no futuro.
De qualquer sorte, mantidas as circunstâncias em seus elementos essenciais, as razões
de uma decisão judicial devem ser passíveis de universalização. Segundo MacCormick, as
exigências de justiça formal, que configuram boas razões para a observância dos precedentes
da jurisprudência, estão voltadas tanto para o passado como para o futuro. Ao decidir uma
disputa jurídica, o tribunal deve levar em conta tanto as decisões anteriores sobre casos
semelhantes como também o fato de que os casos futuros também sejam decididos do mesmo
modo. A regra de justiça formal impõe o dever de tratar casos semelhantes do mesmo modo,
o que implica também o dever de que os casos sejam decididos de tal modo que os seus
fundamentos possam ser usados para decidir casos semelhantes no futuro. Assim, o juiz deve
estar disposto se valer das mesmas razões para decidir os casos futuros semelhantes em seus
aspectos essenciais33.
O uso dos precedentes da jurisprudência para a justificação das decisões judiciais
depende, então, da qualidade da justificação da decisão judicial que pretende considerar
como precedente. Nem todas as justificações de decisões judiciais podem servir como razões
para a justificação das decisões judiciais futuras. É caso, por exemplo, quando se trata de
argumentação para o caso particular, não passível de universalização para casos futuros
semelhantes.
A qualidade da justificação de uma decisão judicial pode ser aferida conforme ela se
encaixa em uma das seguintes classes, conforme o catálogo formulado por Peczenik a partir
do grau de generabilidade e de extensão das razões de argumentação da decisão judicial: (i)
pseudo-justificação; (ii) método de subsunção simples; (iii) método proposição-fato; (iv)
método dialogado; (v) método da subsunção sofisticada.
Uma pseudojustificação é tipo de justificação que não é geral e tampouco extensiva.
Esse é o caso quando o juiz se limita simplesmente a dizer que uma das partes não é titular
do direito afirmado ou que não lhe assiste razão. As razões são dadas de modo resumido ou
lacônico que não se pode identificar exatamente qual é a sua ratio decidendi. Nesse caso,

33
MacCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Oxford: Oxford University Press, 1978, p. 75.
160

cuida-se de uma decisão judicial com baixo grau de coerência e, por isso mesmo,
inaceitável34.
Uma justificação do método de subsunção simples é do tipo geral, mas
insuficientemente extensiva35. A proposição normativa concreta da decisão judicial é dada
como uma consequência lógica da subsunção dos fatos à hipótese de uma norma jurídica
universal. Esse método é insustentável nos casos difíceis, pois eles exigem interpretações e
valorações que não podem ser obtidas sem o acréscimo de premissas adicionais.
A justificação racional das decisões judiciais somente pode ser alcançada pelo
método dialogado e o método da subsunção sofisticada, pois apenas eles cumprem as
exigências de extensão e generabilidade. E somente uma geral e extensa justificação de uma
decisão judicial é aceitável36.
A justificação dada pelo método dialogado é plena de razões sobre as normas
jurídicas, os fatos e os juízos de valor37. O essencial é que cada dúvida suscitada sobre a
interpretação das normas jurídicas, verificação dos fatos, avaliação dos fatos, proposição da
dogmática jurídica e precedente da jurisprudência seja objeto de intenso jogo argumentativo
com apresentações de argumentos pró e contra uma determinada proposição. Esse método
pressupõe o entendimento de que a argumentação jurídica é diálogo cujo resultado é produzir
um equilíbrio reflexivo de razões38.
O resultado de cada questão discutida será favorável à proposição suportada pelas
razões de maior peso. Nesse sentido, Aarnio observa que o procedimento de justificação é
essencialmente um diálogo de perguntas e respostas sobre a base do qual o juiz deve
encontrar a combinação de argumentos necessária para a justificação. Uma justificação
racional somente poderá ser alcançada se for resultado de um feixe completo e coerente de
proposições39.
A questão que se coloca imediatamente é se os precedentes da jurisprudência podem
cumprir exigências de justificação extensa e universal. Em outras palavras, cuida-se de saber
se as razões de justificação das decisões judiciais devem ser obrigatoriamente extensas e
universais. Em princípio, toda e qualquer justificação judicial deve ser dada por um conjunto

34
PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. London: Springer, 2008, p. 275.
35
PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. London: Springer, 2008, p. 276.
36
PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. London: Springer, 2008, p. 277.
37
PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. London: Springer, 2008, p. 276-277
38
PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. London: Springer, 2008, p. 107
39
AARNIO, Aulis. The Rational as Reasonable. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1987, p. 187.
161

de proposições tão extenso e geral quanto possível. Quanto maior a extensão e mais geral a
cadeia argumentativa, melhor justificada a decisão judicial.
Contudo, nem sempre isso é possível, devendo-se aceitar justificações menos
extensas e menos gerais. Nesse sentido, algumas razões podem ser destacadas. Em primeiro
lugar, deve-se considerar que o juiz ao justificar uma decisão judicial muito dificilmente terá
condições de antecipar todos os casos futuros que a ratio decidendi de sua sentença poderá
alcançar, principalmente no que diz com as suas consequências. Em segundo lugar, não se
pode esquecer o objetivo primeiro do juiz é decidir uma situação concreta da vida,
alcançando às partes uma proposição normativa singular definitiva para a disputa jurídica.
Em terceiro lugar, deve ser observado que nos tribunais, algumas vezes, as soluções são
alcançadas pela via de um compromisso aceitável. Nesses casos de solução compromissária,
somente uma justificação menos extensa e menos geral será possível. Por fim, não se pode
esquecer que o juiz, considerado o número de casos que deve apreciar, não dispõe de tempo
e tampouco de condições materiais para produzir uma geral e extensa justificação de suas
decisões judiciais40.
O problema é que mais fortes razões apontam para a necessidade de justificação
judicial extensa e geral. Em primeiro lugar, está a razão de que as decisões judiciais não
podem pretender encontrar justificação e aceitabilidade pelo simples fato de que são dadas
por uma autoridade investida de jurisdição. Na sociedade contemporânea, as partes não se
limitam a obedecer às decisões judiciais pela exclusiva razão de que são dadas pelos juízes
e tribunais investidos de poder, mas querem saber as razões pelas quais devem fazer ou
deixar de fazer alguma coisa. Em segundo lugar, em um Estado de Direito constitucional
democrático, o princípio da divisão dos poderes coloca a exigência de que os juízes devem
respeitar as normas jurídicas dadas autoritativamente pelos representantes do povo. Então,
nos casos difíceis, uma justificação extensa e geral é necessária para que os juízes e tribunais
cumpram essa exigência. Em terceiro lugar, uma justificação extensa e geral é necessária
para que a decisão judicial possa ser intersubjetivamente controlada. Com isso, a decisão
judicial ganha em objetividade e segurança jurídica.
Nesse sentido, observa MacCormick que os processos judiciais implicam para os
juízes a responsabilidade pública de esclarecerem publicamente as decisões judiciais de tal
sorte que as partes, os seus procuradores, a comunidade jurídica e a sociedade perante a qual

40
PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. London: Springer, 2008, p. 278-279
162

prestam jurisdição, conheçam as razões pelas quais os juízes e tribunais decidem uma
questão jurídica concreta de uma determinada maneira. Essa apresentação de razões de
justificação como razões públicas é que faz a justiça imparcial, caracterizada pela
universabilidade41.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção de um sistema jurídico-processual racional requer mais do que a


realização imediata, mas proteção, confiança e segurança dos direitos, evitando a
instabilidade de entendimentos jurisprudenciais à brasileira.
A realidade jurídica das decisões judiciais não reflete, de forma alguma, os
pressupostos de integridade e coerência, como quer Dworkin, repetido por Streck e garantido
no Código de Processo Civil.
Os fundamentos de integridade e coerência do Direito contidos na teoria de Dworkin,
para a realidade do sistema jurídico brasileiro, podem servir de norte para a concussão dos
objetivos do Estado Democrático de Direito.

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41
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163

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Lima, Palestra Ed., 2015.

ZOLLER, Elisabeth. Grands arrest de la Cour supreme des États-Unis. Paris: Presses
Universitaires de France, 2000.
164

CONSEQUÊNCIAS DO PRECONCEITO E MARGINALIZAÇÃO


SOFRIDA POR MÃES QUE ENTREGAM SEUS FILHOS PARA
ADOÇÃO E O IMPACTO NA SAÚDE SOCIAL1
Carla Alvez Santanna2

Resumo: O presente artigo busca mostrar as devastadoras consequências pessoais e sociais


causadas, a partir, de um mito criado e imposto pela sociedade, o mito do amor materno. O
Estado e a Igreja são os maiores responsáveis pela criação deste mito no decorrer da história,
e também, são os grandes incentivadores para que este se perpetue. As mulheres que
entregam seus filhos em adoção são discriminadas pela sociedade, sendo deixadas em uma
situação de abandono e exclusão, sofrendo de um total desamparo emocional, jurídico e
estatal. Abordaremos os principais motivos que levam uma mulher a entregar seu filho,
sendo estes de todas as ordens como econômica, emocional, psíquica, ausência de apoio
familiar e do parceiro, falta de aceitação da sociedade, escassez de informação, entre outras.
Com isso as consequências, para essa mulher, refletem tanto na esfera social quanto na penal,
que ocorre quando sem vislumbrarem alternativas, estas mulheres abandonam seus filhos de
uma forma inadequada, e com isso acabam por cometer um crime tipificado em nosso
Código Penal Brasileiro como abandono de incapaz, ou até mesmo chegam a praticar o
infanticídio. Veremos também quais são os impactos sobre a mulher que decide entregar o
filho para a adoção, quais são os passos até que esta entrega se concretize, e como essa
mulher reage após a entrega. E por fim, qual é a responsabilidade do estado frente a estas
mulheres, e a necessidade de políticas públicas para a assistência neste momento tão delicado
que é a entrega de um filho em adoção.

Palavras chaves: Mulheres doadoras. Abandono. Políticas Sociais

INTRODUÇÃO
O preconceito com mulheres que não querem assumir a maternidade vem de longa
data em nossa sociedade, e foi criado através de interferências da Igreja e do Estado em prol
de seus interesses. No período colonial foi criada a chamada Roda dos Expostos, que era um
dispositivo que ligava a rua com o interior das Santas Casas, no qual eram colocadas as
crianças entregues por suas famílias. Os motivos nas famílias mais elitizadas eram de cunho
moral, para esconder adultério e desonra, já nas famílias mais pobres os motivos eram
econômicos, que causavam a impossibilidade de permanecerem com a criança. A Roda

1
Artigo desenvolvido para a Escola Superior do Ministério Público – FMP/RS, para o processo seletivo de
artigos para o e-Book “Elas na Advocacia II.
2
Advogada inscrita na OAB/RS sob o nº 114.541 da Subseção de Sant’Ana do Livramento/RS, Graduanda em
Direito Agrário e do Agronegócio da Fundação do Ministério Público – FMP, Coordenadora da Comissão de
Direito Agrário e do Agronegócio – CEDAA Subseção de Sant’Ana do Livramento, e membro da CEDAA
Estadual -OAB/RS, membro da Comissão da Mulher Advogada Subseção de Sant’Ana do Livramento.
165

esteve em funcionamento até o ano de 1950. O Brasil foi o último país a terminar com este
dispositivo, mas foi o primeiro na criação de leis de proteção e amparo das crianças e
adolescentes.
Com a eliminação deste dispositivo e com a instituição do amor materno como algo
inerente a todas as mulheres, as que tomam a decisão de entregarem seus filhos, passaram a
ter que conviver com grandes problemas, o preconceito e a marginalização sofrida dentro da
sociedade, e o abandono e desamparo por parte do Estado. Frente a esta situação tornou-se
inquietante a necessidade de fazer um estudo para entender melhor a origem deste
preconceito, e de encontrar as falhas existentes por parte do Estado no cuidado e amparo
dessas mulheres, para assim, de alguma forma achar uma alternativa efetiva e viável de
solução para esta questão.
Para entendermos melhor o assunto a ser tratado em nosso estudo, será necessário o
esclarecimento de termos como abandonar, perder e entregar, tanto semanticamente quanto
na visão judiciária, para isso faremos um comparativo entre eles, e exemplificaremos para
melhor elucidação.
Abordaremos a relação entre mãe e filho, como o mito do amor materno foi criado,
e qual a vantagem deste para a Igreja e o Estado. Como sua criação influenciou na vida da
mulher, quais as consequências que este mito trouxe, como por exemplo, ser a mulher/mãe
a única responsável pela vida e bem estar do seu filho. Como era a relação em épocas
anteriores, o envio de crianças para as amas de leite e posteriormente para internatos, épocas
estas em que a mãe quase não tinha participação na criação de seus filhos. Com a pressão
feita através do instinto maternal, a Igreja e o Estado, mantinham a mulher sob controle e
auxiliando em seus interesses. Enquanto a igreja fazia com que a mulher se mantivesse
submissa ao marido e preservando a felicidade familiar, o Estado por outro lado, ganhava
com o crescimento de mão de obra para a geração de riquezas e também do contingente
militar para a defesa do país. Com o incentivo da maternagem a mulher que não se dedicava
ao filho era vista como uma mãe má, e assim, o sentimento de culpa e frustração crescia
entre as mulheres que não queriam ser mães. Ocorre que, com isso, essas mães passam por
uma espécie de luto, que nestes casos é o chamado luto não franqueado, o qual também
abordaremos. Outro fato que produz consequências nessa relação é o da gravidez na
adolescência ou maternidade precoce, com estruturas emocionais e econômicas frágeis ou
166

inexistentes, as adolescentes que engravidam cedo passam por essa triste situação, sem
alternativa ou falta de estrutura psicológica amadurecida, entregam seu filho para adoção.
Levantaremos também as causas e consequências sociais e penais da recusa da
maternagem. Vários são os fatores que levam a essa atitude de recusa, como rejeições
sofridas por estas mulheres por seus companheiros e famílias, a pressão social por suas
condições de mães solteiras e dependentes economicamente, e até mesmo a intenção de
proteger a criança, por último ainda, temos o fato de a maternidade não fazer parte dos planos
de algumas mulheres. As consequências são de várias ordens, quando a mulher não consegue
vencer o preconceito e permanece com a criança, na parte social pode ocorrer a entrega tardia
para a adoção, maus tratos, abandono em situações desumanas, chegando até mesmo ao
infanticídio. Na esfera penal, estas condutas assumem a tipicidade de quatro ilícitos tratados
em nosso Código Penal Brasileiro, quais sejam, o abandono de incapaz (art. 133 do CP),
exposição ou abandono de recém-nascido(art. 134 do CP), o infanticídio (art. 123 CP), e o
crime de maus tratos (art.136 do CP)
Para encerrar trataremos da importância de políticas sociais, tanto para criação de
mecanismos de apoio e prevenção, quanto para direcionamento de ações realmente efetivas
de ajuda a estas mulheres.
Para este estudo foi utilizado o método de pesquisa em doutrinas, artigos, livros de
psicologia, bem como livros que tratam deste tema e sites especializados na internet.

HISTÓRIA DE MULHERES/MÃES – CULTURAL E SOCIAL DO ABANDONO NO


BRASIL

A entrega de um filho para a adoção é uma atitude extremamente repudiada em nossa


sociedade atual, mas este preconceito teve início a partir de interferências da Igreja e do
Estado e no que diz respeito à relação entre mães e filhos. O papel da mulher no período
colonial, entre os séculos XVII e XVIII, é voltado especificamente para a família e o lar, esta
era vista apenas como uma reprodutora dentro de uma relação lícita e sacramentada, devendo
ser submissa, obediente e cordata, assim como exigiam a igreja, o Estado e a sociedade.

Cuidar da casa, dos filhos e do marido, configurava-se os atributos da mulher no


Brasil desde o tempo da Colônia. A condição social da mulher no olhar dos
homens, herdeiros dos valores portugueses era de um ser inferior. A mulher ocupa
o mesmo lugar onde também eram compreendidos crianças e doentes mentais.
(MENDONÇA, João Guilherme Rodrigues, apud RIBEIRO, 2000)
167

No período colonial a entrega das crianças era realizada através da Roda dos
Expostos, definida por Motta como “dispositivo instalado na parede lateral ou frontal das
Santas Casas de Misericórdia. Consistia num cilindro que unia o interior da Santa Casa à
rua.” (MOTTA, 2008, p.53). Estes abandonos, geralmente, eram para ocultar um adultério
ou uma desonra nas classes mais elitizadas, mas também servia como alternativa para as
mães que não tinham condições de criarem seus filhos, classificadas por DEL PRIORE
“como auto-sacrificadas, submissas sexualmente e materialmente reclusas, a imagem da
mulher de elite se opõe à promiscuidade e a lascívia da mulher de classe subalterna em regra
mulata e índia” (Araújo, Renata Pedroso apud Del Priore, 1993.P.46). Para MENDONÇA,
retratar a condição da mulher no Brasil Colônia, é compreender que a Igreja e o Estado foram
duas instituições significativas para a modelagem dessa mulher. Apesar da submissão e
dependência da mulher em relação ao marido, estas acabavam por várias vezes
administrando sozinhas suas vidas, frente aos frequentes abandonos dos homens para
explorações e desbravamentos de riquezas da Colônia.
Além do controle da Igreja e do marido, a mulher também sofria o controle do pai e
posteriormente a essas figuras sociais, aparece o controle e o poder do médico. Para
MENDONÇA, “O discurso médico sustenta o religioso, naturalizando a condição da mulher
como aquela que procria.”. O autor fala sobre os caminhos e descaminhos do período
colonial que lançaram a mulher “no silêncio e no obscurantismo de sua presença”, seu corpo
e sua presença era uma ameaça, da mesma maneira que era ameaçada pelo homem no que o
autor chama de “representações de senhor, marido, líder da Igreja, e da justiça”.
A história do abandono no Brasil é relatada desde a colonização, mas independente
dos motivos que levavam as mães a abandonarem seus filhos, sendo estes de ordem
econômica, social, psicológica, dentre outros, não podemos dizer que este abandono ocorria
sem dor para essas mulheres. CARVALHO, em seu estudo - História do abandono de
crianças no Brasil, afirma que no século XVIII, um dos principais motivos de abandono era
a mãe ser solteira quando engravidava.
A sociedade brasileira do século XVIII não aceitava que mulheres solteiras
tivessem e criassem seus filhos, pois era uma sociedade na qual os valores morais
e éticos acabavam prevalecendo – consequentemente, as mães solteiras sofriam
um processo de discriminação e preconceito.

Em seu livro A Mulher na História do Brasil, DEL PRIORE, na seção quatro “Ser
mãe na Colônia”, deixa claro, a visão que se tinha da maternidade no Brasil Colônia, e
168

mesmo com todas as intervenções da igreja e do governo, não havia efetividade em suas
tentativas de submeter à mulher aos seus desígnios. Nessa época o abandono era, por vezes,
uma necessidade, pois as mulheres não tinham condições de assumirem seus filhos, frente a
pobreza, a miséria e o abandono dos progenitores de seus filhos, e desta forma ter um filho
para muitas mães solteiras significava ‘mais uma boca para alimentar’ (Renata Pedroso
Araújo - Ser Mãe na Colônia). Entre estas mulheres encontravam-se as brancas, as pobres e
as escravas, todas unidas pelas dificuldades. Segundo Renata Pedroso Araújo: “A pobreza e
a ausência de um esposo que as pudesse ajudar levavam inúmeras mulheres a abandonar
seus filhos, ou mesmo tentar criá-los sob a extrema miséria.”
Diante a situação de extrema pobreza muitas mulheres da cidade não tinham outra
opção a não ser destinar seus rebentos ao abandono, ao infanticídio, e algumas ainda faziam
o aborto. Já no campo, onde as transformações e o crescimento eram mais lentos, o abandono
era raro, pois conforme MOTTA:

A ausência de um sistema escravista estruturado protegia as crianças do abandono,


pois, para camponeses sem escravos e pescadores pobres, a força de trabalho
familiar ocupava um papel fundamental na sobrevivência da unidade doméstica.
(MOTTA, Maria Antonieta Pisano, 2008, P. 54)

Outro fator preponderante era o de que na cidade o número de miseráveis era muito
elevado, e no campo existiam pessoas pobres, mas poucos miseráveis. O abando nesta época
é muito atribuído aos motivos morais, principalmente entre as mulheres brancas, onde a
igreja estabelecia e fiscalizava os comportamentos que deveriam estar dentro dos padrões
por ela ensinados, DEL PRIORE (1989) aponta que, “um filho ilegítimo (de mulheres negras
e mestiças) não desonrava a mãe no mesmo grau de uma mulher branca.” (ARAUJO, Renata
Pedroso, apud DEL PRIORE, 1989. P. 198). Assim sendo, finaliza ARAUJO:

A Roda dos Expostos procurava evitar os crimes morais, protegendo as mulheres


brancas e solteiras dos escândalos, ao mesmo tempo que oferecia alternativa à
crueldade do infanticídio

Em certos casos é possível identificar o abandono por amor, e não pela condenação
moral ou amores ilícitos, pois existia uma preocupação maior com a saúde e o bem estar da
criança. As crianças abandonadas nesses casos já eram batizadas, pois se esta viesse a óbito,
não estaria sem o sacramento do batismo. Era comum nesses casos a mãe manter a esperança
de um dia recuperar seu filho.
169

“O acréscimo de uma criança a essas famílias colocava pressões impossíveis sobre


os parcos recursos financeiros. Depois de lutar contra a fome, uma mãe poderia
chegar a ser induzida a colocar o filho na Roda da Misericórdia.”

Com o elevado número de abandonos foram criadas as Rodas dos Expostos, definidas
por Motta, em sua obra Mães Abandonas, como:

“Roda dos Expostos: dispositivo instalado na parede lateral ou frontal das Santas
Casas de Misericórdia. Consistia num cilindro que unia o interior da Santa Casa à
rua. Era aberto num de seus lados, onde a criança era depositada, para em seguida
ser girado sobre seu próprio eixo, levando a criança para “dentro” dos muros,
quando então o “expositor” tocava uma sineta para avisar à rodeira que uma
criança havia sido exposta.”

Aqui no Brasil estas Rodas foram instaladas ainda no período Colonial,


permanecendo até a República, sendo a última Roda desativada em 1950, estas vieram como
um auxílio prestado pelo governo para a sociedade e as crianças que eram recolhidas nas
Santas Casas de Misericórdia. No período colonial somente Salvador e o Rio de Janeiro
possuíam tais Rodas, passando a grande desenvolvimento após a independência, foram
instaladas um total de doze rodas até meados do século XIX.
MOTTA, citando Venâncio (1997) “a Roda tinha por finalidade não constranger
pessoa alguma, nem quem levava a criança, nem quem a recolhia.”. O Brasil foi o último
país a terminar com a Roda, que existiu até o ano de 1950, mas foi o pioneiro em criar leis
específicas para as crianças e adolescentes após a Convenção Internacional sobre os Direitos
da Criança, em 1989.
Anterior a isso, CARVALHO, aduz que, com o grande crescimento de crianças
abandonadas na década de 1920, o governo brasileiro iniciou a implantação de ações para
tentar resolver esta questão, criou orfanatos, escolas profissionalizantes e escolas
correcionais (para menores infratores), em 1927 foram criadas as primeiras leis em favor das
crianças, o chamado Código de Menores. E em 1990 o governo brasileiro criou o Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA, que regula as políticas em favor da criança e do
adolescente e institui seus direitos e deveres.

ABANDONAR, PERDER E ENTREGAR NA VISÃO DO JUDICIÁRIO

Para que possamos entender com mais clareza, é necessário conhecermos os


significados dos termos abandonar, perder e entregar, os quais serão muito usados no
decorrer do nosso estudo. Assim, trabalharemos com o dicionário de língua portuguesa
170

Michaelis, que defini a palavra abandonar como deixar em abandono, desamparar, renunciar
a, desistir de afastar-se, retirar-se, entregar-se, render-se; perder tem o sentido de ficar sem a
posse, sem a propriedade, sem o domínio de; e para entrega temos o significado de passar
para a posse de alguém. Na visão do judiciário estas palavras preservam a relação com seus
significados semânticos, o abandono em relação à criança é considerado crime previsto nos
artigos 133 e 134 do Código Penal Brasileiro, que tratam sobre o abando de incapaz e
exposição ou abandono de recém-nascido, sendo então, abandono o ato de deixar alguém
exposto a situações de perigo, das quais não possa se defender. Para exemplificarmos o
instituto da perda em nosso ordenamento, usaremos o Estatuto da Criança e do adolescente
- ECA (Lei 8069/1990), em seu artigo 23 que preceitua: “Art. 23. A falta ou a carência de
recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder
familiar.”
A entrega na visão do judiciário, dentro do nosso tema, destina-se ao ato realizado
pela mãe biológica de entregar seu filho para a adoção, abrindo mão desta maneira do poder
familiar. Este ato está amparado pela lei 8.069/90 em seu artigo 8º, § 5º, que diz: “A
assistência referida no § 4º deste artigo deverá ser também prestada a gestantes ou mães que
manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção.”

RELAÇÃO ENTRE MÃES E FILHOS

Superada esta primeira parte de conceituação, passaremos a falar sobre a criação do


mito do amor materno, que surgiu por interesses da Igreja e do Estado. Para que alguns
costumes, antes entendidos como normais nas mulheres fossem mudados, entraram em ação
dois fortes formadores de opinião e principalmente de padrões a Igreja e o Estado. A mulher
passou a ser considerada como a única responsável por zelar pela vida e o bem estar do seu
filho. Nos séculos XVII e XVIII, segundo BANDINTER (1985), as mulheres entregavam
seus filhos para que amas de leite cuidassem toda a primeira infância, grande parte dessas
crianças morriam sob os cuidados dessas amas, as condições dessas mulheres na maioria das
vezes era de miserabilidade. Eram mulheres pobres que deixavam de amamentar seus
próprios filhos para ganhar algum dinheiro amamentando os filhos de famílias com mais
condições financeiras. Nesse cenário a mortalidade infantil era algo comum, a morte dessas
crianças não era sentida por suas famílias como uma grande perda, sendo essa criança
rapidamente substituída por um novo filho do casal, que por sua vez, seria novamente
171

enviado para amas de leite. As crianças que sobreviviam logo que voltavam para a casa de
seus pais eram enviadas para colégios internos. As mães praticamente não participavam do
desenvolvimento de seus filhos, e esta atitude era vista como normal, sem acarretar nenhum
tipo de reprimenda para com esta mulher. Com a pressão feita através do dito instinto
maternal, uma grande responsabilidade abateu-se sobre as mulheres para atender os
interesses da Igreja, de manter a mulher submissa às vontades do homem e manutenção da
felicidade familiar, e o interesse estatal de mão de obra para obtenção de riquezas e poderio
militar para garantir a defesa do país. E assim, em nossa sociedade atual persiste esta
premissa, de que a mãe ama seu filho desde a concepção, e que este amor é intrínseco a todas
as mulheres, e as que não sentem esse amor dito natural ou instintivo, são tidas como
mulheres sem coração e vistas como mães más ou desnaturadas.
Para que os interesses da Igreja e do Estado fossem atendidos, a maternagem, que é
segundo Ivana S. Paiva Bezerra de Mello, “o processo de criação dos vínculos afetivos entre
pais e filhos”, foi incentivada e elevada a um grau onde a mãe que não tivesse a dedicação
necessária era vista como uma mãe má. Tamanha era a cobrança, que a culpa e a frustração
começaram a fazer parte dos sentimentos dessas mulheres que não queriam ser mães. Com
essa nova forma de encarar a maternidade criou-se o mito do amor materno, em que aquela
mulher que não se enquadra é desprezada e excluída pela sociedade.
Conforme BADINTER, no último terço do século XVIII, ocorreu o que ela chama
de revolução das mentalidades, onde a imagem da mãe, de seu papel e de sua importância, é
modificada de maneira radical, mesmo que na prática, os comportamentos demorassem a ser
alterados.
Após 1760, abundam as publicações que recomendam às mães cuidar
pessoalmente dos filhos e lhes “ordenam” amamentá-los. Elas impõem, à mulher,
a obrigação de ser mãe antes de tudo, e engendram o mito que continuará bem
vivo duzentos anos mais tarde: o do instinto materno, ou do amor espontâneo de
toda mãe pelo filho. (BADINTER, 1985. P.145)

Dessa forma, fica ainda mais evidente que o sentimento cobrado pela sociedade de
todas as mães foi algo imposto, e que esse amor materno não é algo natural e inato às mães.
Conforme BADINTER (1985, p. 145), as publicações referentes ao amor materno
começaram após 1760, isso se deu para que a imagem da mulher fosse modificada, e assim,
esta assumisse as obrigações impostas a ela.
Os sentimentos vividos por mães que entregam seus filhos são por diversas vezes de
tristeza e remorso, tanto antes da decisão ser tomada, como depois da entrega ser realizada,
172

e assim, essas mulheres permanecem em um luto interminável. MOTTA (2008, P.86), em


seu livro Mães Abandonadas, traça um paralelo entre a perda sofrida pela entrega do filho e
as ocorridas por morte. Para ela “trata-se de uma perda muitas vezes abrupta e definitiva, tal
como, se a criança tivesse morrido.” E assim a autora explica que o luto sofrido pela mãe
biológica, é um luto não autorizado socialmente, é o que ela chama de luto não franqueado.
MOTTA, também explica o fato de seu filho seguir existindo e se desenvolvendo, embora
inacessível a ela, e a expectativa criada de um dia encontrá-lo, faz com que ocorram fantasias
perturbadoras, fazendo aumentar a culpa nessas mulheres.
As mães que entregam ou mesmo as que abandonam seus filhos, passam pelo luto
não franqueado, que pode durar por meses, anos e até mesmo por toda a vida. Este luto não
franqueado faz com que a pessoa que sofre uma perda tenha pouca ou nenhuma chance de
pedir auxílio para superá-lo, pois este é um luto não aceito pela sociedade. MOTTA cita um
conceito dado por Doka (1989), em que define este luto como: “aquele que as pessoas
experimentam quando ocorre uma perda que não é ou não pode ser abertamente conhecida,
publicamente lamentada ou socialmente apoiada.”
Este luto, por não ser aceito, não pode ser vivenciado da maneira necessária,
tornando-se complicada a sua superação. Ele não pode ser revelado, dividido, pois isto
poderia levar a uma reação ainda mais negativa da sociedade. MOTTA cita exemplos de
lutos não franqueados como perda de animais de estimação, de parceiros homossexuais pela
AIDS, de um filho por aborto provocado, de um parceiro extraconjugal, e dos filhos
“voluntariamente” entregues em adoção. Desta forma, pessoas que têm atitudes fora dos
padrões sociais admitidos, não tem direito de enlutar-se, estas pessoas arcam com a rigidez
de parâmetros predeterminados, que se não são seguidos, tornam-se cruéis e intransponíveis,
passando a serem indignas de compreensão e auxílio.
Em sua obra, MOTTA traz uma análise de dados de uma mãe denominada M1,
objetivando a identificação de fatores presentes na entrega de um filho em adoção.

A partir da discussão de alguns desses pontos nos propomos a formular sugestões


que visam essencialmente ao atendimento das mulheres que pretendem entregar
seus filhos, bem como ao preparo dos profissionais que as atendem. (Motta, 2008,
P.147)

M1 foi entrevistada no total de 10 vezes, as entrevistas foram feitas antes do parto,


após o parto e o contato feito mais de um ano e meio depois da entrega. M1 tinha 27 anos na
época da entrevista, no ano 1988, cor negra, aparência bastante agradável, de instrução
173

secundária, e profissão “garota de programa”, como ela mesma identificou-se. Os relatos


desta mãe são carregados de tristeza, sua história é cheia de perdas, tragédias, agressões,
abusos e falta de apoio. M1 entregou dois bebês para adoção, o primeiro foi fruto de um
estupro coletivo, e o segundo gerado por um problema no preservativo quando estava com
um cliente.
Questionada se a permanência com a criança dependia de sua situação econômica,
M1 deixou claro que, mesmo que tivesse boas condições econômicas, mesmo assim, não
permaneceria com a criança. Demonstrando dessa forma que existiam outros motivos
concorrentes com a situação financeira que determinaram a não permanência com o filho
que concebeu. Como ambas as gestações de M1 foram frutos de relações desprovidas de
afeto, era difícil que fosse estabelecido uma relação emocional, da mãe com as crianças, que
gerasse o desejo de permanecer com elas, pois, não existiam as condições afetivas
necessárias para que a vinculação entre mãe e filho fosse instituída.
Ocorre ainda outro tipo de situação que implica em uma relação mãe/filho
complicada, que é a gravidez na adolescência ou maternidade precoce. Isso porque a menina,
na maioria das vezes, não tem estrutura emocional e econômica adequada para arcar com a
responsabilidade de assumir uma criança, sofrendo por vezes também com o abandono do
parceiro e da própria família, que não aceitam aquela gravidez. Sem ter onde ficar e sem
nenhum apoio e condições de criarem seus bebês, muitas vezes estas meninas entregam seus
filhos, ou até mesmo os abandonam, em uma atitude de extremo desespero. Ocorre também
a situação de serem forçadas pelos pais ou pelos companheiros a ter esse tipo de atitude para
que possam preservar sua sobrevivência, que por vezes, é garantida por estas pessoas,
tamanha a dependência econômica e emocional que estas possuem.

A RECUSA DA MATERNAGEM E SUAS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS E PENAIS

Existem inúmeros fatores que levam uma mulher a recusar a maternagem, desde a
época do Brasil Colônia, com algumas alterações daquela época para os dias de hoje. Para
MENEZES,
Praticado no Brasil desde a época colonial, o abandono de infantes nos dias atuais,
pode apresentar algumas motivações daquele período, mas, certamente, envolve
outros processos dada à diferença da condição feminina e o contexto sociocultural
entre as duas épocas. Um gesto que era lícito e tolerado antes, agora é
veementemente condenado. (MENEZES, Karla Fabiana Figueiredo Luna de,
(2007), Discurso de Mães Doadoras)
174

Os motivos para a entrega de crianças pelas mães biológicas variam entre rejeições,
pressão social ou até por proteção da mãe para com a criança. Como um exemplo prático,
temos o caso de M1, analisado por MOTTA, em várias passagens de suas entrevistas, M1
revela o abandono sofrido a partir do falecimento de sua mãe quando tinha apenas 2 anos de
idade, a desestruturação sofrida por sua família teve graves consequências em seu
desenvolvimento. Motta conclui, “Família para M1, pelo contrário, significa pouco ou talvez
algo perdido há muito tempo e agora carregado de conotações negativas, pois para ela a
família é a que rejeita, a que não ampara” (MOTTA, 2008, p.158). Este seria um dos grandes
fatores da entrega de seus dois filhos para que fossem adotados.
Existe ainda, para MENEZES, o que ela chama de rejeição da condição da
maternidade, que ocorre quando estas mulheres não se veem como mães, não desejam ter
filhos. Fala também da pressão sofrida pelas mulheres jovens, solteiras, dependentes
financeira e emocionalmente, que pressionadas tanto pela família quanto pela sociedade
“acabam por “reconhecer” a presença inconveniente dos filhos em suas vidas” (MENEZES,
2007, P. 36).
MENEZES explica, que “A doação por proteção pressupõe um ato de amor”, na falta
de condições de suprir as necessidades da criança, a mãe entrega seus cuidados a alguém
que o possa fazê-lo. Este ato se traduz em uma forma de proteção para esta criança, mesmo
com sofrimento a mãe entende ser melhor para o seu filho que este seja entregue a quem
possa dar melhores condições de vida.
Vislumbramos consequências sociais de todas as ordens em se tratando da entrega de
um filho, pois quando esta está cercada de mitos e preconceitos, não se consegue encaminhar
a situação de maneira que os danos sejam minimizados. A sociedade atual não aceita o fato
de uma mulher não querer permanecer com o seu filho, podendo com isso acarretar sérias
consequências. Para MOTTA (2008, p.25), quando a criança permanece com a mãe porque
esta não consegue vencer o rótulo e a vergonha de ser considerada desnaturada, pode ocorrer
de a criança ser abandonada tardiamente sem chances de ser adotada.
Nessas situações o risco que estas crianças correm de virem a ser maltratadas é muito
grande, inclusive de serem abandonadas em situações desumanas e até mesmo serem vítimas
de infanticídios. MOTTA constata ainda uma triste realidade:

[...] o estigma social, a censura e a incompreensão em relação ao ato de entregar


um filho em adoção, ou à ideia de vir a fazê-lo, dificultam a compreensão racional
175

e a empatia, levando-nos ao afastamento e à exclusão destas mulheres de nosso


mundo pessoal e até de nosso interesse profissional, explicando, pelo menos em
parte, a escassez de pesquisas nesta área. (MOTTA, 2008, P.32)

Com esta postura nos afastamos cada vez mais de uma solução adequada para este
tipo de situação, deixando desamparados por vezes as crianças e, em sua maioria, as
mulheres doadoras. MOTTA afirma que:

A falta de elaboração adequada da entrega de um filho pode talvez explicar os


casos nos quais o ciclo abandono-adoção tende a se repetir. Não raro, após a
entrega de um filho decorrem sucessivas gravidezes que parecem grosso modo
objetivar preencher o vazio de um luto não elaborado, talvez até aplacar a culpa
decorrente de tal ato. Tudo o que essas mulheres conseguem é aprofundar cada vez
mais o fosso, contribuindo para a praga social do abandono sucessivo de crianças.
(MOTTA, 2008, P. 34)

Outra triste consequência, na visão de MOTTA, ocorre quando após a destituição do


poder familiar, acontece o arrependimento destas mulheres, gerando “uma disputa pela
criança, que muitas vezes, já desenvolveu a sua vinculação com os pais adotivos”, e assim,
temos um grande sofrimento por todos os envolvidos. Uma solução apontada por MOTTA é
a possibilidade de diagnosticar a decisão da mãe, para assim, orientá-la da melhor maneira.
A desmistificação destas mulheres geraria uma clara visão de toda a situação,
desnudando-a de todo e qualquer preconceito, criando a possibilidade para que essa entrega
ocorra com todo o cuidado necessário, tanto para a criança quanto para a mãe biológica.
As consequências penais são resultados de condutas tipificadas em nosso Código
Penal Brasileiro, o abandono de incapaz, a exposição ou abandono de recém-nascido e o
infanticídio. O abandono de incapaz encontra-se no artigo 133 do Código Penal que diz:
“Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por
qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes doa abandono:”, a pena neste
delito é de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, se resultar lesão corporal de natureza grave a pena
é de 1 (um) a 5 (cinco) anos de reclusão, se resultar em morte, a pena vai de 4 (quatro) a 12
(doze) anos de reclusão. A exposição ou abandono de recém-nascido, está no artigo 134 do
Código Penal que diz: “Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria”,
as penas deste artigo variam de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, podendo ser
majoradas nos casos do § 1º se do fato resulta lesão corporal de natureza grave, a pena é de
detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e no caso do § 2º se resulta a morte, pena de detenção,
de 2 (dois) a 6 (seis) anos. O infanticídio está previsto no artigo 123 do mesmo Diploma
176

Jurídico, e preceitua: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante
o parto ou logo após.”, neste caso a pena é de detenção de 2 (dois) a (6) seis anos. Para o
crime de maus tratos, prescrito no artigo 136 do Código penal, a redação é esta:

Expor a perigo à vida ou à saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou


vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a
de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo
ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Para esse crime a pena varia de 2 (dois) meses a 1 (um) ano de detenção, se do fato
resultar lesão corporal de natureza grave de 1(um) a 4 (quatro) anos de reclusão, se resultar
em morte a pena é de 4 (quatro) a 12 (doze) anos de reclusão. Também é previsto um aumento
de pena de 1/3 (um terço), se o crime é praticado contra menor de 14 (quatorze) anos.

IMPORTÂNCIA DE POLÍTICAS SOCIAIS

A mulher que entrega o filho para a adoção é excluída, esta não desperta sentimentos
de piedade e compaixão na sociedade que a condena, sem nem ao menos escutar suas razões
para a entrega. De outro lado existe o Estado, que como assegura nossa Constituição Federal,
é o guardião dos interesses dos cidadãos, cabendo a este a proteção dos direitos
fundamentais, sendo um deles a dignidade da pessoa humana, artigo 1º, III, CF/88, que é
valor absoluto em nosso ordenamento pátrio.
A sociedade, não aceita que uma mãe entregue seu filho para a adoção, dessa forma
quando ocorre essa situação a mulher que toma tal atitude é execrada e rechaçada, ganhando
o rótulo de mãe desnaturada. Assim, tem-se a sensação de que o melhor a ser feito é ignorar
e discriminar essa mulher.
Quanto ao estado e seu fundamento da dignidade da pessoa humana, este se refere a
valores espirituais e morais da pessoa, remete ao respeito à vida e ao próximo. Nos casos de
entrega de uma criança para a adoção, os interesses do menor não podem superar o valor da
pessoa da mãe que o entregou. Todas as partes merecem atenção, respeito e cuidado, assim
como a criança recebe proteção e amparo, a mãe biológica não pode sofrer com o abandono
e o desamparo nesse momento.
O que ocorre, é que no momento em que a mãe biológica manifesta sua vontade de
não permanecer com o seu filho, as atenções se voltam para a criança e a família que irá
acolhê-la, estes recebem acompanhamento psicológico, atenção do judiciário, entre outros
177

respaldos. O que não acontece com a genitora, que fica a mercê dos julgamentos da
sociedade e tem que enfrentar sozinha a triste realidade de ter que superar, ou não, este
momento tão traumático.
O Estado não ampara estas mulheres, ferindo o seu fundamento basilar,
desvalorizando algo de suma importância, que é o princípio de dignidade da pessoa humana.
Campanhas de incentivo à adoção são fomentadas pelo Estado, ao mesmo tempo em que
incentivam de forma implícita, que as mães não entreguem seus filhos para adoção. São
posturas antagônicas, pois, encoraja-se de um lado a adoção, e por outro julgam-se as
decisões de entrega sem ouvir as razões que levaram a esta decisão.
São necessárias reais implantações de políticas públicas em benefício destas
mulheres, não é aceitável que se coloque panos quentes para abafar uma situação
insustentável de abandono e descaso em um momento tão difícil e solitário de ser superado.
Em seu estudo MOTTA, trata em um tópico sobre os aspectos sociais e institucionais,
ressaltando que:

A carência de apoio social em nosso meio evidencia-se na falta de programas de


atendimento a essas mulheres em quaisquer das fazes do processo de decisão de
entrega, na escassez de locais para acolhimento da mãe com o seu filho, na
ineficiência e/ou inexistência de programas de educação sexual à adolescente,
assim como de prevenção à natalidade para mulheres de um modo geral; revela-se
ainda na falta de instituições que acolham mãe e criança em ambiente de trabalhos
ou estudo, o que mostra de modo flagrante a falta de ações sociais esclarecedoras
e de cunho profilático no nosso meio. (MOTTA, 2008, p. 151)

A grande maioria dessas mulheres já está em situação de abandono por parte do


Estado, seja por sua condição econômica, seja por falta de informação, elas estão à margem
da sociedade, e assim permanecem invisíveis às políticas sociais. Para TERRA e REIS, em
seu estudo intitulado Consolidação da cidadania: Um compromisso de todos, enfatizam que
na atualidade, não se admite que a responsabilidade pela efetivação da cidadania, em face
dos direitos humanos, seja apenas do Estado, devendo esta recair sobre o que chamam de
“dúplice estrutura”: Estado e sociedade pelo fato de que cada um dos cidadãos é, ou deve
ser responsável pela construção e efetivação da sua própria cidadania, bem como dos demais
cidadãos, pois esta condição (cidadão) agrega tanto direitos quanto deveres. E concluem que
é necessária uma revisão e transformação social, assim como um engajamento da sociedade,
Estado e demais organismos comprometidos em projetos de inclusão social, para poder com
efetividade “redefinir, ou melhor, reconstruir o significado e a concretude da cidadania
enquanto valor guia.” (TERRA E REIS, 2008, p.73).
178

Existem as chamadas ações afirmativas, como as demais formas de políticas


públicas, enfrentam avanços e retrocessos. Para conceituá-las usaremos as palavras de
GOMES, que define:

Consiste em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do


princípio constitucional da igualdade material e à neutralização do efeito
da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição
física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo
por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as
manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada
na sociedade. (GOMES, 2001 apud RICHTER e TERRA, 2007, p.138)

Definição que se encaixa com extrema exatidão em nosso tema, pois se trata de
flagrante discriminação sofrida por estas mulheres, baseada em uma concepção social, de
bases extremamente fortes, de certa forma impostas pelo estado, e muito incentivada por
este, assim sendo, verifica-se que a implantação de ações afirmativas, tem uma finalidade
social de buscar a eliminação da exclusão de grupos que enfrentam uma série de
preconceitos, em nosso caso, as mães que entregam os filhos para a adoção. São programas
que envolvem políticas públicas, mecanismos de inclusão tanto por entidades públicas
quanto por entidades privadas, bem como órgãos de competência jurisdicional.
RICHTER e TERRA definem a sociedade brasileira, como sendo uma sociedade
marcada por uma forte característica que é a da exclusão social, de negação de direitos
sociais, profundamente excludente e concentradora, isso se dá pela sua origem história de
escravidão e preconceito. E questionam se a implantação de ações afirmativas, inseridas
neste contexto incluiria os “excluídos”, ou institucionalizaria e perpetuaria a discriminação
e a exclusão social. A exclusão social é fruto de vários fatores como a falta de acesso a bens
e serviços, à segurança, à justiça, à cidadania, juntando esses fatores com as desigualdades
econômicas, políticas, culturais e éticas, as ações afirmativas devem ir além de seus básicos
propósitos, devem indicar os caminhos a serem seguidos para se chegar ao seu objetivo.
É essencial a criação de programas de apoio, assim como, a criação de locais de
abrigo, de acesso à informações e que ofereçam apoio técnico com psicólogos, assistentes
sociais, apoio jurídico, bem como a criação de campanhas de auxílio às mulheres que
entregam seus filhos. E para que esses instrumentos de apoio tenham uma real efetividade,
é fundamental que os profissionais sejam treinados para atenderem essas mulheres da melhor
maneira, sem dúvida a preparação das equipes que atenderão nessas instituições de abrigo,
hospitais e também no judiciário será de uma grande relevância. Para MOTTA,
179

Os procedimentos adotados pelas equipes hospitalares, das casas de abrigo e


judiciárias em relação às mulheres que pretendem entregar seu filho em adoção
exercem, em nossa opinião, certa influência sobre o modo como as mães que
pretendem entregar seus filhos em adoção atravessarão o processo de decisão e o
período de luto, após efetivarem a entrega da criança. (MOTTA, 2008, p. 156)

É necessário que estas pessoas percebam que estão envolvidas em um processo que
ocorre em meio a um profundo sofrimento, e que não se trata de uma pessoa sem
sentimentos, desnaturada ou fria, e sim de uma mulher em extremo abandono. O treinamento
deve ser baseado em informações de como proceder nos casos em que uma mulher expõe o
desejo de não permanecer com seu bebê, fazer com que entendam que por trás desta decisão
existem vários fatores que influenciaram esta escolha, e que não cabe o julgamento sem o
conhecimento profundo desses motivos, cabendo sim, uma atitude de compaixão frente a
essa situação. Este treinamento deve ser destinado aos profissionais da área de assistência
social, que geralmente são os primeiros a serem procurados ou indicados nesses casos, e que
devem ter sensibilidade para conduzir a situação, orientando as atitudes a serem tomadas em
cada fase da entrega, devendo atuar após a conclusão desta, assegurando que a mulher receba
atenção no período posterior à concretização da entrega. Aos profissionais da saúde,
médicos, enfermeiros e técnicos em enfermagem que participam de uma fase muito delicada
que é o parto, momento em que a mulher está sobre fortes influências hormonais, emocionais
e de dores físicas, sendo que em alguns casos é de escolha de algumas mulheres não ter
contato físico e visual com a criança, como forma de proteção e na tentativa de diminuírem
seus sofrimentos, devendo esta decisão ser respeitada por estes profissionais. Importante
também, que os aplicadores do direito estejam preparados para atuarem nos casos de entrega
de crianças pelas mães biológicas, visto que são parte importante nessa delicada situação,
onde o desfecho é a destituição do poder familiar, e o posterior encaminhamento da criança
entregue para a adoção.
O acompanhamento posterior ajudará na recuperação dessas mulheres, podendo
evitar um círculo infindável de entregas de crianças pelas mães, que sem apoio e informação
acabam de uma maneira repetindo uma situação de abandono, tentando preencher um vazio
deixado em suas vidas a cada entrega.
Com profissionais preparados, uma boa parte do sofrimento dessas mães pode ser
aplacado, e com um acompanhamento durante todas as fases que envolvem a entrega, desde
a decisão até a sua concretização, a sociedade ganha em saúde pública, pois vários problemas
180

advindos de uma atitude impensada são evitados, e principalmente porque estará sendo
cumprida uma função estatal, que é a de proteção da dignidade da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esta análise sobre mulheres que entregam seus filhos para adoção, podemos
concluir que, se fosse desmistificado o amor materno e dada maior atenção para esta situação
de abandono que se abate sobre essas mulheres, poderíamos evitar muitos males sociais e de
saúde pública. Com o esclarecimento da sociedade, de que a mulher pode não querer ser
mãe, ou não permanecer com o filho, não é de forma nenhuma uma demonstração de
insensibilidade ou de se tratar de uma mãe desnaturada. Devemos analisar ao invés de
criticar, procurar saber mais a fundo o que realmente se passa com essa mulher, tornar-nos-
ia pessoas mais sensatas no julgamento dessas atitudes. Visto que, por trás da entrega de um
filho, existem histórias de abandono físico e moral, agressões, falta de estrutura familiar e
psicológica, desinformação, e também desamparo econômico e do Estado.
Frente a estas situações, como podemos condenar uma pessoa que é, se não a maior,
vítima de uma sociedade ultrapassada em seus conceitos, e de um Estado omisso em seu
dever de zelar pelo bem estar de seus cidadãos? Na situação atual, de como é tratada essa
relação mãe e filho, sofrem as duas partes com a incompreensão de uma decisão, que na
maioria das vezes não é fácil de ser tomada, e muito menos de ser sustentada e assumida.
Com a total falta de apoio, mulheres que não se acham em condições de assumirem a
responsabilidade da maternidade, se veem em uma triste situação, pois, não encontram uma
maneira de realizar a entrega de seus filhos, sem que tenham que passar por situações
desagradáveis de preconceito, desaprovação e repúdio, por parte da sociedade e dos
profissionais envolvidos nessa situação, mas que ainda não estão preparados para dar a
atenção necessária para essa mulher. Estamos falando de médicos, enfermeiros, assistentes
sociais, e profissionais do direito, que colocam acima do profissional, seus valores pessoais,
que na maioria das vezes são viciados em bases morais retrógradas.
Tratando de forma adequada e com políticas públicas realmente eficazes e de
aplicação objetiva, poderemos amenizar o sofrimento que estas mulheres enfrentam quando
tomam esta decisão. Ganha a sociedade em relação à manutenção de um direito assegurado
pela Constituição Federal de se ter a dignidade da pessoa humana preservada. Uma
alternativa é a criação de ações para acesso à informação, de que entregar um filho para
181

adoção não é considerado crime, e sim uma alternativa dada para mulheres que não podem
ou não querem criar seus filhos, e dessa forma dão oportunidade dessa criança vir a ser
adotada por casais que estão na fila de adoção. Outra opção é a criação de uma instituição
de amparo, apoio e acompanhamento dessas mulheres, desde a decisão da entrega e
posteriormente ao nascimento, pois geralmente é neste período que esta mulher está mais
vulnerável emocionalmente, tendo que assimilar os fatos acontecidos.
Superada esta fase crítica de forma adequada, a possibilidade de que esta mulher
tenha maiores problemas de aceitação e recuperação emocional, passará a ser bem menor, e
contribuindo dessa forma para a prevenção dessa situação de abandono.
Com algumas mudanças em nosso modo de ver essas mulheres e de estrutura Estatal,
conseguiremos evoluir para uma nova forma de avaliar uma situação que está cada vez mais
próxima a nós, qual seja, a de que várias mulheres não almejam a maternidade. Prova disto
é a recente matéria publicada no jornal Zero Hora do dia 20 de outubro de 2013, no caderno
DONNA, cujo título era “Felizes sem Filhos”, onde mulheres deixavam claro que a sua
realização não passava pela maternidade. Devemos respeitar a decisão tomada por essas
mulheres, pois cada um sabe de si e o que é melhor para a sua vida.

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TRINDADE, J. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do Direito, 6ª ed. Porto


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183

CONTRATOS AGRÁRIOS: NECESSIDADE DE


ATUALIZAÇÃO LEGISLATIVA - IMPORTÂNCIA DOS
PRESCEDENTES E DA GESTÃO DE RISCO DAS CLÁUSULAS
CONTRATUAIS. 1
Carla Alves Santanna2

Resumo: O presente artigo se propõe a levantar questões relevantes ligadas aos contratos
agrários, e suas implicações, evidenciando a importância da gestão de contratos por
profissionais qualificados e preparados para redigi-los e analisá-los. Os contratos agrários
por sua natureza, trazem importantes questões que se encontram asseguradas nas legislações
específicas como o Estatuto da Terra – Lei 4.504/64 e seu Decreto Regulamentador
59.566/66, bem como as demais legislações aplicáveis ao tema como o Código Civil, e
precedentes atuais onde estão sendo mitigados e atualizados entendimentos sobre as relações
contratuais de partes igualitárias, passando também pela nova Lei da Liberdade Econômica
– Lei 13.874/19 e suas implicações nos contratos agrários. Abordaremos os temas relevantes
e sensíveis aos contratos agrários para que fique evidenciada a necessidade de uma boa
análise e atualização dos entendimentos jurisprudenciais, para que os contratos possam ser
mais dinâmicos e dessa forma se moldem ao novo estilo do agronegócio atual. Quais os
reflexos que podem afetar os contratos e como podem ser evitados transtornos para os
produtores contratantes. Este trabalho será pautado em doutrinas e jurisprudências referentes
ao assunto tratado.
Palavras chave: Contratos Agrários – Gestão de Contratos – Segurança Contratual –
Atualização Legislativa

INTRODUÇÃO
Os contratos agrários são recorrentes no meio rural, vários são feitos de maneira
ainda muito primitiva por pessoas não qualificadas ou até mesmo despreparadas para a
elaboração, por muitas vezes as partes com intuito de economia servem-se de modelos
prontos encontrados na internet, e que muitas vezes não está adequado às suas necessidades,
e com isso acabam por ter desagradáveis e onerosas surpresas quando uma das partes não
cumpre com o acordado.

1
Artigo desenvolvido para a Escola Superior do Ministério Público – FMP/RS, para o processo seletivo de
artigos para o e-Book “Elas na Advocacia II.
2
Advogada inscrita na OAB/RS sob o nº 114.541 da Subseção de Sant’Ana do Livramento/RS, Graduanda em
Direito Agrário e do Agronegócio da Fundação do Ministério Público – FMP, Coordenadora da Comissão de
Direito Agrário e do Agronegócio – CEDAA Subseção de Sant’Ana do Livramento, e membro da CEDAA
Estadual -OAB/RS
184

A realidade é que não existe mais espaço para o amadorismo dentro do agronegócio,
que é o setor que mais cresce e que tem segurado a economia brasileira. Por agronegócio
temos que pensar em toda a cadeia produtiva de que dele decorre, inclusive os pequenos
produtores e de agricultura familiar, pois estes estão sendo erroneamente dissociados de todo
o restante dessa cadeia do agronegócio.
Os contratos agrários típicos estão tratados no Estatuto da Terra – Lei 4.504/64 e seu
Decreto Regulamentador 59.566/66, nestas duas regulamentações, temos as diretrizes
contratuais do arrendamento e da parceria rural, ambos surgiram em um momento em que o
Estado precisava agir com dirigismos nestas relações para que o campo fosse fortalecido
através da segurança dada às partes mais vulneráveis à época. Com o passar dos anos e a
evolução das relações contratuais e comerciais, estas duas leis carecem de novas
interpretações e atualizações para se adequar aos novos paradigmas contratuais do
agronegócio.
Existe dentro das cláusulas protetivas, asseguradas nesses dois institutos, Estatuto
Terra e o Decreto Regulamentador, sendo três as mais sensíveis, quais sejam: prazos
mínimos – Art.13, II do Decreto 59.566/66, preço – Art.18 do mesmo decreto, e o direito de
preferência Art.92, §3º, do Estatuto da Terra e arts. 45, 46 e 47 do Decreto, que serão
abordadas com mais ênfase posteriormente. Mas como já falamos, pela necessidade de
adequação da lei aos novos formatos dos contratantes, já temos novas interpretações
exaradas das nossas Cortes Superiores, às quais também abordaremos, sobre o tema dos
precedentes.
Outras leis esparsas também vêm ao encontro desta necessidade de atualização das
relações dos contratos agrários, uma delas é a Lei 13.874/19 - Lei da Liberdade Econômica,
bem como precedentes que estão dando uma nova interpretação às leis vigentes que também
abordaremos neste artigo.
Para este estudo foi utilizado o método de pesquisa em doutrinas, artigos, livros de
direito civil, de direito agrário e do agronegócio, bem como jurisprudências e precedentes.

CONTRATOS AGRÁRIOS

As relações envolvidas no agronegócio, são precipuamente lastreadas pelos contratos


agrários, tanto os típicos quanto os atípicos, sendo os típicos os quais nós trataremos neste
artigo, e os contratos atípicos, que são aqueles que não possuem uma regulamentação
185

específica, mas que são plenamente assegurados pelo ordenamento jurídico geral, e que não
farão parte desta abordagem. Para que possamos desenvolver melhor o tema neste artigo
proposto, vamos conhecer em linhas gerais os contratos típicos, que permeiam as relações
jurídicas neste universo do agro.
Iniciamos definindo o que significa contratos em Direito Romano, nas palavras de
Sílvio Venosa, “A palavra contractus significa unir, contrair”3, ainda esclarece o autor, “No
Direito Romano primitivo, os contratos como todos os atos jurídicos, tinham caráter rigoroso
e sacramental, com isso entendemos que os contratos são formados para unir as partes em
uma situação de contratação contraída por ambas as partes, e que por tanto devem por elas
serem adimplidas e respeitadas. As formas deviam ser obedecidas, ainda que não
expressassem exatamente a vontade das partes.” (VENOSA, 2018). Com estas definições,
percebemos que o contrato tem um caráter vinculante das partes que dele participam, e no
Direito Romano a forma era uma premissa fortemente cobrada.
Com o advento do Estatuto da Terra e seu Decreto Regulamentador, a relação entre
às partes foi moldada de maneira a garantir a proteção da parte mais fraca na relação
contratual, que na época eram, assim considerados, os arrendatários e os parceiros
outorgados, pela situação em que se encontravam de vulnerabilidade nessa relação.
Ademais, também devemos observar os princípios aplicáveis aos contratos agrários,
entre outros temos aqueles que são os principais que seriam: o Princípio da Função Social
do Contrato, o da Justiça Social e o da Prevalência do Interesse Público Sobre o Privado,
vamos abordar rapidamente cada um deles.
O Princípio da Função Social da Propriedade, encontra-se normatizado, na
Constituição Federal de 1988, em seu art. 186, que determina que este será alcançado
quando, simultaneamente atender a quatro critérios e graus de exigência estabelecidos em
lei o aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservados do ambiente; observância das disposições que regulam as relações
de trabalho e; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.

3
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil Contratos. 18ª ed. – São Paulo: Atlas, 2018 (Coleção Direito Civil;
V. 3). p.4
186

Temos o Princípio da Justiça Social, disposto na parte final do art. 170 da CF/88, que
se refere, conforme RIZZARDO, “a conciliação da liberdade de iniciativa e valorização do
trabalho humano”4, se encontra também no art. 1º, §1º do ET que diz:

“§ 1° Considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a promover


melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso,
a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade.”
(grifo meu)

O Princípio da Prevalência do Interesse Público Sobre o Privado, vem trazer o


dirigismo estatal e contratual para os contratos agrários, trazendo às cláusulas protetivas, são
aquelas cláusulas de aplicação obrigatórias, as chamadas cláusulas cogentes. Então estes
seriam os princípios basilares a serem tratados neste artigo, sempre lembrando que existem
vários outros que também se aplicam aos contratos agrários.
Continuando, como comentado anteriormente, em nosso sistema jurídico, temos as
figuras dos contratos típicos, e a dos contratos atípicos. Vejamos:

“A posse ou uso da terra sob a forma de arrendamento e parceria agrícola etc. são,
legalmente, as únicas formas típicas para essas atividades. No entanto outros
contratos agrários existem em que se usa e goza a terra fora desses parâmetros
legais, sem deixarem de ser atividades agrícolas ou pecuária, tais como o
pastoreio, a pastagem, o uso da água, das florestas, sociedade rural etc. 5

Os contratos típicos, são aqueles que se encontram regulamentados na Lei 4.504/64


chamada Estatuto da Terra, bem como em seu Decreto Regulamentador 59.566/66, ambos
são legislações específicas ou especiais, que são utilizadas no regramento dos contratos
agrários típicos, nelas estão definidas as regras para a confecção dos instrumentos contratuais
e são carregadas de dirigismo estatal.
Os contratos de arrendamento e parceria, se referem à posse, uso e gozo da
propriedade rural. Diz o Decreto 59.566 de 14 de novembro de 1966:

“Art 1º O arrendamento e a parceria são contratos agrários que a lei reconhece,


para o fim de posse ou uso temporário da terra, entre o proprietário, quem detenha
a posse ou tenha a livre administração de um imóvel rural, e aquêle que nela exerça
qualquer atividade agrícola, pecuária, agro-industrial, extrativa ou mista.”
(Brasi,1966)

4
RIZZARDO, Arnaldo. Curso de Direito Agrário. 3.ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2015. p. 32
5
OPITZ, Oswaldo; OPTIZ, Sílvia. Curso Completo de Direito Agrário.2.ed. São Paulo:Saraiva,2007. p.238
187

As normas ali dispostas sobre estes contratos são de aplicação obrigatória em todo o
país, e como preceitua o texto do seu Art.2º “irrenunciáveis os direitos e vantagens nelas
instituídos”, ou seja, às normas têm força cogente, ainda reforça em seu parágrafo único, que
qualquer acerto contratual que contrarie as normas ali estabelecidas, serão nulas de pleno
direito e de nenhum efeito.
Assim sendo, temos a força do Estado, limitando a atuação livre da vontade das
partes, para que sejam resguardados os direitos dos mais vulneráveis na relação contratual.
Quanto à forma, eles podem ser escritos ou verbais, sendo que nos verbais a presunção é que
as cláusulas ajustadas estão estabelecidas nos moldes do Art. 13 do Regulamento 59.566/66.
Já para os escritos, existe um rol a ser cumprido, e as indicações do que deve constar
encontram-se no Art. 12 do citado Decreto.
As normas obrigatórias, em qualquer uma das formas escrita ou verbal, estão tratadas
no Art. 13 do referido Decreto, as mais sensíveis que podemos destacar, que são imperiosas
em um contrato, e por tanto devemos sempre nos atentar, são as relacionas aos prazos
mínimos, aos valores e ao direito de preferência, pois estas podem trazer transtornos judiciais
se não respeitadas, que podem chegar até a retenção da terra pelo arrendatário ou o parceiro
outorgado. Vamos entender um pouco mais sobre essas cláusulas.
Vamos iniciar pela cláusula dos prazos de vigência do contrato, estes termos estão
dispostos no Estatuto da Terra, bem como no Decreto, eles são prazos mínimos que a lei
exige de vigência, para assegurar o melhor uso da terra, e para que a função social seja
atingida.
Para cada tipo de atividade, existe um prazo, e estes estão estipulados no Art. 13, II,
“a”, e variam de 3 a 7 anos, dispostos da seguinte forma: para atividade de exploração e
lavoura temporária ou pecuária de pequeno e médio porte o prazo mínimo é de 3 (três) anos;
para atividade de exploração de lavoura permanente ou de pecuária de grande porte para
cria, recria, engorda ou extração de matérias-primas de origem animal, o prazo mínimo é de
5 (cinco) anos; já para a exploração de atividade florestal esse prazo mínimo é de 7 (sete)
anos. Estes prazos mínimos deverão ser obedecidos pelas partes, mas se não constar o prazo
de vigência no contrato, ele será entendido como a contratação do prazo mínimo de 3 (três)
anos. Já existe um precedente da 3ª Turma do STJ, de Relatoria do Ministro João Otávio
188

Noronha, com o entendimento que para a atividade pecuária de Bovinos, o prazo deve ser
reconhecido de 5 anos.6
Outra cláusula importante se refere ao preço a ser pago, e a redação do Art. 13, III,
deixa muito clara a obrigatoriedade de ser fixado em quantia certa e em dinheiro, ou o seu
equivalente em frutos ou produtos, respeitando a forma trazida pelo art. 95, XII, do ET e do
art. 17 do Decreto Regulamentador. Esta cláusula também se encontra no art.18 do Decreto
Regulamentador que dispõe o seguinte:

“Art 18. O preço do arrendamento só pode ser ajustado em quantia fixa de


dinheiro, mas o seu pagamento pode ser ajustado que se faça em dinheiro ou em
quantidade de frutos cujo preço corrente no mercado local, nunca inferior ao preço
mínimo oficial, equivalha ao do aluguel, à época da liquidação.”

Ficando expressamente determinado que o valor deve ser ajustado em quantia fixa,
mas o pagamento pode ser ajustado em dinheiro ou em quantidade de frutos, nunca inferior
ao preço mínimo oficial.
Por último, temos a cláusula sobre o direito de preferência, está consta no art.94, IV
do Estatuto da Terra, bem como no art. 22 do Decreto, e neles se observa que o
arrendatário/parceiro outorgado, em igualdade de condições com terceiros o direito à
renovação do seu contrato, e é obrigação da outra parte notificá-lo das propostas recebidas
6 (seis) meses antes do fim da vigência do contrato, sob pena de ser considerado
automaticamente renovado. Está preferência, poderá não prevalecer, se no mesmo prazo de
6 (seis) meses antes do termo final, o proprietário da terra declarar a intenção de explorar a
área diretamente ou por descendentes seus. As notificações de desistência ou de proposta,
deverão ser feitas por Cartórios de Registro de Títulos e Documentos, da localidade da
situação do imóvel, ou por requerimento judicial.

6
RECURSO ESPECIAL. INTERPOSIÇÃO NA VIGÊNCIA DO CPC/1973. CONTRATO DE
ARRENDAMENTO RURAL. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. ATIVIDADE DE CRIAÇÃO DE
GADO BOVINO. PECUÁRIA DE GRANDE PORTE. PRAZO DE DURAÇÃO. 1. A Constituição Federal
de 1988 dispõe que a propriedade atenderá a sua função social (art. 5º, XXIII), revelando -se, pois, como
instrumento de promoção da política de desenvolvimento urbano e rural (arts. 182 e 186). 2. O arrendamento
rural e a parceria agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativista são os principais contratos agrários voltados
a regular a posse ou o uso temporário da terra, na forma do art. 92 da Lei n. 4.504/64, o Estatuto da Terra.
3. A atividade pecuária para a criação de gado bovino deve ser reconhecida como de grande porte, de modo
que incide o prazo de 5 (cinco) anos para a duração do contrato de arrendamento rural, no s termos do art.
13, II, a, do Decreto n. 59.566/66. 4. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1336293 RS 2012/0161288-1,
Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 24/05/2016, T3 - TERCEIRA
TURMA, Data de Publicação: DJe 01/06/2016)
189

Outro ponto relevante da legislação, trata do alcance da legislação específica, e de


sua adequação e gozo dos benefícios nelas previstos, entre outros incisos do art. 38 do
Decreto, destaca-se o inciso II que fala sobre a exploração direta e pessoal nos termos do art.
8º do mesmo decreto, que diz:

“Art 8º Para os fins do disposto no art. 13, inciso V, da Lei nº 4.947-66, entende-
se por cultivo direto e pessoal, a exploração direta na qual o proprietário, ou
arrendatário ou o parceiro, e seu conjunto familiar, residindo no imóvel e vivendo
em mútua dependência, utilizam assalariados em número que não ultrapassa o
número de membros ativos daquele conjunto.

Parágrafo único. Denomina-se cultivador direto e pessoal aquêle que exerce


atividade de exploração na forma dêste artigo.”

Ou seja, a exploração deverá ser realizada direta e pessoalmente pelo produtor, para
que seja beneficiário das cláusulas protetivas determinadas na legislação. Isto nos servirá
como base para outros entendimentos que serão abordados futuramente neste artigo.
Por fim, a extinção destes contratos se dará pelos critérios constantes no art. 26 do
Decreto 59.566/66.
E assim encerramos os principais pontos a serem abordados sobre os contratos
agrários.

NECESSIDADES DE ATUALIZAÇÕES LEGISLATIVAS

Percebemos que esta atuação estatal, com normas de aplicação obrigatória, trazem
alguns transtornos aos contratos típicos agrários, pois, sendo elas normas cogentes, impedem
que as partes possam contratar de maneira livre sobre prazos, preços e direito de preferência,
cláusulas que vimos anteriormente e que são altamente sensíveis em um contrato, e isso
acaba por gerar uma crise na atualidade das contratações, visto que houveram muitas
mudanças nos últimos 50 anos, e que aqueles que eram vistos como vulneráveis, atualmente
já não mais os são.
É latente a necessidade de atualização da legislação agrária, pois o mercado do agro
está em pleno desenvolvimento, e precisa de mais maleabilidade para que os contratantes
possam determinar livremente sobre cláusulas que afetam diretamente a possibilidade de
contratação, e para que a função social e de justiça social sejam realmente atingidas, como
queria o legislador.
Essa crise nos contratos agrários se observa, pois a realidade atual dos contratos
agrários, não mais se coadunam com a legislação que os rege, notadamente a dinâmica do
190

agronegócio necessita de mais agilidade e flexibilidade nas contratações, sob pena do


proprietário da terra não dar o uso necessário para alcançar a função social, por receio de
não dispor da sua terra para negócios futuros, caso o arrendador ou parceiro venha a reter a
terra por prazo mínimo que não pode ser livremente estipulado, ou eventual direito de
preferência que poderá vir a ser alegado.
Podemos observar, que o Estatuto da Terra, teve a intenção de proteger o mais
vulnerável dentro concepção da época, que era o arrendatário e o parceiro outorgado, essa
vulnerabilidade pode ser fática, econômica, jurídica ou de informação. É o que chamamos
de condições das partes, a autonomia privada é condicionada pela autonomia dada pela
ordem jurídica, para a realização dos negócios jurídicos, frente a isso, podemos perceber que
essa proteção já não mais corresponde aos anseios dos contratantes, e assim chegamos à mais
esta crise.
Estudiosos sobre o assunto alegam que a proteção realizada, estaria exacerbada, e
com isso não estaria funcionando, e que a melhor maneira de pacificar seria chegar a um
equilíbrio contratual entre as partes, e a proteção da confiança e uso da boa-fé.
Por este pensamento as cortes superiores como o Superior Tribunal de Justiça e o
Supremo Tribunal Federal, já vêm atuando em seus julgados, brilhantemente
fundamentados, e que através de jurisprudências e precedentes, atualizam os entendimentos,
o que consequentemente levará a uma atualização legislativa tão almejada pelos produtores
e operadores do direito.
Estas novas interpretações dadas pelo STJ, em termos de legislação
infraconstitucional, bem como as do STF em termos constitucionais e de leis federais, são
uma das maneiras de conseguirmos uma atualização antes de edições de novas leis.
Com uma readequação dos princípios norteadores dos contratos agrários,
anteriormente tratados e levando-se em consideração que o Código Civil, se aplica
subsidiariamente aos contratos aqui tratados, os princípios por ele emanados, como o eixo
central das relações contratuais, onde o microssistema do Estatuto da Terra está relacionado,
também se aplicam aos contratos agrários. Como principais destacamos o Princípio da Boa-
fé Objetiva – assim definido no art.422 do Código Civil 2002 como o dever dos contratantes
em guardar tanto na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios de
probidade e de boa-fé, isso quer dizer que as partes têm obrigação de agir com lealdade e
ética nas suas relações contratuais assumidas.
191

Outro princípio é o da Função Social do Contrato, art. 421 do C.C/02 o qual em breve
síntese, se refere à integração do interesse coletivo, com o privado. Nas palavras de
VENOSA:
“A função social do contrato avalia-se, portanto, na concretude do direito, como
apontamos. Todo esse quadro deve merecer deslinde que não coloque em risco a
segurança jurídica, em dos pontos fulcrais mais delicados das denominadas
cláusulas abertas. Este será o grande desafio do aplicador do Direito deste
século.”7

Temos também o Princípio da Autonomia da Vontade, é aquela dada pela ordem


jurídica ao indivíduo que tenha condições de analisar as suas cláusulas contratuais. Esta
vontade não é ilimitada, visto que deve se manter dentro do que é determinado pela lei. E
também, o que rege o pacta sunt servanda, que determina que o que for tratado entre as
partes deve por elas ser observado.
Outra fonte que é observada pelos contratos agrários, são os usos e costumes, pois
percebemos em nosso país, uma gama infinita de relações contratuais e que acabam por
serem avençadas conforme as necessidades de cada região.
Para que possamos melhor entender as interpretações, vejamos o que nos traz o art.
113 do CC/2002: “Art.113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-
fé e os usos do lugar da sua celebração.”
No próximo tópico vamos abordar como estes institutos estão sendo usados para
atender a necessidade de atualização das normas contratuais agrícolas.

ATUALIZAÇÃO POR PRESCEDENTES

Neste tipo de atualização, ocorre a interpretação das leis vigentes, mas sem a
alteração do texto legislativo, os precedentes são emanados pelos Tribunais Superiores, e
passam a fazer parte das formas interpretativas usadas em casos semelhantes que se
apresentem ao judiciário.
Não estamos falando de uma desconstituição de um instituto, e sim de adequá-lo aos
novos tempos e problemáticas atuais, com o que nela já consta.
No caso dos contratos típicos, temos o exemplo que já vimos anteriormente, das
limitações trazidas pelo art. 38 do Decreto Regulamentador, que prevê que somente gozarão

7
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil Contratos. 18ª ed. – São Paulo: Atlas, 2018 (Coleção Direito Civil;
V. 3). p.23
192

dos benefícios das cláusulas nele contidas, se forem realizadas por quem explora a terra de
forma direta e pessoal.
O Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em Recurso Especial, afastou o direito de
preferência de arrendatário, pessoa jurídica, com base no inciso II do art. 38 do Decreto
59.566/66, no Recurso Especial, segue Ementa:
RECURSOS ESPECIAIS. CIVIL. DIREITO AGRÁRIO. LOCAÇÃO DE
PASTAGEM. CARACTERIZAÇÃO COMO ARRENDAMENTO RURAL.
INVERSÃO DO JULGADO. ÓBICE DAS SÚMULAS 5 E 7/STJ.
ALIENAÇÃO DO IMÓVEL A TERCEIROS. DIREITO DE PREFERÊNCIA.
APLICAÇÃO DO ESTATUTO DA TERRA EM FAVOR DE EMPRESA
RURAL DE GRANDE PORTE. DESCABIMENTO. LIMITAÇÃO PREVISTA
NO ART. 38 DO DECRETO 59.566/66. HARMONIZAÇÃO DOS
PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA JUSTIÇA
SOCIAL. SOBRELEVO DO PRINCÍPIO DA JUSTIÇA SOCIAL NO
MICROSSISTEMA NORMATIVO DO ESTATUTO DA TERRA.
APLICABILIDADE DAS NORMAS PROTETIVAS EXCLUSIVAMENTE
AO HOMEM DO CAMPO. INAPLICABILIDADE A GRANDES EMPRESAS
RURAIS. INEXISTÊNCIA DE PACTO DE PREFERÊNCIA. DIREITO DE
PREFERÊNCIA INEXISTENTE. 1. Controvérsia acerca do exercício do direito
de preferência por arrendatário que é empresa rural de grande porte. 2.
Interpretação do direito de preferência em sintonia com os princípios que
estruturam o microssistema normativo do Estatuto da Terra, especialmente os
princípios da função social da propriedade e da justiça social. 4. Proeminência
do princípio da justiça social no microssistema normativo do Estatuto da Terra.
5. Plena eficácia do enunciado normativo do art. 38 do Decreto 59.566/66, que
restringiu a aplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra
exclusivamente a quem explore a terra pessoal e diretamente, como típico
homem do campo. 6. Inaplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra
à grande empresa rural. 7. Previsão expressa no contrato de que o
locatário/arrendatário desocuparia o imóvel no prazo de 30 dias em caso de
alienação. 8. Prevalência do princípio da autonomia privada, concretizada em
seu consectário lógico consistente na força obrigatória dos contratos ("pacta sunt
servanda"). 9. Improcedência do pedido de preferência, na espécie. 10.
RECURSOS ESPECIAIS PROVIDOS.
(STJ - REsp: 1447082 TO 2014/0078043-1, Relator: Ministro PAULO DE
TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 10/05/2016, T3 - TERCEIRA
TURMA, Data de Publicação: DJe 13/05/2016)

Na referida decisão, do Exmo. Ministro Sanseverino, proferiu que as proteções


despendidas pelo Estatuto da terra não serão aplicadas às grandes empresas. Isso se deve ao
fato de que nos encontramos em um novo contexto social dentro do agronegócio, elas de
nenhuma forma são, na relação contratual agrária, as partes mais vulneráveis. Ficando esse
entendimento expresso no acórdão de relatoria do Ministro, ele de maneira brilhante e muito
bem fundamentada, elaborou um marco jurisprudencial, onde um precedente passou a ser
firmado, deixando claro que inexiste vulnerabilidade por parte das grandes empresas, dessa
193

forma não há o que se falar em proteção dada pelo Estatuto da Terra, onde a sua intenção é
de proteção ao mais vulnerável.
Em outra decisão do STJ da 3ª Turma, em julgamento do Recurso Especial nº
1.692.763 – MT, tivemos por maioria, o reconhecimento da viabilidade da execução de um
contrato de arrendamento, que teve a fixação do seu valor em produto, esse entendimento
foi baseado no princípio da boa-fé objetiva, e nos costumes da região. O voto inicial
divergente, foi da Ministra Nancy Andrighi, onde ao final foi negado o provimento ao
Recurso Especial, e assim foi dado ao credor a possibilidade de buscar a satisfação do seu
crédito, advindo do contrato de arrendamento, no qual o preço foi fixado em produto. Segue
Ementa da decisão:
EMENTA RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE COMPROMISSO DE
COMPRA E VENDA DE IMÓVEL ENTRE PARTICULARES. RESCISÃO DO
CONTRATO. VALORES PAGOS. PERDA INTEGRAL. PREVISÃO EM
CLÁUSULA PENAL. VALIDADE. NEGÓCIO JURÍDICO. AUSÊNCIA DE
VÍCIOS. PROPOSIÇÃO DO PROMITENTE COMPRADOR. ALEGAÇÃO DE
INVALIDADE. IMPOSSIBILIDADE. PROIBIÇÃO DE COMPORTAMENTO
CONTRADITÓRIO. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na
vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2
e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a discutir a validade de cláusula penal que
prevê a perda integral dos valores pagos em contrato de compromisso de compra
e venda firmado entre particulares. 3. Para a caracterização do vício de lesão,
exige-se a presença simultânea de elemento objetivo - a desproporção das
prestações - e subjetivo - a inexperiência ou a premente necessidade, que devem
ser aferidos no caso concreto. 4. Tratando-se de negócio jurídico bilateral
celebrado de forma voluntária entre particulares, é imprescindível a comprovação
dos elementos subjetivos, sendo inadmissível a presunção nesse sentido. 5. O mero
interesse econômico em resguardar o patrimônio investido em determinado
negócio jurídico não configura premente necessidade para o fim do art. 157 do
Código Civil. 6. Na hipótese em apreço, a cláusula penal questionada foi proposta
pelos próprios recorrentes, que não comprovaram a inexperiência ou premente
necessidade, motivo pelo qual a pretensão de anulação configura comportamento
contraditório, vedado pelo princípio da boa-fé objetiva. 7. Recurso especial não
provido.
(STJ - REsp: 1723690 DF 2018/0030908-1, Relator Ministro RICARDO VILLAS
BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 06/08/2019, T3 - TERCEIRA TURMA,
Data da Publicação: DJe 12/08/2019)

E dessa forma, com os precedentes, vamos atualizando e firmando entendimentos,


com isso ganhamos segurança jurídica para os negócios jurídicos do agronegócio, o que é
vantajoso tanto interna como externamente com relação aos investidores do agro.
194

ATUALIZAÇÃO LEGISLATIVA – EDIÇÃO DA LEI Nº 13.874/19 – LEI DA


LIBERDADE ECONÔMICA E SEUS REFLEXOS

Tivemos recentemente, em 20 de setembro de 2019, a Publicação da Lei da Liberdade


Econômica - n°13.874/19, advinda da Medida Provisória 881, que trouxe modificações em
nosso Código Civil de 2002, em seus artigos 113 e 421, bem como o incremento do art. 421-
A.
Estas alterações, vieram para reforçar a liberdade de contratação entre partes
relativamente paritárias, e dialogar com o art. 38 do Decreto Regulamentador 59.566/66, que
no precedente visto anteriormente do Ministro Sanseverino, afastou a proteção dada pelo
referido artigo, para grandes empresas rurais.
O objetivo da referida lei, e de suas alterações no nosso Código Civil, é o de
desburocratizar as contratações entre as partes que não sejam submetidas às normas cogentes
do ET e de seu Decreto, assim fomentando a economia do país aumentando as relações
comerciais e de contratação do setor do agronegócio.
Na Lei Nº 4.947 de 6 de abril de 1966, que fixa as normas de direito agrário sobre o
sistema de organização e funcionamento do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, em seu
art.13, dispõe:
Art. 13 - Os contratos agrários regulam-se pelos princípios gerais que regem os
contratos de Direito comum, no que concerne ao acordo de vontade e ao objeto,
observados os seguintes preceitos de Direito Agrário:
I - artigos 92, 93 e 94 da Lei n º 4.504, de 30 de novembro de 1964, quanto ao uso
ou posse temporária da terra;
II - artigos 95 e 96 da mesma Lei, no tocante ao arrendamento rural e à parceria
agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativa;
III - obrigatoriedade de cláusulas irrevogáveis, estabelecidas pelo IBRA, que
visem à conservação de recursos naturais;
IV - proibição de renúncia, por parte do arrendatário ou do parceiro não-
proprietário, de direitos ou vantagens estabelecidas em leis ou regulamentos;
V - proteção social e econômica aos arrendatários cultivadores diretos e pessoais.
§ 1º - O disposto neste artigo aplicar-se-á a todos os contratos pertinentes ao
Direito Agrário e informará a regulamentação do Capítulo IV do Título III da Lei
nº 4.504, de 30 de novembro de 1964.
§ 2º - Os órgãos oficiais de assistência técnica e creditícia darão prioridade aos
contratos agrários que obedecerem ao disposto neste artigo. (Brasil, 1966)

Dessa forma, fica muito transparente, que os contratos agrários também se


submetem aos princípios gerais de direito comum, ou seja, os contratos típicos são regulados
pelos princípios e pelas leis gerais dos contratos no que diz respeito ao acordo de vontades,
195

desde que observados os preceitos de direito agrário. Até mesmo pelo fato de que no art. 92
do ET, em seu §9º, é expresso que para os casos omissos no Estatuto, prevalece o que dispõe
o Código Civil, o que é reforçado no Decreto 59.566/66, em seu art.88.
Para que seja possível distinguir se o Estatuto da Terra e seu Decreto
Regulamentador, devem ou não serem aplicados a um caso concreto, a análise deve se dar
pelas partes e suas condições, pois podemos observar, que pela leitura do artigo 38, II do
Decreto, os benefícios estabelecidos na lei, somente poderão ser gozados por aquele que
realiza a exploração de maneira direta e pessoalmente a atividade agrária, por tanto
inaplicável tal regra para as grandes empresas, como ficou esclarecido pelo Ministro
Sanseverino.
Portanto, as partes que possuem condições de entender e analisar suas cláusulas
contratuais, e condições financeiras, deverão reger seus contratos pelas legislações gerais
com observância da legislação agrária.
Passamos a análise das alterações que trouxe a lei da liberdade econômica nos artigos
do Código Civil.
Comecemos pelo art.113 do CC/02 – que trata da interpretação dos negócios
jurídicos, que deve ser baseada na boa-fé e nos usos do lugar de sua celebração, já neste
artigo tivemos a inclusão de quatro parágrafos, que são baseados na autonomia das vontades,
e no que as partes realmente tiveram a intenção de pactuar, baseando a interpretação no
comportamento das partes posteriormente à celebração do negócio; que ele corresponde aos
usos, costumes e práticas do mercado para o tipo de negócio celebrado; que corresponda à
boa-fé; que a interpretação seja mais benéfica para aquela parte que não redigiu a cláusula,
se for possível assim determinar; e qual seria a negociação mais razoável, levando-se em
conta as demais cláusulas contratuais, considerando as informações do momento da
celebração do negócio. Fala no §2º da possibilidade dar partes pactuarem livremente sobre
as regras interpretativas, de preenchimento de lacunas e integração dos negócios jurídicos,
mesmo que diversas daquelas previstas na lei. Clara é a liberdade dada às partes, desde que
dentro da moldura legal, que façam o contrato da maneira que melhor atender aos anseios
dos envolvidos na relação contratual.
Temos também no art.421 do CC/02, a nova redação que diz que a liberdade
contratual se dá dentro dos limites da função social do contrato. Assegurando em seu
196

parágrafo único, que estas relações contratuais, serão regidas pelo princípio da intervenção
mínima, e que a sua revisão se dará em caráter de excepcionalidade.

Tivemos também a inclusão do art. 421-A que traz a presunção de paridade e simetria
das partes, salvo se houver elementos concretos que comprovem e justifiquem o afastamento
da presunção, e reforça a liberdade de contratação das partes para estabelecerem parâmetros
objetivos de interpretação das cláusulas, e dos pressupostos para revisão e resolução do
contrato; diz que a alocação, ou seja, a previsão dos riscos daquele negócio, e que sejam
definidos pelas partes deverão ser respeitadas e observadas; reforça a excepcionalidade da
revisão contratual e que está deverá ser feita de maneira limitada.
Com isso, temos uma boa visão dos reflexos da Lei de Liberdade Econômica, na
flexibilização da contratação entre aquelas partes que sejam relativamente paritárias, e que
tenham o real entendimento das cláusulas que estão sendo contratadas pois, nesta relação a
intervenção deverá ser a mínima necessária e para casos excepcionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto neste trabalho, podemos concluir que ao entendermos melhor a
dinâmica legislativa que recai sobre os contratos agrários típicos, podemos perceber uma
carga muito elevada de dirigismo contratual, visto que quando ao tempo da elaboração das
leis especiais que tratam destes instrumentos, era necessária a intervenção da mão forte do
Estado, para que a agropecuária se desenvolve-se em nosso país de forma satisfatória e
sólida. Para isso, o legislador tratou de assegurar a proteção ao mais vulnerável, que à época
em sua maioria eram os arrendatários e os parceiros outorgados, e essa realidade foi a de
vários contratos durante muitos anos, mas o campo se consolidou, os produtores se firmaram
e prosperaram, e essa realidade não mais é a dos tempos atuais.
Com o crescimento, modernização e ampliação do mercado do agronegócio, as
realidades mudaram, e hoje em dia, aqueles que eram vistos como vulneráveis, já não mais
os são. E aquela legislação que precipuamente veio com a intenção de proteger, hoje acaba
por amarrar os produtores em cláusulas que muitas vezes não atendem às necessidades das
partes e nem mesmo deixa que a função social da propriedade rural seja atingida.
Às cláusulas que antes davam segurança para que o produtor pudesse se firmar em
sua produção, tornaram-se amarras incômodas para o crescimento dos negócios agrários, a
obrigatoriedade de prazos mínimos, impedem que à terra seja arrendada para um período de
197

entressafra, e assim à terra poderá permanecer improdutiva para que o arrendador não tenha
problemas de não poder utilizá-la em período próximo, visto que o prazo mínimo de um
contrato típico é de 3 (três) anos dependendo da atividade chega até 7 (sete) anos, ou também
temos o infortúnio de não poder ser fixado o valor do pagamento em produtos, sendo que
para às regiões que são produtoras de grãos, este acaba por ser a moeda usada, mas relações
comerciais. E ainda temos o problema do direito de preferência do arrendatário ou do
parceiro outorgado, que acaba por limitar a negociação do imóvel, caso seja vontade do
proprietário vender pois, pode ser atingido por algum direito de retenção ou pedido de
indenização, interposto pela outra parte.
Ou seja, essas questões acabam por dificultar as negociações o que gera entraves e
burocracias que podem ser retiradas dos negócios jurídicos agrários, se forem atualizadas
para isso.
E é exatamente por estas questões, que a jurisprudência e os precedentes, estão
iniciando uma nova era nesses contratos onde as partes têm condições de verificarem as suas
cláusulas, como nos casos das grandes empresas, que são muito comuns no ramo do
agronegócio, e que precisam de agilidade nas contratações e não de proteção do estado.
Com os precedentes emanados das nossas Cortes Superiores, como nos casos do
Recurso Especial nº 1.447.082-TO, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino,
bem como no Recurso Especial nº 1.723.690-DF de Relatoria para acórdão da Ministra
Nancy Andrighi, que são verdadeiras pérolas para que seja formada uma nova interpretação,
e que seja alcançada com isso a segurança jurídica tão almejada para os contratos agrários,
e com isso o Brasil consiga atrair mais investidores para o setor do agronegócio e assim mais
riquezas sejam geradas.
Estes entendimentos, são uma alternativa, enquanto a legislação agrária não se
moderniza, criando base e a visão da necessidade real da atualização das leis que regem os
contratos agrários típicos. As relações contratuais precisam tornarem-se mais adequadas as
necessidades atuais dos negócios agrários. O mundo do agro está em plana modernização,
tanto de insumos, de máquinas cada vez mais autônomas e tecnológicas, a necessidade de
mão de obra especializada e principalmente de uma legislação que atenda os anseios deste
setor tão importante para a economia brasileira.
As inovações trazidas pela Lei 13.874/19, da Liberdade Econômica, e as alterações
por ela trazidas ao Código Civil, atende de certa forma as necessidades de quem precisa
198

contratar com liberdade, sem que com isso atinja aos que ainda se encontrem em
vulnerabilidade, que permanecem protegidos pelo Estatuto da Terra e seu Decreto
Regulamentador.
Os profissionais do direito, são peças de fundamental importância para o
apaziguamento destas relações, e para que as desavenças sejam minimizadas e previamente
entendidas e corrigidas, o olhar técnico em cima de um contrato pode evitar muitos
transtornos e litígios de resolução demoradas. O que evita um problema a mais para o
produtor que deve se preocupar com a produção, e seus fatores de risco tão impiedosos e de
certa forma imprevisíveis em suas proporções, como as oscilações do mercado e os riscos
ambientais de pragas, doenças e o clima.
Por todo o exposto, podemos concluir, que a pacificação de entendimentos e a
atualização da legislação são fundamentais para que as relações jurídicas entre produtores e
o aporte de investidores vejam no Brasil, um lugar atrativo e seguro para se trabalhar e
investir.
Por tanto, deixamos aqui a necessidade de uma profunda reflexão para todos os
operadores do direito sobre a importância dessas atualizações pois, para que os contratos
continuem tendo seus reais efeitos atingindo e consequentemente a sua tão imperiosa função
social atendida, estes devem atender a realidade das dinâmicas contratuais dos agronegócios
atuais e suas novas necessidades e modelos de contratações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Lei Nº 4.504, de 30 de setembro de 1964, Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm, Acesso em: 22 de agosto de 2020.

BRASIL, Lei Nº 4.947, de 06 de abril de 1966, Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4947.htm, Acesso em 24 de agosto de 2020.

BRASIL, Decreto Nº 59.566, de 14 de novembro de 1966, Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d59566.htm#:~:text=D59566&text=
DECRETO%20No%2059.566%2C%20DE,1966%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20
provid%C3%AAncias., Acesso em: 22 de agosto de 2020.

BRASIL, Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm, Acesso em 28 de
agosto de 2020.
199

BRASIL, Lei Nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm, Acesso em 27
de agosto de 2020.

OPITZ, Oswaldo; OPTIZ, Sílvia. Curso Completo de Direito Agrário.2.ed. São


Paulo:Saraiva,2007.

STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1447082 TO 2014/0078043-1. Relator: Ministro Paulo


de Tarso Sanseverino. DJ: 13/05/2016. JusBrasil, Disponivel em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/340014921/recurso-especial-resp-1447082-to-
2014-0078043-1/inteiro-teor-340014935. Acesso em: 25 de agosto de 2020.

STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1336293 RS 2012/0161288-1. Relator: Ministro João


Otávio de Noronha. DJ: 01/06/2016. JusBrasil, Disponivel em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/862239148/recurso-especial-resp-1336293-rs-
2012-0161288-1/inteiro-teor-862239158?ref=serp. Acesso em: 30 de agosto de 2020.

STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1723690 DF 2018/0030908-1. Relator: Ministro


RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA. DJe: 12/08/2019. JusBrasil, Disponivel em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/859239735/recurso-especial-resp-1723690-df-
2018-0030908-1?ref=serpAcesso em: 25 de agosto de 2020.

RIZZARDO, Arnaldo. Curso de Direito Agrário. 3.ed. ver., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2015.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil Contratos. 18ª ed. – São Paulo: Atlas, 2018
(Coleção Direito Civil; V. 3).
200

O PAPEL DA MODA NA LUTA PELA IGUALDADE DE GÊNERO

Carolina Dutra Normey1


Liane Martins Caon2

Resumo: Este trabalho consiste numa breve reflexão sobre o papel desempenhado pela
vestimenta na evolução da sociedade e, de que forma a moda contribuiu e contribui na busca
pela igualdade de gênero.
Traz algumas considerações sobre o alcance da moda nas transformações sociais e, como
colaborou diretamente para o progresso e para a ascensão dos direitos das mulheres na busca
pela igualdade de gênero, tanto no âmbito político quanto social, passando por uma concisa
análise sobre algumas décadas onde se pode evidenciar a constante evolução da vestimenta
e a linguagem por ela expressada.

Palavras-chave: Moda- Mercado de Trabalho - Linguagem

INTRODUÇÃO

O vestir-se sempre foi a forma mais visível de expressar a identidade de cada pessoa
ou de um grupo, muitas vezes, através de códigos de vestimenta, sendo possível identificar
um período ou uma época apenas em razão das vestimentas, de sorte que a evolução da
mulher pode ser identificada pelo seu vestir, em muitas ocasiões superando barreiras sociais
sobre o que “era adequado ou não para uma mulher”, caminhando junto com a revolução
política, econômica, cultural e social.
O processo de conquista influenciou grandes estilistas a fazerem moda de acordo
com momentos sociais, que foram paulatinamente materializadas com a atuação das
mulheres no campo profissional.

1
Advogada, inscrita na OAB/RS sob o nº 78.838. Especialista em Direito Processual Civil; Direito das Famílias
e Sucessões. Graduada em Direito, Secretária-geral da OAB Subseção de Santana do Livramento/RS,
Presidente da Comissão da Mulher Advogada e membro da Comissão da Criança e do Adolescente na Subseção
da OAB de Santana do Livramento/RS e das Comissões Estaduais da Mulher e do Direito Agrário e do
Agronegócio. E-mail carolina_normey@hotmail.com. Currículo disponível em:
http://lattes.cnpq.br/0050299336452019
2
Advogada Familista, inscrita na OAB/RS sob o nº 41.837. Mestra em Direito (UNISC), Especialista em
Direito Processual Civil (URCAMP), Graduada em Direito (URCAMP) e Sociologia (UFSM), Membro da
Comissão da Mulher Advogada e da Comissão da Criança e do Adolescente na Subseção da OAB de Santana
do Livramento/RS. Atua na área Cível, Família e Sucessões. E-mail: lmcaon@gmail.com. Currículo disponível
em: http://lattes.cnpq.br/6815126958572416.
201

Moda e o feminismo estão umbilicalmente ligados desde o seu surgimento no final


do século XIX, dessa forma, para se ter um melhor panorama sobre o tema, faremos um
brevíssimo apanhado das últimas décadas a fim de evidenciar essa íntima ligação.
Com o passar dos anos e das transformações sociais, pode-se destacar a década de
60, marcada pelos movimentos de jovens, pela luta pela igualdade racial, e um maior
destaque no que concerne aos direitos das mulheres. As celebridades e suas vestimentas,
canções e ideias políticas representavam a sede de mudanças dos comportamentos sociais.
Nessa década, a moda passa ser vital e com grande simbolismo de identidade.
Exemplo maior foi a minissaia, criada pela inglesa Mary Quant, e se transformou na
expressão de poder das mulheres, também foi de Mary Quant a responsabilidade pela
inovação da maquiagem, dando ainda mais visibilidade à mulher.
O objetivo era poder se expressar, por meio das vestimentas, o modo como as
mulheres queriam ser vistas, demonstrando que não mais se encaixavam na visão do segundo
sexo ou, ainda, sexo frágil.
Ressalta-se ainda que nessa década surge a pílula anticoncepcional, como marco da
liberdade sexual da mulher, pois, a partir desse momento ela consegue ter um maior controle
de sua sexualidade, o que oportunizou ingressar no mercado de trabalho com maior
independência, ainda que lentamente. A partir daí, buscou seu espaço demonstrando que seu
trabalho é tão eficiente como pode ser de um homem, luta que enfrenta até os dias de hoje,
especialmente quanto a igualdade salarial e aos cargos de chefia.
A mulher, nesse momento, deixa de ser mera coadjuvante e passa a demonstrar a
capacidade de ser sujeito ativo em todos os aspectos.
Nos anos 70, já começa a tomar forma a mentalidade engajada na igualdade dos
direitos entre homens e mulheres, onde a moda continuou com seu papel demonstrando ser
também uma referência nessa luta. Os comportamentos dos movimentos políticos/socias
vigentes da época ganhavam novas codificações pela moda.
A moda usada nesse período, como as calças “boca-de-sino” e sapatos plataforma,
que eram usados por ambos os sexos estreitava o universo masculino e feminino, ganhando
espaço a moda unissex, sendo considerada uma moda revolucionária e com grande
significado para o movimento feminista.
202

Já nos anos 80, o status de poder, prestígio e aparência sofisticada dominou o cenário,
tendo como aliada a propaganda e a publicidade, ganhando força o consumismo. Questão
que abordaremos com mais ênfase no capítulo número dois.
A década de 80 também propiciou uma proliferação de múltiplas formas, uma
profusão de linguagens e contrastes, em que os opostos começaram a conviver em harmonia.
A silhueta feminina e a moda que permearam os anos de 1960 e 1970 foram símbolo
de uma mudança no comportamento da mulher. A roupa libertava o corpo, e a silhueta magra
e esguia afrontava a feminilidade padronizada dos anos pós-guerra.
Essa postura pertinente às mulheres emancipadas pode ser associada ao advento do
feminismo, especificamente ao discurso de gênero. Com isso, as mulheres romperam
padrões e a incorporação de alguns elementos no vestuário, como a calça, típico traje
masculino, e essa atitude pode ser vista como forma de protesto à sociedade conservadora.
O principal marco histórico, no Brasil, foi, sem dúvida, o advento da nossa Carta
Magna em 1988, declarando que homens e mulheres são iguais em direitos e deveres.
Aspiração que ainda nos dias de hoje buscamos dar sentido também material.
Os anos 90, foram igualmente relevantes, destacando o papel das mulheres no
mercado de trabalho, conquistando cargos executivos e de chefias, que antes eram ocupados
apenas pelo sexo masculino.
Assim, é possível perceber que o vestuário feminino passou e passa por mudanças,
corroborando na imagem de uma mulher mais poderosa e segura de si. Blazers com
exageradas ombreiras, por exemplo, tinham o claro objetivo transmitir a aparência de poder
semelhante ao dos homens que ocupavam cargos de Diretores/Presidentes/Chefes de uma
empresa.
É de se salientar que esse estilo “mais andrógino”, que aproxima a imagem masculina
do feminino ou vice-versa, já tinha sido trazido na década 20 por Coco Chanel e, mais tarde,
inspirou Yves Saint Laurent na criação do seu smoking feminino em meados de 1966.
No início dos anos 2000, com o avanço das tecnologias de produção e edição de
imagens, e sua consequente popularização, surgiram blogs trazendo uma nova forma de
informação, utilizando-se da imagem digital para construir suas narrativas pessoais.
O que caracteriza esse tipo de blog é a publicação de uma narrativa acerca do vestir
cotidiano. Apresentando novas formas de consumo de produtos relacionados à moda e
203

beleza, através da composição visual de looks que tendem a expressar as preferências


pessoais e a composição criativa das blogueiras.3
As publicações dos blogs tendem a ser democráticas e mobilizadoras, pois são
atravessadas pela troca de ideias, e discussões de interesse pessoal ou coletivo.
Foi em meados dos anos 2000 que moda passou a ser mais democrática no que tange
acessibilidade, ou seja, o mercado da moda buscou atingir aquelas pessoas com poder
aquisitivo menor, aproximando o que a moda ditava às mulheres das mais variadas classes
sociais.
Nesse breve histórico fica evidenciado que a moda sempre caminhou lado a lado na
busca pela igualdade entre os gêneros, tendo sido se não a principal, uma das formas mais
claras de expressar o desejo de igualdade pela mulher, tendo sido, inúmeras vezes, vítima de
represália nessa luta.
A roupa falava e fala conforme destaca Glória Kalil 4em Chic (érrimo): “Toda roupa
quer dizer alguma coisa. É uma escolha individual que mostra como você quer ser visto ou
avaliado”. As palavras de Glória demonstram como a sociedade expressa seus valores
através da vestimenta e como esses códigos estão presentes em nosso cotidiano.
Ainda nos dias de hoje se faz necessário que nós mulheres sigamos fazendo uso da
moda para transmitir à sociedade nossos desejos, valores e liberdade. Neste breve ensaio,
com o intuito de jogar luzes para o tema, vamos abordar questões que entendemos como
essenciais, ainda que seja de forma breve, sobre o preconceito camuflado, especialmente
pelo comportamento repetitivo irrefletido, assim como o mercado de trabalho e a moda,
falando sobre as novas formas de consumir e expressar a moda, alertando para os perigos do
consumismo; num terceiro momento será abordado o tema das cotas para mulheres nas
instituições de na política como meio essencial de alicerçar/alavancar as mudanças que
queremos ver concretizadas, num quarto e último momento, vamos analisar de que forma a
moda e o mercado de trabalho estarão unidos evidenciando as mudanças sociais do porvir.

3
MACHADO, Wladimir Silva. Do podrinho ao vintage: a visualidade nos blogs de moda e a publicidade
em imagens de look do dia. Goiânia, 201,P.15. Dissertação. Programa de pós-graduação em Arte e Cultura
Visual. Universidade Federal de Goiás.
4
KALIL, Glória. Chic, Chiquérrimo. Moda e etiqueta em novo regime. São Paulo, Códex, 2004. p. 27.
204

1. PRECONCEITO CAMUFLADO

O período da Segunda Grande Guerra foi um momento crucial no processo de


incorporação das mulheres ao mercado de trabalho, pois essa época, valorizou-se não só o
trabalho feminino, mas também a inclusão da mulher na esfera social. A necessidade de mão
de obra levou as mulheres a ocuparem espaços estritamente masculinos na esfera do
trabalho.
A participação pública feminina se deu por uma ideologia aparentemente progressista
para incorporar a mulher ao mercado de trabalho. Porém, com o fim do conflito e o retorno
da força de trabalho masculina, uma contraideologia que valorizava a diferença sexual dos
papéis sociais e atribuía à condição feminina o espaço doméstico, foi fortemente reativada
com o intuito de retirar as mulheres da esfera pública. Mais uma vez a inserção da mulher
no mercado de trabalho foi desvalorizada, e elas voltaram ao cotidiano doméstico.
No fim da década de 1940, Simone de Beauvoir lança o livro intitulado: O Segundo
Sexo. Nele, a autora aponta para a necessidade de se romper com o papel tradicional
feminino, para que então a mulher pudesse libertar-se das obrigações impostas pela sua
condição sexual:
“Em verdade, a natureza, como realidade histórica, não é um dado imutável. Se a
mulher se enxerga como o inessencial que nunca retorna ao essencial é porque não
opera, ela própria, esse retorno. [...] Os homens dizem ‘as mulheres’, e elas usam
essas palavras para se designarem a si mesmas, mas não se põem autenticamente
como Sujeito.” 5

As ideias de Simone de Beauvoir foram fundamentais no embasamento do discurso


feminista que ressurgiu a partir dos anos 1960. Foi nesse momento histórico que o feminismo
incorporou novos discursos, além das reivindicações voltadas para as desigualdades políticas
e econômicas que já estavam presentes desde seus primórdios.
Mesmo com tantos avanços no século XX sobre a conquista de direitos das mulheres,
tais como: o voto, a possibilidade de trabalhar sem anuência do marido, o direito ao divórcio,
dentre tantas outras, ainda é muito difícil estarmos totalmente livres de mais de três mil anos
de patriarcalismo, razão pela qual, muitas mulheres ainda repetem comportamentos de cunho
machista sem perceber que se está repetindo um padrão social calcado no sistema patriarcal.
Somente a conhecimento e a informação podem desvelar o preconceito arraigado nas
práticas sociais cotidianas e, ainda hoje, podemos observar que a vestimenta de uma mulher

5
BEAUVOIR. Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, P. 13,
205

é alvo de crítica e, muitas vezes, escusam comportamentos masculinos que deveriam ser
totalmente rechaçados.
Inúmeras propagandas, especialmente aquelas de cerveja, utilizavam a imagem da
mulher como um objeto sexual, ela não era colocada no mesmo patamar do homem que
poderia estar bebendo com as demais amigas/amigos num bar, isso sem falar na vestimenta
da atriz que, normalmente, revelava seus dotes físicos a serem apreciados pelo sexo oposto.
Inclusive, e ainda mais grave, se refere ao crime de estupro, onde mesmo antes de se
apontar o dedo para o criminoso, é questionado o comportamento da mulher que foi sua
vítima, perguntas absurdas como em relação ao horário que estava na rua, se estava sozinha,
e se a vestimenta usada poderia induzir o homem ao cometimento do crime!!! Como se o
homem fosse um ser irracional, orientado apenas pelo desejo!
Como se um homicídio cometido contra alguém, cuja arma tivesse sido um galho de
árvore, pudesse ser qualificado como crime ambiental…!!! ou seja, totalmente absurdo.
Esse tipo raciocínio que ainda permeia a sociedade, se manifesta de várias formas,
especialmente no aumento da violência doméstica e no número absurdo de feminicídios,
assim como nas relações sociais e de trabalho. O que significa dizer que, embora tenhamos
tido muitos avanços, ainda existe um longo caminho a se trilhar, nunca é demais falar sobre
o tema e é importante que o homem esteja engajado também nessa luta.
Atualmente, como não é “politicamente correto” a existência do preconceito de
gênero, ele acaba existindo de forma camuflada, numa sociedade que herdou a compreensão
da mulher como ser inferior ao homem, o que explica as razões de tanta violência física e
psicológica pela simples condição de ser mulher.
Os estereótipos construídos em relação à mulher contribuem para essa discriminação,
relevante é a contribuição de Marilena Chauí, quando ela explica que o estereótipo:
"conjunto de crenças, valores, saberes, atitudes que julgamos naturais,
transmitidos de geração em geração sem questionamentos, e nos dá a possibilidade
de avaliar e julgar positiva ou negativamente 'coisas e seres humanos". 6

Assim, embora de forma irrefletida aceitemos essas diferenças como naturais, não
podemos permitir que outro ser humano, por seu gênero, possa ter privilégios. E os
estereótipos funcionam justamente dessa forma, como um conjunto de crenças que vão
fazendo parte do nosso cotidiano e, por isso, precisa ser analisado e afastado da prática social,

6
Chauí, Marilena. Senso comum e transparência. In J. Lerner (Org.), O preconceito (pp. 115-132). São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado. 1996/1997. P. 116.
206

porque é totalmente irracional consentir que outra pessoa possa ser tratada de forma diferente
por razões de identidade de gênero. Aí reside o preconceito que não é aparente, mas é tão
nocivo quanto fosse.
Por isso também é relevante mencionar Michel Taussig, já que para ele, o preconceito
está arraigado no interior da pessoa, através de uma violação sistemática, colocando à prova
ou derrotando as capacidades e os recursos simbólicos do outro.7
Essa distinção criada, gera a discriminação que, consequentemente, trará um
tratamento diferenciado do outro em razão do gênero. Situação que devemos estar
constantemente alertas para inibir e proibir qualquer comportamento nesse sentido.

2. AS NOVAS FORMAS DE CONSUMIR E DE EXPRESSAR A MODA

A moda sempre está se transformando, através de investigação das estratégias para


atingir seus consumidores, pode-se destacar a implementação fast fashion, o termo surgiu
nos anos 2000, mas desde os anos 1990 relevantes redes varejistas começaram a aderir a este
sistema na prática.
Diversas empresas de diferentes portes utilizam da estratégia do fast fashion, que tem
como principais características a contração do tempo de concepção das peças e de sua
produção, aumento do número de coleção anuais, tamanho reduzido desta coleção e dos
estoques.
Seu objetivo é estimular a velocidade do consumo de modo a escoar a produção
crescente, aumentando a lucratividade das empresas. Tais alterações de cunho produtivo e
estratégico respondem as mudanças na configuração do modo de produção capitalista, tendo
características diretamente relacionadas ao capitalismo tardio.
Sem aprofundar nestas questões do fast fashion, pois não é o objetivo deste artigo,
deve-se salientar que tal estratégia tem seus pontos negativos, visto que incentiva um
consumismo descontrolado, por vezes fomenta o trabalho escravo no setor primário da
cadeia de produção das peças já que busca rapidez. Pode-se ainda até citar que tal estratégia
pode vir a agravar problemas psicológicos em pessoas com compulsão por compras, visto
que as coleções estão cada vez menos espaçadas e, muitas pessoas, na maioria mulheres,

7
Apud: BANDEIRA & BATISTA, 2002, p. 129. Bandeira, L., & Batista, A. S. (2002). Preconceito e
discriminação como expressões de violência. Revista Estudos Feministas, 10 (1), 119-120.
207

acabam por deixar que a moda dite regras sob suas vidas, justamente o que não deve
acontecer, já que a moda como se vislumbra neste artigo sempre foi uma ferramenta de
liberdade de expressão e, consequentemente corroborou e corrobora até hoje nas garantias
políticas-sociais das pessoas, em especial das mulheres.
As inovações tecnológicas das mídias digitais e a busca de benefícios cada vez mais
rápidos tornam obsoletas as coisas, assim o consumo atual tende a valorizar o efêmero, como
é o caso dos blogs que estão diretamente envolvidos com o incentivo ao consumo. A mídia,
é acelerada para o “ao vivo”, comprime o tempo ao produzir e consumir.
No livro “Teoria de moda: sociedade, imagem e consumo”, Mara Rúbia Sant’Anna
busca mostrar que a sociedade contemporânea é também uma sociedade da moda e da
aparência, e assim as imagens são consumidas quase sem resistência ou contestação. 8
A moda deve a sua existência ao presente e ao novo, e é, portanto, um significante
indicativo do regime de historicidade presentista proposto por François Hartog, a
produtividade, a flexibilidade e a mobilidade são conceitos que se tornaram as palavras-
chaves dos novos dirigentes.9
No livro “Elegância, beleza e poder: na sociedade de moda dos anos 50 e 60” se
constatou que em especial na sociedade brasileira moderna, a beleza era resultante de um
consumo que era assegurado pelo domínio do poder de compra ou econômico e demandava
compra de produtos, acesso a serviços de informação, viagens e tempo para despender com
esse processo.10
Trinca (2008) procurou analisar o desenvolvimento do fenômeno de culto ao corpo
e à aparência, levando em consideração as práticas cotidianas da cultura do consumo no
capitalismo avançado, buscando identificar como a lógica da mercadoria e da racionalidade
instrumental se manifestam na moda e na busca pelo corpo ideal. Assim, o corpo ampliou
sua característica de consumidor, pois para cada uma de suas partes “coisificadas” existe
uma enorme variedade de mercadorias disponíveis.11

8
SANT’ANNA, Mara Rúbia. Teoria de moda: sociedade, imagem e consumo. São Paulo: Estação das
Letras, 2007.
9
CEZAR, Temístocles. Prefácio. In: SANT’ANNA, Mara Rúbia. Teoria de moda: sociedade, imagem e
consumo. São Paulo: Estação das Letras, 2007. P. 13.
10
SANT’ANNA, Mara Rúbia. Elegância, beleza e poder: na sociedade de moda dos anos 50 e 60. São
Paulo: Estação das letras, 2014. P. 09 e 229.
11
DEL PRIORI, Mary. Histórias do Cotidiano, 2001, P.05. In: TRINCA, Tatiane Pacanaro. O corpo imagem
na “cultura do consumo”: uma análise histórico-social sobre a supremacia da aparência no capitalismo
avançado.
208

Nesse sentido, os blogs trazem estratégias de poder, isso desencadeia um consumo


no sentido amplo, de modelo de vida, pois se por um lado as blogueiras se utilizam da moda
como símbolo de prestígio social, elas também corroboram para o fortalecimento da cultura
de consumo, o que possui um lado positivo e negativo, este último já trazidos nos parágrafos
anteriores.
Analisando o lado positivo desta nova forma de fazer moda através das redes sociais,
estas últimas colocaram as informações aberta a todos que queiram acompanhar ou ainda
expressar-se. Nesse sentido, as roupas e produtos são consumidos pelas influenciadoras
digitais, não tanto pelo seu valor de uso, mas pelo seu valor simbólico, justamente porque
cada vez a produção da imagem pessoal é considerada como um dos valores mais
importantes a ser cultivado pela cultura de consumo.
Dessa maneira, as redes sociais tem o poder de criar um espaço de expressão
personalizado, no qual a legitimação da opinião remete às características de diários pessoais,
trazendo uma interação com o público criando identificações entre os leitores ou seguidores,
que em um primeiro momento era um espaço para conteúdo de moda e, cada vez mais, esses
conteúdos são transcendidos em outros âmbitos, como é o caso do político, social, cultural,
econômico, subjetivo, dentre outros, mais uma vez demostrando o poder de influenciar que
a moda tem na vida das pessoas.
A moda, através das mídias consegue hoje chegar a milhares de mulheres, de
diferentes faixas etárias e classes sociais, portanto, por traz do que parece as vezes fútil, tem
um cunho político social imensurável, que nem mesmo os meios de comunicação
tradicionais hoje conseguem alcançar.
Através das influenciadoras digitais, também chamadas de blogueiras, se pode obter
um alcance muito maior na luta contra a violência doméstica, por exemplo, por meio do
empoderamento feminino, pois muitas delas trazem para suas redes sociais suas histórias
pessoais, desmistificando assuntos que há 30 anos ainda eram consideradas um tabu,
mostrando para quem as acompanha que sim, qualquer mulher pode ser vítima de algum tipo
de violência pode ser ela psíquica, sexual, física ou ainda material mesmo aquelas mulheres
que são referência de independência.
Ao expressar a subjetividade dessas mulheres em seu cotidiano e, ao mesmo tempo,
relatar a própria experiência de ser, por exemplo, vítima de algum tipo de violência, tem-se
um processo de construção identitária e suscitam a identificação com suas leitoras, em
209

publicações que mostram desde a intimidade da casa das blogueiras, até a experiência com
consumo de produtos e marcas fortalecendo ainda mais a moda como meio de livre expressão
do corpo e consequentemente da identidade de cada mulher.
De certo modo, o discurso feminista, tanto quanto o ecológico, o étnico, para não
falar do anarquista e socialista em geral foi incorporado em muitas dimensões, produzindo
importantes efeitos na sensibilidade e no imaginário social, claramente perceptíveis na vida
cotidiana.
Michel Foucault12, em seu artigo “O que são as Luzes?” que é possível perceber no
contexto atual das batalhas feministas, uma nova relação que o feminismo contemporâneo
estabelece consigo e nas imagens de si que projeta para o mundo. Numa atitude de
metacrítica, essa relação se caracterizaria por um dobrar-se sobre si mesmo, isto é, pela
reflexão crítica sobre o próprio feminismo e por sua historicização, num movimento de
avaliação e balanço de suas conquistas, avanços, limites e impasses, seja no campo das
práticas, seja no do pensamento. No entanto, a batalha pela igualdade ainda demanda uma
longa caminhada, nesse contexto, as políticas afirmativas são igualmente importantes, ponto
que veremos no próximo ponto.

3. COTAS PARA INCLUSÃO DE MULHERES NAS DIVERSAS ÁREAS DA


SOCIEDADE E DA POLÍTICA E OS CÓDIGOS DE VESTIMENTA

Acreditamos que toda a luta que vem sendo travada ao longo da história só revela
que quanto mais direitos são alcançados, mais percebemos a necessidade de sua ampliação.
A busca para inclusão das mulheres nas mais diversas instituições e na política, se
mostra absolutamente necessária se pretendemos que haja uma alteração verdadeira do
patriarcalismo existente, mesmo que esteja tão evidente como alhures, ainda se encontra
alicerçado na prática social cotidiana. Quem melhor que uma mulher para entender as
necessidades da divisão igualitária das tarefas do lar, ou de quais as políticas públicas
realmente atendem os anseios e necessidades femininas?

12
FOUCAULT, M. “O que são as Luzes?”. Ditos e Escritos. Vol.II. - Arqueologia das Ciências e História
dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense Universitária, 2000.
210

Em todo esse trajeto feminino, a mulher, na maioria das vezes, só aumentou suas
tarefas quando trabalha fora de casa, seguiu sendo responsável pela educação dos filhos, pela
manutenção do lar, etc.
Para uma alteração nesse cenário, é urgente e necessário que homens e mulheres se
sintam responsáveis por todas as obrigações que demandam um lar, não é favor quando um
homem vai ao supermercado ou busca as crianças na escola, é uma questão de igualdade de
responsabilidades.
Políticas afirmativas, como as cotas em cargos eletivos, instituições, empresas e
cargos públicos, também aquelas que buscam a elevação da renda das mulheres, contribuem
para diminuição da desigualdade de gênero. Como vimos na introdução deste trabalho, por
meio da vestimenta, como por exemplo, o uso de blazers no trabalho, contribuíram para
igualar as mulheres aos homens.
O estímulo a usar saias, vestidos vai compondo uma identidade reconhecida como
“feminina”, ou, o oposto, isto é, o uso de roupas de tons neutros, o comportamento mais
sério, naturalizam uma identidade dita “masculina”.
Hoje vemos que moda tem um papel importante, mas não mais no sentido de trazer
uma imagem masculina para mulher, pelo contrário, há uma descontinuidade do processo de
identificação de gêneros, o que permite um espaço para novos comportamentos.

Ao longo do tempo, o corpo humano, especialmente o corpo da mulher, se tornou,


como menciona Foucault13, espaço em que diferentes modalidades de poder e de saber
atuam, incidindo dinâmicas de dominação, normatização e vigilância, diz ele:

“[...] não há constituição de poder sem constituição correlata de um campo do


saber, nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de
poder”.14

O que significa dizer que sobre o corpo atuam um conjunto de forças que ora
convergem, noutras não. Razão pela qual, num primeiro momento, numa dominação do
homem, a mulher por meio da vestimenta buscou se igualar e, atualmente, tem-se
reconhecimento, até pela efetiva contribuição dos movimentos sociais, que a mulher pode e
deve se vestir da forma que melhor expressa sua identidade.

13
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, 1996. P. 29,30.
14
Idem.
211

Isso evidencia em como a moda também é portadora de significado, pois, por si só é


uma linguagem que se manifesta das mais diferentes formas, tanto pessoal como
profissional, ponto que veremos a seguir.

4. MODA E O MERCADO DE TRABALHO

Em razão do que já foi dito no item anterior, podemos perceber que, pouco a pouco,
a vestimenta já não se orienta por um código muito rígido.
A necessidade de a mulher assumir espaços tradicionalmente ocupados por homens
estimulou a transformação radical da moda. Libertar o corpo feminino do espartilho foi
inevitável, já que a atuação da mulher nas atividades industriais exigia o uso de
indumentárias adequadas para esse fim.
Ressalta-se um marco que foi o uso de calças por mulheres. Nesse sentido, segundo
Prost: “o desaparecimento dos papéis sexuais pode ser lido com clareza na diminuição do
uso de saias em 1965, é a primeira vez que a produção de calças de mulher supera a de saias,
e em 1971, são fabricados 14 milhões de calças, num total de 15 milhões de roupas”.15
De modo geral, a perspectiva de igualdade de papéis sociais, e consequentemente a
lenta incorporação das mulheres em postos de trabalhos sem importar o gênero, fez com que
a mulher começasse a impor um vestir que procurava questionar e, até certo ponto, eliminar
as diferenças entre os vestuários femininos e masculinos. As noções engessadas de
identidade de gênero foram gradualmente desaparecendo, e a diversidade de linguagens de
vestuário, ao final do século XX, aponta para uma multiplicidade de identidades femininas.
A moda é um processo de metamorfose incessante, associada à inconstância e à
renovação de formas e linguagens. O vestuário, como setor inserido no processo da moda,
consiste em uma linguagem constituída de significantes cujas conotações se transformam
constantemente, desvinculadas de seu contexto social específico.
A moda também pode ser vista como uma forma de expressão simbólica, ou seja,
modelo de comunicação. Sem dúvida, que a moda se comunica pela linguagem visual,
identificando socialmente as pessoas, especialmente pela ocupação ou papel social. A
vestimenta sempre esteve presente na sociedade e, podemos analisar a evolução social por
meio das roupas também, pois traz consigo significados culturais, é um tipo de comunicação

15
PROST, apud: KLANOVICZ, 2008, p.184.
212

simbólica onde o sistema da moda cria novos estilos, e é altamente influenciado pelas
telenovelas, propagandas, etc.
Ou seja, sem dúvida que a moda é um instrumento de comunicação sem o uso de
palavras, a roupa carrega diversas informações tanto sobre a ocupação, como do status
social. A moda pode unir ou separar determinados grupos sociais, assim como também é
instrumento da nossa individualidade.
Moda também se relaciona com a necessidade de demonstrar um papel social
desempenhado mediante os significados sociais a ela atribuídos, por isso “um substrato
material portador de significado”16 e, mais contemporaneamente, a moda se mostra
intimamente ligada a transformação. Nesse sentido vale mencionar Rech:
[...] Moda não possui somente a função de revestir e proteger o corpo contra
intempéries; ela assume, ainda, três funções: pragmática, social e estética [...] não
é somente determinada função que governa a outra. Há uma sucessiva redefinição
da relação entre estas três funções. O design, a criatividade e a tendências de moda,
aliadas à definição dos mercados e dos seus determinantes socioculturais são
variáveis prioritárias.17

Há muito tempo as roupas deixaram de ser apenas uma necessidade de proteção do


corpo, já vimos que a moda por si só, é uma linguagem, a qual é influenciada pelo momento
histórico, pelo espaço geográfico, e pelas diversas categorias culturais como idade, sexo,
ocupação, etc. De forma que, a própria vestimenta muda tanto na sua forma estética, quanto
em relação as práticas de uso.

CONCLUSÕES

Por fim, diante de tudo que foi abordado, ciente que na sociedade ainda existem os
papeis sociais, a função da moda se mostra relevante na construção de uma sociedade mais
justa e igualitária, e neste sentido a moda foi e continua sendo uma ferramenta
imprescindível na luta de igualdade de gênero.
Conclui-se que o feminismo tem uma relevância política profundamente crítica e
libertadora, que não pode ser negligenciada, afinal, foram e têm sido imensas as suas
contribuições, especialmente ao questionar as formas e as práticas masculinas de um mundo
que, misógino, é opressivo para as mulheres e, ao mostrar a maneira pela qual a ciência

16
Apud: LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra. 1. Técnica e linguagem. Rio de Janeiro: Ed. 70,
1990. p. 115 -119. P. 70.
17
RECH, Sandra Regina. Moda: por um fio de qualidade. Florianópolis, UDESC, 2002. P. 84
213

fundamentou essas concepções, com seus conceitos sedentários, mascarando sua realidade
de gênero.
A história do presente exige uma reflexão sobre o ato de escrever a história. Porém,
a partir da construção de um novo olhar sobre si e sobre o outro e, consequentemente, num
processo de feminização cultural em curso, o mundo tem-se tornado mais feminino e
feminista, ou seja, libertário e solidário ou, em outras palavras, filógino, - isto é, contrário a
misógino -, amigo das mulheres e do feminino, trazendo um aporte social e cultural das
mulheres no mundo público.
Contudo, mesmo evidenciando a importância da moda para construção do caminho
necessário à igualdade de gênero, também devemos estar cientes que existe um mercado de
moda alienante, que faz do consumismo sua principal meta, ainda que as propagandas a
exibam de forma diversa, temos que também observar esse comportamento lesivo do
mercado para não fazer dos direitos alcançados pelas mulheres, seja utilizado perversamente
pela indústria da moda.
Vimos também que a moda possui um viés social e simbólica, onde o status social se
afirmaria a partir das categorias de trabalho e intercâmbio, de forma que o vestuário não se
reduz a termos puramente estáticos, pois tem um significado social e, ao mesmo tempo,
revela a ligação intelectual e afetiva que se estabelece entre as roupas.
A forma de se vestir vai se adaptando ao ambiente em que se vive, assim como aponta
as relações sociais presentes na sociedade, demonstrando os aspectos da pessoa e onde ele
se insere em determinado grupo social.
Por fim, é importante ainda referir que os campos do design de moda e da imagem
de moda são aliados, visto que são capazes de minimizar a complexidade das relações de
gênero e das subjetividades surgidas a partir de seu reconhecimento como cenário de
construções culturais, ao longo da história e com certeza estão ligadas com a emancipação
da mulher.
Nesse sentido, podemos dizer que a moda contribuiu para redefinir identidades
sociais, desconstituindo algumas das fronteiras simbólicas entre o masculino e o feminino,
sendo o impulso e reflexo das mudanças da condição feminina.
214

REFERÊNCIAS

BANDEIRA & BATISTA. Preconceito e discriminação como expressões de


violência. Revista Estudos Feministas, 10(1), 119-120.

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sociedade, imagem e consumo. São Paulo: Estação das Letras, 2007.

CHAUÍ, Marilena. Senso comum e transparência. In J. Lerner (Org.), O preconceito (pp.


115-132). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. 1996/1997.

DEL PRIORI, Mary. Histórias do Cotidiano, 2001, P.05. In: TRINCA, Tatiane Pacanaro.
O corpo imagem na “cultura do consumo”: uma análise histórico-social sobre a
supremacia da aparência no capitalismo avançado.

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Georges & PERROT, Michell. História das mulheres no Ocidente. Porto: Edições
Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1995.

FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes?”. Ditos e Escritos. Vol.II. - Arqueologia das
Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense
Universitária, 2000.

____________. Vigiar e punir. Petrópolis, 1996.


JOAQUIM, J.T, & MESQUITA, C. Rupturas do vestir: articulações entre moda e
feminismo. In: Anais do 1. Design, Arte, Moda e Tecnologia (p. 15–58). São Paulo, 2012.

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LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra. 1. Técnica e linguagem. Rio de Janeiro:
Ed. 70, 1990. p. 115 -119.
MIRANDA, A. P. C. de, Garcia, C., & Leão, A. L. M. de S. (2015). Moda e Envolvimento:
Cada Cabide, Uma Sentença. Revista Interdisciplinar De Marketing, 2(2), 38-49.
https://doi.org/10.4025/rimar.v2i2.26693
RECH, Sandra Regina. Moda: por um fio de qualidade. Florianópolis, UDESC, 2002.
SANT’ANNA, Mara Rúbia. Teoria de moda: sociedade, imagem e consumo. São Paulo:
Estação das Letras, 2007.
___________. Elegância, beleza e poder: na sociedade de moda dos anos 50 e 60. São
Paulo: Estação das letras, 2014.
Sites consultados:
https://bdm.unb.br/bitstream/10483/14664/1/2015_MarcosMacielDeSousaRocha_tcc.pdf
215

A PERCEPÇÃO POPULAR SOBRE A MULHER ADVOGADA: UM


ESPAÇO DE NÃO PERTENCIMENTO

Carolina Höhn Falcão1


Ingrid Fagundes Ziebell2

Resumo: Uma vez que se observa um aumento do número de mulheres ocupando o espaço
jurídico, temos como objeto da pesquisa a percepção popular sobre as advogadas. Assim,
objetiva-se, primeiramente, compreender a divisão sexual do trabalho e seus reflexos à
carreira jurídica, para, a seguir, observar as respostas obtidas na pesquisa empírica. Dessa
maneira, por meio do método indutivo, buscamos responder nosso problema de pesquisa,
partindo da hipótese de que por mais que as mulheres consigam adentrar na advocacia, há
um imaginário de fragilidade que atravessa os corpos femininos, de forma que não são
totalmente aceitas neste espaço.
Palavras-chave: advogada; divisão sexual do trabalho; normação

1. INTRODUÇÃO

De acordo com os dados fornecidos pela Presidente da Comissão Nacional da Mulher


Advogada à Editora Justiça e Cidadania3, hoje, no Brasil, homens e mulheres dividem quase
que paritariamente o quadro da advocacia, sendo 583.591 advogadas e 593.909 advogados
inscritos na Ordem.
Muito embora este número represente um avanço, ainda é possível afirmar que a
carreira jurídica se mostra majoritariamente masculina. Não só o número de homens
advogando é maior, mas também – e principalmente – o número de homens ocupando cargos
de chefia, como sócios de grandes escritórios, chega a representar o dobro do número de
mulheres advogadas nos mesmos cargos4.

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pelotas, advogada
OAB/RS 115.979, e-mail: carol.h.falcao@gmail.com
2
Advogada, Pós-graduada em Processo Penal pela Faculdade Damásio (2019), em Investigação Criminal e
Neuropsicologia Jurídica pela UniBF (2019) e Segurança Pública e Inteligência pela UniBF (2019).
Colaboradora da Comissão Mulher Advogada Subseção Pelotas. OAB/RS 107.443. E-mail:
ingridziebell@hotmail.com
3
Disponível em: https://www.editorajc.com.br/oab-efetiva-espacos-da-mulher-advogada/
4
CONJUR. Campanha por igualdade. Nem 20% das advogadas chegam a ser sócias nos
grandes escritórios. 8 mar. 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mar08/nem-20-advogadas-
chegam-socias-grandes-escritorios
216

É neste sentido que se encontra nosso problema de pesquisa, partindo da premissa de


que as mulheres estão ocupando espaços como advogadas, questionamos qual a percepção
das pessoas sobre as advogadas.
Dessa forma, através de pesquisa bibliográfico-documental, buscamos compreender,
primeiramente, alguns conceitos da base da divisão sexual do trabalho, da inserção de
mulheres no mercado, bem como da atuação de advogadas mulheres e os poderes que
atravessam seus corpos.
Em seguida, apresentamos os dados obtidos na pesquisa empírica, através de
formulário online, a fim de verificar qual a percepção social acerca da mulher advogada. Por
fim procuramos analisar os dados e associá-los a base teórica descrita.
Dessa maneira, por meio do método indutivo, buscamos responder nosso problema
de pesquisa, partindo da hipótese de que por mais que as mulheres consigam adentrar na
advocacia, há um imaginário de fragilidade que atravessa os corpos femininos, de forma que
não são totalmente aceitas neste espaço.

2. UMA REALIDADE CONSTRUÍDA: DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO


ONTEM E HOJE

A fim de compreendermos o lugar ocupado pelas mulheres advogadas, é necessário,


a priori, pensar no lugar das mulheres no mercado de trabalho em geral. Nesse sentido, é-
nos útil compreender o histórico da divisão sexual do trabalho, a fim de conhecer a origem
desta segregação.
Pensar em divisão sexual do trabalho é pensar em gênero. Para a construção deste
trabalho, nos valemos do conceito de gênero desenvolvido pela historiadora Joan Scott5,
quem, através de uma construção histórica dos sentidos e significados dados ao termo
gênero, o compreende enquanto uma “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas
sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar
significado às relações de poder”.

5
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.1990, n.p. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-oan%20Scott.pdf
217

É nesse sentido de gênero enquanto uma relação de poder que buscamos


compreender a divisão sexual do trabalho.
Na obra O Calibã e a Bruxa, Silvia Federici reconstrói o início da sociedade
capitalista por uma perspectiva feminina. No prefácio à edição brasileira, a autora apresenta
que “a tarefa que Calibã e a Bruxa se propôs a realizar foi a de escrever a história esquecida
das mulheres e da reprodução na transição para o capitalismo”. Ainda, aponta Federici6

Observando o desenvolvimento capitalista do ponto de vista dos não assalariados


- que trabalham nas cozinhas, nos campos e nas plantações, fora de relações
contratuais, cuja exploração foi naturalizada, creditada a uma inferioridade natural
-, Calibã e a bruxa desmistifica a natureza democrática da sociedade capitalista e
a possibilidade de qualquer ‘troca igualitária’ dentro do capitalismo. Seu
argumento é o de que o compromisso com o barateamento do custo da produção
do trabalho, ao longo do desenvolvimento capitalista, exige o uso da máxima
violência e da guerra contra as mulheres, que são o sujeito primário dessa
produção.

Da obra de Federici, compreendemos que a divisão sexual do trabalho não é uma


mera consequência do sistema capitalista atual, mas sim engrenagem para que ele se
constitua, bem como se mantenha, garantindo a segregação. Ora, a manutenção do sistema
depende da exploração das mulheres enquanto força puramente reprodutiva, em trabalhos
não remunerados ou subalternos.
No mesmo sentido, a socióloga Danièle Kergoat7 apresenta a divisão sexual do
trabalho enquanto uma consequência de uma construção da divisão social das funções.
Assim, compreende que
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente
das relações sociais de sexo; essa forma é adaptada historicamente e a cada
sociedade. Ela tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera
produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apreensão
pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas,
militares etc).
Também, é mister apontar que a inserção da força de trabalho no mercado não se deu
de forma igualitária. Surgindo como uma necessidade, e não enquanto um direito ao
trabalho, a exploração do trabalho feminino trouxe uma falsa simetria e a ilusão de uma
suposta igualdade.

6
FEDERICI, SILVIA. O Calibã e a Bruxa. São Paulo: Elefante Editora. 2017, p. 13.
7
KERGOATD, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In. Trabalho e cidadania ativa
para as mulheres: desafios para as Políticas Públicas /Marli Emílio (org.), Marilane Teixeira (org.), Miriam
Nobre (org.), Tatau Godinho (org.). - São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, 2003. p. 55
218

Assim, resta-nos bastante evidente que a divisão sexual do trabalho é uma realidade
que impera até hoje. Outrossim, sabemos que há uma feminização de algumas profissões,
que o número de mulheres adentrando ao mercado de trabalho cresce e que as discussões
acerca do machismo, dos direitos das mulheres e a luta pela igualdade tomam lugares nos
debates públicos.
Os padrões de segregação podem ser exemplificados pela sobre-representação de
mulheres em ocupações tipicamente femininas, quais sejam profissionais assalariados
(white-collar ou colarinho branco), sendo geralmente os que trabalham em escritórios,
gabinetes, gerenciamento ou administração.
Ademais, tradicionalmente as mulheres ocuparam o setor de cuidados e reprodução
da vida, o pink collar, ou colarinho rosa. Este termo é normalmente usado para descrever
mulheres trabalhadoras do setor de serviços, como babás, esteticistas, floriculturistas,
domésticas, recepcionistas, secretárias, garçonetes, massagistas, enfermeiras, professoras,
entre outras.8
Uma vez compreendido que a divisão sexual do trabalho é uma realidade que
impera desde a idade média, servindo para criação e perpetuação do sistema capitalista, bem
como tendo clara a noção de que este machismo tão naturalizado faz parte de um poder
simbólico no entorno da nossa realidade, passamos à análise da profissão da mulher
advogada.
A inserção das mulheres na carreira jurídica no Brasil é recente e data de 1906 - sendo
que a advogada Myrthes Gomes de Campo concluiu o bacharelado em 1898 e teve de adiar
sua inscrição nos quadros da ordem pelo preconceito existente à época9. Ao mesmo tempo,
a criação do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros (IOAB), data de 1843.10
Não obstante, é importante recordar que o fato de as mulheres adentrarem
formalmente o mercado de trabalho em profissões consideradas elitizadas vem crescendo,
porém, não podemos considerá-lo como um avanço nas relações machistas e patriarcais.

8
SOUZA Silveira, L., & Siqueira Leão, N. (2020). O impacto da segregação ocupacional por gênero e raça na
desigualdade de renda no Brasil em três décadas (1986-2015). Revista Latinoamericana De Población, 14(27),
41-76. https://doi.org/10.31406/relap2020.v14.i12.n27.2
9
Obtido em http://www.tjrj.jus.br/web/guest/institucional/museu/curiosidades/no-bau/myrthes-gomes-campos
10
BONELLI, Maria da Gloria. ADVOGADOS BRASILEIROS E O ESTADO: a profissionalização no Brasil
e os limites dos modelos centrados no mercado.Rev. bras. Ci. Soc. vol.14 n.39 São Paulo Feb. 1999 Disponível
em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69091999000100004&script=sci_arttext&tlng=pt
219

É evidente que não é apenas o gênero que oprime as mulheres. Relações de classe e
de raça também atravessam os corpos femininos acarretando em uma dupla opressão. Assim,
enquanto algumas mulheres atingem patamares até então inimagináveis de empregos, outras
ainda são vistas como engrenagem para esta ascensão, mantendo-se em trabalhos subalternos
e de reprodução.
Nesse sentido, aponta Keorgat11
O segundo exemplo é a dualização do emprego feminino, o que ilustra bem o
cruzamento das relações sociais. Desde o começo dos anos 1980, o número de
mulheres contabilizadas pelo INSEE (Institut National de la Statistique et des
Études Économiques) como “executivas e profissionais intelectuais superiores”
mais do que dobrou: cerca de 10% das mulheres ativas estão atualmente nessa
categoria. Simultaneamente à precarização e à pobreza de um número crescente
de mulheres (elas representam 46% da população ativa, mas 52% dos
desempregados e 79% dos baixos salários), assistimos a um aumento dos capitais
econômicos, culturais e sociais de uma proporção de mulheres ativas que não pode
ser desconsiderada. Vemos surgir, assim, pela primeira vez na história do
capitalismo, uma camada de mulheres cujos interesses diretos (não mediados
como antes pelos homens: pais, esposos, amantes, ...) se opõem frontalmente aos
interesses daquelas tocadas pela generalização do tempo parcial, dos empregos de
serviço muito mal-remunerados e não reconhecidos socialmente e, usualmente,
mais atingidas pela precariedade

Ocorre que alcançar profissões lidas como elitizadas não necessariamente garante a
estas mulheres que o sexismo pare de atravessar seus corpos.
Ao pensarmos na profissão do advogado, nos valemos do pensamento de Michel
Foucault. Em suas reflexões sobre biopolítica e biopoder, o autor traz o conceito de
normação, qual seja, a compreensão de algo tido como pertencente a uma linha de
normalidade. Nesse sentido, ao explorarem os conceitos do autor, Furtado e Camilo apontam
que “normação é o efeito de enquadramento gerado por mecanismos disciplinares ao
buscarem adequar indivíduos a modelos previamente estabelecidos, isto é, a uma norma a
que os homens devem se submeter”12
Esta linha de o que é o normal na carreira de advogado poderia ser compreendida
enquanto a visão primeira da advocacia: homem, branco, em trajes formais. Logo, se a visão
dentro da normação do advogado é masculina, a posição da mulher advogada entra no
espectro do anormal.

11
KERGOATD, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In. Trabalho e cidadania ativa
para as mulheres: desafios para as Políticas Públicas /Marli Emílio (org.), Marilane Teixeira (org.), Miriam
Nobre (org.), Tatau Godinho (org.). - São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, 2003 p. 61
12
FURTADO, Rafael Nogueira; CAMILO, Juliana Aparecida de Oliveira. O Conceito de Biopoder no
Pensamento de Michel Foucault. In.: Revista subjetividades, v.16. n3, 2016. p. 38.
220

Nesse sentido, entendemos que para manter-se o mais próximo da linha do normal,
a mulher advogada é submetida a uma série de violências. Assim, nos valemos da lição de
Bourdieu13 sobre a dominação simbólica para melhor compreendê-las

Não se pode, portanto, pensar esta forma particular de dominação senão


ultrapassando a alternativa da pressão (pelas forças) e do consentimento (às
razões), da coerção mecânica e da submissão voluntária, livre, deliberada, ou até
mesmo calculada. O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero,
de cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências
cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que
são constitutivos dos habitus e que fundamentam, aquém das decisões da
consciência e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento
profundamente obscura a ela mesma. Assim, a lógica paradoxal da dominação
masculina e da submissão feminina, que se pode dizer ser, ao mesmo tempo e sem
contradição, espontânea e extorquida, só pode ser compreendida se nos
mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as
mulheres (e os homens), ou seja, às disposições espontaneamente harmonizadas
com esta ordem que as impõe.
A força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos,
diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia
só atua com o apoio de predisposições colocadas, como molas propulsoras, na
zona mais profunda dos corpos

É a partir dessas premissas que damos seguimento ao trabalho, a fim de analisar as


respostas obtidas com a pesquisa empírica sobre o espaço ocupado pela mulher advogada.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

A pesquisa empírica foi desenvolvida através de formulário online, desenvolvido no


google forms, a partir de respostas anônimas. Foram elaboradas dez perguntas, sendo dividas
em dois blocos: no primeiro, com cinco perguntas que ajudam a compreender o perfil dos
participantes, e no segundo, com perguntas a respeito da visão sobre a profissão
advogada(o).
Das 210 respostas recebidas, ficou bastante evidente que a maior parte dos
participantes faz parte de um grupo específico. Explicamos: primeiramente, conforme se
denota do gráfico abaixo, a grande maioria dos participantes é do sexo feminino. Outro ponto
diz respeito à ocupação dos participantes, os principais grupos a responderem a pesquisa
incluem 71 advogados, 43 estudantes e 23 professores. Ou seja, mais de 75% dos
“entrevistados” encontram-se em um mesmo nicho.

13
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11° ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 49-50
221

Figura 1 Gênero

Além do gênero e profissão, foram elaboradas questões acerca da faixa etária,


escolaridade e renda média dos participantes da pesquisa. Enquanto as idades e a renda
mensal dos participantes demonstraram ser bastante variadas, havendo um equilíbrio de
respostas, ao questionarmos acerca da escolaridade percebemos uma maior participação de
pessoas de um nível de escolaridade elevado (graduação e pós-graduação).
Como se vê do gráfico a seguir, apenas oito dos participantes da pesquisa encontram-
se nos grupos de escolaridade de ensino médio completo ou incompleto, número este que
corresponde a menos 4% dos participantes.

Figura 2 Escolaridade
222

Isso posto, compreendemos que o fato de as respostas partirem de um nicho bastante


específico é um fator que influencia nos resultados obtidos. Entendemos que essa
predominância de gênero, profissão e pessoas de um grau de escolaridade elevado deu-se
em razão dos meios pelos quais a pesquisa fora divulgada: redes sociais das autoras.
Quanto ao segundo bloco da pesquisa, referente à visão acerca da mulher advogada,
a pesquisa deu-se na forma de perguntas abertas, de forma que os participantes pudessem
expor seus pensamentos e sentimentos acerca da profissão.
Assim, em um primeiro momento busca-se expor as respostas mais frequentes, para,
em seguida, avaliarmos e compreendermos a visão do público sobre a imagem do advogado
e da advogada.
Primeiramente, foi questionado sobre qual a área de atuação os “entrevistados”
associam à imagem da mulher advogada. Dentre as respostas, as mais recorrentes foram
direito civil e direito de família. Em terceiro lugar, com apenas 35 respostas, foi apontada a
área “criminal”.
Em seguida, perguntou-se qual a primeira palavra em que os participantes pensavam
quando vem à mente a imagem de uma advogada criminalista. Apesar de as respostas
mostrarem-se bastante variadas, aparecendo desde personagens de série até vestimentas
associadas à advocacia, como o salto alto, os termos “força” e “coragem” foram
predominantes nas respostas.
Em relação ao questionamento se os participantes têm algum problema em ser
atendido por uma advogada, apenas seis respostas foram positivas. Destas, três respostas
dizem respeito ao medo de como o sistema judiciário poderia receber mal uma defesa feita
por uma mulher, dada a misoginia enraizada no sistema, além de questões como dificuldade
de acesso a presídios. Duas respostas trazem à tona a possibilidade de a mulher ser mais
sensível e tal característica ser um possível empecilho a seu trabalho. E, por fim, apenas uma
das respostas positivas traz a insegurança feminina como um entrave à contratação de
advogadas.
Perguntados sobre o que um advogado e uma advogada poderiam fazer para melhorar
o atendimento, obteve-se apenas quatorze respostas em que se distinguiram aspectos que
homens e mulheres deveriam melhorar. Destas respostas, todas apontam que a mulher
advogada deve ser mais firme, assertiva e melhor preparada, enquanto o homem deveria ser
mais sensível.
223

Por fim, foi questionado acerca de quais dificuldades os participantes encontraram


ao serem atendidos por um advogado e por uma advogada. Setenta e seis pessoas
responderam não ter consultado um(a) advogado(a) ou não ter tido algum problema em seus
atendimentos. Cento e vinte e nove participantes não distinguiram os problemas sofridos ao
gênero do profissional, destes, as respostas mais frequentes foram descaso no atendimento
(cinquenta e cinco respostas), dificuldades de acessar informações do processo por questões
de comunicação ou uso de linguagem rebuscada (quarenta e duas respostas) e arrogância dos
profissionais (treze respostas).
O restante dos participantes respondeu especificamente os problemas enfrentados
quando atendidos por homens e por mulheres. A respeito das adversidades enfrentadas nos
atendimentos por advogadas, merecem destaque as respostas que apontam a falta de foco e
firmeza das profissionais, bem como a dificuldade em relação a atendimentos fora do horário
comercial. Quanto aos problemas ao ser atendidos por advogados, arrogância e descaso
foram os fatores que prevaleceram nas respostas.
Conforme já apontado, reiteramos o fato de as respostas obtidas pelo formulário
serem oriundas de um grupo bastante homogêneo. Faremos a análise proposta a partir destas
respostas, porém compreendemos que não necessariamente correspondem a uma realidade
se transpostas ao nível macro.
Das respostas obtidas, restou-nos bastante evidente que, sobre a visão da profissão
advogada, imperam algumas premissas. Primeiramente, o fato de se associar a imagem da
advogada a áreas como direito civil ou de família revela uma possível imagem de
feminilidade sobre essas áreas. Quando contrapomos essas respostas ao questionamento
acerca da imagem da mulher criminalista, percebemos esta relação, principalmente levando
em conta que os adjetivos utilizados – coragem e força – tendem a ter uma visão mais
masculinizada.
Nesse sentido, trazemos o estudo de Maria da Glória Bonelli14, que apresenta o
surgimento de uma feminilização de áreas do direito.
A feminização da carreira veio ao encontro dessas transformações, reduzindo a
resistência às mudanças na forma tradicional de se exercer a advocacia. A
intensificação na divisão social do trabalho foi acompanhada da divisão sexual do
trabalho, com as mulheres concentrando-se nas áreas tradicionais e nas atividades
mais rotineiras e os homens naquelas mais especializadas e inovadoras.

14
BONELLI, Maria da Glória. Profissionalismo, diferença e diversidade na advocacia e na magistratura
paulistas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.28, n.83, 2013, p. 127.
224

Outrossim, compreendemos que há uma visão histórica e estereotipada de que os


corpos femininos são mais dóceis e frágeis, de forma que atuar em áreas relacionadas ao
cuidado, como o direito de família, seria lido enquanto mais adequado a seus perfis. É nesse
sentido que entendemos a utilização de adjetivos tidos como masculinos ao se referir à
profissão da advogada criminalista. Por ser uma área não relacionada ao cuidado, bem como
haver certo prestígio aos atuantes, as ciências criminais são lidas enquanto um campo
masculino do direito.
Logo, para que as mulheres acessem este ramo profissional, a elas cabe absorver
características tidas como masculinas, bem como desfazer-se da suposta fragilidade
feminina. Nesse sentido, trazemos à baila a colocação de Bourdieu 15 ao refletir sobre a
dominação masculina.
É característico dos dominantes estarem prontos a fazer reconhecer sua maneira
de ser particular como universal. A definição de excelência está, em todos os
aspectos, carregada de implicações masculinas, que têm a particularidade de não
se mostrarem como tais. A definição de um cargo, sobretudo de autoridade, inclui
todo tipo de capacitações e aptidões sexualmente conotadas: se tantas posições
dificilmente são ocupadas por mulheres é porque elas são talhadas sob medida
para homens cuja virilidade mesma se construiu como oposta às mulheres tais
como elas são hoje. Para chegar realmente a conseguir uma posição, uma mulher
teria que possuir não só o que é explicitamente exigido pela descrição do cargo,
como também todo um conjunto de atributos que os ocupantes masculinos
atribuem usualmente ao cargo, uma estatura física, uma voz ou aptidões como a
agressividade, a segurança, a "distância em relação ao papel", a autoridade dita
natural etc, para as quais os homens foram preparados e treinados tacitamente
enquanto homens.

É nesse sentido que, da pesquisa empírica, aliada à pesquisa bibliográfica,


compreendemos a percepção sobre a mulher advogada como um pertencimento ao espaço
que não é totalmente dela.
Voltando ao conceito Foucaultiano de normação, percebemos que muito do apontado
na pesquisa empírica sobre os problemas, medos e preconceitos a respeito de uma mulher
advogada dizem respeito à ausência de características compreendidas como masculinas. Ou
seja, uma vez que as mulheres não pertencem àquilo tido como normal, a elas cabe um
esforço próprio para poder sentir-se o mais próximo possível da normalidade. Esforço este
que pode ser lido enquanto a necessidade de ocultar padrões tidos como femininos em
essência.

15
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11° ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 78
225

4. CONCLUSÃO

A entrada da mulher no mercado de trabalho, conforme pudemos observar, nunca se


deu de forma igualitária. Desde o início do capitalismo impera uma divisão sexual do
trabalho, de forma que às mulheres restam ou o trabalho reprodutivo, ou trabalhos
subalternos e de cuidado.
O caso da advocacia não poderia ser, pois, diferente. Apesar das mulheres terem cada
vez mais acesso à profissão, os cargos a elas designados concentram-se em setores tidos
como femininos, relacionados ao cuidado. Ou, ainda, cabe a elas uma necessidade de se
moldar ao meio, buscando atributos ditos masculinos.
De acordo com pesquisa empírica desenvolvida, percebemos que a visão popular –
merecendo, novamente, a ressalva de que os participantes da pesquisa representam uma
parcela de população inserida em um meio mais privilegiado, de elevado grau de
escolaridade, pertencentes ao meio da advocacia ou acadêmico, bem como de grande maioria
feminino – vai ao encontro de nossa hipótese inicial, ou seja, as mulheres advogadas são
vistas ou como “guerreiras” ou imaginadas em áreas relacionadas ao cuidado.
Dessa forma, percebemos que, mesmo em meios de prestígio como o da advocacia,
impera um poder masculino, que dita as regras do jogo e serve como padrão de normalidade
a ser buscado. Assim, por mais que as mulheres ocupem este espaço, elas não pertencem a
ele.
Compreender o porquê de as estruturas assim se moldarem é fundamental para que
se formem resistências a este poder, para que as mulheres não só adentrem meios lidos como
masculinos, mas também não precisem se moldar a padrões inalcançáveis.

REFERÊNCIAS

BONELLI, Maria da Glória. Profissionalismo, diferença e diversidade na advocacia e na


magistratura paulistas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.28, n.83, 2013.

BONELLI, Maria da Gloria. ADVOGADOS BRASILEIROS E O ESTADO: a


profissionalização no Brasil e os limites dos modelos centrados no mercado. Rev. bras.
Ci. Soc. vol.14 n.39 São Paulo Feb. 1999 Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
69091999000100004&script=sci_arttext&tlng=pt

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11° ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2012.
226

CONJUR. Campanha por igualdade. Nem 20% das advogadas chegam a ser sócias nos
grandes escritórios. 8 mar. 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-
mar08/nem-20-advogadas-chegam-socias-grandes-escritorios

FEDERICI, SILVIA. O Calibã e a Bruxa. São Paulo: Elefante Editora. 2017.

FURTADO, Rafael Nogueira; CAMILO, Juliana Aparecida de Oliveira. O Conceito de


Biopoder no Pensamento de Michel Foucault. In.: Revista subjetividades, v.16. n3, 2016.

KERGOATD, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In. Trabalho
e cidadania ativa para as mulheres: desafios para as Políticas Públicas /Marli Emílio (org.),
Marilane Teixeira (org.), Miriam Nobre (org.), Tatau Godinho (org.). - São Paulo:
Coordenadoria Especial da Mulher, 2003.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.1990, n.p. Disponível
em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAner
o-Joan%20Scott.pdf>

SOUZA Silveira, L., & Siqueira Leão, N. (2020). O impacto da segregação ocupacional
por gênero e raça na desigualdade de renda no Brasil em três décadas (1986-2015).
Revista Latinoamericana De Población, 14(27), 41-76.
https://doi.org/10.31406/relap2020.v14.i12.n27.2
227

A IMPORTÂNCIA DA ATUAÇÃO DO ADVOGADO NA MEDIAÇÃO


COMO MEIO DE TRATAMENTO ADEQUADO DO CONFLITO

Cassiana Campos dos Anjos de Oliveira1

Resumo: O conflito é fenômeno inerente às relações interpessoais, e o correto tratamento


deste, tornou-se preocupação do legislador, em oferecer meios mais eficazes e rápidos para
a promoção da justiça. A mediação surge como um estímulo à adequada solução dos
conflitos, proporcionando aos participantes um ambiente aberto à comunicação, onde um
terceiro mediador facilita este processo. Objetiva, assim, a partir da promoção mediada da
conversa entre os envolvidos e a facilitação da construção de um acordo de forma consensual
e consciente. Este método de resolução consensual do conflito, com o advento do Novo
Código de Processo Civil, representa um avanço inovador no processo, evidenciando-se o
exercício da cidadania, através de um procedimento democrático de participação do
indivíduo na busca pela justiça, tendo o advogado, como operador do direito, a possibilidade
de desenvolver tal técnica de forma colaborativa no atendimento ao cliente e durante as
sessões de mediação, auxiliando na retomada do diálogo entre os envolvidos e construindo
possibilidades de resolução dos conflitos que tragam maior satisfação às partes.
Palavras chave: Mediação. Resolução adequada do conflito. Advocacia colaborativa.
Justiça.

INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea é marcada por desejos imediatistas de seus membros,


fomentados pelos avanços da era da internet, onde há grande produção de informações
divulgadas nas mídias sociais. Tais informações são compartilhadas em grande escala, e
desenvolvem no ser humano uma necessidade de consumo e concretização de sonhos de
forma rápida e urgente.
Neste contexto, o cidadão torna-se menos tolerante, mais apressado, vivenciando
maiores situações conflituosas no meio social advindas do próprio aumento populacional
nas cidades. Contudo, conflitos entre pessoas sempre existiram, apenas tendem a aumentar
devido a crescente demanda populacional, sendo que o judiciário já vem há algum tempo
enfrentando dificuldades em atender a todas as demandas de forma satisfatória, tanto quanto
à morosidade quanto à satisfação da vontade das partes.

1
Graduada em direito, pela Universidade de Santa do Sul. Pós Graduada em Direito Público com ênfase em
Constitucional, pela Verbo Jurídico. Pós graduada em Direito Processual Civil, pela Universidade de Santa
Cruz do Sul. Advogada, OAB/RS 86773. Mediadora Judicial. Email: cassi.anjos@gmail.com.
228

Além da possibilidade de recorrer-se ao judiciário, há divulgação de casos de


autotutela, em que o cidadão faz “justiça” com as próprias mãos devido à descrença na via
judicial para a solução de conflitos. Desta forma, questiona-se se o incentivo à mediação no
regramento pátrio visa estimular a resolução destes conflitos de forma consensualizada, na
sociedade contemporânea.
Com o advento do Novo Código de Processo Civil, uma nova dinâmica foi atribuída
ao rito processual, incentivando-se a mediação como forma de solução do conflito. A
presente pesquisa objetiva, então, fazer uma análise acerca das relações conflituosas na
sociedade e a intervenção do Estado para buscar soluções e manter a paz social. Destarte, as
mudanças trazidas pelo Novo Código de Processo Civil, através do qual a mediação ganhou
maior destaque no meio judicial e a importância da atuação do advogado de forma
colaborativa para o desenvolvimento da mediação como forma adequada de solução de
conflitos.
Desta forma, será feita uma reflexão do instituto da mediação, apresentando-se as
principais diferenças entre mediação e conciliação no meio jurídico, sua previsão no
ordenamento legislativo atual com ênfase ao procedimento previsto no Novo Código de
Processo Civil e na Lei de Mediação, e os princípios que norteiam este mecanismo de
solução de conflitos.
O método utilizado é o dedutivo a partir da análise de doutrinas e legislação vigente.
A pesquisa bibliográfica engloba preceitos doutrinários, direito constitucional, direito
processual civil e dispositivos legais sobre mediação.
Assim, partindo-se da análise das normas e princípios que orientam a mediação,
objetiva-se demonstrar a importância deste instrumento de solução de conflitos não
contencioso e da forma de condução pelo advogado na administração do conflito. Tal
procedimento busca o consenso entre as partes, visto que a retomada do diálogo é uma das
principais metas da sessão de mediação, o que poderá gerar um entendimento construído
entre os envolvidos e, consequentemente, maior agilidade no processo, diminuindo-se a
morosidade do judiciário, na intenção de que a jurisdição atenda o seu fim: a justiça com a
satisfação dos mediandos.
E qual o papel do advogado na mediação? Conforme será demonstrado ao longo
deste estudo, a participação do advogado é fundamental, e sua abordagem e postura
colaborativa vem agregar valor para que a mediação funcione, proporcionando a satisfação
229

entre as partes com a decisão tomada de comum acordo, para a solução da demanda, sendo
enfatizada a sua função de pacificação social e a importância da atuação do advogado durante
este processo.

1 O CONFLITO NO MEIO SOCIAL

O homem é um ser social por natureza, e diferencia-se de outros animais pela


capacidade de raciocínio. A vida em sociedade, desde os tempos mais remotos, exige um
grau hierárquico entre seus integrantes, onde exista uma relação de poder de alguns sobre
todos para que haja uma ordem na convivência social, já que o homem naturalmente livre
pode extrapolar os limites de tal liberdade em prol de seus próprios interesses e desejos.
Muitos pensadores como Hobbes, Maquiavel, Rousseau, entre outros, tentaram por meio de
suas teorias definir o poder e o Estado, onde alguns dominam o todo e onde há desigualdades
sociais e sempre houve, mas com um fim de manutenção da paz social, caso contrário, seria
impossível conviver em um ambiente de caos onde cada um tentaria impor a sua vontade.
Desta forma, o meio social é ambiente gerador de conflitos, sejam familiares,
econômicos, trabalhistas, públicos ou privados, mas as relações interpessoais são por
natureza geradoras de conflitos, diante a necessidade de organização da vontade de todos
dentro de um mesmo espaço, vontade esta que deve ser gerida através do contrato social
firmado entre os indivíduos na sociedade.
O Estado surgiu do próprio interesse do ser humano em limitar o poder e gerir toda
a população de forma organizada. Este ente acima das vontades de cada cidadão objetivaria
promover o controle dos desejos naturais dos integrantes da sociedade, desejos identificados
pelo jusnaturalismo e positivados, como normas a serem observadas pelos indivíduos, no
positivismo jurídico. Esses direitos que passaram a existir positivados para materializar a
justiça entre os homens.
Essa justiça que se busca muitas vezes atende a preceitos legais, contudo não satisfaz
o desejo de quem a busca para ver um direito efetivado, sendo o instrumento da mediação
uma forma valiosa de construção de uma decisão a partir do consenso dos envolvidos e não
apenas de um terceiro imparcial, como nos casos das demandas contenciosas.
O conflito é um fenômeno inerente às relações humanas, oriundo da divergência de
interesses e condutas no meio social, existindo, assim, desde os tempos mais remotos. A
230

sociedade evoluiu de um sistema nômade à um estado sedentário voltado à agricultura, e em


todos estes momentos o conflito existiu, sendo no primeiro mediado basicamente pela
violência e após evoluindo para o uso da violência como um instrumento de poder, como
bem preceitua Vasconcelos2.

2 MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

O termo mediação emana um significado de centro, de equilíbrio, onde um terceiro


encontra-se entre os conflitantes. Spengler3, destaca a questão da mediação como solução
para um dos grandes problemas da atualidade: a falta de comunicação, onde os indivíduos
tem dificuldade de reconstituir o liame rompido pelo conflito, sendo necessário um mediador
através de uma “comunicação mediada”.
Desta forma, o sentido desta modalidade de solução de conflito, encontra-se
delineado na possibilidade de reconstrução de uma situação corrompida pelo litígio que
através da mediação encontra uma chance de reestabelecer uma relação e tentar tratar o
conflito que deu origem a tal rompimento, restabelecendo uma relação anterior entre as
partes, visto que a sentença, por vezes, não atende a função de pacificação social, diante da
imposição do regramento ao caso concreto, o qual está eivado de emaranhados, em diversos
casos, bem mais profundos que os pedidos constantes na inicial.
Esta técnica tem papel fundamental em uma sociedade complexa como a atual, onde
a demanda de conflitos torna-se crescente tanto quantitativa quanto qualitativamente, vindo
ao encontro do que preceitua Warat4, de que a mediação pode ser considerada uma maneira
“ecológica de resolução de conflitos sociais e jurídicos, uma forma na qual o intuito de
satisfação do desejo substitui a aplicação coercitiva e terceirizada de uma sanção legal”.
Justamente, constitui-se de uma autocomposição a partir de um acordo de vontades
entre os envolvidos na situação conflituosa para juntos chegarem a um consenso acerca de
um resultado, por meio de uma comunicação mediada. Buscando-se, assim, diminuir a
distância entre as partes cujas divergências tornam-se oportunidades de solução do conflito.

2
VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. São Paulo: Método,
2017, p. 22.
3
SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação de conflitos, da teoria à prática. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2017.
4
WARAT, Luis Alberto. O oficio do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 05.
231

Spengler5, ao citar Torres, define que o fim da mediação é tornar os conflitantes


responsáveis pelo conflito, ou seja, o conflito é deles, cabendo ao mediador compreender as
emoções envolvidas e colaborar com a retomada do diálogo e buscar um consenso que atenda
aos interesses das partes.
A definição supracitada resume o fim ao qual se destina a mediação, instituto que
apesar de existir no ordenamento jurídico pátrio há muitos anos, somente agora, com o
advento do Novo Código de Processo Civil, ganha um papel de destaque no cenário jurídico,
através do qual busca-se o acesso à justiça de forma mais satisfatória aos envolvidos nos
conflitos. Constituindo-se, assim, em uma via mais democrática e em um instrumento de
exercício da cidadania.
Isto posto, importante se faz uma análise acerca das vias contenciosa e consensual de
resolução de conflitos, frutos das relações sociais desta sociedade complexa na qual vive-se
atualmente, para demonstrar os aspectos positivos e negativos destes mecanismos jurídicos.

2.1 Da via contenciosa à lógica consensual

A sociedade possui uma visão de acesso à justiça baseada nas premissas de ganhar e
perder, onde a vitória está, muitas vezes, eivada de um sentimento de vingança que sobrepõe-
se à questão de resolver o problema que originou o conflito.
A via contenciosa apresenta justamente esta visão egocêntrica, onde a parte, através
de um procurador, ingressa judicialmente, na maioria das vezes, na busca por “vingança”,
ou seja, a lide tem o fim de acionar a outra parte para defender-se, com uma imagem de que
aceitar, por exemplo, um acordo, significa estar perdendo ou deixando que prevaleça a
vontade do outro, como se estivessem em um duelo em que ganhar seja uma questão de
honra. Esta é a visão do judiciário construída por muitos indivíduos e destacada
principalmente nos juizados especiais, onde a informalidade colabora para a implantação de
tal sentimento, já que há grande dificuldade em formalização de acordos pela vontade da
parte que sente-se lesada em sua honra ou imagem, e acaba, por implicância, não firmando
acordos, mesmo que vantajosos, por vingança. Aqui como uma visão geral, tendo em vista
que há demandas com caráter contencioso inerente a natureza da ação, onde não cabe
mediação ou conciliação, mas somente uma sentença.

5
SPENGLER, op. Cit. p. 22.
232

De outra forma, a mediação surge como via consensual de resolução de conflitos que
foge do rigor das normas jurídicas, destacando uma justiça baseada na reparação e não na
punição da parte contrária, já que os métodos jurisdicionais visam à solução do conflito,
através da qual o juiz (terceiro imparcial) julga e aplica o direito, não importando se esta
solução é justa ao caso concreto, enquanto que na mediação as partes de forma autônoma,
livre e participativa buscam uma reparação ao caso concreto que originou o conflito, onde é
possibilitada a comunicação de necessidades e sentimentos, com abertura para a participação
e liberdade de decisão entre os mediandos.
Outro meio consensual de solução de conflitos é a conciliação. A Resolução
125/2010 do CNJ, foi criada para estimular e regulamentar o tratamento de conflitos por vias
não contenciosas, buscando facilitar o acesso à justiça, incentivando meios consensuais
como a mediação e a conciliação.
Spengler6, destaca que há uma mudança do olhar sobre os conflitos onde “as
divergências passam a ser vistas como oportunidades alquímicas, as energias antagônicas
como complementares, e o Direito como solidariedade”, de forma que as relações humanas
promovem a aproximação e não o distanciamento entre os indivíduos. Os conflitos ganham
uma nova roupagem voltada a promover conexões rompidas através do diálogo mediado
entre as partes.
Estes mecanismos objetivam o estímulo da prática de solução de conflitos de forma
a atender aos interesses dos envolvidos, sendo estes tratados pelos membros da própria
sociedade e resultando em resolução de conflitos eficaz tanto no sentido quantitativo quanto
qualitativo, até mesmo para prevenir futuros conflitos.
Desta forma é possível senão abandonar, mas reduzir a prática da cultura do litígio,
para estimular a pacificação social, pois a complexidade de relações sociais existentes na
sociedade moderna, exige meios eficazes de tratamento dos conflitos, para além de dirimi-
los, evita-los.
O legislador demonstrou a preocupação em promover a comunicação entre os
indivíduos para possíveis soluções que surjam a partir do consenso, através da previsão do
instituto da mediação na legislação pátria, inovando no processo civil com a
jusrisdicionalização da mediação. Contudo, tal procedimento representa um desafio, tendo
em vista a necessidade de compreensão popular quanto ao funcionamento deste instrumento,

6
SPENGLER, op. Cit. p. 22.
233

aprimoramento de profissionais acerca do método, bem como enquadramento da mediação


ao modelo processual sem que perca a sua essência com relação aos princípios que a
norteiam.

2.2 Diferenças entre mediação e conciliação

A conciliação e a mediação são institutos elencados na Resolução 125/2010 do CNJ,


como políticas públicas de tratamento adequado de conflitos, sendo ambas métodos
autocompositivos para tal fim: “A autocomposição tem por princípios a indivisibilidade e a
interpretação restritiva. Seu principal efeito é fazer desaparecer o litígio. Se judicial, dá causa
ao fim do processo; se preventiva, evita-o.”7
Desta forma, a autocomposição distingue-se da heterocomposição pelo fato de nos
modelos adversariais como a arbitragem e a jurisdição (heterocompositivas) haver vencedor
e perdedor, enquanto que nos modelos consensuais (autocompositivos) há soluções
vencedoras apenas, baseadas na observância dos interesses de todos os envolvidos.
Isto posto, verifica-se que a diferença básica entre os modelos autocompositivos de
solução de conflitos, aqui tratando-se da conciliação e mediação, consiste de na primeira o
objetivo ser um acordo e na segunda ser a retomada do diálogo entre as partes, humanizando
o conflito, sendo o acordo um efeito secundário.
Spengler8 buscou sintetizar as principais características e diferenças entre a
conciliação e a mediação, enfatizando que a Resolução 125/2010, do CNJ, apesar de tratar
dos dois institutos, não os diferencia de forma clara. A primeira diferença consiste no
conflito: na conciliação os conflitos não possuem relação prévia, consistem, por exemplo,
em relações de consumo ou acidentes de trânsito, enquanto que na mediação os envolvidos
possuem relações próximas anteriores, e esta busca a integridade desta relação após a
resolução do conflito, como por exemplo, conflitos oriundos de direito de família e sucessões
ou vizinhança.
Outra diferença relevante a ser destacada é quanto ao papel do conciliador e do
mediador: o conciliador é o terceiro que pode sugerir, propor e direcionar o debates e os

7
CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação, conciliação, resolução. CNJ 125/2010. São Paulo
Revista dos Tribunais, 2015, p. 43.
8
SPENGLER, op. cit.
234

resultados, enquanto que o mediador representa um terceiro que ajuda os conflitantes a


restabelecer a comunicação.
Quanto aos objetivos a serem atingidos, a mediação é voltada a gerar comunicação e
satisfação entre os envolvidos, sendo o acordo uma possibilidade de desfecho do
procedimento, contudo, mesmo sem haver um acordo, este instrumento pode ser considerado
exitoso caso possibilite que os conflitantes voltem a conversar, visto que objetiva buscar o
consenso e a pacificação social. Já a conciliação objetiva alcançar a solução do litígio através
de um acordo, mantendo o foco na composição entre as partes.
Por fim, quanto às técnicas empregadas, na mediação são voltadas à escuta e
desvendamento do interesse dos envolvidos no conflito, buscando a construção de respostas
para seus problemas por meio de sessões mais longas e possíveis remarcações caso
necessário. Na conciliação as técnicas são voltadas para a propositura de um acordo,
estimulando-se propostas entre os conflitantes, acontecendo em uma sessão mais curta.
Tal síntese define estes institutos. Importante se faz salientar que a conciliação já
estava sendo posta em prática no cenário jurídico do país, sendo a mediação um mecanismo
em fase de teste no ordenamento jurídico através das inovações trazidas pela Lei
13.105/2015, o Novo Código de Processo Civil brasileiro, mas que ganhou maior destaque
neste cenário de pandemia que se instalou no país, e no mundo.
A Lei 13.140/2015, dispõe sobre o procedimento da mediação distinguindo a
mediação extrajudicial da mediação judicial em alguns aspectos. Possuem como ponto em
comum a questão da voluntariedade: caso as partes rejeitem o procedimento, este não será
realizado, visto que a mediação, sendo extrajudicial ou judicial, deve consistir em um
procedimento voluntário, não há qualquer obrigatoriedade para que o método seja executado
entre os envolvidos no conflito.
A questão da voluntariedade está ligada ao objetivo de sucesso do método, pois um
indivíduo que participe contra a sua vontade, representa chances muito maiores de insucesso
do procedimento.
A Seção III, Subseção I, da Lei 13.140/2015, estabelece o procedimento comum da
mediação, que ao final gera um título executivo judicial, após homologação pelo juiz,
possibilitando a execução no caso de descumprimento pelas partes, conforme artigo 20,
parágrafo único: “O termo final de mediação, na hipótese de celebração de acordo, constitui
235

título executivo extrajudicial e, quando homologado judicialmente, título executivo


judicial.”
Ainda, destaca Spengler9, que mesmo não havendo um acordo formalizado, seja por
perda do objeto (reconciliação), seja pela inviabilidade, o êxito existe pelo fato de ter
proporcionado o resgate do diálogo rompido que, a partir das sessões, apresenta condições
de comunicação mais harmônica entre os envolvidos.
O artigo 21 e seguintes da referida lei, dispõe sobre a mediação extrajudicial.
Destaca-se deste procedimento, relativo a mediação extrajudicial, que o convite poderá ser
feito por qualquer meio de comunicação (correios, correspondência eletrônica, mensagem
de celular), desde que lícito, facilitando a comunicação, considerando-se rejeitado em até
trinta dias de seu recebimento.
Spengler10, enfatiza, ainda, com relação a não obrigatoriedade do procedimento, que
a lei torna em parte obrigatório e em parte voluntário o mesmo, tendo em vista que a parte
que não comparecer na primeira sessão, poderá sofrer sanção, sendo assim, obrigatório este
comparecimento. Deste modo, a voluntariedade, neste caso, acaba sendo de certa forma uma
obrigação, visto a imposição de sanção em caso de não comparecimento na primeira sessão,
constituindo a voluntariedade apenas no fato de a continuidade de participação ser uma
faculdade de cada parte.
Com relação ao procedimento judicial, a Lei 13.140/2015, estabelece nos artigos 24
e seguintes, o procedimento para a mediação judicial, sendo algumas observações relevantes.
Spengler11, destaca que os tribunais criarão os centros judiciários de solução consensual de
conflitos, definindo de forma vertical e isolada o funcionamento destes, isto é, mantendo o
controle sobre esta atividade que não é jurisdicional. No Rio Grande do Sul, conforme
relação constante no site do TJ/RS, há Cejusc implantados nas seguintes cidades: Alegrete,
Alvorada, Bagé, Bento Gonçalves, Cachoeirinha, Canguçu, Canoas, Capão da Canoa,
Carazinho, Caxias do Sul, Cruz Alta, Encantado, Erechim, Esteio, Frederico Westphalen,
Gravataí, Guaíba, Ijuí, Lajeado, Marau, Montenegro, Nonoai, Novo Hamburgo, Osório,
Passo Fundo, Pelotas, Planalto, Porto Alegre, Quaraí, Rio Grande, Rio Pardo, Santa Cruz do
Sul, Santa Maria, Santa Rosa, Santa Vitória do Palmar, Santana do Livramento, Santo

9
SPENGLER, op. cit.
10
SPENGLER, op. cit.
11
Idem.
236

Angelo, São Borja, São Leopoldo, Sapiranga, Sapucaia do Sul, Taquara, Tramandaí, Três
Passos, Urguaiana e Viamão.
A mediação como mecanismo adequado de tratamento de conflitos, envolve uma
série de atributos que engloba desde os sujeitos envolvidos no procedimento até a estrutura
necessária para sua implementação.

2.3 Dos sujeitos na mediação e estrutura para a sessão

Com relação aos sujeitos do processo, é possível elencar: a)as parte envolvidas que
“comparecerão a sessão de mediação em uma das etapas do processo judicial (mediação
endoprocessual ou judicial)”12, complementando que “elas possuem a opção de não se
manifestarem durante a mediação, e, se optarem pela discussão de suas questões com a outra
parte e dessas discussões não resultar em um acordo, o termo de audiência redigido ao final
da discussão conterá apenas disposições com as quais elas tenham concordado
expressamente”13. b) representantes legais: as partes devem comparecer pessoalmente e
podem ser representadas por advogado o qual servirá para pensar soluções que atendam aos
interesses das partes e esclarecer os direitos de seus representados. C) o mediador: terceiro
que deve agir com imparcialidade e confidencialidade, com formação de acordo com o
estabelecido em lei. D) comediador: “é possível a atuação conjunta de dois mediadores – em
especial em fase de treinamento dos mediadores. Essa forma de condução da mediação
possui as vantagens próprias de um trabalho em equipe.”14
A respeito da estrutura, destaca-se: a) flexibilidade procedimental: apesar de a
mediação possuir atos a serem seguidos, “o mediador não está adstrito a uma ordem
específica e tem a liberdade de flexibilizar o procedimento. A partir de determinadas
referências técnicas ele desenvolverá seu próprio estilo.”15 B) sessões individuais: o
mediador poderá, a seu critério, realizar sessões individuais com as partes. C) tom informal:
a informalidade no tratamento estimula o diálogo, contudo deve sempre haver uma postura
profissional adequada.
Podemos, então, salientar algumas considerações importantes sobre o mediador e o
advogado. O mediador judicial deve ser capaz, possuir curso superior em qualquer área de

12
SPENGLER, op. cit, p. 27.
13
Ibidem, p.28.
14
Idem.
15
Idem.
237

formação há pelo menos 2 anos, reconhecido pelo MEC, além de curso de formação, com
parâmetro curricular estabelecido na Resolução nº 125/2010, do Conselho Nacional de
Justiça, e reconhecido pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados
– ENFAM, com duas etapas: 40 horas de aulas teóricas, mais 60 horas de estágio
supervisionado com casos práticos. Após aprovado nestas etapas, o mediador é certificado
como mediador judicial, podendo atuar nos Centros de Solução consensual de Conflito –
Cejusc, nas Comarcas em que está cadastrado. Já o advogado, não possui obrigatoriedade
de estar presente na sessão de mediação, porém é um agente importante, principalmente para
dirimir possíveis dúvidas jurídicas dos participantes e auxiliar na elaboração de acordos,
dando suporte de forma colaborativa na condução do mediador.
Destaque-se, que a mediação é uma sessão que proporciona a abertura do diálogo
entre os mediandos, onde os envolvidos tem voz ativa para falarem sobre seus interesses,
medos, angústias e motivações acerca do conflito, sendo guiados pela conduta técnica do
mediador. Assim, a participação do advogado influencia diretamente neste processo,
levando-se em consideração que o cliente é guiado pelo seu representante.
A mediação, de acordo com o que dispõe Vasconcelos16, é um “método dialogal de
solução ou transformação de conflitos interpessoais”, através do qual escolhem ou aceitam
um mediador para conduzir o procedimento, baseado em um diálogo mediado para
identificação de interesses e necessidades comuns por meio do qual, havendo consenso, um
acordo será concretizado. Os mediandos, neste processo, não são adversários, mas “atuam
como corresponsáveis pela solução da disputa, contando com a colaboração do mediador.”17.
Enfatiza-se, também, conforme Vasconcelos, que a medição é uma arte, visto a
atuação do mediador que deve desenvolver além da capacidade técnica as habilidades e
sensibilidades para a condução do procedimento.
Destarte, com base nesta breve análise acerca do procedimento da mediação fica
claro o quão valiosa é esta técnica na busca pela solução de conflitos, consistindo em um
instrumento de pacificação social de grande importância em nossa sociedade.
A nova sistemática introduzida pela Lei 13.105/2015, a mediação ganha um papel
fundamental no tratamento dos conflitos, com objetivos não só de desafogar o judiciário,

16
VASCONCELOS, op. cit.
17
Ibidem, p. 61.
238

diminuindo as demandas que seguem para sentença, mas de proporcionar um tratamento


adequado dos conflitos, com a manutenção de relações interpessoais.

2.4 Da importância da atuação do advogado na mediação, como forma de solução


adequada do conflito

Após a apresentação de uma síntese do desenvolvimento social, com o destaque de


algumas das teorias acerca do Estado e Direito, é possível perceber que as convenções sociais
criadas pelo homem para viver em sociedade foram motivadas pela existência de conflito
nas relações interpessoais. A análise dos conceitos de mediação e seu procedimento,
demonstra que este mecanismo visa a restabelecer relações rompidas, proporcionando um
ambiente fértil para o desenvolvimento da comunicação entre as partes envolvidas nos
conflitos, e buscar soluções adequadas e consensuais com relação a estes.
O Novo Código de Processo Civil, traz como previsão legal o estímulo à solução
consensual de conflitos, conforme artigo 3º: “§ 2o O Estado promoverá, sempre que possível,
a solução consensual dos conflitos.” e “§ 3o A conciliação, a mediação e outros métodos de
solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores
públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.” A
mediação está prevista no artigo 319 do Novo Código de processo: “A petição inicial
indicará: (...) VII - a opção do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou
de mediação.”, e no artigo 2º, parágrafos 1º e 2º da Lei da Mediação: “§ 1o Na hipótese de
existir previsão contratual de cláusula de mediação, as partes deverão comparecer à primeira
reunião de mediação. §2o Ninguém será obrigado a permanecer em procedimento de
mediação.”
A procura e investimento em políticas públicas voltadas à implementação de vias
conciliatórias, demonstra a preocupação do judiciário em atender o anseio social de uma
justiça voltada à pacificação social, uma justiça focada em atender os interesses das partes
de forma cooperada e, desta forma, restabelecer no âmbito do judiciário um poder
comunicativo e restaurativo, tornando as soluções consensuais prioritárias. Destarte, tais
previsões impostas pelo Novo Código de Processo Civil e pela Lei 13.140/2015,
demonstram uma tentativa de exercício da cidadania em uma sociedade democrática.
Contribuindo, assim, para a construção de consensos afim de solucionar impasses sociais.
239

O sistema processual civil brasileiro sofreu mudanças significativas com a


implementação do Novo Código de Processo Civil, voltado a otimizar o processo, e o
advogado tem papel fundamental neste norte. O Manual de mediação judicial do CNJ,
estabelece que “Segundo o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça,
a cada ano, para cada dez novas demandas propostas no Poder Judiciário brasileiro, apenas
três demandas antigas são resolvidas.”, sendo que encontram-se pendentes em torno de 93
milhões de demandas. Complementando-se em sua introdução que “Sem dúvida, vivemos
sério problema de déficit operacional”18
Esta visão inovadora de estimular o método da mediação para o tratamento adequado
do conflito vem ao encontro da necessidade da promoção da justiça de fato, com decisões
tomadas entre as partes, em um espaço razoável de tempo e economia de custos.
A forma de condução do atendimento pelo advogado desde o atendimento ao cliente
no escritório, a apresentação das soluções possíveis, assim como durante a sessão de
mediação, levando-se em consideração os interesses da parte que representa e os benefícios
de um acordo, ou mesmo da retomada do diálogo para tratativas futuras, depende de cada
profissional. Estimular a participação na mediação, não significa desistir de litigar, mas
instigar o diálogo, a empatia, e a resolução do conflito de forma mais adequada, para evitar
que novos conflitos surjam oriundos da má administração do diálogo em um primeiro
momento.
A mediação, conforme Cabral19, é um mecanismo de resolução de conflitos “em que
as próprias partes constroem, em conjunto, um sistema de decisão, satisfazendo a todos os
envolvidos e oxigenando as relações sociais, com a participação de um terceiro
intermediando ou facilitando o alcance do entendimento”.
Desta forma, a mediação não é obrigatória, mas deve ser estimulada sempre que
possível por todos os operadores jurídicos, criando-se uma rede de cooperação que envolve
os advogados, mediadores, juízes, proporcionando um ambiente propício para o sucesso
desta técnica, e através deste processo cooperativo, contribui para a economia de pessoal e
recursos, resultando em maior produtividade de tarefas, além de significar o respeito às
partes envolvidas no processo, visto que o olhar é voltado para os interesses mais íntimos,
que as vezes, sequer aparecem nos autos.

18
MANUAL DA MEDIAÇÃO JUDICIAL, CNJ, 2016.
19
CABRAL, Trícia Navarro Xavier. A evolução da conciliação e da mediação no Brasil. Revista FONAMEC
- Rio de Janeiro, v.1, n. 1, p. 368 - 383, maio 2017.
240

Enfatiza-se com base nestes dois regramentos que a mediação não é um


procedimento obrigatório, ou seja, deve haver a disposição da vontade para este fim,
justamente para que atinja o objetivo final da autocomposição. Havendo a expressa
desistência deste procedimento, não será realizada a sessão nos termos legais.
Contudo, como já tratado anteriormente, a voluntariedade prevista é contraditória
com o que dispõe a lei, visto que a Lei 13.140/2015, que acaba por obrigar o participante a
comparecer na primeira sessão, sob pena de imposição de sanção, sendo assim obrigatório o
comparecimento na primeira sessão, sendo facultada a continuidade no procedimento. A
disposição de voluntariedade busca a cooperação dos participantes, visto que se o
comparecimento for oriundo da autonomia da vontade, configura uma certa abertura ao
diálogo, havendo maior probabilidade de sucesso ao método.
O advento do Novo Código de Processo Civil, propiciou, desta forma, o fomento à
utilização da mediação como mecanismo de resolução de conflitos de forma consensual,
deixando à disposição dos jurisdicionados, através desta inovação legislativa, mais uma
possibilidade de resolver as demandas submetidas ao judiciário de forma mais ágil e
buscando a pacificação social efetivamente. O Novo Código de Processo Civil elencou em
seu artigo 166, os princípios norteadores dos procedimentos de conciliação e mediação,
consistindo nos seguintes: da independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade,
da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada.
O princípio da independência, conforme Vasconcelos20, refere-se ao dever de não
haver vínculos de amizade, de trabalho ou parentesco entre o mediador e as partes.
Spengler21, destaca acerca deste princípio, que a independência para os mediadores difere
dos juízes, pois estes decidem de acordo com suas convicções e valores, enquanto aqueles
não podem influenciar os conflitantes, referindo-se, ainda, à capacidade de agir livre de
qualquer influência.
A imparcialidade corresponde à necessidade de neutralidade e equitatividade entre
as partes no tratamento oferecido pelo mediador, tendo em vista que este “não se posiciona
a favor de nenhum dos lados, privilegiando o diálogo e escolhas pessoais de cada um”22.
Assim, o mediador não deve esboçar preferencias durante o procedimento.

20
VANCNCELOS, op. cit.
21
SPENGLER, op. cit.
22
Ibidem, p. 147.
241

O princípio da autonomia da vontade, indica que na mediação as partes possuem


poder de decisão, possibilitando-se que as próprias partes encontrem a melhor maneira de
tratar o conflito, sem imposição de acordos ou pontos de vista pelo mediador.
Spengler23, destaca que a autonomia da vontade também está ligada à liberdade de
optar-se pela mediação/conciliação, não sendo uma obrigação este procedimento, “de modo
que tais procedimentos não são impostos, tão somente fomentados pela norma legal e pelos
operadores do Direito”, complementando que este princípio ainda pode referir-se “às
decisões, dando aos conflitantes a opção de homologarem ou não o acordo construído.
Compete a eles optarem pelo melhor para si mesmos”.
A oralidade consiste em um princípio oriundo dos Juizados Especiais regidos pela
Lei 9.099/95, referindo-se à própria forma de condução do procedimento da mediação. “É
princípio atrelado ao da informalidade, no qual as pessoas tem a oportunidade de debater os
problemas que lhes envolvem, visando a encontrar a melhor solução para eles”24.
A informalidade, também prevista na Lei 9.099/95, tem por objetivo proporcionar
estímulo ao diálogo e celeridade ao processo de mediação.
O princípio da decisão informada consiste na necessidade de aclarar aos participantes
sobre o andamento da sessão, como por exemplo, sobre a possibilidade de propor acordos
ou não, de participar ou recusar, explicitando que os envolvidos devem ter ciência de suas
escolhas e consequências destas. Desta forma, os mediandos devem estar apropriados das
informações adequadas para a tomada de decisões.
Quanto ao princípio da confidencialidade, este expressa que todas as informações
obtidas na sessão de mediação devem ser mantidas em sigilo, sendo dedicados dois
parágrafos do artigo 166, do Novo Código de processo Civil, para preceitua-lo: “§ 1o A
confidencialidade estende-se a todas as informações produzidas no curso do procedimento,
cujo teor não poderá ser utilizado para fim diverso daquele previsto por expressa deliberação
das partes.” e “2o Em razão do dever de sigilo, inerente às suas funções, o conciliador e o
mediador, assim como os membros de suas equipes, não poderão divulgar ou depor acerca
de fatos ou elementos oriundos da conciliação ou da mediação.
O fim deste princípio é proporcionar um ambiente seguro para que as partes sintam-
se a vontade para tornarem externos seus sentimentos e detalhes acerca dos problemas que

23
Idem.
24
SPENGLER, op.cit.
242

envolvem a demanda, sem medo de que tais declarações possam ser utilizadas em outra fase
processual. Assim, por exemplo, é vedado ao mediador ser testemunha ou atuar como
advogado para os mediandos da sessão em que participou como mediador ou membro da
equipe.
Além dos princípios supracitados, a Lei 13.140/2015, é complementar ao Novo
Código de processo Civil no elenco de princípios que norteiam o procedimento da mediação,
dispondo a Lei 13.140/2015, em seu artigo 2º que a mediação será orientada pelos princípios
da imparcialidade do mediador, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade,
autonomia da vontade das partes, busca do consenso, confidencialidade e boa-fé.
A mediação configura, então, um método mais justo, rápido e eficiente para a solução
das controvérsias, não ensejando a necessidade de submissão da demanda a todas as etapas
do procedimento jurisdicional para tal fim. Essa prática visa atender aos anseios sociais de
uma justiça de fato. O acesso à justiça depende de uma maior abrangência de objetivos e
métodos, em uma constante evolução da ciência jurídica, representando um direito
fundamental de todos.
O papel dos operadores do direito tem uma participação de extrema importância em
uma sociedade onde perpetua-se a cultura do bem e do mal, vencer ou perder, sendo
necessário o pensamento voltado à prática da mediação, como pressuposto para o exercício
de direitos fundamentais inerentes à qualidade de ser humano, detentor de uma dignidade a
ser zelada no individual e coletivo.
A mediação é um mecanismo de cooperação, implementado em uma sociedade
carente de operadores do Direito que objetivem estimular a pacificação social. Nesta
perspectiva, todos os envolvidos no processo de mediação devem estar abertos a novas ideias
ligadas à cooperação para efetivação de direitos.
Todo o processo da mediação deve ser impulsionado pelos seus operadores: juízes,
mediadores, advogados, buscando-se primar pela obtenção de resultados positivos entre os
envolvidos, deixando de lado a lógica do ganha-perde, para de forma consensualizada
resolver o conflito pela lógica do ganha-ganha. Os advogados são sujeitos importantes neste
contexto, e muitas vezes resistem à realização de sessões de mediação por não conhecerem
o método, ficando inseguros por não terem tido a oportunidade ainda de estudar e conviver
com este novo paradigma de cooperação.
243

O histórico do conflito no meio social demonstra que este é inerente às relações


humanas. Gerir paixões humanas em uma sociedade complexa como a atual demanda
cooperação entre os envolvidos.

Tradicionalmente, concebia-se o conflito como algo a ser suprimido, eliminado da


vida social; e que a paz seria fruto da ausência de conflitos. Não é assim que se
concebe atualmente, a partir de uma visão sistêmica. A paz é um bem
precariamente conquistado por pessoas ou sociedade que aprendem a lidar com o
conflito. O conflito, quando bem conduzido, evita a violência e pode resultar em
mudanças positivas e novas oportunidades de ganhos mútuos25.

O instituto da mediação é inovador, possui objetivos voltados à concretização da


justiça e deve ser estimulado por todos os envolvidos no meio jurídico, para que seja aceito
e conhecido no meio comunitário, visto que é, ainda, desconhecido por muitos, e aquilo que
se desconhece causa estranheza, principalmente, neste caso, pelas características de
informalidade e flexibilidade atribuídas à mediação, sendo enfatizado no artigo 166,
parágrafo 4º, que “a mediação e a conciliação serão regidas conforme a livre autonomia dos
interessados, inclusive no que diz respeito à definição das regras procedimentais”.
Destarte, por ter sido recentemente regulamentada pela lei que estipula o
procedimento processual, sendo ainda uma novidade da prática no ordenamento jurídico
pátrio, pode ser difícil quantificar resultados e eficácia da sua utilização. Porém, sem dúvida,
possui um caráter democrático, com intenção clara de pacificação social a partir da
construção do diálogo entre as partes envolvidas no litígio. Segundo Spengler26 “é a melhor
fórmula até agora encontrada para superar o imaginário do normativismo jurídico,
esfumaçando a busca pela segurança, previsibilidade e certeza jurídicas para cumprir com
objetivos inerentes à autonomia, à cidadania, à democracia e aos direitos humanos”.

Na verdade a desjudicialização das controvérsias e a autocomposição pelas partes


do processo é uma realidade dos grandes sistemas processuais como forma de
resolver os problemas estruturais da justiça, mas, acima de tudo, como meio de se
atingir uma satisfação mais plena por parte dos envolvidos nos conflitos,
destacando-se, neste último caso os benefícios da mediação na pacificação social,
já que esta técnica se aprofunda nas razões emocionais que cercam as relações
conflituosas, trazendo mais legitimidade aos ajustes e mais chance de acabar em
definitivo com o dilema estabelecido.27

25
VASCONCELOS, op. Cit., p. 24.
26
SPENGLER, op cit, p.26.
27
CABRAL, op. Cit.
244

A mediação objetiva além da economia processual (tempo, custos) promover nos


envolvidos um sentimento de justiça a partir da construção dialogal cooperada, produzindo
a adequada solução para o conflito a partir do diálogo entre as próprias partes, de forma
consensualizada.
As práticas da mediação configuram exercício da cidadania, tendo em vista que
“educam, facilitam e ajudam a produzir diferenças e a realizar tomadas de decisões, sem a
intervenção de terceiros que decidem pelos afetados em um conflito”28. É uma construção
cooperada da solução para o problema que origina o conflito, através da promoção do
diálogo entre os mediandos. A mediação, desta forma, é uma prática social de grande valia
para a sociedade atual. Sociedade caracterizada pela falta de tolerância nas práticas diárias
de convívio entre os indivíduos. A introdução da previsão da prática da mediação no
ordenamento jurídico representa, então, “uma aposta em uma nova maneira de atender a
solução de conflitos, fugindo da tradicional jurisdição oferecida pelo Estado, para uma
estratégia partilhada e convencionada que tenha por base um direito inclusivo”29
Isto posto, evidente está a importância da mediação na tentativa de resolução
consensual de conflitos. A busca por soluções adequadas às demandas que levam o judiciário
a sobrecarregar-se, é uma das principais motivações do legislador ao inovar com o instituto
da mediação, tentando proporcionar ao jurisdicionado um desfecho ao caso concreto que
atenda às suas expectativas enquanto detentor de um direito, de forma mais humanizada.
Este novo paradigma objetiva melhorar as condições de acesso à justiça, pois o judiciário
encontra-se sobrecarregado pela imensa demanda de litígios, muitos dos quais seriam
facilmente solucionados apenas com uma conversa entre as partes. A mediação configura
uma alternativa ao método de jurisdição do Estado, com maior rapidez e economia e a
atuação do advogado na condução do processo está diretamente ligada ao sucesso dos
métodos autocompositivos, visto que a administração do conflito é feita por este que atua no
judiciário representando o cliente, que é o detentor do direito.
A construção cooperada através do estímulo ao diálogo entre os litigantes, demonstra
a preocupação do legislador em atender os interesses das partes do conflito, possibilitando o
acesso à justiça de forma mais eficaz, primando pela pacificação social. Desta forma, a
mediação se consolida como instrumento de política pública de essencial importância para

28
SPENGLER, op. Cit., p.27.
29
SPENGLER, op. Cit., p.27.
245

o acesso à justiça, a serviço da cidadania e democracia, e tendo o advogado um papel


fundamental neste âmbito, sendo peça chave para que a partir do conhecimento mais
profundo deste método de resolução adequada do conflito, possa atuar de forma colaborativa
para que os objetivos da mediação se consolidem, tendo como foco a retomada do diálogo,
amenizando a distância entre as partes e a trazendo a possibilidade de tratativas acerca de
um entendimento.

CONCLUSÃO

O direito surgiu na sociedade a partir da necessidade de resolução de impasses


gerados pelos interesses e objetivos antagônicos entre os seres humanos. Representa uma
forma diplomática de solucionar conflitos entre os indivíduos, estabelecendo-se regras nas
relações no meio social, antes controladas pela força, para o fim último da promoção da
justiça.
O conflito é inerente ao convívio entre os indivíduos, sendo gerado por dissenso, por
contrariedades. Desta forma, as partes são vistas como adversárias, e agem para fazer valer
a sua vontade, na tentativa de que sua versão sobre os fatos prevaleça. Esta é a visão geral
do processo, ou seja, é a visão da maioria das pessoas sobre o andamento processual.
A mediação, então, é um método voltado à estimulação do diálogo entre as partes,
objetivando a resolução do conflito de forma consensual. Este mecanismo ganhou destaque
com o advento do Novo Código de Processo Civil, tendo em vista o estímulo à prática deste
método que deve ser motivado por todos os operadores do direito, desde os juízes, os
mediadores, até os advogados.
O legislador buscou harmonizar os diplomas legais para que as leis em vigência não
interferissem na validade umas das outras, de modo que a Lei nº 13.105/2015 (Novo Código
de Processo Civil) e a Lei nº 13.140/2015 (Lei da Mediação) complementam-se, para o fim
de estimular a aplicação da mediação como instrumento eficaz na resolução consensual de
conflitos.
A referida legislação elenca o rol de princípios que norteiam a mediação dentre os
quais estão o princípio da independência, da imparcialidade, da autonomia de vontade, da
confidencialidade, da oralidade, da informalidade, da decisão informada, da busca pelo
consenso, entre outros. Destes, o princípio da confidencialidade é um dos que possui maior
246

importância, primando-se pelo sigilo total das informações trocadas durante a realização das
sessões de mediação.
Destarte, todos os envolvidos neste processo devem estar abertos a esse novo
instrumento de pacificação social, onde de forma cooperada busca-se a solução adequada ao
conflito a partir de uma construção de comum acordo entre as partes do desfecho ideal para
resolução do problema que causa a controvérsia entre as partes.
Este método, através da promoção do diálogo entre os mediandos, propõe-se a evitar
os desgastes da cultura do ganha-perde, partindo-se para um novo paradoxo que envolve a
concepção do ganha-ganha, onde os mediando não são vistos como adversários. Um dos
principais desafios à mediação é justamente a tradição beligerante introduzida no meio
jurídico, que deverá ser aos poucos transformada em uma cultura voltada ao consenso, de
forma que o cidadão veja em si próprio a solução para o conflito, em uma atitude de
cooperação e abertura ao diálogo, e este estudo buscou demonstrar justamente a importância
da atuação do advogado para contribuir neste processo.
O Estado é o garantidor do acesso à justiça e aplicação das leis, as quais são criadas
baseadas em conflitos cotidianos. Caberia ao indivíduo, então, perceber que suas atitudes
originaram a necessidade da criação de leis, isto é, são as atitudes do próprio indivíduo que
podem eliminar litígios a partir da mudança de comportamento e abertura ao diálogo.
A mediação, por fim, surge em meio a toda a complexidade da sociedade
contemporânea, como uma tentativa inovadora de promover a justiça. Consiste em um
método que tenta enriquecer as relações sociais, que objetiva auxiliar os operadores do
direito na solução de conflitos de forma menos desgastante para as partes.
Assim, sendo o direito uma ciência social, deve estar em constante aperfeiçoamento
para acompanhar o desenvolvimento da sociedade, sendo o Novo Código de Processo Civil
uma novidade do legislador neste sentido. O método da mediação surge como uma nova
possibilidade de solução consensual de controvérsias, tendo como objetivos, além da
agilidade processual e economia de custos, o desenvolvimento humano dos envolvidos,
através de um olhar voltado também a zelar pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
A mediação consolida-se de fato com a Lei nº 13.105/2015 (NCPC), sendo esta o seu
marco regulamentador, estabelecendo-se que as soluções consensuais passem a ser
prioritárias. Contudo, na prática ainda há um caminho a ser trilhado para que se possa
247

usufruir em plenitude o instituto da mediação, porém o primeiro passo fora dado: o estímulo
à prática do método através da previsão legal.
A evolução da aplicação no cotidiano das atividades jurídicas depende muito dos
investimentos financeiros que serão disponibilizados pelo Estado para tal fim, mas também
do empenho dos recursos humanos envolvidos, sendo uma nova mentalidade a ser
implantada e difundida entre os operadores do direito envolvidos neste processo. Além disso,
o desfecho do método sem que haja um acordo, não significa seu fracasso. O procedimento
será produtivo tendo em vista a possibilidade de restabelecimento de comunicação entre as
partes, ou pelo menos uma maior harmonia nesta.
O advogado possui, então, um papel de extrema importância na implantação com
sucesso do mecanismo da mediação, visto que a forma como conduz o desenvolvimento do
conflito trazido pelo cliente, influencia na forma como o cliente irá reagir durante o
desenvolvimento do processo com relação a outra parte. Demonstrar os benefícios deste
mecanismo também é fator importante, assim como não instigar a cultura beligerante da ação
judicial, cuja sentença pode não satisfazer os reais interesses dos envolvidos.
O mecanismo da mediação representa um importante instrumento de política pública
garantidor do acesso à justiça e implementador de estímulo à pacificação social, como uma
fonte primordial de efetivação de direitos. Representa, portanto, um grande avanço no
âmbito jurídico para uma sociedade democrática, e um instrumento de exercício da
cidadania, como uma nova perspectiva de aplicação do direito e concretização da justiça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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248

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VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas.


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WARAT, Luis Alberto. O oficio do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.


249

A MATERNIDADE EM XEQUE COM A CODIV-19

Cindel Gabriele de Queiroz1

RESUMO: O presente artigo adveio da ideia de trazer à baila o universo da maternidade em


meio à pandemia do Coronavírus. Com base no levantamento de dados ora colhidos, as
mulheres possuem diversas desigualdades quando se trata de carreira e filhos. Deste modo,
procura-se abordar os efeitos que a pandemia tem ocasionado na vida dessas mães e o
impacto na sociedade como um todo.

Palavras-chave: Maternidade, Carreira, Emprego, COVID-19

INTRODUÇÃO

Embora o mundo esteja globalizado, com altas tecnologias à disposição, tais como,
as plataformas digitais, ainda há certos temas em que parece que a sociedade não evoluiu
tanto quanto faz crer. Um exemplo disso é em relação à mulher e o mercado de trabalho.
Apesar do poder público e as entidades promoverem ações de conscientização da
valorização do trabalho da mulher, bem como enfrentamento das desigualdades salariais,
entre outras ações, ainda há uma discrepância significativa no que atinente às oportunidades
entre homens e mulheres.
Um estudo2 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
concluiu que as mulheres ganham menos do que os homens em todas as ocupações
pesquisadas no ensaio, bem como verificou-se que as trabalhadoras ganham, em média,
20.5%, a menos do que os trabalhadores do sexo masculino no Brasil. Essa triste realidade
é ainda pior quando a trabalhadora se torna mãe, haja vista que existe certa barreira ao acesso
aos empregos como se abordará no presente artigo.

1
Advogada, inscrita na OAB/RS 120.542. Pós Graduanda em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade
de Santa Cruz do Sul (UNISC). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos da Universidade
Luterana do Brasil (Ulbra-Torres). E-mail: cindelgabriele@gmail.com
2
OLIVEIRA, Nielmar. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-03/pesquisa-do-
ibge-mostra-que-mulher-ganha-menos-em-todas
ocupacoes#:~:text=Um%20estudo%20feito%20pelo%20Instituto,que%20os%20homens%20no%20pa%C3
%ADs.> Acesso em 13 ago de 2020.
250

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PANDEMIA DA COVID-19

A pandemia ocasionada pelo coronavirus causador da doença COVID-19, teve início


na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China no final do ano de
2019. Em 30/01/2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou surto do novo
coronavirus, bem como constituiu como emergência de saúde pública de importância
internacional (ESPII), que por sua vez constituiu-se como mais alto nível de alerta da
instituição, consoante regulamento sanitário internacional3.
No Brasil, por meio do decreto legislativo nº 06/2020 foi reconhecido o Estado de
Calamidade Pública. De lá para cá muitos hábitos comuns tiveram que ser mudados, como
um simples chimarrão no parque da cidade, comemorações de aniversários, casamentos e
formaturas, bem como houve a necessidade de utilizar álcool em gel, máscaras e reduzir
drasticamente a aglomeração e circulação de pessoas. Em algumas cidades brasileiras houve
a decretação de lockdown4 haja vista a necessidade de barrar a propagação do vírus mortal.
Na seara jus laboral, o governo brasileiro editou a medida provisória nº 927 que
disciplinava sobre o enfretamento do estado de calamidade pública. No bojo da medida havia
várias regras sobre direito do trabalho, em especial, a prevista no art. 4º e 5º que elencavam
sobre o teletrabalho.
Importante frisar que o teletrabalho não é novidade no país, tendo em vista estar
positivado no capítulo II-A da Consolidação das Leis do Trabalho. O que diferencia a medida
provisória da CLT é que em relação à primeira foi uma espécie de imposição do empregador
para com o empregado, já a última é uma vontade bilateral, haja vista que dispõe o art. 75-
C, § 1º, do texto consolidado: “Poderá ser realizada a alteração entre regime presencial e de
teletrabalho desde que haja mútuo acordo entre as partes, registrado em aditivo contratual”.
Desta maneira, tentou o ente público contornar a situação vivenciada pela pandemia,
porém, tal medida provisória expirou e não foi votada pelo Congresso Nacional, sendo
assim, perdeu sua vigência e até o momento não houve publicação de decreto normatizando
as ações que foram realizadas com base na referida medida.

3
Organização Pan- Americana de Saúde. OPAS BRASIL. Disponível em
<https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875 >
Acesso em 29 de jul de 2020.
4
TEIXEIRA, Lucas Borges. Lockdown: Como Funciona, O que é, Significado e Locais em Que Vale a
Medida. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/faq/lockdown-como-funciona-o-que-e-significado-e-
regras-em-sp-e-mais-cidades.htm>. Acesso em 18 ago de 2020.
251

Boa parte das empresas adotou o regime de teletrabalho para com seus empregados,
notadamente aqueles previstos no grupo de risco5 como os diabéticos, hipertensos e idosos.
Mas não só o grupo de risco que ficou na sua residência, os empregados que tinham filhos
pequenos também tiveram que ser inseridos no rol de quem labora em casa.
No entanto, nem todo o trabalho, propriamente dito, pode ser realizado à distância.
Desta maneira, essa situação tem gerado um impasse perante o empregado e empregador. O
consultor legislativo do Senado Federal Eduardo Módena6, sugeriu que os trabalhadores que
são considerados primordiais e não tem com quem deixar os filhos -eis que as creches e
escolas estão fechadas há meses7 e não se tem qualquer expectativa de retorno das aulas-
negociem com seus empregadores ou busquem com as entidades sindicais uma solução para
este impasse. Na cidade de São Paulo, a prefeitura orientou8 que durante a pandemia
mulheres que tivessem filhos pequenos permanecessem em regime de teletrabalho.
Em solo gaúcho, o juiz titular da 2ª Vara do Trabalho de Caxias do Sul/RS, deferiu
uma decisão liminar9 garantindo que uma empregada dos Correios trabalhe de forma remota
enquanto as escolas de educação infantil não retornarem as aulas presenciais. A obreira
possui um filho autista de quatro anos de idade e o pai trabalha como motorista, assim o
genitor não consegue permanecer com o filho.
Infelizmente, há casos em que o trabalho home office e crianças não foi bem visto
pelo empregadores. É o caso da norte-americana Dris Wallace, moradora de San
Diego/Califórnia. Dris foi despedida porque não conseguia manter os filhos em silêncio

5
Grupo de Risco Coronavirus. Equipe Oncoguia. Disponível em:
<http://www.oncoguia.org.br/conteudo/grupos-de-risco/13468/1204/>. Acesso em 13 ago de 2020.
6
Trabalhadores sofrem com falta de creches em tempo de pandemia. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2020/06/trabalhadores-sofrem-com-falta-de-creches-em-
tempo-de-pandemia>. Acesso em 13 ago de 2020.
7
JUSTINO, Guilherme; Viesseri, Bruna. Indefinição sobre volta às aulas leva creches a fecharem em
definitivo no RS. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-
emprego/noticia/2020/06/indefinicao-sobre-volta-as-aulas-leva-creches-a-fecharem-em-definitivo-no-rs-
ckbii9fza00om015n4bc96ucm.html>.Acesso em 13 ago de 2020.
8
Secretaria Especial de Comunicação. Prefeitura Orienta Mulheres com Filhos Pequenos a
permanecerem em teletrabalho durante pandemia. Disponível em:
<www.capital.sp.gov.br/noticia/prefeitura-orienta-mulheres-com-filhos-pequenos-a-permanecerem-em-
teletrabalho-durante-pandemia>. Acesso em 30 jul de 2020.
9
MARCA, Maurício Machado. TRT 4ª- Notícias. Disponível em:
<https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/328151>.
252

durante as reuniões online com seu superior. Em sua conta na rede social Instagram, escreveu
que os seus superiores reclamavam do barulho dos seus dois filhos. Constou na publicação10:

Nos últimos 3 meses, trabalhei 24 horas em casa, assistindo minhas duas crianças.
Eu cumpri todos os prazos que eles me pediram, mesmo os irreais. A situação
que eu sofri nos últimos três meses está além de estressante. Como uma empresa
que diz entender e trabalhar de acordo com o cronograma dos pais faz
completamente o oposto em suas ações? Estou devastada. Demorei em dar um
lanche ao meu filho quando ele queria, porque meu chefe precisava que eu
fizesse algo imediatamente. E o que eu recebi em troca? Fui demitida! (sem
negrito no original)
Nenhuma mãe trabalhadora deve ser discriminada, especialmente durante
esse período por não conseguir manter meus filhos quietos em uma ligação
comercial. Estamos em tempos difíceis agora. Esta situação teria sido
temporária. Nenhum de meus clientes tiveram problemas com meus filhos. (sem
negrito no original)

Assim, o cenário atual está bem delicado, caberá aos empregados, empregadores e
os sindicatos tentaram contornar essa circunstância. Todavia, aos trabalhadores no geral, mas
em especial, às trabalhadoras, que estão submetidas ao teletrabalho há outro problema a ser
enfrentado, qual seja: o da dupla jornada.

2 DESAFIOS DA MATERNIDADE
2.1 Dupla Jornada

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua-PNAD que investiga além


do trabalho por ocupação também outras maneiras de trabalho definidas pela 19ª
Conferência Internacional dos Estatísticos do Trabalho- CIET promovida pela Organização
Internacional do Trabalho- OIT, dentre elas, estão os afazeres domésticos, o cuidado de
pessoas, o trabalho voluntário e a produção do próprio consumo.11
Conforme demonstrou o estudo, o número de mulheres realizando atividades
domésticas é significadamente maior do que os homens, mais precisamente 14 pontos
percentuais, no ano de 2018. Contudo, esta discrepância já foi maior, pois no ano de 2016 a
diferença era na casa dos 17,0 pontos percentuais12.

10
Universa São Paulo. Mulher é demitida após chefes reclamarem de barulho dos filhos em reuniões.
Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/07/06/mulher-e-demitida-apos-
chefes-reclamarem-de-barulho-dos-filhos-em-reunioes.htm?.>. Acesso em: 18 ago de 2020. .
11
Outras Formas de Trabalho 2018. Disponível em
<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101650_informativo.pdf>. Acesso em: 17 ago de 2020.
12
Ibidem.
253

Observa-se, outrossim, que as mulheres trabalham 7,5 horas a mais que os homens
devido à jornada suplementar em casa. No ano de 2015, a jornada total média das mulheres
era de 53,6h enquanto que a dos homens era de 46,10h. No que atine às tarefas não
remuneradas, a proporção se manteve quase inalterada no decorrer dos vinte anos. Deste
modo, 90% do público feminino declara que exerce atividades domésticas ao passo que o
masculino é em torno de 50%13.
Flagrante, então, que as mulheres muito tempo antes da pandemia já trabalham
muitas horas há mais do que os homens, na medida em que tinham seus empregos e após,
chegar em casa, havia o cuidado com a casa e os filhos.
Em diversos lares brasileiros, as mulheres que estão trabalhando em casa e ao mesmo
tempo cuidando dos filhos, estão com dificuldades em conciliar as duas tarefas, se tornando
verdadeiro um desafio. Uma reportagem14 veiculada no jornal El País evidenciou que as
mães estão tendo que fazer verdadeiros “malabarismos” para conseguir laborar e também
auxiliar os filhos. Constou na notícia:

Desde o início de maio, ela trabalha em casa, onde vive com a mãe e a filha,
Manuela, de seis anos. Diariamente, Gabriela interrompe o trabalho às 16h e
retoma às 17h, em acordo com a empresa, para poder acompanhar as aulas online
de Manuela. No resto do tempo, auxilia a filha nas lições de casa, ao mesmo tempo
em que trabalha. “Está sendo uma loucura conciliar tudo.”(sem negrito no
original)
“Estou tendo que me dividir em mil”, diz a advogada Liliane Barbosa, 35, de
Fortaleza, outra capital que lidera casos de pandemia no Brasil. Retornando agora
da licença-maternidade, ela e o marido tiveram de contratar uma babá, que, por
sua vez, passou a dormir na casa da patroa, para evitar o uso do transporte público
e assim não expor a irmã, grávida, com quem vive. (sem negrito no original).
A arquiteta Fernanda tem pensado em negociar com a empresa onde trabalha, no
ramo da construção civil, para poder se dividir entre cuidar da filha, de dois
anos, e seguir trabalhando. A creche onde a criança está matriculada não tem
previsão de volta. Já seu trabalho nunca parou de fato. Acompanho obra,
então parte do meu trabalho é presencial, não tem jeito, diz Até consigo não
ir todos os dias para a obra, e às vezes também recorro à minha mãe para
deixar a minha filha. (sem negrito no original).

Ademais os dados têm evidenciado que antes do advento da pandemia um terço dos
profissionais nunca realizam home office, entre os principais motivos estavam: 33,91% em

13
VERDÉLIO, Andreia. Mulheres trabalham 7,5 horas a mais que homens devido à dupla jornada.
Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-03/mulheres-trabalham-75-horas-mais-
que-homens-devido-dupla-jornada>. Acesso em 13 ago de 2020.
14
ROSSI, Marina. Retomada econômica ignora mães que precisam ir ao trabalho e não terão escolas para
deixar os filhos. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-04/retomada-economica-ignora-
maes-que-precisam-ir-ao-trabalho-e-nao-terao-escolas-para-deixar-os-filhos.html>. Acesso em: 14 ago de
2020.
254

decorrência da função, 32,62% o gestor, 14% política da empresa. Mesmo executando o


trabalho em casa cerca de 84,47% dos pais e das mães tinham algum auxílio seja escola ou
creche, o que representa 62% dos casos15.
Todavia, durante a pandemia do Coronavírus, o número de trabalhadores em suas
residências, alcançou a monta de 89%. Para o público masculino 50% considera fácil
conciliar filhos e carreira, enquanto que para o feminino apenas 33% 16.
A partir das informações colidas, nota-se a nítida discrepância entre as opiniões entre
homens e mulheres acerca da conciliação entre carreira e filhos. Pois, conforme percentuais
acima e, sobejamente, divulgado pela mídia, os afazeres domésticos estão
preponderantemente atrelados à parcela feminina.
Deste modo, a dupla jornada tem se tornado cada vez mais frequente nos núcleos
familiares e, se não bastasse isso, ainda há algumas escolas que estão utilizando as
plataformas digitais como o Google Meet para ministrar as aulas. Ou seja, além do seu
trabalho propriamente dito e dos serviços domésticos, as mães também têm sido professoras,
o que por fim está levando as mulheres ao seu limite psicológico.
Neste cenário, em vista da sobrecarga e também do futuro incerto da pandemia que
abala desde alicerces de trabalho à saúde, muitos casais têm pensado em adiar17 a gravidez.

2.2 Um peso, duas medidas com a parentalidade

No momento da admissão de um (a) empregado (a) o empregador não poderá exigir


algumas “condições” para contratação, por exemplo, estado civil ou outras informações
atinentes ao status familiar que o empregado possui.
Nesta senda, importa dizer também que a empresa não poderá exigir atestado de
gravidez à empregada, sob pena de afrontar o art. 373-A, IV, da Consolidação das Leis do
Trabalho.18

15
Filippe, Marina. Aliar trabalho e filhos continua mais difícil para mulheres do que homens. Disponível
em: <https://exame.com/carreira/aliar-trabalho-e-filhos-continua-mais-dificil-para-mulheres-do-que-homens/
>. Acesso em 14 ago de 2020.
16
Ibidem.
17 SIMOURA, Jaciele. Casais Adiam o Sonho da Gravidez por Conta do Coronavírus. Disponível em: <
https://tribunaonline.com.br/casais-adiam-o-sonho-da-gravidez-por-conta-do-coronavirus>. Acesso em 14 ago
2020.
18
Exigir atestado ou exame, de qualquer natureza, para comprovação de esterilidade ou gravidez, na
admissão ou permanência no emprego. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del5452.htm>. Acesso em 14 ago de 2020.
255

Contudo, embora constitua prática proibida por ser considerada discriminatória o


empregador exigir determinada condição, infelizmente, quando se trata de mulher e mãe,
isso pode impactar negativamente na carreira.
19
Uma pesquisa realizada pela BBC News Brasil apontou que quando os homens
tornam-se pais este é premiado pelo empregador ao passo que a mãe é penalizada pela
gravidez-nascimento do bebê. O estudo teve como corolário a pesquisa realizada na
Universidade de Massachussetts intitulada como The Fatherhood bônus and the Motherhood
Penalty20 (o bônus da paternidade e o fardo da maternidade). Nesta pesquisa, foi verificado
que os rendimentos dos homens com a chegada de um filho aumentam em torno de 6%.
Em solo brasileiro, o desemprego é maior entre mulheres com filhos, pois há todo o
cuidado que uma criança exige e aliado, às vezes, pela falta de vagas em creches e escolas.
No levantamento realizado, os índices21 apontam que:
a) 38% das mulheres casadas que não trabalhavam relataram que havia
intenção de estar empregadas. Desse montante, praticamente a metade informaram
que não tinha com quem deixar os filhos e metade afirmava que não conseguia
encontrar emprego22;

b) No que atine às mães que não moravam com companheiro, 43% disseram
que estava sem emprego porque queriam, já 34% não conseguia encontrar
emprego e por fim 23% relatam não ter acesso à escola ou creche23.

Diversamente do que ocorrem com as mulheres, os homens afirmam que ao se


tornarem pais perceberam mudanças positivas perante seu empregador. Na dicção da
pesquisadora24: “de forma geral, eles afirmam que a paternidade os fez mais responsáveis e
que os patrões perceberam e os recompensam por isso.” Para a mesma, a paternidade vem
acompanhada de um “bônus”, enquanto que a maternidade prejudica a ascensão salarial da
mulher, portanto, seria uma “penalidade”.

19
MOTA, Camilla Veras. Por que ter Filhos Prejudica Mulheres e Favorece Pais no Mercado de
Trabalho. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40940621> Acesso em 19 ago de 2020.
20
The Fatherhood Bonus And The Motherhood Penalty: Parenthoood And The Gender Gap in Pay.
Disponível em:< https://www.thirdway.org/report/the-fatherhood-bonus-and-the-motherhood-penalty-
parenthood-and-the-gender-gap-in-
pay#:~:text=The%20effects%20of%20children%20on,men%20with%20and%20without%20children
>.Acesso em 19 ago de 2020.
21
Ibidem.
22
Ibidem.
23
Ibidem.
24
Ibidem.
256

A realidade evidencia-se mais preocupante nas relações de trabalho quando as mães


são as principais responsáveis pelos filhos e os pais “têm a possibilidade de escolher ajudar
suas mulheres com esta responsabilidade quando se sentem inclinados a isso” 25.
No geral todas as mulheres-mães são atingidas, porém, na classe de renda baixa,
portanto, àquelas que não têm como contratar uma babá a discriminação é ainda pior.
Segundo apurou a pesquisadora26, as entrevistas de emprego são deveras mais hostis, haja
vista que são questionadas se possuem filhos, se a criança ficar doente com quem ela irá
ficar, quem levará ao médico, etc.
No ensaio27 promovido pelo Insper, intitulado “Como famílias de baixa renda em
São Paulo conciliam trabalho e família?”, 70% informaram que recebem alguma espécie de
ajuda de outras mulheres para cuidar dos filhos. Neste aspecto, pondera Madalozzo28 que
“as mulheres de alta renda contam com as de baixa renda e essas últimas, com as mães, avós,
cunhadas, irmãs. É uma rede completamente feminina”.
Nessa toada, o que acontece na prática é que as mulheres acabam perdendo ou
postergando seus postos de trabalho, ao passo que nos homens o efeito é oposto. O mercado
de trabalho entende que o homem ao se tornar pai tem a se dedicar mais ao trabalho, pois irá
ter custos com a família e também possui interesse em crescer dentro da empresa. Tornam-
se mais sérios, responsáveis e confiáveis, é o que foi apontado no estudo realizado pela
Boston College Center for Work and Family29.

3 SER MÃE É “UM COMBO, UM PLUS, UM UPGRADE”

Há certo tempo foi veiculada na mídia nacional uma campanha publicitária 30 em


alusão ao Dia das Mães, bem como está disponível no canal “temos que falar sobre isso” no
sítio do youtube. Na campanha conta-se a história de uma senhora em busca de uma
recolocação no mercado de trabalho.

25
Ibidem.
26
Ibidem.
27
Ibidem.
28
Ibidem.
29
Paternidade o que Muda na Carreia dos Homens que se Tornam Pais. Disponível em:
https://www.trendrecruitment.com/pt/blog/2019/05/paternidade-o-que-muda-na-carreira-dos-homens-que-se-
tornam-pais>. Acesso em 14 ago de 2020.
30
Ser mãe é um plus. Canal Youtube do Temos que falar sobre isso. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=5170o6COLLg&t=5s. Acesso 14 ago de 2020.
257

Os entrevistadores questionavam a candidata no que ela se dedicou nos anos “vazios”


do seu currículo. Com ares de constrangimento, a mãe candidata respondia que quando ficou
grávida apenas se dedicou à prole. No vídeo, a personagem acaba passando por diversas
entrevistas e sempre os entrevistadores não a contratavam por possuir essa condição.
Porém, passado certo tempo ela acaba modificando sua “apresentação” no currículo.
Chegando a sua última entrevista é informada de que seu perfil é exatamente do que a
empresa estava precisando e, curioso, o entrevistador a indaga onde foi que ela desenvolveu
essas habilidades. Neste momento é iniciado o vídeo do que as mulheres-mães são capazes
e que por isso “se encaixariam na política da empresa”: assumir riscos, capacidade de esforço
e sacrifício, comunicação e oratória, gestão de recursos, capacidade motivacional,
organização e planejamento, perseverança e constância, trabalho em equipe e liderança.
Fazendo-se uma breve reflexão acerca da publicidade acima supramencionada,
verifica-se que ela é o retrato da vida de milhares de mulheres que lutam pela conciliação
entre seu labor e sua prole, pela igualdade e, principalmente, pela não discriminação em ser
mãe. Pois, os atributos desenvolvidos ao se tornar mãe, também podem ser inseridos na visão
de uma empresa.
Felizmente no Brasil há diversas entidades que promovem o empoderamento
feminino, como Filhos no Currículo e Movimento + Mulher 360, que procuram fomentar a
divulgação de temas relacionados às mulheres com empresas e a sociedade em geral.
A Filhos no Currículo tem o propósito de humanizar as relações de trabalho e
maternidade com o auxílio de projetos de impacto social. A entidade atua sobre três vieses,
são eles31:
a) Sensibilização e Fomento: palestra e workshops de sensibilização para
colaboradores e conscientização para lideranças, criação de pesquisas autorais de
mercado;
b) Consultoria Estratégica: mapeamento da jornada de colaboradores
com filhos a partir de pesquisa, revisão de processos e políticas da companhia e
estruturação de programas de reonboarding e huting;
c) Programas Corporativos: programas corporativos desde a gestação
[programação inicial para gestantes] até o retorno ao trabalho [programa reset].

31
Cartilha 6 medidas que Mudam o Jogo da Mulher no Mercado de Trabalho. Disponível em:
<https://filhosnocurriculo.com.br/wpcontent/uploads/2020/07/CARTILHA_FINAL_ABPRH.pdf.>.Acesso
em 17 de ago de 2020.
258

Neste interim, através da cartilha “6 medidas que Mudam o Jogo da Mulher no


Mercado de Trabalho” lançou seis formas de ações32 a fim de acolher as mães no mercado
laboral, constituindo-se em:
1ª Trate homens e mulheres com isonomia: deste modo, o ambiente laboral deve
ser adequado tanto para pais e mães, haver equidade entre cargos e salários;
2ª Descontrua os vieses inconsistentes: desmitificar ideias sobre a mulher no
mercado de trabalho;
3ª Faça um diagnóstico interno: consiste em “radiografar” a empresa para que
sejam averiguados os valores que estão sendo empregados;
4ª Envolva as lideranças e os homens: promover a conscientização dos
colaboradores dentro da instituição a fim de que seja proporcionado um ambiente
de acolhimento e impulsão a todos;
5ª Inspire-se nas melhores práticas: realizar uma pesquisa conhecendo as boas
práticas das outras entidades;
6ª Crie programas de acolhimento: criação de programas para reconhecer, acolher
e impulsionar profissionais com filhos.

Por sua vez, a empresa Danone com o condão de tornar-se mais inclusiva e diversa,
estabeleceu para 2020 como uma de suas prioridades globais as: atitudes inclusivas,
equidade de gênero e representatividade racional nos cargos de liderança. No Brasil, a
companhia possui 47% dos seus quadros de gerência ocupados por mulheres, isso se deve
aos resultados de várias ações em prol da equidade de gênero33.
Ademais, um estudo34 realizado entre a entidade Filhos no Currículo em parceria com
o Movimento + Mulher 360, concluíram, entre outros, que os filhos agregam no currículo,
pois 98% dos entrevistados desenvolveram, durante a pandemia, alguma habilidade
profissional em decorrência do contato mais próximo com os filhos, os destaques são:
paciência, tolerância, priorização, empatia e criatividade.
Desse modo, é de suma importância que as empresas estejam engajadas para que seus
colaboradores possam exercer a parentalidade de forma plena,sobretudo, a maternidade, sem
receios de serem demitidos em razão do nascimento de um bebê. Não se pode olvidar, que
os primeiros meses de vida da criança são fundamentais para seu desenvolvimento tanto
biológico quanto social.
Assim, é de bom alvitre que os empregadores invistam nessa realidade para que
todos sejam beneficiados, podendo, por exemplo, ser criado um regulamento na empresa, a

32
Ibidem.
33
Jornada de Parentalidade da Danone Incentiva a Carreira de Mulheres que Retornam da Licença-
Maternidade. Disponível em: <https://movimentomulher360.com.br/praticas/jornada-de-parentalidade-da-
danone-incentiva-a-carreira-de-mulheres-que-retornam-da-licenca-maternidade/. >Acesso em: 17 ago de 2020
34
Estudo Filhos no Currículo. Carreira e Filhos podem Caminhar Juntos. Disponível em:
<https://filhosnocurriculo.com.br/downloads/>.Acesso em 17 ago de 2020.
259

fim de evitar atitudes discriminatórias, nos termos do art. 44435 da Consolidação das Leis do
Trabalho.

4 CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE


DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER

A convenção epigrafada foi adotada através da Resolução nº 34/180 da Assembleia


Geral do ONU no ano de 1979. Ela tem como primado a obrigação de garantir a igualdade
de todos os direitos humanos entre homens e mulheres e é assinada por 189 Estados
Membros e o Brasil é um deles.
Calca-se por dois eixos centrais que visam à promoção e proteção dos direitos
humanos das mulheres, sendo eles a eliminação da discriminação e a promoção da igualdade.
A ideia de discriminação contra a mulher é apresentada de pronto já no art. 1º,
consistindo em toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto
ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher,
independentemente de seu estado civil, com base na igualdade de homem e mulher, dos
direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos politico, econômico, social, cultural
e civil ou em qualquer outro campo36.
A proteção contra a discriminação feminina é ampla37, eis que abrange atos de
discriminação direta que são àqueles que têm o núcleo de prejudicar ou anular direitos
humanos das mulheres, bem como discriminação indireta, que consiste em quaisquer atos
que tenham como resultado ou anulação de direitos.
Não obstante, pondera dizer que ações afirmativas não caracterizam discriminação
contra a mulher, pois possuem o condão de promover o processo da efetiva igualdade entre
os gêneros, consoante prevê o art. 4º38 da aludida Convenção.

35
Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del5452.htm>. Acesso em 17 ago de 2020.
36
LÉPORE, Paulo; PRETI, Bruno Del. Manual de Direitos Humanos.Juspodivm, 2020.
37
Ibidem.
38
A adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade
de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas
de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas
medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançado.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm. Acesso em 20 ago de 2020.
260

De acordo com o art. 2º da Convenção, os Estados-Partes devem seguir e adotar


políticas destinadas a eliminar a discriminação contra a mulher, comprometendo-se dessa
forma em:
a) Consagrar se ainda não o tiverem feito, em suas constituições nacionais ou em
outra legislação apropriada o princípio da igualdade do homem e da mulher e
assegurar por lei outros meios apropriados a realização prática desse princípio;
b) Adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções
cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher;
c) Estabelecer a proteção jurídica dos direitos da mulher numa base de igualdade
com os do homem e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e de
outras instituições públicas, a proteção efetiva da mulher contra todo ato de
discriminação;
d) Abster-se de incorrer em todo ato ou prática de discriminação contra a mulher
e zelar para que as autoridades e instituições públicas atuem em conformidade com
esta obrigação;
e) Tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher
praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa;
f) Adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para
modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos e práticas que constituam
discriminação contra a mulher;
g) Derrogar todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação
contra a mulher.

Dessa forma, visa à convenção assegurar direitos às mulheres, impondo aos Estados
Membros determinações para que as mulheres possam usufruir, em igualdade de condições,
seus direitos tanto políticos quanto civis, além dos sociais, econômicos e culturais. Mister
dizer, igualmente, que na forma do art. 15.239 a mulher tem capacidade jurídica idêntica ao
homem e as mesmas oportunidades para o exercício dessa capacidade.
Com intuito de monitorar os Estados Membros acerca dos direitos tutelados e os
progressos desenvolvidos, criou-se o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra
Mulher, que analisará os relatórios enviados pelos Estados sobre as medidas legislativas,
judiciárias e administrativas que adotaram, a fim de tornar efetivas as determinações da
Convenção40.
Verifica-se desse modo, a relevância do tema – igualdade da mulher- que é grande
importância para toda a sociedade. Assim, todos devem estar envolvidos para que haja a
promoção da igualdade da mulher perante todas as situações que ocorrerem, minimizando,
dessa forma, ao máximo a discriminação.

39
Os Estados-Partes reconhecerão à mulher, em matérias civis, uma capacidade jurídica idêntica do homem e
as mesmas oportunidades para o exercício dessa capacidade. Em particular, reconhecerão à mulher iguais
direitos para firmar contratos e administrar bens e dispensar-lhe-ão um tratamento igual em todas as etapas do
processo nas cortes de justiça e nos tribunais. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm. Acesso em 20 ago de 2020.
40
LÉPORE, Paulo; PRETI, Bruno Del. Manual de Direitos Humanos.Juspodivm, 2020.
261

CONCLUSÃO

No presente estudo verifica-se que embora haja movimentos a fim de minimizar as


desigualdades entre homens e mulheres ainda há vários caminhos a serem percorridos. É
preciso que a sociedade no geral tenha consciência de que o trabalho doméstico não é
“trabalho de mulher” e sim de todos que residem na casa. Além disso, deve ser modificada
a ideia de que uma empregada mãe é um “potencial problema”, pois conforme estudado, as
pessoas ao se tornarem “ pais”, acabam incorporando outras habilidades em sua descrição,
tais como: assumir riscos, capacidade de esforço e sacrifício, comunicação e oratória, gestão
de recursos, capacidade motivacional, organização e planejamento, perseverança e
constância, trabalho em equipe e liderança.
Um filho não é e jamais será um inconveniente na vida das pessoas e sim uma bençoa.
Pois, estes seres pequenos possuem a capacidade de nos tornamos uma pessoa melhor.

REFERÊNCIAS

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content/uploads/2020/08/HOME_OFFICE_COM_FILHOS-1.pdf>. Acesso 14 ago de 2020.

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2020.

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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm.>. Acesso
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chefes-reclamarem-de-barulho-dos-filhos-em-reunioes.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso
em 20 ago de 2020.

Estudo Filhos no Currículo. Carreira e Filhos podem Caminhar Juntos. Disponível em:
<https://filhosnocurriculo.com.br/downloads/>.Acesso em 17 ago de 2020.

Exigir atestado ou exame, de qualquer natureza, para comprovação de esterilidade ou


gravidez, na admissão ou permanência no emprego. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm >.Acesso em 14 ago de
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262

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VERDÉLIO, Andreia.
264

“INEXECUÇÃO CONTRATUAL POR PARTE DA


ADMINISTRAÇÃO – POSSIBILIDADE DA EXCEPTIO NON
ADIMPLETI CONTRACTUS”
Cristina Dal Sasso1

Resumo: O estudo do presente artigo trata da análise das possibilidades colocadas à


disposição do particular contratado para sua proteção ante a inadimplência da Administração
Pública em relação aos contratos administrativos abrangidos pela Lei 8666/93, mais
precisamente no que tange ao inadimplemento contratual por parte da administração.
Pretende-se provar que o argumento do contratante para defender-se das cláusulas
exorbitantes poderá ser alegado através aa luz da Teoria Geral dos Contratos e,
especificamente, pelo estudo dos princípios da “exceptio non adimpleti contractus” e da
função social dos contratos.
A abrangência do trabalho restringir-se-á ao estudo dos contratos administrativos
propriamente ditos, uma vez que é nesta espécie de contrato da Administração que se verifica
maior controvérsia acerca da relativização dos direitos do particular contratado em
decorrência da posição de preponderância do Poder Público na relação contratual, como se
demonstrará ao longo de seu desenvolvimento.
Salienta-se que o foco da problemática diz respeito aos efeitos, nas contratações públicas, da
importante crise de inadimplemento verificada no âmbito público em decorrência do atual
cenário de deterioração do quadro econômico em nível nacional.
É que a Administração Pública, valendo-se de sua posição de privilégio nos contratos
administrativos, tem deixado de adimplir tais contratos em benefício de prioridades diversas
e em injustificado prejuízo ao particular contratado, deixa de efetuar, muitas vezes o
pagamento na data avençada. Faz-se necessário, assim,estabelecer o contexto social e o
porquê de ainda se utilizar um desequilíbrio tão desigual entre esses contratantes.
Serão abordadas no decorrer deste artigo as alternativas existentes à disposição do particular
contratado com vistas a garantir sua proteção financeira e obter a satisfação de seu crédito
ante a Administração Pública inadimplente.

Palavras-Chave: Contrato administrativo. Rescisão. Hipótese. Lei 8666/93. Inexecução por


parte da Administração.

OS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS E AS PRERROGATIVAS DA


ADMINISTRAÇÃO

As prerrogativas do Estado advém do seu poder impositivo, o qual tem origens na


Europa, mais precisamente na França, a partir do século XVIII. E, naquele contexto verifica-

1
Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS Moderadora do Grupo de Estudos em Direito
Administrativo da OAB/RS, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB /RS Pós-Graduada
em Direito do Estado pela FMP Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Uniritter
265

se que um dos motivos pelos quais o Estado teve essa grande força contra o domínio dos
particulares (os senhores feudais) foram os abusos e arbitrariedades a que os vassalos eram
submetidos. Entretanto, a sociedade muda seus costumes, muda seus valores, muda seu
contexto e, muitas vezes o que antes era considerado algo tão normal e tão aceitável; com o
passar dos anos a aceitação de certas medidas vai se modificando, ou mesmo situações em
que se verifica, por vezes, um desequilíbrio forte entre as partes; com o passar do tempo, a
população vai deixando de aceitar tais condições como sendo normais.
É o que vem acontecendo hoje em relação aos contratos administrativo, nas
situações em que verifica-se que várias empresas contratadas pelo Estado através de
licitações possuem não apenas um contrato, mas várias contratações em razão de terem sido
vencedoras em licitações, e por esse fato, terem sido contratadas por mais de um órgão do
Estado. Ocorre que, quando isso acontece e a empresa adjudicada possui muitos funcionários
para pagar (salários, tributos, impostos) e em contrapartida o Estado não lhes paga, acaba
tornando-se insustentável manter a saúde desta empresa em dia sem poder rescindir esse
contrato com a Administração. A saúde da empresa pode ir mal em decorrência de que não
são apenas salários são devidos aos funcionários, mas também às vezes não conseguem nem
pagar ao Estado o recolhimentos de verbas ao FGTS, SEFIP, GEFIP, entre outros encargos
que são exigidos em edital e minuta. Nesses casos, onde o volume de empregados de uma
empresa terceirizada contratada para a prestação de serviços à Administração Pública é
muito grande, suspender a execução contratual, é o único caso de defesa do particular
previsto na lei 8.666/93, para que essa empresa consiga se eximir de dar a contraprestação
vinculada ao contrato, em decorrência de inexecução contratual por de falta de pagamento
ao Erário. Essa suspensão está expressamente prevista no artigo 77, inciso XV, da Lei de
Licitações. Entretanto a rescisão contratual só é autorizada após 90 (noventa) do atraso de
pagamento pelo erário.
Nos termos do art. 77 da lei 8666/93, desde que não haja causas justificadoras para
a inexecução contratual, tais como força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, a
inexecução total ou parcial do contrato pela Administração Pública pode ensejar a sua
rescisão apenas nos casos em que a falta de pagamento ocorra por mais de 90 (noventa) dias.
Neste sentido, o artigo 78 do referido diploma legal elenca os motivos que constituem causas
para a rescisão do contrato por parte do particular e expressamente prevê a inadimplência
266

da Administração Pública por falta de pagamento por prazo superior a 90 (noventa) dias da
data aprazada para o pagamento à empresa.
Assim, estando a Administração Pública em atraso com os pagamentos devidos antes
de 90 (noventa) dias, e não se tratando de situação de calamidade pública, grave perturbação
da ordem interna ou guerra, poderá o particular apenas suspender a execução do contrato.
Apenas após esse prazo é que ele terá o direito de pleitear a sua rescisão.
No que tange à obrigatoriedade de pagamentos aos particulares, ressalte-se que,
conforme entendimento já consolidado pelo STJ, tendo o particular fornecido o objeto ou
prestado o serviço contratado, a Administração Pública tem a obrigação de realizar os
pagamentos devidos, sob pena de enriquecimento ilícito. Tal obrigação persiste, inclusive,
em caso de eventual nulidade do contrato administrativo.

DA EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRATUS

Além da possibilidade de pleitear a suspensão ou rescisão do contrato administrativo


nos casos de inadimplemento superior a 90 (noventa) dias (art. 78 da Lei 8666/93), o
particular poderá também requerer, junto aos órgãos de controle e ao MP, a
responsabilização cível, penal e administrativa dos administradores públicos pela má gestão
dos contratos. Por fim, considerando que os contratos administrativos regem-se
primeiramente por suas cláusulas e pelos preceitos de Direito Público, e supletivamente
pelos princípios e normas de Direito Privado, também é possível ao particular pleitear sua
rescisão com base na figura da exceptio non adimpleti contratus, consistente na
impossibilidade de um dos contratantes exigir o cumprimento do contrato pela outra parte,
por já ter infringido o pactuado na relação bilateral.

Neste cenário de inadimplencia verifica-se a necessidade de mudanças


legislativas. É notório que a inadimplência por parte da Administração Pública
pode causar um desequilíbrio econômico na relação firmada entre as partes, sendo
tal fator relevante para evocar a rescisão do contrato com base na exceptio non
adimpleti contractus.
A partir do estudo consolidado de seus fenômenos, verifica-se que o Estado
apresenta-se, no âmbito intrínseco, como ente personalizado capaz de adquirir
direitos e contrair obrigações na ordem jurídica, definindo-se como pessoa jurídica
de direito público interno, a teor do que dispõe o artigo 41, incisos I a III, do
Código Civil Brasileiro. Assim, e considerando que o Estado deixa
progressivamente a sua postura clássica, exclusivamente impositiva, para, à luz da
inspiração jurídica norte-americana, relacionar-se com seus administrados por
meio de uma cada vez mais ampla parceria, tem-se nos contratos da Administração
verdadeira expressão de consensualidade e de negociação, na medida em que se
faz presente em tais instrumentos o acordo de vontades com objetivo determinado,
267

elemento nuclear básico desse tipo de negócio jurídico, segundo a Teoria Geral
dos Contratos2. Conforme lição do professor Caio Mário3 :

Aqui é que se situa a noção estrita de contrato. É um negócio jurídico bilateral, e


de conseguinte exige o consentimento; pressupõe, de outro lado, a conformidade com a
ordem legal, sem o que não teria o condão de criar direitos para o agente; e, sendo ato
negocial, tem por escopo aqueles objetivos específicos. Com a pacificidade da doutrina,
dizemos então que o contrato é um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com
finalidade de adquirir; resguardar; transferir; conservar; modificar ou extinguir direitos.
Dizendo-o mais sucintamente (...) podemos definir contrato como o “acordo de vontades
com a finalidade de produzir efeitos jurídicos”.
Esmiuçando-se o parágrafo alhures, verifica-se que, para a contratação de empresas
pelo Estado, a fim de prestar serviços terceirizados, necessário se faz um procedimento
licitatório, no qual através de adjudicação, contrata-se a empresa vencedora para prestar seus
serviços ao Estado.
Na seara do Direito Administrativo é importante salientar que, para maior parte dos
autores administrativistas, a expressão “Contratos da Administração” diz respeito a um
gênero que designa todo e qualquer pacto bilateral em que seja parte a Administração Pública
e do qual decorrem duas espécies de contratos, quais sejam, a dos contratos privados da
Administração – também chamados contratos semipúblicos – e a dos contratos
administrativos4.
O artigo 54 da Lei nº 8.666/1993 institui normas para licitações e contratos da
Administração Pública admitindo-se para essa últimos instrumentos que instabilizem o
vínculo jurídico em favor da Administração, que dele participa na qualidade de Poder
Público. Nesta espécie de contrato, pode-se definir o conceito de que trata-se de um “ajuste
firmado entre a Administração Pública e um particular, regulado basicamente pelo direito
público, e tendo por objeto uma atividade que, de alguma forma, traduza interesse público”,
Há verdadeiro desequilíbrio na relação contratual em homenagem ao princípio da

2
https://jus.com.br/artigos/52221/a-protecao-do-particular-contratado-diante-da-inadimplencia-contumaz-da-
administracao-publica-no-ambito-dos-contratos-administrativos
3
PEREIRA Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil – Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2004
4
https://jus.com.br/artigos/52221/a-protecao-do-particular-contratado-diante-da-inadimplencia-contumaz-da-
administracao-publica-no-ambito-dos-contratos-administrativos
268

supremacia do interesse público em detrimento do particular, o que, de forma alguma, não


pode se confundir com sujeição total do contratado à Administração5
No momento em que ocorre o inadimplemento contratual em relação à falta de
pagamento pela administração pública, a consequência lógica decorrente de tal fato é o
desequilíbrio econômico, o que inclusive, poderia acarretar o ensejo de ações judiciais para
reaver esses lucros cessantes por parte das empresas contratadas. Nesse sentido, há a reflexão
de que não seria mais vantajoso à administração possibilitar a rescisão contratual pelo
contratado, em lugar de ter que arcar com possíveis despesas administrativas e quiçá,
judiciais caso o contratado promova ações judiciais para reaver seu equilíbrio econômico-
financeiro decorrente de seu próprio inadimplemento contratual?
Nos contratos administrativos o que se visa é a satisfação de um interesse público
concreto a que o contrato deve servir. Entretanto não há, nem seria justo sacrificar os
princípios superiores de justiça e equidade a que todo o Estado deve obedecer. Tem-se,
portanto, que, embora os princípios tradicionais da imutabilidade unilateral dos contratos
administrativos (“lex inter partes” e “pacta sunt servanda”) não sejam absolutamente
afastados, eles sofrem relevante mitigação. Entretanto tal mitigação até hoje sempre operou-
se a favor da administração e não em prol dos particulares, e a justificativa utilizada para tal
sempre foi o argumento da posição preponderante da Administração pela busca à proteção
de um interesse coletivo específico.
A exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), na teoria
geral dos contratos, é a expressão empregada para designar a defesa utilizada contra a parte
que exige o cumprimento do avençado sem ter cumprido sua prestação. Está prevista nos
seguintes termos do art. 476 do Código Civil: “nos contratos bilaterais, nenhum dos
contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”. E,
no direito público sempre houve restrições ao uso de tal defesa, pois, se administração não
cumpre com a sua parte, não pode o particular exigir que primeiro arque com a
contraprestação para que somente então venha exigir-lhe o cumprmento da obrigação, pois
como os contratos administrativos acabam satisfazendo a finalidade de interesse público, em
grande parte dessas situações os principais prejudicados seriam os cidadãos que necessitam

5
NOHARA, RENE PATRÍCIA. Direito. Administrativo. 5ª edição. Atualizada e Revista SÃO PAULO.
EDITORA ATlAS S.A. - 2015.
269

da prestação destes serviçoços6. Imagine-se a suspensão dos serviços de terceirizadas


contratadas para prestação de serviços de higiene e limpeza em um hospital público? Caso
houvesse a possibilidade de rescisão contratual, a administração estaria autorizada a
contratar outra empresa. Porém enquanto estiver vinculada a uma empresa que suspendeu
seus serviços está de mãos atadas para dar andamento a esse serviço.

PREVISÃO NORMATIVA VIGENTE A RESPEITO DAS MODALIDADES DE


EXTINÇÃO CONTRATUAL

A Lei de Licitações em seu art. 79 prevê três modalidades de extinção do contrato


administrativo. Entretanto ao particular, cabe apenas 01(uma) modalidade de rescindir o
contrato que se dá quando ocorre o atraso no pagamento por mais de 90 (noventa) dias. Já
rescisão unilateral por iniciativa da Administração é prevista nas hipóteses em que
associadas ao inadimplemento do particular; a amigável (que apela à ideia de conveniência
administrativa) e, ainda, a judicial. E sobre essa modalidade, a lei limita-se a indicar que ela
deve ser exercida nos termos da lei. O art. 78 prevê hipóteses em que se contempla a
possibilidade de rescisão do contrato, além do caso de inadimplementos da Administração
quando ocorre o atraso de pagamentos superior ao prazo de 90 (noventa dias), bem como
prevê a suspensão da execução por mais de 120 (cento e vinte dias). Nestes casos, o direito
de rescindir o contrato surge de circunstâncias razoavelmente objetivas, associadas à
implementação das condições previstas na Lei.
Contudo, evidente que não são apenas essas as hipóteses que autorizam a resolução
por falta contratual da administração. Isso porque o tema se avalia caso a caso, a partir das
disposições contratuais. Em regra, qualquer inadimplemento contratual pode conduzir à
extinção do vínculo, devendo-se, todavia, especialmente a partir dos influxos da moderna
civilística, buscar preservar a conservação do vínculo obrigacional7.
Entretanto, possivelmente o caso mais danoso ao particular para esperar o lapso de
implemento de condição seria de o particular precisar esperar mais de 90 (noventa) dias para
rescindir seu contrato em caso de falta de pagamento. Danoso uma vez que, como dito

6
NOHARA, RENE PATRÍCIA. Direito. Administrativo. 5ª edição. Atualizada e Revista SÃO PAULO.
EDITORA ATlAS S.A. - 2015.
7
http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/bernardo-strobel-guimaraes/inadimplemento-
contratual-por-culpa-da-administracao-o-direito-de-o-particular-rescindir-o-contrato-
independentemente-de-recurso-ao-poder-judiciario
270

anteriormente, existem empresas contratadas pela administração com vários contratos


estabelecidos com o Erário, e, quando esse ente deixa de realizar a sua contraprestação ao
particular (pagamento pelo serviço prestado), pode ocorrer de essa empresa não conseguir
efetuar os pagamentos tributários previstos em lei e edital, podendo inclusive vir a falir,
pondo assim em risco o emprego de muitas pessoas que dependem dessa empresa, , o que
ocasionaria um desequilíbrio inclusive perante o cenário econômico-financeiro de certa
região.
Embora o tema usualmente não seja colocado em perspectiva, fato é que o centro de
gravidade das obrigações das partes é o instrumento do contrato. Quem o declara é a própria
Lei nº 8.666/93, que diz com clareza no seu art. 54 que “Os contratos administrativos de que
trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-
se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito
privado”. Note-se que o legislador colocou no mesmo patamar como fonte das obrigações
contratuais suas cláusulas e os preceitos de direito público, o que serve para destacar o caráter
eminentemente obrigacional do vínculo que se celebra entre a Administração e o particular.
Enfim, nem só de exorbitâncias vive o direito contratual administrativo8.
Verifica-se que, com base nas prescrições legais acima que a doutrina reza que caso
a Administração não cumpra suas obrigações contratuais e, em especial a de pagamentos
vinculados aos contratos administrativos, o único modo de o particular extinguir o vínculo
contratual seria depois de obter tutela judicial nesse sentido. Para que esse particular pudesse
se proteger da referida inexecução, haveria a possibilidade de se dar por meio da suspensão
da execução do contrato, mas não alcançaria a possibilidade de rescisão. A partir dessa linha
de raciocínio , o contrato poderia perder a eficácia, mas não deixaria de existir, salvo quando
houvesse pronúncia judicial que o desconstituísse.
Data vênia, a ideia de que em caso de inadimplemento contratual por parte da
administração pública o particular esteja, necessariamente, obrigado a obter tutela judicial
constitutiva negativa para extinguir o vínculo não só é equivocada, mas prejudicial ao
interesse público. É que além de penalizar de modo desvantajoso o particular, ainda imporia
maiores custos à Administração e, às vezes ainda correria o risco de ter que arcar com o ônus
de sucumbência. Isto porque não cabe à Administração negar esse direito em havendo o

8
http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/bernardo-strobel-guimaraes/inadimplemento-contratual-por-
culpa-da-administracao-o-direito-de-o-particular-rescindir-o-contrato-independentemente-de-recurso-ao-
poder-judiciario.
271

inadimplemento de sua parte. Está obrigada a reconhecer o seu inadimplemento e exonerar


o particular do vínculo no caso de ela ter descumprido sua contraprestação contratual.
Não há discricionariedade de ordem alguma a respeito disso, mas sim vinculação ao
dever de reparar a legalidade. Afinal, não existe interesse público que possa ser exercido à
revelia da Lei. Logo, não há interesse juridicamente tutelável pela Administração em
preservar um contrato em relação ao qual já se implementaram as condições que permitem
ao particular pleitear sua desconstituição. Respeitosamente, seria rematado paradoxo
permitir que a Administração deixasse de prestigiar a legalidade e, mais do que isso,
trouxesse ainda maiores ônus para si (i.e.ao erário, a toda a coletividade), além dos já
decorrentes de seu inadimplemento9.

DISCRICIONARIEDADE OU VINCULAÇÃO

Não há qualquer discricionariedade que permita à Administração pretender preservar


vínculo que deve ser extinto. Sendo certos os fatos que permitem ao particular demitir-se do
vínculo, a Administração estaria obrigada, em razão da exceptio non adimpleti contractus, a
rescindi-lo com o particular. Não deveria haver escolha alguma por parte da Administração
nestes casos. Inclusive, eventuais valores afetados à execução do contrato devem ser
utilizados, necessariamente, para compor os referidos prejuízos, que devem ser arbitrados
com seriedade, englobando não só os danos, mas também os lucros cessantes.
Nesta seara é certo que o atraso da administração, em tratando-se da falta de
pagamento no prazo estipulado em contrato acarreta desequilíbrio contratual e gera prejuízo
financeiro ao particular. Em razão de tal fato, a melhor hipótese seria a de rescisão amigável,
a qual deveria, neste caso ser compreendida como vinculada. E isso não haveria de causar
surpresa nenhuma aos que atuam no ambiente dos contratos públicos. Essa idéia de solução
consensual também é repetida para outros campos em que a atuação da Administração é
reconhecidamente vinculada, como no que toca, e.g., ao reequilíbrio do contrato (CF. art.
65, II, d da Lei 8.666/93).
Disto decorre a percepção de que mesmo a lei não prevendo explicitamente o direito
de o particular demitir-se do contrato por iniciativa sua, essa prerrogativa existe, pois a ela
está associado um dever da Administração, derivado da legalidade. E esse dever não pode

9
http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/bernardo-strobel-guimaraes/inadimplemento-contratual-por-
culpa-da-administracao-o-direito-de-o-particular-rescindir-o-contrato-independentemente-de-recurso-ao-
poder-judiciario
272

ser afastado sob a invocação de que o particular está obrigado a procurar o Judiciário numa
espécie de solve et repete. Logo, a rescisão amigável prevista na Lei não significa que exista
a opção em rescindir ou não o contrato. Quando a lei fala em conveniência do administrador,
não está criando regra que preveja competência discricionária, mas sim indicando uma
análise que apela à economicidade. Afinal, não há dúvida de que é vantajoso para a
Administração rescindir o vínculo por ato bilateral, de modo a evitar a instalação de um
processo em que ela não tem razão10.
Mais do que isso, percebe-se que qualquer outra solução seria inócua. Isso porque,
no caso em que se admite a resolução em favor do particular, já lhe assiste o direito de
suspender a execução. Fato é que isto significa que a ele é dada a faculdade de despir o
contrato de seus efeitos concretos. Logo, o argumento de que a preservação do vínculo em
caso de inadimplemento se dá em prestígio à ideia de continuidade é contraditório com o
que prescreve a lei, pois ela reconhece o direito de o particular suspender suas obrigações
nas hipóteses nela previstas. Do ponto de vista material, o contrato administrativo ordinário
pode ter sua execução suspensa implementados os prazos previstos na Lei. Tanto é assim
que nos contratos em que se faz presente a nota de continuidade, está clara a obrigação de
manter o serviço no curso do processo (CF. art. 39, Parágrafo único da Lei 8.987/95).
Inclusive, é perfeitamente cabível a tutela mandamental nesse caso para que se reconheça o
direito líquido e certo do particular à rescisão do contrato11.
Acerca dos esclarecimentos acima, verifica-se que a disposição que indica que a
rescisão em favor do particular deve ser feita judicialmente só se aplica nos casos em que a
Administração recusar a incidência dos eventos que conduzem à rescisão e, tendo em vista
o devido processo legal. Ou seja, o Judiciário deve ser chamado para compor os litígios em
que a Administração se recuse a admitir a ocorrência do fato ou negue os efeitos dele
derivados. Jamais, contudo, ela caberá quando for inequívoco o fato do inadimplemento,
pois nessa hipótese a Administração está obrigada a reparar por si só a legalidade e rescindir
o contrato. E, no caso de ter havido razões para rescindir o contrato e o administrador não as
quis reconhecer, o custo da postergação dos direitos do particular deve correr à conta daquele
que optou por conduzir a discussão ao Judiciário de modo indevido.

10
https://jus.com.br/artigos/52221/a-protecao-do-particular-contratado-diante-da-inadimplencia-contumaz-da-
administracao-publica-no-ambito-dos-contratos-administrativos#
11
http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/bernardo-strobel-guimaraes/inadimplemento-c
273

Em suma e para arrematar, é chegada a hora de compreender que as prerrogativas da


Administração servem à efetiva tutela do interesse público, e não para negar direitos aos
particulares, protegendo os maus administradores. Se o contrato for inadimplido pela
Administração, impõe-se ao administrador reconhecer essa circunstância e declarar o
contrato encerrado administrativamente, arcando com os efeitos econômicos de suas
condutas. A previsão normativa para tanto é a de resolução amigável (que aqui significa
extrajudicial) na precisa medida em que não há dúvida de que para a Administração é mais
conveniente utilizar-se dessa via do que ser compelida a litigar numa causa em que não lhe
assiste razão. Nos contratos administrativos, a posição de superioridade da Administração
em relação ao contratado fica evidenciada pelas prerrogativas que lhe são conferidas pela já
mencionada Lei nº 8.666/1993. São as chamadas Cláusulas Exorbitantes ou também
chamadas de Cláusulas de Privilégio. Essas características que apresentam-se como
inerentes a esse tipo de contrato, seriam consideradas em um contrato regido pelo direito
privado como cláusulas abusivas, ilícitas e, portanto, não lidas”. E o que dizem essas
cláusulas exorbitantes? Em seu artigo 58, a referida Lei de Licitações prevê, em favor da
Administração, a possibilidade de modificar e rescindir unilateralmente o contrato, fiscalizar
sua execução, aplicar penalidades e ocupar provisoriamente os bens do contratado com vistas
à proteção da continuidade de serviços públicos. Ressalte-se que as garantias contratuais em
favor da Administração Pública são tantas que, além das já supra mencionadas, ainda
existem outras na legislação esparsa. São prerrogativas outras implícitas ou explícitas, as
quais poderão ter incidências sobre essa modalidade de contrato. Uma dessas prerrogativas
seria a exceptio non adimpleti contratus12.
O contrato administrativo é um negócio jurídico bilateral e comutativo, ajustado entre
a Administração Pública e o particular, por meio do qual surgem obrigações e direitos para
ambas as partes. Como já referido anteriormente, apesar de a Administração Pública deter o
poder de estabelecer as condições iniciais do ajuste, e se apoderar com as chamadas cláusulas
exorbitantes, não se conhece no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma prerrogativa que
lhe permita contratar com determinado particular, receber o produto ou serviço contratado e
abster-se de realizar o pagamento devido.

12
http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/bernardo-strobel-guimaraes/inadimplemento-contratual-por-
culpa-da-administracao-o-direito-de-o-particular-rescindir-o-contrato-independentemente-de-recurso-ao-
poder-judiciario
274

Campos, apud Marçal Justen Filho: "a Administração apenas pode realizar um
contrato após cumprir minuciosas formalidades prévias. A Administração tem o dever de
avaliar, previamente, a necessidade da contratação, apurar a existência de recursos
orçamentários e programar desembolsos. Logo, a ausência de recursos efetivos para o
pagamento é um contrassenso injustificável". Conforme se verifica, apesar de cada vez mais
comuns os atrasos nos pagamentos pela Administração Pública, o ordenamento jurídico
brasileiro coloca à disposição do particular uma série de instrumentos para resguardar seus
direitos. Por essa razão, é imprescindível que o particular conheça a fundo seus direitos legais
e contratuais, bem como acompanhe de perto a gestão dos contratos pela Administração
Pública13.
Diante de toda a argumentação trazida à baila, verifica-se que a sociedade e as
ciências jurídicas e sociais são algo dinâmico e que devem acompanhar a evolução do
contexto social sociedade. Em decorrência de um direito social, o Direito ao Trabalho, do
qual inclusive pode-se deduzir que em muitas vezes obtém-se a dignidade da pessoa, o Poder
Legislativo poderia repensar a redação do artigo para prever uma redução de prazo para que
as empresas terceirizadas contratadas para prestação de serviços `Administração pudessem
rescindir seus contratos antes de decorridos 90 (noventa) dias de atraso de seu pagamento,
tendo em vista que smj, há sempre uma possibilidade de que essas empresas não consigam
mais resgatar sua saúde financeira ao suportar atraso tão longo em relação aos pagamentos
devidos podem vir a falir e como consequência ver uma demissão em massa pela empresa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Igor, A proteção do particular contratado diante da inadimplência contumaz da


administração pública no âmbito dos contratos administrativos. Disponivel em
https://jus.com.br/artigos/52221/a-protecao-do-particular-contratado-diante-da-
inadimplencia-contumaz-da-administracao-publica-no-ambito-dos-contratos-
administrativo Disponível em 02 de outubro de 2020

CAMPOS, Mariana de, A contumaz inadimplência da Administração Pública e os


instrumentos legais à disposição do particular,
https://migalhas.uol.com.br/depeso/212150/a-contumaz-inadimplencia-da-administracao-
publica-e-os-instrumentos-legais-a-disposicao-do-particular Disponível em 03 de outubro
de 2020

13
https://jus.com.br/artigos/35659/inadimplencia-da-administracao-publica-em-contrato-originario-de-
procedimento-licitatorio-atualizacao-monetaria-e-juros-moratorios
275

GUIMARÃES, Bernado Strobel, Inadimplemento contratual por culpa da


Administração: o direito de o particular rescindir o contrato independentemente de recurso
ao Poder Judiciário. Disponivel em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/bernardo-
strobel-guimaraes/inadimplemento-contratual-por-culpa-da-administracao-o-direito-de-o-
particular-rescindir-o-contrato-independentemente-de-recurso-ao-poder-judiciario
Disponível em 30 de setembro de 2020

NOHARA, Rene Patrícia. Direito. Administrativo. 5ª edição. Atualizada e Revista São


Paulo. Editora atlas S.A. - 2015.

PEREIRA Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil – Introdução ao direito civil.
Rio de Janeiro: Forense, 2004
276

O DIREITO À IMAGEM DA CRIANÇA NA ERA DO FENÔMENO


SHARENTING: UMA PERSPECTIVA PORTUGUESA

Daiane Pompeo Barcelos1

Resumo: A internet se tornou uma importante ferramenta de comunicação, tendo ampliado


as possibilidades humanas por meio da transmissão combinada de voz, texto e imagem.
Porém, por ter se transformado em um grande reservatório de informações, o ciberespaço
ensejou novos problemas e desafios à sociedade. Nos contextos familiares, surgiu a
exposição exacerbada pelos progenitores da imagem dos filhos na web, agravada não só pelo
potencial de difusão, mas também pelo fato de que a remoção de fotos e vídeos
disponibilizados na internet é praticamente impossível, uma vez que podem ser salvos por
usuários em seus dispositivos pessoais, compartilhados em redes sociais e, até mesmo,
disponibilizados nos mais diversos endereços eletrônicos. Além da possibilidade de violação
ao direito de personalidade da criança, o compartilhamento de conteúdo relativo à imagem
dos filhos pelos pais pode também caracterizar afronta às responsabilidades parentais.

Palavras-chave: Sharenting. Ciberproteção. Responsabilidades parentais. Portugal.

INTRODUÇÃO
O presente estudo tem por objetivo realizar uma breve reflexão, sob a perspectiva da
legislação portuguesa, acerca do direito à imagem da criança na era do fenômeno sharenting.
Primeiramente, serão explicitadas considerações sobre os motivos que deram ensejo
ao surgimento da expressão sharenting, relacionando-a com as responsabilidades parentais
no ordenamento jurídico português, bem como com o princípio do superior interesse da
criança, previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança e na Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia.
Em seguida, serão expostas as normas concernentes ao direito à personalidade e ao
direito à imagem em Portugal. Por fim, se abordará, de forma breve, a problemática
decorrente da divulgação na internet da imagem dos filhos pelos progenitores.

1
Mestranda em Direito das Crianças, Família e Sucessões na Universidade do Minho (Portugal). Advogada,
inscrita na OAB/RS sob o n.º 97.900. Membro da CEDFS e da CEDSG – OAB/RS. E-mail:
daipbarcelos@gmail.com
277

1. A PERSPECTIVA PORTUGUESA ACERCA DO DIREITO À IMAGEM DA


CRIANÇA NA ERA DO FENÔMENO SHARENTING

A ascensão da internet trouxe mudanças significativas à vida das pessoas em todo o


mundo. O aumento da velocidade de comunicação possibilitou o diálogo instantâneo entre
indivíduos que estejam nos mais diversos locais, proporcionando a sensação de proximidade
e estreitamento de laços. Entretanto, as interações por meio da web fizeram surgir novos
desafios às famílias, especialmente, no que se refere às responsabilidades parentais, uma vez
que as publicações feitas na rede mundial pelos seus detentores podem gerar violações ao
direito de personalidade das crianças.
Especificamente em relação ao direito à imagem, tornou-se habitual o
compartilhamento em redes sociais de fotos e vídeos dos filhos por parte dos seus
progenitores. Neste contexto, surgiu a expressão da língua inglesa sharenting, que decorre
da união das palavras share (compartilhar) e parenting (cuidar, no sentido de exercer as
responsabilidades parentais).
Antes de adentrar nas possíveis repercussões do tema em estudo, insta referir que o
termo “responsabilidades parentais” foi adotado pelo ordenamento jurídico português
apenas no ano de 2008. Anteriormente, a legislação civil apresentava a expressão “poder
paternal”, vocábulo que trazia consigo um conceito implícito de posse, bem como uma ideia
ultrapassada de predomínio da vontade do progenitor masculino2. A substituição, no Código
Civil, da designação “poder paternal” para “responsabilidades parentais” foi promovida pelo
art. 3.º da Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, alteração que trouxe uma mudança no enfoque
do objeto da norma, passando “a estar não naquele que detém o ʽpoderʼ – o adulto, neste
caso – mas naqueles cujos direitos se querem salvaguardar, ou seja, as crianças3.”

2
SOTTOMAYOR, Maria Clara. Exercício do Poder Paternal – relativamente à pessoa do filho após o divórcio
ou a separação de pessoas e bens. 2.ª ed. Porto: Publicações Universidade Católica, 2003. p. 21/22.
3
DIAS, Cristina. Uma Análise do Novo Regime Jurídico do Divórcio – Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro. 2.ª
ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 42.
278

A mudança na designação trazida pela lei ocorreu em razão de que a anterior


expressão, “poder paternal”, exprimia desigualdade entre o pai e a mãe, pois pautava-se no
poder do pai, chefe da família4. Para Maria Clara Sottomayor5,

A expressão “poder paternal” significa posse, domínio e hierarquia, e a palavra


“paternal” refere-se à preponderância do pai que caracterizava a família patriarcal,
definida pela posição hierarquicamente superior do chefe masculino em relação à
mulher e aos filhos. A linguagem também contém uma norma e faz parte de um
conceito amplo de Direito que abrange, para além das leis, os costumes sociais e
a cultura. Se a linguagem tem um cariz patriarcal, tal significa que a cultura
continua a ser patriarcal e que a sociedade e a família vivem num patriarcado
implícito.

Além do termo “poder paternal” representar a supremacia do poder do progenitor


masculino, “supunha um modelo implícito que apontava para o sentido de posse,
manifestamente desadequado num tempo em que se reconhece cada vez mais a criança como
sujeito de direitos6”. Não sendo objeto do direito dos pais, visto que a própria criança é titular
de direitos, pode-se dizer que os interesses dos filhos correspondem aos interesses dos pais,
consubstanciando-se, portanto, o poder dos pais em simultâneo dever e, logo, em “poder-
dever”7.
As responsabilidades parentais não consistem em um direito subjetivo dos
progenitores sobre os filhos, pois a sujeição destes se faz nos limites e conforme os direitos
e deveres estabelecidos no Código Civil, realizados não no interesse dos pais, mas em
benefício da criança8. Sobre o tema, Cristina Dias discorre que se está diante de “um
conjunto de faculdades de conteúdo altruísta, exercido no interesse dos filhos e sob a
vigilância da ordem jurídica, visando como objectivo principal a protecção e promoção dos
interesses do filho, com vista ao seu desenvolvimento integral”9.

4
RODRIGUES, Hugo Manuel Leite. Questões de Particular Importância no Exercício das Responsabilidades
Parentais. 1.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. p. 18.
5
SOTTOMAYOR, Maria Clara. Exercício Conjunto das Responsabilidades Parentais: igualdade ou retorno ao
patriarcado? In: E foram felizes para sempre…? Uma análise crítica do novo regime jurídico do divórcio,
[coord. M.ª Clara Sottomayor e M.ª Teresa Féria de Almeida]. 1.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora/Wolters
Kluwer, 2010. p. 113/114.
6
DIAS, Cristina. Uma Análise do Novo Regime Jurídico do Divórcio – Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro. 2.ª
ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 42.
7
AMARAL, Jorge Augusto Pais de. Direito da Família e das Sucessões. 5.ª ed. Coimbra: Almedina, 2018. p.
239.
8
BOLIEIRO, Helena; GUERRA, Paulo. A Criança e a Família: uma questão de direito(s) - visão prática dos
principais institutos do direito da família e das crianças e jovens. 2.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2014. p.
177.
9
DIAS, Cristina. A Criança como Sujeito de Direitos e o Poder de Correcção. In: Julgar, n.º 4. Coimbra, 2008.
p. 90/91.
279

A Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, adotada pela Assembleia Geral


das Nações Unidas, consagrou os direitos da criança, estes consubstanciados nos princípios
fundamentais da não discriminação (art. 2.º), do superior interesse (art. 3.º), do direito à vida,
à sobrevivência e ao desenvolvimento (art. 6.º) e do respeito às opiniões (art. 12.º). Acerca
o superior interesse da criança, Hugo Cunha Lança10 assevera que

Este é um princípio fundamental que representa um novo paradigma no


caleidoscópio da criança, que, depois de tempos em que era inexistente, depois de
ser propriedade dos seus pais, é hoje interpretada com uma dignidade específica,
divergente dos adultos, como um ser em formação, que importa preparar para a
vida, através de um desenvolvimento integral e harmonioso, que combine o
crescimento físico, psicológico, moral, social e emocional daquela criança.

Os direitos da criança também estão previstos no art. 24.º da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia, segundo o qual, as crianças têm direito à proteção e aos
cuidados necessários ao seu bem-estar, podendo exprimir livremente a sua opinião, que será
tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e
maturidade. Dispôs, ainda, que todos os atos relativos às crianças, quer praticados por
entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse
superior da criança.
Nota-se, portanto, que o exercício das responsabilidades parentais está vinculado ao
interesse das crianças, o qual, todavia, não pode ser exercido livremente e de forma arbitrária,
na medida em que a criança deixou de ser considerada como objeto de proteção e passou a
ser vista como sujeito de direitos.
A criança é, nos nossos dias, perspectivada pelo Direito como pessoa, como
verdadeiro sujeito de direito, como titular de direitos fundamentais. A criança
deixou de ser vista como mero sujeito passivo, objecto de decisões de outrem, sem
qualquer capacidade para influenciar a condução da sua vida, e passou a ser vista
como sujeito de direitos, ou seja, como sujeito activo, com uma autonomia
progressiva no exercício dos seus direitos em função da sua idade, maturidade e
desenvolvimento das suas capacidades11.

Partindo-se da premissa de que os pais não podem dispor dos direitos de


personalidade da criança e possuem o dever de salvaguardá-los, seja quando se abstêm de

10
LANÇA, Hugo Cunha. Cartografia dos Direitos das Crianças, Família e Adolescentes. 1.ª ed. Lisboa:
Edições Sílabo, 2018. p. 39.
11
DIAS, Cristina. A Criança como Sujeito de Direitos e o Poder de Correcção. In: Julgar, n.º 4. Coimbra,
2008. p. 93.
280

compartilhar, seja quando limitam o compartilhamento feito pelos próprios filhos12,


questiona-se o interesse da criança em ter sua imagem propagada no espaço cibernético e
disponibilizada a um número imensurável de pessoas. Sobre o tema, Rossana Martingo
Cruz13 entende que

A disposição do direito à imagem, sendo um direito de personalidade, será também


um direito pessoal que só deverá ser exercido pelos pais em situações de
necessidades dos filhos. Ora, em abstrato, não se vislumbra qualquer interesse ou
benefício que a criança possa retirar pelo facto da sua imagem ser divulgada,
partilhada e quedar-se indefinidamente na internet numa qualquer rede social.
Pois, a partir do momento que a imagem é colocada na internet a mesma não
desaparecerá facilmente, ainda que apagada por quem a colocou.

Nesse panorama, cumpre discorrer sobre o direito à personalidade, previsto no art.


70.º do Código Civil português, que prevê a proteção dos indivíduos contra qualquer ofensa
ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, bem como dispõe que,
independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou
ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de
evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida. Da leitura do
dispositivo mencionado, nota-se que os poderes jurídicos do sujeito ativo dos direitos de
personalidade incidem de forma plena e exclusiva em favor do seu titular, caracterizando-
se, portanto, como absolutos, ou seja, exigíveis em face de qualquer pessoa, e oponíveis erga
omnes 14.
Sobre o direito à personalidade das crianças, Rabindranath Capelo de Sousa15 refere
que estas
(...) desde o início têm uma personalidade própria, autónoma, que inclusivamente
os próprios pais têm o dever de respeitar e promover no exercício do seu poder-
dever de educação. As próprias incapacidades de gozo do menor são limitadas e a
sua incapacidade de exercício de direitos, embora de caráter genérico (art. 123.º
CC), pressupõe na maioria das vezes uma capacidade de exercício de direitos.
Mas, em qualquer caso, as incapacidades são instituídas fundamentalmente no
interesse dos menores e para a sua tutela de personalidade.

12
CRUZ, Rossana Martingo. A Criança no (Admirável?) Mundo Novo das Redes Sociais. In: Direito na
Lusofonia. Direito e novas tecnologias. 5.º Congresso Internacional de Direito na Lusofonia. Braga: Escola
de Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação em Justiça e Governação (Jusgov), 2018. p.
455/456.
13
CRUZ, Rossana Martingo. A Divulgação da Imagem do Filho Menor nas Redes Sociais e o Superior
Interesse da Criança. In: Direito e Informação na Sociedade em Rede. Atas do IV Colóquio Luso-Brasileiro
Direito e Informação. Porto, 2016. p. 288/289.
14
SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra
Editora, 1995. p. 401.
15
Ibidem. p. 170.
281

O direito à imagem, por sua vez, encontra previsão no art. 26.º, n.º 1, da Constituição
da República Portuguesa, bem como no art. 79.º do Código Civil, segundo o qual a
divulgação, reprodução e comercialização do retrato de uma pessoa dependerá do seu prévio
consentimento, consoante o n.º 1 do dispositivo. O n.º 2 da norma prevê as hipóteses de
dispensa do consentimento, situação estas em que a notoriedade da pessoa retratada, o cargo
que desempenhe, as exigências de polícia ou de justiça, as finalidades científicas, didáticas
ou culturais justifiquem, ou, ainda, quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de
lugares públicos, na de factos de interesse público ou que haja decorrido publicamente. Já o
n.º 3 veda a divulgação de retratos que possam resultar em prejuízo a honra, reputação ou
simples decoro da pessoa retratada. Logo, conclui-se que a imagem somente poderá ser
divulgada caso inexista o risco de acarretar prejuízos à honra, reputação ou decoro da pessoa
retratada, de modo que, do contrário, sempre se exigirá o consentimento do titular do direito,
consoante o n.º 2 do art. 79.º.
Destaca-se, no ponto, que o direito à imagem acaba por tutelar, em certa
particularidade, o direito à honra. Neste sentido, David Festas esclarece que “o direito à
honra tem um domínio de actuação próprio que transcende a exposição ou publicação do
retrato”, todavia, salienta que “o bem jurídico ʽhonraʼ também é tutelado pelo direito de
imagem”16.
Assim, os detentores das responsabilidades parentais devem ter ciência que a criança
possui certa fragilidade em razão de ter sua estrutura física e moral em formação, devendo
ser ajudada e respeitada pela família. Isso porque as carências na personalidade da criança
podem se tornar atos ilícitos, suscetíveis de responsabilidade civil, que não seriam ilícitos
caso fossem praticados entre adultos, isentos, portanto, de lesão à personalidade específica
da criança, o que torna mais significativos ou mais extensos os respectivos danos17.
Logo, os pais devem se abster de divulgar imagens da criança na web, exceto, nos
casos em que a divulgação seja de interesse da própria criança ou nos quais exista
notoriedade pública que justifique a exposição, nos termos do art. 79.º, n.º 2, do Código Civil
português18.

16
FESTAS, David de Oliveira. Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem – contributo para um estudo
do seu aproveitamento consentido inter vivos. Lisboa: Coimbra Editora, 2009. p. 80/81.
17
SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O Direito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra
Editora, 1995. p. 168/169.
18
Demandas relativas ao tema da ciberproteção das crianças já começaram a surgir nos Tribunais portugueses,
a exemplo dos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24/09/2014 (processo 431/13.6TTFUN.L1-4),
282

CONCLUSÃO

Ao abordar o tema do fenômeno sharenting, se pretendeu propor uma reflexão acerca


da divulgação de imagens da criança por seus progenitores na internet, estabelecendo uma
relação com o poder-dever, inerente do exercício das responsabilidades parentais, bem como
com o superior interesse da criança.
Acredita-se que os progenitores que compartilham fotos dos filhos na web não
possuem noção da amplitude das publicações e acabam por divulgar imagens no mero desejo
de dividir com a família, amigos e seguidores momentos despretensiosos da vida das
crianças. Olvidam-se, todavia, que esses conteúdos podem perdurar na rede por tempo
indeterminado, ainda que excluídos, bastando que sejam salvos ou compartilhados por
qualquer pessoa que a eles tenha acesso. Esquecem também que as publicações podem
constranger ou desagradar a criança, titular do direito à imagem, quando ela se tornar adulta,
podendo, inclusive, ser utilizadas em bullying e, até mesmo, em redes de pornografia infantil.
Nota-se que falta informação e, principalmente, conscientização dos progenitores
sobre os perigos que cercam a exposição da criança nas redes sociais. Antes de compartilhar
a imagem dos filhos na web, deveriam os pais pensar se aquela publicação traz vantagem ou
se beneficia o filho em alguma circunstância. Nessa perspectiva, deveriam ter ciência de que
o exercício das responsabilidades parentais, além de não outorgar o direito à imagem do filho
aos seus detentores, deve ser pautado no superior interesse da criança, e não no livre arbítrio
dos pais. O exercício dos direitos familiares pessoais deve ser desempenhado em vista aos
interesses de todos e de cada um dos seus membros, de modo que os pais devem pensar nos
interesses individuais dos filhos, no intuito do livre desenvolvimento da sua personalidade19.
A família, na era da internet, encontra-se em um cenário onde os indivíduos se
libertaram, todavia, não encontraram um novo quadro de valores. Este cenário não pode ser
confundido com dominação, “aparecendo como suficiente justificação dos laços familiares
a satisfação dos interesses de cada pessoa”, uma vez que, “sobretudo na família, o ser
humano só o é realmente se reconhecer em todos e cada um dos outros, um outro eu”20.

do Tribunal da Relação do Porto, de 05/06/2015 (processo 101/13.5TAMCN.P1), e do Tribunal da Relação de


Évora, de 25/06/2015 (processo 789/13.7TMSTB-B.E1). Disponíveis em: <www.dgsi.pt>.
19
CAMPOS, Diogo Leite de; CAMPOS, Mónica Martinez de. Lições de Direito da Família. 3.ª ed. Coimbra:
Almedina, 2017. p. 126.
20
Ibidem. p. 371/372.
283

Conclui-se que falta conscientização dos progenitores sobre os perigos que cercam a
exposição da criança na internet e que deveriam os pais, antes de publicar qualquer imagem
dos filhos na web, ponderar sobre eventual benefício daquela divulgação à criança, titular do
direito à imagem, bem como ter ciência de que o exercício das responsabilidades parentais
não pressupõe o uso indiscriminado da imagem do filho para fins de interesse pessoal.

REFERÊNCIAS

ALCARAZ, Maria Hylma. Reflexões Sobre a Proteção dos Direitos Fundamentais Dentro
do Mundo Digital. In: Direito na Lusofonia. Direito e novas tecnologias. 5.º Congresso
Internacional de Direito na Lusofonia. Braga: Escola de Direito da Universidade do Minho,
Centro de Investigação em Justiça e Governação (Jusgov), 2018.

AMARAL, Jorge Augusto Pais de. Direito da Família e das Sucessões. 5.ª ed. Coimbra:
Almedina, 2018.

BOLIEIRO, Helena; GUERRA, Paulo. A Criança e a Família: uma questão de direito(s) -


visão prática dos principais institutos do direito da família e das crianças e jovens. 2.ª ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2014.

CAMPOS, Diogo Leite de; CAMPOS, Mónica Martinez de. Lições de Direito da Família.
3.ª ed. Coimbra: Almedina, 2017.

CRUZ, Rossana Martingo. A Criança no (Admirável?) Mundo Novo das Redes Sociais. In:
Direito na Lusofonia. Direito e novas tecnologias. 5.º Congresso Internacional de Direito
na Lusofonia. Braga: Escola de Direito da Universidade do Minho, Centro de Investigação
em Justiça e Governação (Jusgov), 2018.

______. A Divulgação da Imagem do Filho Menor nas Redes Sociais e o Superior Interesse
da Criança. In: Direito e Informação na Sociedade em Rede. Atas do IV Colóquio Luso-
Brasileiro Direito e Informação. Porto, 2016. Disponível em:
<https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/47936>. Acesso em: 28 de setembro de
2020.

DIAS, Cristina. A Criança como Sujeito de Direitos e o Poder de Correcção. In: Julgar, n.º
4. Coimbra, 2008.

______. Uma Análise do Novo Regime Jurídico do Divórcio – Lei n.º 61/2008, de 31 de
outubro. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2009.

FESTAS, David de Oliveira. Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem – contributo


para um estudo do seu aproveitamento consentido inter vivos. Lisboa: Coimbra Editora,
2009.
284

LANÇA, Hugo Cunha. Cartografia dos Direitos das Crianças, Família e Adolescentes. 1.ª
ed. Lisboa: Edições Sílabo, 2018.

MAGRIÇO, Manuel. A Internet e as Crianças – riscos e potencialidades. Lisboa: Centro de


Estudos Judiciários, 2018. p. 9/31. Disponível em: <http://www.cej.mj.pt/cej
/recursos/ebooks/familia/eb_InternetCriancas2018.pdf>. Acesso em 28 de setembro de
2020.

RODRIGUES, Hugo Manuel Leite. Questões de Particular Importância no Exercício das


Responsabilidades Parentais. 1.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2011.

SOTTOMAYOR, Maria Clara. Exercício Conjunto das Responsabilidades Parentais:


igualdade ou retorno ao patriarcado? In: E foram felizes para sempre…? Uma análise crítica
do novo regime jurídico do divórcio, [coord. M.ª Clara Sottomayor e M.ª Teresa Féria de
Almeida]. 1.ª ed. Coimbra: Coimbra Editora/Wolters Kluwer, 2010.

______. Exercício do Poder Paternal – relativamente à pessoa do filho após o divórcio ou a


separação de pessoas e bens. 2.ª ed. Porto: Publicações Universidade Católica, 2003.

SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O Direito Geral de Personalidade.


Coimbra: Coimbra Editora, 1995.
285

A HERANÇA DIGITAL NA SOCIEDADE WEBCONECTADA: A


NECESSIDADE DA MODERNIZAÇÃO DO DIREITO SUCESSÓRIO

Daiane Schneider Leviski1

Resumo: O presente artigo tem por escopo analisar o instituto da herança digital no contexto
social e legislativo. Para isto, foram realizadas pesquisas bibliográficas e descritivas que
permitiram a abordagem social, conceitual e legislativa dos novos tipos de patrimônio com
formato digital. A herança digital já é realidade no mundo e no Brasil, eis que a sociedade se
encontra a cada dia que passa mais webconectada, seja por meio da rotina de trabalho,
estudos, lazer, investimentos, consumo, utilização de plataformas de armazenamentos de
dados, circulação de mensagens instantâneas, entre outros. Ocorre que a produção em massa
de conteúdos digitais tem externado preocupação com o destino dos bens virtuais após a
morte. Com o crescimento das preocupações em torno do tema, é de extrema valia a
intensificação dos debates no ensino e na sociedade brasileira, formada pelos atuais usuários
da internet, para que se permita a solidificação da matéria no direito sucessório e possibilite
a construção de futuras decisões jurídicas uníssonas.

Palavras-Chave: Herança digital. Direito de herança. Conteúdo virtual. Morte.

INTRODUÇÃO

A sucessão de bens digitais será um tema de grande relevância para a sociedade e


para o direito nas próximas décadas e isto se deve a introdução de novas tecnologias nos
meios sociais que possibilitam aos usuários adquirirem produtos, compartilhar e armazenar
dados em meio virtual.
Até o presente momento, a herança digital não possui situação regulamentada no
Brasile com o advento da morte de usuários ativos, os juristas veem-se obrigados a utilizar
de instrumentos dispostos pelo direito, como a analogia e a interpretação para resolver
eventuais litígios que surgem sobre a questão.
Falar de herança digital para uma sociedade em que o instituto ainda não é bem visto,
parece uma tarefa árdua, no entanto, a ausência de regulamentação a respeito do tema tende
a tornar a realidade ainda mais fragilizada.

1
Advogada (OAB/RS 120.521). Pós-graduanda em Direito Empresarial na Faculdade Verbo Educacional e
Direito Digital e Proteção de Dados na Escola Brasileira de Direito. Graduada em Direito pela Faculdade
CNEC Santo Ângelo (2019). E-mail: daia19971@hotmail.com
286

Neste ínterim, buscasse com o presente artigo discutir o que é a herança digital, a
possibilidade de sucessão universal sobre os bens virtuais, e principalmente, colocar a
sociedade a par das orientações jurídicas sobre o tema.
Desta forma, a construção do presente estudo de natureza teórica valeu-se de técnicas
de pesquisa bibliográfica e descritiva, que possibilitaram o enriquecimento da análise do
tema sob viés qualitativo e quantitativo.
Destarte, o primeiro capítulo do artigo busca realizar uma abordagem histórica e
evolutiva da sociedade e tecnologia, permitindo ao leitor compreender asatuais relações
sociais e de interação, e, notadamente, o meio em que as normas vigentes estão inseridas.
O segundo momento é dedicado a análise do tradicional instituto da herança e dos
aspectos normativos que a caracterizam e futuramente abrigarão a herança digital.
No terceiro ponto de abordagem, o artigo terá por ênfase a análise da herança digital,
a construção de conceitos e o estudo de casos que possibilitaram a ascensão das discussões
na sociedade webconectatada. O estudo do terceiro tópico torna-se de extrema valia, pois
permitirá a compreensão das atuais teses jurídicas brasileiras e de interpretações
internacionais que serão discutidas no último título do artigo.
Desta forma, nas próximas laudas, será o leitor redimensionado a conhecer, inteirar-
se e discutir a herança digital, instituto que abarca o conjunto de bens virtuais produzidos
pelos indivíduos que usufruem dos meios tecnológicos, e que com morte, ficam à mercê das
leis e de seus herdeiros.

1 A ASCENSÃO DA SOCIEDADE WEBCONECTADA

A sociedade como é conhecida na atualidade é fruto de grandes rupturas e mudanças


sociais.
As relações familiares, de labor, lazer e a própria educação, tiveram significativos
impactos com o avanço dos séculos, e isto se deve as grandes expansões econômicas que o
mundo experimentou desde que o homem deixou de ser nômade e passou a viver em
sociedade.
Mas foi partir do desenvolvimento da indústria que todos os elementos sociais
evoluíram. A chegada das máquinas, dos meios de produção escalonados e a produção em
série, gerou nas pessoas uma expectativa para novas necessidades.
287

Opinar sobre tecnologia até meados do século XX fazia alusão a carros voadores e
robôs na forma humana que somente pessoas com alto poder aquisitivo poderiam ter acesso
no futuro. Contudo, os avanços da nanotecnologia provaram o contrário, e hojea tecnologia
que se encontra incorporada no cotidiano da sociedade é considerada mais avançada que
fazer um carro voar, isto porque, seu uso estreita as barreiras de informação.

Portanto, pode-se dizer que a grande revelação do século XX que proporcionou a


construção de uma sociedade webconectada foi o desenvolvimento dainternet.

A internet surgiu da Arpanet em 1960 nos Estados Unidos da América com o objetivo
de estabelecer troca de ideias e comunicação entre as instituições de ensino. Mas foi na
Guerra Fria que os soldados americanos necessitavam de um sistema inteligente que
proporcionasse a troca de informações entre as tropas, visto que o sistema desenvolvido até
então somente tornava possível à comunicação com redes telefônicas e telegráficas que
poderiam ser desconectadas facilmente pelos adversários.
Desta forma, o sistema utilizado pelaArpanet e que consistia no envio de vários
pacotes de dados pela rede, passou a ser utilizado pelo exército americano que o denominou
de internet. O sucesso da operação foi tão suntuoso que no final da década de 1980 o mesmo
já estava disponível para uso comercial nos Estados Unidos da América, chegando ao Brasil
em 1995.
A partir da chegada da internet no Brasil, pode-se dizer que o século XXI mergulhou
na sociedade da informação. Hoje é difícil encontrar nichos de mercado que não estejam
informatizados, grande parte dos arquivos físicos já foi substituída pela digitalização e
armazenamento virtual, os processos são eletrônicos e a população mundial tem fome por
informação e comunicação.
Patrícia Noll2 explica que é na medida em que a sociedade se conecta que surgempara
a seara jurídica diversos anseios que necessitam de amparo para serem acertados. E, isso
ocorre porque muito embora se trabalhe com ambientes virtuais, a tecnologia implica nos
avanços sociais, sendo primordial que as normas jurídicas acompanhem esta evolução. Caso
assim não fosse, o globo habitaria terras sem leis, e a sociedade estaria estagnadaainda na
Idade Média (séculos V e XV).

2
NOLL, Patrícia. A Lei, o tempo e o direito: uma abordagem da evolução histórica constitucional. Revista
Justiça & História. Revista do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v.6, n.12,
[2004?], p. 02. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/static/2017/02/Justica-Historia-V6-n12-artigo-1.pdf.
Acesso em: 12 set. 2019.
288

Ocorre que o volume de interações virtuais não tem apenas se restringido a passagem
do físico para o virtual, ou seja, do papel da fotografia impressa para a imagem virtual, do
CD da banda favorita para o formato MP3, das correspondências para mensagens
instantâneas e eletrônicas. Muitos brasileiros têm migrado para o sucesso dos trabalhos
virtuaisna rede mundial de computadores paraalcançar recursos de sustento e acumular
fortunas, como é o caso dosfreelancers, profissionais autônomos que desenvolvem
diferentes tipos de trabalho na internet, osinstagrammers, também conhecidos comodigitais
influencers, pessoas que lançam suas vidas em estratégias de marketing nas mídias digitais
como o Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, TikTok, entre outras.
Através dessa atividade, conquistam milhões de seguidores, exercem influência
sobre o mercado através de marcas e seus posicionamentos, aumentando seus faturamentos
a cada like, parceria ou campanha. O mesmo ocorre com os youtubersque são criadores de
conteúdo junto aos canais noYoutube.
A tecnologia possibilitou ainda aos usuários acender por meio do mercado de
criptomoedas, que consiste em um meio de troca virtual de moedas por intermédio da
tecnologia blockchain, a disponibilização de créditos por meio das carteirasdigitaise a
criação desites de domínio e de e-business.
Ou seja, é indubitável que estes novos mercados têm gerado grandes resultados para
a economia do país, uma vez que impulsionam os setores de consumo. Mas com a chegada
da morte, entram em campo inúmeras indagações sobre o destino dos conteúdos digitais,
principalmente vindos de muitos familiares que se encontram desamparados, sem saber
como lidar com o patrimônio virtual.
Em uma pesquisa3realizada por meio da plataforma Google Forms4com o objetivo
de analisar o conhecimento das pessoas a respeito da herança digital, foi possível
constatarque 83,8% (oitenta e três vírgula oito por cento) dos entrevistados faz uso da
tecnologia para moldar as tarefas diárias, e este mesmo índice sequer possui conhecimento
sobre a existência do instituto da herança digital que trabalha com o destino dos bens digitais
acumulados durante a vida do usuário na internet.

3
A pesquisa foi realizada com 105 (cento e cinco) brasileiros nos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná e
Goiás.
4
LEVISKI, Daiane Schneider. Pesquisa para produção científica. Disponível em:
https://drive.google.com/open?id=1G1WgxpNtIjgbdt5J15cm5vGrudb23BsA. Acesso em: 24 maio 2020.
289

Em outra pesquisa5realizada pela McAfee e aMSI Internation6com seus


consumidores, restou apontado que 38% (trinta e oito por cento) dos conteúdos que compõe
os acervos digitais são formados pelo entretenimento, lembranças pessoais, registros,
comunicações pessoais, passatempos, projetos e informações de carreiras que possuem
caráter insubstituível e representamo ativo digital de aproximadamente R$ 90.754,00
(noventa mil e setecentos e cinquenta e quatro reais).
É indubitável que osdados demostram precariedade no instituto da herança digital,
que por sinal é pouco difundido no Brasil, mas estes mesmos dados reproduzirão os futuros
interesses da sociedade hiperconectada que questionará sobre qual o destino dos bens
virtuaisno caso da morte do proprietário.
Tais dúvidas ensejaram que novos profissionais estejam preparados juridicamente
para respondê-las, ascendendo à necessidade do ensino superior das ciências
sociaisdifundirem a temática em seus conteúdos programáticos, e assim, ratificar a tese de
que o direito acompanha os avanços sociais.
Findo o primeiro tópico que buscou situar o leitor no atual contexto em que a
sociedade webconectada está inserida, passa-se a análise do instituto tradicional da herança,
e posteriormente, a herança digital.

2 O INSTITUTO TRADICIONAL DA HERANÇA E OS BENS PASSÍVEIS DE


SEREM HERDADOS

Não é novidade que as relações familiares sofreram fortes alterações nas últimas
décadas e isto se deve ao fato da evolução das relações sociais.
O direito de herdar está assegurado constitucionalmente no Brasil como uma garantia
fundamental7, contudo, cabe ressaltar que isto nem sempre foi assim.
Fustel de Coulanges8 narra de forma muito detalhista que a partir do momento em
que homem passou a se estruturar em sociedade, cada família construiu seu próprio

5
A pesquisa foi realizada com 323 (trezentos e vinte e três) consumidores brasileiros;
6
MCAFEE. O Valor dos Ativos Digitais. Pesquisa realizada pela McAfee e conduzida por MSI
International. 2012. Disponível em:
http://web.archive.org/web/20121107035938/http://info.abril.com.br/ftp/Pesquisa-McAfee.pdf. Acesso em:
12 maio 2020.
7
Artigo 5º Constituição Federal - [...]XXX - é garantido o direito de herança;
8
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martins Claret, 2002.
290

patrimônio e religião que denominou de culto familiar, sendo que a maior herança a ser
transmitida era a continuidade do culto por meio dadescendência em linha masculina.
Com o passar dos séculos, percebe-se que o instituto sucessório inicialmente
proposto e inteiramente ligado à religião, sofreu fortíssimas alterações e introduziu maiores
liberalidades em seu meio.
Hoje, o conceito de herança está ligado à transmissão de bens em razão da morte de
seu titular, no entanto, as bases doutrinárias brasileiras carregam em seu cerne os ideais do
modelo econômico adotado que trabalha com o objetivo de zelar pela continuidade da
família e da propriedade. No entanto, mulheres, crianças, filhos oriundos de outras relações
e o próprio nascituro, possuem assegurado o direito de herdar.
Os impasses que antes estavam atrelados à legitimidade para herdar, constituem
minoria dos litígios judiciais e familiares. O que opera hoje e será palco para intensos debates
jurídicos no futuro, consiste na relação de bens que pode ser objeto de transmissão
hereditária.
Para o presente artigo, torna-se necessário o estudo da diferença entre “bens” e
“coisas” para melhor assimilação e compreensão do próximo tópico que enfrentará
diretamente o tema da herança digital.
O “bem”, segundo o doutrinador Cezar Fiúza9 (2004), é definido como aquele
suscetível de apropriação, enquanto que a “coisa” pode sofrer avaliação econômica. Em
contrapartida, outra linha de pensadores consagrados como Sílvio de Salvo
Venosa10,consideram “bens” apenas espécies de “coisas”,tendo em vista que a “coisa” é tudo
aquilo que compreende o universo. Já os “bens” seriam as “coisas” apropriáveis e
valorativas.
Maria Helena Dinizexemplifica muito bem a temática ao dispor sobre os “bens”
excluídos da transmissão, uma vez que éinerente a pessoa quando viva:
[...] não há a transmissão de todos os direitos e de todas as obrigações do autor da
herança, visto que: a) há direitos personalíssimos que se extinguem com a morte,
como o poder familiar, a tutela, a curatela e os direitos políticos; b) há direito e
deveres patrimoniais que não passam aos herdeiros, por serem inerentes à pessoa
do de cujus, como a obrigação de fazer infungível (Código Civil, art. 247); a
empreitada ajusta em consideração à qualidade especial do empreiteiro (Código
Civil, art. 626, in fine); o uso, o usufruto e a habitação [...] 11.

9
FIÚZA, Cezar. Direito Civil: Curso Completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 48.
10
VENOSA, de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. v.1. 9ªed. São Paulo: ATLAS, 2009, p. 291.
11
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. v.6, 27ª ed., São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 54.
291

Outro exemplo a ser citado12 e a exceção, são os direitos autorais protegidos pela Lei
nº 9.610/1998, nestes casos, os autores de obras detém seus direitos autorais por até 70
(setenta) anos depois de sua morte, e caberão os herdeiros receberem os frutos provenientes
dos trabalhos, dada as circunstâncias temporais. Ou seja, a transmissão não ocorre na sua
integralidade em virtude da natureza jurídica que acompanha as criações intelectuais.
Como se percebe, o atual Código Civil regula apenas os bens econômicos que são
suscetíveis de serem herdados, não reconhecendo os bens armazenados virtualmente como
parte do patrimônio do de cujos e que pode ser transmitido aos herdeiros com sua morte.
Dadas às circunstâncias, cogita-se que os avanços sociais já incorporados pela
sociedade tem trazido para o atual ordenamento jurídico uma valoração subjetiva sobre os
bens suscetíveis de herança, isto porque, até então apenas bens corpóreos de cunho
econômico eram do interesse dos herdeiros. Contudo, com a sociedade webconectada
cresceu a necessidade de se herdar patrimônios virtuais compostos por bens afetivos.
Neste diapasão, surge nos ordenamentos jurídicos a chamada herança digital, que
será o objeto de análise no próximo tópico.

2.1 A atual regulamentação da herança

De acordo com o Princípio da Saisini positivado no artigo 1.784 do Código Civil13,


a transmissão de bens do de cujos aos herdeiros ocorre imediatamente à data de sua morte
por meio da abertura da sucessão.
Neste tópico, é importante esclarecer que existe uma crucial diferença entre sucessão
e herança.
Enquanto a sucessão é a transferência dos bens do espólio em virtude do
acontecimento morte, a herança é caracterizada pela totalidade dos bens a serem
transmitidos, de modo que a morte“é o cerne de todo direito sucessório, pois ela determina

12
FARIAS, Cristiano de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Sucessões. v.7. São Paulo: Atlas,
2015, p.07-08. Disponível em:
https://www.academia.edu/35756185/CRISTIANO_CHAVES_Curso_de_Direito_Civil_7_2015_pdf?auto=d
ownload. Acesso em: 22 set. 2020.
13
Artigo 1.784 - Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e
testamentários.
292

a abertura da sucessão, uma vez que não se compreende sucessão, sem o óbito do de cujus,
dado que não há herança de pessoa viva” , conforme descreve Diniz14.
A partilha de bens no Brasil é realizada por meio de duasespécies de
sucessãoinstituídas pelo ordenamento jurídico. A primeira delas é a sucessão testamentária,
que segundo Carlos Roberto Gonçalves15ocorre pela disposição de última vontade do
falecido.
Ressalva-se que havendo herdeiros necessários, o testador apenas poderá dispor pelo
testamento de 50% (cinquenta por cento) de seu patrimônio, enquanto a outra metade resta
assegurada aos herdeiros.
Esta espécie de sucessão é pouco utilizada no Brasil em razão dos usos e costumes
da sociedade que tende a adotar a sucessão legítima. Outra razão da pouca difusão dessa
espécie está atrelada aos custos financeiros.
A sucessão legítima é utilizada nos casos de mortes em que não se evidencia registros
testamentários, vigorando para a partilha as disposições do Código Civil.
Gonçalves16complementa: “morrendo, portanto, a pessoa ab intestato, transmite-se a
herança a seus herdeiros legítimos, expressamente indicados na lei (CC, art. 1.82917), de
acordo com uma ordem preferencial, denominada ordem da vocação hereditária”.
Portanto, com o advento da morte, os bens passam a ser transmitidos aos herdeiros
legítimos ou testamentários do de cujos.
Dito isso, o(s) herdeiro(s) possuem pela lei 60 (sessenta) dias18 para interpor a Ação
de Abertura de inventário e Partilha. O descumprimento do prazo acarreta na incidência de
multa a ser paga no momento do pagamento do ITCD (Imposto de Transmissão Causa
Mortis ou Doação).

14
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. v. 06, 29ª ed., São Paulo:
Saraiva, 2015, p. 34.
15
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Sucessões. 8. ed. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 29. Disponível em: https://www.academia.edu/14083750/Direito_Civil_Brasileiro_-_Vol._7_-
_Direito_Das_Sucess%C3%B5es_-_8a_Ed._2014?auto=download. Acesso em: 07 mai. 2020.
16
Ibidem, p. 30.
17
Artigo 1.829 - A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com
o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da
separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da
herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao
cônjuge sobrevivente;IV - aos colaterais.
18
Artigo 611 do Código de Processo Civil - O processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro
de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes, podendo
o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento de parte.
293

Os herdeiros que não queiram optar pelo moroso tramite processual, podem valer-se
da novidade introduzida pelo artigo 610 do Código de Processo Civil19, que permite que o
inventário seja realizado na modalidade administrativa junto a um cartório
extrajudicial.Contudo, o inventário por escritura pública somente é permitido quando todos
os sucessores são capazes, estiverem assistidos e sejam concordes. A não cumulação dos
requisitos enseja a necessidade de processo judicial.
Como se percebe, o Direito Sucessório é uma parte especial do Direito Civil que
regula a substituição do titular dos bens em razão da morte, uma vez que os objetos a serem
transmitidos não são alterados pelo instituto.
O ramo mostra-se muito importante para regular as relações jurídicas, mas assim
como outras áreas do campo do direito, o direito sucessório vem nas últimas décadas
enfrentando grandes mudanças em razão do aperfeiçoamento das relações humanas, e assim,
necessita ser constantemente atualizado.

3 A HERANÇA DIGITAL

No primeiro tópico do artigo, o leitor foi situado no contexto das atuais relações e
pode constatar a ascensão da sociedade webconectada por meio do desenvolvimento de
novos ofícios junto à rede mundial de computadores, a imensidão de arquivos contendo e-
books, playlists de músicas e filmes, aplicativos e games que são comprados virtualmente.
Sem falar em fotos, mensagens eletrônicas, canais, contas virtuais (financeiras e de mídias
sociais), aplicações de criptomoedas, entre outros.
No atual contexto social que reflete as inovações tecnológicas, o direito recebe a
missão de acompanhar tais mudanças e dessa forma regulamentar as novas relações jurídicas
que estão e irão surgir, no entanto, antes da analise legislativa, é de grande valia analisar o
conceito do instituto da herança digital.
No plano internacional as preocupações com a chamada herança digital ganharam
grande destaque no final do ano de 2009, com a morte da norte-americana, Anna Moore

19
Artigo 610 - Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial.§1º - Se todos
forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá
documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em
instituições financeiras.§2º - O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas
estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato
notarial.
294

Morin20. Após sofrer um trágico acidente enquanto se deslocava para seu apartamento e ter
sua morte divulgada pela imprensa, passou a receber inúmeras publicações em sua página
da mídia social Facebook, mesmo após algum tempo do acidente. As lembranças de fotos
do acidente e mensagens de carinho começaram a enfadar os familiares e amigos da vítima,
uma vez que os impossibilitava de seguirem suas vidas e esquecer a dor da partida da jovem
recém-casada.
Em 2012, o autor Bruce Willis anunciou que iria processar a Apple a fim de que a
playlist de músicas por ele compradas junto ao iTunes, fosse legalmente transmitida a seus
filhos após sua morte21. Atualmente isto não é possível, uma vez que as faixas compradas
cessam com a morte e não podendo ser transferidas.
No entanto, foi a partir do caso britânico de Becky Palmer22 que o tema herança
digital se expandiu pelo mundo.
Becky era uma jovem com constantes atividades junto à rede mundial de
computadores, em especial as mídias sociais. Durante o estágio final de um tumor cerebral
a jovem perdeu grande parte de seus movimentos e por isso era auxiliada pela sua genitora,
Louise Palmer, nos acessos junto a sua conta do Facebook. Após sua morte, a mãe de Becky
encontrava no acesso a conta o conforto para sua dor, no entanto, de forma automática o
perfil se transformou em um memorial, impossibilitando que a genitora fizesse login. O caso
reuniu contatos com o Facebook, mas Louise apenas obteve explicações sobre a nova
política implantada pela mídia social que transforma os perfis de pessoas já falecidas em
memoriais.
No Brasil os primeiros vestígios de preocupação com tema ocorreram no ano de 2012
com o caso de Juliana Ribeiro Campos23. A jovem faleceu em virtude uma cirurgia e após o
evento, seu perfil da mídia social do Facebook se transformou em um muro de lamentações,

20
SILVA, Melina Paula Ruas. Herança Digital. In: Encontro Toledo de Iniciação Científica. 2015, São Paulo.
Anais do Encontro Toledo de Iniciação Científica Prof. Dr. Sebastião Jorge Chammé do Centro
Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente. São Paulo: Centro Universitário
Antônio Eufrásio de Toledo, 2015, s/p.. Disponível em:
http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/view/4872/4625. Acesso em: 12 maio 2020.
21
GLOBO. Bruce Willis quer que filhas fiquem com suas MP3’s após morte, diz site. Globo, São Paulo, 2012.
Disponível em: http://g1.globo.com/musica/noticia/2012/09/bruce-willis-quer-que-filhas-fiquem-com-suas-
mp3s-apos-morte-diz-site.html. Acesso em: 12 maio 2020.
22
BRITISH BROADCASTING CORPORATION NEWS BRASIL. Luta de mãe por acesso ao Facebook de
filha morta expõe questão sobre “herança digital”. BBC News Brasil, 2015. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150406_heranca_digital_rm. Acesso em: 12 maio 2020.
23
QUEIROZ, Tatiane. Mãe pede na Justiça que Facebook exclua perfil de filha morta em MS. Globo, Mato
Grosso do Sul, 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2013/04/mae-pede-na-
justica-que-facebook-exclua-perfil-de-filha-falecida-em-ms.html. Acesso em: 12 maio 2020.
295

tornando o processo de aceitação da morte muito doloroso para a família e amigos. Desta
forma, a família buscou na justiça24 a exclusão do memorial, cujo pedido foi deferido.
Outro caso envolvendo herança digital tramitou na justiça estadual do Estado de
Minas Gerais25 no ano 2017, onde uma mãe buscou autorização judicial para acessar os
dados de uma conta virtual da filha já falecida, no entanto, o pedido foi negado, em razão da
quebra do sigilo das correspondências, comunicações telegráficas, dados e das
comunicações telefônicas26.
Como se percebe, os casos envolvendo o direito digital, em específico, a herança
digital, têm adentrado aos poucos nos litígios judiciais. No entanto, o direito digital assim
como as doutrinas ainda não possui um conceito claro e universal a respeito do instituto, sem
saber ao certo, quais bens seriam passíveis de sucessão por meio da herança digital.
Isto ocorre porque muitas vezes os bens digitais estão atrelados a valores
sentimentais, e, portanto, não entrariam na sucessão em razão da ausência de conteúdo
patrimonial.
Para a parca doutrina, os bens virtuais são classificados em dois grupos: de bens não
valoráveis, compostos por arquivos criados na rede mundial de computadores e que podem
ser colocados à disposição nas cloud computing, como por exemplo, Google Drive,
Microsoft Azure e o Dropbox. E, os bens valoráveis, caracterizados pelos acervos digitais
que podem ter valoração econômica, uma vez que foram comprados por meio de um
provedor de serviços online. Adentram aqui exemplos como e-books, games, softwares,
moedas virtuais, entre outros.
Maria Adriana Danta Virgínio27 lembra que todo conteúdo produzido em meio
virtual e que possui valoração econômica, integra o processo sucessório.Em contrapartida,
aqueles dotados de valor sentimental e sem cotação, não podem ser transmitidos, podendo a
família apenas requerer a sua exclusão do meio público como é o caso das mídias sociais. A

24
Vide Processo nº 0001007-27.2013.8.12.0110 no Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul;
25
Vide processo nº 002337592.2017.8.13.0520 no Tribunal de Justiça de Minas Gerais;
26
SANZI, Júlia. Herança digital e direito sucessório. Jornal Valor Econômico, São Paulo, Caderno Legislação
e Tributos E2, v. 19, n. 4571, 2018. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/560381. Acesso
em: 21 maio 2020.
27
VIRGÍNIO apudMARINHO, Hellen Monique Pereira. Uma análise da Herança Digital à luz do Código
Civil. 2019. 40 f. Trabalho de Conclusão (Trabalho de Conclusão do Curso de Direito) – Centro Universitário
de Anápolis (UniEVANGÉLICA), Anápolis, 2019, p. 25. Disponível em:
http://repositorio.aee.edu.br/bitstream/aee/8594/1/TCC%20ALUNA%20HELLEN%20MONIQUE%209%C2
%BA%20PERIODO.pdf. Acesso em: 20 maio 2020.
296

situação pode ser constatada nos casos exemplificativamente citados, e que deram azo às
primeiras noções sobre herança digital.
A fim de dar base a construção, cita-se Virgínio:

Os bens virtuais merecem ser incluídos no conceito de herança, uma vez que
integram o patrimônio do indivíduo. Quanto aos arquivos que possuam valor
econômico, [...], tendo em vista o princípio da patrimonialidade que norteia o
direito das sucessões. Em contrapartida, alguns doutrinadores entendem que os
arquivos que não podem ser avaliados financeiramente, como fotos pessoais,
escritos caseiros e vídeos particulares são excluídos da concepção de espólio. No
entanto, os sucessores podem herdar este material caso haja disposição de última
vontade do de cujus, na hipótese de não existir, os herdeiros não poderão pleitear
judicialmente a posse do referido conteúdo, mas terão o direito de requerer a
exclusão desse acervo, caso esteja disponível ao público em redes sociais, por
exemplo28.

No entanto, surge um questionamento!


Se as contas de mídias sociais do falecido são consideradas bens sem valoração
econômica e incorpórea, logo, elas não integram a sucessão, salvo a existência de testamento.
No entanto, muitas pessoas que já faleceram acumularam fortunas com canais e postagens,
nestes casos, diante do post mortempode-se dar sequência a vida virtual?
Diversas empresas que prestam serviços nas mídias sociais já desenvolveram
políticas para situações como estas.No caso de cujos que não se valeram em vida das mídias
sociais para aumentar suas rendas, o Facebook permite que o usuário antes de sua morte
adicione 01 (um) contato herdeiro para gerenciar a conta quando transformada em memorial,
ou ainda, possa solicitar sua remoção. O Instagram, por sua vez, requer que qualquer pessoa
o informe do falecimento para transformação da conta em memorial, ou então, algum
familiar munido da certidão de óbito faça a remoção da conta. O Twitter e o LinkedIn
requerem o preenchimento de formulários por familiares ou pessoas que possam agir em
nome do estado, a fim de que seja realizada a desativação da conta.
Caso nenhuma ação seja feita em vida pelos usuários, ocorre a transformação
automática da conta em memorial, cabendo aos familiares ingressar na justiça para a retirada
dos conteúdos, como é o caso dos exemplos anteriormente citados.
Já as contas geridas pela Google foram mais ousadas e desenvolveram a possibilidade
de testamentos virtuais, ou seja, antes da morte o usuário pode responsabilizar alguém, para
gerir a administração de seus perfis.

28
VIRGÍNIO apud MARINHO, op. cit., p. 25-26.
297

As contas virtuais que possuem valoração econômica, como é o caso de


instagrammers, canais, contas com moedas virtuais, carteiras virtuais, acervos digitais,
games, etc., são bens valoráveis, e desta forma, fazem parte do patrimônio objeto do direito
sucessório por meio do inventário.
Assim, em síntese, pode-se dizer que a herança digital é transmissão de bens e
serviços produzidos/alocados em ambiente virtual dada a natureza incorpórea, e que são de
titularidade do falecido.
Passe-se a análise da matéria legislativa acerca do tema.

4 A HERANÇA DIGITAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Consoante se depreende do estudo realizado até então, é perceptível que a legislação


civil brasileira é lacunosa em relação à matéria sucessória dos bens produzidos em ambiente
virtual, tanto é que juristas e profissionais ativos do direito apenas encontram na
interpretação analógica e nos instrumentos hermenêuticos, fragmentos de direito que possam
orientar a sociedade que busca pela divisão destes bens.

A realidade é inclusive descrita por Marco Aurélio de Farias Costa Filho:

Diante da ausência de qualquer disposição que trate especificamente dos bens


armazenados virtualmente no Código Civil, a transmissão desses bens através de
herança decorre de interpretação extensiva e sistemática. Assim, como acontece
com bens tangíveis e demais formas incontroversas de patrimônio, os direitos
sobre bens armazenados virtualmente advindos da sucessão ficam, em regra, com
os familiares mais próximos do falecido (...) segundo ordem prevista pelo Código,
ou com os legatários através de testamento.29

Nesta toada, sob o viés do ordenamento jurídico, ocorrendo à morte a transferência


do patrimônio dar-se-á mediante sucessão testamentária ou legítima.
Vale lembrar que o §2º do artigo 1.857 do Código Civil30 permite a inserção de bens
extrapatrimoniais no testamento, e, portanto, o conteúdo virtual pode ser disposto conforme
a vontade do titular falecido.

29
COSTA FILHO apud CARVALHO, Hannah. Herança digital e os conflitos entre a sucessão legítima e os
direitos personalíssimos do de cujus. Revista Jus Navigandi. Teresina, ano 24, n. 5979, 2019, s/p.. Disponível
em: https://jus.com.br/artigos/77707/heranca-digital-e-os-conflitos-entre-a-sucessao-legitima-e-os-direitos-
personalissimos-do-de-cujus. Acesso em: 18 maio 2020.
30
Artigo 1.857 - Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles,
para depois de sua morte.[...]§2º - São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda
que o testador somente a elas se tenha limitado.
298

Mas, e quando o falecido não deixa testamento, ou então, sua manifestação de


vontade em nada diz sobre a herança digital. Como proceder?
A dicção da norma do caput do artigo 1.791 do Código Civil31aponta que a herança
é transmitida em seu todo unitário. Embora não faça menção à nomenclatura bens digitais,
a norma é extensiva ao conjunto de bens materiais e imateriais, o que integra o instituto da
herança tradicional e digital.
Dada a vasta discussão a respeito do tema, repercute no ordenamento jurídico
brasileiro 02 (duas) correntes.
A primeira delas trabalha com a necessidade da transmissão da herança digital aos
herdeiros, seja por meio de testamento ou da sucessão legítima conforme a ordem de vocação
hereditária. Neste caso, alguns bens do acervo sucessório digital sofreriam proteção de leis
especiais, a depender de sua natureza, como é o caso da Lei nº 9.610/1998, também
conhecida como Lei dos Direitos Autorais. A segunda corrente, por vez, entende que os bens
digitais cessam com a morte e não podem ser transmitidosem razão da ofensa aos direitos da
personalidade do decujus.
A ausência de normas que regulamentam a herança digital, segundo Costa Filho32
torna instáveis as relações do post mortem, e, consequentemente, gera grave insegurança
jurídica.
Neste ínterim, Flávio Tartuce33explica que já tramitaram no Congresso Nacional
diversos projetos de leicom o fim de disciplinar a herança digital no âmbito da sucessão
legítima, contudo, todos foram arquivados.
Os primeiros passos ocorreram já no ano de 2012, com o Projeto de Leinº 4.099/2012
que visava inserir o parágrafo único34no artigo 1.788 do Código Civil, incluindo a
possibilidade de transmissão de bens digitais.

31
Proposta do artigo 1.791 – A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.
32
COSTA FILHO apud CARVALHO, op. cit., s/p.
33
TARTUCE. Flávio. Herança Digital e Sucessão Legítima. primeiras reflexões. Revista Jurídica Luso-
Brasileira. Lisboa, ano 5, n. 1, 2019, p. 873-874. Disponível em:
http://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/1/2019_01_0871_0878.pdf. Acesso em: 12 maio 2019.
34
Proposta de parágrafo único - Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos
digitais de titularidade do autor da herança.
299

O segundo foi oProjeto de Leinº 4.847/2012que buscouincluir os artigos 1.797-A a


1.797-C no Código Civil brasileiro35, esclarecendo quais os bens digitais que seriam
passíveis de sucessão e da responsabilidade que recairia aos herdeiros acerca desses bens.
O terceiro e último projeto que tramitou no Congresso Nacional foi o Projeto de Lei
nº 7.742/2017 que buscou dar destino às contas virtuais com o evento post mortem,
acrescentando o artigo 10-A36 na Lei nº 12.965/2014 que introduziu o Marco Civil da
Internet.
Apenso ao último projeto, seguiu ainda o Projeto de Lei nº 8.562/2017 que buscou
introduzir no Código Civil brasileiro as mesmas propostas de artigo do Projeto de Lei nº
4.847/2012.
Tartuce37explica que os arquivamentos dos projetos se deram em virtude das
projeções simplistas a respeito do tema, pois sequer continham estudos e abordagens
aprofundadas acerca da violação dos direitos fundamentais, tanto do falecido como de
terceiros com quem interagia virtualmente. Na redação proposta pelos referidos projetos,
Estado e a Comunidade estariam interferindo na vida privada dos indivíduos, alterando“o
regime de direito de propriedade do Direito das Coisas para os direitos da personalidade”38.
Em outras palavras, o falecimento daria azo para que os direitos de personalidade do
falecido se transformassem em conteúdo patrimonial.

35
Proposta do artigo 1.797-A - A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que
é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:I – senhas;II – redes sociais;III –
contas da Internet;IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.
Proposta do artigo 1.797-B - Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será
transmitida aos herdeiros legítimos.
Proposta do artigo 1.797-C - Cabe ao herdeiro:I - definir o destino das contas do falecido; a) transformá-las em
memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou;b)
apagar todos os dados do usuário ou;c) remover a conta do antigo usuário.
36
Proposta do artigo Art. 10- A - Os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas
de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito. §1º - A exclusão dependerá de
requerimento aos provedores de aplicações de internet, em formulário próprio, do cônjuge, companheiro ou
parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive.§2º -
Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações de internet manter armazenados os
dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito, ressalvado requerimento
cautelar da autoridade policial ou do Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda de tais
dados e registros.§3º - As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas mesmo após a comprovação
do óbito do seu titular, sempre que essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o cônjuge,
companheiro ou parente do morto indicados no caput deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo
de um ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o
usuário morto tiver deixado autorização expressa indicando quem deva gerenciá-la.
37
Ibidem, p. 876.
38
Ibidem, p. 876.
300

Por outro lado, as decisões em âmbito internacional têm tomadodireção oposta,


exemplo disso, é o caso que tramitou na Justiça Alemã39 cujo julgamento ocorreu em 12 de
julho de 201840.
O processo refere-se a uma adolescente de 15 (quinze) anos de idade, usuária da
mídia social Facebooke que faleceu em um acidente de metrô em Berlim no ano de 2012.
De acordo com informações reunidas nos autos, o evento da morte não estava
inteiramente esclarecido e havia suspeitas de suicídio e assédio moral no colégio em que a
menina exercia suas atividades escolares. Apenas com o acesso a conta virtual os familiares
poderiam esclarecer se o evento se tratou de suicídio ou acidente, auxiliando a linha de
decisão do processo de reparação de danos do transporte abarcado pelo acidente.
Em sede de primeiro grau, os pais ganham acesso a conta virtual, contudo, a decisão
foi revista em grau recursal, sob o fundamento que o acesso violaria o sigilo das informações
trocadas com outros usuários.
Laura Schertel Ferreira Mendes e Karina Nunes Fritz41explicam que o caso rendeu
recurso ao Tribunal de Justiça Federal da Alemanha, Bundesgerichtshof, que em decisão
proferida no ano de 2018 julgou procedente o acesso dos pais a conta da falecida.
Para a última instância42, assim como os bens materiais físicos que são transmitidos
por meio da sucessão universal, todo o conteúdo virtual também deve ser herdado, seja por
meio de testamento ou sucessão legítima, pois a legislação alemãnão faz distinção entre
herança patrimonial e herança existencial.
Outrossim, em observância ao Regulamento EU 2016/679 que regula o tratamento
de dados pessoais, foi observado que a proteção de dados não é aplicável a pessoas mortas,
o que pode ser uma falha, contudo, não a existindo o acesso dos pais as conversas e postagens
da filha não viola qualquer dado, eis que “[...]à herança digital não se opõe aos direitos de
personalidade post mortem dafalecida, ao direito geral de personalidade do de cujus ou dos

39
KAMMERGERICHT. Tribunal Regional Superior: Sentença contra a mãe queixosa - nenhum acesso dos
pais à conta do Facebook da filha falecida (PM 30/2017).Kammergericht, Berlin, 2017. Disponível em:
http://www.berlin.de/gerichte/presse/pressemitteilungen-der-ordentlichen-
gerichtsbarkeit/2017/pressemitteilung.596076.php. Acesso em: 20 maio 2020.
40
Vide BGH III ZR 183/17;
41
MENDES, Laura Schertel Ferreira; FRITZ, Karina Nunes. Case report: Corte alemã reconhece a
transmissibilidade da herança digital. Revista Direito Público. Porto Alegre, v. 15, n. 85, 2019, p. 194.
Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/3383/pdf. Acesso em:
20 maio 2020.
42
Idem, p. 194.
301

terceiros interlocutores, ao sigilo das comunicações, nem tampouco às regras sobre proteção
de dados pessoais”43.
Embora o tema herança digital esteja mais difundido em outros países, em especial
na Europa e na América do Norte, não se tem registros de regulamentação, e isso se deve,
conforme descreve Mendes e Fritz, a ausência da “cultura de decidir ainda em vida o que
será feito com todo o conteúdo produzido e armazenado nas redes sociais e em outras
plataformas digitais amplamente utilizadas após a morte”44, contudo, sua normatização
poderá ser útil para o deslinde de outras ações e inquéritos, a exemplo, a indenizatória
existente no caso de Berlin.
Em pesquisa45 realizada pode ser constatado que 52,6% (cinquenta e dois vírgula seis
por cento) dos entrevistados veem necessidade do estabelecimento de normas que
regulamentem a herança digital, enquanto que 39% (trinta e nove por cento) acredita ser
indiferente e 4,8% (quatro vírgula oito por cento) não vê necessidade de implantação.
Os dados coletados demostram que há uma reação social em torno da herança digital,
isto porque a composição de 79% (setenta e nove por cento) dos entrevistados compreende
a faixa etária até os 40 (quarenta) anos, ou seja, de indivíduos que estão amplamente
inseridosnos atuais contextos de inovação tecnológica e que tem se preocupado com os
futuros bens digitais que deixarão.
Vale lembrar que o assunto tem grande domínio nas esferas internacionais, tanto é
que existem empresas europeias que vem oferecendo serviços para administração da herança
digital.
O assunto é de extrema valia, carece de emaranhado jurídico e de debates amplos no
seio da educação jurídica, eis que os futuros profissionais que virão e aqueles que estarão
em constante especialização, precisam de nortes para orientar futuros clientes
webconectados.

CONCLUSÃO

As considerações levantadas no presente estudo, demostram uma rápida evolução da


sociedade e de sua interação com os meios tecnológicos. Em um curto lapso temporal, a

43
Idem, p. 194.
44
Idem, p. 190.
45
LEVISKI, Daiane Schneider. Pesquisa para produção científica. Disponível em:
https://drive.google.com/open?id=1G1WgxpNtIjgbdt5J15cm5vGrudb23BsA. Acesso em: 24 maio 2020.
302

sociedade humana que antes apenas tinha acessoa fotografias preto e branco, hoje dispõe de
memórias no acervo digital. O mesmo processo se deu com a digitalização de arquivos,
comércio e bancos de investimentos eletrônicos, mídias sociais e a dissipação dos trabalhos
com foco na interatividade humana.
Ao usufruirdos meios eletrônicos, cada indivíduo produz conteúdos virtuais que com
o evento da morte poderão ter sua titularidade transferida, seja por meio do testamento, que
atinge bens passíveis e não de valoração econômica, como por meio da sucessão legítima.
Lembrando que na última espécie de sucessão, apenas bens virtuais com valoração
econômica podem ser objeto de inventário, enquanto os bens afetivos ou que não são
passiveis de atribuição econômica, não podem ser transmitidos, o que leva muitos familiares
a buscarem na justiça o direito de herdar.
É de extrema valia elucidar que a possibilidade de disposição dos bens virtuais apenas
é possível por meia da interpretação das leis vigentes, uma vez que no ordenamento jurídico
não existem emaranhados que trabalham com a herança digital. Alguns dos projetos que
buscaram regularizar o instituto foram arquivados devido ao amplo debate que se tem a
respeito da violação dos direitos de personalidade do falecido, como de terceiros que poderão
ter sua intimidade abalada.
Neste passo, torna-se extremamente vital que os estudantes das ciências sociais
direcionam novos olhares para os contextos que vem surgindo na sociedade, a exemplo, a
herança digital. Grande parte dos ensinos brasileiros sequer cogita a possibilidade de se
herdar bens virtuais nas matérias de Direito Civil, visto que o Brasil não possui
regulamentação para tanto.
Esta lacuna jurídica causa grande e instável insegurança jurídica naqueles cidadãos
que conhecem o instituto, buscam o usufruir, mas são atingidos por decisões dispares quando
intentam na justiça o direito.
Assim, torna-se crucial a modernização do atual direito sucessório para fins de
garantir a efetividade do direito de herdar elencado na Constituição Federal, sem que se viole
direitos de terceiros e do falecido, mas também para não deteriorar as futuras relações
jurídicas, que com a ascensão da sociedade webconectada só tendem a se virtualizar.
303

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VENOSA, de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. v.1. 9ªed. São Paulo: ATLAS, 2009.
306

IMPACTOS DA ADVOCACIA FEMININA NA SEGURANÇA


PÚBLICA

Daniela Provin1

Resumo: Notadamente da experiência absorvida como Coordenadora da Comissão


Especial de Políticas Criminais e Segurança Pública da OAB Subseção de Bagé, RS, aliada
à participação no desenvolviento de projetos de fomento aos órgãos de segurança pública
deste município, oriundo do secretariado executado dentro do Conselho Comunitário Pró-
Segurança Pública de Bagé, RS, foi possível encontrar algumas premissas básicas da real
importância da participação da advocacia feminina junto ao sistema de segurança como um
todo, tendo em vista a inexorável percepção de que o modus operadi da condução dos
trabalhos erigidos pelas mulheres, advogadas, desvendam a possibilidade da realização de
um viés democrático e focado no desenvolvimento de uma política pública criminal que
atenda aos tão aclamados e buscados princípios e garantias da ressocialização e
manutenção do limite legal do uso da força com foco na garantia dos direitos humanos. O
objetivo é apresentar a imortância e os motivos da necessidade de se abrir espaços públicos
às mulheres, demonstrando que a política pública pode ampliar sua existência e real
aplicação, bem como a cidadania estará fortemente representada pela atividade essencial
da advocacia, gerando ganhos de melhorias quantitativas e qualitativas na persecução do
caminho constitucional e multicatado da segurança pública e da criminalidade, ainda tão
definidos como dever do Estado.

Palavras-chave: Segurança Pública. Mulheres. Advocacia. Cidadania.

INTRODUÇÃO

Imprescindível apontar a relevância que assume a atividade da advocacia no


cotidiano da segurança na vida cidadã. Partindo da premissa constitucional trazida pelo
texto do artigo 144 da nossa Magna Carta, a segurança pública é exercida pelos órgãos de
segurança pública, mas “dever, direito e responsabilidade de todos”. E aqui, neste todos
que se insere a atividade dos diversos órgãos que compõem a divisão tripartite do Estado,
há muito desenvolvida por Monstesquèu, bem como das demais instituições públicas com
assento constitucional, como é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil. Por certo,
mesmo que a advocacia tenha como função primordial [porém não exclusiva], sempre a
defesa dos direitos em sede de atuação judicial criminal, sua indispensabilidade é visível

1
Advogada. Pós-graduada em Direito Constitucional. Coordenadora da Comissão Especial de Políticas
Criminais e Segurança Pública da OAB Subseção de Bagé, RS. Secretária do Conselho Comunitário Pró-
Segurança Pública de Bagé, RS
307

em todos os setores da vida, seja ele público ou privado. O advogado promove a defesa dos
direitos individuais e coletivos e mais que isto, desenvolve o fortalecimento da cidadania
em vista de participações efetivas em conselhos comunitários e municipais, colaborando
em ações de natureza educativa e consultiva, promovendo da difusão do conhecimento à
atuação em prol de práticas desportivas e cuidados com a saúde, sempre visando o
aprimoramento da cultura da cidadania, do bem-estar coletivo e do respeito ao Estado.
A ampla gama de alcance desta atividade revela expressivo valor à sua existência e
à sociedade como um todo. Não podendo ser diferente quando o tema é segurança pública,
ainda que o garantidor protagonista seja o Estado.
Com base nesta convicção, é possível perceber que há uma concretude de atos e
ações que merecem destaque e maior fomento, a exemplo da atuação das mulheres
advogadas junto ao setor da segurança pública. E neste viés, muito embora se perceba em
estudos doutrinários e na própria praxis que há uma sutil, mas percebida, atuação feminina
que revela nova faceta da atuação no combate à criminalidade, a qual tem significativo
impacto na concretização do regime democrático e do Estado de Direito, ambos em que
escolhemos viver hoje no Brasil, é possível concebermos que a “mão” da advogada é uma
viabilidade real de impacto transversal sobre as questões de combate à criminalidade e
apoio à segurança pública.
É através da participação feminina na gestão de entidades ligadas à segurança
pública que se observa a concretização de garantias constitucionais e desenvolvimento de
políticas públicas que há muito estavam esquecidas pelos órgãos de execução deste
seguimento, tendo inclusive a visualização de uma atuação objetiva, sem excessivas
concessões e voltada ao pragmatismo, que rende resultados concretos para o incremento
da segurança pública em nosso Estado e Municípios, principalmente.

A ADVOCACIA COMO SUSTENTÁCULO DA CIDADANIA

Inexoralmente, não se pode deixar de tratar aqui acerca do conceito de cidadania, o


qual deve [e está] imbricado ao aparecimento do Estado Democrático de Direito, posto que
sua existência prossupôs [desde seu limiar] a participação do povo nas decidões políticas
de sua cidade [Cidade antiga: Grécia – Politeias, Roma – Civitas]. A cidadania é uma
concepção tão importante, que dela derivam o vínculo político e o vínculo social ocidental,
ou seja:
308

[...] deriva toda a concepção da organização política e notadamente a


democracia: suporte das representações sobre as quais se apoia o poder e
comanda a sua ligitimidade, ela permite construir uma comunidade política,
transcendendo os particularismos sociais; ela significa que a diversidade das
origens e das referências é sobredeterminada na ordem política pela existência
de uma “comunidade de cidadãos” (D. SCHNAPPER, 1994), que dispõem de
direitos idênticos2.

Contudo a cidadania enfrentou variabilidades. Se inicialmente por ela era conferida


a qualidade de participar da gestão “dos negócios da Cidade, estando o indivíduo
plenamente integrado à comunidade política dos cidadãos”, e havia o consenso geral de
que esta comunidade era fundadada na igualdade formal e material, a cidadania definia-se
pelo conjunto da participação pessoal no interesse público e também no dever de adesão às
regras postas (modelo mais remoto da política), mas “nem todos eram considerados
cidadãos, como as mulheres, as crianças, os escravos, os estrangeiros e os anciões”
(GUARINELLO Apud PINSKY, 2006, p. 33)3.
Após este período, na França – séc. XX –, passou-se a observar que a cidadania,
conceito inclusivo político, por vez possuía também um viés exclusivo, quando da existêcia
de outras identidades sociais, as quais acabavam por não fomentar a fidelidade política ao
Estado-nação e estariam, assim, transgredindo o conceito de nacionalidade tido como
condição necessária para se tornar cidadão. Surgiu então o sentido jurídico, exsurgindo a
cidadania como “estatuto jurídico”, onde se observou a aclamação do povo por direitos de
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, os quais referenciavam o direito do pensamento e de
ser visto como ser humano pensante.
Nesse tempo, houve uma ampliação do conceito de cidadania, onde se ligava o
direito ao sufrágio como sendo a ‘cidadania politica’ e o surgimento dos direitos sociais à
‘cidadania social’. Mesmo assim, a nacionalidade permaneceu rígida.
É com a flexibilização do direito a voto aos estrangeiros que o liame tradicional
entre nacionalidade e cidadania vai afrouxando, ao passo que outros tantos fatores
começam a serem vistos, como, por exemplo: os fluxos migratórios, o aparecimento de
empresas estrangeiras em terras nacionais e outros ligados aos grupos de identificação de
pessoas. Desde então, surgiram vários movimentos reativos e a certeza de que “a cidadania

2
CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução: Marçal Justem Filho. Belo Horizonte: Fórum,
2009 (Coleção Fórum Brasil-França de Direito Público; 1 – pág. 252.
3
“SEGURANÇA PÚBLICA: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOB AS VERTENTES CONTITUCIONAIS” -
Fernanda Mendes Sales Alves, Ana Flavia de Andrade Nogueira Castilho e José Eduardo Lourenço dos Santos
- https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/1/2020_01_0981_1004.pdf
309

tende a esposar a diversidade constitutiva do social”4, resultando em outras consequências


mais nefastas:
“[...]Rogers apud Dupas (1998, 122), assevera que “a exclusão social é em sua
essência multidimensional, incluindo não só a falta de acesso a bens e serviços,
mas também a bens e serviços públicos decentes, segurança, justiça, cidadania”
7, ou seja, está intimamente ligada às desigualdades sociais, econômicas,
culturais e políticas.”5

De fato, todas estas instabilidades refletem a emergência de um novo conceito de


cidadania, que vai estar muito mais ligado ao seu conteúdo científico-social ao antes posto,
sentido técnico-jurídico como “nacionalidade”. De fato:

“O princípio da igualdade é o núcleo da cidadania. Contudo, esta –


compreendida aqui não no seu sentido técnico-jurídico, mas sim como
mecanismo jurídico-político de inclusão social – apresenta-se em uma
pluralidade de direitos reciprocamente partilhados e exercíveis contra o Estado.
Não se trata de um conceito estático. Pode-se afirmar que há uma permanente
ampliação da cidadania com a emergência de novos direitos. Assim, é que se
pode constatar uma evolução do conceito de cidadania de um sentido estrito para
uma concepção ampla”.6

Conforme se pode observar, a cidadania tem se apresentado instável quanto à


relação Estado e indivíduo, uma vez que busca muito mais uma prestação social e o
atendimento dos diferentes interesses coletivos e difusos. Posto isto, é que fica a
constatação de que há a premente necessidade de haver um tratamento diferenaciado de
grupos sociais por meio de políticas públicas que desenvolvam a realização do ideal de
igualdade.
Nesta visão de amplo aspectro da cidadania, não se pode olvidar que a Constiuição
Cidadã resultou em verdadeiro pacto social, mantendo a higidez das instituições públicas,
dotando-as de autonomia, criando extenso rol de direitos e garantias individuais e coletivas,
assegurando os direitos sociais e da ordem econômica, e, para que se faça garantir o direito
a tudo isso e à defesa de todos, deu à Ordem dos Advogados do Brasil o status de
indispensabilidade:

“Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável


por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. 7

4
Idem 1, pág. 262.
5
Apud 2, pág. 990.
6
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e
além de Luhmann e Habermas / Marcelo Neves [tradução do autor] - 2ª edição – São Paulo: Martins Fontes,
2008 (Justiça e Direito) – pág. 175.
7
Constituição Federal de 1988 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
310

A advocacia exerce valorozo mister no seio da administração da justiça e luta,


diária e incessantemente, para que sua posição e os direitos de seus mandatários sejam
levados a sério e abraçados pela Segurança Jurídica, pelo Devido Processo Legal, sem,
contudo, esquecer-se de sua valiosa condição de garantidora dos direitos da cidadania.
A Ordem dos Advogados têm se mostrado, ao longo de vários anos, uma instituição
de relevante valor social e é nela que encontramos inúmeros fatores de desenvolvimento
dos direitos dos cidadãos. Atrelada ao império da Constituição Democrática, a Ordem não
se esquece de propiciar o crescimento social e o desenvolvimento de políticas públicas que
tragam à sociedade condições de convivência harmônica, conhecimento dos seus deveres
e direitos e, acima de tudo, fortificando a isonomia dos indivíduos perante a esfera pública,
uma vez que se encontra ativa no debate pluralista, sem exclusão dos interesses público,
administrativo e político.
É por meio do exercício da advocacia que se garante o alcance dos diversos sujeitos
de direito, e assim fortalecendo a democracia e o acesso à justiça para todos. Alhures
salientou Ruy Azevedo Sodré8:

"o advogado exerce função social, pois ele atende a uma exigência da sociedade.
Basta que considere o seguinte: sem liberdade, não há advogado sem a
intervenção não há ordenamento jurídico e sem este não há condições de vida
para a pessoa humana. Logo, a atuação do advogado é condição imprescindível
para que funcione a justiça. Não resta, pois, a menor dúvida de que o advogado
exerce função social".

Portanto, inegável a necessidade de se perpetuar a garantia da cidadania por meio


da atividade da advocacia, fazendo se aproximarem os conceitos de direitos humanos e
sociais com a necessidade de valoração do dever cívico e cumprimento das legislações
pátrias.

VICISSITUDES ATUAIS DA SEGURANÇA PÚBLICA

Ao cabo dos anos de 1980 a sociedade brasileira vem marcada pela democratização
política que traz importantes pelas mudanças na relação entre polícias e sociedade,
fomentadas pela necessidade de novos modelos de polícias e política, bem como pelos

8
PORTO, Éderson Garin. A função social do advogado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina,
ano 13, n. 1879, 23 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11634. Apud NÓBREGA, Airton
Rocha. A função social do advogado. Revista Jurídica Consulex. V. 5, n 112, p. 56-7, set. 2001. Neste ensaio,
o autor infere sobre a história da profissão da advocacia, ressaltando que foi Tibério o primeiro a ensinar
publicamente a jurisprudência.
311

movimentos sociais. A Segurança Pública, a partir de então, mantém relação ainda fechada
na lógica do direito penal e inserida no círculo da atividade policial, apenas.
Posteriormente, com o advento da Lei n. 11.707, de 19 de junho de 2008, que instituiu
o Programa Nacional de Segurança Pública, assentado sob grandiosos rumores e standarts,
foi criado um plano de enfrentamento aos diversos fatores que implicavam na criminalidade
social, ecoando como uma resposta do Estado ao seu dever de dar/garantir segurança pública
a todos os cidadãos, visando ainda ao comando legal da ressocialização, fenômeno de difícil
conjectura dentro da sociedade em que vivemos.
A novel legislação federal descreveu em seu artigo 2ª seu desiderato: “destina-se a
articular ações de segurança pública para a prevenção, controle e repressão da
criminalidade, estabelecendo políticas sociais e ações de proteção às vítimas”. Criaram-se,
assim, os Gabinetes de Gestões Integradas – GGI, para garantir a participação da sociedade
civil nos projetos do Governo Federal encampados nos Estados e Municípios da Federação.
E foi além, criou o projeto “Mulheres da Paz”, destinado à capacitação de mulheres
socialmente atuantes nas áreas de implementação do plano de segurança pública nacional.
No entanto, mesmo dispendendo vultosos recursos, a crise da segurança pública
permaneceu, ainda mais por recuo de lideranças políticas que se viram atingidas pela opinião
pública quando previram que do apoio governamental aos agentes de segurança e suas
instituições fulminariam muitos de seus eleitores ou apoiadores. Lástima.
Mas a segurança pública faz parte inarredável do rol constitucional dos Direitos
Sociais, já que se relaciona com a incolumidade pessoal e patrimonial dos cidadãos e, por
sua natureza complexa, está a depender da conjunção de múltiplas variáveis [políticas,
econômicas, culturais, orçamentárias, internacionais etc], o que torna evidente que seu
centro de atuação fica deslocado para “um universo maior de sujeitos de direito e cenários
que não exclusivamente o Estado, chamando à colação tanto a Sociedade Civil como o
Mercado para assumirem sua quota de responsabilidade no particular”9 precisa ser
discutida e solucionadas suas mazelas, uma vez que estabilidade da paz e da ordem social
não se faz somente com as legislações, mas com a repressão daqueles que atentam contra
elas.
Já mencionado em outros espaços, são três os grandes temas de debates políticos e

9
LEAL, Rogério Gesta. Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – os
desafios do Poder Judiciário no Brasil. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2009 – pág. 9.
312

sociais a serem dialogados e prestigiados pelos governos e pela sociedade: a educação, a


saúde e a segurança. Mas dito isto, também evidenciamos que há certa desvantagem entre
eles, posto que a educação e a saúde possuem seus limites contitucionais [rubrica certa,
mesmo que vivenciemos nesta atual conjuntura de crise sanitária ocasionada pelo novo
coronavírus os esforços do Governo Federal, neste ano de 2021, para alterar esta margem
legal a fim de fomentar outros setores atingidos pela pandemia], ao passo que o mesmo não
ocorre com a segurança pública, cujo financiamento não possui destino certo e específico
dentro do plano das autoridades públicas. Isto é fator de grande falência do sistema
criminal, mormente o penitenciário, que está há tempos sucateado, mas ainda assim, sendo
o objeto de destino do sistema de justiça criminal.
Para além da crise lato sensu acima apontada, a segurança pública sofre também
com a crise strictu sensu, de reluzente clarividência no desamparo dos profissionais que
atuam na área da segurança pública, sem salários compatíveis com o risco da profissão,
sem material adequado para o trabalho e sem reciclagem. Uma dura realidade, que não se
esgota nestas pequenas especificanções:

“Por outro lado, as instituições de segurança pública e justiça criminal, premidas


pelas cobranças da mídia e da opinião pública, são regidas pela ideia de que algo
precisa ser feito a qualquer custo para conter os “criminosos”, abrindo margens
para medidas de extremo rigor penal e, mesmo, para reforçar políticas criminais
anacrônicas.

Na falta de parâmetros mais modernos sobre como lidar com crime, violência,
manifestações e quaisquer ameaças à ordem social, recorre-se ao discurso de que
o país tem leis lenientes e que é necessário endurecer o tratamento penal. Todavia,
ao fazer isso, as instituições erram no diagnóstico e erram no remédio.

E, por essa perspectiva, na ausência de uma política de segurança pública pautada


na articulação de energias e esforços para a garantia de direitos, no respeito e na
não violência, deixamos de enfrentar o fato de que o nosso sistema de justiça e
segurança necessita de reformas estruturais mais profundas. E não se trata de
defendermos apenas mudanças legislativas tópicas ou, em sentido inverso,
focarmos apenas na modernização gerencial das instituições encarregadas de
prover segurança pública no Brasil.

Nosso desafio é adensar politicamente a defesa de que, exatamente, essas são duas
faces complementares de um mesmo processo e que nenhuma delas conseguirá
êxito permanente sem que a outra seja simultaneamente assumida também como
prioridade. Temos que modernizar a arquitetura institucional que organiza as
respostas públicas frente ao crime, à violência e à garantia de direitos”. 10

10
ESTADO, POLÍCIAS E SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL. Renato Sérgio de Lima, Samira Bueno e
Guaracy Mingardi. Rev. direito GV vol.12 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2016.
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322016000100049&script=sci_arttext&tlng=pt
313

Definitivamente, encarar o aparelhamento da segruança pública e aplicar os


mecanismos das políticas criminais há contar com esforços político e social, uma vez que
não cabe mais espaço para que a sociedade entregue às mãos do Estado todo o custo da
manutenção da segurança pública, uma vez que para sermos cidadãos socialmente
desenvolvidos é necessário discutir, criar redes e incentivar de todas as formas os órgãos
de segurança pública dos nossos Municípios, Estados e País, colaborando para o bem-estar
de todos e, assim, fomentar o desenvolvimento econômico, inclusive.

ADVOGADAS NA GESTÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE SEGURANÇA PÚBLICA:


QUESTÃO DE NECESSIDADE

Muito tem se visto acerca da necessidade multisetorial do combate à criminalidade.


E nesse viés de cidadania ativa, que condensa ações de políticas sociais às ações de
instituições públicas ou privadas, insere-se com melhor técnica a prestação da assessoria e
de decisões com participação de mulheres no diálogo e execução dos trabalhos afetos à
segurança pública.
Afinal, a história recente das políticas de segurança nos mostra que, entre as ações
que mais tiveram êxito em conter as taxas de violência, foi o envolvimento com a
comunidade um dos meios mais eficientes de resultados positivos, quando associado às
práticas integradas de gestão, onde se verifica uma irredutível aliança entre técnica e política.
E nessa aliança, as melhores práticas concentraram suas energias no tripé: aproximação com
a população, uso intensivo de informações e aperfeiçoamento da inteligência.

“Apesar das diversas situações enfrentadas pelas mulheres nos ambientes


organizacionais, Aparício et al. (2009) afirmam que elas interagem
harmoniosamente com os outros indivíduos, com o ambiente e a organização,
favorecendo a diminuição do preconceito e da discriminação. Segundo os autores,
dois fatores têm auxiliado na diminuição das barreiras impostas pela sociedade e
pelas organizações: a ascensão da mulher no mercado de trabalho e o
comprometimento com o desenvolvimento de sua carreira”. 11

Neste período de jornada junto à Coordenação da Comissão Especial de Políticas


Criminais e Segurança Pública da OAB Subseção de Bagé, atuando em conjunto no

11
MULHERES NA POLÍCIA CIVIL: UM OLHAR SOBRE AS RELAÇÕES DE GÊNERO E IDENTIDADE.
Patrícia Augusta Pospichil Chaves Locatelli, Nádia Bruetta, Luana Yara Miolo de Oliveira e Valmírira
Carolina Piccinini. Gestão Contemporânea, Porto Alegre, ano 10, n. 14, p. 9-34, jul./dez.2013 Disponível em>
http://seer2fapa.com.br/index.php/arquivo>
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/96847/000915787.pdf?sequence=1
314

secretariado do Conselho Comunitário Pró-Segurança Pública de Bagé, compartilhando


experiências e dialogando com as diversas instituições e atores de segurança pública, da
cidade de Bagé/RS, foi possível perceber que a advocacia possui relevante papel no contexto
de fomento de políticas públicas que atendam à área da segurança pública nos seguimentos
de incentivo aos órgãos de execução desta atividade, na formulação de projetos que visem à
obtenção de recursos financeiros ao aparelhamento das casas prisionais e dos servidores,
bem como no desenvolvimento de palestras sobre criminalidade, participação de redes de
apoio ao combate de violência doméstica, infantil entre outras, bem como no atendimento
das políticas públicas aos encarcerados e de bem-estar da população.
Na participação de diversas reuniões no seio do Grupo de Gestão Integrada
Municipal – GGI-M (programa criado pelo Fundo Nacional da Segurança Pública e presente
em muitos municípios do país) foi possível desenvolver um pouco do trabalho de fomento à
atuação dos órgãos de segurança pública, por meio da colaboração de entendimento das
legislações e dos projetos já formalizados pelos organismos e agentes de segurança, os quais
surgiam na busca de apoio de forma vertiginosa. Esta atuação da advocacia dentro dos
grupos de segurança pública faz brotar diversas possibilidades de apoio pela iniciativa
privada para o entendimento de que a política pública da segurança, para além de dever do
Estado, o é também de todos, assim como um direito, e estes devem ser buscados de forma
democrática e plural, dentro dos limites da lei, situação que, com maior certeza podemos
trazer ao braço da advocacia, a qual possui plenas condições de dialogar com todas as esferas
de poder, inclusive comunitárias, pois desatrelada de partidarismos, mas com vistas a
conduzir a realização das políticas públicas entre seus atores sempre fazendo prevalecer o
valor social da realização e, principalmente, das melhores soluções e consequências destas
para a sociedade e para o cidadão.
O amplo espectro de atuação da advocacia faz refletir o quão importante é esta
profissão para a sociedade como um todo. Para além do atendimento privado ocorrido do
interior dos escritórios, a advogada e o advogado possuem uma missão institucional, quase
pessoal, de garantir que os mais basilares direitos humanos estejam sendo respeitados, assim
como de participar para que haja o desenvolvimento de políticas públicas que façam a
diferença.
315

Nesse ínterim, de singular observação estão as ações realizadas pela mulher


advogada. A advogada possui uma condição de garantir a reunião de ideias e de execução
muito rápidas e eficientes dentro do contexto do desenvolvimento dos trabalhos sociais.
É a mulher advogada que acaba sendo obsequiada e também solicitada, por inúmeras
vezes, para servir de elo entre o sistema e o chamamento social. Muito se tem feito para
minimizar as dificuldades financeiras dos órgãos de segurança pública, dadas as ineficácias
das legislações administrativas, porém há muito que se fazer em termos de diálogos com a
sociedade de maior vulnerabilidade social e a iniciativa privada, para que se demonstre a
importância deste investimento social.
Ciclos de palestras em escolas ajudam a mulher advogada a levar o conhecimento da
lei a quem dela é despido. Muito há de apoio quando há a realização de visitas aos institutos
penais e a pactuação de trabalho em conjunto na criação de programas que dirimam as
enormes distorções do cárcere das mulheres para o dos homens [o que acaba melhorando o
trabalho da polícia penal, inclusive].
Assim, o diferencial da advogada na seara das políticas de segurança pública resta de
insofismável importância, uma vez que o caráter de manejo com o leque de fatores que
englobam a criminalidade é inerente à posição de excelência que as mulheres, no geral
assumem, de: coordenação, articulação e integração.
No entanto, por melhores que sejam essas práticas de gestão, sem uma mudança
substantiva na estrutura normativa das polícias e do sistema de justiça criminal, o quadro de
insegurança ainda possui contornos dramáticos. Por isso que a atuação da mulher advogada
é, sem sombra de dúvidas, o melhor caminho, hoje, para as articulações das diversidades
sociais no combate à criminalidade e no fomento à segurança pública.

CONCLUSÃO

A segurança pública deve ser pensada do modo de compartilhamento de atuações e


responsabilidades entre as esferas de poder, com vistas ao atendimento dos múltiplos fatores
bio-psico-sociais que englobam o fator da criminalidade.
Dentro do Estado Democrático de Direito as melhores práticas para a redução da
violência e da criminalidade são a toda evidência a imprescindível aproximação com a
população, o uso intensivo de informações e o aperfeiçoamento da inteligência e da
investigação, tendo como fator de desenvolvimento da cidadania, a atuação da advocacia
316

nos conselhos municipais e, principalmente, a participação da mulher advogada nas


discussões acerca da temática, dado seu carater de excelência na coordenação de integração
nos organismos de combate e de execução de políticas de efetivo desenvolvimento social da
população.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Constituição Federal de 1988 -


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução: Marçal Justem Filho. Belo


Horizonte: Fórum, 2009 (Coleção Fórum Brasil-França de Direito Público; 1 – pág. 252.

LEAL, Rogério Gesta. Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais


Sociais – os desafios do Poder Judiciário no Brasil. Livraria do Advogado: Porto Alegre,
2009.

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de
Direito a partir e além de Luhmann e Habermas / Marcelo Neves [tradução do autor] -
2ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 2008 (Justiça e Direito).

PORTO, Éderson Garin. A função social do advogado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-
4862, Teresina, ano 13, n. 1879, 23 ago. 2008. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/11634. Apud NÓBREGA, Airton Rocha. A função social do
advogado. Revista Jurídica Consulex. V. 5, n 112, p. 56-7, set. 2001. Neste ensaio, o autor
infere sobre a história da profissão da advocacia, ressaltando que foi Tibério o primeiro a
ensinar publicamente a jurisprudência.

ESTADO, POLÍCIAS E SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL. Renato Sérgio de Lima,


Samira Bueno e Guaracy Mingardi. Rev. direito GV vol.12 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2016.
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-
24322016000100049&script=sci_arttext&tlng=pt

MULHERES NA POLÍCIA CIVIL: UM OLHAR SOBRE AS RELAÇÕES DE GÊNERO


E IDENTIDADE. Patrícia Augusta Pospichil Chaves Locatelli, Nádia Bruetta, Luana Yara
Miolo de Oliveira e Valmírira Carolina Piccinini. Gestão Contemporânea, Porto Alegre, ano
10, n. 14, p. 9-34, jul./dez.2013 Disponível em> http://seer2fapa.com.br/index.php/arquivo>
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/96847/000915787.pdf?sequence=1
317

AUTOCOMPOSIÇÃO: A MEDIAÇÃO COMO FORMA DE


RESOLUÇÃO DE CONFLITOS PARA O ALÍVIO DO PODER
JUDICIÁRIO

Daniela Salhenaves Antolini1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo a análise acerca da técnica autocompositiva
da mediação como meio de resolução de conflitos com o fim de diminuir o excessivo número
de demandas no Poder Judiciário, uma vez que o judiciário está em crise, pois existe uma
cultura processual que está enraizada na mente do cidadão brasileiro que é a busca judicial
pelos seus direitos. Diante disso, essa cultura resulta na ineficiência da Jurisdição Civil,
causa um grande inchaço no sistema judiciário brasileiro e coloca em risco a efetividade do
processo o que compromete a cidadania. Na nova sistemática do Código de Processo Civil,
os métodos autocompositivos foram instrumentalizados com a finalidade de possibilitar aos
litigantes a busca de solução das suas divergências, construindo de forma dialogal e
voluntária o objetivo-fim, que é a pacificação social sem necessitar recorrer ao Poder
Judiciário, no qual já está caracterizado pela morosidade e cultura da litigiosidade. Assim,
cresce a importância de analisar o método da mediação para fomentar este meio cooperativo
de pacificação social e uma mudança de paradigma do modelo tradicional de resolução de
conflitos que influenciará o operador do Direito na necessidade de aprofundamento e
conhecimento para a prática cotidiana.

Palavras-chave: Mediação. Autocomposição. Resolução de conflitos. Novo Código de


Processo Civil.

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

Não há dúvidas quanto ao altíssimo índice de litigiosidade que se instaurou em


nosso país e nem que o método exclusivamente judicial de solução de conflitos não está
dando conta de resolver as demandas.
Deste modo, o sistema processual civil com o advento da Lei nº 13.105, de 16 de
Março de 2015, acolheu significativas e inovadoras modificações, sobretudo no que se
refere aos métodos autocompositivos como a mediação e conciliação.

1
Advogada, inscrita na OAB/RS 102.128; Especialista em Direito Civil e Processual Civil pelo IED – Instituto
Elpídio Donizetti, em parceria com a FEAD – Centro de Gestão Empreendedora. Secretária da Comissão da
Mulher Advogada – Subseção de Tupanciretã/RS – Gestão 2019/2021. E-mail: daniela.antolini@hotmail.com
318

A nova sistemática processual civil incorporou o denominado sistema multiportas,


em que se conjugam ao modelo jurisdicional tradicional, os chamados meios adequados de
solução de conflitos. Com isso, pretende-se amenizar a crise estrutural que acomete o sistema
judicial, incapacitado em compor os litígios de forma justa, provocado pelo
congestionamento exponencial de demandas, consequência de uma cultura de litigiosidade.
A presente proposta de pesquisa bibliográfica compreende uma abordagem analítica
de questões relacionadas ao tema, com ênfase na visão de alguns doutrinadores baseados em
diferentes concepções, a fim de fundamentar o texto que tem como problemática a técnica
autocompositiva da mediação como forma de resolução de conflitos.
Esta proposta de pesquisa bibliográfica compreende uma abordagem analítica, com
ênfase na visão de alguns doutrinadores que já discutiram as questões relacionadas ao tema
proposto, no entanto foi realizada uma seleção de autores, análises e comparações das
diferentes concepções apresentadas, para fundamentar o texto que busca analisar o método
autocompositivo da mediação no novo Sistema Processual Brasileiro, bem como fazer uma
análise interativa entre a Lei nº 13.105, de 16 de Março de 2015 e a Lei 13.140/2015, de 26
de Junho de 2015 (Marco Legal da Mediação).
Trata-se de um estudo de extrema relevância social, pois apresenta uma possibilidade
de reflexão, uma vez que os métodos de resolução de conflitos podem ser usados para
substituir a resolução judicial, prática esta tão recorrente para a garantia de direitos.
Insta salientar que, o tema mediação é uma tarefa que está longe de terminar, pois a
cada dia, novas maneiras de atuação são necessárias para que se possa atender às mutantes
carências da sociedade.

2. MEDIAÇÃO: CONCEITO, CARACTERÍSTICAS E NATUREZA JURÍDICA

O instituto da mediação estabelece um dos meios alternativos de solução de conflitos,


no qual a participação de um terceiro imparcial é o de exercer o papel de mostrar às partes
em litígio os pontos conflitantes e, orientá-las a construírem um diálogo consistente,
objetivando a superação das diferenças para um resultado satisfatório.
A mediação, de acordo com a definição dada pelo art. 1º, parágrafo único da Lei nº
13.140/2015, é “[...] a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório,
que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver
319

soluções consensuais para a controvérsia”.2 Do art. 165, § 3º do Código De Processo Civil


extrai-se o seguinte conceito:

Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de


conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e
mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e
estimular a autocomposição.
[...]
§ 3º O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo
anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os
interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da
comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem
benefícios mútuos3.

A principal finalidade da mediação é gerar a resolução de conflitos entre os


mediandos, pois a mediação atenta-se ao problema, de modo a garantir uma relação futura
entre os envolvidos, deste modo, ela é uma técnica de solução de litígios e realizado de forma
mais rápida, contribuindo para a contenção de gastos e tempo dos envolvidos.4
Considera-se, assim, que a mediação é apresentada como sugestão transformadora
do conflito, já que não tende à resolução deste por um terceiro, mas pelos próprios
envolvidos, apenas auxiliadas por este, o mediador, que desempenha o papel de ajuda-las na
reestruturação da relação conflituosa.
O que se anseia com a mediação é permitir outra visão de análise pelas partes, já que,
ao invés de continuarem focando apenas suas posições, este método promove que elas
voltem sua atenção para os exatos interesses envolvidos.
A principal característica da mediação enquanto técnica que tem fim a
autocomposição é a presença de um terceiro imparcial, que atuará auxiliando e
impulsionando as partes a adotarem uma postura solidária em prol da concretização de
interesses comuns e da superação de desavenças.

2
BRASIL. Lei nº 13.140, de 26 de Junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de
solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; altera a
Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto nº 70.235, de 6 de Março de 1972; e revoga o § 2º do art. 6º
da Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/Lei/L13140.htm>Acesso em: 19 de Agosto de 2020.
3
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de Março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015- 2018/2015/Lei/L13105. htm>Acesso em: 19 de Agosto de
2020.
4
SALES, Lília Maia de Moraes. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.354.
320

De acordo com Coloiácovo, as principais características da mediação são: a


voluntariedade, a confidencialidade, a flexibilidade e a participação ativa, conforme assim
explana:

Emana a voluntariedade do fato do mediador ser indicado ou aceito pelas partes


envolvidas na controvérsia.
A confidencialidade se manifesta no aspecto das partes não terem conhecimento
das informações descobertas pelo mediador, bem como a promessa de que os fatos
revelados estão garantidos pelo sigilo profissional.
Quanto à flexibilidade, esta se caracteriza em função do mediador possuir ampla
margem de liberdade para ditar as regras do processo, ressalvados alguns
princípios básicos, pois o mediador pode definir o cronograma, o local e tipo de
reunião, valendo-se de sua experiência, atentando a peculiaridade do conflito e as
características das partes.
No último aspecto fica demonstrada a capacidade das partes realizarem o acordo
sem delegar ao mediador a tomada de decisões, pois a mediação é instrumento que
permite a participação ativa dos indivíduos na busca de uma solução para os seus
conflitos.5

Durante a convivência do grupo (em família, no trabalho, na vizinhança, e etc),


ocorrem discórdias, e estes levados ao judiciário podem conseguir uma solução jurídica,
sem, no entanto, resolver a verdadeira questão conflituosa. No instituto da mediação, pela
sua informalidade, as partes podem debater mais à vontade o fator de divergência.
Assim, ao buscar sistema judicial tradicional para tais tipos de conflitos, corre-se o
risco de afastar ainda mais as pessoas que são forçadas a conviver, pois tal sistema tem
aspecto litigante. Seu jeito de agir se direciona nas duas partes em combate, para ao final se
conhecer um ganhador e um perdedor, ligados a uma decisão estabelecida com alicerce no
ordenamento jurídico.
O balanceamento da relação entre as partes é uma das primazias da mediação e ela é
obtida quando se consegue a pacificação dos conflitos. Para tanto é preciso dar a ambas as
partes a chance de se manifestar e a garantia da compreensão das ações que estão sendo
desenvolvidas.6
Insta salientar que o artigo 166 do Código de Processo Civil aplica alguns princípios
informadores essenciais para a mediação sendo eles: “A conciliação e a mediação são
informadas pelos princípios da independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade,

5
COLOIÁCOVO, Juan Luis; COLOIÁCOVO, Cynthia Alexandra. Negociação, Mediação e Arbitragem:
teoria e prática. Tradução de Adilson Rodrigues Pires. Rio de janeiro: Forense, 1999, p. 71.
6
SOUZA, Zoraide Amaral de. Arbitragem – Conciliação – Mediação nos Conflitos Trabalhistas. São
Paulo: LTr, 2004. p. 76.
321

da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada” 7. A Lei de


Mediação, em seu artigo 2º8 repete estes mesmos princípios e lista mais três: isonomia entre
as partes, busca do consenso e boa-fé.
Quanto à natureza jurídica da mediação, a mesma apresenta natureza de contrato. As
partes envolvidas na mediação reúnem-se com vistas à obtenção de um ponto em comum e
para tal são auxiliados por um terceiro contratado que exercerá seu mister orientando-os na
produção de consequências jurídicas.
O contrato de mediação pode ser classificado como: plurilateral, consensual,
informal e oneroso. Acerca do tema, Braga Neto explana:

[...] pode-se classificar o contrato de mediação como (i) plurilateral, (ii)


consensual, (iii) informal e (iv) oneroso. É plurilateral envolvendo um mínimo de
três participantes, os mediandos e o mediador; É consensual, pois nasce da vontade
conjunta das partes dirigida a uma finalidade; É informal porque não apresenta
regras rígidas de procedimento como acontece na jurisdição; É oneroso porque
haverá remuneração do mediador pelos serviços prestados9.

Isto posto, contudo a percepção de que a mediação tem natureza jurídica de contrato,
endente-se que tal natureza não reflete as complexidades da modalidade e que tal adoção
entrega um ideário sensivelmente menor do que realmente representa.
A mediação é firmada na soberania da vontade das partes, instituindo, eliminando ou
transformando direitos, devendo constituir-se de objeto lícito e não defeso em lei, razão pela
qual estão presentes os elementos formadores do contrato, tendo como objeto a conduta
humana, pois seu intuito é a resolução dos conflitos relativos à interação do ser na
sociedade10.

7
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de Março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015- 2018/2015/Lei/L13105. htm>Acesso em: 19 de Agosto de
2020.
8
Art. 2º A mediação será orientada pelos seguintes princípios:
I - imparcialidade do mediador;
II - isonomia entre as partes;
III - oralidade;
IV - informalidade;
V - autonomia da vontade das partes;
VI - busca do consenso;
VII - confidencialidade;
VIII - boa-fé.
9
BRAGA NETO, Adolfo. Reflexões sobre conciliação e a mediação de conflitos. In: SALLES, Carlos Alberto
de. (coord.). As grandes transformações do Processo Civil brasileiro: Homenagem ao professor Kazuo
Watanabe. São Paulo: Quartier Latinm, 2009, p. 496.
10
CACHAPUZ, Rosane da Rosa. Mediação nos Conflitos & Direito de Família. 1ª ed., 4ª. Tiragem. Curitiba:
2003. p. 41
322

Deste modo, a mediação constitui técnica de pacificação de natureza


autocompositiva e voluntária, no qual um terceiro, imparcial, atua de forma ativa ou passiva,
como facilitador do processo de retomada do diálogo entre as partes, antes ou depois de
instaurado o conflito, possui natureza contratual, pois o acordo nela realizado nasce da
vontade das partes, criando, extinguindo e modificando direitos.

3. ROMPIMENTO DE PARADIGMAS E TRANSFORMAÇÃO DA CULTURA


JURÍDICA

No que diz respeito às formas de solução de conflitos, a tradição instituída é a de que,


todo e qualquer conflito deva ser levado ao Poder Judiciário. Emana daí, a disseminação de
uma cultura denominada de judiciarista ou demandista que vê o conflito a premência da
propositura de uma ação judicial.
A sociedade do século XXI identifica novos valores sociais e o direito volta-se para
o ser humano em sua integralidade, em seu aspecto emocional e afetivo. Por outro lado, esta
mesma sociedade ainda traz em suas raízes o conceito de que apenas o Estado em sua função
jurisdicional é capaz de resolver os conflitos a ela inerentes.11
Para romper essa barreira, é necessária a formação de uma cultura de aplicação
efetiva das formas alternativas de resolução de conflitos. Uma quebra de paradigma.
Neste sentido, Levy explana:

A mediação sugere uma mudança de paradigma, uma nova maneira de interação


nos conflitos interpessoais. Traz à tona o desejo das pessoas em resolver seus
próprios conflitos e realizar suas próprias escolhas. Propõe a autodeterminação e
autonomia dos mediados. Incentiva o olhar para um planejamento do futuro, que
se pretende tranquilo e promissor, deixando as mágoas e os rancores no passado.12

A Jurisdição estatal encontra-se de alguma maneira interiorizada no cidadão


brasileiro, e a mudança de postura é o caminho para harmonizar a Justiça. O intuito não é de
criticar o Judiciário, mas sim, contribuir para a conscientização da sociedade brasileira
acerca de novas opções para resolver os conflitos, de maneira que ela possa usufruir de todos
os benefícios oferecidos, principalmente a mediação.13

11
CACHAPUZ, 2003, Op. Cit., p. 147
12
LEVY, Fernanda Rocha Lourenço. Guarda de filhos: os conflitos no exercício do poder familiar. São
Paulo: Atlas, 2008. p. 123.
13
GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; LAGRASTA NETO, Caetano. (Coord.). Mediação e
gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional. 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2013.
323

A sociedade, acomodada à tradição de que é mais fácil aderir ao Judiciário do que


implantar uma nova cultura da qual não se tem plena ciência ou não está habituado.
Nessa premissa, o grande impedimento para o uso mais intenso da mediação e de
outros meios alternativos de resolução de conflitos, está na formação acadêmica dos
operadores do Direito, uma vez que toda ênfase é dada à solução dos conflitos através do
processo judicial, onde é proferida sentença, que constitui a solução imperativa dada pelo
juiz como representante do Estado.
Neste sentido:

Apesar de se verificar uma nova e paulatina releitura do Direito nas universidades,


onde a interdisciplinaridade se faz presente, ele ainda é ensinado, em nível de
graduação, voltado para o lado adversarial. Poucas instituições oferecem
disciplinas direcionadas à solução não contenciosa dos Conflitos. Formam
profissionais aptos a enfrentarem a batalha do dia-a-dia num escritório de
advocacia, onde os advogados são procurados pelas pessoas na intenção de
encontrarem nele um aliado para auxiliá-las a impor a culpa ao outro, que é tido
como adversário. Não se trabalha o lado emocional do ser humano, levando os
futuros advogados e operadores do Direito, apenas a entender as leis a serem
aplicadas a fatos conflituosos. 14

Há que se substituir, gradualmente, a tradição da sentença pela tradição do acordo. A


modificação depende de um processo que deve se começar no alicerce de formação dos
indivíduos, revelando-se essencial a inserção, nas faculdades de Direito e ampliadas
oportunidades para o estudo da autocomposição para que as modificações legislativas que
prestigiam a autocomposição se tornem efetivas, denota-se daí que para que a cultura da
mediação seja difundida na sociedade, ela deve ter início na formação jurídica dos Bacharéis,
futuros operadores do Direito.
Nessa perspectiva Tartuce aduz que:

Uma moderna e atualizada compreensão do papel do advogado considera também


seu papel pacificador. No contexto de um completo assessoramento de seu cliente,
deve o advogado adverti-lo sobre os riscos da demanda e sobre as possibilidades
de acordo, orientando-o detalhadamente sobre as implicações decorrentes de uma
ou outra forma de composição de controvérsias.

Assim, no que diz respeito ao papel do advogado, quando procurado no início do


problema pela(s) parte(s), é o de primeiro apreciador técnico da lide, sendo fundamental a
orientação para o encaminhamento dos interessados a meios produtivos. Cabe a ele avaliar

p. 6.
14
BARBOSA, Águida Arruda. A clínica do direito. São Paulo: Revista do Advogado, n. 62, mar. 2001. p. 42.
324

as possibilidades inerentes às vias consensual e litigiosa, informando as partes sobre as


alternativas previsíveis e as ferramentas disponíveis.
O Estado também é incumbido do papel de divulgar não só a existência, mas também
a conveniência da utilização das formas autocompositivas de resolução de conflitos. É seu
papel popularizar, levar ao conhecimento da sociedade, informando-a acerca das vantagens,
garantias e procedimentos.15
Frente ao grande número de processos que ingressam e que se encontram pendentes
de julgamento no Poder Judiciário, notadamente na esfera civil, o Estado deve educar a
população no sentido da utilização das formas de autocomposição para a resolução dos
conflitos, notadamente a mediação.
O atual estágio da prestação jurisdicional estatal enquanto prerrogativa absoluta do
Estado, já não se mostra adequado. A conscientização social promovida no sentido de
fomentar a utilização da mediação de conflitos, estimula a quebra de paradigmas e a
consequente transformação da cultura jurídica, vez que “favorece a inclusão social, a
empatia e a razoabilidade no enfrentamento das controvérsias, “oxigenando” a abordagem
das controvérsias com novas pautas e ideias em prol de melhores resultados. ”16
Esta cultura de autocomposição de conflitos se coaduna à ideia de atribuição de mais
autonomia às partes, princípio implícito na Lei de Mediação e no Código de Processo Civil.
Ademais, não se pode ficar refém desta cultura excessivamente demandista, de dependência
do Estado para a resolução de todos os conflitos.

4. MEDIAÇÃO COMO ALTERNATIVA À JURISDIÇÃO CIVIL NA RESOLUÇÃO


DE CONFLITOS E AO DEMOCRÁTICO ACESSO À JUSTIÇA

Por ser um direito básico do homem, o acesso à Justiça é de indelével importância


para que se estabeleça a democracia e a paz em uma sociedade que constantemente possui
conflitos.
A Constituição Federal traz o acesso à Justiça como um direito e uma garantia
fundamental, todavia, ele não se confunde com o acesso ao Poder Judiciário, uma vez que

15
ANDRIGUI, Fátima Nancy. A arbitragem: solução alternativa de conflitos. p. 32. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/29764-29780-1-PB.pdf>.Acesso em: 20 de Agosto
de 2020.
16
TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2016. p.
106. (aspas no original)
325

é possível o acesso à Justiça sem recorrer ao Judiciário, os movimentos que buscam dar
maior efetividade ao acesso à Justiça incluem em suas pautas a prática e a multiplicação
de vias alternativas deste acesso. 17
Tendo em vista a crise em experimentada pelo Poder Judiciário, o acesso à Justiça
volta-se a resolver conflitos afastando-se das técnicas adversariais exclusivamente
heterocompositivas, passando a incorporar formas autcompositivas, com a finalidade de
auxiliar na busca da pacificação social. Essa abordagem permite que o acesso à Justiça seja
alcançado por meio de práticas tais como a mediação, que desponta como uma das formas
alternativas de resolução de conflitos, forma autocompositiva e não adversarial, que busca
pacificar a sociedade, oferecendo-se como alternativa à jurisdição civil. 18
O entendimento de que o acesso à Justiça não se dá somente por meio da prestação
jurisdicional foi adotado pelo Conselho Nacional de Justiça, quando este se posicionou de
maneira favorável à utilização de mecanismos de solução alternativa de controvérsias para
dar efetividade ao direito constitucional de acesso à Justiça, buscando alcançar a ordem
jurídica justa, de modo que o acesso à Justiça é abordado em seu aspecto formal e material.
Tal posicionamento está refletido na Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, através
da qual o mencionado Conselho instituiu a “Política Judiciária Nacional de tratamento
adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”.19
Com base em tal premissa, Albuquerque explana:

Tratar o conflito de forma adequada é garantir o direito de acesso à Justiça,


compreendido como o acesso ao processo justo, célere, com uma Justiça
imparcial, e que possibilite a participação das partes de uma maneira efetiva. O
acesso à Justiça, enquanto direito fundamental do homem, necessita de
mecanismos que possam lhe dar efetividade, o que é possível por meio da
Mediação.

A transformação das pessoas decorre de sua formação. Essa formação é


proporcionada pela mediação, que não se baseia em um tecnicismo distante da real condição
das partes, mas busca compreender e auxiliar, tornando elas aptas a lidar com dissabores.

17
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004. p. 223. Título original: L'età dei Diritti. (itálicos no original).
18
AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial. Brasília/DF: Ministério da Justiça e
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2013. p. 31.
19
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Resolução n. 125, de 29 de Novembro de 2010. Dispõe
sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder
Judiciário e dá outras providências. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/buscaatos-adm?documento=2579>.
Acesso em: 20 de Agosto de 2020.
326

Por outro lado, o tecnicismo jurisdicional rigoroso e imperioso, que avoluma autos e
alimenta uma advocacia litigiosa, volta-se a explorar o conflito ao invés de transformá-lo.
Não garante o acesso à Justiça, garante tão somente o acesso ao Poder Judiciário.
Mecanismos mais simples como a mediação tendem a diminuir essa carga técnica e
rigorosa do conflito, tornando a Justiça mais próxima dos cidadãos, proporcionando maior
participação popular nos assuntos a ela inerentes. Ainda, torna a Justiça célere, pois os
envolvidos, em poucas sessões de curta duração, resolvem seus desentendimentos. É menos
desgastante e onerosa, garante maior privacidade, pois as sessões são particulares, o que
acarreta maior participação dos envolvidos, que se sentem à vontade para expressar seus
sentimentos.20
Neste sentido, Vasconcelos explica:

A mediação de conflitos, enquanto trato subjetivo, transdisciplinar, método


empírico em sua interdisciplinaridade, vai facilitar o encontro de soluções
consensuadas, legítimas, mas que precisam ser compreendidas, interpretadas e
decididas no âmbito de um sistema jurídico necessariamente democrático. A
mediação dignifica e humaniza os processos de solução de disputas, vistos, na
perspectiva positivista, como técnicas de uma metodologia dogmática formal.21

Daí os esforços da comunidade jurídica e do próprio governo em promover reformas,


através de mudanças normativas e de paradigmas, com o objetivo de dar maior eficiência à
prestação jurisdicional do Estado, agrupando ao ordenamento jurídico brasileiro, no que diz
respeito à Mediação, o Código de Processo Civil e a Lei de Mediação, etapas importantes
neste processo. Tais legislações estimulam, na seara das suas normas fundamentais, que as
partes, auxiliadas e orientadas por profissionais capacitados, identifiquem formas
alternativas para resolução para seus conflitos de natureza civil, especialmente a mediação.22
Aos poucos se vai conduzindo para processos e procedimentos em que o objetivo
maior é a solução justa e adequada dos conflitos, e que, de fato, possam reduzir crises sociais,
enaltecendo a pacificação e a harmonização dos litigantes, em lugar de propiciar a guerra
judicial em que só uma das partes tem os louros da vitória e à outra parte somente resta o

20
AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação Judicial. Brasília/DF: Ministério da Justiça e
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2013. p. 29.
21
VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. 3. ed. rev. atual.
amp. São Paulo: Método, 2014. p. 80.
22
CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Análise comparativa entre a Lei de Mediação e o Código De Processo
Civil. In: DIDIER JR., Fredie. (Coord. Geral). ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier.
(Coord.) Justiça Multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada de
conflitos. p. 463-484. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 464.
327

amargor da sucumbência. Mudar a cultura adversarial para a autocompositiva é um processo


desafiador, mas é o caminho.
A mediação é instrumento capaz de solucionar conflitos de modo adequado, para
contribuir na redução do número de processos judiciais, e, combater o desvirtuamento da
função judicial do Estado, aferindo uma leitura contemporânea do acesso à Justiça. Nessa
ótica, a mediação, enquanto forma de resolução de conflitos de natureza civil pode se revelar
fundamental para obtenção de resposta rápida, o que por certo se harmoniza com a noção de
acesso à Justiça num prazo razoável.23
Nesse ponto de vista:

A intenção, ao apregoar-se a utilização da mediação, não é a de que haja


substituição da atuação da Jurisdição Civil pelo exercício de tal atividade. O que
se pretende é complementar a atividade de realização e distribuição de Justiça com
a alternativa de mais uma ferramenta de trabalho.24

Assim, a Mediação se oferece como opção à Jurisdição Civil, podendo contribuir


para a redução do número de demandas em curso no Poder Judiciário ao tirar de seu contexto
a análise de situações capaz de serem reorganizadas pelos mediandos. Seu maior aporte, no
entanto, é disponibilizar ferramentas hábeis a ensejar no ser humano elementos de resgate
de sua própria dignidade, de forma que eles assumam a responsabilidade pessoal pela
resolução dos seus conflitos.

5. INTERAÇÃO ENTRE A LEI 13.105/15 (CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL) E A


LEI 13.140/15 (MARCO LEGAL DA MEDIAÇÃO)

A Lei 13.105/15 (Código de Processo Civil) e a Lei n. 13.140/2015 tramitaram


simultaneamente, sendo publicados em curto intervalo de tempo, e vigorando em datas muito
próximas. A despeito de terem sido ambos inspirados nas diretrizes da política nacional de
tratamento adequado de Conflitos no âmbito do Poder Judiciário traçadas pela Resolução
125/2010 do CNJ, possuem algumas diferenças em aspectos relevantes, como por exemplo,
na disposição dos Princípios Informadores da Mediação e na definição dos requisitos
exigidos para o exercício da função de Mediador judicial.25
De acordo com Tartuce:

23
TARTUCE, 2016, Op. Cit., p. 343.
24
TARTUCE, 2016, Op. Cit., p. 345
25
GORETTI, Ricardo. Mediação e acesso à Justiça. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 186-189
328

Para entender como pode se dar a interação entre as leis, é preciso analisar a Lei
de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: o Decreto-Lei n. 4.657/1942
contempla relevantes critérios de hermenêutica jurídica a serem cotejados pelo
intérprete caso, no momento de aplicação das normas, constate imperfeições.

Traz-se à colação o enunciado do Art. 2º do Decreto-Lei n. 4.657/1942, no sentido


de compreender-se a superação de tais contradições. Veja-se:

Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a
modifique ou revogue.
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja
com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei
anterior.
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já
existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei
revogadora perdido a vigência.26

Faz-se necessária aqui, a verificação do critério da especialidade, pois diante de um


conflito ele deverá prevalecer sobre o critério cronológico por força do princípio
constitucional da Isonomia. Tal Princípio enseja a necessidade de prover tratamento peculiar
a situações diferenciadas.27
Do ponderado ensinamento de Bobbio acerca do assunto extrai-se:

A passagem de uma regra mais extensa (que abrange um certo genus) para uma
regra derrogatória menos extensa (que abrange uma species do genus) corresponde
a uma exigência fundamental de Justiça, compreendida como tratamento igual das
pessoas que pertencem à mesma categoria. A passagem da regra geral à regra
especial corresponde a um processo natural de diferenciação das categorias, e a
uma descoberta gradual, por parte do legislador, dessa diferenciação. Verificada
ou descoberta a diferenciação, a persistência na regra geral importaria no
tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e, portanto,
numa inJustiça. Nesse processo de gradual especialização, operado por meio de
leis especiais, encontramos uma das regras fundamentais da Justiça, que é a do
suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu). Entende-se, portanto, por que a
lei especial deva prevalecer sobre a geral: ela representa um momento ineliminável
do desenvolvimento de um ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral
significaria paralisar este desenvolvimento.28

Por força da vacatio legis de um ano, o Código de Processo Civil entrou em vigor
em Março de 2016, três meses após o Marco Legal da Mediação, que passou a vigorar em

26
BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Redação dada pela Lei n.12.376/2010. Institui
a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Portal da Presidência da República do Brasil: Legislação.
Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm>. Acesso em: 29
de Agosto de 2020.
27
DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução às normas de direito brasileiro interpretada. 18. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. P. 97
28
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. Prefácio de Celso
Lafer. Apresentação de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. São Paulo: EDIPRO, 2. ed. 2014. p. 97
329

dezembro de 2015, de forma que as disposições discrepantes devem ser compatibilizadas


com os preceitos da legislação especial – Lei n. 13.140/2015 -, tendo o Código de Processo
Civil aplicação supletiva no que diz respeito à regulamentação das práticas de Mediação.
Dos ensinamentos de Ozório Nunes extrai-se:

O critério da especialidade leva em conta a matéria a que se refere as normas em


conflito e a lei acima prevê que nem a norma especial e nem a geral revogam uma
a outra (art. 2º, § 2º). A Lei de Mediação é norma especial, em relação à norma
geral do CPC pois traz um conjunto de regras específicas e detalhadas sobre o
instituto da mediação. Embora no âmbito geral, dos princípios e regras, ambas em
muito se assemelhem, com vários pontos de coincidência, no particular a Lei de
Mediação traz muitos mais detalhes, circunstâncias e especificidades do que o
CPC, lei processual, ou seja, a Lei de Mediação tem elementos especializantes. 29

Frente ao exposto, anota-se que nos pontos de antinomia a Lei de Mediação deve
prevalecer sobre o Código de Processo Civil, pois ela é lei posterior, pois embora a sua
vigência tenha iniciado antes do novo ordenamento jurídico, a sua promulgação foi posterior.
A partir da promulgação a norma é valida, encontra-se de acordo com o sistema jurídico, ou
seja, tem existência e validade, e a partir da vigência ela terá eficácia, e que em caso de
conflito, deve prevalecer sobre a geral.30
Outrossim, tais normas precisam serem agregadas e conciliadas, uma vez que a
norma jurídica necessita ser coesivo, e não da para imaginar que no nascedouro das
legislações sobre mediação de conflitos, elas nasçam, contraditoriamente, em desordem, sem
a probabilidade de um colóquio, uma comunicação e uma harmonização entre elas.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Perante os apontamentos expostos, observa-se que os métodos autocompositivos


destacam-se no novo Código de Processo Civil, como paradigma inovador no que diz
respeito à solução consensual de conflitos, apresentando-se como alternativa à jurisdição
estatal bem como optou pela acolhida do sistema integrado identificado como modelo
multiportas.
A cultura instituída na sociedade é a de que, todo e qualquer conflito deva ser levado
ao Poder Judiciário. Emana daí,a disseminação de uma cultura denominada de judiciarista

29
OZÓRIO NUNES, Antonio Carlos. Manual de mediação: guia prático da autocomposição; guia prático
para conciliadores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 51.
30
OZÓRIO NUNES, 2016, Op. Cit., p. 53
330

ou demandista que vê o conflito a premência da propositura de uma ação judicial,


acarretando no número exponencial de demandas no Poder Judiciário que há tempos vem
passando por uma crise no sistema tendo em vista que não consegue dar vazão a todo
contingente de demandas.
Aspirar que é admissível à resolução de conflitos de forma autocompositva é uma
adversidade, que não necessita ser vista como uma barreira de difícil transposição. O
rompimento da tradição do litigio para a tradição do consenso é incontestavelmente benéfico,
visto as vantagens, a desburocratização e a rapidez do procedimento. Além disso, o acesso à
Justiça, o direito de todo ser humano de dirigir-se aos tribunais para solução de um conflito
não será suprimido.
A mediação constitui prática de pacificação de caráter autocompositiva e voluntária,
no qual um terceiro, neutro, age ativamente ou passivamente, como moderador do processo
de retomada do diálogo entre os envolvidos, antes ou depois de iniciado o conflito, possui
caráter contratual, pois o acordo nela concretizado nasce da vontade dos envolvidos,
instituindo, suprimindo e transformando direitos.
Quanto meio autocompositivo concretiza-se como mecanismo que promove a
possibilidade de uma maior eficácia e efetividade de acesso à Justiça. Consolida a fruição de
garantias fundamentais pelo cidadão, na medida em que o protagonismo das partes faz deles
intérpretes conscientes e responsáveis pela busca de solução de suas próprias controvérsias,
exercendo assim, a garantia principiológica do autorregramento ou autonomia da vontade
das partes.
Tendo em vista que o novo Código de Processo Civil e a Lei de Medição foram
publicados no mesmo ano, e vigorando em datas muito próximas, fez-se uma abordagem
acerca da interação das referidas leis, onde verificou-se que nos pontos de antinomia, deve
prevalecer a lei especial, sendo o Código de Processo Civil aplicado subsidiariamente.
Portanto, romper a tradição do litígio e valer-se dos métodos consensuais
proporcionará, igualmente, alívio ao Judiciário, que receberá menor número de demandas,
onde haverá maior dedicação dos servidores e magistrados, bem como será reduzido o
elevado tempo de espera até uma sentença definitiva.
Dessa forma, fica evidente que o bom diálogo através dos métodos autoconpositivos,
como a mediação, são os instrumentos necessários para proporcionar vitalidade à nossa
sociedade, contribuindo assim com sua constante evolução.
331

REFERÊNCIAS

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_________. Lei nº 13.140, de 26 de Junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre


particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos
no âmbito da administração pública; altera a Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto
nº 70.235, de 6 de Março de 1972; e revoga o § 2º do art. 6º da Lei nº 9.469, de 10 de julho
de 1997. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/Lei/L13140.htm>Acesso em: 19 de Agosto de 2020.

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333

A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO POLÍTICO PELA MULHER E A


VIOLÊNCIA POLÍTICA COMO UMA DAS FACES DA VIOLÊNCIA
DE GÊNERO

Danielli Zanini1

Resumo: O objetivo desse artigo é trazer à discussão a desigualdade de gênero na ocupação


do espaço político como espaço de representação e de poder. Considerando que 2020 é um
ano de eleições municipais e a participação das mulheres na política ainda é muito pequena
no Brasil, pretende-se fazer uma abordagem sucinta da participação da mulher na política a
partir da exposição de dados estatísticos, bem como da evolução da legislação de cotas,
analisando a sua efetividade. Após a abordagem da trajetória histórico-legislativa da mulher
na política, propõe-se uma análise sobre a violência política de gênero como uma das faces
da violência de gênero e como fator determinante para o afastamento entre a mulher e a
política e para a manutenção da dominação deste espaço pelo “homem branco” padrão. Por
fim, conclui-se que ainda há muito a ser feito para que as mulheres ocupem os espaços de
poder e se vejam representadas na política, sendo urgente a aprovação de uma legislação que
tipifique a violência política de gênero como forma de combate aos mecanismos de
marginalização da mulher na política.
Palavras-chave: violência política de gênero; mulher na política; (des) igualdade de gênero;
democracia paritária.

1 INTRODUÇÃO

Até hoje, muitas foram as conquistas da mulher na busca pela igualdade de gênero,
se considerarmos um passado não tão distante, quando as mulheres tinham poucos ou
nenhum direito. No entanto, ainda há muito a ser alcançado, principalmente no que diz
respeito a participação da mulher nos espaços de poder e, sobretudo, na política.
Isso porque a mulher precisa se perceber representada nos setores de tomada de
decisão. Nesse viés, ainda que exista legislação de cotas visando garantir uma maior
participação das mulheres no espaço político, o índice de mulheres candidatas e eleitas
permanece baixo, sobretudo no Brasil, se comparado com os demais países da América
Latina, conforme revelam os dados da ONU Mulheres.

1
Advogada, Graduada em Direito pela Unijuí/RS, Pós-Graduada em Relações Internacionais pela Damásio
Educacional – DeVry Internacional, Mestre em Direito, com ênfase em Direitos Humanos, pela Unijuí/RS,
inscrita n OAB/RS 98.161, zanini.danielli@gmail.com.
334

É importante salientar que um dos fatores que mantém a mulher distante da


participação política é a violência política de gênero, uma das formas de violência contra a
mulher, ainda que a violência política ainda não conste expressamente em lei em nosso país.
Diante desse quadro, o objetivo do presente artigo é trazer à discussão os dados
estatísticos, a legislação e o conceito da violência política de gênero, pois é imprescindível
que se debata a desigualdade política de gênero para que sejam adotadas, cada vez mais, e
de formas mais efetivas, medidas de combate à violência contra a mulher, incluindo a
violência política, promovendo o ingresso e a manutenção da mulher nos espaços de poder
e de representação.

2 A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO POLÍTICO PELA MULHER E A VIOLÊNCIA


POLÍTICA COMO UMA DAS FACES DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO

2.1 A violência política como uma das faces da violência de gênero

A violência contra a mulher está cada vez mais evidente, como é possível ver
frequentemente nos noticiários. Quase todos os dias assistimos a reportagens sobre mulheres
que foram mortas pelos seus companheiros, violentadas por familiares, entre outras
violências físicas sofridas pelo nosso gênero.
No entanto, quando se fala em violência de gênero, não se trata somente da violência
física, mas sim da violência psicológica, sexual, simbólica, racial e patrimonial e que são
decorrentes de um sistema que perpetua a desigualdade de gênero estruturalmente enraizada.
Nesse sentido, Ceccon e Meneghel propõem a ampliação do conceito de fascismo
social de Boaventura de Sousa Santos para o que chamam de “fascismo de gênero”, visando
incluir no debate também as desigualdades entre os sexos. Para os autores, o fascismo de
gênero é
um regime social que opera no campo ideológico, na imposição de ideias
conservadoras, racistas, misóginas e sexistas, exercido tanto pelo Estado quanto
pela sociedade por meio de dois mecanismos: (a) a exclusão de mulheres negras e
pobres de seus direitos fundamentais; e (b) a violência como mecanismo de
controle. Mantém a linha abissal entre as mulheres que são protegidas e cuidadas
e aquelas cujas vidas são elimináveis, invisíveis e descartáveis.2

2
CECCON, Roger Flores, MENEGHEL, Stela Nazareth. Fascismo de gênero: controle, opressão e exclusão
de mulheres. In: Psicologia Política. Vol 19, nº 46, pg. 449-458, set-dez 2019.
335

Na esfera política, a violência de gênero se dá frequentemente pelo discurso de ódio


e utilizando fake news como uma ferramenta poderosa de estigmatização da mulher, a partir
de ataques que são direcionados ao seu corpo, à sua sexualidade, à sua estética e à sua
família, chegando até ao extremo da ameaça de morte.3
Para Flávia Biroli, professora e pesquisadora do Instituto de Ciência Política da
Universidade de Brasília, a

violência política, que atinge as mulheres, é feita de agressão, assédio e dos


estereótipos que acabam afirmando cotidianamente que as mulheres não
pertencem ao espaço político. (...) é a violência que procura manter as mulheres
do lado de fora da política. É importante que a gente compreenda que a violência
tem sido um fator para manter a política como um espaço masculino. Um espaço
de homens.4

Além disso, é importante frisar que a violência não é direcionada somente às


candidatas ou às eleitas, se estendendo também à sua família e, como explica Ana Carolina
Querino, coordenadora da ONU Mulheres, tem o objetivo de “restringir, suspender ou
impedir o exercício do cargo, induzindo ou obrigando a mulher a agir contra a sua vontade,
ou incorrendo à omissão no cumprimento de suas funções ou no exercício de seus direitos”.5
Os tipos de violência sofridas pelas mulheres na política ficam evidenciados através
dos dados da União Parlamentar Internacional (IPU), que demonstram que

82% das parlamentares ouvidas viveram violência psicológica; 44% receberam


ameaças de morte, estupro, espancamento ou sequestro; 26% sofreram violência
física no parlamento e 39% afirmaram que a violência política minou a
implementação de seus mandatos e sua liberdade de expressão 6.

3
BRASIL. Senado Federal. Violência afasta mulheres da política, dizem debatedoras. Agência Senado,
2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/05/violencia-afasta-mulheres-
da-politica-dizem-debatedoras>. Acesso em: 26/08/2020.
4
ONU Mulheres Brasil. Violência política atinge mulheres candidatas e eleitas e vulnerabiliza a
democracia, dizem pesquisadoras. 2018. Disponível em:
<http://www.onumulheres.org.br/noticias/violencia-politica-atinge-mulheres-candidatas-e-eleitas-e-
vulnerabiliza-a-democracia-dizem-pesquisadoras/>. Acesso em: 17/08/2020.
5
BRASIL. Senado Federal. Violência afasta mulheres da política, dizem debatedoras. Agência Senado,
2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/05/violencia-afasta-mulheres-
da-politica-dizem-debatedoras>. Acesso em: 26/08/2020.
6
BRASIL. Senado Federal. Violência afasta mulheres da política, dizem debatedoras. Agência Senado,
2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/05/violencia-afasta-mulheres-
da-politica-dizem-debatedoras>. Acesso em: 26/08/2020.
336

Esse tipo de violência contra a mulher faz parte de um “processo de


desdemocratização” e se relaciona com o “crescimento das políticas antigênero nos últimos
cinco anos não só no Brasil como em outras partes do mundo”, como explica Marlise
Almeida, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher na UFMG, que
acredita que esse movimento seja uma tentativa de restauração do Parlamento como um
espaço reservado ao homem branco, enquanto a mulher retorna à casa e à família.7
Um exemplo da violência sofrida pelas mulheres na política é a candidatura laranja,
que pode se dar pela promessa de apoio político e financeiro durante a campanha eleitoral
ou pelo cadastro de mulheres que nem sabem que são candidatas. Em consequência, essas
mulheres ainda sofrem mais violência ao serem incluídas no polo passivo das ações
eleitorais, ainda que não tenham sido beneficiadas pela fraude na cota de gênero.8
Outra forma de violência, mais sutil, se dá quando as mulheres “sofrem tentativas de
silenciamento, quando suas opiniões não são levadas em consideração, quando são
descreditadas, sexualizadas e finalmente mortas” a exemplo do assassinato da vereadora
Marielle Franco, em 20189.
Especificamente em relação ao caso emblemático da execução da vereadora Marielle
Franco, assassinada brutalmente em março de 2018, é importante buscar fazer uma análise
da representatividade da Marielle como a possível motivação para o crime. Nesse aspecto,
Flávia Biroli ressalta que

O que ela deixou gravado, o que publicou, os discursos que ficaram registrados,
tudo mostra que na Câmara Municipal do Rio de Janeiro atuava como mulher
negra da periferia o tempo todo, um perfil que raramente chega aos espaços de
poder. O assassinato de Marielle não apenas é violência política, carrega os
marcadores de gênero que vitimizam seus pares diariamente pelo mundo 10.

7
BRASIL. Câmara dos Deputados. Legislação para combater violência política contra a mulher é
necessária, dizem debatedoras. Agência Câmara de Notícias, 2020. Disponível em: <
https://www.camara.leg.br/noticias/642670-legislacao-para-combater-violencia-politica-contra-a-mulher-e-
necessaria-dizem-debatedoras/>. Acesso em: 02/08/2020
8
BAYOD, Maíra Calidone Recchia. Violência Política: mais uma face da conhecida violência contra a mulher.
Justificando, 23/09/2019. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/09/23/violencia-politica-mais-
uma-face-da-conhecida-violencia-contra-a-mulher/>. Acesso em: 02/08/2020.
9
BAYOD, Maíra Calidone Recchia. Violência Política: mais uma face da conhecida violência contra a mulher.
Justificando, 23/09/2019. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/09/23/violencia-politica-mais-
uma-face-da-conhecida-violencia-contra-a-mulher/>. Acesso em: 02/08/2020.
10
PORTAL GELEDÉS, O que é violência política de gênero e por que devemos falar sem descanso sobre
ela?, 21/08/2020. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/o-que-e-violencia-politica-de-genero-e-por-
que-devemos-falar-sem-descanso-sobre-ela/>. Acesso em 03/09/2020.
337

Ainda, não há como deixar de falar do papel das fake news como instrumento de
prática da violência política contra a mulher. Nesse ponto, podemos utilizar como exemplo
o caso da Manuela D’Ávila, candidata a vice-presidente da República na eleição de 2018.
Com efeito, durante a campanha de 2018, Manuela D’Ávila foi alvo constante de
machismo, misoginia e fake news, sendo disseminadas montagens, informação falsa e
manipulação de falas da então candidata.
Em entrevista concedida para o jornal Brasil de Fato, ao ser questionada sobre qual
a relevância que as fake news terão quando for contada a história das eleições de 2018, sobre
o que ela aprendeu com tudo o que aconteceu e sobre o papel das mulheres nas futuras
eleições, Manuela salienta o poder das fake news, destacando que

Terão um capítulo especial dedicado ao ódio que eles sentem das mulheres, né?
Porque as fake news são majoritariamente construídas em cima da misoginia.
(...)
espero que a gente tenha claro que o tema das fake news não é algo periférico.
Elas estruturam as opiniões sobre todos os temas na sociedade. Durante as
eleições, apenas 70 postagens que me envolviam foram compartilhadas por 300
mil pessoas, alcançando 13 milhões de brasileiros, em apenas dois dias, para se ter
uma ideia.
(...)
Só acredito em uma realidade melhor se a gente enfrentar a desigualdade. Nossa
desigualdade tem raça, tem gênero. Por isso, fazer valer a voz das mulheres na
próxima eleição e em toda a luta política é o único caminho para reconstruirmos o
Estado, garantirmos seu olhar atento aos mais vulneráveis. Não haverá mudança
sem as mulheres na linha de frente11.

Em relação à Ex-Presidente Dilma Rousseff, Flávia Biroli destaca que a narrativa


observada durante o processo de impeachment demonstra o discurso misógino e sexista, que
associa a mulher ao destempero emocional, a estigmatizando como alguém incapaz na
política e dando espaço a conteúdo sexualmente violento, tanto na mídia empresarial como
nos espaços institucionais:

As narrativas enunciadas durante o processo de impeachment, no entanto,


mostraram-nos que os discursos misóginos não estavam, de maneira alguma,
neutralizados. Sexismo e misoginia participaram da construção de um
ambiente político no qual uma mulher eleita foi contestada em sua
competência e deposta. Em alguns casos, a construção da imagem de Rousseff
e a configuração dos posicionamentos favoráveis a sua deposição podem ser
descritos como formas de violência política contra as mulheres, como defendi

11
REINHOLZ, Fabiana, MARKI, Katia. Só acredito em uma realidade melhor se a gente enfrentar a
desigualdade. Brasil de Fato, 25/05/2020. Disponível em: <https://www.brasildefators.com.br/2020/05/25/so-
acredito-em-uma-realidade-melhor-se-a-gente-enfrentar-a-desigualdade>. Acesso em: 04/09/2020.
338

em outro local. Atingem Rousseff, ao mesmo tempo em que colocam em xeque


a condição das mulheres como atores políticos.
Em revistas semanais, a estigmatização de Rousseff como incompetente
politicamente se deu no recurso a estereótipos convencionais de gênero, nos quais
a mulher é associada ao destempero emocional. Em jornais diários, a construção
da presidente eleita em imagens que de certo modo anunciavam sua deposição
dentro de um ambiente político no qual diferentes tipos de violência ganhavam
legitimidade antecipava um ambiente político em que posições de recusa aos
direitos humanos ganhariam maior espaço.
A ideia de que se tratava de uma mulher perdendo o controle, incapaz de reagir
com sensatez à crise política, atravessou todos os registros e esteve presente em
maior medida do que outras abordagens na mídia empresarial. O conteúdo
sexualmente violento ganhava espaço na internet ao mesmo tempo em que a
violência de gênero se expressava na mídia empresarial pela estigmatização de
Rousseff e das mulheres como não capazes de atuação na política, sobretudo em
contexto de crise. Nas redes sociais, as imagens que circularam em memes
confirmavam que o espectro dos estereótipos aceitáveis se alargava.
Ao mesmo tempo, nos espaços institucionais, a presença massivamente masculina
dava seu recado com o slogan “Tchau, querida!”, utilizado por partidos e
parlamentares que se articularam para a suspensão do mandato de Rousseff. A
ironia presente no “Tchau, querida” se completava nos corpos. Nas imagens da
votação, televisionada e teatralizada, ternos e termos utilizados pelos
parlamentares – 90 homens para cada dez mulheres nessa legislatura (...) 12

Uma reflexão importante a ser feita sobre o tema é no que concerne à


responsabilização pela prática desse tipo de violência. Isso porque a prática da violência
política de gênero acaba por ser tratada como um delito eleitoral e, no máximo, uma ofensa
criminal, quando, na verdade, se trata de ataque aos direitos humanos das mulheres, à
democracia, à igualdade e à justiça de gênero, como destaca Marlise Almeida, professora da
UFMG e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem)13.
Nesse aspecto, Gasman e Biroli salientam que é necessária uma legislação específica
contra a violência direcionada às mulheres na política. Para as autoras, casos como o do
assassinato da vereadora Marielle Franco que, como mulher, negra, lésbica e vinda da favela
representava a voz de quem não é ouvido nos espaços de poder, atingem

A democracia como espaço de construção de alternativas. (...) A existência da


democracia depende de que a participação política das mulheres seja assegurada e
que a violência contra as que driblam barreiras e se fazem ouvir seja contida.
(...)
No caso brasileiro, essa violência também se expressa pela ofensiva contra a
agenda da igualdade de gênero, com o objetivo de desqualificar a violência sexista

12
BIROLI, Flávia. Uma mulher foi deposta: sexismo, misoginia e violência política. In: RUBIM, Linda.
ARGOLO, Fernanda. O Golpe na perspectiva de Gênero. (organizadoras). Salvador: Edufba, 2018, p. 75-
84.
13
BRASIL. Senado Federal. Violência afasta mulheres da política, dizem debatedoras. Agência Senado,
2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/05/violencia-afasta-mulheres-
da-politica-dizem-debatedoras>. Acesso em: 26/08/2020.
339

e reduzir a participação política das mulheres. Fragiliza, ainda, as já insuficientes


garantias para o respeito das pertenças de gênero, raça e identidade sexual. 14

Diante do exposto, constata-se que a violência política também é uma forma de


violência de gênero, sendo responsável pelo afastamento da mulher dos espaços de
representatividade e poder, atuando como forma de manutenção da desigualdade de gênero
na política e da estrutura patriarcal que estrutura a nossa sociedade.
Para tanto, é importante discutir sobre as formas de combate a esse tipo de violência
e de promoção de políticas públicas que promovam a tomada desses espaços pelas mulheres,
temática que será abordada no próximo subitem.

2.2 A ocupação do espaço político pela mulher a partir da história e da legislação de


cotas

A possibilidade de votar e ser votada se deu somente em 1932, com a promulgação


do Código Eleitoral e por meio do Decreto nº 21.076, de 1932.
A primeira legislação de cotas do Brasil foi aprovada em 1995, reproduzida em 1997
e consolidada somente em 2009, quando passou a ser obrigatória a reserva de 30% das vagas
das candidaturas proporcionais para as mulheres, prevendo ainda que 10% do tempo de
propaganda partidária e 5% dos recursos do fundo partidário seja destinado às mulheres.15
Nos anos posteriores, as alterações legislativas foram ínfimas, já que as alterações
das Leis 12.891 de 2013 e 13.165 de 2015 se limitou a implementar períodos de propaganda
institucional para promoção e incentivo da igualdade de gênero e participação feminina na
política.16
Com as alterações legislativas, “os índices de mulheres eleitas nas esferas legislativas
que girava em torno de 5% (eleições de 1994, 1998 e 2002) 10% (eleições de 2006, 2010,
2014 e 2016) saltou para 15% (eleições de 2018)”, sendo que o grande diferencial para a

14
GASMAN, Nadine. BIROLI, Flavia. Marielle Franco – democracia, legado e violência contra as
mulheres na política. Nações Unidas Brasil, 16/04/2018. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/artigo-
marielle-franco-democracia-legado-e-violencia-contra-as-mulheres-na-politica/>. Acesso em: 01/08/2020.
15
BAYOD, Maíra Calidone Recchia. Violência Política: mais uma face da conhecida violência contra a
mulher. Justificando, 23/09/2019. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/09/23/violencia-
politica-mais-uma-face-da-conhecida-violencia-contra-a-mulher/>. Acesso em: 02/08/2020.
16
SANTOS, Cristiano Lange dos. FURLANETTO, Claudia Paim. Participação feminina na política. Exame
da Lei nº 12.034/2009 e a previsão de cotas de gênero. In: RIL, Brasília, Vol 56, nº 223, p. 191-211, jul-set.
2019.
340

melhora nos resultados em relação a participação da mulher na política foi alcançado


somente a partir da obrigatoriedade de ampliação do percentual de financiamento de
campanha e de aparição na propaganda eleitoral gratuita pelas mulheres.17
Não bastasse a evolução a passos de formiga, Cristiano Lange dos Santos e Claudia
Paim Furlanetto salientam quem em sentido contrário à legislação de cotas, a Lei 13.831 de
2019
anistiou os partidos políticos das multas aplicadas por não destinarem 5% das
verbas do Fundo Partidário para promover as candidaturas de mulheres nas
eleições realizadas em 2010 a 2018, como determinava a Lei nº 12.034/2009, e
retrocedeu, esvaziando-se o conteúdo pedagógico fundamental disposto na
legislação para permitir a presença feminina nos meios políticos.18

Portanto, ainda que existam cotas prevendo que uma percentagem das candidaturas
seja ocupada por mulheres, as condições de participação não são as mesmas para ambos os
gêneros, na medida em que o espaço, o investimento e a prioridade dada pelos diretórios
partidários segue sendo diferenciada.
Uma demonstração das dificuldades que as mulheres enfrentam, mesmo após eleitas,
é o fato de que, mesmo que a primeira senadora tenha iniciado o exercício do seu mandato
em 1979, o primeiro banheiro feminino foi instalado no Plenário somente em 2016.19
A desigualdade de gênero na política é evidenciada quando os dados são expostos.
Isso porque, ainda que as mulheres sejam 52% da população brasileira e correspondem a
44% de mulheres filiadas a partidos políticos, não se encontram devidamente representadas
nos Poderes Legislativos, e menos ainda nos Poderes Executivos, já que são 13% de
mulheres eleitas nos Municípios e 3,84% eleitas nos Governos).20
Com efeito, a deputada Talíria Petrone destaca que “quando há entendimento
concreto de que essa violência existe, ela se torna mais materializada e é possível ter
diagnósticos, alternativas para enfrentar esse quadro” e defende que a violência política de

17
BAYOD, Maíra Calidone Recchia. Violência Política: mais uma face da conhecida violência contra a mulher.
Justificando, 23/09/2019. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/09/23/violencia-politica-mais-
uma-face-da-conhecida-violencia-contra-a-mulher/>. Acesso em: 02/08/2020.
18
SANTOS, Cristiano Lange dos. FURLANETTO, Claudia Paim. Participação feminina na política. Exame
da Lei nº 12.034/2009 e a previsão de cotas de gênero. In: RIL, Brasília, Vol 56, nº 223, p. 191-211, jul-set.
2019.
19
BAYOD, Maíra Calidone Recchia. Violência Política: mais uma face da conhecida violência contra a mulher.
Justificando, 23/09/2019. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/09/23/violencia-politica-mais-
uma-face-da-conhecida-violencia-contra-a-mulher/>. Acesso em: 02/08/2020.
20
BRASIL. Senado Federal. Violência afasta mulheres da política, dizem debatedoras. Agência Senado,
2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/05/violencia-afasta-mulheres-
da-politica-dizem-debatedoras>. Acesso em: 26/08/2020.
341

gênero seja tipificada, passando a constar na legislação brasileira, à exemplo do que já existe
em outros países da América Latina, como México, Bolívia e Peru.
Nesse sentido, mesmo que as formas de violência contra a mulher estejam elencadas
no art. 7º da Lei Maria da Penha, não há menção expressa à violência política de gênero,
vejamos:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade
ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir
e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite
ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria. (BRASIL, 2006).

No entanto, ainda que a violência política de gênero não esteja expressa como um
tipo de violência contra a mulher na Lei Maria da Penha, pode-se compreender esse tipo de
violência como uma forma de violação aos direitos das mulheres e sobretudo aos direitos
humanos, na medida em que o próprio legislador, ao editar a Lei nº 13.340/06, incluiu a
expressão “entre outras”, portanto, o artigo não é taxativo, mas exemplificativo, abarcando
outras formas de violência que ali não foram elencadas.
Aliado a isso, importante mencionar que tramita o Projeto de Lei 9699/18 para alterar
a Lei nº 4.737 de 1965 que institui o código eleitoral, estabelecendo a violência política
contra mulheres como crime eleitoral, pendente de apreciação pelo plenário da Câmara dos
Deputados.21

21
BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei PL 9699/2018. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2168798>. Acesso em:
04/09/2020.
342

Diante do exposto, salienta-se que enquanto a participação das mulheres no espaço


político for desigual em relação à ocupação deste espaço pelos homens, ainda serão
necessárias medidas como as do estabelecimento de cotas eleitorais de representação de
gênero, bem como tipificação e punição desse tipo de violência de gênero.
Nesse sentido, umas das ferramentas utilizadas pela ONU Mulheres é o Marco
Normativo da Democracia, que “apresenta o conceito de democracia paritária, que, por sua
vez, expõe os limites da democracia e até mesmo a sua invalidação, quando as mulheres
estão alijadas nos espaços de poder e decisão”22.
O Conceito de Democracia Paritária, segundo o Marco Normativo, é um

modelo político no qual a paridade e a igualdade substantiva se constituem como


a coluna vertebral do Estado inclusivo e paritário. Para alcançar a Democracia
Paritária, é necessário um compromisso suprapartidário e intersetorial, com
vontade política, para propor leis e políticas públicas com recursos apropriados
que garantam que mulheres e leis e políticas públicas com recursos apropriados
que garantam que mulheres e homens em sua diversidade tenham as mesmas
oportunidades e condições de igualdade nos âmbitos político, econômico, social e
cultural.

Conforme anteriormente exposto, verifica-se que, ainda que tenhamos legislação


com previsão de cotas de participação e financiamento de candidaturas femininas, os índices
de mulheres na política ainda são baixos, demonstrando a inefetividade das medidas
adotadas até agora.
Nessa linha, é importante a análise feita no artigo “Participação Política de Mulheres
na América Latina: o impacto de cotas de lista fechada”, onde foram levantados dados dos
14 países latino-americanos, classificando-os em 3 (três) grupos: (i) países com lista fechada
e cotas para eleições legislativas nacionais; (ii) países com lista aberta e cotas para eleições
legislativas nacionais; e, (iii) países sem cotas para eleições legislativas nacionais23.

22
ONU Mulheres Brasil. Brasil 50-50. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/brasil5050/>. Acesso
em 01/09/2020.
23
SPOHR, Alexandre Piffero, MAGLIA, Cristiana, MACHADO, Gabriel, OLIVEIRA, Joana Oliveira de.
Participação Política de Mulheres na Américia Latina: o impacto de cotas e de lista fechada. Estudos
Feministas, Florianópolis, 24(2): 292, maio-agosto/2016.
343

A conclusão do estudo foi de que os países do primeiro grupo, com lista fechada e
cotas para eleições (Argentina, Costa Rica, El Salvador, Guiana e Nicarágua) foram os que
apresentaram os melhores resultados relativamente a participação política das mulheres24.
Considerando as conclusões obtidas no estudo mencionado e, levando em conta que
o Brasil figura no grupo de países com lista aberta e cotas para eleições, uma das medidas
que poderiam ser adotadas seria alterar a forma do sistema eleitoral por meio de uma reforma
política.
Portanto, da análise histórica-legislativa da participação feminina na política,
passando pela legislação de cotas, Lei Maria da Penha e Projeto de Lei para tipificação da
violência política de gênero como crime eleitoral, percebe-se que essa é uma estrada longa
e que ainda estamos no início dessa caminhada, que deve ser trilhada com garra e luta para
garantir a efetiva representatividade da mulher nos espaço de poder.

3 CONCLUSÃO

A violência contra as mulheres é um tema que, cada vez mais, deve ocupar espaço
nas discussões acadêmicas e institucionais, porque ainda há uma enorme desigualdade de
gênero em várias áreas da nossa sociedade, sobretudo no campo político e nos espaços de
poder.
Não há explicação para que as mulheres ocupem cerca de 13% dos cargos políticos
municipais e menos de 4% dos Governos sendo mais da metade da população brasileira.
Esse distanciamento das mulheres dos espaços de poder se dá por muitos motivos,
mas certamente a falta de representatividade e a violência sofrida pelas mulheres que ousam
ocupar esses espaços que historicamente foram dominados por homens são pontos que
influenciam na manutenção da disparidade de gênero.
A violência contra a mulher é histórica e estrutural, e existe com o objetivo de manter
a estrutura dominante, ou seja, a sociedade patriarcal, onde os homens estão no poder e detém
o controle das vidas e dos corpos das mulheres.
Diante disso, observa-se que, ainda que existam leis como a Lei Maria da Penha, que
busca coibir a violência doméstica contra mulheres, a Lei do Feminicídio, que tipifica o

24
SPOHR, Alexandre Piffero, MAGLIA, Cristiana, MACHADO, Gabriel, OLIVEIRA, Joana Oliveira de.
Participação Política de Mulheres na Américia Latina: o impacto de cotas e de lista fechada. Estudos
Feministas, Florianópolis, 24(2): 292, maio-agosto/2016.
344

assassinato de mulheres, a legislação eleitoral de cotas para assegurar a participação


igualitária de gênero nas eleições, as mulheres ainda são minoria na política, deixando de
ocupar os espaços de poder de forma paritária com os homens.
Esse cenário se deve em muito à violência política de gênero praticada contra
candidatas e eleitas, violência que às atinge de diversas formas (psicológica, sexual, estética,
simbólica, patriarcal, física) alcançando, por vezes, até os seus familiares e chegando a
extremos como a sua morte, a exemplo do ocorrido com a vereadora Marielle Franco.
Como foi visto, esse tipo de violência se dá por meio de discursos de ódio, de
deslegitimação, de fake news, dentre outros.
Com efeito, ainda que a Lei Maria da Penha elenque de forma exemplificativa os
tipos de violência contra a mulher, a violência política de gênero não consta expressamente
no texto legal, o que resulta na apuração desses crimes como crimes eleitorais e não crimes
contra a mulher e, consequentemente, fortalece esse tipo de prática.
Diante disso, ainda que o cenário não seja o dos melhores, esse tipo de violência está
cada vez mais evidente e, a partir dessa tomada de consciência, o debate é fortalecido para
que as medidas de garantia dos direitos das mulheres sejam adotadas de forma mais efetiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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mulher é necessária, dizem debatedoras. Agência Câmara de Notícias, 2020. Disponível
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Oliveira de. Participação Política de Mulheres na Américia Latina: o impacto de cotas e
de lista fechada. Estudos Feministas, Florianópolis, 24(2): 292, maio-agosto/2016.
346

UNIÃO ESTÁVEL E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART 1790


DO CC FRENTE À DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Delma Silveira Ibias1

Resumo: O presente estudo tem a finalidade realizar uma análise crítica do instituto da união
estável, abordando os requisitos legais para sua configuração e como a jurisprudência, em
especial o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, vem entendendo esses
requisitos. Além disso, em face das consequências sucessórias da união estável e da decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº
878.694-MG, apontar os fundamentos e analisar os efeitos jurídicos desse julgado,
enfatizando-se a necessidade da modulação de efeitos da declaração da inconstitucionalidade
do art. 1.790 do Código Civil.

Palavras-chave:
União Estável - requisitos - sucessão - inconstitucionalidade - modulação de efeitos.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho tem como intuito analisar o instituto da união estável, abordando
os requisitos legais e como a jurisprudência, em especial do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul, aprecia os requisitos caracterizadores dessa entidade familiar e tendo
em vista as consequências sociais e jurídicas da declaração incidental de
inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, enfrentar os efeitos do RE 878.694-MG
e registrar a imperiosa modulação dos efeitos dessa declaração de inconstitucionalidade.
A união estável é uma das formas de configuração da família, sendo que a mesma é,
estatisticamente, a maneira mais frequente da formação do eixo familiar, conforme dados do

1
Delma Silveira Ibias, Advogada, Mestre em Direitos Humanos pela UNIRITTER - Centro Universitário
Ritter dos Reis, Especialista em Direito Civil pela UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Especialista em Direito Processual Civil pela ABDPC - Academia Brasileira de Direito Processual Civil, Vice-
Presidente do IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul, Diretora
do IARGS - Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, Ex-Presidente da Comissão da Mulher Advogada
da OAB/RS - Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Rio Grande do Sul, Ex-Conselheira Estadual da
OAB/RS, Julgadora do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RS, Professora de Pós-Graduação do Curso de
Especialização em Direito de Família e Sucessões da PUCRS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul; da FMP - Fundação do Ministério Público do RS e da Pós-Graduação em Direito de Família
Contemporâneo e Mediação da FADERGS - Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul e autora
de artigos em obras jurídicas de Direito de Família e Sucessões e outros. Endereço eletrônico:
dibias@outlook.com.br
347

Colégio Notarial do Brasil, houve um aumento de 57% no número de formalização2 das


uniões, enquanto que o casamento cresceu em +- 10%, no período de 2011 a 2015 e que
mais de um terço (36,4%) das uniões dos casais brasileiros ocorrem pela formação da união
estável3.
Cabe referir que Diego Oliveira da Silveira e Marcelo Santagada de Aguiar destacam
que a família dos dias atuais é completamente diversa4 dos arranjos familiares de décadas
passadas, pois até a Constituição Federal de 19885 o Estado, somente, reconhecia a família
constituída pelo casamento e para que as pessoas chegassem ao estágio de casar era
necessário namorar por um bom tempo, para depois pedir a namorada em noivado, após
autorização expressa do pai da noiva e por fim, casar e iniciar uma vida em comum.
Ressalta-se que a vida contemporânea é muito dinâmica e gera uma espécie de
relações amorosas, por vezes, instantâneas, intensas e não duráveis, pois vivemos em uma
sociedade em que o “ficar”6 é natural e que as redes sociais7 constituem uma ferramenta
para a aproximação da pessoa a ser conquistada, consequentemente, o namoro lento, de só
pegar na mão ou de mal trocar olhares no portão da casa ou de namorar no sofá na quarta-

2
Os dados da CENSEC, Central de Dados do Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB/CF),
entidade que congrega os cartórios de notas, confirmam a percepção comumente compartilhada entre as
pessoas de que os casais estão preferindo se juntara se casar. Os tabelionatos de notas de todo o Brasil
registraram um aumento de 57% no número de formalizações de uniões estáveis de 2011 (87.085) a 2015
(136.941), enquanto os casamentos cresceram aproximadamente 10% no mesmo período, segundo o Sistema
IBGE de Recuperação Automática (SIDRA), passando de 1.026.736 para 1.131.734 atos realizados. Ver:
Portal do RI. Número de uniões estáveis cresce cinco vezes mais rápido do que o de casamentos. Disponível
em: http://www.portaldori.com.br/2017/02/20/numero-de-unioes-estaveis-cresce-cinco-vezes-mais-rapido-
do-que-o-de-casamentos/ e acesso em 09/10/2017.
3
Mais de um terço dos casais optou por manter uma união estável ao realizar o casamento tradicional.
No Brasil, o número de uniões estáveis já supera a marca de 36,4% do total dos tipos de relacionamentos.
Os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que mais de um
terço dos casais optou por manter uma união estável ao realizar o tradicional casamento civil ou religioso.
Ver: Uniões consensuais superam casamento civil e religioso. Disponível em: https://arpen-
sp.jusbrasil.com.br/noticias/127239479/unioes-consensuais-superam-casamento-civil-e-religioso e acesso em
09/10/2017.
4
SILVEIRA, Diego Oliveira da; AGUIAR, Marcelo Santagada. Novas famílias: livre arbítrio e repercussão
social. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria Busnello;
FLEISCHMANN, Simone Tassinari Cardoso (Organizadores). Temas do dia a dia no Direito de Família e
das Sucessões. Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2017. p. 113.
5
O art. 226 da Constituição Federal de 1988 previu o respeito das diversas entidades familiares, pois a união
estável, a família monorapental, dentre outras, passaram a ser tuteladas pelo ordenamento pátrio, sendo a
família a base da sociedade e merecendo especial proteção do Estado.
6
O significado de FICAR é beijar ou namorar por apenas um momento. Dicionário inFormal da Língua
Portuguesa. Disponível em http://www.dicionarioinformal.com.br/ficar/ e acesso em 10/06/2013.
7
As redes sociais: Instagram, Twitter, Blog`s e, especialmente, o Facebook (www.facebook.com), constituem
uma importante ferramenta de interação entre as pessoas e as relações amorosas não fogem desse contexto,
pois muitos relacionamentos iniciaram com um “Oi” pelo Messenger de uma pessoa interessante, sendo esse
o início para uma conversa virtual e posteriormente para um encontro.
348

feira, sob os olhares protetivos do pai da namorada virou algo do passado, tanto que essa
figura poderia ser reproduzida em um museu para ilustrar a convivência social ultrapassada,
assim como vemos as roupas de época, as quais demonstram algo distante de nós.8
Inclusive, Conrado Paulino da Rosa trouxe para reflexão o tema do iFamily ou
família on line para destacar que as famílias mudaram nas últimas décadas e que a relação
das mesmas com as novas tecnologias fizeram com que os relacionamentos ficassem mais
imediatos e mesmo que isso seja antagônico, também, mais distantes, pois as pessoas se
comunicam pelos meios virtuais ou invés do contato pessoal9.
Nesse viés, pode-se afirmar que atualmente a família mudou10 de uma forma clássica
em que se tinha um pater família e que os relacionamento eram lentos e duradouros para
uma nossa fase de se relacionar afetivamente, sendo o amor esse elo de ligação entre as
pessoas, o qual é formado de maneira rápida e dinâmica11 e que também é dissolvido de uma
forma rápida12 e uma expressiva fatia da população brasileira vive em união estável, sendo
que o “morar junto” virou uma rotina na vida das pessoas e, cada vez mais, a união começa
com prazo reduzido de tempo prévio à união estável.
Inclusive, Silvio de Salvo Venosa aponta que o namoro tradicional desapareceu e que
os freios sexuais do passado não existem mais, consequentemente, que os relacionamentos
amorosos precisam ser interpretados por uma nova perspectiva, cujo entendimento se
reproduz:
Nesta era tecnológica, de comunicações imediatas, conhecimento de centenas de
pessoas no mundo virtual, pressão social e profissional e um sem-número de
normas legais a serem obedecidas, era inevitável que as relações afetivas fossem
afetadas e se transformassem.

8
SILVEIRA, Diego Oliveira da. Namoro e união estável: como diferenciar essas relações? In: IBIAS, Delma
Silveira; SILVEIRA, Diego Oliveira da (Coordenadores). Família e Sucessões sob um Olhar Prático.
Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: IBDFAM/RS: Letra&Vida, 2013. p. 125.
9
ROSA, Conrado Paulino. “iFamily”: Um Novo Conceito de Família? São Paulo: Saraiva, 2013. p. 176.
10
IBIAS, Delma Silveira. Famílias Simultâneas e Efeitos Patrimoniais. In: SOUZA, Ivone Maria Candido
Coelho de (Coordenadora). Família Contemporânea: Uma Visão Interdisciplinar. Coletânea editada pelo
IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
IBDFAM/RS: Letra&Vida, 2011. p. 196/197.
11
SILVEIRA, Diego Oliveira da. Uma Análise Crítica dos Motivos Ensejadores da Alienação Parental e das
formas de Combate dessa Grave Afronta ao Direito Fundamental das Crianças e Adolescentes a uma
Harmoniosa Relação Parental. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria
Busnello (Organizadores). Grandes Temas de Família e Sucessões. Coletânea editada pelo IBDFAM/RS -
Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2016. p. 190.
12
Inclusive, a Emenda Constitucional 66/2010, oriunda das discussões do IBDFAM - Instituto Brasileiro de
Direito de Família, estabeleceu que o casamento é dissolvido pelo divórcio, acabando com prazos para que se
perfectibilizasse o divórcio do casal e esse importante direito ilustra a rapidez da formação e da dissolução dos
vínculos amorosos.
349

O velho e tradicional namoro, situação prévia para o casamento, que apontava para
um noivado antedecente, desapareceu tal como era algumas décadas atrás. As
velhas regras sociais e freios sexuais do passado não existem mais. As inúmeras
regras que impõem novos deveres sociais, morais e responsabilidade patrimoniais
aos envolvidos em um relacionamento afetivo forçam cada dia mais uma nova
perspectiva nessa área de convivência.13

Uma nova perspectiva é necessária porque hoje os relacionamentos amorosos


possuem limites tênues e há um grande espaço cinza entre as relações, pois um namoro em
que o(a) namorado(a) passa três dias na semana (sexta a domingo) na casa do(a) namorado(a)
é um namoro? Ou será que ai já temos configurada uma união estável?
E as pessoas que passam férias juntos ou que fazem viagens nacionais e/ou
internacionais como um casal apaixonado estão vivendo um namoro ou uma convivência
estável?
Ainda, e as pessoas que possuem a intenção de manter um relacionamento amoroso,
mas que não a intenção de compartilhar a vida sob o mesmo teto e não querem misturar o
patrimônio14, têm o direito de viver desta forma?
Ou será que compete ao Estado regular esse tipo de relação?
Essas indagações são relevantes porque há enormes consequências jurídicas ao se
reconhecer uma relação como união estável, eis que o namoro não tem quaisquer efeitos
jurídicos, como regra geral.
Então, já que a sociedade contemporânea tem relacionamentos amorosos que não
possuem os freios sexuais e sociais de décadas atrás, compete aos interpretes analisarem as
características do namoro, do namoro qualificado e da união estável, viabilizando, assim,
que a vontade dos integrantes desses relacionamentos possa ser preservada, bem como seja
vedado o enriquecimento sem causa da pessoa que almeja a partilha do patrimônio do(a)
namorado(a) ou do(a) companheiro(a) que tenta disfarçar as características da relação para
não dividir os bens onerosos amealhados durante a união estável.

13
VENOSA, Silvio de Salvo. Contratos afetivos: o temor do amor. In. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord).
Família entre o público e o privado. Obra é formada pelas palestras do VIII Congresso de Direito de Família
promovido pelo IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: Magister, 2012. p. 334.
14
O Namoro Qualificado ocorre quando pessoas desejam viver uma vida amorosa, mas sem ter uma vida sob
o mesmo teto e sem dividir o patrimônio, eis que geralmente são pessoas que já possuem filhos e que detém
um patrimônio amealhado durante uma vida, consequentemente, não há a intenção de constituir uma nova
família e isso descaracteriza a união estável. Ver: SANTOS, Luiz Felipe Brasil. A autonomia de vontade no
direito de família contemporâneo. In. IBIAS, Delma Silveira (coord.). Família e seus desafios: reflexões
pessoais e patrimoniais. Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família -
Seção Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Suliani, 2012. p. 11-16.
350

No início deste artigo se apontou que as redes sociais constituem uma rica forma de
relação com outras pessoas e que atualmente as pessoas postam fotos de momentos
românticos, de viagens e da rotina da relação, além de divulgar seu “status” de
relacionamento (solteiro, casado, relacionamento sério e etc.) Será que o “status” de
relacionamento sério no facebook ou será que postagens românticas constituem provas
cabais da existência de uma união estável?
Inclusive, em uma ação declaratória de união estável proposta na 2ª Vara da Família
da Comarca de Belém/PA se reconheceu a existência de uma união estável, em face das
partes publicarem seu relacionamento como sério e em virtude do réu da ação postar que a
autora era a mulher da sua vida e de usar a expressão minha mulher15.
Mas, será que essas circunstâncias são suficientes para configurar uma união estável?
Acredita-se que esse é um ponto muito controvertido e que enseja uma reflexão
crítica de como se dá as relações na sociedade contemporânea e como essas relações devem
ser enquadradas no mundo jurídico.
Então, como os operadores do direito e das áreas interdisciplinares devem interpretar
as informações postadas pelos namorados e/ou companheiros nas redes sociais?
Salienta-se, que a doutrina e a jurisprudência discutem como melhor adequar as
relações amorosas da contemporaneidade ao nosso regramento jurídico, sendo que a
jurisprudência, em especial os julgados do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, o qual é um tribunal vanguardista e constitui uma referência nacional dentro
do Direito de Família, tem sido muito restritiva na configuração da união estável, conforme
será demonstrado no item sobre os requisitos para a caracterização da união estável.

Como a união estável é uma entidade familiar merecedora de proteção do Estado16,


como há demandas propostas post mortem para o reconhecimento da união estável e como
o Supremo Tribunal Federal declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade do art. 1.790
do Código Civil, ao julgar o RE 878.694-MG, conforme certidão a seguir enfatizada,
necessária a análise da sucessão da união estável e desse julgado, em especialmente, dos
efeitos da declaração da inconstitucionalidade e da modulação de efeitos dessa decisão.

15
Juiz reconhece união estável por causa de “relacionamento sério” no facebook. Blog Enfu. Disponível em:
http://www.enfu.com.br/juiz-reconhece-uniao-estavel-por-causa-do-relacionamento-serio-no-facebook/ e
acesso em 09/10/2017.
16
IBIAS, Delma Silveira. A inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. Disponivel em:
www.revistasimbolo.com.br e acesso em 09/10/2017.
351

O Tribunal, apreciando o tema 809 da Repercussão Geral, por maioria e nos


termos do voto do Ministro Relator, deu provimento ao recurso, para reconhecer
de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 e declarar o
direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade
com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002,
vencidos os Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que
votaram negando provimento ao recurso. Em seguida, o Tribunal, vencido o
Ministro Marco Aurélio, fixou tese nos seguintes termos: ‘É inconstitucional a
distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no
art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de
casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002’.
...omissis...Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 10.5.2017. 17

Aponta-se que Diego Oliveira da Silveira e Daniella Maria Feliciano dos Santos18
registraram em Abril/2017 que a provável decisão do Supremo Tribunal Federal, ao julgar
o Recurso Extraordinário com Repercussão Geral nº 878.694-MG, seria pela
inconstitucionalidade integral do art. 1.790 do Código Civil, pois na sessão anterior 07
ministros tinham votado pela inconstitucionalidade da sucessão do companheiro19 e em face
disso, onde a norma inconstitucional possui efeitos ex tunc20, era imperiosa a modulação de
efeitos decorrentes da decisão que gera um overruling21 na jurisprudência pátria, sendo que
a publicação desse acórdão sem que haja a necessária modulação de efeitos, poderia ensejar
a discussão sobre a reabertura de partilhas de inventários que tenham companheiro como
herdeiro ocorridas entre 2003 a 2017, com base na relativização da coisa julgada
inconstitucional22 e isso geraria uma grande insegurança jurídica na nossa sociedade.

17
O acórdão do RE 878.694-MG não foi até a presente data (09/10/2017) publicado e por esse motivo se aponta
a certidão de julgamento e a informação computadorizada deste recurso, as quais estão disponíveis em:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4744004 e acesso em
09/10/2017.
18
SILVEIRA, Diego Oliveira da; SANTOS, Daniella Maria Feliciano dos. A inconstitcionalidade do artigo
1.790 do Código Civil e a imperiosa modulação de efeitos da provável decisão do Supremo Tribunal Federal.
In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria Busnello; FLEISCHMANN,
Simone Tassinari Cardoso (Organizadores). Temas do dia a dia no Direito de Família e das Sucessões.
Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2017. p. 104/107.
19
O Supremo Tribunal Federal é formado por 11 ministros – assim já tinha mais da metade dos votos pela
inconstitucionalidade e não é comum a alteração de votos pelos magistrados da Corte Constitucional.
20
O efeito ex tunc estabelece que os efeitos de um ato ou decisão retornam ao momento da sua edição. Ver:
MATHIAS, Maria Ligia Coelho; Lourenço, José. Efeitos ex tunc e ex nunc na mudança de regime de bens
no casamento e na união estável. RJLB, Ano 2017, nº 01, Pag. 509/544. Disponível em:
http://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/rjlb/2017/1/2017_01_0509_0544.pdf e acesso em 25/04/2017.
21
Overruling é a técnica proveniente do Common Law, que designa a modulação de efeitos temporais quando
da alteração de um precedente da Corte, em controle difuso de constitucionalidade. Ver: WAGNITZ, Ana
Beatriz Rocha. O prospective overruling aplicado ao Direito Brasileiro: um estudo à luz da segurança
jurídica. Disponível em: http://bdm.unb.br/bitstream/10483/8923/1/2014_AnaBeatrizRochaWagnitz.pdf e
acesso em 25/04/2017.
22
A coisa julgada inconstitucional se verifica quando uma sentença, transitada em julgado, encontra-se
motivada em interpretação ou aplicação de lei tida pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a
352

Embora, não se tenha acesso, ainda, ao inteiro teor do acórdão do RE 878.694-MG,


acredita-se, em face do teor da certidão do julgamento supra, que o STF não deve ter
modulado os efeitos dessa decisão, eis que a modulação de efeitos exige quorum qualificado
(08 ministro do STF) para sua aprovação e votação específica.23
Então, o presente artigo analisará os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da
sucessão do companheiro, abordando-se, brevemente, os fundamentos da
inconstitucionalidade integral da sucessão do companheiro e como é imperiosa a modulação
dos efeitos dessa decisão, em face das consequências geradas pela repercussão geral, a qual
é erga omnes e possui efeito vinculante24.
Assim, no presente estudo se abordará os requisitos para a configuração da união
estável, diferenciando-a do namoro; os aspectos sucessórios da união estável e a declaração
de inconstitucionalidade realizada pelo Supremo Tribunal Federal; os efeitos naturais do RE
878.694-MG e a necessidade da modulação desses efeitos, preservando-se, dessa forma, a
segurança jurídica das partilhas e dos atos e negócios jurídicos decorrentes delas, realizadas
sob à égide da vigência válida do art. 1.790 do Código Civil Brasileiro.

Imagine-se a insegurança jurídica que ocorrerá se for possível rediscutir partilhas


realizadas por mais de uma década, pois além dessa possibilidade afetar os herdeiros que
receberam legalmente o seu quinhão no inventário e pior ainda, a ausência da modulação
dos eleitos poderá atingir terceiros de boa-fé que realizaram atos ou negócios jurídicos
decorrentes desses inventários e, sem a menor sombra de dúvida, isso gera uma insegurança
jurídica na sucessão sem precedentes e essa insegurança é muito prejudicial, conforme
leciona Ernesto J. Silveira Netto25.

Todavia, antes de analisar as consequência sucessórias da união estável, imperativa


é a análise dos requisitos caracterizadores dessa entidade familiar e a pesquisa de como o

Constituição. Ver: CANCELLA, Carina Bellini. Da relativização da coisa julgada inconstitucional.


Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/download/index/id/521838 e acesso em 25/04/2017.
23
ÁVILA, ANA PAULA OLIVEIRA. A MODULAÇÃO DE EFEITOS TEMPORAIS PELO STF NO
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. PORTO ALEGRE: LIVRARIA DO ADVOGADO, 2009. P.
102-105.
24
MAFRA, Sandra. Natureza jurídica dos efeitos da decisão do STF no julgamento do mérito nos
Recursos Extraordinários com repercussão geral. Disponível em:
https://sanmaf.jusbrasil.com.br/artigos/131294715/natureza-juridica-dos-efeitos-da-decisao-do-stf-no-
julgamento-do-merito-nos-recursos-extraordinarios-com-repercussao-geral e acesso em 08/10/2017.
25
SILVEIRA NETTO, Ernesto J. A insegurança jurídica na sucessão. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS,
Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria Busnello (Organizadores). Grandes Temas de Família e Sucessões.
Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2016. p. 390-391.
353

Poder Judiciário, em especial, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, vem
entendendo os requisitos previstos no art. 1.723 do Código Civil Brasileiro.

2. UNIÃO ESTÁVEL: REQUISITOS PARA SUA CARACTERIZAÇÃO E COMO


DIFERENCIAR DO NAMORO

Como já referido é imperioso definir as características das relações amorosas


contemporâneas e quais são suas consequências jurídicas. A instantaneidade dos
relacionamentos ocorrida nos últimos tempos gerou um feixe de hipóteses de relações, ao
contrário de décadas atrás onde se tinha um namoro sério e longo, um noivado e no final um
casamento, o qual deveria ser indissolúvel e abençoado pela igreja26.
Frisa-se, que não há a intenção de discutir se a mudança ocorrida é salutar ou se há
um desvirtuamento dos bons costumes27 e/ou do conceito clássico de família, mas sim
apontar que a sociedade contemporânea mudou e que os relacionamentos amorosos se
transformaram e exigem um olhar diferenciado dos atores que atuam no Direito das Famílias
e das Sucessões28.
Inclusive, as relações sexuais e amorosas estão ocorrendo cada vez mais de forma
imediata, pois a cultura social foi alterada29, eis que seria impensável há 30 anos atrás que o
namorado dormisse no mesmo quarto da namorada na casa dos pais da menina e isso é uma
circunstância corriqueira na maior parte das residências brasileiras30.

26
SILVEIRA, Diego Oliveira da. Namoro e união estável: como diferenciar essas relações? In: IBIAS, Delma
Silveira; SILVEIRA, Diego Oliveira da (Coordenadores). Família e Sucessões sob um Olhar Prático.
Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: IBDFAM/RS: Letra&Vida, 2013. p. 125.
27
Os bons costumes na visão tradicional da sociedade consistem em estabelecer certos e determinados
comportamentos, tais como: a disciplina e a ordem, a pontualidade, a cooperação, o respeito mútuo, a discrição
e a solicitude, denotam aprimoramento educacional, quer seja na família, na escola, na oficina de trabalho, ou
em qualquer outra instituição ou atividade humana. Ver: In. FERREIRA, Ângelo Luis. A ética e os bons
costumes. Disponível em: http://visualdicas.blogspot.com.br/2009/08/etica-e-os-bons-costumes.html e acesso
em 20/06/2017.
28
SILVEIRA, Diego Oliveira da; AGUIAR, Marcelo Santagada. Novas famílias: livre arbítrio e repercussão
social. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria Busnello;
FLEISCHMANN, Simone Tassinari Cardoso (Organizadores). Temas do dia a dia no Direito de Família e
das Sucessões. Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2017. p. 113.
29
SILVEIRA, Diego Oliveira da. Namoro e união estável: como diferenciar essas relações? In: IBIAS, Delma
Silveira; SILVEIRA, Diego Oliveira da (Coordenadores). Família e Sucessões sob um Olhar Prático.
Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: IBDFAM/RS: Letra&Vida, 2013. p. 126.
30
Embora, não haja um estudo científico que comprove que namorados possam dormir no mesmo quarto na
maior parte das casas brasileiras, isso é um fato que possui notório conhecimento na sociedade. Aliás, isso
354

Pode-se afirmar que as relações amorosas possuem muitas facetas e que podem ser
conceituadas como: “amasso”31, “ficar”32, “rolo”33, “amizade-colorida” 34, namoro35 e
etc... Temos, também, o namoro qualificado36, o qual se assemelha a união estável, contudo,
não possuindo repercussões jurídicas patrimoniais, sucessórias e/ou alimentares.
Enquanto, que a união estável37 possui repercussões patrimoniais, sucessórias e
alimentares para os companheiros da união, pois é uma entidade familiar reconhecida pela
Constituição Federal de 1988 e exige a proteção estatal, conforme aponta Rolf Madaleno38
no seu Curso de Direito de Família.
Frisa-se, também, que o concubinato é um tema que foge à área “cinzenta” entre o
namoro e a união estável39 e por isso, mister analisar só a união estável, sendo essa uma
temática para outro artigo.

ocorre porque a sociedade mudou seus valores e, especialmente, porque os pais preferem que os filhos fiquem
namorando em casa, ao invés de ficar namorando na rua e sujeitos a sofrer com a violência.
31
Dar um AMASSO é beijar e ficar apalpando o corpo do parceiro. Como pode-se concluir da frase: “Ele ficou
só no amasso com ela, não fez mais nada”. Dicionário inFormal da língua portuguesa. Disponível em
http://www.dicionarioinformal.com.br/amasso/ e acesso em 10/06/2013.
32
O significado de FICAR é beijar ou namorar por apenas um momento. Veja a seguinte afirmativa: “Ontem
a noite eu fiquei com a menina mais bonita da festa.” Dicionário inFormal da língua portuguesa. Disponível
em http://www.dicionarioinformal.com.br/ficar/ e acesso em 10/06/2013.
33
O ROLO é um envolvimento de forma informal e sem compromisso. Observe o seguinte exemplo: “Fulano
e Beltrana estão de rolo, apenas isso.” Dicionário inFormal da língua portuguesa. Disponível em
http://www.dicionarioinformal.com.br/rolo/ e acesso em 10/06/2013.
34
A AMIZADE-COLORIDA configura um relacionamento de amizade com instintos sexuais, sem
compromisso de namoro firme ou casamento. Veja a seguinte frase: “Eu e uma amiga temos amizade mútua e
sentimos tesão um pelo outro, mas sem aquele sentimento profundo de amor.” Dicionário inFormal da língua
portuguesa. Disponível em http://www.dicionarioinformal.com.br/amizade-colorida/ e acesso em 10/06/2013.
35
O NAMORO é uma instituição de relacionamento interpessoal não moderna, que tem como função a
experimentação sentimental e/ou sexual entre duas pessoas através da troca de conhecimentos e uma vivência
com um grau de comprometimento inferior à do matrimônio. A grande maioria utiliza o namoro como pré-
condição para o estabelecimento de um noivado ou casamento, definido este último ato antropologicamente
como um o vínculo estabelecido entre duas pessoas mediante o reconhecimento governamental, religioso ou
social. Dicionário inFormal da língua portuguesa. Disponível em
http://www.dicionarioinformal.com.br/namoro/ e acesso em 10/06/2013.
36
O NAMORO QUALIFICADO ocorre quando pessoas desejam viver uma vida amorosa, mas sem ter uma
vida sob o mesmo teto e sem dividir o patrimônio, eis que geralmente são pessoas que já possuem filhos e que
detém um patrimônio amealhado durante uma vida, consequentemente, não há a intenção de constituir uma
nova família e isso descaracteriza a união estável. Ver: SANTOS, Luiz Felipe Brasil. A autonomia de vontade
no direito de família contemporâneo. In. IBIAS, Delma Silveira (coord.). Família e seus desafios: reflexões
pessoais e patrimoniais. Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família -
Seção Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Suliani, 2012. pp. 11-16.
37
A UNIÃO ESTÁVEL é definida pelo art. 1.723 do Código Civil Brasileiro como uma entidade familiar
existente entre homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família.
38
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4ª edição, revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro:
Forense, 2011. p. 1.012.
39
SILVEIRA, Diego Oliveira da. Namoro e união estável: como diferenciar essas relações? In: IBIAS, Delma
Silveira; SILVEIRA, Diego Oliveira da (Coordenadores). Família e Sucessões sob um Olhar Prático.
355

Registra-se, que a união estável foi reconhecida como entidade familiar na


Constituição Federal de 198840, conforme referido anteriormente e a mesma foi
regulamentada por duas leis infraconstitucionais (Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96).
Como refere Rolf Madaleno a Lei nº 8.971/9441 trouxe no início da década de 1990
mais controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais do que as existentes antes da legislação,
pois a normatividade condicionou o reconhecimento da união estável à existência de prole
ou ao prazo mínimo de 05 anos para ter direito a alimentos, ao patrimônio e à sucessão.42
Mas se uma pessoa vivesse em união estável por 04 anos e 11 meses e não tivessem
filhos com a outra parte, a mesma não estaria protegida pelo ordenamento pátrio?
Em face disso, Euclides de Oliveira destaca que a Lei nº 9.278/9643 corrigiu essa
circunstância e acabou com qualquer prazo para a caracterização da união estável,
estabelecendo como requisitos: a convivência pública, contínua e duradoura com animus de
constituir família44.
A Lei nº 9.278/96 estabeleceu que sendo reconhecida a união estável, o regime de
bens legal seria a comunhão parcial dos bens adquiridos onerosamente durante a constância
da união, salvo estipulação contrária prevista em contrato escrito, como salientado na obra
Concubinato, novos rumos de Basílio de Oliveira45.
O “Novo” Código Civil Brasileiro, promulgado em 10/01/2002, através da Lei nº
10.406/2002, regulamentou a união estável nos artigos 1.723 a 1.727 e reproduziu a
definição de união estável que havia no art. 1º da Lei nº 9.278/96, bem como manteve o
regime de bens da comunhão parcial. Imperioso referir, que o codex de 2002 estabeleceu
diferenças entre a união estável e o casamento, privilegiando a figura do casamento,

Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: IBDFAM/RS: Letra&Vida, 2013. p. 127.
40
Art. 226, § 3º da Constituição Federal de 1988: “Para efeitos da proteção do Estado, é reconhecida a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
41
O art. 1º da Lei nº 8.971/94: “A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente,
divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de 5 (cinco) anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do
disposto na Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a
necessidade”.
42
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4ª edição, revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro:
Forense, 2011. p. 1.014-1.015.
43
O art. 1º da Lei nº 9.278/96: “É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e
contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família”.
44
OLIVEIRA, Euclides de. União estável, do concubinato ao casamento, antes e depois do novo Código
Civil. 6ª edição. São Paulo: Método, 2003. p. 99.
45
OLIVEIRA, Basílio de. Concubinato, novos rumos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1994. p. 96.
356

especialmente no que tange aos direitos sucessórios e essas diferenças geraram o julgamento
do RE 878.694-MG, o qual será analisado posteriormente.
Mas, antes de analisar as consequências da declaração de inconstitucionalidade do
art. 1.790 do Código Civil de 2002, mister abordar as características da união estável
definidas no art. 1.723 do Código Civil Brasileiro, o qual se enfatiza abaixo e como os
mesmos vem sendo apreciados pela jurisprudência, em especial, do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, diferenciando-se, assim, a união estável de outras relações
amorosas, notadamente, do namoro.

É reconhecida como entidade familiar a união estável entre homem e mulher,


configurada na convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo de
constituição de família.46
Como leciona Sérgio Gischkow Pereira o artigo 1.723 do Código Civil é vago e
amplo, pois o que se entende por convivência duradoura? E como trabalhar o subjetivismo
do requisito de constituir família?47 Esses questionamentos são relevantes e possuem grande
aplicação prática nas ações de declaração e de dissolução de união estável, pois uma das
partes quer reconhecer a convivência como uma união estável e a outra defende que o
relacionamento não passou de um mero namoro, o qual não possui deveres jurídicos de
partilha de bens, sucessão e etc...
Para responder essas perguntas, Francisco José Cahali defende que união estável é
“o vínculo afetivo entre homem e a mulher, como se casados fossem, com as características
inerentes ao casamento, e com a intenção de permanência da vida em comum”48.
Portanto, a união estável é configurada quando há uma relação pública, contínua,
duradoura e com o objetivo de constituir família, sendo que todos esses requisitos devem
estar presentes para que seja possível reconhecer a relação como a entidade familiar
denominada de união estável.

46
Art. 1.723 do Código Civil Brasileiro. Destaca-se, no que pertine a necessidade de diversidade de sexo para
o reconhecimento da união estável, o Supremo Tribunal Federal - STF reconheceu a união estável entre pessoas
do mesmo sexo, através de uma interpretação conforme a constituição deste dispositivo legal. Ver: ADPF nº
132 e ADI nº 4277, Pleno do Supremo Tribunal Federal, Relator Min. Ayres Brito. Ações constitucionais
julgadas em 05/05/2011. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633 e acesso em 10/06/2013.
47
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Direito de família: aspectos do casamento, sua eficácia, separação,
divórcio, parentesco, filiação, regime de bens, alimentos, bem de família, união estável, tutela e curatela.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 192.
48
CAHALI, Francisco José. União estável e alimentos entre companheiros. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 49-
50.
357

Contudo, como identificar nos dias atuais, onde as relações são instantâneas e onde
os namorados vivem finais de semana juntos, frequentam festas como um casal, passam
férias juntos, viajam juntos e etc..., como referido nas considerações iniciais deste artigo e
será que essas relações são caracterizadas como duradouras, contínuas, públicas e possuem
intenção de constituir família? E será que é necessária a coabitação49 para configurar a união
estável?
Embora, a coabitação não seja um requisito legal, a jurisprudência entende que essa
é uma circunstância que deve estar presente para caracterizar a união estável ou a parte deve
ter uma forte explicação para que os companheiros tenham residências separadas.
Assim, compete ao operador do direito reconhecer a união estável quando a ausência
de coabitação estiver justificada por razões de trabalho que exijam o exercício em regiões
geograficamente distantes50.
Mas, voltando à indagação do início do artigo e as relações onde a pessoa permanece
03 ou 04 dias por semana na casa do(a) namorado(a)? Essa relação é um namoro? Ou já
podemos apontá-la como união estável?
Essas perguntas estão intimamente ligadas ao outro requisito que é a intenção de
constituir família e devem ser interpretadas conjuntamente pelos operadores do direito e das
áreas interdisciplinares. E será que a pessoa tem a autonomia da vontade para decidir ter um
namoro ou compete ao Estado estabelecer que a relação que tenha “roupagem” de união
estável seja regulada como união estável?

49
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA. EXISTÊNCIA 1. Sem dúvida houve
relacionamento afetivo e íntimo entre o autor e a apelante, havendo filhos comuns nascidos antes do começo
da união estável por ele afirmada na sua petição inicial (de março de 2003 até 20-06-2011). Ao passo que ele
era casado, dizendo ter rompido faticamente o casamento, a apelante assevera que nunca viveram em união
estável, tendo ela outro companheiro, falecido em 2005. Assim, controvertida a alegação de convivência
em união estável e contraditória a própria prova documental, que ora aponta coincidência de endereços dos
litigantes, ora não, ao lado da antagônica prova testemunhal, de tudo resulta que não se extrai de todos os
elementos do processo convencimento seguro e consistente de que o autor e a apelante tiveram convivência
pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família no período alegado.
Especialmente no contexto de o apelado ter se mantido formalmente casado, ganha destaque a necessidade de
ver presente a coabitação, forte elemento caracterizador da ruptura fática do casamento, não se encontrando
nos autos prova absoluta nesse sentido. 2. De modo que, pela importância constitucional conferida às entidades
familiares constituídas por uniões estáveis e suas relevantes sequelas jurídicas, há que se ter redobrada cautela
e efetivo respaldo probatório para, com segurança, declarar que o relacionamento alegado se revestiu de todas
as características necessárias para ser considerada uma entidade familiar constituída pela união estável - só se
reconhecendo a união estável em situações em que esteja palpitante na prova dos autos, nunca em situações
dúbias, contraditórias, ou em que a prova se mostre dividida, como no caso. DERAM PROVIMENTO.
UNÂNIME. (Apelação Cível nº 70072420318, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des.
Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 17/08/2017 - grifo nosso)
50
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da união estável. In. Direito de família e o novo Código Civil. DIAS, Maria
Berenice. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coordenadores). 3ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 209.
358

Destaca-se, que um(a) namorado(a) pode almejar constituir uma família com a
pessoa amada - namorado(a), mas que no momento tem a intenção de manter um namoro,
pois é importante conhecê-la e vivenciar se ele(a) é a pessoa ideal para passar o resto da vida
e ser pai/mãe de seus filhos. Nesse sentindo Luiz Felipe Brasil Santos defende que a pessoa
deve ter o direito de exercer a autonomia da vontade ao estabelecer seu relacionamento, sob
pena de criarmos um excessivo intervencionismo estatal e de abrir a possibilidade de serem
conferidos efeitos jurídicos não desejados pelos integrantes do relacionamento amoroso51.
Ainda, com relação ao requisito de constituir família, mister tecer mais um
questionamento: será que duraria um namoro onde o(a) namorado(a) não almeja constituir
família, nem que seja no futuro?
Claro que não duraria, pois se a relação estiver nesse patamar, a mesma seria definida
como “ficar”, “rolo”, mero “amasso” e/ou “amizade-colorida” e essas relações não estão
na parte cinzenta entre a relação amorosa sem efeitos jurídicos e a união estável. Inclusive,
no que tange a autonomia da vontade durante a convivência amorosa, um dos integrantes da
relação pode estar querendo um namoro e o outro estar almejando uma união estável.
Se a autonomia da vontade deve ser preservada e a mesma constitui um direito
fundamental como defende Maria Celina Bodin de Moraes ao apontar que o Princípio da
Autonomia da Vontade52 expressa a dignidade da pessoa humana, como harmonizar as
vontades contrastantes?
Nesse sentido Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo P. Rudyk defendem que a
constitucionalidade do direito privado gerou o confronto de direitos fundamentais de forma
horizontal e que o interprete deve sopesar os princípios colidentes e deve aplicar a norma
que concretize a dignidade da pessoa humana53.

51
SANTOS, Luiz Felipe Brasil. A autonomia de vontade no direito de família contemporâneo. In. IBIAS,
Delma Silveira (coord.). Família e seus desafios: reflexões pessoais e patrimoniais. Coletânea editada pelo
IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Suliani,
2012. p. 14.
52
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e o conteúdo
normativo. In. SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 116-120.
53
FACHIN, Luiz Edson. RUDYK, Carlos Eduardo P. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o
novo Código Civil: uma análise crítica. In. SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos
Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 100-105.
359

Então, necessário retomar o caso em que o “status” de relacionamento sério no


facebook e de declarações de amor no sentido de que a amada é a mulher da sua vida foram
utilizadas para fundamentar a existência de uma união estável54.
Destaca-se que essa decisão gerou repercussão nas próprias redes sociais, pois a
grande maioria das pessoas que aponta seu relacionamento como sério no facebook tem a
vontade de ter um namoro e não uma união estável. Imperioso enfatizar, que a legislação
processual vigente estabelece que são admitidos todos os meios (lícitos) de prova55 e que as
publicações em redes sociais não fogem a essa regra.
Todavia, será que reconhecer uma união estável pelo simples fato da pessoa postar
que ama a outra pessoa e que almeja viver momentos especiais com ela não quebrará o
romantismo e a espontaneidade das relações, pois a mulher que está amando e/ou o homem
que está apaixonado não vai poder demonstrar seus sentimentos, eis que demonstrando os
mesmos poderá estar fazendo prova de uma união estável que não almeja, quebrando assim
a sua autonomia da vontade.
Por isso, compete aos operadores do direito e das áreas interdisciplinares identificar
quando os integrantes da relação amorosa almejam um namoro e quando desejam constituir
uma união estável, preservando a autonomia da vontade das pessoas; preservando a
dignidade da pessoa humana e sanando eventual conflito de direitos fundamentais.
Aliás, se o interprete respeitar a autonomia da vontade das pessoas, não reconhecendo
uma união estável quando existir um namoro ou declarando a união quando estiverem

54
JUIZ DA 2ª VARA DE FAMÍLIA DE BELÉM CAPITAL PARAENSE RECONHECEU UNIÃO
ESTÁVEL ATRAVÉS DO STATUS DO FACEBOOK - Tempos modernos!: “O juiz Antonio Nicolau
Barbosa Sobrinho da 2ª Vara de Família da Comarca da capital paraense reconheceu na última sexta-feira
(31/05/13) a união estável de um casal tomando como referência o status do Facebook assumido publicamente
por ambos como “relacionamento sério”. Uma jovem de 23 anos procurou a Justiça para requerer pensão
alimentícia e a divisão de bens após o termino de um namoro de quase dois anos. Tomando como referência
os perfis de ambos nas redes sociais o juiz percebeu que além de se declararem em “relacionamento sério” o
ex-namorado da jovem postou inúmeras fotos dividindo a mesma cama que a jovem e postagens públicas onde
ela era chamada de “minha mulher”. A união estável é o instituto jurídico que estabelece legalmente a
convivência entre duas pessoas sem que seja necessária a celebração do casamento civil. É reconhecida como
entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. O juiz fixou pensão alimentícia de R$
900,00 e a divisão do valor de um veículo Celta 2007 adquirido após o começo do relacionamento. O juiz
Antonio Nicolau orienta aos jovens casais que só se declarem em relacionamento sério no caso de existir real
desejo de constituição familiar. Segundo ele “perfis e postagens em redes sociais podem ter o mesmo valor
que uma certidão de casamento””. Blog de Roberta Carrilho. Disponível em: http://robertacarrilho-
div.blogspot.com.br/2013/06/juiz-antonio-nicolau-barbosa-sobrinho.html. Acesso em 10/06/2017.
55
O Novo Código de Processo Civil regula os meios de prova nos seus arts. 369 a 484.
360

presentes todos os requisitos, consequentemente, estar-se-à tutelando a dignidade da pessoa


humana e evitando o enriquecimento sem causa56.
Portanto, para que uma relação amorosa seja mais do que um namoro devem estar
presentes todos os requisitos caracterizadores da união estável, quais sejam: convivência
pública, contínua, duradoura e com a intenção naquele momento (não no futuro) de constituir
família (ambas as pessoas). Ou seja: o casal deve ser visto pela sociedade como se casados
fossem. Se estiver faltando algum requisito supra referido, existirá um mero namoro e essa
relação não terá quaisquer efeitos jurídicos (patrimoniais, alimentares ou sucessórios).
Então, mister analisar a jurisprudência sobre a união estável, em especial os julgados
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, o qual é uma Corte de Justiça de
referência para outros tribunais do nosso país, pesquisando como o TJRS vem apreciando os
requisitos caracterizadores da união estável.
Retoma-se que o art. 1.723 do Código Civil estabelece que “É reconhecida como
entidade familiar a união estável entre homem e mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura com o objetivo de constituição de família”.
Mas, como a jurisprudência analisa o que é uma convivência pública, contínua,
duradoura e com ânimus de constituir família?
Salienta-se, que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul vem sendo
muito rigoroso no reconhecimento das uniões estáveis, pois o mesmo exige prova robusta e
cabal dos requisitos supra referidos, como se observa do teor das seguintes ementas:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL POST


MORTEM. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DOS REQUISITOS DO ART.
1.723 DO CC. ART. 373, I, DO CPC. IMPROCEDÊNCIA. Para o
reconhecimento de união estável é necessária a demonstração robusta de seus
elementos caracterizadores essenciais, quais sejam, a publicidade, a
continuidade, a estabilidade e o objetivo de constituição de família (art. 1.723 do
CC), do que não se desincumbiu a autora, que não comprovou que o
relacionamento mantido com o falecido foi pautado nesses pressupostos, situação
que inviabiliza o reconhecimento pretendido. APELAÇÃO DESPROVIDA, POR
MAIORIA.57
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. RELACIONAMENTO
CONTROVERTIDO. INSUFICIÊNCIA DE PROVA DOS REQUISITOS
LEGAIS. 1. A autora afirma que mantinha com o apelado uma rotina familiar,
com compras em supermercado, visita aos parentes, participação em eventos

56
O art. 884 do Código Civil Brasileiro estabelece a vedação ao enriquecimento sem causa nos seguintes
termos: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente
auferido, feita a atualização dos valores monetários.”
57
Apelação Cível nº 70073865297, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Rui
Portanova, Redator: Ricardo Moreira Lins Pastl, julgada em 05/10/2017 - grifo nosso.
361

sociais e viagens. Contudo, o comportamento descrito pode, igualmente, fazer


parte da vida de namorados e para a formação de uma entidade familiar se
precisa bem mais que isto. 2. Sabe-se de pessoas que se relacionam por bastante
tempo, compartilham o mesmo leito, ora na casa de um ora na moradia de outro,
passam finais de semanas juntos, viajam, tem intensa vida social, cada um "tendo
o seu canto"- isto é namoro! Certo dia resolvem casar ou "juntar as escovas de
dentes" e o relacionamento muda, passa a outro patamar. Aflora uma vontade forte
e íntima, um desejo de estarem juntos diariamente, de se assumirem como uma
família, que se forma na sucessão de dias, com a efetiva mistura de projetos e
desejos e toda a intimidade que a vivência diuturna possa significar, em bons e
maus momentos. 3. É assim que a importância constitucional conferida às uniões
estáveis e suas relevantes sequelas jurídicas, exigem, para a declaração judicial de
sua existência, que esta configuração de relacionamento esteja palpitante na prova
dos autos, nunca em situações dúbias, contraditórias, ou em que a prova se mostre
dividida. No caso, sequer a coabitação está confirmada, porquanto a apelante
mantinha residência em Guaíba, onde trabalhava. 4. Em consequência, sem
reconhecimento da união estável, impossível acolher o pedido de condenação do
apelado ao pagamento de 25 salários mínimos de alimentos, bem como o pleito de
partilha de bens, porque falta o substrato causal de constituição de relação jurídica
com previsão legal apta a ensejar o dever de assistência e os direitos patrimoniais.
NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.58

Portanto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul vem exigindo prova
robusta para que seja configurada a relação como uma união estável, pois se “cada um tem
seu canto” e só passam finais de semana juntos não há uma união estável, pois a vida more
uxório exige o animus de morar junto ou de “juntar as escolas de dentes”, sendo que se não
houver essa situação não se constitui uma união estável, exceto se houver uma explicação
para a ausência da coabitação, conforme referido anteriormente.
Sinale-se, também, que embora a legislação não exige (mais – já que no passado era
necessário comprovar 05 anos de relacionamento) um tempo / prazo para a configuração da
união estável, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem
indicado que uniões inferiores a um ano ou com alguns meses não constituem união estável,
como se depreende, exemplificativamente, dos seguintes julgados:

APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL NÃO COMPROVADA. 1. A


circunstância de haver um filho comum aos litigantes não basta, por si só, para
configurar união estável - especialmente no contexto dos autos em que o apelante
afirma que teve relacionamento de namoro com a autora, e que, entre idas e vindas,
foram surpreendidos pela gravidez. 2. Para configuração de união estável há que
haver relação revestida de continuidade, estabilidade e durabilidade, requisitos não
comprovados no caso, seja pela exiguidade do período de convivência em
Venâncio Aires com o intuito de constituir vida em família (três meses, como
referido pela autora), seja pela insuficiência probatória de que vivessem como
se casados fossem em Cachoeira do Sul, período precedente à lotação do varão na
Brigada Militar de Venâncio Aires. Impõe-se afastar o reconhecimento da união

58
Apelação Cível nº 70052417532, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, julgada em 18/04/2013 - grifamos.
362

estável e determinação da partilha de bens, mantida a sentença no que se refere à


prestação de alimentos ao filho, tema não impugnado neste recurso. DERAM
PROVIMENTO. UNÂNIME.59
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. CONFIGURAÇÃO DA ENTIDADE
FAMILIAR. A importância constitucional conferida às entidades familiares
constituídas por uniões estáveis e seus desdobramentos na outorga de direitos
recomenda cautela em ações desta natureza, só se reconhecendo a união estável
que esteja palpitante na prova dos autos, nunca em situações dúbias, contraditórias,
ou em que a prova se mostre dividida. No caso, não restou induvidosamente
demonstrada a separação fática do falecido e sua esposa. Além disto, nem mesmo
no período após o falecimento da esposa, em 2010, há elementos nos autos a
corroborar a convivência com todos os requisitos legais que configuram uma união
estável,distinguindo-a de outros relacionamentos. Ao contrário, no mesmo ano de
2010 a apelante informou que o varão ficou residindo na casa dele, em razão de
dificuldades com o filho da autora. Neste contexto, a circunstância de poucos
meses antes do óbito do varão eles terem recebido benção religiosa na Igreja
Assembléia de Deus não prova, nas especificidades do caso, a constituição de
uma entidade familiar. NEGARAM PROVIMENTO, POR MAIORIA.60

E quanto as partes passarem finais de semana juntos e/ou desfrutarem de viagens


românticas um na companhia do outro, esses fatos constitutem o animus de constituir família
e dão publicidade a relação para configurar uma união estável?
Novamente, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul vem sendo bem
restritivo na análise desses fatos e de maneira geral não vem reconhecendo como uma união
estável passar finais de semana de forma frequente ou das partes viajerm juntos, pois esses
são programas que namorados tem fazem, logo, que por si só, não comprovam o
relacionamento como uma união estável, mas sim como namoro, conforme se visualiza das
seguintes ementas:
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. FRAGILIDADE PROBATÓRIA
QUANTO AOS REQUISITOS LEGAIS. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA
MANTIDA. 1. A existência de filha comum nascida após o óbito do alegado
companheiro é, por certo, circunstância que informa o relacionamento íntimo entre
autora e de cujus. Contudo, a prova produzida pela apelante é escassa e
insuficiente para qualificar a relação como união estável. 2. O reconhecimento
da união estável e a consequente atribuição de relevantes direitos, de natureza
pessoal e patrimonial, cobra, para a procedência do pedido, prova robusta e
induvidosa do preenchimento de todos os requisitos que a configuram, como
descrito no art. 1.723 de CCB. Estes elementos de convencimento não afloram
do processo, havendo nos autos algumas fotografias de autora e falecido,
declarações pessoais, que contam com reduzida força probante, e aos
depoimentos de duas testemunhas. Aqueles que têm o ânimo de viver como se
casados fossem deixam mais do que frágeis evidências ao longo do caminho,
sem contar que o período da alegada relação não chega a dois anos. Em
conclusão, não se colhe dos autos a segurança necessária para a declaração judicial

59
Apelação Cível nº 70073012783, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, julgada em 25/05/2017 - grifamos.
60
Apelação Cível nº 70070909577, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, Julgada em 27/04/2017 - grifo nosso.
363

de existência de união estável. NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO.


UNÂNIME.61
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE SOBREPARTILHA. UNIÃO ESTÁVEL EM
PERÍODO ANTERIOR AO CASAMENTO. NÃO RECONHECIMENTO.
PRECEDENTES. DESCABIDA A PRETENSÃO DE PARTILHA DE BENS.
Nos termos da legislação civil vigente, para o reconhecimento de união estável,
incumbirá a prova, àquele que propuser o seu reconhecimento, de que a relação
havida entre o casal foi pública, contínua, duradoura e destinada à constituição de
um núcleo familiar. Não comprovadas a alegação de coabitação e a presença
da affectio maritalis no relacionamento amoroso que antecedeu o casamento,
quando as partes eram publicamente reconhecidas como namorados e,
posteriormente, como noivos, mister a confirmação da sentença que não
reconheceu a união estável em período anterior ao casamento, sendo descabida a
pretensão de partilha de bens. PRETENSÃO DA EX-MULHER DE PARTILHA
DE BENS NÃO DESCRITOS POR OCASIÃO DO DIVÓRCIO.
IMPOSSIBILIDADE. DIVÓRCIO CONSENSUAL. ACORDO
HOMOLOGADO JUDICIALMENTE. NÃO COMPROVAÇÃO DE CAUSA
DE NULIDADE - ERRO, DOLO, FRAUDE, COAÇÃO OU SIMULAÇÃO.
ARREPENDIMENTO POSTERIOR. A partilha realizada nos autos da ação de
divórcio (processo nº 001/1.13.0011587-5), proposto consensualmente, restou
homologada, não havendo como presumir que tenha o casal relegado parte da
partilha dos bens para momento posterior. A apelante não se desincumbiu do ônus
de comprovar que o acordo de divórcio e partilha foi formalizado mediante
coação, e, tampouco, que quando do ajuste tenha sido ludibriada, enganada em sua
boa-fé pelo varão. Não há nos autos indícios de vício de vontade da autora ao
tempo do divórcio, concluindo-se que o acordo celebrado entre as partes é hígido,
válido e eficaz. Sentença mantida. APELO DESPROVIDO.62
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. ALEGAÇÃO NÃO
COMPROVADA. PRECARIEDADE PROBATÓRIA. É flagrante a insuficiência
probatória acerca dos requisitos legais que definem uma união estável, a começar
pela narrativa do próprio apelante que, embora afirmando na petição inicial
ter vivido com a demandada como se casados fossem do final de 2004 até
dezembro de 2009, refere que cada um morava em suas respectivas residências. E
mais, ele traz aos autos contestação que apresentou em ação reclamatória
trabalhista que lhe moveu a apelada lá dizendo que se conheceram apenas em
2007, que desde 2008 passaram a namorar e que a ela dormia na sua casa uma
ou duas vezes por semana. Outrossim, não há entre os demais elementos dos
autos nada que corrobore a alegação de união estável, impondo-se seja mantida a
sentença que julgou improcedente o pedido. NEGARAM PROVIMENTO.
UNÂNIME.63
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. INCONSISTÊNCIA PROBATÓRIA
DOS REQUISITOS DO ART. 1723 DO CCB. 1. Não há dúvida acerca da
existência de relacionamento afetivo entre os litigantes, que teve períodos de
ruptura e reaproximação, bem como que, em certo momento, houve vida sob
o mesmo teto. Contudo, não foi exitosa a experiência, que durou curto espaço de
tempo, considerada a alegada duração da união estável. Pernoites, fotografias
de viagens e momentos de lazer são, na atualidade, comuns a casais de
namorados, ainda mais na idade dos litigantes, que contam mais de 60 anos.
Tal não é suficiente para comprovar a intenção de constituir família. 2. Impugnado

61
Apelação Cível nº 70073892911, Oitava Câmara Cível,Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, julgada em 28/09/2017 - grifo nosso.
62
Apelação Cível nº 70070975834, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Desª.Sandra
Brisolara Medeiros, julgada em 31/05/2017 - grifamos.
63
Apelação Cível nº 70073843351, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, Julgada em 17/08/2017 - grifo nosso.
364

o relacionamento alegado pelo autor, e tendo a apelada sustentado que romperam


e retomaram o relacionamento durante o tempo alegado pelo apelante, neste
contexto, os requisitos dos relacionamentos afetivos que configuram uma entidade
familiar (convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo
de constituição de família) não foram provados nos autos - e este ônus era do autor,
ora apelante. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.64

Assim, da análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande


do Sul é no sentido de que não constitui união estável o relacionamento que não tenha possua
affectio maritalis65, ou seja: que tenha a tenha a intenção de viver como marido e mulher e
os julgados da Corte de Justiça Gaúcha têm sido bem restritivos no reconhecimento das
uniões estáveis, exigindo-se prova robusta dos requisitos previstos no art. 1.723 do Código
Civil.

3) ASPECTOS SUCESSÓRIOS DA UNIÃO ESTÁVEL E A


INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CÓDIGO CIVIL.

O Código Civil prevê duas espécies de sucessão, a testamentária e a legítima, as quais


nos ensinamentos de Flávio Tartuce podem ser definidas da seguinte forma:

Sucessão legítima – aquela que decorre da lei, que enuncia a ordem de vocação
hereditária, presumindo a vontade do autor da herança. É também denominada
sucessão ab intstato justamente por inexistir testamento.

Sucessão testamentária – tem origem em ato de última vontade do morto, por


testamento, legado ou codicilo, mecanismos sucessórios para exercício da
autonomia privada do autor da herança. 66

Em decorrência da finalidade pretendida, passamos a expor sobre a sucessão


legítima, reconhecidamente mais utilizada em nosso ordenamento jurídico e a qual traz, em
determinados dispositivos, tratamento diferenciado entre os herdeiros67.

64
Apelação Cível nº 70059621193, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, Julgada em 17/07/2014 - grifamos.
65
UNIÃO ESTÁVEL. PRESSUPOSTOS. AFFECTIO MARITALIS. COABITAÇÃO. PUBLICIDADE DA
RELAÇÃO. PROVA. 1. Não constitui união estável o relacionamento entretido sem a intenção clara de
constituir um núcleo familiar. 2. A união estável assemelha-se a um casamento de fato e deve indicar uma
comunhão de vida e de interesses, reclamando não apenas publicidade e estabilidade, mas, sobretudo, um nítido
caráter familiar, evidenciado pela affectio maritalis, que, no caso, não restou comprovado nos autos. Recurso
desprovido. (Apelação Cível nº 70073952764, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des.
Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 27/09/2017).
66
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2014. p. 1341.
67
CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das Sucessões: Inventário e partilha. 4ª ed. Lavras:Unilavras.
2016. p. 401.
365

Neste contexto, relevante esclarecer que o Código prevê uma ordem de vocação
hereditária, no artigo 1.829, que deve ser observada no caso da sucessão legítima. Contudo,
em paralelo, aos herdeiros nomeados no artigo 1.829, há duas espécies de herdeiros, os
necessários, informados no artigo 1.845 do Código Civil, descendentes, ascendentes e
cônjuge e os herdeiros facultativos, companheiro e colaterais até o quarto grau.

As disposições do artigo 1.829 que prevê a ordem de vocação hereditária, buscou


dividir os herdeiros em classes, presumindo as preferências do de cujus:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:


I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado
este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação
obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão
parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.

Como é possível perceber da leitura do referido artigo, o companheiro não foi


incluído neste dispositivo, pois foi agraciado com artigo próprio para regulamentação da
sucessão do companheiro, o artigo 1.790 localizado, espantosamente, no Capitulo I
destinado às Disposições Gerais, do Título I, Sucessões, sendo esta a primeira crítica feita
pelos doutrinadores, sob argumento de que o artigo 1.790 nada tem de disposições gerais,
pelo contrário é específico em abordar a sucessão do companheiro:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro,


quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas
condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por
lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade
do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da
herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Traçadas as linhas fundamentais para o entendimento do instituto da sucessão, passa-


se a abordar as diferenças legais entre a sucessão do cônjuge e do companheiro, sendo que
essas diferenças geraram a declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 1.790 do
Diploma Material Civil.
No Código Civil de 2002, os artigos 1.829 e 1.845 permitem concluir que além de
herdeiro legítimo, o cônjuge é considerado herdeiro necessário, diante do que lhe é
reconhecido o direito à herança do de cujus além do direito a meação, a qual se refere à
366

metade dos bens comuns que não compõe a herança e sua extensão depende do regime de
bens adotado pelos cônjuges.
Frisa-se, que o inciso I do artigo 1.829 prevê a concorrência do cônjuge sobrevivente
e descedentes na condição de herdeiros, contudo sua redação dá azo a diversas interpretações
doutrinárias e jurisprudenciais, a regra geral é a concorrência, mas há três exceções a esta
regra, a primeira se os cônjuges eram casados no regime da comunhão universal de bens, a
segunda, se casados no regime da separação obrigatória e, por fim, se casados no regime da
comunhão parcial, inexistam bens particulares do autor da herança.
Diante de tantas exceções, Flávio Tartuce didaticamente elenca os regimes em que o
cônjuge herda em concorrência, sendo estes, a comunhão parcial na existência de bens
particulares; na participação final dos aquestos e na separação convencional de bens, em
seguida o autor informa os regimes nos quais o cônjuge não herda em concorrência, quais
sejam, comunhão parcial de bens, quando não há bens particulares do de cuju, separação
obritória de bens e na comunhão universal de bens.68
Por fim, mister destacar que no caso de concorrência com descendentes, o cônjuge
tem direito a mesma cota destinada aos filhos, nunca inferior a um quarto, de acordo com as
disposições do artigo 1.832.69
O entendimento da concorrência do cônjuge com os ascendentes é simplificado
comparado com as previsões do inciso I. Pelo inciso II a sucessão legítima será deferida aos
ascendentes em concorrência com o cônjuge.
Ainda, pelo artigo 1.837 do Código Civil, no caso do cônjuge concorrer com dois
ascendentes de primeiro grau, receberá um terço da herança. No entanto, concorrendo com
um ascendente de primeiro grau caberá ao cônjuge a metade da herança, independentemente,
do regime de bens, diversamente do que ocorre na concorrência do cônjuge com os
descendentes.
O inciso III do artigo 1.829 do Código Civil dispõe que na ausência de descendentes
e ascendentes, a sucessão caberá exclusivamente ao cônjuge, independente do regime de
bens adotado pelo casal.

68
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2014. p. 1378.
69
Art. 1.832 - Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao
dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente
dos herdeiros com que concorrer.
367

Entretanto, a sucessão do companheiro, a qual era regulada pelo artigo 1.790 do


Código Civil, era completamente diferente da sucessão do cônjuge e esse assunto polêmico
gerava uma série de debates / discussões na doutrina e jurisprudência.
Salienta-se, que pelo caput do artigo 1.790 do Código Civil, o companheiro somente
participaria da sucessão quanto aos bens adquiridos onerosamente, na vigência da união.
Diante desta assertiva Tartuce faz questionamento pertinente, relacionado a hipótese de, no
caso do autor da herança possuir apenas bens adquiridos/recebidos à título gratuito,
inexistindo descendentes e ascendentes ou colaterais, os bens serão destinados ao
companheiro ou ao Estado?
O autor Flávio Tartuce afirma que, em decorrência do conteúdo do artigo 1.84470 o
patrimônio deveria ser destinado ao companheiro, existindo contudo, corrente contrária.71
Iniciando o estudo dos incisos, o I aponta a concorrência do companheiro com filhos
comuns, ou seja, tanto filhos do de cujus, quanto filhos do sobrevivente. Neste caso, a
legislação prevê que caberá ao companheiro a mesma cota reservada aos filhos, se houvesse
filhos (bastando um filho), somente, do autor da herança, o companheiro teria direito a
metade a cota parte que coubesse aos filhos, conforme previsão do inciso II. Além disso, não
havia a previsão de ¼ da herança na concorrência com os descendentes, diversamente do
que é previsto na sucessão do cônjuge.
Mas, a diferença mais gritante entre as sucessões do cônjuge e do companheiro está
no inciso III do art. 1.790, o qual previa a concorrência do companheiro com outros parentes
sucessíveis, incluindo nestes os ascendentes e colaterais até quarto grau, disposição que
gerava intensa polêmica, inclusive quanto a sua constitucionalidade, ao passo que colocava
o companheiro em igualdade de condições com parentes que, não raras vezes, o de cujus não
tem conhecimento sequer do nome e, concomitantemente, determina tratamento
diferenciado ao cônjuge supérstite, em escancarada violação a princípios constitucionais.
Há bastante tempo são encontrados na doutrina e na jurisprudência entendimentos
que questionavam a constitucionalidade do artigo 1.790 no todo ou em parte, neste último
caso, referindo-se apenas ao inciso III.

70
Art. 1.844 - Não sobrevivendo cônjuge, ou companheiro, nem parente algum sucessível, ou tendo eles
renunciado a herança, esta se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se localizada nas respectivas
circunscrições, ou à União, quando situada em território federal.
71
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2014. p. 1.393-1.394.
368

Inicialmente, cabe mencionar que, conforme aponta Gisela Hironaka, não havia
previsão de dispositivos reguladores da sucessão na união estável no anteprojeto do Código
Civil, datado ainda de 1972, diante disso, o Senador Nelson Carneiro, utilizando-se das
ideias de Orlando Gomes, apresentou emenda para suprir a lacuna, situação que ensejou a
promulgação de uma nova lei que já nasceu velha72 e não foi capaz de observar os princípios
constitucionais implementados a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988,
especialmente o da dignidade da pessoa humana, igualdade e a proibição do retrocesso
social.
O princípio da dignidade da pessoa humana73 é desrespeitado pelo artigo 1.790 do
Código Civil, a partir do momento em que a família representa o local apropriado para que
os membros da família desenvolvam sua própria dignidade74.
Assim como para toda ordem constitucional, bem como para a manutenção do
próprio Estado de Direito, os Princípios da Igualdade e da Liberdade têm relevância singular
dentro da entidade familiar, ao passo que ao longo dos anos foi capaz de solapar atrocidades
contidas na legislação, à exemplo da distinção entre os filhos havidos dentro e fora do
casamento, bem como a desigualdade entre homem e mulher75.
Quanto as entidades familiares, o princípio da igualdade está presente nas disposições
do artigo 226, §§3º e 4º76, a partir do momento que houve menção de outras espécies de
família além daquela oriunda do casamento, não sendo admitido tratamento, ou até mesmo
que a proteção do Estado ao qual estão todas submetidas, seja realizada de forma a
desprivilegiar alguma das entidades familiares em favor de outras.
Neste aspecto, Fernanda Moreira dos Santos traz relevante esclarecimento:

72
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Sucessões Brasileiro: disposições gerais e
sucessão legítima. Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:_pPPJKkY4gmcJ:seer.uscs.edu.br/index.php/revista
_direito/article/view/692+&cd=2&hj=pt-BR&ct=clnk&gl=br e acesso em 27/10/2014.
73
A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e conforme leciona
THOMÉ a raiz etimológica da palavra “dignidade” deriva do latim dignus e significa aquele que merece estima
e honra. Ver: THOMÉ, Liane Maria Busnello. Dignidade da Pessoa Humana e Mediação Familiar. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 45.
74
BOECHAT DA SILVA, Carlos Henrique, in Livre-Arbítrio versus regime da separação obrigatória de bens,
IN: Família e Sucessões, novos temas e discussões. Coletânea. Organizador ROSA, Conrado Paulino da.
Porto Alegre: Ed. RJR, 2015, p. 499.
75
CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Saraiva. 2015. p. 103-104.
76
Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...]§ 3º Para efeito da proteção do
Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar
sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes.
369

Admitir a superioridade do casamento significa proteger mais, ou prioritariamente,


algumas pessoas em detrimento de outras, simplesmente porque aquelas optaram
por constituir uma família a partir da celebração do ato formal do matrimônio. Esta
situação, sem dúvida, enseja uma contrariedade ao ordenamento constitucional,
violando o princípio da igualdade, na medida em que estabelece privilégios a
alguns indivíduos em prejuízo de outros, de forma injustificada.77

O rol exemplificativo de entidades familiares assim reconhecidas pela Constituição


da república de 1988 em seu artigo 226 trouxe consequências jurídicas importantes para as
pessoas que optam por uma convivência informal, especialmente no que diz respeito ao
tratamento igualitário. Finalizando a exposição acerca dos princípios frequentemente
violados pelo artigo 1.790, temos o Princípio do Não Retrocesso Social, pelo qual o
ordenamento jurídico não aceita que os direitos sociais e econômicos que já tenham obtido
determinado grau de realização, sejam desconsiderados ou desrespeitados por atos
posteriores, isto é, limita que haja a reversibilidade de direitos já adquiridos, situação que
acarretaria violação também aos princípio da confiança e segurança do cidadão no âmbito
econômico, social e cultural, além do núcleo essencial da existência mínima, atrelado à
dignidade da pessoa humana78.
Neste contexto, é possível afirmar que as disposições da sucessão do companheiro,
previstas no artigo 1.790 representavam um retrocesso se comparadas com as legislações
anteriores que regulamentaram o tema, quais sejam, lei 8.971/1994 e 9.27/1996, tendo em
vista que nestas os direitos previstos beneficiavam a companheiro, conforme aponta Camila
Victorazzi Martta79.
Portanto, as limitações do artigo 1.790 do Código Civil, além de em desacordo com
a Constituição Federal, representam um retrocesso na condição sucessória do companheiro
e a decisão de inconstitucionalidade do RE 878.694-MG veio para corrigir esse retrocesso.

77
SANTOS, Fernanda Moreira. União estável e direitos sucessórios à luz do Direito Civil-Constitucional.
Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8213/uniao-estavel-e-direitos-sucessorios-a-luz-do-direito-civil-
constitucional e acesso em 09/10/2017.
78
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 2000. p. 320
79
MARTTA, Camila Victorazzi. O direito de escolha como consequência da autonomia da vontade e o
possível tratamento igualitário na sucessão do cônjuge e do companheiro. In: ROSA, Conrado Paulino da;
IBIAS, Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria Busnello (Organizadores). Novos rumos do Direito de Família
e Sucessões. Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2016. p. 410-412.
370

Claro que na doutrina, assim como na jurisprudência80 é possível identificar


defensores da constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, sob argumento de que a
previsão do artigo 226, § 3º não teve a pretensão de igualar as espécies de entidades
familiares ali previstas81, especialmente até porque a própria Constituição Federal de 1988
prevê a possibilidade de conversão da união estável em casamento, de maneira facilitada,
sendo cada um instituto próprio dotado de regulamentação exclusiva.
Inclusive, nesma linha de entendimento, havia um incidente de inconstitucionalidade
suscitado ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de número
70029390374, que decidiu pela constitucionalidade do inciso III do polêmico artigo, no qual
a maioria dos Desembargadores acompanharam o voto de divergência proferido pela
Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, que utilizou como principal argumento o
fato de que o legislador constituinte não equiparou o casamento e a união estável, conforme
abaixo:
Ao determinar a facilitação da conversão da união estável em casamento,
distinguiu o Constituinte o casamento da união estável. Não há, portanto,
equiparação constitucional entre a união estável e o casamento. Tivesse assim
feito, não seria necessária a sua conversão em casamento, se assim fosse de
interesse das pessoas. Teriam status de casadas todas as pessoas que mantivessem
união estável.82

Na linha contrária, foi o julgamento o Recurso Extraordinário 878.694-MG, o qual


teve Repercussão Geral reconhecida em decorrência da relevância social e jurídica acerca
do tema e discutiu a inconstitucionalidade de todo o artigo 1.790 do CCB.

80
A Constituição Federal não equiparou o instituto da união estável ao do casamento, tendo tão somente
reconhecido aquele como entidade familiar (art. 226, § 3º, CF/1988). Dessa forma, é possível verificar que a
legislação civil buscou resguardar, de forma especial, o direito do cônjuge, o qual possui prerrogativas que não
são asseguradas ao companheiro. Sendo assim, o tratamento diferenciado dado pelo Código Civil a esses
institutos, especialmente no tocante ao direito sobre a participação na herança do companheiro ou do cônjuge
falecido, não ofende o princípio da isonomia, mesmo que, em determinados casos, como o dos presentes autos,
possa parecer que o companheiro tenha sido privilegiado. O artigo 1.790 do Código Civil, portanto, é
constitucional, pois não fere o princípio da isonomia. (Recurso 2009.00.2.001862-2, acórdão 355.492 da
Primeira Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal de Relatoria do Desembargador Natanael
Caetano).
81
MARTTA, Camila Victorazzi. O direito de escolha como consequência da autonomia da vontade e o
possível tratamento igualitário na sucessão do cônjuge e do companheiro. In: ROSA, Conrado Paulino da;
IBIAS, Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria Busnello (Organizadores). Novos rumos do Direito de Família
e Sucessões. Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2016. p. 410-412.
82
TJRS. Incidente de Inconstitucionalidade nº 70029390374. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, que decidiu pela constitucionalidade do inciso III do polêmico artigo, no qual a maioria dos
Desembargadores acompanharam o voto de divergência proferido pela Desembargadora Maria Isabel de
Azevedo Souza. Julgado em: 09/11/2009.
371

Destaca-se, que o Relator, Ministro Roberto Barroso votou pelo provimento do


Recurso para “reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do
Código Civil de 2002, por violar a igualdade entre as famílias, consagrado no artigo 226 da
Constituição Federal, bem como os princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação
do retrocesso e da proteção deficiente”, sendo reconhecido o direito da companheira em
participar da herança, com observância das disposições do artigo 1.829 do Diploma Civil,
pois a diferença de tratamento realizada pela legislação infraconstitucional é incompatível
com o texto constitucional, pois a Carta Magna não faz essa diferenciação, muito pelo
contrário, reconhece a união estável como uma das formas de constituição de família.
Assim, o tratamento dispensado a sucessão do companheiro era muito prejudicial em
comparação do a sucessão do cônjuge, como uma regra geral e para a maioria dos casos e
tendo em vista que essa diferenciação afronta os Princípios da Dignidade da Pessoa Humana,
da Liberdade e da Igualdade, o Relator Ministro Roberto Barroso votou pela
inconstitucionalidade integral do art. 1.790 do Código Civil Brasileiro, com a aplicação do
art. 1.829 do mesmo Diploma Legal para a sucessão do companheiro.
O voto do Relator foi acompanhado pelos Ministros Edson Fachim, Teori Zawascki,
Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Melo e Carmem Lucia. O Ministro Dias Toffoli, pediu
vistas antes de proferir seu voto, utilizando-se da justificação apresentada pelo legislador do
Código Civil de 2002, para divergir do posicionamento do Relator, argumentando que o
tratamento diferenciado na sucessão do companheiro e do cônjuge, prima pelo respeito a
liberdade, pela autonomia da vontade dos conviventes. Aduzindo ainda que não há
hierarquia entre o casamento e a união estável, mas que o legislador procurou evidenciar
serem estas formas diferentes de entidades familiares. Com base nesse fundamento, o voto
do Ministro Dias Toffoli culminou pelo reconhecimento da constitucionalidade do artigo
1.790. Após o voto do Ministro Dias Toffoli, o Ministro Marco Aurélio pediu vistas dos
autos, sendo que dia 19 de abril de 2017 esse recurso foi incluído para julgamento na pauta
do dia 10 de maio de 201783.

83
Andamento processual do Recurso Extraordinário nº 878.694-MG. Pleno do STF, Relator: Min. Roberto
Barroso. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4744004 e acesso em
09/10/2017.
372

Em 10 de maio de 2017, o Supremo Tribunal Federal declarou, incidentalmente, a


inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, ao julgar o RE 878.694-MG (o qual
possui Repercussão Geral reconhecida no ano de 2015). 84
Embora, não se tenha acesso, ainda, ao inteiro teor do acórdão do RE 878.694-MG,
acredita-se, em face do teor dessa certidão do julgamento que a Suprema Corte não deve ter
modulado os efeitos dessa decisão, eis que a modulação de efeitos exige quorum qualificado
(08 ministro) para sua aprovação e votação específica da modulação dos efeitos decorrentes
do controle de constitucionalidade, conforme leciona a constitucionalista Ana Paula Oliveira
Àvila.85
Reitera-se, que Diego Oliveira da Silveira e Daniella Maria Feliciano dos Santos86
registraram antes do julgamento do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral nº
878.694-MG que a decisão seria pela inconstitucionalidade integral do art. 1.790 do Código
Civil, pois na sessão anterior 07 ministros haviam votado pela inconstitucionalidade da
sucessão do companheiro e que a norma inconstitucional possui efeitos ex tunc87, era
imperiosa a modulação de efeitos decorrentes dessa decisão, eis que a ausência dessa
modulação poderia (e com certeza vai ocorrer) ensejar a discussão sobre a reabertura de

84
O Tribunal, apreciando o tema 809 da Repercussão Geral, por maioria e nos termos do voto do Ministro
Relator, deu provimento ao recurso, para reconhecer de forma incidental a inconstitucionalidade do art. 1.790
do CC/2002 e declarar o direito da recorrente a participar da herança de seu companheiro em conformidade
com o regime jurídico estabelecido no art. 1.829 do Código Civil de 2002, vencidos os Ministros Dias Toffoli,
Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que votaram negando provimento ao recurso. Em seguida, o Tribunal,
vencido o Ministro Marco Aurélio, fixou tese nos seguintes termos: ‘É inconstitucional a distinção de
regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser
aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do
CC/2002’. ...omissis... Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 10.5.2017. Destaca-se, que
o acórdão do RE 878.694-MG não foi até a presente data (09/10/2017) publicado e por esse motivo se aponta
essa certidão, a qual está disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4744004 e acesso em 09/10/2017
- grifamos.
85
ÁVILA, ANA PAULA OLIVEIRA. A MODULAÇÃO DE EFEITOS TEMPORAIS PELO STF NO
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. PORTO ALEGRE: LIVRARIA DO ADVOGADO, 2009. P.
102-105.
86
SILVEIRA, Diego Oliveira da; SANTOS, Daniella Maria Feliciano dos. A inconstitcionalidade do artigo
1.790 do Código Civil e a imperiosa modulação de efeitos da provável decisão do Supremo Tribunal Federal.
In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS, Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria Busnello; FLEISCHMANN,
Simone Tassinari Cardoso (Organizadores). Temas do dia a dia no Direito de Família e das Sucessões.
Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2017. p. 104/107.
87
O efeito ex tunc estabelece que os efeitos de um ato ou decisão retornam ao momento da sua edição. Ver:
MATHIAS, Maria Ligia Coelho; Lourenço, José. Efeitos ex tunc e ex nunc na mudança de regime de bens
no casamento e na união estável. RJLB, Ano 2017, nº 01, Pag. 509/544. Disponível em:
http://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/rjlb/2017/1/2017_01_0509_0544.pdf e acesso em 25/04/2017.
373

partilhas de inventários que tenham companheiro como herdeiro ocorridas entre 2003 a 2017
e isso geraria (e gerará) uma grande insegurança jurídica na nossa sociedade.

4. EFEITOS DA DECISÃO PROFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DO RE


878.694-MG E A IMPERIOSA MODULAÇÃO DE EFEITOS DA DECLARAÇÃO
DE INCONSTITUCIONALIDADE DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO

O Plenário do Supremo Tribunal Federal deu provimento ao Recurso Extrardinário


nº 878.694-MG (com Repercussão Geral nº 809), firmando a tese de que:

É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e


companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas
hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do
CC/2002.88

Como o decisão do STF foi pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil
Brasileiro, a Corte Constitucional tornou inconstitucional a norma que regulava a sucessão
do companheiro, desde 10/01/2003, pois a partir da entrada em vigor do Código Civil de
2002 essa previsão passou a ser inconstitucional, eis que a inconstitucionalidade de uma
norma possui, como regra geral, efeitos ex tunc, como referido anteriormente e como esse
julgamento foi realizado em regime de Repercussão Geral, essa decisão possui erga omnes
e efeitos vinculantes.
Reitera-se, que até a presente data não se teve acesso ao inteiro teor da decisão
proferida no RE 878.694-MG, mas o que se depreende da certidão do julgamento realizado
em 10/05/2017 é que não foram modulados os efeitos desse julgado.
Dessa forma, a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil resulta em uma
grave insegurança jurídica e em grande confusão no mundo jurídico, primeiro porque poderá
se rediscutir as partilhas de inventários que tenham companheiro como herdeiro ocorridos
entre os anos de 2003 (morte do autor da herança a partir de 10/01/2003) a 2017, com base
na relativização da coisa julgada inconstitucional89; segundo porque isso poderá afetar atos

88
O acórdão do RE 878.694-MG não foi até a presente data (09/10/2017) publicado e por esse motivo se aponta
a certidão de julgamento deste recurso, aa qual está disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4744004 e acesso em 09/10/2017
- grifamos.
89
A coisa julgada inconstitucional se verifica quando uma sentença, transitada em julgado, encontra-se
motivada em interpretação ou aplicação de lei tida pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a
374

jurídicos perfeitos decorrentes de bens oriundos das partilhas realizadas e terceiro porque
haverá uma multiplicação de demandas nas Varas de Família e Sucessões e/ou nas Varas de
Sucessões para rediscutirem partilhas ou pleitear sobrepartilhas realizadas com base na regra
prevista no art. 1.790 do Código Civil.
Destaca-se, que desde a criação das ações do controle concentrado de
constitucionalidade, o nosso ordenamento jurídico já possuía o efeito erga omnes e a eficácia
vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal ao realizar o controle
abstrato de constitucionalidade e a súmula vinculante e a repercussão geral foram
introduzidas pela Reforma do Poder Judiciário para estender os efeitos das ações do controle
concentrado de constitucional para o controle difuso90.
Ressalta-se que uma norma é válida a partir do momento em que é produzida em
consonância com os requisitos de validade depositados na norma posterior, havendo
compatibilidade do seu conteúdo com a Constituição e se houver a declaração de
inconstitucionalidade a norma deixa de ser válida, desde a sua vigência, conforme leciona
Robert Alexy91.
Tendo em vista, a multiplicação de demandas pendentes de julgamento no STF, a
Reforma do Poder Judiciário (Emenda Constitucional nº 45/2004) inseriu o art. 103-A e § 3º
no art. 102 na Carta Magna, criando os institutos da Súmula Vinculante e da Repercussão
Geral, com a finalidade de se atribuir efeitos erga omnes e efeitos vinculantes para o controle
de constitucionalidade difuso.
Aponta-se que a súmula vinculante e a repercussão geral estão cumprindo o seu papel
na atual sistemática jurídica92, pois concede segurança jurídica de que as demandas que
tenham a mesma matéria serão julgadas de forma unitária, evitando-se, que pessoas que
tenham situações idênticas tenham decisões diversas.
Inclusive, essa situação ocorria no que tange a sucessão da união estável, pois se um
inventário tramitasse no Rio Grande do Sul o companheiro poderia concorrer com um primo

Constituição. Ver: CANCELLA, Carina Bellini. Da relativização da coisa julgada inconstitucional.


Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/download/index/id/521838 e acesso em 25/04/2017.
90
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 198-
199.
91
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 89-92.
92
HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo. A súmula vinculante sob a ótica dos juízes de 1ª instância: um
estudo exploratório. In: PESSOA, Leonel Cesarino (Org.). Súmula vinculante e segurança jurídica. São
Paulo: LTr, 2007, p. 99.
375

distante do autor da herança e esse parente que poderia sequer conviver com o “de cujus”
ficaria com 2/3 da herança, enquanto que se inventário tramitasse no Paraná, o companheiro
ficaria com a integralidade da herança, pois o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná
entendia que o inciso III do art. 1.790 do Código Civil era inconstitucional93.
O julgamento do RE 878.694-MG vem corrigir esse grave problema, pois todas as
pessoas passarão a ter o mesmo tipo de decisão judicial. Todavia, como a declaração de
inconstitucionalidade possui efeitos ex tunc, o art. 1.790 do Código Civil Brasileiro passou
a ser inconstitucional desde a sua vigência (10/01/2003) e isso poderá (e com certeza
ocorrerá) gerar uma rediscussão sobre as partilhas realizadas de 10/01/2003 até 10/05/2017.
E isso será uma “bomba” nas Varas de Família e Sucessões e/ou nas Varas de
Sucessões das Comarcas de todo o nosso país e como operadores do direito apontamos que
isso é um problema que deve ser sanado pelo Supremo Tribunal Federal, caso se concretize
a expectativa de que a Corte Constitucional não modulou os efeitos da decisão do RE
878.694.
Destaca-se, que a hipótese da declaração de inconstitucionalidade em controle
concentrado de constitucionalidade a Lei nº 9.868/1999 estabelece em seu artigo 27 que:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em


vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o
Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir
os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu
trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Embora, a Lei nº 9.868/1999 regule a declaração de inconstitucionalidade no controle


concentrado de constitucionalidade, entende-se que o Supremo Tribunal Federal poderá
modular os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade em controle difuso de
constitucionalidade, conforme leciona Antônio de Pádua Soubhie Nogueira em sua tese de
Doutorado defendida perante a USP94.
Inclusive, em alguns precedentes, como por exemplo: HC 70.514/RS (prazo em
dobro para a Defensoria Pública); HC 82.959-7/SP (execução da pena nos crimes hediondos)

93
CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das Sucessões: Inventário e partilha. 4ª ed. Lavras:Unilavras.
2016. p. 236-248.
94
NOGUEIRA, Antônio de Pádua Soubhie. Modulação de efeitos das decisões no Processo Civil. Disponível
em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-28082015-0 e acesso em 25/04/2017.
376

e INQ 687-4 (foro privilegiado), o Supremo Tribunal Federal realizou um overruling95 na


sua jurisprudência e nesses casos determinou a aplicação da decisão concedida em controle
difuso de constitucionalidade para todos os casos a partir dessas decisões, estabelecendo esse
o marco para a aplicabilidade da decisão de inconstitucionalidade.
Mas, se não for realizada a modulação dos efeitos, as partilhas em inventários que
tiveram companheiros como herdeiros estarão sob à égide de uma coisa julgada
inconstitucional, eis que realizadas com base no art. 1.790 do Código Civil, pois essa norma
foi declarada inconstitucional pelo STF com efeitos erga omnes e força vinculante.
Sinale-se, que a existência da coisa julgada inconstitucional permite que o manto
sagrado da imodificabilidade das decisões judiciais seja relativizado pelo Poder Judiciário,
como aponta Humberto Theodoro Junior, cujo entendimento se evidencia:

[...] A inferioridade hierárquica do princípio da intangibilidade da coisa julgada,


que é, entre nós, uma noção processual e não constitucional, traz como consectário
a ideia de sua submissão ao princípio da constitucionalidade. Isto nos permite a
seguinte conclusão: a coisa julgada será intangível enquanto tal apenas quando
conforme a Constituição. Se desconforme, estar-se-á diante do que a doutrina vem
denominando coisa julgada inconstitucional.96

Destaca-se, que o Supremo Tribunal Federal possui uma série de opções para
modular os efeitos, pois pode decidir que o RE 878.694-MG só terá efeitos a partir da sua
publicação formal na imprensa oficial; pode concluir que o marco inicial de seus efeitos é a
data do julgamento (10/05/2017); pode julgar que esse acórdão só se aplica para a abertura
da sucessão (morte do “de cujus”) a partir da data daquela decisão (10/05/2017); pode
decidir que a inconstitucionalidade só se aplica para os processos em que estivesse pendente
a partilha; dentre outras hipóteses.
Entende-se, que o mais adequado é modular os efeitos para fixar que o art. 1.790 do
Código Civil é inconstitucional, apenas, para os inventários pendentes de partilha, pois esses
se aplicaria o art. 1.829 do Código Civil, preservando-se, assim, as partilhas já concluídas e
concedendo segurança jurídica para atos e negócios jurídicos realizados a partir dessas
partilhas transitadas em julgado, pois a incidência do Princípio da Segurança Jurídica impede

95
WAGNITZ, Ana Beatriz Rocha. O prospective overruling aplicado ao Direito Brasileiro: um estudo à
luz da segurança jurídica. Disponível em:
http://bdm.unb.br/bitstream/10483/8923/1/2014_AnaBeatrizRochaWagnitz.pdf e acesso em 25/04/2017.
96
THEODORO JR., Humberto. Sentença inconstitucional: nulidade, inexistência, rescindibilidade, In: Revista
Dialética de Direito Processual. V. 63. Ano: 2014. São Paulo: Dialética. p.46.
377

a desconstituição de atos realizados em conformidade com a legislação no momento da sua


realização e esse princípio deve ser tutelado nas relações familiares, conforme aponta
Ernesto J. Silveira Netto97.
Independentemente, do marco que o Supremo Tribunal Federal escolha para modular
os efeitos, o que aponta-se é que essa modulação é imperiosa e deve ser realizada pela Corte
Suprema.
Portanto, o Plenário do Supremo Tribunal Federal deverá modular98 os efeitos do
julgado do RE 878.694-MG, caso realmente não tenha ocorrida essa modulação em
10/05/2017, pois essa omissão do STF gerará grave insegurança jurídica e existirá notório e
excepcional interesse social, os quais são os requisitos exigidos pelo art. 27 da Lei nº
9.868/99, sob pena de viabilizar a rediscussão das partilhas inconstitucionais realizadas nas
sucessões do companheiro realizadas entre a entrada em vigor do Código Civil de 2002
(vigência: 10/01/2003) e a publicação dessa decisão pelo STF, eis que a partir da decisão é
incontroversa a incidência de seus efeitos.
Embora, as partilhas ocorridas nas sucessões que tinham companheiros sejam
extremamente injustas e inconstitucionais, em face dos princípios trabalhados no decorrer
deste artigo, acredita-se que a Suprema Corte, através da aprovação de 2/3 de seus membros,
deve modular os efeitos da decisão do RE 878.694-MG para que a mesma seja aplicada com
efeitos erga omnes para as partilhas que não tenham sido ultimadas até essa decisão, sendo
que essa seria a hipótese mais justa e lógica ao sistema jurídico pátrio.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos apontamentos realizados neste artigo, pode-se afirmar que a união
estável é um instituto de extrema importância no nosso ordenamento pátrio e que as Cortes
de Justiça, em especial, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, têm tido um
olhar restritivo ao julgar as demandas de declaração de união estável, pois exige-se prova

97
SILVEIRA NETTO, Ernesto J. A insegurança jurídica na sucessão. In: ROSA, Conrado Paulino da; IBIAS,
Delma Silveira; THOMÉ, Liane Maria Busnello (Organizadores). Grandes Temas de Família e Sucessões.
Coletânea editada pelo IBDFAM/RS - Instituto Brasileiro de Direito de Família - Seção Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: IBDFAM/RS, 2016. p. 390-391.
98
ÁVILA, ANA PAULA OLIVEIRA. A MODULAÇÃO DE EFEITOS TEMPORAIS PELO STF NO
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. PORTO ALEGRE: LIVRARIA DO ADVOGADO, 2009. P.
102-105.
378

robusta dessa união, até porque em muitos casos não há uma união estável, mas sim um
namoro e/ou outra forma amorosa.

Além disso, pela explanação realizada, resta evidente a forma de tratamento


diferenciada prevista na sucessão do companheiro, se comparada àquela que regulamenta a
sucessão do cônjuge, esta diferenciação decorre da forma atropelada com que os artigos
atinentes à sucessão da união estável foram inseridos no Código Civil de 2002, a qual não
analisou o tema com a profundidade devida, bem como sem observar os ditames de preceitos
constitucionais.
Esta diferenciação acarreta contradições na prática, ao passo que a Constituição
afirma ser dever do Estado a proteção da família ao mesmo tempo em que sujeita o
companheiro sobrevivente a dividir os bens amealhados por toda uma vida ao lado do de
cujus com parentes distantes que frequentemente não possui convivência próxima.
Não há como se aceitar a previsão de normas que privilegiem parentes distantes em
prejuízo do companheiro, sendo que utilizar-se desta argumentação parece no mínimo
contraditório, na medida em que se defende o respeito a informalidade da união estável, ao
mesmo tempo em que se prega o respeito de normas violadoras de princípios constitucionais
que autorizam diferenciação às entidades familiares. Assim, o artigo 1.790 do Código Civil
foi corretamente declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e não há reparos
a serem apontados a decisão proferida no Recurso Extraordinário 868.694-MG, a qual já era
esperada quando do julgamento da Repercussão Geral nº 908 (realizado no ano de 2015).
Todavia, é imperiosa a modulação dos efeitos do Recurso Extrardinário, com
Repercussão Geral, nº 878.694-MG, devendo ser estabelecido um marco de incidência da
inconstitucionalidade total do art. 1.790 do Código Civil Brasileiro e aplicação as regras
sucessórias da vocação hereditária, sob pena de gerar uma grave insegurança jurídica em
nosso país e gerar uma multiplicação de demandas nas Varas de Família e Sucessões e/ou
nas Varas de Sucessões das Comarcas de todo o Brasil.
379

REFERÊNCIAS

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STF NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. PORTO ALEGRE: LIVRARIA DO
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TJDF. Recurso 2009.00.2.001862-2, acórdão 355.492 da Primeira Turma Cível do Tribunal


de Justiça do Distrito Federal de Relatoria do Desembargador Natanael Caetano.
TJRS. Incidente de Inconstitucionalidade nº 70029390374. Órgão Especial do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, que decidiu pela constitucionalidade do inciso III do artigo
1.790 do CCB, no qual a maioria dos Desembargadores acompanharam o voto de
divergência proferido pela Desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza. Julgado em:
09/11/2009. Apelação Cível nº 70052417532, 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgada em 18/04/2013; Apelação Cível nº
70059621193, 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, Julgada em 17/07/2014; Apelação Cível nº 70072170699, 8ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 23/03/2017;
Apelação Cível nº 70070909577, 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Des. Luiz Felipe Brasil Santos, Julgada em 27/04/2017; Apelação Cível nº 70073012783, 8ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgada
em 25/05/2017; Apelação Cível nº 70070975834, 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Desª. Sandra Brisolara Medeiros, julgada em 31/05/2017; Apelação Cível nº
70072420318, 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, julgado em 17/08/2017; Apelação Cível nº 70073843351, 8ª Câmara Cível do
383

Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos, Julgada em 17/08/2017;
Apelação Cível nº 70073952764, 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 27/09/2017; Apelação Cível nº
70073892911, 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Luiz Felipe
Brasil Santos, julgada em 28/09/2017; Apelação Cível nº 70073865297, 8ª Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Rui Portanova, Redator: Ricardo Moreira Lins Pastl,
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25/04/2017.
384

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU INTRAFAMILIAR:


CONSEQUÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA;
DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR COMO MEDIDA DE
PROTEÇÃO CONTRA A VIOLÊNCIA INFANTIL

Dionéia Cristina Caron1

Resumo: As questões de violência familiar contra a criança e ao adolescente representam


um grave problema social. Verifica-se que dentro da esfera privada, de um modo geral, há
um aumento gradativo de demandas judiciais envolvendo a negligência familiar, os maus
tratos e o abuso do poder familiar. Esse ensaio teórico, objetiva analisar a importância da
família no desenvolvimento da criança e do adolescente e em contrassenso reconhecer a
destituição do poder familiar como sanção a ser imposta aos pais que praticam abusos e/ou
negligências para com sua prole. Dessa forma, refletiu-se criticamente sobre questões de
violência que ocorrem dentro do contexto familiar, bem como suas consequências físicas e
psicológicas e os traumas causados pelo abuso. Também, foram evidenciadas quais são as
experiências traumáticas que podem comprometer a vida de uma criança em seu
desenvolvimento biopsicossocial. Por fim, considerou-se fundamental esclarecer que a
criança tem a família como exemplo a ser seguido, essa questão não é transmitida por
herança genética, mas sim pelo convívio familiar.

Palavras-chave: criança. adolescente. violência doméstica. destituição do poder familiar.

INTRODUÇÃO

Na intencionalidade de compreender os direitos da criança e do adolescente por um


olhar jurídico e contemporâneo, torna-se importante explicitar que no decorrer dos tempos e
com a evolução da sociedade os direitos da criança e do adolescente foram ganhando novos
contornos pela legislação brasileira. Inicialmente, esses direitos foram reconhecidos pela
Constituição Federal de 1988, logo após foram ratificados pelo estado, direitos
internacionalmente reconhecidos, e por último reiterados e ampliados pelo Estatuto da
criança e do adolescente.

1
OAB/RS: 87.696. Advogada, pós-graduada em Direito Público pela FMP e em Direito do Trabalho e Processo
do Trabalho pela IMED. E-mail: dioneia.cristina@hotmail.com
385

O Art. 227, caput da Constituição Federal de 19882, ampliou significativamente os


direitos e deveres para com a criança e ao adolescente, no qual determina quem deve
assegurar os direitos fundamentais e quais são os direitos inerentes às pessoas em formação.
Conforme dispõem o artigo, são deveres da família, da sociedade e do Estado, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além
do dever de garantir que fiquem a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
Tais direitos e deveres foram reiterados na Lei 8069/90, artigo 4° do Estatuto da
criança e do adolescente (ECA), esses direitos contidos no ECA tratam sobre as garantias
constitucionais que impõem aos operadores do direito, especialmente ao juiz, que quando
julgarem um caso concreto devem tentar que haja a máxima proteção dos direitos e dos
interesses da criança e do adolescente3. Diante disso, será feita uma breve explanação sobre
os direitos constitucionalmente garantidos e reiterados no ECA, dos quais podem se r
destacados: o direito à vida, a saúde, à liberdade, ao respeito e à dignidade da criança e do
adolescente.
Nesse viés, a Carta Constitucional traz em sua composição a garantia do direito à
vida e a saúde para todos, bem como do acesso de modo igualitário e universal. Com isso,
Piovesan define suscintamente o que é saúde: “a organização Mundial da saúde define saúde
como o completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doença
ou enfermidade”4. Logo, expressa-se que o direito à vida e a saúde não diz respeito ao estado
meramente físico, mas de maneira geral ao estado físico e mental, a saúde psicológica do ser
em desenvolvimento, de modo que tais direitos devem ser garantidos tanto pela família,
quanto pelo estado e pela sociedade.
Desse modo, “o ECA declara proteção à vida e a saúde da criança e do adolescente,
atribuindo às políticas sociais públicas a missão de permitir o nascimento e o
desenvolvimento sadio, harmonioso e digno [...]”5. Ainda, é pertinente mencionar que o
ECA aborda a determinação de que “toda criança e adolescente têm direito à liberdade, ao

2
BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa Brasil de 05 de outubro de 1988. 3.ed.
São Paulo: Atlas, 1993.
3
BRASIL. Eca, 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
4
PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. 2.ed. São Paulo: Max Limonad, 2003, p.288.
5
ALVES, Roberto Barbosa. Direito da Infância e da Juventude. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.15.
386

respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como


sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos pela Constituição e nas leis”6.

Perante a Lei 8069/90, compreende-se o direito à liberdade: “no direito de ir, vir e
estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; no
direito de ter opinião e expressão; no direito de crença e culto religioso; de brincar, praticar
esportes e divertir-se; de participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação; de
participar da vida política na forma da lei; e de buscar refúgio, auxílio e orientação”7. Em
conformidade, o ECA também trata sobre o direito ao respeito, que consiste na
“inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente,
abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideais e
crenças, dos espaços e objetos pessoais8.
Nesse contexto, pode-se caracterizar positivamente os direitos inerentes a criança e ao
adolescente, que de toda forma são claros e invioláveis, sendo “dever de todos velar pela
dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano,
violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”9. Em contrapartida, há situações do
cotidiano nas quais as leis só se tornam esclarecedoras nos documentos oficiais, pois são
inefetivas, quase nulas no que tange a sua aplicabilidade em problemas reais, assim, os
direitos mínimos acabam por ser violados.
Por conseguinte,

Os direitos básicos são violados: crianças morrem de desnutrição, crianças estão


fora das escolas trabalhando para ajudar no sustento do lar, crianças estão
disputando como urubus os restos de lixos das cidades, crianças estão sendo
roubadas na sua inocência, crianças estão sendo exploradas sexualmente como se
fossem mercadorias, crianças estão sendo assassinadas friamente, crianças estão
sendo expulsas da família e da sociedade10.

Várias são as violações ocorridas contra a criança e ao adolescente, posto que muitas
vezes a violência, a negligência e o descaso começam dentro da própria família e acabam
por refletir na sociedade e no próprio estado, garantidores dos interesses do ser em
desenvolvimento. Sendo assim, entende-se esses aspectos como um grave problema na

6
BRASIL, 2011, art. 15.
7
Id. Ibid., art. 16.
8
Id. Ibid., art. 17, art. 18.
9
Id. Ibid.
10
VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes. Violência Doméstica: Quando a vítima
é criança ou adolescente – uma leitura interdisciplinar. Florianópolis: OAB/SC, 2006, p.60.
387

sociedade, fazendo parte de uma crise civilizatória, são circunstâncias que independem de
qual classe social o indivíduo pertence.

CONSEQUÊNCIAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO DESENVOLVIMENTO DA


CRIANÇA

Refletir sobre questões que investigam a existência e o modo de viver da criança,


bem como o seu desenvolvimento adequado e sem qualquer tipo de violência, é
imprescindível para que haja o progresso da espécie humana e enquanto sociedade. Nesse
sentido, é oportuno constatar o aumento significativo de demandas judiciais envolvendo a
violência familiar contra a criança, pois é preciso admitir que a violência afeta de forma
impressionante a criança e a estruturação da própria família, provocando de maneira geral
um grave impacto no ser em pleno desenvolvimento.
Dentro da esfera familiar, a violência doméstica representa um grave problema,
porque as repreensões, os gritos, os castigos e as surras sofridas podem ter efeitos nefastos,
que podem comprometer o desenvolvimento da criança. Entende-se por violência doméstica,

A violência doméstica é uma espécie do gênero violência a qual, por sua vez, é
uma espécie do gênero “mal”. A violência vem do termo latino vis, que significa
força. Assim, violência é o abuso de força, usar de violência é agir sobre alguém
ou fazê-lo agir contra a sua vontade, empregando a força ou a intimidação. É
forçar, obrigar. É também brutalidade: força brutal para submeter alguém. É
sevicia e maus-tratos, quando se trata de violência psíquica e moral. É cólera, fúria,
irascibilidade, quando se trata de uma disposição natural à expressão brutal dos
sentimentos. É furor, quando significa o caráter daquilo que produz efeitos brutais.
Tem como seus contrários a calma, a doçura, a medida, a temperança e a paz 11
(grifos dos autores).

Muitos são os resultados causados pela violência praticada contra a criança e ao


adolescente, dentre elas a violência sexual, que nos últimos tempos vem ganhando grande
repercussão midiática e é alvo de amplas discussões. O tema causa revolta e indignação na
sociedade, pois há casos em que a violência ocorre dentro do contexto familiar, quando o
abusador é o próprio pai ou até mesmo alguém que de toda forma seja ligado por laços
consanguíneos, por afinidade ou por responsabilidade. Cabe destacar o conceito de violência
sexual,
O abuso sexual deve ser compreendido como um ato que se circunscreve entre
uma multiplicidade de condutas aparentemente “insignificantes”, que vão desde

11
VERONESE E COSTA, 2006, p.101.
388

um simples manuseio até práticas sexuais, impostas e não consentidas, incluindo


ou não a penetração coital, como por exemplo, atos humilhantes como penetração
de objetos, sadomasoquismo, etc. [...]12 (grifos dos autores).

Ressalta-se que a nova redação referente ao crime de estupro, diz que qualquer pessoa
pode cometer o crime, sendo que da mesma forma qualquer pessoa pode ser vítima do crime
e não há necessidade de haver a penetração para que seja consumado o crime sexual. Existem
diferentes significados para essa prática,

[...] qualquer conduta sexual com uma criança ou adolescente, pode significar,
além da penetração vaginal ou anal, outras formas de violência que, por não terem
tal penetração, não deixam vestígios materiais (lesões corporais, excreções,
hematomas, etc.), como tocar os genitais do infante/adolescente, ou fazer com que
este toque os genitais de outra pessoa, ou o contato oral-genital, ou o roçar os
genitais do adulto com os da criança/adolescente 13.

Na ocorrência dessas circunstâncias, muitos casos de violência sexual que se


originam dentro do âmbito família não são denunciadas para as autoridades competentes.
Acredita-se que as demais pessoas que convivem naquele meio não fazem denuncia por
medo, por vergonha, por pressão social, o que de toda forma se torna prejudicial para que
haja a intervenção necessária dos entes estatais e municipais. É importante atentar para
alguns aspectos reativos em relação a vítima,

O segredo, o silêncio, torna-se cada vez mais pesado, e o sujeito – mais isolado -
tem sua mente ‘sequestrada’ por terríveis dores, temores e cicatrizes. Esta é a
forma de se poupar do alvo de condolência hipócrita que empana o desdém pela
violência que deve ser localizada no externo, no inferior, e mais sutilmente no
componente de passividade da contingência de ser vítima 14.

Em muitos casos os próprios profissionais atuantes na área da saúde preferem não


intervir na situação, porque muitas vezes não se sentem confortáveis, preparados para
interferir no íntimo da família, ou enfrentar o (a) vitimizador (a), sendo menos desgastante
manter o fato em segredo. Conforme afirma Cohen em sua obra, “Quando um médico,
psicólogo, assistente social, psicanalista toma conhecimento de atos incestuosos, mesmo

12
Id. Ibid., p.111.
13
VERONESE E COSTA, 2006, p.167.
14
DIEFENTHAELER, Edgar Chagas. Vítima e trauma psíquico. MULTIJURIS, v.111, 2008. passim.
389

sabendo da gravidade, preferem não denunciar com temor de prejudicar a coesão familiar,
escondendo-se atrás do direito ao segredo profissional”15.
Dentre os casos de violência sexual, podemos destacar o incesto, que deixa marcas
profundas, nesse caminho é importante definir que o “abuso sexual intrafamiliar, com ou
sem violência explicita, é caracterizado pela estimulação sexual intencional por parte de
algum dos membros do grupo que possui um vínculo parental pelo qual é proibido o
matrimônio”. Soma-se a isso, a violência sexual praticada pelos próprios genitores, pai e
mãe, que provoca uma verdadeira turbulência psicológica para a criança, tornando aquele
lar não mais um lugar em que possa se viver tranquilamente.

[...] em um número expressivo de casos, uma menina explorada por uma pessoa
mais velha, mais poderosa, que ela teria necessidade de amar. Para ela, a casa não
é mais um lugar seguro. Seu pai não é mais aquele parente capaz de ensinar-lhe a
ser uma adulta, a ser autônoma, a saber dizer não. Porque ele a obriga a fazer o
que ele deseja, porque ele a reduz, de fato, a condição de um objeto seu 16.

As crianças e adolescentes, que são vítimas da violência sexual, perderam seu


verdadeiro valor frente a sua suposta família, pois não são mais vistas como a continuidade
daquela família e são percebidas como objeto de satisfação sexual de verdadeiros psicopatas.
Ainda, nos crimes sexuais “O bem jurídico protegido é a liberdade sexual da vítima, o direito
da livre escolha de parceiros. Nos crimes sexuais que envolvem crianças e adolescentes,
entendemos que mais do que essa liberdade é violada, são violadas a integridade física,
psíquica e a dignidade humana [...]”17.
Dessa forma, a violência sexual não se reduz a marca física, é transcendente a isso,
pois ficarão gravadas em seu subconsciente, impressas em sua alma e jamais se apagarão18.
No entanto, é necessário afastar o medo que impede a efetuação da denúncia, deve-se haver
a conscientização e sensibilização, com acompanhamento psicológico, das pessoas que
convivem nesse âmbito familiar de crueldade para que denunciem essa violência.

15
COHEN, Cláudio. O incesto. In.: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane (Orgs.). Infância e
violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2009, p.236.
16
AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane; VAICIUNAS, Nanci. Incesto ordinário: a vitimização
sexual doméstica da mulher-criança e suas consequências psicológicas. In.: Infância e violência doméstica:
fronteiras do conhecimento. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2009, p.210.
17
BITENCOURT, Luciane Potter. Vítima sexual infanto-juvenil: sujeito ou objeto do processo Civil. Revista
da Ajuris, Porto Alegre: AJURIS, n.105, v.34, 2007, p.270.
18
Id. Ibid., p.268.
390

Afastar esse medo significa, antes, uma conscientização ética, para a qual a
consciência de servir de instrumento para que uma injustiça não ocorra ou,
ocorrendo cesse de existir, é capaz de sobrepujar o medo de qualquer represália
ou ameaça que possa existir, da parte dos autores de violência física, uma vez que
silenciar sobre uma injustiça conhecida significa ser conivente com ela 19.
É essencial reforçar a ideia de que a criança precisa ser mantida longe de qualquer
situação de risco, deve-se preservar ao máximo seu depoimento frente ao judiciário. Sabe-
se que isso nem sempre ocorre, muitas vezes a vítima acaba por ficar cara a cara com o
agressor, o que não trará resultados satisfatórios frente ao seu depoimento em juízo, isso
intimida a vítima, o que compromete a validade do depoimento. Reconhece-se que “as
vítimas sexuais vulneráveis, devem ‘contar tudo’ quando levadas ao judiciário e lá servem
como objetos ao processo, depondo às pessoas estranhas ‘situações’ intimas que na maioria
das vezes sequer puderam entender”20.
Sair do campo teórico e intervir em contextos que reproduzem esse problema
possibilita que os profissionais consigam melhorar a compreensão dos casos de violência
sexual. Retrata-se aqui alguns episódios que calham ao nosso redor e que em muitas ocasiões
nem sequer chegam ao conhecimento da sociedade, pois permanecem intrínsecos dentro do
recinto familiar, que nessa concepção se torna um ambiente conturbado e violentador. Por
exemplo,

G.O.R. (11). encaminhada ao Conselho Tutelar por sua escola devido à problemas
de rendimento escolar e distúrbios de conduta, informa que pai é alcoólatra,
agressivo com todos, mãe não protege os filhos. O pai perpetra violência sexual
com ela e com o irmão menor, além de utilizar “cordas de ferro nas plantas dos
seus pés e mãos para não deixar marcas”. Crianças com distúrbios de fala e
problemas de conduta (furto), hiperatividade. Indicada família substituta para as
crianças vítimas, avaliação do risco para as demais dentro deste lar, ação penal
contra o pai (Ribeirão Preto- SP)21.

M. (3). Avó materna vai a DDM avisar que soubera pela criança que o pai
praticava violência sexual com ela. Criança levada a psicóloga, tendo feito 10
sessões onde manifestou angústia ligada a temas sexuais e descreveu situações de
violência. Inquérito policial constando Atentado Violento ao Pudor. Guarda
transferida para avós maternos, visitas do pai proibidas, mãe autorizada a ver a
criança, embora não empática com seu sofrimento (sugestão da equipe do caso).
(Santo André – SP)22.

As agressões sofridas durante a infância e a adolescência podem deixar marcas


insuperáveis e certamente provocará no indivíduo muitos traumas que se repercutirão em

19
VERONESE E COSTA, 2006, p.116.
20
BITENCOURT, 2007, p.279.
21
AZEVEDO, GUERRA E VAICIUNAS, 2009, p.258.
22
Id. Ibid.
391

sua própria família, na escola, no trabalho, na sociedade como um todo. Os traumas podem
persistir e se multiplicar, perpetuando no inconsciente familiar de forma que as vítimas são
passíveis para desencadear algum tipo de patologia e além disso, faz com que o indivíduo
na maioria das vezes continue com esse sofrimento dentro de si, o que interfere nas suas
relações com as pessoas e com o mundo.
Exemplo disso, se dá quando a vítima passa a ser o próprio agressor, seu objetivo é
fazer com que aquela humilhação sofrida possa ser amenizada, seja infringida ao máximo
em outras circunstancias e em outras pessoas, com o decorrer do tempo as consequências
serão sentidas pela própria sociedade. Há uma necessidade feros de submeter alguém ao
mesmo sofrimento, pois “como toda vivência passiva determina a necessidade defensiva de
repeti-la ativamente a vítima transforma-se em algoz”23.
Contudo, não se pode generalizar, nem mesmo afirmar que tal teoria ocorre em todos
os casos, mas as probabilidades de que a violência em suas diversas manifestações ocorrida
na infância seja perpetuada na vida adulta são grandiosas. Defronte a isso, “[...] crianças com
história de maus-tratos têm maior risco para a delinquência do que crianças não-maltratadas,
jovens rejeitados por seus pais também possuem maior chance de delinquência do que jovens
amados pelos seus familiares”24.
Nesse contexto, apresenta-se mais um exemplo de crime sexual ocorrido no Rio de
Janeiro, Brasil:

O “Vampiro do Rio”, Marcelo de Andrade, 25 anos homossexual, carioca, que


confessou ter matado 14 meninos de 6 a 13 anos. Ele costumava praticar os crimes
com requintes de perversidade. Entre abril e dezembro de 1991 atraiu suas vítimas
para locais ermos onde, depois de seviciá-los, esganava-os e, por vezes, mantinha
relações sexuais com eles. Em um caso, bateu a cabeça do menino até quebrar.
Enquanto mantinha relação sexual com ele, bebeu sangue que saia de sua cabeça
“para ficar bonito como ele”; com outro, chegou a serrar sua cabeça com um facão.
Interrogando sobre o porquê de seu comportamento, explicou que “gostava de
meninos” e que o que fazia era “mandar crianças inocentes pro céu”, ou seja,
“matava para que a alma das vítimas fosse salva do fogo do inferno”. De uma
frieza impressionante, ele mesmo levou a polícia aos esconderijos onde deixava
os corpos das vítimas apodrecerem. Preso, aguarda julgamento e se declara
preocupado não com a justiça dos homens, mas sim com a de Deus 25 (grifos dos
autores).

23
DIEFENTHAELER, 2008, passim.
24
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. Livraria do Advogado,
2004, p.185.
25
AZEVEDO, GUERRA E VAICIUNAS, 2009, p.162.
392

Isso demonstra o quão preocupante são as questões da violência existente em nosso


meio e como as violências sofridas na infância repercutirão nos atos daqueles que no passado
foram vítimas. A violência fere o indivíduo em aspectos biopsicossociais e é fator
determinante para que a criança desenvolva determinado caráter de acordo com a atual
realidade e sociedade.

O “Vampiro” brasileiro revelou ter vivido uma infância particularmente difícil.


Aos 5 anos foi mandado ao Ceará, onde o avô lhe batia de correia. Batia tanto que
uma vez fugiu de casa. Aos 10 anos voltou ao Rio, onde morou ora com o pai –
apanhando da madrasta que não lhe dava o que comer – ora com a mãe –
apanhando do padrasto que lhe batia de cinturão. Aos 10 anos também foi
molestado sexualmente por um homem de 35 anos. Pouco depois foi para um
internato onde era ridicularizado pelos colegas (que o chamavam de retardado) e
onde continuou sua carreira de espancado, através de frequentes surras de
palmatória26 (grifos dos autores).

Essas falhas ocorridas na infância trazem como consequências atitudes


inescrupulosas, que conforme foram referidas anteriormente, o indivíduo atuante como
vitimizador não sente sequer remorso por seus atos cruéis. Explica-se que “se uma criança
nasce em um ambiente hostil, indiferente e rígido, tenderá a desenvolver a agressividade
[...]. É quase uma regra que se a pessoa sofreu traumas, feridas narcísicas em quantidades e
qualidades expressivas, desenvolverá uma agressividade destrutiva”27.
As pessoas que não constroem um caráter em ambientes saudáveis, comprometem
suas ações quando se depararam com situações conflituosas, não conseguindo suportar
ansiedades depressivas e sentimento de culpa. Isso posto, revela diversos comportamentos
do agressor quando é confrontado, como por exemplo, o cinismo e a declaração que suas
vítimas mereciam o que receberam28. Por isso, é fundamental retomar que a infância é de
extrema importância para o desenvolvimento do ser, que ao se tornar adulto, espera-se que
adquira responsabilidade e consciência de suas condutas em conformidade com a realidade
e com as regras para conviver em sociedade.
Com base nas colocações descritas até o momento, constata-se a relevância do papel
da família no desenvolvimento da criança e do adolescente e de como os fatos traumáticos
sofridos na infância repercutem na vida futura do sujeito que foi agredido. Sendo assim, a
violência em suas diversas manifestações envolve uma complexidade de fatores que a torna

26
AZEVEDO, GUERRA E VAICIUNAS, 2009, p.164.
27
BISKER, Jaime; RAMOS, Maria Beatriz Breves. No risco da violência: reflexões psicológicas sobre a
agressividade. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006, p.84.
28
DIEFENTHAELER, 2008, passim.
393

muito mais difícil de ser descoberta e de ser punida, por isso há o incentivo de que sejam
efetivadas as denúncias, mantendo todos os cuidados necessários para que a vítima da
violência seja preservada em sua integridade e também para que seja possível punir o
verdadeiro agressor.

DOS REMÉDIOS PROCESSUAIS COMO MEDIDA DE PROTEÇÃO CONTRA A


VIOLÊNCIA INFANTIL: DA SUSPENSÃO E DESTITUIÇÃO DO PODER
FAMILIAR

O poder familiar demonstra as maneiras nas quais o pai e a mãe exercem os direitos
e os deveres sob seus filhos em igualdade de condições, pois com o advento da Constituição
Federal foi outorgado tanto ao homem quanto a mulher o tratamento igualitário, mas nem
sempre o poder familiar foi exercido dessa forma. Historicamente, constatou-se que a família
era tradicionalmente marcada pelo patriarcalismo, onde “esse conjunto de direitos e deveres
era exercido com supremacia pelo pai, sendo chefe do casal, que administrava a família e a
vida pessoal do outro cônjuge e da prole”29.
Em função disso, entende-se que o poder familiar também deve proporcionar a
criança uma vida digna em um ambiente adequado, garantindo e respeitando o seu pleno
desenvolvimento. Reconhece-se que o poder familiar deve ser exercido com menos poder e
mais dever, por isso “converteu-se em múnus, concebido como encargo legalmente atribuído
a alguém, no qual não se pode fugir. O poder familiar dos pais é ônus que a sociedade
organizada atribui a eles, em virtude da parentalidade, no interesse dos filhos”30.
O poder familiar atribui aos pais a obrigação de dar amparo aos filhos para que se
desenvolvam dignamente, transmitindo-lhes bons exemplos ao oportunizar o convívio
familiar adequado a sua fase de desenvolvimento. Dessa maneira, fica esclarecido que o
poder familiar deverá ser exercido por seus titulares conjuntamente ou de forma exclusiva
por um de seus genitores e que o exercício desse poder deve ser efetivado com exclusividade
pelos pais, independentemente de qual seja o vínculo que os uniu31.

29
SPENGLER, Fabiana Marion; MARION, Nilo Júnior. O poder familiar e o seu conteúdo: da pessoa ao
patrimônio. Revista Brasileira de Direito de Família: IOB, Porto Alegre, n. 40, v.8, 2007 p.28-47.
30
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p.149.
31
VADE MECUM. Código Civil 2002. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, art.1631.
394

Por outro viés, é preciso reconhecer que caberá quando necessária a intervenção do
estado dentro da esfera familiar, sempre quando os pais forem omissos e/ou deixarem de
cumprir com seus deveres decorrentes do poder familiar. Tal intervenção será passível para
que condutas inadequadas dos pais não tragam prejuízos aos seus filhos, embora a lei não
tenha o poder de garantir que as famílias os protejam na sua integralidade e nem de garantir
com exclusividade o direito a convivência familiar.
A atual legislação prevê que os casos de maus tratos devem ser notificados pelos
órgãos competentes para que dessa forma sejam adotadas as medidas legais de proteção. O
conselho tutelar desempenha importante papel previsto no ECA ao atribuir, se necessário,
“o afastamento do convívio familiar, comunicando incontinente o fato ao Ministério Público,
prestando-lhe informações sobre os motivos de tal entendimento e as providências tomadas
para a orientação, o apoio e a promoção social da família”32.
Salienta-se que ao constatar algum tipo de violência contra a criança e quando “os
direitos garantidos por lei forem ameaçados ou violados, por ação ou omissão da sociedade
ou do estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis, ou em razão de sua
conduta”33, às autoridades conselheiras procedem à notificação dos pais ou responsáveis.
Dependendo da situação, há o encaminhamento adequado da criança ou do adolescente aos
profissionais da saúde e quando necessário há o pedido de medida protetiva para vítima.
O conselho tutelar tem autonomia para que em casos extremos providencie a retirada
da criança do convívio familiar e a direcione para instituições de apoio e acolhimento a
criança e ao adolescente. Desse modo, o conselho tutelar tem papel essencial no
cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, pois é através desse órgão que os
casos de violência chegam ao conhecimento das autoridades judiciais, para que de alguma
forma seja aplicada a melhor medida.
Quanto às decisões do conselho: “somente poderão ser revistas pela autoridade
judiciária a pedido de quem tenha legitimo interesse”34. Em relação a isso, quando
constatada a existência de violação aos direitos da criança e do adolescente, são aplicadas as
medidas pertinentes aos pais ou responsáveis agressores, dentre elas estão: a advertência, a
perda da guarda, a destituição da tutela e a suspensão ou destituição do poder familiar,
sempre tentando preservar o melhor interesse da criança e do adolescente.

32
BRASIL, 2011, art.136.
33
Id. Ibid.
34
Id. Ibid., art.137.
395

Em casos graves “a autoridade judiciária, ouvido o Ministério Público, poderá


suspender o poder familiar, liminar ou incidentalmente até o julgamento definitivo e a
criança ou adolescente fica confiado a pessoa idônea através de termo de
responsabilidade”35. Ainda, o ordenamento jurídico reage de acordo com a “identificação de
comportamentos dos pais que de algum modo prejudiquem seus filhos e conforme a menor
ou maior gravidade da falta praticada, suspende-os ou os destitui do pátrio poder”36.

Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes
ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o
Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do
menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha 37.

Essa suspensão pode ocorrer devido ao abuso ou pela insuficiência do exercício do


poder familiar, tornando-a medida temporária e menos grave e que pode ser revogada a
qualquer tempo, desde que findos os motivos que a ensejaram. Em conformidade,
“representa a suspensão do poder familiar medida menos grave, tanto que se sujeita a revisão.
Superadas as causas que a provocaram, pode ser cancelada sempre que a convivência
familiar atender ao interesse dos filhos” [...]38.
Contudo, a suspensão poderá ser parcial ou total, será a prática de ações específicas
que estabelecerá isso. “A suspensão em relação a um dos pais concentra o exercício do poder
familiar no outro, salvo se for incapaz ou falecido, para que se nomeará tutor. A suspensão
total priva o pai ou a mãe de todos os direitos que emanam do poder familiar”39.

A autoridade judiciária, de ofício ou a requerimento das partes ou do Ministério


Público, determinará a realização de estudo social ou pericia por equipe
interdisciplinar ou multidisciplinar, bem como a oitiva de testemunhas que
comprovem a presença de uma das causas de suspensão ou destituição do poder
familiar – no Código Civil40 ou no ECA 41.

A sanção também pode referir apenas ao filho vítima do abuso ou da negligência,


não sendo aplicado a todo o grupo familiar.

35
Id. Ibid., art.157.
36
RODRIGUES, Silvio. Direito de família. 28.ed. 6.v São Paulo: Saraiva, 2004, p.368.
37
VADE MECUM, 2011, art. 1637.
38
DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo código civil. Bello
Horizonte: Del Rey, 4.ed. 2005. passim.
39
LOBÔ, 2005, p.160.
40
VADE MECUM, 2011, art.1637, art.1638.
41
BRASIL, 2011, art.161, §1º.
396

[...] assim, se o pai cuida mal do patrimônio de um filho que recebe deixa
testamentária, mas por outro lado educa este e os outros com muita proficiência,
pode o juiz suspendê-lo da administração dos bens desse filho, permitindo que
conserve intocado o poder familiar no concerne aos outros poderes e aos outros
filhos. Ainda, em virtude de sua menor gravidade, a suspensão é facultada, pois
permite-se ao juiz deixar de aplicá-la se o pai ou a mãe se compromete a internar
o filho em estabelecimento de educação, ou garantir que ele será bem tratado 42.

A suspensão do poder familiar é medida extrema, pois deve ser aplicada somente
quando outra solução ao caso não for encontrada, buscando sempre satisfazer o melhor
interesse da criança. Nesse sentido, ela pode ser revista após a superação das ações que a
causaram, já pelo interesse dos filhos e da convivência familiar, deve ser utilizada somente
pelo juiz “quando outra medida não possa produzir o efeito desejado, no interesse da
segurança do menor e de seus haveres. Cessada a causa que levou a suspensão, o impedido
volta a exercer o poder familiar plenamente ou segundo restrições determinadas pelo juiz”43.
“O juiz, ex officio, ou a requerimento de algum parente, ou através do Ministério
Público, suspende o exercício do poder familiar. A lei estatui o limite de tempo, mas este
será dado pelo que julgador acredita ser conveniente aos interesses do menor [...]44. Segundo
ECA o prazo máximo para a conclusão do procedimento será de 120 (cento e vinte) dias,
bem como deve a sentença que decretar a suspensão do poder familiar ser averbada no
registro de nascimento da criança ou do adolescente45.
Todavia, a suspensão do poder familiar em muitos casos não tem eficácia perante ao
abuso e a negligência dos pais com relação aos filhos, muitas vezes as medidas que são
tomadas precisam ser mais drásticas, eis que surge a destituição do poder familiar. A
destituição do poder familiar é a medida utilizada quando nenhum dos genitores tem
condições de criar e educar seus próprios filhos, sendo necessária a intervenção estatal.
A destituição do poder familiar não visa à punição dos pais faltosos, mas a proteção,
a preservação dos interesses da criança, contra punições e castigos exagerados e ilimitados,
praticados pelos pais contra sua própria prole. Por esse caminho, reconhece-se que “a
punição corporal já foi pedagogia em termos de submissão, ainda se admite que os pais

42
RODRIGUES, 2004, p.369.
43
LÔBO, 2005, p.160.
44
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 16.ed. v.5. 2007, p.434.
45
BRASIL, 2011, art.163.
397

possam corrigir os filhos através de padrões persuasivos, como proibições ao lazer e outras
atividades prazerosas, mas não se aplaudem as agressões físicas ou psíquicas”46.
O castigo, mesmo que moderado é sim uma forma de violência praticada contra a
criança, não tendo suporte fático para ser exercido. O castigo físico fere e viola a sua
integridade, o que pela óptica constitucional “é direito fundamental inviolável da pessoa
humana, também oponível aos pais”47. Desse jeito, a suspensão do poder familiar, ao que
compete a sua destituição, depende consequentemente de procedimento judicial, podendo
ser tais ações propostas por um dos genitores frente ao outro.

Nesse contexto, ambos os procedimentos judiciais dependem da iniciativa das partes,


podendo ser proposta tanto pelo homem quanto pela mulher, independente da relação entre
ambos, desde que presenciem o acontecimento ou até mesmo sejam vítimas da violência.
“Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I- castigar imoderadamente o
filho; II- deixar o filho em abandono; III- praticar atos contrários a moral e aos bons
costumes; IV- incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente”48. Contudo,

[...] a extrema penalidade (destituição) não se destina absolutamente a punir


faltas passadas, [...] a causa de destituição há de ser contemporânea ao pedido de
destituição. Não é possível remontar ao passado, já superado, e dele exumar culpas
antigas que incompatibilizam com a função49.

Ao ser aplicada a medida de destituição do poder familiar, deve-se verificar de um


modo geral se o abuso ou a negligência são fatos ocorridos recentemente, ou seja, se a falta
cometida já não foi até mesmo punida em momento anterior. Durante o procedimento que
destitui o poder familiar, as crianças permanecem em instituições adequadas para o seu
acolhimento, em muitos casos são colocadas em família substituta.

Sendo constatada a impossibilidade de reintegração da criança ou do adolescente


à família de origem, após seu encaminhamento a programas oficiais ou
comunitários de orientação, apoio e promoção social, será enviado relatório
fundamentado ao Ministério Público, no qual conste a descrição pormenorizada
das providências tomadas e a expressa recomendação, subscrita pelos técnicos da
entidade ou responsáveis pela execução da política municipal de garantia do

46
GIORGIS, José Carlos Teixeira. A paternidade fragmentada: família, sucessões e bioética. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007, p.63.
47
LÔBO, op. cit., p.162.
48
VADE MECUM, 2011, art.1638.
49
MONTEIRO, Washington de Barros; SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Curso de direito civil: direito de
família. São Paulo: Saraiva, 2010, p.516.
398

direito a convivência familiar, para a destituição do poder familiar, ou destituição


da tutela ou guarda50.

De toda forma, o processo de destituição do poder familiar é muito desgastante, tenta-


se manter ao máximo a criança dentro do convívio familiar e em consequência da demora
no desfecho do processo, os abrigos acabam por se tornar depósitos judiciais de rejeitados51.
A morosidade da justiça acaba por refletir em consequência gravosa contra a criança e ao
adolescente, porque quando são colocados em abrigo, são privados do convívio familiar, seja
de família biológica ou de família substituta e ao completarem 18 anos são postos na rua,
sem nenhuma perspectiva de inclusão social.

Um martelo, entregue nas mãos da pessoa certa, poderá construir muitas coisas
úteis e lindos móveis, mas nas mãos de outra pessoa que não saiba manejá-lo
poderá destruir e quebrar muita coisa. A vida para alguns é uma bênção. Vivem
fazendo o bem, ajudando os seus semelhantes, curando as mágoas e as feridas.
Para outros, no entanto, a vida é uma maldição, machucam seus semelhantes,
destroem os outros e a si mesmos52.

Assim são os seres humanos, especialmente as crianças e os adolescentes, que


reagem em conformidade com o seu entorno, no qual estão envolvidos e integrados. É nesse
caso que o ambiente familiar, os pais ou responsáveis, demais familiares e amigos,
preenchem de alegrias ou tristezas o futuro desses sujeitos e dependendo de como essas
crianças e adolescentes são educados e também respeitados, poderão ter um futuro digno.
Cabe salientar que muitos casos de violência contra a criança nem chegam ao
conhecimento das autoridades públicas, e muitas vezes por medo ou indiferença é consentida
pelos demais familiares, prejudicando a prevenção e a penalização destes atos. Há situações
em que as pessoas não dão a devida importância para os casos de violência intrafamiliar,
sendo mais fácil colocar o indivíduo em um abrigo ao invés de deixá-lo sob a tutela de
pessoas incapazes de assegurar a sua qualidade de vida.
Todo e qualquer excesso do poder familiar constitui em falta gravosa contra a prole
e “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do
adolescente”53. A omissão das pessoas que testemunham a violência pode mascarar os

50
BRASIL, 2011, art.101, §9º.
51
DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009, p.396.
52
GUEDES, Meibel Mello. Quem ama ensina; Curitiba: M.M Guedes & Cia. Ltda. Me, 2008, p.82.
53
BRASIL, 2011, art.70.
399

verdadeiros números e ao se tratar da esfera privada, torna-se mais difícil explicitar o


problema. Portanto, pais irresponsáveis e negligentes, adeptos à violência, não merecem o
direito ao exercício do poder familiar e devem ser destituídos, como forma de proteção do
melhor interesse da criança, sujeito de direito especial, dada sua condição de
hipossuficiência no âmbito familiar.

CONCLUSÃO

Mesmo que os pais estejam fisicamente presentes na vida de seus filhos, é muito
importante atentar para o desenvolvimento da responsabilidade afetiva em relações
intrafamiliares. Questiona-se: como será o comportamento futuro de crianças e adolescentes
que não obtiveram afeto, atenção e proteção dos pais ou responsáveis? Defronte a isso, houve
a necessidade de sair do juízo teórico e observar o que vem ocorrendo na realidade, pois os
indivíduos que estão suscetíveis a violência doméstica possuem sua integridade à mercê de
pessoas e órgãos competentes que não devem minimizar as consequências desse problema.
A violência doméstica não envolve apenas questões relacionadas as vítimas, mas
também aos diversos impactos desencadeados em toda a sociedade, que perpassam desde a
autoformação do ser humano e suas relações com os demais e com o mundo até em suas
ações enquanto cidadãos, parte da sociedade civil. As crianças e os adolescentes vítimas de
violência doméstica podem se tornar adultos frustrados vindo a contribuir para a
comunidade, sociedade na qual pertencem, de forma negativa.
Tendo em vista as penosas lições ocorridas na infância e que dificilmente serão
esquecidas ou resolvidas, as crianças e os adolescentes que são vítimas da violência terão
grandes chances de se tornarem agressores. A violência contra esses sujeitos é um sinal de
que há um desequilíbrio na estruturação familiar e sem sombra de dúvidas é responsabilidade
da família, da sociedade e do Estado garantir o desenvolvimento da criança e do adolescente
de forma saudável e com qualidade.
Com isso, recomenda-se a efetivação da denúncia como o melhor caminho, para que
dessa forma seja possível evitar a reprodução da violência no âmbito familiar. Contudo,
considerando que a adoção da proteção integral pelo ECA fortaleceu o princípio do melhor
interesse da criança, é essencial que as medidas de proteção sejam aplicadas. Nessa
finalidade, é preciso avaliar corretamente os vínculos da criança com seus genitores, para
400

apontar a melhor alternativa ao infante, evitando que futuramente essa criança seja um
vitimizador.
Ao visar a minimização da violência intrafamiliar como solução de muitos problemas
sociais relacionados à cultura, à educação, à pobreza e ao próprio desrespeito às leis sociais,
acredita-se que o caminho a ser percorrido ainda seja complexo e a atuação do Estado se
torna indispensável. É pertinente mencionar que de nada adianta o Estado investir na
prevenção da violência quando não oferece o básico ao ser humano, que possibilite a sua
sobrevivência de forma digna e humanitária, investindo em trabalho, educação e saúde.
Na atual conjuntura social, torna-se perceptível a dificuldade de garantir os direitos
constitucionalmente previstos à criança e ao adolescente, pois não se deve esquecer que são
sujeitos em pleno desenvolvimento, detentores do direito do convívio familiar e de serem
educados sem qualquer tipo de violência, seja física ou psicológica. Logo, esta é a justiça
social que forma a base da sociedade igualitária, justa e humanitária: uma sociedade que
respeita os seus integrantes, em especial a criança como sujeito de direito.

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VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes. Violência Doméstica:
Quando a vítima é criança ou adolescente – uma leitura interdisciplinar. Florianópolis:
OAB/SC, 2006.
402

CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE OS DIREITOS DA


MULHER EM ATENAS, ESPARTA E NA SOCIEDADE VIKING

Elisângela Sampaio Teixeira1


Cinara Liane Frosi Tedesco 2

RESUMO: Esta pesquisa tem como objetivo proporcionar uma exposição dos direitos das
mulheres que viviam em Atenas e em Esparta, Cidades Estados, ambas do período clássico
(séc V e IV a.c.) e também dos direitos da mulher viking, estas no período medieval (séc.
VIII e XI d.c). É fato que o período viking está a mais de oitocentos anos a frente do período
clássico da Grécia antiga, no entanto, mesmo com o passar de tantos anos, estas três
sociedades ganharam destaque pelos seus feitos ao longo de sua história, deixaram heranças
culturais aos que os sucederam e continuam até hoje no imaginário das pessoas. Assim, o
propósito deste artigo é uma breve pesquisa bibliográfica sobre o direito da mulher na
sociedade ateniense, espartana e viking, por meio da leitura de livros e artigos de
especialistas da área da História e da Antropologia. O artigo não se propõe a um estudo
aprofundado sobre o assunto da condição da Mulher naquele período, apenas tem a intenção
de expor algumas diferenças e similitudes da condição social da mulher nestas três
civilizações e tentar assim, compreender como a sociedade percebia a mulher naqueles
períodos históricos.

Palavras - chave: direito; mulheres atenienses, mulheres espartanas, mulheres vikings.

INTRODUÇÃO

Direito e História são áreas do saber que sempre estiveram interligadas e trabalham
como uma via de mão dupla, pois explica Freitas e Mendes que o Direito serve como fonte
para estudos históricos, e a História serve para fornecer entendimento aos estudiosos do
Direito, complementam os autores que “(...) a noção jurídica da história permite que se
compreenda melhor a cultura, a sociedade, a política e o sistema de um determinado povo.”
3
Assim, conhecer o passado nos leva a uma melhor conscientização do hoje e nos faz refletir

1
Advogada inscrita na OAB RS nº 88.542, com escritório situado na cidade de Passo Fundo – RS, Mestre em
Direito pela Universidade de Passo Fundo, Membro do IBDFAM, e-mail: elisangelateixeira.adv@gmail.com.
2
Advogada inscrita na OAB RS nº 28.655 com escritório situado n cidade de Passo Fundo – RS, especialista
em Direito Processual Civil pela AJURIS, Professora da Universidade de Passo Fundo – RS, e-mail:
cinatatedesco@gmail.com.
3
FREITAS, Alysson Luiz. MENDES, Renat Nureyev. Diálogos entre história e direito: conceitos,
convergências e outros apontamentos. Uberlândia: Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia v. 41-2: pág.
238, 2013 .Disponível em: file:///Users/elis/Desktop/24466-Texto%20do%20artigo-117751-1-10-
20150317.pdf. Acesso em: 26 de agosto de 2020.
403

o quanto as transformações sociais são importantes para mudar a forma como os seres
humanos pensam e, quiçá, ser mais humano.
Sabe-se que ao longo da história da humanidade a mulher sempre foi marginalizada
e andou a parte da sociedade comandada pelos homens. Atenas e Esparta eram Cidades
Estados com plena autonomia de autogoverno, foram fontes de origem de conhecimento e
de alto desenvolvimento para o período em que existiram.
Por outro lado, passado quase oitocentos anos tem-se a civilização viking a qual
também deixou seu legado por onde passou, não foi produtora de filosofia como as Cidades
Estados, mas deixou outros conhecimentos também importantes para seus sucessores como
cultura e grandes feitos na navegação e construção naval.
Assim, pergunta-se: quais os direitos concedidos às mulheres nestas três sociedades?
Qual o papel social que ela exercia? Para responder a tais questionamentos utilizou-se o
método de pesquisa bibliográfico por meio de leitura de livros e artigos de autores
especialistas e ou conhecedores do tema. Também cabe esclarecer que este artigo é escrito
por Advogadas e não tem a finalidade de exaurir o ou superar os historiadores, antropólogos
e outros especialistas nesta área, trata-se de uma síntese dos direitos das mulheres que viviam
em Atenas, Esparta e na Sociedade Viking para que se possa compreender um pouco mais
sobre o a condição da mulher naquele período.

1. OS DIREITOS DA MULHER ATENIENSE

Atenas foi uma das mais importantes cidades da Antiguidade, é desta região que
recebemos o conhecimento dos primeiros pensamentos filosóficos, educacional, político,
democrático e erudito. Esta cidade estado tinha um desenvolvimento acima da médica de
qualquer outro estado, mesmo se comparado com outras polis da Grécia Antiga.
A condição das mulheres pode ser observada através de dois grandes filósofos, Platão
e Aristóteles, os quais são a referência do período clássico, por volta do ano 400 e 300 antes
de Cristo.
Platão – em sua obra República, livro V4 - discute algumas questões importantes
relacionadas à sociedade e, um dos pontos estudados por ele é a relação entre homens e

4
PLATÃO. A República. Editora Independente. 380 a.c., 1º edição, pág. 199 à 217. Domínio Público. Livro
digital, formato PDF. Disponível em: https://www.baixelivros.com.br/ciencias-humanas-e-sociais/filosofia/a-
republica Acesso em 27 de agosto de 2020.
404

mulheres. Nos diálogos entre Sócrates e Glauco eles falam da importância das mulheres,
destacando que elas deveriam ter direitos equiparados aos dos homens porque a natureza da
alma de ambos são iguais. Sendo a alma naquela época algo muito importante e, portanto,
se homem e mulher tem a alma igual, então eles podem fazer as mesmas coisas. Mas o
discurso de Platão era totalmente ao contrário do que realmente acontecia em Atenas, onde
as mulheres apenas obedeciam aos homens.
Isso pode ser constatado no livro “A Política”5, de Aristóteles, onde ele fornece outro
pensamento sobre a mulher daquela sociedade e diverge claramente de Platão.
Para eles, discutir sobre o que é “ser mulher” irá norteiar e definir os direitos delas
naquele período, pensar sobre um ser e lhe atribuir qualidades, limitações ou defeitos irá
refletir nos direitos e deveres deste ser.
Assim, para Aristóteles6, as mulheres têm uma alma inferior aos homens e seria uma
versão incompleta deste, considerava que a mulher era apenas o corpo para reproduzir uma
criança, pois todas as qualidades para reprodução de um filho, vinha do homem através do
sêmen, obviamente, a conclusão tenha sido simplista porque não se tinha na época aparelhos
para compreender a importância do óvulo feminino e por isso se atribuía tamanha
importância aos homens. Ainda, para Aristóteles a família perfeita era composta pelo
homem, por sua mulher inferior e seu escravo. Ele acreditava que as mulheres tinham
virtudes, mas sempre inferiores, ineficazes e débil em relação aos homens.
Segundo Mirón7, as tarefas domésticas em Atenas eram delegadas à mulher, pois ela
tinha competências para cuidar da casa, mas o líder sempre era o homem e a eles cabia a
administração da cidade e à última palavra dentro de casa e às mulheres cabia apenas a
reprodução. De acordo com Fábio Lessa a sociedade ateniense existia de uma relação binária
onde o feminino ficava dentro de casa (Oikos) e o homem poderia ficar no espaço público
(Ágora) ou seja, a mulher atuava apenas no domínio privado.8 Inclusive dentro de casa as
mulheres deveriam permanecer separada dos homens, elas conviviam entre si e com os

5
ARISTÓTELES. A Política. Livro digital, formato PDF, pág. 194 e 195. Disponível em:
https://farofafilosofica.com/2017/05/03/aristoteles/. Acesso em 23 de agosto de 2020.
6
ARISTÓTELES. A Política. Livro digital, formato PDF, pág. 27. Disponível em:
https://farofafilosofica.com/2017/05/03/aristoteles/. Acesso em 23 de agosto de 2020.
7
MIRÓN, Maria Dolores Pérez. El Gobierno de la casa em Atenas Clasica: género y poder en el oikos. Vol.
18, Stvdia Historica. História Antigua. Salamanca: Editora Universidad de Salamanca, 2000, pág. 103-117.
Disponível em: https://revistas.usal.es/index.php/0213-2052/article/view/6216. Acesso em 15 de agosto de
2020.
8
LESSA, Fábio de Souza. Mulheres de Atenas: Mélissa do Gineceu à Agorá. Rio de Janeiro: Mauad X,
2010, p. 45.
405

filhos no Gineceu. As esposas não deveriam nem mesmo aparecer na sala quando os homens
recebessem visitas9.
Importante colocação faz Moisés Torres10 ao concluir que mesmo a mulher não
participando da vida política e nem tendo direito a qualquer manifestação, ela ainda agia
relevantemente nos espaços de convivência dentro do seu lar, disseminando informações
que revitalizavam o processo de identidade junto ao grupo de parentes, amigas, vizinhas,
associações religiosas, no momento da colheita e durante os trabalhos em conjunto nas
tarefas da casa. Dito de outro modo, mesmo que indiretamente, circulavam informações
promovidas pelas mulheres.
Segundo a pesquisa realizada por David Paiva11, em caso de adultério do homem
não havia consequências drásticas porém, a mulher adulterina, além de ser obrigada a
separar-se do marido ficava impedida de participar de cerimônias religiosas, bem como
poderia ser castigada nas ruas e as vezes condenada à morte, sendo que apenas ao homem
cabia o direito de pedir o divórcio. Thirzá Berquó12 explica que havia interesse da cidade e
do marido no crime de adultério, sendo considerado importante de ser controlado, porque
eles queriam o seguimento da linhagem, uma mulher adúltera não produz filhos confiáveis,
dentro da linhagem do marido, o que não era bom para a cidade nem para a família, assim,
o crime de adultério era considerado um crime grave.
Complementa o autor que em Atenas era expressamente proibido a prostituição
masculina, crime que poderia ser punido com impedimento de exercer diversas funções
públicas, religiosas e, dependendo do caso, a pena capital, já a prostituição feminina não era
proibida.

9
TÔRRES, Moisés Romanazzi. Considerações sobre a condição da mulher na Grécia Clássica (séc. V e IV
a.c.). Barcelona: Mirabilia Journal. Dec. 2001 / ISSN 1776-5818, p. 06. Disponível em:
https://ddd.uab.cat/pub/mirabilia/mirabilia_a2001m12n1/mirabilia_a2001m12n1p48.pdf. Acesso em 31 de
agosto de 2020.
10
TÔRRES, Moisés Romanazzi. Considerações sobre a condição da mulher na Grécia Clássica (séc. V e IV
a.c.). Barcelona: Mirabilia Journal. Dec. 2001 / ISSN 1776-5818, p. 05. Disponível em:
https://ddd.uab.cat/pub/mirabilia/mirabilia_a2001m12n1/mirabilia_a2001m12n1p48.pdf. Acesso em 31 de
agosto de 2020.
11
PAIVA, David Cassiano. História do direito na Grécia antiga. Seminário apresentado ao Doutor Ezequiel
Abasolo, professor do Curso de Doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais da Universidad Del Museo Social
Argentino na disciplina de História dela derecho, Buenos Aires: USMA, Janeiro de 2010, pág. 21.
Disponível em: https://docplayer.com.br/27411074-Historia-do-direito-na-grecia-antiga.html. Acesso em
23 de agosto de 2020.
12
Berquó, Thirzá Amaral. (2014). ENTRE AS HEROÍNAS E O SILÊNCIO: A CONDIÇÃO FEMININA NA
ATENAS CLÁSSICA. Oficina Do Historiador, 1984-2005. Recuperado de
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/oficinadohistoriador/article/view/19053
406

Tanto David Paiva e quanto Maria Dolores Mirón explicam que todos os direitos e
privilégios sucessórios eram mantidos ao sexo masculino, as filhas somente poderiam herdar
se houvesse ausência de irmãos legítimos, pois as mulheres eram consideradas incapazes de
gerir seu próprio patrimônio. Também não tinham capacidade para representar a si mesma,
eram consideradas como se fossem menor de idade e, conforme Górgias “um modesto
silêncio é a honra da mulher”13 o que, por si só, já basta para dizer como a mulher era
subjugada, tratada e vista de forma muito inferior.
Mas, levando-se em consideração o período e o contexto, a mulher, complementa
Maria Dolores Mirón, exercia um papel completar e importante porque o homem conseguia
riquezas e a mulher administrava a casa, os escravos e os filhos, apesar da última palavra ser
do varão, dito de outro modo, seu importantíssimo papel estava no fato do homem trabalhar
e ela “guardar” a casa e cuidar das riquezas adquiridas. Explica a autora que quanto mais a
mulher se mostrava merecedora da confiança do marido mais ele liberava à ela autonomias
administrativas do lar e das finanças e, caso ela lhe desse um filho homem, a confiança era
ainda mais fortificada.
Mirón14 coloca que as mulheres não podiam falar em público nem mesmo participar
da política e sempre necessitavam de um representante do sexo masculino para representá-
las. Quando ficavam viúvas necessitavam de um tutor para conduzir suas próprias vidas. Por
outro lado, as mulheres pobres, sem recursos, ficavam a mercê de injustiças, pois
dificilmente teriam um tutor para defende-las. Somente quando tivesse um filho homem e
esse se tornava maior de idade este passava a gerir e a liderar o lar. A autora destaca que o
problema ia além, pois os tutores não raras vezes usufruíam dos bens da viúva e de seus
filhos, desviando valores financeiros.

2. OS DIREITOS DA MULHER ESPARTANA

Segundo Dámaris Romero15 a mulher espartana disfrutou na antiguidade de um


privilégio melhor do que suas contemporâneas atenienses. Há variação no comportamento

13
GORGIAS IN: ARISTÓTELES. A Política. Livro digital, formato PDF, pág. 29. Disponível em:
https://farofafilosofica.com/2017/05/03/aristoteles/. Acesso em 23 de agosto de 2020.
14
MIRÓN, Maria Dolores Pérez. El Gobierno de la casa em Atenas Clasica: género y poder en el oikos. Vol.
18, Stvdia Historica. História Antigua. Salamanca: Editora Universidad de Salamanca, 2000, pág. 103-117.
Disponível em: https://revistas.usal.es/index.php/0213-2052/article/view/6216. Acesso em 15 de agosto de
2020.
15
ROMERO, Dámaris González. El prototipo de mujer espartana en Plutarco, páginas 679 à 687, vl. 19.
Berlim: CIP, The Unity of Plutarch’s Work, pág. 681 e 682.
407

social conforme o período, mas os historiadores afirmam que elas foram mais protagonistas
socialmente do que as atenienses.
Elas moviam-se com muita “liberdade” na sociedade, complementa Dámaris
Romero16 que a mulher espartana usava roupas leves, de modo sóbrio e aberta na lateral, isso
lhe proporcionava movimento muscular. Elas mostravam as pernas e em algumas ocasiões
usavam bermudas porque na concepção dos espartanos deixar e as obrigavam a se
exercitarem fisicamente, isso lhes capacitaria para terem filhos perfeitos e vigorosos, assim
essa possibilidade de fazer exercícios físicos as possibilitava de usarem roupas mais leves e
deixarem o corpo mais a mostra.
Segundo Moisés Tôrres ela não vivia reclusa como a ateniense, mas alerta o autor
que “isso não significava que as mulheres espartanas tivessem socialmente mais
consideração e sim, ao contrário, que sua utilidade era ainda mais diminuída no mundo da
pólis”. Segundo ele, a possibilidade dela sair de casa enfraquecia a família, os filhos eram
criados pelo Estado e os maridos só visitavam as esposas de vez em quando. Era uma outra
visão de organização da sociedade.
Os espartanos eram mestres no cultivo das tradições cívicas e amavam com fervor a
sua pátria, dedicavam-se até à morte ao combate e tinham repugnância aos covardes e
desertores, eram xenófobos por excelência, pois se julgavam “iguais entre si”, mas
“superiores a qualquer outro povo da Hélade”, usavam uma longa cabeleira e bem forjados
apetrechos de guerra, acompanhado de uma longa capa vermelha tocava-lhes o calcanhar. 17

Disponível em:
https://www.researchgate.net/profile/Diotima_Papadi/publication/278031219_'Moralia'_in_the_'Lives'_Trage
dy_and_Theatrical_Imagery_in_Plutarch's_'Pompey'/links/557a9b5008ae753637571015.pdf#page=698.
Acesso em: 24 de agosto de 2020.
16
ROMERO, Dámaris González. El prototipo de mujer espartana en Plutarco, páginas 679 à 687, vl. 19.
Berlim: CIP, The Unity of Plutarch’s Work.
Disponível em:
https://www.researchgate.net/profile/Diotima_Papadi/publication/278031219_'Moralia'_in_the_'Lives'_Trage
dy_and_Theatrical_Imagery_in_Plutarch's_'Pompey'/links/557a9b5008ae753637571015.pdf#page=698.
Acesso em: 24 de agosto de 2020.
17
ROMERO, Dámaris González. El prototipo de mujer espartana en Plutarco, páginas 679 à 687, vl. 19.
Berlim: CIP, The Unity of Plutarch’s Work. Pág. 24.
Disponível em:
https://www.researchgate.net/profile/Diotima_Papadi/publication/278031219_'Moralia'_in_the_'Lives'_
Tragedy_and_Theatrical_Imagery_in_Plutarch's_'Pompey'/links/557a9b5008ae753637571015.pdf#page
=698. Acesso em: 24 de agosto de 2020.
408

Por serem extremamente defensores de sua cidade Romero constata ainda que
acabavam ensinando os conhecimentos e táticas militares às mulheres, pois Esparta era um
Estado em guerra e necessitava de cidadãos guerreiros e bem preparados.
Todavia, esses direitos às mulheres foram desclassificados por Aristóteles pois eles
as tornaram mulheres nocivas e ainda, ressalta que, quando elas tentaram ajudara em guerras,
deram mais trabalho do que os próprios inimigos:

Enquanto a audácia não serve para nada nos negócios ordinários, a não ser na
guerra, a audácia das mulheres lacedemônias é sempre nociva, como vimos no
tempo da invasão dos tebanos, quando, longe de servir melhor do que as mulheres
de outros lugares, deram mais trabalho do que os próprios inimigos.18

Aristóteles criticava a excessiva liberdade dada às mulheres espartanas e as


considerava indisciplinadas, o que julgava não só ser uma indecência para o Estado, “(...)
mas também um germe de cobiça e corrupção”19.
Explica Moisés Torres que Aristóteles considerava que havia falhas no regime
espartano pois considerava que as mulheres “mandavam” nos maridos, e, segundo ele,
Aristóteles deia subentendido que o motivo disto “(...) estava no fato de muitas viúvas
casarem novamente, levando consigo os direitos sobre o lote de terra (kléros) cultivado pelos
hilotas.”20

3. OS DIREITOS DA MULHER NA SOCIEDADE VIKING

O povo viking viveu na Escandinávia (Suécia, Noruega e Dinamarca) há mais de


1300 anos atrás, colonizaram a Islândia, Groelândia e América do Norte. Segundo Johnni
Langer21 está-se a falar do ano 766 à 1066 depois de Cristo, ou seja, 800 anos depois do
período clássico grego vivido em Atenas e Esparta e, apesar das vikings não fazerem parte
da mesma sociedade grega, é curioso pensar como estaria a vida destas mulheres.

18
ARISTÓTELES. A Política. Livro digital, formato PDF, pág. 194. Disponível em:
https://farofafilosofica.com/2017/05/03/aristoteles/. Acesso em 23 de agosto de 2020.
19 ARISTÓTELES. A Política. Livro digital, formato PDF, pág. 194 e 195. Disponível em:

https://farofafilosofica.com/2017/05/03/aristoteles/. Acesso em 23 de agosto de 2020.


20
TÔRRES, Moisés Romanazzi. Considerações sobre a condição da mulher na Grécia Clássica (séc. V e
IV a.c.). Barcelona: Mirabilia Journal. Dec. 2001 / ISSN 1776-5818.
21 LANGER, Johnni. Guerreiras de Óðinn: As Valkyrjor na Mitologia Viking. São Luiz do Maranhão:

Brathari / Revista de Estudos Celtas e Germânicos. V.4 n.1(2004), pág.56. Disponível em:
http://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair/article/view/627
Acesso em 24 de agosto de 2020.
409

Os achados arqueológicos são a fonte mais importante para tentar descobrir sobre a
mulher viking pois, ao contrário dos atenienses e espartanos, esse povo não deixou muitos
documentos escritos. Outra importante fonte de informação tem sido as Sagas Islandesas
(século XIII) que também tem sido fontes dos estudos sobre a condição social das mulheres
viking. Ademais, atualmente existem riquíssimos museus e estudos nas principais cidades
da Escandinávia que dedicam estudos ao passado da região.
Ganha também destaque para estudos do conceito que se tinha da mulher nesta
sociedade a mitologia viking, através das Valquírias, segundo Johnni Langer sofreram
evolução morfológica de seu mito. Lange explica que primeiramente elas foram entidades
sanguinárias incentivadoras de carnificinas (Antiguidade); posteriormente foram
selecionadoras dos mortos nas batalhas (Antiguidade Tardia) e, mais tarde, foram
selecionadoras dos mortos e receptoras serviçais em Valhalla (período das migrações e início
da era viking); Guerreiras de Odim, donzelas cisnes, esposas / amantes, filhas de reis (final
da Era Viking).22
Explica Fernanda Godoy que as Valquírias eram aquelas que escolhiam os mortos
para levá-los a Valhalla, o comportamento delas era de amantes, esposas, lutadoras, protetora
dos heróis e profetisas mas, sobretudo, as Valquírias são filhas de Odin, o deus máximo na
mitologia Viking e, segundo a autora, existem sagas que mostram que se as valquírias que
não obedecem a Odin acabam sendo castigadas por ele. Dito de outro modo, mesmo as
deusas valquírias estavam submetidas ao masculino de Odin.
A autora também coloca que como havia um instinto de guerrear na cultura viking
isso acabava sendo passado para todos, seja para mulheres, crianças e homens, ou seja, dito
de outro modo, um dos papéis atribuídos às mulheres vikings também era, no mínimo, o
instinto de defesa o que é muito similar com a mulher espartana.
De todo modo, cabe destacar os estudos de Price e etc al23 afirmam que apesar de
encontrarem sítios arqueológicos onde há mulheres enterradas com armas e vestidas com

22
LANGER, Johnni. Guerreiras de Óðinn: As Valkyrjor na Mitologia Viking. São Luiz do Maranhão:
Brathari / Revista de Estudos Celtas e Germânicos. V.4 n.1(2004), pág.63. Disponível em:
http://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair/article/view/627
Acesso em 24 de agosto de 2020.
23
PRICE, Neil; HEDENSTIERNA-JONSON Charlotte; ZACHRISSON Torum; KJELLSTRÖM,
Anna; STORA, Jan; KRZEWI`NSKA, Maja; GÖTHERSTRÖM, Anders. Mulheres guerreira viking?
Reavaliação da sepultura da câmara de Birka Bj. 581. Antiquity, 93 (367), pág. 181-198. Cambridge:
Cambridge University Press, 2019. DOI: https://doi.org/10.15184/aqy.2018.258
410

roupas com estilo mais masculinizado, não é comprovado que as mulheres lutavam na guerra
com os homens, os achados somente são um indício de que as mulheres manuseavam armas
e, pois isso foram enterradas com elas, outra hipótese é que elas eram enterradas com armas
até mesmo por uma questão social. Os autores afirmam que até hoje existem mais pergunta
do que respostas sobre se as mulheres vikings que lutavam, tendo em vista que fora
encontrado poucos indícios que comprovem o imaginário sobre as “guerreiras viking”.
Assim não há conclusões definitivas que as mulheres destas sociedades tinham direito de
lutar ao lado dos homens.
Complementa Ricardo Oliveira24 que a mulher viking tinha um papel mais voltado
aos cuidados da casa, dos animais e da produção de comida mas, para aquele período ( era
medieval) a mulher viking tinha mais liberdade que as mulheres de outros povos, segundo
ele:
A mulher viking gozava de uma ampla liberdade, se comparada com a mulher
europeia em geral. Podia possuir terras e outros bens, cultivar, comercializar e era
dela a escolha de casar ou não com o pretendente designado pelo pai, tinha o
direito de pedir divórcio e poderia até possuir um status elevado herdando bens de
um marido falecido. Entretanto poderia perder a liberdade e a vida caso
cometessem crimes, como o adultério, que dava direito ao seu marido de executá-
la. Eram destinadas a ela as tarefas domésticas. 25

Adrie Silva26 também afirma que vários registros elencam que a mulher viking adulta
detinha a função de cuidadora das tarefas domésticas, das crianças, enfermos e idosos e de
todas as atividades relacionadas ao cuidado da família, a autora afirma que se tratava de uma
mulher dinâmica socialmente.

24
OLIVEIRA, Ricardo Wagner Menezes de. Sutiã de aço: a representação da mulher guerreira no filme
como treinar seu dragão. Anais do II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba: Sábias Guerreiras e
Místicas. Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2012,
pág. 351-358.
25
GRAHMA CAMPBELL, 1977, in: OLIVEIRA, Ricardo Wagner Menezes de. Sutiã de aço: a
representação da mulher guerreira no filme como treinar seu dragão. Anais do II Seminário de Estudos
Medievais da Paraíba: Sábias Guerreiras e Místicas. Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc. João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2012, pág. 352.
26
SILVA, Adrie Dealis Bilhéo. Mulheres Vikings na Idade Média: Abordagens e Representações nas
Sagas Islandesas (Séc.XIII). Revista Digital Simonsen, ano IV, vol. 6, nº 6, jun.- dez., 2017, ISSN:2446-
594. Rio de Janeiro: Integradas Simonsen. Disponível em: http://www.simonsen.br/revista-digital/wp-
content/uploads/2017/05/montagem-da-revista-Reparado111.pdf
411

Elas aprendiam a tear, cozinhar e a administrar a propriedade e, quando os homens


saiam para lutar em novas conquistas ou guerras, as mulheres tinham que se defender de
ataques ou possíveis vândalos.27
Essa maneira de viver da mulher viking coadunam-se com o mito das valquírias que,
segundo Johnni Lange, significa que os homens que morriam nas guerras eram levados pelas
valquírias até Valhala (um tipo de paraíso), lá ele tinha outras valquírias que o serviam, eram
serviçais e o recompensavam, ou seja, ele recebia uma recompensa para uma boa vida
masculina, além de manter a ordem odinista por outro lado, a mulher da vida real e social
tinha também que dar todo o suporte ao lar, ao marido, aos filhos, era uma mulher que dava
suporte tanto na vida espiritual quanto na vida real.28

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível dizer pelos estudos realizados por historiadores que havia diferença no
tratamento e nos direitos das mulheres ateniensese, espartanas e viking.
As atenienses e espartanas viveram no mesmo período mas era tratadas de forma
diferente, a princípio parece que as espartanas tinham mais “liberdade”, mas ensina Moisés
Tôrres29 que não tratava-se de um reconhecimento social da mulher, mas sim de uma maneira
diferente de explorá-la. Ela tinha mais participação social do que a ateniense mas pagava um
preço alto por isso visto que o filho lhe era tirado em um determinado período da vida para
ser treinado e cuidado pelo Estado, o senso de família era outro para os Espartanos, havia
um interesse por trás de uma maior “liberdade”.
De todo modo, o objetivo principal do casamento em Atenas e Esparta era a
reprodução para que a linhagem fosse perpetuada.

27
CHISHOLM, Jane; REID, Struan. MILLARD, Anne. Who were the Vikings? Londres: Usborne
Publishing, 2018.
28 LANGER, Johnni. Guerreiras de Óðinn: As Valkyrjor na Mitologia Viking. São Luiz do Maranhão:

Brathari / Revista de Estudos Celtas e Germânicos. V.4 n.1(2004), pág. 58. Disponível em:
http://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair/article/view/627
Acesso em 24 de agosto de 2020.
29
TÔRRES, Moisés Romanazzi. Considerações sobre a condição da mulher na Grécia Clássica (séc. V e
IV a.c.). Barcelona: Mirabilia Journal. Dec. 2001 / ISSN 1776-5818. Disponível em:
https://ddd.uab.cat/pub/mirabilia/mirabilia_a2001m12n1/mirabilia_a2001m12n1p48.pdf. Acesso em 31
de agosto de 2020.
412

Passados oitocentos anos – chegando-se a era viking – não se pode dizer que houve
uma valorização da mulher e a melhoria da sua posição social, trata-se de diferenças sutis,
mas pode-se afirmar que a mulher viking tinha mais autonomia para administrar a
propriedade familiar (tomavam conta do lar), podiam escolher seus marido o que já era uma
grande evolução social, também podiam pedir divórcio o que era inconcebível em Atenas e
Esparta, podiam lidar com as finanças do lar e administrar os campos de cultivo e, confirmam
os autores que isso era muito acima da média do que a mulher naquele período medieval
30
poderia fazer. Langer apud Silva, relata que as chaves que ficavam presas ao cinto da
mulher viking simbolizavam a importância dela na estrutura familiar e passaram a ser
consideradas parte do vestuário nórdico, significava a autonomia dentro do lar e o controle
sobre a casa.
Pode-se dizer que a mulher Viking era uma espartana evoluída, ou seja, tinha mais
tarefas delegadas e confiadas a ela, era mais atuante no lar e tinha direito de herdar os bens
e administrar sua herança mas, acima de tudo, tinha direito de criar seus filhos.
Há uma característica comum entre as espartanas e as vikings, ambos os povos
mostram em seus registros um espírito mais guerreiro e, ao que tudo indica, incutiam na
sociedade o instinto de defesa tanto nos homens quanto nas mulheres, o que diferente da
mulher ateniense, que permanecia a parte de conhecimentos de defesa. Para as espartanas
essa possibilidade de ter acesso a conhecimentos de defesa e a possibilidade de treinar o
corpo para que pudesse gerar filhos saudáveis talvez possibilitasse a ela uma maior
mobilidade social e daí surgem as inúmeras críticas feitas na época por Aristóteles.
O presente artigo não teve a pretensão de esgotar os temas aqui explorados, apenas
tratou de uma pesquisar sobre os direitos das mulheres nestas três civilizações e assim
compreender um pouco sobre como estes povos entendiam o que é “ser mulher” e como elas
era consideradas nestas sociedades.

30
SILVA, Adrie Dealis Bilhéo. Mulheres Vikings na Idade Média: Abordagens e Representações nas
Sagas Islandesas (Séc.XIII ). Revista Digital Simonsen, ano IV, vol. 6, nº 6, jun.- dez., 2017, pág. 38.
ISSN:2446-594. Rio de Janeiro: Integradas Simonsen. Disponível em: http://www.simonsen.br/revista-
digital/wp-content/uploads/2017/05/montagem-da-revista-Reparado111.pdf
413

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Acesso em 31 de agosto de 2020.
415

A NECESSIDADE DE VALORAÇÃO DA PROVA PERICIAL


PSICOLÓGICA NOS CRIMES DE ESTUPRO COM VÍTIMA
MULHER

Ellen Souza Martins1

RESUMO: O presente artigo versa sobre crime de estupro, com vítima mulher, analisando
criticamente a necessidade, ou não, de prova psicológica para a sua comprovação. A
importância desta pesquisa justifica-se pela intenção de colaborar com o aprofundamento
acadêmico acerca deste tema, bem como auxiliar para possíveis bases de recursos e
julgamentos que possam utilizar depoimento da vítima como base probatória da ocorrência
do crime de estupro. Valorando-se o depoimento da vítima de estupro, como elemento
probatório. Sendo o seu objetivo refletir, sob a ótica contemporânea, quais os reflexos
causados pelo julgamento dos crimes de estupro, bem como analisar a valoração que é, ou
deve ser dada ao depoimento das vítimas do crime de estupro e expor a necessidade da
criação de políticas protetivas para as mulheres, a serem proporcionadas pelo Estado, afim
de que, a partir do desenvolvimento, possamos chegar a um cenário que possibilite mais
dignidade às vítimas de estupro.

Palavras-chaves: Estupro. Crimes sexuais. Depoimento vítima. Crimes contra a dignidade


sexual.

INTRODUÇÃO

Analisaremos a relevância do depoimento da vítima de estupro como elemento


probatório fundamental para a elucidação do crime, na medida que as testemunhas nos
crimes sexuais acabam sendo raras, uma vez que estes delitos ocorrem normalmente em
locais ermos, ou na própria residência das vítimas, assim sendo necessária a valoração do
relato da vítima que, muitas vezes, é a única pessoa que poderá relatar com precisão o
ocorrido.
Trazendo à luz a dificuldade da realização e comprovação de exame pericial, tendo
em vista a possibilidade da ausência de vestígios ou o esvaimento desses. Ante as hipóteses
em que não seria possível a realização de exames clínicos periciais que comprovem a

1
Advogada inscrita na OAB/RS 100.719. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo IDC. Aluna da
Especialização em Ciências Criminais, Direito de Família e Sucessões, e Direito e Processo Tributário, todos
pela FMP. E-mail: ellen@ellenmartins.adv.br
416

ocorrência do crime, portanto cabendo ao testemunho da vítima à base para a elucidação do


ocorrido.
Discorrendo sobre os cuidados que devem ser aplicados às vitimas de crimes sexuais,
partindo da avaliação dos benefícios trazidos pelo uso de perícias psicológicas e
psiquiátricas, não só como meios probatórios, mas também como meios de suporte
emocional para as mulheres que sofreram abusos sexuais, com o fim de evitar que as
agredidas sofram ainda mais, buscando assim minimizar os impactos psíquicos e as doenças
pós-traumáticas geradas pelo estupro.
Finalizando com análise de uma abordagem multidisciplinar (psíquica e jurídica)
para a proteção mental e física das vítimas, como forma de mudar a visão da valoração do
depoimento da vítima do crime de estupro.

1 RELEVÂNCIA DO DEPOIMENTO DA VÍTIMA COMO ELEMENTO


PROBATÓRIO

A prova no direito brasileiro deve ser utilizada para que o julgador possa orientar-se
de modo a proferir uma decisão mais justa possível, buscando a verdade dos fatos, ou o mais
perto que possa chegar da verdade. Utilizando para tanto, todos os meios de prova em direito
admitidos (observando-se aqui que há um rol explicito em lei dos meios de prova, mas não
taxativo) respeitados a ampla defesa e o contraditório, para que assim, aquele que julga se
convença da realidade, ou não, dos fatos.
Nos casos de crimes de estupro, quando acabam por deixar vestígios (sêmen,
arranhões, hematomas, etc), é indispensável o exame de corpo de delito, conforme artigo
158 do Código de Processo Penal - CPP, no entanto não é sempre que pode ser verificado
algum resquício do crime, assim a prova testemunhal pode suprir o exame inconclusivo ou
a não efetivação de exame, como podemos verificar no artigo 167 do CPP2:

Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo
de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.
Art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem
desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.

2
BRASIL. DL 3698 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> acessado em 01/06/2016
417

O exame pericial, é feito por meio de médicos peritos legistas, responsáveis por
emitir laudos passíveis de comprovar o crime (exame de corpo de delito), com intuito de
aclarar as evidências como a presença de esperma, ruptura do hímen e lesões corporais, quais
serão as provas da prática da conjunção carnal ou algum ato libidinoso diverso da conjunção
carnal. Porém, este exame pericial é, por muitas vezes, de difícil comprovação, pois não será
sempre que o crime de estupro deixará vestígios, como também entendem Thaisa Mangnani
Dias e Evandro Dias Joaquim3 “A prova testemunhal, que não raramente substitui a ausência
da pericial, também é escassa, tendo em vista que normalmente a ocorrência também não
oferece este tipo probatório por ter ocorrido de maneira reservada”.
Quanto à complexidade probatória quando não restam vestígios, como nos casos de
atos libidinosos sem penetração de pênis Nucci nos instrui4:

Como regra, havendo violência real e comparecendo a vitima para análise médica,
obtêm-se sucesso na elaboração do exame de corpo de delito; entretanto, nos casos
de grave ameaça e nas situações de vulnerabilidade, torna-se praticamente
impossível à realização da pericia. Ressalte-se ainda, casos em que ocorrem atos
libidinosos diversos da conjunção carnal, como um beijo lascivo forçado, imune a
exames periciais. (NUCCI, 2011, p. 68).

Salientamos que no parágrafo 7º5 do artigo 159 do CPP existe a possibilidade de


realização de perícia por mais de um profissional, ante a complexidade do caso a ser
analisado “Tratando-se de perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento
especializado, poder-se-á designar a atuação de mais de um perito oficial, e a parte indicar
mais de um assistente técnico.”. Para nós seria este o caso, na medida em que a vítima
necessita de amparo não só o físico, mas também psíquico, sendo assim, necessária a atuação
conjunta de perito médico para analisar a presença de vestígios físicos e de perito psiquiátrico
para verificar os traumas causados pelo ocorrido, sendo que, tais laudos consubstanciariam
o depoimento da vítima, conferindo-lhe autenticidade necessária para a condenação do autor
do crime. Quanto à discriminação das provas Tourinho Filho6:

3
DIAS,Thaisa Mangnani, JOAQUIM, Evandro Dias. Revista JurisFI, Volume IV, Ano IV, Dezembro 2013.
Bauru – SP. Disponível em: <http://www.revistajurisfib.com.br/artigos/1395809029.pdf>. Acessado em:
25/09/2016. pag. 292.
4
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei nº 12.015, de 07 de agosto
de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. pag. 69.
5
BRASIL. DL 3698 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> acessado em 01/06/2016
6 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Manual de Processo Penal/ Fernando da Costa Tourinho Filho. –

14. ed. – São Paulo : Saraiva, 2011. pag. 573.


418

As provas devem ser juridicamente admissíveis. O nosso CPP da especial atenção


ao exame de corpo de delito, as perícias em geral, o interrogatório do réu, a
confissão, as declarações do ofendido, as testemunhas, ao reconhecimento de
pessoas ou coisas, acareações, documentos, indícios e finalmente regula a busca
como expediente de consecução de prova.

Por muitas vezes, os crimes sexuais podem não deixar vestígios, ou por repulsa a
vítima acaba por se higienizar e remover algumas das provas, para então procurar a polícia,
ou em outros casos a vítima, em choque, demora em denunciar, impossibilitando a perícia
física. Nessas hipóteses, não seria possível a realização de exames clínicos periciais que
comprovem a ocorrência do crime, assim sendo impossível a verificação deve ser aplicado
o artigo 167 do CPP, conforme citado anteriormente e ainda quando não houver testemunhas,
cabe ao testemunho da vítima a base para a elucidação do ocorrido. Quanto a vergonha e a
dificuldade de procurar a justiça para os casos de crimes de estupro.

O delito de que estamos tratando é daqueles que, por suas características de


aberração e de desrespeito à dignidade humana, causa tão grande repulsa, que as
próprias vítimas, em regra, preferem ocultá-lo e que a sociedade, em geral, prefere
relegar a uma semiconsciência sua ocorrência, os níveis desta ocorrência e o
significado e repercussões que assume para as vítimas deste tipo de violência.

Há entendimento por parte da doutrina que vê o testemunho da vítima como fonte


não confiável plenamente, não devendo ser aplicada como único meio probatório no
processo, afirmando que a palavra do ofendido, assim como a do ofensor pode estar eivada
de rancores e predisposições que lhes favoreçam o resultado processual. Tais julgadores
avençam a hipótese de que, em muitos casos, as vítimas podem estar movidas pelo lado
emocional, traumático e ou afetivo (casos de crimes cometidos por entes queridos ou
conhecidos) influíram diretamente na veracidade do relato, na medida em que quando há
afeto ou intenso pavor, o agredido, teria a tendência de perdoar o seu ofensor.
Muito embora, existam críticas quanto ao caráter emocional aplicado ao depoimento
da vítima, o relato dessa é o principal meio de obtenção da realidade dos fatos, obviamente
em consonância a análise psicológica visando eliminar quaisquer inclinações emocionais e
que deturpem a realidade no seu depoimento.
A análise jurídico psiquiátrica/psicológica da vítima, complementa o depoimento, a
fim de que esse seja o elemento probatório principal do julgamento do crime. Ao passo que,
419

a realização de perícias físicas e psíquicas nas vítimas de crimes sexuais, nos aproximaria da
verdade dos fatos.

2. DA NECESSIDADE DE AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

O depoimento da vítima deverá ser aplicado como prova crucial à resolução do


julgamento, sendo visto em consonância com as demais provas do processo, no que tange a
coerência do relato do ofendido, desde a fase investigatória até o confronto com as demais
provas. Salientado que, juntamente com a análise do depoimento, deverá ser dado suporte
emocional/ psicológico a vítima, facilitando assim, a coleta do depoimento e a sua
veracidade pela análise profissional.
O exame de laudo interdisciplinar (físico e psíquico) é aceito como elemento de
convicção para o julgador, no entanto, hoje não há uma vinculação do julgador para com o
depoimento do ofendido, sendo tal falta de valoração incorreta, pois, se o depoimento da
vítima unificado ao exame psicológico é prova útil à conclusão do processo, deveria essa ser
utilizada como prova máxima para a convicção da verdade dos fatos, conforme afirma Mota7
"está destinada a fornecer subsídios ao processo judicial, além de envolver vários atores e
instituições".
Ademais devemos aplicar cuidados às vítimas de crimes sexuais, servindo a perícia
psicológica não só como meio probatório, mas também como meio de suporte emocional à
pessoa que sofreu o abuso.
Embora o perito psicológico não consiga ter plena certeza de estar apresentando toda
a verdade dos fatos em seu laudo pericial, ele o realiza munido de todos os meios conhecidos
pela medicina para aproximar-se da verdade real, apresentando ao menos parte do que
aconteceu no momento do crime. Gerando prova irrefutável, uma vez que é atestado de
veracidade pelo médico perito.
No campo do abuso sexual infantil é completamente aceito pela doutrina o uso da
avaliação psicológica como base probatória de comprovação do cometimento do abuso, qual
é realizada tanto para avaliar os impactos da violência na vida futura da criança e do

7
MOTTA, R. V. (2009). Psicoterapia no fazer da psicologia jurídica. In F. R. de Lima, & C. Santos (Coords.),
Violência doméstica: Vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar (pp. 115-125. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris. Pag 120.
420

adolescente, quanto para a confirmação da ocorrência do crime, como podemos ver em


estudo realizado pela Doutora Lara Lages Gava8, muito embora alguns casos de abuso
acabem por não deixar provas físicas, a comprovação poderá se dar com plena convicção
por meio de avaliações psicológicos do agredido:

Do ponto de vista da produção da prova pericial, o baixo índice de evidências


concretas no corpo da criança ou do adolescente sexualmente abusado traz a
seguinte dificuldade: como produzir uma prova sem que existam evidências
materiais do crime? Além da dificuldade em encontrar vestígios corporais, há
ainda outros elementos que são próprios à dinâmica do abuso sexual infanto-
juvenil e que também dificultam a produção da prova pericial, a saber: vítima e
perpetrador, em geral, são as únicas testemunhas do crime (Buck etal., 2002;
Javiera & Olea, 2007; Rovinski, 2007) e o fato delituoso toma a forma de uma
síndrome do segredo (Furniss, 1993). Diante desses aspectos, a produção da prova
pericial nos casos de violência sexual cometida contra crianças e/ou adolescentes
torna-se um desafio. Uma alternativa a este desafio, que necessita ser afrontado, é
o recurso a perícias psíquicas, isto é, psicológicas ou psiquiátricas. Uma perícia
psíquica possui o mesmo objetivo de uma perícia em geral, a saber, o
esclarecimento de um fato de interesse da Justiça, utilizando-se, para tanto, de um
conjunto de procedimentos técnicos (Taborda, 2004). Neste caso, o conjunto de
procedimentos técnicos utilizado é específico à área da Psicologia ou da
Psiquiatria.

A realização de perícia psicológica e/ou psiquiátrica, no campo dos abusos sexuais


infantis, é plenamente aceita, fato que atesta a favor do seu uso, também, como base
comprobatória do depoimento da vítima de violência sexual maior de 18 anos.
Desse modo, além de ser de difícil comprovação, por se dar sem testemunhas, em
locais ermos, ou sem deixar vestígios suficientes para a sua comprovação, o crime de estupro
deve ser tratado ser relacionar-se a conduta social ou aos estereótipos de honestidade
impostos pela sociedade, pois não modifica em nada se o crime de estupro fora cometido
contra uma mulher solteira com hábitos festivos e que usava vestimenta curta, ou contra uma
mulher casada que dedica a sua vida para a família. O legislador e o judiciário devem criar
leis e aplicá-las com o intuito de defender todas as mulheres, independentemente das suas
escolhas pessoais, profissionais, ou da sua posição social.
Devemos ultrapassar os conceitos equivocados de honestidade aplicados há séculos
pelos julgadores, protegendo todas as pessoas de forma igualitária e tratando as mulheres

8
GAVA, Lara Lages, Porto Alegre, 2012. Disponível em: <
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/70031/000875859.pdf?sequence=1> . Acessado em: 25 de
setembro de 2016. pag.20.
421

com o devido respeito, vendo vítimas como vítimas e não as julgando pelo modo que se
portam em sociedade.
A ideia é proporcionar uma mudança no atendimento às vítimas de crimes sexuais,
pois, este deverá se dar de forma a abranger não só as perícias físicas, mas também o
tratamento psicológico que proporcione minimizar os danos psíquicos causados pela
agressão sofrida. No momento que a vítima recorre ao poder público para efetuar a denúncia
do crime sofrido, os policiais devem atendê-la de forma que não lhe propicie maiores
traumas, registrando a ocorrência sem qualquer juízo de valor em relação à vítima, ou aos
fatos narrados, sem aplicar os seus entendimentos pessoais no relato. Deve ser efetuada, a
inquirição da vítima com perguntas que sejam apenas de cunho legal, sem a necessidade de
que sejam feitos questionamentos acerca da sua honra. Sendo que em nada contribui o
comportamento sexual, ou de vida da agredida, para averiguação do crime sofrido. Pois,
estereótipos, local de trabalho, conduta social e aparência da vítima, não alteram em nada o
fato ocorrido e não justificam que qualquer pessoa extrapole os limites da sua liberdade
sexual.

3. DEVER DE PROTEÇÃO DO ESTADO E DA CRIAÇÃO DE POLÍTICAS


PÚBLICAS PROTETIVAS

No que tange os direitos humanos existe uma clara necessidade de intervenção da


população para a sua efetivação, na medida em que a interação da população para com os
seus direitos e deveres, gera uma cobrança justa e necessária do povo para com o legislador.
Nessa perspectiva os cidadãos apenas tornam-se pessoas com seus direitos previstos
à medida que exprimem as suas necessidades exercendo a sua cidadania. No entanto como
exercer o seu papel de cidadã quando está colocada a margem da sociedade? O papel
marginalizado e inferiorizado a que a mulher pertenceu por diversas décadas na história
mundial, fez com que os seus direitos fossem colocados sob segundo plano, assim, partindo
da concepção de que o cidadão deve exigir a efetivação e a previsão dos seus direitos, a falta
de representatividade e a falta de expressividade na sociedade por parte das mulheres, fez
com que os seus direitos não fossem pleiteados da forma adequada. A ilustre mestra Maria
422

Berenice Dias9 nos enfatiza a questão histórica da submissão aplicada à mulher e nos
esclarece quanto aos danos causados pelo tolhimento dos seus direitos de liberdade e
igualdade:

Criminosa a omissão estatal que, sob o manto da deturpada noção de


inviolabilidade de espaço privado, tem chancelado as mais cruéis e veladas formas
de violência dos direitos humanos. Constranger, impedir que outro manifeste a sua
vontade, tolher sua liberdade, é uma forma de violação dos direitos essenciais ao
ser humano. A violência, frequentemente, está ligada ao uso da força física,
psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não quer. A
relação de desigualdade entre o homem e a mulher – realidade milenar que sempre
colocou a mulher em situação de inferioridade, impondo-lhe obediência e
submissão -, é terreno fértil à afronta ao direito à liberdade. A liberdade, que
corresponde a primeira geração dos direitos humanos, é violada quando o homem
submete a mulher ao seu domínio. É preciso assegurar, como recomendou
Roosevelt, a liberdade contra o medo. Liberdade em relação aos constrangimentos
do presente e as incertezas do futuro.

Assim cabe ao ente público assegurar o exercício de liberdade a todas as pessoas,


criando leis e políticas públicas, que orientem e ensinem desde a primeira infância como
devemos tratar de forma igualitária todas as pessoas. Como explica Alexy10, os direitos
fundamentais estão atrelados ao conceito de dignidade da pessoa humana, assim o Estado
deve assegurar, de maneira positiva, a efetivação desses direitos:

O reconhecimento dos direitos fundamentais é uma exigência da dignidade da


pessoa humana que impõe ao Estado um dever maior do que o de meramente
abster-se de afetar, de modo desproporcional e desarrazoado, a esfera patrimonial
das pessoas sob a sua autoridade. São exigíveis do Estado, também, ações
positivas no sentido de assegurar a dignidade humana.

Os direitos humanos devem ser assegurados pelo poder público, no viés das
desigualdades vividas pelas mulheres, cabe ao Estado diminuir as diferenças que culminam
em discriminação e subjugação do gênero feminino, a partir da inserção de políticas públicas
e discussões sociais que viabilizem novos conceitos de igualdade e respeito.

9
DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher / Maria Berenice Dias. – 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo
: Editora Revista dos Tribunais, 2012. pag. 39.
10
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudíos Políticos y
Constitucionales, 2002 In: Mendes, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista Novos Paradigmas/ Soraia da
Rosa Mendes – São Paulo : Saraiva, 2014. pag. 203.
423

A falta da devida proteção do Estado para com os direitos de todas as mulheres viola
severamente os direitos essenciais que são inerentes a todos os seres humanos, a recorrente
situação de inferiorização que as mulheres são colocadas há séculos perpetua os tolhimentos
dos direitos femininos, pois quando uma parcela da sociedade não é reconhecida como igual
aos demais, os seus direitos não são valorados da mesma forma que os outros. Assim,
devemos ultrapassar a visão machista de que o homem deve ter privilégios sobre as mulheres
e o Estado deve garantir de forma explícita que todos, homens e mulheres, são cidadãos com
seus direitos e liberdades assegurados da mesma forma, extirpando, aos poucos, os
preconceitos sob o gênero feminino.
Os aplicadores do direito e o Estado devem preocupar-se em efetivar políticas
públicas que, transformem e eduquem a população quanto ao tratamento que é dado ao
conceito de mulher, eliminando da sociedade as ideias de inferioridade e menos valia que
foram associadas ao sexo feminino. A proteção do Estado deve ser efetivada não só por meio
de regramentos que assegurem direitos igualitários entre os gêneros, mas também, ante o
histórico da nossa sociedade de menosprezo dos direitos das mulheres, criando políticas
públicas que gerem acolhimento e tratamento às vítimas de abuso sexual.
Cabe ao Estado ofertar tratamentos para as vítimas de crimes sexuais e aos seus
familiares, buscando minimizar os danos gerados pela dor causada, uma vez que, sendo o
Estado o garantidor da proteção à liberdade e à dignidade sexual das pessoas, ao deixar de
garantir essa proteção, deverá ao menos buscar reduzir os danos causados pela sua falta de
amparo. Pois, é sabido que, por muitas vezes, a opressão sofrida pelas mulheres vítimas de
crimes sexuais, faz com que elas se neguem a revelar o incidente delituoso por medo do
autor do estupro, ou por vergonha do constrangimento que a publicidade do fato irá gerar
nas suas vidas e pela repercussão social negativa que a carga de tal crime acarretaria para
sua imagem. As mulheres abusadas sexualmente, muitas vezes, acabam não procurando
delegacias pela vergonha que a situação do depoimento e do exame pericial lhe causaria,
fazendo com que a maioria delas desista de realizar a denúncia. Também, como
mencionamos anteriormente, pelo fato de ser um crime que viola completamente a
intimidade e o corpo, muitas vítimas buscam se higienizar após o crime, não só pelo fato da
higiene em si, mas pela questão de “banhar-se” estar atrelada com uma limpeza que as
proporcionaria uma espécie de higiene moral, no entanto tal ato acaba por impossibilitar a
coleta pericial de todos os vestígios que poderiam restar no corpo da vítima.
424

Os aplicadores da lei e a sociedade, ao contrário do que seria adequado, realizam


questionamentos sobre o comportamento de vida das vítimas, as tratando como suspeitas,
analisando os seus comportamentos sociais, quando na verdade deveriam protegê-la.
Deixando, aqui, o direito de dispor da sua liberdade sexual atrelado, erroneamente, ao que a
sociedade entende como moralmente aceito. O Estado deve garantir meios de que o direito
a liberdade sexual seja respeitado, independentemente de quais forem às escolhas pessoais
de qualquer pessoa.
O nosso sistema penal está amplamente atrelado ao controle social, desde o modo
como fora concebido por meio dos costumes sociais, articulados como referido no início
deste trabalho por homens que não viam como vantagem tratar as suas mulheres de forma
igualitária, assim o nosso sistema criminal não é apenas composto de instituições formais,
legais, mas também, de mecanismos de controles sociais informais, baseados em
estereótipos e pressupostos aplicados a determinadas classes sociais e gêneros, que muito
embora não estejam explicitados em nossos ordenamentos legal são claramente utilizados
pelos aplicadores do direito que realizam questionamentos sobre a vida da vítima de estupro
e aplicam tratamento diferenciado para as mulheres que julgam “desonestas”.
Não devemos apenas deixar a cargo de disposições legais uma mudança do
tratamento que é conferido para as mulheres, como esclarece Soraia da Rosa Mendes “é
preciso que se estude como se estrutura o poder dentro da esfera privada. Não basta estudar
o controle social apenas na esfera pública, porque isso fornece um conhecimento parcial do
modo em que se opera o sistema de custódia da mulher”. Assim, partiremos de uma análise
do sentimento que a custódia dos homens gera nas mulheres, para buscarmos meios de
transformar essa realidade opressora e desigual.
Assim, surge a necessidade de implantarmos novas ações de políticas públicas com
o intuito de que as leis possam ultrapassar a celeuma acadêmica, adentrando o entendimento
popular, para que os ideais de igualdade de gênero se tornem ações concretas cotidianas,
tornando os direitos sociais e fundamentais alcançáveis a todas as pessoas.
A preservação da dignidade humana das mulheres deve ser vista em consonância com
os critérios que lhes foram aplicados ao longo dos séculos. Devem ser estabelecidos
mecanismos que equiparem os sexos, para que as mulheres possam ser tratadas de forma
digna, saindo do papel de subserviente e desvalida. Como analisado, estamos em crescente
avanço na conquista de direito igualitários entre homens e mulheres, sendo assim, como resta
425

previsto no art. 3º §1º e §2º da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)11, bem como em outros
artigos e regramentos legais, o legislador se preocupou em deixar o campo da assistência às
vitimas mulheres em aberto, para que sejam criados novos mecanismos de acolhimento para
e prevenção para minimizar os efeitos causados pelos e violências sofridas pelas mulheres:

§1º O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos
das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de
resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
§ 2o Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias
para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.

Antes mesmo da Lei Maria da Penha já existiam algumas medidas com o intuito de
acolher e proteger as mulheres, a exemplo disso fora efetivada a criação de delegacias
especializadas em atendimento para a mulher, casas de passagem com o fim de acolher
mulheres em situação de vulnerabilidade familiar, a criação do Programa Assistência
Integral à saúde da Mulher: bases de ação programática (PAISM)12 que implantou um
“conceito de assistência reconhece o cuidado médico e de toda a equipe de saúde com alto
valor às praticas educativas, entendidas como estratégia para a capacidade crítica e a
autonomia das mulheres”, bem como a construção do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência Contra a Mulher13 que “consiste em um acordo federativo [...] para a criação de
Centros de Referência, Casas- Abrigo, Delegacias Especializadas de atendimento à Mulher
– DEM, Defensorias da Mulher e Centros de Reeducação e Reabilitação do agressor.”
Existem diversos programas e centros de auxílio para as mulheres que sofrem
violência doméstica e crimes sexuais em geral, no entanto ainda estamos muito distantes de
efetivarmos de fato um parâmetro de igualdade entre gêneros em nossa sociedade. Estamos

11
BRASIL. Lei 11.340/2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher,
nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acessada em:
02 de outubro de 2016.
12
Portal da Saúde. Disponível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/acoes-e-
programas/saude-da-mulher/leia-mais-saude-da-mulher/272-mais-sobre-saude-da-mulher>. Acessado em: 05
de outubro de 2016.
13
DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher / Maria Berenice Dias. – 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo
: Editora Revista dos Tribunais, 2012. pag. 205.
426

apenas iniciando um longo caminho em prol do respeito e da dignidade da mulher


assegurados “Instalar equiparar serviços especializados de atendimento à mulher vítima de
violência doméstica é o passo inicial para diminuir as demais formas de violência, que,
muitas vezes, têm sua origem dentro do Lar”.14
Além do que fora exposto, cabe ao ente público o estimular e manter, pela via
financeira, bem como por ajustes legais que facilitem a aplicação de espaços coletivos,
trabalhos alternativos, que visem a transformação social, com objetivo de rompermos os
estereótipos de menosprezo e violência, com que as mulheres são tratadas. Assim, o maior
desafio do Estado não é apenas prever em seus regramentos, ditames legais que unifiquem
os direitos de todas as pessoas, com o fim de coibir preconceitos e o desvalor conferido a
determinadas pessoas. O ponto central de uma verdadeira mudança deve ser baseado na
promoção de programas sociais e de condições educacionais, que orientem a população para
que todos assimilem, exercitem e respeitem os direitos de todos.
Cabe assim, a busca por uma justiça limpa e igualitária, sem nenhuma motivação
social ou fútil quanto a sua aplicação, livre de qualquer critério subjetivo quanto a gênero,
classe social ou etnia. Pois, os aplicadores do direito devem fazer jus aos regramentos legais,
sem menosprezar nenhuma mulher, não pondo em dúvida os depoimentos das vítimas de
crimes de estupro (depoimentos eivados de certeza e falta de contradições, quando possível
corroborados por laudos psiquiátricos), fazendo valer, de forma igualitária, os princípios da
dignidade da pessoa humana e da liberdade sexual, para todas as pessoas.
Como pontua a Digníssima Dra. Maria Berenice Dias15 “está mais do que em tempo
de resgatar a cidadania feminina. É preciso colocar a mulher a salvo do agressor, para que
ela tenha coragem de denunciar sem temer a que a sua palavra não seja leva a sério”. Dessa
forma, o Estado deve proteger as mulheres tanto no campo da prevenção a violência, como
dando o melhor acolhimento possível para as vítimas de abusos sexuais, acolhendo as
vítimas e lhes informando acerca de quais as medidas jurídicas cabíveis o Estado dispõe para
ajudá-las.

14
ELUF, Luiza Nagib. Violência contra a mulher. In: Dias , Josefina Maria de Santana (coord.). A mulher e o
Direito. São Paulo : Lex, 2007. pag 34.
15
DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher / Maria Berenice Dias. – 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo
: Editora Revista dos Tribunais, 2012. pag. 31.
427

Devemos ultrapassar o paradigma que fez com que a mulher fosse criada ao longo
dos séculos para “se sacrificar e negligenciar suas necessidades para apoiar as necessidades
dos outros e para potencializar os projetos de vida do marido e dos filhos.[...] Esse é o modelo
[...] traçado para a mulher no contexto do patriarcado.”16 Atentemo-nos então, para a
necessidade de transformação da visão social e da situação que as mulheres estão inseridas,
alterando o contexto de dominação que é exercido do gênero masculino sobre o feminino.
Conforme falamos anteriormente, o problema maior da falta de valoração do
depoimento das vítimas mulheres de estupro consiste na concepção inadequada que é dada
para o gênero feminino, porque as mulheres têm os seus direitos fundamentais postos de
maneira completamente desigual para com os homens. Seguindo a linha de raciocínio
exposta no capítulo anterior, devemos partir da ideia de que todas as pessoas são iguais em
direitos, sendo que a dignidade da pessoa humana está amplamente atrelada com a dignidade
sexual. Como esclarece Soraia da Rosa Mendes “a dignidade da pessoa humana abrange
(embora a isso não se restrinja) a vedação da coisificação.”. Dessa maneira, nenhuma pessoa
deveria ser menosprezada pelo seu gênero ou tratada como objeto ou propriedade de outrem,
não cabendo a ninguém traçar os comportamentos que devem ser mantidos por elas, na
medida em que a dignidade da pessoa humana assegura a proteção da autonomia de cada
indivíduo e a necessidade da sua proteção.
Cabe ao Estado, buscando a defesa dos direitos fundamentais, uma proteção livre de
julgamentos culturais e classificações arcaicas, como velhos conceitos de como as mulheres
devem ou não se portar. Assim, a dignidade da pessoa humana deve assegurar o direito à
autodeterminação de todas as mulheres, para que elas possam exercer livremente a sua vida
sem que sejam menosprezadas pelo direito, sendo que o direito à proteção está
completamente ligado à dignidade, na medida em que para ter os seus direitos assegurados
deverá partir do Estado uma forma de protegê-los e efetivá-los.
O Estado deverá assegurar a liberdade de todas as pessoas, propiciando formas para
que todos exerçam os seus direitos livremente, entretanto, além de existir uma liberdade
positiva, quando o Estado lhe oferece meios para efetivar os seus direitos, também há uma
liberdade negativa, no que tange a não vedação de determinadas condutas, deixando a cargo
da pessoa um rol de alternativas não proibidas pela lei.

16
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista Novos Paradigmas/ Soraia da Rosa Mendes – São Paulo
: Saraiva, 2014. pag.207.
428

Todas as pessoas são livres para disporem da sua liberdade como bem entenderem,
desde que não adentrem ao campo da ilicitude. Quando ocorre o julgamento por parte da
sociedade, bem como pelos aplicadores do direito, do comportamento das vítimas de estupro,
sem que esse comportamento seja algo previsto em lei como ilícito, estaria o Estado
negligenciando a liberdade de todas as mulheres, pois, se não cometeram nenhum
comportamento tipificado por lei, não tem por que serem julgadas. Assim como todos os
seres humanos, as mulheres devem ter os seus direitos e garantias respeitados. Devemos
assim, mais do que alterar a visão de desvalor aplicada ao gênero feminino, carecemos de
novos ideais criminológicos voltados à proteção feminina, como aclara a Dra. Soraia da Rosa
Mendes17 “Sim, as mulheres têm direitos fundamentais. Um deles é o de livremente decidir
sob o seu próprio corpo. Trata-se de um direito fundamental e exclusivo das mulheres. [...]
para pensar o direito das mulheres, é preciso rever o campo de atuação do direito penal, e
implodir velhas estruturas”.
Devemos atentar para os movimentos sociais feministas que clamam pela efetivação
dos direitos das mulheres, direitos esses atinentes a todas as pessoas, mas que não são
aplicados de forma igualitária. Além de outros direitos, não só de dignidade sexual carecem
as mulheres, mas pelo fato de o gênero feminino ser desrespeitado há séculos, fora criada
uma desvalorização, enraizada no entendimento social, do sexo feminino. Devemos lembrar
que “as mudanças nos ordenamentos jurídicos costumam ocorrer provocadas por
transformações sociais ou pela revindicação de determinados grupos ou movimentos
sociais”18, assim como na criação da Lei Maria da Penha, devemos dar voz aos movimentos
sociais e as mulheres da sociedade, em geral, para que encontremos alguma forma de alterar
a forma com que as mulheres são vistas pela sociedade, conferindo a elas maior respeito e
proteção.

17
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista Novos Paradigmas/ Soraia da Rosa Mendes – São Paulo
: Saraiva, 2014. pag 197 e 200.
18
VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti de. Delitos de Proximidade e Violência Doméstica. In: Crime, política
e justiça no Brasil/ Organização Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ratton e Rodrigio Ghiringhelli de Azevedo.
– São Paulo: Contexto, 2014. pag. 293.
429

CONCLUSÃO

Ante a dificuldade de obtenção de prova pericial do crime de estupro, bem como a


demora das vítimas em revelar o incidente delituoso, por vergonha do constrangimento que
a publicidade do fato irá gerar nas suas vidas e a repercussão social que a carga de tal crime
acarretaria para sua imagem. Pois, por muitas vezes, as mulheres abusadas sexualmente
acabam não procurando delegacias pela vergonha que a situação do depoimento e do exame
pericial lhe causaria, assim fazendo a maioria delas desista de realizar a denúncia. Também
salientamos a nossa pesquisa para o fato de que, sendo o estupro um crime que viola
completamente a intimidade e o corpo das vítimas, muitas delas buscam se higienizar após
o injusto sofrido, não só pelo fato da higiene em si, mas pela questão de “banhar-se” estar
atrelada com uma limpeza que as proporcionaria uma espécie de higiene moral, no entanto
tal ato acaba por impossibilitar a coleta pericial de todos os vestígios que poderiam restar no
corpo da vítima.
Assim, a realização de exames perícias psíquicos nas pessoas que sofreram crimes
sexuais deve servir como base probatória de grande carga para a busca da verdade real, Bem
como o uso conjunto do depoimento da vítima relacionado com a análise psiquiátrica
(realizada por profissional adequado), quando possível e disponibilizada pelo Estado, traz
grandes chances de que os julgadores entendam como verdadeira a narrativa apresentada
pela vítima.
O Estado deve procurar meios de eliminar a postura que a sociedade faz da mulher,
transpondo a ideia de mulher objeto perante os homens. Assim, cabe ao poder público, a
criação de meios que possibilitem a quebra da cultura que menospreza os direitos das
mulheres. Bem como, também, cabe ao Estado ofertar tratamentos para as vítimas de crimes
sexuais e para os seus familiares, buscando minimizar os danos causados pelo crime de
estupro, uma vez que, sendo o Estado o garantidor da proteção da liberdade e da dignidade
sexual das pessoas, ao deixar de garantir este amparo, deverá, ao menos, buscar reduzir os
danos causados pela sua falta de custódia. Promovendo programas sociais e condições
educacionais que orientem a população de forma que todos assimilem, exercitem e respeitem
os direitos de todos.
430

Também, cabe ao aplicador do direito superar os estereótipos, outrora criados por


homens conservadores do século passado, aplicando a lei a todas as pessoas sem quaisquer
distinções e eximindo de qualquer descrédito o depoimento das vítimas.
Devemos dar voz aos movimentos sociais e as mulheres da sociedade, em geral, para
que encontremos alguma forma de alterar o tratamento e os preconceitos com que as
mulheres são vistas pela sociedade, conferindo a elas maior respeito e proteção.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudíos


Políticos y Constitucionales, 2002 In: Mendes, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista
Novos Paradigmas/ Soraia da Rosa Mendes – São Paulo : Saraiva, 2014.

BRASIL. DL 3698 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível


em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> acessado
em 01/06/2016.

BRASIL. Lei 11.340/2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a
criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.

DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher / Maria Berenice Dias. – 3. ed.
rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2012.

DIAS, Thaisa Mangnani, JOAQUIM, Evandro Dias. Revista JurisFI, Volume IV, Ano IV,
Dezembro 2013. Bauru – SP. Disponível em:
<http://www.revistajurisfib.com.br/artigos/1395809029.pdf>. Acessado em: 25/09/2016.

ELUF, Luiza Nagib. Violência contra a mulher. In: Dias , Josefina Maria de Santana
(coord.). A mulher e o Direito. São Paulo : Lex, 2007.

GAVA, Lara Lages, Porto Alegre, 2012. Disponível em: <


https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/70031/000875859.pdf?sequence=1> .
Acessado em: 25 de setembro de 2016.

MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista Novos Paradigmas/ Soraia da Rosa


Mendes – São Paulo : Saraiva, 2014.
431

MOTTA, R. V. (2009). Psicoterapia no fazer da psicologia jurídica. In F. R. de Lima, & C.


Santos (Coords.), Violência doméstica: Vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal
e multidisciplinar (pp. 115-125. Rio de Janeiro: Lúmen Júris.

NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial/
Guilherme de Souza Nucci – 8. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos
Tribunais, 2012.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Manual de Processo Penal/ Fernando da Costa


Tourinho Filho. – 14. ed. – São Paulo : Saraiva, 2011.

VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti de. Delitos de Proximidade e Violência Doméstica.


In: Crime, política e justiça no Brasil/ Organização Renato Sérgio de Lima, José Luiz Ratton
e Rodrigio Ghiringhelli de Azevedo. – São Paulo: Contexto, 2014.
432

A FRAGILIDADE DAS PROVAS DEPENDENTES DA MEMÓRIA E


O IMPACTO DAS FALSAS MEMÓRIAS SOBRE ELAS

Érika Streppel Rocha Prates1

Resumo: O presente artigo visa trazer uma visão ampla sobre as provas dependentes da
memória utilizadas na persecução penal - quais sejam, a testemunhal e o reconhecimento -
bem como a incidência do fenômeno das falsas memórias sobre elas. Para isso será feita
primeiramente uma análise da memória, abordando temas como funcionamento e limitação
dela. A seguir, serão apresentados os tipos de provas dependentes da memória e como se
deve lidar com eles nas etapas de coleta e valoração. Ainda, será apresentado o fenômeno
das falsas memórias, o impacto que elas têm perante a essas provas e consequentemente no
resultado do processo criminal. E por fim, serão apresentadas algumas formas de evitar o
acontecimento das falsas memórias para que não ocorram injustiças na seara penal advindas
delas.

Palavras-chaves: memória; falsas memórias; prova testemunhal; reconhecimento de


pessoas;

1 INTRODUÇÃO

Todos que se dedicam ao estudo do Sistema Penal Brasileiro conhecem, ou deveriam


conhecer, o fenômeno das falsas memórias. Afinal, as provas dependentes da memória
(testemunhal e reconhecimento) são valoradas de forma altíssima nos processos criminais e
muitas vezes são a única evidência do crime. O testemunho (ou oitiva) é elemento
fundamental no que tange ao convencimento do juiz em uma média de 46,1% dos casos 2
criminais.
Exatamente em função dessa alta valoração, a persecução penal, tanto em sua fase
investigativa como na judicial, deve possuir um sistema muito cuidadoso e científico para

1
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Advogada Criminal inscrita na OAB/RS
sob o número: 115.808, já fez diversos cursos de aprimoramento, dentre eles: “Advocacia Criminal Artesanal”
na Escola de Criminalistas, e Pós-Graduada em direito Penal e Processual Penal Aplicados pela Escola
Brasileira de Direito. Contato Eletrônico: erikaprates.adv@gmail.com
2
STEIN, L. M.; ÁVILA, G. N. Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento
pessoal e aos depoimentos forenses. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça (Série
Pensando Direito, No. 59), 2015, p. 42. Disponível em: <http://pensando.mj.gov.br/wp-
content/uploads/2016/02/PoD_59_Lilian_web-1.pdf>. Acesso em: 25 de agosto de 2020
433

realizar a coleta das provas dependentes da memória. Afinal, é exatamente a falibilidade


nesse procedimento que abre margem para a ocorrência das falsas memórias3.
Muitas vezes um testemunho ou reconhecimento de pessoa pode acarretar em uma
condenação e se houver nessa prova a ocorrência de uma memória falsa ocorrerá uma injusta
punição.
Portanto, é de extrema relevância a análise do tema, afinal é imprescindível que o
sistema penal saiba lidar com as provas dependentes da memória, evitando assim a
ocorrência de erros judiciais decorrentes de falhas na sua obtenção..
Já não é de hoje que compreende-se que a memória não é um filme4. Não basta
simplesmente passar/ver uma situação para “gravar” ela exatamente como aconteceu.
Diversos são os fatores que podem modificar a memória e é de extrema relevância o estudo
deles para saber como tornar as provas dependentes da memória o mais confiável possível.
O objetivo deste artigo é apresentar: conceitos básicos para compreensão do
funcionamento da memória e das provas dependentes da memória, com viés da psicologia
do testemunho, bem como trazer uma base teórica quanto ao fenômeno das falsas memórias
e seu impacto no processo penal.

2 A MEMÓRIA FUNCIONA COMO UM GRAVADOR?

Para que seja possível responder essa perguntar com maior precisão faz-se necessária
uma análise de como funciona o processamento do nosso cérebro com relação às memórias.
Conforme explica Robert Sternberg5 a memória passa por três operações, não
necessariamente sequenciais6:

3
MORGENSTERN, Verônica Scartazzini; e SOVERAL, Raquel Tomé. Sistema Penal e Falsas Memórias.
Disponível em: <https://www.imed.edu.br/Uploads/GT3-p199-224.pdf> p.1. “Sob o viés processual penal, vê-
se nos dias atuais, mais do que nunca, a falibilidade na colheita das provas por depoimentos de pessoas, e, por
conseguinte, abre-se margem para a ocorrência das falsas memórias.”
4
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 5ª edição.Florianópolis:
Emais Editora, 2019, p.137: “O fenômeno das falsas memórias deixou de ser uma novidade. Boa parte dos
juristas que se atualizaram sabem que a memória não é um filme, nem muito menos uma fotografia do passado.
As pesquisas com neurociência destruíram essa crença infantil, ingênua e sedutora. Sabe-se que à formação de
memórias é dinâmica e depende de muitas variáveis”
5
STERNBERG, Robert J. Psicologia Cognitiva. Trad. Roberto Cataldo Costa. 4ªed. Porto Alegre: Artmed,
2008, p.190.
6
ROSA, Alexandre Morais da. Op cit., p. 135 “A memória - como visto - é o meio pelo qual, mediante três
operações - não necessariamente sequenciais, eis que se influenciam mutuamente - a) codificamos, b)
armazenamos e, c) recuperamos as experiências e informações passadas para uso no presente.”
434

(...) os psicólogos cognitivos geralmente referem-se a três operações que perfazem


os principais processos: codificação, armazenagem e recuperação. Cada uma
representa uma etapa no processamento de memória. A codificação refere-se a
como você transforma um dado físico, sensorial, recebido em um tipo de
representação que pode ser colocado na memória. A armazenagem diz respeito a
como você retém a informação codificada na memória. A recuperação é a forma
como você acessa a informação armazenada na memória.

Com isso percebe-se que, até que se chegue no momento da recuperação da memória,
momento em que ela será útil à instrução da persecução penal, há todo um caminho que a
memória percorre que precisa ser entendido e considerado no momento de valoração dessa
prova.
O primeiro momento na formação de uma memória é a codificação: “durante o fato,
tudo o que a vítima ou testemunha é capaz de ver, ouvir, sentir, etc é interpretado pelo
cérebro e podem vir a se tornar parte da memória para o evento7”. Assim, tudo que ocorre
naquele momento em que o cérebro está recebendo as informações e “decidindo” se as
guarda ou não é importante na hora de recuperá-las.
Nesse momento de codificação, diversos são os fatores externos que influem naquilo
que está sendo visto e o que está sendo armazenado. A Profª Janaína Matida8 pontua em seu
trabalho diversos desses fatores, tais como: o tempo de exposição ao fato a que se refere a
memória; a distância em que a pessoa estava deste local; a luminosidade do local; a presença
de arma no ocorrido; o nível de estresse que aquela pessoa se encontrava naquele momento,
dentre outros fatores.
Durante a análise desse momento de codificação, não basta saber “se a pessoa
presenciou os fatos”, como geralmente é questionado em instruções de processos criminais,
mas também se faz necessário analisar sob quais condições ambientais, emocionais e fáticas
a pessoa entrevistada estava sujeita. É necessário compreender sob que influências os fatos
foram absorvidos pela memória e somente assim ponderar qual o nível de confiabilidade que
aquela prova poderá ter9.

7
CECCONELLO, William Weber; AVILA, Gustavo Noronha; STEIN, Lilian Milnitsky. A (ir)repetibilidade
da prova penal dependente da memória: uma discussão com base na psicologia do testemunho. In Revista
Brasileira de Políticas Públicas. Volume 8. n.2. ago/2018. p.1060
8
MATIDA, Janaina Roland. A determinação dos fatos nos crimes de gênero: entre compromissos epistêmicos
e o respeito à presunção de Inocência. In: NICOLITT, André; AUGUSTO, Cristiane Brandão (orgs.). Violência
de Gênero: temas polêmicos e atuais. Editora D’Plácido, 2019 - MG. P. 97-100.
9
CECCONELLO; AVILA; STEIN. Op cit., p.1060: “As variáveis envolvidas durante a codificação do evento
não estão sobre o controle do sistema de justiça, mas podem impactar a qualidade da memória para o fato.
435

Não só fatores externos influem nesse momento de codificação, a percepção de uma


situação depende de todas as experiências passadas (fator interno) da pessoa que está
vivenciando aquele momento, a percepção de cada indivíduo está mais ligada com o que
ocorre dentro do cérebro dela do que fora dele10. Por isso que às vezes duas pessoas que
veem a mesma cena têm percepções diversas11, e consequentemente a codificarão de formas
diferentes, gerando, com isso, memórias diversas do mesmo fato.
Nosso sistema de captação de informações através da visão não é tão simples quanto
parece: “(...) o sistema visual não é como uma câmera. Ver não é simplesmente retirar a
tampa da lente. Para enxergar, você precisa ter mais do que olhos funcionais.12”. Portanto,
as testemunhas/vítimas mesmo que tenham visto os fatos não necessariamente codificaram
as informações da mesma forma, tanto pelos fatores externos como os internos que
influenciam nesse momento.
Analisando esse processo já percebe-se o tanto de fatores que influenciam na
memória desde a sua codificação. A partir do momento em que a memória é codificada ela
começa a se armazenar no cérebro, basicamente como pilhas de arquivos divididas por
assunto, as quais ficam em regiões mentais que aparecerão quando solicitadas13.
Reforça-se que, apesar de análise estar sendo feita de forma sequencial, a formação
da memória não se dá obrigatoriamente na mesma sequência, visto que todas essas operações
são interdependentes, mas não precisam seguir uma ordem.

“A codificação, a armazenagem e a recuperação são vistas, muitas vezes, como


etapas sequenciais. Em primeiro lugar, você recebe a informação, depois, a guarda
por um tempo; Logo após, traz à tona de novo. No entanto, os processos interagem
entre si e são interdependentes.”14.

A partir do momento que a memória está armazenada ela está passível de ser
esquecida15; portanto, desse momento em diante, para a maior confiabilidade da prova

10
EAGLEMAN, David. Cérebro: uma biografia. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2017, p.44.
11
ROSA, Alexandre Morais da. Op cit., p.135: “Quantas vezes contamos uma história que teria nos acontecido
e somos corrigidos por nossos familiares e nos damos conta de que estamos confundindo a lembrança? A
memória depende da percepção e do que já temos estocado no nosso aparato cognitivo (Mapa Mental), bem
[sic] assim do ambiente e da forma como estamos dispostos a aprender.”
12
EAGLEMAN, Op cit., p.47.
13
STERNBERG, Robert J. Psicologia Cognitiva. Trad. Roberto Cataldo Costa. 4ªed. Porto Alegre: Artmed,
2008, p.190.
14
STERNBERG. Op.cit., p.191.
15
CECCONELLO; AVILA; STEIN. Op. cit., p.1060
436

dependente dessa memória armazenada, o mais eficiente é realizar o processo de recuperação


o quanto antes.
A “pressa” em recuperar essas informações armazenadas se dá pela possível
deterioração da memória com o passar do tempo. O esquecimento é um evento normal e
quanto mais tempo entre a captação da informação e a sua recuperação, maiores serão as
chances de serem esquecidas16.
Entendido o processo de codificação e armazenamento, faz-se necessária a
compreensão do processo de recuperação da memória. A partir do momento em que a
memória está armazenada e é evocada estamos diante do processo de recuperação 17. Esse
processo deve ser feito de forma muito cuidadosa, pois qualquer falha na recuperação pode
gerar um vício insanável naquela memória.
Para que as memórias sejam recuperadas da forma mais confiável possível foi
desenvolvida uma técnica chamada Entrevista Cognitiva18 que prevê como deve funcionar
esse procedimento de recuperação da memória, no que tange aos procedimentos de instrução
criminal, para que ela não seja corrompida neste momento.
Lembra-se que a falha na recuperação da memória é exatamente o que pode causar
uma lembrança problemática e, consequentemente, não apta a instruir um processo criminal.
Isso ocorre porque a memória é maleável e no momento em que é evocada não traz a
lembrança idêntica como um gravador, pelo contrário, diversos fatores, internos e externos,
podem evocar, além das memórias reais do evento, outras novas que se agregarão de forma
errônea aquele evento19.

16
LOFTUS, Elizabeth F. Planting misinformation in the human mind: a 30-year investigation of the
malleability of memory. Learning & Memory, v. 12, n. 4, p. 361-366, 2005. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/7718097_Planting_misinformation_in_the_human_mind_A_30-
year_investigation_of_the_malleability_of_memory>. Acesso em: 27 agosto 2020. p.361-362. MATIDA,
Janaina Roland. A determinação dos fatos nos crimes de gênero: entre compromissos epistêmicos e o respeito
à presunção de Inocência. In: NICOLITT, Andre; AUGUSTO, Cristiane Brandão (orgs.). Violência de Gênero:
temas polêmicos e atuais. Editora D’Plácido, 2019 - MG. P. 98.
17
CECCONELLO; AVILA; STEIN. Op. cit., p.1061.
18
PERGHER, Giovanni Kuckartz; STEIN, Lilian Milnitsky. Entrevista cognitiva e terapia cognitivo-
comportamental: do âmbito forense à clínica. Rev. bras.ter. cogn., Rio de Janeiro , v. 1, n. 2, p. 11-20, dez.
2005 . Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-
56872005000200002&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 27 ago. 2020. “A Entrevista Cognitiva (EC) é um
processo de entrevista que faz uso de um conjunto de técnicas para maximizar a quantidade e a qualidade de
informações obtidas de uma testemunha”.
19
CECCONELLO; AVILA; STEIN., Op cit.,p. 1061.
437

Na persecução penal, além de geralmente não ocorrer o cuidado no momento de


recuperação da memória, ainda há a repetição, às vezes mais de uma vez, desse momento de
evocação (na delegacia, em juízo, se for o caso em plenário de júri, etc), ou seja, ainda tem-
se a falsa crença de que a memória é um gravador e que basta “solicitar” aquela memória
para o cérebro que ela sempre virá da mesma forma, exatamente como aconteceu no dia dos
fatos.
Porém, infelizmente não é assim que a memória funciona. Assim, responde-se a
pergunta que abriu esse tópico com uma citação da Elizabeth Loftus20, que é referência
mundial na psicologia cognitiva, especificamente no estudo das falsas memórias:

“(...)como minhas pesquisas mostraram ao longo dos últimos 30 anos, a memória


é totalmente maleável, seletiva e mutável. A sua natureza maleável não importa
quando as mudanças são pequenas e insignificantes, como quando eu digo para
um amigo que eu comigo frango na noite passada, quando eu realmente comi carne
vermelha. Às vezes estas mudanças são tão significantes que levam vidas a
ruínas..”

Com isso fica compreendido de forma básica como funcionam os processos


referentes a memória, e visto que e agora passa-se a análise específica das provas
dependentes da memória.

3 PROVAS DEPENDENTES DA MEMÓRIA

Dois são os tipos de provas dependentes da memória utilizados nos processos


criminais: o testemunho e o reconhecimento. A utilização deles é muito recorrente e isso se
dá pelo fato de que muitas vezes são as únicas provas do delito.
Grande parte dos delitos que ocorrem diariamente são presenciados apenas pelos
envolvidos, não havendo nenhuma prova material do delito, apenas as lembranças daqueles
que vivenciaram a situação. Ocorre que essa unicidade de provas dependentes da memória
para instruir um processo é muito perigosa, pois como demonstrado no tópico anterior a
memória não funciona como um gravador, muito pelo contrário, ela é construída por diversos
fatores e pode ser inclusive alterada por eles.

20
Entrevista com Elizabeth Loftus para ao Canal Ciências Criminais? Disponível em:
<https://canalcienciascriminais.com.br/falsas-memorias-e-erros-judiciarios-entrevista-com-elizabeth-f-
loftus/> Acessado em 18 de setembro de 2020
438

A Dra Lilian Stein21 reforça que a memória é o coração das provas testemunhais e de
reconhecimento, por isso são estudadas como provas dependentes da memória:

A memória é o coração do testemunho e do reconhecimento, já que o testemunho


constitui-se, em sua essência, nas lembranças que a pessoa conseguiu registrar e
resgatar sobre os fatos que ocorreram e o reconhecimento de seus personagens.
Quanto mais detalhadas e fidedignas forem estas lembranças, melhor será o
testemunho e a capacidade de realizar um reconhecimento correto, e assim,
potencialmente mais elucidativos para o desfecho do caso.

Entendendo isso, fica evidente que o processo criminal só terá um resultado justo se
as provas dependentes da memória foram fidedignas, e para isso é necessário um grande
cuidado tanto no momento da coleta dessas provas como no momento de sua valoração.
Importante esclarecer que a confiabilidade desse tipo de prova nada tem a ver com o
conceito ultrapassado de que o processo penal busca a verdade real, mas sim com a busca
por uma verdade possível e juridicamente admissível. Afinal é impossível voltar no tempo e
reestabelecer exatamente o que aconteceu, principalmente quando as únicas evidências do
crime são provas dependentes da memória dos envolvidos22.
Sendo assim, é impossível que tenhamos certeza absoluta que aquela prova
testemunhal, por exemplo, é 100% verídica, afinal como já muito bem demonstrado, a
memória não é uma fotografia23.
Exatamente por esses motivos que torna-se vital tomar extremo cuidado ao tratar da
prova testemunhal. Alexandre Morais da Rosa reforça a necessidade dessa atenção ao
afirmar que “a prova testemunhal é a mais utilizada no processo penal e diante das
armadilhas da memória em face da limitação da capacidade humana de percepção, deve
ser tomada com grandes cuidados procedimentais”24.
O processo penal estabelece como deve ser todo o procedimento para a coleta da
prova testemunhal (artigos 202 a 225 do Código de Processo Penal), mas apenas seguir esse
procedimento não traz nenhuma garantia de que as provas serão verdadeiras e confiáveis.
Isso porque pouco foi implementado no sistema penal brasileiro os estudos referentes à

21
STEIN, L. M.; ÁVILA, G. N. Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao
reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério
da Justiça (Série Pensando Direito, No. 59), 2015. P. 18.Disponível em: <http://pensando.mj.gov.br/wp-
content/uploads/2016/02/PoD_59_Lilian_web-1.pdf>. Acesso em: 28 de agosto de 2020
22
TAVARES, Juarez; CASARA, rubens. Prova e Verdade. 1ªed - São Paulo: Tirant lo Blanc, 2020. P. 21.
23
ROSA, Alexandre Morais da. Op. Cit. 5ª edição.Florianópolis: Emais Editora, 2019. P. 662.
24
ROSA, Alexandre Morais da. Op. Cit. 5ª edição.Florianópolis: Emais Editora, 2019. P. 651.
439

psicologia do testemunho. Portanto, mesmo que o procedimento estabelecido seja seguido à


risca ainda há grandes chances de que as provas testemunhais colhidas não sejam fidedignas.
O primeiro passo para que o processo penal ande para um caminho de maior
confiabilidade, no que tange a prova testemunhal, é realizar a especialização e treinamento
da equipe que coleta essas provas, tanto em sede policial quanto em sede judicial. Afinal
diversas vezes o que gera falhas e deturpações nas provas dependentes da memória é a falta
de conhecimento de quem está lidando com elas25.
Contudo, esse é um caminho árduo e demorado. E enquanto não é implementado de
maneira efetiva precisa-se quebrar paradigmas básicos.
O primeiro deles é a crença irrefutável na palavra de certos indivíduos em função da
sua posição perante o processo, geralmente essas pessoas são: a vítima, os policiais e os
servidores públicos. Tem-se uma crença equivocada que essas pessoas jamais mentem,
nunca se confundem ou são alcançadas pelo fenômeno das falsas memórias. Basicamente,
acredita-se que as memórias desses indivíduos são as únicas que trabalham como gravadores,
ou seja, crê-se na sua infalibilidade, contrariando o vasto estudo sobre memória e psicologia
do testemunho.
Após todos os dados apresentados no primeiro tópico deste artigo sobre a fragilidade
da memória fica evidente que todas as pessoas são vulneráveis aos mesmos problemas, não
estando imunes em função de uma posição, seja ela de poder ou importância no processo.
Alexandre Morais da Rosa corrobora esse fato:

A questão é que nem sempre as vítimas, policiais ou servidores públicos dizem o


que viram, sentiram ou ouviram. É que entre à percepção do evento e o depoimento
medeia certo período de tempo em que as informações coletadas precisam ganhar
sentido, com as artimanhas da memória. 26

Portanto, o primeiro ponto para uma valoração justa da prova testemunhal é


compreender que não importa de quem ela venha, para qualquer prova dessa espécie é
necessário tomar os mesmo cuidados nos momentos de coleta e de valoração.

25
“O fator final que pode causar problemas em casos criminais é à ignorância científica. Muitos dos
profissionais envolvidos em tais casos não têm conhecimento (ou formação) sobre o que diz a última pesquisa
sobre a memória.” SHAW, Julia. The Memory Illusion. Remembering, Forgetting and the Science of False
Memory, London: Random House Books, 2016, p. 236. apud TAVARES, Juarez; CASARA, rubens. Prova e
Verdade. 1ªed - São Paulo: Tirant lo Blanc, 2020. P. 21.
26
ROSA, Alexandre Morais da. Op. cit., p.662
440

O segundo paradigma é o que as pessoas envolvidas no delito (exceto os acusados)


“não tem porque mentir”. Conforme já visto a memória apresenta diversos meios de
autossabotagem para preenchimento de lacunas, assim, acreditar nessa máxima é uma forma
totalmente ingênua de lidar com as provas dependentes da memória.
O último paradigma que precisa ser urgentemente repensado é o de que as provas
dependentes da memória podem ser repetidas e consultadas quantas vezes forem necessárias
sem alteração. Lilian Stein27 em seu trabalho sobre a (ir)repetitibilidade da prova dependente
da memória apresenta todo embasamento científico sobre a fragilidade da memória e a alta
capacidade de falha dela. Tudo pode confundir a memória, desde fatores no momento da
percepção do acontecimento, até às perguntas28 feitas por aqueles que estão colhendo essas
provas, ou seja, a repetição na coleta dessas provas só será benéfica se feita da forma correta
e com profissionais devidamente qualificados para isso, caso contrário quanto mais vezes
ela for colhida de maneira equivocada mais problemas serão criados a cada repetição29.
Quanto ao reconhecimento de pessoas, outra prova dependente da memória muito
utilizada na persecução penal, há alguns pontos que precisam ser repensados.
O reconhecimento, assim como a prova testemunhal, tem um procedimento pré
definido no CPP, artigo 226. Ressalta-se que apenas seguir esse protocolo não garante com
100% de certeza que o reconhecimento será confiável, mas é o requisito mínimo para que se
chegue o mais perto possível disso.
A primeira regra básica do reconhecimento é que a pessoa que fará o reconhecimento
deve primeiro descrever a pessoa a ser reconhecida para depois efetivamente tentar
reconhecê-la. Inverter essa ordem, ou seja, realizar o reconhecimento para depois colher o
depoimento com a descrição, quebra a cadeia de custódia30, e pode gerar uma falsa memória
ou uma descrição daquele que foi reconhecido e não necessariamente daquele que efetuou o
delito.

27
CECCONELLO; AVILA; STEIN. Op. cit.
28
LOFTUS, Elizabeth F.; PALMER, John C. Reconstruction of automobile destruction: an example of the
interaction between language and memory. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, v. 13, n. 5, p.
585-589, 1974. Disponível em: <http://www.demenzemedicinagenerale.net/images/mens-
sana/AutomobileDestruction.pdf> Acesso em: 12 de setembro de 2020. .
29
CECCONELLO; AVILA; STEIN. Op. cit. P. 1062: A maleabilidade da memória da testemunha não
significa a realização ou repetição de procedimentos, que são inerentemente prejudiciais à memória do fato.
Repetidas entrevistas permitem trazer mais informações da testemunha. Entretanto, o benefício na repetição de
oitivas de testemunhas e vítimas ocorre apenas quando se utiliza um protocolo com validade científica, aplicado
por um profissional com capacitação adequada à utilização deste. A respeito desses dois aspectos (quem realiza
e como realiza) reside a impossibilidade de repetir o testemunho na conjuntura brasileira atual.
30
ROSA, Alexandre Morais da. Op. cit., P.702.
441

A segunda regra é a obrigatoriedade de colocação do acusado em linha com outras


pessoas com características semelhantes às dele, sendo desaconselhado o reconhecimento
através da técnica de show up31 (apresentação de apenas um indivíduo).
Infelizmente, em que pese exista o procedimento descrito no Código de Processo
Penal, é muito comum que ele não seja seguido na persecução penal.
Quanto a ordem descrição-reconhecimento é quase impossível garantir que ocorra,
tendo em vista que geralmente esse procedimento é feito em delegacia, sem a presença da
defesa e sem nenhuma garantia de como verdadeiramente ocorreu.
Já quanto a forma do reconhecimento Lilian Stein e Gustavo Ávila coordenaram uma
pesquisa empírica com entrevistas a policiais, magistrados e advogados, sobre como
efetivamente ocorrem esses reconhecimentos nos casos reais, segue um trecho do resultado
dessa pesquisa:

Quanto ao reconhecimento, identificamos a predominância da estratégia de show-


up (apresentação de apenas um suspeito ou uma foto a quem deva fazer o
reconhecimento). A técnica de reconhecimento show-up não é recomendada pela
literatura científica, pois possui maior probabilidade em provocar um falso
reconhecimento, além de aumentar a chance de contaminar a memória de quem
possui a informação de interesse das polícias/Judiciário. Foram constatadas uma
variedade de práticas de reconhecimento: na viatura [Neste caso, a
testemunha/vítima é colocada dentro da viatura, revestida de película, e é
convidada a reconhecer o suspeito, que está fora do veículo], por imagem enviada
por WhatsApp, pessoalmente, em corredor de passagem [A prática do
reconhecimento pessoal desde o contato sumário, por meio do corredor de
passagem, é explicada no trecho de entrevista de um policial civil: “O cara que é
preso e é autuado, ele tá sentado ali naquela cadeira e algemado naquela barra de
ferro ali. Então, muitas vezes, a pessoa entra aqui pra prestar o depoimento dela,
aí ela passa pelo cara que tá preso ali. Aí ela fala ‘é o cara que tá preso ali’. O que,
claro, não é nem um pouco adequado” (informação verbal)], por vidro espelhado,
em álbum de fotos, com apenas uma fotografia, de voz, por vídeo, via anteparo
com orifício, retrato falado e na sala de audiência. Em sua maioria, essas práticas
valiam-se de show-up32.

31
Entrevista com a Dra Lilian Stein para a Agência Brasil. Disponível em:
<https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-11/policiais-e-juizes-dao-grande-importancia-
testemunho-em-processo-diz-
pesquisa#:~:text=L%C3%ADlian%20Stein%3A%20Uma%20pr%C3%A1tica%20muito,a%20pessoa%20fa
%C3%A7a%20o%20reconhecimento> Acesso em 13 de setembro de 2020
32
STEIN, Lilian Milnitsky; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Entrevistas Forenses e Reconhecimento Pessoal nos
Processos de Criminalização: um diagnóstico brasileiro. In Boletim de Análise Político-Institucional, n. 17,
Dezembro 2018. Pág. 47/48 Disponível em
<http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8866/1/bapi_17_cap_6.pdf> Acesso em 13 de setembro de
2020
442

Lendo o resultado da pesquisa empírica realizada por STEIN e ÁVILA fica evidente
que as técnicas usadas atualmente pela sistema criminal brasileiro é muito falha e
praticamente não leva em consideração nenhuma recomendação dos diversos estudos sobre
a psicologia do testemunho, sendo eles, portanto, muito vulneráveis a erros cognitivos.
Assim, percebe-se, mesmo que de forma breve, que o sistema de coleta e valoração
das provas dependentes da memória ainda é muito deficitário no Brasil e precisa
urgentemente ser revisto e remontado com todos os ensinamentos advindos da psicologia do
testemunho33. Já passou da hora de compreender que a memória está muito longe de ser uma
máquina fotográfica e que todas as provas que dependem dela precisam ser manuseadas e
valoradas com muito cuidado.

4 AFINAL, O QUE SÃO AS FALSAS MEMÓRIAS?

Para compreender o fenômeno das falsas memórias e o impacto delas nas provas
dependentes da memória é importante esquecer qualquer vestígio de compreensão
equivocada de que a memória funciona como um gravador. Elizabeth Loftus, pesquisadora
conceituada do fenômeno das falsas memórias, traz uma compreensão completa de como se
deve encarar a memória para compreendê-la de forma correta:

Muitas pessoas acreditam que a memória funciona como um gravador, você


simplesmente grava a informação depois acessa e a reproduz quando quer
responder perguntas ou identificar imagens. Mas, décadas de trabalho na
psicologia mostram que isso não é verdade. Nossas memórias são construtivas,
são reconstrutivas, a memória funciona mais como uma página da Wikipedia: você
pode visitá-la e modificá-la, mas outras pessoas também podem34.

33
STEIN, Lilian Milnitsky; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Entrevistas Forenses e Reconhecimento Pessoal nos
Processos de Criminalização: um diagnóstico brasileiro. In Boletim de Análise Político-Institucional, n. 17,
Dezembro 2018 Disponível em
<http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8866/1/bapi_17_cap_6.pdf> Acesso em 13 de setembro de
2020. P. 48/49:: “Quanto a uma proposta de reforma da legislação no que tange à coleta de evidências de
testemunhas/vítimas a partir de seu testemunho ou reconhecimento, faz-se imprescindível que sejam
incorporados os subsídios científicos da psicologia do testemunho ao seu conteúdo. Isto seria possível, para o
caso das entrevistas para coleta de testemunho, por exemplo, com a especificação do que seriam consideradas
perguntas indutivas/sugestivas, já com a respectiva consequência acerca do afastamento da forma legislativa
(nulidade absoluta do procedimento) no futuro Código de Processo Penal. É fundamental a incorporação,
notadamente, das técnicas científicas de entrevista investigativas, como a entrevista cognitiva (Stein e Memon,
2006), para obtenção de informações de melhor qualidade e em maior quantidade. Tais técnicas
comprovadamente diminuem as chances de perguntas indutivas/sugestivas prejudicarem a qualidade do
testemunho. Todavia, somente a partir do registro (gravação em vídeo ou até mesmo somente em áudio) é que
a implementação dessas técnicas de entrevista e sua adequação poderia ser monitorada.”
34
TED talk - Elizabeth Loftus - Até onde pode-se confiar na memória? Disponível em:
443

O exemplo da memória como uma página da Wikipédia é uma forma brilhante de


entender o quão passível de modificação é a memória, basta uma pessoa “acessar” essa
memória e com alguns comentários ou perguntas alterá-la, sem nem mesmo ser a dona dela,
quem dirá quem realmente a possui.
Compreendida essa maleabilidade da memória fica mais fácil de compreender o
fenômeno das falsas memórias, as quais podem ser definidas da seguinte forma: “As falsas
memórias se referem ao fato de recordarmos acontecimentos ou informações que não
aconteceram, que não experienciamos ou que não ocorreram tal e qual o relatamos.35”. Ou
seja, as falsas memórias são lembranças não vivenciadas, mas que de alguma forma
adentraram na memória daquele ocorrido e estão ali tão vívidas que o dono da memória tem
certeza que ocorreram.
Conforme visto no primeiro tópico deste artigo a memória tem três fases e, em função
de sua fragilidade, diversos são os fatores que podem influir em qualquer uma dessas etapas.
Essa influência na memória é o que pode levar à incidência de falsas memórias.
Ressalta-se, no entanto, que esse fenômeno não é resultado de patologias36, visto que
qualquer pessoa, saudável ou não, está propensa a desenvolvê-la. Contudo, é de difícil
identificação, já que quem produz uma falsa memória acredita inquestionavelmente que ela
é verdadeira.
Essas falsas memórias, conforme ÁVILA37, “podem surgir de duas formas:
espontaneamente ou através de uma sugestão externa”. Assim, após o momento de
percepção, ou seja, do momento em que ocorre o evento que será lembrado futuramente, o
cérebro por si só já relembra o fato e “preenche lacunas”, geralmente para que aquele
acontecimento faça mais sentido. Ocorre que essas lacunas que são preenchidas, mesmo que

<https://www.ted.com/talks/elizabeth_loftus_how_reliable_is_your_memory/up-
next?fbclid=IwAR39g9smV8BZ5VdLB2fSoce_vZQc6NDH-VSDU-fnOiCzt-
u6BbmWMiRgM7kw&language=pt-br#t-1039524> Acessado em 03 de junho de 2020
35
OLIVEIRA, Helena Mendes; albuquerque, PEDRO B.; SARAIVA, Magda. O estudo das falsas memórias:
reflexão histórica. In Temas psicol. vol.26 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2018. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
389X2018000400003&lng=pt&nrm=iso> Acesso em 13 de setembro de 2020
36
TAVARES;CASARA. Op. cit. P. 31 “(...) as falsas memórias não constituem uma patologia da pessoa, são
expressão normal do processo de reconhecimento e registro cerebral de dados e fatos”
37
ÁVILA, Gustavo Noronha de. Política não criminal e processo penal: à intersecção à partir das falsas
memórias das testemunhas e seu possível impacto carcerário. Disponível em:
<https://emporiododireito.com.br/leitura/politica-nao-criminal-e-processo-penal-a-interseccao-a-partir-das-
falsas-memorias-da-testemunha-e-seu-possivel-impacto-carcerario> Acesso em 13 de setembro de 2020
444

de forma inocente, não necessariamente correspondem com a realidade do fato. Assim,


espontaneamente a pessoa pode criar falsas memórias do ocorrido e nem perceber.
A outra forma de criar uma falsa memória é através de sugestões externas. Essas
podem ocorrer de diversas formas, seja conversando sobre o fato com outras pessoas, que
ao fazerem perguntas e comentários de forma sugestiva podem induzir a manipulação de
uma lembrança; ou também em uma oitiva, se o profissional responsável por colher
depoimentos conduzir as perguntas de forma tendenciosa ou despreparada; ou até mesmo
pela influência da mídia que, através de notícias e reportagens carregadas de opinião sobre
aquele acontecimento também podem sugerir inconscientemente modificações na memória
original da testemunha/vítima gerando uma falsa memória.
Além de todas essas formas de desencadear mudanças na lembrança original, é
necessário compreender que não existe uma metodologia que identifique e neutralize essa
falsa memória. Afinal ela não é uma mentira - que seria mais fácil de identificar - trata-se de
uma “falsa verdade” para aquele que a possui, ou seja, ele tem certeza de sua veracidade38.
Sendo as falsas memórias um acontecimento tão comum e muito fácil de ocorrer
compreende-se a necessidade do cuidado extremo com as provas dependentes da memória.
Afinal se essa prova vier de uma falsa memória pode estar totalmente equivocada e gerar um
resultado injusto no processo que a utilize como base para uma decisão final.
Especificamente sobre a prova testemunhal, primeira prova dependente da memória
apresentada neste artigo, as falsas memórias podem incidir de diversas formas. O primeiro
cuidado que deve ser tomado quando se trata de prova testemunhal é o procedimento no
momento da coleta. Segundo Aury Lopes Junior39 “A linguagem e o método do interrogador
em situações assim são de grande relevância para a preservação ou violação da memória
da vítima/testemunha, devendo, por isso, serem filmados todos os depoimentos prestados.
Busca-se, com isso, avaliar - principalmente - o entrevistador”. Faz-se necessário, portanto,
proporcionar um treinamento especializado à equipe que realiza a coleta da prova
testemunhal, assim como, sempre submeter toda oitiva a gravações que permitirão
futuramente uma análise de possível inserção de falsas memórias.

38
ROSA, Alexandre Morais da. Op. cit. Diferente da mentira, as falsas memórias são de difícil constatação,
principalmente quando sugeridas indiretamente e atualizadas na memórias.”
39
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17ªed. São Paulo: Saraiva Educacao, 2020. P. 514.
445

O segundo método que deve ser implementado imediatamente para que as falsas
memórias sejam menos recorrentes é a adoção de um procedimento de entrevista baseado
nos estudos da psicologia do testemunho40, na qual não deverão ser feitas perguntas fechadas
ou que induzam a resposta41.
O tempo entre o evento e a coleta da prova testemunhal deverá ser o menor possível,
para que 1) Essa pessoa não seja corrompida pela mídia ou por terceiros, criando falsas
memórias; 2) Não ocorra o fenômeno natural do esquecimento - o qual também poderá ser
o gerador de falsas memórias a partir de uma necessidade de preenchimento de lacunas
esquecidas.
E mesmo com todos esses cuidados nunca será possível ter 100% de certeza que as
lembranças estarão livres de falsas memórias, sendo assim, é necessária uma urgente
conscientização sobre esses eventos que podem corromper as provas dependentes da
memória e ter muito cuidado no momento de valorá-las42.
No que tange ao reconhecimento de pessoas também é possível a incidência do
fenômeno das falsas memórias. E inclusive é muito mais comum do que imagina-se. São
diversos os erros judiciais que tem como base um reconhecimento equivocado. STEIN e
ÁVILA trazem um dado que ilustra essa quantia: “Nos Estados Unidos, por exemplo, o
Innocence Project (Eyewitness..., 2015) chegou a 75% de erros judiciais vinculados
diretamente ao reconhecimento equivocado de pessoas”43. Evidente, portanto, a fragilidade
do reconhecimento de pessoas.
Conforme já trazido neste artigo, se faz essencial a observância plena do
procedimento para reconhecimento de pessoas previsto no artigo 226 do CPP, pois isso é
uma garantia de um reconhecimento minimamente confiável.
Qualquer falha neste procedimento pré estabelecido pode ser o causador de uma falsa
memória que irá corromper a lembrança para sempre. Infelizmente, no Brasil, o

40
ÁVILA. Op. Cit.; LOPES JUNIOR. Op. Cit. P. 515.
41
CECCONELLO; ÁVILA;STEIN. Op, cit. P. 1062: (...) apenas uma pergunta mal elaborada pode ser o
suficiente para que a memória original da testemunha seja alterada de forma permanente.
42
TAVARES; CASARA. Op. Cit. P. 31: “A análise dos depoimentos não pode, portanto, simplesmente ignorar
os efeitos da falsa memória, como se fosse um instrumento da defesa para evitar a punição dos culpados.”
43
STEIN, Lilian Milnitsky; ÁVILA, Gustavo Noronha de. Entrevistas Forenses e Reconhecimento Pessoal
nos Processos de Criminalização: um diagnóstico brasileiro. In Boletim de Análise Político-Institucional, n.
17, Dezembro 2018 P. 49 Disponível em
<http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8866/1/bapi_17_cap_6.pdf> Acesso em 13 de setembro de
2020
446

reconhecimento poucas vezes é feito da forma correta, sendo comumente aceitos no processo
reconhecimentos informais44. Uma dessas práticas informais bastante comum é o
reconhecimento fotográfico, não previsto na legislação, algumas vezes usado como
substituição do reconhecimento pessoal e outras introduzindo-o como uma pré-
identificação45.
Após toda compreensão de como funciona a memória é evidente o imenso problema
do reconhecimento fotográfico. Em primeiro lugar por não ser possível fazê-lo garantindo o
procedimento estabelecido no CPP e também porque muitas vezes o reconhecimento por
foto pode induzir uma falsa memória de reconhecimento gerada pela inserção de uma
imagem concreta de ofensor.
Ora, imagine que a vítima/testemunha tem um “rascunho” do autor do delito em sua
lembrança. Chegando no local do primeiro reconhecimento - geralmente a delegacia - os
policiais mostram a foto de um acusado muito parecido com aquele do “rascunho”, ou até
mesmo mandam a fotografia por whatsapp (prática bastante comum). Naquele momento a
vítima/testemunha desembaça esse rascunho adaptando-o à imagem do novo indivíduo,
gravando as novas características em sua memória. Obviamente, em um posterior
reconhecimento pessoal - seja na delegacia ou em juízo - a vítima/testemunha reconhecerá
aquela pessoa mostrada em foto, que não terá necessariamente uma ligação direta com o
ocorrido, e sim com a falsa memória criada no procedimento falho de reconhecimento.
Além dos problemas procedimentais que podem corromper um reconhecimento, há
também a influência de diversos fatores relativos ao momento do delito, como, por exemplo:
a bagagem socio-cultural da vítima, ou testemunha, suas concepções pré-estabelecidas, seus
“estereótipos culturais (sobre cor, classe social, sexo, etc)”46; o efeito do “foco da arma”47;
a luminosidade do local; a distância em que o reconhecedor estava do local do delito; dentre
diversos outros fatores que não serão aqui estudados. Este artigo se limita a estudar apenas
a incidência das falsas memórias.

44
LOPES JÚNIOR, Aury. Op. Cit., P. 534.
45
LOPES JÚNIOR, Aury. Op. Cit., P. 541.
46
LOPES JÚNIOR, Aury. Op. Cit.,P. 540.
47
LOPES JUNIOR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Memória não é Polaroid: precisamos falar sobre
reconhecimentos criminais. 2014 Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2014-nov-07/limite-penal-memoria-nao-polarid-precisamos-falar-
reconhecimentos-criminais> Acesso em 13 de setembro de 2020
447

Com isso fica evidente que as falsas memórias incidem nas provas testemunhais e de
reconhecimento e que todas as pessoas estão sujeitas a tê-las. Assim, o sistema judiciário
brasileiro não pode mais ignorar esse fenômeno psicológico tão amplamente estudado. É
necessário adequar todos os procedimentos que envolvem as provas dependentes da
memória com os ensinamentos da psicologia do testemunho para que elas sejam o mais
confiáveis possível e não causem nenhuma injustiça.

5 CONCLUSÃO

Após toda análise referente ao funcionamento da memória, a conclusão que precisa


fixar-se na cabeça de todos é que a memória não é um gravador e está muito longe de ser
uma máquina fotográfica.
Assim, cai por terra o preceito ingênuo de que todos que presenciaram o fato têm
apenas lembranças claras e verídicas do ocorrido, podendo prestar depoimentos e fazer
reconhecimento os quais servirão como provas incontestáveis.
Compreendendo o fenômeno das falsas memórias, fica claro que perde o sentido
fazer o seguinte questionamento: “afinal, por que a vítima/testemunha mentiria?”. Não se
trata de ter fé na honestidade do depoente, mas de reconhecer as limitações humanas na
formação de suas memórias.
Diferentemente de entendimentos ingênuos e ultrapassados, as memórias são frágeis
e maleáveis, podendo ser alteradas tanto pelo detentor da memória como por terceiros,
podendo inclusive incluir processamento de fatos novos - falsas memórias - que não
ocorreram, mas que passam a fazer parte de forma vívida das lembranças de seu possuidor.
Quando se fala em persecução penal está se falando em direito a liberdade e vidas
humanas; por isso, tudo que está relacionado a ela deve necessariamente estar muito bem
delimitado e previamente estudado para que o mau andamento da persecução não acarrete
uma grande injustiça. Basta assistir ao documentário “O DNA da justiça48” ou pesquisar na
internet sobre o “Innocence project” para compreender a proporção da desgraça que ignorar
esses temas pode causar.
Se a memória humana é frágil, as provas que a têm como fonte, consequentemente,
também o são e o processo penal não pode mais ignorar isso. Cada dia que passa está mais
claro que o legislador precisa se preocupar com os problemas das provas dependentes da

48
Minissérie da Netflix
448

memória e, para diminuir as injustiças, deve aplicar o quanto antes os ensinamentos da


psicologia do testemunho nos procedimentos que envolvem o reconhecimento e a prova
testemunhal.
Aqueles que colhem essas provas precisam estar preparados para fazê-lo de forma
correta e utilizando o método correto, quais sejam: entrevista cognitiva e reconhecimento da
forma legal. Esses métodos precisam ser aplicados a todos os casos o quanto antes.
Além de uma equipe bem preparada é necessário muito cuidado no momento de
valoração das provas dependentes da memória. Não se pode valorar esse tipo de prova
ignorando sua trajetória - é preciso fazer uma “cadeia de custódia” da memória. Máximas
como “a palavra da vítima/policial são suficientes para condenação” devem ser extintas, pois
ninguém está imune de modificações nas lembranças ou da ocorrência de falsas memórias.
Portanto, lidar com as provas dependentes da memória não é uma tarefa fácil, mas já
está na hora de parar de fingir que o fenômeno das falsas memórias não existe. Devemos
evitar traçar o caminho mais fácil, que nos leva a cometer injustiças, e elevar o sistema de
análise dessas provas para um patamar mais cientificamente embasado. As falsas memórias
são um fenômeno psicológico real que não podem mais serem ignorados.

REFERÊNCIAS

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partir das falsas memórias das testemunhas e seu possível impacto carcerário.
Disponível em:
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interseccao-a-partir-das-falsas-memorias-da-testemunha-e-seu-possivel-impacto-
carcerario> Acesso em 13 de setembro de 2020

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pesquisa#:~:text=L%C3%ADlian%20Stein%3A%20Uma%20pr%C3%A1tica%20muito,a
449

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<https://www.researchgate.net/publication/7718097_Planting_misinformation_in_the_hum
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agosto 2020.

LOFTUS, Elizabeth. TED talk - Até onde pode-se confiar na memória?


<https://www.ted.com/talks/elizabeth_loftus_how_reliable_is_your_memory/up-
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Reconhecimento Pessoal nos Processos de Criminalização: um diagnóstico brasileiro.
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TAVARES, Juarez; CASARA, rubens. Prova e Verdade. 1ªed - São Paulo: Tirant lo Blanc,
2020.
451

A TELEMEDICINA EM TEMPOS DA PANDEMIA DO COVID-19 À


LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Evânia Romanosky1

Resumo: Muitos estudiosos e pesquisadores dizem que a pandemia Covid-19 que assolou o
mundo este ano de 2020 tem funcionado como um acelerador do futuro. Toda essa situação
trazida pelo COVID-19, nos fez antecipar uma realidade que já estava em andamento, como
trabalho remoto, educação a distância, Telessaúde, telemedicina, busca pela
sustentabilidade, o home-office. O ano de 2020 tornou-se um ano histórico devido à
pandemia que milhões de pessoas em todo o mundo entraram em isolamento, nesse sentido
os meios de conexão tão utilizados aceleraram a necessidade de implementar serviços
virtuais em maior escopo. Nesse sentido, a telemedicina entra como um método que permite
o atendimento à distância. Propõe, portanto, neste artigo explorar sua origem histórica, sua
relevância no Brasil à luz das perspectivas jurídicas e dos desafios para a bioética.
Curiosidade, e experimentos para atender remotamente, não são de hoje, pois desde a
invenção do telégrafo, estetoscópio eletrônico e telefone, os profissionais médicos já
buscavam essa experiência. Com o aumento populacional, a necessidade de atender pessoas
mais distantes também passou a ser uma preocupação constante no campo médico. A
transição demográfica que ocorreu ao redor do mundo e o envelhecimento da população
mundial, como resultado de uma multiplicidade de fatores relacionados aos avanços
tecnológicos e à melhoria das condições de vida, faz com que organizações internacionais,
estados nacionais e sociedade civil cuidem da Revolução Tecnológica.

Palavras-chave: Telemedicina. Coronavirus.Telessaúde. Pandemia. Brasil.

1 INTRODUÇÃO
Muitos estudiosos e pesquisadores dizem que a pandemia do Covid-19 que assolou
o mundo neste ano de 2020, funcionou como um acelerador do futuro. Toda essa situação
trazida pelo COVID-19, fez com que antecipássemos uma realidade que já estava em curso,
como o trabalho remoto, a educação a distância, telesaúde, telemedicina, a busca por
sustentabilidade, o home-office. O ano de 2020 se tornou um ano histórico devido à
pandemia, milhões de pessoas no mundo inteiro entraram em isolamento, neste sentido os
meios de conexão foram tão utilizados, de forma que a pandemia acelerou a necessidade de
implementação de serviços virtuais em maior alcance. Nesse sentido, a telemedicina entra

1
Pesquisadora Cnpq-UFRGS- Grupo de Pesquisa da Professora Cláudia Lima Marques Especialista em Direito
do Consumidor e Direitos Fundamentais – UFRGS, OAB/RS 90.718. Advogada na área médica, e consumidor.
Membra da Comissão Mulher Advogada CMA-OABRS Coordenadora e membra da ABA/RGS Comissão de
Direito e Saúde E-mail: evaromanovsky@hotmail.com
452

como um método que possibilita o atendimento à distância. Propõe-se, portanto, no presente


artigo explorar sua origem histórica, sua relevância no Brasil à luz das perspectivas jurídicas.
A curiosidade, e os experimentos de atender de forma remota, não são apenas dos
dias de hoje, pois desde a invenção do telégrafo, estetoscópio eletrônico e do telefone,
profissionais médicos já estavam buscando essa experiência. Com o aumento populacional
a necessidade de atender pessoas que estavam mais distantes, também começou a ser uma
preocupação constante na área médica. A transição demográfica ocorrida em todo o mundo,
e o envelhecimento da população mundial, como resultado de uma multiplicidade de fatores
relacionados aos avanços tecnológicos e melhoria de condição de vida, fez com que os
organismos internacionais, os Estados nacionais e a sociedade civil se ocupassem da
Revolução Tecnológica.
É difícil precisar o momento do surgimento da telemedicina, são inúmeros avanços
tecnológicos que cooperam para seu advento. É uma evolução na utilização de tecnologias
como o telégrafo de Claude Chappe, o telefone, a rádio fusão, fac-símile, entre outros. Assim
no início da década de 1870, quase todo mundo já estava conectado com cabos ligando a
Índia, Hong Kong, China e Japão; a Austrália e a América do Sul, a evolução do telégrafo
entre os continentes. Ainda temos na sequência a descoberta dos satélites, televisão, e a rede
de internet, numa linha do tempo da televisão em 1817, e 1964 com o primeiro satélite da
Nasa (o Telstar, lançado pela NASA é conhecido como o satélite pioneiro para uso das
telecomunicações).
Em 1969 temos um marco importante: O homem chegou à Lua. E foi através da
telemedicina que foi garantida a assistência à saúde dos astronautas em órbita, inclusive
devido as oscilações devido a dimensão espacial precisavam de monitorização constante por
médicos da NASA com o uso de sofisticadas tecnológicas para alcançar esse objetivo.
Conforme o site da 2EuroNews a telemedicina auxiliou os médicos a observar os sinais vitais
dos astronautas por meio do envio de seus sinais fisiológicos, pressão arterial, temperatura,
ritmo respiratório, eletrocardiograma, de forma que eram enviadas por milhões de
quilômetros para a estação da NASA:

"Não vamos para o espaço para ver a beleza da paisagem. Não somos turistas.
Quem faz carreira de astronauta fá-lo pela ciência, pela tecnologia e para manter
a estação espacial", contou Luca Parmitano, astronauta da Agência Espacial
Europeia (AEE).

2
Acessado no dia 03/10/2020 no site: https://pt.euronews.com/2018/03/22/a-medicina-do-espaco-que-pode-
ser-util-na-terra
453

Em Berlim, os investigadores da Charité Universitätsmedizin desenvolveram um


sensor para monitorizar a temperatura do corpo dos astronautas."Queremos medir
a temperatura no cérebro, porque o cérebro é o órgão mais importante, não apenas
para os astronautas, mas para toda a gente", explicou Hanns-Christian Gunga,
professor de fisiologia, na Charité – Universitätsmedizin Berlin.Os investigadores
descobriram que os astronautas que fazem exercício todos os dias têm uma
temperatura corporal mais elevada no espaço do que na terra."O cérebro é muito
vulnerável às mudanças de temperatura. É necessário mais tempo para reconhecer
ou seguir algo ou para tomar decisões cognitivas quando a temperatura do cérebro
é mais elevada", afirmou Hanns-Christian Gunga. Os investigadores estão a
adaptar os sensores para um uso na terra. O equipamento poderá ser útil para os
bombeiros e para a recuperação pós-operatória.
"Precisamos de equipamentos não invasivos, fáceis de usar, leves, robustos e que
funcionem com uma bateria. Foi o que desenvolvemos para os astronautas no
espaço", acrescentou Hanns-Christian Gunga. A Estação Espacial Internacional
recebe astronautas há duas décadas, o que tem favorecido a inovação na área da
saúde, nomeadamente no domínio da Telemedicina.
No centro técnico da Agência Espacial Europeia (AEE), na Holanda, está a ser
testado um protótipo que permite ao médico utilizar o aparelho de ultrassons que
se encontra na Estação Espacial Internacional. "O astronauta vai poder colocar o
aparelho no corpo na posição certa para se obter uma imagem. À distância, o
médico controla os movimentos da sonda colocando-a na posição que lhe convém
para obter a imagem desejada", explicou Arnaud Runge, engenheiro em
biomedicina, da AEE.
A investigação médica no espaço abrange uma grande variedade de áreas, das
ciências cognitivas à farmacêutica.
Os astronautas são uma combinação perfeita entre voluntários para uma pesquisa
científica e assistentes de investigação.

É indubitável que os avanços tecnológicos, a criação da 3internet, que fez 50 anos em


2019, e as sucessivas conquistas na era digital estão associados ao estudo da telemedicina.
A discussão em torno do uso dos avanços tecnológicos para a intermediação da prestação de
serviços na área da saúde é antiga.

1969 – Criação da Arpanet


1971 – O programador Ray Tomlinson introduz a @ para identificar destinatários
na troca de mensagens
1974 – Os cientistas Vint Cerf e Robert Kahn padronizam o protocolo TCP e
cunham o termo “internet”
1983 – Nasce o endereçamento de sites, substituindo números de IP por nomes
terminados em “.com” “.org”
1989 – Tim Berners-Lee cria a World Wide Web
1991 – Primórdios da internet no Brasil: a Fapesp se conecta a um laboratório em
Utah, nos EUA, pela Bitnet
1994 – A Embratel começa a operação comercial de internet no Brasil
1996 – Lançamento dos grandes portais no Brasil

3
Acessado no dia 04/10/2020 no site: https://www1.folha.uol.com.br/tec/2019/11/arpanet-o-embriao-da-
internet-completa-50-anos.shtml
A Arpanet, o embrião do que é hoje a maior rede de comunicação do planeta, surgiu em 1969, com a finalidade
de atender demandas do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. A ideia inicial era criar uma rede que
não pudesse ser destruída por bombardeios e fosse capaz de ligar pontos estratégicos como centros de pesquisa
e tecnologia.
454

1996 – Nokia lança o Nokia 9000 Communicator, primeiro telefone capaz de


acessar a internet
1998 – Google
2004 – Facebook
2005 – YouTube
2007 – Apple lança o primeiro iPhone
2019 – Coreia do Sul e EUA começam operação comercial do 5G

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1977, definiu que a “Telemedicina é a


oferta de serviços ligados aos cuidados com a saúde, nos casos em que a distância ou o tempo
são um fator crítico. Tais serviços são providos por profissionais da área de saúde, usando
tecnologias de informação e de comunicação (TIC) para o intercâmbio de informações”
(OMS, 19771). Para o 4Conselho Federal de Medicina a resolução n.º 1643/2002:
“Telemedicina é o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas
de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa
em Saúde.”
Um estudo organizado pela OMS em 2010 intitulado “Global Observatory for
eHealth5” apresentou mais uma definição para telemedicina:
Telemedicina, termo cunhado na década de 1970, que literalmente significa "cura
à distância" (1), significa o uso de TIC para melhorar os resultados dos pacientes,
aumentando o acesso a cuidados e informações médicas. Reconhecendo que não
há uma definição definitiva de telemedicina – um estudo de 2007 encontrou 104
definições revisadas por pares da palavra (2) – a Organização Mundial da Saúde
adotou a seguinte descrição ampla: INTRODUCTION: VISÃO GERAL DA
TELEMEDICINA "A prestação de serviços de saúde, onde a distância é um fator
crítico, por todos os profissionais de saúde que utilizam tecnologias de informação
e comunicação para a troca de informações válidas para diagnóstico , tratamento
e prevenção de doenças e lesões, pesquisa e avaliação, e para a educação
continuada dos prestadores de cuidados de saúde, tudo no interesse de avançar na
saúde dos indivíduos e de suas comunidades". As muitas definições destacam que
a telemedicina é uma ciência aberta e em constante evolução, pois incorpora novos

4
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2002/1643 Resolução CFM nº 1.643/2002:
"Define e disciplina a prestação de serviços através da Telemedicina", acessado 05/10/2020.
5
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44497/9789241564144_eng.pdf;jsessionid=7C5FBA99F4C
5D9A3AA606BAB88E1E323?sequence=1 Acessado no dia 04/10/2020 original extraído da OMS:
Telemedicine, a term coined in the 1970s, which literally means “healing at a distance” (1), signifies the use
of ICT to improve patient outcomes by increasing access to care and medical information. Recognizing that
there is no one definitive definition of telemedicine – a 2007 study found 104 peer-reviewed definitions of the
word – the World Health Organization has adopted the following broad description: INTRODUCTION:
OVERVIEW OF TELEMEDICINE “The delivery of health care services, where distance is a critical factor,
by all health care professionals using information and communication technologies for the exchange of valid
information for diagnosis, treatment and prevention of disease and injuries, research and evaluation, and for
the continuing education of health care providers, all in the interests of advancing the health of individuals and
their communities”. The many definitions highlight that telemedicine is an open and constantly evolving
science, as it incorporates new advancements in technology and responds and adapts to the changing health
needs and contexts of societies. Some distinguish telemedicine from telehealth with the former restricted to
service delivery by physicians only, and the latter signifying services provided by health professionals in
general, including nurses, pharmacists, and others. However, for the purpose of this report, telemedicine and
telehealth are synonymous and used interchangeably.
455

avanços na tecnologia e responde e se adapta às necessidades e contextos de saúde


em mudança das sociedades. Alguns distinguem a telemedicina da telessaúde com
a primeira restrita apenas à prestação de serviços por médicos, e este último
significando serviços prestados por profissionais de saúde em geral, incluindo
enfermeiros, farmacêuticos e outros. No entanto, para efeitos deste relatório,
telemedicina e telessaúde são sinônimos e utilizados de forma intercambiável.

O Dr. Chao Lung Wen, chefe da disciplina de Telemedicina da Faculdade de


Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), tem se dedicado na pesquisa e projetos
em telemedicina. 6Chao falou sobre o tema no webinar “Telessaúde para o idoso em tempos
de coronavírus”, realizado pela SBGG-SP em parceria com a Danone:

Em 45 dias, por conta da epidemia, evoluímos mais do que em oito anos em


relação aos processos regulatórios. A Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS) também reconheceu a telemedicina como uma forma de prover serviço de
saúde para a população sem oferecer risco de contágio bilateral”, detalhou. Isso
significa que os planos de saúde devem oferecer a modalidade para seus usuários
e pagar o valor completo da consulta para o médico. “Por ser um ato médico, a
responsabilidade toda é do profissional, por isso não cabe pagamento menor”,
disse.

Do ponto de vista Global, os EUA despontam com um dos países pioneiros, e que
mais investe na telemedicina, conforme o estudo realizado pela 7Comissão Europeia em
2018, intitulado “Market Study on Telemedicine”:

Do ponto de vista global da comparação, a maior parte da receita de eHealth é


gerada nos Estados Unidos (€ 3.210 milhões em 2018). Além disso, espera-se que
a receita cresça a uma taxa anual (CAGR 2018-2020) de 14,2%, resultando em um
volume de mercado de 4.187 milhões de euros em 2020. O maior segmento do
mercado é a insuficiência cardíaca, com um volume de mercado de 1.319 milhões
de euros em 2018. Além disso, os negócios de investimento no setor de eHealth
são observados principalmente nos EUA. Entre as soluções de eHealth para
diabetes, hipertensão e insuficiência cardíaca, os produtos para pacientes com
insuficiência cardíaca geraram a maior receita em 2016, com € 854 milhões. A
doença cardíaca é a principal causa de morte nos Estados Unidos, respondendo
por 23,4% das mortes em 2014. Como na UE, a prevenção e o tratamento são os
tipos predominantes de intervenção para soluções de telemedicina. A vida
assistida ambiente (AAL) inclui apenas dispositivos para rastrear os dados de
saúde do usuário em casa e, portanto, não pode se enquadrar na categoria de toring
telemoni. Da mesma forma que a distribuição dos tipos de intervenção nos países
da UE, assumimos que outras soluções de telemonitoramento estão divididas entre
prevenção e tratamento. Em resumo, os Estados Unidos podem ser considerados
um país pioneiro e líder na adoção da telemedicina. Além disso, a telemedicina
nos EUA conquistou a saúde em todos os níveis. Os exemplos a seguir apoiam
essa descoberta. Os hospitais utilizam a telemedicina para fornecer aos seus
pacientes cuidados especializados (monitoramento de doenças crônicas,

6
http://www.sbgg-sp.com.br/telessaude-para-o-idoso-em-tempos-de-coronavirus/Acessado no dia 04/10/2020
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)
7
https://ec.europa.eu/health/sites/health/files/ehealth/docs/2018_provision_marketstudy_telemedicine_en.pdf
Market study on telemedicine. Acessado em 04/10/2020.
456

acompanhamentos) para evitar reinternações desnecessárias e dispendes. A


telemedicina é uma forma de os empregadores estabelecerem planos de seguro
mais baratos para seus próprios funcionários. Nove em cada dez employees podem
usar serviços de telemedicina. A telemedicina também diz respeito à atenção
básica e urgente, pois aumenta a retenção de clientes e economiza custos em
serviços 24 horas por dia, 7 dias por semana. Os médicos usam telemedicina para
evitar visitas desnecessárias e demoradas aos seus consultórios.

Prevenção;
Tratamento; 44% 42 %

Ambiente
vida assistida;
12 %

Figura: Distribuição da receita de eHealth em três categorias-chave de utilização nos Estados Unidos em
2016
Fonte: Statista (2017)

A telemedicina é também uma realidade para vários países europeus, como por
exemplo Portugal, que já apresenta bons resultados. 8O Dr. Daniel Ferreira, Diretor Clínico
do Centro Clínico Digital e Coordenador da área de Cardiologia Clínica do Hospital da Luz
em Lisboa relata:

No país europeu, a Telemedicina já é uma realidade, sendo regulamentada pelo


Governo e aplicada tanto no serviço público quanto no serviço particular de saúde.
O Hospital da Luz atende pacientes em mais de 15 países de 4 continentes, com
mais de 20 especialidades médicas em atividade em 6 dos hospitais da rede. Ali, a
tecnologia ajuda a salvar vidas e garantir que pacientes com doenças crônicas
sigam o tratamento corretamente tendo mais acompanhamento médico e
prevenção. Acompanhamos muitas patologias crônicas por meses e até anos
alternando consultas presenciais com consultas à distância (vídeo-consultas).
Desse modo, permitimos uma ligação maior dos pacientes com seu cardiologista,
o esclarecimento de dúvidas, a minimização da interrupção do tratamento por falta
de receituário e a detecção precoce de efeitos colaterais dos medicamentos etc.

8
http://telemedicinesummit.com.br/noticias/telemedicina-regulamentada-ja-e-uma-realidade-em-portugal/
Global Summit Telemedicine & Digital Health. Acessado 04/10/2020
457

Aqui em Portugal já existem alguns projetos como o acompanhamento domiciliar


de pacientes com insuficiência cardíaca ou doença pulmonar obstrutiva crônica,
entre outras doenças. Os resultados vêm sendo muito positivos, não apenas no
controle das queixas dos pacientes, como também e principalmente na redução do
número de visitas aos serviços de emergência e até mesmo na redução da
mortalidade.

Outro fator determinante para o avanço da telemedicina é que o envelhecimento


populacional está crescendo em todo o mundo, particularmente nas economias
desenvolvidas, onde as taxas de fertilidade estão baixas e a expectativa de vida aumentando.
Em 2015, as pessoas com mais de 65 anos compõem 17% da população dos mercados
desenvolvidos. O aumento da idade média de uma população resulta em maior incidência de
doenças crônicas, criando assim demanda sustentável por tecnologias em saúde. 9De acordo
com o cenário base das projeções de população da Eurostat para o período de 2015 a 2050:
a participação de pessoas com 65 anos ou mais deve aumentar de 18,9% em 2015 para 28,1%
até 2050, com a parcela de pessoas com 85 anos ou mais do que dobrando de 2,5% em 2015
para 6,0% em 205010. Isso coloca desafios específicos para a prestação de serviços médicos
em uma configuração tradicional, também para os prestadores de cuidados de saúde.

2 TELEMEDICINA NO BRASIL

A regulamentação da telemedicina no Brasil é necessária não somente para classe


médica, mas também para seus usuários, que poderão ter exatidão das normas, bem como
sua privacidade preservada e dados protegidos. Assim como o Conselho Federal de
Medicina, que é a instância máxima na definição da conduta médica em todo o território
nacional, conforme o art. 7º da Lei n.º 1112.842/2013, a aprovação pelo CFM de pareceres
sobre matéria médica, conforme o texto legal: Art. 7º Compreende-se entre as competências
do Conselho Federal de Medicina editar normas para definir o caráter experimental de
procedimentos em Medicina, autorizando ou vedando a sua prática pelos médicos. O CFM
emitiu a Resolução CFM nº 121.643/2002 regulando a telemedicina: “Define e disciplina a

9
https://ec.europa.eu/eurostat/statisticsexplained/index.php?title=Archive:Statistics_on_regional_population_
projections acessado 03/10/2020
10
https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Population_structure_and_ageing/pt
Estrutura populacional e envelhecimento. EUROSTAT
11
LEI Nº12.842, 10 DE JULHO 2013. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2013/lei/l12842.htm , acessado 04/10/2020
12
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2002/1643 Resolução CFM 1.643/2002 Define
e disciplina a prestação de serviços através da
Telemedicina
458

prestação de serviços através da Telemedicina”. Entretanto essa abordagem era muito vaga
no que diz respeito a telemedicina, não contemplava muitas questões pertinentes ao uso
desta.
13
A Resolução CFM nº 2.227/2018 revogou a CFM 1.643, de 2002, e trouxe mais
características para o uso da telemedicina. A resolução teve uma vida muito curta, e em 2019
foi revogada (Resolução CFM nº 2.228/2019). O que podemos avaliar que em 2002 o
Conselho Federal de Medicina (CFM) regulou a matéria, no ano 2018 com um estudo um
pouco melhor, o Conselho buscou contemplar questões não vislumbradas na Resolução
1.643/02, contudo ainda não lograra êxito. Com a pandemia pelo Covid-19, o Ministério da
Saúde agiu de forma rápida pelas circunstâncias emergenciais, e o Congresso Nacional
regulou de modo excepcional e temporariamente a matéria. No dia 16.04.2020, foi publicada
a 14Lei nº 13.989/2020, a qual dispõe sobre o uso excepcional e temporário desse recurso
apenas durante a crise causada pelo coronavírus.
Segundo a Declaração de Tel Aviv, "Declaração de Tel Aviv sobre
responsabilidades e normas éticas na utilização da Telemedicina", adotada pela 51ª
Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em Tel Aviv, Israel, em outubro de 1999.
Na esteira da Associação Médica Mundial, no Brasil, o 15Conselho Federal de Medicina, em
26/08/2002 publicou a Resolução nº 1643/2002, que “define e disciplina a prestação de
serviços através da Telemedicina”

O artigo 1º da referida Resolução define “a Telemedicina como o exercício da


Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação
audio-visual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em
Saúde”. Tal normativo é muito superficial no detalhamento das condutas a serem
obrigatoriamente observadas pelos médicos ao atuarem através da Telemedicina e
somente foi alvo de atualização em 06/02/2019, quando foi publicada a Resolução
nº 2227/2018.Contudo, essa resolução foi alvo de tantas críticas e manifestações
da classe médica, que exatamente um mês depois, em 06/03/2019, foi revogada
pela Resolução 2228/2019, que represtinou e devolveu a vigência da Resolução
1643/2002.À míngua de normativo que trouxesse segurança ética-jurídica para o
médico, mas buscando estimular a utilização da telemedicina, o CFM encaminhou
para o Ministério da Saúde o Ofício CFM Nº 1756/2020 – CONJUR, no qual
dispôs que “decidiu aperfeiçoar ao máximo a eficiência dos serviços médicos
prestados e, EM CARÁTER DE EXCEPCIONALIDADE E ENQUANTO

13
https://portal.cfm.org.br/images/PDF/resolucao222718.pdf
Acessado 04/10/2020 CFM nº 2.227/2018 https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-
explained/index.php?title=Population_structure_and_ageing/pt
14
LEI Nº 13.989, DE 15 DE ABRIL DE 2020 Dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo
coronavírus(SARS-CoV-2)https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.989-de-15-de-abril-de-2020-
252726328 Acessada em: 05/10/2020
15
http://www.crmto.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=22064:2020-04-21-18-40-
54&catid=46:artigos&Itemid=495 acessado 03/10/2020
459

DURAR A BATALHA DE COMBATE AO CONTÁGIO DA COVID-19,


reconhecer a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina, além do
disposto na Resolução CFM nº 1.643, de 26 de agosto de 2002.”

A telemedicina trará uma democratização para a saúde alcançando pessoas que estão
longe de um especialista, por exemplo. São inúmeros os benefícios dessa modalidade da
medicina, podemos citar também: O 16Instituto SENAI de Inovação em Soluções Integradas
em Metalmecânica, do Rio Grande do Sul, desenvolveu juntamente com a
empresa Novus uma nova tecnologia que vai evitar que profissionais de saúde que atuam
nas triagens de unidades hospitalares fiquem expostos no momento do atendimento inicial a
pacientes que suspeitam de Coronavírus.
Observa-se que mesmo em caráter temporário e de excepcionalidade, a Declaração
de Tel Aviv sobre responsabilidades e normas éticas na utilização da Telemedicina já
aborda e limita as normas éticas. Neste sentido é importante salientar que com a
institucionalização da telemedicina no Brasil serão abordados conjuntamente outros
aspectos como a proteção de dados devido à nova de Lei Geral de Proteção de Dados 17Lei
13.709/18 que já está em vigência, também os meios digitais que serão utilizados, normas
de proteção do consumidor, entre outros aspectos legais. Portanto essas garantias legais
preservarão a integridade, o sigilo e a segurança da informação nos atendimentos realizados
entre médicos e pacientes por todos os meios tecnológicos e plataformas digitais que
serviram de interface entre o médico e o paciente.
Na área consumerista também podemos vislumbrar a proteção ao consumidor. No
ano de 2012, a convite da Consumers Internacional, Profa. Dra. Cláudia Lima Marques,
iniciava um processo de atualização consumerista na Reunião Ad Hoc de Especialistas em
Proteção ao Consumidor junto à UNCTAD. Assim começaram as consultas sobre uma
possibilidade das revisões das Diretrizes das Nações Unidas para Proteção ao Consumidor",
analisadas em 2013, e que em 2014 resultaram em um Draft, que foi finalizado em julho e
aprovado pela Assembleia Geral da ONU, em final de dezembro de 2015. Os documentos
da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD)
informam sobre as normas de proteção e as novas tecnologias:

16
https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/inovacao-e-tecnologia/senai-desenvolve-produto-para-
realizar-triagem-remota-de-pacientes-com-covid-19/ acessado 05/10/2020
17
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm Lei Geral de Proteção de Dados
Lei 13.709/18 acessado 05/10/2029
460

"A revisão das DNUPC cobre todo o conteúdo das existentes DNUPC, bem como
de algumas áreas ainda não alcançadas nas Diretrizes (comércio eletrônico,
serviços financeiros, outras questões e implementação), com o objetivo de
melhor proteger consumidores em um mundo de mudanças e na necessidade
de atualizar a proteção de consumidores em áreas que são, cada vez mais, uma
parte essencial do consumo cotidiano. A finalidade da revisão é alcançar uma
efetiva proteção ao consumidor nos níveis nacional, regional e internacional, no
tocante ao direito balanceado entre um alto nível de proteção dos consumidores e
a competitividade dos negócios."18

É fundamental enfatizar que as Diretrizes da ONU de proteção dos consumidores é o


único instrumento internacional mundial sobre a proteção dos consumidores, e nesse período
todo de crescimento, somaram-se muitas conquistas. Na Revisão de 2015 das Diretrizes
sobre Proteção dos Consumidores criou pela primeira vez uma instituição do sistema da
ONU específica para acompanhar a evolução do consumo no mundo, na UNCTAD, o
"Grupo Intergovernamental de Experts em Direito e Política do
Consumidor"(Intergovernmental Group of Experts (IGE) on consumer protection law and
policy), conforme explica Marques. A Revisão de 2015 se mostrou um marco sobre a
importância da conjugação do estudo do consumidor de forma global, e contribuindo com
atualizações valiosas para o Código do Consumidor.
Portanto, ainda esfera consumerista podemos avaliar que a confiança na fase
contratual e pós contratual, obriga o fornecedor a prestar toda informação necessária
conforme a conduta de lealdade decorrentes da boa-fé, assim é bem demonstrado no estudo
do professor Cordeiro:
Tudo isto assenta na boa-fé. O simples enunciado desta situação mostra um
paralelismo formal acentuado com os deveres acessórios e, até, com as
vinculações constituídas in contrahendo. Justifica-se, no entanto, a autonomização
da culpa post pactum finitum porque, por um lado, a base jurídica não é já, em
rigor, a mesma e, por outro, porque o desaparecimento da obrigação em si, ou a
inexistência, como possível, de um contrato futuro altera, de modo profundo, o
condicionalismo da sua concretização. Basta, aliás, atinar nalgumas obrigações
pós-eficazes típicas, como o dever de não concorrência ou o do fornecer
assistência e sobresselentes, para registrar a especificidade da situação.
Na busca dos vectores materiais que concretizem a boa-fé nas ocorrências de pós-
eficácia, deparam-se, no essencial, a confiança e a materialidade das situações em
jogo. A confiança requer a proteção, no período subsequente ao da extinção do
contrato, das expectativas provocadas na sua celebração e no seu cumprimento,
pelo comportamento dos intervenientes. A materialidade das situações exige a
celebração e o acatamento dos negócios não se tornem meras operações formais,
a desenvolver numa perspectiva de correspondência literal com o acordado, mas

18
MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima; OLIVEIRA, Amanda Flávio - 25 Anos do Código de
Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 427.
461

que, na primeira oportunidade, se esvaziam de conteúdo. O escopo contratual não


pode ser frustrado a pretexto de que a obrigação se extinguiu 19

Nessa mesma esteira o 20Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014 – 23 de abril


de 2014, é uma lei que regula em grande parte as obrigações civis e empresariais no ambiente
virtual, tem no seu bojo albergado pelo Código Civil, e no Código do Consumidor as regras
de proteção nos seus respectivos artigos. Por isso que no conjunto das proteções legais já
existentes para o consumidor, é necessária a regulamentação da telemedicina para que
possamos harmonizá-la no ordenamento jurídico brasileiro.
Apesar da telemedicina não ser um assunto novo, é possível observar que há campo
para aprofundamento dos debates acerca do assunto relacionado à novas medidas com o uso
da telemedicina e sua regulamentação no Brasil, conforme demostrado acima amenizará o
impacto social e econômico em toda sociedade, democratizará a saúde, e ampliará os
horizontes da medicina.

3 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONSELHO FEDERAL DE MEDICNA RESOLUÇÃO Nº 1.643. Define e disciplina a


prestação de serviços através da Telemedicina.2002.
<https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2002/1643> Acesso em: 04
out. 2002.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICNA. RESOLUÇÃO N° 2.227. Órgão: Entidades de


Fiscalização do Exercício das Profissões Liberais/Conselho Federal de Medicina
13 Dez. 2018.<https://portal.cfm.org.br/images/PDF/resolucao222718.pdf> Acessado em:
04 out. 2020.

CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA. A Telemedicina e a necessária Segurança


Jurídica para o Médico. Agos de 2020.
<http://www.crmto.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=22064:2020-
04-21-18-40-54&catid=46:artigos&Itemid=495> Acessado em: 03/10/2020

COMISSÃO EUROPEIA. Market study on telemedicine. Out. 2018. Disponível em:


<https://ec.europa.eu/health/sites/health/files/ehealth/docs/2018_provision_marketstudy_te
lemedicine_en.pdf >. Acesso em: 04 out. 2020.

CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. 2.

19
CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. 2. ed. Coimbra: Almedina,
2001, p. 630.
20
Lei n.º12.965/2014(23 de abril de 2014)Marco Civil da Internet
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm acessado 05/10/2020
462

ed. Coimbra: Almedina, 2001.

EUROSTAT. Estrutura populacional e envelhecimento. Fev. 2020. <


https://ec.europa.eu/eurostat/statisticsexplained/index.php?title=Population_structure_and_
ageing/pt>. Acessado em: 04 de out. de 2020.

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<https://pt.euronews.com/2018/03/22/a-medicina-do-espaco-que-pode-ser-util-na-terra>.
Acesso em: 04 out. 2020.

FOLHA DE SÃO PAULO. Arpanet, o embrião da internet, completa 50 anos.


https://www1.folha.uol.com.br/tec/2019/11/arpanet-o-embriao-da-internet-completa-50-anos.shtml. Acesso
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regulamentada já é uma realidade em Portugal. 2020.
<http://telemedicinesummit.com.br/noticias/telemedicina-regulamentada-ja-e-uma-
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WORLD HEALTH ORGANIZATION. Telemedicine Opportunites and Developments


in Member States, 2009.Geneva
<https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44497/9789241564144_eng.pdf;jsessioni
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MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima; OLIVEIRA, Amanda Flávio -25 Anos do
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COVID-19 Escritório da OPAS e da OMS no Brasil. 2020. <http://www.sbgg-
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm Lei Geral de
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PLANALTO CASA CIVIL. Marco Civil da Internet Lei n. º12.965/2014. 23 de abril de


2014)Marco Civil da Internet <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l12965.htm >. Acessado em: 05 out. 2020.

DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise


causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2) Lei Nº 13.989, 15 abr. 2020
<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.989-de-15-de-abril-de-2020-252726328>
Acessada em: 05 out. 2020.
463

SENAI. Desenvolve produto para realizar triagem remota de pacientes com Covid-19.
18 de out. 2020. <https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/inovacao-e-
tecnologia/senai-desenvolve-produto-para-realizar-triagem-remota-de-pacientes-com-
covid19/#:~:text=O%20projeto%20desenvolvido%20com%20pesquisadores,question%C3
%A1rio%20no%20momento%20da%20triagem.> Acessado em: 05 de out. 2020.
464

MULHERES, FILHOS E ADOÇÃO: AVANÇOS SOCIOCULTURAIS


FEMININOS, REFLEXOS NA IGUALDADE ENTRE FILHOS E A
IMPORTÂNCIA DE UM OLHAR MAIS EFETIVO AO PROCESSO
DE ADOÇÃO

Helena Gil Klein1

Resumo: A presente pesquisa busca demonstrar que, em que pese os avanços socioculturais
e legislativos no âmbito das famílias, com a positivação constitucional da igualdade entre
homens e mulheres e o reconhecimento de igualdade entre os filhos, ainda existem inúmeros
pontos a serem desenvolvidos, tanto no que diz respeito à verdadeira autonomia da mulher
quanto à legislação que regula o instituto da adoção. Isso porque percebe-se uma verdadeira
dicotomia entre os direitos positivados. Enquanto aborda-se interminavelmente sobre o
melhor interesse da criança e do adolescente, há uma legislação que se esforça em deixar a
criança e/ou adolescente negligenciado junto à família natural ou extensa. Além disso, a
maternidade ainda é exigida e ditada à mulher como exercê-la, sem ser-lhe possibilitada a
interrupção de uma gravidez indesejada; de forma que tais considerações acabam por
evidenciar a falha tentativa do Estado em continuar a organizar os vínculos parentais. A
espera da criança em situação de vulnerabilidade pela família biológica é extremamente
temerária ao seu desenvolvimento saudável, tornando-se imprescindível buscar vias
alternativas enquanto não há a destituição do poder familiar e a sua disponibilização para a
adoção. Nesse contexto, emerge a necessidade de repensar as relações de poder e submissão
abordadas, assegurando a abertura do debate para uma supressão, de fato, de tais
comportamentos obsoletos, a fim de que o direito constitucionalmente garantido à toda
criança e/ou adolescente de desenvolver-se em ambiente familiar saudável seja efetivado.

Palavras-chave: Direito das mulheres. Adoção. Melhor interesse da criança e do


adolescente. Guarda provisória.

INTRODUÇÃO

A história da hostilização da mulher ao decorrer das décadas é conhecida. Enquanto


aos homens foram concedidos inúmeros privilégios em razão da sua venerada
masculinidade, a mulher buscou, por séculos, o seu reconhecimento, não só em direitos, mas
como em posição social, acadêmico e profissional. Isso porque sob a perspectiva patriarcal
de controle, a mulher, além de ser subjugada em razão do gênero, apenas encontrava seu

1
Advogada OAB nº 108.819; Especialista em Direito Público; e, Pós-graduanda em Direito de Família e
Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público – FMP, endereço eletrônico:
helenaklein.adv@gmail.com
465

lugar na sociedade, como “mulher de família” se fosse casada, mãe e exercesse a função
pedagógica (embora condicionada) de criar seus filhos.2
Com relação aos filhos, seguia-se a rigidez imposta à mulher, eis que apenas eram
considerados legítimos se concebidos no seio de uma família constituída pelo casamento.
Caso os genitores não fossem casados, os filhos eram chamados de naturais, no entanto não
tinham direito ao nome do pai, tampouco quaisquer direitos, como buscar alimentos nem
perceber direitos sucessórios.
Os avanços no âmbito das famílias estão diretamente ligados às conquistas de direitos
das mulheres. Na medida em que a família é um reflexo da sociedade em que se está inserida,
inegáveis são as mudanças estruturais e funcionais ocorridas – se a concepção clássica se
atrelava ao matrimônio atrelada à liames biológicos e registrais, a nova definição está cada
vez mais desvinculada desses fatos. No Brasil, a redemocratização é um marco divisor de
tais concepções, eis que a instauração da igualdade entre o homem e a mulher remodelou o
conceito de família, passando a proteger, de forma igualitária, a todos os seus membros.3
A Constituição Federal de 1988 estendeu a sua proteção a todas as espécies de
famílias, independentemente da sua forma de constituição, merecendo especial destaque a
consagração da igualdade entre os filhos, garantindo os mesmos direitos e qualificações
àqueles havidos ou não do casamento, bem como por adoção.
Nessa perspectiva é indispensável reconhecer que a Constituição passou a conferir
tutela jurídica ao afeto, passando-se a ser reconhecido como o principal fundamento das
relações familiares, como bem leciona Flávio Tartuce:

O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das


relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto no Texto Maior como
sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização
constante da dignidade humana e da solidariedade. 4

2
MENDES, Soraia da Rosa. Justiça Penal e Justiça de Família: a Guarda Compartilhada e a Proteção Que
Desprotege. In: RDU, Porto Alegre, RS, Edição Especial, 2016, p. 168.
3
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
art. 226. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em:
03. out. 2020.
4
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. São Paulo. 8.ed. Editora Método, 2018, p.1327.
466

Os direitos assegurados às crianças e aos adolescentes, além de formarem preceito


constitucional5, encontram-se positivados no Estatuto da Criança e do Adolescente6 como
prioridade absoluta. O texto legal repete-se em ambos os dispositivos: “a efetivação dos
direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.”.
O instituto da adoção é um dos meios jurídicos pelo qual o Estado proporciona às
crianças e aos adolescentes - que de alguma forma foram negligenciadas, que tais direito
sejam assegurados por meio da inserção destes em ambiente familiar saudável. No entanto,
ao invés de acolher e promover, de fato, o desenvolvimento saudável da criança, não raras
vezes, o processo de acolhimento reforça comportamentos discriminatórios, eis que as
infindáveis tentativas de manutenção junto à família natural ou extensa – aguardando-se por
mães/pais ausentes e omissos, assim como familiares distantes -, terminam por colocar tais
crianças em um verdadeiro limbo afetivo.

Quando finalmente são disponibilizados para adoção, tornam-se invisíveis e


inacessíveis. Ninguém tem acesso a eles, nem quem está habilitado a adotá-los.
Durante essa eternidade, as crianças crescem e se tornam inadotáveis – feia
palavra, que retrata uma realidade ainda mais perversa: ninguém as quer.
Chegaram aos abrigos bebês e de lá saem quando atingem a maioridade. 7.

Denota-se, assim, que a cultura histórico-cultural de exigência de padrões


conservadores e a autonomia tolhida da mulher seguem refletidas na atualidade, bem como
na forma de regulamentação da adoção, eis que, ainda que implicitamente, busca-se
organizar os vínculos parentais. Nesse contexto, a presente pesquisa visa apresentar a guarda
provisória com fins de adoção como uma alternativa à proteção da criança e/ou adolescente
em situação de vulnerabilidade.
Quanto à metodologia, utiliza-se o método dedutivo, desenvolvendo-se a pesquisa
por meio de utilização de doutrinas, teses, legislação e julgados relacionados ao Direito das
famílias e da criança e do adolescente. O estudo está estruturado em dois capítulos, tratando-
se o primeiro de uma perspectiva histórica sobre o tema; e o segundo abordando a

5
BRASIL. Op. cit., 1988, art. 227.
6
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 4º. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 22 ago. 2020.
7
DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto. São Paulo. 2.ed. Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 65.
467

necessidade de uma alternativa à legislação vigente sobre adoção, evidenciando-se a


importância da colocação, de pronto, da criança e/ou adolescente em âmbito familiar
saudável.

1 O PODER CONTROLADOR DO CONSERVADORISMO E O PAPEL DA


MULHER NAS TRANSFORMAÇÕES DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA

As normas de comportamento da sociedade conservadora são fruto de uma


construção patriarcal advinda do poder central da igreja. A imposição de condutas
classificadas como ‘certas’ ou ‘erradas’, não só foram como ainda são meios de controle das
pessoas por meio da imposição do medo.8
A formatação da sociedade se dá a partir da estruturação da família convencional, a
qual coloca cada membro em uma posição pré-determinada, estabelecendo o que por séculos
ouvimos ser fruto de uma “ordem natural”. Nessa estrutura, como explica Maria Berenice
Dias9, “o homem era considerado o pater familiae, com poderes totais sobre seus membros:
a mulher subjugada ao poder marital e os filhos, ao pater familiae.”. E quando falamos de
filhos, entende-se apenas os nascidos do casamento, eis que os das demais “categorias”
sequer poderiam ser reconhecidos.
Carole Pateman pontua que “o patriarcalismo se baseia no apelo à natureza e no
argumento de que a função natural da mulher de procriar prescreve seu lugar doméstico e
subordinado na ordem das coisas.”10. Assim sendo, a ordem natural a que se propõe a lei e a
igreja visa manter a mulher como a máquina de reproduzir seres humanos e o homem, o ser
divino que proverá do dinheiro para sustentar sua família e decidir o que será feito com cada
membro.
A influência centralizadora da igreja era tamanha que o Estado se submetia a ela.
Exemplo disso é que o casamento e o batismo eram atos celebrados exclusivamente pelos

8
DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto. São Paulo. 2.ed. Editora Revista dos Tribunais, 2017, p.19.
9
Ibid., p.20.
10
ROSA, Conrado Paulino da. Curso de direito de família contemporâneo. Salvador. 5.ed. Editora
Juspodvm, 2019. p. 38.
468

padres.11 Mas, importa dizer, que a manutenção dessa estrutura, interessava igualmente aos
dois entes, pois essa era a melhor forma de manter o controle.
Muito embora tais questões causem impressões obsoletas, destaca-se que, em pleno
século XXI, o Estado não determina o ensino de sexualidade nas escolas; não há a presença
de políticas públicas suficientes de prevenção à gravidez indesejada; o aborto é
criminalizado; além, é claro, de a Igreja Católica proibir o uso de qualquer método
contraceptivo. Ou seja, a mulher continua sendo considerada um ser sem vontade própria.12

1.1 Breve avanço histórico e legislativo

A mulher apenas ingressou no mercado de trabalho e tomou um segundo papel além


da procriação, com o advento da revolução industrial, entre os séculos XVIII e XIX, em
virtude da necessidade de mão de obra nas atividades terciárias. No final do século XIX, ao
assumirem posições de liderança na sociedade foram consideradas mulheres com “vocação
fálica”, pois não estariam aceitando a sua inferioridade perante o sexo masculino, tampouco
cumprindo o único destino capaz de fazer avançar como sexualidade feminina: a vida de
dona de casa13. Assim, tanto a legislação nacional como a internacional, estavam carregadas
de caráter punitivo, visando afetar, especialmente, a mulher.14
No Brasil, o Código Civil de 1916 trazia a estreita e discriminatória visão da família,
limitando-se ao casamento. A mulher casada era considerada relativamente incapaz, de
modo que precisava da autorização do marido para trabalhar e seus bens eram por ele
administrados. Não era permitida a dissolução do casamento, fazia referências
discriminatórias aos filhos tidos como ilegítimos e as relações extraconjugais, com o fim de
preservar a família matrimonializada. Quanto à adoção, a chamava de simples,

11
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. Tradução de verso Tradutores do
original “Feminism critiques of the public public/private dichotomy”. The disorder of women. Direitos cedidos
por Polity Press. In: _____. (Orgs.) Teoria política feminista: textos centrais., p. 62.
12
DIAS, op. cit., 2017, p.64.
13
Freud, ao escrever a sua teoria sobre a sexualidade feminina, diz que as mulheres possuem inveja do pênis,
classificando como um complexo de masculinidade o não conformismo com a sua “castração”, decidindo “ser
um menino”, procurando profissões que seriam pênis simbólicos. CARVALHO, Alexandre. O paradoxo de
Freud. Aventuras na História, São Paulo, edição 196, p. 34, set. 2019.
14
DIAS, op. cit., 2020. p. 43.
469

independentemente da idade, estabelecendo-se vínculo parentesco apenas entre adotado e o


adotante.15
Como bem pontua Maria Berenice Dias “a vida é irrequieta, se modifica, o que
necessariamente reflete na sociedade e acaba confrontando a lei.”16 As mudanças pelas quais
passaram as famílias estão diretamente ligadas às conquistas das mulheres. A busca pelo seu
‘lugar’ em meio a uma sociedade patriarcal forçou sucessivas alterações legislativas a fim
de garantir a sua inserção.
A mulher apenas merecia o respeito e o reconhecimento social se fosse casada e, em
consequência, presumia-se a paternidade dos filhos, os quais eram considerados legítimos.
Por outro lado, a mulher separada ou desquitada, era profundamente discriminada, alvo de
assédio sexual e seus filhos eram considerados ilegítimos, não podendo ser reconhecidos
legalmente.17 Apenas em 1942 foi admitido o registro dos filhos naturais.
Em 1962, o Estatuto da Mulher Casada devolve a plena capacidade civil da mulher
e permite a propriedade exclusiva dos bens adquiridos com o fruto do seu trabalho. Em
seguida, os movimentos feministas da década de 1970, sob a ótica de novas condições das
mulheres na família e na sociedade, foram fortes impulsionadores de novos debates e
questionamentos.18
Representando um grande passo na autonomia das mulheres casadas, em 1977 é
aprovado o divórcio no Brasil. Embora ainda com inúmeras restrições, é inegável que, a
partir de então, inicia-se um progresso para eliminar a ideia de família como instituição
sacralizada.
A Constituição Federal de 1988 é, talvez, o mais importante marco no âmbito das
relações familiares – e, aqui, faz-se especial alusão à mulher e aos/às filhos/as. Assegurou a
igualdade entre homem e mulher em direitos e obrigações19, bem como no exercício das
atividades parentais. Aos filhos, igualmente, conferiu a igualdade, proibindo quaisquer
designações discriminatórias20.

15
DIAS, op. cit., 2020, p. 326.
16
DIAS, op. cit., 2020, p. 42.
17
DIAS, op. cit., 2017, p. 22.
18
ROSA, op. cit. p. 49.
19
BRASIL, op. cit., 1988, art. 5º, inc. I.
20
BRASIL, op. cit., 1988, art. 227, §6º.
470

O exercício da liberdade laboral, afetiva e sexual da mulher, são conquistas que


podem ser consideradas recentes e transformadoras na sociedade contemporânea,
modificando, por óbvio, o status quo das famílias brasileiras, refletindo, também, no direito
da criança e dos adolescentes.21
Ainda, é importante lembrar que, no período anterior a 1988, a doutrina existente
para os direitos da infância era da situação irregular, baseada na concepção menorista, que
percebia a criança como mero objeto e não sujeito de direito. 22 Para dar efetividade ao
mandamento constitucional, em 1989, foi editado o Estatuto da Criança e do Adolescente -
ECA, consolidando a doutrina da proteção integral, a vedação a designações discriminatórias
e regulamentando a adoção.
Necessário atermo-nos ao fato de que a própria legislação tratava o instituto da
adoção de forma discriminatória. Isso porque, ainda que admitida a chamada legitimação
adotiva, em 1965, cessando o vínculo de parentesco com a família natural, foi apenas com o
código de menores, em 1979, pela adoção plena, que o vínculo de parentesco foi estendido
à família dos adotantes. Dessa forma, o adotado passou a possuir o nome dos avós no registro
de nascimento.23
Embora o atual Código Civil (2002) não tenha acompanhado os avanços sociais na
sua totalidade, teve êxito em sepultar dispositivos que já eram letra morta e retratavam ranços
e preconceitos, como as referências desigualitárias entre o homem e a mulher e as
adjetivações da filiação, entre outras.24 O codex, quando da sua promulgação, também
dispunha sobre adoção; atualmente a matéria é contemplada pelo ECA, o qual, igualmente
passou por alterações.
Para além da letra da lei, vê-se que a família, embora tenha se mantido por séculos
engessada, trata-se de uma construção cultural, a qual tem se reestruturado constantemente,
atentando-se às necessidades de todos os seus membros, sem que haja distinções advindas
de gênero ou vínculos biológicos, consagrando-se a afetividade, o carinho e o amor. Como

21
ROSA, Op. cit., p.52.
22
MENDEZ, Emílio Garcia. História da Criança como História do seu controle. In: COSTA, Antônio Carlos
Gomes de e MENDEZ, Emílio Garcia. Das Necessidades aos Direitos. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 11-32.
23
DIAS, op. cit., 2020, p. 326.
24
DIAS, op. cit., 2020, p. 47.
471

cita Maria Berenice “É essa estrutura familiar que interessa investigar e preservar em seu
aspecto mais significativo, de um verdadeiro LAR: Lugar de Afeto e Respeito.”25.

2 MANUTENÇÃO NA FAMÍLIA NATURAL: FLAGRANTE DESATENÇÃO AO


PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA

Dentre os direitos concretizados no art. 227 da CF tem-se o reconhecimento da


igualdade dos filhos e o da adoção pelo Poder Público (§§ 5º e 6º). A igualdade entre os
filhos atribuiu ao instituto da adoção a concretização de vínculos afetivos para a criança
privada da sua família, sem qualquer designação discriminatória. Não só isso, trouxe o olhar
da adoção na perspectiva do interesse do adotando.26.
Sendo a convivência familiar preceito constitucional, o instituto da adoção
oportuniza à criança e ao adolescente “a inserção em núcleo familiar, com a sua integração
efetiva e plena, de modo a assegurar a sua dignidade, atendendo às suas necessidades de
desenvolvimento da personalidade, inclusive pelo prisma psíquico, educacional e afetivo.”27.
Trata-se, então, da inclusão de uma pessoa em uma família distinta da sua natural, de
forma irrevogável, gerando vínculos de filiação, com os mesmos direitos e deveres, inclusive
sucessórios, desligando-a de quaisquer laços com pais e parentes biológicos, por meio da
destituição do poder familiar. Nos termos conceituais do caput e do parágrafo único, art. 25,
do ECA, é chamada família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e
seus descendentes e de família extensa ou ampliada os parentes próximos com os quais a
criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.
Fazendo jus aos avanços legislativos e históricos no âmbito do Direito das Famílias
e a consolidação do princípio da afetividade, a adoção apropria-se da palavra afeto e baseia-
se no amor por opção e não do acaso.

A adoção é o instituto jurídico mais importante para acabar com qualquer sombra
de dúvida que possa existir acerca da relevância do afeto nas relações familiares,
justamente porque é estabelecida de forma voluntária, com o intuito de formar
uma família, em que o afeto deve manter-se de forma recíproca entre os
componentes que a integram. Dessa forma, recebem os laços afetivos inequívoca
tutela jurídica.28

25
DIAS, op. cit., 2020, p. 43.
26
“Art. 43: A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos
legítimos.” (BRASIL. Op. cit., 1990)
27
ROSA, op. cit., p. 391.
28
DIAS, op. cit., 2017, p. 71.
472

No entanto, para que seja possibilitada a criação e, então, efetivada a concretização


dos vínculos afetivos, bem como o direito constitucional à convivência familiar, o Estatuto
da Criança e do Adolescente impõe inúmeros procedimentos antecedentes, os quais dão
prioridade à manutenção da criança junto à família natural ou extensa.
O cerne da questão está no fato de que, não raras vezes, tais procedimentos acabam
por prejudicar, não só a fase de desenvolvimento da criança, como a sua inserção em seio
familiar saudável, em flagrante desatenção ao princípio do melhor interesse da criança.
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente decorre da doutrina da
proteção integral – que reconhece a criança e o(a) adolescente como sujeito de direitos,
assentada pela Constituição Federal de 1988. O legislador estende o dever de proteção à
família e à sociedade, constituindo um dever social. Trata-se da concretização do princípio
da dignidade da pessoa humana no âmbito da infância e da juventude.
Moraes e Teixeira29 destacam que a criança e o(a) adolescente são prioridade em
razão de serem pessoas em desenvolvimento, de modo que é imprescindível a garantia do
exercício de seus direitos fundamentais para a formação de sua personalidade. Ainda,
pontuam, que as necessidades das crianças devem ser consideradas em detrimento dos
interesses de seus genitores, devendo-se analisar cada caso.
O presente princípio não possui definição rígida do que seja o seu conteúdo, devendo
sempre haver o exame específico do caso concreto, priorizando “o que melhor preserva os
interesses da criança, e a proporcionar-lhe um crescimento biopsíquico saudável, além de
tutelar adequadamente sua personalidade.”30

2.1 A ineficácia das exaustivas tentativas de manutenção da criança e/ou adolescente


junto à família natural ou extensa

O Estatuto da Criança e do Adolescente31, em seu art. 19, dispõe, como regra, que a
criança e o/a adolescente têm direito de serem criados e educados no seio de sua família e,
excepcionalmente, em família substituta. Diz, ainda, que têm direito à convivência familiar

29
MORAES, Maria Celina Bodin; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Comentários ao artigo 227. In: _____.
(Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 2128.
30
Ibid. p. 2128
31
BRASIL. Op. cit., 1990.
473

em ambiente que garanta o seu desenvolvimento integral. Quando ausentes as condições


para um desenvolvimento saudável, adota-se a colocação da criança em família substituta.
A manutenção ou reintegração da criança ou adolescente à sua família natural tem
preferência em relação a qualquer outra providência, havendo a inclusão desta em serviços
e programas de proteção, apoio e promoção.32 Tal preferência, igualmente, é consagrada na
aplicação de medidas e proteção.33
Na tentativa pífia de preservar laços biológicos, o ECA olvida-se do melhor interesse
de quem se encontra em situação de abandono, negligência ou maus-tratos – circunstâncias
causadas pelos próprios genitores. Como bem pontua Maria Berenice Dias34, “os filhos
aguardam abrigados enquanto é dada aos seus genitores a chance de receberem a devida
orientação por intermédio de equipe técnica interprofissional.”.
Segundo o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, com atualização de dados
em maio do corrente ano: 33.969 crianças e adolescentes encontravam-se acolhidas, sendo
que, apenas, 5.040 disponíveis para adoção e 2.701 em processo de adoção. Ainda, cerca de
36.437 pretendentes disponíveis para adoção. Destas crianças, 83% têm acima de 10 anos, e
apenas 2,7% dos pretendentes aceitam adotar acima desta faixa etária.35
Em um país com tantas pessoas interessadas para dedicar seu tempo, carinho e amor,
priorizar a reintegração na família natural ou extensa, deixando crianças crescerem em
situação de vulnerabilidade e, consequentemente, dificultando a sua inserção em meio
familiar saudável, com certeza não atende ao seu melhor interesse.
Outrossim, o qualificativo de família extensa dá-se pela afinidade e afetividade entre
eles. Para que se proceda a busca de possível interessado, há prazo de até seis meses 36 –
segundo a legislação. No entanto, fundamentando-se em intermináveis diligências, esse
prazo é cotidianamente ultrapassado, sem qualquer consequência37 – salvo para a criança e
o/a adolescente que seguem institucionalizados, é claro.

32
Ibid., §3º, Art. 19.
33
Ibid., Art. 100, inciso X.
34
DIAS, op. cit., 2020. p. 329
35
ASSUNÇÃO, Sheyla. et al. Dia da Adoção: Brasil tem 34mil crianças e adolescentes vivendo em abrigos.
Senado Notícias, 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/22/dia-da-
adocao-brasil-tem-34-mil-criancas-e-adolescentes-vivendo-em-abrigos. Acesso em: 24 ago. 2020.
36
BRASIL, op. cit., 1990, §3º, Art. 19-A.
37
DIAS, op. cit., 2020. p. 331
474

Ao priorizar laços biológicos, o Estado tira da criança ou do adolescente a


possibilidade de construir laços afetivos em uma família que possibilite a ele o seu
desenvolvimento integral. Outro ponto que merece atenção é que, não raras vezes, é preciso
que duas, três, quatro (se não mais) crianças de uma mesma família passem por situações
degradantes para que seja, de fato, oportunizado os direitos de convivência familiar e
desenvolvimento em âmbito saudável a alguma destas.
Além disso, apenas após esgotados os recursos da infindável etapa de manutenção é
que terá início o processo de destituição do poder familiar, para, só então, a criança ser
encaminhada à adoção. Até que isso ocorra, permanece sem poder ser amada.38
A institucionalização precoce e prolongada possui efeitos devastadores no
desenvolvimento do cérebro das crianças, causando déficits cognitivos significativos, como:
“diminuição de QI, aumento o risco de distúrbios psicológicos, redução da capacidade
linguística, dificuldade de criação de vínculos afetivos, crescimento físico atrofiado, entre
inúmeros outros sérios problemas, alguns deles irreversíveis.”39. Por outro lado, a
intervenção precoce possui resultados positivos a longo prazo.
Uma decisão que percebe-se muito acertada, ainda que questionada, é a de, tão logo
finalize-se a busca pela família extensa, identifique-se entre os candidatos à adoção se há
pessoa apta e interessada pela criança, a fim de que esta seja colocada em família substituta,
através da concessão de guarda provisória com fins de adoção, antes mesmo de findar o seu
processo de destituição familiar, garantindo-lhe, desde já, o vínculo afetivo, o convívio
familiar e o desenvolvimento saudável.

2.3 Análise prática: Colocação em família substituta antes do trânsito em julgado da


ação de destituição do poder familiar em atenção ao melhor interesse da criança

Corroborando a análise crítica realizada até o momento, propõe-se a análise de um


caso em que a advogada que vos escreve atuou diretamente, situação em que, embora
estivesse presente o interesse dos tios paternos (família extensa) em ficar com a criança,
priorizou-se a manutenção da guarda provisória, com fins de adoção, junto à família

38
DIAS, op. cit., 2017, p. 111
39
“Pesquisa “Órfãos da Romênia”, realizada pelo Hospital de Crianças de Boston, da Universidade de
Harvard.”. ABANDONO causa danos cerebrais em crianças. Acolhimento familiar. Disponível em:
https://acolhimentofamiliar.com.br/abandono-causa-danos-cerebrais-em-criancas/#. Acesso em: 22 ago. 2020.
475

substituta, com a qual havia criado verdadeiros vínculos afetivos. Decisão proferida nos
autos do AI nº 70081605206, da Oitava Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul.40.
A criança em questão foi acolhida com um mês de vida. O conselho tutelar
acompanhou a gestação da mãe em razão de que, no ano anterior ao seu nascimento, quatro
crianças da sua família que estavam sob a guarda dos seus genitores, haviam sido acolhidas
em virtude de abusos físicos, psicológicos e sexuais perpetrados pelo seu pai. A idade dessas
crianças variava de três a quatorze anos quando da intervenção estatal, sem que houvesse
familiares interessados em exercer a guarda.
Acolhida no final de maio de 2018, iniciou-se a busca por interessados na família
extensa da recém-nascida. Os tios paternos apresentaram interesse em exercer a guarda da
menina. No entanto, em razão de ter sido verificada a intenção de aproximação da infante
com o genitor, a avaliação psicossocial foi contrária à colocação da criança junto aos tios
paternos. O pedido de guarda da família extensa foi indeferido nos autos da ação de
acolhimento, sendo o expediente arquivado.
Em fevereiro de 2019, o Ministério Público ajuizou destituição do poder familiar em
favor da criança, pedindo a suspensão do poder familiar dos genitores, em caráter liminar,
com a imediata inclusão da infante no Cadastro Nacional de Adoção e consequente
encaminhamento à família substituta habilitada. Concedida a liminar, verificou-se pessoa
habilitada interessada, havendo a concessão de guarda provisória com fins de adoção à
adotante, em maio do corrente ano.
Paralela à colocação da criança em família substituta, os tios paternos ingressam
com ação de guarda no mês de abril, havendo indeferimento do pleito liminar. Irresignados,
os tios paternos recorreram da decisão de primeiro grau. Em primeira análise, o juízo a quo
indeferiu a liminar e designou data de julgamento. Próximo a data de julgamento, a tia
paterna dirigiu-se ao gabinete do relator, o qual reviu a sua liminar, concedendo a guarda
provisória à família extensa e cancelou a data aprazada para o julgamento.
A revisão liminar de segundo grau ocorreu no final de agosto de 2019 – época em
que a criança estava sob a guarda da família substituta há quatro meses, recebendo todos os
cuidados necessários para o seu desenvolvimento, além de muito amor. Não só isso, a

40
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº 70081605206. Oitava
Câmara Cível. Relator: Rui Portanova. Sessão: 12-09-2019. Disponível em:
<https://www.tjrs.jus.br/buscas/jurisprudencia/exibe_html.php>. Acesso em 03. out. 2020.
476

decisão que concedeu a guarda aos tios paternos era provisória, significa dizer que: a criança
sairia da casa da adotante, iria para a casa de sua tia e, se ao final daquele julgamento fosse
decidido que a criança não deveria ficar com a família extensa, ela voltaria para a casa da
adotante.
Por meio da habilitação da adotante em segundo grau, conseguiu-se a designação de
nova data de julgamento do recurso. Após ampla exposição da situação fática aos julgadores,
foi possível a manutenção da guarda provisória da criança à adotante. O presente caso
fortaleceu a afetividade ao relativizar a prioridade conferida à família extensa no texto legal.
Mais ainda, faz prevalecer o melhor interesse da criança.
A sorte desta criança? Sua tenra idade e a maior facilidade de compatibilização de
requisitos aceitos pela habilitada. Sorte que as demais crianças da sua família que foram
abrigadas não tiveram. À época do julgamento, seus irmãos e sobrinho, encontravam-se em
situação de acolhimento há mais de dois anos, sem que alguém tivesse demonstrado
interesse. Essa criança foi a primeira do seu núcleo familiar a ter a oportunidade de ver
assegurado o seu direito de desenvolvimento integral.
Merece atenção o fato de que, muito embora houvesse certa celeridade nos
procedimentos havidos em favor da criança, esta ficou em acolhimento institucional por um
ano até ser incluída – ainda que provisoriamente – no Cadastro Nacional de Adoção. Sorte
que muitas das 34 mil crianças acolhidas não tiveram.
Ainda, é de suma importância destacar que foram feitas avaliações psicossociais com
a família extensa interessada (tios paternos) em mais de uma oportunidade, bem como com
os irmãos da recém-nascida, os quais ressaltaram veementemente os maus-tratos sofridos
pelos genitores, chegando, estes, a salientar que o melhor para ela seria que fosse adotada,
pois eles já sabiam do seu destino: envelhecer no abrigo.
Em não raros casos, a busca da família extensa, além de ser longa e ineficaz, acaba
por prolongar o tempo em que a criança ficará sem um lar. No que tange aos recém-nascidos,
Maria Berenice Dias diz ser um equívoco caçar algum parente que o queira, pois este não
possui vínculo algum da família e, muitas vezes, ninguém chegou a conhecê-lo. O recém-
nascido deve, então, ser imediatamente inserido junto ao interessado inscrito no Cadastro
Nacional de Adoção e não recolhido em instituição de acolhimento aguardando que alguém
da família queira ficar com ele.41

41
DIAS, Op. cit., 2017, p. 111.
477

CONCLUSÃO

A presente pesquisa demonstra que a história secular de inferiorização da mulher e o


enaltecimento da maternidade, não só permanece refletindo aos dias atuais, como, ainda que
implicitamente, é uma busca vil de sacralização da família – em uma manifesta tentativa de
manter o controle social, em detrimento à todos avanços conquistados no âmbito das
famílias. Não só isso, é perceptível os resquícios de hipocrisia e preconceito que se pretende
conservar.
No entanto, para além das questões da subjugação da mulher, é indispensável nos
atermos ao reconhecimento do afeto como fundamento constitucional das relações
familiares, bem como ao melhor interesse da criança e/ou adolescente e a necessidade de
que a estes sejam possibilitados o crescimento e, consequentemente, o desenvolvimento em
lar saudável.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em uma clara tentativa de manter as
organizações parentais, busca incessantemente meios de recuperar um lugar para àquelas
crianças que foram negligenciadas junto às suas famílias naturais ou extensas, reforçando a
situação de abandono e de negligência desses infantes, os quais envelhecem em casas de
acolhimento à míngua de uma posição protecionista do Estado. Oportuno, novamente,
destacar que o acolhimento institucional prolongado pode causar danos cognitivos e
cerebrais irreversíveis, sendo imprescindível a sua intervenção precoce.
Em razão da importância do olhar atento às crianças e aos adolescentes
institucionalizados, a presente análise prática realizada demonstrou, de forma exitosa que,
embora a regra seja aguardar o fim do processo de destituição do poder familiar – o qual
apenas deve ser iniciado após intermináveis tentativas de recolocação à família natural, a
celeridade no processo de acolhimento e posterior concessão de guarda provisória com fins
de adoção, com suspensão liminar do poder familiar, não só é uma alternativa viável, como
oportuniza à criança em situação de vulnerabilidade a desenvolver-se rodeada de amor.
A aplicação da guarda provisória com fins de adoção, ainda que para alguns seja vista
como temerária, tem o fim precípuo de assegurar as garantias constitucionais exaustivamente
aqui explanadas, sendo uma via alternativa para garantir um desenvolvimento em um
verdadeiro lar às crianças institucionalizadas.
478

Por fim, destaca-se que a presente pesquisa não se olvida da importância em


resguardar o melhor interesse da criança em situação de acolhimento institucional,
ressaltando a imprescindibilidade do olhar interdisciplinar, por meio de avaliações
psicossociais, para a conclusão da questão posta sob análise.

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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. São Paulo. 8.ed. Editora Método, 2018
480

IMPACTOS A. C E D. C NA SAÚDE SUPLEMENTAR X MERCADO


CONSUMIDOR

Jaqueline Wichineski dos Santos1

RESUMO: O artigo, tem como objetivo, trazer reflexões sobre os impactos que a pandemia
covid-19 instaurada de maneira avassaladora no mundo e no Brasil, assolando a sociedade,
causando medo, desespero, instabilidade e afetando diretamente o mercado financeiro
público e privado. Neste aspecto privado, os seguros e planos de saúde tiveram que se
adequar para atender as necessidades urgentes dos segurados/consumidores, dentre estes: o
maior desafio, o de preservar a vida humana, pois, quem não é atendido pelo SUS, procurou
seus planos de saúde para atender de maneira imediata. Diante deste cenário, aspectos
permeiam, sobre as pandemias que já existiram na história, a ineficiência do Estado, diante
de políticas públicas de falta de infraestrutura como o saneamento básico, que
vergonhosamente o Brasil possui um péssimo ranking diante de outros países, e por fim o
enfrentamento do poder judiciário as demandas ainda reprimidas pelo fechamento e
isolamento social.

Palavras-chaves: Pandemia covid-19. Saúde suplementar. Consumidor. Garantias


constitucionais. Poder judiciário.

INTRODUÇÃO

As pessoas do mundo estão perplexas diante da total impotência causada pela


pandemia do Covid-19, que ultrapassa questões de cunho, econômico, político e social, não
escolhendo a “porta” da pessoa a bater, se rico ou pobre, ele apenas, adentrou, devastando
famílias, desafiando os cientistas, países favoráveis economicamente, que até o presente
momento, tentam rapidamente com os mais conceituados laboratórios espalhados pelo
mundo, descobrir a cura para combater o vírus.
O medo, a insegurança instaurada na sociedade em isolamento jamais vivido antes
pelas novas gerações, em que foram ceifados, os abraços, as reuniões de amigos, o trabalho,
substituídos pelo confinamento de “Home Office”; a residência virou o refúgio diário de

1
Advogada, OAB/RS101365, Pós-Graduada em Processo Civil, Direito Civil, e Direito dos Seguros, pela
Fundação Escola Superior do Ministério Público – FMP, Professora de Pós-Graduação, Membro da Associação
Internacional (AIDA/BRASIL) de Direito dos Seguros, e Membro do GT de Processo Civil ambos da
(AIDA/BRASIL), Membro da Comissão Especial de Direito dos Seguros OAB/RS (CESPC), Membro da
Comissão da Mulher Advogada OAB/RS.E-mail:jws.jacke@terra.com.br
481

filhos, pais, avós, e em muitos casos apenas restaram as plantas e animais de estimação como
companhia diária.
A população idosa e as pessoas com comorbidades, infelizmente as mais atingidas;
perdas e mais perdas de vidas. As máscaras cobriram sorrisos, ou a expressão de tristeza de
quem perde seu ente querido, as informações desencontradas e instáveis dos governantes, e
o famoso dito popular: “se correr o bicho pega se ficar o bicho come”, por outro lado
comercio, indústria, e a economia em geral simplesmente parou.
A grave recessão obrigou empresas a dispensarem em massa seus colaboradores,
assim como outras medidas de cunho trabalhista fizeram com que acordos houvessem,
evitando mais demissões.
Considerado esse breve introito, emanado de uma proposta reflexiva, com o olhar
para aspectos importantes permeando pelo histórico das significativas crises pandêmicas, e
abordando aspectos econômicos no âmbito da saúde suplementar, que se viram pressionados
a adequar seus procedimentos e coberturas, para com os segurados/beneficiários e por fim,
aspectos consumeristas e de judicialização que baterão as portas do Judiciário, que enfrenta
sérias dificuldades estruturais, devido a excessiva demanda, sinalizando que o Estado do Rio
Grande do Sul se comparado com os demais pelo país é o que mais judicializa.

1 BREVE HISTÓRICO DAS PANDEMIAS MUNDIAIS

A pandemia do Covid-19 atingiu o mundo, causando milhares de mortes, propagando


o medo, o isolamento, a fome, a miséria e, ainda, o não mensurado: a crescente insegurança.
No Brasil atingiu não apenas a economia, como também trouxe impactos ainda mais graves,
como é o caso da saúde pública, ou melhor, a falta dela. Aos que conseguirem sobreviver ao
vírus, ainda terão o desafio de enfrentar os reflexos do isolamento social, como a depressão,
o desemprego, que em muitos casos resultarão em tratamentos psiquiátricos.
As notícias desencontradas, vindas de outros países, a respeito dos primeiros casos e
as decisões tardias ou antecipadas dos chefes de Estados, parte culpa pelo enfrentamento ao
desconhecido e pesquisas não suficientes sobre o vírus, causaram pânico na população. Até
obtermos informações consolidadas a respeito do vírus, tais como o local que surgiu, danos
causados no corpo humano, meios de propagação, reconhecimento dos grupos de riscos, etc.
482

para o oferecimento de saúde pública de forma efetiva, ficaremos vulneráveis. Ou a falta de


informação de alguns países seria proposital, de viés econômico e político??
Muitos de nós sequer havia experimentado algo tão terrível, de tamanha mortalidade.
A nossa história, contudo, revela outras doenças de grande letalidade na sociedade como a
“peste bubônica”, causadora da Peste Negra, que assolou a Europa no Século XIV. A Varíola
atingiu o Egito e não poupou nem mesmo o faraó Ramsés II, a rainha Maria II da Inglaterra
e o rei Luís XV da França. Eles tiveram a temida “bixiga”, que matou cerca de 200 milhões
de pessoas. Durante três mil anos esteve erradicada, apenas em 1980 houve a notificação de
novos casos da doença, que resultou em maciça campanha de vacinação.
A cólera em 1817 também matou centenas de milhares de pessoas, que devido a
mutação da bactéria, ainda apresentou ciclos epidêmicos. E é por este motivo que ainda é
considerada uma pandemia de menor extensão.
Já a gripe Espanhola atingiu entre 40 e 50 milhões de pessoas em 1918, cujo vírus
teve origem na Europa. Mas quando um Transatlântico desembarcou infectados em Recife,
Salvador e Rio de Janeiro, o vírus Sars-Cov-2 se alastrou pelo Brasil. Tinha sintomas bem
parecidos com o atual coronavírus, versão 19.
Não menos importante, a gripe suína H1N1, surgida no México em 2009, também se
espalhou pelo mundo de maneira avassaladora2.
A pandemia Covid-19 gera diversas especulações, talvez na tentativa de obter uma
explicação para tanto sofrimento, disseminação entre as pessoas e que causa tanta comoção.
Um exemplo, até para quem não é cristão, foi a cena do Papa Francisco na Praça de São
Pedro vazia, em 27/03/20, inesquecível, foi veiculada pela imprensa mundial.
Para os cristãos, a justificativa é de que a Bíblia menciona sobre “o fim dos tempos”,
trazendo à tona castigos e pragas. Por outro lado, os cientistas, céticos na espiritualidade, e
arraigados na ciência, tentam encontrar respostas a inimagináveis desgraças sofridas pela
humanidade.
Pesquisadores com realidades de estruturas completamente diferentes, lastreadas nos
recursos financeiros vastos, em destaque para os da Inglaterra, EUA e Suíça, cujas
universidades e grandes empresas aportam milhões de dólares e euros para estudos

2
Disponível em <https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2020/03/conheca-5-maiores-
pandemias-da-historia.html> acesso em 26 de agosto de 2020.
483

científicos, tentam encontrar soluções em testes, tratamentos e vacinas para conter o “caos”.
Algo muito diverso do Brasil, com estruturas sucateadas.
Outro exemplo refutado pela ciência é de que se trata de uma “arma biológica”,
aquelas “velhas discussões” advindas do todo poderoso EUA, que culpa os chineses
ferrenhamente, defendido por senadores republicanos. Cabe-nos então uma reflexão:
“ameaça da ascensão chinesa” x “poder econômico”? Ou, talvez, tenha sido desenvolvido
em morcegos, que foram vendidos para um mercado chinês?
Todavia, adentrar o viés político externo e, menos ainda interno, não objetiva as
reflexões aqui expostas. Até porque, convenhamos, não somos exemplo de nada! Não é
mesmo? Tanto que, não temos saneamento básico para a população na maioria do Brasil,
segundo o Conselho Empresarial Brasileiro para o desenvolvimento sustentável (CEBDS).
Ocupamos a vergonhosa posição de 112ª no ranking de saneamento, para um país que ocupa
a 7ª maior economia do mundo3; ou seja, a população não tem garantias de tratamento de
água, esgoto e coleta de resíduos. Uma triste realidade que se agrava ainda mais com a
pandemia.
Então, polêmicas à parte, voltemos à atuação científica que embasa ou, pelo menos
tenta abastecer de informações a Organização Mundial de Saúde (OMS), e a Organização
Pan-Americana de Saúde que prestam apoio técnico ao Brasil, acompanhando as ações do
Ministério da Saúde. Estes órgãos auxiliam no rastreamento de contatos e visualizações de
transmissões; ampliação da capacidade de diagnóstico; seminários de esclarecimentos à
população; emissão de relatórios no auxílio e sugestões aos chefes de Estado, conforme o
avanço da pandemia em seu País4.
Diante de tanta instabilidade, e com cunho de esperança até 09 de julho/2020, a OMS,
sinalizou os avanços pela descoberta de vacina contra o covid-19, em que empresas como:
AstraZeneca e a Universidade de Oxford, que trabalham em parceria, iniciarão um teste com
50.000 voluntários e afirmam que esperam resultados para o Outono (hemisfério norte,
primavera no Brasil). A Johnson & Johnson prevê a possibilidade de distribuir um bilhão de
doses no próximo ano. Na França a Sanofi com colaboração britânica GSK, desenvolve dois

3
Disponível em <ttps://cebds.org/estudo-destaca-beneficios-com-expansao-saneamento-brasil/> acesso em 26
de agosto de 2020
4
Disponível em < https://coronavirus.saude.gov.br/ > acesso em 26 de agosto de 2020.
484

tipos de vacinas, que estão em testes pré-clínicos em animais, informa que no prazo de 18
meses deve estar disponível para o público, e a segunda com previsão para fim de 20215.

No tópico seguinte se abordará os impactos da pandemia covid-19 no Brasil, cenário


desfavorável, às vítimas e dados assustadores de contaminação e mortes, e o mais
preocupante, não se tem ideia de quando a população estará livre de tanto sofrimento, pois,
as sequelas aqueles que sobreviverem ao vírus, ainda são desconhecidas.

1.2 Covid-19 no Brasil e os impactos na saúde suplementar

O Brasil, possui uma população de mais de 209 milhões de habitantes, com


densidades demográficas por regiões díspares, tendo concentração maior no Nordeste e
Sudeste e com isto as diferentes culturas, dificuldades de acesso a questões sanitárias,
empobrecimento, e locais que sentiram mais a chegada da pandemia, devido aos inúmeros
voos vindos da Europa e EUA, e através de navios.
No brasil o Sistema único de Saúde (SUS), atende mais de 80% dos brasileiros, e se
assim fosse diferente, os impactos de mortes seriam maiores, até a redação deste artigo pode
ser obter através do Ministério da Saúde, sobre: casos confirmados pelo covid-19- 3.605.783;
recuperados-2.739.035; em acompanhamento-752.004; óbitos-114.744; grau de letalidade
em percentual – 3,2%; grau de mortalidade 54,6%6.
Há possibilidade de constatar que se não fosse o SUS, o número de mortalidade seria
maior se comparados com os outros países da Europa, Ásia, e EUA, que não possuem o
mesmo sistema de atendimento à população.
Se faz necessário considerar, que o número de infectados pelo mundo desde o
primeiro caso na China foram de 140 mil, e o segundo país mais atingido a Itália, com mais
de 15 mil casos, neste último se considerado a densidade demográfica de 60 milhões de
habitantes, com população de 60% de idosos, grupo de risco que a doença atinge.
O cenário de insegurança, medo, principalmente, aspectos psíquicos, emocionais, se
levado em conta que familiares não podem enterrar seus mortos, verdadeiro enfrentamento
de uma guerra, pois, as declarações de óbito, segundo médicos constam doenças causadas

5
Disponível em <
https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/06/17/interna_internacional,1157326/paises-nao-
poupam-dinheiro-para-desenvolver-vacina-contra-covid-19.shtml> acesso em 26 de agosto de 2020.
6
Disponível em< https://covid.saude.gov.br/ > acesso em 26 de agosto de 2020.
485

pelo coronavírus, e sequer possuem dados das sequelas que o vírus poderá deixar às pessoas,
dentre estes; as pulmonares, e os tratamentos que terão de serem prescritos a médio ou longo
prazo.
Feitas tais considerações é preciso se fazer uma linha nada tênue entre os cidadãos
brasileiros que possuem “saúde suplementar”, que abrange (seguros e planos de saúde),
adquiridos através de planos empresariais/coletivos e individuais. Segundo dados da
Agência Nacional de Saúde (ANS)7, até março/2020, apenas 24,25% da população possui
algum tipo de plano de saúde suplementar, envolvendo assistência médica. Quando
considerados somente os de odontológica, esse percentual é de 13,37%, totalizando, assim,
37,62% em face da grande maioria da população que depende, exclusivamente, do Sistema
Único de Saúde (SUS).
Diante de tal cenário temos dois principais marcos: a saúde suplementar A.C e D.C,
e o mercado consumidor. Não é antes, nem depois de Cristo, ainda que considere um marco
tão importante, quanto para muitos ramos no âmbito securitário. Tudo porque os
beneficiários da saúde suplementar, enfrentam e enfrentarão grandes dificuldades, seja Antes
do Covid-19, ou Depois do Covid-19!

2. SAÚDE SUPLEMENTAR E O CONSUMIDOR

O primeiro marco inicia com o mercado da saúde suplementar, em linhas superficiais,


abastecida de dados através de uma pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos de Saúde
Suplementar (IESS), no ano de 2019, com o crescimento do mercado de trabalho, entre
planos individuais e coletivos, com um crescimento maior para este último. Nesse período,
as operadoras de saúde suplementar vinham tendo um crescimento econômico com planos
médico-hospitalares, sendo vinculados 71,2 mil novos contratos. Em alguns Estados, como
o de Minas Gerais, houve um impulso ainda maior: 61,7 mil novos contratos. Uma realidade
bem diferente no Rio Grande do Sul, que teve uma queda considerável de beneficiários,
totalizando 57,9 mil contratos rompidos8.
Este quadro, no entanto, mudou drasticamente, pois o aparecimento do coronavírus
(Covid-19) atingiu em cheio às operadoras de saúde, causando impactos financeiros

7
Disponível em< http://www.ans.gov.br/> acesso em 26 de agosto de 2020.
8
Disponível em<https://www.iess.org.br/?p=imprensa&all=true&categoria=noticia> acesso em 26 de agosto
de 2020.
486

negativos, devido a inadimplência pela perda econômica dos usuários (desemprego), ou


fechamento de estabelecimentos do mercado empresarial. Além disso, o alto custo de
internações pode comprometer a liquidez do sistema e levar a insolvência de operadoras de
saúde suplementar.
Ainda neste aspecto, a PL.1542/20209, aprovada no Senado, congelando por 120 dias
o reajuste de planos às operadoras, ajuda a agravar ou não o quadro, depende do lado que
você está: operadora ou consumidor? Há de pesar também a suspensão de cirurgias eletivas,
mas, fluxo de caixa e folego até quando? Se, consideradas as contas hospitalares das
internações, clínicas e laboratórios, agravadas pela redução do número de clientes, e
renegociações de empresas, e as cirurgias que estão suspensas como ficaria?
Outra situação, não menos importante, são os investimentos realizados pelas
operadoras em profissionais da saúde e leitos hospitalares na possibilidade de o SUS saturar.
No mercado, segundo a Ibovespa, algumas operadoras no período da pandemia viram suas
ações despencarem pela aversão dos investidores ao forte risco.
O segundo aspecto que trago à reflexão está relacionado aos consumidores: “o
Marisco entre o Mar e a Pedra”; de um lado a pandemia e de outro as operadoras. Segundo
a PL1542/20, as operadoras não poderão fazer reajustes por 120 dias, mas, como ficarão os
inadimplementos dos planos?
Os consumidores inadimplentes terão seus contratos rescindidos por inadimplência
após 60 dias? A Agência Nacional de Saúde (ANS) tenta buscar soluções, dentre elas a
propositura de um termo de compromisso, de liberar recursos (R$ 15 bilhões do fundo de
reserva do setor) pelo governo federal. Em contrapartida, as operadoras médico-hospitalares
deverão dar assistência aos inadimplentes, tanto no coletivo, quanto no individual até o final
de julho/2020. Mas, apenas nove, das 721 operadoras existentes, aderiram ao termo.
Em defesa das operadoras que não aderiram ao compromisso, a Federação Nacional
de Saúde Suplementar (FenaSaúde) diz que colocaria em risco as operadoras, devido aos
altos gastos com a pandemia: ‘Atualmente, 85% do que é recebido pelas operadoras na forma
de mensalidades se destina ao pagamento de prestadores como hospitais, laboratórios,
médicos e enfermeiros. Um aumento da inadimplência poderia ter como consequência

9
Disponível em< https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/> acesso em 26 de agosto de 2020.
487

imediata o enfraquecimento do sistema no momento em que o setor mais precisa ter


vigor"(Vera Valente – Diretora Executiva)10.

No concernente à defesa dos direitos do consumidor, põe-se em pauta, através do


Procon, que deve haver a comunicação prévia das operadoras em caso de rescisão contratual,
e o convite ao diálogo. A ponderação diante da gravidade do Covid-19, elucidando a imagem
da operadora de saúde perante o mercado, e que esta, ao negar coberturas, tenha sua
identidade afetada, deverá ser considerada, pois talvez não se possa mensurar os impactos
negativos que serão alcançados.
Diante de tanta insegurança enfrentada pela pandemia, tanto pelas operadoras, quanto
pelos consumidores, encontrar equilíbrio seria o mundo ideal, que não existe, infelizmente!
Os anseios e o medo da morte, enfrentados por quem tem a informação do teste positivo do
Covid-19, ou de algum familiar, gera desespero, porque tem que contar com o pagamento
do plano/seguro em dia, em não haver reajuste, estar empregado e ser remunerado, ou no
caso da empresa, em funcionamento e rentabilizando para cumprir com os compromissos
financeiros.
Os aspectos do equilíbrio financeiro se fazem necessários, sem dúvida, inclusive ao
próprio sistema de saúde suplementar, mas, a que custo? Imagem no mercado? Será que
teremos empresas com saúde financeira para continuar adimplindo os planos/seguros aos
seus funcionários? Será que teremos clientes suficientes para sustentar o sistema?
E, como ficam os aspectos constitucionais, de direitos e garantias fundamentais, de
direito à vida, à saúde, à dignidade da pessoa humana, e a livre iniciativa como fundamento
da ordem econômica?
A questão preocupante a ser imposta é de que se não houver um diálogo e acordo de
maneira administrativa, as decisões recairão sobre o poder judiciário, criando colapso, pois,
uma vez que direitos fundamentais entram em colisão, apenas o “poder do juiz”, lastreado
em provas, e análise ao caso em concreto, deverá sopesar princípios constitucionais, e aplicar
o mais adequado.

10
Disponível em< http://fenasaude.org.br/noticias/somos-parte-da-batalha-contra-a-covid-19.html> acesso em
26 de agosto de 2020.
488

3. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE SUPLEMENTAR E O CONSUMIDOR

Sem pretensão de aprofundar o assunto de técnica jurídica, mas, apenas permear


superficialmente com intuito de aflorar a reflexão à preocupação e à gravidade da extensão
de uma pandemia. Durante e depois de seu término, grandes são e serão os impactos de
saldos de vítimas e de cunho econômico.
Mas não poderia refutar de fazer breves apontamentos considerados importantes para
os operadores do direito, para tanto, menciono o renomado professor Ingo Sarlet, referência
e conhecedor de Constituições Internacionais, e profundamente, da nossa Constituição
Federal/88. Para Ingo Wolfgang Sarlet, confere ao aspecto espacial da norma, o primeiro
fator preponderante de distinção:
o termo “direitos fundamentais”, se aplica para aqueles direitos do ser humano
reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de
determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos guardaria relação
com os documentos de direito internacional11.

Alguns doutrinadores, ao se debruçarem a muito estudo, tem seu posicionamento, no


sentido de aplicabilidade da técnica, imediata e a relatividade de direitos fundamentais, e
“análise do tensionamento, que existem entre os princípios”, cabendo ao juiz no caso
concreto sopesar o que prevalecerá.
Cabe destacar, alguns posicionamentos do STF, a respeito da possibilidade de
limitação dos direitos fundamentais, afirmando que no sistema constitucional brasileiro,
direitos ou garantias não são de caráter absoluto.
A exemplo disso, o ministro Alexandre de Morais diz que “os direitos e garantias
fundamentais consagrados pela Constituição Federal não são ilimitados, uma vez que
encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna
(princípio da relatividade)12.
Para o Ministro Luís Roberto Barroso: “não existe hierarquia em abstrato entre
princípios, devendo a precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso
concreto”13.

11
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006.pág. 53
12
MORAIS, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2003.Pág.25.
13
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p.329.
489

Ainda, menciona Barroso:


Os limites dos direitos constitucionais, quando não constarem diretamente da
Constituição, são demarcados em abstrato pelo legislador ou em concreto pelo juiz
constitucional. Daí existir a necessidade de protegê-los contra a abusividade de
leis restritivas, bem como de fornecer parâmetros ao intérprete judicial 14.

Na doutrina de Ronald Dworkin: “as normas constitucionais são potencialmente


contraditórias, já que refletem uma diversidade ideológica típica de qualquer Estado
democrático de Direito. Não é de se estranhar, dessa forma, que elas frequentemente, no
momento aplicativo, entrem em rota de colisão”15.
É possível concluir, que o operador do direito deve ter a compreensão sobre a colisão
de direitos fundamentais por serem complexas, e a solução a ser imposta deverá percorrer as
informações do caso concreto e dos argumentos técnicos-jurídicos fornecidos pelas partes
envolvidas no processo, cabendo ao juiz evidenciar a necessidade de ponderação das
garantias constitucionais para a solução do conflito.
Cabe ainda, destacar que é de suma importância a especialidade e especificidade da
matéria de saúde suplementar, que é técnica e merece estudo, visto que, ao ser levado a
demanda ao poder judiciário, que deverá estar atento em seus julgamentos, principalmente
no aspecto do impacto econômico, pois o juiz, ao julgar estes casos de contratos de massa,
indicará uma tendência que, poderá ou não, colapsar o sistema como um todo, se essa decisão
for estendida aos demais contratos similares. Por isso, tem que haver um equilíbrio por parte
do magistrado ao fazer a análise econômica do direito e a importância de estar atento às
consequências no equilíbrio do sistema como um todo16.

CONCLUSÃO

A vida cotidiana não será mais a mesma, enfrentaremos verdadeiras “guerras”, seja
em função de mais desigualdades sociais, seja pela recessão do fechamento de empresas,
desemprego, fome. O Covid-19 chegou rapidamente sem avisar no Brasil, os cidadãos que
não possuem saúde suplementar, extremamente vulneráveis em vários aspectos, em relação
a estrutura de saúde pública e açoitados pela desinformação.

14
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p.332.
15
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio: tradução Luís Carlos Borges – São Paulo: Martins Fontes,
2000 (Justiça e Direito) Título Original: A matter of principle.pág.32.
490

Por outro lado, e quanto aos “mais favorecidos, que representam 37,62% da
população”, que possuem saúde suplementar, mas, pairando a dúvida de até quando poderão
usufruir os benefícios em virtude da perda econômico-financeira?!
E, ainda as operadoras dos planos/seguros saúde, que tentam manter sua “saúde
financeira”, pressionadas política e socialmente, diante do impedimento de realizar reajustes;
a ANS recomendando renegociações de contratos e a adição de procedimentos, que devam
ser cobertos pelas operadoras. Do outro lado, o Procon, em defesa dos consumidores,
fornecendo orientações, dentre elas, a não suspensão ou cancelamento da saúde suplementar
em razão da inadimplência no período da pandemia.
Com certeza existe um marco: “Antes do Covid-19 e Depois do Covid-19”, de
grandes impactos na vida das pessoas, em vários aspectos. Seja pelo saldo de vidas, ou a
falta delas, seja pela ordem econômica, e aqui não importa de que lado você está!

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos


fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio: tradução Luís Carlos Borges – São Paulo:
Martins Fontes, 2000 (Justiça e Direito) Título Original: A matter of principle.

MORAIS, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2003.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006.
491

TUTELAS PROVISÓRIAS SOB A LUZ DO PROCESSO JUSTO

Jaqueline Wichineski dos Santos1

“À medida que pudermos absorver os influxos do constitucionalismo moderno,


compreenderemos a necessidade da tutela preventiva, para responder às exigências
impostas pelo Direito, neste início do novo milênio. Pensemos nos direitos fundamentais e
na proteção ao meio ambiente. Para eles a tutela repressiva sempre será insatisfatória”.
(Ovídio Baptista da Silva)

RESUMO: O presente estudo, tem como objetivo, trazer reflexões sobre as Tutelas
Provisórias sejam estas de Urgência ou Evidência à luz do processo justo. A prática forense
nos traz desafios, pois, lidamos com a defesa de direitos e preservação de garantias
constitucionais, diante de um cenário caótico de demandas judiciais, e sem estrutura para
suportar. Aspectos de necessidades e anseios de uma sociedade, a utilização da técnica
jurídica e a enorme demanda entram em confronto, sem por vezes trazer a efetividade mais
justa, a que se espera o cidadão.

Palavras-chaves: Tutela provisória. Tutela de urgência. Tutela de evidência. Processo justo.


Garantias constitucionais. Cognição sumária e exauriente.

INTRODUÇÃO

O artigo permeia por aspectos da evolução histórica do processo civil na Europa, e no Brasil,
instaurado por fortes influências de outros países, e suas várias posições doutrinárias. E
convida a uma reflexão para o cenário que o legislador, tenta adequar, conceitos e práticas
de outras civilizações, como a Europeia, moderna, por exemplo, num país como o Brasil,
que passou por regime de ditadura, e que teve como marco inicial a Constituição Federal de
1988, tendo como sustentação um estado democrático de direito, e a preservação a direitos
e garantias constitucionais. Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, houve a
introdução de garantias constitucionais para dentro do código. Desta forma, não se podendo
olvidar de abordar nesta sistemática as diferenças entre direito fundamental ao processo justo

1
Advogada, OAB/RS101365, Pós-Graduada em Processo Civil, Direito Civil, e Direito dos Seguros, pela
Fundação Escola Superior do Ministério Público – FMP, Professora de Pós-Graduação, Membro da Associação
Internacional (AIDA/BRASIL) de Direito dos Seguros, e Membro do GT de Processo Civil ambos da
(AIDA/BRASIL), Membro da Comissão Especial de Direito dos Seguros OAB/RS (CESPC), Membro da
Comissão da Mulher Advogada OAB/RS.E-mail:jws.jacke@terra.com.br
492

do processo legal. E, de como enfrentar a técnica processual e tutela dos direitos e suas
diferenças, abordando aspectos polêmicos como o do direito fundamental ao processo justo.
Concluindo, com a problemática das eficácias das decisões em se tratando de processo de
cognição sumária e exauriente.

1. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PROCESSO CIVIL

Na evolução histórica do processo civil Romano destacam-se duas etapas: a


primeira, tendo sua origem até o século III d. C., chamada “ordo iudiciorum privatorum”, e
a segunda do século III d. C. até o final, denominada, extraordinária “cognitio”.
Estas etapas compreendiam a divisão de duas fases procedimentais; uma de natureza
privada, e de vontade das partes e a outra de natureza pública, de prerrogativa estatal,
intervendo diretamente para dirimir conflitos.
Neste contexto o estado através de sua função jurisdicional assumiu o lugar de
árbitros privados, e o procedimento, forma escrita contendo o pedido do autor, a defesa do
réu, a instrução, a sentença e sua execução, admitindo também o recurso.
Mas, com a queda do Império Romano e a dominação do povo germânico também
chamado de “bárbaros”, houve a princípio um retrocesso na evolução do direito romano em
virtude dos costumes e do direito rudimentar trazido por eles.
Abrindo espaço a compreensão que havia “Juízes de Deus”, ou seja, a divindade fazia
o julgamento, perdurando até a idade média, paralelamente a Igreja Católica preservava as
instituições de direito romano, em especial a criação do processo sumário, eliminando
algumas formalidades, mas preservando a tortura como obtenção de prova.
Anos depois, houve expansão pela Europa e alguns métodos foram aperfeiçoados,
iniciando um outro marco, conhecida como a fase científica.
Foi no século XIX, que o direito processual civil adquiriu consciência cientifica e
passou a ser concebido como uma disciplina autônoma, com novas concepções sobre direito
de ação e sobre relação processual possibilitando a afirmação da autonomia do direito
processual em relação ao direito material.
A forte influência da doutrina italiana, trouxe a condução de processos penais e civis,
a debates orais, tornando mais célere, resolvendo conflitos com audiência una, como por
exemplo.
Tendo como base doutrinária concentrada na Constituição Italiana, no seu artigo 111,
“in verbis”:
493

Artigo 111: Jurisdição é implementado através do devido processo regulado por


lei. Cada processo tem lugar no debate entre as partes, em pé de igualdade, perante
o tribunal independente e imparcial. A lei prevê a duração razoável. Em um
julgamento criminal, a lei prevê que uma pessoa acusada de um ato delituoso, no
menor tempo possível, de forma confidencial informado sobre a natureza e a causa
da acusação contra ele, tem o tempo e as condições necessárias para preparar a sua
defesa, tem o poder, nos tribunais, para examinar ou para examinarem as pessoas
que fazem declarações contra ele, para obter a convocação e o interrogatório de
pessoas em sua defesa nas mesmas condições Ministério Público e à aquisição de
qualquer outra prova a seu favor, de ser assistido interprete, se não compreender
ou não falar a língua usada no processo.
O processo penal é regido pelo princípio do contraditório na formação da prova.
A culpabilidade do imputado não pode ser provada com base em declarações dadas
por quem, por livre escolha sempre se subtraiu voluntariamente ao interrogatório
por parte do imputado ou seu defensor (...).2

O direito processual civil, ganhou consistência e densidade científica a partir do


século passado, mais precisamente no final do século XIX, na Alemanha, sob forte influência
do direito romano clássico, seguidos por Chiovenda na Itália, passando a ser disciplina
autônoma dentro da ciência jurídica, construído através de processualista alemães, dentre
estes, Oscar Bulow publica, neste período, sua obra clássica ‘Die Lehre von den
Processeinreden und die Processvoraussetzungen (1868)`.
A partir desta obra, trouxe um marco significativo em seu estudo, embasava a
separação do direito processual do direito material, considerando que o processo poderia
existir sem o direito material, e vice-versa, desde que atendesse requisitos próprios de cada
uma dessas relações jurídicas (os chamados pressupostos processuais)3.
Todavia, dissociar o processo do direito material, comprometeu uma das finalidades
do processo de servir o direito material com justiça, ou seja, não havia acompanhamento do
processo com os fatos sociais, o que culminou em resgatar a finalidade do processo de
realizar o direito material.
Sob esta perspectiva de a jurisdição ser o centro da teoria do processo, também não
atendeu a sociedade, pois reduzia o papel do juiz no processo como declarador do direito,
ignorando o papel reconstrutor da ordem jurídica.
Apenas, na idade contemporânea, foi possível haver um movimento cultural
denominado formalismo-valorativo, também chamado de Neoprocessualismo, referido pelo

2
Disponívelem<http://www.educazioneadulti.brescia.it/certifica/materiali/6.Documenti_di_riferimento/La%2
0Costituzione%20in%2015%20lingue%20(a%20cura%20della%20Provincia%20di%20Milano)/Costituzion
eItaliana-Portoghese.pdf, Roma, 27 de dezembro de 1947> acesso em 26 de agosto de 2020.
3
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil. 2.ed.rev. e atual. São
Paulo: Atlas, 2012.vol.1, p.15-1.
494

jurista Daniel Mitidiero4, de que desta forma a “concretizar valores constitucionais no tecido
processual”5.
A história do Direito Processual brasileiro foi fortemente influenciada, por juristas
Europeus, tais como: Adolph Wach, Giuseppe Chiovenda, Piero Calamandrei e Enrico
Tullio Liebman, este último, desembarcou no Brasil na década de 1940, e influenciou todo
o estudo do processo civil, ao qual o jurista Alfredo Buzaid, dizia ser discípulo.
O jurista Alfredo Buzaid, foi convidado pelo Ministro da Justiça Dr. Oscar Pedroso
Horta, para elaborar o anteprojeto do código de processo civil, que após ser aprovado no
Congresso foi sancionada a Lei 5869/73.
Importante, que a construção do código de processo civil à época, foi lastreado, em
estudos modernos de juristas europeus, tendo destaque o processo de conhecimento ao qual
Chiovenda se dedicou; já Calamandrei ao processo cautelar; e Enrico Tullio Liebman, ao
processo de execução, que através desta união surgiu autonomia dos processos de
conhecimento, de execução e cautelar, propondo um padrão para tutela dos direitos.
Por outro lado, o direito material, o Código Civil Brasileiro de 1916, sob forte
influência do Código de Napoleão, de 1804, que era uma monarquia absolutista, muito
liberal, em que as ideias das obrigações de fazer ou não fazer, eram baseadas em “não precisa
fazer o que não quer”, dá os primeiros passos em busca de tutela específica e adequada ao
direito material.
Após a revolução francesa, institucionalizou o Estado liberal, que segundo
Marinoni, “in verbis”:
O Estado liberal clássico se preocupava com o tratamento uniforme de suas
demandas, visando à igualdade formal que foi inspiradora do ordenamento
jurídico responsável por manter a liberdade e o bom funcionamento do mercado.
Ao Estado caberia apenas assegurar a liberdade de modo que a este é vedado
intervir através de tratamento diferenciado a alguma parte no processo. Esta
autonomia que o Estado possui é uma autonomia negativa, ou seja, a justiça possui

4
MITIDIERO, Daniel. Elementos para uma teoria contemporânea do processo civil brasileiro. Porto
Alegre:Livraria do Advogado, 2005.p.19.
5
Fredie Didier, em seu Curso de direito processual civil, denomina essa fase de Neoprocessualismo e faz a
ressalva: Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a liderança de Carlos Alvaro de Oliveira,
costuma-se denominar esta fase do desenvolvimento do direito processual de formalismo-valorativo,
exatamente para destacar a importância que se deve dar aos valores constitucionalmente protegidos na pauta
de direitos fundamentais na construção e aplicação do formalismo processual. As premissas desse pensamento
são exatamente as mesmas do chamado Neoprocessualismo (DIDIER JUNIOR, Fredie Souza. Curso de direito
processual civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento.12.ed.rev.ampl. e atual. Salvador:
JusPodivm, 2010.vol.1, p.29.
495

o dever de não fazer algo a favor de alguma parte, deve tratar todos como “homens
sem rosto.6

Diante deste modelo de Estado liberal em que leis mais rígidas com procedimento
único tratava tudo e todos da mesma forma, surgiu um movimento impulsionado por juristas
que perceberam que o processo não pode ser absolutamente desmembrado do direito
material a ser julgado.
Com base em tais preceitos o legislador, trouxe a tentativa de incultir no processo
civil, uma prestação jurisdicional segura, observando o contraditório, a ampla defesa, o juiz
natural, a decisão motivada e demais proteções previstas na nossa Constituição Federal de
1988, somadas as demais legislações.
Mas, como introduzir algo tão moderno, num país advindo da ditadura, e ter
abrangência de direitos individuais e coletivos?! A opressão de direitos ceifados,
contrapondo com princípios e garantias constitucionais modernos?
Diversos conflitos surgiram, e que ainda perduram, há o surgimento de uma
verdadeira tensão entre a segurança jurídica e celeridade, e a tentativa do equilíbrio entre
ambas, ou seja, sem retirar uma ou outra.
Tanto que, o surgimento do Código de defesa do consumidor Lei 8.078/90, e a
importação de parte da legislação italiana, com fulcro na Constituição Italiana, no seu artigo
111, em que fala a respeito de um processo justo, ou seja, “para o direito ser justo o processo
tem que ter mecanismo para entregar o que se pede e devido e não outra coisa em
substituição, uma tutela específica, adequada ao direito material7.
E, dentro deste cenário, conflituoso, o legislador infraconstitucional se deu conta de
que o objetivo da jurisdição não é apenas para realizar a vontade concreta da lei, mas a de
prestar a tutela ao direito material envolvido em crise de efetividade. Pois, quanto maior for
a segurança, maior serão os prazos, recursos, atos processuais, e por consequência menor
será a celeridade8.
Após a Lei n.10.352/2001, alterou o código processual nas disciplinas de recursos,
reexame necessário, e o processo de conhecimento, e com advindo da Lei n.10.444/02,
alterou significativamente o processo de conhecimento e o de execução. Na visão de

6
MARINONI, Luiz. ARENHART, Sérgio. Curso de Processo Civil – Procedimentos Especiais Revista dos
Tribunais, 2013, v. 5. p. 53/69.
7
TANGER JARDIM, Guilherme, comentários aula de Pós de Direito Processual Civil, FMP, 1° semestre,2018.
8
TANGER JARDIM, Guilherme, comentários aula de Pós de Direito Processual Civil, FMP, 1° semestre,2018.
496

Dinamarco “reforma da reforma”, o de oferecer ao jurisdicionado um resultado processual


efetivo, célere e justo.
E, como os anseios da sociedade surgem para que o direito se adeque a ela, e na
tentativa de efetividade de direitos e garantias constitucionais, surge mesmo com o Código
de processo civil de 2015, chamado de “Código Fux”, porque o Ministro Luiz Fux,
apresentou as exposições de motivos: Para Fux (2010, p. 12), o principal objetivo da
comissão era o de “resgatar a crença no judiciário e tornar realidade a promessa
constitucional de uma justiça pronta e célere”9.
Diante desta ousada proposta do Ministro Fux, que resultou na Lei n.13.105/2015,
foi possível avençar que houve a constitucionalização do processo civil, pois, é possível
numa análise dos artigos 1° ao 11° é nítida a presença de direitos e garantias constitucionais.
A grande mudança previu a extinção do Livro de Cautelares e introduziu na parte
geral “Tutela de Urgência e Tutela da Evidencia”, que também abrange as ações cautelares,
para Marinoni: “esclarece que a condensação desta matéria se deve ao fato de que o projeto
reconheceu que a tutela antecipatória fundada no perigo e a tutela cautelar são espécies do
gênero “tutela de urgência”.
Com a significativa mudança, causa desafio ao poder judiciário, para maior
efetividade deve responder mais rápido, sob receio de lesão a direito, dada a ineficiência de
uma decisão tardia.
E, que por regra, quanto mais amplo e exaurido for o processo de cognição, maior
será o grau de segurança e confiança jurídica nas decisões emanadas pelo julgador. Mas, o
processo necessita ter um tempo de duração razoável devendo preservar a eficácia a
prestação jurisdicional, com o intuito de manter uma ordem jurídica justa a sociedade para
qual é direcionada a tutela jurisdicional. “Nenhuma lesão ou ameaça a direito será subtraída
à apreciação do Poder Judiciário”.10
Segundo a doutrina de Humberto Theodoro Júnior:
Na superação desse conflito consiste, a prestação jurisdicional, pouco
importando que o provimento judicial seja favorável à pretensão do
autor ou à defesa do réu. O que caracteriza a atividade jurisdicional é a
tutela ao direito daquele que, no conflito, se acha na situação de
vantagem garantida pela ordem jurídica.

9
FUX, Luiz. Exposição de motivos do código de processo civil. In. GUEDES, Jefferson Carús. et al. Código
de processo civil: comparativo entre o projeto do novo CPC e o CPC de 1973. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
10
Constituição Federal 1988, artigo 5° inciso, XXXV.
497

Tutelar os direitos, portanto, é a função da Justiça, e o processo é o


instrumento por meio do qual se alcança a efetividade dessa tutela. Uma
coisa, porém, é a tutela e outra a técnica de que serve o Poder Judiciário
para realizar, nas diversas situações litigiosas, a tutela adequada11.

Na lição do jurista e professor italiano, Giuseppe Nicolo Trocker:

A justiça realizada morosamente é sobretudo um mal social; provoca


danos econômicos (imobilizando bens e capitais), favorece a
especulação e a insolvência, acentua a discriminação entre os que tem
a possibilidade de esperar e aqueles que, esperando, tudo tem a perder.
Um processo perdura por longo tempo transforma-se também em um
cômodo instrumento de ameaça e pressão, em uma arma formidável nas
mãos dos mais fortes para ditar ao adversário as condições da
rendição.12

Na citação de Rui Barbosa: “a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça


qualificada e manifesta.13
Coaduna com este entendimento, a doutrina de Humberto Theodoro Junior, em que
diz:
No Estado Democrático de Direito, o objetivo da jurisdição não é mais visto como
apenas realizar a vontade concreta da lei, mas a de prestar a tutela ao direito
material envolvido em crise de efetividade(...)
(...) O que caracteriza a atividade jurisdicional é a tutela ao direito daquele que, no
conflito, se acha na situação de vantagem garantida pela ordem jurídica. Tutelar
os direitos, portanto, é a função da Justiça, e o processo é o instrumento por meio
do qual se alcança a efetividade dessa tutela.
Uma coisa, porém, é a tutela e outra a técnica de que se serve o Poder Judiciário
para realizar, nas diversas situações litigiosas, a tutela adequada.14

Contudo, segundo Humberto Theodoro Júnior: “o que caracteriza a atividade


jurisdicional é a tutela ao direito daquele que, no conflito, se acha na situação de vantagem
garantida pela ordem jurídica. Tutelar os direitos, portanto, é a função da Justiça, e o
processo é o instrumento por meio do qual se alcança a efetividade dessa tutela”15.

11
THEODORO JUNIOR, Humberto, Curso de Direito Processual Civil, Teoria Geral do Direito Processual
Civil, Processo de Conhecimento e Procedimento comum- vol. I, 57.ed.rev., atual e ampl. RJ:Forense, 2016.
pg. 609.
12
TROCKER NICOLO, Giuseppe, Processo Civile e Constituzione, Milano: Giuffrè, 1974.
13
RUI, Barbosa. Oração aos Mocos, 1921. p. 276/277.
14
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria do direito processual civil,
processo de conhecimento e procedimento comum – vol.I/Humberto Theodoro Júnior.57.ed.rev., atual e ampl.-
Rio de Janeiro: Forense,2016. Pág. 24.
15
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria do direito processual civil,
processo de conhecimento e procedimento comum – vol.I/Humberto Theodoro Júnior.57.ed.rev., atual e ampl.-
Rio de Janeiro: Forense,2016. Pág. 32.
498

E, como tutelar direitos e garantias constitucionais, diante de uma jurisdição “justa”


e adequada, levando em consideração a judicialização excessiva que paira em particular no
Estado do Rio Grande do Sul?
Talvez análise de técnica processual e tutela dos direitos, sejam possíveis de darem
algumas respostas, o que pontuaremos, a seguir.

2. TÉCNICA PROCESSUAL E TUTELA DOS DIREITOS

Se faz necessário analisar que a técnica processual se diferencia da técnica dos


direitos: a primeira o poder judiciário realiza nas diversas situações litigiosas, a segunda há
a tentativa pelo juiz de entrega da tutela adequada.
No âmbito de situações concretas em que a duração do processo e a espera de um
resultado pelas partes, que geralmente geram prejuízos, para uma delas, comprometendo a
efetividade da tutela a cargo do juízo.
Permeando por este caminho, é possível detectar um verdadeiro desiquilíbrio entre
as partes, uma tendo o ônus do prejuízo e outra tendo maior vantagem, e consequentemente
ganhando no percurso do tempo a seu favor.
Desta forma, se criam técnicas de sumarização, para que este processo seja melhor
distribuído, e não mais recaia sobre aquele que no momento aparenta ser merecedor da
tutela16.
Na lição de Humberto Theodoro Junior: “fala-se em tutelas diferenciadas,
comparativamente às tutelas comuns. Enquanto estas, em seus diferentes feitios,
caracterizam-se sempre pela definitividade da solução dada ao conflito jurídico, as
diferenciadas apresentam-se, invariavelmente, como meios de regulação provisória da crise
de direito em que se acham envolvidos os litigantes”.
Ainda, para Humberto Theodoro Junior, “o manejo dessas técnicas redunda nas
tradicionais medidas cautelares, que se limitam a conservar bens ou direitos, cuja
preservação se torna indispensável à boa e efetiva prestação final, na justa composição do
litígio, por isso, se qualificam tais medidas como conservativas. Dessas técnicas também
podem surgir provimentos que antecipam provisoriamente resultados materiais do direito

16
TANGER JARDIM, Guilherme, comentários aula de Pós de Direito Processual Civil, FMP, 1°
semestre,2018.
499

disputado em juízo. Motivo pelo qual as medidas provisórias que ostentem tal característica
se denominam medidas satisfativas”.
Numa visão mais abrangente os doutrinadores, Marinoni, Arenhart e Mitidiero,
abordam tal tema como: “A tutela dos direitos no campo jurisdicional é prestada mediante o
emprego de diversas técnicas processuais. Esses meios são pensados pelo legislador de modo
a, sem perder de vista as necessidades de proteção do direito material, respeitar e preservar
também os direitos fundamentais processuais das partes e de terceiros, vale dizer, o direito
ao processo justo que a Constituição a todos assegura em nossa ordem jurídica (art.5°, LIV,
da CF)”17.
A tutela dos direitos pode ser prestada pelo legislador, pelo administrador e pelo
juiz. A tutela jurisdicional dos direitos, portanto, é apenas uma das formas pelas
quais a tutela dos direitos pode ser prestada: “as normas de direito material que
respondem ao dever de proteção do Estado aos direitos fundamentais – normas
que protegem o consumidor e o meio ambiente por exemplo- evidentemente
prestam tutela – ou proteção – a esses direitos. É correto dizer, assim, que a mais
básica forma de tutela dos direitos é constituída pela própria norma de direito
material.
A atividade administrativa – nessa mesma linha – também pode contribuir para a
prestação de tutela aos direitos. A tutela jurisdicional, portanto, deve ser
compreendida como uma modalidade de tutela dos direitos. Ou melhor, a tutela
jurisdicional e as tutelas prestadas pela norma de direito material e pela
administração constituem espécies do gênero tutela dos direitos. Entretanto, a
tutela jurisdicional pode, ou não, prestar a tutela do direito. Isso significa que a
tutela jurisdicional engloba sentença de procedência (que presta tutela do direito)
e a sentença de improcedência (que não presta a tutela do direito, embora constitua
a resposta ao dever do Estado de prestar tutela jurisdicional). Daí se percebe que
a decisão interlocutória e a sentença constituem apenas técnicas para a prestação
da tutela do direito. Ou seja, resposta ou tutela jurisdicional há sempre, mas tutela
do direito apenas no caso em que a técnica processual reconhecer o direito, isto é,
quando a sentença for de procedência”. (Luiz Guilherme Marinoni, técnica
processual e tutela dos direitos, p.145-146). A tutela dos direitos incide ainda tanto
sobre o direito material como sobre o direito processual. Quando o legislador
densificou o direito fundamental à proteção do consumidor promulgou um Código
de defesa do Consumidor, ele prestou tutela legislativa ao direito. Ainda, quando
o legislador promulgou o Código de Processo Civil, ele pretendeu justamente
adimplir com o seu dever de dar tutela ao direito fundamental ao processo justo,
e, muito especialmente, o direito fundamental à tutela jurisdicional adequada,
efetiva e tempestiva que é dele inseparável. 18

17
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Sobre
os direitos fundamentais processuais que integram o direito ao processo justo Curso de Processo Civil, vol. I,
p. 703 e ss,2007, Editora Revista dos Tribunais: São Paulo.
18
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Sobre
os direitos fundamentais processuais que integram o direito ao processo justo Curso de Processo Civil, vol. I,
p. 145/146. 2007. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo.
500

O que se pode extrair, de determinados posicionamentos, é de que foi percebido pelo


legislador infraconstitucional a técnica de sumarização, em que se divide em formal, ou seja,
procedimentos formais do processo, elencados no código de processo civil como por
exemplo nos artigos 355 e 332, e a técnica material, ou seja, a cognição judicial, o
conhecimento do juiz, as questões trazidas pelas partes ao processo, aferida e mensurada.
Significa dizer que existe uma linha tênue que é o equilíbrio entre celeridade e
segurança jurídica que deve ser auferida, agregadas a tais técnicas, equilibrando o princípio
da razoabilidade processual adequada, efetiva e tempestiva, sejam interesses estritamente
processuais, respeitando direitos fundamentais, ou interesses materiais.
Entretanto, o juiz tem como função através da jurisdição tutelar direitos, mas, se esta
tutela estabelecer de forma tempestiva, através de um prazo desarrazoado, o direito não será
protegido ou ainda protegido de forma indevida. A dilação exagerada pode acontecer quando
os procedimentos especiais não são adotados, ou quando a técnica escolhida é inidônea à
conferir tempestividade à tutela jurisdicional. Assim, atos comissivos ou omissivos que
determinam a utilização de técnicas processuais equivocadas dão margem a dilação
injustificada do processo.
Dito isto, insurge a dúvida de que existe direito fundamental ao processo justo? É o
que se pretende discorrer no próximo tópico.

2.1 DIREITO FUNDAMENTAL AO PROCESSO JUSTO

Referida tal situação, se busca na doutrina, posicionamentos sobre o assunto, em que


cabe pontuar o entendimento de Humberto Ávila: “O procedimento em que encarnado o
direito ao processo justo, assim, é uma resultante da harmonização desses vários interesses
que confluem no processo. E, porque todos esses valores têm assento constitucional direto
ou indireto, a colisão entre esses interesses implica de um modo geral considerações
relacionadas à colisão de direitos fundamentais e a necessidade da respectiva concordância
prática, harmonização ou eventual ponderação”.19
Coaduna com este entendimento os doutrinadores, Marinoni, Arenhart e Mitidiero:
“Segue daí que toda limitação a um direito fundamental – e, mais do que isso, só se legitima
alguma limitação a um direito fundamental processual se – e apenas no exato limite em que

19
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, p. 158 e ss.2014.Ed. Malheiros – São Paulo.
501

– essa atenda justificadamente a outro direito também fundamental. Assim, por exemplo,
só se admitem técnicas processuais que sacrifiquem a efetividade na prestação da tutela
jurisdicional quando isso tiver por intuito a preservação de direitos fundamentais da parte
contrária, como a observância do direito de defesa ou do direito ao contraditório.
Logo, o perfil trazido pelo direito processual civil é instrumentalizar o procedimento
destinado a tutela dos direitos, adequando as necessidades concretas da pretensão material a
ser protegida em juízo.
Assim, neste sentido, os mesmos doutrinadores emanam que:

Isso quer dizer que existe uma prioridade na consideração do direito material em
relação ao direito processual. Se o processo civil é um instrumento para tutela do
direito, então a primeira tarefa de quem quer que esteja preocupado com o
adequado funcionamento da justiça civil está na apropriada identificação das
necessidades da situação substancial que deve ser tutelada em juízo. Nessa
perspectiva, a idoneidade do processo civil como meio efetivo para tutela dos
direitos depende de um discurso preocupado com a tutela dos direitos – isto é, com
o direito material.Logicamente, a convergência das pretensões a serem tuteladas e
desses outros interesses processuais e materiais pode exigir diferentes soluções do
legislador e do juiz. Em certos casos, também será possível que mais uma técnica
processual seja idônea para atender a todos esses interesses, o que implica dizer
que nem sempre haverá apenas uma única resposta possível para atender às
necessidades com que trabalha o direito processual. Vale dizer: a consideração da
tutela dos direitos pode levar a diferentes opções em termos de técnica processual
para adequada estruturação do processo civil.20

Referidas as considerações de renomados doutrinadores, cediço o conhecimento e


estudo pertinentes ao tema, podemos detectar, que existe constante mudança inerente ao
direito atuante ao caso concreto, que: em determinados casos necessitam de maior dilação
probatória, e em outros, o uso da técnica antecipatória para adequar a distribuição do ônus
do tempo no processo como por exemplo, em que não é possível tanto ao legislador ou a
jurisdição a discricionariedade para escolha do perfil adequado para a tutela do direito.
De outra banda, há casos em que o legislador poderá dar proteção mais facilitada ou
menos facilitada a certas situações, como por exemplo, a técnica de execução, procedimento
monitório ou com a cognição parcial das ações possessórias.
Ademais, Ovídio Baptista da Silva mencionou que: “A ideia de processo se remete
logicamente à uma situação dinâmica e progressiva, com o que por si só repele o conceito

20
MARINONI, Luiz Guilherme, Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento
comum, volume 2/Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. -3 ed.rev., atual. E ampl. -São Paulo:Editora Revista
dos Tribunais, 2017, p.44/45.
502

de instantaneidade”.21Logicamente, quanto maior a resposta estatal a violações ou ameaças


a direitos, mais distante ela tende a ser das necessidades do interesse objeto da proteção e
maior o dano marginal que a parte que tem razão experimenta pelo simples fato de ter
recorrido ao processo para obtenção da tutela do direito. Porém, há casos em que mesmo a
demora normal do processo se mostra incompatível com as necessidades de certas
situações.22
Ao legislador cabe a legalidade do procedimento e ao juiz a condução do processo,
e para ambos a tarefa nada fácil de atender as necessidades da adequada tutela jurisdicional.

Ao desempenhá-la, a técnica processual deve ser evidentemente pensada na


perspectiva da tutela dos direitos-do contrário, o processo civil corre o risco de se
converter em um procedimento desorientado e indiferente aos seus fins, em que a
sua finalidade é esfumaçada pela ausência de sua efetiva percepção23.
Portanto, em todos os casos mencionados, o processo civil tem que se adequar as
necessidades das tutelas pretendidas adequando suas especificidades do direito material
pleiteado em juízo, e encontrar equilíbrio tarefa nada fácil, se analisadas as técnicas de
cognição sumária e cognição exauriente utilizadas pelo juiz, ao que se pretende abordar no
próximo tópico.

3. COGNIÇÃO SUMÁRIA E COGNIÇÃO EXAURIENTE E O PROBLEMA DA


EFICÁCIA DAS DECISÕES

A finalidade do processo de conhecimento consiste em investigar os fatos ocorridos


no passado, desenvolvendo fases do processo, a fim de chegar a uma sentença e o juiz
aplicará a regra a ser adotada, analisando fatos e direitos, e assim, exercer a atividade
cognitiva.
Segundo Alexandre Freitas Câmara, “cognição é a técnica utilizada pelo juiz para,
através da consideração, análise e valoração das alegações e provas produzidas pelas partes,
formar juízos de valor acerca das questões suscitadas no processo, a fim de decidi-las.”24 O
objeto da cognição é o trinômio formado pelos pressupostos processuais, condições da ação
e mérito da causa.

21
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo, Curso de Processo civil, o.13, vol.I. 2004. Lúmen Iuris: Salvador.
22
MARINONI, Luiz Guilherme, Novo curso de processo civil, op.cit., -São Paulo:Editora Revista dos
Tribunais, 2017, p. 46.
23
MARINONI, Luiz Guilherme, Novo curso de processo civil, op.cit., -São Paulo:Editora Revista dos
Tribunais, 2017, p. 47.
24
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. RJ: Lúmen Iuris, p.263. 2012.
503

Na doutrina ao examinar o tema de cognição no processo civil, é possível estudar


através de ângulos de horizontalidade (extensão ou amplitude) e da verticalidade
(profundidade), ao analisar a técnica, consideremos tais aspectos, senão vejamos:
No plano horizontal, a cognição é plena ou limitada. Na cognição plena, que é regra,
há a possibilidade de o juiz conhecer todas as questões suscitadas pelas partes, ou seja, o
desenvolvimento das fases do processo: postulatória, saneadora, instrutória e sentença.
Em tal cognição limitada, não é permitido pelo legislador que o juiz conheça as
matérias em plenitude, como por exemplo é o que acontece no procedimento de
desapropriação por necessidade pública, regido pelo Decreto-lei n. 3.365, (21/06/1941). De
acordo com o artigo 20 desse diploma, “a contestação só poderá versar sobre vício do
processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por
ação direta”. Da mesma forma, é limitada a cognição nos procedimentos especiais
possessórios, pois não se pode conhecer de questão referente ao domínio formulada em
defesa do réu (artigo.1210, §2° do código civil de 2002).
No plano vertical, a regra é exauriente ou superficial, o juiz de plano, de forma
aprofundada, baseado nos fatos e provas apresentadas pela parte, cria um juízo de
probabilidade da existência do direito, um juízo de certeza. Assim, como por exemplo
poderemos utilizar da Lei de alimentos, n°5478/68, em seu artigo 4° que diz: “Ao despachar
o pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo
se o credor expressamente declarar que deles não necessita”.
A problemática que gera é nas eficácias das decisões, em exauriente, de eficácia
definitiva, e decisão sumária de eficácia não definitiva, na doutrina de Didier, Marinoni e
Mitidiero, a decisão sumária com eficácia não definitiva é provisória.
Mas, para Ovídio Baptista, “os efeitos provisórios se distinguem dos temporários: no
provisório, tem aptidão para definitivo e temporários, não definitivo, ou seja, feito para durar
algum tempo, mas não tem aptidão para ser definitivo”.

Conforme a lição de Ovídio Baptista da Silva, os termos provisório e temporário não


se confundem: “O provisório é sempre preordenado a ser “trocado” pelo definitivo que goza
de mesma natureza; exemplo simplista: um “flat” provisório em que se instala o casal a ser
substituído pela habitação definitiva (apartamento de edifício em construção). Já o
temporário é definitivo, nada virá em seu lugar (de mesma natureza), mas seus efeitos são
limitados no tempo, e predispostos à cessação – como exemplo: andaimes colocados para a
504

pintura do edifício em que residirá o casal lá ficarão o tempo necessário para a conclusão do
serviço (e feito o serviço, de lá sairão, mas nada os substituirá”.25
Nesse sentido, a tutela provisória consiste em um provimento precário que, após a
cognição exauriente, será substituído pela tutela definitiva, que a confirmará, revogará ou
modificará.
Conforme a doutrina de Fredie Didier Jr.: “É possível reconhecer a existência de três
características essenciais na tutela provisória, quais sejam: a) sumariedade da cognição; b)
precariedade; e c) inaptidão para a formação de coisa julgada”.26
Assim, a técnica de cognição sumária, autoriza o juiz no juízo de probabilidade; de
natureza precária, possui eficácia ao longo do processo, mas poderá ser revogada ou
modificada a qualquer tempo, ou substituída pelo provimento definitivo; e por fim não
possui aptidão para formar coisa julgada, pelas características anteriores expostas.

CONCLUSÃO

No âmbito do processo civil, que instrumentaliza o direito material, dificulta


qualquer conclusão, pela constante mudança das necessidades da sociedade, em que se
observa uma legislação moderna com o advento do processo civil de 2015, dentro do estado
democrático de direito com princípios legais lastreados nas garantias constitucionais.
Entre estes princípios está o da razoabilidade processual do fundamento dos direitos
das partes ao ajuizarem uma demanda, em que se espera uma duração razoável, sem dilações
excessivas ou até mesmo indevidas procrastinatórias, com resultado muito tardio a tão
esperada sentença.
Ao passo que “tutelar direitos é a função da justiça, e o processo é o instrumento por
meio do qual se alcança a efetividade dessa tutela. Mas uma coisa é a tutela e outra é a técnica
de que serve o Poder judiciário para realizar nas diversas situações litigiosas, e dar a tutela
adequada ao que buscam as partes”.
Ademais, é possível perceber que o legislador no código de processo civil confere
maior autonomia as partes, dando a estas a oportunidade de averiguar qual o procedimento
adequado.

25
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Do processo Cautelar. 3 ed. Rio de Janeiro; Forense, 2006.p.86.
26
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias,
decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela/Fredie Didier Jr., Paula Braga e Rafael
Alexandria de Oliveira – 10. Ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015.p.568.
505

Mas, ao mesmo tempo encontrar equilíbrio entre a celeridade processual e a


segurança jurídica, que se tornam antagônicas associadas ao judiciário despreparado por
muitas vezes, não apenas no que tange ao conhecimento técnico, mas aos problemas
estruturais, desde a falta de servidores até demandas excessivas, é algo desafiador ao qual os
operadores do direito enfrentam dia-a-dia.
Corrobora neste sentido a lição de Humberto Theodoro Junior, “apesar de a
legislação ser constantemente revista e editada, a insatisfação com o judiciário nunca tem
fim, este é sempre acusado de ser lento e exaustivo causando o sentimento de frustração na
população que necessita da prestação jurídica”.
Assim, segundo o referido autor seria necessário além da efetiva aplicabilidade do
código, o judiciário deveria eliminar certas etapas do processo que não decorrem de ações
positivas no ordenamento jurídico, mas, sim, da inércia, da não tomada de decisões e
omissões pelos magistrados, que muitas vezes os processos dependem de um simples
despacho, mas ficam no aguardo por meses nos cartórios das varas, em que a doutrina
denomina “etapas mortas do processo”.
Em suma, o caminho da tutela preventiva é condição de possibilidade em que a
sociedade poderá concretizar seus direitos, e efetivá-los. Mas, o direito processual civil
deverá ser visto como mero instrumento, simples técnica ou procedimento, pois, deverá se
curvar a algo muito maior que é a efetiva proteção do direito material e corporificar a
Constituição.
Com certeza é uma opção de caminho árduo, obstaculizado por paradigmas
racionalistas, que visam estruturas obsoletas, inadequadas a atender os anseios ávidos e em
constante evolução de uma sociedade, que busca no judiciário como tábua de salvação
justiça. Mas, como disse o ilustre Rui Barbosa: “a justiça atrasada não é justiça; senão
injustiça qualificada e manifesta”.

REFERENCIAS

AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e


para identificar as ações imprescritíveis. v. 193. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1961.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
506

BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo, Curso de Processo civil, o.13, vol. I,2004.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. RJ: Lúmen Iuris, 2007.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório,
ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da
tutela/Fredie Didier Jr., Paula Braga e Rafael Alexandria de Oliveira – 10. Ed. – Salvador:
Ed. Jus Podivm, 2015.

FUX, Luiz. Exposição de motivos do código de processo civil. In. GUEDES, Jefferson
Carús. et al. Código de processo civil: comparativo entre o projeto do novo CPC e o CPC de
1973. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

MARINONI, LUIZ GUILHERME, Novo curso de processo civil: tutela dos direitos
mediante procedimento comum, volume 2/Sérgio Cruz Arenhart, Daniel Mitidiero. -3
ed.rev., atual. E ampl. -São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

MARINONI, Luiz. ARENHART, Sérgio. Curso de Processo Civil – Procedimentos


Especiais Revista dos Tribunais, 2013, v. 5.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de


Processo Sobre os direitos fundamentais processuais que integram o direito ao processo justo
Curso de Processo Civil, vol. I, 5 ed.ev. atual, e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2020.

MARINONI, LUIZ GUILHERME, Novo curso de processo civil, op.cit.-São Paulo:Editora


Revista dos Tribunais, 2017

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil. 2. ed.
rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2012. vol. 1.

RUI, Barbosa, R., Oração aos Mocos: Editora Hedra Ltda, São Paulo, 2009.

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Do processo Cautelar. 3 ed. Rio de Janeiro; Forense, 2006.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria do direito


processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum – vol.I/Humberto
Theodoro Júnior.57.ed.rev., atual e ampl.- Rio de Janeiro: Forense,2016

TROCKER NICOLO, Giuseppe, Processo Civile e Constituzione, Milano: Giuffrè:


Imprenta: Milano, A. Giuffrè, 1974.
507

O CUMPRIMENTO PROVISÓRIO DA SENTENÇA E O NOVO


CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL1

Jennifer dos Santos Carvalho2


Orientadora Gisele Welsch3

Resumo: O presente estudo tem por objetivo abordar os aspectos teóricos e práticos do
procedimento do cumprimento provisório da sentença e do seu processamento mediante as
inovações do Novo Código de Processo Civil. Para atingir o objetivo almejado analisou-se
parte da doutrina processualista com a paralela análise da legislação processual nacional e
jurisprudência dos tribunais do sul do país. O cumprimento provisório da sentença consiste
na execução da sentença proferida em primeira instância, desde que esteja pendente recurso
desprovido do efeito suspensivo, esse procedimento correrá por iniciativa e responsabilidade
do exequente que deverá prestar caução suficiente e idônea, salvo exceções expressamente
previstas em lei, sendo assim, caso sobrevenha decisão que modifique ou anule a sentença
objeto da execução provisória ficará preservado a restituição das partes ao estado anterior e
se indenizará eventuais prejuízos nos mesmos autos. Conforme disposição constitucional a
prestação de uma tutela jurisdicional com razoável duração e com celeridade na sua
tramitação constituem direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição da
República Federativa do Brasil, porém a demora na prestação jurisdicional é, e sempre foi,
um dos males do processo civil brasileiro. Dessa maneira, com o intuito de mudar essa
realidade é que o cumprimento provisório da sentença deve ser aplicado, pois esse
procedimento visa preservar importantes direitos fundamentais que devem ser observados
pelo judiciário.

Palavras-chave: Comprimento provisório da sentença. Novo código de processo civil.


Celeridade processual.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo busca a visão processual civil em relação ao cumprimento


provisório da sentença que reconhece a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa, e
suas inovações em razão da vigência do Novo Código de Processo Civil.

1 Artigo científico apresentado ao curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil do Centro Universitário
Ritter dos Reis/RS como requisito parcial para obtenção do título de especialista.
2
Advogada, OAB/RS 100.611. Pós-Graduada em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Ritter dos
Reis/RS. Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis /RS. E-mail:
adv.jenniferscarvalho@gmail.com
3
Artigo elaborado sob a orientação de Gisele Welsch, Advogada, OAB/RS 66.087, Mestre e Doutora em Teoria
da Jurisdição e Processo pela Pontifícia Universidade Católica/RS, Pós-Doutora pela Universidade de
Heidelberg - Alemanha.
508

A motivação do presente estudo surgiu em decorrência do objetivo do cumprimento


provisório da sentença ser o de preservar direito fundamental do jurisdicionado previsto no
inciso LXXVIII, do art. 5º da Constituição Federal/1988 o qual dispõe: “a todos, no âmbito
judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantem a celeridade de sua tramitação. ”
Desse modo, o desenvolvimento do presente estudo baseou-se na análise do
procedimento do cumprimento provisório da sentença e o seu processamento mediante as
inovações do Novo Código de Processo Civil, sendo que a metodologia utilizada cingiu-se,
basicamente, à análise de parte da doutrina processualista com a paralela análise da
legislação processual nacional e jurisprudência dos tribunais do sul do país.
Por fim, elaborou-se as conclusões finais deste trabalho, sintetizando os principais
aspectos do procedimento do cumprimento provisório da sentença. Desta forma, este estudo
pretende contribuir para a aplicabilidade do cumprimento provisório da sentença.

2 DO CUMPRIMENTO PROVISÓRIO DA SENTENÇA

O ordenamento jurídico brasileiro determina como regra a execução sobre títulos


executivos judiciais transitados em julgado, ou seja, aquele que já se tornou definitivo não
sendo mais passível de ser impugnado via recurso, uma vez que a regra é o recurso de
apelação ser recebido no efeito suspensivo, de acordo com artigo 1.012, caput, do Código
de Processo Civil – CPC.
Ocorre que para a regra citada acima existem exceções, quais sejam as dispostas no
§ 1° do artigo 1.012 do CPC, que prevê, além de outras previstas em lei, hipóteses do Recurso
de Apelação não ser recebida no efeito suspensivo4.
Determina ainda o § 4º do artigo 1.012 do CPC, que a eficácia da sentença somente
poderá ser suspensa pelo relator se o apelante demonstrar a probabilidade de provimento do

4
As principais hipóteses de incidência da execução provisória da sentença estão previstas no § 1º do artigo
1.012 do CPC, que determina que começa a produzir efeitos imediatamente após a publicação a sentença que:
I - homologa divisão ou demarcação de terras;
II - condena a pagar alimentos;
III - extingue sem resolução do mérito ou julga improcedentes os embargos do executado;
IV - julga procedente o pedido de instituição de arbitragem;
V - confirma, concede ou revoga tutela provisória;
VI - decreta a interdição.
509

recurso ou se, sendo relevante a fundamentação, houver risco de dano grave ou de difícil
reparação.
Assim como, os Recursos Especial e Extraordinário, que tramitam nos Tribunais
Superiores, também serão recebidos apenas com o efeito devolutivo, assim, sem o efeito
suspensivo. Conforme José Tadeu Neves Xavier, no CPC revogado o pedido de atribuição
de efeito suspensivo aos recursos deveria ser solicitado mediante medida cautelar,
atualmente a solicitação da atribuição do efeito suspensivo deverá ser via simples
requerimento com a devida fundamentação para a atribuição de tal efeito, conforme prevê o
§ 5º do artigo 1.029 do CPC5.
Analisando a doutrina constata-se que todo título executivo não transitado em
julgado pode dar oportunidade ao cumprimento provisório, desde que pendente recurso sem
efeito suspensivo, porém existem exceções, conforme afirmam Luiz Rodrigues Wambier e
Eduardo Talamini:
Em princípio, todo título executivo judicial pode dar ensejo a cumprimento
provisório – desde que contra a decisão que o constitui penda recurso sem efeito
suspensivo. Mas há exceções. A execução civil de sentença condenatória penal
jamais se poderá fazer provisoriamente, na pendência de recurso contra a
condenação penal. É que tal provimento só é título executivo depois de transitar
em julgado. A sentença arbitral não se submete a recurso, de modo que seu
cumprimento é sempre definitivo. Por outro lado, frise-se que a execução do título
executivo extrajudicial é também sempre definitiva. 6

Sabe-se da grande morosidade do Judiciário, que segundo os dados do Relatório


Justiça em Números 2018 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, revelou-se que 94% dos
80 milhões de processos que tramitavam no Judiciário brasileiro no ano de 2017 estavam
concentrados no primeiro grau, instância que também concentrou 85% dos processos
ingressados no triênio 2015-2017. O CNJ revelou ainda que no primeiro grau a taxa de
congestionamento de processos foi de 74%, e no segundo grau de jurisdição o
congestionamento foi de 54%.
Obviamente, decorrência deste congestionamento de processos no Poder Judiciário
a justiça acaba se tornando injustiça, uma vez que é tardia e não efetiva, o que prejudica o

5
XAVIER, José Tadeu Neves. Novo Código de Processo Civil Anotado / OAB. - Porto Alegre: OAB RS,
2015. Página 812.
6
WAMBIER, Luiz Rodrigues. TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, volume 3 – 16.
ed. reformulada e ampliada de acordo com o novo CPC. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
Página 213/214.
510

jurisdicionado que tem razão e de outro lado beneficia o que não a tem. Ocorre que o Estado
deveria possuir um judiciário adequado e efetivo, uma vez que proibiu a autotutela.
Deparando-se com essa realidade, e preocupando-se com a isonomia no processo
civil, Sérgio Cruz Arenhart e Luiz Guilherme Marinoni afirmam que “quando é proferida a
sentença e declarada a existência do direito, não há razão para o autor ser obrigado a suportar
o tempo do recurso”7.

Sabemos que a sentença é um ato jurídico perfeito, e de acordo com Ada Pellegrini
Grinover, “as normas sobre execução provisória também revalorizaram a sentença de
primeiro grau”8.
É certo que a execução provisória do título executivo judicial tem o intuito de
preservar o direito fundamental da celeridade processual e da razoável duração do processo
(artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal), ainda mais que a parte adversa pode
utilizar de recursos para procrastinar a execução, desse modo, fazendo injustiça.
Nesse sentido, são as palavras de Luiz Guilherme Marinoni:

Não há motivo para alguém se assustar ao constatar que o processo, retoricamente


proclamado como um instrumento jurisdicional que não pode prejudicar o autor
que tem razão, acaba sempre lhe causando prejuízo. Lamentavelmente, o processo
tornou-se, com o passar do tempo, um lugar propício para o réu beneficiar-se
economicamente às custas do autor, o que fez surgir os fenômenos do abuso do
direito de defesa e do abuso do direito de recorrer.9

De outro lado, sabe-se que o juiz é passível de erro em seu julgamento, sendo o
Supremo Tribunal Federal - STF, por ser o último Tribunal a receber recurso advindo do
controle concreto/difuso, ser também o último a errar no Brasil, o que também ocorre no
controle concentrado/abstrato, cita-se como exemplo o caso de uma agricultora e analfabeta
que no ano de 2004 foi gestante de um feto anencéfalo, assim, por não possuir cérebro, a
criança não sobreviveria, o STF deferiu liminar permitindo o aborto, porém a liminar foi
cassada pelo pleno do Supremo, com isso, sem autorização para abortar, Severina enfrentou
uma gestação de sete meses para ter a infelicidade de passar por um parto extremamente
dificultoso e ver seu filho nascer morto. Após oito anos do ocorrido com Severina, o STF
julgou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 54 (Informativo nº

7
MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil, volume 3: execução.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Página 355.
8
GRINOVER, Ada Pellegrini. Mudanças Estruturais no Processo Civil Brasileiro. IN: Revista IOB de
Direito Civil Civil. V.8. n. 44. São Paulo: IOB Thomson, dezembro de 2006. p. 45.
9
MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil, volume 3: execução.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. Página 354 e 355.
511

661), reconhecendo inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da


gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada no Código Penal, assim possibilitando
o aborto nesses casos.10
Sobre esse tema, o Senhor Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello
(apud BARBOSA, 1914) lembrou, no último dia do julgamento da Ação Penal nº 470, uma
frase de Rui Barbosa, a qual foi pronunciada na sessão de 29 de dezembro de 1914 em debate
com Pinheiro Machado, disse o ministro, citando Rui Barbosa:
[...] Em todas as organizações políticas ou judiciais há sempre uma autoridade
extrema para errar em último lugar.
..............................................................................................................
O Supremo Tribunal Federal, Senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a
alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer
alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade.

Sabe-se também que não raro ocorrem injustiças em sede de primeiro grau de
jurisdição, de acordo com Gama:
Quando pensamos na primeira fase de um processo comum, sendo julgado pela
justiça comum, estamos pensando num Direito que será “dito” de acordo com o
convencimento de uma só pessoa, que humana, está sujeita ao erro, assim como
cada um de nós.11
Sobre isso cita-se aqui como exemplo o caso amplamente divulgado no Rio Grande
do Sul, inclusive sendo notícia no site da OAB/RS, sob o título “Acessibilidade: por um
Judiciário sem barreiras”12, no qual um juiz do interior do Rio Grande do Sul obstruiu a
prática da profissão de um advogado cadeirante, o magistrado negou a transferência de
audiências para o andar térreo do Foro, em função do advogado da parte ser deficiente físico,
tendo ainda aconselhado a parte a contratar outro procurador que pudesse subir escadas, além
de atrasar a tramitação processual de ações em que o advogado atuava, causando prejuízos
ao jurisdicionado, com isso, o juiz foi condenado a pena de censura pelo Órgão Especial do
Tribunal de Justiça do Estado (Processo Administrativo nº 0010-14/003633-1).
Diante disso, preocupado com uma maneira de propiciar uma superação das decisões
injustas o legislador promoveu uma reforma do Novo Código de Processo Civil com a Lei
nº13.256/2016, entre os artigos que a nova lei alterou está o 1.042 que dispõe sobre o

10
DINIZ, Debora. Uma Escolha Severina. Disponível < https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-
olho/dsr/noticias-direitos/11042012-uma-escolha-severina-por-debora-diniz/ > .Acessado em 09.06.2020.
11
GAMA, William Ricardo Grilli. O direito de errar por último. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862,
Teresina, ano 20, n. 4204. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/31657>. Acessado em: 20.11.17.
12
OAB RIO GRANDE DO SUL. Acessibilidade: por um Judiciário sem barreiras. Disponível em:
<http://www.oabrs.org.br/noticias/acessibilidade-por-judiciario-sem-barreiras/21769> . Acessado em:
23.08.2020.
512

cabimento do recurso de agravo contra decisão do tribunal recorrido que inadmitir recurso
extraordinário ou especial, salvo quando fundada na aplicação de entendimento firmado em
regime de repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos. Compreendesse que
essa possibilidade de cabimento do recurso de agravo visa coibir o engessamento do direito,
sendo um meio que objetiva viabilizar o acesso aos tribunais superiores e possibilitar o
reexame dos padrões decisórios existentes, com isso, oportunizando a evolução da
interpretação. Sendo assim, o novo recurso, interposto contra o acórdão que julga o agravo,
não se submeterá ao regime dos recursos repetitivos, conforme defende o Professor e
Desembargador Alexandre Freitas Câmara:

Tenha-se claro este ponto: o novo recurso, interposto contra o acórdão que julga o
agravo, não se submete ao regime dos recursos repetitivos. É que nele se terá
necessariamente suscitado questão nova, ainda não submetida ao tribunal de
superposição. E se a questão é nova, inédita, não é repetitiva. Assim, no caso do
RE, incidirá o artigo 1.030, V, a, do novo CPC reformado e, positivo o juízo de
admissibilidade, o recurso deverá ser encaminhado ao STF para verificação da
existência de repercussão geral do novo fundamento suscitado. De outro lado, no
caso do REsp, este deverá ser — se positivo o juízo de admissibilidade — remetido
ao STJ para exame do REsp, que não terá, como visto, caráter repetitivo.
Fica, assim, não obstante a reforma do novo CPC, assegurada a possibilidade de
revisão das teses, impedindo-se engessamento interpretativo incompatível com um
sistema de precedentes que se pretenda implantar em um ordenamento compatível
com o Estado Democrático de Direito.13

Por outro lado, cabe salientar também que erros nos julgamentos judiciais não são a
regra, conforme afirma Gama: “É claro, porém, que sempre há uma preparação técnica para
os que ingressam na magistratura, todos longe de serem néscios das letras da lei ou da
realidade da sociedade, de modo que seus acertos serão sempre maiores que os seus erros”.14
Dessa maneira, em razão de tudo que foi dito anteriormente, considera-se a caução
prevista no artigo 520, inciso IV do CPC, ser uma necessária garantia para que não haja
prejuízo à parte executada provisoriamente, preservando a segurança jurídica.
Acrescenta o doutrinador Araken de Assis:

O art. 520, IV, não subordina a prestação da caução à iniciativa das partes.
Compete ao órgão judiciário, ex officio, impor ao exequente e o dever de caucionar
o ato capaz de ocasionar “grave dano ao executado”, tão logo haja necessidade.
De acordo com a regra, o juiz arbitrará de pleno o valor da caução. Esta fórmula,
também utilizada no art. 853, parágrafo único, relativamente ao incidente de

13
CÂMARA, Alexandre Freitas. Novo CPC reformado permite superação de decisões vinculantes.
Disponível em < https://www.conjur.com.br/2016-fev-12/alexandre-camara-cpc-permite-superacao-decisoes-
vinculantes >. Acessado em 06.06.2020.
14
GAMA, William Ricardo Grilli. O direito de errar por último. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862,
Teresina, ano 20, n. 4204. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/31657>. Acessado em: 20.11.17.
513

substituição do bem penhorado, significa que o juiz deliberará mediante cognição


sumária, prescindindo de prova quanto ao valor da caução. 15

Além do inciso I do mesmo artigo (520), prever que a execução provisória corre por
iniciativa e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a
reparar os danos que o executado haja sofrido, ou seja, preserva a possibilidade de se voltar
ao statu quo ante.
Conforme Araken de Assis:
Reconhece o art. 520, I, o vetusto princípio qui sentit commoda, et incommoda
sentire debet: à vantagem produzida pela execução provisional em suas
expectativas processuais corresponde, simetricamente, a responsabilidade objetiva
do executado. Por isso, estabelece que a execução provisória corre por iniciativa,
conta e responsabilidade do exequente, obrigado a reparar os danos provocados
pela reforma do julgado.16

Dessa forma, a responsabilidade civil do exequente é objetiva, conforme afirma


Cassio Scarpinella Bueno:
A responsabilidade daquele que promove a execução provisória é, isto é
absolutamente pacífico em doutrina e jurisprudência, objetiva, isto é, independente
de culpa, dolo ou má-fé do exequente. É suficiente para que ele tenha o dever de
indenizar o executado que da execução provisória decorram danos a ele, que haja
“nexo causal” entre os danos e os atos da “execução provisória”. 17

Argumenta Araken de Assis que a indenização devida pelo exequente ao executado,


é um princípio consagrado na lei civil, deve ser a mais vasta possível, sendo assim, caberá
indenização pelos danos patrimoniais, além de caber indenização por possível dano
extrapatrimonial.18
Nesse sentido já se pronunciou o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na
Apelação Cível 5003524-10.2016.4.04.7210, sob relatoria do Desembargador Federal
Cândido Alfredo Silva Leal Junior, conforme transcrição de trecho de decisão a seguir
descrita:
[...] o próprio legislador previu a possibilidade da decisão exequenda vir a ser
reformada. Para esta hipótese, além das garantias de caução, fixou a
responsabilidade do exequente pelos danos causados ao executado. Resta claro,
portanto, que o legislador sopesou a reversibilidade da decisão, assim como
eventual movimentação útil ou inútil do Judiciário, optando, ainda assim,

15
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. - 18. ed. rev., atual. E ampl. - São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2016, página 485.
16
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. - 18. ed. rev., atual. E ampl. - São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2016, página 473.
17
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional
executiva, vol 3. - 7. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2014. Página 166.
18
ASSIS, Araken de. Manual da Execução. - 18. ed. rev., atual. E ampl. - São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2016, página 474.
514

respeitadas as devidas cautelas, pela disponibilização ao jurisdicionado de um


procedimento executivo célere e independente do trânsito em julgado.[...]

Não existem dados estatístico de nível nacional que demonstram o número de


sentenças que são confirmadas pelo Tribunal, porém sabe-se que a sentença é um ato jurídico
perfeito que deve ser valorizado, além disso, sabe-se que não deve-se aceitar que o longo
tempo dispensado até que o término de um processo judicial prevaleça, sendo assim, conclui-
se que o cumprimento provisório da sentença visa preservar a razoável duração do processo
e a celeridade processual que são direitos fundamentais do jurisdicionado, previsto no artigo
5º da Constituição Federal.

3 DO PROCESSAMENTO DO CUMPRIMENTO PROVISÓRIO DA SENTENÇA E


SUAS INOVAÇÕES COM O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O cumprimento provisório da sentença será realizado da mesma forma que o


cumprimento definitivo, podendo inclusive o executado apresentar impugnação, porém com
algumas peculiaridades, conforme prevê o artigo 520 do CPC.
Ensina Cassio Scarpinella Bueno que:

A chamada “execução provisória” não é propriamente provisória, e sim o título


que a fundamenta. Ela, considerada em si mesma, isto é, com relação aos atos
executivos, é a mesma execução que teria lugar não fosse a pendência de uma
ulterior deliberação sobre o título executivo ou, mais amplamente, sobre a
obrigação nele representada, mas justamente por isso é que ela tem uma ressalva,
um porém, um freio posto pelo legislador. Não obstante ela tenha o condão de
satisfazer o exequente, isto é, aquele que a promove, a regra é a de que a satisfação
depende de caução, embora a prestação da caução possa ser dispensada em
variados casos.19

Primeiramente, como já referido no presente estudo, a execução provisória correrá


por iniciativa e responsabilidade do exequente, assim se a sentença for reformada, fica
obrigado a reparar os danos que o executado haja sofrido. Dessa maneira, em razão do risco
que pode vir a causar ao executado, caso a sentença exequenda venha a ser modificada, a
execução provisória não poderá ser instaurada de ofício pelo juiz, dependerá sempre da
iniciativa da parte.

19
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional
executiva, vol 3. - 7. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2014. Página 161.
515

Nesse seguimento, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na Apelação Cível


5003524-10.2016.4.04.7210, sob relatoria do Desembargador Federal Cândido Alfredo
Silva Leal Junior, já se manifestou no sentido de que o cumprimento provisório da sentença
não é um meio de assegurar o direito de executar os bens, ou seja, não é um procedimento
cautelar, ainda que com essa finalidade possa ser utilizado, mas, conforme já referido, corre
por iniciativa e responsabilidade do exequente, conforme trecho da decisão a seguir descrito:

[...] deve ser ressaltado que a execução provisória não é um procedimento de


natureza cautelar. Ainda que com essa finalidade possa ser utilizada pelo
exequente, o risco de perecimento dos bens penhoráveis ou de dilapidação
patrimonial ou mesmo de insolvência do executado não é um requisito necessário
para promoção da execução provisória, a qual corre pela vontade e por conta e
risco do exequente (art. 520, I, CPC/15). [...]

O cumprimento provisório da sentença correrá em autos apartados, tendo em vista


que a execução tramita no juízo de origem e os autos principais estarão em outra instância
para julgamento do recurso, em razão do qual não é possível a execução definitiva.
Desse modo, conforme dispõe o artigo 522 do CPC, o cumprimento da execução
provisória da sentença será requerido por petição dirigida ao juiz competente, devendo a
petição ser acompanhada das seguintes peças do processo: decisão exequenda; certidão de
interposição do recurso não dotado de efeito suspensivo; procurações outorgadas pelas
partes; decisão de habilitação, se for o caso; e facultativamente, outras peças processuais
consideradas necessárias para demonstrar a existência do crédito, sendo responsabilidade do
advogado a autenticidade das cópias dos autos, caso certificada pelo causídico.
Cabe salientar que os prazos são, segundo o disposto no art. 219 do CPC, contados
somente nos dias úteis.
Importante frisar que nas hipóteses do § 1º do artigo 1.012, já citado no presente
estudo, a eficácia da sentença poderá ser suspensa pelo relator se o recorrente demonstrar a
probabilidade de provimento do recurso ou se houver risco de grave dano ou de difícil
reparação. Desse modo, o pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser formulado
por requerimento dirigido ao tribunal, no período compreendido entre a interposição da
apelação e sua distribuição, ou ao relator, se já distribuída a apelação.
O cumprimento de sentença provisória ficará sem efeito, caso sobrevenha decisão
que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado
anterior e liquidando-se eventuais prejuízos nos mesmos autos. Da mesma forma ocorrerá
516

caso a sentença objeto de cumprimento provisório for modificada ou anulada apenas em


parte, ficando sem efeito a execução somente nesta parte.
Humberto Theodoro Junior aduz que a restituição ao estado anterior não atinge
terceiros, no sentido de “a restituição ao statu quo ante se da entre as pessoas do exequente
e do executado e não, necessariamente, sobre os bens expropriados judicialmente durante a
execução provisória”.20
Aliado ao entendimento de Humberto Theodoro Junior, no sentido de que a volta ao
estado anterior não atinge terceiros que tenham adquirido o bem pelos meios expropriatórios
de execução de sentença, Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim e José Miguel
Garcia Medina, assim entendem: “uma vez realizada a arrematação do bem penhorado, o
eventual provimento do recurso não repercutirá na esfera jurídica do terceiro que tenha
participado da hasta púbica”.21
Destarte, conforme determina o § 4º do artigo 520, a restituição ao estado anterior
não implica o desfazimento da transferência de posse ou da alienação de propriedade ou de
outro direito real eventualmente já realizada, devendo ser ressalvado o direito à reparação
dos prejuízos causados ao executado. Neste sentido, temos como exemplo o caso de
cumprimento de condenação provisória a obrigação de fornecer medicamentos.
Visando viabilizar a volta ao estado anterior, a legislação processual determina que
dependerá de caução suficiente e idônea, arbitrada pelo juiz e prestada nos próprios autos,
para que seja possível a prática dos atos que possam resultar grave dano ao executado, assim
como o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem transferência
de posse ou alienação de propriedade ou de outro direito real. Assim, deve ser o valor da
caução a mais adequada possível para garantir a reparação de eventuais prejuízos.
Transcreve-se a seguir trechos de julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que
demonstram a aplicabilidade da caução na prática.

[…] O cumprimento provisório de sentença corre por iniciativa e responsabilidade


do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o
executado haja sofrido. O levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos
que importem transferência de posse ou alienação de propriedade ou de outro
direito real, ou dos quais possa resultar dano ao executado, dependem de caução

20
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Processo de Execução e
Cumprimento de Sentença, Processo Cautelar e Tutela de Urgência. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011,
2v. Página 89.
21
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil, II: leis
11.187/2005, 11.232/2005, 11.267/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006/ Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda
Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. Página 181.
517

suficiente e idônea. […] (Agravo de Instrumento nº 70071642102, Relator: Des.


João Moreno Pomar)
[…] O artigo 520, IV, do CPC/15 estabeleça que o levantamento de depósito em
dinheiro em litígio em fase de cumprimento de sentença provisória exige a
prestação de caução suficiente e idônea, a ser fixada pelo magistrado. [...] (Agravo
de Instrumento 70073547184, Relator: Des. Túlio de Oliveira Martins)

Nesse sentido, também se manifestou o Tribunal Regional Federal da 4ª Região,


conforme trechos a seguir descritos:

[…] A execução provisória exige, para o levantamento de depósito em dinheiro e


a prática de atos que importem transferência de posse ou alienação de propriedade
ou de outro direito real, ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, a
prestação de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos
próprios autos (art. 520, IV, CPC). Significa dizer, o autor terá que garantir o juízo
mediante o depósito do mesmo valor que pretende receber, ou o oferecimento de
bens em garantia, também em idêntico valor. […] (Apelação Cível 5003524-
10.2016.4.04.7210, Relator: Desembargador Federal Cândido Alfredo Silva Leal
Junior)
[…] a circunstância do exequente ter de prover caução suficiente e idônea para
efetuar o levantamento de depósito em dinheiro ou a prática de atos que importem
transferência de posse ou alienação de propriedade (art.520, IV) constitui tão
somente uma cautela disciplinada pelo legislador. Trata-se de uma garantia
inerente ao procedimento da execução provisória, e, por tal motivo, positivada na
lei.
A prosperar a tese de que a possível necessidade de prestação de caução suficiente,
descrita no art. 520, IV, do CPC/15, fulmina a utilidade, e, portanto, o interesse de
agir do exequente na execução provisória, ter-se-ia que concluir pela
impossibilidade da adoção deste procedimento em todo e qualquer caso, o que, em
outras palavras, resultaria na conclusão de que o legislador, com exceção do
dispositivo retro citado (art. 520, IV), teria inserido uma série de normas inúteis
em todo o resto do Capítulo II, do Título II, do Livro I da Parte Especial do novo
diploma. Evidentemente, tal não deve prosperar. [...] (Apelação Cível 5003531-
02.2016.4.04.7210, Relator: Desembargador Federal Cândido Alfredo Silva Leal
Junior)

Por outro lado, a caução poderá ser dispensada em casos específicos, conforme prevê
o artigo 521 do CPC, que são: no caso de o crédito for de natureza alimentar,
independentemente de sua origem; o credor demonstrar situação de necessidade; pender o
agravo do art. 1.042 do CPC (Agravo em Resp. ou Rext.); e a sentença a ser provisoriamente
cumprida estiver em consonância com súmula da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou em conformidade com acórdão proferido no
julgamento de casos repetitivos. Determina ainda o código que em podendo haver risco de
grave dano de difícil ou incerta reparação, a exigência de caução será mantida. Sobre a
dispensa da caução segue transcrito trecho de julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul:
[…] Embora o teor do artigo 520, IV, do CPC/15 estabeleça que o levantamento
de depósito em dinheiro em litígio em fase de cumprimento de sentença reclame
caução suficiente e idônea, o art. 521, III, do citado diploma legal dispensa a
518

prestação de garantia na hipótese de pender apreciação do agravo contra a decisão


que inadmite recurso especial.
Caso em que não há manifesto risco de grave dano de difícil ou incerta reparação
ao agravado. [...] (Agravo de Instrumento 70072749864, Relator: Des. Bayard
Ney de Freitas Barcellos)

Diante dessas hipóteses de dispensa da caução já ocorreram situações em que a


sentença não foi confirmada pelo tribunal, surgindo a necessidade das partes voltarem ao
estado anterior, conforme julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul onde a parte
exequente foi dispensada de prestar caução devido a natureza alimentar do crédito, com isso
houve o levantamento da quantia reconhecida inicialmente como devida em sede de
cumprimento de sentença provisória, porém, ocorreu que a demanda foi julgada
improcedente, sendo assim, a sentença que fora executada provisoriamente não foi
confirmada pelo Tribunal, com isso, o egrégio entendeu como necessária a devolução nos
próprios autos dos valores recebidos em sede de cumprimento de sentença provisória. Dessa
maneira, cabe aqui transcrever trecho da ementa do acórdão proferido:

“[...]1. Os valores controversos para serem levantados, de regra, é necessária a


devida prestação de caução ao juízo, conforme exigido expressamente no art. 520,
inciso IV, do novel Código de Processo Civil, excetuando, quando se trate de
prestação de cunho alimentar, consoante estabelece o art. 521, I, do mesmo
diploma processual.
2. Assim, a caução, a toda evidência, serve para garantir o ressarcimento dos
valores antecipados e liberados à parte autora, caso seja revertida à tutela
concedida quando do julgamento final de mérito, o que deverá ser satisfeito nos
próprios autos da execução do julgado.
3. Portanto, dispensada a parte agravante de prestar caução no presente feito
devido a natureza alimentar do crédito, houve o levantamento da quantia
reconhecida inicialmente como devida. Ocorre que, em tendo sido julgada
improcedente a demanda, necessária a devolução nos próprios autos dos valores
recebidos, de acordo com a norma processual precitada, sendo inexigível que a
parte agravada ingresse com ação para tanto. Inteligência do art. 885 do Código
Civil.
4. Autorizar a postulação deduzida equivaleria a chancelar o enriquecimento
ilícito da recorrente, o que é vedado pelo ordenamento jurídico, atentando também
contra os princípios da efetividade da prestação jurisdicional, economia e
celeridade processual. [...]” (Agravo de Instrumento 70073984882, Relator: Des.
Jorge Luiz Lopes do Canto)

Tendo o código inovado neste ponto, uma vez que no código de 1973 previa que no
cumprimento provisório de sentença de natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito
poderia haver a dispensa da caução, porém, para isso, a execução deveria ser sobre valor não
519

superior a 60 salários-mínimos, e o exequente deveria encontrar-se em estado de


necessidade, sendo que essas exigências eram cumulativas.22
Cabe ressaltar que uma das inovações do Novo Código de Processo Civil veio com
o artigo 190, o qual estabelece que é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças
no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre seus ônus,
poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. A respeito desse
tema disposto no artigo 190 e sobre a caução exigida pelo exequente no cumprimento
provisório da sentença disposto no artigo 520, inciso IV, já se manifestou o Fórum
Permanente de Processualistas Civis pelo enunciado número 262 que dispõe o seguinte: “É
admissível negócio processual para dispensar caução no cumprimento provisório de
sentença.”
Dessa maneira, podem as partes transacionar mudanças no procedimento do
cumprimento provisório da sentença, podendo, inclusive, dispensar a caução prevista no
artigo 520, inciso IV, do Código de Processo Civil.
A grande inovação no cumprimento provisório da sentença diz respeito a multa e os
honorários, prevista no § 2º do mesmo artigo 520, ao qual determina que a multa e os
honorários a que são devidos no cumprimento definitivo da sentença, serão também devidos
no cumprimento provisório de sentença condenatória ao pagamento de quantia certa.
De acordo com Wambier e Talamini:
Na fase de cumprimento de sentença, há a imposição de honorários, a serem pagos
ao advogado do exequente pelo executado. No cumprimento provisório os
honorários são igualmente devidos. O executado apenas se exonerará deles se
prontamente cumprir a condenação. Nesse caso, não basta depositar em juízo o
valor da condenação, requerendo que a penhora recaia sobre ele. O único modo de
não ter de pagar novos honorários dá-se pelo próprio cumprimento da decisão.23

Ocorre que, conforme o Informativo de Jurisprudência, REsp 1.323.199-PR e REsp


1.116.925-PR, o entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça -STJ era de negar
cabimento de condenação ao pagamento de honorários advocatícios na execução
provisória, pendente recurso ao qual não tenha sido atribuído efeito suspensivo. Além de

22
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Processo de Execução e
Cumprimento de Sentença, Processo Cautelar e Tutela de Urgência. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011,
2v. Página 90.
23
WAMBIER, Luiz Rodrigues. TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, volume 3 – 16.
ed. reformulada e ampliada de acordo com o novo CPC. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
Página 216.
520

entender que na execução provisória, não incidiria a multa prevista no art. 475-J do
CPC/1973, atual 523 do CPC.
Humberto Theodoro Junior entende que “não tem pertinência a imposição de tal
pena a quem ainda não se acha sujeito ao cumprimento definitivo da condenação”. Em outro
momento frisa que: “não se pode entrever falta ou mora do devedor por não dar imediato
cumprimento à sentença”.24
Com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil não há mais controvérsia
acerca da incidência ou não de multa e honorários em cumprimento de sentença provisória.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já se manifestou nesse sentido, conforme trechos
de acórdãos a seguir descritos.
[…] A execução provisória de sentença que reconhece a exigibilidade de
obrigação de pagar quantia certa está sujeita a multa, nos mesmos moldes
do que ocorre com a execução definitiva, bem como à incidência dos
honorários. Art. 520, § 2º do NCPC. A multa e os honorários a que se refere
o § 1º do art. 523 são devidos no cumprimento provisório de sentença
condenatória ao pagamento de quantia certa.[...] (Agravo de Instrumento
70071593164, Relator: Des. Giovanni Conti)
[…] CUMPRIMENTO PROVISÓRIO DA SENTENÇA. INCIDÊNCIA
DE MULTA DE 10% PREVISTA NO ARTIGO 523 DO NOVO CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS PELA
FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. POSSIBILIDADE.
inteligência do artigo 520, §2º, do Novo código de Processo Civil. [...]
(Agravo de Instrumento 70070722210, Relator: DES.ª Liége Puricelli
Pires)

Conforme preceitua o § 3º do artigo 520 do CPC o executado poderá comparecer


tempestivamente e depositar o valor da condenação, com a finalidade de isentar-se da multa,
estabelece ainda que tal ato não será havido como incompatível com o recurso por ele
interposto. Há quem defenda que o prazo de quinze dias para pagamento (artigo 523 CPC)
não existe no cumprimento provisório da sentença, pois o ato de pagar é incompatível com
o de insurgir-se contra a condenação, fundamentando que o § 3º do art. 520 refere-se a
depósito, e não a pagamento, do valor devido, com a única e exclusiva finalidade de evitar a
incidência da multa, conforme afirma Leonardo Carneiro da Cunha:
Não há prazo para pagamento no cumprimento provisório. É preciso fazer uma
interpretação sistêmica, que garanta coerência ao conjunto de disposições
normativas para delas se construir a norma adequada a regular o cumprimento
provisório da sentença.

24
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Processo de Execução e
Cumprimento de Sentença, Processo Cautelar e Tutela de Urgência. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011,
2v. Página 91.
521

Significa que o prazo de quinze dias previsto no art. 523 do CPC aplica-se ao
cumprimento provisório da sentença. Só que o executado, no cumprimento
provisório, não é intimado para pagar, mas para depositar o valor a que foi
condenado. Se o depósito não for efetuado no prazo de quinze dias, haverá a
incidência da multa de 10%. Ultrapassado o prazo de quinze dias, com ou sem o
depósito, terá início novo prazo de quinze dias, desta vez para apresentação de
impugnação.25

Dessa maneira, verificamos que o Novo Código de Processo Civil neste ponto veio
em sentido contrário à jurisprudência e doutrina, não deixando dúvidas a cerca da aplicação
de multa em caso de descumprimento pelo executado do prazo para pagamento, e em relação
aos honorários de execução. Podendo, assim, o executado depositar o crédito
tempestivamente, com a finalidade de isentar-se da multa, não sendo o ato incompatível com
o recurso por ele interposto, conforme previsão do § 3º do artigo 520 do Código de Processo
Civil.
Sendo assim, constatasse que as inovações no procedimento do cumprimento
provisório da sentença inseridas pelo advento do Novo Código de Processo Civil de 2015,
deixaram as regras sobre o procedimento mais claras, não deixando lacunas para
controvérsias, com isso, as inovações vieram ao encontro de um procedimento que preserva
a segurança jurídica.

4 CONCLUSÃO

Conforme vimos, o Brasil encontra-se em uma crise de grande número de demandas


judiciais, essa crise mostra-se como um obstáculo aparentemente à realização da justiça, uma
vez que vem sendo tardia.
Dessa maneira, existe a possibilidade de o credor executar provisoriamente o julgado,
nas hipóteses em que tiver sido interposto recurso sem efeito suspensivo, contudo, deverá
ser por sua conta em risco, devendo prestar uma caução como garantia para que não haja
prejuízo a parte executada provisoriamente, desse modo preservando o princípio
fundamental da segurança jurídica. O procedimento do cumprimento provisório da sentença
valorizara as sentenças prolatadas pelo julgador de primeira instância, além de beneficiar o
autor que tem razão.

25
CUNHA. Leonardo Carneiro da. OPINIÃO 52 – Procedimento do Cumprimento Provisório da
Sentença no Novo CPC . Disponível em:
https://www.leonardocarneirodacunha.com.br/opiniao/opiniao -52-procedimento -do-
cumprimento -provisorio -da-sentenca-no-novo-cpc/ >. Acessado em: 06.06.202 0.
522

Assim, podemos concluir que as reformas introduzidas pela nova legislação


processual, visam proporcionar um processo mais célere e eficaz, com o intuito de beneficiar
o credor que deve obter a satisfação do seu bem jurídico.
Sabemos que não existem dados estatístico de nível nacional que demonstram o
número de sentenças que são confirmadas pelo Tribunal, de outro lado, também se sabe que
a sentença é um ato jurídico perfeito que deve ser valorizado, além disso, não se deve aceitar
que o longo tempo dispensado até que o término de um processo judicial impere como uma
situação necessária, não sendo passível de ser superada.
Sendo assim, conclui-se que o cumprimento provisório da sentença deve ser aplicado
em razão de seu intuito de preservar dois importantes direitos fundamentais que devem ser
observados pelo judiciário, são eles a razoável duração do processo e a celeridade processual,
previstos no artigo 5º da Constituição Federal/1988.

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02.2016.4.04.7210. Apelante: Ivanir Pisoni . Apelado: Banco do Brasil S/A . Relator:
523

Desembargador Federal Cândido Alfredo Silva Leal Junior. Porto Alegre, 22 nov. 2017.
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525

WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil,


II: leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.267/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006/ Luiz Rodrigues
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XAVIER, José Tadeu Neves. Novo Código de Processo Civil Anotado / OAB. - Porto
Alegre: OAB RS, 2015.
526

OS EFEITOS DAS MEDIDAS PROTETIVAS E A NECESSIDADE DE


POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PROTEÇÃO DA MULHER VÍTIMA
DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Jéssica Teixeira Amaral1

Resumo: O presente artigo visa, através do histórico da mulher na sociedade, analisar a


conquista de direitos civis e que a proteção no âmbito familiar. Por anos, a mulher foi
designada, através de um sistema patriarcal e machista, para somente preencher o papel de
esposa, aprendendo desde muito nova a se moldar da forma que a sociedade ditava para que
conseguisse um bom casamento, sendo assim submissa as vontades da sociedade. Tendo
inclusive, que aguentar agressões no âmbito familiar, em razão da necessidade de manter o
casamento e não perder o contato com os filhos. Os direitos das mulheres, sendo eles
trabalhistas, previdenciários e principalmente civis, demoraram muito para serem
reconhecidos. Inclusive, leis que visam proteger a integridade física e psicológica da mulher,
atualmente existem mecanismos que protegem a vítima, como a Lei 11.340/06 conhecida
como Lei Maria da Penha, onde existe a medida protetiva, sendo essa uma forma de proteger
a vítima, contudo mesmo após 14 anos da lei, a violência doméstica aumentou em razão da
falta de estrutura oferecida pelo Estado numa melhor aplicabilidade da Lei, apoio a vítima e
quem comete o delito, pois dar assistência, como acompanhamento com profissionais, ao
agressor também é uma forma de proteção à mulher. Busca analisar a aplicabilidade da lei,
como forma de proteção e prevenção da violência doméstica, a aplicação da medida protetiva
e políticas públicas para melhor suporte, bem como aperfeiçoar aquelas já existentes.

Palavras-chave: Violência Doméstica. Estado. Lei 11.340/06. Mulher. Políticas Públicas

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a mulher esta se destacando na sociedade, após décadas em que
poucos direitos as mulheres tinham, demonstrando o potencial que possuem para se realizar
pessoal e profissionalmente, no entanto a condição de certa forma a deixa vulnerável, em
decorrência dos resquícios da sociedade patriarcal e machista que ainda assombra o século
XXI, dificultando muitas vezes que consiga demonstrar seu potencial profissional, bem
como mostrar a mulher forte e independente que pode ser. Ou seja, o empoderamento
feminino, infelizmente ainda incomoda a sociedade patriarcal.

1
Bacharel em Direito pela URCAMP, Advogada OAB/RS 113.666, especialização em Advocacia para
Mulheres, membro da Comissão da Mulher Advogada e Membro da Comissão Especial de Seguridade Social.
527

Sabe-se que a violência doméstica sempre existiu, a diferença é que a 14 anos atrás
não existiam mecanismos que pudessem proteger e coibir que a mulher sofresse qualquer
tipo de violência, principalmente no seio familiar, local esse que deveria ser de acolhimento
e proteção.
Historicamente, a mulher sempre sofreu uma limitação de seus interesses e ações,
mas com a mudança na sociedade causada pelos movimentos feministas a partir da década
de 1960, que influenciaram o crescimento do papel da mulher, um novo conceito de mulher
está sendo reescrito, um conceito de independência e autossuficiência.
O tema “violência domestica”, com a evolução dos direitos sociais, vem se
destacando, visto que os números de denuncias aumentam devido a existência de toda uma
rede de apoio para as vítimas, entre entidades, órgãos governamentais e legisladores.
O artigo tem como objetivo demonstrar o ponto de vista social e jurídico, da aplicação
das leis em favor das mulheres vítimas de violência doméstica, apontar melhorias nos
serviços oferecidos pela legislação, que teoricamente é excelente, apontando principalmente
a eficiência das medidas protetivas.
É importante analisar e refletir, que a assistência não deve ser apenas para a vítima,
mas também para o agressor, bem como todos os aspectos que envolvem a problemática da
violência doméstica.
Será demonstrada o histórico social da violência doméstica, do que se trata, bem
como demonstrar as mudanças que ocorreram após a implementação da lei 11.340/06, a
medida protetiva como forma de coibir a violência, além de mencionar as políticas públicas
adotadas na prática nefasta do âmbito familiar e analisar a punição do agressor como forma
de proteção.
A Lei 11.340/06, a popularmente conhecida Lei Maria da Penha objetiva proteção à
mulher em sua integridade física, psicológica, moral e patrimonial. Principalmente, no
momento delicado vivido pelo mundo, onde em razão da pandemia é obrigatório o
isolamento social e por consequência disso, os números de violência aumentaram 22% em
16 estados analisados.2
A lei traz uma rede de proteção à mulher, criminalizando a violência doméstica,
porém, nem sempre ela é eficaz. A legislação objetiva sanar o problema atual, a ação do

2
Pesquisa realizada pelo Fórum de Segurança Pública. Violência Doméstica durante a pandemia do COVID-
19. Ano 2020.
528

momento, ou seja, a violência, mas não tenta buscar a origem do problema ou a melhor
solução. Já o Estado não consegue implementar a lei como foi estruturada pois não oferece
os mecanismos necessários para a proteção da mulher como é disposto na legislação. A
violência não escolhe raça, status social e nem graduação escolar, idade ou motivo, até
porque não existe motivo que justifique a violência que a mulher sofre no local que deveria
ser seu refúgio, o próprio lar. Importante salientar que a violência contra a mulher ou
qualquer indivíduo, seja no âmbito familiar ou não, é uma violação aos direitos humanos.

1. A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A sociedade interpreta que a violência doméstica, apenas existe se for visível aos
olhos. A sociedade patriarcal, que infelizmente, ainda se perpetua criou a figura da mulher
como sexo frágil, que por muitos anos foi submissa as vontades da sociedade. Com o passar
dos tempos e movimentos feministas, os movimentos que buscam o empoderamento da
mulher, atualmente ela possui um lugar na sociedade que se dependesse do patriarcado nunca
seria seu, porém o homem e a sociedade que ainda são machistas em muitos aspectos que
influenciam o subjulgamento, pois vendem a ideia de que a mulher é frágil e necessita de
proteção, que o homem possui o papel de protetor e “chefe de família”, sendo ele o provedor
econômico, além de ser considerada incapaz para certos serviços, injusta desigualdade que
a mulher sofre. A situação de violência doméstica não é um assunto moderno, porém ganhou
visibilidade apenas a partir dos anos 60 e 70, quando movimentos que lutam pelos direitos
das mulheres buscaram formas de reconhecimento e criação de direitos para as mulheres,
porém muito difícil conseguir que os legisladores homens, reconhecessem a necessidade de
lei de proteção para as mulheres que sofressem alguma violência dentro do seio familiar,
pois a justificativa dos maridos era a “defesa da honra”, obrigando que as mulheres se
submetessem a situações de violência, por questões de dependência econômica, sem amparo
familiar e/ou pela guarda dos filhos. A mulher esteve sempre acostumada a realizar-se com
o sucesso de seu companheiro, não conseguindo preocupar-se com as suas realizações
pessoais.3
Violência doméstica é a conduta, omissão ou ação de discriminação, agressão ou
coerção, pelo fato da vitima ser mulher e que também causa dano, como morte,

3
DIAS, Maria Berenice. A violência Intrafamiliar. Disponível em: www.mariaberenice.com.br
529

constrangimento, limitação, sofrimento físico, moral, sexual, psicológico, social, político ou


econômico, podendo acontecer em espaços públicos ou privados. A violência doméstica não
é um problema novo na sociedade, é uma questão histórica, pois a mulher sempre foi
considerada propriedade do marido. Então, entende-se que a violência para existir não
precisa ser visível, é aquela agressão que deixa vestígios morais, sexuais, patrimoniais e
psicológicos.
O Conselho Nacional de Justiça, determinou quais são os tipos de violências contra
as mulheres, sendo eles: violência de gênero, violência doméstica, violência familiar,
violência física, violência institucional, violência intrafamiliar, violência moral, patrimonial,
psicológica e sexual. A violência de gênero ocorre pelo fato da vítima ser mulher, não
havendo distinção pela raça, condição social, idade ou religião, pois considera o sexo
feminino como subordinado. Já a violência doméstica acontece no âmbito familiar, dentro
da residência onde existem relações de familiaridade, afetividade ou coabitação, sendo um
pouco diferente da violência familiar que é a que ocorre dentro da própria família, nas
relações dos membros da comunidade familiar, formadas por vínculos parentais naturais
como pai, mãe, filha ou civis no caso de marido, sogra ou padrasto, também existindo por
afinidade que são os vínculos de tio ou primo do marido, e ainda os de afetividade, que são
os amigos que residem na mesmo casa que a vítima.
Ainda, existe a violência intrafamiliar que é praticada por um membro que vive com
a vítima, essas agressões incluem o abuso físico, sexual e psicológico, a negligência ou o
abandono. A violência mais comum e visível, é a física, que é a ação ou omissão que coloca
ou causa dano à integridade física. A violência institucional que é gerada por desigualdades,
tanto de gênero, étnico-raciais ou econômicas que são predominantes em todas as
sociedades.
Já em um âmbito onde não é visível encontra-se a violência moral que se destina a
caluniar, difamar ou injuriar a honra ou a reputação da ofendida, e a violência psicológica
que é a ação ou omissão que controla ou degrada os comportamentos, as crenças e as
decisões pessoais da mulher, manipulando a sua intimidade de forma direta ou indireta,
humilhando, isolando ou praticando qualquer outra conduta que implique em prejuízo
psicológico, afetando inclusive o seu desenvolvimento pessoal. A lei garante proteção ao
patrimônio da mulher também, em razão de que o dano, perda, subtração, destruição ou
retenção de objetos como documentos pessoais, bens e valores é configurado como violência
530

patrimonial. Sem olvidar, a violência sexual que é a ação em que o agressor obriga a mulher
a manter contato sexual, físico ou verbal, ou até mesmo de participar de outras relações
sexuais mediante uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação,
ameaça ou qualquer outro mecanismo que limite a vontade pessoal da mulher. Quando o
agressor obriga a vítima a realizar alguns desses atos com terceiros também se configuram
violência sexual.
Conforme se verifica, existe uma grande força histórica nessas atitudes, uma sociedade que
perpetua o machismo, ou seja, mantém aquele padrão em que a mulher é submissa a homem.
Apesar de legislação própria para prevenção a assistência para a mulher, o aumento
dos números da violência doméstica no Brasil, é constante. O Brasil é marcado por uma
sociedade em que a igualdade de gênero ainda é uma luta diária, onde as mulheres precisam
lutar pelo seu espaço na sociedade, onde precisam buscar incisivamente serem ouvidas e
respeitadas da mesma forma que os homens.

2. MARIA DA PENHA, A LEI 11.340/06

A Lei 11.340/06 recebeu o nome de Maria da Penha, em razão de uma vítima de


violência doméstica chamada Maria da Penha que sofreu tentativa de homicídio por duas
vezes quando seu esposo a atingiu com um tiro em suas costas, deixando-a paraplégica e a
segunda vez, quando o mesmo tentou eletrocutá-la. Seu ex-marido foi julgado e condenado
por duas vezes, porém acabou saindo em liberdade em razão de recursos impetrados por seus
advogados e da falta de proteção que a lei dava em situações de violência doméstica.
No ano de 1994, Maria da Penha escreveu um livro em que conta toda a sua história
de violência e em 1998 em parceria com o CLADEM4 e CEJIL5, denunciaram o Brasil para
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.
Denuncia esta em que condenou o Brasil a efetuar mudanças na sua legislação, ou seja, que
dessem uma maior visibilidade para a proteção da mulher. E assim, o governo federal,
através da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres em parceira de cinco organizações
não governamentais, renomados juristas e atendendo aos importantes tratados
internacionais assinados e ratificados pelo Brasil, criou um projeto de lei que após aprovação

4
Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
5
Centro pela Justiça e o Direito Internacional
531

por unanimidade na Câmara e no Senado Federal foi em 07 de agosto de 2006, transformado


como Lei Federal 11.340 - Lei Maria da Penha.
A lei tem como objetivo a proteção da mulher, visando coibir a violência em todas as
suas formas, praticadas por pais, filhos, netos, primos, amigos, companheiros, tios, etc. Não
existe um perfil exato para o tipo de agressor, basta esse ser o sujeito ativo deixando a mulher
como sujeito passivo nessas situações por isso que não é aplicada aos homens que sofrem
agressões, mas isso não impede que tenham a proteção da legislação. As vítimas podem ser
esposas, filhas, avós, tias, primas, amigas, entre outros.
A violência doméstica contra a mulher constitui-se de um conflito de gênero,
portanto, não se pode deixar de analisar esse conflito como uma relação de poder, entre o
gênero masculino, representado socialmente como forte, e o gênero feminino, representado
socialmente como fraco.6
A norma não distingue a orientação sexual, podendo ser aplicada em casos em que
a mulher sofre violência de sua companheira, proteção essa definida no artigo 5° da referida
lei.
No entanto, ainda foi bem difícil que pudesse ter a compreensão que a lei seria apenas
de proteção à mulher, muitos juízes declaravam inconstitucional a lei em razão de alegarem
existência de discriminação entre homem e mulher. A presidência da república ingressou
com ação de constitucionalidade, objetivando declarar o artigo 1° da lei como constitucional
através da ADC n. 19.
No ano de 2016, a Lei completou 10 anos de sua existência e através desse fato tornou
possível tipificar a violência contra a mulher, criando um resguardo que a mulher não tinha
antes da implementação da lei. O Código Penal, Decreto-lei n. 2.848, de 7-12-1940, antes
de 2015 não incluía a proteção à mulher em casos de homicídio, tratava-a como um
resguardo geral mencionando o homicídio (art. 121 Código Penal) e lesões corporais (art.
129 Código Penal), tendo suas respectivas punições, mas sem definir se é aplicável ao
homem ou a mulher, neste caso é aplicada em qualquer pessoa. Atualmente, o feminicidio é
uma qualificadora do crime de homicídio, do art. 121 do Código Penal.

6
MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Revan,
2015, p. 115.
532

Antes da ADI n. 4.424 as lesões causadas no âmbito doméstico eram tratadas como
lesões de natureza leve, sendo regidas pela Lei 9.099/95 que trata de julgamento de infrações
de menor potencial ofensivo.
Desse modo, por ser tratada como infração de menor potencial ofensivo e de acordo
com o artigo 88 da Lei 9.099, seria o caso de ação condicionada à representação, em muitos
casos a vítima não representava contra o agressor. Ocorre que, quando o próprio código penal
e a legislação complementar foram criados não estavam preparadas para crimes no âmbito
doméstico, por se tratar de “problemas familiares”, em 90% dos casos sempre terminava em
reconciliação do casal. No ano de 2004, houve mudanças no Código Penal objetivando coibir
e prevenir a violência doméstica, porém ainda existia a incidência da lei 9.099. Em 2012, o
Supremo Tribunal Federal, com o relator Marco Aurélio teve um entendimento diverso ao
problema que a lei estava enfrentando, decidindo através da ADI n. 4.424, que a lesão
corporal resultante de violência doméstica contra a mulher seria uma ação pública
incondicionada. Desse modo, ao verificar o artigo 41 da Lei 11.340/2006:

Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,


independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de
setembro de 1995.

Percebe-se que este afastou a incidência da legislação em que tratava a violência


doméstica como infração de menor potencial ofensivo por se tratar de lesão de natureza leve.
Portanto, o resguardo e a proteção que a mulher necessitava, foi implementada
através da Lei 11.340/06, desqualificando assim, a aplicação da Lei dos Juizados Especiais
(9.099/95). Sendo esses crimes julgados pela vara especializada ou na sua falta, pela vara
criminal.

3. A MEDIDA PROTETIVA COMO FORMA DE COIBIR A VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA

A Lei 11.340/06 visa criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher nos termos do parágrafo 8° do art. 226 da Constituição Federal, em que
esclarece que o Estado é responsável por assegurar assistência à família na pessoa de cada
um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas
relações.
533

O art. 16 da Lei permaneceu com o direito que a mulher tem de escolher, nos casos
de ação penal pública condicionada a representação. Anteriormente a lei, era normal
mulheres retirarem a queixa que tinha sido feita na delegacia, bastava a mulher dizer que
não tinha interesse no prosseguimento do feito. Porém, após a lei de acordo com o artigo
referido, essa retratação poderá ser feita apenas em juízo, onde terá uma audiência designada
com essa finalidade, a ofendida precisa informar o motivo da renúncia. O motivo dessa
condição seria evitar que a renúncia da ofendida fosse resultado de ameaça do agressor,
sendo assim uma forma de proteger a vítima.
Ocorre que, o legislador explana que o Estado possui essa responsabilidade com
todos os integrantes da família, porém não especifica quais são as medidas cabíveis para
coibir a violência que possa existir no âmbito doméstico, deixando uma interpretação vaga
ao seu significando.
O problema é que se não há uma definição própria para quais medidas devem ser
tomadas acaba abrindo brechas para diversas interpretações e o que está aparelhado não surte
o efeito prometido. Visando a solução desta problemática na Lei Maria da Penha, no capítulo
II da referida Lei, estão as Medidas Protetivas, que são medidas cautelares concedidas pelo
juiz para a vítima objetivando proteger sua integridade física, psíquica e patrimonial.
Essas medidas poderão ser concedidas pela autoridade policial ou judicial, requeridas
pelo Ministério Público ou pela própria ofendida, serão concedidas de imediato
independente de audiência e de manifestação do Ministério Público, que deverá ser
comunicado imediatamente. Ocorre que nem todas as cidades do País possuem juízes de
plantão, juizados especializados ou até mesmo centros que possa acolher essa vítima em
qualquer dia ou horário, acaba deixando a vítima em situação de risco mesmo que no
“sistema judiciário” e no boletim de ocorrência possua a medida protetiva. Cabendo ao juízo
um prazo de 48 horas para efetuar as diligências necessárias.
O art. 22 trata das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor, sendo
elas a suspensão da posse ou restrição do porte de arma, se houver; afastamento do lar,
domicílios ou local de convivência com a vítima, ou seja, essa medida trata de evitar
qualquer contato que o agressor possa ter com a vítima evitando assim, a sua reincidência
no fato; e a proibição de determinadas condutas, como se aproximar, falar e frequentar
lugares que possam deixar o agressor próximo a vítima, a legislação autoriza que seja
determina uma distância entre as partes. Já o art. 23 trata das Medidas Protetivas de Urgência
534

à Ofendida que não trazem prejuízos a outras medidas, que seriam encaminhar a ofendida e
seus dependentes para programa oficial ou comunitário de proteção ou atendimento;
determinar a recondução da ofendida do lar, sem prejuízo de direitos relativos a bens, guarda
dos filhos e alimentos; e determinar a separação de corpos. Não é apenas a proteção física
que a legislação garante, mas também a proteção patrimonial da ofendida, assegurada no art.
24. Que apesar de ser uma violência comprovada, muitos profissionais de segurança pública
se recusam a realizar boletim de ocorrência.
Por se tratar de violência doméstica, haverá a intervenção do Ministério Público,
visando sempre o bem-estar da ofendida, assegurando que não haja reincidência dos fatos,
tomando as medidas asseguradas em legislação. A grande problemática encontrada nessas
Medidas é a efetiva eficiência, permanente ou momentânea. Ao verificar o conteúdo da
norma, entende-se que as políticas que na teoria são adotadas, deveriam ser de efeito
permanente, porém na maioria dos casos, ocorre de forma breve.
O art. 20 assegura a utilização da prisão preventiva que pode ser decretada de oficio
pelo juiz, mediante requerimento do Ministério Público ou de representação da autoridade
policial. Nesta senda, essa medida é uma forma de assegurar maior proteção à vítima. Com
a promulgação da lei os casos de violência doméstica tomaram maior visibilidade, porém
ainda necessita de mudanças para tornar a lei mais eficaz.
Contudo, na prática, ainda é difícil a concessão das medidas protetivas, pois alguns
magistrados entendem que não existem provas suficientes da agressão sofrida pela vítima,
mas em decisões do Tribunal de Justiça/RS, a violência doméstica por se tratar de ato
executado dentro do âmbito familiar não precisam, necessariamente de testemunhas e provas
concretas da agressão, podendo bastar apenas a palavra da vítima que possui especial
valoração. Verificamos esse entendimento na Apelação Criminal n° 70072261738, Terceira
Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, relator Ingo
Wolfgang Sarlet, julgado em 12/04/2017.
Ainda, seguindo o mesmo entendimento tem a Apelação Crime de processo n°
1025850-7, julgada pela 1ª Câmara Criminal, relator Marcedo Pacheco, do Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná. E por fim, a Apelação Crime n° 0001088-57.2016.8.24.0038 ,
julgada pela Segunda Câmara Criminal, relator Sérgio Antônio Rizelo, do Tribunal de
Justiça do Estado de Santa Catarina.
535

Com a sanção da Lei 13.641/18, criou um novo tipo penal na Lei 13.340/06,
adicionando o artigo 24-A instituindo o crime de Descumprimento de Medidas de Urgência,
tal mudança precisa ser considerada um avanço pois existindo uma tipificação para tal crime
compõe a lista de formas de coibir a reincidência da violência.
Na sociedade sempre existiu a violência doméstica, a diferença é que atualmente
movimentos que lutam pelos direitos da mulher e o Poder Judiciário, criam campanhas para
dar visibilidade a esses casos, incentivando as vítimas a denunciarem seus agressores
mostrando que a lei irá protegê-las.
Em algumas regiões é difícil combater a violência em razão de não possuírem os
Centros e Unidades de Atendimento que a legislação prevê. Analisando o que a lei tem
oferecer, já se encontra a problemática do artigo 23, quando dispõe das medidas que são:
encaminhar à ofendida e seus dependentes a programas oficiais ou comunitários de
atendimento, determinar a recondução da ofendida e de seus dependentes ao domicílio, após
o afastamento do agressor, bem como determinar que a ofendida se afaste do lar e determinar
a separação de corpos, chega-se então, ao ponto mais polêmico da legislação, pois não há
em todas as cidades rede de apoio e atendimento para a vítima.
O Estado não dispõe de condições para acolher a vítima e colocá-la a salvo de seu
agressor, a mulher se vê obrigada a permanecer na casa de parentes e amigos com seus filhos,
causando um risco permanente a todos.7

3.1.APLICABILIDADE DAS MEDIDAS PROTETIVAS NO ESTADO DO RIO


GRANDE DO SUL

No Estado do Rio Grande do Sul, só no primeiro semestre de 2020, no quantitativo


de medidas protetivas concedidas, foram 54.699. Já de prisões, foram decretadas 8633
prisões. Acredita-se que esse aumento desmedido sejam efeitos do isolamento social
motivado pela Pandemia de COVID-19, pois as vítimas se viram na hipótese de ficar em
isolamento junto de seus agressores, infelizmente os números em todo Brasil aumentaram.

7
DIAS, Maria Berenice. Medidas protetivas mais protetoras. Disponível em
<http://www.mariaberenice.com.br/>
536

Nesses primeiros seis meses de 2020, foram criadas campanhas de prevenção, como
Mascara Roxa8 e a campanha Sinal Vermelho Contra a Violência Doméstica9.

4. A PUNIÇÃO DO AGRESSOR COMO PROTEÇÃO PARA A MULHER


VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Como já referido no presente artigo, uma das formas que o judiciário utiliza para
reforçar a proteção da mulher é utilizando-se da prisão preventiva, sendo uma atuação legal
embasada no artigo 21 da Lei 11.340/6, onde afirma que o juiz poderá decretar a prisão
preventiva do agressor em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, a
requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial, mas
sempre visando o melhor interesse da vítima.
Chega-se à conclusão através de artigo publicado pela Promotora de Justiça do
Estado do Rio Grande do Norte, Erica Verícia Canuto de Oliveira Veras, quando eram
descumpridas as medidas protetivas de urgência, como por exemplo não se aproximar, o STJ
entendia que deveria ser decretada a prisão preventiva se preenchesse todos os requisitos dos
artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal, para assim evitar um constrangimento legal.
Porém, é necessário entender que a decretação de prisão preventiva para garantir o
processo seria diferente daquela cominada para garantir que a medida protetiva fosse
executada. Nessa linha, o legislador implementou a Lei 12.403/11 que altera o artigo 313
do Código de Processo Penal, incluindo o inciso III em que afirma que se o crime envolver
violência doméstica e familiar contra a mulher caberá a decretação desta.
Sendo esse um requisito que deveria ter sido implementado no artigo 312 do Código
de Processo Penal, que trata dos requisitos para decretação da cautelar, mas isso não retira o
seu caráter legal.
No entanto, a prisão preventiva não possui prazo determinado, mas precisa respeitar
o princípio da proporcionalidade, ou seja, respeitando o direito que o agressor possui perante
a constituição, como ampla defesa e principalmente respeitando o princípio da dignidade da
pessoa humana.

8
Campanha apoiada pelo Tribunal de Justiça/RS.
9
Campanha idealizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB).
537

Para que a prisão preventiva seja aplicada de uma forma adequada é necessário
conhecer os elementos ligados ao princípio da proporcionalidade, sendo eles: a adequação,
a necessidade e a proporcionalidade.10
Atualmente vive-se um problema chamado “população carcerária”, que vem
aumentando de ano em ano. O Brasil em um ranking mundial, possui a 3ª maior população
carcerária. É evidente que o país não possui um sistema carcerário “justo”, o sistema pune o
criminoso através de castigos, ou seja, permanecer trancado durante um período determinado
por sentença sem a persistência de uma ressocialização.
As políticas públicas além de necessitarem colocar em prática as medidas que
constam em lei, necessitam também achar uma forma de ressocializar o agressor, para que
não ocorra a mesma situação com outra mulher. Pois o mesmo permanece durante um
período “x” em um sistema carcerário falho, que é a realidade do país, e após essa “punição”
o agressor tem uma grande chance de voltar à sociedade mais violento, podendo o levar ao
cometimento de feminicídio.
Muitos agressores, repetem comportamentos que viveram na infância, outros
utilizam o ciúme como motivo para tal ação, tratando a mulher como sua propriedade, no
inicio dos tempos a sociedade era patriarcal, ou seja, o homem é que comandava a família.
O Direito Penal é aplicado como forma de punição, se configura um processo de
despersonalização do agressor, tudo que acontecer durante o processo será visto de forma
abstrata, ignorando sua história de vida.11
Já que a intervenção ocorre sobre os efeitos e não sobre as causas que levaram a essa
situação, intervindo sobre pessoas e não situações, acaba ignorando todos os fatos anteriores
ao delito. A intervenção do Estado pelo direito penal é feita de forma reativa e não
preventiva.
Entende-se que o sistema acredita que quando uma pena é imposta, os problemas são
resolvidos ou neutralizados. Na maioria dos casos, quando o agressor é preso a primeira
visita que ele recebe é a de sua companheira. Através do nosso sistema carcerário percebe-
se que Foucault tem razão, quando afirma que a prisão fabrica delinquentes, pois são
submetidos a tratamento desumano, estando isolados por tempo indeterminado em celas.

10
DA SILVA BELO, Eliseu Antônio. O artigo 41 da Lei Maria da Penha frente ao princípio da
proporcionalidade. Verbo Jurídico, 2014, p. 47.
11
BARATTA, Alessandro. Criminologia y Sistema Penal. Buenos Aires: IBdef, 2004.
538

Segundo o Estado, essa é a melhor forma de punir um criminoso, isolando-o, preocupando-


se apenas em punir e não o ensinar a fazer parte da sociedade novamente.
Sabe-se que a execução penal possui vários princípios que a regem, sendo o da
humanidade, proporcionalidade e legalidade separados como os mais importantes para o
tema apresentado no artigo. O princípio da humanidade acaba sendo a base para todos os
princípios penais.12
Foi consagrada através da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 10 de
dezembro de 1948, onde afirma em seu artigo 5°: “ninguém será submetido à tortura, nem a
tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”, bem como, As Regras Mínimas para
Tratamento de Prisioneiros, em que não apresenta o sistema carcerário modelo, no entanto,
apresenta formas de não retirar a “humanidade” dos prisioneiros através de tratamentos
degradantes e cruéis. (Declaração dos Direitos do Homem, 1948)
Na sua regra 11, consta que os prisioneiros devem ser separados por categorias,
infelizmente no sistema carcerário brasileiro é uma regra que não é seguida, pois no mesmo
local que se encontra o condenado por homicídio ficará aquele que atrasou a pensão
alimentícia e aquele que agrediu a esposa, todos cometeram delitos, no entanto, são de
diferentes penalidades.
No caso do agressor, como já referido acima, possui algum tipo de problema
alcoólico, transtorno de raiva ou até mesmo reproduz aquilo que sofreu na infância,
evidenciando a necessidade de ajuda profissional, com psicólogos/psiquiatras. São todos
tratadas de forma igual, porém de uma forma negativa, dificultando a reabilitação daqueles
que tem oportunidade ou cometeram delitos isolados, como o agressor.
Além de referir na regra 12, que os prisioneiros devem ter acomodações adequadas,
que não devem ser ocupados por mais de um preso, entende-se que cada sistema é diferente
por influência de vários fatores, como o financeiro, no entanto, atualmente no Brasil as celas
possuem mais pessoas que deveriam, resultando na superpopulação carcerária. (Regras
Mínimas para Tratamento de Prisioneiros, 2016)
Já o princípio da proporcionalidade, visa avaliar a necessidade do encarceramento,
no artigo 41 da Lei 11.340/06 a sua redação afasta o julgamento de processos de violência
doméstica de serem regidos pela lei 9.099/95, no entanto, entende-se a necessidade de
proteção da mulher, que a violência doméstica é um problema mundial grave, mas quando

12
ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria e crítica. Editora Saraiva, 2014.
539

o legislador retirou a sua aplicação, retirando também a possibilidade de pagar sua


condenação pecuniária(multa ou cesta básica) acabou excedendo e ferindo o princípio da
proporcionalidade. (Belo, 2014)
Mas em razão da gravidade da situação e por ocorrerem em âmbito familiar, onde
não há testemunhas entende-se cabível o entendimento do legislador quando retirou a
aplicação da lei dos Juizados Especiais Criminais de delitos que envolvem violência
doméstica.
Entende-se então a necessidade de políticas públicas não apenas par as vítimas, mas
também para os agressores, sendo estas uma das formas de ligar os laços familiares e
proteger as mulheres vítimas de violência.

5. POLÍTICAS PÚBLICAS PROTETIVAS PARA A MULHER VÍTIMA DE


VIOLÊNCIA

É necessário que existam investimentos em políticas públicas, ações que possam


proporcionar uma maior segurança e proteção a vítima, como a criação de Juizados especiais
e de centros que atendam essa vítima, com profissionais da área, especializados. A lei não
deverá ser considerada criminal, pois não é matéria de direito penal, por isso que para o
penal, essa lei trouxe poucos benefícios. Por se tratar de um assunto em que afeta laços
familiares, deve ser vista pela esfera do Direito de Família, sendo uma ação afirmativa e que
dispõe de público alvo determinando, como aduz Maria Berenice Dias. Mesmo que se trate
de uma questão criminal, afeta os laços familiares.
Como já aduzido, a lei soluciona problemas no presente, que seria evitar a agressão
momentânea, utilizando-se das medidas para proteger e afastar o agressor. Segundo Maria
Berenice Dias, é necessário que haja um resgate da cidadania feminina, investindo em
políticas públicas, porque por mais que as denúncias tenham um aumento significativo, as
mulheres ainda sentem medo e vergonha de procurar o Estado e este não possuir mecanismos
suficientes e eficientes para manter a vítima a salvo do agressor.
Essas mudanças precisam ser no sentido restaurativo da vítima, como já mencionado,
a sociedade sempre tratou a mulher como o sexo frágil e tornou o homem como o seu
protetor, dificultando as denúncias em razão da dependência não só emocional, mas
principalmente econômica. Pois se, a sociedade tornou o homem como o provedor, o chefe
540

de família, o único que traz estabilidade econômica na família, a vítima entende que se ela é
dependente economicamente não possui emprego ou qualquer estabilidade financeira não
adiantará de nada denunciar, efetivar as ações como afastar o agressor do lar e esta viver em
situação de miséria, na sua maioria com seus filhos menores.
É necessário que existam ações positivas do Estado, ou seja, do Poder Executivo,
como um melhor atendimento tanto no Sistema Único de Saúde como no Sistema Único de
Segurança Pública, para que assim quando o magistrado receber a necessidade da medida
protetiva saiba para enviar a vítima.13 (Montenegro, 2015)
A dificuldade existe após a denúncia e o afastamento do agressor do lar, pois a vítima
não tem estabilidade financeira, não trabalha e não tem incentivo para encontrar alguma
coisa lhe traga satisfação pessoal, algo que foi perdido há muito tempo.
No ano de 2013, a Presidente Dilma Rousseff assinou o decreto 8.086/13, instituindo o
programa “Mulher, Viver Sem Violência”, objetivando integrar e ampliar os serviços
públicos já existentes às mulheres em situação de violência, mediante atendimentos
especializados na Saúde, Justiça, Segurança Pública, criando também uma rede assistencial
e principalmente, visando promover a autonomia financeira da vítima.
Assim, como esse programa vários outros foram instituídos como: Delegacia da
Mulher, que acaba sendo um setor dentro da Policia Civil objetivando fazer o atendimento à
mulher no momento da denúncia, trazendo profissionais especializadas para ouvir e orientar
da melhor forma a vítima. Ainda, a Patrulha Maria da Penha que é fruto de Projeto de Lei
do Senado n° 547/2015, que visa dar um acompanhamento posterior a aplicação das medidas
protetivas, onde a Policia Militar especializada nesses casos de violência fiscaliza se as
medidas aplicadas estão sendo cumpridas pelo agressor. É preciso haver um investimento
ao nível do PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego),
visando a autonomia financeira da mulher vítima de violência, orientando-a que ela pode se
estabelecer economicamente sem o seu companheiro, que ela pode ser a provedora da
família, tornando-a independente.
Existem muitos programas de assistência a mulher no Brasil, ajudando na sua
independência tanto afetiva como financeira, porém nem todas as regiões do país possuem
essa assistência. Geralmente esses centros e unidades são comuns em capitais, onde possuem
maior recurso, mas é necessário que o Estado enxergue também aquelas vítimas que residem

13
MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Ed. Revan, 2015.
541

no interior dos Municípios, que não possuem estudo ou condições de vida digna, sendo
primordial a ampliação desses programas e serviços. Em locais que por algum motivo não
se consegue aplicar esses centros, poderiam ser usadas Unidades Móveis de Atendimento,
como já existe em várias regiões do país. Além de investir na especialização daqueles que
trabalham na Central de Atendimento – 180.
Ainda vale mencionar, pesquisa realizada pela autora Marilia Montenegro em seu
livro, “Lei Maria da Penha: uma análise crítica-criminológica”, a maioria dos casos que
chegam no Juizado da Mulher são de vítimas e agressores que residem nas zonas mais pobres
da cidade, bem como possuem uma baixa escolaridade.
Para que dê certo é necessário que o legislador crie os mecanismos descritos em lei,
pois se percebe que mesmo com uma lei que protege tanto a mulher o número de processos
tem aumentado. Em razão dessas lacunas mencionadas, o legislador “deixa a desejar” a
eficiência das medidas protetivas.
O judiciário trabalha constantemente na assistência dessas mulheres, infelizmente
não é o suficiente, sendo necessária a criação de mais Varas Especializadas em Violência
Doméstica e Familiar, investindo na especialização desses magistrados, preparando-os para
melhor assistir a mulher. Existem as Promotorias Especializadas e Núcleos de Gênero do
Ministério Público, que move a ação penal pública, fazendo o possível para garantir os
Direitos da Mulher, além de ter autoridade para fiscalizar todos os locais públicos e privados
que façam a assistência a mulher.
A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul também possui um núcleo de
defesa da mulher, prestando assistência à mulher vítima de violência, como orientação
jurídica, apoio psicológico e o ajuizamento de ações necessárias conforme a situação, por
exemplo, ação de alimentos, divórcio, dissolução de união estável, guarda, entre outras.
Atualmente, uma das formas de restaurar os laços familiares rompidos pela constante
violência e falta de diálogo, é a utilização da Justiça Restaurativa, onde círculos com vítimas
e agressores, bem como psicólogos e assistentes sociais que trabalham as relações quebradas,
pois em sua maioria existem menores envolvidos.
Como já mencionado acima no presente artigo, grande parte da violência é resultado
de agressores com problemas de alcoolismo ou até mesmo, no controle da raiva, oriundos
de doenças como TEI (Transtorno Explosivo Intermitente), sendo esses um dos objetivos
desses círculos de restauração.
542

Talvez o primeiro grande passo seja, explicar para a mulher vítima de violência e de
dependência afetiva e financeira, que ela tem potencial e oportunidades para se reerguer na
sociedade, mostrar que o Estado está trabalhando permanentemente na aplicação da lei e na
criação de novos serviços que possam ajudá-la a voltar a ter sonhos. Fazer a mulher sentir-
se segura dentro da sua própria residência, sabendo que lá fora existe um mecanismo de
proteção e serviços que não a abandonarão. Pois não adianta, a lei exigir que esses serviços
existam sendo que na prática nem todas possuem esse acesso.
O Estado deve estabelecer uma punição para o agressor, só que a problemática
também se encontra na punição e na pós-punição, o que ocorrerá com a vítima e com o
agressor após esse período, a lei quando pune o agressor tenta “resolver” a situação atual,
mas sem se preocupar em tentar saber a origem ou tentar restaurar aquele vínculo familiar
que foi quebrado.
Muitas vezes as vítimas aceitam representar contra o agressor, porém em razão de
sua baixa autoestima, e agravada por problemas psicológicos, essas vítimas não querem
deixar seus companheiros, apenas buscam o fim dessa violência. As políticas públicas devem
atingir também o agressor, de acordo com o entendimento de Maria Berenice Dias, a justiça
deve colocar-se como pacificadora, o que significa muito mais do que forçar acordos ou
encarcerar o agressor.
Devendo utilizar medidas como, frequência a grupos de terapia para a vítima e
principalmente, ao agressor, sendo essa, uma forma de conscientizá-lo que o lar é local de
afeto e respeito. Acredita-se que um dos grandes desafios do Estado seja efetivar a punição,
mas de uma forma restaurativa, penitenciar, mas evitando que se concretize a mesma
situação ou pior no futuro, assegurando proteção à vítima e reabilitação do agressor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do presente estudo reforçou a infeliz situação de que a mulher


ainda sofre com a desigualdade de gênero. Analisou a sua evolução histórica na sociedade
com os movimentos feministas em busca da igualdade de gênero, apesar de muitas
conquistas ainda o caminho é longo a percorrer.
No entanto, ao analisar a história e a motivação da criação da lei para proteção da
mulher vítima de violência doméstica, nota-se que ainda é uma luta muito recente pois a lei
recém completou 14 anos de sua promulgação e mesmo assim os casos de violência
543

doméstica no Brasil aumentam a cada ano, principalmente no ano de 2020, em razão do


isolamento social.
Foi possível entender que a lei possui mecanismos aptos para proteção da mulher,
contudo existe uma certa dificuldade na sua aplicabilidade, pois o legislador criou soluções,
mas apenas na forma teórica, dificultando a sua aplicação na prática por não haver ações
positivas suficientes e investimentos para a realização dos projetos descritos na lei.
Como já mencionado no desenrolar do artigo, o Estado não possui condições por
exemplo de capacitar todos os profissionais de todas as cidades do Brasil ou criar abrigos e
centros/unidades que possam auxiliar essa vítima no momento em que sai de sua residência.
Até mesmo policiais capacitados no momento de a vítima fazer o Boletim de Ocorrência,
por muitas vezes a má capacitação acaba amedrontando a vítima e impossibilitando que a
mesma possa fazer um boletim, apesar de que já existem muitos profissionais da segurança
pública capacitados para esse tipo de atendimento.
Foi importante notabilizar que a violência doméstica não é apenas aquela que é
visível, mas também aquela que pode afetar a saúde mental da mulher, além de dificultar sua
realização pessoal e profissional, trazendo consequências de difícil recuperação, não apenas
para as vítimas, mas também para seus familiares.
No decorrer do artigo, foi mencionada a medida protetiva como uma forma de coibir
a violência doméstica, entretanto, ao verificar o número de processos decorrentes de
violência doméstica entende-se que a cautelar atualizada para a proteção da mulher vítima
de violência e de seus familiares, não é suficiente pois não adianta o juiz conceder uma
medida que é apenas documental e as vítimas não terem apoio e assistência em lugares
especializados para tal, como consta nos artigos da Lei 11.340/06.
Existe a necessidade de colocar em prática as políticas públicas que foram
mencionadas na Lei, como a criação de locais apropriados para dar a assistência que a vítima
e seus familiares necessita. Por muitas vezes, as vítimas acabam “perdoando” seus
agressores por não terem onde ficar e por tais atitudes são julgadas pela sociedade que ainda
acha que mulher que continua com o marido depois de uma agressão é porque “gosta de
apanhar’, sendo essa uma definição completamente errada.
Pois por muitas vezes, problemas nefastos como a violência doméstica são
consequências de uma infância, juventude ou até vida adulta problemática, problemas com
álcool e até relacionados a saúde mental que são tratados com o devido cuidado.
544

Compreendeu-se que o Estado e as condições que oferece não visam restaurar os


laços familiares que foram destruídos por um episódio de violência, apenas punir aquela
agressão, o que é correto, no entanto o problema não é totalmente solucionado pois não tenta
saber o que originou o comportamento do indivíduo e não busca uma forma de ajudar a
vítima e o agressor.
O presente artigo teve como objetivo principal descobrir se as medidas protetivas são
realmente efetivas e eficazes no momento que são concedidas e se de alguma forma
conseguem coibir a violência ou cessá-la.

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546

A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO MÉTODO DE


PACIFICAÇÃO E HUMANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES

Joice Raddatz1

Resumo: A mediação de conflitos vem sendo cada vez mais utilizada no Brasil, tanto no
âmbito judicial quanto no privado, como método voluntário de resolução de conflitos em
que um terceiro neutro atua como mediador, facilitador do diálogo e harmonizador da
relação, permitindo às partes envolvidas a sua aproximação e comunicação visando a um
acordo. Tem como característica o protagonismo das partes, onde a responsabilidade pela
construção desse acordo é das próprias partes. O presente artigo, utilizando-se de referências
de diversos autores e dos métodos hermenêutico, analítico e dedutivo, pretende abordar a
visão da mediação como instrumento capaz de contribuir para a pacificação social e a
humanização das relações, justificando assim a importância de sua utilização como
alternativa a soluções impostas por terceiros intervenientes. Através da análise de obras e
textos sobre o tema, a compreensão da mediação é apresentada como instrumento
pacificador de conflitos com base nas suas características e resultados positivos, concluindo-
se que o principal aspecto que a torna um método pacificador e humanizador diz respeito ao
poder decisório das partes, que permite um maior equilíbrio nas relações sociais e humanas
e uma maior satisfação pessoal dos envolvidos.

Palavras-chave: Mediação. Protagonismo. Pacificação Social. Humanização.

1 INTRODUÇÃO

No presente trabalho, pretende-se demonstrar alguns aspectos da mediação de


conflitos classificada por diversos autores como importante método de pacificação social
diante das suas características procedimentais e dos resultados positivos que é capaz de
produzir nas relações sociais e humanas.
Parte-se do conceito de mediação e do papel do mediador, da sua apresentação como
método autocompositivo e cooperativo, e da descrição e análise de diversos textos e obras
publicados sobre o tema, que não raro mencionam seu aspecto pacificador.
Aborda-se a regulamentação da mediação no Brasil e as razões pelas quais tem sido
adotada como meio alternativo à jurisdição, especialmente diante da morosidade do Poder

1
Advogada, formada pela UNISC/RS, especialista em Direito Ambiental pela UFRGS, inscrita na OAB/RS n.
33.973. Mediadora judicial e privada, com certificação pelo TJRS e ICFML. Atua como mediadora judicial
junto a Centros Judiciários de Resolução de Conflitos do TJRS. E-mail: joice@raddatz.com.br
547

Judiciário e de sentenças que, muitas vezes, desagradam a ambas as partes, não considerando
seus reais interesses.
Fenomenologicamente, apreende-se que a pacificação social também decorre de
experiências observadas a partir de mediações em que o consenso se estabeleceu devido a
decisões construídas pelas próprias partes em conflito, que tiveram seus interesses atendidos
e, assim, puderam restabelecer o diálogo e muitas vezes o convívio, demonstrando o caráter
harmonizador da técnica utilizada.
No transcorrer do trabalho, portanto, são apresentadas considerações sobre essa
importante forma de resolução de conflitos, que é a mediação, vista como mecanismo de
construção da paz, concluindo-se que seu aspecto pacificador e humanizador advém
especialmente do protagonismo das partes envolvidas, que através de um processo de
comunicação e escuta, passam a ser atores de suas próprias decisões, trazendo maior
comprometimento, segurança, satisfação e equilíbrio às relações.

2 A MEDIAÇÃO E O PAPEL DO MEDIADOR

Diante da insatisfação crescente da sociedade com o serviço de justiça, que muitas


vezes não atende às suas reais necessidades, seja pela morosidade ou por soluções ineficazes,
um dos mecanismos que vem ganhando cada vez mais espaço é a mediação, que busca
consolidar um sistema mais efetivo de resolução de conflitos.
Na vida humana, a mediação está presente desde os seus primórdios. Segundo o
mediador Juan Carlos Vezzulla, os povos antigos costumavam adotar a mediação por sua
busca pela harmonia interna e em prol da preservação da união necessária à defesa contra os
ataques de outros povos. Também no Ocidente, sua busca revela-se ligada à procura da
preservação da paz interna, que possa assegurar uma sociedade na qual se viva melhor e com
condições de enfrentar a globalização sem perda da individualidade.
No Brasil, a regulamentação da mediação deu-se por meio da Lei 13.140/2015, a qual
dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a
autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.
548

De acordo com a Lei, a mediação é considerada uma “atividade técnica exercida por
terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e
estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”2.
Na doutrina, Francisco José Cahali (2012) apresenta a mediação com o seguinte
conceito:
[...] a mediação é um dos instrumentos de pacificação de natureza autocompositiva
e voluntária, no qual um terceiro, imparcial, atua, de forma ativa ou passiva, como
facilitador do processo de retomada do diálogo entre as partes, antes ou depois de
instaurado o conflito3.

O Código de Processo Civil Brasileiro adota o modelo de mediação passiva, em que


não existe a intervenção direta do mediador, que apenas exercerá o papel de facilitador do
diálogo entre as partes, sem apresentar seu ponto de vista ou possíveis soluções, utilizando-
se de técnicas de aproximação que contribuem para um possível entendimento, que será
construído pelas próprias partes.
Seu papel consiste em explicar as regras, princípios, limites da mediação, com o
objetivo de levar conhecimento e segurança sobre o procedimento, trabalhando os interesses
e necessidades das partes, sempre ressaltando sua condição de neutralidade e sua atuação
facilitadora, permitindo que as próprias partes construam uma decisão. O mediador aproxima
as partes e as instiga a pensar.
Jacob Bercovitch (2002), autor de diversos livros e artigos sobre os aspectos da
resolução internacional de conflitos, ensina que os esforços da mediação no contexto da
construção da paz dependem de vários aspectos, especialmente de quem são os mediadores,
seus recursos e competências, de quem são as partes, a natureza de sua interação, o contexto
do conflito e do que está em jogo:

What mediators do, can do, or are permitted to do in their efforts to resolve a
conflict may depend largely on who they are and what resources and competencies
they can bring to bear. Furthermore, mediation efforts in the context of
peacebuilding are highly dependent on who the parties are, the nature of their
interaction, the context of the conflict, and what is at stake 4.

2
Lei 13.140/2015, artigo 1º, parágrafo único. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13140.htm. Acesso em: 21 out. 2019.
3
CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 57.
4
BERCOVITCH, Jacob; KADAYIFCI, Ayse."Exploring the Relevance and Contribution of Mediation to
Peace-Building," Peace and Conflict Studies: Vol. 9 : No. 2 , Article 2. 2002., p. 25. Disponível em:
https://nsuworks.nova.edu/pcs/vol9/iss2/2. Acesso em: 21 out. 2019.
549

Segundo Jean-François Six (2001), “O mediador, portanto, é primeiramente alguém


que faz comunicar, que faz passar uma corrente. Aquele que não tem este desejo primeiro
de criar ligações não pode tornar-se um bom mediador”5. Citando Habermas, aduz que se
trata de suscitar um agir comunicacional onde não existe.
A mediação apresenta-se, portanto, como um procedimento informal, voluntário e
confidencial em que as partes refletem e dialogam com o objetivo de gerar vias de superação
do conflito e no qual a responsabilidade pela construção das resoluções está em suas próprias
mãos.
Representa, pois, uma importante contribuição para o crescimento e mudança social,
podendo levar à pacificação das relações ao restabelecer-se a comunicação e um novo olhar
sobre o conflito.

3 AUTOCOMPOSIÇÃO E HETEROCOMPOSIÇÃO

Dentre as técnicas de resolução de conflitos, a autocomposição, ou composição


amigável, vem adquirindo um caráter cada vez mais satisfatório no país, pois considera a
vontade das partes no ajuste da solução.
Difere da heterocomposição, em que há intervenção de um terceiro eleito para
“julgar” a lide, a quem é conferido o poder de decisão. Exemplos mais comuns de
heterocomposição apresentadas pelo Manual de Mediação Judicial do Conselho Nacional
de Justiça6 envolvem a arbitragem, sendo o terceiro um árbitro, e as decisões judiciais, sendo
o terceiro um juiz. Possuem característica vinculante, estando as partes adstritas à decisão
tomada por esse terceiro.
Quanto às técnicas autocompositivas, por sua vez, as mais conhecidas são a
conciliação, a mediação e a negociação, em que o resultado cabe às próprias partes, e não a
um terceiro.
A autocomposição pode ocorrer preventivamente, antes da instauração de uma
demanda judicial, ou no transcurso da demanda, pondo fim ao litígio. Suas características
intrínsecas são maior sigilo, maior propensão à preservação de relacionamentos, maior
adimplemento espontâneo, maior flexibilidade procedimental, maior preocupação com a

5
SIX, Jean-François. Dinâmica da Mediação. Tradução de Giselle Groeninga de Almeida, Águida Arruda
Barbosa e Eliana Riberti Nazareth. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 237.
6
Manual de Mediação Judicial. 6ª ed. Conselho Nacional de Justiça. Brasília, 2016, p. 19.
550

humanização e sensibilização das partes, maior celeridade e maior utilização da linguagem


cotidiana das partes.
Em nosso país, uma nova cultura de resolução dos conflitos tem resultado na maior
adesão às técnicas autocompositivas. Nesse sentido, o Manual de Mediação do CNJ
preconiza:
A ideia de que o jurisdicionado, quando busca o Poder Judiciário, o faz na ânsia
de receber a solução de um terceiro para suas questões vem progressivamente
sendo alterada para uma visão de Estado que oriente as partes para que resolvam
de forma mais consensual e amigável seus próprios conflitos e, apenas
excepcionalmente, como última hipótese, se decidirá em substituição às partes 7.

Ao tratar de autocomposição, Fiúza (1995) vem ressaltar o protagonismo das próprias


partes, esclarecendo:

[...] a autocomposição é a forma de solução de disputas, em que as partes, por si


mesmas, põem fim às suas pendências. Não há, na autocomposição, como sugere
o próprio nome, a intervenção de um terceiro mediador. As próprias partes, por
meio de discussões e debates, buscam seus direitos, chegando a bom termo 8.

Para vincular ao tema objeto do presente trabalho, apresentando a mediação como


mecanismo autocompositivo e pacificador, Didier Jr. (2009) ressalta que a autocomposição
é “considerada, atualmente, como legítimo meio alternativo de pacificação social”9. Já no
dizer de Calmon (2008), “a autocomposição é o meio mais autêntico e genuíno de solução
de conflitos, pois emana da própria natureza humana o querer-viver-em-paz”10. Ou seja, a
pacificação está no âmago de procedimentos autocompositivos, como é o caso da mediação.

4 A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO HUMANIZADOR E PACIFICADOR


DE CONFLITOS

Frente à concepção de que o surgimento das grandes controvérsias tem origem no


fenômeno da civilização, sendo uma questão cultural, e não da natureza humana, (URY,
2000, p.45 et seq.)11, pode-se afirmar que a civilização trouxe consigo uma cultura

7
Manual de Mediação Judicial. Op. Cit., p. 31
8
FIUZA, César. Teoria geral da arbitragem. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 45.
9
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria geral do processo e processo de conhecimento.
11ª. ed. Salvador: Jus Povium, 2009, V. 1., p.78.
10
CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 6.
11
URY, William. Chegando à paz: resolvendo conflitos em casa, no trabalho e no dia a dia. Tradução de
Jussara Simões. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 45 et seq.
551

adversarial que reclama por uma educação para a paz, que, por sua vez, permita à sociedade
aprender a lidar de maneira mais construtiva com seus conflitos.
A construção da paz refere-se à utilização de mecanismos e estruturas que podem
impedir, encerrar, transformar ou resolver um conflito, fortalecendo a capacidade dos
indívíduos e da sociedade para gerenciar mudanças sem violência.
Segundo as lições de Sales (2004, p. 167):
Ensina-se paz quando se ensina a resolver a prevenir os conflitos de maneira
amigável, quando se restaura o diálogo, quando se oferece possibilidades de
conscientização de direitos e de responsabilidade social, quando se substitui a
competição pela cooperação, o individual egoísta pelo coletivo solidário. 12

De acordo com a experiência brasileira, o Judiciário ainda é o principal ente


procurado para resolver conflitos sociais existentes. Entretanto, caracteriza-se pela demora
em resolver as pendências que lhes são apresentadas, e as decisões tomadas pelos julgadores
muitas vezes desagradam a vontade de ambas as partes, tanto do ganhador quanto do
perdedor, especialmente em razão da estrita aplicação da lei, sem considerar os verdadeiros
interesses e valores dos envolvidos no conflito.
Esta realidade vem influenciando a reflexão constante sobre as diversas maneiras,
alternativas e adequadas, disponíveis para se buscar a resolução de controvérsias, que podem
apresentar-se mais humanas e pacificadoras do que uma sentença judicial.
Valéria Feriolli Lagrasta Luchiari (2012), abordando a pacificação social como
escopo da jurisdição, entende que:

[...] a observação mais lenta dos resultados leva à conclusão de que a pacificação
social não é alcançada pela sentença, que se limita a aplicar impositivamente a
regra de direito material ao caso concreto, e que, na maioria dos casos, não é aceita
pelo vencido, ou até mesmo, por ambas as partes, mas sim pela solução
autocompositiva13.

Nessa mesma linha, ao compreender que o próprio direito é instrumento de busca da


semelhança e da paz nas relações sociais, Marcos André Souto Santos acredita que “O direito

12
SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 167.
13
LUCHIARI, Valéria Feriolli Lagrasta. Mediação Judicial: Análise da Realidade Brasileira – origem e
evolução até a Resolução n. 125, do Conselho Nacional de Justiça; coords: Ada Pellegrini Grinover, Kazuo
Watanabe. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 51.
552

deve ir além da dogmática, buscando aproximar as pessoas, implementando e permitindo


desenvolver sentimentos de agradabilidade entre os diversos atores sociais” 14.
No Poder Judiciário, a sentença jurisdicional deverá ser cumprida por imposição
legal do Estado, emanada da figura de um Juiz, sendo comum a existência de um perdedor
e de um ganhador, fato que difere da mediação, em que ambas as partes ganham de alguma
forma, pois elas mesmas decidem sobre suas pendências.
Quando se está diante de um Estado que, por meio de sua jurisdição, por diversas
vezes já não garante aproximação e equilíbrio das relações sociais, alternativas merecem ser
consideradas. Entre elas, apresenta-se a mediação, que acaba por ser um instrumento
transformador da realidade social, pacificando conflitos existentes, prevenindo outros e
mantendo um maior nível de satisfação das partes.
Para entender a relevância da mediação na construção da paz, é necessário entender
a sua natureza e os fatores que influenciam no seu sucesso.
O diálogo proporcionado pela mediação é uma das principais fontes de inspiração
para a pacificação dos conflitos, de onde emanará o poder de decisão, e, com isso, as decisões
tomadas pelas partes passam a ser duradouras, diante da responsabilidade própria assumida
por elas.
Em sua obra “Mediação: uma experiência brasileira”, o mediador Adolfo Braga Neto
refere duas características que tornam a mediação valiosa e única, distinguindo-a de outros
processos de gestão de conflitos, ou seja, a autodeterminação das pessoas e o potencial
humanizador do diálogo.
Segundo o autor, “o impacto de os mediandos se encararem e se engajarem na
mediação tem o potencial de modelar e humanizar a interação”15. Citando Bush & Folger,
2005, compreende que “mesmo quando não se chega a um acordo, a conexão humana que o
diálogo pode criar muitas vezes diminui a negatividade e as oportunidades de escalada do
conflito ou violência”16.
Para Jacob Bercovitch (2002), a mediação é uma das medidas mais importantes para
a construção da paz. Como complemento a outros processos de gerenciamento de conflitos,

14
SANTOS, Marcos André Couto. O Direito como meio de pacificação social: em busca do equilíbrio das
relações sociais. Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/4732/o-direito-como-meio-de-pacificacao-social. Acesso em: 07 out. 2019.
15
NETO, Adolfo Braga. Mediação: uma experiência brasileira. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo, Editoria CLA
Cultural, 2019, p. 75
16
NETO, Adolfo Braga. Op. cit., p. 75
553

conclui que precisamos entender como a mediação funciona, os fatores que a influenciam e
qual a melhor forma de utilizá-la:

We should see mediation as a broad process that supplements other processes of


conflict management. Rather than treat each process in isolation, we should look
at them within the overall framework of peace-building. To do so, we need to
understand how mediation works, the factors that influence it, and how best to
utilize it. Once we appreciate these issues, we can see how crucial mediation is to
the viability of any peace-building program17.

Vale dizer que a própria Resolução 125, que, aprovada pelo Conselho Nacional de
Justiça em 29 de novembro de 2010, instituiu uma Política Judiciária Nacional de tratamento
dos conflitos de interesse em que se ofereçam também outros meios consensuais de solução
de controvérsias, trouxe como um de seus objetivos “a disseminação da cultura da
pacificação social” (Artigo 2º.)18.
Ou seja, a pacificação social é uma das consequências idealizadas quando se
incentiva a adoção dos meios denominados “alternativos” à jurisdição.
Petrônio Calmon (2008) também traz o aspecto pacificador da mediação inserido no
seu próprio conceito, apresentando-a como:

[...] a intervenção de um terceiro imparcial na negociação entre os envolvidos no


conflito, facilitando o diálogo ou incentivando o diálogo inexistente, com vistas a
que as próprias partes encontrem a melhor forma de acomodar ambos os
interesses, resolvendo não somente o conflito latente, quanto a própria relação
antes desgastada, permitindo sua continuidade pacífica19.

Conforme o mesmo autor, o objetivo maior dos mecanismos autocompositivos, como


a mediação, tem sido “resolver o conflito de forma mais ampla e profunda, com plena
aceitação do resultado pelos envolvidos, pois em regra eles mesmos o fixam conforme suas
reais possibilidades de adotá-lo”20.
O que se apreende também é que a meta principal da mediação não deve ser o acordo
em si, e sim o diálogo, a partir do qual o entendimento torna-se possível. O conhecimento
profundo dos envolvidos inicia pela escuta, quando as partes terão oportunidade de serem
ouvidas e de ouvirem-se mutuamente, o que proporciona a exteriorização de sentimentos,

17
BERCOVITCH, Jacob; KADAYIFCI, Ayse."Exploring the Relevance and Contribution of Mediation to
Peace-Building," Peace and Conflict Studies: Vol. 9: No. 2, Article 2. 2002., p. 36. Disponível em:
https://nsuworks.nova.edu/pcs/vol9/iss2/2. Acesso em: 21 out. 2019.
18
Resolução Nº 125 de 29/11/2010 do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em:
https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=156. Acesso em: 14 out. 2019
19
CALMON, Petrônio, op. cit., p. 109.
20
CALMON, Petrônio, op. cit., p. 152.
554

ressentimentos, expectativas e interesses que, muitas vezes, serão o caminho para o


entendimento.
De acordo com Fischer, Ury e Patton (2014, p. 57-58):

Os interesses definem o problema. O problema básico de uma negociação não é o


conflito de posições, mas sim no conflito entre as necessidades, desejos, interesses
e temores. (...) Tais desejos e preocupações são interesses. Interesses são
motivadores. São a força oculta por detrás do rebuliço das posições. A sua posição
é algo sobre o qual você decidiu. Seus interesses são que o levaram a tomar essa
decisão.21

Nesse sentido, ensinam que, por trás das posições, existem os interesses subjacentes,
ocultos, intangíveis e, muitas vezes, inconscientes. Somente vêm à tona quando se descobre
o porquê de determinadas posições, buscando-se entender as reais necessidades humanas
envolvidas no conflito. A partir do momento em que interesses legítimos são revelados e
comunicados entre as partes, cresce a possibilidade de serem atendidos.
Spengler (2011) defende a mediação como um procedimento democrático, porque
“acolhe a desordem – e, por conseguinte, o conflito – como possibilidade positiva de
evolução social” 22. A mesma autora, citando Jasson Ayres Torres, em sua obra O Acesso à
Justiça e soluções alternativas, compreende que:

A meta da mediação é exatamente responsabilizar os conflitantes pelo tratamento


do litígio que os une a partir de uma ética da alteridade; encontrar, com o auxílio
de um mediador, uma garantia de sucesso, aparando as arestas e divergências,
compreendendo as emoções reprimidas e buscando um consenso que atenda aos
interesses das partes e conduza à paz social.23

Ressaltando o protagonismo das partes, a obra de Bacellar (2012) propõe que a


mediação “foi pensada de modo a empoderar os interessados, devolvendo a eles o
protagonismo sobre suas vidas e proporcionando-lhes plena autonomia na resolução de seus
conflitos”24. Daí seu aspecto benéfico, que, por um movimento autocompositivo, busca
restabelecer a comunicação e preservar as relações.

21
FISCHER, Roger; URY, Willian; PATTON, Bruce. Como chegar ao sim: como negociar acordos sem fazer
concessões. Tradução de Ricardo Vasques Vieira. 3ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Solomon, 2014, p. 57-58.
22
SPENGLER, Fabiana Marion (Org.). Justiça restaurativa e mediação: políticas públicas de tratamento dos
conflitos sociais. Ijuí: Unijuí, 2011, p. 236.
23
SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à Mediação: Por uma Outra Cultura no Tratamento de
Conflitos. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010, p. 322
24
BACELLAR, Roberto Portugal. Mediação e arbitragem /Roberto Portugal Bacellar. – São Paulo: Saraiva,
2012. – (Coleção saberes do direito; 53). 1. Arbitragem (Direito) - Brasil 2. Mediação - Brasil I. Título. II.
Série.
555

Nessa mesma linha, Luchiari (2012) entende que os meios alternativos de solução de
conflitos proporcionam uma justiça mais restauradora, “resolvendo o conflito de forma mais
ampla e profunda, com aceitação do resultado pelos envolvidos, pois, em regra, eles mesmos
o fixam conforme suas reais possibilidades de adotá-lo”25.
A autora ressalta também que, além de agregar vantagens e benefícios ao processo
judicial, os meios alternativos devem ser analisados “pelas vantagens que lhes são inerentes,
intrínsecas, de modo que sejam consideradas técnicas voltadas à obtenção da pacificação”26,
sendo que seu uso auxilia o Poder Judiciário e possibilita o alcance dos escopos da
participação e da pacificação.
Outro viés da mediação é seu caráter cooperativo, em que os objetivos aparentemente
antagônicos das partes são trabalhados de forma a serem convertidos em um objetivo
comum, que satisfaça a todos.
O psicólogo e mediador Juan Carlos Vezzula, em seu artigo “A mediação para uma
análise da abordagem dos conflitos à luz dos direitos humanos, o acesso à justiça e o respeito
à dignidade humana” (2013), aborda os procedimentos competitivos e cooperativos,
aduzindo que:
Quando uma pendência é resolvida à satisfação de todos, a harmonia se estabelece
pois ninguém é obrigado nem pressionado a fazer nada, todos fazem sua parte com
a convicção de ser isso o que os satisfaz na compreensão da responsabilidade em
jogo pela tomada de consciência da repercussão dos próprios atos. 27

Vale dizer que, a partir do reconhecimento e respeito do mediador em relação a cada


uma das partes conflitantes, a mediação tem como efeito capacitá-las a terem uma
participação mais ativa na resolução de seus problemas, desenvolvendo a autonomia como
base da dignidade humana.
Proporcionando que as partes em conflito desenvolvam o seu poder decisório, a
mediação passa a ser um instrumento que incentiva a evolução pessoal e coletiva,
interferindo tanto na melhoria da convivência entre os indivíduos, quanto em suas inter-
relações com a sociedade.
Na medida em que ocorre uma transformação interna a partir de uma decisão
consciente, que permite às partes sentirem-se mais satisfeitas com a resolução a que

25
LUCHIARI, op. cit., p. 51
26
LUCHIARI, op. cit., p. 53
27
VEZZULLA, Juan Carlos. A mediação para uma análise da abordagem dos conflitos à luz dos direitos
humanos, o acesso à justiça e o respeito à dignidade humana. In: SILVA, Luciana Aboim Machado Gonçalves
da (org.). Mediação de Conflitos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 74.
556

chegaram, são apaziguadas as diferenças. A partir do próprio conflito, nasce um novo olhar
sobre ele.
Paris Alejandro Cabello Tijerina, em seu artigo “Mediación: Una política social para
ellogro de la cultura de paz” (2015), ressalta a responsabilidade das pessoas envolvidas e seu
protagonismo na solução dos conflitos como elemento para construção e fortalecimento da
cultura da paz, entendendo que:
La mediación es un método de solución pacífica de conflictos basado en el diálogo,
es eficaz porque permite, entre otros aspectos, que las personas implicadas asuman
la responsabilidad de su conducta, el protagonismo de solución del conflicto, y
recobren la sensación de paz y equilíbrio emocional existentes previos al inicio del
conflito28.

Nas palavras de Warat (2004), os conflitos:


[...] nunca desaparecem, se transformam; isso porque, geralmente, tentamos
intervir sobre o conflito e não sobre o sentimento das pessoas. Por isso, é
recomendável, na presença de um conflito pessoal, intervir sobre si mesmo,
transformar-se internamente, então, o conflito se dissolverá (se todas as partes
comprometidas fizeram a mesma coisa) 29

A lição de Warat igualmente apresenta a medição como meio em que as próprias


partes são a fonte de solução dos seus conflitos quanto entende que “A mediação que realiza
a sensibilidade é uma forma de atingir a simplicidade do conflito. Tenta que as partes do
conflito se transformem descobrindo a simplicidade da realidade”30.
É diante dessa premissa, de que os conflitos não desaparecem, mas podem ser
transformados, que a mediação pode servir como resgate de necessidades não atendidas,
mexendo nas camadas mais profundas das partes em conflito, substituindo a competição pela
cooperação.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vivemos em uma sociedade em que conflitos são inerentes às relações humanas e


sociais. A convivência pacífica e harmônica é idealizada a partir de instrumentos criados

28
CABELLO TIJERINA, Paris Alejandro. Una política social para ellogro de la cultura de paz, 2015, p.
05. Editado por Secretaria do Desarrollo Agrario - SEDATU, MX,
(http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:Z1dADhWmVq4J:www.pa.gob.mx/publica/rev_60
/analisis/Mediacion_paris.pdf+&cd=16&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br). Acesso em: 20 out. 2019.
29
WARAT, Luis Alberto. Surfando na Pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2004, p. 26.
30
WARAT, op. cit., p. 31
557

para a resolução desses conflitos, começando pelo próprio Direito, que traz em si as ideias
de justiça e segurança. Entretanto, o que se verifica é que estes ideais nem sempre são
alcançados por meio da forma como esse Direito é ditado e aplicado.
Assim, surgem outros mecanismos, outros métodos, chamados “alternativos”, a
exemplo da mediação de conflitos, cuja característica principal é o protagonismo das partes,
segundo a visão de diversos autores citados no presente trabalho.
E é esse protagonismo que aparece ser também a característica mais significativa que
permite à mediação ser apresentada como método de pacificação social e humanização das
relações, visto que soluções alcançadas pelo esforço das próprias partes, não impostas por
um terceiro, trazem em si um sentimento de maior capacidade e comprometimento com a
solução encontrada.
A partir da condução de um mediador, sendo ouvidas e ouvindo-se mutuamente, as
partes em conflito passam por um exame mais profundo de seus reais interesses e, ao
construírem o seu próprio entendimento, exercem suas potencialidades e sentem seu real
poder de decisão, que lhes traz uma satisfação interna capaz de apaziguar o conflito e
prevenir que outros se instalem.
A paz social, como fruto de um bom relacionamento entre indivíduos, depende do
reconhecimento de direitos e deveres em equilíbrio, que trazem tranquilidade e bem-estar
social.
E a mediação de conflitos apresenta-se, pois, como um mecanismo de alcance da
pacificação social ao facilitar essa integração entre indivíduos conflitantes, de forma que se
reconheçam em equilíbrio, comunicando-se e sendo autores de suas próprias decisões.

REFERÊNCIAS

BACELLAR, Roberto Portugal. Mediação e arbitragem. São Paulo: Saraiva, 2012. Col.
Saberes do Direito; 53.

BERCOVITCH, Jacob; KADAYIFCI, Ayse. Exploring the Relevance and Contribution of


Mediation to Peace-Building. Peace and Conflict Studies. Vol. 9: No. 2 , Article 2. 2002.
p. 25. Disponível em: https://nsuworks.nova.edu/pcs/vol9/iss2/2. Acesso em: 21 out. 2019.

BRAGA, Adolfo. Mediação: uma experiência brasileira. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: CLA
Cultural, 2019. p. 75.
558

BRASIL. Lei 13.140/2015, artigo 1º, parágrafo único. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm. Acesso em: 21
out. 2019.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução Nº 125 de 29/11/2010 do Conselho


Nacional de Justiça. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-
normativos?documento=156. Acesso em: 14 out. 2019.

CABELLO TIJERINA, Paris Alejandro. Una política social para ellogro de la cultura de
paz, 2015, p. 05. Editado por: Secretaria do Desarrollo Agrario - SEDATU, MX, Disponível
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http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:Z1dADhWmVq4J:www.pa.gob.m
x/publica/rev_60/analisis/Mediacion_paris.pdf+&cd=16&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br.
Acesso em: 20 out. 2019.

CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012, p. 57

CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro:


Forense, 2008, p. 6.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Teoria geral do processo e processo
de conhecimento. 11 ed. Salvador: Jus Povium, 2009, V. 1., p.78.

FISCHER, Roger; URY, Willian; PATTON, Bruce. Como chegar ao sim: como negociar
acordos sem fazer concessões. Tradução de Ricardo Vasques Vieira. 3ª ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Solomon, 2014. p. 57-58.

FIUZA, César. Teoria geral da arbitragem. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 45.

LUCHIARI, Valéria Feriolli Lagrasta. Mediação Judicial: Análise da Realidade Brasileira


– origem e evolução até a Resolução n. 125, do Conselho Nacional de Justiça. Rio de Janeiro:
Forense, 2012, p. 51.

MANUAL DE MEDIAÇÃO JUDICIAL. 6ª ed. Conselho Nacional de Justiça. Brasília,


2016, p. 19

SALES, Lília Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey,
2004, p. 167.

SANTOS, Marcos André Couto. O Direito como meio de pacificação social: em busca do
equilíbrio das relações sociais. Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 194,
16 jan. 2004. Disponível em:
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out. 2019.
559

SIX, Jean-François. Dinâmica da Mediação. Tradução de Giselle Groeninga de Almeida,


Águida Arruda Barbosa e Eliana Riberti Nazareth. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 237.

SPENGLER, Fabiana Marion (Org.). Justiça restaurativa e mediação: políticas públicas


de tratamento dos conflitos sociais. Ijuí: Unijuí, 2011. p. 236.

SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à Mediação: por uma outra cultura no


tratamento de conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010. p. 322.

URY, William. Chegando à paz: resolvendo conflitos em casa, no trabalho e no dia a dia.
Tradução de Jussara Simões. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 45 e seq.

VEZZULLA, Juan Carlos, A mediação para uma análise da abordagem dos conflitos à luz
dos direitos humanos, o acesso à justiça e o respeito à dignidade humana. In: SILVA,
Luciana Aboim Machado Gonçalves da. Mediação de Conflitos. São Paulo: Atlas, 2013. p.
74.

WARAT, Luis Alberto. Surfando na Pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis:


Fundação Boiteux, 2004. p. 26.
560

MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA E A HIPÓTESE


CRIMINALIZADORA: REFLEXÕES NECESSÁRIAS

Cátia Conteratto Damo1


Josiane Petry Faria2

Resumo: O presente estudo analisa as alterações produzidas no ordenamento jurídico


brasileiro pela Lei n.13.641 de 03 de abril de 2018, a qual criminalizou o descumprimento
de medidas protetivas aplicadas no âmbito da violência doméstica e familiar. O método de
abordagem utilizado na pesquisa é o dedutivo. No desenvolvimento do presente trabalho,
são conceituadas as medidas protetivas, os crimes de menor potencial ofensivo, a prisão
preventiva e a fiança policial e, posteriormente, analisadas as controvérsias previstas no
artigo 24-A, quais sejam, se o artigo prevê crime tipificado com aplicação da Lei dos
Juizados Especiais e se a proibição de fiança policial é constitucional. Por ser a Lei Maria
da Penha um instituto criado para proteger a mulher em situação de violência doméstica ou
familiar, a Lei n. 9.099 de 26 de setembro de 1995 não é aplicável ao crime de
descumprimento de medidas protetivas, e a fiança somente pode ser fixada pelo juiz.

Palavras-chave: fiança policial, Lei dos juizados especiais criminais, medidas protetivas de
urgência.

1 A NECESSIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO DESCUMPRIMENTO DAS


MEDIDAS PROTETIVAS

Ao questionar a violência doméstica contra a mulher no ambiente familiar no Brasil,


leva-se em conta uma série de fatores culturais, históricos e religiosos que colaboraram para
as reiteradas práticas dessa ação. Com o passar dos anos, muitos movimentos feministas
mudaram esse contexto de submissão. Mas a sociedade ainda cultiva valores que incentivam
a violência contra as mulheres.3 Silvia Federici, ativista feminista ítalo-estadunidense, uma

1
Especialista em Ciências Criminais e graduada pela Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil.
Advogada e Servidora Pública. E-mail: caticonteratto@gmail.com.br.
2
Vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS, subsecção Passo Fundo. Possui pós-
doutoramento no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Rio Grande. Doutora pela
Universidade de Santa Cruz do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Direito da
Universidade de Passo Fundo PPGDireito UPF. Conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher
(COMDIM). Coordenadora do Programa de Extensão universitária PROJUR Mulher e Diversidade. Membra
do Conselho Editorial do CONPEDI. Coordenadora do grupo de pesquisa Dimensões do Poder, Gênero e
Diversidade do PPGDireito, Linha de pesquisa Relações Sociais e Dimensões do Poder, com ênfase em
ciências criminais, gênero, relações de poder, diversidade e direitos humanos. Advogada. E-mail
jfaria2@upf.br.
3
RESENDE, Gisele Lira; VASCONCELOS, Claudivina, Campos. Violência Doméstica: A Aplicabilidade e
Eficácia das Medidas Protetivas como Instrumento de Prevenção e Combate à Reincidência na Comarca de
561

das impulsionadoras das campanhas que começaram a reivindicar um salário para o trabalho
doméstico, realizado pelas mulheres sem nenhuma retribuição, sustenta que “[...] algumas
das questões pelas quais o antigo movimento das mulheres batalhava ainda estão em aberto,
que de fato não ultrapassamos a montanha [...]”. Defendia que a luta pela reivindicação dos
direitos das mulheres deveria ser contínua e bem sucedida, para reconstruirmos a sociedade.4
A Lei Maria da Penha não possui caráter repressivo, mas sim visa à proteção e à
assistência à mulher em situação de violência. Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti, ao
se manifestar sobre o tema, sustenta que a Lei prevê mecanismos de prevenção, políticas
públicas de cunho educacional e de assistência às vítimas, e que sua criação não teve a
intenção de punir mais severamente os agressores dos delitos domésticos.5 Essa Lei se
diferencia pela criação de medidas protetivas de urgência, que são medidas cautelares,
instrumentos legais disponibilizados para que a vítima recorra à justiça de forma rápida, por
isso o caráter urgente, e consiga providências que cessem de imediato as agressões, sejam
elas de qualquer natureza.
Estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça no ano de 2017 demostrou que
o Poder Judiciário Brasileiro homologou 194.812 medidas em 2016, e 236.641 medidas em
2017, um aumento de 21% no período. Apontou-se uma média diária de 648 medidas
protetivas de urgência no ano de 2017, ou seja, um caso de violência doméstica foi
comunicado num período inferior a três minutos. Ainda segundo a pesquisa, o Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul expediu a maior quantidade de medidas em números absolutos:
cerca de 38.604.6
Diante da necessidade foi inserido na Lei Maria da Penha tipo penal específico para
punir a desobediência a decisões judiciais, que impõe medidas protetivas de urgência, o
chamado crime de descumprimento de medidas protetivas, criado pela Lei n. 13.641 de 03
de abril de 2018.

Barra do Garças-MT. Revista Direito em Debate. Jan/jun, 2018. p. 119. Disponível em:
<https://doi.org/10.21527/2176-6622.2018.49.117-137>. Acesso em: 2019.
4
MORAES, Alana; BRANT, Maria A.C. . Silvia Federici: “Nossa luta não será bem sucedida a menos que
reconstruamos a sociedade”. SUR Revista internacional de Direitos Humanos. São Paulo, 2016. Disponível
em: <https://sur.conectas.org/nossa-luta-nao-sera-bem-sucedida-menos-quereconstruamossoc iedade/>.
Acesso em: 03 ago. 2019.
5
CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência Doméstica: Análise da Lei “Maria da Penha”, nº
11340/06. 4. ed. Bahia: JusPodivm, 2012. p. 202.
6
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha. 2018.
Disponível em:<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/06/2df3ba3e13e
95bf17e33a9c10e60a5a1.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2019.
562

A Egrégia Corte do Superior Tribunal de Justiça possuía orientação jurisprudencial


de que “[...] o descumprimento da decisão que impõe medida protetiva de urgência prevista
na Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) é a decretação de prisão preventiva e não a
imputação do crime de desobediência [...]”7. O Tribunal possuía entendimento consolidado
de que o descumprimento não deveria ser imputado, mas que somente serviria de
fundamentação para prisão preventiva.
Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto8 afirmam que, diferentemente do
posicionamento adotado pela Egrégia Corte, uma segunda corrente defendia que a conduta
do agente que descumpria medida protetiva, configuraria o crime de descumprimento de
medida protetiva. Relatam que o Enunciado 27 do Fonavid (Fórum Nacional de Juízes de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher) se manifestou nesse sentido.
Alice Bianchini defende que a criminalização da conduta está em concordância com
os objetivos trazidos pela Lei Maria da Penha. Afirma que, “[...] agora, resta discutir se foi
correta a opção legislativa de criminalizar a conduta de descumprir medida protetiva de
urgência e, superando tal questão e entendendo correta, se a pena está adequada.
[...]”.9Referido diploma veio para preencher lacuna na Lei, em face da recorrente ocorrência
de descumprimento de medidas protetivas pelos agressores, fragilizando o propósito da Lei,
qual seja, de proteção a mulher vítima de violência. Antes mesmo do caráter repressivo, a
Lei prevê a proteção e a assistência à mulher, a fim de que cesse o mais rapidamente possível
a violência sofrida por ela.

2 DA CONTROVÉRSIA TIPIFICAÇÃO DO DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS


PROTETIVAS

Com a edição da Lei n. 13.641, de 03 de abril de 2018, restou pacificada a discussão


quanto à tipificação da desobediência. Porém, a referida Lei trouxe como pena, para o
descumprimento de decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência, a de
detenção, de três meses a dois anos, e prevê que, na hipótese de prisão em flagrante, apenas

7
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 305.442, Quinta Turma Criminal Distrito Federal,
DF, 03 de mar. de 2015. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 03 ago. 2019.
8
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha. Lei
11340/2006. Comentada artigo por artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 228.
9
BIANCHINI, Alice. O novo tipo penal de descumprimento de medida protetiva previsto na Lei
13.641/2018. Ago. 2018, p. 02. Disponível em: <https://professoraalice.jusbrasil.com.br /artigos/569740876/o-
novo-tipo-penal-de-descumprimento-de-medida-protetiva-previsto-na-lei1 3641-2018#_ftn4.> Acesso em: 29
ago. 2019.
563

a autoridade judicial poderá conceder fiança. Essa questão vem dando margem a
interpretações diversas.
De um lado, há quem defenda, como, por exemplo, Samantha Braga Pereira e
Michele Rocha Cortes Hazar, que, por ser a pena máxima cominada ao crime de
descumprimento de medidas protetivas a de dois anos, são aplicáveis os institutos
despenalizadores da Lei n. 9.099, de 26 de setembro 1995. Por outro lado, Rogério Sanches
Cunha e Ronaldo Batista Pinto sustentam ser inaplicáveis tais disposições à conduta.
Ainda, a nova Lei conferiu ao juiz a aplicação da fiança em caso de prisão em
flagrante do agente que descumprir ordem judicial de medidas protetivas. Esse fato também
gerou discussões na doutrina, pois o artigo 32210 do Código de Processo Penal prevê que
poderá ser concedida fiança pela autoridade policial para as infrações cuja pena privativa de
liberdade máxima não seja superior a 4 anos, facultando a Lei a imposição de fiança somente
pelo juiz, devendo, nesse tempo, o acusado ser levado à prisão.

2.1 Aplicação da Lei n. 9.099/95 ao crime de descumprimento de medidas protetivas

A Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, tipifica as infrações de menor potencial


ofensivo os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou
não com multa. Prevê, para a configuração do crime, que esse tenha a pena prevista não
superior a de dois anos, não se avaliando os demais elementos.11O procedimento é mais
benéfico objetivando a reparação do dano sofrido pela vítima e a aplicação da pena não
privativa de liberdade. Inclusive, o artigo 6912 da referida lei prescreve que não
haverá prisão em flagrante e aplicação de fiança ao transgressor, mas sim será lavrado termo
circunstanciado.

10
Artigo 322 do Código de Processo Penal: “A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos
de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Nos
demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas”.
11
PEREIRA, Samantha Braga; HAZAR, Michele Rocha Cortes. As controvérsias do crime de descumprimento
de medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Revista de Direito Penal, Processual e Constituição. Porto
Alegre. v. 4, p. 81 – 9, jul/dez 2018, p. 89.
12
Artigo 69 da Lei 9099/95: “A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo
circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se
as requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do
termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se
imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar,
como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima”.
564

Diante desse conceito, surgiram discussões acerca da aplicação do instituto


mencionado ao crime de descumprimento, previsto pela Lei n. 13.641 de 03 de abril de 2018,
o qual impôs ao agressor penalidade máxima de dois anos e mínima de três meses. Predisse
que para o descumpridor, quando preso em flagrante, não será possível a aplicação de fiança
pela autoridade policial, mas sim pelo juiz, contrariando o que dispõe a Lei vigente.
Luan Alisson S. Furucho e Juliana M. Morotti13 defendem que “[...] o sujeito passivo
do crime é suscetível de divergências na doutrina, tendo em vista que o mesmo é,
primariamente, a administração da justiça e, secundariamente, a vítima de violência
doméstica e familiar [...]”. Isso acaba por gerar dúvida sobre a aplicação da Lei do Juizados
Criminais, em face da consumação do crime de descumprimento de medidas protetivas
ocorrer no momento do inadimplemento de uma ordem judicial.
Segundo Samantha Braga Pereira e Michele Rocha Cortes Hazar14, o sujeito ativo do
tipo penal é o agressor a quem foram impostas as medidas protetivas e, como sujeito passivo
é o Estado, em razão do descumprimento ser de uma ordem judicial, sustentam que “[...]
Não se pode deduzir que descumprir a ordem judicial das medidas protetivas é um ato de
violência direta contra a vítima [...]”.
Em sentido contrário, o artigo 4115 da Lei Maria da Penha determina que, para os
crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, não se aplica a Lei n.
9.099 de 26 de setembro de 1995. Referido artigo foi objeto de Ação Direta de
Constitucionalidade n. 19, a qual foi julgada procedente à unanimidade.
Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto,16 ao se manifestarem sobre o tema,
afirmam que haverá quem sustente a possibilidade de aplicação das medidas
despenalizadoras, em virtude de a pena cominada ser inferior a dois anos e, também, que
“[...] não se trataria, especificamente, de crime praticado com violência doméstica e familiar
contra a mulher, mas sim de crime contra a Administração Pública, de forma que a vedação
do artigo 41 da lei em análise, que impede a aplicação da Lei n. 9099/95, não incidiria nesse

13
FURUCHO, Luan Alisson Seiji; MOROTTI, Juliana Midori. A nova lei de crime de descumprimento das
medidas protetivas: as repercussões trazidas à Lei Maria da Penha. III Colóquio Nacional de Estudos de
Gênero e História: Epistemologias Interdições e Justiças Sociais. jun. 2018, p. 6. Disponível em:
<http://www.seti.pr.gov.br> Acesso em: 08 ago. 2019.
14
PEREIRA, Samantha Braga; HAZAR, Michele Rocha Cortes. As controvérsias do crime de
descumprimento de medidas protetivas da Lei Maria da Penha. p. 86.
15
Artigo 41 Lei da 11340/06: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”.
16
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha. Lei
11340/2006. Comentada artigo por artigo. p. 229/230.
565

caso [...]”. Reforçam o seu posicionamento afirmando que são inaplicáveis as


disposições da Lei dos Juizados Criminais ao crime de descumprimento de medidas
protetivas. Sustentam que “[...] seria um verdadeiro contrassenso que uma inovação que
tenha vindo – se imagina – em proteção a vítima de violência doméstica, pudesse admitir a
imposição de medidas despenalizadoras [...]”.
Para Marina Dias Marinho,17 também são inaplicáveis os benefícios da Lei n. 9.099
de 26 de setembro de 1995, pelo fato de o novo crime estar inserido na própria “Lei Maria
da Penha”, não sendo possível a substituição da pena por “cestas básicas”.
Salienta-se, diante das posições trazidas, que o principal objetivo da criação de um
tipo penal na Lei Maria da Penha é justamente resguardar a mulher e sua família, de maneira
que se possa tentar conter o agressor, fazendo cessar de imediato a situação de violência.
Entende-se que essas medidas fazem parte de todo um sistema de proteção estabelecido pela
Lei Maria da Penha, que busca dar efetividade aos direitos humanos e a devida proteção às
mulheres.
Em uma análise de tipicidade, constata-se que o crime de descumprimento de
medidas protetivas possui como sujeito passivo a Administração Pública, portanto, devendo
ser aplicada a Lei dos Juizados Especiais Criminais, estando a previsão de imposição de
fiança pelo juiz inadequada e inconstitucional. Porém, não teria sentido a criação de tal
tipificação penal se não fosse para mudança na aplicação da concepção jurisprudencial
criada pelos julgadores. Faz-se necessária uma interpretação jurídico-penal dos fenômenos.
Em razão de o legislador prever que a aplicação da fiança será somente pelo juiz,
entende-se que é necessária uma análise sucinta de cada caso, pois o juiz pode aplicar
medidas diversas da prisão preventiva. O cárcere não é a solução mais adequada para a
resolução do conflito, podendo ser adotadas políticas de prevenção à violência, meios para
atendimento psicológico à vítima e ao agressor, amparo à mulher para se tornar menos
vulnerável à violência. Necessita-se de uma mudança de pensamento na sociedade, de que o
gênero feminino é inferior ao gênero masculino. Uma mudança cultural é um dos principais
fatores para diminuir os índices de violência.

17
MARINHO, Mariana Dias. O crime de desobediência na Lei Maria da Penha. Jun. 2018, p.1 Disponível
em: <http://www.comunicacao.mppr.mp.br>. Acesso em: 29 jul. 2019.
566

2.2 Da prisão em flagrante e da sua conversão em preventiva

Único crime previsto na Lei Maria da Penha, o crime de descumprimento de medidas


protetivas trata-se de crime próprio, podendo ser praticado por agressor que tem sobre si
ordem judicial relacionada a delito cometido no âmbito doméstico e familiar. Muito se
questiona sobre a possibilidade de decretação da prisão preventiva para assegurar o
cumprimento das medidas protetivas.
O Desembargador Rogério Gesta Leal, nos autos do processo de julgamento do
Habeas Corpus n. 70077814101 defende que, por mais que a conduta praticada pelo agente
seja gravosa, a prisão cautelar não se apresenta como a única medida suficiente para fins de
preservação da vítima e acautelamento da ordem pública e social. Sustenta que “[...] a prisão
preventiva somente pode ser decretada em casos excepcionais e estritamente necessários,
notadamente levando em consideração o efeito negativo do cárcere e as influências próprias
do ambiente prisional. [...]”.18
Verifica-se, portanto, que a decisão do legislador foi equivocada, ao possibilitar a
decretação da fiança somente pelo juiz. Justifica-se que cabe ao Delegado de Polícia lavrar
o auto de prisão em flagrante delito (ou termo circunstanciado de ocorrência). Além de
verificar a existência dos requisitos para a decretação da prisão preventiva do descumpridor
da medida e, estando presentes, poderá não arbitrar a fiança e representar pela decretação da
medida cautelar pessoal mais gravosa, qual seja, a prisão preventiva para garantir a execução
das medidas protetivas de urgência, não sendo privada a liberdade do acusado até que a
decisão judicial ocorra19.
Diante dos posicionamentos acima referidos, observa-se que o julgador deverá
analisar os requisitos autorizadores da prisão preventiva, pois, não possuindo o autor
antecedentes criminais e não revelada a sua periculosidade, outras medidas cautelares menos
gravosas podem ser aplicadas em substituição à prisão preventiva.
Em contraposição ao alegado, uma segunda corrente prega que a tipificação prevista
no artigo 24-A da Lei n. 13.641 de 03 de abril de 2018, foi criada para assegurar eficácia à
prisão preventiva. Para isso, previu a hipótese de prisão em flagrante do descumpridor de

18
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 70077814101, 4ª Câmara Criminal, Porto
Alegre, RS, 14 de junho de 2018. Disponível em:<http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 02 ago. 2019.
19
LEITÃO JUNIOR, Joaquim Lopes; SILVA, Raphael Zanon da. A Lei nº 13.641/2018 e o novo crime de
desobediência de medidas protetivas. abr. 2018, p. 2. Disponível em:
<https://canalcienciascriminais.com.br>. Acesso em: 1º ago. 2019.
567

medidas protetivas e fiança apenas judicial, diferentemente do previsto na legislação penal


para esse tipo de crime.
Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto sustentam que, ao vedar a aplicação
da fiança pela autoridade policial, está sendo garantida a aplicação do disposto no artigo
32420 do Código de Processo Penal, para possível conversão da prisão em flagrante em prisão
preventiva “[...] o legislador fez expressa referência a essa proibição, deixando clara sua
opção e facilitando a tarefa do interprete [...]”.21
Esse fato pode ser constatado por análise breve de jurisprudência do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, o qual vem se posicionando no sentido de ser aplicável a
restrição da liberdade ao descumpridor de medidas protetivas.
Nos autos do Habeas Corpus n. 70081845042, sustentou-se que a Lei n. 11.340, de
07 de agosto de 2006, inseriu no ordenamento jurídico a possibilidade de segregação de
cautelar, ainda que em crimes de menor potencial ofensivo, como no caso analisado, em que,
após deferidas as medidas protetivas em favor da vítima, o acusado a procurou,
descumprindo as medidas impostas e a ameaçou de morte, por quatro vezes. Justifica-se que
“[...] o objeto da referida lei consiste na prevenção dos crimes de violência doméstica, que
geralmente ocorrem no seio familiar, sem a presença de testemunhas [...]”. No caso em
análise, foi mantida a prisão do agressor para assegurar a aplicação da lei penal e a execução
das medidas protetivas de urgência.22
Note-se que o delito tipificado no artigo 24-A, ao prever a possibilidade de prisão em
flagrante garante que, de imediato, aquele agressor devidamente intimado da decisão legal
que o proíbe de se aproximar ou manter contato com a vítima seja cerceado do direito à
liberdade. Isso para assegurar a eficácia do respeito e do atendimento que se deve à
determinação judicial, que objetiva garantir à mulher o direito de viver sem violência.
Como se observa, a nova lei não pacificou o tema relativo ao descumprimento de
medida protetiva por parte do agressor, não havendo entendimento pacífico quanto ao rito
procedimental a ser seguido.

20
Artigo 324 do Código de Processo Penal: “Não será, igualmente, concedida fiança: I - aos que, no mesmo
processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das
obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código; II - em caso de prisão civil ou militar; III
- (revogado); IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312)”.
21
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha. Lei
11340/2006. Comentada artigo por artigo. p. 232.
22
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 70081845042, 3ª Câmara Criminal, Porto
Alegre, RS, 25 de julho de 2019. Disponível em:<http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 02 ago. 2019.
568

2.3 Aplicabilidade prática do crime de descumprimento de medidas protetivas

A violação da previsão legal do artigo 24-A da Lei n. 13.641 de 03 de abril de 2018,


não rara vezes pode seguir-se da prática de novos crimes contra a mulher em situação de
violência doméstica e familiar, ou seja, o companheiro quando viola as medidas protetivas
de forma dolosa e ao mesmo tempo profere ameaças à ex-companheira.
A alteração legislativa é recente, havendo poucos julgados na jurisprudência de
aplicação do crime de descumprimento de medidas protetivas. Analisaram-se decisões dos
Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e do Espírito Santo, nas quais o artigo 24-A da
Lei n. 13.641 de 03 de abril de 2018 está sendo aplicado. Porém, alguns juízes “a quo” não
estão aplicando a nova Lei.
Na pesquisa de jurisprudência realizada, no período de 1º de janeiro de 2019 até 05
de setembro do mesmo ano, foram analisados os pedidos de Habeas Corpus do agressor que
teve sua prisão em flagrante convertida em prisão preventiva. Também, observaram-se
posições dos Tribunais quanto a apelações propostas por réu condenado ao crime previsto
no artigo 24-A da Lei Maria da Penha. Foram analisadas quatorze decisões do Tribunal de
Justiça do Espírito Santo e vinte e uma do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Os
gráficos abaixo demostram os resultados das decisões analisadas:
Gráfico 01. Resultado das decisões proferidas em pedidos de Habeas Corpus – RS

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Denegado

Concedido

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Habeas Corpus

Fonte: A autora, a partir de RIO GRANDE DO SUL, 2019.


569

Gráfico 02. Resultado das decisões proferidas em pedidos de Habeas Corpus - ES

Tribunal de Justiça do Espírito Santo

Denegado

Concedido

0 2 4 6 8 10 12 14

Habeas Corpus

Fonte: A autora, a partir de ESPÍRITO SANTO, 2019.

Conforme demostra o Gráfico, 01 foram analisadas dezesseis decisões de habeas


corpus proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Nelas, constatou-se que
nove pedidos foram denegados e sete concedidos. Os últimos tiveram como fundamento a
concessão do pedido, com determinação de soltura do réu por excesso de prazo; já os
primeiros, para denegação da ordem de manter os réus presos por estarem presentes os
requisitos autorizadores da prisão preventiva e essa ser necessária para assegurar proteção à
vítima.
Já, no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (Gráfico 02), em doze decisões
analisadas, denegou à unanimidade as ordens de habeas corpus, fundamentando suas
decisões no sentido de a prisão preventiva ser baseada nos requisitos autorizadores previstos
no Código de Processo Penal e não se tratar de antecipação da pena.
Nos Gráficos 03 e 04, demonstram-se decisões de apelações de réus condenados pela
prática do crime previsto no artigo 24-A da Lei n. 13.641 de 03 de abril de 2018, nas quais
por entendimento unânime dos desembargadores foram improvidos os pedidos dos recursos
de apelação. Confirmando a aplicação prática da alteração legislativa.
570

Gráfico 03. Resultado das decisões proferidas em sede de apelação - RS

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Provida

Improvida

0 1 2 3 4 5 6

Apelação

Fonte: A autora, a partir de RIO GRANDE DO SUL, 2019.

Gráfico 04. Resultado das decisões proferidas em sede de apelação - ES

Tribunal de Justiça do Espírito Santo

Improvida

Provida

0 0,5 1 1,5 2 2,5

Apelação

Fonte: A autora, a partir de ESPÍRITO SANTO, 2019.

Constatou-se que há divergência quanto ao entendimento dos referidos Tribunais no


tocante à concessão de ordem de Habeas Corpus do preso preventivamente pela prática do
crime de descumprimento de medidas protetivas. Os julgadores do Tribunal de Justiça do
Espírito Santo não estão revogando as prisões preventivas decretadas, mesmo após alguns
meses de privação de liberdade do agressor, sustentando que “[...] não se confunde a prisão
preventiva com a antecipação da sanção a ser imposta ao coacto, pois aquela se ampara nos
requisitos fumus ‘comissi delicti’ e ‘periculum libertatis’, não sendo possível, portanto, tratar
sobre a legitimidade da constritiva com base em mera presunção. [...]”.23
Já, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, após transcurso de prazo, está
concedendo, em alguns casos, ordem de habeas corpus, por entender que, se punido, o

23
ESPÍRITO SANTO. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 0015535-09.2019.8.08.0000, da Segunda
Câmara Criminal. Des. Fernando Zardini Antonio. Espírito Santo, 14 ago. 2019. Disponível em:
<http://aplicativos.tjes.jus.br>. Acesso em: 03 set. 2019.
571

acusado teria a fixação do regime inicial de cumprimento de pena diverso do fechado ou


semiaberto. Nos autos da ação de medidas protetivas de urgência n. 70081842114, julgada
pela Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi relaxada a
prisão preventiva de acusado de descumprimento de medidas protetivas, pelo excesso de
prazo, em decorrência de o réu estar preso há seis meses sem ter havido decisão judicial.24
Ainda, nos autos do processo n. 70081553067, o órgão ministerial interpôs recurso
em sentido estrito contra decisão do juízo da Comarca de Júlio de Castilhos que, durante
audiência de custódia, não converteu a prisão em flagrante do acusado de descumprir
medidas protetivas de urgência, em preventiva. O juiz “a quo” entendeu haver dúvidas sobre
a ocorrência do fato, em decorrência de o acusado ter apresentado defesa. O Desembargador
Joni Victória Simões, ao julgar o recurso, sustentou que, pelos fatos relatados, e em análise
ao caso concreto, inexistiam elementos concretos e atuais que demonstrassem a necessidade
da medida do cárcere.25
Cabe ressaltar, também, que, nos autos do julgamento da Ação Penal n. 0005616-
85.2018.8.08.0014, da Terceira Vara Criminal de Colatina, o julgador Marcelo Feres
Bressan apresentou voto embasando sua decisão de não incidência das penas descritas no
artigo 24-A da Lei Maria da Penha, no princípio da consunção, sob o argumento de que o
referido tipo penal seria apenas o meio utilizado para a prática do novo crime contra a
mulher, que no caso foi o delito de ameaça.26
Referida sentença foi objeto de ação penal pública promovida pelo Ministério
Público do Estado do Espírito Santo. Claudia Regina dos Santos Albuquerque Garcia,
coordenadora do Núcleo de Enfrentamento as Violências de Gênero em Defesa dos Direitos
das Mulheres, ao realizar estudo sobre o caso se manifesta no sentido de que

24
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 70081842114, 3ª Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 25 de julho de 2019. Disponível em: <
https://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia>. Acesso em 08 ago. 2019.
25
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 70081553067, 2ª Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 27 de junho de 2019. Disponível em: <
https://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia>. Acesso em: 10 ago. 2019.
26
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Medidas Protetivas de Urgência n. 0005616-
85.2018.8.08.0014, 3ª Vara Criminal de Colatina do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, Colatina, ES, 19 de
março de 2019. Disponível em: <http://aplicativos.tjes.jus.br
/consultaunificada/faces/pages/exibirDadosProcesso.xhtml>. Acesso em: 08 ago. 2019.
572

[...] o reconhecimento da adequação do princípio da consunção se configuraria em


verdadeira desconsideração do tipo penal do artigo 24-A, que diferente do alegado,
é delito autônomo e independente, que não tem seu fim em novo crime praticado
contra a mulher [...].27

Algumas decisões dos Tribunais analisados são contrárias ao entendimento


jurisprudencial majoritário, que prevê ser aplicável a tipificação do crime de
descumprimento ao descumpridor da ordem judicial que defere medidas protetivas. Mas, de
modo geral, na pesquisa realizada, constatou-se que o dispositivo está sendo aplicado. Em
recente decisão, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
negou provimento à apelação proposta pelo réu, sob o fundamento de que, apesar de ele estar
intimado de medidas protetivas, foi até a residência da vítima por diversas vezes.
Sustentaram os desembargadores que o fato de o acusado ter ido até a residência da vítima
já consuma o crime, pois esse estava devidamente intimado das medidas, e no crime de
descumprimento a consumação independe da prática de qualquer outro delito para sua
consumação.28
A violência contra a mulher é uma realidade constante. Em razão disso, o
descumprimento de medidas protetivas de urgência não poderia ficar impune, pois suas
consequências podem ser fatais. Por outro lado, o cárcere do agressor não irá resolver o
problema. O sistema prisional brasileiro está fracassado e há necessidade urgente de
mudanças. São necessárias políticas públicas que visem à reintegração dos detentos à
sociedade e, consequentemente, a diminuição da violência e a reincidência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo verificou que a aplicação das medidas protetivas de urgência é


necessária para a vítima de violência doméstica e familiar, pois são meios para assegurar o
seu acesso rápido à Justiça, postulando providências para fazer cessar as agressões sofridas.
Ainda, constatou-se que alguns doutrinadores defendem a aplicação dos institutos previstos

27
GARCIA, Claudia Regina dos Santos Albuquerque. Estudos Atuais. Núcleo de Enfrentamento às
Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres. Nov. 2018, p. 08. Disponível em:
<https://www.mpes.mp.br/Arquivos/Anexos/4cdb3e86-aa47-4811-8a46-36db6fecabdb.pdf>. Acesso em: 11
ago. 2019.
28
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação n. 70082425059, 1ª Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 28 de agosto de 2019. Disponível em: <
https://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia>. Acesso em: 1º set. 2019.
573

na Lei n. 9.009 de 26 de setembro de 1995 ao crime de descumprimento, porém tal tese não
foi recepcionada pela maioria dos julgadores, em consonância com a pesquisa de
jurisprudência realizada. A fiança judicial, também, mostrou-se um meio necessário para
assegurar maior proteção à vítima de violência doméstica, cerceando a liberdade do agressor
até que sejam averiguados os fatos ocorridos.
Conclui-se que se necessita de práticas sociais e políticas públicas para uma mudança
no pensamento e no comportamento, nas quais as antigas concepções de subordinação e de
tratamento desigual entre os sexos masculino e feminino não serão mais aceitas. O poder de
participação social das mulheres mostra-se necessário para garantir que possam estar cientes
sobre a luta pelos seus direitos, como a total igualdade entre os gêneros.

REFERÊNCIAS

BIANCHINI, Alice. O novo tipo penal de descumprimento de medida protetiva previsto


na Lei 13.641/2018. Ago. 2018, p. 02. Disponível em:
<https://professoraalice.jusbrasil.com.br /artigos/569740876/o-novo-tipo-penal-de-
descumprimento-de-medida-protetiva-previsto-na-lei1 3641-2018#_ftn4>. Acesso em: 29
ago. 2019.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria


da Penha. 2018. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/06/2df3ba3e13e95bf17e33a9c10e60a5
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BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:


< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em:
2019.

BRASIL. Decreto- Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.


Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso
em: 2019.

BRASIL. Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais


Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm>. Acesso em: 2019.

BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código
Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <
574

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em:


2019.

BRASIL. Lei n. 13.641, de 3 de abril de 2018. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de


2006 (Lei Maria da Penha), para tipificar o crime de descumprimento de medidas
protetivas de urgência. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2018/Lei/L13641.htm>. Acesso em: 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 305.442, Distrito Federal, DF,
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RIO GRANDE DO SUL. Apelação n. 70082425059, da 1ª Câmara Criminal. Relator: Des.


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RIO GRANDE DO SUL. Habeas Corpus n. 70081845042, 3ª Câmara Criminal. Relator:


Des. Sérgio Miguel Achutti Blattes. Porto Alegre, 25 julho 2019. Disponível
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RIO GRANDE DO SUL. Habeas Corpus n. 70077814101, 4ª Câmara Criminal. Des.


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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Constitucionalidade n. 19.


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http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199827>. Acesso em:
2019.
576

DISCRIMINAÇÃO NO AMBIENTE LABORAL – A ESCRAVIDÃO


ESTÉTICA

Jovana De Cezaro1
Maíra Angélica Dal Conte Tonial2

RESUMO: O presente artigo visa analisar a proteção principiológica e legal frente à


discriminação estética no ambiente laboral. Objetiva-se debater se os mecanismos legais de
proteção existente, ou seja, se a legislação existente e a principiologia são suficientes para
evitar as práticas discriminatórias no ambiente laboral, resguardando os direitos dos
funcionários ou se é necessário socorrer-se também a doutrina e a jurisprudência. A
discriminação estética no ambiente laboral ocorre quando um indivíduo é desfavorecido em
razão de sua aparência, ou seja, não se encaixa nos padrões exigidos pela sociedade. A Justiça
do Trabalho cada vez mais tem sido solicitada para determinar os limites de interferência das
empresas, que exigem padrões estéticos, na aparência de seus funcionários. Ocorre a
discriminação estética quando as exigências de beleza ultrapassam o limite que é considerado
razoável.

Palavras-chave: Ambiente Laboral, Discriminação estética, Escravidão estética, Padrões.

INTRODUÇÃO

O mercado de trabalho, por muitas vezes pode parecer cruel, em especial, com as
mulheres, assim, qualquer sujeito que esteja fora dos padrões exigidos pela sociedade é
discriminado esteticamente. A discriminação estética no ambiente laboral, normalmente,
ocorre de maneira não ostensiva, quando é negada a pessoa uma oportunidade de trabalho
com base em uma série de desculpas vazias.
Ao agir com discriminação fere-se o direito a igualdade elencado no artigo 5º da
Constituição Federal de 1988 e ataca-se a Carta Maior, visto esse direito constituir um dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Ainda, o artigo 7º da citada

1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo - UPF. Pós-Graduanda
em Direito do Trabalho. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo - UPF.
Advogada. Inscrita na OAB/RS sob número 120.665. Endereço de e-mail: jovanadc@hotmail.com.
2
Doutoranda em Ciência Jurídica Univalli/UPF. Mestre em Direito pela Unisinos. Especialista em Direito
Processual Civil e Processo do Trabalho. Graduada em Direito pela Universidade de Passo Fundo. Advogada.
Inscrita na OAB/RS sob número 45.621. Docente de Graduação e Pós Graduação na Universidade de Passo
Fundo-UPF/RS. Coordena o Projeto de Extensão Balcão do Trabalhador/Faculdade de Direito/UPF.
577

Constituição rege a igualdade nas relações de trabalho, que igualmente é ferido se praticada
a discriminação.
Este artigo busca, com essa constatação, realizar uma abordagem sobre a
discriminação no ambiente laboral, baseado em estereótipos estéticos, trazendo a base legal
e a etimologia da palavra discriminação e os padrões culturais impostos, expondo um alento
com julgados na busca da erradicação de tais mazelas nas relações laborais.

1. ARCABOUÇO PRINCIPIOLÓGICO

Para que se possam discutir as questões que envolvem o processo discriminatório nas
relações laborais, em especial o estético, é necessário, primeiramente, que se abordem
questões relacionadas a mecanismos legais de proteção. Para tanto, o arcabouço
principiológico que rodeia a esfera legal será analisado com ênfase, no presente momento,
em duas oportunidades: princípios gerais e princípios especiais, que devem amparar as
relações laborais.
Assim, como não poderia deixar de ser, inicialmente se contextualiza a palavra
princípio, que valendo-se de Melo

[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição


fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e
sentido servido de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente
por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a
tônica e lhe dá sentido harmônico3.

Já, Alexy define que

[...] los princípios son normas que ordenan que algo sea realizado em la
mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales
existentes. Por lo tanto, los princípios son mandatos de optimización, que
están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferente
grado y que la medida debida de sucumplimiento no sólo depende de las
45
possibilidades reales sino también de las jurídicas .

3
MELO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
882-883.
4
Tradução Livre: “[...] os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível,
dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que
estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu
cumprimento não depende apenas das possibilidades reais, mas também das jurídicas”.
5
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estudios Políticos e
Constitucionales, 2002, p. 86.
578

Para Canotilho os princípios são “normas que exigem a realização de algo, da melhor
forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas”6. E, na mesma linha,
destacando seu papel essencial no ordenamento jurídico, de normas, Harger conceitua
princípios como:

(...) normas positivadas ou implícitas no ordenamento jurídico, com um grau de


generalidade e abstração elevado e que, em virtude disso, não possuem hipóteses
de aplicação pré-determinadas, embora exerçam um papel de preponderância em
relação às demais regras, que não podem contrariá-los, por serem as vigas mestras
do ordenamento jurídico e representarem os valores positivados fundamentais da
sociedade7.

Para Nascimento: “os princípios jurídicos são valores que o Direito reconhece com
ideias fundantes do ordenamento jurídico, dos quais as regras jurídicas não devem afastar-
se para que possam cumprir adequadamente seus fins”8. Barroso, destaca “os princípios dão
unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões
normativas”9.
Se num primeiro momento parece que os princípios servem apenas como base legal
para a construção da norma, realizando-se um olhar mais apurado e contemporâneo, verifica-
se que serve como base legal para julgamento sempre que houver lacunas (artigo 4º da
LINDB10 e artigo 8º da CLT11), que oferta ao magistrado, em caso de omissão de regra,
decidir a lide baseado em analogia, costumes e princípios gerais de direito.
Nesse sentido, os princípios alçam papel especial no ordenamento jurídico, e devem
ser observados para a solução dos conflitos que se apresentam no Poder Judiciário, bem
como, para uma convivência social harmônica. Em especial, a Constituição Pátria alçou o
homem como centro do processo “um dos poucos consensos teóricos do mundo

6
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 1991, p. 1123.
7
HARGER, MARCELO. Princípios Constitucionais do Processo Administrativo. Rio de Janeiro: Forense,
2001, p. 16.
8
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 33.ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 110.
9
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. In
BARROSO, Luís Roberto (Org.). In A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos
fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar Boreal, 2003, p. 29-31.
10
Artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá
o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
11
Artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho: “As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na
falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por
equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de
acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe
ou particular prevaleça sobre o interesse público”.
579

contemporâneo diz respeito ao valor essencial do ser humano”12, reforçando assim, a


importância dos mesmos.
Assim, para estudar o fenômeno discriminatório e as barreiras principiológicas que
o impedem, far-se-á a análise do princípio constitucional da igualdade (âmbito geral) e no
âmbito especifico trabalhista o da proteção, a fim de pautar a necessária paridade de
tratamento entre todos e todas. O princípio da igualdade se torna um balizador do
ordenamento jurídico, esta insculpido no artigo quinto da Carta Magna e prevê que “todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”13.
Neste sentido, observa-se a importância alçada pelo legislador constituinte a tal
necessidade de observância a tal preceito, conforme Araújo “aponta que o legislador e o
aplicador da lei devem dispensar tratamento igualitário a todos os indivíduos, sem distinção
de qualquer natureza”. E segue suas reflexões afirmando que “o princípio da isonomia deve
constituir preocupação tanto do legislador como do aplicador da lei”14.
Para Silva, o tratamento isonômico “deve ser propiciado pelo Poder Público não só
no momento da aplicação da lei, mas desde sua elaboração, o que não quer dizer que se
exclua a possibilidade de certas discriminações, mas sim que estas ocorram de forma
justificada”15. Neste sentido, sob o aspecto geral, denota-se a preocupação constitucional em
repudiar qualquer discriminação a pessoa humana.
Neste sentido, primordiais os ensinamentos de Santos, quando em suas reflexões
sobre a importância de se compreender o alcance deste principio aduz “temos o direito a ser
iguais quando nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando nossa
igualdade nos descaracteriza”. Daí surge “a necessidade de uma igualdade que reconheça as
diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”16.

12
BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de Direito Constitucional – 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.
133.
13
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 25 jul. 2020.
14
ARAÚJO, Luiz Alberto David. Direito Constitucional: Princípio da Isonomia e a Constatação da
Discriminação Positiva. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 131.
15
SILVA, Marco Antônio Marques da. Cidadania e democracia: instrumentos para a efetivação da dignidade
humana. In SILVA, Marco Antônio Marques da; MIRANDA, Jorge (Coord.). Tratado luso-brasileiro da
dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 231.
16
SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo
multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 458.
580

No âmbito especifico o direito do trabalho, o princípio da igualdade em seu braço -


isonomia, deixa previsão expressa de impossibilidade de haver distinção salarial17,
reafirmando o disposto no o inciso XXX do artigo 7º da mesma Constituição18 assegura
proteção de salário igual, afirmando que é proibida a diferença de salários por motivo de
sexo, idade, cor, ou estado civil, reafirmando a condição de dignidade da pessoa humana
inserta nos ditames constitucionais.
Assim, se em num contexto geral, a igualdade resta assegurada, em termos
específicos o ramo de Direito do Trabalho, que vislumbra relações dispares - pois via de
regra o empregado é a parte mais fraca da relação entabulada - os princípios alçam especial
importância.
Para que a proteção do trabalhador possa ser alçada, no contexto apresentado, lança-
se mão de princípios constitucionais, de ordem geral e que possuem grande aplicabilidade
ao ramo da ciência jurídica especializada, assim podemos destacar: princípio da dignidade
da pessoa humana, princípio da valorização do trabalho, princípio da igualdade, princípio da
autonomia provada, princípio da justiça contratual, princípio da função social do contrato,
princípio da boa-fé objetiva, princípio da razoabilidade, princípio da proporcionalidade,
dentre outros. Bem como, direitos específicos pertencentes a este ramo determinado.
Neste contexto, o Direito do Trabalho, ramo autônomo dentro da ciência jurídica,
incorporou uma série de princípios, podendo-se arrolar: princípio da proteção (suas sub
divisões norma mais favorável, condição mais benéfica e in dubio pro operário), princípio

17
Artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho: “Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor,
prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem
distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade. § 1o Trabalho de igual valor, para os fins deste Capítulo, será
o que for feito com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de tempo
de serviço para o mesmo empregador não seja superior a quatro anos e a diferença de tempo na função não seja
superior a dois anos. § 2o Os dispositivos deste artigo não prevalecerão quando o empregador tiver pessoal
organizado em quadro de carreira ou adotar, por meio de norma interna da empresa ou de negociação coletiva,
plano de cargos e salários, dispensada qualquer forma de homologação ou registro em órgão público. § 3 o No
caso do § 2o deste artigo, as promoções poderão ser feitas por merecimento e por antiguidade, ou por apenas
um destes critérios, dentro de cada categoria profissional. § 4º - O trabalhador readaptado em nova função por
motivo de deficiência física ou mental atestada pelo órgão competente da Previdência Social não servirá de
paradigma para fins de equiparação salarial. § 5 o A equiparação salarial só será possível entre empregados
contemporâneos no cargo ou na função, ficando vedada a indicação de paradigmas remotos, ainda que o
paradigma contemporâneo tenha obtido a vantagem em ação judicial própria. § 6o No caso de comprovada
discriminação por motivo de sexo ou etnia, o juízo determinará, além do pagamento das diferenças salariais
devidas, multa, em favor do empregado discriminado, no valor de 50% (cinquenta por cento) do limite máximo
dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”.
18
Artigo 7º da Constituição Federal de 1988: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros
que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de
funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.
581

da indisponibilidade, princípio da continuidade da relação de emprego, princípio da primazia


da realidade, princípio da intangibilidade salarial, princípio da autodeterminação coletiva
dentre outros.
Neste sentido, o viés protetivo do direito laboral constitui, como adverte Sussekind,
a base do contrato de trabalho neste sentido “o princípio da proteção do trabalhador resulta
das normas imperativas, e, portanto, de ordem pública, que caracterizam a intervenção
básica do Estado nas relações de trabalho, visando a opor obstáculos à autonomia da
vontade”19. Assim quer, o viés da proteção exige que a igualdade passa a ser fator
determinante para a mantença das relações laborais, casando portanto com preceitos
constitucionais que limitam procedimentos discriminatórios nas relações laborais.

2. ETIMOLOGIA DO CONCEITO DISCRIMINAÇÃO E SUAS FORMAS

Como visto, os princípios constitucionais e celetistas buscam proteger a pessoa


humana contra qualquer tipo de discriminação e lhes garantir a igualdade de tratamento, o
respeito, a igualdade de oportunidades, bem como a vedação das distinções injustificadas,
chamadas de discriminações negativas e ilícitas.
Inicialmente se faz necessária a distinção entre preconceito e discriminação. O
preconceito é uma ideia preconcebida, ou seja, formada antecipadamente. Santos define o
preconceito como a “formulação de ideia ou ideias (que por vezes alicerçam atitudes
concretas), calcadas em concepções prévias que não foram objeto de uma reflexão devida
ou que foram elaboradas a partir de ideias deturpadas”20.
Já discriminação, deriva de discriminar e significa diferenciar. Segundo o dicionário
jurídico, discriminação é o “preconceito manifestado por ato, em razão de raça, sexo, cor,
idade, trabalho, credo religioso ou convicções políticas, em quebra do princípio de
igualdade”21. Ainda, a Convenção número 111 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), ratificada pelo Brasil em 1965 e promulgada pelo Decreto número 62.150 em 1998,
trouxe em seu artigo 1º o conceito de discriminação como sendo:

19
SUSSEKIND, Arnaldo. Os Princípios do Direito do Trabalho e a Constituição de 1988. Revista da
Academia Nacional de Direito do Trabalho, ano 8, n. 8, 2003, p. 144.
20
SANTOS, Christiano Jorge. Crimes de preconceito e de discriminação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
p. 43.
21
SIDOU, Othon J. M [et.al]. Dicionário Jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 11. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2016. p. 221.
582

a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião,


opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito
destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de
emprego ou profissão; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que
tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em
matéria de emprego ou profissão que poderá ser especificada pelo Membro
interessado depois de consultadas as organizações representativas de
empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos
adequados22.

Enquanto o preconceito é uma concepção interior, a discriminação é a exteriorização


do preconceito. Ainda, para Gurgel, a discriminação é a vertente negativa do princípio da
igualdade e tem como significado:

(…) distinguir uma coisa de outra, estabelecer diferenças, separar, segregar,


desprezar, dar tratamento de inferioridade a alguém, causando-lhe prejuízo, sem
considerar os méritos e talentos pessoais. Nada mais é do que excluir o indivíduo
da sociedade, do meio de convívio, por puro preconceito – conceito prévio,
opinião formada sem o devido conhecimento, e decorrente da ignorância.
Intrinsecamente, há o medo, a insegurança e o repúdio ao aparentemente diferente
– com base em fatores como aparência, idade, cor, sexo, opção sexual, estado civil,
raça, condição social, entre outros23.

Nessa senda, os fatores discriminatórios podem se classificar em razão do gênero,


racismo, pessoa com deficiência, idade, estado de saúde, orientação sexual, lista
discriminatória, entre outros. A estética também é um fator discriminatório, de modo que a
beleza, conhecida como boa aparência adquiriu relevante importância na atualidade e a
consequência disso é a discriminação estética.
Ainda, a discriminação pode assumir a forma positiva ou negativa. A discriminação
positiva é aquela com o intuito de proteger uma categoria mais vulnerável (menor, deficiente
e mulher), seja por meio do legislativo ou por meio de políticas públicas, visando prevenir
ou coibir as práticas discriminatórias, especialmente nas relações de trabalho24.
A discriminação negativa estabelece um desfavor à pessoa discriminada, visa excluir
os desiguais, contrariamente aos preceitos constitucionais de igualdade, liberdade,

22
CONVENÇÃO 111. Sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão. Disponível em:
<https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235325/lang--pt/index.htm>. Acesso em 24 de julho de
2020.
23
GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos Humanos, Princípio da Igualdade e Não Discriminação: sua
aplicação às relações de trabalho. 2007. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2007. p. 62-63.
24
NASCIMENTO, Grasiele Augusta Ferreira; ALKIMIN, Maria Aparecida. Limites do poder de direção do
empregador e a discriminação estética na relação de emprego. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=da54dd5a0398011c>. Acesso em 27 de julho de 2020. p. 13.
583

tolerância, respeito e dignidade da pessoa humana, ou seja, prejudica a pessoa ou grupo de


forma injustificada, portanto é ilícita25.
Assim, destaca-se a importância da discriminação positiva, que visa uma proteção
especial a certo grupo de pessoas. Ainda, consiste em fazer “prevalecer o real sentido da
igualdade de tratamento em matéria trabalhista”, que visam a inclusão dos mesmos. Assim,
o ordenamento jurídico veda a discriminação negativa e reconhece como legítima e legal a
chamada discriminação positiva26.
Também, destaca-se a discriminação vertical e a discriminação horizontal. A
primeira “ocorre quando o empregado que ocupa um cargo mais alto ou o empregador usam
do seu poder discricionário para discriminar o seu subordinado ou empregado”. A segunda
acontece quando os próprios colegas de trabalho, funcionários, tratam de maneira negativa
um determinado grupo de trabalho ou companheiro27 28.
Não menos importante, a discriminação nas relações de trabalho podem ser de forma
direta ou indireta. Diz-se que, a discriminação é de forma direta “ocorre quando o
empregador de forma explícita pratica um comportamento diferenciatório por motivos
arbitrários e proibidos que atingem o direito à igualdade e dignidade do trabalhador”29. Na
discriminação direta a intenção do discriminar é clara.
Ocorre a discriminação de forma indireta quando está “relacionada com situações,
regulamentações ou práticas aparentemente neutras, mas que, na realidade, criam
desigualdades em relação a pessoas que têm as mesmas características”30. Moraes afirma
que é a forma de “tratar aparentemente todos igualmente, mas o efeito desse tratamento tem
resultados diferentes sobre determinados grupos, trazendo prejuízos e desvantagens para
alguns e não para outros”31.

25
NASCIMENTO, Grasiele Augusta Ferreira; NUNES Renata Cristina da Silva. A discriminação estética na
relação de emprego decorrente do uso de vestimentas religiosas e os limites ao poder de direção do empregador.
Revista jurídica UNICURITIBA. Curitiba, v. 2, n. 39, p. 54-87, 2015. p. 69.
26
NASCIMENTO, Grasiele Augusta Ferreira; ALKIMIN, Maria Aparecida, 2020, p. 13.
27
Afirma Moraes que “apesar dessa possibilidade da discriminação ocorrer de forma horizontal, quando um
grupo de empregados se junta para isolar determinado colega em razão de suas características pessoais,
geralmente a discriminação se dá de forma vertical no ambiente de trabalho, partindo do superior hierárquico,
utilizando-se do poder diretivo como camuflagem” (2012, p. 11).
28
MORAES, Kelly Farias De. Direitos Humanos e Direito do Trabalho ações afirmativas no combate à
discriminação nas relações de trabalho. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, v. 147, 2012, p. 277 -
314, jul. - set. 2012. p. 11.
29
MORAES, Kelly Farias De. 2012. p. 09.
30
ROMAR, Carla Teresa Martins. Direito do Trabalho Esquematizado. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2019. p. 724.
31
MORAES, Kelly Farias De. 2012. p. 09.
584

Ainda, a intenção discriminatória aparece sempre na discriminação direta, na indireta


é implícita e somente é identificada através de indicadores, quando os resultados se mostram
desfavoráveis a um determinado grupo32. Significa dizer que, algumas empresas se utilizam
de regras aparentemente neutras e não discriminatórias, o que acaba por obstruir o acesso a
determinados grupos da sociedade, trazendo efeitos prejudiciais e discriminatórios.
Além das discriminações que conhecemos de longa data, na atualidade, cada vez
mais, ouve-se falar da discriminação estética. O mito da beleza liga-se a um padrão estético
que é estendido para todos e aqueles que não se encaixam nesse padrão são automaticamente
excluídos, assim também é no ambiente laboral.

3. DISCRIMINAÇÃO ESTÉTICA NO AMBIENTE LABORAL

Em decorrência do poder diretivo33, os empregadores têm o direito de escolher os


empregados que ocuparão o espaço de trabalho e o momento da rescisão desses contratos,
que pode ocorrer sem que haja justificativa do empregador. Tais condutas são plenamente
válidas, desde que não se deem por motivos discriminatórios.
Como visto as práticas discriminatórias nem sempre se manifestam de forma clara e
direta. A relação entre empregado e empregador é uma relação propicia para que ocorra a
discriminação, pois o empregador pode selecionar o candidato de acordo com os seus
requisitos. Mas questiona-se até que ponto os padrões estéticos são utilizados como forma
de inclusão e exclusão nas contratações das empresas.
Com “o avanço da indústria da beleza e as características específicas dos empregos
gerados por ela é que se desenvolve uma discussão sobre como os padrões estéticos podem
influenciar no mercado de trabalho”34. O critério da “boa aparência”, cada vez mais utilizado
atualmente, traz um impacto negativo sobre um determinado grupo de pessoas, que na
realidade já pretendia-se excluir.

32
MORAES, Kelly Farias De. 2012. p. 10.
33
O poder de direção encontra-se estampado no artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho: “Considera-
se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite,
assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”.
34
REZENDE, Yuri Alexandre Estevão; NASCIMENTO, Sarah Christina do; ALVES, Kerley dos Santos.
“Você não tem o perfil dessa vaga”: padrões de beleza, gênero e relações de trabalho. Revista Eletrônica de
Ciências Sociais, Juiz de Fora, 2018, n. 27, p. 59 – 75, 2018. p. 65.
585

Importante ressaltar que, as discriminações laborais podem vir à tona em três


momentos: seja no recrutamento de empregados, quando a empresa deixa de contratar
pessoas pertencentes a uma determinada minoria; na execução do contrato de trabalho,
quando, por exemplo, os grupos discriminados são impedidos de acessar os cargos mais
elevados na empresa e na dispensa do empregado, quando o mesmo pertence a um grupo
que se encontra em situação de desvantagem35.
A fase pré-contratual é o momento que mais se presencia a discriminação nas
relações de trabalho, “pois nela o empregador possui a opção de escolher o indivíduo que
ocupará o posto de trabalho”36. Durante o processo seletivo, a discriminação estética ocorre
quando o empregador busca excluir o candidato por razões como altura, peso, por possuir
piersings, tatuagens, entre outros, que não se encaixem nos padrões culturais exigidos.
No entanto, conforme assegura Morais, “o fato de o empregador decidir pela
contratação de um empregado em relação ao seu sexo, altura, peso, não significa
obrigatoriamente que esteja ocorrendo uma discriminação, desde que tais características,
sejam necessárias para o exercício de determinada função”37.
Com a modernização da sociedade atual a discriminação estética, até então pouco
comentada, ganha força. Atualmente é bem comum no processo seletivo a discriminação
estética, especialmente quando a atividade para o qual o candidato vai ser contratado exige
contato com o público (garçom, secretária, vendedor, entre outros). Como já dito,
determinadas empresas condicionam a vaga a quem possui “boa aparência”.
Sendo assim, a discriminação estética, está inserida como uma forma indireta de
discriminação. Significa dizer que, um indivíduo que sofre discriminação estética é
desfavorecido em razão de sua aparência, ou seja, não se encaixa nos padrões exigidos pela
sociedade.
O conceito de estética está diretamente relacionado ao conceito de beleza. Conforme
o dicionário global de língua portuguesa, define-se estética como “1. Ciência que trata das
leis gerais do belo. 2. Caráter estético de uma forma. 3. Harmonia, beleza. 4. Fig. Plástica,
beleza física”38.

35
MORAES, Kelly Farias De. 2012. p. 13.
36
GURGEL, Yara Maria Pereira, 2007. p. 255.
37
MORAES, Kelly Farias De. 2012. p. 08.
38
RIOS, Demival Ribeiro. Dicionário Global da Língua Portuguesa ilustrado. São Paulo: DCL, 2004. p.
293.
586

Assim sendo, as pessoas que, eventualmente, não se encaixam em determinado


padrão de beleza estão em desvantagem em relação aquelas de “boa aparência”. Se encaixa
como discriminação estética qualquer tipo de desvalorização do ser humano, sendo que os
principais fatores que geram efeitos negativos no emprego são: peso 39, altura, tatuagens,
piercings, cicatrizes, queloides, barba, cabelo, queimadoras, feridas, deficiências e marcas
decorrentes de alguma doença.
Ainda, muitas empresas determinam algumas regras que interfere na aparência do
trabalhador, como a proibição do uso de brincos, a exigência ou não do uso de maquiagem,
a proibição de tatuagens ou piercings, entre outros. A razão disso reside na supervalorização
da aparência e na busca pela beleza, em especial no ambiente laboral. Tal comportamento
também faz com que o consumismo40 cresça exacerbadamente.
Na atualidade as mulheres sofrem mais pressão quanto a beleza do que os homens.
Wolf, ainda na década de 90, escreve que as revistas femininas ao

[...] fornecer uma linguagem onírica da meritocracia ("tenha o corpo que merece";
"não se tem um corpo maravilhoso sem esforço"), do espírito empreendedor ("tire
o melhor partido dos seus atributos naturais"), da absoluta responsabilidade
pessoal pela forma do corpo e pelo envelhecimento ("você pode moldar totalmente
seu corpo"; "suas rugas estão agora sob seu controle") e até mesmo confissões
francas ("afinal você também pode conhecer o segredo que as mulheres belas
guardam há anos"), essas revistas mantêm as mulheres consumindo os produtos
dos seus anunciantes na busca da total transformação pessoal em status que a
sociedade de consumo oferece aos homens sob a forma de dinheiro 41.

A busca pela beleza tornou-se essencial para a manutenção da sociedade de consumo.


Cada vez mais, as empresas buscam funcionários que se encaixam em determinado padrão
estético. Também, muitas vezes, a capacidade intelectual é anulada pela forma que a pessoa
se apresenta esteticamente.

39
A discriminação pelo peso poderá ocorrer tanto pelo excesso (obesidade e sobrepeso), como pela ausência
de peso (bulimia e a anorexia). Ambas geram uma aparência diferente dos padrões estabelecidos pela sociedade
(NASCIMENTO, ALKIMIN, 2020, p. 09).
40
Quanto ao consumismo, Bauman define como: [...] um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de
vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, “neutros quanto ao regime”,
transformando-os na principal força propulsora e operativada sociedade, uma força que coordena a reprodução
sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao
mesmo tempo um papel importante nos processos de auto-identificação individual e de grupo, assim como na
seleção e execução de políticas de vida individuais. O “consumismo” chega quando o consumo assume papel-
chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho (2008, p. 41).
41
WOLF, Naomi. O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução de
Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 36-37.
587

Dessa forma, cabe ao empregador usar de seu poder diretivo para garantir um meio
de trabalho sadio e sem discriminações. Também cabe aos órgãos legais o combate à
discriminação, seja por meio das leis, das tutelas individuais ou coletivas, como também por
meio de ações afirmativas.

4. PADRÕES CULTURAIS E PROTEÇÃO LEGAL

Os atos de discriminação se espraiaram por todo o mercado de trabalho. Qualquer


sujeito que esteja fora dos padrões exigidos pela sociedade é discriminado esteticamente. A
discriminação estética no ambiente laboral, normalmente, ocorre de maneira não ostensiva,
quando a pessoa é negada uma oportunidade de trabalho com base em uma série de desculpas
vazias.
Os padrões culturais são definidos com base no que é “belo” e no que é “feio”,
conceitos que variam em virtude do período histórico e da cultura. Cada época se tem um
estereótipo aceitável de boa forma e beleza. A mídia demostra que para ser considerado belo
é necessário ter um corpo perfeito e para obtê-lo as pessoas valem-se de qualquer sacrifício42.
O atual padrão de beleza atualmente é denominado por Cury de “padrão inatingível
de beleza”43. A mulher bela, segundo o padrão atual estimulado pela sociedade e pela mídia,
é a mulher branca, preferencialmente loira e de cabelos lisos, que tenha um corpo
exageradamente magro e bem torneado e, para os homens, que seja branco e que tenha um
corpo musculoso44. Os que não se encaixam nesses padrões são discriminados esteticamente
e excluídas do grupo.
A Justiça do Trabalho tem sido cada vez mais solicitada para decidir os limites de
interferência das empresas, que exigem padrões estéticos, na aparência de seus funcionários.
Ocorre a discriminação estética quando as exigências de beleza ultrapassam o limite que é
considerado razoável.
Ainda, as empresas que exigem padrões estéticos a serem seguidos, devem arcar com
os custos que isso gera. Esse foi o entendimento da 8º Turma do Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região (MG) ao condenar uma companhia área a ressarcir uma funcionária

42
FLOR, Gisele. Corpo, mídia e status social: reflexões sobre os padrões de beleza. Revista de Estudos da
Comunicação, Curitiba, v. 10, 2009, n. 23, p. 267 – 274, set. – dez. 2009. p. 268.
43
CURY, Augusto. A ditadura da beleza e a revolução das mulheres. Rio de Janeiro: Sextante, 2005. p. 04.
44
FLOR, Gisele. 2009. p. 272.
588

por gastos com unha, maquiagem e penteados45. Assim fundamenta sua decisão, o Relator
Rodrigues Filho, que reformou a decisão do juízo da 5ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora:

[...] diante da prova inequívoca de que a Reclamada exigia determinados cuidados


com a aparência que transcendiam a mera "higiene pessoal" de seus empregados
e levando-se em conta que o ônus do empreendimento não pode ser transferido
para o empregado (inteligência do artigo 2º da CLT), torna-se forçoso reconhecer
o direito da Reclamante ao ressarcimento dos valores despendidos com salão de
beleza46.

Sendo assim, ainda conforme o Relator, despesas com procedimentos que visam a
“padronização” devem ser suportados pela empresa, pois se converte em benefício do
empreendimento. Também, reforça o Rodrigues Filho, que a empresa pode exigir que o
empregado se apresente com “boa aparência”, porém “diante do estabelecimento de
determinados padrões estéticos a serem observados [...] passa a ser da empregadora o dever
de custear os gastos realizados pelo empregado”47.
Ainda, um professor de educação física foi chamado de gordo e de ser incapaz de ser
um bom profissional de educação física. Para o Relator Veiga “deve a empresa cuidar para
um ambiente de respeito com o trabalhador”, não possibilitando “posturas que evidenciem
tratamento pejorativo, ainda mais em razão da condição física, o que traz sofrimento pessoal
e íntimo ao empregado, pois além de ser gordo ainda tem colocado em dúvida a sua
competência profissional”48.
Diversos são os casos de discriminação que ocorrem hodiernamente no ambiente
laboral. Dessa forma, importante salientar que só se pode preterir determinados profissionais
para uma função se houver uma justificativa plausível, caso contrário, caracterizar-se-á
discriminação.
Com o surgimento da Organização Internacional do Trabalho, a luta contra a
discriminação e a promoção pela igualdade ganharam ainda mais força. Além da

45
CONSULTOR JURÍDICO (CONJUR). Empresa que exige padrão estético de funcionários deve
ressarcir custos. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-nov-16/empresa-exige-padrao-estetico-
ressarcir-custos>. Acesso em: 29 jul. 2020.
46
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. Recurso Ordinário Trabalhista ROT 0010891-
06.2018.5.03.0143 Relator Antônio Carlos Rodrigues Filho. Disponível em:
<https://portal.trt3.jus.br/internet>. Acesso em: 30 jul. 2020. p. 38.
47
BRASIL. 2020. p. 38.
48
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista número 14500-93.2006.5.09.0872 Relator
Aloysio Correa da Veiga. Disponível em: <https://www.tst.jus.br/>. Acesso em: 30 jul. 2020.
589

principiologia constitucional anteriormente citada, cumpre destacar também a proteção legal


e jurisdicional no combate à discriminação.
O direito a igualdade norteia todo e qualquer tipo de discriminação. Com a
Constituição Federal de 1988 o direito a igualdade ganha mais força e expressão,
constituindo um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil 49 e
integrando o rol de direitos e garantias fundamentais da Carta Maior50. Ainda, a Constituição
Federal, em seu artigo 7º, rege a igualdade nas relações de trabalho51.
No campo infraconstitucional diversas são as leis que buscam eliminar qualquer tipo
de discriminação. Cita-se, o parágrafo único do artigo 3º52, o artigo 5º53, o artigo 460, que
também buscou tratar da isonomia54 e, ainda, o artigo 46155, todos da Consolidação das Leis
do Trabalho. Desse modo, resta claro, na referida Consolidação, a repulsa a qualquer forma
de discriminação, embora nos dispositivos mencionados a previsão seja majoritariamente
quanto a discriminação salarial.
Ainda, alguns textos legais tratam da discriminação. Cita-se a Lei número 7.853 de
1989 que disciplina a política de inserção da pessoa com deficiência, a Lei número 8.842 de
1994 que prevê a política nacional do idoso, cujos princípios englobam a proibição da
discriminação contra o idoso.
Ainda, importante mencionar a Lei número 9.799 de 1999 que alterou a Consolidação
das Leis do Trabalho em uma série de regras sobre o acesso da mulher ao mercado de

49
Artigo 3º da Constituição Federal de 1988: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil: [...] III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV -
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação”.
50
Artigo 5º da Constituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”.
51
Artigo 7º da Constituição Federal de 1988: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros
que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de
funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; XXXI - proibição de qualquer
discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; XXXII -
proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos [...]”.
52
Artigo 3º da Consolidação das Leis do Trabalho: “[...] Parágrafo único - Não haverá distinções relativas à
espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual”.
53
Artigo 5º da Consolidação das Leis do Trabalho: “A todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual,
sem distinção de sexo”
54
Artigo 460 Consolidação das Leis do Trabalho: “Na falta de estipulação do salário ou não havendo prova
sobre a importância ajustada, o empregado terá direito a perceber salário igual ao daquela que, na mesma
empresa, fizer serviço equivalente ou do que for habitualmente pago para serviço semelhante”.
55
Artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho: “Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor,
prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem
distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade”.
590

trabalho e a Lei número 9.029 de 1995, considerada uma das mais relevantes, pois ataca de
maneira contundente qualquer forma de discriminação no acesso ou na manutenção da
relação de emprego, entre outras.
A estética é tema muito presente e debatido na sociedade. Não há legislação
especifica que trate sobre a discriminação estética, principalmente no ambiente laboral, por
esse motivo, a doutrina e a jurisprudência cuidam de abordar esse tema. Salienta-se que, o
poder diretivo do empregador não é ilimitado e é atitude punível quando trata-se de
discriminação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas reflexões acima postas, abordou-se o fenômeno da discriminações nas relações


laborais. Assim que, sob a óptica de análise das questões discriminatórias constatou-se a
necessidade de expor o fato odioso para que se pudesse fazer uma reflexão sobre as questões
legais a ele implicadas.
Assim diagnosticou-se que tal pratica fere o direito constitucional da igualdade e
ataca-se a Constituição Federal de 1988, constituindo um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil e seu artigo 7º que rege a igualdade nas relações de trabalho,
em seu âmbito protetivo.
Por meio da abordagem de legislação especifica sobre a temática, pode-se constatar
a existência de aparatos jurídicos hábeis para evitar tal conduta, porém, sem sombra de
dúvidas que a conscientização e a educação passa a ser a estratégia mais assertiva para elidir
tal pratica nociva as relações laborais.

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interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público,
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gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de
permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras providências. Disponível em:
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Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9799.htm>. Acesso em: 30
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594

A NECESSÁRIA PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR INFANTIL


DIANTE DE SUA HIPERVULNERABILIDADE NA SOCIEDADE DE
CONSUMO

Jovana De Cezaro1

RESUMO: O presente artigo visa analisar a vulnerabilidade do consumidor criança frente à


publicidade apelativa voltada a esse público lucrativo. Objetiva-se debater se a legislação
existente, Constituição Federal, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do
Adolescente, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), o
Instituto Alana, a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos
das Crianças, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, entre outros,
são suficientes para evitar práticas abusivas e enganosas, resguardando os direitos dos
consumidores crianças. Esses consumidores integram o grupo dos denominados
hipervulneráveis, aqueles que possuem a vulnerabilidade agravada em função de sua
condição especial de criança. Na sociedade de consumo, onde o ter torna-se mais importante
que o ser, abre-se espaço para o surgimento de publicidade enganosa e abusiva vultada ao
público infantil, com a finalidade de instigar o consumo e manter a economia ativa.

Palavras-chave: Consumidor, Hipervulnerabilidade, Infantil, Publicidade, Vulnerabilidade.

INTRODUÇÃO

A forma com que se faz publicidade mudou drasticamente nos últimos anos. As
mudanças comportamentais dos consumidores, a consolidação da globalização dos
mercados, o avanço da internet e as revoluções tecnológicas desafiam cada vez mais o
mercado publicitário brasileiro.
Hodiernamente somos bombardeados com uma série de anúncios publicitários, que
utilizam da criatividade para convencer e persuadir os indivíduos a consumir cada vez mais.
A fim de conquistar o consumidor, a publicidade apela para o desejo e a fantasia das pessoas,
despertando um sentimento de necessidade.
O presente artigo verifica os cuidados redobrados com a publicidade voltada
população infantil, denominados de hipervulneráveis, que são facilmente influenciados ao
consumo, porta de entrada do consumismo.

1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo - UPF. Pós-graduanda
em Direito do Trabalho. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo - UPF.
Advogada-OAB/RS 120665. Endereço de e-mail: jovanadc@hotmail.com.
595

Assim, utilizando-se de meios de proteção como a Constituição Federal, o Código de


Defesa do Consumidor, O Estatuto da Criança e do Adolescente, o Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), o Instituto Alana, entre outros, analisa-
se se os mesmos não efetivos na proteção contra a publicidade abusiva ou enganosa voltada
ao público infantil. Para tanto, utiliza-se do método indutivo e dos procedimentos
documentais e bibliográficos.

1. A CONFIGURAÇÃO DA RELAÇÃO DE CONSUMO

O Código de Defesa do Consumidor, visa tutelar um grupo específico de indivíduos,


considerados vulneráveis nas relações de consumo. A fim de que se configure uma relação
de consumo é necessário que estejam presentes os elementos subjetivos, que são os sujeitos
das relações jurídicas (consumidor e fornecedor), e objetivos relacionado ao objeto das
prestações (produtos e serviços). Assim, tem-se de um lado o consumidor que adquire um
produto ou serviço e de outro o fornecedor desse produto ou serviço, visando satisfazer uma
necessidade privada do primeiro.
O Código de Defesa do Consumidor, Lei Número 8.078 de 1990, traz mais de um
conceito de consumidor. O conceito geral encontra-se elencado em seu artigo 2º, que define
consumidor como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto2 ou serviço3
como destinatário final”4. Ainda, define Grinover et al, que é consumidor “qualquer pessoa
física ou jurídica que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício
próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de um
serviço”5.
Importante mencionar que, existe uma discussão sobre a extensão e a interpretação
da expressão “destinatário final”. Para tanto, existem entendimentos de três correntes acerca

2
Artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor: “[...] § 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material
ou imaterial” (BRASIL, 1990). Ainda, “produto (entenda-se ‘bens’) é qualquer objeto de interesse em dada
relação de consumo, e destinado a satisfazer uma necessidade do adquirente, como destinatário final”
(GRINOVER et al, 2019, p. 51, grifos do autor).
3
Artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor: “[...] § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado
de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo
as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (BRASIL, 1990).
4
BRASIL. Lei Federal número 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor
e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm>.
Acesso em: 07 ago. 2020.
5
GRINOVER, Ada Pellegrini, et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do
anteprojeto: direito material e processo coletivo: volume único. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 26.
596

da definição de consumidor, com base na expressão supracitada: teoria finalista ou subjetiva,


teoria maximalista ou objetiva e teoria finalista aprofundada.
A teoria finalista ou subjetiva parte do conceito econômico de consumidor. Propõe
que a interpretação deve ser mais restritiva, fundamentando-se no fato de que, somente o
consumidor, sujeito vulnerável da relação consumista, merece especial tutela. Sendo assim,
para tal doutrina, o destinatário final é aquele que retira de circulação um produto ou serviço
do mercado de consumo, a fim de satisfazer suas necessidades ou de sua família, e que não
utiliza o bem para revenda, para continuar a produzir ou para uso profissional6.
Já a teoria maximalista ou objetiva trata do conceito de consumidor em sentido mais
amplo, abrangendo o maior número de relações possíveis. Ou seja, o destinatário final é
aquele destinatário fático do bem ou serviço, isto é, que retira o bem do mercado, pouco
importando a destinação econômica, mesmo que revele finalidade lucrativa7.
A teoria finalista aprofundada surgiu com o Código Civil de 2002, é adotada pelo
Supremo Tribunal de Justiça e trata-se de uma teoria intermediária. O leading case8 apontado
para a adesão do Supremo Tribunal de Justiça ao finalismo aprofundado é o REsp
1.195.642/RJ, relatado pela Ministra Nancy Andrighi. A Ministra adere à teoria finalista
aprofundada e uniformiza o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça.
Conforme o voto da Relatora no Recurso Especial acima citado, a teoria finalista
aprofundada, poderia ser assim resumida:

Cuida-se, na realidade, de se admitir que, em determinadas hipóteses, a pessoa


jurídica adquirente de um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de
consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade que,
vale lembrar, constitui o princípio-motor da política nacional das relações de
consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda
a proteção conferida ao consumidor9.

Sendo assim, aceita-se que uma pequena empresa ou um profissional, que adquirem
produtos ou serviços fora do campo de sua especialidade também possam ser amparados

6
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Direito do Consumidor. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 74.
7
CAVALIERI FILHO, Sergio. 2019, p. 74.
8
Conforme o manual de linguagem jurídico-judiciária do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o leading
case significa caso orientador (2012).
9
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.195.642 – RJ. Relatora Ministra Nancy
Andrighi. Disponível em
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo
=201000943916&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 10 ago. 2020. p. 05.
597

pelo Código de Defesa do Consumidor. Ainda, segundo Miragem, a teoria apresenta-se a


partir de dois critérios, quais sejam:

a) primeiro, de que a extensão do conceito de consumidor por equiparação é


medida excepcional no regime do CDC; b) segundo, que é requisito essencial para
esta extensão conceitual e por intermédio da equiparação legal (artigo 29), o
reconhecimento da vulnerabilidade da parte que pretende ser considerada
consumidora equiparada10.

Os demais conceitos de consumidor dão-se por equiparação, que são os indivíduos


que não fazem parte do contrato de consumo, mas que foram atingidos ou prejudicados pelas
atividades dos fornecedores no mercado. O parágrafo único do comentado artigo 2º do
Código, equipara a consumidor de bens ou serviços, a coletividade de pessoas, ainda que
indeterminadas e que tenham intervindo em dada relação de consumo. Este dispositivo
afirma o caráter coletivo e difuso do direito do consumidor11.
O artigo 17, equipara a consumidor as vítimas dos eventos danosos decorrentes da
relação de consumo, derivados da falta de segurança esperada do produto ou serviço. Ou
seja, os terceiros que, por ventura, venham a ser atingidos, devem ser ressarcidos pelos danos
a eles causados, tendo em vista que, para os efeitos legais, equiparam-se a consumidores,
recebendo a denominação de bystander12.
Ainda, o artigo 29 equipara a consumidor “todas as pessoas determináveis ou não,
expostas às práticas nele previstas”, ou seja, basta a simples exposição da pessoa as práticas
comerciais ou contratuais, englobando questões sobre oferta, práticas abusivas, publicidade,
entre outras, a fim de que se esteja diante de um consumidor13. Menciona Cavalieri Filho
que o artigo 29, juntamente com o artigo 17, “apresenta-se como regra excepcionadora da
abrangência original do Código de Defesa do Consumidor”14.
Benjamin aborda que “não faltam os que afirmam ser o consumidor o principal
agente da vida econômica. É para ele e pensando nele que se produz. É a ele que se vendem

10
MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2013. p. 151.
11
BRASIL, 1990.
12
BRASIL, 1990.
13
BRASIL, 1990.
14
CAVALIERI FILHO, Sergio. 2019, p. 89, grifos do autor.
598

produtos e serviços; é a ele que se busca seduzir com a publicidade”. Ainda é o consumidor
“quem paga a conta da produção e é dele que vem o lucro do produtor”15.
A outra parte necessária a fim de configurar uma relação de consumo é o fornecedor. O
artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor, define o fornecedor como sendo

toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem


como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção,
montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação,
distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços 16.

Aborda Cavalieri Filho, que o Código de Defesa do Consumidor considera


fornecedor aqueles que “atuam nas diversas etapas do processo produtivo (produção-
transformação-distribuição-comercialização-prestação), antes da chegada do produto ou
serviço ao seu destinatário final”17.
Leia-se que, o fornecedor é o responsável pela colocação, de produtos ou serviços no
mercado, à disposição do consumidor. O conceito de fornecedor é bastante amplo e a ele é
atribuído um pesado ônus. Ainda, é natural que o mesmo apresente uma posição
preponderante, colocado o consumidor em posição de vulnerabilidade.
No Brasil, a Constituição Federal elenca em seu artigo 5º, inciso XXXII que “o
Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”18. Ainda, em virtude da
determinação constitucional do artigo 5, inciso XXXII da Carta Maior, foi elaborado o
Código de Defesa do Consumidor, que em seu artigo 6º vislumbra os direitos básicos do
consumidor19.
O código de Defesa do Consumidor surgiu com o objetivo de estabelecer o equilíbrio
nas relações de consumo, tendo em vista ser o consumidor parte vulnerável nessa relação e
que necessita de proteção. A proteção do consumidor é direito fundamental elencado na
Constituição Federal, que foi regulamentado pelo Código de Defesa do Consumidor.

15
BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. O conceito jurídico de consumidor. Doutrinas Essenciais
de Direito do Consumidor. vol. 1. p. 935 – 954. Abr 2011. p. 01.
16
BRASIL, 1990.
17
CAVALIERI FILHO, Sergio. 2019, p. 90.
18
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 05 ago. 2020.
19
BRASIL, 1990.
599

2. O USO DA PUBLICIDADE COMO INCENTIVO À CULTURA DO CONSUMO

O consumir é um ato normal, padrão, que parece sempre ter existido, mas a doutrina
afirma que, um dos elementos centrais que define a pós-modernidade vivida atualmente é o
consumismo, o que faz com que se defina a atual sociedade como sociedade de consumo.
Nessa sociedade, todos os sujeitos são tidos como consumidores.
Importante lembrar da divisão do surgimento da sociedade de consumo, na
concepção de Lipovetsky, o qual divide esse surgimento em três principais momentos: no
primeiro ciclo, período de 1880 até 1945, iniciou a expansão da produção em massa e nesse
período surgiu o “consumidor moderno”; no segundo ciclo, que aconteceu de 1950 até 1970,
destaca-se a ascensão da compra de bens duráveis, fazendo com que as mais diversas classes
sociais tivessem acesso a “sociedade da abundância”, por fim, o terceiro período, que se
encontra em vigência desde 1970, se caracteriza pelo desejo insaciável de consumir20.
Afirma Bauman que, o “fenômeno do consumo tem raízes tão antigas quanto os seres
vivos”21. Ainda, a sociedade contemporânea, caracteriza-se pelo consumo em massa. Vive-
se em um tempo onde o consumir deixa de ser algo necessário e passa a ser meio de
ostentação social. Tudo gira em torno do dinheiro, do lucro e da acumulação e, por esse
motivo, surge a necessidade de proteção aos riscos derivados do mercado22. Mais, o consumo
“passou a ser uma obrigatoriedade e uma função do cidadão, para que se dê continuidade ao
processo”23.
Ao tratar de consumo, torna-se indispensável diferenciar os termos consumo,
consumismo e consumocentrismo. Consumo deriva de consumir, é o ato de adquirir bens ou
serviços por meio das compras. Bauman afirma que, “o consumo é algo banal, até mesmo
trivial”24.
Mas, as pessoas estão consumindo cada vez mais de maneira desenfreada e na
maioria das vezes sem necessidade, o que leva ao consumismo. Ainda, na concepção de

20
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução de
Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 27-38.
21
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução de
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. p. 37.
22
LIPOVETSKY, Gilles. 2007, p. 38.
23
PEREIRA, Henrique Mioranza Koppe; BOSSARDI, Rafaela Beal. Relações de consumo ou o consumo de
relações: as relações afetivas na contemporaneidade. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; HORN, Luiz
Fernando Del Rio. Relações de consumo: humanismo. Caxias do Sul, RS: Educs, 2011, p. 105-126. p. 107.
24
BAUMAN, Zygmunt. 2008, p. 37.
600

Bauman, consumo “é basicamente uma característica e uma ocupação dos seres humanos
como indivíduos, o consumismo é um atributo da sociedade”25.
Quanto ao conceito de consumismo, o mesmo autor define como:

[...] um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e


anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, “neutros quanto ao
regime”, transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade,
uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação
sociais, além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo
tempo um papel importante nos processos de auto-identificação individual e de
grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais. O
“consumismo” chega quando o consumo assume papel-chave que na sociedade de
produtores era exercido pelo trabalho26.

Ainda, atualmente a sociedade se encontra em um momento em que o “consumo é o


que pensamos, almejamos, buscamos, desejamos; é a razão do nosso ser e da nossa
existência”. Esse fenômeno é denominado de consumocentrismo e, com ele, “as questões
ambientais, sociais e econômicas que nos rodeiam são deixadas de lado, uma vez que, para
o consumidor o importante é consumir”27.
Calgaro e Pereira afirmam que “o consumocentrismo ocorre quando o sujeito acaba
sendo adestrado na sociedade hiperconsumista que possui como um dos seus objetivos o
consumo do supérfluo e do desnecessário”28. Os autores ainda completam que o
consumocentrismo “se caracteriza pelo fato do consumo ser o centro da sociedade”29.
Bauman aborda que

[...] a necessidade de substituir objetos de consumo “defasados”, menos que


plenamente satisfatórios e/ou não mais desejados está inscrita no design dos
produtos e nas campanhas publicitárias calculadas para o crescimento constante
das vendas. A curta expectativa de vida de um produto na prática e na utilidade
proclamada está incluída na estratégia de marketing e no cálculo de lucros: tende
a ser preconcebida, prescrita e instilada nas práticas dos consumidores mediante a
apoteose das novas ofertas (de hoje) e a difamação das antigas (de ontem) 30.

25
BAUMAN, Zygmunt. 2008, p. 41.
26
BAUMAN, Zygmunt. 2008, p. 41.
27
GIRELLI, Camile Serraggio. A (in)sustentabilidade do consumocentrismo: um diálogo filosófico entre
Bauman, Giddens e Lipovetsky. In: CALGARO, Cleide; BAVARESCO, Agemir; SOBRINHO, Liton Lanes
Pilau. Temas de direito socioambiental na sociedade de consumo: estudo ético e jurídico. Caxias do Sul,
RS: Educs, 2017. p. 123-137. p. 123.
28
CALGARO, Cleide; PEREIRA, Agostinho Oli Koppe. A sociedade consumocentrista e seus reflexos
socioambientais: a cooperação social e a democracia participativa para a preservação ambiental. Revista de
Direito, Economia e Desenvolvimento Sustentável, Curitiba, v. 2, 2016, n. 2, p. 72-88, jul./dez. 2016. p. 74.
29
CALGARO, Cleide; PEREIRA, Agostinho Oli Koppe. O constitucionalismo Latino Americano e o
consumocentrismo: as consequências socioambientais na sociedade moderna. In: Revista Jurídica Luso-
Brasileira, ano 5, n. 6, 2019. p. 393.
30
BAUMAN, Zygmunt. 2008, p. 31.
601

Uma mercadoria fabricada na sociedade de consumo é algo destinado ao descartável,


o que acarreta cada vez mais riscos ao meio ambiente e resulta em toneladas de itens
defasados para o lixo. Ninguém se questiona como o produto é feito e para onde vai depois
de ter sido utilizado. Por vezes o produto não tem a destinação correta o que ocasiona a
escassez dos recursos naturais disponíveis31.
Desde o dia em que o ser humano nasce já se torna consumidor, consome diariamente
uma gama de produtos: alimentos, vestuários, transporte, medicamentos, entre outros. Mas,
com a finalidade de estimular o consumo, cada vez mais o modelo econômico do capitalismo
se vale da atividade publicitária, que faz o papel de impulsionar as vendas e divulgar novos
produtos, criando desejos.
Alguns desses produtos não são necessários, mas, grande parte dos consumidores,
consomem com o propósito de buscar a felicidade e o bem estar. Ainda, Bauman afirma que
a busca pela felicidade é “o propósito mais invocado e usado como isca nas campanhas de
marketing”32. Nesse sentido

As empresas investem em marketing para seduzir o consumidor a realizar sua


próxima compra. E caso o consumidor não ceda imediatamente aos apelos da
propaganda, entra em cena a obsolescência programada 33, destinada a causar o
desejo por um novo produto, seja por haver um modelo mais novo e atraente no
mercado, seja porque o produto a ser substituído chegou ao fim de sua vida útil 34.

Porém, ainda conforme Bauman, “o consumo não é sinônimo de felicidade nem uma
atividade que sempre provoque sua chegada”35. Mas, mesmo assim, a publicidade continua
a buscar sua finalidade de instigar o consumo. Assim, a publicidade é definida por Marques
como
[...] toda informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de
promover junto aos consumidores a aquisição de um produto ou a utilização de
um serviço, qualquer que seja o local ou meio de comunicação utilizado. [...] sendo
assim, o elemento caracterizador da publicidade é a sua finalidade consumista 36.

31
BAUMAN, Zygmunt. 2008, p. 44-45.
32
BAUMAN, Zygmunt. 2008, p. 51.
33
A obsolescência programada ou planejada se dá através da inutilização de um produto, para que o mesmo
seja descartado e substituído por um novo mais moderno.
34
SOUZA, Maria Claudia da Silva Antunes de; STOHRER, Camila Monteiro Santos. Consumo Consciente
como mecanismo da Sustentabilidade. In: BENACCHIO, Marcelo; GARCIA, Marcos Leite; ARCE, Gustavo.
Direito e sustentabilidade. Florianópolis: CONPEDI, 2016. p. 110.
35
BAUMAN, Zygmunt. 2008, p. 61-62.
36
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 801.
602

A publicidade “é um meio lícito de promover, de estimular o consumo de bens e


serviços, mas deve pautar-se pelos princípios básicos que guiam as relações entre
fornecedores e consumidores, especialmente o da boa-fé”. Também, as relações de consumo
“devem guiar-se pela lealdade e pelo respeito entre fornecedor e consumidor”37.
Ainda, importante diferenciar a publicidade da propaganda. A última é um modo
específico de persuadir, visando influenciar o indivíduo sobre fins ideológicos, religiosos,
políticos ou cívicos, porém sem qualquer intuito econômico. Historicamente a propaganda
não almeja uma vantagem financeira, entretanto busca a difusão de ideais38.
A diferença entre publicidade e propaganda está no sentido, a primeira objetiva o
lucro em si, induz o consumidor a pensar que necessita aquele bem para sua felicidade, o
que não passa de uma jogada de marketings perante a sociedade atual que busca status para
suprir seus anseios. Ao passo que a segunda possui um conjunto de ideias e pensamentos
relacionado a arte de notificar a sociedade, comunicando fatos que o setor midiático almeja
tornar conhecido39.
A publicidade deve ser difundida por meio de informações claras e corretas que
objetivam responsabilizar quem a veicula e responsabilizar os fornecedores, exigindo-se a
boa fé entre fornecedor e consumidor40. Importante mencionar que “la sociedad actual,
socialmente más consciente y mejor conocedora de las prácticas persuasivas, exige una
publicidad más igualitaria y respetuosa”41.
Com a finalidade de proteção do consumidor, no Brasil ocorre uma limitação da
publicidade por meio de instrumentos legais, dentre os quais a Constituição Federal, o
Código de Defesa do Consumidor e outros organismos específicos que serão citados
posteriormente, visando a proteção do consumidor vulnerável.

37
MARQUES, Cláudia Lima. 2005, p. 803-804.
38
CHAISE, Valéria Falcão. A publicidade em face do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2001.
p. 10.
39
CAVALIERI FILHO, Sergio. 2019, p. 152.
40
MARQUES, Cláudia Lima. 2005, p. 800.
41
FEENSTRA, Rámon A. Etica de la publicidad: retos en la era digital. Madrid: Editorial Dykinson, 2014.
p. 18.
603

3. A CRIANÇA NA SOCIEDADE DE CONSUMO: POLÍTICAS DE


PROTEÇÃO À INFÂNCIA

O direito do consumidor, como já mencionado, tem caráter de direito fundamental e


surge como mecanismo de proteção aos consumidores, por serem eles vulneráveis nas
relações de consumo. Cumpre mencionar que, alguns consumidores possuem fragilidades
maiores e necessitam maiores cuidados e proteção, pois podem ser vítimas mais fáceis, como
é o caso das crianças. Para essa série de indivíduos utiliza-se a denominação de
hipervulneráveis.
Schmitt, salienta que “o prefixo hiper deriva do termo grego hypér e serve para
designar um alto grau, ou aquilo que excede a medida normal. Uma vez acrescentada este à
palavra vulnerabilidade, obtém-se uma situação de intensa fragilidade, que supera os limites
do que seria uma situação de fraqueza”42.
O termo hipervulneráveis começou a ser usado por Benjamin, que passou a utilizá-
lo em suas decisões, como no Recurso Especial de número 586.316 “Ao Estado Social
importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que,
exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com
a massificação do consumo [...]”43.
Ainda, Grinover et al definem os hipervulneráveis como “consumidores ignorantes e
de pouco conhecimento, de idade pequena ou avançada, de saúde frágil, bem como aqueles
cuja posição social não lhes permite avaliar com adequação o produto ou serviço que estão
adquirindo”44.
Por ser o público infantil, consumidores hipervulneráveis, parcela bastante lucrativa
no mercado consumidor global, é assegurado aos mesmos proteção contra a publicidade
enganosa ou abusiva, constituindo-se como direito do consumidor mirim. Assim, no sistema
jurídico brasileiro, resta consagrado o princípio da prioridade do interesse da criança45.

42
SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores Hipervulneráveis – A proteção do idoso no mercado de
consumo. São Paulo: Atlas, 2014. p. 217-218.
43
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial Nº 586.316 - MG. Relator Ministro Herman
Benjamin Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo
=200301612085&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 04 ago. 2020. p. 03.
44
GRINOVER, Ada Pellegrini, et al. 2019, p. 381.
45
MIRAGEM, Bruno. 2013, p. 117.
604

A publicidade infantil é aquela dirigida a indivíduos de até doze anos de idade, faixa
etária caracterizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que divulga, diretamente
para os mesmos, produtos e serviços com a intenção de promover a venda. Tem como
finalidade fomentar uma lógica consumista que se fundamenta no comprar e descartar46.
Cumpre destacar que a vulnerabilidade da criança é reconhecida universalmente pela
Declaração dos Direitos da Criança, Proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das
Nações Unidas n.º 1386 (XIV), de 20 de Novembro de 1959, a qual afirma que “a criança,
por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, tem necessidade uma protecção e
cuidados especiais, nomeadamente de protecção jurídica adequada, tanto antes como depois
do nascimento”47.
Para que as práticas comerciais aconteçam de maneira adequada, ocorre o controle
da publicidade. Assim como a Constituição Federal e o Código de Defesa do consumidor,
ainda têm-se o Conselho Nacional dos Direitos da criança e do adolescente (CONANDA),
o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Instituto Alana, a Convenção da Organização das
Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Crianças, o Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente, entre outros, que figuram como base de apoio no controle da
publicidade infantil.
A Constituição Federal, em seu artigo 22748 consagra a proteção da criança como
sendo dever do Estado, da sociedade e da família49. No mesmo sentido, tem-se o artigo 4º50
do Estatuto da Criança e do Adolescente51. No tocante a publicidade, o Código de Defesa do
Consumidor, em seu artigo 37, § 2º, afirma ser abusiva qualquer publicidade que incite à

46
ALVAREZ, Ana Maria Blanco Montiel. Publicidade dirigida à criança e regulação de mercado. In:
PASQUALOTTO, Adalberto; ALVAREZ, Ana Maria Blanco Montiel (org.). Publicidade e proteção da
infância. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014. p. 130-131.
47
BRASIL. Declaração dos Direitos da Criança. Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-
externa/DeclDirCrian.html>. Acesso em: 11 ago. 2020.
48
Artigo 227 da Constituição Federal de 1988: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”.
49
BRASIL, 1988.
50
Artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em
geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
51
BRASIL. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em 01 ago. 2020.
605

violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e


experiência da criança52.
São dois os tipos de publicidade ilícita proibidas pelo artigo 37 do Código de Defesa
do Consumidor, quais sejam a publicidade enganosa e a publicidade abusiva. Define-se
como publicidade enganosa aquela que “viola o dever de veracidade e clareza estabelecidos
pelo CDC”53.
Já a publicidade abusiva “é aquela que viola valores ou bens jurídicos considerados
relevantes socialmente (tais como meio ambiente, segurança e integridade dos
consumidores)” bem como, “a que se caracteriza pelo apelo indevido a vulnerabilidade
agravada de determinados consumidores, como crianças e idosos”54.
Ainda, existe uma série de entidades, documentos e afins que buscam a proteção da
criança, no que se refere a publicidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente impõe uma
série de medidas visando a proteção do público infantil, que são facilmente influenciados ao
consumo. Conforme o mesmo Estatuto, a criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes a pessoa humana55.
Importante destacar o artigo 7156 do citado Estatuto, o qual assegura que a criança e
o adolescente possuem direitos que visem respeitar sua condição de pessoa em
desenvolvimento57. Em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente, órgão responsável por efetivar os direitos, diretrizes e princípios contidos no
Estatuto da Criança e do Adolescente58, editou a Resolução número 163 que “dispõe sobre
a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança
e ao adolescente”59.
Indispensável mencionar o Instituto Alana, organização sem fins lucrativos, que atua
fortemente na missão de cuidado com a criança. Tal Instituto consta com programas próprios

52
BRASIL, 1990.
53
MIRAGEM, Bruno. 2013, p. 251.
54
MIRAGEM, Bruno. 2013, p. 251.
55
BRASIL, 1990.
56
Artigo 71 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “A criança e o adolescente têm direito a informação,
cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de
pessoa em desenvolvimento”.
57
BRASIL, 1990.
58
BRASIL. CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Disponível em:
<http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1562.html>. Acesso em 08 ago. 2020.
59
BRASIL. Resolução CONANDA Nº 163 DE 13/03/2014. Disponível em:
<https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=268725>. Acesso em 05 ago. 2020.
606

e com parceiros, dentre eles destaca-se o programa “Criança e Consumo” que atua com
objetivo de conscientização do impacto que a publicidade tem sobre o público infantil60.
Ainda, a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das
Crianças, instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal, ratificado por
196 países, visa a proteção das crianças em todo o mundo61. Possui como um de seus
princípios o interesse superior da criança. Também, o Plano Decenal dos Direitos Humanos
de Crianças e Adolescentes possui um conjunto de diretrizes que visa nortear a execução de
políticas públicas para proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente62.
Cumpre destacar que, em 2001 foi apresentado o Projeto de Lei Número 5.921, que
visava acrescentar o § 2ºA. no artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, com a
justificativa de avaliar a relação da criança com a publicidade. O parágrafo possuía a seguinte
redação: “É também proibida a publicidade destinada a promover a venda de produtos
infantis, assim considerados aqueles destinados apenas à criança”, porém o mesmo foi
arquivado, sem aprovação, no ano de 201963.
Atualmente, em um mundo globalizado, ambos os pais trabalham fora e passam
menos tempo com os filhos, o que faz com que os mesmos gastem muito tempo com internet
e televisão e, consequentemente expostos à mídia e aos anúncios publicitários. As crianças
são bombardeadas diariamente com anúncios inapropriados, sempre com o intuito de gerar
mais lucro. Tal faixa etária é vista como importante fase de desenvolvimento humano, em
que a criança não tem ainda inteiro discernimento para separar realidade de efeitos especiais,
sendo facilmente manipuladas64.
De um lado empresas não medem esforços para aumentar suas vendas e apostam
nessa publicidade, pois as crianças são alvos atrativos. Em face da publicidade, o menor fica
altamente desprotegido e vulnerável aos seus impactos. Atualmente é comum encontrar
crianças opinando, ou até mesmo implorando para seus pais comprarem determinado

60
INSTITO ALANA. Disponível em: <https://alana.org.br/>. Acesso em 10 ago. 2020.
61
BRASIL. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em 03 ago. 2020.
62
BRASIL. Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Disponível em:
<http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/download/plano_decenal_conanda.pdf.>. Acesso em 11 ago.
2020.
63
BRASIL. Projeto de Lei Número 5.921 de 12 de dezembro de 2001. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=43201>. Acesso em 05 ago.
2020.
64
ALVAREZ, Ana Maria Blanco Montiel. 2014, p. 130-131.
607

produto, o que significa que a publicidade infantil vem atingindo seu objetivo, ou seja,
instigar a venda.
De outro lado entidades e parte da sociedade civil que defendem os direitos das
crianças e que acreditam que mensagens desse tipo deva ser direcionada aos pais, o que seria
ético e respeitoso. Afinal, se quem vai pagar pelo produto ao final são os pais, por que não
direcionar a publicidade a eles?
Observa-se que mídia tem impacto sobre as crianças, despertando nelas o desejo de
consumo e a ilusão de felicidade, o que faz com que elas exerçam grande influência na
decisão de compra dos pais. Porém, dificilmente os mesmos conseguirão impedir que a mídia
chegue até seus filhos. Por esse motivo, as crianças devem ser educadas, para o consumo
consciente, pois a exposição precoce e excessiva de crianças podem acarretar danos
irreversíveis em seu futuro, bem como violar normas consumeristas.
O consumo desenfreado afeta a saúde física e mental da criança. O aumento dos
índices de obesidade infantil, crescimento no número de crianças ansiosas, deprimidas e de
baixa autoestima, a erotização precoce o uso do merchandising65 e do advergaming66 como
formas indiretas de promoção, são cada vez mais frequentes na sociedade de consumo. Além
disso, objetos de consumo comuns são transformados em brinquedos para atrair o público
infantil e com isso estimular a venda.
Dessa forma, justifica-se a relevância e atualidade da pesquisa, tendo em vista o
grande impacto no desenvolvimento da criança causado pela publicidade infantil. Também,
face o consumo exagerado de produtos não necessários para nossa sobrevivência, mas que
acabam trazendo uma ideia de felicidade e com isso impulsionando a compra de coisas que
não precisamos, de consumir mais do que necessitamos e, consequentemente, descartar, o
que tem impacto direto no meio ambiente, desconsiderando o uso moderado dos bens
naturais.

65
O merchandising é a “inserção proposital de produtos ou serviços nos programas de televisão, como novelas
e programas de auditório, ou filmes, no enredo destas histórias na sua real situação de consumo. Esta
colocação advém de um contrato entre fornecedor e a contraprestação pelo espaço oferecido para a
divulgação do seu produto” (BOLKENHAGEN, 2011, p. 06).
66
O advergaming divide-se em duas modalidades. A primeira “é a inserção de logomarcas e produtos no
cenário de jogos eletrônicos” com o intuito de promover, de modo interativo e dinâmico, determinada marca,
empresa, produto ou ideia (BURROWES, 2005, p. 215). A segunda, denominada advergame, é composta por
jogos criados especificamente para divulgar uma marca e vender um produto (FERNANDES et al, 2014, p.
93).
608

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fim de que se configure uma relação de consumo é necessário que esteja presente
o consumidor que adquire um produto ou serviço e o fornecedor desse produto ou serviço.
Essa relação de consumo possui uma desigualdade entre o primeiro e o segundo, o que
configura a vulnerabilidade do consumidor frente ao fornecedor, fazendo-se necessário sua
proteção e a regulação das relações de consumo.
Ainda, alguns consumidores são considerados hipervulneráveis, como é o caso das
crianças, pois possuem sua vulnerabilidade potencializada. É dever do Estado proteger e
regular as relações de consumo, visando o combate as práticas abusivas e as publicidades
abusivas e enganosas, que estimulam o consumo exagerado.
A publicidade, cada vez mais presente no nosso dia-a-dia, tem o intuito de criar
desejos. Em grande parte das vezes, as pessoas não percebem que não precisam de
determinados produtos, que eles não são essenciais, mas consomem pelo simples fato de
satisfazer esses desejos. O comprar e o descartar é o que movimenta a economia e, se a
população deixar de comprar, o impacto na economia será grave, provocando um
desaquecimento econômico sem precedentes em todos os setores, ocasionando milhares de
desempregados.
O consumidor infantil, parte hipervulnerável na relação de consumo, é parcela
bastante lucrativa no mercado consumidor. As crianças, influenciadas pelo grande
quantidade de anúncios publicitários, imploram a seus pais a compra de determinados
produtos, os quais, na maioria das vezes, acabam cedendo aos desejos de seus filhos.
Dessa forma, a importância da proteção dos direitos do consumidor infantil, os quais
são respaldados, em especial, pela Constituição Federal, visto constituir um direito
fundamental e pelo Código de Defesa do Consumidor. Ainda, diversas entidades, como o
Instituto Alana, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA), o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, entre outros,
respaldam a proteção do consumidor criança.
Assim, com a finalidade proteger o consumidor infantil, os diversos órgãos atuam
fortemente visando combater os abusos publicitários. A legislação existente é suficiente e, a
efetiva fiscalização da prática de publicidade enganosa e abusiva destinados ao público
609

infantil, pretende frear o abuso e punir quem não está em consonância com a legislação. Mas
não vai extinguir essa publicidade.

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mercado. In: PASQUALOTTO, Adalberto; ALVAREZ, Ana Maria Blanco Montiel (org.).
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610

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612

A PROMOÇÃO DAS CIDADES RESILIENTES ENQUANTO


INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO DIRETO À CIDADE

Karina Mombelli Sant’ Anna1

Resumo: O presente trabalho reflete sobre a promoção das cidades resilientes enquanto
instrumento de efetivação do Direito à Cidade. Para tanto, utilizando-se do método dedutivo,
o artigo procura verificar em que medida essa promoção recente é compatível e/ou representa
uma evolução no âmbito da efetivação do Direito à Cidade.

Palavras-chave: Direito à cidade. Cidades Resilientes. Efetivação. Direito Urbanístico

1 INTRODUÇÃO

É conhecimento geral que a ocorrência de desastres naturais está de forma cada vez
mais intensa no mundo. A fácil e rápida acessibilidade à informação, por meio das mídias
sociais, da divulgação dos relatórios de dados científicos divulgados ou até mesmo das
experiências individuais vivenciadas enseja a conclusão de que esses eventos estão se
inserindo de forma muito mais contínua na vida social presente e futura.
Conforme dados disponibilizados pelo Governo Federal Brasileiro, somente no
início de janeiro de 2019, 23 (vinte e três) cidades brasileiras dos estados do Amazonas,
Bahia, Ceará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e São Paulo
buscaram auxílio junto à União com o intuito de obter recursos para a reconstrução das suas
localidades2. Por outro lado, segundo o último relatório emitido pela Organização das
Nações Unidas, esses tipos de desastres não podem ser considerados apenas como catástrofes
de ordem natural, no sentido de que o homem nada contribui para o aumento desses eventos,
pois o aquecimento global acelerado pela espécie humana guarda íntima relação com o
crescimento latente dos eventos desastrosos mundiais.

1
Mestra em Direito pela Fundação do Ministério Público (FMP). Advogada. E-mail:
karina@trindademombelli.com
2
BRASIL. GOVERNO FEDERAL. Desastres naturais em oito estados levam cidades à situação de emergência.
Ministério do Desenvolvimento Regional. Disponível em: <
http://www.brasil.gov.br/noticias/infraestrutura/2019/01/desastres-naturais-em-oito-estados-levam-cidades-
a-situacao-de-emergencia> . Acesso em: 02 de julho de 2019.
613

O relatório emitido ano passado pela ONU3 constatou que maioria dos desastres
naturais nesse período foi provocada por eventos climáticos extremos e que a temperatura
terrestre subiu em média um grau em relação ao período pré-industrial. Além do mais,
verificou-se que as mudanças climáticas provocadas pelos gases de efeito estufa aceleram o
processo de elevação das temperaturas a níveis cada vez mais perigosos, o que faz com que
os impactos socioeconômicos também estão chegando situações limites.
Um exemplo claro das conclusões obtidas pelo relatório está na fala secretário-geral
das Nações Unidas Antônio Guterres, quando menciona a situação do ciclone Idai, que
devastou o Sudeste da África e atingiu aproximadamente três milhões de pessoas. No local,
a estrutura para se atender a população era precária, pois faltaram, principalmente, remédios
e alimentos.
Um dado interessante obtido pela análise minuciosa da Organização Internacional
demonstra que os países mais pobres são aqueles mais vulneráveis aos efeitos desses
eventos. Isto porque, a crescente vulnerabilidade dessas comunidades mais pobres é ilustrada
quando, nos últimos 20 anos, apenas um único território de alta renda, a ilha de Porto Rico,
foi afetada e apareceu na lista das dez principais perdas econômicas em porcentagem do
Produto Interno Bruto (PIB).
Além destes exemplos, outros tantos nacionais e internacionais são passíveis de
apontamento e vinculação com a temática, entretanto, a ideia central que se busca introduzir
neste momento é a concepção de que, diante desse contexto caótico que já está instaurado
no mundo, outro caminho principal não há de ser percorrido senão o da remediação urgente
e eficaz, assim como o da prevenção inteligente de danos.
Nesse sentido, se mostra a importância da promoção das ações estatais, sociais e de
caráter privado que visem tutelar a população mundial, principalmente as de baixa renda
econômica, dos efeitos desses desastres que, certamente, desestabilizarão a ordem
urbanística atual, se as políticas preventivas e remediadoras céleres não forem adotadas.
Sendo assim, neste infeliz contexto social global, é que a pesquisa em relação ao
estudo do direto à cidade, que é um direito social coletivo reconhecido internacionalmente,

3
BRASIL. NAÇÕES UNIDAS. Relatório da ONU alerta para o aumento dramático das perdas econômicas
provocadas por desastres. Nações Unidas do Brasil. Publicado em 10 de outubro de 2018. Disponível em: <
https://nacoesunidas.org/relatorio-da-onu-alerta-para-aumento-dramatico-das-perdas-economicas-
provocadas-por-desastres/>. Acesso em: 02 de julho de 2019.
614

e ao estudo da atual promoção das cidades resilientes, que busca efetivar essas espécies de
ações preventivas mencionadas, se revela atual e extremamente importante.
Portanto, além de promover um estudo breve das noções estabelecidas do direito à
cidade e dos objetos do projeto nacional que busca as cidades pensadas de forma mais
resiliente, a questão central que se busca refletir nesse trabalho é em que medida se pode
pensar a promoção dessas cidades inteligentes enquanto um dos meios de efetivação do
direito à cidade e, por consequência, da proteção social presente e futura.

2 A IMPORTÂNCIA DA PROMULGAÇÃO DAS CIDADES RESILIENTES NA


ORDEM URBANÍSTICA

Embora seja inconcebível cientificamente a formulação de um conceito único acerca


do significado da palavra resiliência, observa-se que os estudos produzidos no campo da
psicologia revelam recentes contribuições para o tema. Por essa razão, considerando a
temática central dessa pesquisa, elucida-se o conhecimento com a concepção dos principais
doutrinadores ASSIS E COLS, JUNQUEIRA & DESLANDES SILVEIRA, UNGAR e
WALSH4, que a compreendem não só pelo fato da capacidade de recuperação de um dano,
mas sim, também pela superação do que se foi, por meio do crescimento pessoal.
Ainda que pareça um conceito distante da realidade jurídica, pode-se estabelecer uma
importante conexão entre esse conceito e o que se pretende compreender por cidades
resilientes, quando o escopo principal desse novo modelo é principalmente remediar os
danos provenientes da falha dos antigos sistemas, mas também promover uma evolução no
que se pretende conceber por regime urbanístico, pautada pelo planejamento urbano.
Nessa perspectiva, localiza-se a conceituação proposta pela ONU5:
Capacidade de um sistema, comunidade ou sociedade potencialmente exposta a
ameaças adaptar-se, resistindo ou mudando com o fim de alcançar e manter um
nível aceitável em seu funcionamento e estrutura. Determina-se pelo grau no qual
o sistema social é capaz de auto organizar-se para incrementar sua capacidade de
aprendizagem sobre desastres passados, com o fim de alcançar uma melhor
proteção futura e melhorar as medidas de redução de risco de desastre.

4
BRANDÃO, Juliana Mendanha; MAHFOUD, Miguel; NASCIMENTO, Ingrid Faria Gianordoli. A
construção do conceito de resiliência em psicologia: discutindo as origens. Paideia. vol.21, n. 49. p. 263-271.
Maio.ago.2011, p. 269.
5
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório das Nações Unidas para a redução de riscos
de desastres. Como construir cidades mais resilientes: um guia para gestores públicos locais. 2012.
Disponível em: <http://www.unisdr.org/files/26462_guiagestorespublicosweb.pdf >. Acesso em: 05 de
outubro de 2020.
615

Recorda-se os dados obtidos pela ONU e acrescenta-se que nesse relatório consta
expressamente que o próximo fenômeno que irá atingir os países será uma explosão de ondas
de calor que atingirá tantos os países pobres e incomodará da mesma forma os países mais
ricos, na medida em que os seres humanos possuem limite de resistência térmica para
sobreviver.
Na fala de Ricardo Mena6, do UNISDR, observa-se uma mudança de visão quanto à
abordagem dos efeitos climáticos e o desenvolvimento sustentável. Ele diz: “Enfatizamos a
necessidade de reduzir o risco existente para fortalecer a resiliência de pessoas e nações.
Caso contrário, o sucesso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) será muito
difícil”7.
Nesse mesmo sentido, foi o apelo às autoridades locais formulado pelo Secretário
Geral das Nações em 20098:

Apelo às autoridades locais para acelerar seus esforços na construção de cidades


mais seguras, com vistas a prevenir que bens e vidas sejam perdidos. Eu estive
viajando por muitos lugares ao redor do mundo, testemunhando com meus
próprios olhos como governos locais podem contribuir para superar (...) desafios
globais. Não apenas os governos das nações. Não são apenas presidentes ou
primeiros-ministros que devem criar estratégias de enfrentamento às mudanças
climáticas, de desenvolvimento econômico sustentável, de combate à pobreza e de
promoção da saúde. É preciso a participação de líderes locais: prefeitos,
governadores e demais gestores públicos locais
.
Essa mudança de perspectiva também está presente na declaração de Quito sobre as
cidades e assentamentos para todos, produzido na Nova Agenda Urbana9, realizada em 2016,
em que a resiliência aparece como um meio de solução para o futuro. Na pesquisa do corpo
do texto presente nesse documento, a palavra resiliência é localizada 17 (dezessete) vezes, e
a orientação que merece destaque nessas linhas é a que compreende as cidades humanizadas

6
Cf. Rede Social Linkedin, disponível em: https://ch.linkedin.com/in/ricardo-mena-13355ba.
7
BRASIL. NAÇÕES UNIDAS. Relatório da ONU alerta para o aumento dramático das perdas econômicas
provocadas por desastres. Nações Unidas do Brasil. Publicado em 10 de outubro de 2018. Disponível em: <
https://nacoesunidas.org/relatorio-da-onu-alerta-para-aumento-dramatico-das-perdas-economicas-
provocadas-por-desastres/> . Acesso em: 05 de outubro de 2020.
8
BRASIL. GOVERNO FEDERAL. Construindo cidades resilientes: minha cidade está se preparando.
Campanha Mundial de Redução de Desastres. Disponível em: < https://eird.org/curso-
brasil/docs/modulo7/4.SEDEC-Cidades-Resilientes.pdf >. Acesso em: 05 de outubro de 2020.
9
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nova agenda urbana: Declaração de Quito sobre cidades e
assentamentos Humanos Sustentáveis para todos. Disponível em: < http://habitat3.org/wp-
content/uploads/NUA-Portuguese-Angola.pdf> Acesso em: 02 de julho de 2019.
616

como aquelas que venham a adotar e a implementar a redução e gestão de risco de desastres,
reduzir a vulnerabilidade, construir resiliência e capacidade de resposta a perigos naturais e
gerados pelo homem, e promover a mitigação e a adaptação à alteração climática.
No Marco da Ação de Hyogo de 2005, evento internacional no qual se estabeleceram
as metas até 2015, ficaram estabelecidas as cinco prioridades para alcançar o aumento da
resiliência das nações e comunidades frente aos desastres, quais sejam: a) fazer com que a
redução dos riscos de desastres seja uma prioridade; b) conhecer o risco e tomar medidas; c)
desenvolver uma maior compreensão e conscientização; d) reduzir o risco; e f) Estar
preparado e pronto para atuar.
Numa perspectiva nacional, o Brasil, que se comprometeu politicamente na nova
agenda urbana de 2016 a promover o desenvolvimento de estratégias espaciais urbanas como
a resiliência urbana, no ano de 2011, por organização do Ministério da Integração Nacional
e por intermédio da Secretaria Nacional de Proteção e da Defesa Civil, lançou a campanha
“Construindo Cidades Resilientes: Minha Casa está se Preparando”.
A campanha, que ocorreu durante a 7ª Semana Nacional de Redução de Desastres,
buscou elevar o nível de consciência da população acerca da possibilidade de desastres
naturais, bem como o grau de comprometimento da população com o desenvolvimento
sustentável, como forma de minimizar a vulnerabilidade e proporcional segurança à
sociedade10.
Depreende-se da leitura da cartilha elaborada pela campanha que os principais fatos
que colocam as populações de baixa renda são as construções vulneráveis, o
desenvolvimento sem planejamento urbano e o estabelecimento dessas pessoas em áreas de
ocupação desornadas. Igualmente, aponta-se para o aumento significativo da população
mundial e o reconhecimento da governança debilitada que não oferece a qualidade devida
nos serviços essenciais, na infraestrutura e nas instituições de apoio que contribuem para a
redução dos desastres.
Para isso, o programa em questão orientou as ações determinadas para casa agente
que compõe a sociedade. Assim, quanto às ações específicas propostas, aos Governos
Nacionais ficou estipulado como meta: A configuração e fomento das plataformas nacionais
de atuação multidisciplinar e inclua governos locais e associações na discussão sobre

10
BRASIL. GOVERNO FEDERAL. Construindo cidades resilientes: minha cidade está se preparando.
Campanha Mundial de Redução de Desastres. Disponível em: < https://eird.org/curso-
brasil/docs/modulo7/4.SEDEC-Cidades-Resilientes.pdf >. Acesso em: 02 de julho de 2019.
617

redução de riscos de desastres. O favorecimento e incentivo da aplicação de recursos para


urbanização sustentável. A segurança de que seus ministérios e demais instituições federais
pautem a redução de risco de desastres e invistam recursos para desenvolvimento de políticas
públicas na área. O incentivo do desenvolvimento econômico de áreas rurais e pequenas
cidades, com o objetivo de reduzir a migração acelerada para grandes centros urbanos e,
consequentemente, áreas de risco. A promoção da redução de riscos de desastres como uma
prioridade nacional e a identificação, em todos os níveis, de quais as instituições
responsáveis por reduzir os riscos de desastres.
Aos Governos locais ficou estipulado a inclusão do tema “risco de desastres” no topo
de sua agenda. O contato com a EIRD para articular-se com autoridades de sua área de
atuação. O apoio para a implantação da campanha em níveis locais e comunitários.
Às Associações Comunitárias destinou-se que participem da campanha e incentivem
sua organização a participar também, promovam atividades de engajamento de lideranças
comunitárias, utilizando os recursos e materiais promocionais da campanha, construam
projetos em parceria com os governos locais, ONGs, iniciativa privada, etc., para tornar sua
localidade mais segura. Também compartilhem o conhecimento local e suas experiências
com outros atores, desenvolva atividades como planejamentos locais, avaliações e mapas de
risco, mutirões para manutenção de prédios públicos, capacitações sobre ocupação ordenada
e normas de construção. Colaborem na avaliação de riscos em sua cidade, e sugira um
monitoramento participativo dos riscos.
Para as Iniciativa Privada ficou estipulado que se assegurem de que seus negócios
não ampliam os riscos de desastres ou degradam o meio ambiente; fortaleçam parcerias em
projetos locais (governamentais ou comunitários) que promovam a participação de sua
instituição na construção de cidades seguras e lembrem-se que apenas uma cidade resiliente
pode sustentar o crescimento econômico; invistam recursos em pesquisa e desenvolvimento
de projetos sobre redução de riscos urbanos.
Sendo assim, por todas essas razões, não restam dúvidas de que as cidades resilientes
são um importante mecanismo de política pública de protege principalmente os sujeitos mais
vulneráveis que são expostos às mais variadas catástrofes e a ordem urbanística, assim como
demanda um complexo, sistemático e necessário planejamento urbano.
618

3 O DIREITO À CIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O direito à cidade é um novo direito social coletivo que é reconhecido tanto na esfera
internacional, como nacional. Como leciona SARLET11, esse direito é considerado como
um direito de terceira dimensão, pois a sua titularidade é coletiva, indefinida e
indeterminável, o que reclama novas técnicas de garantias e proteção.
Conforme ensina ALFONSIN12, o direito à cidade sustentável pode ser
compreendida como o direito coletivo dos habitantes desse centro, que contempla um feixe
de direitos urbanos ligados à infraestrutura e aos serviços, aliado ao direito à preservação do
meio ambiente, o direito à regularização fundiária para eficácia do direito à moradia digna,
e o direito à justa distribuição dos ônus e benefícios do processo de urbanização, com a
“recuperação pela coletividade da valorização imobiliária decorrente dos investimento do
Poder Público”.
No sistema jurídico brasileiro, o art. 2º do Estatuto da Cidade contempla a definição
do direito à cidade é entendido também como o direito à terra urbana, à habitação, ao
secamento ambiental, à infraestrutura urbana, aos transportes coletivos e demais serviços
públicos, ao trabalho, assim como ao lazer para as gerações atuais e futuras.
Além disso, a definição legal permite concluir que também se pode pensar em direito
à cidade como uma participação de caráter democrático por meio da participação da
população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na
formulação, na execução e no acompanhamento e na execução do processo de
desenvolvimento urbano dos programas propostos à atender as necessidade da sociedade
urbana.
Nos estudos de SAULE JUNIOR13, o direito à cidade é um “o direito dos habitantes
presentes e das futuras gerações de ocupar, usar e produzir cidades justas, inclusivas e
sustentáveis como um bem comum”.
O direito à cidade é aplicável a todas as cidades e assentamentos humanos, dentro
dos sistemas jurídicos nacionais. Com base nessa definição acima, o direito à cidade é um
direito coletivo/difuso que vê a cidade como um espaço coletivo que pertence a todos os

11
SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 53.
12
ALFONSIN, Betânia de Moraes et al. A ordem jurídica-urbanística nas trincheiras do Poder Judiciário.
Revista Direito e Práxis. vol.07. nº 14. p.421-453. 2016, p.429.
13
SAULE JÚNIOR, Nelson. O Direito à cidade como centro da nova agenda urbana. Boletim regional, urbano
e ambiental. vol. 15. jul.dez.2016, p. 75.
619

habitantes, que contém três elementos essenciais: proteção legal das cidades como um bem
comum; direito coletivo/difuso; e a titularidade coletiva exercida por grupos representativos
de moradores, associações de moradores, organizações não governamentais (ONGs),
Defensoria Pública e Ministério Público, por exemplo
Entretanto, em que pese existam as definições de ordem doutrinária e legislativa, a
grande problemática que se impõe na temática do direito à cidade diz respeito à sua
efetivação. Nesse ponto, o planejamento precário das cidades, já visto, mostra-se um
exemplo importante da relevância da promoção de políticas urbanas que promovam a tutela
da sociedade urbana, como se analisará a seguir.

4. A CIDADES RESILIENTES ENQUANTO PROMOÇÃO DO DIREITO À


CIDADE

Realizadas as considerações acerca do direito à cidade e dos objetivos do que se


compreende por cidades resilientes, a nível nacional, enfrenta-se a seguir uma busca pela
realização da interdisciplinaridade dos estudos anteriormente lançados para que se possa
refletir em que medida é possível afirmar que a promoção dessas ações resilientes, que
modificam por completo a cidade, consagrarão a efetivação do direto à cidade.
Conforme orienta OSÓRIO14, as cidades estão longe de oferecem condições e
oportunidades equitativas aos seus habitantes nesse tempo, uma vez que a população, que
grande parte vive em área urbana, está bastante limitada pelas suas características
econômicas, sociais, culturais, éticas, de gênero e idade.
Diante dessas considerações formuladas pela autora, conclui-se que tal afirmativa
guarda íntima relação com o estudo inicial em questão, tendo em vista que os mais
respeitáveis dados científicos comprovam que as populações de baixa renda são as que
sofrem muito mais – em relação à alta – com os efeitos desastrosos vividos.
Em que pese seja evidente que o relatório da ONU, apontado neste trabalho,
considera a localização geográfica do país como a principal justificativa para auferir essa
conclusão, no sentido que os países mais pobres são afetados pela sua infeliz geografia, as

14
OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à cidade como direito humano coletivo. In: ALFONSIN, Betânia de
Moraes; FERNANDES, Edésio (org.). Direito Urbanístico: Estudos brasileiros e internacionais. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 199.
620

considerações refletivas desse resultado vão muito além do que a mera reprodução do
argumento geográfico.
Isto porque, deve-se considerar que dois fatores agem em desfavor dessas populações
mais carentes, quais sejam: a sua geografia e o potencial econômico da sociedade ali
estabelecida para promover as ações de infraestrutura das cidades para remediação e
prevenção dos danos. Dessa forma, é fácil a constatação de que esses países são, no mínimo,
duplamente vulneráveis aos efeitos devastadores dos efeitos climáticos promovidos pela
espécie humana, mas não só isso.
Além disso, nesses países em que a infraestrutura de planejamento para redução dos
efeitos dos desastres naturais é precária, também se percebe a presente de outros problemas
estruturais básicos nas cidades como o crescimento populacional desordenado que
compromete a segurança de muitas famílias e compromete significativamente o respeito e a
atenção ao direito à cidade, que é humano e coletivo.
Nas lições de MARICATO15, ao dissertar sobre a realidade urbanística brasileira:

A segregação urbana ou ambiental é uma das faces mais importantes da


desigualdade social e parte promotora da mesma. À dificuldade de acesso aos
serviços e infra-estrutura urbanos (transporte precário, saneamento deficiente,
drenagem inexistente, dificuldade de abastecimento, difícil acesso aos serviços de
saúde, educação e creches, maior exposição à ocorrência de enchentes e
desmoronamentos etc.) somam-se menos oportunidades de emprego
(particularmente do emprego formal), menos oportunidades de profissionalização,
maior exposição à violência (marginal ou policial), discriminação racial,
discriminação contra mulheres e crianças, difícil acesso à justiça oficial, difícil
acesso ao lazer. A lista é interminável.

Logo, é necessário que a reflexão vá mais além. E para isso, deve-se compreender,
essencialmente, que os países com menor potencial econômico – quando comparados com
as grandes potências mundiais- , muito embora, por vezes, sejam privilegiados pela sua
posição geográfica, como no caso do Brasil, ainda assim sofrem uma maior flexibilização
daquilo que se espera efetivar com a promulgação do direito à cidade .
Nesse sentido, diante do conteúdo já exposto, há como sustentar plenamente que a
promoção das cidades resilientes representa um conjunto de ações que, ao que tudo indica,
efetivará na prática uma parcela da promoção do direto à cidade, em virtude de que objetiva
o planejamento urbanístico dos grandes centros para assegurar a distribuição equânime,
democrática e sustentável dos serviços e das riquezas existentes.

15
MARICATO, Ermínia. Brasil, Cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2002, p.152
621

Ademais, as cidades resilientes também se mostram eficazes para a promoção de um


direito que é compreendido dentro do direito à cidade, qual seja, o direito ao
desenvolvimento, ou da política de desenvolvimento, prevista no art. 18216 do Estatuto da
Cidade.
Nessa linha de ponderação, e se podendo pensar na promoção das cidades resilientes
como uma força social e política capaz de operar a realização das necessidades sociais atuais,
e não apenas como mudanças tecnológicas que não primam pela existência das reais
necessidade da sociedade urbana, conclui-se que, na visão de LEFEBVRE17, essas ações são
indispensáveis, porque buscam efetivar um novo modelo de cidade que atende as reais
necessidades da sociedade urbana.
Nesse sentido, ressalta-se a posição de LEFEBVRE18:

A experiência prática mostra que pode haver crescimento sem desenvolvimento


social (crescimento quantitativo, sem desenvolvimento qualitativo). Nessas
condições, as transformações na sociedade são mais aparentes do que reais. O
fetichismo e a ideologia da transformação (por outras palavras: a ideologia da
modernidade) ocultam a estagnação das relações sociais essenciais. O
desenvolvimento da sociedade só pode ser concebido na vida urbana, pela
realização da sociedade urbana.

Para TRINDADE19, uma aplicação mais efetiva da nova ordem urbanística


promovida pelo Estatuto da Cidade, que incluiu o direito à cidade sustentável, depende de
movimentos, como as cidades resilientes, que revelam uma articulação que visa alterar de
modo concreto a correlação de forças vigente na sociedade brasileira, que até o presente
momento permanece estático.
Desse modo, tomando por base todas as premissas aqui lançadas, tem-se que a
promoção das cidades resilientes pode ser considerado como um importante instrumento de
desenvolvimento urbano que deve ser considerado e efetivado pelas políticas públicas 20 de
caráter social e urbanístico.

16
Art. 182: A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem-estar de seus habitantes.
17
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2011, p. 138.
18
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2011, p. 137.
19
TRINDADE, Thiago Aparecido. Direitos e cidadania: reflexões sobre o direito à cidade. Revista Lua Nova.
n. 87. p. 139-165, 2012, p. 159
20
Adota-se o conceito de políticas públicas formulado por BUCCI: Política pública é o programa de ação
governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo
eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo,
processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades
622

Por fim, conclui-se, porém, que não basta que a sociedade simplesmente exija do
Poder Estatal o desenvolvimento das cidades resilientes, mas sim, igualmente busque
contribuir e participar de forma significativa para a promoção desse novo modelo, pois,
como ensina HARVEY21, o direito à cidade não é um presente, mas sim uma luta coletiva
constante na busca pela liberdade da cidade, ou seja, na busca pelo direito de mudar a cidade
de acordo com o desejo de nossos corações e não pelos interesses políticos e econômicos de
cunho individual.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas gerias, por meio do presente artigo, foi possível estabelecer que os câmbios
climáticos observado no mundo e acelerados pela espécie humana estão ocasionando um
aumento significativo de desastres naturais que acabam por afetar principalmente e
essencialmente as populações mundiais mais carentes, que estão situadas nos países de
menor potencial econômico.
Frente a esse contexto, o que se percebe é uma significativa vulnerabilidade desses
grupos economicamente, culturalmente e socialmente afetados na medida em que além de,
por vezes, estarem localizados em países geograficamente prejudicado, também encontram
uma série de dificuldades na ordem urbanística da localidade que carecem de políticas
públicas que, de fato, promovam o direito à cidade.
Nesse contexto, a promoção de ações que busquem a efetivação das cidades
resilientes deve ser considerada como um importante instrumento na consagração do direito
à cidade enquanto direito que impulsiona a efetivação da dignidade da pessoa humana.
E para que isso seja possível, não somente o Poder Estatal, mas também todos os
agentes que compõe a sociedade civil, como as iniciativas privadas e sociais, devem alinhas
os seus objetivos e unir as suas ações visando a promoção de políticas urbanísticas que
modifiquem e evoluam os modelos atualmente observados como cidades de forma
compatível com as necessidades da sociedade urbana.

privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal,
a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva
de meios necessários e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados. (BUCCI, Maria
Paula. O Conceito de Política Pública em Direito. In: BUCCI, Maria Paula. Políticas públicas: reflexões sobre
o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 39)
21
HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: HARVEY, David et al. Cidades Rebeldes: passe livre e
manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1.ed. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013, p.28 e 34
623

Entretanto, a concretização desses objetivos em uma sociedade global pautada pelo


capitalismo desmedido parece ser praticamente inviável no plano fático atual, o que
certamente levará a espécie humana a um futuro bastante infeliz.

REFERÊNCIAS

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Judiciário. Revista Direito e Práxis. vol.07. nº 14. p.421-453, 2016.

BRANDÃO, Juliana Mendanha; MAHFOUD , Miguel; NASCIMENTO , Ingrid Faria


Gianordoli. A construção do conceito de resiliência em psicologia: discutindo as origens.
Paideia. vol.21, n. 49. p. 263-271. Maio.ago.2011

BRASIL. Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001. Disponível em: <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm> Acesso em: 05 de outubro
de 2020.

BRASIL. GOVERNO FEDERAL. Desastres naturais em oito estados levam cidades à


situação de emergência. Ministério do Desenvolvimento Regional. Disponível em: <
http://www.brasil.gov.br/noticias/infraestrutura/2019/01/desastres-naturais-em-oito-
estados-levam-cidades-a-situacao-de-emergencia> . Acesso em: 05 de outubro de 2020.

BRASIL. GOVERNO FEDERAL. Construindo cidades resilientes: minha cidade está se


preparando. Campanha Mundial de Redução de Desastres. Disponível em: <
https://eird.org/curso-brasil/docs/modulo7/4.SEDEC-Cidades-Resilientes.pdf >. Acesso
em: 05 de outubro de 2020.

BRASIL. NAÇÕES UNIDAS. Relatório da ONU alerta para o aumento dramático das
perdas econômicas provocadas por desastres. Nações Unidas do Brasil. Publicado em 10
de outubro de 2018. Disponível em: < https://nacoesunidas.org/relatorio-da-onu-alerta-para-
aumento-dramatico-das-perdas-economicas-provocadas-por-desastres/> . Acesso em: 05 de
outubro de 2020.

HARVEY, David et al. Cidades Rebeldes: passe livre e manifestações que tomaram as ruas
do Brasil. 1.ed. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2011

BUCCI, Maria Paula. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo:
Saraiva, 2006.

MARICATO, Ermínia. Brasil, Cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes,
2002.
624

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nova agenda urbana: Declaração de Quito


sobre cidades e assentamentos Humanos Sustentáveis para todos. Disponível em: <
http://habitat3.org/wp-content/uploads/NUA-Portuguese-Angola.pdf> Acesso em: 05 de
outubro de 2020.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório das Nações Unidas para a redução
de riscos de desastres. Como construir cidades mais resilientes: um guia para gestores
públicos locais. Disponível em: <
https://www.unisdr.org/files/26462_guiagestorespublicosweb.pdf >. Acesso em: 05 de
outubro de 2020.

OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à cidade como direito humano coletivo. In: ALFONSIN,
Betânia de Moraes; FERNANDES, Edésio (org.). Direito Urbanístico: Estudos brasileiros
e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006

SAULE JÚNIOR, Nelson. O Direito à cidade como centro da nova agenda urbana. Boletim
regional, urbano e ambiental. vol. 15. jul.dez.2016.

TRINDADE, Thiago Aparecido. Direitos e cidadania: reflexões sobre o direito à cidade.


Revista Lua Nova. n. 87. p. 139-165, 2012
625

AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA DA LEI MARIA


DA PENHA E SUA EFICÁCIA

Lauren Hanel Lang Tabolka1

Lilian Hanel Lang2

Resumo: Este estudo buscou verificar se as ações que tangem às medidas protetivas de
urgência à mulher em situação de violência doméstica, estabelecidas na Lei Maria da Penha,
têm demonstrado sua eficácia. Para isso, foi considerado que a violência traz no seu bojo
significado de força, ameaça, dano e sofrimento, demonstrando-se em casos complexos e
variadas causas, de ação intencional tanto em forma física como psicológica, podendo a
partir de suas práticas levar à morte. Nesse sentido, a violência doméstica tem registros de
índices de atos cada vez maiores contra mulher, conforme aponta o Conselho Nacional de
Justiça brasileiro. Por sua vez, a Lei Maria da Penha, em suas medidas protetivas de urgência,
tem apresentado alterações e inovações para coibir essas práticas violentas perpetradas
contra mulher. Essas medidas, em seu caráter preventivo e protetivo, buscam assegurar
garantias de proteção à mulher quando em situação de ameaça de atos violentos no meio
doméstico desde o imediato afastamento do agressor do meio familiar até a prisão pelo
descumprimento das de decisão judicial. A Lei Maria da Penha expõe determinações que
embasam para várias naturezas jurídicas, o que contribui para observar mecanismos
protetivos em âmbitos civil, trabalhista, previdenciário, penal, processual e administrativo.
Conclui-se, assim, que as medidas protetivas de urgência, elencadas na Lei Maria da Penha,
com suas alterações e inovações de caráter preventivo e protetivo têm pontuado aumento de
aplicabilidade nos últimos anos, em razão do número de processos em tramitação na justiça,
o que demonstra sua eficácia. Contudo, isso revela que a violência doméstica também tem
indicado crescimento nos estados brasileiros.
Palavras-chave: Eficácia. Lei Maria da Penha. Medidas protetivas. Violência doméstica.

1 INTRODUÇÃO

A Lei Maria da Penha, n. 11.340, de 2006, em seu caráter protetivo de urgência,


inaugura a efetiva prevenção de providências de proteção, com a finalidade de firmar
obrigações nos atos do agressor, aliadas a pronto atendimento à mulher ofendida e agredida.

1
Aluna do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas – UFFS. Pós Graduada em Direito
Previdenciário – UPF. Graduada em Direito – URI. Docente Faculdade Anglicana de Tapejara. Email:
adv.advogados@bol.com.br Advogada OAB/RS 69.693.
2
Mestre em História – UPF. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Seguridade Social - UPF; em Gestão
Pública – UFSM; em Gestão Pública das Organizações de Saúde – UFSM. Graduada em Direito - URI. Docente
da Faculdade IDEAU/Getúlio Vargas-RS. Email: lilianlang@ideau.com.br .Advogada OAB/RS 74282.
626

No seu teor, a Lei n. 11.340 apresenta uma série de mecanismos de cautela de


urgência com o objetivo de travar a violência doméstica, por meio de condutas que possam
inibir atos provocados por infratores, que possam atingir e abalar fisicamente e moralmente
a mulher.
Entretanto, dados estatísticos têm pontuado que a violência contra a mulher mostra
crescimento considerável nos últimos anos, a partir de indicadores que revelam que o
número de processos sobre violência doméstica, no decorrer de 2018, era de milhão de ações,
sendo que 5,1 mil processos de feminicídio transitando na justiça brasileira. Em ocorrências
de violência doméstica, o crescimento foi em torno de 10%, com o recebimento de 563,7 mil
novos processos. Os casos de feminicídio que deram entrada no judiciário aumentaram 5%
se confrontados com o ano de 2018. Esses dados estão indicados no Painel de
Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as
Mulheres, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (CNJ, 2020).
Dados também revelam que o número de medidas de proteção concedidas aumentou,
demonstrando 70 mil a mais do que em 2018, perfazendo um crescimento de 20%. O estado
com maior número de medidas concedidas foi São Paulo, com 118 mil, sendo seguido pelo
Rio Grande do Sul, com 47 mil e depois o Paraná com 35 mil. Ainda foi observado o aumento
no índice de sentenças processuais, com 35% a mais nos casos de feminicídio e 14% nas
situações de violência doméstica (CNJ, 2020).
A partir de tal constatação, este estudo traz como problema da pesquisa: as medidas
protetivas de urgência, estabelecidas na Lei n. 11.340 de 2006, no que compete ao seu caráter
preventivo e de atendimento, têm demonstrado sua eficácia na sua prática protetiva à
mulher?
Este tema, inicialmente, justifica-se por seu caráter de contribuição no que diz
respeito a informações e elucidações à área acadêmica; mostra-se relevante, também, em
cenário social, ao apresentar números de efetivas estatísticas sobre a violência doméstica
com agressões à mulher; e, por fim, em seara da justiça, quando busca mostrar a função e
atribuição dos órgãos competentes para que sejam postas em prática as medidas de proteção,
calcadas na Lei 11.340.
Como objetivo, esta pesquisa busca verificar se as ações que tangem às medidas
protetivas de urgência à mulher em situação de violência doméstica, estabelecidas na Lei
Maria da Penha, têm demonstrado sua eficácia.
627

O método de pesquisa escolhido foi o dedutivo, que parte da generalização e


confirma-se na particularidade, embasado por material bibliográfico que inclui autores, leis
e dados que dizem respeito ao tema em estudo.

2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: CARACTERIZAÇÕES

A prática da violência doméstica vem se mostrando no decorrer da vida em sociedade


como um procedimento que se tipifica sob várias formas agressoras, em especial à mulher,
muito embora avanços em lei, no que diz respeito a medidas de proteção, tenham sido
firmados com a finalidade de impedir e também penalizar essa prática condenável.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) caracteriza a violência como força, ameaça,
dano e sofrimento, sendo um procedimento que mostra o uso intencional da força física, de
poder, de ameaça grupo que pode provocar lesão, dano psicológico e morte, entre outras
afetações. Dessa forma, a violência se caracteriza por atos atitudes que provocam lesão em
outrem via objeto ou força (OMS, 2002).
Conforme expressa Cavalcanti, os atos violentos tipificam-se em práticas de “abuso,
constrangimento, desrespeito, discriminação, impedimento, imposição, invasão, ofensa,
proibição, sevícia, agressão física, psíquica, moral ou patrimonial contra alguém e
caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela ofensa e intimidação pelo medo
e terror” (2008, p. 31).
Nessa contextualização, listam-se situações violentas que, segundo Schaiber et al
(2007) acontecem no meio doméstico e que são impetradas contra a mulher, em uma
desigualdade nas relações de gênero, afetando a sua saúde física e psicológica, com
consequente abalo à sua qualidade de vida. Essas situações que ocorrem no ambiente de
família, de acordo com Santi et al (2010), mostram posturas de dominação psicológica, física
ou sexual.
De acordo com Vasconcelos e Pimentel (2009), na esfera familiar, a violência ocorre
não por ser em local privado do lar, mas sim, porque envolve pessoas que se ligam por laços
consanguíneos e de convivência. Marca-se, dessa forma uma efetiva inversão de valores que
se apresentam sob situações de violência.
Em cenário demonstrativo, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher, caracterizada como Convenção de Belém do Pará,
descreve que essa tipificação da violência engloba a agressão “física, sexual ou psicológica:
628

a) perpetrada no âmbito do ambiente doméstico e familiar; b) ocorrida na comunidade e


cometida por qualquer pessoa; e c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde
quer que ocorra”. Nesse sentido, a veia identificadora que configura a violência doméstica e
familiar impetrada contra a mulher é a prática real por entes que mostram ou já tiveram uma
relação íntima com quem sofre a agressão (PANORAMA DA VIOLÊNCIA CONTRA AS
MULHERES NO BRASIL, 2018, p. 5).
Por sua vez, a Lei n. 11.340, de 2006, chamada Maria da Penha, em seu artigo 5º3,
caracteriza a violência, denominada de doméstica ou familiar, contra a mulher, norteada por
gênero, e que pode provocar-lhe morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e
dano moral ou patrimonial (BRASIL, 2006).
Essa Lei também tipifica, em seu artigo 7º4, as violências que podem ser impetradas
em âmbito doméstico, sendo incluídas a física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. A
física, conforme Dias (2013), agrava a saúde do corpo e, ainda que, por vezes, não mostre
sinais, a sua força de violência atinge o corpo e saúde da mulher. Por sua vez a psicológica
é outra prática de agressão que se demonstra em qualquer comportamento que afeta o lado
emocional da ofendida, por meio de ameaça, atos humilhantes e constrangedores.

3
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral
ou patrimonial: (Vide Lei complementar n. 150, de 2015)
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. (BRASIL, Lei
n. 11.340, 2006).
4
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física,
entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da
autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e
limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação.
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar
de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método
contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição
parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou
recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida
como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, Lei n. 11.340, 2006).
629

Já a violência sexual é outra forma de agredir por meio de força e coação e que,
segundo Cunha e Pinto (2014), manifesta-se em muitos atos que buscam não só obrigar como
intimidar a ofendida. Por fim, o patrimonial, de acordo com Porto (2007), expressa-se em
práticas para reter, subtrair e destruir de instrumentos de trabalho, documentos pessoais,
bens, valores e direitos ou valores econômicos.
Em seguimento, o próximo item mostra índices de registros e indicadores dos atos
de violência doméstica, praticados contra as mulheres nos últimos anos, bem como número
crescente de casos que ingressam nos Tribunais de Justiça brasileiros.

3 ESTATÍSTICAS INDICADORAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A violência doméstica têm demonstrado as suas práticas e seu crescimento


considerável nos últimos anos, no Brasil, conforme pontuam os Tribunais de Justiça dos
estados brasileiros.
Registros do CNJ e seu Departamento de Pesquisas (2018), nesse sentido,
consideram aumento considerável e graves de práticas de violência doméstica contra a
mulher por todo o Brasil. Ou seja, em 2017, indicadores revelam o ingresso nos tribunais de
justiça dos estados brasileiros no total de 452.988 casos novos que caracterizaram esse tipo
de prática de violência, perfazendo um índice de 12% maior que o pontuado em 2016, que
foi de uma marca de 402.695. O estado de São Paulo indicou maior número de casos,
com.541, seguido pelo Rio Grande do Sul, com 66.355 processos. Após, Minas Gerais
apresentou 47.320 à frente do Rio de Janeiro, que verificou 46.340 processos. Já em número
menor, o estado do Amapá mostrou 2.936 casos novos, Rondônia, com 1.409 e Alagoas com
1.300 casos novos. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018).
O CNJ aponta que tais indicadores mostram um panorama populacional feminino
que reside em cada Estado, e isso revela o Mato Grosso do Sul como o estado que demonstra
maior demanda, com registros de 13,2 casos novos a cada mil mulheres que ali residem. Esse
percentual pode ser registrado, a seguir, no Distrito Federal que apresenta 11,9 processos
novos, sendo, após o Rio Grande do Sul, com mostras de 11,5, o Mato Grosso com 10,5 e o
Acre, com 10,2. Os menores percentuais, em valoração por mil, são mostradas na Bahia e
em Alagoas, em índice de 0,6 e 0,7 de novos processos, respectivamente a cada mil mulheres.
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018).
630

O Ministério da Saúde, através do Sistema de Informação de Agravos de Notificação


(SINAN), que registra dados sobre doenças e agravos, indica que a violência física contra as
mulheres marca predominância e crescimento. Em 2011, foram 43.559 casos, em 2012,
62.869; em 2013, 75.614; 2014, 84.589; 2015, 92.199; e, em 2016, foram afetadas 101.218
mulheres (PANORAMA DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO BRASIL,
2018).
No que se refere à violência psicológica, o SINAN pontuou em 2011, 22.726 casos;
2012, com 33.793; 2013, com 40.220; 2014, com 42.891; 2015, com 48.441; e 2016, com
50.955. Já a violência sexual também mostrou crescimento, sendo que, em 2011, foram
14.237 casos; em 2012, 18.642; em 2013, 21.966; em 2014, 23.475; em 2015, 23.914; e em
2016, 27.059 (PANORAMA DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO BRASIL,
2018).
O SINAN aponta também situações de violência patrimonial, sendo em 2011, com
1.527; 2012, com 2.135; 2013, com 2.364; 2014, com 2.352; 2015, com 2.620; e 2016, com
3.055 situações (PANORAMA DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO BRASIL,
2018).
O CNJ, a partir do seu Departamento de Pesquisas Judiciárias (2018) mostra um
quadro de casos de feminicídio, no Brasil, em 2016 e 2017, em uma contagem de cada mil
mulheres residentes, conforme apresentam a Figura 1 e 2.

Figura 1 – Casos de violência doméstica a cada mil mulheres em 2016. Fonte: CNJ (2018, p. 14).
631

Figura 2 – Casos de violência doméstica a cada mil mulheres em 2017. Fonte: CNJ (2018, p. 14).

Em seguimento, a Figura 3 apresenta como está sendo feito o monitoramento da


Política Judiciária Nacional no que se refere ao enfrentamento da violência contra as
mulheres.

Figura 3 – Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres


Fonte: CNJ (2019, p. 1).
632

Esses dados sobre a violência doméstica, no Brasil, apontam o crescente número de


processos novos em 2019 em relação a 2018, bem como a prática do feminicídio e a adoção
das medidas protetivas concedidas por 100 mil mulheres ao ano.
O próximo item faz uma abordagem sobre as medidas protetivas e sua aplicabilidade
obrigatória a quem é agredido, bem como as tomadas de providências quanto à sua segurança
e instrumentos para coibir o agressor.

4 AS MEDIDAS PROTETIVAS E SUA APLICABILIDADE

No seu caráter de proteção, as medidas alargaram seus mecanismos jurisdicionais de


aplicabilidade com a finalidade de assegurar maior resguardo da vida em meio as relações
familiares, diante da constatação crescente da violência impetrada contra a mulher.
A Lei 11.340/06, na consolidação de medidas protetivas, expõe no seu artigo 19 §
3º5 sobre a concessão de medidas de urgência ou revisão das já concedidas diante da
necessidade da proteção da ofendida, bem como de seus familiares e de seu patrimônio,
sendo que tal deve acontecer quando os direitos e as garantias da ofendida forem atingidos,
conforme dispõe o art. 22 §1º6.
Refere Bianchini (2013) que as medidas protetivas se somam aos juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, graças às novas determinações, firmadas
na Lei Maria da Penha, o que consolida a prevenção no sentido de combater a violência. Tais
determinações traduzem-se em naturezas jurídicas, que podem observar mecanismos que
decorrem de âmbitos civil, trabalhista, previdenciário, penal, processual e administrativo.
Conforme assinala Dias (2013), as medidas de proteção são consideradas na detenção
do agressor como também para a garantia pessoal e patrimonial da mulher agredida e seus
filhos, se houver. Esse efeito protetivo compete, além da polícia, ao juiz e Ministério Público,
o que não implica somente as atribuições protetivas postas na Lei Maria da Penha, em seus

5
Art. 19 § 3º. Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas
medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida,
de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público. (BRASIL, Lei n. 11.340, 2006).
6
Art. 22 [...] § 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação
em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser
comunicada ao Ministério Público (BRASIL, Lei n. 11.340, 2006).
633

artigos 22, 237 e 248, o que demanda regulamentos das leis esparsas que abordam sobre
proteção.
Souza (2013) pontua a urgência das medidas protetivas em um dos principais
instrumentos, estabelecidos na Lei n. 11.340, que podem amparar a mulher e que busca
assegurar a integridade psicológica, física, moral e patrimonial, para que ela, sendo vitimada,
possa procurar a proteção estatal e jurisdicional.
Na sua característica de urgência, as medidas protetivas observam a decisão do
magistrado quando a concede em um prazo de 48 horas, norteado pelo art. 189 da Lei 11.340.
Tal concessão, conforme o art. 1910 § 1º é solicitada pela vítima do agravo sofrido à
autoridade policial ou Ministério Público, sendo firmada pelo art. 2011, que refere o decreto
do juiz, sem necessidade de audiência ou decisão do Ministério Público. Estabelece, ainda,

7
Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de
atendimento;
II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento
do agressor;
III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos
e alimentos;
IV – determinar a separação de corpos. (BRASIL, Lei n. 11.340, 2006).
8
Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da
mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:
I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em
comum, salvo expressa autorização judicial;
III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da
prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste
artigo. (BRASIL, Lei n. 11.340, 2006).
9
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;
II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso;
III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis (BRASIL, Lei n. 11.340, 2006).
10
Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério
Público ou a pedido da ofendida.
§ 1º As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência
das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.
§ 2º As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas
a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados
ou violados. [...] (BRASIL, Lei n. 11.340. 2006).
11
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do
agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da
autoridade policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo
para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (BRASIL, Lei n.
11.340, 2006).
634

o artigo 19 § 2º, a possibilidade sobre a sua substituição desde que a medida mostre eficácia,
tanto isolada como cumulativa.
Por sua vez, o art. 2212, da Lei Maria da Penha, expõe as determinações que são
atribuídas ao agressor, na prática de violência doméstica contra a mulher, e que devem ser
decididas pelo juiz, de imediato. São cinco incisos que se iniciam pela determinação da
suspensão de posse de armas e que, segundo Cunha e Pinto (2014), mostra-se evidenciado o
alerta sobre a condição física da vítima e diante do aumento considerável de atos criminosos
contra a mulher, com arma de fogo.
Após, o inciso II, que determina o afastamento do agressor do meio familiar, de
acordo com Belloque (2011), traz no seu bojo a preocupação com a saúde física e psicológica
da mulher, bem como o cuidado com a preservação do seu patrimônio. Nesse sentido,
Biachini (2013) refere a finalidade de tornar o meio familiar mais tranquilo, em especial,
para os filhos.

O III inciso, nas suas determinações, proíbe o agressor ter aproximação com a vítima,
incluindo seus familiares e testemunhas. Nesse sentido, Dias (2013) refere que tal

12
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz
poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de
urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da
Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre
estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento
multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor,
sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada
ao Ministério Público.
§ 2º Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e
incisos do art. 6º da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão,
corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de
armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob
pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.
§ 3º Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer
momento, auxílio da força policial.
§ 4º Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5º e 6º do art.
461 da Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil) (BRASIL, Lei n. 11.340, 2006).
635

determinação inibe a possibilidade de reiterados atos agressivos, bem como ameaças e


intimidações que possam prejudicar o processo investigativo.

Já o inciso IV restringe e pode até suspender as visitas do agressor aos seus


dependentes menores. Para Dias (2013), isso foi estabelecido em razão de possibilidade de
haver ameaça à segurança da ofendida e de seus filhos, quando houver. É uma situação,
consoante Didier Júnior e Oliveira (2010), que pode provocar risco para o meio familiar e
que ter decisão por via liminar, sendo desnecessário procedimento técnico anterior ao
provimento da justiça.
Por fim, o inciso V traça normas sobre a prestação de alimentos provisionais ou
provisórios, esclarecendo a sua fixação pelo juiz criminal ou pelo juizado de Violência
Doméstica e Familiar. Nessa contextualização, Porto refere que

[...] alimentos provisórios são aqueles fixados imediatamente pelo juiz, a título
precário, ao receber a inicial, na ação de alimentos do rito especial disciplinada
pela Lei 5.478/68, ao passo que, provisionais, são aqueles reclamados pela mulher
ao propor, ou antes de propor, a ação de separação judicial ou de nulidade de
casamento, ou de divórcio direto, para fazer face ao seu sustento durante a
demanda (2007, p. 47).

Em 2018, a Lei 11.340 insere em seu teor, por meio da Lei 13.641, o art. 24-A13, na
seção IV, tornando crime o descumprimento de medida protetiva, sendo passível de
decretação de prisão preventiva, conforme determina o art. 313, III14, do Código de Processo
Penal, com redação dada pela Lei n. 12.403, de 2011.
Recentemente, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei Federal n 13.827, de
maio de 2019, estabelecendo alguns regulamentos na Lei Maria da Penha, com o objetivo
de trazer mais rigor ao efeito protetivo para a mulher quando se encontra em situação de
violência doméstica e familiar.

13
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
(Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)
1º. A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
(Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)
2º. Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. (Incluído pela Lei
nº 13.641, de 2018)
3º. O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis. (Incluído pela Lei nº 13.641, de
2018) (BRASIL, Lei n. 13.641, 2018).
14
Art. 313 III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso,
enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação
dada pela Lei nº 12.403, de 2011). (BRASIL, Decreto-Lei n. 3.689, 1941).
636

Em nova publicação, o art. 2º, do capítulo III do título III da Lei Maria da Penha,
apresenta o acréscimo do 12-C15, dispondo sobre várias medidas urgentes a serem
observadas quando a mulher se encontra na iminência de risco à sua integridade física e
também de seus dependentes, o que decorre no imediato afastamento do agressor do meio
familiar.
Na sua redação, o art. 12-C determina que o agressor deve ter afastamento imediato
do meio familiar em que convive com a ofendida, e isso pode ser feito, na sua prerrogativa,
pela autoridade judicial, pelo delegado de polícia e também por policial. Nas hipóteses dos
incisos. Também o juiz terá de ser comunicado em prazo de 24 horas, decidindo sobre a
manutenção ou a revogação da aplicação da medida, cientificando, ainda, o Ministério
Público.
Também a Lei n.13.827/19 introduz na Lei Maria Penha o art. 38-A16, dispondo sobre
as competências do juiz para registro da medida protetiva de urgência em banco de dados
com a finalidade de efetiva acesso e fiscalização dos órgãos de segurança e de assistência
social.
A Lei Maria da Penha também tem contribuído para sejam instituídas delegacias
especializadas, por todo o Brasil, com o objetivo de oferecer atendimento às mulheres que
são vítimas da violência doméstica bem como facilitando o seu acesso para poderem
apresentar seus relatos sobres as ameaças e agressões sofridas.

15
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em
situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do
lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019)
I – pela autoridade judicial; (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019)
II – pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou (Incluído pela Lei nº 13.827,
de 2019)
III – pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento
da denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019)
1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte
e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo
dar ciência ao Ministério Público concomitantemente. (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019)
2º Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não
será concedida liberdade provisória ao preso. (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019). (BRASIL, Lei n. 13.827,
2019).
16
Art. 38-A. O juiz competente providenciará o registro da medida protetiva de urgência.
Parágrafo único. As medidas protetivas de urgência serão registradas em banco de dados mantido e
regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça, garantido o acesso do Ministério Público, da Defensoria
Pública e dos órgãos de segurança pública e de assistência social, com vistas à fiscalização e à efetividade das
medidas protetivas. (Incluído pela Lei nº 13.827, de 2019). (BRASIL, Lei n. 13.827, 2019).
637

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em sua proposta, este estudo buscou verificar se as ações que tangem às medidas
protetivas de urgência à mulher em situação de violência doméstica, estabelecidas na Lei
Maria da Penha, têm demonstrado sua eficácia.
Considerou-se, assim, em teor inicial, que violência envolve sentido de força,
ameaça, dano e sofrimento, sendo vista pela OMS, como situação complexa e de múltiplas
causas e que se mostra pela força intencional, em forma física ou psicológica, causando lesão
ou morte a partir de uma conjunção de comportamentos e atitudes.
Observou-se, assim, que dados do CNJ apresentam cada vez mais novas situações de
violência doméstica contra a mulher, registradas pelos Tribunais de Justiça do Brasil, em um
índice demonstrativo e considerável de crescimento. Desde 2016, os índices de violência
têm se mostrado em elevação em levantamento a cada mil mulheres nos estados brasileiros.
O legislador brasileiro, embasada pela Lei Maria da Penha, tem feito alterações e
inovações, com a finalidade de coibir os atos de violência contra mulher. Nesse sentido,
podem ser registradas as recentes modificações elencadas pela Lei 13.641/2018, com
inclusão do art. 24-A sobre a detenção diante de descumprimento de medida protetiva, e a
Lei n. 13.827/2019, com o art. 12.C, sobre a decretação do imediato afastamento do agressor
do domicílio.
As medidas protetivas de urgência buscam inibir esses atos violentos, para garantir
que a mulher não seja vítima de violência em ambiente familiar, estabelecendo
determinações que possam realmente serem protetivas e que possibilitem ao juiz decisões
que mostrem o seu sentido preventivo.
Verificou-se, ainda, que a Lei Maria da Penha compõe-se de vários dispositivos que
são norteadores para diversas naturezas jurídicas, e isso conduz a mecanismos que podem
levar em consideração os âmbitos civil, trabalhista, previdenciária, penal, processual e
administrativo. Logo, as medidas protetivas devem não só coibir os atos de violência como
assegurar que a mulher e seus filhos tenham seu resguardo e patrimônio, pelas decisões do
juiz, Ministério Público e do que se encontra posto em outras leis de caráter de proteção.

Registros também consideram a instituição de delegacias especializadas por todo o


Brasil para amparar as mulheres que sofrem violência doméstica, quando necessitam relatar
as agressões sofridas.
638

Em conclusão, fica exposto que as medidas protetivas de urgência, elencadas na Lei


Maria da Penha, com suas alterações e inovações de caráter preventivo e protetivo, na sua
eficácia, têm demonstrado aumento de aplicabilidade nos últimos anos, em especial, no ano
de 2019, conforme dados do CNJ. No entanto, isso mostra que a violência doméstica também
tem pontuado crescimento nos estados brasileiros.
As considerações construídas foram pertinentes e significativas, no entanto, não
esgotam este tema que apresenta grande interesse social e jurídico, uma vez que diante da
constatação do crescimento da violência doméstica, devem ter sua atenção quanto ao
cumprimento de medidas de proteção, com normatizações e regulamentos de garantias de
prevenção à mulher.

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639

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640

OS EFEITOS JURÍDICOS DO RECONHECIMENTO DA FAMÍLIA


ANAPARENTAL

Letícia Alvarez Ucha 1

Resumo: O presente artigo visa pesquisar sobre os efeitos jurídicos decorrentes do


reconhecimento da família anaparental que terá como base a análise de doutrina e
jurisprudência sobre o tema. Por ser uma realidade, mas que ainda não recebeu a atenção
devida da jurisprudência não é um tema recorrente e seus julgados ainda são escassos.

Palavras chaves: Família anaparental. Sócio-afetividade. Parentesco colateral.

INTRODUÇÃO

O Direito das Famílias é um dos ramos mais dinâmicos das Ciências Jurídicas. Isso
decorre da sua natureza mutante onde as alterações comportamentais refletem na sociedade
e por consequência nas leis que tangem às famílias.
O artigo 226 CF exemplifica alguns tipos de família não limitando suas possíveis
composições. Logo, nada impede que ela possa ser composta de forma horizontal sem que
uma pessoa descenda necessariamente uma da outra, pois família é antes de tudo lugar de
acolhimento, assistência e afetividade. Com fulcro nesses princípios há possibilidade da
família anaparental ser constituída por irmãos sócio-afetivos. A família anaparental também
pode ser considerada “A convivência sob o mesmo teto, durante longos anos de duas irmãs
que conjugam esforços para a formação de acervo patrimonial, constitui uma entidade
familiar. O conceito de família vem expresso no artigo 226 da Constituição Federal. Nele
não consta expressamente a família anaparental, mas através da analogia podemos identificá-
la e protegê-la. (DIAS, 2013)2.
O termo designando esse novo arranjo familiar foi criado por Sérgio Resende de
Barros, o qual significa anaparental, a família sem pais.3

1
Formada pela PUCRS, pós-graduada em Direito Público pela Fac. Projeção, pós- graduanda em Direito
Empresarial , Faculdade Legale e-mail leticiaucha@yahoo.com OAB/RS 46861.
2
DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 25-72, 2013.
3
BARROS, Sérgio Resende. Direitos humanos da família: principiais e operacionais. Disponível em:
http://www.srbarros.com.br/pt/direitos-humanos-da-familia--principiais-e-operacionais.cont. Acesso em cesso
em: 26 ago. 2020.
641

Há muito a família deixou de ser aquela composta somente por pai, mãe e filhos. As
pessoas passaram a viver mais e com o avanço da Medicina a longevidade aumentou, muitos
possuem saúde e excelente qualidade de vida. Por que ir para uma casa de repouso?
Sendo assim, é cada vez mais comum vermos pessoas idosas compartilhando a
mesma residência com o intuito de auxílio e colaboração mútua assistencial e muitas vezes
financeira também sem qualquer conotação sexual.
São pessoas viúvas que já sem a companhia dos filhos que muitas vezes nem as
visitam resolvem viver com amigo(a) ligadas pela amizade, como se irmãs fossem. Esse tipo
de agrupamento pode ser observado e identificado tanto em pessoas que possuem laços
sanguíneos como entre aqueles amigos que vinculados pelo afeto podem ser reconhecidos
como irmãos sócio-afetivos. Há muito o laço sanguíneo deixou de ser o fator mais importante
entre as pessoas e sim o afeto entre os mesmos é que deve prevalecer.
Pessoas mais jovens, também podem formar uma família anaparental sem ter
qualquer vínculo sanguíneo desde que estejam dispostas com o intuito de auxílio múto,
assistência financeira e permanência sem conotação sexual, formarem uma entidade
permanente sendo reconhecidos como irmãos socioafetivos. Não configura a mera amizade
passageira esse tipo de arranjo familiar. Pode ocorrer de dois irmãos jovens morarem juntos,
primos(a), tio e sobrinhos e etc, são exemplos de família anaparental.

1. TIPOS DE FAMÍLIA ANAPARENTAL

O referido tipo de família não possui os pais, ela é composta de parentes colaterais
ou irmãos sócioafetivos. É importante salientar que na família anaparental as pessoas se
unem sem conotação sexual, pois muitas vezes podem ser compostas, inclusive somente por
irmãos sanguíneos. Podem ser formadas ainda por homem e mulher, somente mulheres ou
unicamente homens sempre presente o sentimento de amizade e cooperação. Para parte da
jurisprudência ela pode ser identificada também por avó e neto. Nesse sentido: Ação Direta
de Inconstitucionalidade n 0171510-3320138260000 – TJSP4 este acórdão cita um rapaz
que ocultou morar com a avó a fim de conseguir o financiamento habitacional, porém o TJSP

4
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. APL: 00016741520148260651 SP 0001674-15.2014.8.26.0651,
Relator: Jarbas Gomes, Data de Julgamento: 16/08/2016, 11ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação:
18/08/2016). Acesso em: https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/375378579/apelacao-apl-
16741520148260651-sp-0001674-1520148260651?ref=serp. Acesso em 26 ago. 2020.
642

decidiu que isso não seria motivo de sua exclusão porque ele com sua avó formavam uma
família anaparental e portanto estava incluído entre os tipos de família contempladas com o
programa.
Na lição do destacado professor Rolf Madaleno, ao tratar da família anaparental
afirma:
Ao lado da família nuclear constituída por laços sanguíneos dos pais e sua prole
esta a família ampliada como realidade social que une parentes, consanguíneos ou
não, estando presente o elemento afetivo e ausentes relações sexuais porque o
propósito desse núcleo familiar denominado anaparental não tem nenhuma
conotação sexual como sucede na união estável e na família homossexual, mas
estão juntas com o ânimo de constituir estável vinculação familiar. Nesse
arquétipo a família anaparental está configurada pela ausência de alguém que
ocupe a posição de ascendente como na hipótese da convivência apenas entre
irmãos. (MADALENO, 2013, p. 10)5.

2. ADOÇÃO POR FAMÍLIA ANAPARENTAL

A multiparentalidade rompe o paradigma tradicional e triangular pai-mãe-filho. Por


meio da multiparentalidade é possível que a pessoa tenha em seu registro de nascimento,
dois pais, duas mães, simultaneamente.
Cabe salientar que um dos princípios constitucionais está o da dignidade da pessoa
humana.
Não podemos esquecer ainda da função social da família visto que a CF88 elegeu a
mesma como um dos pilares da sociedade.
Segundo o ECA o adotado passa a integrar a família de forma plena, sendo que a
mesma só é válida por sentença Poderá ocorrer adoção póstuma de o falecido mantinha um
vínculo sócio-afetivo e manifestado esse desejo em relação ao adotado6.
O STJ observando as modificações da sociedade permitiu a adoção por família
anaparental, conforme transcrito abaixo.
No acórdão STJ RESP 1217415 RS 2010/0184476, Relator Ministra Nancy
Andrighi, Data de julgamento 12/06/2012, TERCEIRA TURMA DJ 28/6/12 no qual consta
“... a chamada família anaparental –sem a presença de um ascendente quando constatado os
vínculos subjetivos que remetem à família, merece o reconhecimento e igual status daqueles

5
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p 10.
6
BENEVIDES, Adelmo Leal. Adoção por família anaparental. Âmbito Jurídico, São Paulo, 2020. Disponível
em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-de-familia/adocao-por-familia-anaparental/. Acesso em: 26
ago. 2020.
643

grupos familiares descritos no art 42, parágrafo 2 do ECA. RS 2010/0184476-0, Relatora


Ministra NANCY ANDRIGHI DJE 28-06-2012” 7.
No entendimento da ministra o objetivo da norma é colocar o adotando em família
estável e isso independe de sua composição.

2.1. Guarda de afilhados pelos padrinhos

O TJ/SC no AI 4004720-35.2019.8.0000, DJ 11/09/2019, decidiu que o infante que


convive com os padrinhos há mais de 4 anos, possui necessidades especiais e essas foram
adequadas na residência dos padrinhos, deve prevalecer o melhor interesse da criança, em
relação ao cadastro de adoção. No referido acórdão ficou claro que os padrinhos não tinham
intenção de adotar, mas sim dar acolhimento ao afilhado enquanto a mãe deles enfrentava
problemas com drogas.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE GUARDA. DECISÃO QUE
INDEFERIU A GUARDA PROVISÓRIA DO INFANTE AOS PADRINHOS E
DETERMINOU O ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DESTE. INDÍCIOS DE
ADOÇÃO ILEGAL. RECURSO DE TERCEIROS (...)8.

No mesmo sentido é o HC (cível) n. 4009915-35.2018.8.24.0000 do TJSC, DJ


16/08/2018, Relator Des. Ricardo Fontes.
HABEAS CORPUS. AÇÃO CAUTELAR DE BUSCA E APREENSÃO.
CRIANÇA. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. SUPOSTA FRAUDE AO
CADASTRO NACIONAL DE ADOÇÃO. ARTIGO 98 DO ECA. MEDIDA
PROTEÇÃO. REQUISITOS INEXISTENTES NA HIPÓTESE FAMÍLIA
EUDEMONISTA, CONCESSÃO DA ORDEM NECESSÁRIA.9

7
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - REsp: 1217415 RS 2010/0184476-0, Relator: Ministra NANCY
ANDRIGHI, Data de Julgamento: 19/06/2012, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe
28/06/2012. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22271895/recurso-especial-resp-
1217415-rs-2010-0184476-0-stj. Acesso em 26 ago. 2020.
8
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. APC 4004720352019.8.0000, Relator Ricardo Fonte, DJ
11/09/2019. Disponível em:
https://www.ibdfam.org.br/jurisprudencia/11332/Guarda%20provis%C3%B3ria%20aos%20padrinhos.%20F
am%C3%ADlia%20eudemonista.%20Preval%C3%AAncia%20do%20melhor%20interesse%20da%20crian
%C3%A7a%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20ao%20cadastro%20de%20ado%C3%A7%C3%A3o.
Acesso em: 26 ago. 2020.
9
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. APC 40099153520188240000, Relator Des Ricardo Fontes, DJ
16/8/2018. Disponível em:
https://www.ibdfam.org.br/jurisprudencia/11332/Guarda%20provis%C3%B3ria%20aos%20padrinhos.%20F
am%C3%ADlia%20eudemonista.%20Preval%C3%AAncia%20do%20melhor%20interesse%20da%20crian
%C3%A7a%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20ao%20cadastro%20de%20ado%C3%A7%C3%A3o.
Acesso em: 26 ago. 2020.
644

Importante salientar que há doutrinadores que fazem distinção entre família sócio-
fraterna e anaparental. Para dr Rodrigo Pereira da Cunha somente pessoas com laços
sanguíneos poderiam caracterizar a família anaparental, ou seja, quando formada por irmãos
sócio-afetivos estaríamos diante de uma família composta pela fraternidade, são os irmãos
sócio-fraternos. Já os doutrinadores Rolf Madaleno (2013), Maria Berenice Dias (2013),
entendem que esse tipo família independe de vínculo sanguíneo devendo prevalecer o auxílio
e acolhimento mútuo.
Importante salientar que ainda que mude a denominação os doutrinadores são
unânimes em conferir a existência e legitimidade desse tipo de arranjo familiar.

3. RECONHECIMENTO DA FAMÍLIA ANAPARENTAL E A


IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA

A jurisprudência tem-se debruçado sobre situações envolvendo famílias anaparentais


como no julgado abaixo:

EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. LEI N 8009/90.


IMPENHORABILIDADE. MORADIA DA FAMÍLIA. IRMÃOS SOLTEIROS.
OS IRMÃOS SOLTEIROS QUE RESIDEM NO IMÓVEL COMUM
CONSTITUEM UMA ENTIDADE FAMILIAR E POR ISSO O
APARTAMENTO ONDE MORAM GOZA DE PROTEÇÃO DE
IMPENHORABILIDADE, PREVISTA NO ARTIGO 8009/90, NÁO PODENDO
SER PENHORADO NA EXECUÇÃO DE DÍVIDA ASSUMIDA POR UM
DELES. RESP 159.851-SP, DJ DE 22.06.1998.10

Família anaparental impede a penhorabilidade de bem residencial de propriedade de


um dos integrantes. Corrobora com esse entendimento o RESP 57606/MG, “EXECUÇÃO.
BEM DE FAMÍLIA. AO IMÓVEL QUE SERVE DE MORADA AS EMBARGANTES,
IRMÃS E SOLTEIRAS ENTENDE-SE A IMPENHORABILIDADE e DE QUE TRATA
A LEI 8009/90.”11.

10
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - REsp: 159851 SP 1997/0092092-5, Relator: Ministro RUY
ROSADO DE AGUIAR, Data de Julgamento: 19/03/1998, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação:
DJ 22.06.1998 p. 100 LEXJTACSP vol. 174 p. 615. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/505872/recurso-especial-resp-159851-sp-1997-0092092-. Acesso
em: 26 ago. 2020.
11
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - REsp: 57606 MG 1994/0037157-8, Relator: Ministro FONTES
DE ALENCAR, Data de Julgamento: 11/04/1995, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ
15.05.1995 p. 13410 RSTJ vol. 81 p. 306. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/555382/recurso-especial-resp-57606/inteiro-teor-111003177.
Acesso em: 26 ago. 2020.
645

Segundo Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk (2005)12, a convivência familiar


necessária para constituir uma nova família similar simultânea não significa,
necessariamente, a residência no mesmo teto, mas somente que tenha sido mantido o laço
afetivo de preocupação e participação.
Ainda conforme o autor, pelo princípio da pluralidade familiar duas irmãs viúvas que
resolvem dividir a velhice juntas e constituem uma família anaparental, não estão com isso
rompendo o vínculo familiar com seus filhos.
Pode haver simultaneidade familiar, ou seja, pertencimento ao mesmo tempo de mais
de um tipo de família.
Cabe salientar que a pretensão de permanência é fundamental para a configuração da
família anaparental. Em uma república de estudantes universitários cujos vínculos não foram
construídos com a intenção de formar família e certamente serão desfeitos com o término do
curso (MADALENO, 2013). Logo, não configura por falta de permanência.

4. FAMÍLIA ANAPARENTAL E AUXÍLIO FUNERAL

Não foi encontrada jurisprudência demonstrando que membro da família anaparental


estivesse recebendo benefício pensão por parte do INSS, vez que o rol da lei que estabelece
os beneficiários é tido como taxativo. Por outro lado, não podemos olvidar que o próprio
INSS através de Instrução Normativa reconheceu a possibilidade de cônjuge supérstite
homossexual recebesse pensão por morte. Por analogia, o integrante de família anaparental
também faria jus. Através de uma interpretação pragmática e integrativa também seria
possível.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, reconheceu a legalidade de forma
que irmã e cunhado integrantes de família anaparental fizessem jus ao recebimento de auxílio
funeral pago pelo Município em virtude do falecimento do irmão na APC
02053078020148130079 do referido Tribunal, julgado em 18/2/2016,

EMENTA APELAÇÃO CÍVEL- DIREITO ADMINISTRATIVO E


PREVIDENCIÁRIO- AUXÍLIO FUNERAL- PREVISÃO LEGAL DO
BENEFÍCIO . DEVER DE PAGAMENTO PELA ADMINISTRAÇÃO- IRMÃ
E CUNHADO-FAMILIARES- PARENTES PELO CONCEITO DO CÓDIGO

12
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias Simultâneas: da Unidade Codificada à Pluralidade
Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
646

CIVIL- INEXISTÊNCIA DE RESTRIÇÃO CONSTITUCIONAL QUANTO AO


CONCEITO DE FAMÍLIA. RECURSO NÃO PROVIDO. 13

5. FAMÍLIA ANAPARENTAL E ALIMENTOS


Os irmãos já estão obrigados a prestar alimentos entre si, mas, com o reconhecimento
da família anaparental, eles passariam a integrar o rol dos primeiros legitimados nessa
obrigação. Já no que tange às amigas aposentadas, quando da dissolução da convivência, são
cabíveis por analogia as disposições da união estável, isto é, o pedido de alimentos entre
elas.
Pois, se demonstrado que a reclamante aos alimentos, não possui meios de se manter,
o Magistrado terá que se valer da analogia, para a aplicação do direito em comento, pois,
conforme preceitua o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, “[…] quando a lei for
omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais
de direito”, passando essas, pelo vínculo da afetividade, a integrar o rol do Código Civil.14
O dever de alimentar na família anaparental cessaria quando terminasse a
necessidade sempre observando também o binômio necessidade/possibilidade do
alimentante.
Entendemos que através do contrato de convivência com base na autonomia da
vontade poderia ser suprimido o dever de prestar alimentos.

6. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E FAMÍLIA ANAPARENTAL

O Código Civil omitiu o direito real de habitação para os novos arranjos familiares.
O artigo 1831 do CC se aplica no caso de família anaparental por analogia, com base na
finalidade social da lei.

13
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. APC 02053078020148130079. Relator(a): Des.(a) Áurea Brasil,
Data de Julgamento 18/02/2016, Órgão Julgador / Câmara, Câmaras Cíveis / 5ª CÂMARA CÍVEL. Data da
publicação da súmula: 29/02/2016. Disponível em:
https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numeroRegistro=2&totalLin
has=2&paginaNumero=2&linhasPorPagina=1&palavras=fam%EDlia%20anaparental&pesquisarPor=ementa
&pesquisaTesauro=true&orderByData=1&pesquisaPalavras=Pesquisar&. Acesso em 26 ago. 2020.
14
KUSANO, Susileine. Da família anaparental: do reconhecimento como entidade familiar. Revista Âmbito
Jurídico, São Paulo, 2010. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/da-familia-
anaparental-do-reconhecimento-como-entidade-familiar/. Acesso em 26 ago. 2020.
647

Maria Berenice Dias (2013) 15 entende que, tendo o Código Civil se omitido sobre o
direito real de habitação, este não foi revogado e, tendo sido ele expressamente previsto no
artigo 1831 do Código Civil como direito civil do cônjuge sobrevivente nada, justifica sua
não aplicação à união estável. Salienta-se que tal direito será deferido enquanto o cônjuge
ou convivente não constituir nova família.

7. FAMÍLIA ANAPARENTAL E SUCESSÃO

No caso de duas irmãs que vivem juntas, sem descendentes e colaboram uma com a
outra constuindo um patrimônio e têm pouco contato com demais irmãos é possível a
analogia à união estável para que somente a irmã convivente herde. Neste sentido:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA/SUCESSÕES. INÉPCIA


RECURSAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. NULIDADE DA SENTENÇA POR
AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INOCORRÊNCIA. ENTIDADE
FAMILIAR. FAMÍLIA ANAPARENTAL. EXTINÇÃO DA AÇÃO.
INTERESSE PROCESSUAL. ERROR IN PROCEDENDO. POSSIBILIDADE
JURÍDICA DA DEMANDA. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO. 1. Para o conhecimento do apelo, mister se faz que
o recorrente apresente os motivos de seu inconformismo, contrapondo-se,
especificamente, aos fundamentos da decisão impugnada, como ocorreu no
presente caso, vedação legal em relação ao pedido da autora em herdar
solitariamente a herança de sua irmã, com fundamento jurídico no instituto da
família anaparental, não autoriza o indeferimento da inicial e consequente extinção
do processo por ausência de interesse processual. 16

Entendemos que o Direito de Família é um reflexo da sociedade e deve ser analisado


caso a caso. Herdar o patrimônio de uma irmã falecida um irmão que nunca demonstrou
afeição por ela em detrimento de seu irmão(a) socioafetivo não seria justo.Tampouco seria
justo que o irmão sanguíneo que conviveu e construiu patrimônio com o de cujus herde na
mesma proporção de seu irmão sanguíneo que não mantinha qualquer contato e afeto.
Nestes casos em que não há ascendentes, descendentes, cônjuges, ou seja, não há
herdeiros necessários, consideramos ser justo a equiparação da família anaparental à união

15
DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2013.
16
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 1.0000.17.072984-2/001, Relator(a): Des.(a)
Bitencourt Marcondes, 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 28/11/0017, publicação da súmula em
29/11/2017. Disponível em:
https://www.ibdfam.org.br/jurisprudencia/8107/Fam%C3%ADlia%20e%20sucess%C3%B5es.%20Entidade
%20familiar.%20Fam%C3%ADlia%20anaparental.%20Possibilidade%20jur%C3%ADdica%20do%20pedid
o. Acesso em 26 ago. 2020.
648

estável para que o irmão convivente integrante da família anaparental herde com base no
príncípio da analogia sendo equiparado aos direitos inerentes à união estável .
O artigo 1829 CC estabelece a vocação sucessória e irmãos poderão receber na
condição de colateral, não sendo herdeiros necessários. Logo, não se tratando de herdeiros
necessários é justa a possibilidade do membro da família anaparental herdar como se cônjuge
fosse, pois não estaria burlando a lei, pois quem não possui herdeiros necessários pode dispor
da integralidade, ou seja, 100% de seu patrimônio como quiser.
Uma forma de garantir a realização dessa possibilidade seria através do testamento,
mas essa prática ainda não é comum para a maioria da população brasileira, então se a
sucessão na família anaparental dependesse somente desse ato, poderia haver injustiças.
No caso, do membro da família anaparental possuir herdeiros necessários,
reconhecemos que nesse caso, o integrante da família anaparental seria equiparado ao irmão
socioafetivo ou irmão sanguíneo herdando na classe dos colaterais. Podendo também, ser
feito testamento em favor do irmão sócioafetivo no que tange aos 50% passíveis de
disposição quando há herdeiros necessários.

CONCLUSÃO

Diante da pesquisa feita, ainda que a doutrina e a jurisprudência não sejam


abundantes é inegável que a família anaparental é reconhecida e possui efeitos jurídicos.
Ainda que não esteja prevista expressamente no artigo 226 CF o rol que o mesmo contém
não é taxativo, sendo meramente exemplificativo.
Nos filiamos à corrente que considera como família anaparental independentemente
da existência de vínculo sanguíneo ou não entre os irmãos que podendo ser socioafetivos.
Parentes colaterais também podem ser integrantes, assim como netos e avós que mesmo não
sendo colaterais por não haver a presença dos pais também configura esse tipo de arranjo
familiar.
Os elementos que a identificarão serão o afeto, apoio emocional e financeiro,
permanência e acolhimento e que seja de conhecimento público essa convivência. É
importante que não haja conotação sexual, pois se houver estaremos diante de outro tipo de
família.
649

Vemos como positiva a adoção de crianças e adolescentes pela família anaparental,


pois um lar é sempre mais acolhedor e afetuoso do que um abrigo. Se à outros tipos de
família foi concedido o direito à adoção não seria justo discriminar a família anaparental.
Reconhecemos que dela pode advir o direito à alimentos enquanto durar a
necessidade e também consideramos possível ser acordado entre as partes através de contrato
de convivência que os integrantes abrem mão do direito ao recebimento de pensão
alimentícia, se essa for a vontade das partes com base na autonomia privada.
É inegável o direito à impenhorabilidade do bem de família e do direito real de
habitação, conforme exposto no presente artigo
Quanto à sucessão no caso de não haver herdeiros necessários consideramos a
possibilidade de equiparação à união estável, inclusive excluindo demais irmãos que não
mantiveram vínculo afetivo com o falecido(a), consoante jurisprudência mencionada no
presente texto. No caso da existência de herdeiros necessários o membro da família
anaparental figuraria como parente colateral na linha de sucessória, legítimo, mas não
necessário. Nesse caso, se for vontade da parte, pode dispor através de testamento de 50%
de seu patrimônio.
Na hipótese de não haver herdeiros necessários seria possível através de testamento
dispor de 100% de seu patrimônio a fim de evitar situação que dependa do Judiciário o
reconhecimento da família anaparental, pois não temos como há em Portugal uma
legislação específica para esse tipo de família que lá é denominada de Pessoas que vivem
em Economia Comum.
A fim de evitar transtornos futuros além do testamento indicamos a elaboração de
contrato de convivência entre as partes, sempre salientando que mesmo na ausência desses
é cabível o reconhecimento desse arranjo familiar através de ação declaratória pelo
Judiciário.
650

REFERÊNCIAS

BARROS, Sérgio Resende. Direitos humanos da família: principiais e operacionais.


Disponível em: http://www.srbarros.com.br/pt/direitos-humanos-da-familia--principiais-e-
operacionais.cont. Acesso em: 26 ago. 2020.

BENEVIDES, Adelmo Leal. Adoção por família anaparental. Âmbito Jurídico, São Paulo,
2020. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-de-familia/adocao-
por-familia-anaparental/. Acesso em: 26 ago. 2020.

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p. 25-72, 2013.

DIAS, Maria Berenice. Manual do Direito das Famílias. Revista dos Tribunais, São Paulo,
2013.

KUSANO, Susileine. Da família anaparental: do reconhecimento como entidade familiar.


Revista Âmbito Jurídico, São Paulo, 2010. Disponível em:
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/da-familia-anaparental-do-
reconhecimento-como-entidade-familiar/. Acesso em 26 ago. 2020.

MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p.
10.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. APC 02053078020148130079. Relator(a): Des.(a)


Áurea Brasil, Data de Julgamento 18/02/2016, Órgão Julgador / Câmara, Câmaras Cíveis /
5ª CÂMARA CÍVEL. Data da publicação da súmula: 29/02/2016. Disponível em:
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gistro=2&totalLinhas=2&paginaNumero=2&linhasPorPagina=1&palavras=fam%EDlia%2
0anaparental&pesquisarPor=ementa&pesquisaTesauro=true&orderByData=1&pesquisaPal
avras=Pesquisar&. Acesso em 26 ago. 2020.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. APC 1.0000.17.072984-2/001, Relator(a): Des.(a)


Bitencourt Marcondes , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 28/11/0017, publicação da
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651

elhor%20interesse%20da%20crian%C3%A7a%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20ao
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SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. APC 40099153520188240000, Relator Des


Ricardo Fontes, DJ 16/8/2018. Disponível em:
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0padrinhos.%20Fam%C3%ADlia%20eudemonista.%20Preval%C3%AAncia%20do%20m
elhor%20interesse%20da%20crian%C3%A7a%20em%20rela%C3%A7%C3%A3o%20ao
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SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. APL: 00016741520148260651 SP 0001674-


15.2014.8.26.0651, Relator: Jarbas Gomes, Data de Julgamento: 16/08/2016, 11ª Câmara
de Direito Público, Data de Publicação: 18/08/2016). Acesso em: https://tj-
sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/375378579/apelacao-apl-16741520148260651-sp-
0001674-1520148260651?ref=serp. Acesso em 26 ago. 2020.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - REsp: 1217415 RS 2010/0184476-0, Relator:


Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 19/06/2012, T3 - TERCEIRA
TURMA, Data de Publicação: DJe 28/06/2012. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22271895/recurso-especial-resp-1217415-rs-
2010-0184476-0-stj. Acesso em 26 ago. 2020.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - REsp: 159851 SP 1997/0092092-5, Relator:


Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Data de Julgamento: 19/03/1998, T4 - QUARTA
TURMA, Data de Publicação: DJ 22.06.1998 p. 100 LEXJTACSP vol. 174 p. 615.
Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/505872/recurso-especial-resp-
159851-sp-1997-0092092-5. Acesso em: 26 ago. 2020.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - REsp: 57606 MG 1994/0037157-8, Relator:


Ministro FONTES DE ALENCAR, Data de Julgamento: 11/04/1995, T4 - QUARTA
TURMA, Data de Publicação: DJ 15.05.1995 p. 13410 RSTJ vol. 81 p. 306. Disponível
em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/555382/recurso-especial-resp-57606/inteiro-
teor-111003177. Acesso em: 26 ago. 2020.
652

A INCIDÊNCIA DA MULTA NOS EMBARGOS DECLARATÓRIOS


MANIFESTAMENTE PROTELATÓRIOS

Letícia Marques Padilha1

Resumo: No presente artigo, analisa-se a fixação de multa nos embargos de declaração


manifestamente protelatórios. A partir do estudo das duas hipóteses de incidência de multa
nos embargos previstas no Código de Processo Civil de 2015: os embargos procrastinatórios
e sua reiteração, com a consequente condição de depósito da multa para interposição de
recurso.

Palavras-chave: Embargos de declaração. Multa. Reiteração. Código de Processo Civil de


2015.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa a abordar sobre a incidência da multa no recurso de


embargos de declaração manifestamente protelatórios, prevista nos §§ 2º e 3º do art. 1.026
do Código de Processo Civil de 2015.
O assunto almeja contribuir para a sociedade esclarecendo os casos em que ocorre a
incidência da penalidade, mais especificamente de multa, nas hipóteses de tentativa de
procrastinação no andamento do processo. Assim como pretende colaborar junto ao mundo
jurídico-acadêmico demonstrando os cuidados que o profissional do direito deve ter quando
da oposição dos embargos de declaração, para que não prejudique a marcha processual e seu
cliente com a aplicação de multa. O presente estudo intenta auxiliar para amenizar as
inquietações acerca da aplicabilidade da multa, explicando o que são embargos
manifestamente protelatórios e quando ocorre a incidência da multa.
O tema é de suma importância para o Direito Processual Civil, visto que os embargos
de declaração tem sido objeto de merecidas e constantes apreciações por parte dos

1
Mestra em Direito. Advogada – OAB/RS 66.040. E-mail leticiapadilha@uol.com.br. Membro da Comissão
da Mulher Advogada OAB/RS. Membro da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra OAB/RS.
Membro da Comissão da Igualdade Racial OAB/RS.
653

estudiosos. A de se considerar a essencialidade dos mesmos, pois cabe-lhes o objetivo


fundamental de propiciar o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional.
Entretanto, quando opostos os embargos declaratórios com o intuito de apenas
protelar o andamento da demanda, praticando atos que provocam o retardamento
injustificável da tramitação dos processos, o sistema processual comina penalidade, aquela
prevista nos §§ 2º e 3º do art. 1.026 do Código de Processo Civil de 2015.
Tem como objetivo o presente trabalho fazer uma reflexão consciente da importância
e peso que tem o tema para o mundo jurídico. O objetivo primordial deste artigo é demonstrar
quando são caracterizados os embargos de declaração protelatórios, com a consequente
incidência de multa.
O trabalho está dividido em dois pontos centrais, no qual o leitor terá contato no
primeiro com a origem e conceito do recurso de embargos de declaração, já no segundo com
os embargos na sistemática do Código de Processo Civil de 2015, subdividindo-o em
contraditório, a interrupção do prazo recursal e a incidência da multa nos embargos
declaratórios procrastinatórios.
Quanto aos tipos e técnicas de pesquisa será teórica, lastreada em bibliografia.
Entretanto, a pesquisa não será puramente doutrinária, uma vez que deverá ser observado o
comportamento dos tribunais, especialmente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal. Enfim, haverá um cotejamento entre as jurisprudências dos tribunais
referidos e os embargos de declaração protelatórios, com a consequente aplicação de multa.
O assunto não é inovador e não foi objeto da reforma no Código de Processo Civil
de 2015, contudo, os embargos declaratórios muitas vezes são considerados como
tormentosos na vida forense, não compreendidos em sua verdadeira essência.

1. RECURSO DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

Na prática judiciária tem grande utilidade o recurso de embargos de declaração2, para


o fim de corrigir equívoco contido na decisão.

2
A natureza jurídica dos embargos de declaração é bastante controvertida na doutrina, em que se destacam três
correntes: 1) trata-se de recurso, eis que a definição de recurso compreenderia não somente a reforma ou
anulação do pronunciamento judicial, mas também a integração; 2) nega-se a natureza recursal aos embargos
declaratórios, por entender que não se destinam a obter a reforma ou anulação do julgado, que seria a função
dos recursos; e 3) que os embargos assumiriam apenas a natureza recursal no caso de estar presente o efeito
infringente. Não importa que para vislumbrar a natureza recursal, que a modificação efetivamente ocorra, basta
a intenção do embargante de modificar o julgado (AURELLI, 2011, p. 17). No entendimento da autora do
presente artigo os embargos de declaração tem natureza recursal, não havendo nada que impeça que a definição
654

No tocante a palavra “embargo”3, é possível verificar-se uma coletânea de


entendimentos diversos no universo jurídico. Todavia, analisando a questão de uma maneira
simples, tem-se que o recurso de embargos conforma-se na medida processual adequada a
ser apresentada quando o seu objetivo for o de esclarecer e aperfeiçoar, em parte, a decisão,
quando a parte interessada identificar a existência de alguma omissão, contradição ou
obscuridade a ser esclarecida no decisum (LIMA, 2017, p. 129).
A sua oposição não tem por objetivo a reforma de uma sentença ou de um acordão,
mas sim de esclarecer trecho da decisão que deu ensejo a oposição desse recurso. O que se
busca é o exercício da retratação pelo magistrado que proferiu a decisão embargada. Dessa
forma, conclui-se que a competência para julgar os embargos de declaração é do próprio
juízo que prolatou a decisão.
A importância do estudo desse instituto advém da necessidade de se primar pela
efetiva concretização do modelo constitucional do processo civil. Nos dizeres de Arlete Inês
Aurelli (2011, p. 12):
De fato, para bem prestar a devida tutela jurisdicional e cumprir o princípio da
inafastabilidade do controle jurisdicional, inserto no art. 5º, XXXV, da CF/1988,
é imperioso que o órgão julgador profira decisão clara, precisa e que atenda, de
forma completa, os limites traçados e impostos pelo pedido veiculado pelo autor
e pela defesa ofertada pelo réu, a fim de que possa surtir efeitos concretos. Assim,
caso o órgãos julgador deixe de proferir decisão que seja inteligível e completa,
sendo omissa, contraditória ou obscura, torna-se necessário o uso dos embargos
de declaração, para sanar o defeito e possibilitar tornar possível a efetiva prestação
da tutela jurisdicional buscada pelos jurisdicionados.

É difícil identificar a origem exata do recurso de embargos declaratórios, segundo


Araken de Assis (2011, p. 598-600) o surgimento desse instituto se deu no Direito português.
Quanto ao Direito brasileiro veio previsto no Regulamento n. 737 de 1850, na Consolidação
Ribas de 1876, e na Consolidação Higino Duarte Pereira de 1898. Acerca dos códigos
estaduais mostrou-se presente no Código de Processo Civil e Comercial do Estado de São
Paulo de 1930, em que era apresentada a figura dos embargos de declaração de maneira bem
organizada.

de recurso englobe também a integração da sentença, e não somente a reforma ou anulação. Nesse sentido José
Carlos Barbosa Moreira (1981, p. 265), quando afirma que recurso seria o “remédio voluntário, idôneo, dentro
do mesmo processo, a reforma, a anulação ou a integração da decisão judicial impugnada”.
3
“Etimologicamente EMBARGOS vem do latim “IMBARRICARE”, opor barricada, por obstrução, colocar
obstáculo. No século XII já se encontraria as palavras “embargamento”, no sentido de opor oposição ou
impedimento, bem como embargo consistia na imobilização de navio de comercio estrangeiro em porto
nacional. No Direito Pátrio a expressão é concebida, fiel à sua origem etimológica, como impedimento,
obstáculo, de natureza judicial, no processo”. (FELKER, 2011, p. 48).
655

No tocante a primeira legislação a nível federal acerca da matéria, o Código de


Processo Civil de 1939, em seu art. 862 dispunha sobre os embargos de declaração. O § 4º
do referido dispositivo previa que se os embargos fossem providos, a nova decisão se
limitaria a corrigir obscuridade, omissão ou contradição4. O aludido recurso tinha cabimento
contra sentença de primeiro grau (art. 840) e contra acórdão proferido pelo tribunal (art.
862).
O Código de Processo Civil de 1973 acrescentou ao elenco obscuridade, omissão e
contradição, a existência de dúvida (art. 535). Tal acréscimo foi suprimido pela Lei n.
8.950/1994. Todavia, a dúvida subsistiu nos embargos declaratórios por força da previsão
do art. 48, caput, da Lei n. 9.099/1995 até a promulgação do Código de Processo Civil de
2015. Subsiste a dúvida ainda como hipótese de cabimento dos embargos declaratórios por
força da previsão do art. 30, inciso II, da Lei n. 9.307/1996 (Lei da Arbitragem). Dessa
forma, a dúvida acabou não sendo definitivamente banida do cenário.
Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, Lei n. 13.105, o art.
1.022 traz as hipóteses de cabimento da oposição de embargos de declaração, para esclarecer
obscuridade ou eliminar contradição; suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia
se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento; e corrigir erro material.

4
“Diz-se que a decisão é obscura quando não se pode compreender o sentido do que foi decidido. Há casos em
que a obscuridade é tamanha que leva à impossibilidade de obediência à ordem judicial. A obscuridade pode
estar no relatório, na fundamentação ou na parte decisória propriamente dita; ou, ainda, na relação entre estes
elementos. A decisão contraditória é a que contém elementos racionalmente inconciliáveis. A contradição,
desta forma, confunde-se com a incoerência interna da decisão. Da mesma forma que a obscuridade, a
contradição interna pode estar no relatório, na fundamentação, na parte decisória propriamente dita, ou, ainda,
na relação entre estes elementos. Há também a contradição externa, que ocorre quando o conteúdo do acórdão
e sua respectiva ementa são incoerentes entre si. Ainda, fala-se em contradição entre o teor dos votos proferidos
e o teor do acórdão. Por outro lado, a contradição que porventura exista entre a decisão e os elementos do
processo não enseja a interposição de embargos de declaração. A hipóteses mais frequente de interposição de
embargos de declaração, todavia, é a omissão. Ocorre omissão quando faltam quaisquer elementos essenciais
à decisão (relatório, fundamentação e parte decisória propriamente dita). Pode haver omissão em apenas um
dos capítulos da decisão. A interpretação conjunta das regras contidas no art. 489 e § 1º do art. 943 do NCPC
nos leva a afirmar que a ausência da ementa também é vício que enseja a interposição de embargos de
declaração” (ALVIM, 2016, p. 34). A obscuridade constitui-se na falta de clareza que vem a dificultar, quiça
tornar impossível, a correta interpretação do pronunciamento judicial. Um pronunciamento é obscuro quando
não consegue entender a vontade do emissor. A decisão é ambígua, enigmática. Pode ocorrer tanto no
dispositivo como na fundamentação. Nesse caso o objetivo dos embargos é remover a incerteza. A contradição
trata da presença de proposições inconciliáveis na fundamentação, no decisório ou entre a fundamentação e o
decisório. Os enunciados se anulam reciprocamente, sob aspecto lógico. Não há compatibilidade entre as razões
de decidir e o decidido, entre capítulos da decisão. Já a omissão consiste na ausência de declaração sobre
questão ou ponto suscitado pelas partes. Há falta de pronunciamento sobre o fundamento ou pedido. Haverá
omissão sempre que o magistrado deixar de analisar questão ou ponto da causa que lhe foi submetido, inclusive
quanto à comprovação dos fatos alegados pelas partes e os fundamentos admitidos ou inadmitidos (AURELLI,
2011, p.13-14)
656

2. OS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL


DE 2015

Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, promulgado em 18 de


março de 2016, que prevê de forma clara ser cabível os embargos de declaração contra todo
e qualquer pronunciamento do juiz5, seja decisão interlocutória, sentença, decisão de relator,
de órgão colegiado etc. O legislador de 2015 corrigiu a imperfeição dos códigos anteriores
(1939 e 1973), que se referiam somente a sentença e acórdão como pronunciamentos
suscetíveis de serem impugnados por meio de embargos declaratórios.
O Código de Processo Civil de 2015 trouxe para o texto legal a ideia de que todo o
pronunciamento judicial é embargável, a teor do art. 1.0226. Procura-se eliminar com as
posturas restritivas diante dos embargos de declaração, que tendem a excluir determinados
pronunciamentos judiciais.
Luis Guilherme Bondioli (2015, p. 153) sustenta que teria andado melhor o legislador
se houvesse se utilizado da expressão “pronunciamento judicial”, de índole mais ampla, ao
invés de “decisão judicial” no caput do art. 1.022 daquele diploma legal.
Assevera Teresa Arruda Alvim (2016, p. 34) que os embargos de declaração eram e
permanecem sendo, recurso de fundamentação vinculada7, quer dizer que só podem ser
opostos nas expressas situações que a lei prevê. As hipóteses de cabimento foram

5
Os pronunciamentos jurisdicionais previstos na legislação são as sentenças, as decisões interlocutórias e os
despachos, em consonância com o art. 203 do Código de Processo Civil de 2015. A lei classificou os
pronunciamentos do juiz de primeiro grau em despachos, decisões interlocutórias e sentenças, tendo observado
os nomes decisão monocrática e acordão para as decisões colegiadas dos tribunais.
6
Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para: I - esclarecer obscuridade
ou eliminar contradição; II - suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de
ofício ou a requerimento; III - corrigir erro material. Parágrafo único. Considera-se omissa a decisão que: I -
deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de
competência aplicável ao caso sob julgamento; II - incorra em qualquer das condutas descritas no art. 489, §
1o.
7
Nenhum recurso pode prescindir de fundamentação, isto é, da demonstração racional dos erros da atividade
ou de julgamento. Com base nesse discrímen é que se faz necessária a classificação dos recursos. Trata-se
daquela que os agrupa em recursos com fundamentação livre e recursos de fundamentação vinculada. Na
primeira classe, a parte, para ter admitido seu recurso tem de invocar o erro indicado na lei como relevante e
demonstrar sua efetiva ocorrência para vê-lo provido. Em termos mais científicos “A tipicidade do erro é pois,
pressuposto de cabimento do recurso”. Nos recursos de fundamentação livre, o cabimento não depende do tipo
de crítica que o recorrente faz à decisão, dependerá de outras circunstâncias, um exemplo, é o recurso de
apelação. No que diz respeito à fundamentação vinculada, se tem como exemplo os embargos de declaração,
recursos cujo âmbito de cognição é sabidamente restrito, somente aquelas hipóteses previstas em lei
(OLIVEIRA, 1999, p. 42).
657

expressamente alargadas para a admissão do recurso de embargos em hipóteses em que a


jurisprudência dominante8 já vinha admitindo.
Cabiam e continuam cabendo os embargos de declaração quando há obscuridade ou
contradição, e na hipótese mais frequente que é a omissão. A novidade diz respeito ao erro
material9.

2.1 Contraditório

Existem três situações em que os embargos de declaração podem ter efeito


modificativo ou infringente: (a) quando o efeito modificativo for efeito secundário
decorrente das hipóteses comuns de cabimento dos embargos declaratórios; (b) quando
houver correção de erro material; ou ainda (c) quando for o caso de decretação de nulidade
absoluta, de ofício ou a requerimento das partes, formulado nos próprios embargos de
declaração. Nesses casos deverá haver contraditório, em consonância com o previsto na Lei
13.105/2015, Código de Processo Civil, e a posição já prevalente nos tribunais na vigência
do diploma processual civil de 1973 (ALVIM, 2016, p. 38-39).
Assim, como já afirmado acima, com a promulgação do Código de Processo Civil de
2015 surgiu a previsão expressa sobre o contraditório em sede de embargos de declaração
determinando que o julgador conceda prazo de 5 (cinco) dias para manifestação do
embargado, sempre que eventual acolhimento dos embargos implique a modificação da
decisão embargada, previsão do § 2º do art. 1.02310.
É uma fórmula equilibrada, visto que não se tolera que se modifique ou que se façam
acréscimos substanciais à decisão embargada sem que se conceda oportunidade ao
embargado para reação frente aos embargos.
Dessa forma, para inadmitir os embargos declaratórios, rejeitá-los ou acolhê-los em
situações nas quais não se modifique a decisão, o magistrado fica liberado de intimar o

8
Faz tempo que a sanção do erro material por meio dos embargos declaratórios tem sido aceita, malgrado a
ausência de previsão legal expressa. O Código de Processo Civil de 2015 referenda essa aceitação trazendo
segurança as partes. Torna-se indiscutível a pertinência dos embargos declaratórios para a veiculação de erro
material (BONDIOLI, 2015, p. 153).
9
“Considera-se erro material todo erro evidente, no sentido de ser facilmente verificável por qualquer homo
medius e que, obviamente, não tenha correspondido à intenção do juiz. Em havendo qualquer dificuldade em
demonstrar a percepção do erro, este descaracteriza-se como erro material, e como tal não pode ser corrigido
por mera petição ou pela interposição de embargos de declaração” (ALVIM, 2016, p. 38).
10
Art. 1.023. [...] § 2o O juiz intimará o embargado para, querendo, manifestar-se, no prazo de 5 (cinco) dias,
sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique a modificação da decisão embargada.
658

embargado previamente ao julgamento. Entretanto, quando os embargos forem dotados de


potencial para alterar ou ampliar o julgado, é necessária a oitiva do embargado (BONDIOLI,
2015, p. 154).
A intimação do embargado para responder ao recurso de embargos não é prenúncio
de acolhimento destes nem de alteração da decisão embargada. O termo “eventual” deixa
claro que existe a possibilidade de modificação ou acréscimos substancial, e não certeza
destes, o discrímen para que se convide o embargado a se manifestar (BONDIOLI, 2015, p.
154).

2.2 Efeito interruptivo do prazo recursal

Já previa o Código de Processo Civil de 1973, que o prazo para oposição dos
embargos declaratórios é diferenciado em relação aos demais recursos, qual seja, de 5 (cinco)
dias, contados da publicação do julgado11.
Conforme previsão legal do diploma processual civil de 2015, os embargos de
declaração interrompem o prazo para a interposição de recurso.12
Não obstante, com alguma frequência tem sido sustentado que a interrupção do prazo
recursal pressupõe o conhecimento dos embargos de declaração, certo é que a interrupção
do prazo resultante da interposição dos embargos declaratórios não se esvazia qualquer que
seja o resultado do recurso, salvo se forem opostos a destempo.
O reconhecimento da não interrupção, somente, pode defluir da intempestividade dos
embargos de declaração. A intempestividade constitui-se em fato objetivo, de fácil e direta
verificação por todos os que participam do feito, como sujeitos parciais ou como sujeito
imparcial (CARDILLO, 2001, p. 32).
Para Pedro Sobrinho Porto Virgolino (2012, p. 390-391), o Superior Tribunal de
Justiça já decidiu que os embargos declaratórios intempestivos não interrompem o prazo
para outro recurso. A Corte Especial firmou jurisprudência no entendimento de que apenas
nos caso de intempestividade dos embargos não haverá efeito interruptivo. Dita
jurisprudência é fundamentada em três premissas: 1) no fato da lei não exigir que o recurso

11
Art. 1.023. Os embargos serão opostos, no prazo de 5 (cinco) dias, em petição dirigida ao juiz, com indicação
do erro, obscuridade, contradição ou omissão, e não se sujeitam a preparo.
12
Art. 1.026. Os embargos de declaração não possuem efeito suspensivo e interrompem o prazo para a
interposição de recurso.
659

seja conhecido para produzir o efeito interruptivo (art. 538 do CPC); 2) na necessidade de
preservar esse efeito como meio de resguardar a segurança jurídica, já que na maioria das
vezes, o embargante não tem como saber de antemão se o recurso será admitido; 3) na
preclusão temporal operada pelo decurso in albis do prazo dos embargos, o que,
excepcionalmente, justifica a não produção do efeito interruptivo (BRASIL, 2004a; 2015b).
Quanto ao julgamento dos embargos de declaração, dúvida não há acerca da análise
de mérito quando da constatação de omissão de questão relevante ou obscuridade capaz de
comprometer-lhe a compreensão, ou ainda contradição capaz de prejudicar seu cumprimento
ou eficácia.
A dúvida existe quando o magistrado afirma a não ocorrência de omissão,
obscuridade ou contradição em seu julgado rejeitando os embargos, mesmo quando haja
feito constar na decisão que deles não conhece.
Para Barbosa Moreira (1999, p. 545) os embargos de declaração são apreciados no
mérito quando o órgão julgador diz que não existe a apontada omissão, contradição ou
obscuridade, como quando reconhece o defeito e o supre. Em qualquer dessas hipóteses
admitiu-se os embargos declaratórios, provendo-os ou não.
Em conformidade com o referido autor, adotar tese diversa seria um equívoco. Visto
que a intenção do legislador não foi de interromper o prazo recursal somente nos casos de
acolhimento dos embargos.
Daí considerar sempre e invariavelmente que os embargos de declaração que não
tenham sido admitidos ou recebidos, exsurgirá a consequência de ter-se como não
interrompido o prazo que, inobstante os embargos, teria continuado a fluir solto e
desembaraçado, vai um passo muitíssimo extenso, não autorizado por lei (CARDILLO,
2001, p. 32).
A interrupção é a regra que emana do Estatuto Processual Civil, segundo o qual “os
embargos de declaração não possuem efeitos suspensivo e interrompem o prazo para
interposição de recurso” (art. 1.026, caput, do Código de Processo Civil de 2015). Aplicar,
sob a previsão legislativa, orientação diversa da lei processual não se afigura aceitável. Visto
que instaurar-se-ia uma autêntica loteria judiciária, a depender exclusivamente do
subjetivismo do julgador e, ao mesmo tempo menosprezando a força inerente do texto legal
(CARDILLO, 2018, p. 255).
Leciona sobre a matéria Roberto Mortari Cardillo (2018, p. 256-258):
660

A propósito, a trilha seguida pelas decisões que consentem ao julgador penetrar


no âmago do conteúdo dos declaratórios, para desvendar-lhes – ou não –
propósitos extravagantes e conducentes a não lhes atribuir peso interruptivo do
prazo para outros recursos é perigosa e pode levar a violações de direitos
relevantes [...].
Os aclaratórios, portanto, sempre permanecem revestidos de poder interruptivo,
não sendo lícito investigar a sua substância intestina ou sua adequação ao molde
concebido pelo legislador: em suma, não se pode perquirir o mérito de seu
conteúdo intrínseco. A punição para os atos protelatórios já está especificada de
antemão e previamente delimitada no próprio diploma processual.

Para Elizabeth de Lima (2017, p. 139), a interruptividade13 é aplicada


independentemente de vir a ocorrer o provimento ou improvimento dos embargos
declaratórios, de modo que o prazo para interpor recurso é iniciado somente após o
julgamento dos embargos.
Quando opostos os embargos declaratórios, a contagem do prazo recursal deve
reiniciar a partir da data em que foi publicada a decisão daqueles, não sendo possível ao
magistrado dar interpretação diversa daquela determinada pela lei (BRUSCHI, 2008, p. 63).
A interrupção14 se dá na data da oposição dos embargos de declaração e vai até a data
da publicação da decisão que os julga. Recomeça, então, a fluir por inteiro o prazo para
interposição de outro recurso. Ou seja, o prazo será devolvido integralmente.
Acerca da interruptividade do prazo recursal, a jurisprudência do Superior Tribunal
de Justiça, a quem cabe a última palavra em nível infraconstitucional, é a respeito do tema
tranquilizadora (BRASIL, 2004b; 2008).
Tendo em vista a doutrina e a jurisprudência amplamente dominantes, o efeito
interruptivo do prazo opera sempre. Pois se assim não o fosse, ao não se interromper o prazo
toda vez que se verificar a inexistência, ainda que manifesta, de omissão, contradição ou

13
Em consonância com a previsão do CPC/2015 acerca dos embargos de declaração, igualou-se o rito
sumaríssimo no que tange à interrupção do prazo no momento da oposição dos embargos, ao considerar que o
prazo poderá ser interrompido tanto na norma atinente aos Juizados Especiais, que tinham orientação diversa,
como pela Lei geral, evitando, assim, equívocos processuais. Tal mudança foi de grande importância, visto que
ajudará a evitar que os profissionais de Direito cometam erros acerca da forma de contagem dos prazos
processuais, ao serem aplicados os institutos da interrupção e da suspensão.
14
Para Antonio Carlos Matteis de Arruda (2002, p. 217-218), “Como se trata de interrupção, isto significa que
o prazo já se escoou, após o proferimento da decisão obscura, contraditória ou omissa, em sendo interposto
Embargos de Declaração, é cancelado na íntegra – retornando o marco zero para ser contado novamente, desde
o início, logo após o julgamento e efetiva publicação da nova decisão, proferida nos Embargos de Declaração.
A interrupção do prazo vale para o embargante, embargos e para terceiros prejudicados e até para o Ministério
Público (CPC, art. 499) virem a interpor os recursos sequenciais cabíveis. Assim, todos os prazos dos demais
recursos cabíveis ficam sobrestados e só terão início, após a publicação da nova decisão, dos Embargos de
Declaração, para todas as partes e demais pessoas que possa ou tenham interesse em recorrer, da decisão
anterior”.
661

obscuridade, a parte embargante, sem poder contar com o acolhimento dos seus embargos
declaratórios, teria que interpor o recurso futuro conjuntamente com os embargos,
contrariando, assim, o intuito legislativo e a organicidade processual15.
Dessa forma, poderia abrir-se exceção, como já referido acima, tão-somente, para os
casos de embargos de declaração manifestamente intempestivos, quando sem qualquer
dúvida razoável (pela indiscutibilidade do dies a quo) já ultrapassado o prazo recursal e,
dessa forma, caracterizada uma litigância protelatória ou de má-fé (CARNEIRO, 2001, p.
09).
A questão que também surge dessa sistemática diz respeito ao fato de que, muitas
vezes, a parte contrária não tem ciência da oposição dos embargos declaratórios pela outra
parte, pelo que apresenta recurso que entende cabível, independentemente daquela oposição.
Nessas hipóteses, dúvida consiste em saber se a parte contrária, após a decisão acolhendo os
embargos de declaração, poderá ofertar recurso novamente ou, pelo menos, complementar o
arrazoado já interposto.
Na vigência do diploma processual de 1973, em que não havia disposição expressa
quanto à matéria, a doutrina era praticamente unânime no sentido de que a parte contrária,
por exceção ao princípio da consumação, poderia complementar o recurso já interposto,
ofertando impugnação relativa à parte declarada posteriormente pelo magistrado, em razão
dos embargos (AURELLI, 2011, p. 24).
O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, proferiu a Súmula 418, no sentido de que,
nessa hipótese, inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acordão
dos embargos de declaração, sem posterior ratificação.
Contudo, veio o Código de Processo Civil de 2015 a positivar essa questão, em caso
de acolhimento dos embargos declaratórios que implique em modificação da decisão

15
Um dos 5 (cinco) objetivos propostos pela Comissão de criação do Código de Processo Civil de 2015 na
exposição de motivos: “Com evidente redução da complexidade inerente ao processo de criação de um novo
Código de Processo Civil, poder-se-ia dizer que os trabalhos da Comissão se orientaram precipuamente por
cinco objetivos: 1) estabelecer expressa e implicitamente verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal;
2) criar condições para que o juiz possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática subjacente à
causa; 3)simplificar, resolvendo problemas e reduzindo a complexidade de subsistemas, como, por exemplo, o
recursal; 4) dar todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo considerado; 5) finalmente, sendo
talvez este último objetivo parcialmente alcançado pela realização daqueles mencionados antes, imprimir maior
grau de organicidade ao sistema, dando-lhe, assim, mais coesão” (BRASIL, 2015a).
662

embargada, o embargado que já tiver interposto outro recurso contra a decisão originária tem
o direito de complementar ou alterar suas razões, nos exatos limites da modificação16.
E mais, se os embargos de declaração forem rejeitados ou não alterarem a conclusão
do julgamento anterior, o recurso interposto pela parte contrária antes da publicação do
julgamento dos embargos será processado e julgado independentemente de ratificação17.

2.3 Embargos protelatórios e a incidência de multa

Como já referido acima, a oposição dos embargos de declaração traz como efeito
imediato a interrupção do prazo para a interposição de outros recursos. Diante dessa
característica, algumas partes se utilizam dos embargos com a finalidade de ganhar tempo
até o manejo do recurso principal.
Para esses casos, em que não se apresentam os vícios necessários a sua apresentação,
os embargos são considerados como protelatórios ou procrastinatórios18 e ensejam a
condenação ao pagamento de multa para aquele que os opôs, em valor não excedente a 2%
(dois por cento) sobre o valor da causa19.
O mesmo artigo prevê, ainda, que em caso de reiteração e mantida a intenção de
protelar o feito, a multa poderá ser elevada ao patamar de até 10% (dez por cento), mantida
a mesma base de cálculo, ficando condicionada a interposição de qualquer recurso ao
depósito prévio da multa arbitrada20.

16
Art. 1.024. [...] § 4o Caso o acolhimento dos embargos de declaração implique modificação da decisão
embargada, o embargado que já tiver interposto outro recurso contra a decisão originária tem o direito de
complementar ou alterar suas razões, nos exatos limites da modificação, no prazo de 15 (quinze) dias, contado
da intimação da decisão dos embargos de declaração. [...]
17
Art. 1.024. [...] § 5o Se os embargos de declaração forem rejeitados ou não alterarem a conclusão do
julgamento anterior, o recurso interposto pela outra parte antes da publicação do julgamento dos embargos de
declaração será processado e julgado independentemente de ratificação.
18
“Os embargos de declaração serão manifestamente procrastinatórios quando utilizados com o único fim de
ampliar o prazo para interposição de outros recursos ou, simplesmente, adiar o fim do processo “
(VIRGOLINO, 2012, p. 394). Para Luiz Guilherme Bondioli (2005, p. 276-277), “A aferição desse exclusivo
escopo passa pela caracterização do dolo do embargante, no sentido de querer deliberada e exclusivamente
protelar o andamento do feito. Esse querer protelar não pode ser presumido; deve-se manifestar de forma
flagrante e inequívoca e ter apoio em elementos objetivos e seguros, sempre analisados à luz do caso concreto”.
Não há necessidade de provar o dolo do embargante. Basta que da análise do recurso se conclua que a
impugnação não se presta a outro fim que não retardar a marcha processual. Importante é aferir se o embargante
pode obter algum benefício com a procrastinação do feito.
19
Art. 1.026. [...] § 2o Quando manifestamente protelatórios os embargos de declaração, o juiz ou o tribunal,
em decisão fundamentada, condenará o embargante a pagar ao embargado multa não excedente a dois por
cento sobre o valor atualizado da causa [...].
20
Art. 1.026. [...] § 3o Na reiteração de embargos de declaração manifestamente protelatórios, a multa será
elevada a até dez por cento sobre o valor atualizado da causa, e a interposição de qualquer recurso ficará
663

O legislador fixou duas normas sancionatórias no mesmo artigo em diferentes


parágrafos21, dando maior clareza às normas, diferentemente do que ocorria sob a égide do
Código de Processo Civil de 1973, em que as normas sancionatórias eram apresentadas num
mesmo parágrafo (art. 538, parágrafo único).
A primeira fixada com a construção no sentido de opostos os primeiros embargos
declaratórios protelatórios, deve ser aplicada multa de até 2% (dois por cento) sobre o valor
atualizado da causa, e a segunda expressada pelo juízo condicional de que dada a oposição
dos segundos embargos protelatórios, deve ser majorada a multa de 2% (dois por cento) para
até 10% (dez por cento), sobre o valor da causa atualizado, com imposição do seu
recolhimento como condição para a apresentação de novo recurso (BRASIL, 2018d).
Para Manoel Caetano Ferreira Filho (2001, p 331):

O substantivo reiteração não é utilizado em sentido literal no texto legal, mas sim
como sinônimo de reincidência. Portanto, não exige, que a parte renove, repita os
mesmos embargos já considerados protelatórios. Basta que, depois de já ter oposto
embargos assim considerados, torne a, no mesmo processo, interpor outros
embargos, ainda que de outra decisão, que sejam também reputados protelatórios.
Ou seja, basta que incida novamente (reincida) na mesma prática censurável.

Para o autor, o termo “reiteração” significa o oferecimento de novos embargos, ainda


que de decisão diversa dos primeiros embargos declaratórios, mediante os quais a parte tenta,
ainda uma vez, procrastinar o andamento da demanda.
Não há como concordar com o referido autor, visto que aqui o termo “reiteração”
deve ser compreendido como após a interposição pelo recorrente de embargos declaratórios
protelatórios, o mesmo torne a opor embargos daquela mesma decisão dos primeiros
embargos de declaração. Ou seja, para se falar na incidência de multa em que o depósito
prévio de seu valor seja condição para interposição de recurso, deve-se observar se a decisão
que ensejou a oposição dos dois embargos declaratórios é a mesma, porque se assim não o
for, inaplicável a penalidade.
Em resumo, quando se fala em “reiteração”, diz-se respeito a dois embargos de
declaração opostos contra uma mesma decisão. Opostos dois embargos contra diferentes
decisões, ainda que ambos protelatórios, não há se falar em aplicação da multa e a
condicionante do depósito prévio para interposição de recurso.

condicionada ao depósito prévio do valor da multa, à exceção da Fazenda Pública e do beneficiário de


gratuidade da justiça, que a recolherão ao final [...].
21
Art. 1026, §§ 2º e 3º, do Código de Processo Civil de 2015.
664

Conforme entendimento já pacificado perante os Tribunais Superiores, caberá à


oposição de embargos de declaração da decisão que contenha alguma das situações previstas
na lei, quais sejam, erro, omissão, contradição ou obscuridade. Atendidos os requisitos legais
necessários, e observado o prazo de natureza preclusiva de 5 (cinco) dias, caberá ao órgão
julgador proceder com uma avaliação quanto à sua regularidade formal e material, e se for o
caso, com a aplicação de multa22, se identificado o intuito do recurso de obstar o curso natural
da demanda (LIMA, 2017, p. 142).
No Código de Processo Civil de 1973, quando atribuído o caráter protelatório ao
recurso de embargos, havia a aplicação de multa de 1% (um por cento) sobre o valor da
causa (art. 538, parágrafo único). A partir da entrada em vigor do novo código processual de
2015, o percentual da multa a ser aplicado passou a ser de 2% (dois por cento) sobre o valor
da causa atualizado.
Dessa forma, com a nova lei processual civil, verifica-se um aumento e uma
atualização na penalidade aplicada quando da caracterização de embargos de declaração
meramente protelatórios. Já no caso de reiteração dos embargos protelatórios o Código de
Processo Civil de 2015 manteve o percentual máximo de 10% (dez por cento) aquele já
previsto do diploma processual de 1973, entretanto, também acrescentou a necessidade de
atualização do valor da causa.
Portanto, o embargante temerário, para interpor qualquer outro recurso, ficará sujeito
ao depósito do valor da multa. Caso contrário, a hipótese é de não conhecimento do recurso,
por ausência de um requisito de admissibilidade.
Para Nelson Monteiro Neto (2012, p. 67), a aplicabilidade do art. 1.026, § 3º, do
diploma processual de 2015, dispõe acerca da “interposição de qualquer outro recurso” e,
não unicamente em certos casos, de modo algum configura “interpretação ampliativa”23, mas
sim, caracteriza pura determinação do alcance da regra mencionada, em conformidade com
julgados do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2016; 2018a).
A expressão “interposição de qualquer outro recurso”, usada pelo legislador, está a
indicar com absoluta clareza, o alcance da regra em foco.

22
A multa deverá ser aplicada sobre o valor da causa, sendo este, devidamente corrigido.
23
Vale ressaltar a importância de julgado do STJ com “interpretação restritiva” no Recurso Especial n.
1.129.590, de relatoria do Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em outubro de 2011, em que entendeu o
julgador pela leitura restritiva do parágrafo único do art. 538, segunda parte, do Código de Processo Civil de
1973, que condiciona ao prévio depósito da multa a “interposição de qualquer outro recurso” alcançando o
termo “qualquer outro recurso” apenas aqueles pertencentes a mesma cadeia recursal.
665

A posição do Supremo Tribunal Federal revela a plena adoção do entendimento de


que o prévio recolhimento da multa aplicada por força da oposição de embargos
declaratórios reputados protelatórios, como forma de viabilizar o prosseguimento da
discussão, somente tem cabimento quando se tratar dos segundos embargos dessa natureza,
hipótese em que atrai igualmente a majoração da multa de 2% (dois por cento) para até 10%
(dez por cento).
A exigência do depósito do valor da multa não opõe barreiras, de modo ilegítimo, ao
direito de recorrer, mas sim procura combater ao abuso do exercício deste direito
(MONTEIRO NETO, 2012, p. 67).
Caso a parte entenda não se tratar de embargos declaratórios meramente protelatórios
ao andamento do feito, então, sobre o ponto, poderá interpor recurso especial, sob o
fundamento de inaplicabilidade do § 3º do art. 1.026 do Código de Processo de 2015, em
conformidade com julgados do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2018b; 2018c).
Cabe salientar, que quando os embargos forem acolhidos parcialmente, não poderá
ser arbitrada a referida multa, mesmo que a parte não acolhida seja considerada protelatória
pelo julgador, visto que a parte acolhida não tinha o caráter protelatório (LIMA, 2017, p.
143).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema abordado no presente trabalho é de suma importância para a sociedade e para


o mundo acadêmico-jurídico. O estudo desse instituto advém da necessidade de se primar
pela efetiva concretização do modelo constitucional do processo civil.
A oposição dos embargos de declaração não tem por objetivo a reforma de uma
sentença ou de um acórdão, mas sim de esclarecer trecho da decisão que deu ensejo a
oposição desse recurso. O que se busca é o exercício da retratação pelo magistrado que
proferiu a decisão embargada.
Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, promulgado em 18 de
março de 2016, que prevê de forma clara ser cabível os embargos de declaração contra todo
e qualquer pronunciamento do juiz, seja decisão interlocutória, sentença, decisão de relator,
de órgão colegiado etc. O legislador de 2015 corrigiu a imperfeição dos códigos anteriores
666

(1939 e 1973), que se referiam somente a sentença e acórdão como pronunciamentos


suscetíveis de serem impugnados por meio de embargos declaratórios.
A interrupção é a regra que emana do Estatuto Processual Civil, segundo o qual os
embargos de declaração interrompem o prazo para interposição de recurso. A
interruptividade é aplicada independentemente de vir a ocorrer o provimento ou
improvimento dos embargos declaratórios, de modo que o prazo para interpor recurso é
iniciado somente após o julgamento dos embargos.
Algumas partes se utilizam dos embargos com a finalidade de ganhar tempo até o
manejo do recurso principal. Para esses casos, em que não se apresentam os vícios
necessários a sua apresentação, os embargos são considerados como protelatório e ensejam
a condenação ao pagamento de multa para aquele que os opôs, em valor não excedente a 2%
(dois por cento) sobre o valor da causa.
O mesmo artigo prevê, ainda, que em caso de reiteração e mantida a intenção de
protelar o feito, a multa poderá ser elevada ao patamar de até 10% (dez por cento), mantida
a mesma base de cálculo, ficando condicionada a interposição de qualquer recurso ao
depósito prévio da multa arbitrada.
Importante ressaltar, que o embargante temerário, para interpor qualquer outro
recurso, ficará sujeito ao depósito do valor da multa.
Diante das considerações realizadas no presente artigo é possível concluir a
importância no manejo do recurso de embargos de declaração, visto que verificada a
tentativa de procrastinação do processo aplica-se multa, e havendo reiteração de embargos
protelatórios da mesma decisão, além da incidência de multa, há o condicionamento da
interposição de recurso ao depósito prévio da multa.
O tema demanda estudo pelos doutrinadores e observância pelos profissionais do
direito, o que se leu no decorrer deste trabalho foi apenas uma parte da importância que o
tema reflete.

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18 ago. 2004a.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Agravo Regimental nos


Embargos de Declaração no Recurso Especial n. 492936/RS. Relator: Ministro Antônio
de Pádua Ribeiro. Julgado em: 16 set. 2004b.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso Especial n. 1057781/PR.


Relator: Ministro Carlos Fernando Mathias. Julgado em: 19 jun. 2008.

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Relator: Ministro Raul Araújo. Julgado em: 16 dez. 2015b.

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Regimental em Mandado de Segurança n. 34029/SP. Relator: Ministro Roberto Barroso.
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Embargos de Declaração em Agravo Interno em Mandado de Segurança n. 35151/ DF.
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668

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jun. 2012.
669

A IMPORTÂNCIA DA TUTELA PROVISÓRIA PARA O


ORDENAMENTO JURÍDICO

Lizandra Duarte Rodrigues1

Resumo: O atual Código de Processo Civil trouxe diversas alterações para prática
processual civil, uma delas foi a inovação no procedimento de tutela provisória. Pretende-se
fazer um breve apanhado acerca do histórico da tutela provisória, anteriormente chamada de
antecipação de tutela. Verificar a aplicação jurídica da tutela provisória, conceituando cada
uma de suas espécies, demonstrando os requisitos gerais e específicos que devem ser
observados para o seu requerimento. A análise será realizada através de pesquisa
bibliográfica, utilizando-se de doutrinas e legislações conforme o método dedutivo.

Palavras Chave: Código de Processo Civil, Procedimento, Tutela Provisória.

1 INTRODUÇÃO

O tema em estudo tem por objetivo demonstrar a importância da Tutela Provisória


para a prática processual civil, visto que seu propósito é buscar e garantir a efetividade do
processo. Para melhor compreensão do assunto, o presente trabalho contém pesquisa
bibliográfica e análise do ordenamento jurídico, sobretudo do Código de Processo Civil.
Ademais, a fim de comprovar a necessidade de um mecanismo que garanta a
efetividade do processo será apresentado um breve histórico sobre o procedimento, tendo
em vista que os legisladores há diversos anos já dispõem em nosso ordenamento de práticas
semelhantes. Ainda, será realizada uma análise dos requisitos gerais que abrangem tanto a
tutela de urgência quanto a de evidência, passando-se na sequência a analisar os requisitos
específicos de cada procedimento.
Por fim, será analisada e conceituada a tutela provisória, observando-se suas
espécies: tutela de urgência, a qual é dividida em tutela cautelar (que visa resguardar o
direito) e tutela antecipada (que visa satisfazer o direito), e ainda, a tutela de evidência,
demonstrando-se os requisitos para concessão de ambas, falar-se sobre a fungibilidade entre

1
Graduada em Direito pela Universidade da Região da Campanha em 2014. Pós-Graduada em Direito
Processual Civil pela Universidade de Santa Cruz do Sul em 2018. Advogada, OAB/RS 114.773. Endereço
eletrônico: lizandra.dr@live.com
670

as tutelas, assim como acerca da restrição quanto ao perigo de irreversibilidade da tutela, da


possibilidade do juiz exigir a prestação de caução real ou fidejussória e ainda designar
audiência de justificação.

BREVE HISTÓRICO SOBRE A EVOLUÇÃO DA TUTELA PROVISÓRIA NO


BRASIL

A evolução histórica da antecipação de tutela no Brasil é associada à evolução do


Código de Processo Civil, pois os legisladores, desde a promulgação do primeiro Código de
Processo Civil em 1939, observaram a necessidade de acautelar alguns direitos, embora no
princípio fossem protegidos com algumas restrições.
Algumas medidas preventivas já previam hipóteses para antecipar a tutela legal,
embora apenas em casos específicos, como por exemplo, ação de alimentos provisionais e
ação de separação de corpos 2.
A concessão de tais medidas já era considerada um grande avanço à época e
demonstrava a preocupação dos legisladores em preservar o direito da parte. No entanto, foi
na vigência do Código de Processo Civil de 1973 que houve a alteração do disposto no artigo
273, mediante a Lei nº 8.952/94, passando a ser prevista a possibilidade de antecipação dos
efeitos da tutela, condicionada ao cumprimento de alguns requisitos.
Ademais, antes da introdução da antecipação da tutela através da Lei nº 8.952/94, o
Código de Defesa do Consumidor também já previa situações específicas para antecipação
da tutela 3.
Assim, levando em conta o crescimento das demandas judiciais e a impossibilidade
de julgamento célere de todos os procedimentos, bem como o alcance rápido da tutela
definitiva, verificou-se a necessidade de introdução de medidas assecuratórias.
Ainda, nesse sentido para Wambier a tutela provisória foi inserida em nosso
ordenamento jurídico para “debelar situações de perigo na demora; ou redistribuir o ônus do
tempo da tramitação processual, quando há grande evidência da razão do demandante,

2
PEREIRA, A. F. S. A efetividade da tutela antecipada de evidência no estado democrático de direito.
Rio de Janeiro: Lumen Juris Ltda, v. 12, 2016.
3
GONÇALVES, M. V. R. Novo curso de direito processual civil. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2015
671

embora o juiz ainda não tenha reunido elementos suficientes para o julgamento definitivo de
procedência”4.
Além disso, com a alteração do Código de Processo Civil, observou-se uma nova
sistemática para a tutela provisória, visto que foi possível observar a fusão da tutela
antecipada e das medidas cautelares, as quais passaram a fazer parte do procedimento da
tutela provisória, não mais possuindo livro específico e procedimento autônomo, conforme
diploma processual anteriormente vigente.
Outrossim, a antecipação de tutela além de passar a ser chamada de tutela provisória,
também foi dividida em duas espécies: tutela de urgência, a qual, por sua vez, é subdividida
em tutela de urgência cautelar e tutela de urgência antecipada; e tutela de evidência.
Conforme ensinamentos de Gonçalves, a tutela provisória poderia ser definida como
“a tutela diferenciada, emitida em cognição superficial e caráter provisório, que satisfaz
antecipadamente ou assegura e protege uma ou mais pretensões formuladas, em situação de
urgência ou nos casos de evidência”5.
No Código de Processo Civil de 1973 podíamos verificar procedimento autônomo
das medidas cautelares, ou seja, além da ação principal, poderia ser ajuizado procedimento
cautelar, o qual deveria ser instaurado antes ou no curso do processo principal, de modo
apartado e com dependência aos autos principais, consoante artigo 796 do diploma
mencionado.
Entre as medidas cautelares, estavam os procedimentos cautelares específicos, quais
sejam: arresto; sequestro; caução; busca e apreensão; exibição; produção antecipada de
provas; alimentos provisionais; arrolamento de bens; justificação; protestos, notificações e
interpelações; homologação de penhor legal; posse em nome de nascituro; atentado; do
protesto e da apreensão de títulos, e ainda, outras medidas provisionais previstas no artigo
888 do Código de Processo Civil de 1973.
Além disso, o artigo 798 do Código Processual anterior, também previa a
possibilidade de o juiz determinar outras medidas provisórias que julgasse adequadas,
observando fundado receio de que uma parte, antes do término da lide, pudesse causar ao
direito da outra lesão grave e de difícil reparação.

4
WAMBIER, L. R.; TALAMINI, E. Curso avançado de processo civil. 16ª. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 2, 2016, p. 861.
5
GONÇALVES, M. V. R. Direito processual civil esquematizado. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 454.
672

A partir do Código de Processo Civil de 2015, denota-se a ausência de previsão


acerca de procedimento autônomo das medidas cautelares, observando-se que as medidas
cautelares previstas anteriormente foram incluídas no procedimento da tutela de provisória
para garantir a efetivação da ordem judicial que concede a tutela.

3 REQUISITOS GERAIS DA TUTELA PROVISÓRIA

As espécies de tutela provisória no Código de Processo Civil foram diferenciadas em


tutelas provisórias de urgência e evidência. Ainda, as tutelas de urgência foram subdivididas
em antecipadas e cautelares, sendo tratadas no Código em dois capítulos, possuindo cada
uma delas procedimento distinto.
Na visão de Tartuce e Dellore, “o legislador processual adotou a expressão tutela
provisória para identificar a modalidade de tutela jurisdicional cujo objetivo não é resolver,
ao menos imediatamente, o mérito”6.
Cabe ressaltar, que a jurisdição ideal no Estado Democrático de Direito não busca
somente a prestação da tutela jurisdicional final e sim alcançar a tutela material aos litigantes,
também de forma sumária, visando evitar prejuízos futuros que possam comprometer a
efetividade da tutela final7.
Dessa forma, verificamos que a tutela provisória é um mecanismo criado para
abrandar os prejuízos causados pela demora na tramitação judicial, que visa garantir através
de medidas, a redução de prejuízos materiais decorrentes da espera pela tutela final.
O preenchimento de requisitos gerais e específicos deve ser observado pelos
procuradores quando do ajuizamento da petição inicial. Assim como nas demais ações de
conhecimento e demandas especiais, o requerimento de tutela de urgência também deve
observar o atendimento aos requisitos de admissibilidade, competência para ajuizamento da
ação, legitimidade, hipóteses de cabimento, efeitos que podem ser antecipados, entre outros.
A competência para ajuizamento da tutela provisória está prevista no artigo 299 do
Código de Processo Civil, o qual dispõe que:

6
TARTUCE, F.; DELLORE, L. Manual de prática civil. 13ª. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Forense, Método,
2017. rev. e atual, p. 149.
7
THEODORO JÚNIOR, H. Curso de direito processual civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2016.
revista, atualizada e ampliada
673

Art. 299. A tutela provisória será requerida ao juízo da causa e, quando


antecedente, ao juízo competente para conhecer do pedido principal.
Parágrafo único. Ressalvada disposição especial, na ação de competência
originária de tribunal e nos recursos a tutela provisória será requerida ao órgão
jurisdicional competente para apreciar o mérito8

Dessa forma, o requerimento da tutela quando for antecedente deverá observar o


juízo competente para conhecer do pedido principal ou quando incidente o juízo em que já
tramita o feito.
Assim, notamos que a competência para o requerimento da tutela provisória é
relacionada diretamente com ao pedido principal, seja referente ao processo em curso ou ao
pedido principal que será efetuado no decorrer da demanda, após o requerimento da tutela
antecedente.
Acerca da legitimidade para requerimento da tutela provisória, inicialmente, em
análise superficial e breve poderíamos considerar que a capacidade postulatória seria apenas
da parte autora, porém ao aprofundarmos o estudo acerca do tema verificamos a existência
de outros legitimados para efetuar o requerimento.
Denota-se que todas as partes possuem o direito de buscar em seu favor a tutela
definitiva, bem como sua proteção através da tutela provisória, visto que não só o autor
pretende provar os fatos constitutivos do seu direito, assim como o réu pretende demonstrar
a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, consoante
artigo 373 do Código de Processo Civil.
Desse modo, consoante demonstrado, não apenas o autor, mas também a parte
requerida, assistentes, litisconsortes, Ministério Público, na condição de parte e de
fiscalizador da lei, podem efetuar o requerimento, restando beneficiária a parte autora
quando as tutelas forem postuladas por assistentes da parte requerente ou pelo Parquet 9.

Assim, autor, réu, terceiros intervenientes (que, a partir da intervenção, se tornem


parte) podem requerer a antecipação provisória dos efeitos da tutela (satisfativa ou
cautelar), pois todos têm o direito à tutela jurisdicional e, uma vez preenchidos os
pressupostos de lei, também à antecipação provisória dos seus direitos 10

8
BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em 01 de setembro de 2020.
9
WAMBIER, L. R.; TALAMINI, E. Curso avançado de processo civil. 16ª. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 2, 2016
10
DIDIER JÚNIOR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. A. D. Curso de direito processual civil. 11ª. ed.
Salvador: JusPodivm, v. 2, 2016, p. 587.
674

Portanto, há que se observar que a legitimidade para requerimento da tutela abrange


as partes envolvidas no processo e o reflexo da decisão é alcançado diretamente as partes,
independente de quem tenha efetuado o requerimento.
Ademais sobre as hipóteses de cabimento do pedido de tutela provisória, podemos
verificar que o requerimento pode ser realizado em processos de conhecimento,
procedimentos especiais, ações rescisórias, execuções, ações possessórias em que passado
ano e dia para requerimento do procedimento especial e ainda em procedimentos especiais,
quando não atendidos os requisitos específicos e se fizerem presentes os requisitos da tutela
provisória11.
A lei não distingue os tipos de processo e formas de tutela em relação às quais a tutela
provisória pode ser concedida. Em princípio, ela é cabível em toda a espécie de atuação
12
jurisdicional cognitiva . Desse modo, verifica-se a ampla possibilidade de utilização da
tutela provisória na prática do processual civil.
Ademais, quanto ao momento de concessão da tutela, embora muitas vezes seja
confundido com o momento do seu requerimento, são coisas distintas, visto que o momento
da concessão leva em conta a decisão proferida pelo magistrado que decide pela concessão
ou não da tutela postulada pela parte, enquanto o momento do requerimento da tutela é
quando a parte postula sua concessão.
Na visão de Cambi:

A tutela provisória pode ser concedida in limine litis (liminarmente), ou seja, antes
mesmo da citação e manifestação – de qualquer ordem – do réu. No entanto, a
liminar não é a espécie de medida requerida pela parte, como, em não raras
oportunidades, se verifica no cotidiano forense, mas, sim, momento em que uma
medida – no caso, a tutela provisória – é concedida: no limiar do processo. Em
suma, a tutela provisória pode ser requerida liminarmente; porém, seu julgamento
não necessariamente será decidido em caráter liminar 13.

Dessa forma, mesmo que não ocorra o deferimento da tutela provisória de modo
liminar pelo magistrado, pode ocorrer nova análise durante a tramitação do processo, bem
como posteriormente, inclusive em fase recursal, caso futuramente estejam preenchidos os
requisitos necessários.

11
THEODORO JÚNIOR, H. Curso de direito processual civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2016.
revista, atualizada e ampliada
12
WAMBIER, L. R.; TALAMINI, E. Curso avançado de processo civil. 16ª. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 2, 2016
13
CAMBI, E. Curso de Processo Civil Completo. São Paulo: Revista dos Tribunais Ltda, 2017, n.p p.
675

Outros aspectos importantes sobre a tutela provisória são refletidos na forma de sua
efetividade, possibilidade de sua revogação e cessação de sua eficácia.
Na forma do artigo 297 do Código de Processo Civil: “O juiz poderá determinar as
medidas que considerar adequadas para a efetivação da tutela provisória”14. Ainda, o
parágrafo único do artigo acima mencionado, menciona que a efetivação observará as
normas relativas ao cumprimento provisória de sentença, no que couber.
Conforme ensinamentos de Nery Júnior e Nery:

Resta inalterado o poder geral cautelar, conferido ao juiz pelo CPC 297. Mas isso
já poderia ser deduzido a partir do fato de que não há mais especificação de
procedimentos cautelares para determinados casos, de forma que as possibilidades
são amplas tanto para o jurisdicionado como para o juiz. Sobre tutela da urgência
e da evidência e o poder público 15

Dessa forma, cabe ao magistrado determinar as medidas necessárias e mais


adequadas para o cumprimento da tutela provisória.
Além disso, acerca da possibilidade de revogação e cessação da eficácia da tutela
provisória, podemos verificar o disposto no artigo 296 do Código de Processo Civil: “A
tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer
tempo, ser revogada ou modificada”.
Dessarte, levando em conta que a tutela provisória é concedida através de uma
decisão interlocutória com caráter temporário, na maioria das vezes com base em cognição
sumária, é necessário que haja a possibilidade de sua alteração, revogação e até mesmo
cessação de sua eficácia.

A possibilidade de revisão da decisão que concede tutela provisória coaduna-se


com a própria característica de provisoriedade da medida, que existe apenas
enquanto a decisão definitiva não a substituir. Proferida por meio de uma cognição
não exauriente, com limite de duração predeterminado – enquanto a sentença não
vier a tomar seu lugar –, é indiscutível o seu caráter provisório, como já
devidamente demonstrado16.

14
BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em 01 de setembro de 2020
15
NERY JÚNIOR, N.; NERY, R. M. D. A. Código de processo civil comentado. 3ª. ed. São Paulo: Thomsom
Reuters Brasil, 2018. Disponivel em:
<https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fcodigos%2F113133203%2F
v17.13&titleStage=F&titleAcct=i0ace3e340000016220a49ac4070be36b#sl=e&eid=902b83057ae75e98d9f4
6b2543d634f1&eat=&pg=&psl=&nvgS=false>. Acesso em: 07 Maio 2018, p. n.p.
16
NEVES, D. A. A. Manuel de Direito Processual Civil. 8ª. ed. Salvador: JusPodvim, v. único, 2016, p. 817.
676

Importante destacar que a suspensão do processo não possui o condão de cessar ou


suspender a eficácia da tutela concedida17. Assim, a revogação da tutela provisória ocorrerá
mediante nova decisão proferida pelo magistrado, em decorrência de eventual alteração dos
elementos presentes no processo, bem como em razão de eventual sentença contrária ao
deferimento da tutela.
Por sua vez, “a perda da eficácia consiste ou em sanção imposta ao autor que, tendo
obtido a tutela, não tomou providências a seu cargo, necessárias para mantê-la, ou como
consequência natural da extinção do processo ou da improcedência do pedido principal18.
Portanto, podemos verificar a distinção entre a revogação da tutela e a cessação da
eficácia, as quais demonstram que não há imutabilidade da tutela provisória concedida em
juízo.
Por fim, é importante destacar que, muitas vezes, em decorrência da precariedade dos
elementos que embasam o pedido de tutela provisória, a decisão é proferida de modo
precário, tendo assim, o legislador previsto a possibilidade de indenização para a parte
prejudicada com a medida 19
Além disso, além da responsabilização civil, a parte postulante ainda deverá observar
a impossibilidade de efetuar diversos requerimentos idênticos de tutela provisória.
Conforme ensinamentos de Theodoro Júnior:

A tutela cautelar fundamenta-se em fatos justificadores da pretensão de obter-se,


ao longo da duração do processo, medida adequada para afastar o perigo de dano.
Se os fatos alegados pela parte e apreciados pelo juiz não foram tidos como hábeis
a autorizar a cautela ou se a cautela deferida com base neles veio a se extinguir
pelas razões enumeradas no art. 309, a renovação da pretensão de se obter medida
preventiva só será acolhida se fundada em novos fatos 20.

17
Art. 296. A tutela provisória conserva sua eficácia na pendência do processo, mas pode, a qualquer tempo,
ser revogada ou modificada. Parágrafo único. Salvo decisão judicial em contrário, a tutela provisória
conservará a eficácia durante o período de suspensão do processo.
18
GONÇALVES, M. V. R. Direito processual civil esquematizado. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 463.
19
Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a
efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se: I - a sentença lhe for desfavorável; II - obtida
liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no
prazo de 5 (cinco) dias; III - ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal; IV - o juiz
acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.Parágrafo único. A indenização será
liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.
20
THEODORO JÚNIOR, H. Curso de direito processual civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2016.
revista, atualizada e ampliada, p. 659.
677

Portanto, não ocorrendo o deferimento com base nas provas trazidas pela parte
postulante, ou ainda, tendo o requerente dado razões a extinção, não poderá com base nas
mesmas provas apresentadas requerer novamente a tutela.

3.1. Tutela de evidência e pressupostos específicos

A tutela de evidência se baseia na evidência de provas apresentadas pela parte que


postula sua concessão, devendo o postulante da medida observar as quatro hipóteses
previstas no artigo 311 do Código de Processo Civil.
Conforme Pereira:

[...] vale lembrar que, no Código de Processo Civil de 1973, os artigos que previam
a concessão da tutela antecipada sem o requisito da urgência não eram
classificados separadamente como tutela antecipada de evidência. No Código de
Processo Civil de 1973, havia a possibilidade de concessão da tutela antecipada
sem o requisito de urgência na hipótese do artigo 273, caput e inciso II ( prova
inequívoca, verossimilhança das alegações e abuso do direito de defesa ou
manifesto intuito protelatório do réu) e na hipótese do artigo 273, § 6º ( quando
parte dos pedidos do autor forem incontroversos, ou seja, não impugnados pela
parte contrária 21

Desse modo, denota-se que a tutela de evidência, embora somente no código


processual vigente tenha sido expressamente nomeada, já era anteriormente aplicada nas
hipóteses acima mencionadas.
Assim, a tutela de evidência pretende assegurar o alcance da tutela provisória a parte
que comprove de modo evidente, ainda que não definitivo, ou seja, ainda que transitório, a
maior probabilidade de alcance da tutela final postulada22

3.1.1 Hipóteses de concessão da tutela de evidência conforme previsão do artigo 311 e


incisos do Código de processo Civil.

Inicialmente, o artigo 311, inciso I do Código de Processo Civil dispõe acerca da


primeira situação em que a tutela de evidência pode ser concedida, qual seja, “ficar
caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto proposito protelatório da parte”.

21
PEREIRA, A. F. S. A efetividade da tutela antecipada de evidência no estado democrático de direito. Rio de
Janeiro: Lumen Juris Ltda, v. 12, 2016, p. 105.
22
THEODORO JÚNIOR, H. Curso de direito processual civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2016.
revista, atualizada e ampliada
678

Nesse caso, caberá a parte requerente demonstrar os atos protelatórios e/ou o abuso
de defesa, assim como demonstrar a evidência de seu direito, trazendo elementos que
amparem seu pedido.
Ainda, importante salientar que a medida não é deferida apenas em benefício da parte
autora, pois também pode ser concedida em favor da parte demandada, visto que os atos
protelatórios podem ser igualmente praticados pela parte requerente, assim como a
demonstração de evidências do direito podem ser apresentadas pela parte requerida 23.
Ainda, na concepção de Mitidiero24:

O art.311, I, CPC, deve ser lido como uma regra aberta que permite a antecipação
da tutela sem urgência em toda e qualquer situação em que a defesa do réu se
mostre frágil diante da robustez dos argumentos do autor- e da prova por ele
produzida- na petição inicial. Em suma: toda vez que houver apresentação de
defesa inconsistente.

Desse modo, o procedimento do inciso I, acima mencionado, visa atender aos anseios
da parte referente ao direito evidente apresentado de modo sumário, cujo andamento moroso
do processo e o comportamento da parte contrária trariam significativos prejuízos, caso fosse
aguardado o provimento da tutela final.
Por sua vez, o artigo 311, inciso II do Código de Processo Civil dispõe que pode
ocorrer a concessão da tutela de evidência quando “as alegações de fato puderem ser
comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos
repetitivos ou em súmula vinculante”.
Neste caso, denota-se que o legislador optou por restringir a hipóteses de produção
de prova, limitando a parte a produzir prova documental para demonstrar o direito evidente.
Conforme Didier Júnior, Braga e Oliveira25, a tutela de evidência necessita do
preenchimento de dois requisitos, quais sejam:

a) o primeiro deles é a existência de prova das alegações de fato da parte requerente [...]
i)necessariamente documental ou documentada [...] ii) recair sobre fatos que justificam o
nascimento do direito afirmado [...] Esse pressuposto é desnecessário quando o fato gerador
do direito não depender de prova [...] como fato notório, o fato confessado, o fato
incontroverso, o fato presumido.

23
ALVIM, J. E. C. Nova tutela provisória. Curitiba: Juruá, 2016.
24
MITIDIERO, D. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. Da tutela cautelar à técnica antecipatória. 3º. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. rev., atual. e ampl, p. 160.
25
DIDIER JÚNIOR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. A. D. Curso de direito processual civil. 11ª. ed.
Salvador: JusPodivm, v. 2, 2016, p. 637.
679

b) o segundo é a probabilidade de acolhimento da pretensão processual, que se configura


exatamente em razão do fundamento normativo da demanda consistir em tese jurídica
firmada em precedente obrigatório.

Desta maneira, a parte que pretenda postular a tutela de evidência com fundamento
no artigo 311, II do Código de Processo Civil deverá preencher os requisitos necessários
para sua concessão, conforme mencionado acima.
Ademais, de acordo com inciso III, do artigo 311 do Código de Processo Civil,
poderá ser concedida a tutela de evidência quando “se tratar de pedido persecutório fundado
em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem
de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa”.
Conforme Mitidiero26:

A hipótese do inciso III do art. 311, CPC, consiste em permitir tutela antecipada
com base no contrato de depósito- trata-se de hipótese que veio tomar o lugar do
procedimento especial de depósito previsto no direito anterior. Estando
devidamente provado o depósito (arts. 646 e 648, CC), tem o juiz que determinar
a entrega da coisa.

Assim, levando em conta que houve a exclusão do procedimento especial de depósito


no atual código vigente, o inciso III do artigo já mencionado, prevê a possibilidade de
concessão da tutela, mediante a comprovação do depósito através de prova documental.
Por último, o inciso IV do artigo 311 do Código de Processo Civil prevê a
possibilidade de concessão da tutela de evidência quando “a petição inicial for instruída com
prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não
oponha prova capaz de gerar dúvida razoável”.
Nesse caso, verifica-se que após a citação do requerido, não havendo produção de
prova, em sede de contestação, capaz de gerar dúvida acerca da tutela pretendida pelo autor,
e ainda, havendo prova documental comprovando adequadamente os fatos constitutivos do
direito do requerente, poderá o juiz conceder a tutela de evidência.
Por fim, observa-se que em todos os incisos é necessário que a parte postulante
demonstre elementos que evidenciem seu direito, requisito fundamental para tutela de
evidência.

26
MITIDIERO, D. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. Da tutela cautelar à técnica antecipatória. 3º. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. rev., atual. e ampl, p. 160.
680

3.2 Tutela de urgência e pressupostos específicos

A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que demonstrem a


probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, assim
dispõe o artigo 300 do Código de Processo Civil.
Para Wambier e Talamini27 :

A concessão da tutela urgente subordina-se aos requisitos da probabilidade do


direito e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (art. 300, caput,
do CPC/2015). Tradicionalmente esses dois pressupostos são designados pela
doutrina por expressões latinas: fumus boni iuris ("aparência do bom direito”) e
periculum in mora (perigo na demora), respectivamente.

Dessa forma, para análise dos requisitos da tutela de urgência caberá ao juiz verificar
se a parte demonstrou a ocorrência de risco ao resultado útil do processo ou perigo de dano,
ou seja, a parte deverá demonstrar que poderá ocorrer prejuízos ao final da demanda caso
não sejam tomadas medidas que assegurem a possibilidade de alcance ao objeto da demanda
em eventual procedência do pedido.
Ressalta-se que as tutelas de urgências podem ser pleiteadas de forma incidental, ou
seja, durante a tramitação do processo ou em conjunto com seu ajuizamento, ou ainda, de
forma antecedente, ou seja, preliminarmente ao ajuizamento do pedido principal, o qual será
realizado nos mesmos autos posteriormente.

3.2.1 Tutela de urgência cautelar em caráter antecedente.

A tutela de urgência cautelar possui o objetivo de dar proteção, preservação ao


processo, acautelando direitos, ou seja, assegurando, através de medidas de resguardo, que
ao final do processo o objeto da lide esteja preservado.
Nas lições de Didier Júnior, Braga e Oliveira28, “a tutela provisória cautelar
antecedente é aquela requerida dentro do mesmo processo em que se pretende,
posteriormente, formular o pedido de tutela definitiva, cautelar e satisfativa”.

27
WAMBIER, L. R.; TALAMINI, E. Curso avançado de processo civil. 16ª. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 2, 2016, p. 452
28
DIDIER JÚNIOR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. A. D. Curso de direito processual civil. 11ª. ed.
Salvador: JusPodivm, v. 2, 2016, p. 626
681

Desse modo, caso a parte necessite de urgência na proteção, mas não deseje ou não
possua condições de apresentar o pedido principal, é facultado a ela promover o
requerimento cautelar preparatório 29.
Na forma do artigo 305 do Código de Processo Civil, “a petição inicial da ação que
visa à prestação de tutela cautelar em caráter antecedente indicará a lide e seu fundamento,
a exposição sumária do direito que se objetiva assegurar e o perigo de dano ou o risco ao
resultado útil do processo”.
Ademais, o diploma processual civil em seu artigo 301 enumera algumas formas de
efetivação da tutela cautelar, quais sejam, arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro
de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do
direito.
Caberá ao juiz efetuar a análise do requerimento da tutela, e, estando preenchidos os
requisitos para recebimento da inicial e para o deferimento da tutela cautelar deverá
determinar o cumprimento da medida e a citação do réu, observando que o prazo para
contestar é de 05 (cinco) dias, na forma do artigo 306, do Código de Processo Civil.
Ainda, destaca-se a possibilidade de o magistrado não conceder a tutela de modo
liminar, ou seja, de imediato, sendo facultado a ele a designação de audiência de justificação,
caso a prova documental apresentada pela parte autora não tenha sido hábil para o
convencimento do juiz. Neste momento serão ouvidos autor e testemunhas.30
Não havendo apresentação de contestação, caberá ao magistrado decidir no prazo de
05 (cinco) dias, visto que presumir-se-ão verdadeiros os fatos alegados pela parte
demandante (artigo 307, CPC). Apresentada contestação, o processo prosseguirá observando
o rito comum (parágrafo único, artigo 307, CPC).
Importante ressaltar que será observado no procedimento da tutela cautelar
antecedente, a efetividade da medida concedida pelo juízo, visto que não havendo o seu
cumprimento por desídia da parte autora, no prazo de 30 dias, será cessada sua eficácia.
Por outro lado, efetivada a tutela, contar-se-á o prazo de 30 (trinta) dias para o
requerente postular a tutela definitiva satisfativa, caso já não tenha o feito com a inicial, sob

29
WAMBIER, L. R.; TALAMINI, E. Curso avançado de processo civil. 16ª. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 2, 2016
30
WAMBIER, L. R.; TALAMINI, E. Curso avançado de processo civil. 16ª. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, v. 2, 2016
682

pena de cessação da medida cautelar, bem como extinção do feito sem julgamento de
mérito31. Ainda, para Gonçalves 32:

Se o pedido principal for formulado após o prazo de trinta dias, nem por isso o juiz
deverá indeferi-lo. A perda do prazo não impedirá a apresentação do pedido
principal, mas implicará a perda de eficácia da tutela cautelar, que o juiz
pronunciará de ofício, determinando a cessação dos efeitos da medida.

Havendo apresentação do pedido principal, caberá ao magistrado designar audiência


de mediação e conciliação (artigo 308, §4º). Não havendo composição entre as partes, o
processo seguirá com abertura de prazo de 15 (quinze) dias para contestação do pedido
principal, prosseguindo na sequência com o procedimento comum.
Além das hipóteses acima mencionadas, cessará a eficácia da tutela concedida em
caráter antecedente, quando o juiz julgar improcedente o pedido principal formulado pelo
autor ou extinguir o processo sem resolução de mérito (artigo 309, III, CPC).
Ainda, para Didier Júnior, Braga e Oliveira33“[...] a despeito do silêncio da lei, se a
sentença for de procedência do pedido principal, depois de definitivamente efetivado e
satisfeito o direito objeto do pedido, cessará a eficácia da tutela cautelar, que perde a
utilidade de acautelar um direito já realizado”.
Portanto, verifica-se que a tutela cautelar requerida em caráter antecedente é
importante ferramenta para atividade prática processual, visto que assegura, de modo
antecipado, a proteção, preservação da tutela pretendida ao final da demanda, assegurando
assim o resultado útil e eficaz do processo.

3.2.2 Tutela de urgência antecipada antecedente

Ao contrário da tutela de urgência cautelar, a tutela de urgência antecipada visa


adiantar os efeitos da tutela definitiva satisfativa.
O procedimento para requerimento e concessão da tutela antecipada requerida em
caráter antecedente está previsto nos artigos 303 e 304 do Código de Processo Civil.

31
DIDIER JÚNIOR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. A. D. Curso de direito processual civil. 11ª. ed.
Salvador: JusPodivm, v. 2, 2016.
32
GONÇALVES, M. V. R. Direito processual civil esquematizado. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 501 e
502.
33
DIDIER JÚNIOR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. A. D. Curso de direito processual civil. 11ª. ed.
Salvador: JusPodivm, v. 2, 2016, p. 629.
683

Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição


inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela
final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano do risco
ao resultado útil do processo (artigo 302, Código de Processo Civil).
Dessa forma, poderá o autor efetuar o requerimento inicial da tutela antecipada,
sendo necessário apenas indicar o pedido principal, o qual posteriormente será realizado nos
próprios autos do requerimento da tutela, mediante a juntada de petição simples34.
Não obstante, a ausência de necessidade de fundamentação do pedido principal, visto
que haverá prazo para aditamento da inicial, o autor deverá indicar o valor da causa no
momento em que realizar o pedido de tutela antecipada, considerando o pedido de tutela
final, pois deverá efetuar, desde já, o recolhimento das respectivas custas processuais.
Além disso, na forma do artigo 300, §3º, do Código de Processo Civil, “a tutela de
urgência de natureza antecipada não será concedida quando houver perigo de
irreversibilidade dos efeitos da decisão”.
Porém, o enunciado 419 do Fórum Permanente de Processualista Civis dispõe que
“Não é absoluta a regra que proíbe tutela provisória com efeitos irreversíveis’’.
Desse modo, caberá ao magistrado efetuar a análise de eventual hipótese de
irreversibilidade, sopesando os prejuízos da irreversibilidade com eventual prejuízo de
ordem material.
Outrossim, ausentes elementos de comprovação dos requisitos para concessão da
tutela pelo magistrado, será determinada a intimação do requerente para promover a emenda
da petição inicial, em cinco dias, sob pena de ser indeferida e de o processo ser extinto sem
resolução do mérito (artigo 303, §6º, CPC)
Ademais, acerca da continuidade do procedimento, não sendo o caso de estabilização
da tutela, o processo prosseguirá pelo rito comum, com realização de saneamento, instrução
e decisão da tutela final.
Para a concessão da estabilização de tutela provisória satisfativa, deverão ser
observados alguns pressupostos, requerimento do autor de tutela antecipada antecedente,

34
TARTUCE, F.; DELLORE, L. Manual de prática civil. 13ª. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Forense, Método,
2017. rev. e atual.
684

ausência de pedido acerca da tutela final, deferimento pelo magistrado da tutela satisfativa
antecedente, e por última ausência de impugnação pelo requerido35.
Dessa forma, não havendo recurso da parte demandada, tornar-se-á estável a decisão,
ocorrendo a extinção do processo, na forma do § 1º do artigo 304 do Código de Processo
Civil.
Nos ensinamentos de Mitidiero:

A questão que ora mais interessa, porém, está ligada a hipótese em que a tutela
antecipada é deferida, ocorre o aditamento da petição inicial pelo autor e é
cientificado o réu da decisão que concede a tutela sumária. Isso porque o processo
só prosseguirá rumo à audiência de conciliação e mediação, se o réu interpuser
agravo de instrumento contra a decisão que antecipou a tutela (art.304). Se não o
fizer, a decisão torna-se estável e o processo é extinto (art. 304,§§ 1º, 3º, 5º e 6º).
Vale dizer: o juízo a respeito da tutela antecipada permanece procedimentalmente
autônomo e a decisão provisória torna-se estável. Com isso incentivado pela
doutrina, o legislado logra intento de autonomizar e estabilizar a tutela antecipada
36
.

Assim, ausente interposição de recurso pela parte requerida, litisconsorte ou


assistente simples, bem como não havendo complementação da petição inicial pela parte
autora, estabilizar-se-á a tutela antecipada, consoante artigo 304, §1º do Código de Processo
Civil37.
No entanto, a decisão que concedeu a tutela de urgência antecipada seguirá
produzindo seus efeitos enquanto não revista, reformada ou invalidada por decisão de mérito
proferida.
Além disso, a extinção da ação da demanda, quando ausente recurso da parte
contrária, bem como ausente complementação da peça inicial, ocorre em decorrência de ter
se exaurido o feito, pois já obtida a liminar 38
Ademais, no § 2º, do artigo 304, do Código de Processo Civil está definido que
“Qualquer das partes poderá demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar
a tutela antecipada estabilizada nos termos do caput.”

35
DIDIER JÚNIOR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. A. D. Curso de direito processual civil. 11ª. ed.
Salvador: JusPodivm, v. 2, 2016.
36
MITIDIERO, D. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. Da tutela cautelar à técnica antecipatória. 3º. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. rev., atual. e ampl, p. 145.
37
DIDIER JÚNIOR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. A. D. Curso de direito processual civil. 11ª. ed.
Salvador: JusPodivm, v. 2, 2016
38
THEODORO JÚNIOR, H. Curso de direito processual civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2016.
revista, atualizada e ampliada., p. 677.
685

Para Gonçalves39:

A estabilidade pressupõe que tenha sido extinto, sem resolução de mérito, o


processo em que deferida a antecipação, mas sem que o réu tenha agravado da
tutela provisória antecipada. A medida, deferida em cognição sumária, será eficaz
e poderá ser efetivada na forma de cumprimento provisório de sentença (art. 297,
parágrafo único, do CPC). Mas ela ainda não terá se tornado definitiva. A
estabilidade não se confunde com a definitividade, e uma medida estável não
estará revestida da autoridade da coisa julgada material (art. 304, § 6º). Porém, ela
impede o juiz de, a qualquer tempo, revogar, modificar ou invalidar a medida,
como ocorre quando há processo em curso.

Ainda, para que possa ocorrer a revisão da tutela concedida e estabilizada será
necessário demandar nova ação, pois tendo ocorrido a extinção da ação anterior, somente
com o ajuizamento de nova demanda, e por decisão de mérito poderá alterada a estabilidade
já concedida.
Dessa forma, a única forma de reverter a estabilização da tutela, seja para a parte
requerida ou até mesmo para a parte autora, será o ajuizamento de nova demanda, sendo
facultada a qualquer das partes solicitar o desarquivamento dos autos em que foi concedida
a medida, para instruir a petição inicial da ação a que se refere o § 2o, ficando prevento o
juízo em que a tutela antecipada foi concedida, conforme artigo 304, § 4º do Código de
Processo Civil.
Ante o exposto, constata-se que ambas as tutelas, antecipada ou cautelar, possuem a
função de garantir o exercício do direito pela parte que, no final da lide obtenha a
procedência da demanda, visto que poderá a mesma exercer o direito mediante antecipação
dos efeitos, ou ainda, ao final restará integro o objeto da demanda para lhe ser alcançado.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho produzido demonstrou a importância da Tutela Provisória para a prática


processual, elucidando vários aspectos de cada espécie de tutela provisória, destacando as
formas de requerimento de cada uma para que possam ser utilizadas em busca da efetividade
da tutela final.
O assunto foi desenvolvido com o objetivo de esclarecer dúvidas sobre esta matéria
de difícil compreensão dentro do Direito Processual Civil, a fim de auxiliar a prática
processual.

39
GONÇALVES, M. V. R. Direito processual civil esquematizado. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016., p. 493
686

A tutela provisória é um mecanismo de extrema importância para a prática


processual, visto que, mediante o preenchimento de requisitos de cada espécie, é
possibilitado ao magistrado a concessão de medidas que garantam o acautelamento ou a
satisfação do direito pretendido pela parte, conforme o caso específico.
Dessa forma, para entendimento da tutela provisória, foi realizada uma breve
introdução histórica sobre o tema, destacando-se seus aspectos e evolução dentro do
ordenamento jurídico.
Ademais, foi analisada a tutela provisória, demonstrando-se cada hipótese de
concessão da tutela de urgência e da tutela de evidência, esclarecendo os aspectos gerais e
específicos de cada uma delas.
Na tutela de urgência foram averiguados os requisitos específicos para sua concessão,
descritos no artigo 300 do Código de Processo Civil, quais sejam, a probabilidade do direito
e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Ainda, acerca da tutela de urgência,
verificou-se sua subdivisão em relação aos procedimentos para realização de seu
requerimento, visto que pode ser requerida de modo antecipado ou incidental, dependendo
da situação fática em questão. Ainda, foi analisada a possibilidade de estabilização da tutela.
Sobre a tutela de evidência foi observado que não depende do requisito de urgência,
visto que, para sua concessão basta que a parte demonstre o preenchimento de uma das
hipóteses descritas no artigo 311 do Código de Processo Civil, ou seja, fique caracterizado
o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; que as alegações
de fato possam ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em
julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; que se trate de pedido
reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito; e ainda,
que a petição inicial seja instruída com documentos comprovatórios dos fatos constitutivos
do direito do autor, e que não sejam impugnados pelo réu.
Diante do exposto, constata-se a importância do conhecimento acerca da tutela
provisória, pois levando em conta que, na maioria das vezes, é buscado um direito decorrente
de urgência, é essencial que os operadores do direito saibam diferenciar cada um dos
requerimentos, considerando inclusive a possibilidade de estabilização da tutela antecipada
requerida em caráter antecedente, bem como a concessão de medidas assecuratórias com
base na evidência do direito.
687

REFERÊNCIAS

ALVIM, J. E. C. Nova tutela provisória. Curitiba: Juruá, 2016.

BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em 01
de setembro de 2020

CAMBI, E. Curso de Processo Civil Completo. São Paulo: Revista dos Tribunais Ltda,
2017.
n.p p.

DIDIER JÚNIOR, F.; BRAGA, P. S.; OLIVEIRA, R. A. D. Curso de direito processual


civil. 11ª. ed. Salvador: JusPodivm, v. 2, 2016.

GONÇALVES, M. V. R. Novo curso de direito processual civil. 12ª. ed. São Paulo:
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GONÇALVES, M. V. R. Direito processual civil esquematizado. 6ª. ed. São Paulo:


Saraiva, 2016.

MARINONI, L. G.; ARENHART, S. C.; MITIDIERO, D. Curso de processo civil. 2ª. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, 2016.

MITIDIERO, D. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. Da tutela cautelar à técnica


antecipatória. 3º. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. rev., atual. e ampl.

NERY JÚNIOR, N.; NERY, R. M. D. A. Código de processo civil comentado. 3ª. ed. São
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NEVES, D. A. A. Manuel de Direito Processual Civil. 8ª. ed. Salvador: JusPodvim, v.


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PEREIRA, A. F. S. A efetividade da tutela antecipada de evidência no estado


democrático de direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris Ltda, v. 12, 2016.

TARTUCE, F.; DELLORE, L. Manual de prática civil. 13ª. ed. Rio de Janeiro, São Paulo:
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THEODORO JÚNIOR, H. Curso de direito processual civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense, v. I, 2016. revista, atualizada e ampliada.
688

WAMBIER, L. R.; TALAMINI, E. Curso avançado de processo civil. 16ª. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, v. 2, 2016.
689

FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E SEUS DESDOBRAMENTOS NAS


RELAÇÕES MULTIPARENTAIS

Lorrayne dos Santos Alves1


Marigley Leite da Silva de Araujo2

Resumo: O presente artigo propõe-se a verificar se o estado de filiação comporta o


reconhecimento de múltiplos vínculos parentais. Com o advento de novos modelos
familiares, em especial da família recomposta, vem ocorrendo à cumulação da filiação
socioafetiva com os demais tipos de filiação e em decorrência disso, não raras vezes, a
criança passa e ter mais de dois genitores. Tal fenômeno social passou a ser objeto de
discussão entre doutrinadores e juristas do país inteiro até que a problemática chegou aos
Tribunais e, a partir desse momento, houve a necessidade de repensar o Direito de Família
como um todo. Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal recentemente, através da
Repercussão Geral n.º 622, aprovou tese no sentido de que o reconhecimento da paternidade
socioafetiva não priva o filho do reconhecimento da paternidade biológica. Desde então, os
debates só aumentaram tornando este trabalho de suma importância para o meio jurídico, eis
que questiona: o estado de filiação comporta o reconhecimento de múltiplos vínculos
parentais? A metodologia fundamenta-se no procedimento bibliográfico e o artigo divide-se
em quatro capítulos: o primeiro analisa os aspectos históricos da evolução da família; o
segundo diferencia as espécies de filiação; o terceiro estuda o princípio da afetividade
enquanto base do direito de família e o último investiga a formação da multiparentalidade.
Após o desenvolvimento da pesquisa concluiu-se que o estado de filiação comporta o
reconhecimento da multiparentalidade, sob pena de seu não reconhecimento violar os
princípios e direitos fundamentais personalíssimos previstos na Constituição Federal.

Palavras-chave: Filiação; Socioafetividade; Multiparentalidade.

INTRODUÇÃO

A família é uma instituição com grande dinamicidade que se encontra em constante


reconstrução. Diante disso, doutrinadores, legisladores e juristas de uma forma geral não têm
medido esforços para evitar que o Direito de Família se distancie da realidade fática
vivenciada pelas famílias na sociedade moderna. O presente trabalho aborda a relação

1
Advogada, OAB/RS 120.875. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário da Região da Campanha
(URCAMP). Pós-Graduanda em Direito Tributário pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) E-mail:
lorraynealves.adv@gmail.com
2
Advogada, OAB/RS 38.024. Especialista em Direito Constitucional, Família e Sucessões. Mestre em Direito
pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Docente do Curso de Direito da
URCAMP/São Gabriel. E-mail: marigleyaraujo@gmail.com
690

paterno-filial, que sofreu grandes transformações ao longo da história e continua a se


reinventar.
Embora integrem a realidade social há bastante tempo, as famílias recompostas, ou
seja, aquelas reorganizadas através de um casamento ou união estável se apresentam como
verdadeira novidade na esfera jurídica brasileira, que vinha contemplando apenas a família
natural, uma vez que o sistema de filiação brasileiro foi inicialmente regulado pelo Código
Civil de 1916 com fundamento puramente na ligação biológica dos filhos havidos no
casamento. Naquela época ignorava-se qualquer outra forma de filiação que não fosse aquela
prevista no ordenamento. A partir do século XX este modelo começou a ruir e
gradativamente as pessoas passaram a priorizar valores sentimentais para construção dos
laços familiares.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, novos princípios passaram a nortear
o ordenamento jurídico, inclusive na seara do direito de família, atribuindo valor jurídico à
afetividade, dignidade da pessoa humana, entre outros princípios que hoje permitem maior
amplitude ao conceito de família.
Ocorre que essas novas formas familiares vêm ganhando cada vez mais espaço na
sociedade contemporânea, em razão de não ter sua importância voltada ao vínculo
sanguíneo, mas sim na estruturação psíquica que se traduz na função da pessoa em ocupar
um lugar dentro da família, o que se denomina como socioafetividade.
O primeiro registro de filiação socioafetiva se deu com a família de Nazaré. De
acordo com o texto bíblico José criou o filho de Maria, sua esposa, como se fosse seu e
mesmo não sendo ele o pai biológico de Jesus foi reconhecido como sendo pai dele no meio
social em que vivia.
Com o passar dos anos, a afetividade tomou tamanha importância nos laços
familiares a ponto de criar entre os envolvidos não só relação afetiva, mas relações jurídicas
firmadas em direitos e deveres recíprocos, fato que, na obra O pequeno príncipe, de Saint-
Exupéry, é retratado pela célebre frase “Você se torna eternamente responsável por aquilo
que cativa.” Todavia, o advento da socioafetividade nas relações familiares não exclui os
direitos fundamentais inerentes à verdade biológica, o que deu origem ao fenômeno da
convivência simultânea de figuras parentais diversas de vínculo biológico e socioafetivo.
Diante disso questiona-se se o estado de filiação comporta o reconhecimento de
múltiplos vínculos parentais, sendo este o objeto do presente estudo.
691

1 PARENTALIDADE: ASPECTOS HISTÓRICOS

Para compreender as relações parentais faz-se necessário traçar breves feições da


evolução da família ao longo da história, em razão da correlação dos vínculos parentais e a
formação da família.
No direito romano, conforme ensina Pontes de Miranda (2001, p.57-58), a palavra
família compreendia o conjunto do patrimônio, bem como a totalidade dos escravos
pertencentes a um senhor, sendo sua principal característica o modelo patriarcal, de forma
que os filhos eram estranhos à família materna, tendo como único vínculo parental com a
mãe aquele decorrente de estar sob o poder do pai.
Embora o Direito Romano tenha instituído primordialmente os fundamentos da
família, no entendimento de Martinho Garcez Filho (1929, p. 7-8), a família inicialmente se
desenvolveu nas relações de poder entre marido e mulher e pais sobre filhos. Ressalta que a
origem da família não está ligada ao afeto, pois no direito grego e no direito romano não
havia consideração alguma por este sentimento, eis que nas palavras do autor, “O pae podia
estremecer sua filha, mas não podia legar-lhe os seus bens”3 isso porque as leis que
regulamentavam o direito de família e o direito sucessório estariam em contradição com a
ordem do nascimento e o afeto natural. Afirma, todavia, que a família teve sua origem
diretamente ligada à religião na medida em que esta foi à única capaz de unir os membros
da família antiga, com algo mais poderoso que o nascimento, o sentimento ou até mesmo a
força psíquica: a religião do lar e dos antepassados, compreendida pelos dos rituais
religiosos.
Apesar de reconhecer a religião como responsável pela origem da família, Rocha,
Scherbaum e Oliveira (2018, p. 59) salientam que “as funções política, religiosa e
econômica, se vistas isoladamente, não são suficientes para dar coesão e continuidade ao
grupo familiar.”, de forma que o elemento viabilizador desta coesão que seria responsável
pela continuidade da família, estaria representado pelo parentesco e pelo matrimônio.
Acrescentam os autores (p. 61, apud COULANGES, 2000, p. 37-43):

Com a advento da democracia como forma de governo, substituíram-se os grupos


segmentários do Estado Antigo pelo indivíduo, agora com funções econômicas,
que lhes garante a sobrevivência e funções biológicas e psicológicas, muito se
aproximando da sua formação natural, representando o instrumento social de
preservação e desenvolvimento dos seus membros.

3
Redação fidedigna ao livro, escrito no ano de 1929.
692

No Brasil, anteriormente à promulgação da Constituição de 1988, segundo Valdemar


Luz (2002, p. 177), a filiação encontrava-se prevista exclusivamente no Código Civil, que
distinguia filhos legítimos e ilegítimos, sendo os primeiros àqueles havidos pelo casal na
constância do casamento e os segundos em decorrência de relações extramatrimoniais.
Ainda, os filhos ilegítimos poderiam ser naturais, quando nascidos de pessoa sem
impedimento para casar, ou seja, pessoas solteiras sem vínculo de parentesco, e espúrios,
quando nascidos de pessoa com impedimento para casar, que por sua vez eram chamados de
adulterinos quando proveniente de ralação com uma pessoa casada e outra que não fosse seu
cônjuge e incestuosos quando nascidos de um casal impedido de casar em razão do
parentesco.
Davide Cerutti (2015, p. 73), ao analisar a evolução da família, sintetiza:

Na visão antropológica de família, o casamento era a única forma de se estabelecer


os laços familiares e a forma de se ter um filho era decorrente das relações
familiares e a forma de se ter um filho era decorrente das relações biológicas e
naturais entre o marido e a esposa ou da adoção, o que certamente não encontra
mais substrato fático na realidade social atual, pois o conceito de família mudou e
a forma de se estabelecer os laços familiares também

Para Dimas Messias de Carvalho (2018, p. 41), embora o direito de família servisse
como instrumento que atendia interesses extrínsecos como a igreja e o Estado, as mudanças
ocorridas ao longo do último século tornou o direito de família mais privado do que nunca,
de forma que, atualmente, a família pode ser caracterizada por um grupo íntimo com uma
concepção eudemonista, segundo o autor “voltada para seu interior em busca da realização
mútua e pessoal”.
No mesmo sentido ensina Belmiro Pedro Walter (2003, p. 127-128) que as relações
familiares, após a Constituição Federal, tornaram-se funcionalizadas, ou seja, a
individualidade de cada integrante passou a ser fundamental na organização familiar. Assim,
o direito de família deve corresponder à tutela das comunidades intermediárias, levando em
consideração que a família moderna existe em função de seus integrantes, tendo o princípio
da dignidade humana como alicerce. Em virtude disso, deve-se reconhecer a importância
fundamental da afetividade, que é responsável pela manutenção das relações familiares
contemporâneas. Assim complementa o autor:
693

Há, de certo modo, um resgate da emocionalidade, ou seja, da affectio como


elemento subjetivo do casamento do direito romano, mas não apenas
fundamentando os vínculos de casamento, para também servir como base de
construção e da manutenção dos vínculos de companheirismo e de parentalidade.

Por fim, o supracitado autor, destaca que a família recuperou sua mais importante
função, qual seja de servir como comunidade de laços afetivos e amorosos de forma a tutelar
os interesses e direitos fundamentais de seus integrantes, em detrimento de valores e
interesses patrimoniais, os quais passam a servir tão somente como meio de proporcionar
melhores condições de desenvolvimento das relações familiares.
Autores futuristas, em um passado próximo, já faziam especulações sobre essa nova
fase que seria vivenciada pela família. Alvin Toffler (1980, p.219), dentre suas diversas
teorias, afirmou em sua obra:

(...)nenhuma forma única dominará a confusão familiar por qualquer período


prolongado. Em vez disso, veremos uma alta variedade de estruturas familiares,
Mais do que massas de pessoas vivendo em arranjos familiares uniformes,
veremos pessoas movendo-se através deste sistema, traçando trajetórias
personalizadas ou “sob medida” durante o curso de suas vidas.

Ainda, Semy Glanz (2005, p. 669), ao analisar a teoria biossociológica de Toffler,


destaca a figura dos “pais de profissão”, que segundo este autor, se encontram em fazendas
coletivas e kibutzim (fazer nota dando significado). Essas apresentariam um mercado
voltado a oferecer aos pais, que em razão de suas jornadas de trabalho acabam se tornando
ausentes no cotidiano de seus filhos, a oportunidade de contratarem educadores
especializados segundo uma determinada variedade de modelos adultos. Tal fenômeno, em
futuro próximo, pode desencadear a profissionalização do papel dos pais.
Glanz refere, ainda, que o modelo surgiu em Israel e destoa da realidade do Brasil,
onde a educação dos filhos acaba sendo confiada a babas pobres e incultas, que não poderiam
caracterizar esse fenômeno da profissionalização da figura dos pais.
Dessa forma, é possível identificar a dinamicidade das relações familiares, as quais
mudam constantemente segundo os valores e princípios presentes em cada modelo tomado
pela sociedade. Isso impõe a necessidade de adequação, a fim de propiciar que os integrantes
desenvolvam suas potencialidades de acordo com os objetivos traçados.
694

2 DA FILIAÇÃO

A Constituição Federal Brasileira prevê vários fundamentos para que se constitua o


vínculo de filiação, podendo esse ser biológico, adotivo e até mesmo socioafetivo. Em
complemento, o artigo 1.593 do Código Civil, define as espécies de parentesco: “Art. 1.593
do Código Civil. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou
outra origem.”.
Embora o art. 1.597 do Código Civil se refira à filiação somente como fruto do
casamento, Caio Mário da Silva Pereira explica que o legislador se equivocou em sua
definição, na medida em que deixou de mencionar as demais relações de fato, que dão
origem à posse do estado de filho, sendo essas juridicamente amparadas e, tendo em vista o
princípio da igualdade entre os filhos, não se admite qualquer espécie de discriminação em
relação a essa origem.
Nesse sentido explica Rolf Madaleno (2018, p. 657):

O texto constitucional em vigor habilita-se a consagrar o princípio da isonomia


entre os filhos, ao pretender estabelecer um novo perfil na filiação, de completa
igualdade entre todas as antigas classes sociais de perfilhação, trazendo a prole
para um único e idêntico degrau de tratamento, e ao tentar derrogar quaisquer
disposições legais que ainda ousassem ordenar em sentido contrário para
diferenciar a descendência dos pais.

Carlos Maluf e Adriana Maluf (2013, p. 466) definem a filiação como “(...) o vínculo
que se estabelece entre pais e filhos, decorrente da fecundação natural ou inseminação
artificial – homologa ou heteróloga – assim como em virtude de adoção ou de uma relação
socioafetiva resultante da posse do estado de filho”.
Igualmente, Tartuce conceitua (2017, p. 248):

A filiação pode ser conceituada como sendo a relação jurídica decorrente do


parentesco por consanguinidade ou outra origem, estabelecida particularmente
entre os ascendentes e descendentes de primeiro grau. Em suma, trata-se da relação
jurídica existente entre os pais e os filhos.

Ressalta Conrado Paulino da Rosa (2016, p. 248) que, atualmente, o vínculo paterno-
filial é caracterizado por uma relação horizontal, em que a afetividade se sobressai em
relação ao vínculo biológico, fator que chama atenção em razão da popularização e facilidade
dos exames que revelam a verdade biológica.
695

Para entendermos melhor a filiação, passaremos a conhecer as principais


características de cada um dos tipos de vínculo filial.

2.1 Filiação biológica

A filiação biológica, também chamada de filiação natural, é aquela decorrente do


vínculo sanguíneo.
Valdemar P. da Luz (2002, p. 178) conceitua como “a que decorre do ato de
procriação, ou seja, do jus sanguinis existente entre pais e filhos.”. Conrado Paulino da Rosa
(2016, p. 252) inclui nessa categoria os filhos decorrentes de procedimentos de reprodução
assistida.
No mesmo sentido Jorge Fugita (2009, p. 62) afirmando que “Filiação biológica ou
natural é a relação que se estabelece, por laços de sangue, entre uma pessoa e seu descendente
em linha reta do primeiro grau.”, Ressalta, ainda, que esse liame também pode decorrer
através das técnicas de reprodução assistida, seja homóloga ou heteróloga.
Assim, a filiação biológica tem como característica principal o vínculo sanguíneo
entre pai e filho, sendo este vínculo biológico suficiente para constituir a relação jurídica.

2.2 Filiação adotiva

No que se refere à filiação adotiva, essa se constitui segundo o procedimento previsto


no art. 39 do Estatuto da Criança e Adolescente, bem como no art. 1.618 do Código Civil,
de forma que Carlos Maluf e Adriana Maluf (2013, p.504) a definem como sendo “aquela
proveniente da adoção, processo em que, mediante sentença judicial constitutiva, é
estabelecido um vínculo jurídico entre o adotante e o adotado, como intrínsecas repercussões
jurídicas.”.
No mesmo sentido Fujita (2009, p. 71):

A adoção é o negócio jurídico pelo qual se promove, mediante sentença judicial


constitutiva, o ingresso de uma pessoa, menor ou maior de idade, capaz ou incapaz,
como filho na família adotante, independentemente de existência entre elas de uma
relação parental consanguínea ou afim, desfrutando o adotado de todos os direitos
e deveres inerentes à filiação.

Conrado Paulino da Rosa (2016, p. 292-293) ensina que se trata de um mecanismo


de colocação em família substituta, como medida excepcional e irrevogável que apenas deve
696

ser utilizada quando já esgotadas as tentativas de manutenção da criança ou adolescente na


família natural. Explica que esse instituto cria laços de parentesco civil, em linha reta, não
só entre o adotante e o adotado, mas também em relação à família do adotante, de maneira
que apresenta resultado análogo ao da filiação biológica. Todavia, constitui parentesco
eletivo na medida em que decorre da vontade, a qual se cria através de laços de amor,
concretizando a paternidade socioafetiva.
Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, o objetivo da adoção é a proteção
de crianças e adolescentes desamparados pela sua família biológica, sendo que qualquer deve
ser garantido a igualdade de tratamento dos filhos adotivos em relação aos filhos biológicos.
Dessa forma, entende-se que filiação adotiva, embora não possua ligação sanguínea,
gera igual vínculo jurídico paterno-filial entre adotante e adotado, distinguindo-se da filiação
biológica somente quanto a sua origem, a qual decorre de uma sentença judicial.

2.3 Filiação socioafetiva

Por fim, a última classificação de filiação é a chamada filiação socioafetiva, a qual


vem apresentando crescente notoriedade no direito de família brasileiro. Rui Portanova
(2016, p. 19) conceitua: “A paternidade socioafetiva é a relação paterno-filial que se forma
a partir do afeto, do cuidado, do carinho, da atenção e do amor que, ao longo dos anos, se
constitui em convivência familiar, em assistência moral e compromisso patrimonial.”.
Nesse mesmo prisma Jorge Fujita (2010, p. 475): “filiação socioafetiva é aquela
consistente na relação entre pai e filho, ou entre mãe e filho, ou entre pais e filho, em que
inexiste liame de ordem sanguínea entre eles”.
Segundo Fujita (2009, p. 80) essa se distingue da filiação adotiva pela informalidade,
ou seja, a relação é somente fática, sem qualquer amparo legal e inexistindo equiparação aos
filhos biológicos para os respectivos efeitos jurídicos. São os chamados “filhos de criação”,
exemplificados pelo autor como sendo “órfãos; parentes distantes; filhos de uma empregada
que os deixou na casa do empregador doméstico, diante da impossibilidade de os criar; filhos
de um compadre ou comadre; os filhos de um amigo pobre; enfim, pessoas de qualquer
origem.”.
Acerca do tema, Conrado Paulino da Rosa (2013, p.102) ensina que “O afeto é a mola
propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo
amor, para ao fim e ao cabo, dar sentido e dignidade à existência humana.”
697

Segundo Paulo Lôbo (2015), toda a família é socioafetiva, porquanto constitui grupo
social considerado base da sociedade e unido na convivência afetiva. Todavia, a expressão
socioafetividade tem sido empregada no Brasil, em sentido estrito, para definir as relações
de parentesco não biológico, de parentalidade e filiação, com ênfase quando estas se
encontram em colisão com as relações de origem biológica.
Diversos são os dispositivos legais que servem de égide para legitimar o direito à
filiação socioafetiva, o qual ainda não encontra previsão expressa no ordenamento jurídico
brasileiro, em espacial, o artigo o artigo 1.593 do Código Civil, já mencionado, quando
define os tipos de filiação utiliza-se da expressão “outras origens”, motivo pelo qual houve
a edição do Enunciado 256 do Conselho da Justiça Federal “Art. 1.593: A posse do estado
de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.”
Maria Berenice Dias (2017, p. 55) destaca: “A expressão outra origem, constante no
art. 1.593 do Código Civil, é que ensejou o reconhecimento da filiação socioafetiva.”.
Ademais, o § 4º, do artigo 226, da Carta Magna, ao salientar que a comunidade fática
formada por qualquer dos pais e seus descentes constitui entidade familiar, demonstra a
importância dos laços afetivos na formação dos vínculos parentais, dando igual valor àqueles
constituídos por meio biológico, como se depreende do § 6º, do artigo 227 do mesmo
diploma legal.
Maria Berenice Dias (2017, p. 135) esclarece:

As alterações pelas quais passou a família, fruto do movimento feminista, da


dissolubilidade do vínculo conjugal, do reconhecimento de crianças e adolescentes
como sujeitos de direito, acarretaram um embaralhamento de papéis, daí o uso da
expressão parentalidade, que se apresenta como possível de descolar o genitor
daquele que “ocupa o lugar”.

Nesse diapasão Gagliano e Pamplona Filho (2017), afirmam que no Direito Civil
moderno, o estabelecimento da filiação baseia-se principalmente na socioafetividade,
ficando o vínculo genético em segundo plano, de forma que se pode reconhecer a posse do
estado de filho, mesmo sem a ligação sanguínea, sendo que para relações consolidadas no
afeto ao longo do tempo, seria possível falar até mesmo em ação de investigação de
paternidade socioafetiva, que seria a maneira de promover o reconhecimento judicial da
posse do estado de filho nestas relações, de forma a exteriorizar a convivência familiar e a
afetividade.
698

Christiano Cassettari afirma que para configuração da paternidade socioafetiva, são


necessários alguns requisitos, sendo eles: a afetividade entre os envolvidos, o tempo de
convivência que faz nascer o carinho, o afeto e a cumplicidade e a existência de sólido
vínculo afetivo. Acrescenta ainda (2017, p. 33):

Contudo, o problema maior é verificar se haverá a necessidade de existência da


reciprocidade na afetividade, e se ela deve ser presente ou se pode ser pretérita.
Isso porque há chance de uma das partes, mesmo depois de formada uma
socioafetividade sólida, não desejar mais que essa situação se mantenha, talvez
para que não produza efeitos jurídicos. Se for permitido a alguém refutar a
socioafetividade já estabelecida e consolidada, por algum motivo, seria o mesmo
que permitir a disposição das pessoas acerca da parentalidade, ou seja, que alguém
pudesse, por exemplo, desconstituir a parentalidade com seus pais ou filhos.
Entendemos que isso não é possível, pois não estamos tratando de direito
disponível, motivo pelo qual, depois de verificada a existência da socioafetividade,
que era sólida, não há que se falar em consenso das partes para reconhecê-la (..).

Ainda, José Carlos Teixeira Giorgis (2007, p. 77) destaca que a paternidade
socioafetiva revela-se na posse do estado de filho, sendo indispensável para seu
reconhecimento a exteriorização pública do vínculo psicológico e social entre o filho e o
suposto pai, o que na doutrina romana consistia no nome, tratamento público e na fama, de
forma a indicar que aquela pessoa pertencia a determinado núcleo familiar. O autor
acrescenta que “Costuma-se até sublinhar que a posse do estado de filho observa o princípio
da aparência, oriunda do exercício das faculdades inerentes à linhagem, sustentada pela
convicção de publicidade.”
Fugita (2009, p. 114), acrescenta ainda a reputatio, que é o reconhecimento do filho
dentro da família pelos vizinhos. Assim não seria necessária a presença desses três elementos
simultaneamente, sendo que o critério de equidade seria “in dúbio, pro filiatio”. Todavia,
salienta que dentre os elementos, o tractatio seria de maior importância, sendo
imprescindível para configuração da posse do estado de filho.
Portanto, a filiação socioafetiva advém genuinamente da relação fática, motivo pelo
qual sua configuração está condicionada a demonstração de certos requisitos, os quais
sempre estarão presentes nesse tipo de relação, que é capaz de gerar o vínculo paterno-filial
de fato, tendo seu nascimento diretamente ligado ao afeto entre as partes envolvidas.
699

3 AFETIVIDADE COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL NORTEADOR DO


DIREITO DE FAMÍLIA

Para que o direito de família possa se adequar as mudanças da sociedade, de maneira


a seguir os preceitos da Constituição Federal, há uma série de princípios que buscam amparar
juridicamente os direitos decorrentes de novas realidades fáticas e institutos de direito de
família decorrentes dessa. Na atualidade, o princípio da afetividade vem ganhando cada vez
mais espaço e importância fundamental dentro do ramo do direito de família.
Guilherme Gama (2008, p. 126-127) explica que, historicamente, na família
patriarcal, o direito à cidadania ficava concentrado na pessoa do chefe, que possuía outros
direitos que eram negados aos demais membros, o que gerava uma serie de abusos à
dignidade humana. Todavia, a Constituição de 1988 trouxe novo enfoque ao direito de
família, concedendo a cada integrante da família os direitos mais fundamentais, como a
dignidade da pessoa humana, que foi colocada no ápice do ordenamento jurídico. Em
decorrência disso, destaca a importância do princípio da afetividade:

A respeito de tal aspecto, pode-se reconhecer como fundamental nas relações


familiares contemporâneas, independentemente de sua espécie, a afetividade, que
deve ser alcançada a valor jurídico de fundamental importância para a constituição
das famílias modernas.

Nesse diapasão Belmiro Pedro Walter (2003, p. 85) ressalta que o direito ao
reconhecimento da filiação está diretamente ligado ao direito à cidadania, sendo este parte
integrante dos direitos e garantias fundamentais, todos intrinsicamente ligados pelo direito à
dignidade humana.
Complementa Fujita (2009, p. 104) que nos termos do §2º do artigo 5º da
Constituição Federal os direitos e garantias previstos não excluem outros decorrentes dos
princípios por ela adotados, logo o afeto estaria tacitamente incluso, eis que decorre do
princípio da solidariedade.
Rocha, Scherbaum e Oliveira (2018,p. 62) esclarecem que a afetividade está ligada
aos princípios constitucionais na medida que a base dos Direito Humanos consagrados pela
humanidade é formada pelo amor, a solidariedade e a tolerância frente ao respeito à
dignidade da pessoa humana.
700

Segundo Maria Berenice Dias (2016), além da ligação do princípio da afetividade


com os princípios e preceitos fundamentais da Constituição Federal, ainda é possível
identificar a elevação do afeto a valor jurídico através do Código Civil, que embora não
utilize a palavra afeto, este pode ser visualizado na definição da guarda em favor de terceiro
(art. 1.584, §5º), ao estabelecer a comunhão plena da vida no casamento (art. 1.511), quando
admite outra origem à filiação, não proveniente de parentesco civil e natural (art.1.593), entre
outros exemplos elencados pela autora.
Outrossim, a afetividade vem sendo responsável por diversas transformações no
âmbito das relações familiares, trazendo maior humanidade ao tratamento entre seus
membros, motivo pelo qual adquiriu importância suficiente para se tornar um princípio
norteador do direito de família.
Rocha, Scherbaum e Oliveira (2018, p. 56) ensinam que o amor “é ruptura com a
estrutura dissimétrica da violência simbólica em que se constitui a dominação masculina.”.
Em sua obra, afirmam que o amor está diretamente ligado à busca do ser humano pelo
sentido vida, motivo pelo qual esse sentimento é capaz de realizar grandes transformações
na conduta humana, ainda que a maneira de amar mude, a afetividade sempre se faz presente.
O Afeto proporciona o desenvolvimento pessoal de cada integrante da família e isso, para
grande parcela dos doutrinadores, está ligado a democracia, pois ela alimenta a ideia de
igualdade (justiça) e despreza a exploração.
No mesmo sentido Maria Berenice Dias (2016), que afirma que o Estado tem
obrigação de assegurar afeto, pois esse direito está muito ligado ao direito fundamental a
felicidade e o afeto é um dos elementos responsáveis pela felicidade na vida dos indivíduos.
Salienta que as relações familiares adquiriram um novo perfil, segundo uma concepção
eudemonista, em que o enfoque está voltado a realização de interesses afetivos e existenciais
de seus membros.
Portanto, embora não exista expressa previsão do princípio da afetividade nas normas
legais brasileiras, esta decorre de diversos outros princípios fundamentais nela expressos.
Assim, resta claro que não se pode afastar tal princípio do direito de família, pois
automaticamente se estaria atingindo todos os demais, além das garantias e preceitos
fundamentais, na medida em que a afetividade está ligada à condição existencial do ser
humano e a busca pela felicidade.
701

4 COEXISTÊNCIA DE VÍNCULOS PARENTAIS DE FILIAÇÃO

Há situações em que a posse do estado de filho acaba se constituindo com múltiplas


figuras parentais, normalmente com a combinação de mais de uma espécie de filiação, como
por exemplo: um vínculo de filiação biológica com o pai A e um vínculo de filiação
socioafetiva com o pai B, recaindo ambas sobre o mesmo filho. Assim é o exemplo trazido
por Fernanda Otoni de Barros (2005, p.74):

A mãe entra com processo na justiça requerendo investigação de paternidade de


uma filha que, até a data do processo, tinha como suposto pai o companheiro de
sua mãe. O pai dito como verdadeiro, biológico, não tem nenhuma relação com a
criança e não quer assumir a paternidade. O pai que a criança sempre conheceu e
chama de pai, o qual nomearemos aqui por “pai-social”, não quer perder o lugar
de pai desta criança, mesmo sabendo que esta é uma filha adulterina, A pergunta
do processo: quem é o pai?

Com o objetivo de responder essa pergunta, Julie Cristine Delinski (1997, p. 33)
ensina: “Normalmente o pai é o que dá a vida, é o pai que alimenta; mas essas duas
paternidades podem não coincidir e a evidência natural poderá ceder juridicamente, em favor
da realidade cultural.”.
Camilla de Araujo Cavalcanti (2016, p. 76) acrescenta que, com a valorização do
afeto na formação de novos laços familiares, sempre que estes existam simultaneamente com
outros, pode gerar a figura de dois pais, duas mães, etc, caracterizando, dessa forma, a
multiparentalidade.
A despeito do termo “multiparentalidade”, Davide Cerutti (2015, p. 50) pondera:
“Este sufixo – multi – revela uma diferença com o modelo clássico da família: bi-parental e
hetero-parental (um pai e uma mãe). A sociedade se abre ás novas figuras familiares”,
distinguindo assim a multiparentalidade da biparentalidade, que seria aquela exercida por
duas pessoas do mesmo gênero.
Esse fenômeno da desbiologização da paternidade tem sua principal origem nas
famílias recompostas, também chamadas de famílias reconstituídas, assim trata Christiano
Cassettari (2017, p. 44):

(…) atualmente, em razão do crescente número de casais divorciados com filhos,


verifica-se que, na chamada família reconstituída, muitos filhos são abandonados
afetivamente pelos pais biológicos e acabam sendo criados moral e afetivamente
pelos segundos maridos ou esposas de seus genitores-guardiões.
702

Rolf Madaleno (2018) diz que a família reconstituída é aquela originada através de
uma união estável ou um casamento, em que um ou ambos os cônjuges possuem filhos
provenientes de uma relação anterior.
Nesse sentido ensina Camilla de Araujo Cavalcanti (2016, p. 74):

Com a reconstrução da família tradicional na forma da família recomposta, as


relações entre os novos membros do grupo familiar, na maioria das vezes,
estreitam-se de forma tal que são prestados cuidados que, muitas vezes, os
genitores das uniões anteriores não quiseram, ou não puderam oferecer.

Ocorre que, o vínculo familiar do filho com o pai ou a mãe biológica não se acaba
com o divórcio dos pais, pelo contrário, na maioria das vezes permanece forte, assim ensina
Conrado Paulino da Rosa (2013, p.75):

O fato de existir uma boa e proveitosa relação entre o enteado e seu padrasto ou
madrasta não impede a manutenção de um bom relacionamento com seus vínculos
originários. Ademais, tal quadro seria o ideal para todas as famílias que vivenciam
essa configuração.

No mesmo sentido, Sumaya Pereira (2007, p. 92):

É também essa afetividade, assim compreendida como o núcleo do conceito da


unidade familiar, que representa o principal elemento de constituição da família e
de preservação de famílias que não se “extinguem” com a separação ou com o
divórcio, mas se “transformam”, mantendo a unidade familiar em torno do vínculo
entre os pais (ainda que separados) e seus filhos, fazendo com que permaneça vivo
aquele elemento comum da relação familiar a serviço do desenvolvimento da
personalidade de seus integrantes.

Conforme já referido, a multiplicidade de vínculos ocorre com mais frequência na


família recomposta, onde filiações biológica e sociofetiva acabam recaindo sobre o mesmo
filho, mas não é só ela capaz de constituir esses laços, pois a multiparentalidade vem
tomando cada vez mais espaço na sociedade.
Nessa senda, importa trazer à colação a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da
Paraíba (TJPB), que reconheceu a dupla maternidade de uma criança fruto de inseminação
artificial caseira, o TJPB determinou a retificação do registro civil da criança para que
constem as duas mães como genitoras, conforme notícia divulgada pelo Instituto Brasileiro
de Direito de Família – IBDFAM (26/09/2018).
Casos semelhantes levaram o Conselho Nacional de Procriação Médica Assistida a
emitir um parecer permitindo a partilha biológica de maternidade, procedimento efetuado
através de recurso de fertilização recíproca (2017). Ocorre que a utilização dessas técnicas
703

de Procriação Medicamente Assistida (PMA), também acarretam à multiplicidade de


vínculos, nesse caso, o reconhecimento de duas mães biológicas. Nesse sentido, Ana Amélia
Ribeiro Sales (2014, p.143):

Outro processo relevante ocorrido no Brasil, e em função da aplicação das técnicas


de PMA em benefício de um casal homoafetivos de lésbicas, foi o caso ocorrido
em 2010 no qual uma mulher doou o óvulo que foi inseminado com sêmen de
doador e implantado no útero da sua companheira. Assim, também após processo
judicial, ambas as mulheres foram reconhecidas mães, uma em razão de ter o
vínculo biológico com as crianças e a outra em razão de ter sido a parturiente
(mater semper certa est), e ambas em função da afetividade estabelecida com as
crianças.

Outrossim, cumpre destacar que ainda que não se se tenha conhecimento acerca da
paternidade biológica, o reconhecimento da socioafetividade não priva o filho da
investigação de sua origem biológica, nesse sentido concluiu Gomes (2015, p. 238):

(...) são as relações afetivas que efetivamente estabelecem o vínculo de


parentalidade, privilegiando-se os laços estabelecidos por meio do convívio diário,
em ambiente familiar e de significativa duração temporal, ainda que reconhecida
possibilidade de investigação da ascendência genética (sem consequências no
estado de filiação socioafetiva já estabelecido com outrem).

Também esse é o entendimento de Maria Christina de Almeida (2003) que, em sua


obra “DNA e estado de filiação à luz da dignidade humana” ressalta que embora o fenômeno
da desbiologização venha ganhando espaço na sociedade, o critério biológico continua sendo
elemento definidor da filiação, integrando, inclusive, o direito fundamental à identidade
pessoal, de forma que não se pode simplesmente afastá-lo.
Em análise ao julgamento do Recurso Extraordinário n.º 898.060, do Supremo
Tribunal Federal, Conrado Paulino da Rosa (2016, p. 286), destaca que houve o
reconhecimento de que a existência de paternidade socioafetiva não exime a paternidade do
pai biológico, sendo que conforme analogia utilizada pelo Ministro Fux, relator do processo,
não caberia à lei dividir a criança para que se reconhecesse a parentalidade entre ela e duas
pessoas ao mesmo tempo, como fez o Rei Salomão, dado que o reconhecimento jurídico de
ambos os vínculos atende ao princípio do melhor interesse do descendente.
O referido julgado deu origem à tese de Repercussão Geral n.º 622, que diz: “A
paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o
reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os
704

efeitos jurídicos próprios”. Dessa forma, não há prejuízo ao filho, no sentido de ter que
escolher qual dos pais terá o nome escrito em seu registro.
Embora esse entendimento venha sendo utilizado nos tribunais, ainda não é possível
que o reconhecimento da multiparentalidade seja realizado diretamente nos cartórios
brasileiros. Em 17 de novembro de 2017 foi publicado no Diário da Justiça – CNJ – Edição
no 191/2017, o Provimento 63 de 14/11/2017, que regulamenta o reconhecimento da filiação
socioafetiva em cartório, todavia, essa possibilidade não se aplica ao filho que já possui o
registro de uma mãe e um pai biológicos, segundo decisão do CNJ de 18 de julho de 2018,
que esclareceu o tema, a pedido da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Ceará
(pedido de providências, n.º 0003325-80.2018.2.00.0000).
Portanto, o único meio para que se possa obter o reconhecimento da
multiparentalidade é através de processo judicial.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O vínculo de filiação sofreu grandes transformações ao longo dos anos, em razão da


dinamicidade das relações familiares, que por sua vez acompanham as transformações
sociais vividas ao longo da história da humanidade.
Por muito tempo, enquanto vigorou o modelo de família patriarcal, tradicional e
monoparental a afetividade não possuía significativo valor jurídico. Diante disso, não eram
aceitos no meio social e jurídico a pluralidade de modelos familiares, como acontece nos
dias atuais.
Com o advento do Estado Democrático de Direito, o princípio da afetividade ganhou
maior destaque não só na formação das famílias, mas também como base de definição dos
institutos jurídicos de Direito, estando subentendida em diversos princípios e direitos
fundamentais elencados ao longo da Constituição Federal.
Atualmente, conforme prevê a legislação brasileira, a filiação pode ser biológica,
adotiva ou de “outra origem”, expressão que abriu precedente ao reconhecimento da filiação
socioafetiva, que nada mais é do que o reconhecimento do vínculo paterno-filial de fato, que
se constitui em diversos modelos familiares.
Nessas novas formas, as pessoas unem-se mais em razão do afeto, de maneira que,
há uma valorização do individuo como um todo, ou seja, há um desejo por parte de todos os
705

integrantes que cada uma deles desenvolva as suas capacidades de forma plena, com
felicidade e realização pessoal.
Outrossim, isso não significa dizer que a origem biológica foi superada pelo direito
brasileiro. Na verdade ela continua sendo a mais tradicional forma de origem do parentesco,
todavia, dentro dos novos modelos de família, em especial a recomposta, vem ocorrendo o
fenômeno da multiparentalidade, em que o vínculo de filiação acaba sendo cumulado entre
dois tipos sobre o mesmo filho.
In casu, a doutrina majoritária entende pela possibilidade do reconhecimento da
pluralidade de vínculos de filiação. No mesmo sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal,
tendo dado repercussão geral ao tema, no sentido de que o reconhecimento do socioafetivo
não priva o reconhecimento do vínculo biológico.
Portanto, considerando os argumentos acima trazidos somados ao princípio
constitucional da igualdade, descabido a distinção entre espécies de filiação. Também não
se pode afirmar que um tipo de vínculo paterno-filial é mais significativo que o outro e,
muito menos, fingir que a multiplicidade de vínculos inexiste.
Assim, o reconhecimento dos múltiplos vínculos parentais é o único caminho
possível, sob pena de ser violados princípios e direitos fundamentais personalíssimos
previstos na Constituição Federal.

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709

CADASTRO AMBIENTAL RURAL E DIREITO À INFORMAÇÃO


AMBIENTAL: UMA ANÁLISE À LUZ DA TEORIA DE HABERMAS

Luiza Maria Oliboni1

Resumo: O presente artigo busca tecer uma relação entre o direito à informação ambiental,
abordado a partir de elementos da teoria habermasiana, e o Cadastro Ambiental Rural,
instrumento criado pelo Código Florestal (Lei 12.651, de 25 de maio de 2012), com a
finalidade de mapear a área rural brasileira, sendo assim uma ferramenta de suporte para o
planejamento ambiental, o monitoramento e o combate ao desmatamento. Utilizando
pesquisa bibliográfica, além dos elementos já mencionados, o artigo também busca destacar
a relação entre informação ambiental, participação e acesso à justiça, com o objetivo de
explicitar o arcabouço jurídico existente sobre o tema e sua aplicabilidade ao caso concreto
em tela, ou seja, o Cadastro Ambiental Rural e sua implementação.

Palavras-chave: Cadastro Ambiental Rural. Informação ambiental. Participação.


Habermas.

1 INTRODUÇÃO

Considerando o arcabouço jurídico e principiológico existente na esfera ambiental


no Brasil, o ponto de partida deste artigo é o direito à informação, o qual, além de por si só
ser de suma importância, conforme será descrito, contribui também para a consecução de
dois outros pilares. Um deles é o da participação pública em matéria ambiental, pois quem
dispõe de informações fidedignas e atualizadas sobre o tema tem mais possibilidades de
participar e influenciar na tomada de decisões em matéria ambiental. O outro pilar para o
qual a informação contribui é o acesso à justiça, visto que, a priori, cidadãos bem informados
seriam mais propensos à mobilização para a busca ou manutenção de direitos relacionados
ao meio ambiente.
Nessa seara, será destacado também o pensamento de Habermas, para quem a
democracia está diretamente ligada à participação. Serão tecidas observações e interligações
entre aspectos da teoria habermasiana e a situação específica analisada ao longo deste artigo,

1
Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do
Trabalho pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Especialista em Relações Internacionais pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos. Advogada OAB/RS 92.538. Bancária. E-mail: luizaoliboni2015@gmail.com
710

ou seja, a busca por verificar se o Cadastro Ambiental Rural pode ser considerado um
instrumento pautado no direito à informação ambiental.
Isso posto, o trabalho objetiva tratar do direito à informação na esfera ambiental, de
seu reflexo em relação aos aspectos supracitados (participação e acesso à justiça) e da
conexão existente entre esse direito e o Cadastro Ambiental Rural, instrumento instituído
pelo Código Florestal de 2012 (Lei 12.651, de 25 de maio de 2012).
O Cadastro Ambiental Rural é definido por lei como um registro público eletrônico
de abrangência nacional, de caráter obrigatório para todos os imóveis rurais, possuindo a
principal finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais,
criando uma base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e
econômico, além de ser uma ferramenta para auxiliar no combate ao desmatamento.
Partir-se-á do conceito de informação para ingressar na seara ambiental e descrever
a importância e os reflexos da informação ambiental nesse âmbito. Posteriormente, será feita
a interligação desse princípio com a situação da criação e implementação do Cadastro
Ambiental Rural no Brasil.

2 INFORMAÇÃO AMBIENTAL E SEUS DESDOBRAMENTOS

A palavra “informação” pode assumir diversas acepções, entre elas o ato ou efeito de
informar-se; dados acerca de alguém ou de algo; conhecimento, participação; comunicação
ou notícia trazida ao conhecimento de uma pessoa ou público; instrução, direção; parecer
dado em processo, nas repartições públicas; conhecimento amplo e fundamentado, oriundo
da combinação e análise de diversos informes.2
Transpondo o conceito de informação especificamente para o âmbito jurídico,
Canotilho fala em direito à informação e afirma que este possui três dimensões, sendo elas
o direito de informar, o direito de se informar e o direito de ser informado. O primeiro direito
citado corresponde à liberdade de transmitir informações, ao passo que o segundo trata do
direito de não ser impedido de obter informações e o terceiro diz respeito ao direito de ser
informado pelo Poder Público e pelos meios de comunicação.3

2
INFORMAÇÃO. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua
portuguesa. 4.ed. Curitiba: Positivo, 2009. p. 1104.
3
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3. ed. rev.
Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 225-226.
711

Machado4, por sua vez, lista doze diferentes conceitos de informação. São eles a
informação como o registro do que existe5; informar como transmissão de conhecimento6;
informação como criadora de conhecimentos7; informação e curiosidade8; informação e
espionagem9; informação e devassa10; informação e comunicação11; informação e sua
manipulação12; informação e liberdade de expressão e de opinião 13; informação e relações
humanas14; informação e tecnologia da informação15; informação e participação16.
Dentro da delimitação proposta neste artigo, destaca-se que a informação está
diretamente ligada à participação. A última acepção tratada por Machado, portanto, é a que

4
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p.
25-35.
5
A informação organiza os dados existentes, de modo que eles não fiquem dispersos. (MACHADO, Paulo
Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 26).
6
É o ato de dar ciência de um ato existente. (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio
ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 26).
7
Ao receber a informação, é possível, através do estudo, da comparação ou da reflexão, criar novos saberes.
(MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p.
27).
8
A curiosidade não tem um propósito deliberado de conquistar um conhecimento específico, mas pode levar à
obtenção de informações. (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 27).
9
Espionagem é a busca da informação que é vedada pela lei ou pelos costumes. O direito à informação não se
confunde com manobras para dela se apossar por atos ocultos ou enganadores. (MACHADO, Paulo Affonso
Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 28).
10
Devassa é a busca de informação de modo invasivo ou até hostil. (MACHADO, Paulo Affonso
Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 28).
11
A informação é o conteúdo dos fatos e a comunicação diz respeito ao procedimento de transmissão do
conteúdo, havendo um envolvimento entre o emitente e o receptor da informação. (MACHADO, Paulo Affonso
Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 29).
12
A manipulação é o direcionamento da transmissão da informação, utilizando-se de artifícios ou manobras.
Pode ter origem em governos ou no setor privado e, nessa situação, não se recusa a informação, mas ou ela não
é transmitida na sua integralidade ou não é aprofundada. Também pode ser transmitida de forma seletiva ou
em grande quantidade, de modo a não deixar tempo para a reflexão. (MACHADO, Paulo Affonso
Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006).
13
A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais imprescindíveis, pois na sua ausência, quem produz
ou emite a informação não pode garantir a idoneidade e a veracidade desta. Além disso, sem liberdade, a própria
organização das informações fica comprometida, pela existência de pressão constante para deturpar o conteúdo
dos fatos e mensagens. (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 31-32).
Não obstante a importância da liberdade de expressão e de opinião, bem como da consequente liberdade de
informação, o autor faz a ressalva de que essas liberdades ficam incompletas se não houver também liberdade
de participação.
14
Diz respeito às situações em que a transmissão da informação tem um papel fundamental, tais como a relação
entre professor e aluno ou a relação entre médico e paciente. (MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à
informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 32).
15
Diz respeito ao modo como a informação vem sendo empregada em sua relação com as tecnologias do mundo
contemporâneo e com as expectativas e ações do ser humano nesse contexto. (MACHADO, Paulo Affonso
Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 33-34).
16
A participação, através do engajamento político ativo dos cidadãos é de fundamental importância e deve ser
vista como aliada do Poder Público e não como elemento substitutivo de sua atuação. (MACHADO, Paulo
Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 34-35).
712

terá maior ênfase ao longo deste capítulo. Em sua exposição sobre a relação da informação
com a participação, ele destaca:
A qualidade e a quantidade de informação irão traduzir o tipo e a intensidade da
participação na vida social e política. Quem estiver mal informado nem por isso
estará impedido de participar, mas a qualidade de sua participação será
prejudicada. A ignorância gera apatia ou inércia dos que teriam legitimidade para
participar.17

Verifica-se, pois, que a deficiência na transmissão de informações não é, por si só,


causa impeditiva da participação. Contudo, uma participação calcada em informações
fidedignas e atuais tem uma maior possibilidade de influenciar na tomada de decisões acerca
de novas leis e políticas públicas, bem como na implementação das já existentes.
No caso do Direito Ambiental, no entendimento de Sarlet, Machado e Fensterseifer18,
a participação pública assume a feição de um princípio geral, pois no contexto
contemporâneo, em que a degradação ambiental traz sérias ameaças, é imperativo que haja
um comprometimento dos cidadãos para reverter o quadro que se apresenta. Isso se traduz
no ordenamento jurídico através do artigo 225 da CF, que confere à proteção ambiental a
dupla natureza de ser um direito e um dever fundamental, consolidando, dessa forma, o
marco político-normativo de uma democracia participativa ecológica. Cabe destacar que,
para os autores, a democracia participativa ecológica possui três pilares, que são a
participação pública na tomada de decisões, o acesso à informação e o acesso à justiça.19
Infere-se que os autores atribuem dupla dimensão à participação, considerando-a
concomitantemente um direito e um dever. Sarlet e Fensterseifer tratam a informação de
modo semelhante. Afirmam que o marco delineado pela Constituição Federal de 1988
constitui um dever estatal de informação ambiental, em vista de garantias constitucionais
como as do artigo 5°, incisos XIV20 e XXXIV21, regulamentadas infraconstitucionalmente
pela Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011). Além disso, especificamente na seara

17
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à informação e meio ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006,
p. 34.
18
SARLET, Ingo Wolfgang. MACHADO, Paulo Affonso Leme. FENSTERSEIFER, Tiago. Constituição e
legislação ambiental comentadas. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 203.
19
SARLET, Ingo Wolfgang. MACHADO, Paulo Affonso Leme. FENSTERSEIFER, Tiago. Constituição e
legislação ambiental comentadas. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 203.
20
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao
exercício profissional.
21
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de
interesse pessoal.
713

ambiental, o direito e o dever da informação estão contidos no artigo 225, que em seu
parágrafo 1º, IV, estabelece a necessidade de se dar publicidade ao estudo prévio de impacto
ambiental e no inciso VI do mesmo parágrafo, dispõe sobre a promoção da educação
ambiental e da conscientização pública para a proteção do meio ambiente.22
Para Gome e Simioni23, a realização prática do princípio da informação juntamente
com o da participação pode vir a diminuir a distância entre a perspectiva de quem toma a
decisão e a de quem está submetido a ela, permitindo o desenvolvimento de maior confiança,
legitimidade e adequação das decisões jurídicas em âmbito ambiental. No entendimento dos
autores:
O princípio da informação pode ser conectado ao da participação, a fim de
desencadear a promoção de espaços de discussão e de conscientização ecológica,
considerando os problemas e as implicações em relação à complexidade social,
bem como analisar o caso concreto em sua perspectiva isolada. [...]24

Diante do exposto, o direito e o dever de informação podem ser diretamente


relacionados ao Cadastro Ambiental Rural, na medida em que ele constitui um conjunto de
dados sobre a situação ambiental dos imóveis rurais no Brasil, especialmente no que tange
às áreas de preservação permanente e à reserva legal. E é justamente esse dever de informar,
essa busca da transparência que é vista no ordenamento jurídico brasileiro, o primeiro passo
para um incremento na participação social. A disponibilidade de dados e a análise da
realidade por parte dos cidadãos podem fomentar novas ideias, bem como o desejo de
mudança de práticas que não dão resultados satisfatórios.
Diante da situação exposta, verifica-se que a informação está estreitamente conectada
à participação, em vista de que a gestão democrática intentada pela Constituição passa
necessariamente pela participação popular, a qual se qualifica e se torna mais efetiva através
da transparência e da disponibilidade de informações.
Como exemplo da aplicação da lógica que relaciona a informação à participação,
cabe mencionar o Princípio 10 da Declaração do Rio de 1992, que estabelece:

22
SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 136-137.
23
GOME, Renata Nascimento; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. A aplicação do princípio da informação no
Direito Ambiental brasileiro, na forma de confiança e risco em Niklas Luhmann. Revista Direito Ambiental
e Sociedade, Caxias do Sul, v. 4, n. 2, p. 117-136, 2014, p. 117.
24
GOME, Renata Nascimento; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. A aplicação do princípio da informação no
Direito Ambiental brasileiro, na forma de confiança e risco em Niklas Luhmann. Revista Direito Ambiental
e Sociedade, Caxias do Sul, v. 4, n. 2, p. 117-136, 2014, p. 117.
714

A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no


nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada
indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que
disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e
atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de
participar dos processos decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular a
conscientização e a participação popular, colocando as informações à disposição
de todos. Será proporcionado o acesso efetivo a mecanismos judiciais e
administrativos, inclusive no que se refere à compensação e reparação de danos.

A respeito do tema, Sarlet e Fensterseifer25 asseveram:

O Princípio 10 da Declaração do Rio (1992), nesse percurso evolutivo, tornou-se,


se dúvida, a norma internacional referencial para a conformação do conteúdo
inerente ao princípio da participação pública em questões envolvendo a tutela
ecológica. No dispositivo citado, é possível identificar os três elementos-chave ou
pilares que alicerçam o conceito de participação pública em matéria ambiental: a)
participação pública na tomada de decisões; b) acesso à informação; c) acesso à
justiça. Tais elementos estão sobremaneira conectados e apresentam conteúdos
normativos, tanto de ordem material quanto procedimental, interdependentes. Isso
se pode perceber especialmente na relação entre participação pública na tomada
de decisões e acesso à informação, sendo este último pré-requisito para que a
participação pública se dê de modo qualificado e efetivo, o que só se faz possível
com o acesso à informação ambiental existente no âmbito dos órgãos públicos
tomadores da decisão (e, em algumas circunstâncias, também as informações
ambientais em poder de particulares). Do contrário, a participação não será efetiva,
por mais que formalmente assegurada. (Grifo dos autores).

Cabe observar que a Declaração do Rio, composta por vinte e sete princípios, foi
fruto de debates ocorridos na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, também conhecida como Eco 92 ou Rio 92. Verifica-se que as discussões
sobre o meio ambiente no âmbito internacional, ao longo das últimas décadas, vêm
adquirindo um contorno de aumento da valorização do debate, bem como de medidas para
sua proteção, dentre as quais a busca por maior participação pública nas decisões, tendo em
vista que a questão ambiental transcende o nível individual, abrangendo uma coletividade.
Sobre a importância da participação, Morato Leite afirma:

Um enfoque democrático sobre o conteúdo de um direito à informação prioriza


uma ótica de informar para melhor decidir, na qual a informação é pressuposto
para a formação de decisões, que passam a depender da cooperação entre diversos
atores sociais. (Grifo do autor)26

25
SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Princípios do direito ambiental. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 122-123.
26
MORATO LEITE, José Rubens et al. Princípios fundamentais do direito ambiental. In: MORATO LEITE,
José Rubens. (coord.). Manual de direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 93.
715

O autor adota, em sua abordagem sobre os princípios da informação e da


participação, o tripé de Aarhus, constituído pelo trinômio informação, participação pública
nos processos de decisão e acesso à justiça. Esse tripé tem como esteio a Convenção de
Aarhus, inicialmente adotada por países europeus, mas que se encontra disponível à adesão
por qualquer país que seja membro da Organização das Nações Unidas. O Brasil não
subscreveu a convenção, mas o autor considera o referido tripé um ponto de partida para a
discussão do tema no país.27
A partir do entendimento do autor, infere-se que além da Declaração do Rio, houve
documentos posteriores destacando a questão da participação. Destaca-se nesse contexto, de
forma exemplificativa, a Convenção de Aarhus, cabendo expor seus três elementos
principais mais detalhadamente.
A Convenção sobre Acesso à Informação, Participação Pública em Processos
Decisórios e Acesso à Justiça em Temas Ambientais ou simplesmente Convenção de Aarhus
entrou em vigor em 2001 e estabeleceu três pilares para a consecução de seus objetivos,
conforme mencionado.28
De acordo com Marcatto29 (2005, p. 10), o primeiro pilar, referente ao acesso à
informação, é a base que sustenta os demais, pois pode ser exercido autonomamente, ou seja,
não necessariamente gera como consequência imediata a participação de todos que
conhecem determinada informação. A autora afirma também que o direito à informação
divide-se em duas partes, o acesso passivo, que consiste no dever do Poder Público de prover
a informação requerida e o acesso ativo, que representa a obrigação das autoridades de
disseminar a informação, sem a necessidade de uma requisição específica.
Para Marcatto30, o segundo pilar, a participação, depende dos outros dois para se
efetivar, visto que a informação favorece uma atuação mais qualificada e o acesso à justiça
garante a existência de participação. Afirma, ainda:

27
MORATO LEITE, José Rubens et al. Princípios fundamentais do direito ambiental. In: MORATO LEITE,
José Rubens. (coord.). Manual de direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 91-92.
28
NEVES, Rafaela Teixeira; MOREIRA, Eliane Cristina Pinto. Os princípios da participação e informação
ambientais e a aplicação da Convenção de Aarhus no direito brasileiro. Revista de Direito Ambiental, São
Paulo, v. 77, p. 563-588, jan./mar. 2015, p. 2.
29
MARCATTO, Flávia Silva. A participação pública na gestão de área contaminada: uma análise de caso
baseada na Convenção de Aarhus, 2005. 256 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública), Programa de pós-
graduação stricto sensu em saúde pública, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2005, p. 10.
30
MARCATTO, Flávia Silva. A participação pública na gestão de área contaminada: uma análise de caso
baseada na Convenção de Aarhus, 2005. 256 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública), Programa de pós-
graduação stricto sensu em saúde pública, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2005, p. 10.
716

O pilar de participação é dividido em três partes. A primeira parte diz respeito a


quando a população é afetada por um empreendimento específico. A segunda diz
respeito à participação do público no desenvolvimento de planos, programas e
políticas relacionadas ao meio ambiente. Finalmente, a terceira diz respeito à
participação do público na preparação de leis, regras e normas legais. [...]. 31

Finalmente, o terceiro pilar, o acesso à justiça, consiste em uma recomendação para


que os países signatários da convenção incorporem na legislação pátria mecanismos que
assegurem a viabilização dos dois pilares anteriores.32
Lozano Cutanda33 corrobora a ideia de que o acesso à informação ambiental, além
de desempenhar um papel essencial na conscientização e na educação ambiental, constitui
um instrumento indispensável para efetivar os outros pilares da Convenção de Aarhus, pois
caso os cidadãos não disponham de informação ambiental relevante, dificilmente poderão
intervir de forma efetiva, com conhecimento de causa em discussões públicas que digam
respeito a esse bem jurídico.
Considerando os três pilares, a informação transcende o fato de ser um direito
constitucional e ser protegida por instrumentos como o habeas data, previsto no artigo 5°,
XIV, da CF/1988 e passa a ser vista também sob o aspecto funcional, ou seja, considera-se
sua influência em processos de tomada de decisões ambientalmente relevantes.34
O ordenamento jurídico brasileiro estabelece diversas formas de participação e
também instrumentos para concretizá-la. A título exemplificativo, menciona-se a ação civil
pública (Lei 7.347/1985), a ação popular (artigo 5°, LXXIII da CF/1988 e Lei 4.717/1965),
as audiências públicas (Lei 10.257/2001) e a participação popular em órgãos colegiados
ambientais (Lei 9.433/1997).
A respeito da lógica da participação na Constituição Federal de 1988, Lobato e
Wienke aduzem:
O legislador constituinte de 1988 reconheceu a importância da coexistência dos
institutos representativos e participativos de democracia, trazendo em diversas
normas constitucionais disposições que asseguram a participação da sociedade na
formulação da vontade coletiva. A redefinição do princípio democrático alcança

31
MARCATTO, Flávia Silva. A participação pública na gestão de área contaminada: uma análise de caso
baseada na Convenção de Aarhus, 2005. 256 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública), Programa de pós-
graduação stricto sensu em saúde pública, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2005, p. 10.
32
MARCATTO, Flávia Silva. A participação pública na gestão de área contaminada: uma análise de caso
baseada na Convenção de Aarhus, 2005. 256 p. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública), Programa de pós-
graduação stricto sensu em saúde pública, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2005, p. 11.
33
LOZANO CUTANDA, Blanca; ALLI TURRILLAS, Juan-Cruz. Administración y Legislación
Ambiental. 5. ed. atual. Madrid: Dykinson, 2009, p. 172.
34
MORATO LEITE, José Rubens et al. Princípios fundamentais do direito ambiental. In: MORATO LEITE,
José Rubens. (coord.). Manual de direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 92.
717

todos os níveis do aparelho de Estado. A visão de que a vontade da sociedade deve


ocupar um espaço preponderante nas ações do poder público seria o ponto de
partida para a efetividade da participação popular na elaboração de políticas
ambientais.35

No campo da redefinição do princípio democrático por meio do fortalecimento da


participação popular na elaboração de políticas ambientais, faz-se mister citar alguns
elementos da teoria de Habermas.
Souza36 considera que a Constituição Federal de 1988, ao incluir, no artigo 225, o
direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, provocou a migração de um direito
individual à utilização dos recursos naturais para um direito das gerações atuais e futuras ao
meio ambiente. Nesse contexto, é dever do Estado garantir a proteção ambiental. Trata-se
de atuação estatal positiva. A referida atuação não pode, entretanto, sob o pretexto de superar
as desigualdades sociais, intervir a ponto de destruir a individualidade das pessoas, pois ela
é imprescindível no âmbito da participação.
Para Souza37, Habermas busca unir uma bandeira liberal, a proteção do indivíduo, a
uma bandeira comunitária, a participação democrática, conceitos que não devem ser tratados
de maneira excludente, mas sim complementar.
Desse modo, cabe destacar que o direito é o canal pelo qual o poder comunicativo
transforma-se em poder administrativo, ou seja, o canal pelo qual a participação dos cidadãos
surte efeito nas decisões públicas. Considerando o princípio da soberania popular, pelo qual
todo o poder do Estado vem do povo, o direito subjetivo à participação na formação
democrática da vontade une-se à possibilidade jurídico-objetiva de uma prática
institucionalizada de autodeterminação dos cidadãos.38. Habermas afirma:
[...] Na linha da teoria do discurso, o princípio da soberania do povo significa que
todo o poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O exercício
do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos criam para si
mesmos numa formação da opinião e da vontade estruturada discursivamente.
[...].39

35
LOBATO, Anderson Orestes Cavalcante; WIENKE, Felipe Franz. Participação popular no Direito
Ambiental: desafios para a efetivação do princípio democrático. In: LUNELLI, Carlos Alberto (org.). Direito,
Ambiente e Políticas Públicas. Curitiba: Juruá, 2011, p. 38.
36
SOUZA, Leonardo da Rocha de. Direito ambiental e democracia deliberativa. Jundiaí, SP: Paco
Editorial, 2013, p. 103-104.
37
SOUZA, Leonardo da Rocha de. Direito ambiental e democracia deliberativa. Jundiaí, SP: Paco
Editorial, 2013, p. 105.
38
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume 1. 4. ed. rev. compl. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 212.
39
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume 1. 4. ed. rev. compl. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 213.
718

Nota-se, a partir desse trecho, que, para Habermas, a participação é pressuposto da


própria legitimidade, pois o exercício do poder político origina-se nas leis que os cidadãos
criam para si mesmos através da formação de opinião estruturada discursivamente, ou seja,
o destinatário da norma deve participar de sua elaboração e assentir com a sua existência.

3 CADASTRO AMBIENTAL RURAL

Transpondo essas questões para a situação específica do Cadastro Ambiental Rural,


constata-se que a participação no processo de implementação é fator fundamental, visto que
se está lidando com a divulgação de dados ambientais de propriedades privadas. Nesse
sentido, é necessária a compreensão por parte dos produtores rurais de que a preservação do
meio ambiente transcende o aspecto individual do aproveitamento do solo e dos ganhos
econômicos. A própria aquiescência do proprietário rural em prestar as informações
necessárias quando da adesão ao cadastro pressupõe a existência prévia de participação ou,
ao menos, de informação, visto que, apesar das consequências do não cadastramento, o ato
de se cadastrar não é compulsório no sentido de coação.
Peters e Panasolo40 elencam efeitos da falta de cadastramento. Entre eles, estão a
possibilidade de o produtor sofrer sanções administrativas, tais como advertências e multas,
além da proibição de obtenção de licenças e autorizações ambientais; a impossibilidade do
cômputo das APPs (Áreas de Preservação Permanente) no percentual da Reserva Legal; a
proibição do proprietário ou possuidor rural aderir ao PRA (Programa de Regularização
Ambiental); a impossibilidade de suspensão da exigibilidade das sanções pecuniárias
decorrentes das infrações ambientais e da punibilidade dos crimes previstos nos artigos 38,
39 e 48 da Lei 9.605, de 12/02/1998; a proibição da continuidade de atividades
agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas de uso consolidado de Áreas
de Preservação Permanente que já estavam sendo utilizadas em 22/07/2008; a proibição da
concessão de crédito agrícola.
Nota-se, pois, que a motivação predominante para efetuar o cadastramento pode ser
buscar evitar as consequências jurídicas da sua falta, mas também pode haver uma genuína

40
PETERS, Edson Luiz; PANASOLO, Alessandro. Cadastro Ambiental Rural – CAR & Programa de
Regularização Ambiental – PRA. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2014, p. 58-60.
719

preocupação com o meio ambiente, ainda que não problematizada, ou de acordo com a teoria
habermasiana, oriunda do mundo da vida dentro do qual está inserido aquele indivíduo.
Para exemplificar, em 2016, a Fundação SOS Mata Atlântica lançou o documentário
Cumpra-se, sobre o CAR e as iniciativas do Poder Público do município de Caxias do Sul
para a sua implementação. Nesse documentário, é entrevistada uma senhora, produtora rural,
que afirma que já era costume preservar as áreas adjacentes ao rio que passa pela
propriedade, pois desde gerações mais antigas, falava-se que isso era importante para a
continuidade da atividade e o equilíbrio do local.41
Esse é um exemplo claro de conhecimento oriundo do mundo da vida, que Habermas
caracteriza como uma teia de tradições, instituições, costumes e competências que podem
ser chamados de racionais, na medida em que fomentam a solução de problemas que surgem,
além de possibilitar a formação de opiniões, ações e comunicações racionais. No mundo da
vida, as pessoas interpretam suas experiências e aprendizados, entendendo-se umas com as
outras.42
Verifica-se que nesse caso, através da experiência e da comunicação racional entre
indivíduos, a senhora entrevistada sabia que a vegetação daquela área deveria ser preservada,
não obstante o fato de não ter tido uma especialização acadêmica na área ambiental.
A partir disso, infere-se que a informação adquire mais uma acepção, a de
transmissão de conhecimentos no âmbito do mundo da vida, através da tradição, da interação
e do entendimento entre indivíduos.
Embora Habermas fale em elementos para uma deliberação ideal, os quais podem
não ter se concretizado inteiramente na prática, até mesmo porque, não obstante os
mecanismos de participação implantados durante sua tramitação, a lei em questão (Código
Florestal de 2012) não obedeceu um procedimento deliberativo para sua aprovação.
De toda a sorte, é possível identificar elementos convergentes entre a teoria do
discurso de Habermas e a criação e implementação do Cadastro Ambiental Rural. Além
disso, esse instrumento tem fundamental importância na consecução do direito à informação.

41
SOS MATA ATLÂNTICA. SOS Mata Atlântica lança documentário “Cumpra-se”, que aborda os 4
anos do novo Código Florestal. 2016. Disponível em: <https://www.sosma.org.br/noticias/sos-mata-
atlantica-lanca-documentario-cumpra-se-que-aborda-os-4-anos-novo-codigo-florestal/> Acesso em: 29 ago.
2020.
42
SOUZA, Leonardo da Rocha de. Direito ambiental e democracia deliberativa. Jundiaí, SP: Paco
Editorial, 2013, p. 52-53.
720

O CAR é um instrumento extremamente importante para a realização do banco de


informações a respeito dos biomas de todo o país, coletando informações, para
monitoramento e combate do desmatamento das vegetações nativas e análise das
áreas já devastadas. Ele irá identificar as áreas de reserva legal e as áreas de
preservação permanente das propriedades rurais de todo o país. Com o cadastro,
os órgãos ambientais conseguirão saber quem está seguindo o que determina a
lei.43

Outro ponto a ser lembrado é a extinção da obrigatoriedade de averbação da Reserva


Legal do imóvel no Cartório de Registro de Imóveis caso o proprietário tiver aderido ao
CAR, o que, à primeira vista, pode parecer uma violação do direito à informação, visto que
não será mais obrigatório averbar esse dado na matrícula do imóvel. Tal disposição encontra-
se no artigo 18, § 4° do Código Florestal de 201244.
Ferre e Steinmetz45 observam que a natureza jurídica do CAR é administrativa, não
se aplicando os princípios básicos dos registros jurídicos, tais como presunção de exatidão,
fé pública registral e oponibilidade. Apontam também que a Lei 12.651/2012 estabelece, no
artigo 2°, § 2°, que “as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas
ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel
rural”. Dessa forma, os autores fazem uma crítica da nova disposição legal, visto que a
oponibilidade erga omnes gerada pelo registro ficaria prejudicada, gerando consequências
inclusive quanto à redução proteção ambiental de modo geral.
Bessa Antunes46 posiciona-se a respeito da questão, afirmando que a Reserva Legal
é uma obrigação que acompanha o imóvel e, como tal, deve ser averbada no mesmo local
em que se encontra registrado o imóvel. Além disso, o legislador estaria dispondo sobre
registros públicos e não sobre proteção às florestas e outras formas de vegetação,
extrapolando, portanto, o objetivo da lei.

43
CREA RS. Cadastro ambiental rural no Rio Grande do Sul. Disponível em: < http://www.crea-
rs.org.br/site/index.php?p=ver-noticia&id=3338> Acesso em: 07 jul. 2017.
44
Art. 18. A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição
no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer
título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei.
§ 4o O registro da Reserva Legal no CAR desobriga a averbação no Cartório de Registro de Imóveis, sendo
que, no período entre a data da publicação desta Lei e o registro no CAR, o proprietário ou possuidor rural que
desejar fazer a averbação terá direito à gratuidade deste ato.
45
FERRE, Fabiano Lira; STEINMETZ, Wilson. Cadastramento ambiental rural e averbação da reserva legal
no novo Código Florestal brasileiro: uma análise crítica. Revista Internacional de Direito Ambiental, Caxias
do Sul, ano IV, n. 11, p. 121-134, maio/ago. 2015, p. 129-130.
46
BESSA ANTUNES, Paulo de. Comentários ao Novo Código Florestal: atual. de acordo com a Lei n.
12.727/12. São Paulo: Atlas, 2013, p. 164.
721

Cabe lembrar, no entanto, que o CAR é necessário no momento de transmitir um


imóvel rural, e, portanto, permite que o futuro proprietário consulte antecipadamente as
informações sobre a reserva legal, possibilitando a prévia verificação da regularidade
ambiental do referido imóvel. Ressalta-se que se trata de instrumento de caráter permanente
e que a forma de demonstrar a reserva legal apenas foi modificada e não extinta. De toda a
sorte, faz-se mister citar as recomendações do Serviço Florestal Brasileiro sobre os
procedimentos quanto ao CAR a serem observados na aquisição de um imóvel rural.
Primeiramente, em relação ao CAR, recomenda-se como procedimento, solicitar
ao vendedor a cópia ou o número do “Recibo de Inscrição do Imóvel Rural no
CAR”; e verificar, por meio do Demonstrativo da Situação do CAR, a situação das
declarações e informações cadastradas ou retificadas, em especial, a situação da
aprovação da localização da área de Reserva Legal e dos indicativos de ativos ou
déficits de remanescentes de vegetação nativa em áreas de Reserva Legal e de
Preservação Permanente. A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão
ambiental competente por meio de inscrição no CAR, sendo vedada a alteração de
sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de
desmembramento, com as exceções previstas em Lei. A aprovação da localização
da Reserva Legal é fundamental aos procedimentos de compra e venda, uma vez
que, em caso de fracionamento do imóvel rural, a qualquer título, será considerada,
para fins de definição da área mínima de reserva, a área do imóvel antes do
fracionamento. Por meio do Demonstrativo da Situação do CAR também podem
ser verificadas outras restrições do imóvel rural, como sobreposições com outros
imóveis rurais, com Terras Indígenas, com Unidades de Conservação da Natureza,
e com áreas embargadas pelos órgãos de controle e fiscalização ambiental.
[...]Uma vez efetivada a negociação do imóvel rural, o novo proprietário ou
possuidor deve assegurar-se que a inscrição no CAR seja retificada para alteração
dos dados referentes à transação, incluída a atualização dos dados referentes aos
novos proprietários.47

Infere-se, pois, que independentemente da necessidade de averbação da Reserva


Legal na matrícula do imóvel no Registro de Imóveis, em uma situação de transmissão de
propriedade, cabe ao adquirente verificar a situação ambiental da propriedade, visto que
eventual passivo ambiental é obrigação propter rem, ou seja, acompanha o imóvel e é
transmitido ao seu adquirente.
Nesse contexto de implementação do Cadastro Ambiental Rural, que engloba o
cadastramento dos imóveis rurais e o posterior tratamento dos dados por órgão estadual
integrante do SISNAMA ou por outra instituição por ele habilitada, em que serão validados
os dados declarados no cadastro, inclusive sobre a localização da Reserva Legal, cabe

47
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Serviço Florestal Brasileiro. Perguntas frequentes – CAR.
Disponível em: <http://www.florestal.gov.br/o-que-e-o-car/61-car/167-perguntas-frequentes-car> Acesso em:
10 dez. 2017.
722

ressaltar que após o início da vigência do Código Florestal de 2012, o prazo para que o
cadastro dos imóveis rurais fossem efetuados foi sendo adiado diversas vezes.
Atualmente, a redação do artigo 29, § 3° do Código Florestal, dada pela Lei n. 13.887,
de 2019, estabelece que: “A inscrição no CAR é obrigatória e por prazo indeterminado para
todas as propriedades e posses rurais”. Com isso, ficou resolvida a celeuma do prazo máximo
para inscrição no CAR. Todavia, há a ressalva de que para a adesão ao Programa de
Regularização Ambiental, o cadastro deve ser feito obrigatoriamente até 31/12/2020,
conforme disposto no § 4° do artigo 29 do mesmo diploma legal.
A partir do exposto, percebe-se que o Cadastro Ambiental Rural ainda está em fase
de implementação, visto que ainda não foram concluídas todas as etapas de cadastramento e
validação pelos órgãos competentes. Sendo assim, conclui-se que ainda há pontos em aberto
e passíveis de modificação.
Apesar disso, ele já é utilizado para finalidades como a obtenção de crédito rural e
tem o potencial de se transformar em um instrumento muito importante em nível nacional
para o planejamento ambiental, combate ao desmatamento e para a própria concretização do
direito à informação ambiental.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo foi dividido em duas partes. Na primeira, partiu-se de uma descrição das
diferentes acepções da palavra informação para chegar à informação ambiental. E a partir
da análise desta, foi possível tecer observações sobre seus desdobramentos e reflexos na
participação em matéria ambiental e no acesso à justiça. Os três aspectos somados são
denominados Tripé de Aarhus e constituem pontos a serem desenvolvidos no Direito
Ambiental brasileiro para uma maior efetividade deste.
Além disso, deu-se destaque à teoria de Habermas no que tange à participação, vista
pelo autor como pressuposto da própria legitimidade.
Na segunda parte do texto, o foco foi no Cadastro Ambiental Rural, instrumento
criado pelo Código Florestal de 2012 com o intuito de formar uma base de dados dos imóveis
rurais brasileiros, com vistas à preservação ambiental, planejamento e monitoramento.
Analisou-se o CAR à luz da teoria habermasiana, para em seguida demonstrar
questões específicas referentes ao cadastro e ao direito de informação. A existência do
Cadastro Ambiental Rural em determinada propriedade permite, por exemplo, que a Reserva
723

Legal não seja mais averbada na matrícula do respectivo imóvel no Registro de Imóveis.
Apesar disso, o direito à informação permanece, bem como sua possibilidade de ser
efetivado, até porque cabe ao adquirente da propriedade o papel de verificar a situação
ambiental dela, visto que um eventual passivo ambiental é obrigação propter rem, ou seja,
acompanha a propriedade e passa para seu adquirente. Desse modo, conforme orientação do
Serviço Florestal Brasileiro, é recomendável obter uma cópia do CAR e analisar a situação
da Reserva Legal, bem como de APPs, áreas consolidadas e demais elementos, visto que as
informações estão disponíveis no cadastro.
Após análise exposta ao longo do artigo, conclui-se que o Cadastro Ambiental Rural
é um importante instrumento para o Direito Ambiental brasileiro, permitindo, inclusive, a
materialização do direito à informação ambiental pela extensa gama de informações que
disponibiliza. Para tal, entretanto, é necessário que haja celeridade do Poder Público na
validação dos cadastramentos já efetuados, a fim de que se tenha um mapeamento acurado
dos imóveis rurais brasileiros e das áreas de Reserva Legal, com a finalidade de
monitoramento, planejamento e, sobretudo, de preservação ambiental.

5 REFERÊNCIAS

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n. 12.727/12. São Paulo: Atlas, 2013.

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nativa; altera as Leis n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996,
e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965,
e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001;
e dá outras providências. Brasília, DF, 25 de maio de 2012. Disponível em: <
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Conference on Environment and Development, Rio de Janeiro, Brasil, 3-14 de junho de
1992. Disponível em: <https://pactoglobalcreapr.files.wordpress.com/2010/10/declaracao-
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SOUZA, Leonardo da Rocha de. Direito ambiental e democracia deliberativa. Jundiaí,


SP: Paco Editorial, 2013.
726

UMA BREVE LEITURA CRIMINOLÓGICA A RESPEITO DOS


CRIMES DE COLARINHO BRANCO E DA APLICAÇÃO DO
ACORDO DE LENIÊNCIA NO BRASIL

Luma Costa Minotto Pereira1

Resumo: Considerando a necessidade de resgate do estudo das ciências criminais para o


entendimento da prática forense realizada na contemporaneidade no que diz respeito aos
crimes financeiros e de corrupção no Brasil, o presente trabalho pretende, através da
criminologia, analisar a forma com que estes crimes são encarados e combatidos conforme
o ordenamento jurídico pátrio, bem como analisar um dos principais instrumentos
implementado há pouco pela legislação atual para este fim, o acordo de leniência. Nesse
sentido, discute-se o efetivo atendimento ao interesse público através da inserção e
fiscalização do cumprimento do acordo de leniência firmado com a pessoa jurídica
transgressora, bem como avalia os benefícios trazidos pela prática dos institutos previstos na
Lei Anticorrupção no auxílio à investigação criminal. O método de abordagem adotado foi
o dedutivo e a pesquisa foi realizada através do estudo de doutrinas e legislações sobre o
tema.

Palavras-chave: Acordos de Leniência. Crimes de colarinho branco. Criminologia.

1. INTRODUÇÃO

Tendo em vista a alta complexidade que envolve a investigação dos crimes


financeiros no Brasil, em especial os ocasionados através de grandes escândalos políticos
deflagrados corriqueiramente no território nacional, faz-se necessária a busca por
instrumentos eficazes de combate e prevenção aos crimes de corrupção ativa e passiva, que
inclusive auxiliem no ressarcimento do erário, que sabidamente são valores exorbitantes e
prejudicam todo o país, fazendo imensa falta a suas destinações originais, a exemplo da
saúde, educação e segurança pública.
Neste contexto, surgiram os instrumentos trazidos pela Lei Anticorrupção (LAC –
n.º 12.846/13), em especial o que será abordado neste trabalho, previsto em seu artigo 16, o
acordo de leniência, questionando-se se a aplicação dos institutos previstos na Lei n.º
12.846/13, em especial o firmamento de acordos de leniência, é suficiente para alcançar a

1
Graduada em Direito pela Universidade da Região da Campanha, especialista em Docência para o Ensino
Superior pela Faculdade Unina, mestranda em Educação e Ensino pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, advogada (OAB/RS n.º 120.849) e membro do IBCCRIM. E-mail: lumacostaminotto@hotmail.com
727

responsabilidade civil e penal aos agentes dos crimes financeiros no país, sejam eles pessoas
físicas ou jurídicas.
Assim sendo, tem-se a explícita relevância do tema, tendo em vista a repercussão
nacional tomada pela operação Lava Jato, que foi iniciada em 2009 em primeira instância,
no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com o objetivo de investigar crimes financeiros
praticados contra a Administração Pública, o Sistema Financeiro Nacional e a ordem
Econômica e Tributária. Durante as investigações da referida Operação, que até o momento
de elaboração deste trabalho contava com 55 fases, o uso do instituto objeto deste estudo foi
fundamental para o prosseguimento do processo investigatório e penal, bem como para
agilizar o início do cumprimento de algumas sanções as pessoas jurídicas infratoras.

Ademais, a pertinência acadêmica e jurídica é notável visto que trabalhará com uma
perspectiva diferenciada da investigação e do processo penal em si, através de legislações
esparsas ainda pouco abordadas que tratam do tema, a exemplo das Leis n.º 12.846/13,
12.850/13, 13.140/15 e 12.529/11, bem como a Convenção de Mérida e a Convenção de
Palermo.
O método adotado foi o dedutivo, levando em consideração que no raciocínio
dedutivo os argumentos apresentados são primeiramente considerados como inquestionáveis
e verossímeis para que, em um segundo momento, as conclusões formais sejam construídas
de forma lógica a partir dos axiomas estabelecidos2. A pesquisa foi realizada através da
análise doutrinária, bem como de precedentes jurisprudenciais do Tribunal Regional da 4ª
Região.

2. OS CRIMES DE COLARINHO BRANCO PELO OLHAR CRIMINOLÓGICO

Antes de adentrar-se ao estudo dos crimes de colarinho branco e a forma com que
são encarados pela Criminologia, faz-se necessária uma breve visita a historicidade do
termo. A Escola Clássica da Criminologia, aqui exposta principalmente pelos pilares do
Marquês de Beccaria3, focava-se na legitimidade das punições e nos requisitos para a
efetividade destas, a fim de se chegar ao "controle social", a partir de então, o autor

2
MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito. P.
91. São Paulo: Saraiva. 2014.
3
BRÜGGEMANN, Henrique Gualberto. O espetáculo da corrupção: o corrupto como produto. p. 07.
Florianópolis: UFSC, 2013.
728

considerou como ilegítimas todas as penalidades que transgridam aos contratos sociais e que
não visam evitar o cometimento de novos delitos4.
Apresentando um rascunho interessante, Beccaria e seu legado trouxeram a
Criminologia um refresco, de desvincular a imagem do ilícito com o pensamento comum de
ser uma característica de herege, de origem demoníaca, graças à influência iluminista
presente na escola clássica, a desvinculação foi possível e começou-se o processo de
interpretação do delito como algo "meramente jurídico"5, contudo, ainda que revolucionasse
para o contexto da época, a escola clássica ainda não considerava os fatores sociais no
contexto criminológico.
Em meados de 1870, a escola de Beccaria, que já existia há aproximadamente um
século, começou a dar frutos, como a criação da Escola Positiva. O novo movimento,
inflamado pelo contexto de modernização político-intelectual começou a olhar a
criminalidade com olhos mais humanos, voltando-a para origens patológicas, fisiológicas e
até mesmo biológicas, atribuindo a um determinado grupo de pessoas "características
criminais", que em tese, as separavam do restante da sociedade6.
A Escola Positiva pode ser facilmente detectada por apresentar três pressupostos
muito marcantes de sua base, em primeiro lugar, por tratar o crime como fenômeno natural,
em segundo, por conhecer este fato (crime) através das ciências naturais e por fim, pela
forma como observa os considerados criminosos, tentando entender as causas que os levaram
ao cometimento do ilícito, a fim de extingui-las da sociedade7.
Logo, pode-se traçar uma gritante diferença entre as duas escolas, enquanto a
primeira trazia o ideal de pena com tempo limitado, que fosse o suficiente para reparação do
ilícito cometido, a segunda defende que a pena deve durar (ainda que infinitamente) até que
se "recupere" o individuo transgressor8.
Ainda que pareça rude por trazer as tais características que deixam o homem rotulado
como futuro transgressor ou não (fato veementemente combatido pelos garantistas na

4
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. p. 86. São Paulo: EDIPRO, 2003.
5
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do Direito
Penal. 3ª. ed. Tradução Juarez Cirino dos Santos. p. 38. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de
Criminologia, 2002.
6
DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuela da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a
sociedade criminógena. p. 11. 2ª. ed. Coimbra: Coimbra, 1997.
7
THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? p. 39. Rio de Janeiro: Editora Achiamé, 1983.
8
BRÜGGEMANN, Henrique Gualberto. O espetáculo da corrupção: o corrupto como produto. p. 59.
Florianópolis: UFSC, 2013.
729

contemporaneidade), a Escola Positiva foi de suma importância para a criminologia que


conhecemos hoje, ademais, a escola positiva ainda é muito utilizada pelo senso comum, no
tocante a ideia de que se desvendando as causas de um crime, sua reincidência será menor.
Feito o breve resumo, ainda que não se desconsidere toda complexidade e aspectos
de cada escola, a fim de evitar prolixidade, passa-se a Criminologia Crítica, escola escolhida
para embasar a análise dos crimes financeiros.
Três dos grandes pilares onde repousa a criminologia crítica tomaram grande
dimensão na década de 60, momento histórico em que o movimento revolucionário tomou
as formas que nos acompanham até hoje. O primeiro deles é um dos principais quando se
trata do estudo de crimes de corrupção, do colarinho branco e afins. O labelling approach
passou a estudar o crime como fenômeno que envolvia muito além de o individuo ser ou não
herege, ou de possuir ou não uma patologia, mas trata de todo processo de interação das
condições as quais o individuo é submetido.
O estudo do labelling, desenvolvido pelo sociólogo Howard Saul Becker, foi
publicado em 1963, e nele ficou claro que é possível tentar compreender a criminalidade a
partir das normas mais básicas de convívio social e familiar, até as "oficiais", oriundas do
sistema judiciário9.
A partir desta teoria, fica fácil visualizar que quem constrói a imagem do indivíduo
como "pré-disposto" a prática de delitos ou como de "marginal" é a própria sociedade,
baseada nas instâncias do controle social10.
Foi possível constatar ainda, em choque com as escolas anteriores, que a pena na
verdade não atende a nenhum dos seus objetivos, uma vez que o condenado tem grandes
chances de permanecer na criminalidade do que de reeducar-se e voltar ao convívio social,
em primeiro lugar por que já devia estar em situação de marginalidade social antes de
praticar crimes, bem como sai do sistema ainda mais rotulado.
A Criminologia Crítica releva a verdade dolorida já conhecida pela sociedade, da
marcação permanente e discriminatória existente no sistema penal, pois se de um lado temos
os chamados "clientes habituais" deste sistema, que notoriamente são marginalizados e
pobres, e sempre sofrem as mesmas punições, de outro temos a elite social, que não somente

9
BECKER, Howard. Los extraños: sociología de la desviación. p. 61. Buenos Aires: Tiempo contemporáneo,
1971.
10
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do Direito
Penal. 3ª. ed. Tradução Juarez Cirino dos Santos. p. 86. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de
Criminologia, 2002.
730

comente ilícitos, como os cometem regularmente e lesionam de forma muito mais


significativa os objetos tutelados pelas normas penais, que não são criminalizados e frente
aos olhos da sociedade, permanecem em um imperialismo de impunidade11.
No que se refere à criminalidade de colarinho branco, brilhantemente aponta
Sutherland que os dominadores da ponta da pirâmide social são privilegiados em três
momentos bem marcantes do processo de produção das normas (que como apontado até aqui
é o que mais interfere na punibilidade e consequente rotulação e punição dos infratores). São
beneficiados quando da produção das normas, na aplicação destas aos seus casos em
específico e na forma com que acabam por cumprir as penas ou medidas de segurança a estes
impostas12.
A expressão crimes de colarinho branco (em livre tradução do termo original: "white
collar crimes" ou “delito de cuello blanco”), foi cunhada por Edwin Hardin Sutherland, que
após analisar diversas pesquisas feitas no sistema de dados das cortes norte americanas
chegou a conclusão que todas levavam ao mesmo resultado de que os crimes eram cometidos
pelos mais necessitados, reforçando o estereótipo de "cliente habitual" do direito penal13,
contudo, um dos objetivos de seu estudo foi demonstrar que os pertencentes a elite também
cometiam infrações graves, de forma reiterada, nesse sentido, buscou as motivações destas
pessoas e os caminhos percorridos para que se chegasse a punição, e se era possível de fato,
puni-las.
Sutherland chegou a inevitável conclusão de que os criminosos de colarinho branco
muitas vezes nem se submetiam a esfera penal, pois tinham suas ilicitudes resolvidas nas
esferas administrativas, ademais, apontou os três principais fatores que diminuíam a
incidência de persecução penal para estes ilícitos, sendo a primeira o status social de seus
autores, a já citada resolução extra judicial e a falta de organização das "vítimas" dos crimes
de colarinho branco14, tendo em mente que os autores e vítimas norte-americanos geralmente
são empresas privadas, diferentemente do que ocorre no Brasil, conforme será elucidado em
outro capítulo do presente trabalho.

11
IBIDEM, p. 211.
12
CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. Criminologia crítica e a crítica do direito penal econômico. Verso e
reverso do controle penal: (des)aprisionando a sociedade da cultura punitiva. p. 61. Florianópolis: Fundação
Boitex, 2002.
13
SUTHERLAND, Edwin H. El Delito de Cuello Blanco. p. 61. Madrid: La Piqueta, 1999.
14
IBIDEM, p. 266.
731

3. A IMPLEMENTAÇÃO DO ACORDO DE LENIÊNCIA NO PROCESSO PENAL


BRASILEIRO

Os crimes financeiros, em especial os descobertos nas últimas décadas, fazem parte


da construção da criminalidade moderna contemporânea, que nas palavras de Hassemer15,
transcendem a transgressão dos direitos individuais universais, violam muito mais do que
apenas a liberdade, a honra ou a vida de forma singular, como tutela o Direito Penal Clássico,
mas viola a capacidade funcional de estruturação e manutenção do mercado de subsídios.
Logo, se aliarmos o Direito Penal Contemporâneo à modernização do sistema
financeiro e da forma de acesso a este, tem-se um aumento na facilidade em movimentações
clandestinas e fraudes ao fisco. Ademais, cabe ressaltar que esta vertente da criminalidade
exsurge-se com um novo perfil de criminoso, que envolve uma "macrocriminalidade", o que
criou a necessidade de formas combativas mais modernas (inclusive através de novas
normas) para aumentar a capacidade de investigação, processamento e resultados eficazes
quando da persecução destes delitos16.
Trazendo o tema para a realidade nacional de necessidade de enfrentamento a
corrupção aos tratados e acordos internacionais sobre o tema dos quais o Brasil foi signatário,
a exemplo das Convenções de Mérida (promulgada no ordenamento jurídico nacional
através do Decreto n.º 5.687/2006) e de Palermo (implementada no ordenamento jurídico
nacional através do Decreto n.º 5.015/2004), surgiu a proposta da Lei Anticorrupção,
encaminhada pelo Poder Executivo Federal em 2010, tendo sido aprovada em 2013, após ter
sofrido algumas emendas17.
A Lei n.º 12.846/2013 já em seu art. 1º traz seu principal objetivo, qual seja, a
responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos
contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e no rol de incisos do seu art. 5º, os
atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, que atentem contra o
patrimônio público, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos
internacionais assumidos pelo Brasil, ademais, prevê responsabilização administrativa
(Capítulo III) e judicial (Capítulo VI) do agente.

15
HASSEMER, Winfred. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. p. 89. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2005.
16
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. La expansión del derecho penal. p. 80. Madrid: Editora Civitas. 2002.
17
SIMÃO, Valdir Moysés; VIANNA, Marcelo Pontes. O Acordo de Leniência na Lei Anticorrupção:
histórico, desafios e perspectivas. p. 23. São Paulo: Trevisan Editora, 2017.
732

Contudo, a leniência em si, tem suas raízes entranhadas no nosso ordenamento


jurídico antes da sua relação com as pessoas jurídicas envolvidas em atos ilícitos em desfavor
do patrimônio público, pois em 1994, visando instituir e melhorar o Sistema Brasileiro de
Defesa da Concorrência (SBDC), através do extermínio de práticas de cartéis dentro das
grandes corporações e inspirados na legislação americana antitruste, o termo "programa de
leniência" apareceu pela primeira vez na Lei n.º 12.529/1118, sendo disciplinado com regras
vigentes até hoje, mesmo com o advento da Lei Anticorrupção.
Quanto à competência para sua aplicação perante os delitos de ordem econômica,
tem-se o entendimento do STJ de que seria, via de regra, da Justiça Estadual, nesse sentido
observam-se diversos julgados, a exemplo do CC 119.350/PR de 2014. Outrossim, se o
delito atingir bens da União ou mais de dois estados-membros, nos termos do art. 109, IV,
da Constituição Federal de 1988, será de competência do Ministério Público Federal.
Importante ressaltar ainda que a Lei Anticorrupção, através do marker system,
beneficia com o acordo de leniência somente a primeira empresa que manifestar interesse
em colaborar, contudo, em eventual não fechamento do acordo após o início das
negociações, tem-se que as documentações e informações prestadas pela pessoa jurídica não
terão força de confissão e serão devolvidos a empresa, para que não haja produção de prova
contra si própria, garantindo-se o sigilo destas tratativas preliminares19.
Assim sendo, surgiu o instituto do acordo de leniência, que nos ensinamentos de
Custódio Filho, Santos e Bertoncini20, é um acordo de colaboração entre o Poder Público e
o particular investigado por prática de ato lesivo ao erário ou infração à ordem econômica
nacional.
Sua natureza jurídica pode ser definida como uma espécie de colaboração premial
contratual, e justamente por ser assemelhar a um contrato, apresenta bilateralidade,
obrigações recíprocas, voluntariedade e existência de um processo prévio de negociação
baseado na consensualidade21.

18
TAFARRELO. Rogério Fernando. Acordos de Leniência e de Colaboração Premiada no direito
brasileiro: admissibilidade, polêmicas e problemas a serem solucionados. p. 7. São Paulo: Revista dos
Tribunais. 2017.
19
MORAIS, Flaviane de Magalhães Barros Bolzan de; BONACCORSI, Daniela Villani. A colaboração por
meio do acordo de leniência e seus impactos junto ao processo penal brasileiro - um estudo a partir da
"Operação Lava Jato". Revista Brasileira de Ciências Criminais. p. 16. São Paulo. 2016.
20
CUSTÓDIO FILHO. Ubirajara; SANTOS. José Anacleto Abduch; BERTONCINI. Mateus. Comentários à
Lei n.º 12.846/2013 (Lei Anticorrupção). p. 233, São Paulo. Revista dos Tribunais. 2014.
21
TAFARRELO. Rogério Fernando. Acordos de Leniência e de Colaboração Premiada no direito brasileiro:
admissibilidade, polêmicas e problemas a serem solucionados. p. 7. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2017.
733

4. A RELEVÂNCIA DA LEI N.º 12.846/13 PARA O ALCANCE DA


RESPONSABILIDADE DOS AGENTES DOS CRIMES FINANCEIROS NO
BRASIL

Antes de adentrar ao estudo dos institutos utilizados no combate as práticas de crimes


financeiros, que foram introduzidos no ordenamento jurídico pátrio através da Lei
Anticorrupção, faz-se necessário entender o conceito de corrupção, “a corrupção como
categoria geral abarca a corrupção ativa e passiva, o peculato e o peculato de uso, o tráfico
de influência, a exploração de prestígio, o abuso de poder e a lavagem de dinheiro. Sob um
enfoque crítico constitui-se na violação dos deveres jurídicos, deontológicos e éticos
associados ao desempenho de qualquer cargo público ou político, objetivando vantagens
individuais ou organizacionais ilegítimas. Sublinho que, ao contrário da criminalidade
convencional, a criminalidade do colarinho branco, onde se insere a corrupção e as práticas
ilícitas conexas, possuem como protagonistas pessoas com um perfil diverso, pois
caracterizadas por um ambiente familiar, profissional e social estável e produtoras de uma
grave ofensividade ao bem jurídico que atingem erga omnes.”22.
Já na esfera penal, antes da criação da Lei Anticorrupção (LAC), o crime de
corrupção era tratado pelo Código Penal Brasileiro em seus artigos 218, 317 e 333, contudo
com significados e implicações objetivas e subjetivas muito diferentes, uma vez que o art.
218 trata da corrupção de menores, no que tange ao induzimento de práticas lascivas,
enquanto os outros dois dispositivos referem-se as formas de corrupção, que podem ser ativa
(art. 333 do CP), atribuída ao agente que tentar corromper o servidor público a lhe conceder
vantagem ilícita, ou passiva (art. 317 do CP), referente ao agente público que se permite
corromper23.
Contudo, apenas essa definição não era suficientemente eficaz no combate as práticas
delitivas de corrupção, em especial as praticadas por agentes políticos e membros do
legislativo, visto que o sentimento de impunidade era perceptível e as raízes corruptivas eram
fincadas no patrimonialismo brasileiro desde suas origens mais remotas, fazendo-se

22
COSTA, Gisela França da. Breve Panorama do Pensamento de Edwin H. Sutherland e a nova etiologia da
criminalidade. In: SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Inovações no direito penal econômico – contribuições
criminológicas, político-criminais e dogmáticas. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União,
2011. Disponível em: https://escola.mpu.mp.br/publicacoes/obras-avulsas/e-books/inovacoes-no-direito-
penal-economico-contribuicoes-criminologicas-politico-criminais-e-dogmaticas.
23
OLIVEIRA, Edmundo. Crimes de corrupção. p. 38. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
734

necessária a implementação de mecanismos mais modernos de combate ao delito e as novas


formas com que os atos corruptivos vinham sendo praticados24.
Os elementos supracitados no capítulo anterior, trazidos pelos textos normativos
mais recentes sobre o tema (leis n.º 12.529/11 e 12.846/2013) inovaram a forma de combate
à corrupção uma vez que finalmente demonstraram os requisitos da determinação da
responsabilidade da pessoa jurídica de forma objetiva e em consonância com o art. 225, §3º
da Constituição Federal de 1988, se esta praticar algum dos atos previstos no art. 5º da Lei
Anticorrupção, comprovadamente através de provas do fato, resultado e nexo causal já será
devidamente responsabilizada25.
Nesta senda, Taffarrelo26 considera o instituto em voga como sendo um "ato
administrativo consensual", em virtude de tratar com a conduta dos agentes, a emergência
do Estado Social em que nos encontramos e da complexidade que este último passou a adotar
em relação aos seus administrados.
A responsabilidade objetiva da pessoa jurídica escolhida pelo legislador, além de
viabilizar a celeridade do processamento e de ocasional devolução de verbas eventualmente
desviadas de maneira ilícita, facilita na comprovação do dolo ou culpa dos agentes e na
forma de negociação com estes através do instituto previsto no Capítulo V da Lei n.º
12.846/2013, o acordo de leniência27.
A aplicabilidade do acordo de leniência como forma de combate as práticas
delituosas corruptivas necessita de alguns requisitos, sendo o mais importante a escolha
espontânea daquele agente que deseja firmar o acordo, visando não a extinção da
punibilidade, que não é o objetivo do instituto, mas auxiliar na persecução penal, visto que
o tipo delitivo em tela requer uma certa complexidade em sua investigação, bem como

24
LIVIANU, Roberto. Corrupção e direito penal – um diagnóstico da corrupção no Brasil. p. 153. São Paulo:
Quartier Latin, 2006.
25
ROCHA, Liliane Rosa Lemos; et al. Caderno de pós-graduação em direito: Lei anticorrupção. Brasília:
UniCEUB, 2018. Disponível em:
http://repositorio.uniceub.br/bitstream/235/12177/3/Lei%20Anticorrup%C3%A7%C3%A3o.pdf.
26
TAFARRELO. Rogério Fernando. Acordos de Leniência e de Colaboração Premiada no direito brasileiro:
admissibilidade, polêmicas e problemas a serem solucionados. p. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2017.
27
ROCHA, Liliane Rosa Lemos; et al. Caderno de pós-graduação em direito: Lei anticorrupção. Brasília:
UniCEUB, 2018. Disponível em:
http://repositorio.uniceub.br/bitstream/235/12177/3/Lei%20Anticorrup%C3%A7%C3%A3o.pdf.
735

possibilitar a aplicação de algumas sanções de formas menos gravosas ao réu, ao contrário


do que ocorre na delação premiada na esfera penal28.
Cumpre salientar que para os efeitos do acordo de leniência sejam obtidos pelo
interessado, este deverá apresentar provas (documentais e testemunhais) válidas, que
efetivamente auxiliem no aprofundamento investigação, sujeitas a comprovação pelos
investigadores, que levem a resolução do caso e demonstrem o envolvimento de outras
pessoas jurídicas ou outros agentes públicos (em concurso) nas condutas corruptivas do caso
em tela29.
As sanções que poderão ser aplicadas de forma menos gravosa caso firmado o acordo
entre as partes são: dispensa da publicação condenatória (art. 6º, II), isenção de ocasional
punição de viesse a proibir a pessoa jurídica (parte do acordo) a obter incentivos,
empréstimos, doações, subsídios e subvenções do Poder Público (art. 19, IV) e redução de
possível multa ocasionada em virtude de condenação aplicável até dois terços.
Logo, explicitada a importância do instituto no combate a corrupção no país, embora
criticado, não se pode ignorar que o firmamento do acordo de leniência não traz extinção da
punibilidade do fato, em virtude da indisponibilidade do interesse público no que diz respeito
a necessidade de reparação do dano no âmbito penal-administrativo.
Sobre o assunto, leciona Modesto Carvalhosa que as críticas baseiam-se no equívoco
de entender o acordo de leniência como panaceia universal, que o único incentivo do acordo
de leniência é o da diminuição das punições (jus puniendi) e que não tendo o pacto efeitos
além dele, para atingir outras esferas punitivas ou reparatórias previstas no ordenamento
jurídico, nas esferas civil, penal e administrativa, perde-se sua efetividade 30.
Cabe ressalva ao art. 16 da Lei Anticorrupção, que conforme supracitado, permite
que seja celebrado o acordo de leniência (aquém dos requisitos já mencionados) quando a
pessoa jurídica investigada for a primeira a manifestar sua vontade de colaborar com as
investigações e cessar completa e imediatamente sua participação na infração investigada a
partir da data de propositura do acordo, confessando sua participação e cooperando de forma
efetiva nas investigações e respectivo processo administrativo.

28
CARVALHOSA, Modesto. Considerações sobre a Lei Anticorrupção das Pessoas Jurídicas: Lei 12.846/13.
1ª ed. p. 378. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
29
IBIDEM, p. 380.
30
IBIDEM, p. 377.
736

O sucesso dos programas de leniência pode ser atribuído ao fato de que desde o
primeiro acordo firmado nesta modalidade, em outubro de 200331, que embora visasse à
continuidade das empresas perante o mercado e atacasse a formação de cartéis no setor
privado, não tratando de corrupção no âmbito de Direito Público, tem-se que até o ano de
2016 foram concretizados pelo menos mais cinquenta acordos deste espécie, especialmente
na área de investigação e combate à corrupção ligada ao Direito Público, à luz do art. 16 da
Lei n.º 12.846/1332.
Contudo, assevera Ferrajoli33 que a prática indiscriminada do direito penal premial
põe em risco a estruturação do sistema de garantias em virtude da iminente desigualdade de
forças em uma negociação entre o Estado (através do CADE – Conselho Administrativo de
Defesa Econômica ou Ministério Público) e o indivíduo (seja ele pessoa física ou jurídica),
bem como o perecimento das relações de causalidade e proporcionalidade entre delito e
pena, uma vez que esta passará a depender mais da habilidade negocial da defesa e da
discricionariedade da acusação do que da gravidade do delito.

5. A (POSSIBILIDADE DE) RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA


JURÍDICA
Levando em conta que não há um posicionamento majoritário quando o tema é a
(possibilidade de) punição da pessoa jurídica no âmbito penal, por conseguinte, a
possibilidade ou não de acordar-se e negociar sobre uma pretensão punitiva estatal, segundo
Santos tem-se a teoria da ficção, defendida por Ihering e a teoria da realidade, seguida por
Zitelmann34.
Em que pese a contemporaneidade das ciências criminais considerarem a teoria da
realidade como tendo maior aplicabilidade prática, tem-se o inquestionável ponto de que a
realidade da pessoa jurídica para fins punitivos é absolutamente diferente da realidade da

31 Processo administrativo guiado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) contra
empresas que atuavam no ramo de segurança e vigilância privada no estado do Rio Grande do Sul suspeitas de
formarem cartéis no ramo (PA 08012001826/2003-10 - disponível em:
http://www.cade.gov.br/noticias/antigas/cade-obtem-decisoes-judiciais-favoraveis-no-caso-cartel-dos-
vigilantes)
32
TAFARRELO. Rogério Fernando. Acordos de Leniência e de Colaboração Premiada no direito brasileiro:
admissibilidade, polêmicas e problemas a serem solucionados. p. 11. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2017.
33
FERRAJOLI. Luigi. Direito e Razão. p. 748-749. Madrid: Editora Trotta. 2005.
34
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora.
2002.
737

pessoa física. Neste sentido, leciona Reale que “a pessoa jurídica não é algo de físico e de
tangível como é o homem, pessoa natural”35.
Ademais, Santos36 relembra que por não possuir consciência, a pessoa jurídica não
será passível de ser punida pela responsabilidade penal objetiva pela prática de determinada
conduta criminosa, uma vez que isso afronta a teoria do fato punível. A pessoa jurídica não
possui capacidade de entender o ato como ilícito ou sequer decorre culpabilidade deste.
Corroborando a este entendimento, afirma Hassemer37 que o dolo e a culpa são os dois
elementos de uma conduta humana, dos quais resulta positivamente a possibilidade de
imputação subjetiva. Nesse sentindo, tem-se ainda o posicionamento que o ilícito penal
(crime ou contravenção) é fruto exclusivo da conduta humana, somente a pessoa física pode
ser sujeito ativo da infração penal.
Além do exposto, a responsabilização penal de pessoas jurídicas afronta diretamente
as teorias da pena, em especial ao princípio da intranscendência penal, que disposto no art.
5º, XLV da Constituição Federal de 1988, prevê que nenhuma pena passará da pessoa do
condenado, logo não seria contraditório aplicar uma mesma pena para um grupo de pessoas
físicas, apenas por serem membros da pessoa jurídica condenada?
Visando solucionar este empasse, tem-se o estudo de Hassemer38, o emérito jurista
alemão criou uma espécie híbrida de direito penal/administrativo, que nomeou de “Direito
de Intervenção”. Esta espécie abrange punições penais e administrativas para as pessoas
jurídicas que cometessem crimes ambientais, e foi adotada pelo ordenamento jurídico
brasileiro, que atualmente só pune penalmente as pessoas jurídicas transgressoras da
legislação ambiental.
Outrossim, ao analisarmos o tema da ótica positivista, encontram-se dois dispositivos
fundamentais sobre a responsabilidade dos atos da pessoa jurídica (sob a ótica do direito
penal) na Constituição Federal de 1988.
Pela mera leitura do texto legal é possível observar que o texto do art. 173, § 5.º,
visa tratar de eventuais sanções aplicáveis para atos ilícitos em desfavor da ordem econômica

35
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva. 1991.
36
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Moderna Teoria do Fato Punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora.
2002.
37
HASSEMER, Winfred. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. p. 92. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2005.
38
HASSEMER, Winfred. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. p. 89. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris. 2005.
738

e financeira, enquanto o art. 225 trata expressamente da responsabilidade perante os crimes


ambientais.
Para fechar o tópico, pertinente aliar o peso da doutrina supracitada com a realidade
fática pátria, nesse sentindo, segue o seguinte precedente do Tribunal de Justiça do estado
do Rio Grande do Sul, a posteriori, ainda, voto extraído do mesmo, do seu relator, o
Desembargador Gaspar Marques Batista39.
Face ao exposto, já defendia Lobato40 que a forma com que é disciplinada eventual
responsabilização da pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro não passa de uma
desconsideração da realidade fática para a criação de um "Direito Penal Simbólico", tendo
em vista que é fundamental as entidades de Direito Privado que almejem fins lícitos e
trabalhem com rendas e objetos advindos de fontes legais, e quando não o fazem, tem-se a
desconsideração da pessoa jurídica para atingir a pessoa física com a devida sanção
(principalmente eventual punição no âmbito penal), que é a pessoa que efetivamente o
Estado poder punir pelas formas coercitivas, buscando a penalização e a reintegração a fim
de que não sejam cometidos novos atos ilícitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No atual cenário jurídico brasileiro tem-se que a colaboração premial de forma geral
seja no âmbito penal ou administrativo/cível tem muita subjetividade ainda não explorada,
na medida em que possui “prêmios” e benefícios que não estão objetivamente fixados em

39
A atraente aplicação da proporcionalidade ao Direito Penal ignora (ou dá muito pouco importância) a uma
variável decisiva: a vedação de Untermassverbot não pode ser confundida com um mandato de incriminação.
Não há nenhuma demonstração de qualquer natureza de que um direito fundamental é fomentado ou protegido
por meio do Direito Penal. Assim, a sinonímia “proteger” = “incriminar” é uma falácia (confira-se O direito
penal ambiental e normas administrativas, de Helena Regina Lobo da Costa, Boletim do IBCCRIM, n. 155, p.
18-19, out. 2005). Registre-se que não se trata de se opor a uma culpabilidade das pessoas jurídicas (confira-
se, a propósito, meu A responsabilidade penal da pessoa jurídica para além da velha questão de sua
constitucionalidade, Boletim do IBCCRIM, n. 218). Antes, porém, de se desnaturar uma garantia constitucional
em nome da incriminação da mera violação à norma, verdadeiro Direito Penal máximo, mister se lembrar de
que se entende como Direito Penal democrático a tutela de bens jurídicos fundamentais (fragmentariedade +
ultima ratio), com observância da legalidade, da ofensividade, da culpabilidade e da humanidade. Como
nomear um Direito Penal eficientista, sem bens jurídicos (norma não é bem) e sem culpabilidade?” (Boletim
do IBCCrim, Ano 21, nº. 243 – Fevereiro de 2013 – ISSN – 3661, p. 1630). TJ/RS, HC n .º 70018196808, 4.ª
Câmara Criminal, julgado em 08 de março de 2007, rel. Des. Gaspar Marques Batista.
40
LOBATO, José Danilo Tavares. (Ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica: uma nova perspectiva in
Boletim IBCCRIM n.º 205, v. 17. 2009.
739

lei, muito pelo contrário, são tratados de forma discricionária, utilizados como trunfos pelas
forças acusatórias, quase de maneira coercitiva ante os investigados.
Ademais, resta evidente que há muita confusão prática quanto ao acordo de
leniência e a delação premiada (o que se pretende dirimir com o tempo de suas aplicações e
com a divulgação de trabalhos como o presente), aliados a prisões preventivas de
investigados ou envolvidos com as pessoas jurídicas suspeitas, diuturnamente divulgadas
pela mídia, invariavelmente retiram o elemento essencial dos acordos, a boa-fé objetiva, bem
como a vontade e a livre escolha destes, que conforme supramencionado, não tem a mesma
paridade de armas perante o aparato acusatório estatal.
Outro ponto nebuloso é quanto ao número de órgãos e esferas do poder que atuarão
na fase de controle e punição dos atos determinados no acordo, que além de gerar
insegurança jurídica na pessoa jurídica, cria uma espécie de punição bis in idem, na medida
em que poderão haver diversas sanções em esferas diferentes.
O que é perceptível, em especial na operação Lava-Jato, é que todas as lacunas
presentes na legislação brasileira antitruste e acordos de leniência, que, diga-se de passagem,
é repleta de pontos controversos, é acobertada por muito ativismo judicial pragmático
antinormativo.
Tem-se ainda que a pessoa jurídica não teria capacidade para cometer um ato ilícito
por si só, pois impossível atribuir-lhe consciência, dolo ou culpa pelas ações tomadas por
seus dirigentes, outrossim, a pessoa jurídica quando comete fraudes no âmbito fiscal, por
exemplo, é desconstituída para que as pessoas físicas por trás desta sejam atingidas pelas
sanções pertinentes, de forma a dar efetivada a punição estatal.
Além disso, a responsabilização penal da pessoa jurídica é prejudicada no tocante
a teoria do crime adotada pelo Brasil, pois traz elementos expressamente humanos, como
citado o dolo, e aqui cabe ressalva de que a conduta e a vontade dos sócios, membros e
dirigentes das empresas não se confunde com a da pessoa jurídica.
Por fim, aponta-se que a maior parte da doutrina nacional corrobora ao
entendimento de que a responsabilização criminal de pessoas jurídicas (que as leva inclusive
ao firmamento de acordos de leniência para o não prosseguimento de persecuções penais
contra si) é inconstitucional, visto que afronta aos princípios fundamentais do direito penal,
a exemplo do princípio da culpabilidade e intranscendência penal.
740

REFERÊNCIAS

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Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
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BRÜGGEMANN, Henrique Gualberto. O espetáculo da corrupção: o corrupto como
produto. Florianópolis: UFSC, 2013. 193 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal
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O SISTEMA DA JUSTIÇA MULTIPORTAS COMO POLÍTICA


PÚBLICA DE TRATAMENTO DOS CONFLITOS FRENTE À CRISE
QUANTITATIVA NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS

Marina Finger de Moura1

Resumo: A instauração de conflitos sempre foi um fato inerente à convivência em


sociedade. Como modo de satisfazer os direitos e interesses das partes litigantes, o exercício
da jurisdição manteve-se, durante um longo lapso temporal, na primazia das respostas ao
aplicar a letra da lei a cada caso concreto. Todavia, o contexto atual de complexidade que
permeia os conflitos sociais, marcado pela multiplicidade de ações em trâmite e a difusão
instantânea de informações, colocou em xeque o modo de prestação jurisdicional até então
utilizado. Dessa forma, o presente estudo se propôs a analisar o destaque proporcionado ao
sistema de justiça multiportas no cenário atual, em especial aos institutos da mediação e
conciliação, como forma de mecanismo que ampare a excessiva litigância que abarrota os
tribunais causando morosidade na prestação jurisdicional. Para tanto, adotou-se o método
dedutivo através da documentação indireta como técnica de pesquisa, valendo-se do método
de procedimento comparativo e estatístico. Destarte, evidenciou-se que a utilização desses
instrumentos, apesar dos entraves, possibilita a valorização de um processo civil atento aos
preceitos constitucionais e serve de ferramenta para a efetivação de uma cultura pautada na
pacificação.

Palavras-chave: Acesso à justiça. Crise do Poder Judiciário. Sistema Multiportas.

INTRODUÇÃO

A existência de uma crise no sistema judiciário revela alguma falha ou desgaste que
necessita de reparação. Indica que o modelo empregado não está acompanhando e atendendo
de forma adequada as complexidades das demandas contemporâneas, sugerindo a
necessidade de reinterpretação do consagrado modelo até então utilizado.
É fato notório tanto pelos próprios operadores do Direito quanto pela sociedade em
geral que se instala no sistema jurisdicional pátrio o dilema entre a sobrecarga de processos
e a ineficiência nos julgamentos. Diante do acentuado número de ações que estão em trâmite

1
Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Meridional – IMED. Graduada em Direito pela
Universidade de Passo Fundo – UPF. Advogada inscrita na OAB/RS sob o nº 109.110. E-mail:
marinafmoura.adv@gmail.com.
744

nos tribunais, paira a dificuldade em dar vazão às demandas com celeridade e de prolatar
decisões qualificadas.
O exercício da jurisdição tem entrado em confronto com as concepções tradicionais,
tornando-se incapaz de fornecer uma solução aos litígios em tempo razoável. Perante esse
cenário, surge o dever de repensar o modo de aplicação da justiça de forma que não
comprometa a efetivação dos princípios e garantias fundamentais constitucionais.
Juntamente com as evoluções legislativas no ordenamento jurídico e a predominância
nos dias atuais de pluralidade e complexidade das relações, instituiu-se no cenário brasileiro
políticas públicas visando o tratamento adequado dos conflitos jurídicos com perceptível
estímulo à autocomposição.
Cabe citar o sistema de justiça multiportas, instituído não somente para incentivar a
participação ativa das partes na resolução das contendas, mas também para servir como
válvula de escape à crise numérica de processos tramitando no judiciário nacional.
Posto isso, o objetivo deste trabalho é realizar uma abordagem acerca do percurso
que conduziu à tendência da sociedade pautada na hiperjudicialização, propondo, assim, um
exame da crise do Poder Judiciário ante a incapacidade de o Estado exercer, de forma íntegra
e exclusiva, a função de solucionar as contendas sociais.
É salutar a pesquisa acerca da inserção e estímulo dessa política pública no judiciário
nacional para constatar se o sistema de justiça multiportas, o qual integra os meios
alternativos de solução da lide, desenvolve-se como instrumento hábil para promover uma
prestação jurisdicional alicerçada na qualidade e eficiência.
Em que pese o presente trabalho não tenha o intuito de esgotar o tema em debate,
proceder-se-á ao estudo das causas, soluções apresentadas e resultados obtidos pela
aplicação dos meios autocompositivos de resolução dos conflitos sob a ótica do desígnio de
desafogar o Poder Judiciário.

1 A CRISE QUANTITATIVA NA JURISDIÇÃO PÁTRIA

A garantia de acesso à justiça está consignada na Constituição da República


Federativa do Brasil, logo em seu artigo 5º, inciso XXXV, dispondo que “a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Referida previsão também
possui amparo pelo Código de Processo Civil (CPC) no artigo 3º, sendo a redação
745

praticamente idêntica ao preceito constitucional, deixando claro o amplo acesso ao judiciário


por todos os cidadãos.
Trata-se de sistema pelo qual é concedida a legitimidade ao exercício da jurisdição,
possibilitando que todos os indivíduos possam buscar os tribunais para a defesa de seus
direitos não obstante qualquer situação que pudesse impedir o ingresso e consequentemente
a obtenção de tutela, como, por exemplo, a condição social ou econômica percebida.2
Tal garantia é reflexo do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
Significa que a prestação jurisdicional deve ser assegurada desde o momento da propositura
da demanda até o desfecho da lide. Portanto, a norma inserta não prevê apenas o dever de
garantia ao direito de ação, mas também de efetivo acesso à justiça, o qual deve ser
proporcionado de forma irrestrita.3
Hodiernamente, como possível consequência da democratização do acesso à justiça
através da difusão cada vez maior acerca dos direitos do cidadão, o número de demandas
levadas à apreciação do Poder Judiciário tem crescido absurdamente e de forma desenfreada,
fato característico da nossa sociedade que é acentuadamente marcada pela praxe da
heterocomposição através da jurisdição.
De fato, a forma de resolução de conflitos por excelência no Brasil é a jurisdição,
situação comprovada pelo elevado número de processos que são distribuídos todos os anos
nos tribunais.
De acordo com Relatório Justiça em Números, elaborado anualmente pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), somente no ano de 2018 houve o ingresso de 28,1 milhões de
processos no Poder Judiciário, sendo que, juntamente com as ações que já aguardavam
solução definitiva, o acervo fechou em 78,7 milhões de ações em tramitação.4
Ainda acerca dos dados disponibilizados pelo CNJ referentes ao ano-base 2018, foi
auferido que, em média, a cada grupo de 100.000 habitantes, 11.796 ingressaram com
alguma demanda judicial. Insta salientar que a pesquisa não computa as execuções judiciais,
mas apenas os processos de conhecimento e de execução de títulos extrajudiciais.5

2
ARAUJO, Luis Carlos de; MELLO, Cleyson de Moraes. Curso do novo processo civil. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 2015.
3
MELLO, Cleyson de Moraes; MOREIRA, Thiago. Direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015.
4
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório Justiça em Números 2019: ano-base 2018. Brasília:
CNJ, 2019. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/publicacoes. Acesso em: 10 ago. 2020.
5
Ibid.
746

Com essa quantidade de demandas aguardando conclusão, mesmo que não houvesse
ingresso de novas ações e a produtividade dos juízes e servidores fosse mantida, haveria a
necessidade de, aproximadamente, dois anos e seis meses de labor para encerrar o estoque.6
Nessa perspectiva, não há como negar que está intrínseco na sociedade moderna uma
“cultura da litigiosidade” devido ao grande número de pessoas que buscam a efetivação de
seus direitos por intermédio das vias judiciais, fato que contribui diariamente para o colapso
que o sistema judiciário se encontra diante do acúmulo infindável de processos em curso.
Da mesma forma, não há como refutar a situação de a sociedade estar passando por
inúmeras transformações ao longo dos anos que interferem diretamente no campo forense,
pois o Direito existe como regulador das normas sociais. Assim, a cada dia emergem uma
diversidade de questões que são levadas à apreciação dos magistrados, surgindo a
dificuldade de concretizar o direito de duração razoável do processo.
As transformações constantes das relações sociais entraram em confronto com a
estrutura tradicional do Poder Judiciário, causando dificuldade de adequação a nova
realidade e descrédito dos litigantes em virtude de os ditames constitucionais não serem
assegurados da forma que esperam.
Nesse viés, oportuno salientar os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio
Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero sobre o tema:

O direito à duração razoável exige um esforço dogmático capaz de atribuir


significado ao tempo processual. A demora para obtenção de tutela jurisdicional
obviamente repercute sobre a efetividade do direito de ação. Isso significa que a
ação não pode se desligar da dimensão temporal do processo ou do problema da
demora para a obtenção daquilo que através dela se almeja. 7

O atual cenário do judiciário está em dissonância com os direitos e garantias


fundamentais, tornando cada vez mais distante a concretização de uma prestação
jurisdicional ideal para a realidade contemporânea.
Trata-se de um novo paradigma estabelecido, marcado pela complexidade das
relações humanas que dão azo aos conflitos sociais, corroborando com o aumento

6
Ibid.
7
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo
civil: teoria do processo civil volume 1. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p.
274.
747

significativo de processos distribuídos e com a dificuldade de o Estado cumprir com a suas


incumbências através dos instrumentos que estão a sua disposição.8
Os avanços tecnológicos decorrentes do fenômeno da globalização e a expansão dos
direitos supraindividuais em razão do crescimento das relações de consumo, passaram a
exigir mudanças no contexto. Ademais, os fatores supramencionados aliados com o costume
da população na rapidez de propagação de informações na atualidade, propiciam uma
expectativa de angariar repostas rápidas e eficazes também na busca pela justiça.
Destarte, a crise quantitativa e qualitativa do Poder Judiciário aponta que diversos
são os fatores que colaboram à incapacidade de a jurisdição tradicional permanecer na
exclusividade da resolução dos conflitos.
O elevado índice de congestionamento de processos instaurou a imprescindibilidade
de adoção de procedimentos e medidas que se distanciam do padrão tradicional, com o
intuito de alcançar a resposta adequada pertinente a cada feito e amenizar a morosidade na
solução dos litígios.
Reproduzindo o entendimento de Jose Luis Bolzan de Morais e Fabiana Marion
Spengler: “ No cenário brasileiro, essas medidas se referem, basicamente, à modernização
da legislação processual civil, realizada com o fim precípuo de reduzir o sofrimento do
jurisdicionado que aguarda, morosamente, o desfecho para o seu problema [...].” 9
Assim, tornou-se patente a necessidade de aderir novos mecanismos para solucionar
ou, ao menos, atenuar o déficit na prestação jurisdicional presente no cenário nacional. Foi
preciso, pois, repensar acerca da garantia constitucional de acesso à justiça sob o prisma da
exclusividade da apreciação de conflitos pela soberania estatal.
O legislador, diante da preocupação em inserir propostas para otimizar o julgamento
das demandas, propôs no ordenamento processual civilista algumas soluções, dentre elas, o
estímulo à autocomposição dos litígios, dando ênfase aos meios alternativos de solução de
conflitos como modo de auxiliar o cotidiano forense.
Longe de constituir uma solução imediata aos problemas apurados, a previsão no
Código de Processo Civil, especialmente o que dispõe o artigo 3º, §2º e §3º, serviu de baliza
para a inserção do sistema da justiça multiportas, mecanismo que integra os chamados meios
alternativos de resolução de conflitos.

8
MORAIS, Jose Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativa à
jurisdição! 3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
9
Ibid., p. 110.
748

Nesse sentido, Cleyson de Moraes Mello e Thiago Moreira argumentam:

Estamos em tempos de mudanças, não por mero capricho jurídico, porém, por
necessidade em face de um colapso de âmbito global, onde as formas tradicionais
de obtenção de Justiça, não são mais capazes de tornar reais as pretensões de paz
social, novas formas são necessárias e neste cenário que beira ao caos, entra a
arbitragem e outros meios alternativos à jurisdição estatal, dentre elas mediação,
conciliação, etc.10

A Lei 13.140/2015, que institui a novel codificação processual, traz em suas normas
fundamentais o comprometimento do Estado, sempre que possível, em promover a solução
consensual de conflitos (art. 3º, § 2º, CPC). Ainda, informa acerca do dever de incentivo
pelos operadores do Direito - juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público - para as práticas de conciliação, mediação e outros métodos de solução
consensual de conflitos, inclusive no curso do processo judicial (art. 3º, §3º, CPC).
Indispensável compreender que o Código de Processo Civil de 2015 propôs o
rompimento da sistemática atual de centralização das demandas pautada no poder estatal.
Trata-se de reconhecer um novo modelo de distribuição da justiça consubstanciado no
pressuposto de que não há uma técnica principal de resolução de conflitos, mas entender que
para cada litígio há um instrumento que se mostra mais apropriado para se obter resultados
satisfatórios.11
Frente à possibilidade de mecanismos de proteção dos direitos que estão em
expansão, é o momento de demonstrar que o monopólio de resolução dos conflitos
pertencente ao Estado-juiz está superado quando comparado a outras ferramentas de
tentativa da composição do litígio que podem proporcionar maior eficiência.
Conforme bem elucidado por Humberto Theodoro Júnior:

Nas últimas décadas, o estudo do processo civil desviou nitidamente sua atenção
para os resultados a serem concretamente alcançados pela prestação jurisdicional.
Muito mais do que com os clássicos conceitos tidos como fundamentais ao direito
processual, a doutrina tem-se ocupado com remédios e medidas que possam
redundar em melhoria dos serviços forenses. Ideias, como a de instrumentalidade
e a de efetividade, passaram a dar a tônica do processo contemporâneo. Fala-se
mesmo de ‘garantia de um processo justo’, mais do que de um ‘processo legal’,
colocando no primeiro plano ideias éticas em lugar do estudo sistemático apenas
das formas e solenidades do procedimento.12

10
MELLO, Cleyson de Moraes; MOREIRA, Thiago. Direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p. 431.
11
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
12
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, processo de conhecimento e
procedimento comum volume 1. 57 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 08.
749

Diante disso, denota-se que a intenção do legislador é instigar o comprometimento


de todos os sujeitos do processo em viabilizar condições para a solução de conflitos fora do
âmbito judicial, contribuindo para a diminuição do ajuizamento de ações e,
consequentemente, no descongestionamento do Poder Judiciário que tem atuado com
vagareza diante da crise numérica que se encontra.
Dentro desta ótica, Jose Luis Bolzan de Morais e Fabiana Marion Spengler sustentam
que:
Paralelamente às formas jurisdicionais tradicionais, existem possibilidades não
jurisdicionais de tratamento de disputas, nas quais se atribui legalidade à voz de
um conciliador/mediador, que auxilia os conflitantes a compor o litígio. Não se
quer aqui negar o valor do Poder Judiciário, o que se pretende é discutir uma outra
maneira de tratamento dos conflitos, buscando uma nova racionalidade de
composição dos mesmos, convencionada entre as partes litigantes. 13

Cabe salientar que variadas formas estão sendo avistadas com o fito de desenvolver
procedimentos que possam afastar as problemáticas que se instauraram nos órgãos
jurisdicionais, como, por exemplo, a introdução do incidente de resolução de demandas
repetitivas, presente nos artigos 976 a 987 do CPC, visando maior efetividade e segurança
jurídica nas decisões.
Outro sinal que demonstra a ascensão desses meios em prol da rapidez na inclusão
de petições e decisões, bem como no manuseio das ações, é a implementação do processo
eletrônico em substituição da sua forma física, indicando o auxílio da tecnologia para uma
prestação jurisdicional mais adequada.
A crescente implementação do processo eletrônico possibilitou que apenas 16,2% do
total de processos novos ingressassem fisicamente em 2018. Em contrapartida, 20,6 milhões
de casos foram distribuídos através do sistema eletrônico.14
O jurista Ricardo Goretti sintetiza essa situação quando afirma que “As profissões e
instituições do Direito, por mais tradicionais que sejam, não são poupadas da lógica da
constante adaptação que a realidade em permanente transformação requer [...].” 15

13
MORAIS, Jose Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativa à
jurisdição! 3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 75.
14
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório Justiça em Números 2019: ano-base 2018. Brasília:
CNJ, 2019. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/publicacoes. Acesso em: 10 ago. 2020.
15
GORETTI, Ricardo. Gestão adequada de conflitos jurídicos: do diagnóstico à escolha do método para
cada caso concreto. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 39.
750

Nesse contexto, considerando a crise presente no sistema judiciário e a ineficiência


do Estado em garantir uma prestação jurisdicional adequada, é que se manifesta o destaque
dedicado aos meios alternativos de solução de conflitos.

2 A NORMA INSERTA NO ARTIGO 3º, §3º DO CPC DE 2015 COMO POLÍTICA


PÚBLICA À RESPOSTA DA CRISE

Há uma forte tendência no atual sistema jurídico processual brasileiro de incentivo à


utilização de meios autocompositivos para solucionar os conflitos com o intuito de
oportunizar a participação do cidadão na resolução da controvérsia estabelecida. Isto é,
utilizar formas equivalentes à jurisdição de modo a afastar a atuação específica do Estado.
De acordo com a conceituação de Fredie Didier Jr.:

Equivalentes jurisdicionais são as formas não jurisdicionais de solução de


conflitos. São chamados de equivalentes exatamente porque, não sendo jurisdição,
funcionam como técnica de tutela dos direitos, resolvendo conflitos ou
certificando situações jurídicas.16

A proposta inserida no Código de Processo Civil de 2015 reforça a ideia de estímulo


à utilização da justiça multiportas. Esse sistema, ao disponibilizar opções para a adequada
solução do conflito, permite que a solução consensual da lide visando uma cultura de paz
seja atendida. Diante disso, para cada espécie de conflito há a viabilidade de que seja
resolvido através dos métodos colocados à disposição dos litigantes.17
O art. 3º, §3º do CPC dispõe que “A conciliação, a mediação e outros métodos de
solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores
públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.”
A norma representa uma nova concepção, demonstrando que não há mais um método
principal de apreciação do conflito, mas sim, de que há outros caminhos além da soberania
estatal para colocar fim ao litígio:

A constatação de que a jurisdição estatal não é a única forma de solução dos


conflitos, devidamente consagrada no Código de Processo Civil, permite a

16
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e
processo de conhecimento.19 ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 185, grifo do autor.
17
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
751

conclusão da adoção do sistema multiportas de solução de conflitos, devendo-se


prestigiar sempre o meio mais adequado para cada conflito a ser resolvido. 18

Embora já houvesse previsão pela Resolução 125/2010 do CNJ, como forma de


colocar em prática o incentivo à composição dos litígios, o art. 165 do CPC determina a
criação pelos tribunais de centros judiciários de solução consensual de conflitos com o
objetivo de realizar sessões e audiências de conciliação e mediação e desenvolver programas
para auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.19
Diante dessa nova perspectiva, a via judicial passa a ser a ultima ratio na solução dos
litígios que admitem a autocomposição.20 Significa que o Poder Judiciário somente deve ser
provocado nos casos de frustrada a tentativa de composição através das vias consensuais ou
nas circunstâncias que o ordenamento jurídico pátrio não autoriza sua aplicação.
O propósito visado pelo legislador é de que as próprias partes que estão em conflito
possam desenvolver a solução mais conveniente para encerrá-lo, desmistificando a ideia
consuetudinária de os instrumentos tradicionais da jurisdição serem o refúgio dos problemas
que se originam na sociedade.
Nas palavras de Fredie Didier Jr.:

Compreende-se que a solução negocial não é apenas um meio eficaz e econômico


de solução dos litígios: trata-se de importante instrumento de desenvolvimento da
cidadania, em que os interessados passam a ser protagonistas da construção da
decisão jurídica que regula as suas relações. Neste sentido, o estímulo à
autocomposição pode ser entendido como um reforço da participação popular no
exercício do poder – no caso, o poder de solução dos litígios. Tem, também por
isso, forte caráter democrático. O propósito evidente é tentar dar início a uma
transformação cultural – da cultura da sentença para a cultura da paz.21

De fato, ninguém melhor que os sujeitos envolvidos no próprio conflito para


definirem seu desfecho. O litígio, quando transferido para o sistema jurisdicional por
intermédio de um processo judicial, conduz a um maior ressentimento entre as partes. Sendo
a controvérsia decidida por alguém que não a integra, por mais que coloque um ponto final
no infortúnio, esse encerramento é meramente formal, visto que na maioria das vezes a
animosidade subsiste.

18
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Salvador: Juspodivm, 2019, p.
61.
19
KAMEL, Antoine Youssef. Mediação e arbitragem. Curitiba: Intersaberes, 2017.
20
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e
processo de conhecimento.19 ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
21
Ibid., p. 305, grifo do autor.
752

Essa situação reflete o que Jose Luis Bolzan de Morais e Fabiana Marion Spengler
observam: “ O ato do Poder Judiciário interrompe apenas aquela relação conflitiva, mas não
impede o desenvolvimento de outras tantas. Não cabe ao Poder Judiciário eliminar o próprio
manancial de conflitos sociais, mas sobre eles decidir, se lhe for demandado. ” 22
Humberto Theodoro Júnior, nesta direção, lista a necessária mudança do padrão
sustentado pela jurisdição:

Aos poucos vai-se encaminhando para processos e procedimentos em que o


objetivo maior é a solução justa e adequada dos conflitos jurídicos e que, de fato,
possam reduzir as tensões sociais, valorizando a pacificação e a harmonização dos
litigantes, em lugar de propiciar a guerra judicial em que só uma das partes tem os
louros da vitória e à outra somente resta o amargor da sucumbência. 23

Dentre os instrumentos previstos para a resolução de conflitos através da


autocomposição, merece destaque a prática da mediação e da conciliação. Embora esses
métodos não esgotem as opções previstas na legislação pátria para a resolução de conflitos,
são os meios mais incentivados e utilizados, já que possibilitam a construção de uma decisão
condizente à intenção das partes pelo fato de elas mesmas atingirem o resultado.
Oportuno neste momento realizar uma sucinta distinção entre o procedimento
realizado na mediação e na conciliação: enquanto na mediação o mediador não realiza
nenhum ato decisório, somente opera para que as partes decidam de comum acordo o
conflito, na conciliação, o conciliador propõe possíveis alternativas à satisfação do litígio.
Ademais, a mediação será designada nas hipóteses em que as partes possuem um
liame que deve subsistir ao conflito, sendo a função do mediador restabelecer a comunicação
entre elas, como, por exemplo, em fatos que envolvem direito de família. Em contrapartida,
a conciliação será designada, preferencialmente, nos casos em que não houver vínculo
anterior entre as partes.24
As autoras Tania Almeida, Samantha Pelajo e Eva Jonathan enfatizam:

Do ponto de vista comunicacional, o caráter dialógico é uma das características


mais marcantes da mediação. O mediador cria as condições para que possa

22
MORAIS, Jose Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativa à
jurisdição! 3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 72.
23
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, processo de conhecimento e
procedimento comum volume 1. 57 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 09.
24
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e
processo de conhecimento.19 ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
753

acontecer o diálogo, permitindo que as partes expressem seus verdadeiros


interesses, chegando às causas que motivaram o surgimento do conflito. 25

Não obstante a diferença apontada entre os institutos, o intento de ambos os métodos


autocompositivos é perceptível: direcionar ao incentivo do protagonismo dos
jurisdicionados durante o procedimento.
Embora se saiba que não seja o objetivo principal da solução consensual de conflitos
auxiliar no incessante aumento de litigiosidade perante os tribunais, pode-se considerar que
sua implementação foi influenciada pela necessidade de buscar instrumentos eficientes para
evitar o ajuizamento de numerosas ações ou o seu prolongamento ao longo dos anos.
Assim, vislumbra-se que os métodos alternativos quando manejados antes de
instaurada uma ação judicial operam como condição preventiva, evitando que o judiciário
precise enfrentar a questão juntamente com a excessiva quantidade de demandas que já
tramitam nos tribunais.
Tal fato auxilia no andamento da máquina judiciária que poderá empenhar-se em
causas que efetivamente precisem da atuação do magistrado, rompendo com a prática
utilizada por muitos indivíduos de provocar o Estado-juiz para todo e qualquer incômodo
que se revela.26
Do mesmo modo, as partes e o próprio sistema jurisdicional se beneficiam se o
acordo é atingido no curso da ação, pois evita o prosseguimento do litígio que afeta a
expectativa de quem pleiteia algum direito e limita a possibilidade de o Poder Judiciário
oferecer uma solução em tempo razoável.
Antoine Youssef Kamel indica as vantagens de utilização dos métodos consensuais:

Há duas razões que tornam o caminho da autocomposição tão positivo para os


envolvidos: em primeiro lugar, é mais rápido do que esperar uma decisão de
outrem. Em segundo lugar, quando as partes chegam a uma solução por si mesmas,
elas tendem a valorizá-la e a respeitá-la mais do que uma decisão trazida de fora.27

Essa situação reflete a mesma encontrada por Hermes Zaneti Jr. e Trícia Navarro
Xavier Cabral:

25
ALMEIDA, Tania; PELAJO, Samantha; JONATHAN, Eva. Mediação de conflitos para iniciantes,
praticantes e docentes. 2 ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 53.
26
ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas: mediação, conciliação,
arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. 2 ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
27
KAMEL, Antoine Youssef. Mediação e arbitragem. Curitiba: Intersaberes, 2017, p. 24.
754

A vantagem mais significativa dos métodos alternativos é o potencial de


efetivamente resolver problemas. A remoção do ritualismo e do formalismo
exagerado, do procedimentalismo estéril, da burocracia ínsita ao sistema
judiciário, oferece o ambiente de coloquialismo em que as partes chegam mais
facilmente a fazer concessões e a assumir compromissos, mantida a qualidade de
relacionamento entre elas. Não é desprezível o fato de se manter um
relacionamento saudável entre os envolvidos, mesmo depois de resolvida a
pendência que os levou ao litígio e à tentativa de sua resolução.28

Essencial ressaltar que na visão mais recente acerca do tema há a constatação de que
os métodos para a resolução consensual dos conflitos não podem ser considerados como
meios alternativos, mas sim, como meios adequados de solução da lide.29
Todavia, independentemente de sua denominação, imperioso que, no contexto do
modelo jurídico atual, perceba-se a indispensabilidade de reconhecer que existem outros
caminhos para alcançar a justiça que não são subalternos ao exercício realizado pelo Estado-
juiz.
De acordo com o que já foi mencionado anteriormente, conveniente reforçar o
entendimento de que:

Não se trata de desacreditar a Justiça estatal, mas de combater o excesso de


litigiosidade que domina a sociedade contemporânea, que crê na jurisdição como
a única via pacificadora de conflitos, elevando a um número tão gigantesco de
processos aforados, que supera a capacidade de vazão dos órgãos e estruturas do
serviço judiciário disponível.30

Isto posto, o emprego dos meios consensuais de solução de conflitos mostra-se como
potencial instrumento de pacificação social e de contribuição para a redução do pleito
judicial frente às consequências advindas da cultura da litigiosidade.
O art. 334 do CPC em seu §8º dispõe que o não comparecimento injustificado do
autor ou réu na audiência é classificado como ato atentatório à dignidade da justiça e prevê
sanção com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da
causa, que será revertida em favor da União ou do Estado.
Além da previsão no códex processual civilista, no art. 22, §2º, IV, da Lei de
Mediação consta que haverá penalidade em caso de não comparecimento da parte na
primeira reunião de mediação que consistirá em assunção de cinquenta por cento das custas

28
ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Justiça multiportas: mediação, conciliação,
arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. 2 ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 34.
29
BORBA, Mozart. Diálogos sobre o CPC. 6 ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
30
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, processo de conhecimento e
procedimento comum volume 1. 57 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 76.
755

e honorários sucumbenciais na hipótese de ser vencedora em procedimento arbitral ou


judicial posterior que envolva a mediação para a qual foi convidada.
Todavia, os dados apurados pelo CNJ demonstram que a conciliação vem ganhando
espaço e apreço vagarosamente, sendo ainda o processo judicial intrínseco à cultura dos
indivíduos que provocam as vias judiciais para obter uma resposta ao litígio que possuem
com outrem.
Consoante o Relatório Justiça em Números, o índice do total de conciliações no
Poder Judiciário em 2018 foi de 11,5%. Em que pese o CPC tornar obrigatória a realização
de audiência prévia de conciliação e mediação, em três anos o índice de conciliação cresceu
somente 0,5 ponto percentual.31
No tocante a porcentagem das sentenças homologatórias de acordo proferidas em
2018, esse índice foi de 16,7% na fase de conhecimento, valor que diminuiu na fase de
execução para 6%. Ainda, na fase de conhecimento dos juizados especiais, o índice de
conciliação foi de 16%, sendo de 18% na Justiça Estadual e de 11% na Justiça Federal.32
Embora os índices de conciliação não tenham alcançado um patamar adequado até o
presente momento, observa-se que em relação a quantidade de Centros Judiciários de
Solução de Conflitos e Cidadania – CEJUSCs instalados na Justiça Estadual no ano de 2018,
esse número foi de 1.088. Isso representa um crescente aumento, visto que o número de
unidades em 2017 era de 982.33
Percebe-se, assim, que ainda há um percurso a ser traçado para que se alcance dados
satisfatórios, tornando-se imprescindível questionar quais são os principais motivos que
possivelmente obstam a tentativa de auferir resultados mais próximos do ideal.

3 POSSÍVEIS INDICADORES DO BAIXO ÍNDICE DE COMPOSIÇÃO


AMISTOSA DO LITÍGIO

Considerando os números apurados pelo CNJ, nota-se que a resolução pacífica dos
conflitos ainda não atingiu os resultados desejados, sendo perceptível que o ajuizamento de

31
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório Justiça em Números 2019: ano-base 2018. Brasília:
CNJ, 2019. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/publicacoes. Acesso em: 10 ago. 2020.
32
Ibid.
33
Ibid.
756

ações nos tribunais brasileiros continua em constante crescimento, limitando a expectativa


de redução do estoque processual.
Essa situação reflete a observação realizada por Jose Luis Bolzan de Morais e
Fabiana Marion Spengler:

A causa dessa inadequação encontra-se na complexidade das relações sociais, nas


quais o homem, passando a ser compreendido a partir de seu contexto social,
econômico e cultural, assiste ao alargamento dos seus interesses jungido a uma
dimensão coletivista e vê o Estado tomar para si o compromisso constitucional de
oferecer os meios necessários para a concretização dos mesmos. 34

Malgrado a perspectiva totalmente cabível de alcance dos objetivos pretendidos pelos


métodos de solução amigável da lide, inegável que haverá fatores que obstaculizam a fixação
de tais técnicas de modo eficiente, considerando tratar-se de um ordenamento jurídico
familiarizado com a atuação soberana do Estado na busca pela justiça.
Embora a norma contida no códex processual em seu art. 3º demonstre a intenção de
romper com a perspectiva convencional de considerar a noção de jurisdição como
característica apenas do Poder Judiciário, sabe-se que há um obstáculo de índole cultural a
ser vencido, já que o sentimento que perdura é de que somente o judiciário é apto a propiciar
a adequada resolução do litígio, como se possuísse atuação exclusiva e, portanto,
imprescindível.
Importante ressaltar que:

A instância judicial, pelas suas próprias características, muitas vezes provoca


rusgas e a ruptura irreversível da relação entre os envolvidos. Chega-se a tal
estágio porque, por mais que o magistrado tenha também o papel de dialogar e
aproximar as partes, normalmente já existe inclusive uma predisposição dos
envolvidos em guerrear até a decisão derradeira.35

O conflito está intrínseco a qualquer relação humana. Instaurado o litígio, é natural


que se torne penosa a tarefa de obtenção de cooperação entre as partes envolvidas, pois,
diante de um confronto de interesses, é certo que estão em jogo ideias incompatíveis para
atingir uma resolução e custoso se torna chegar a um consenso.36

34
MORAIS, Jose Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativa à
jurisdição! 3 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 80.
35
Ibid., p. 39.
36
GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs: meios extrajudiciais de solução
de conflitos. Barueri: Manole, 2016.
757

Assim sendo, as partes que estão em desavença sempre vão procurar maneiras de
abalar a parte confrontante para fortalecer a sua defesa acerca do interesse em comum.
Torna-se necessária uma superação pelos próprios sujeitos envolvidos acerca dos
estereótipos criados para que se sintam aptos a identificar as razões do lado contrário e
respeitá-las.
Com relação a tarefa primordial da solução pacífica do conflito, destaca-se:

O mais importante ao tentar resolver um conflito de forma consensual é que as


partes estabeleçam uma comunicação produtiva por meio de um diálogo que
permita o entendimento e a busca por soluções que satisfaçam ambos os lados.
Apesar do caráter informal, o que for decidido na sessão será homologado por
magistrado e terá validade jurídica.37

Dentre os fatores que possam justificar a não utilização da autocomposição ou o seu


insucesso diante da tentativa de acordo entre as partes possui respaldo, primeiramente, no
fato de os próprios operadores do Direito estarem habituados com o formalismo excessivo
do processo judicial, circunstância que acaba distanciando e causando certa objeção a um
modelo distinto do usual.
Presume-se que tal comportamento se justifica pela formação acadêmica que é
voltada substancialmente ao contencioso, fato que gera resistência e constitui um obstáculo
para a aplicação das medidas amigáveis de resolução de conflitos, tornando mais dificultosa
a tentativa de levar o procedimento da composição a efeito.
Ricardo Goretti sintetiza essa situação quando afirma que:

Se muitas verdades e soluções clássicas do passado já não servem para explicar ou


resolver problemas do presente, com maior razão, não se prestarão ao
enfrentamento dos acontecimentos que nos reservam um futuro incerto. Nesse
sentido, é necessário que o profissional do Direito esteja preparado para saber agir
localmente, superando obstáculos e aproveitando as oportunidades conferidas em
contextos profissionais reformulados.38

Outro ponto a ser destacado é o que diz respeito à qualificação dos


mediadores/conciliadores, pois ao mesmo tempo em que as técnicas de pacificação social do
litígio facilitam a obstrução da sobrecarga judiciária, os profissionais não podem desviar a
atenção às pretensões das partes sob pena de comprometer a eficácia dos métodos.

37
KAMEL, Antoine Youssef. Mediação e arbitragem. Curitiba: Intersaberes, 2017, p. 75.
38
GORETTI, Ricardo. Gestão adequada de conflitos jurídicos: do diagnóstico à escolha do método para
cada caso concreto. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 41.
758

A figura do profissional é de grande valia, pois o elemento fundamental para que as


partes obtenham resultados coerentes a partir do desenvolvimento da comunicação é o olhar
desse às relações interpessoais presentes em cada situação concreta. Caso contrário, os
acordos seriam meros resultados de um trabalho automatizado.
Adequar os profissionais às técnicas propostas é primordial, visto que uma sessão
conduzida por alguém efetivamente treinado possibilita que os sujeitos envolvidos na lide
possam obter a compreensão necessária para identificar as suas posições e respectivos
interesses, desencadeando maiores possibilidades de se chegar a um acordo.39
Conforme bem esclarecido por Antoine Youssef Kamel acerca da capacitação do
profissional nas sessões de mediação:

[...] A identificação dos interesses das partes é etapa essencial para a obtenção de
um acordo no processo de mediação, pois as partes começam a perceber as
perspectivas e necessidades uma da outra, tornando-as mais cientes da plenitude
da causa na solução das questões corretas quando da elaboração do acordo. 40

Ainda, frisa-se a importância do método empático para uma atuação íntegra, posto
que tornará mais acessível a coleta de elementos para que o profissional interprete os atos
praticados pelos litigantes que levaram ao episódio e possibilita a elaboração de uma
abordagem mais concreta da realidade.
Por todo o exposto, resta claro que o engajamento do profissional é indispensável
para o sucesso na utilização dos métodos autocompositivos. Da mesma forma, acredita-se
que uma maior valorização e aplicação das políticas públicas pelos agentes do Direito e pelo
próprio Estado caminharão no sentido de obtenção de melhores resultados.
Ainda que os índices de desfecho das demandas por intermédio do acordo sejam
irrisórios no momento, isso não impede que se reflita sobre a transformação que está em
curso, pois percebe-se um empenho do próprio Poder Judiciário em reduzir o tempo de
resposta ao jurisdicionado e a quantidade de processos em trâmite.
Revela-se primordial a aplicação na prática do princípio da cooperação para
aperfeiçoar a tutela jurisdicional. Considerado como norma fundamental, o CPC de 2015

39
GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs: meios extrajudiciais de solução
de conflitos. Barueri: Manole, 2016.
40
KAMEL, Antoine Youssef. Mediação e arbitragem. Curitiba: Intersaberes, 2017, p. 87.
759

dispõe em seu art. 6º que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se
obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”
A esse respeito, Humberto Theodoro Júnior leciona:

Trata-se de um desdobramento do princípio moderno do contraditório assegurado


constitucionalmente, que não mais pode ser visto apenas como garantia de
audiência bilateral das partes, mas que tem a função democrática de permitir a
todos os sujeitos da relação processual a possibilidade de influir, realmente, sobre
a formação do provimento jurisdicional [...]. 41

Percebe-se que a cultura da litigiosidade precisa ser remediada pelo espírito de


cooperação, seja em relação a destinação de recursos para um reaparelhamento do judiciário
e para intensificar a prestação dos métodos autocompositivos, em um maior incentivo à
sociedade na utilização desses métodos ou a ênfase na própria graduação para a utilização
de métodos que se distanciam do modelo habitual de resolução de litígios.
Os aspectos supramencionados merecem ser revistos para trazerem vantagens não só
à sociedade, mas para a própria justiça, a qual conseguirá dar mais vazão às numerosas
demandas em trâmite, possibilitando o julgamento célere e, da mesma forma, ampliando a
qualidade das decisões.
Nesse contexto, Ricardo Goretti evidencia que:

Um dos principais desafios da prática jurídica no Brasil, seguramente, é a


superação da cultura da gestão inadequada dos conflitos, já definida como o uso
aleatório de métodos e técnicas de prevenção e resolução de conflitos sem
qualquer sintonia com as particularidades do caso concreto. Essa cultura que se
desenvolve no berço da formação dos profissionais do Direito, em grande medida,
explica: o fenômeno da judicialização de conflitos que poderiam ser geridos de
forma mais adequada se utilizados fossem técnicas e métodos alternativos ao
processo judicial e, consequentemente; o progressivo acúmulo de processos nos
tribunais.42

Insta salientar que os pontos abordados no presente artigo não visam esgotar as
possíveis barreiras para a obtenção de êxito na utilização dos métodos autocompositivos,
mas tão somente elencar fatores que merecem ser observados com cautela para corroborar
com a consolidação desse procedimento no ordenamento jurídico pátrio.

41
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, processo de conhecimento e
procedimento comum volume 1. 57 ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 81.
42
GORETTI, Ricardo. Gestão adequada de conflitos jurídicos: do diagnóstico à escolha do método para
cada caso concreto. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 42, grifo do autor.
760

Diante dos obstáculos mencionados, talvez o primeiro a ser vencido seja o de passar
a entender os métodos de resolução consensual de litígios como forma de trazer os
conflitantes para participarem ativamente de um resultado que satisfaça seus próprios
interesses, preservando os vínculos eventualmente existentes e fornecendo, em
consequência, uma melhora no andamento da jurisdição que é tão clamada no cenário atual.

CONCLUSÃO

Consoante o que foi exposto no início deste trabalho, a legislação processualista


pátria está enfrentando uma fase de transformações e desafios, motivo pelo qual está
experimentando novas diretrizes para a obtenção de uma prestação jurisdicional mais
qualificada que corresponda às expectativas da sociedade moderna.
Fato é que a sociedade está sempre em constante mudança e o Direito precisa
acompanhá-la de modo a atender com eficiência as exigências da contemporaneidade. Para
que se alcance uma tutela jurisdicional de fato efetiva, é indispensável que haja uma
remodelação do aparato judiciário, estruturando-o da forma necessária para responder
adequadamente às demandas que são postas sob sua apreciação.
O estímulo à utilização dos meios consensuais para resolução dos conflitos pelo
Código de Processo Civil de 2015 protagoniza a premência atual para superação da crise da
jurisdição, visando atender as dificuldades oriundas desse novo cenário social para que seja
possível o aprimoramento da justiça.
Através desse estudo, vislumbra-se que a inserção do sistema de justiça multiportas
vai, timidamente, ganhando espaço em razão do alto nível de dependência das partes pela
solução imposta pelo juiz. De certo modo, uma mudança repentina no sistema tornaria
temerária a utilização dos meios autocompositivos.
Em vista disso, os resultados ainda são embrionários para averiguar o alcance que a
solução amistosa pode proporcionar às partes e ao judiciário. Assim, os esforços contínuos
de aprimoramento do sistema tornam-se necessários diante dos diversos anseios que
persistem na sociedade.
Por meio dessa política pública que proporciona aos jurisdicionados uma solução
mais adequada dos conflitos, estará sendo realizada uma devida filtragem dos litígios. Tal
761

situação certamente determinará a redução considerável na quantidade das demandas


judiciais e de conflitos a serem ajuizados.
Não há como afirmar que existe um padrão ideal de justiça que deve ser seguido.
Impende destacar que as possibilidades de êxito acerca da utilização da mediação,
conciliação e as demais formas pacíficas de solução dos litígios vão depender da cooperação,
de modo que todas as partes se comprometam com a intensa participação para o exercício
do diálogo em substituição ao modelo clássico do contencioso judicial.
O ponto positivo é que algumas mudanças já são perceptíveis. Dentre elas, pode-se
citar o crescimento dos Centros e Núcleos de Mediação, inclusive nas instituições de ensino
superior, na tentativa de fomentar a resolução da lide pelos próprios envolvidos, propiciando
a prática dos futuros juristas e o suporte necessário àqueles que possuem interesses
conflitantes.
A tendência é que as próximas etapas sejam marcadas por uma maior credibilidade
da sociedade com os meios consensuais de solução das contendas, de modo que optem por
esses instrumentos antes de cogitar a provocação das vias judiciais.
Considerando que possuem um leque de possibilidades para verificar onde canalizam
a lide de acordo com a situação do caso concreto, não há dúvidas quanto ao proveito dos
litigantes diante de tais técnicas, momento em que estarão exercendo o pleno direito à
cidadania através do protagonismo.
O futuro poderá ser muito promissor diante das políticas públicas que visam
satisfazer o déficit instalado no Poder Judiciário. Espera-se que, mesmo paulatinamente, a
autonomia dos sujeitos ganhe mais espaço, criando a expectativa de maior taxa de êxito na
busca pela paz social do que na entrega da prestação jurisdicional pela imposição soberana
da letra fria da lei.
762

REFERÊNCIAS

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iniciantes, praticantes e docentes. 2 ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2019.

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Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em:
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BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF:
Presidência da República, 2015. Disponível em:
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BRASIL. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares
como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da
administração pública; altera a Lei nº 9.469/1997, e o Decreto nº 70.235/1972; e revoga o
§2º do art. 6º da Lei nº 9.469/1997. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm. Acesso em:
03 ago. 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório Justiça em Números 2019: ano-base


2018. Brasília: CNJ, 2019. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/publicacoes. Acesso em:
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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010.


Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de
interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em:
http://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=156. Acesso em: 14 ago.
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CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 16 ed. Rio de Janeiro:
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GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Manual dos MESCs: meios


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MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo


curso de processo civil: teoria do processo civil volume 1. 3 ed. rev. atual. e ampl. São
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MELLO, Cleyson de Moraes; MOREIRA, Thiago. Direitos fundamentais e dignidade da


pessoa humana. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015.
]
MORAIS, Jose Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem:
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NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Salvador:


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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, processo de


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Juspodivm, 2018.
764

CASO FORTUITO, FORÇA MAIOR E ONEROSIDADE


EXCESSIVA: O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ COMO PILAR DA
AUTOCOMPOSIÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA.

Mônica T. Medeiros Lopes Scariot1

Resumo: A COVID-19 está impactando todas as áreas da economia, razão pela qual os
contratos em vigor igualmente têm sido ameaçados. Existe a previsão do devedor eximir-se
da obrigação quando há ocorrência de caso fortuito ou força maior, assim como há a previsão
de resolução contratual quando da ocorrência da onerosidade excessiva. Contudo,
considerando que a pandemia afeta todas as áreas, sugere-se buscar a autocomposiçao dos
contratos, com base no princípio da boa-fé e do equilíbrio contratual. A mediação e
conciliação são excelentes ferramentas de autocomposição que vem ganhando uma
relevância importante na crise atual.
Palavras-chave: COVID-19. Caso fortuito e força maior. Onerosidade excessiva. boa-fé.
Autocomposição.

1. INTRODUÇÃO

A pandemia da COVID-19 pegou o mundo inteiro de surpresa, impactando de forma


significativa todos os setores da economia.
Além de toda preocupação relacionada à saúde da população, há de um modo geral
uma preocupação com o cumprimento das obrigações até então firmadas, como por exemplo
os contratos - dos mais variados tipos -, pactuados antes dos decretos de calamidade pública
e paralisação de diversas áreas.
A luz da legislação brasileira vigente, basicamente existem duas hipóteses para
regular a relação contratual sob o ponto de vista da pandemia quais sejam: caso fortuito/força
maior e onerosidade excessiva.
Independente da qualificação jurídica da situação decorrente da pandemia, a
autocomposição tem sido uma ferramenta de extrema relevância no cenário atual, mormente

1
Advogada, inscrita na OAB/RS 81.345, especialista em Direito Civil, Negocial e Imobiliário pela LFG –
Anhanguera UNIDERP, e-mail: monica@lopesepauletto.com.br
765

por se tratar de uma situação extremamente imprevisível e delicada, que vem impactando
das mais diversas áreas.

1.1. Do contexto atual - Pandemia (COVID-19)

Como é notório, desde Março de 2020 o Brasil vem lutando no combate ao


coronavírus, que foi descoberto na China no final de 2019.2
Diante do alto índice de contágio, bem como das experiências dos demais países,
houve paralisação de diversas atividades, como indústrias, empresas, prestadores de serviços
etc.
Em 20 de Março de 2020, através de edição extra, houve a publicação do Decreto
Legislativo de nº 6/20203, que reconheceu, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº
101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da
solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de
março de 2020.
Especificamente no estado do Rio Grande do Sul, viu-se que no meio do mês de
março, inúmeros estabelecimentos públicos e privados suspenderam as atividades
presenciais, o que levou ao início do colapso financeiro, já que muitas empresas, comércio,
serviços etc. simplesmente pararam de faturar, em que pese as despesas fixas e diversas
obrigações restaram mantidas.
Desde a decretação do estado de calamidade pública, inúmeras medidas foram
tomadas pelo governo federal, no sentido de regular e flexibilizar áreas evidentemente
impactadas pela pandemia, como por exemplo: Medida provisória nº 927 que tratava da
flexibilização das leis trabalhistas; Medida provisória nº 936 que instituiu o programa
emergencial de renda e empregos; Medida provisória nº 925 que instituiu medidas
emergências para aviação civil (regra de reembolso e remarcação de passagens áreas) dentre
tantas outras semanalmente publicadas.
As medidas provisórias têm caráter provisório e emergencial e apesar de produzirem
efeitos jurídicos imediatos, precisam da posterior apreciação pelas Casas do Congresso

2
Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#o-que-e-covid – Acesso em 20/05/2020
3
Disponível em: in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-legislativo-249090982
766

Nacional (Câmara e Senado) para se converter definitivamente em lei ordinária, o que


efetivamente leva tempo.

Contudo, ainda que algumas medidas provisórias possam disciplinar algumas


questões, como por exemplo a Medida provisória nº 948 que dispõe sobre o cancelamento
de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura4, a legislação até então
vigente segue valendo, razão pela qual o objetivo do presente artigo é analisar as hipóteses
de descumprimento de obrigação por caso fortuito/força maior e onerosidade excessiva, a
luz da legislação vigente antes da pandemia, conforme adiante será demonstrado.

2. DO CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR

Até então, muito se havia discutido tanto nos Tribunais, quanto no Superior tribunal
de justiça sobre o que era de fato “caso fortuito e força maior”, e a pandemia atual, sem
sombra de dúvidas se encaixa perfeitamente na concepção prevista, que diz respeito à
imprevisibilidade e inevitabilidade de evento que impede o cumprimento de determinada
obrigação.
O que de fato é indiscutível, é que tanto um quanto o outro estão fora dos limites da
culpa, uma vez que se tratam de acontecimentos que escapam toda diligência ou que são
estranhos à vontade do devedor da obrigação, logo, dotados de imprevisibilidade e
inevitabilidade5.
Nesse sentido, assim nos ensina Cavalieri:

A imprevisibilidade, portanto, é o elemento indispensável para a caracterização do


caso fortuito, enquanto a inevitabilidade o é da força maior. Entende-se por
imprevisibilidade, conforme já assinalado, a imprevisibilidade especifica, relativa
a um fato concreto, e não a genérica ou abstrata de que poderão ocorrer assaltos,
acidentes, atropelamentos etc., porque se assim não for tudo passará a ser
previsível. A inevitabilidade, por sua vez, deve ser considerada dentro de certa
relatividade, tendo-se o acontecimento como inevitável em função do que seria
razoável exigir-se. [...] é preciso, destarte, apreciar caso por caso as condições em

4
No ponto, cumpre informar que o art. 5º da MP 948 além de trazer soluções para remarcação de eventos /
reembolso, já deixa expresso que tratando-se de caso fortuito ou força maior não há o que se falar em danos
morais ou aplicação de multas e outras penalidades, nestes termos, in verbis: Art. 5º As relações de consumo
regidas por esta Medida Provisória caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior e não ensejam danos
morais, aplicação de multa ou outras penalidades, nos termos do disposto no art. 56 da Lei nº 8.078, de 11 de
setembro de 1990.
5
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9.ed. São Paulo, Atlas, 2010, p. 68
767

que o evento ocorreu, verificando se nessas condições o fato era imprevisível ou


inevitável em função do que seria razoável exigir-se. 6

Uma das consequências do caso fortuito e força maior é a ausência de


responsabilidade do devedor, consoante previsão do art. 393 do Código Civil Brasileiro,
nestes termos, in verbis:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou
força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário,
cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

No entanto, considerando que diversas obrigações estão interligadas, apenas utilizar


a interpretação literal do artigo para eximir-se de alguma responsabilidade, vai de encontro
ao princípio da função social do contrato, que tem por objetivo manter o equilíbrio, bem
como asseverar os direitos e garantias constitucionais.
Ainda, um dos princípios da relação contratual entre as partes é a boa-fé. Em tempos
de crise, sugere-se que além da boa-fé, seja utilizado o bom senso. Muitos contratos não
preveem situações para o caso de suspensão de atividades ou talvez mudanças de formato
(universidades substituindo aulas presenciais por aulas on-line, por exemplo). Há prejuízo
das partes? Com certeza, mas o objetivo do contrato foi atingido? A função social está sendo
preservada?
A maioria dos instrumentos jurídicos vigentes prevê a rescisão, no entanto, a
suspensão raramente é prevista, razão pela qual os termos dessa suspensão e adequação à
nova realidade podem ser repactuados entre as partes, sempre preservando o equilíbrio,
conforme mais adiante será abordado.

3. DA ONEROSIDADE EXCESSIVA

Antes de adentrar especificamente sobre a possibilidade de resolução contratual com


base na onerosidade excessiva, é necessário tecer sobre o direito das obrigações – embora
não seja especificamente o assunto do presente artigo – bem acerca dos princípios
contratuais.

6
CAVALIERI FILHO, Sergio. Ob.cit, p. 68
768

As obrigações possuem previsão no Código Civil, mais precisamente nos artigos 233
e seguintes (obrigações em geral), bem como em demais matérias do código, de forma
específica.
Em uma breve análise, define-se que a obrigação é uma situação bipolar em que se
encontra, de um lado, o sujeito devedor e, em posição distinta, outro, intitulado credor. Este
é titular de um direito subjetivo – direito de crédito – que lhe faculta exigir do devedor o que
lhe cabido, ou seja, a prestação.7
Já com relação aos contratos, tenham-se que o princípio da equidade é um dos
principais balizadores das relações contratuais. O equilíbrio é um dos princípios da relação
jurídica de consumo, tendo por base os princípios das relações contratuais, que além da boa-
fé, são estruturados pela função social e equilíbrio nas regras contratuais.
Sobre o assunto, assim disserta Cavalieri:

No âmbito do regramento geral dos contratos, o sistema protetivo do consumidor


está estruturado sobre os princípios da equidade, da boa-fé e da função social do
contrato, dos quais decorrem os que vedam a lesão e o enriquecimento indevido,
tudo com corolário do resgate da dignidade da pessoa humana. Na relação
contratual, portanto, deve imperar a harmonia de interesses, o equilíbrio entre as
prestações, nem que, para isso, deva intervir o Estado. 8

Nessa linha, a onerosidade excessiva é configurada quando há esse desequilíbrio, ou


seja, na hipótese da prestação se tornar excessivamente onerosa para uma das partes, em
virtude da ocorrência de acontecimentos imprevisíveis e que excedam a relação contratual,
resta configurada a onerosidade excessiva.
No Código Civil Brasileiro, nos artigos 478 e seguintes, existe a possibilidade de
resolução de contrato, quando configurada a onerosidade excessiva, senão vejamos:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma


das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra,
em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor
pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à
data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar
eqüitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá
ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a
fim de evitar a onerosidade excessiva.

7
FERNANDES, Alexandre Cortez. Direito Civil: obrigações, 1.ed. Educs, Caxias do Sul, 2010. p. 27
8
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do consumidor, 3. Ed. São Paulo, Atlas, 2011, p. 103
769

Em contrapartida, embora a possibilidade de resolução anteriormente mencionada, o


art. 479 acima citado destaca que o réu - no caso o credor da obrigação – poderá modificar
equitativamente as condições do contrato, ou seja, reforça a possibilidade de negociação da
situação entre as partes, sempre presando pelos princípios contratuais da equidade e da boa-
fé.

3.1 Da onerosidade excessiva sob o viés do direito do consumidor

Especificamente as obrigações de consumo, pactuadas através de contratos (serviços


essenciais, serviços de telefonia, educação, prestação de serviço dos mais diversos tipos),
muitas vezes de adesão, seguiram sendo cumpridas e cobradas durante a pandemia, em que
pese muitas tenham sido modificadas ou até mesmo suspensas, em virtude das medidas de
isolamento e prevenção à propagação da COVID-19.
O art. 6º do Código de Defesa do Consumidor elucida os direitos básicos dos
consumidores, sendo que o inciso V prevê a possibilidade de revisão de cláusulas, quando
se tornarem onerosamente excessivas, senão vejamos:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por


práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou
nocivos;

II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e


serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,


com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e
preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,


com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade,
tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (Redação
dada pela Lei nº 12.741, de 2012) Vigência

IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais


coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas
no fornecimento de produtos e serviços;

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações


desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as
tornem excessivamente onerosas; - grifei

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais,


individuais, coletivos e difusos;
770

VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção


ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos,
assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do


ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for
verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
ordinárias de experiências;

IX - (Vetado);

X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.

Parágrafo único. A informação de que trata o inciso III do caput deste artigo
deve ser acessível à pessoa com deficiência, observado o disposto em
regulamento. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

O cenário atual se encaixa perfeitamente no conceito de onerosidade excessiva


disposto no código consumerista, tendo em vista que inúmeras relações de consumo vêm
sendo afetadas em função da pandemia, por conta da modificação ou até mesmo suspensão
da prestação de serviços pactuadas antes da decretação do estado de calamidade.
Como forma de abrir espaço para a possibilidade de modificação de cláusulas, alguns
bancos e instituições financeiras se adiantaram e já suspenderam ou prorrogaram o
pagamento de financiamentos9; entidades de classe da mesma forma, em que pese os
contratos de origem muito provavelmente não foram pactuados com essa possibilidade.
Em contrapartida, inúmeros fornecedores mantiveram-se silentes ou não abriram
qualquer possibilidade de alteração contratual, fazendo com que a discussão fosse levada ao
Judiciário. Consoante julgamento do agravo de instrumento de nº 0028374-
26.2020.8.19.0000 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cuja ementa segue abaixo,
alguns estudantes de medicina pleitearam judicialmente a redução da mensalidade, tendo em
vista que diante da suspensão das aulas presenciais em função da pandemia, as aulas práticas
não puderam ser realizadas.
Nos autos do primeiro grau foi deferida a redução de 50% da mensalidade do curso
de medicina no período de suspensão das aulas, uma vez que se tratando de final de curso
(aulas práticas) o sistema de aulas on-line não estava atingindo o objetivo, causando, dessa
forma, desequilibro contratual. A decisão do TJRJ foi no sentido de manter a decisão
proferida, senão vejamos:

9
Sobre as medidas adotadas pelas Instituições financeiras em função da pandemia:
https://portal.febraban.org.br/noticia/3434/pt-br/ - Acesso em 26.05.2020
771

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação Revisional de mensalidade escolar c/


pedido de tutela antecipada. Decisão que deferiu o abatimento de percentual nas
mensalidades do curso universitário da 1ª autora, em razão da ausência de
ministração das disciplinas práticas pela ré. Juízo a quo que entende pelo
desequilíbrio contratual decorrente do momento excepcional vivido pela
pandemia. Parte ré que pretende a reforma da decisão, diante da ausência dos
requisitos elementares das medidas antecipatórias. Impossibilidade de se examinar
as nuances probatórias não submetidas ao juiz do primeiro grau. Decisão que não
se mostra teratológica. Súmula 59 desta Corte. Decisão mantida. RECURSO A
QUE SE NEGA PROVIMENTO, na forma do art. 932, IV, "a", do Código de
Processo Civil.10 – grifei

Em virtude disso, cumpre ressaltar que o direito a revisão das cláusulas é positivado
e indiscutível, contudo, se analisado apenas sob o viés do consumidor pode ser interpretado
de forma desequilibrada, razão pela que se propõe que tanto sob o ponto de vista de caso
fortuito/força maior, como sob o viés de onerosidade excessiva, a boa-fé esteja presente, a
fim de buscar conjuntamente a autocomposição e manutenção do equilíbrio contratual, em
tempos tão nebulosos.
Se não houver êxito na autocomposição, caberá ao poder judiciário equalizar as
relações contratuais atingidas, conforme verifica-se no julgamento anteriormente
mencionado, relativo a relação de consumo.

4. DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ COMO PILAR PARA NEGOCIAÇÃO NOS


CASOS DE CASO FORTUITO/FORÇA MAIOR E ONEROSIDADE EXCESSIVA

Consoante anteriormente explanado, em virtude do cenário atual, existem duas


possibilidades jurídicas que propiciam a revisão e/ou extinção acerca das obrigações
pactuadas antes da pandemia, quais sejam: caso fortuito/força maior e onerosidade
excessiva.
No entanto, em ambas as possibilidades, deve-se analisar o contexto individual do
contrato firmado, já que com base no princípio da equidade – que também rege as relações
contratuais – a harmonia das relações, bem como a função social do contrato ainda devem
ser preservadas.

10
TJRJ. Agravo de Instrumento nº 0028374-26.2020.8.19.0000, Décima Câmara Cível, Des.Relator: PEDRO
SARAIVA DE ANDRADE LEMOS, Julgado em 12/05/2020.
772

Explico: uma escola que fecha as portas em função das determinações


governamentais para prevenir a disseminação do vírus, não pode deixar de efetuar o
pagamento das obrigações pactuadas (aluguel, folha de pagamento, despesas fixas), contudo,
pode buscar alternativas para negociar as obrigações em andamento. Conforme
anteriormente explanado, algumas medidas provisórias trouxeram flexibilização da lei
trabalhista, como forma de manter as vagas de emprego e também de proporcionar a
possibilidade de permanência dos empregadores. Mas certamente ainda que sejam
publicadas inúmeras medidas provisórias, será impossível esgotar demandas ou ajustar todas
as áreas impactadas pela pandemia.
Em contrapartida, os responsáveis financeiros do contrato escolar em andamento não
consideram razoável efetuar o pagamento integral da mensalidade pelo fato do serviço estar
sendo prestado de forma distinta do contrato (on-line, em vez de presencial, por exemplo),
além do fato de que inúmeras despesas são minimizadas com o fechamento da escola (água,
luz, etc).
Observa-se que pandemia implicou em uma cadeia sucessória de obrigações que vêm
sendo afetadas, já que os responsáveis financeiros igualmente podem ter sido afetados
(redução de jornada e salário ou até mesmo demissões).
É nessa análise macro que entra o princípio da boa-fé, como forma de aproximar as
partes envolvidas, de forma que as situações sejam analisadas sob o ponto de vista do
equilíbrio, mas principalmente do bom senso, já que não restam dúvidas que todos, -
independentemente da atividade -, sofrerão impactos financeiros e alteração de rotina.
O Código Civil Brasileiro muito se baseia no princípio da boa-fé para disciplinar as
relações jurídicas, nestes termos, in verbis:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,


como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Nessa mesma linha, a Lei da Liberdade Econômica11 ratifica e complementa a


importância da boa-fé nos negócios jurídicos, não só quando da formalização do
instrumento, mas durante o cumprimento das obrigações.

11
Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019.
773

Além disso, propõe a negociação e racionalidade econômica das partes como tópico
importante da interpretação da boa-fé, vindo ao encontro do momento de crise atual,
consoante artigo 113 do Código Civil Brasileiro, recentemente alterado pela Lei nº
13.874/2019:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os


usos do lugar de sua celebração.

§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído


pela Lei nº 13.874, de 2019)

I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do


negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de


negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

III - corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável;


e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão


discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade
econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de
sua celebração. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de
preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas
previstas em lei. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

Ainda, acerca da boa-fé nas relações contratuais, assim nos ensina Wald:

A boa-fé é uma cláusula geral, que permite ao intérprete verificar a


compatibilidade das cláusulas e condições gerais dos contratos. Reforce-se que a
concepção de cláusula geral corresponde a uma técnica legislativa que busca
garantir a relação entre o direito e a realidade social, possibilitando a existência de
um sistema jurídico aberto com constantes adaptações das normas legais às
exigências do mundo de relação e da alteração de seus valores com o tempo. 12

Dessa forma, considerando que se trata de um contexto crítico geral que impactou
todas as áreas, mais do que nunca deve-se analisar a situação de forma individual, a fim de
que seja mantido o equilíbrio do contrato, como forma de preservação desta cadeia
sucessória.

12
WALD, Arnoldo. Direito das Obrigações e teoria geral dos contratos, 18. Ed, Sáo Paulo, Saraiva. p;212
774

A par disso, a autocomposição, através das ferramentas de conciliação e mediação


têm sido uma ferramenta importante de diálogo, já que ambas as partes serão afetadas com
a resolução do contrato.
Construir formas de solucionar impasses, com base na realidade de cada parte
certamente terá mais êxito do que sobrecarregar o judiciário pleiteando multas e mais multas
por descumprimento contratual, inadimplementos etc.
Destarte, observa-se que: tendo por base o princípio da boa-fé, bem como a função
social das obrigações e dos contratos, as divergências decorrentes do descumprimento de
obrigações em face da pandemia, deverão ser analisadas individualmente, uma vez que
embora alguma alteração na origem da obrigação – como por exemplo uma instituição que
alterou a forma de lecionar de presencial para on-line – a função social foi mantida,
atingindo, por conseguinte o objetivo inicial firmado.
Certamente não será uma tarefa fácil, já que há toda uma construção normativa acerca
das obrigações, contratos, relações de consumo e que relativizar pode afetar a segurança
jurídica.
Contudo, o cenário atual exige uma modificação de interpretação, ainda que
temporária, acerca das relações concretas que estão sendo impactadas pelas medidas de
isolamento, perda de faturamento etc.

5. MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO COMO FORMA DE BUSCAR A


RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DECORRENTES DA PANDEMIA

Considerando todo contexto da crise global e econômica a negociação ocupa um


espaço especial, já que resolução de conflitos de forma amigável é a grande ferramenta
trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, uma vez que a conciliação e mediação foram
descritas como significantes aliadas para obter da melhor forma uma solução efetiva para o
adiamento e cumprimento das obrigações pactuadas.
A mediação possui previsão especifica, através da Lei de Mediação13, que instituiu a
mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a
autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.

13
Lei nº 13.140 de Junho de 2015
775

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, houve a positivação da


mediação e conciliação, consoante artigo 165 e seguintes do CPC:

Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de


conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e
mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e
estimular a autocomposição.

Cumpre ressaltar que dentre inúmeros princípios que regem a mediação (isonomia
entre as partes, busca de consenso, etc) novamente verificamos a existência da boa-fé, nos
termos do inciso VII do art. 2º da Lei 13.140/15, nestes termos, in verbis:

Art. 2º A mediação será orientada pelos seguintes princípios:

I - imparcialidade do mediador;
II - isonomia entre as partes;
III - oralidade;
IV - informalidade;
V - autonomia da vontade das partes;
VI - busca do consenso;
VII - confidencialidade;
VIII - boa-fé. – grifei

§ 1º Na hipótese de existir previsão contratual de cláusula de mediação, as partes


deverão comparecer à primeira reunião de mediação.
§ 2º Ninguém será obrigado a permanecer em procedimento de mediação.

Com relação as práticas autocompositivas, ressalta-se que há mundialmente uma


forte tendência para utilização das referidas práticas, em um processo de empoderamento e
autonomia do cidadão, estimulado a decidir acerca dos fatos de sua vida, responsabilizando-
se pelos resultados e consequências das decisões construídas.14
Ainda, seguindo a linha de cooperação das partes com relação a autocomposição, o
Código de Processo Civil de 2015 positivou a cooperação das partes envolvidas nos
processos judiciais, consoante art. 6º:
Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha,
em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

14
KUBIAK, Vanderlei Teresinha Tremeia. A mediação no sistema judicial brasileiro – desafios
e perspectivas – experiências de Implantação no tribunal de justiça do estado do rio grande do sul.
Publicação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 2017. p. 213
776

E se há observância de cooperação entre as partes em litígios, certamente tal princípio


tem aplicação nas relações extrajudiciais, mormente em virtude da sobrecarga notória do
poder judiciário, razão pela qual a autocomposição tem sido uma ferramenta de extrema
importância nos últimos anos, sobretudo, na crise atual.
Em todos exemplos citados anteriormente, muito provavelmente ambas as partes
estão sofrendo prejuízos em função da pandemia, seja de ordem financeira, seja de ordem
operacional, razão pela qual o consenso com relação a continuidade das obrigações em vigor
será de grande importância para manutenção de diversos serviços.
No ponto, cumpre informar que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS
disponibiliza acesso ao CEJUSC para agendamento de conciliações e mediações de forma
acessível (on-line), por meio do sistema METHIS. Trata-se de iniciativa do Poder Judiciário
do Estado do Rio Grande do Sul, utilizado para agilizar a solução de conflitos através de
métodos consensuais, ou seja, cada vez mais evidente a necessidade da utilização da
autocomposição.
É por todo exposto que mais do que a nunca a boa-fé deve ocupar um destaque
especial, já que existem contratos que não podem ser simplesmente suspensos (serviços
essenciais e relacionados a equipamentos necessários para combate à pandemia dentre
outros), mas que devem ser fornecidos de forma a garantir o equilíbrio do contrato, e revistos
de acordo com a realidade e condições das partes envolvidas, prezando, por conseguinte,
pelo equilíbrio e função social do contrato.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conclusão que se chega – e sem qualquer pretensão de esgotar o debate,


principalmente por se tratar de uma realidade extremamente nova e volátil – é que de que as
partes, através da boa-fé e equilíbrio contratual, deverão encontrar alternativas para ajustar
o contrato em vigor, utilizando para tanto as ferramentas disponíveis de autocomposição.
Caso não tenham êxito nesse ajuste, caberá ao poder judiciário, através da
sensibilidade dos julgadores, analisar caso a caso, a fim de que diante do cenário crítico, a
realidade fática tenha um peso superior ao artigo positivado, uma vez que simplesmente
eximir-se de responsabilidade ou solicitar resolução contratual sem ao menos tentar a
autocomposição, vai de encontro com uma série de outros princípios dos negócios jurídicos.
777

Na hipótese de decisão judicial acerca de contratos cuja autocomposição não foi


possível, certamente deverão ser analisados elementos de direito material da relação, tais
como nexo de causalidade entre a onerosidade excessiva e a pandemia, já que não
necessariamente toda e qualquer dificuldade contratual estará ligada à ocorrência das
problemáticas advindas pela pandemia. Mais um motivo para começar pela autocomposição,
uma vez que a celeridade é incomparável.
Vale lembrar que se tratando de judicialização da demanda, muito provavelmente
haverá a interpretação da lei positivada, ensejando a aplicação das penalidades previstas na
lei e no contrato – se houver – de forma que trazer a decisão de ajuste para as partes
envolvidas, têm uma chance maior de adimplemento, já que as novas cláusulas são
construídas e negociadas de acordo com condições possíveis e viáveis, evitando dessa forma
a mora e inadimplemento contínuo.
Por fim, de suma importância frisar que não existe uma fórmula pronta para regular
o cumprimento compulsório das obrigações em épocas como essas, razão pela qual, dentre
tantas fontes e normas do direito, novamente o bom senso e equilíbrio devem se fazer
presente, a fim de tentar minimizar os prejuízos das partes e garantir a continuidade das
relações e os princípios da autonomia da vontade.

REFERÊNCIAS

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do consumidor, 3. Ed. São Paulo, Atlas,
2011.

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9.ed. São Paulo, Atlas,
2010 ;
FERNANDES, Alexandre Cortez. Direito Civil: obrigações, 1.ed. Educs, Caxias do Sul,
2010.

KUBIAK, Vanderlei Teresinha Tremeia. A mediação no sistema judicial brasileiro –


desafios e perspectivas – experiências de Implantação no Tribunal de Justiça do estado do
Rio Grande do Sul. Publicação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 2017;
MARIONINI, Luiz Guilherme. Novo Código de Processo Civil Comentado. Luiz Guilherme
Marinoni, Sérgio Cruz Arenhardt, Daniel mitidiero, 2ª ed, São Paulo, Revista dos Tribunais,
2016.

WALD, Arnoldo. Direito das Obrigações e teoria geral dos contratos, 18. Ed, São Paulo,
Saraiva, 2009.
778

Lei nº 8.078, de 11 de Setembro de 1990;

Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002;

Lei nº 13.105, de 16 de Março de 2015;

Lei nº 13.140 de Junho de 2015;

Lei nº 13.874 de Setembro de 2019.


779

DESPORTO FEMININO: DIREITO DE IGUALDADE E


RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS

Natália Gehres Trapp1

Resumo O artigo visa fazer uma breve análise acerca das concepções de igualdade e
diferença de gênero relacionadas ao universo feminino no desporto. O objetivo do presente
estudo é demonstrar que existem fatores importantes, tais como a desigualdade de gênero e
a consequente dominação masculina nas modalidades esportivas com reflexo direto no papel
social do esporte na vida e desenvolvimento das mulheres. Bem como a análise da evolução
do reconhecimento das diferenças que se mostram como forte fator na busca de uma maior
inclusão e desconstrução de estereótipos nocivos ao crescimento feminino no desporto.
Palavras-chave: igualdade, diferença, relações de gênero, mulheres, direito desportivo.

1. Introdução
A problemática de igualdade de oportunidades entre homens e mulheres é uma
temática que vem sendo abordada há muito tempo, na medida em que sempre existiram
desigualdades sociais, econômicas e humanas. Verifica-se a existência de um longo percurso
evolutivo da problemática de igualdade e questões de gênero, que ainda nos tempos atuais
permitem e geram espaço para largas discussões, principalmente no mundo desportivo,
espaço que carece de maior atenção e até mesmo normas que gerem efetividade na maneira
como são conduzidas as relações no mundo do esporte. A matéria demonstra verdadeira
relevância para o desenvolvimento da sociedade com consequências que visam não apenas
a regulação da matéria de ordem jurídica, mas a evolução da própria temática como uma
questão social.
Vivenciamos ainda nos dias atuais em uma sociedade patriarcal, na qual
presenciamos diariamente as discriminações das mulheres em relação aos homens, inclusive
no meio desportivo, dentre as quais se pode destacar a diferença de oportunidades;
dificuldade de ascensão em cargos diretivos e de poder; diferenças salariais; falta de interesse

1
Graduada em direito pela PUCRS (2014), pós-graduada em Processo Civil pela UFRGS (2015), Formação
em Pensamento Sistêmico e Constelações Familiares pela SBDSIS (em andamento). Advogada inscrita na
OAB/RS 93.314. Membro da Comissão da Mulher Advogada (2018). Julgadora suplente Tribunal de Ética e
Disciplina da OAB/RS (2019).
780

em questão de patrocínios e divulgação das práticas esportivas; ausência de espaço na mídia.


As consequências das marcas culturais dificultam de certa maneira a busca mais acelerada
por soluções eficazes para a questão; porém, a partir de práticas simples, inclusive a
ampliação de espaços de debate sobre o tema, que poderiam ser implementadas de forma
mais abrangente, promoveriam mudanças na forma como a própria sociedade visualiza a
questão, ainda que em um primeiro momento tais práticas pudessem ser vistas como
aparentemente inoperantes, sem dúvidas acarretariam mudanças significativas para o futuro
das diretrizes do desporto feminino.
O debate da questão, portanto, é fundamental em diversas áreas de desenvolvimento,
revelando a necessidade de mudança de objetivos, estratégias e ações para garantir que
homens e mulheres possam ser beneficiados com o processo evolutivo, principalmente
quando se fala nas questões relacionadas a promoção da igualdade social e de gênero dentro
do mundo desportivo.
Tem-se como extremamente importante a garantia dos direitos humanos e justiça
social para homens e mulheres, respeitando as diferenças e necessidades de cada indivíduo.
Nos últimos anos, as questões de igualdade e gênero foram trazidas para debates e tentativas
de soluções também na esfera pública, com o reconhecimento da necessidade de validação
efetiva da equidade como processo de desenvolvimento sustentável.
A importância da intersecção entre gênero e atividades esportivas tem sido destacada
inclusive por organizações políticas e científicas em âmbito nacional e internacional. Como
por exemplo, um dos dezessete objetivos estabelecidos pela Cúpula das Nações Unidas para
alcançar o desenvolvimento sustentável é “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar
todas as mulheres e meninas”.
Existem inúmeros estudos que demonstram as desigualdades sociais e de gênero nas
atividades desportivas, o que resulta em implicações desfavoráveis às mulheres. As razões
das desigualdades são multifatoriais, estando muito ligadas a questões históricas e a aspectos
do desenvolvimento social, conforme se verá sucintamente ao longo deste artigo. As origens
históricas do esporte como uma atividade predominantemente masculina, os significados de
gênero presentes nas atividades físicas e esportivas, as desigualdades de oportunidade, a
forma como as mulheres foram vistas – e ainda são – perante a sociedade e muito em relação
ao papel que “devem” desempenhar, são alguns dos muitos motivos que dificultam o seu
acesso às atividades esportivas.
781

A partir das perceptíveis desigualdades no que tange ao desporto feminino bem como
a importância de reconhecimento das diferenças individuais, o objetivo deste artigo é realizar
uma breve análise acerca do direito de igualdade no que se relaciona ao esporte para as
mulheres tal como verificar aplicações legais e iniciativas que passam a reconhecer a
importância do reconhecimento de gênero bem como o acesso de mulheres práticas
esportivas no Brasil e, ainda, ações que contribuem para sua inserção e permanência nessa
área.
Nesse sentido, diante das inúmeras problemáticas que o tema aborda, principalmente
no que tange ao direito de igualdade e reconhecimento da mulher dentro do mundo
desportivo como indivíduo único, este artigo, que em hipótese alguma visa esgotar a análise
sobre o tema, aborda alguns aspectos importantes a serem debatidos para que haja um maior
desenvolvimento da temática na sociedade brasileira.

2. Direito de igualdade e o desporto feminino

A questão de igualdade de gênero é algo que reflete a sociedade e cultura patriarcal


em que vivemos. O tema vem sendo há muito debatido e se mostra de fundamental relevância
para que haja uma aceleração da evolução feminina e consequente apoderamento de seu
espaço na sociedade como um todo, mas principalmente sua tomada de lugar dentro do
mundo dos esportes.
A exclusão das mulheres do mundo esportivo se expressou de muitas formas ao longo
da história. É conhecida a objeção de Pierre de Coubertain, idealizador dos Jogos Olímpicos
Modernos, à participação das mulheres nesses eventos (DEVIDE, 2005; FARIAS, 2009):
“os jogos olímpicos são a exaltação solene e periódica do esporte masculino”2
(COUBERTIN apud FARIAS, 2009, pp. 238-239).
Em 1932, ano em que as mulheres conquistaram o direito ao voto no Brasil, é
também, coincidentemente o ano em que, pela primeira vez, uma brasileira participou dos
Jogos Olímpicos.
Em 1934, restrições à prática de exercícios pelas mulheres, como em relação ao
desenvolvimento de músculos e aos exercícios intensos, foram estabelecidas pelo

2
FARIAS, Cláudia Maria de. Entre lembranças e silêncios: reflexões sobre uma autobiografia feminina.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 22, n. 43, pp. 238- 257, 2009
782

“Regulamento nº 7”, documento legal que destacava o uso do método francês na educação
física no Brasil. Exercícios intensos e envolvendo força seriam incompatíveis com a
personalidade "naturalmente" mais calma e reservada da mulher, bem como com suas
funções reprodutivas. A fadiga muscular associada à menstruação, à gravidez e ao
aleitamento poderia causar esgotamento. (REGULAMENTO nº 7, 1934). As seguintes
atividades eram recomendadas àquelas que “não eram constituídas para lutar, mas para
procriar”:
A marcha, os exercícios rítmicos e de suspensão de curta duração com tempos de
impulsão, o salto na corda, o lançamento de disco, dardo e peso (menor que os dos
homens), os jogos de raquete (péla e tênis), o transporte de pesos leves em
equilíbrio na cabeça, e esgrima dos dois braços, que exigem em definitivo apenas
um trabalho moderado e que põem em ação, sobretudo, os músculos da bacia,
serão, em princípio, os exercícios próprios à mulher. Qualquer exercício que seja
acompanhado de pancadas, de choques e de golpes é perigoso para o órgão uterino.
A higiene condena sua prática pela mulher (REGULAMENTO nº 7, 1934, p. 16).

O distanciamento da mulher ao desporto pode ser entendido, a priori, a partir de uma


lógica que a separou da prática esportiva ao longo de toda a história: “Às mulheres não se
permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”, instituía
o Artigo 54 do Decreto-Lei que criou o Conselho Nacional de Desporto (CND) em 1941
(CASTELLANI FILHO, 1994; FRANZINI, 2005; RIAL, 2010; ALMEIDA,2013).
Em 2 de agosto de 1965, durante a ditadura militar, a Deliberação n.º 7, assinada pelo
General Eloy Massey Oliveira de Menezes, presidente do Conselho Nacional de Desportos,
delimitou a linha que segregava o esporte feminino brasileiro:

Não é permitida [à mulher] a prática de lutas de qualquer natureza, do


futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby,
halterofilismo e baseball.

Verifica-se, portanto, a partir de pequenos exemplos, que a lenta evolução da


igualdade, encontra sua maior dificuldade na própria base sob a qual fora construída ao longo
do tempo. Notadamente, barreiras foram construídas e impostas, a partir de premissas
totalmente infundadas e temerárias. Segundo Miguel Vale de Almeida, “a masculinidade
hegemónica é um modelo cultural ideal que, não sendo atingível – na prática e de forma
consistente e inalterada – por nenhum homem, exerce sobre todos os homens e sobre as
mulheres um efeito controlador”3.

3
VALE DE ALMEIDA, Miguel. Gênero, masculinidade e poder: revendo o caso do sul de Portugal. In:
Anuário Antropológico, 95: 1996, p. 3.
783

A mentalidade e a estrutura social, sem sombra de dúvidas, são tabus que ao longo
do tempo vem sendo enfrentados e combatidos através de tentativas – muitas vezes –
solitárias de movimentos quase que individuais e histórias de mulheres que de forma altruísta
e corajosa se empenham na luta pela igualdade. À exemplo, podemos citar as Olimpíadas de
Tóquio de 1964, onde apenas uma mulher representou o Brasil: Aída dos Santos, que viajou
sem técnico, sem tênis e sem uniforme e, mesmo assim conquistou o melhor resultado para
atletas brasileiras – 4º lugar no salto em altura.
Ainda que se possa imaginar uma certa evolução na questão de igualdade de gênero,
na medida em que algumas posições e alguns direitos foram conquistados, certo é que ainda
existe uma grande trilha a se percorrer quanto ao tema. A percepção da sociedade, a
desmistificação de crenças bem como a valorização pela própria mulher de seu lugar. Nesse
sentido, Eric Dunning4 afirma:
Provavelmente, a principal implicação da presente análise é o fato de o esporte
aparentemente ter uma importância apenas secundária com respeito à produção e
reprodução da identidade masculina. Mais significativos nesse caso parecem ser
aqueles aspectos da estrutura social mais ampla que afetam as oportunidades
relativas de poder dos sexos e o grau de segregação sexual que existe na necessária
interdependência entre homens e mulheres. Tudo que o esporte parece fazer é
desempenhar um papel secundário e de reforço. O esporte, no entanto, é crucial na
sustentação de formas modificadas e mais controladas de agressividade machista
numa sociedade em que somente alguns papéis ocupacionais, tais como os dos
militares e da polícia, oferecem oportunidades regulares de luta, e em que todo o
direcionamento da evolução tecnológica tem sido há muito tempo para reduzir a
necessidade da força física. Obviamente, na medida em que as mulheres
continuarem sentindo atração por homens machistas, os esportes, especialmente
os esportes de combate, desempenharão um papel de certa relevância na
perpetuação tanto do complexo do macho quanto da dependência de mulheres que
fluem dessa fonte. Provavelmente, é inútil especular se esportes de combate
continuariam existindo numa sociedade mais plenamente “civilizada” que a nossa.
Uma coisa, porém, é certo: mesmo que a equalização tenda a aumentar a
ocorrência de conflitos em curto e médio prazo, essa sociedade, em longo
prazo, teria que incorporar uma proporção bem maior de igualdade entre os
sexos, as classes e as “raças” do que foi possível até hoje. (grifei).

De outra parte, importante frisar que a igualdade de gênero é algo totalmente


compatível com o ordenamento jurídico brasileiro e que deve ser perseguido, na medida em
que o mesmo prevê a dignidade da pessoa humana como fundamento e a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, sendo visto como a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação,

4
Eric Dunning. (Org.). Sociologia do Esporte e os Processos Civilizatórios. 1ed.São Paulo: Annablume, 2014.,
p. 85/86.
784

como objetivos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III e art. 3º, I e IV, Constituição
Federal).
A preocupação com o tema também foi endossada através da Declaração de Brighton
sobre Mulheres e Esporte (FINNISH SPORT FEDERATION, 2014), em 1994, com
diretrizes e ações para combater, em âmbito internacional, as significativas desigualdades de
gênero nas mais diversas dimensões esportivas. Esse documento parte da Declaração
Universal de Direitos Humanos, na qual o acesso ao esporte é afirmado como um direito
universal, e da constatação de que, embora as mulheres representem mais de cinquenta por
cento da população mundial, em todos os países do mundo sua participação nos esportes é
menor do que a de homens e meninos, mesmo que com variações significativas entre as
nações. Para que o esporte seja garantido a todos e a todas, são necessárias ações que levem
em conta as desigualdades de gênero e discriminações existentes contra mulheres
(ALTMANN, 2014).
Devemos lembrar, no entanto que, quando se trata de esporte principalmente,
necessário se faz uma análise através de uma perspectiva binária, até mesmo porque, o
esporte reforça a diferença de gênero, uma vez que a separação se dá em diferentes níveis,
desde o entendimento dos corpos até o espaço de disputa esportiva. Ao longo de toda a
história os números demonstram uma exclusividade masculina no ambiente esportivo, a
saber, durante os jogos na Grécia, as disputas esportivas eram realizadas com homens nus
para que fosse verificado o sexo biológico dos participantes. Esse pensamento e prática tem
reflexo até hoje no esporte, o que se pode perceber até mesmo pela letra fria da Lei Pelé
(legislação específica que prevê as normas gerais sobre a prática do esporte no Brasil).5
O aumento da participação feminina no esporte tem relação íntima com a luta
feminista, uma vez que a participação tem um aumento significativo a partir dos anos 80. E,
muito embora saibamos que a participação feminina no desporto apresente atualmente
números muito mais expressivos, fato é que não podemos afirmar a existência suficiente de
igualdade de gênero.
O meio esportivo, em geral, ainda pode ser considerado um lugar socialmente aceito
a sociedade masculina. Uma mulher que ingressa em qualquer modalidade desportiva, que
participa de torneios, que disputa lugares e posições em igualdade de condições com os

5
Freitas da Silva, Regis Fernando. APOSTILA GÊNERO E ESPORTE. p. 3/5
785

homens e ainda demonstra habilidades causa certo impacto, uma vez que vai ao desencontro
do que é normalmente aceito.
Segundo Knijnik:
“Esses corpos e essas práticas tensionam os olhares acostumados ao mesmo, pois
desestabilizam representações naturalizadas que colam no masculino e no
feminino diversos atributos, comportamentos, virtudes, atitudes... colam, ainda,
diferentes gestualidades, aparências e usos do corpo” 6.

Não obstante as dificuldades enfrentadas, salutar apresentar algumas ações


interessantes sobre o tema e que trazem certa esperança para o avanço da questão. Nesse
sentido, cita-se a agenda 2030 da ONU, a qual visa um plano de ação para as pessoas, para
o planeta e para a prosperidade, onde foram anunciados 17 Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável e 169 metas que buscam concretizar os direitos humanos de todos e alcançar a
igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas.7
De fato, tais ações são importantes, na medida em que por muito tempo, como visto,
o direito serviu como uma forma de exclusão das mulheres dos esportes, o que tão somente
pode ser aos poucos recuperados pelo esforço próprio de atletas que lutaram e ainda lutam
pelo reconhecimento e alcance de seus direitos.
Levando-se em consideração as relações historicamente construídas através do
discurso normativo vigente ao longo dos anos de proibições em torno da prática esportiva
por mulheres no Brasil, o reconhecimento aconteceria por estágios de relações sociais ainda
por vir (Almeida, 2013)8. Essa rede de relações é mais bem explicada a partir da história de
vida e do papel social conferido às atletas.
E quando falamos em luta pelos direitos, podemos nos voltar ao que Gilberto
Velho9 chamou de projetos que se constituem dentro de um campo de possibilidades,
podendo interagir a outros, coletivos ou individuais, de forma conflituosa ou não. Esse
projeto, não obstante, é subdividido em estágios, como “metas”, a serem alcançados partindo
de uma nova apresentação do self baseado em novas posturas de luta – metamorfose. A
metamorfose é aduzida no sentido de “mudança individual dentro e a partir de um quadro

6
Knijnik, J. 2010. (Org.) Gênero e esporte: masculinidades e feminilidades. Rio de Janeiro: Apicuri.p 9
7
Disponível em: < https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/post-2015.html> Acesso em: 23 de agosto
de 2020.
8
Almeida, Caroline Soares de. “Boas de bola”: Um estudo sobre o ser jogadora de futebol no Esporte Clube
Radar durante a década de 1980. 2013. 150 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade
Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Florianópolis.
9
Velho, Gilberto. 2003. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.
786

cultural”. O autor percebeu que os movimentos de contracultura auxiliaram no processo de


presentation of self (no sentido que Velho atribui à Goffman). Dessa forma, atribui à
sociedade urbana moderno-contemporânea a tendência de constituir identidades a partir de
um intenso jogo de papéis sociais que são adaptados a experiências e a níveis de realidade
diversificados, podendo não apresentar conflitos ou contradições:

Aqui, no nosso caso, mesmo nas mudanças aparentemente mais incisivas de


identidade individual, permanecem as experiências e vivências anteriores, embora
reinterpretadas com outros significados. Entre um self fixo e imutável, por detrás
das aparências, e uma plasticidade total, procuro captar o jogo da permanência e
mudança (Ibidem).

O reconhecimento dos esportes praticado por mulheres, através da mudança de


comportamento e visão de mundo da sociedade em geral e igualmente por meio de
implantação de políticas públicas efetivas no sentido de disseminar de forma legal a prática
desportiva feminina, geraria, sem sombra de dúvidas, expressiva diminuição da
desigualdade de oportunidades, diretos e tratamento entre homens e mulheres no cenário
esportivo, vindo a contribuir, inclusive, para o avanço em questões como vida financeira
estável, calendário anual, torcedores, sucesso público e família ao lado apoiando, que hoje
são vistas como fatores impeditivos da evolução do esporte feminino.
Apesar de ser evidente o aumento significativo do ingresso de mulheres nos esportes,
as diferenças em relação aos homens, principalmente quando falamos em recursos e
oportunidades, ainda é uma realidade. Entretanto, o envolvimento de mulheres na prática
esportiva de forma igualitária, permite com que haja uma maior desenvoltura em
competências e habilidades que lhes foram negadas por muito tempo em razão das rígidas
concepções de gênero.

3. PERCEPÇÃO DOS SUJEITOS ESPORTIVOS A PARTIR DO


RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS

A questão da diferença entre os seres humanos é parte da história e, quando falamos


em sujeitos esportivos, a perspectiva também faz parte de uma análise a respeito de pontos
divergentes. A diferença se apresente em diversos discursos, sejam eles, filosóficos,
religiosos, biológicos/científicos, psicológicos, antropológicos e sociais.
787

Segundo Pierucci10, a certeza de que os seres humanos não são iguais, porque não
nascem iguais e como tal não podem ser tratados como iguais, quem primeiro apregoou foi
a direita, mais exatamente a ultradireita do final do século XVIII e primeiras décadas do
século XIX, como reação ao ideal de igualdade e fraternidade cultuados pela Revolução
Francesa. Portanto, a bandeira da defesa das diferenças, hoje empunhada à esquerda pelos
"novos" movimentos sociais (das mulheres, dos negros, dos homossexuais, etc), foi na
origem - e permanece fundamentalmente - o grande signo das direitas, velhas ou novas,
extremas ou moderadas. Funcionando no registro da evidência, as diferenças explicam as
desigualdades de fato e reclamam a desigualdade (legítima) de direito.
Joan Scott11 defende a desconstrução da oposição binária igualdade/diferença à luz
de Derrida. Segundo ela, a própria antítese igualdade-versus-diferença oculta a
interdependência dos dois termos, uma vez que a igualdade não é a eliminação da diferença
e a diferença não impede a igualdade. Desconstruída essa antítese, diz Scott, será possível
não só dizer que os seres humanos nascem iguais mas diferentes, como também sustentar
que a igualdade reside na diferença. Para a autora, o uso do discurso da diferença macho-
fêmea envolve uma outra cilada: oculta as diferenças entre as mulheres (e entre homens), no
comportamento, no caráter, no desejo, na subjetividade, na sexualidade, na identificação de
gênero e na experiência histórica. Há uma enorme diversidade de identidades de mulheres e
homens, que supera essa classificação masculino/feminino; a categoria macho/fêmea
suprime as diferenças dentro de cada categoria. A única alternativa é, pois, recusar a
oposição igualdade/diferença e insistir continuamente nas diferenças como a condição das
identidades individuais e coletivas, como o verdadeiro sentido da própria identidade. Na
proposta desconstrucionista de Scott, a diferença binária daria lugar à diferença múltipla,
única forma de fugir das armadilhas da disjunção igualdade ou diferença.
Mais especificamente sobre a questão esportiva e suas diferenças, importante
afirmação de Altmann, que assevera que sobre as percepções de prazer e de competência
corporal, o interesse e a atribuição de valor-utilidade à educação física são mais baixos entre
as meninas do que entre os meninos (ALTMANN et al., 2011; ALTMANN et al., 2018).
Percebendo-se corporalmente menos competentes e sentindo menos prazer em realizar
atividades físicas e esportes, valorizando menos essa experiência corporal, as meninas os

10
Pierucci, A. F. (1990). Ciladas da diferença. Tempo Social, 2 (2), 7-33.
11
Scott, Joan W. (1988). Gender and the politics of history. New York: Columbia University Press.
788

praticam com menor regularidade. Ampliar as possibilidades de prática e qualificar as


intervenções pedagógicas de modo que meninas se percebam mais aptas e qualificadas para
as atividades físicas e esportivas e sintam prazer em realizá-las são desafios importantes para
a construção de políticas públicas.
Algumas pesquisas têm analisado a intersecção entre políticas públicas, lazer, esporte
e gênero. Werle e Saraiva12 demonstram que as políticas públicas de esporte e lazer não
incorporam as questões de gênero. A partir do discurso da igualdade de direitos, são
desenvolvidas políticas de forma genérica, sem reconhecer as diferenças e a diversidade do
público-alvo e tendo como efeito a produção de desigualdades de gênero na oferta de
serviços. Em pesquisa realizada no ano de 2009 junto a Fundação Municipal do Esporte
(FME) de Florianópolis, restou analisado que há uma reduzida e frágil incorporação da
perspectiva de gênero nas políticas públicas da FME:

Podemos dizer que há uma reduzida e frágil incorporação da perspectiva de gênero


nas políticas públicas da FME,o que encaminha para um atendimento
generificado, não apenas pelo número diferenciado de atendimentos de cada sexo,
mas também: pela valorização diferenciada às dimensões esportivas e atividades
de lazer, já que as atividades identificadas como de maior participação feminina
carecem de iniciativas, seja em relação à ampliação dos serviços, seja na
diversificação destes; pela desconsideração das diferenças de gênero que se
referem à divisão social do trabalho e às suas implicações no acesso e permanência
de homens e mulheres nas atividades da FME (WERLE; SARAIVA, 2013, p. 74).

A partir da visão de que as políticas públicas encontram dificuldades para a


percepção de diferenças e inclusão mais efetiva quanto a questão de gênero em suas ações,
salutar se faz mencionar a evidente predominância masculina em cargos diretivos e de poder,
o que, justificaria o distanciamento da mulher no desporto, na medida em que na prática, as
ações voltadas para o cenário esportivo partiriam de decisões predominantemente
masculinas, ou seja, a ausência de mulheres em cargos diretivos é fator a ser analisado,
principalmente quando falamos em ampliação de políticas públicas para inclusão de
mulheres no esporte.
Sobre o tema, Raewyn Connell (1995)13 apresenta que:

12
GOELLNER et al., 2009; WERLE e SARAIVA, 2013; SALLES-COSTA et al., 2003; SILVESTRIN e
SARAIVA, 2012; BENINI FILHO, 2017
13
The overwhelming majority of top office-holders are men because there is a gender configuring of
recruitment and promotion, a gender configuring of the internal division of labour and systems of control, a
gender configuring of policymaking, practical routines, and ways of mobilizing pleasure and consent.
789

A esmagadora maioria dos titulares de cargos de topo são os homens, porque há


uma configuração de género no recrutamento e promoção, uma configuração de
gênero na divisão interna do trabalho e sistemas de controle, uma configuração de
gênero da formulação de políticas, rotinas práticas e formas de mobilizar prazer e
consentimento. (Tradução livre) (1995, p. 73)

A ocupação e posição nos espaços segue um desiquilíbrio nas relações entre homens
e mulheres. Tal situação pode ser produzida a partir de uma ação que privilegie apenas um
destes grupos, sendo notório que os homens obtêm maior espaço. E, nesse sentido,
abordando a questão de desequilíbrio e diferenças, Regis Fernando da Silva14, menciona:
Na competição intercontinental, a Copa Libertadores da América, a colombiana
do Atlético Huila conquistou o título feminino recebeu US$ 55 mil (R$ 212 mil)
como prêmio, já o River Plate, campeão do torneio masculino, recebeu US$ 6
milhões (cerca Tratado de Roma, que regulava a livre circulação de trabalhadores
e concorrência. 2Para uma exemplificação o salário do jogador Cristiano Ronaldo
gira em torno de 58 milhões de dólares por mês, já o salario da jogadora Marta é
de 1.5 milhão de dólares por mês. de R$ 20 milhões).3 Esses dados demonstram
claramente a diferença econômica e de tratamento entre as competições. Nesse
sentido, que o desenvolvimento de marcas esportivas acaba compondo números
tão diferentes e sempre trazendo vantagens para os homens, perpetuando-se a
dominação masculina no esporte. Essa desigualdade é alvo de críticas e protestos
por parte de atletas mulheres. Lembra-se aqui do fato ocorrido na Copa do Mundo
da França, quando a atleta brasileira Marta utilizou chuteiras pretas em razão da
não concordância com valores que foram lhe oferecida a título de patrocínio
esportivo, uma vez que os valores eram baixos em comparação com os dos atletas
homens.

A ocupação de determinados espaços se constitui como um demarcador das relações


de gênero e de distinção corporal, no qual há grupos favorecidos hierarquicamente e outros
em condições periféricas, estabelecendo normas que intervém nos corpos demarcando os
espaços que homens e mulheres podem ocupar dentro da prática esportiva.
À título exemplificativo, o STJD, somente em 2019, apresentou como novidade a
comissão feminina responsável por julgar casos de futebol feminino no tribunal15; contudo,
embora se tenha como marco importante a criação da comissão, de outro lado, importante se
faz mencionar que a comissão julgará apenas os casos relacionados ao futebol feminino, ou
seja, não serão responsáveis pelo julgamento dos casos dentro do futebol masculino.
Em análise feita por Gustavo Lopes16 sobre a criação da comissão pelo STJD surgiu
interessante reflexão a respeito de uma iniciativa contrária à ideia de integração necessária,

14
Da Silva, Regis Fernando F. Clausula antigravidez dos contratos de trabalhos desportivos. Disponível
em:https://www.academia.edu/41705775/Clausula_antigravidez_dos_contratos_de_trabalhos_desportivos
Acesso em: 31/08/2020
15
https://stjd.org.br/noticias/stjd-apresenta-comissao-feminina
16
https://leiemcampo.blogosfera.uol.com.br/2019/09/29/stjd-cria-comissao-feminina-ideia-traz-uma-reflexao-
necessaria/
790

eis que quando se separa homens de mulheres, a bem da verdade, se estaria segregando de
acordo com conceitos preconceituosos. Segundo Gustavo “ao conferir a essa verdadeira
seleção de juristas femininas a competência de julgar apenas o "futebol feminino" parece
configurar indicar mais um grande "apartheid" do que uma busca pela igualdade”. E segue
“Ao criar uma comissão de mulheres para julgar mulheres, acaba-se, na prática criando
dois tribunais dentro de um, um de primeira classe, composto majoritariamente por homens
para julgar o futebol masculino, inclusive o Brasileirão, grande filé da modalidade e outra
classe, para julgar as competições do ainda incipiente futebol feminino”.
Há, ainda que de forma tímida e não dentro do que se espera alcançar, evidentemente,
avanços em relação à inserção das mulheres em espaços, principalmente dentro do esporte,
fatos que não se podem negar e nem tampouco desvalorizar. A evolução, contudo, quanto
ao ponto é lenta, o que demanda maior atenção bem como a necessidade de medidas
impositivas para que o cenário mude e haja uma aceleração no processo.
Nesse sentido também, no ano de 2019, todos os 20 clubes que disputam a Série A
do Campeonato Brasileiro de futebol precisaram se enquadrar no Licenciamento de Clubes
da Confederação Brasileira de Futebol, sob pena de ser impedido de participar dos torneios
organizados pela CBF em caso de não se enquadrar nas determinações. Uma das obrigações
é que os clubes precisariam manter um time de futebol feminino que dispute um campeonato
nacional ou estadual. A Conmebol já havia exigido que quem não mantivesse um time
feminino seria proibido de disputar a Libertadores e a Copa Sul-Americana. Tal exigência
se baseia no artigo 23 do estatuto da Fifa17, o qual exige das confederações a adoção de

17
Los estatutos de las confederaciones deberán cumplir con los principios de gobernanza y, en particular,
deberán incl uir como mínimo, determinadas disposiciones relativas a las materias siguientes:
a) declaración de neutralidad en cuanto a política y religión;
b) prohibición de toda forma de discriminación;
c) independencia y prevención de injerencias políticas;
d) gara ntía de la independencia de los órganos judiciales (separación de poderes);
e) aceptación de las Reglas de Juego, de los principios de lealtad, integridad, deportividad y juego
limpio por parte de los grupos de interés, además de los Estatutos, reglamentos y decisiones de la
FIFA y de la confederación correspondiente;
f) reconocimiento de la jurisdicción y autoridad del TAD por parte de los grupos de interés y
concesión de prioridad a la mediación como vía de resolución de disputas;
g) responsabilidad de las federaciones miembro a la hora de regular matérias tales como arbitraje, lucha
contra el dopaje, registro de jugadores, licencias de clubes, imposición de medidas disciplinarias
incluidas las resultantes de conductas éticas inapropriadas o medidas destinadas a proteger la integridad
de las competiciones;
h) definición de las competencias de los órganos responsables de la toma de decisiones;
i) prevención de conflictos de interés en la toma de decisiones;
j) constitución de los órganos legislativos de acuerdo con los principios de representatividad
democrática, teniendo presente la importancia de la igualdad de género en el fútbol;
791

medidas de governança que incluem a incorporação de artigos que preveem a igualdade de


gênero. Veja-se, embora por um lado seja lamentável a necessidade de medidas impositivas
e obrigatórias no sentido de inserção da mulher no mundo esportivo, em razão de todo o
histórico sociocultural, talvez tais medidas sejam a melhor saída no momento para que se
abra uma janela de espaço para a inclusão do que até hoje é visto como “diferente”.
O que se vê, portanto, é que aos poucos, medidas vem sendo adotadas para que haja
uma maior inclusão das mulheres no mundo do desporto e, se a teoria feminista há anos tem
negligenciado o esporte18os movimentos feministas vêm aos poucos consolidando a paridade
de gênero nos esportes em suas agendas de lutas.
De acordo com Maria de Fátima Araújo19 pode-se dizer que, nos dias de hoje, pelo
menos nas sociedades ocidentais, homens e mulheres estão se distanciando dos modelos
estereotipados de gênero e desenvolvendo novas formas de subjetividade, livres do
imperativo das divisões traçadas pelas representações sociais até então vigentes. A ideia de
que existe um modelo masculino ou feminino universal não se sustenta mais. Sob a égide da
pluralidade e da singularidade, surgem diferentes modos de ser da masculinidade e da
feminilidade que convivem, de forma já não tão conflituosa, com as matrizes hegemônicas
de gênero ainda existentes. Neste cenário, abre-se a possibilidade concreta de construir
relações de gênero mais democráticas, nas quais o direito à igualdade e o respeito à diferença
são as pedras angulares.
As questões culturais, os estereótipos do gênero e a cultura organizacional são as
principais razões para ainda persistirem as desigualdades de gênero a nível geral e no
desporto em particular.
Ainda que seja perceptível o surgimento a cada ano de mudanças e imposições para
que haja uma maior inserção das mulheres no desporto, é necessário que haja uma
percepção mais amplificada e sensível da individualidade de cada sujeito, partindo de uma
análise das diferenças e necessidades particulares de cada modalidade esportiva. Os
avanços, sem sombra de dúvidas são respeitáveis e merecem atenção; contudo, medidas

k) auditoría de cuentas independiente todos los años


18
BRAKE, Deborah.Getting in the Game: The IX and the Women’s Sports Revolution. New York: New
York University Press, 2010,p. 2.
19
ARAUJO, Maria de Fátima. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psicol.
clin., Rio de Janeiro , v. 17, n. 2, p. 41-52, 2005 . . Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652005000200004&lng=en&nrm=iso.
Acesso em: 30/08/2020.
792

mais efetivas, principalmente no que tange às políticas públicas precisam ser revistas e
urgentemente alteradas para que exista de fato a tão sonhada desigualdade de gênero no
esporte.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quem narrou do estádio de Melbourne, foi Luís Roberto: “Vem assistir... Formiga,
Cátia, Sislene... pra Pretinha... Gol”. Brasil 1, Suécia 0. Estava aberto o placar das
Olimpíadas de Sidney. Seja qual for o desempenho da delegação brasileira, essa
ninguém lhe tira. Pretinha marcou o primeiro ponto dos 27º jogos da era moderna.
Há algo de comovente e didático naquelas 11 mulheres que jogaram a primeira
partida das Olimpíadas. Todas as suecas tinham nome e sobrenome (Caroline
Joensson, Victoria Svenssom). As brasileiras às vezes tinham prenome (Andréia),
mas em muitos casos, só apelidos (Sissi). As suecas, louras, imensas, proteína
pura. As brasileiras, mestiças, miúdas, com calções enormes e camisas que
pareciam ter saído da rouparia do time masculino. Lembravam o sertanejo de
Euclides da Cunha: “Falta-lhe a plástica impecável, o desempenho, a estrutura
corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto”.
Pretinha (Delma Gonçalves) tem 25 anos, 1,57 metro e 55 quilos. Criou-se no
subúrbio carioca de Senador Camará. Sua turma tem salários medíocres (R$ 2500,
na média). Patrocinador, nem pensar. Em uma semana vagaram de Melbourne para
Camberra e de lá, para Sidney. Já foram despejadas da Granja Comari para deixar
o campo livre para a seleção masculina. (A dura vida do país de Pretinha – Elio
Gaspari).20

A realidade do desporto feminino não está muito distante do texto fragmentado de


Elio Gaspari e nos faz refletir sobre o cenário atual, não apenas do desporto, mas também
das posições ocupadas por mulheres e, também os papéis desempenhados dentro da
sociedade como um todo. Não obstante, conforme pudemos brevemente observar ao longo
do artigo, tenhamos presenciado algumas evoluções no decorrer da história, os resquícios
deixados por toda a base na qual se consolidou a trajetória do desporto feminino vem fazendo
com que haja um retardamento no desenvolvimento das categorias femininas dentro das mais
diversas modalidades esportivas.
As mulheres lutam diariamente pela desmistificação de que o esporte é inadequado
ao modelo feminino; para que não haja comparações com o desempenho das categorias
masculinas; pela equiparação de remuneração; para que haja reconhecimento e consideração
pelo desempenho dentro e fora dos campos/quadras; para que sejam vistas como indivíduos
capazes de desenvolver a modalidade esportiva como qualquer outro; para que os
clubes/agentes/empresários valorizem o seu trabalho, etc.

20
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1709200010.htm
793

O que se vê são batalhas constantes pela conquista não só de novos espaços, tidos
como lugares preferencialmente masculinos, mas também pelo direito de igualdade, contra
a desigualdade de gênero, pelo simples direito de ser mulher e ter direitos assegurados para
que possam exercer seus papéis como indivíduos de forma digna.
O esporte praticado por mulheres, além da prática lúdica e competitiva, serve como
espaço de luta pela resistência das mulheres contra os limites impostos pela sociedade,
arraigado no seio social como fator protetivo a um suposto indivíduo dotado de fragilidade
e sem condições para a prática esportiva. Serve, também, como modelo pela luta por direitos
civis igualitários, pela alteração de legislação, pelos debates acerca da implementação
adequada de políticas públicas que visem a inclusão e, também pela própria forma como é
vista pela sociedade, há, a bem da verdade, quebra de paradigmas e mudança de perspectivas
a cada vez que uma mulher “entra no jogo”.
O processo de desconstrução de preconceitos de gênero está longe de ter um fim,
existem ainda muitas reivindicações e mudanças das perspectivas sociais e políticas a serem
revistas e modificadas, mas uma coisa é certa, é necessário que haja uma amplificação da
visibilidade e da inserção de mulheres de forma digna no desporto. É imperativo que medidas
sejam adotadas para tornar o caminho menos desigual. Sabemos que a situação das mulheres
no meio esportivo é reflexo de toda a construção da própria mulher e o papel que desempenha
na sociedade como um todo; porém, o padrão precisa ser alterado, necessitamos que mais
mulheres ocupem espaços de poder e que possam expressar e ter comando de voz em cargos
diretivos, seja como conselheiras, dirigentes, árbitras, técnicas, enfim, que sejam acolhidas
e ouvidas como sujeitos dotados de voz ativa e poder de decisão.
Segundo Altmann21 “eventos podem ser uma importante ferramenta de incentivo à
prática de atividades físicas e esportivas, para as mais diversas faixas etárias e modalidades.
Campeonatos esportivos, que possibilitem a vivência da competição, têm sido menos
disponibilizados a meninas do que a meninos. Pesquisas demonstram efeitos positivos de
competições no interesse e na adesão à prática. Ainda que esse interesse por competições ou
eventos não possa ser generalizado a toda a população, eles podem ser explorados e
ressignificados a partir de características e critérios específicos. Campeonatos, corridas de
rua, caminhadas coletivas, passeios ciclísticos, apresentações e festivais temáticos são

21
ALTMANN, Helena. Atividades físicas e esportivas e Mulheres no Brasil. Relatório Nacional de
Desenvolvimento Humano do Brasil. 2017. P. 31
794

algumas possibilidades. Eventos também podem ser uma forma de possibilitar o encontro
entre praticantes e a construção de laços de amizade que envolvam a atividade física e
esportiva. Outrossim, restringir eventos à iniciativa privada limita seu acesso àqueles que
dispõem de recursos para financiar a própria participação.”
O que se espera é que medidas sejam adotas e políticas comecem a ser mais efetivas
quando se fala em desporto voltado ao público feminino. Como vimos ao longo desse artigo,
durante muitos anos as mulheres foram proibidas de praticar modalidades esportivas, assim
como foram tolhidas por anos ao direito ao voto e muitas outras situações.
O esporte surge como espaço singular para que haja significativa mudança de
pensamento e de normativas que tragam maior segurança jurídica ao público feminino. A
participação efetiva de mulheres no âmbito do desporto é um imperativo que produzirá
impactos positivos para o funcionamento e regulamento mais apropriado às necessidades
almejadas, tendo em vista que a ampliação da participação de mulheres permitirá equacionar
as medidas destinadas ao atendimento das demandas sociais femininas. Há de ressaltar que
a ausência de representação feminina não se deve de forma alguma ao desinteresse de
participação, mas tem sua origem enraizada na história e cultura que impõe às mulheres
papéis por vezes submissos e isso precisa urgentemente ser modificado. Portanto, a garantia
de igualdade e de percepção das diferenças individuais garante a concepção da isonomia e
igualdade de gênero.
Por fim, importante ressaltar que considerando os fatores que levaram a construção
de uma sociedade machista e patriarcal, as relações de gênero, o equilíbrio de poder, a
concretização de princípios isonômicos, reclamam a adoção de ações e instrumentos
normativos voltados à neutralização de situações de equilíbrio.
A inserção das mulheres em campo de forma digna e igualitária, permite a
reconstrução da visão social sobre o tema, permite que haja espaço para demonstração das
diferenças e atrai para a sociedade melhores condições nas mais diversas áreas, na medida
em que não estaremos tratando apenas da posição da mulher dentro do desporto, mas sim da
posição da mulher na sociedade, no mercado de trabalho, na visibilidade de mídia e nos mais
diversos campos de atuação que se possa imaginar.
795

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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798

A CONCRETIZAÇÃO DO DIVÓRCIO ONLINE EM TEMPOS DE


DISTANCIAMENTO SOCIAL

Fernanda Castellano Laguna1


Natália Lanfredi Pinto da Rocha2

Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar relevantes inovações do instituto do
divórcio diante das urgentes adaptações impostas pela pandemia do novo coronavírus
(COVID-19). O distanciamento social, medida recomendada para contenção e prevenção do
surto pandêmico, ocasionou a hiperconvivência de casais. Por sua vez, houve aumento na
procura pelo divórcio frente à redução ou à ausência de atendimento presencial de serventias
judicias e extrajudicias no Brasil. Em meio à urgência de adequações à nova realidade de
distanciamento, a presente pesquisa analisa medidas jurídico-tecnológicas inovadoras que
impulsionaram a criação do divórcio extrajudicial integralmente online a partir da instituição
do e-Notariado – com a edição do Provimento n. 100 do CNJ. Quanto à modalidade judicial,
o processo eletrônico e a concessão do divórcio liminar, antes mesmo da citação do réu, se
destacam como medidas relevantes à concretização da dissolução do casamento
virtualmente.

Palavras-chave: Inovações jurídicas do divórcio. Divórcio Online. Divórcio liminar.


Pandemia do novo coronavírus.

INTRODUÇÃO
O primeiro semestre de 2020 trouxe ao mundo uma série de desafios jamais
enfrentados pela contemporaneidade. O novo coronavírus teve os seus primeiros casos
registrados entre o final do ano de 2019 e o início de 2020 na Ásia, avançando rapidamente
por outros continentes.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que a
situação da doença era considerada uma pandemia, ou seja, o surto havia se disseminado
pelo mundo com a transmissão sustentada de pessoa para pessoa. Diante disso, diversas
medidas sanitárias foram recomendadas e aplicadas em todo o mundo para tentar conter o
surto. Por ser uma doença nova, pouco se sabe sobre ela e enquanto não houver remédio ou
vacina capaz de contê-la, a melhor maneira de controle e prevenção é o distanciamento
social.

1
Jornalista e Advogada inscrita na OAB/RS sob o n. 118.486. felaguna@gmail.com.
2
Pós Graduada em Direito Público pela EMAFE/RS. Advogada inscrita na OAB/RS sob o n. 111.043.
natalialanfredi@hotmail.com.
799

Diante desse cenário, as relações humanas foram intimamente afetadas. No âmbito


pessoal, os indivíduos viram-se confinados e necessitaram adaptar a sua antiga rotina às
limitações impostas. Isso resultou em mais tempo dentro de casa, mais tarefas domésticas e
acentuou as fragilidades das relações com o aumento do registro de brigas, reclamações e de
casos de violência doméstica, que resultaram numa maior procura pela dissolução das uniões
afetivas.
Já no âmbito profissional, o distanciamento social acelerou a adoção do chamado
sistema de trabalho remoto e da oferta de serviços e atividades online como forma de evitar
aglomerações e frear a propagação do vírus. Exemplo disso foi a edição do Provimento n.
100 do Conselho Nacional de Justiça que implementou o sistema e-Notariado e
regulamentou a prática de atos notariais eletrônicos, dentre eles o divórcio online.
É sob esse viés que a presente pesquisa busca analisar as medidas jurídico-
tecnológicas que foram adotadas durante a pandemia e que resultaram na efetivação do
instituto do divórcio integralmente online, trazendo mais uma opção célere e segura para a
dissolução das uniões afetivas.

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA E MARCOS LEGISLATIVOS DO DIVÓRCIO NO


BRASIL
O vínculo afetivo estabelecido entre duas pessoas pode ser conceituado no Direito
brasileiro de diversas formas. Há alguns anos, o casamento era o único instituto utilizado
para designar esse tipo de relação. Maria Helena Diniz define como “vínculo jurídico entre
o homem e a mulher que visa o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma
integração fisiopsíquica e a constituição de uma família”.3 Durante muitos anos, o casamento
foi a única composição familiar a possuir visibilidade e, consequentemente, proteção
jurídica.
Diante da pluralidade de relações existentes, era impossível resumi-las em apenas
um instituto tão especifico e fechado, que não abarcava a realidade social. Desse modo,
tornou-se imperiosa a necessidade do Direito em adaptar-se às novas realidades e tornar-se
efetivo em sua proteção.

3
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: Direito de família. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
v.5. p.41. apud TARTUCE, Flavio. Direito Civil, v. 5: Direito de Família. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2017.
800

Assim, a legislação brasileira foi adaptando-se e passou a reconhecer e regularizar


outras formas de vínculo afetivo como a união estável – por meio da Lei 9.278/96, que
regulamentou o art. 226, §3° da Constituição Federal – e a união homoafetiva por meio de
uma decisão do STF em 2011.
Assim como o início de uma união afetiva entre duas pessoas sofreu alterações em
sua estrutura com o passar dos anos, não diferente é a realidade do instituto do divórcio
frente a esses novos modelos familiares. No Brasil, durante muitos anos, tinha-se como regra
a indissolubilidade do casamento. No tempo do Império, preponderava a doutrina da Igreja
que fomentava essa visão. Proclamada a República, no Decreto n. 181, de 1890, foi instituído
o casamento civil e o pensamento da indissolubilidade se manteve. Na Constituição de 1934
esse posicionamento permaneceu e reverberou nas reformas constitucionais de 1937, 1946,
1967 e 1969. Tal cenário deixa claro a interpretação antidivorcista enraizada no Brasil
durante várias décadas.4
Durante mais de 20 anos, autores e parlamentares favoráveis ao divórcio
apresentaram projetos de lei no intuito de sistematizar esse instituto e foram derrotados pelos
opositores que possuíam uma base forte ligada à Igreja Católica.5
Com a Emenda Constitucional n. 9, de 28 de junho de 1977, houve a alteração da
redação do §1o do artigo 175, da Constituição de 1969. Posteriormente, sua regulamentação
foi realizada pela Lei 6.515, em 26 de dezembro do mesmo ano, retirando a questão da
indissolubilidade do casamento e determinando que: “O casamento somente poderá ser
dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de
três anos”.6
Destaca-se que, antes da referida Emenda, só era admitido na legislação pátria o
denominado desquite, que caracterizava-se pela separação de corpos e pela impossibilidade
de qualquer dos cônjuges em estabelecer nova união.7

4
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Atual. Tânia da Silva Pereira. 25.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2017. p.306.
5
Ibidem, p.307.
6
GONCALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
p.184.
7
CAETANO, Leidiane Moreira Silveira e; OLIVEIRA, Victor Henrique Fernandes. Divórcio extrajudicial:
inovações trazidas pela Lei n 11.441/2007 e o conhecimento da população do município de Matrinchã-GO
acerca de suas possibilidades. Disponível em: <http://reiva.emnuvens.com.br/reiva/article/view/127/106>.
Acesso em: 21 ago. 2020.
801

Em seguida, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, no seu artigo 226,


§6o, o prazo da separação foi reduzido, passando a vigorar que a medida era cabível após um
ano de separação judicial ou comprovado mais de dois anos de separação de fato. Com isso,
passou a existir a modalidade divórcio direto, em que o casal não mais precisava da
separação judicial, bastando apenas a comprovação da separação de fato por mais de dois
anos. Cabe salientar que a separação judicial tinha o condão de disponibilizar um lapso
temporal para que o casal pudesse se reconciliar antes que houvesse a conversão para o
divórcio.8
Em 2010, a Emenda Constitucional n. 66/2010, conhecida como a Emenda do
Divórcio, representou um marco para o Direito de Família brasileiro. Foi por meio dela que
o texto do §6o, do artigo 226, da Carta Magna, foi mais uma vez alterado, só que desta vez
para definir que o casamento civil pode ser dissolvido diretamente pelo divórcio. A partir
dessa emenda, retirou-se, em definitivo, a necessidade da separação judicial ou da separação
de fato antes que fosse concedido o divórcio. De acordo com Maria Berenice Dias, um dos
aspectos mais importantes dessa alteração foi “acabar com a injustificável interferência do
Estado na vida dos cidadãos”.9
Isso porque, antes da Emenda, a separação judicial ou de fato eram pré-requisitos
para que se pudesse conceder o divórcio, não podendo o casal passar diretamente para esse
instituto sem antes cumprir tais condições. Desde então, o casamento pode ser dissolvido
pelo divórcio sem qualquer condição temporal, motivo ou culpa, bastando apenas a vontade
de colocar fim a relação.10
Cabe salientar que o divórcio possui duas espécies: amigável e litigioso. No divórcio
amigável, o casal decide em comum acordo não mais permanecer junto. Além disso, alguns
requisitos precisam ser cumpridos para sua efetivação. Quando há filhos menores ou
incapazes, por exemplo, a vontade de desfazer o vínculo conjugal deve ser manifestada
perante o juiz – denominado como divórcio judicial. Se o casal não possuir filhos menores
ou incapazes e estiver sem nenhuma divergência, é possível optar pela modalidade do
divórcio extrajudicial – em que o comum acordo do casal é expresso perante o notário que

8
GONCALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: Direito de família. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
p.184
9
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Atual. Tânia da Silva Pereira. 25.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2017. p.312.
10
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2012. p.221.
802

fará o registro em escritura pública. Na modalidade extrajudicial é indispensável a figura do


advogado, ainda que seja o mesmo para as duas partes.11
A modalidade extrajudicial foi inserida na legislação brasileira pela Lei 11.441/2007,
que introduziu, no Código de Processo Civil, a possibilidade - aos cônjuges que estiverem
dentro das exigências já referidas - de se realizar a dissolução da união em um Cartório de
Notas, sendo assim uma alternativa mais célere do que a ação judicial.12
Já o chamado divórcio litigioso, acontece quando um dos cônjuges não está de acordo
com a dissolução da união ou se o casal não conseguiu chegar a um consenso em relação aos
aspectos relacionados ao casamento como a guarda de filhos, divisão de bens e nome. Para
essa modalidade é necessário ajuizar uma ação judicial.13
Cabe salientar que no divórcio litigioso, por muitos anos, antes da Emenda
Constitucional 66/2010, havia o questionamento de quem havia dado causa ao rompimento,
ou seja, a imputação de culpa a uma das partes pela dissolução da união. Depois dessa
alteração legislativa, não se questiona o motivo ou culpa e nada disso influencia para o
pedido de dissolução do casamento.14
Outro importante ponto a se destacar é a questão da divisão dos bens do casal, que
por muito tempo acabava por ser um óbice ao divórcio. Isso porque havia o entendimento
de que as questões relacionadas a partilha do patrimônio necessitavam ser decididas para a
posterior concessão da dissolução. No Código Civil de 2002, em seu artigo 1.581, fica
expresso: “o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens”. Tal
entendimento está ratificado na Súmula 197 do STJ: “O divórcio direto pode ser concedido
sem que haja prévia partilha de bens”. Assim fica claro que a partilha de bens pode acontecer
após a concessão da dissolução da união. Quando o divórcio for judicial, a preferência é de
que a partilha seja realizada nos próprios autos da demanda. Há, porém, a possibilidade de
uma ação própria. Por fim, quando se tratar de divórcio extrajudicial, a partilha poderá ser
feita mediante escritura pública no Tabelionato de Notas, havendo acordo entre as partes.15

11
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2012. p.225.
12
CAETANO, Leidiane Moreira Silveira e; OLIVEIRA, Victor Henrique Fernandes e. Divórcio
extrajudicial: inovações trazidas pela Lei n 11.441/2007 e o conhecimento da população do município de
Matrinchã-GO acerca de suas possibilidades. Disponível em:
<http://reiva.emnuvens.com.br/reiva/article/view/127/106>. Acesso em: 21 ago. 2020.
13
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. v.5. São Paulo: Saraiva, 2012. p.233.
14
TARTUCE, Flavio. Direito Civil: Direito de Família. 12.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p.147.
15
Ibidem. p.152.
803

Modificações trazidas pela reforma do Código de Processo Civil, ocorrida em 2015,


também tiveram repercussões nessa seara, destacando-se o julgamento antecipado do mérito
e a tutela de evidência. Na primeira hipótese, o juiz pode decidir o mérito de forma dividida,
ou seja, julgar a questão incontroversa que se encontra em condições de julgamento imediato
– quando não há necessidade de produção de mais provas ou há revelia, seja reconhecida a
presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor e o réu não tenha pedido a produção
de provas. Nesse caso, fica nítido o caráter potestativo e extintivo do divórcio, que não
comporta qualquer tipo de impugnação, ou seja, não há o que esperar já que trata-se de uma
matéria irrefutável.16
Sob esse mesmo viés, há a possibilidade de decidir o dissolução da união
liminarmente por meio da tutela de evidência. Essa alternativa que está disposta no artigo
311, IV, do Código de Processo Civil: “quando a petição inicial for instruída com prova
documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha
prova capaz de gerar dúvida razoável”, deixando claro a possibilidade de antecipação dos
efeitos da tutela, uma vez que não é necessário a manifestação de vontade da outra parte, e
com isso, não há a apresentação do contraditório.17
As constantes alterações pelas quais a sociedade e suas relações passam são as
principais balizadoras das mudanças dos institutos que conduzem o Direito. Na seara do
Direito de Família, essas questões ficam ainda mais latentes pois traduzem as diversas
relações existentes e suas peculiaridades.
Por isso, a permanente atualização do Direito é premissa imprescindível para que as
demandas da comunidade sejam atendidas de modo efetivo e célere. Essa máxima se mostra
ainda mais latente em tempos de uma pandemia que assola veementemente o Brasil.

2. A URGÊNCIA DA DISSOLUÇÃO DE CASAMENTOS EM MEIO À


PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS

A pandemia do novo coronavírus (COVID-19) instalada no Brasil no início de 2020,


indubitavelmente, trouxe inúmeras transformações à rotina dos brasileiros. O distanciamento

16
DIAS, José Eduardo Coelho. Divórcio unilateral liminar: por que não? Disponível em:
<https://www.ibdfam.org.br/artigos/1484/Div%C3%B3rcio+unilateral+liminar%3A+por+que+n%C3%A3o
%3F>. Acesso em: 23 ago. 2020.
17
Ibidem.
804

social, imposto como principal estratégia preventiva, impactou as relações humanas em


inúmeros aspectos, especialmente os vínculos familiares. O estreitamento do convívio
familiar, por sua vez, trouxe à tona diversos conflitos entre casais, bem como gerou aumento
da violência doméstica contra mulheres que se viram confinadas com seus agressores. Tais
fatores impulsionaram a procura pelo divórcio durante o confinamento em meio a redução
ou ausência de atendimento presencial de serventias judicias e extrajudicias Brasil à fora.
O confinamento das famílias em meio à pandemia provocou o entrelaçamento da
individualidade humana na perspectiva doméstica, uma vez que familiares passaram a
compartilhar atividades laborais, escolares, domésticas e de lazer no mesmo tempo e
espaço.18 Ainda, em meio à crise financeira, diversos trabalhadores perderam seus empregos
e se submeteram ao isolamento social forçado, tornando-se, muitas vezes, dependente
economicamente do seu parceiro. Ana Fani Alessandri Carlos leciona que “nessa
circunstância, a casa passa a ser a síntese dos espaços-tempos cotidianos antes desenvolvidos
nos lugares diferenciados da cidade”.19
Ademais, os membros da família passaram a executar suas tarefas de uma nova
perspectiva, tal como o trabalho remoto, tarefas domésticas adicionais para evitar a
contaminação pela COVID-19, bem como novos cuidados com filhos estudando por
plataformas online ou mesmo com suspensão das aulas.20 Essa série de adaptações, segundo
a psicóloga Larissa Polejack, podem ocasionar o esgotamento das relações.21
A convivência contínua e forçada, por sua vez, aflora sentimentos e angústias
individuais gerando, no ambiente doméstico, novas tensões entre casais ou mesmo trazendo

18
LOSEKANN, Raquel Gonçalves Caldeira Brant. MOURÃO, Helena Cardoso. Desafios do teletrabalho na
pandemia COVID-19: quando o home vira office. Caderno De Administração, 28, p.73. Disponível em:
<http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/CadAdm/article/view/53637/751375150139>. Acesso em: 12
ago. 2020.
19
CARLOS, Ana Fani Alessandri. (Org). COVID-19 e a crise urbana [recurso eletrônico]. São Paulo:
FFLCH/USP, 2020. p.12. Disponível em:
<http://geografia.fflch.usp.br/sites/geografia.fflch.usp.br/files/Covid_19_e_a_Crise_Urbana_v7.pdf#page=1>
. Acesso em: 12 ago. 2020.
20
OLIVEIRA, Anita Loureiro de. A espacialidade aberta e relacional do lar: a arte de conciliar maternidade,
trabalho doméstico e remoto na pandemia de Covid-19. São Gonçalo: Rev. Tamoios, ano 16, n. 1, Especial
COVID-19. p.161, 2020. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/tamoios/article/view/50448/33479>. Acesso em: 11 ago. 2020.
21
PASSOS, Larissa. Divórcios crescem no Brasil em junho, após permissão para processo online. Portal G1,
Distrito Federal, 23 jun. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-
federal/noticia/2020/07/23/divorcios-crescem-no-brasil-em-junho-apos-permissao-para-processo-
online.ghtml>. Acesso em 12 ago. 2020.
805

à tona conflitos já existentes. Ademais, o confinamento acaba por sobrecarregar os parceiros


tanto física, quanto emocionalmente.
Esse convívio integral forçado, indubitavelmente, potencializa aspectos negativos
dos relacionamentos, elevando as desavenças entre casais, de modo a aumentar a
probabilidade do fim de uniões. Nesse cenário, a empresa de pesquisas Decode Pulse, em
levantamento virtual realizado durante a pandemia, aponta que houve “houve um aumento
em 431% de relatos de brigas de casal por vizinhos entre fevereiro e abril de 2020”.
Outro fator relevante ocasionado pelo isolamento social foi o aumento dos riscos de
violência doméstica contra mulheres. Por outro lado, ampliaram-se as barreiras para
denunciar, escapar e buscar medidas protetivas contra a violência em meio às restrições
impostas pela quarentena, pela provável diminuição de renda vinculada à dependência
econômica e, notoriamente, pela própria convivência ininterrupta com o agressor.22
Considerando o atual contexto, a Organização das Nações Unidas (ONU) fez
recomendações para que os países investissem em serviços online e em organizações da
sociedade civil visando à prevenção e ao combate à violência doméstica. Destaca-se, por
exemplo, a recomendação da ONU para criação de sistemas de emergências em pontos
essenciais, tais como farmácias e mercados, para que as mulheres, nas excepcionais saídas,
possam denunciar e pedir socorro. 23
Nesse contexto, em julho de 2020, entrou em vigor a Lei 14.022 em combate à
violência doméstica. O texto prevê medidas de suma importância, tais como a solicitação e
deferimento totalmente online e prorrogação automática de medidas protetivas, bem como
ausência de suspensão de prazos nos processos relativos à violência doméstica.
Relacionamentos já desgastados somados a crises existenciais, ansiedade
desemprego, endividamento, alcoolismo, jornadas triplas das mulheres e violência
doméstica tornaram a hiperconvivência da quarentena o gatilho para procura pelo divórcio.
Nesse contexto, a reportagem publicada pelo Jornal Estadão constata que a procura pelo
título “divórcio online gratuito” cresceu 9.900% entre 13 e 29 de abril de 2020. Outro item

22
ONU mulheres. GÊNERO e COVID-19 na América Latina e no Caribe: Dimensões de gênero na resposta.
2020. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/03/ONU-MULHERES-
COVID19_LAC.pdf >. Acesso em: 13 ago. 2020.
23
Chefe da ONU alerta para aumento da violência doméstica em meio à pandemia do coronavírus. NAÇÕES
UNIDAS. 06 abr. 2020. Disponível em <https://nacoesunidas.org/chefe-da-onu-alerta-para-aumento-da-
violencia-domestica-em-meio-a-pandemia-do-coronavirus/amp/>. Acesso em: 13 ago. 2020.
806

que teve alta significativa nas pesquisas foi “como dar entrada em um divórcio”, com
aumento de 82%, ambos segundo dados fornecidos pelo Google Brasil.24
Ocorre que, em meio à urgência da separação de fato e da concretização do divórcio,
as necessárias medidas de isolamento social adotadas pelos governadores e prefeitos pátrios
ocasionaram mudanças no funcionamento de serventias judiciais e extrajudicias no Brasil.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por sua vez, editou inúmeros provimentos
estabelecendo restrições ao atendimento presencial das serventias, bem como priorizando o
atendimento à distância.
O Provimento 91 do CNJ, publicado em 22 de março de 2020, estabeleceu, dentre
outras medidas, que os serviços notarias e de registro deveriam obedecer as autoridades de
saúde pública que tenham determinado a suspensão ou redução do atendimento presencial
ao público. Assim, possibilitou-se o atendimento remoto por meio eletrônico em substituição
ao presencial.25
Por outro lado, o Provimento 95 do CNJ autorizou a utilização de meios eletrônicos
para recepcionar título e documentos. Ambos provimentos tiveram sua vigência prorrogada
até 31 de dezembro de 2020, em virtude da declaração de emergência em Saúde Pública de
Importância Nacional (ESPIN).26 A Resolução 313 do referido Conselho, por sua vez,
suspendeu o atendimento presencial no Poder Judiciário Nacional, impondo a realização por
meio eletrônico.27
Desse modo, em meio à urgência da concretização de dissoluções de casamento - em
virtude de fatores como o aumento de conflitos entre casais e de violência doméstica -, tem-
se, em contraponto, a suspensão ou redução do atendimento presencial em serventias
judiciais e extrajudicias. Denota-se, assim, a necessária e imediata adoção de medidas
inovadoras para prestação dos serviços notarias e judiciais, essenciais ao exercício da
cidadania.

24
RACY, Sonia. Google Brasil revela aumento surpreendente de busca pelo termo “divórcio online gratuito”.
ESTADÃO. 29 maio 2020. Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/google-
brasil-revela-aumento-surpreendente-de-busca-pelo-termo-divorcio-online-gratuito/>. Acesso em 13 de ago.
de 2020.
25
CONSELHO NACIONAL DE JUSTICA. Provimento n. 91 de 22 mar. 2020. Disponível em:
<https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3268>. Acesso em: 14 ago. 2020.
26
CONSELHO NACIONAL DE JUSTICA. Provimento n. 95. de 01 abr. 2020. Disponível em:
<https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3265 >. Acesso em: 14 ago. 2020.
27
CONSELHO NACIONAL DE JUSTICA. Resolução n 313. de 19 mar. 2020. Disponível em:
<https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3249>. Acesso em 14 ago. 2020.
807

3. INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS PARA CONCRETIZAÇÃO DO DIVÓRCIO


ONLINE

A pandemia trouxe diversas mudanças de vida e de comportamento para todos. Como


a doença ainda é cercada de muitas incertezas - por ser recente e sem precedentes - as
entidades de saúde nacionais e internacionais recomendam, como forma de contenção e
prevenção ao surto, o distanciamento social.28 Nesse contexto, a procura pelo divórcio no
país teve aumento significativo. Assim, surgiu a necessidade de adaptar, ao chamado “novo
normal” - com medidas de higiene e prevenção bem definidas -, inúmeros serviços prestados
à comunidade que antes da pandemia eram, em sua maioria, presenciais. Ainda sob esse
panorama, desponta a preocupação pela eficácia e segurança no uso de tecnologias, diante
das alternativas buscadas para dar continuidade ao funcionamento dos serviços essenciais de
maneira eficaz e segura diante do novo cenário.
A ausência de atendimento presencial – ou a diminuição significativa nessa
modalidade de atendimento - nas serventias judicias e extrajudicias se fez necessária para
retardar a propagação da COVID-19. Desse modo, as ferramentas jurídico-tecnológicas
auxiliaram na prestação de serviços essenciais, a exemplo do Provimento 100/2020 do CNJ
que permitiu o divórcio extrajudicial integralmente online, bem como do divórcio liminar, -
concedido pela primeira vez em 2014 -, especialmente no processo eletrônico já implantando
em diversos órgãos do Poder Judiciário.29
A dissolução do vínculo conjugal ganhou ainda mais notoriedade em tempos de
isolamento social forçado. Fatores como aumento de brigas, violência doméstica e convívio
intenso fizeram a busca “divórcio online gratuito” crescer 9.900% e “como dar entrada em
um divórcio” crescer 82% entre 13 e 29 de abril de 2020, ou seja, no princípio das medidas
restritivas impostas no Brasil. 30
Foi diante desse cenário que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, em maio
de 2020, o Provimento n. 100 que dispõe sobre a prática de atos notariais eletrônicos em

28
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Folha informativa COVID-19. Escritório da OPAS e da OMS
no Brasil. 2020. Disponível em: <https://www.paho.org/pt/covid19>. Acesso em: 19 ago. 2020.
29
Primeiro divórcio por liminar é concedido na Bahia. Migalhas, 16 jul. 2014. Disponível em
<https://www.migalhas.com.br/quentes/204387/primeiro-divorcio-por-liminar-e-concedido-na-bahia>.
Acesso em: 18 ago. 2020.
30
RACY, Sonia. Google Brasil revela aumento surpreendente de busca pelo termo “divórcio online gratuito”.
ESTADÃO. 29 maio 2020. Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/google-
brasil-revela-aumento-surpreendente-de-busca-pelo-termo-divorcio-online-gratuito/>. Acesso em 13 ago.
2020.
808

todo o território brasileiro. A medida surgiu como forma de regulamentar a prestação de


serviços extrajudiciais, uma vez que os serviços notariais são imprescindíveis para o
exercício da cidadania, a fim de que essa atividade pudesse continuar a ser realizada de
maneira eficiente, adequada e contínua durante o período da pandemia.31
Para operacionalizar o disposto no provimento, houve a instituição do e-Notariado,
sistema de Atos Notariais Eletrônicos disponibilizado na internet pelo Colégio Notarial do
Brasil – Conselho Federal. Esse sistema tem como objetivo efetivar a realização da prática
dos atos notariais eletrônicos por meio da interligação dos notários, dos documentos e das
informações e dos dados. Isso tudo de maneira padronizada e utilizando a Matrícula Notarial
Eletrônica (MNE) como chave de identificação individualizada que facilita a uniformidade
e o rastreamento da operação eletrônica.
O sistema e-Notariado fica disponível 24 horas por dia, de modo contínuo, salvo os
períodos de manutenção do sistema que são avisados com antecedência mínima de 24 horas.
Todos os atos notariais eletrônicos realizados por meio dessa plataforma, desde que
respeitados os requisitos propostos pelo Provimento e pela lei, são considerados autênticos,
detentores de fé pública, avaliados como registros públicos para todos os efeitos legais e
produzirão os efeitos previstos no ordenamento jurídico.32
Cabe salientar que a nova plataforma está em conformidade à Lei Geral de Proteção
de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), pois os dados das partes somente serão partilhados
pelos notários para a prática dos atos notariais. Assim, garante-se o sigilo dos dados e
informações.33
A modernização de diversos procedimentos judiciais e extrajudiciais para que se
adaptem às novas realidades é um assunto que vinha sendo discutido e gerado muitas
esperanças, mas também inseguranças. Dessa forma, muitas ações que já poderiam estar à
disposição da sociedade foram postergadas. Todavia, com a iminência das limitações
causadas pela pandemia do novo coronavírus, adaptações foram essenciais, antecipando-se,
dessa forma, algumas inovações.

31
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n. 100 de 26 maio 2020. Disponível em:
<https://atos.cnj.jus.br/files/original222651202006025ed6d22b74c75.pdf>. Acesso em: 19 ago. de 2020.
32
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento n. 100 de 26 maio 2020. Disponível em:
<https://atos.cnj.jus.br/files/original222651202006025ed6d22b74c75.pdf>. Acesso em: 19 de ago. de 2020.
33
FILLHO, Marcio Martins Bonilha. O futuro chegou! Bem-vindo provimento n. 100-2020, do CNJ.
IBDFAM, 2020. Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/artigos/1462/O+futuro+chegou!++Bemvindo+provimento+n%C2%BA+100+-
2020,+do+CNJ>. Acesso em: 18 ago. 2020.
809

Uma delas é o divórcio 100% online, que surgiu a partir da efetivação do e-Notariado.
Essa é uma alternativa menos burocrática e mais segura para os casais que desejam dissolver
a união. Na prática, o divórcio online nada mais é do que o divórcio extrajudicial em
tabelionato - realizado há muitos anos – só que agora feito remotamente. O instituto do
divórcio extrajudicial surgiu com a Lei 11.441/2007 como uma opção de dissolução de união
por mútuo consentimento e por meio de escritura pública, que foi consolidado com a Emenda
66/2010.34
As exigências para que o divórcio extrajudicial acontecesse permanecem as mesmas
no caso do divórcio virtual. São eles: a ausência de filhos menores, incapazes ou de
nascituro; o mútuo consentimento das partes; a apresentação da certidão de casamento ou do
pacto antenupcial, se houver, e a presença de advogado para acompanhar o ato, podendo ser
o mesmo procurador para ambos.35
A segurança e a privacidade foram premissas muito bem observadas pelo CNJ ao
editar o Provimento. A utilização da plataforma e-Notariado já confere uma proteção às
partes. Além disso, ao realizar o procedimento por meio desse sistema, outras premissas
precisam ser ponderadas como a videoconferência para que seja feita a identificação dos
participantes e para que seja confirmado o consentimento expresso sobre os termos do que
está sendo pactuado sobre o ato notarial. São capturadas digitalmente as assinaturas das
partes e do tabelião. Para facilitar o acesso da população a esse novo procedimento, foi
previsto também que o tabelião está autorizado a emitir gratuitamente o certificado digital
notarizado. Por fim, essa videoconferência é gravada, arquivada e compõe o ato notarial.36
Para a prática do ato notarial eletrônico possuir validade precisa atender aos
requisitos estipulados no provimento, são eles: I – videoconferência notarial para captação
do consentimento das partes sobre o tema do ato; II – concordância expressa pelos
envolvidos com os termos do ato notarial eletrônico; III – assinatura digital pelas partes,
realizada por meio do e-Notariado; IV – assinatura do Tabelião de Notas com o certificado

34
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Atual. Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro:
Forense, 2017. p.351.
35
CAETANO, Leidiane Moreira Silveira e; OLIVEIRA, Victor Henrique Fernandes. Divórcio extrajudicial:
inovações trazidas pela Lei n 11.441/2007 e o conhecimento da população do município de Matrinchã-GO
acerca de suas possibilidades. Disponível em: <http://reiva.emnuvens.com.br/reiva/article/view/127/106>.
Acesso em: 21 ago. 2020.
36
FILLHO, Marcio Martins Bonilha. O futuro chegou! Bem-vindo provimento n. 100-2020, do CNJ.
IBDFAM, 2020. Disponível
em:<https://ibdfam.org.br/artigos/1462/O+futuro+chegou!++Bemvindo+provimento+n%C2%BA+100+-
2020,+do+CNJ>. Acesso em: 18 ago. 2020.
810

digital ICP-Brasil; V- uso de formatos de documentos de longa duração com assinatura


digital. 37
É essencial que os serviços disponíveis à população estejam atentos às mudanças
trazidas por esse período atípico e se adequem para que sejam realmente efetivos. Nesse
contexto de isolamento social e seu consequente aumento de conflitos entre cônjuges,
constatou-se o crescimento de dissoluções de casamento realizados no país pela via
administrativa. O levantamento divulgado pelo Colégio Notarial do Brasil aponta o aumento
de 20% dos divórcios administrativos em junho de 2020 – mês do início da vigência do
Provimento 100/2020 do CNJ - quando comparado ao mês anterior.38
O dados do levantamento supracitado apontam para crescimento em 24 estados
brasileiros, sendo que o número total de divórcios concretizados subiram de 4.471 em maio
para 5.306 em junho. Amazonas, com aumento de 133%, e Piauí, com aumento de 122%,
foram os entes federativos com maior crescimento de registro de divórcios extrajudiciais no
país.39
Nesse cenário de era digital, em 2006 foi promulgada a Lei 11.419/2006, alterando
o Código de Processo Civil vigente à época e dispondo sobre a informatização do processo
judicial. Desde então, houve o surgimento de sistemas processuais eletrônicos em inúmeros
órgãos do Poder Judiciário, tais como o Eproc e o PJE, objetivando dar maior celeridade às
demandas judiciais. Aliado à informatização processual, Juízos passaram a conceder o
divórcio liminar, de modo a concretizar o fim do matrimônio de maneira mais célere e
efetiva, tão importante em tempos de isolamento social. 40
Atualmente, a maioria dos Tribunais de Justiça já prestam a tutela jurisdicional por
meio virtual, uma vez que, segundo o CNJ, 90% dos processos em trâmite no país, são
eletrônicos, de modo a evitar deslocamento de partes e advogados aos fóruns brasileiros.
Assim, o processo judicial integralmente eletrônico também tem sido importante

37
Ibidem.
38
Cartórios registram aumento de 18,7% nos divórcios durante a pandemia. UOL. 2020. Disponível
em:<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-brasil/2020/07/22/cartorios-registram-aumento-de-
187-nos-divorcios-durante-a-pandemia.htm>. Acesso em 18 ago. 2020.
39
PASSOS, Larissa. Divórcios crescem no Brasil em junho, após permissão para processo online. Portal G1,
Distrito Federal, 23 jun. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-
federal/noticia/2020/07/23/divorcios-crescem-no-brasil-em-junho-apos-permissao-para-processo-
online.ghtml>. Acesso em 12 ago. 2020.
40
FERREIRA, Ana Amélia Menna Barreto de Castro. Roteiro da Lei 11.419/2006 Processo Judicial
Informatizado. 2007. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/34892/roteiro-da-lei-11419-
2006-processo-judicial-informatizado>. Acesso em 28 de ago. de 2020.
811

instrumento em tempos de isolamento social, uma vez que possibilita a manutenção do


prosseguimento dos feitos a partir do trabalho remoto.41
Por meio do processo eletrônico, outra medida facilitadora da concretização do
término do matrimônio é a concessão do divórcio liminar. Isso porque nem sempre a
dissolução do casamento é consensual e amistosa. Desse modo, não havendo concordância
entre as partes, o divórcio deve ser realizado na via judicial.
Ocorre que, com o fechamento das serventias judiciais e com a suspensão dos prazos
imposta pelo CNJ, a concretização do instituto poderia tornar-se ainda mais morosa.
Todavia, com a dispensa da partilha prévia dos bens para decretar o divórcio, bem como da
positivação, no Código de Processo Civil de 2015, dos institutos do julgamento antecipado
parcial do mérito e da tutela antecipada baseada na evidência, Juízos passaram a decretar o
divórcio antes mesmo da triangularização processual42:

Constata-se, portanto que a cognição da ação de divórcio já se inicia com


maturação suficiente para o deferimento da antecipação dos efeitos do pleito de
dissolução do vínculo conjugal, de modo que não é razoável impor ao demandante
o ônus de suportar a morosa tramitação do feito para que, só ao final, tenha
apreciada sua pretensão, quando já houver manifestado inequívoco interesse em
se divorciar.43

O divórcio liminar dá fim ao casamento no início da tramitação do processo judicial,


não exigindo que os cônjuges aguardem toda tramitação da instrução processual, que pode
ser lenta, para dar fim ao vínculo conjugal. Isso porque o divórcio é direito potestativo e
incondicional, não havendo necessidade de concordância da parte ré. Assim, não há
necessidade de formação de contraditório para decretação, sendo possível analisar a
demanda na primeira decisão do Juízo. Maria Berenice Dias leciona, nesse sentindo, que “a
ação de divórcio não dispõe de causa de pedir. Não é necessário o autor declinar o
fundamento do pedido. Não há defesa cabível.”44

41
CONSELHO NACIONAL DE JUSTICA. Justiça em números 2020. 2020. Disponível em:
<https://www.cnj.jus.br/wp-
ontent/uploads/2020/08/WEB_V2_SUMARIO_EXECUTIVO_CNJ_JN2020.pdf>. Acesso em 29 ago. 2020.
42
DIAS, José Eduardo Coelho. Divórcio unilateral liminar: por que não? 2020. Disponível
em:<https://www.ibdfam.org.br/artigos/1484/Div%C3%B3rcio+unilateral+liminar%3A+por+que+n%C3%A
3o%3F>. Acesso em: 23 ago. 2020.
43
MARQUES, Ana Luiza e; NUNES, Dierle. Parte do Judiciário já entende que é possível a autorização
liminar do divórcio. 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-ago-08/opiniao-parte-
judiciario-aprova-autorizacao-liminar-divorcio>. Acesso em: 25 de ago. de 2020.
44
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das Famílias. 11. ed. São Paulo: RT, 2016. p.227.
812

Desse modo, aliando a celeridade do processo eletrônico judicial à concessão do


divórcio liminar, tornou-se possível a dissolução do casamento de forma mais célere e
efetiva também na via judicial. Tal medida, apesar de surgir timidamente no Poder Judiciário
em 2014, vem ganhando maior destaque em tempos de pandemia. Isso porque tem-se a
necessidade de inovações para concretizar o divórcio - que teve aumento significativo em
sua procura -, face ao crescimento de conflitos, brigas, estresse, violência doméstica e
desgaste de relacionamentos45.
A necessidade de aperfeiçoamento dos institutos jurídicos é essencial para que sua
real função seja desempenhada frete às diversas realidade que vão sendo apresentadas com
o passar dos anos. Em tempos de pandemia, conciliar o que já existia com inovações traz
segurança aos procedimentos e os torna mais acessíveis para a população. Com o divórcio
não poderia ser diferente, visto que essa é uma demanda que afeta diretamente um ponto
essencial da vida das pessoas. Desburocratizá-lo e encontrar uma alternativa para que ele
seja efetivado de modo que não coloque em risco à saúde dos envolvidos e obedeça as
medidas sanitárias vigentes nesse momento é um ganho para toda a sociedade.

CONCLUSÃO
A pandemia do novo coronavírus impôs a necessidade de adaptação na prestação dos
serviços essenciais - tais como o notarial e judicial - prestados à população, uma vez que o
distanciamento social foi a principal medida adotada para controle e prevenção do vírus. Tal
medida ocasionou a diminuição ou ausência do atendimento presencial nas serventias
judiciais e extrajudiciais.
O distanciamento social, por sua vez, ocasionou o estreitamento das relações
interpessoais, especialmente dos cônjuges, que tiveram o aumento significativo do convívio
domiciliar. Nesse contexto, houve crescimento no relato de brigas entre casais e,
consequentemente, aumento na procura pelo divórcio.
Desse modo, a edição do Provimento n. 100 de 2020 do Conselho Nacional de Justiça
instituiu o e-Notariado, possibilitando a inovadora e necessária realização do divórcio
extrajudicial integralmente online. A partir de inovações jurídico-tecnológicas relevantes, a

45
DIAS, José Eduardo Coelho. Divórcio unilateral liminar: por que não? Disponível em:
<https://www.ibdfam.org.br/artigos/1484/Div%C3%B3rcio+unilateral+liminar%3A+por+que+n%C3%A3o
%3F>. Acesso em: 23 ago. 2020.
813

confirmação do consentimento é auferida por videoconferência, bem como a concordância


expressa dos envolvidos é realizada por meio de assinatura digital.
Na impossibilidade da dissolução na esfera administrativa, os processos eletrônicos
aliados à concessão do divórcio liminar - seja pelo deferimento da tutela de evidência, seja
pelo julgamento antecipado parcial do mérito - deram presteza à dissolução do casamento
alçada ao Poder Judiciário.
Desse modo, conclui-se que a permanente atualização do Direito – aliada às
inovações tecnológicas - é premissa imprescindível para atender às transformações da
sociedade e os desafios impostos por uma pandemia. Assim, a instituição do e-Notariado
que possibilitou o divórcio extrajudicial 100% online, bem como a concessão de liminares
em processos eletrônicos se mostraram instrumentos efetivos e céleres para a concretização
do divórcio integralmente online em tempos de adaptações ao isolamento social.

REFERÊNCIAS

CAETANO, Leidiane Moreira Silveira e; OLIVEIRA, Victor Henrique Fernandes. Divórcio


extrajudicial: inovações trazidas pela Lei n 11.441/2007 e o conhecimento da população do
município de Matrinchã-GO acerca de suas possibilidades. Disponível em:
<http://reiva.emnuvens.com.br/reiva/article/view/127/106>. Acesso em: 21 ago. 2020.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. (Org). COVID-19 e a crise urbana [recurso eletrônico].
São Paulo: FFLCH/USP, 2020. Disponível em:
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surpreendente-de-busca-pelo-termo-divorcio-online-gratuito/>. Acesso em 13 ago. 2020.

TARTUCE, Flavio. Direito Civil, v. 5: Direito de Família. 12. ed. rev., atual. e ampl. – Rio
de Janeiro: Forense, 2017.
816

A AUTONOMIA DO IDOSO FRENTE À ESCOLHA DO


TRATAMENTO MÉDICO

Nathalia Santos1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo tratar do estudo da escolha ou da recusa do
tratamento médico, com foco na autonomia da pessoa idosa na tomada de decisões
pertinentes a sua saúde, fazendo uma breve análise dos princípios norteadores e questões
pertinentes ao convívio social. Utilizando como fonte para este estudo o Estatuto do Idoso
(Lei nº 10.741 de 2003) e a Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Idoso. Autonomia. Tratamento médico. Estatuto do Idoso.

INTRODUÇÃO

Hoje, no Brasil, a população vive mais tempo e, com isso, o número de pessoas idosas
cresce a cada dia. Todo esse processo de envelhecimento impacta a vida do idoso, e a dos
que convivem com ele, da família e da sociedade em geral.
Para que a convivência e o entendimento com essa geração sejam igualitários, é
necessário reconhecer o idoso como uma pessoa socialmente capaz e possuidora de direitos.
Visando o atendimento as suas necessidades, refletidas nas leis e na sua efetivação.
Com as limitações que acompanham o envelhecimento, o idoso é encarado, muitas
vezes, como incapaz e dependente. Promovendo assim o seu afastamento social, dificultando
sua longevidade.
É muito relevante prezar pela autonomia dos idosos, pois os mesmos são possuidores
de direitos como qualquer outra pessoa de faixa etária diferente, devendo ser respeitados e
ter seus direitos preservados e aplicados no dia a dia.
Faz-se necessário que tenham seus direitos assegurados e protegidos, visando um
envelhecimento saudável e incluso na sociedade. Relacionando-os com a competência de
responder por si mesmo, de tomar decisões quanto aos cuidados com sua saúde e de ser
responsável pela própria vida, garante-se aos idosos os seus direitos fundamentais. Assegura-
se a compreensão para essa faixa etária e seus modos de vida, fazendo com que o

1
Advogada inscrita na OAB/RS 118.240, graduada pela PUCRS e pós-graduanda em Direito Civil e Processual
Civil pela Uniritter. Email: nathaliasadv@outlook.com.
817

reconhecimento da autonomia se torne uma função essencial, visto que, muitas vezes, esta
ideia é deixada de lado e não recebe a devida atenção.

1. PRINCÍPIOS NORTEADORES DOS DIREITOS DOS IDOSOS

Em função do aumento da expectativa de vida, a população de idosos do país cresce


de maneira acelerada. Com o objetivo de se estabelecer uma convivência e um entendimento
igualitário, impõe-se que haja uma aplicação dos direitos dos idosos que se encontram
previstos em lei e estão garantidos constitucionalmente.
De acordo com o artigo 2º do Estatuto do idoso, temos a seguinte disposição de
acordo com Pérola Braga:

Declara-se que o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes a pessoa


humana, assegurando-se todas as oportunidades e facilidades para preservação de
sua saúde física e mental, e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e
social, em condições de liberdade e dignidade.2

Assim, o idoso pode exigir que a sociedade respeite e garanta meios para que sejam
atendidos,3 visando o melhor atendimento as suas necessidades e melhorando a sua inclusão
social, visto que a população idosa sofre constantemente com o afastamento social, sendo
cada vez menos representada em nosso meio.

1.1. Direito à vida

Temos como ponto de partida a analise ao direito à vida. Ressalta-se que o direito à
vida é o bem mais importante e condição para o exercício dos demais direitos. De acordo
com Paulo Roberto Barbosa, “a vida é o ponto de partida e o ponto de chegada de todos os
demais direitos”.4
Esse direito à vida trata não somente da vida biológica e da vida espiritual, mas
também da vida social, devendo ser observado como uma garantia ao idoso de exercício de

2
DINIZ, Fernanda Paula. Direitos dos idosos na perspectiva civil-constitucional. Belo Horizonte: Arraes
Editores, 2011. p. 41.
3
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p.61.
4
RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Curso de Direito do Idoso/ Paulo Roberto Barbosa Ramos – São Paulo:
Saraiva, 2014. – (Série IDP). p.124.
818

cidadania.5 Neste sentido, temos: ‘’Ter direito à vida significa [...] ter direito de participar,
por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões
que prevalecem na sociedade”6, ou seja, estar incluso em nossa sociedade como ser atuante
e capaz.
No Estatuto do Idoso, o direito à vida é tratado nos artigos 8º e 9º.7 Essa vida a qual
se refere deve ser digna e saudável. Trata-se de um direito personalíssimo e o idoso deve ser
reconhecido como ser humano e o fato de estar com a idade mais avançada não lhe tira o
direito de receber o devido cuidado e tratamento, garantindo-lhe qualidade de vida.8
Desta forma, com base no artigo 8º do Estatuto do Idoso, “o envelhecimento é um
direito personalíssimo e a sua proteção um direito social, nos termos desta Lei e da legislação
vigente”.9 O referido artigo determina a proteção ao envelhecimento como um direito social,
o que, de acordo com Pérola Braga, “significa que a proteção ao envelhecimento não é direito
somente daquele que já envelheceu, mas também um elemento de segurança jurídica que
atinge a sociedade como um todo”10, sendo necessário estabelecer meios de proteção e
efetivação deste direito.
Cabe, assim, a toda a sociedade o dever de evitar qualquer violação a esse direito,
regulamentando e garantindo os mesmos. Diante desse pensamento, a velhice cabe ao
homem desde seu nascimento, ou seja, ao nascermos estamos indo em direção a velhice, e o
direito à vida irá preservar o envelhecer, zelando pelas melhores condições de aplicá-lo.11
Já no artigo 9º do Estatuto do Idoso tem-se a disposição que define o ônus de garantir
a vida e a saúde do idoso como função do Estado, “é obrigação do Estado garantir à pessoa
idosa a proteção a vida e a saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que

5
FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de Freitas Junior, Direitos e garantias do idoso: doutrina,
jurisprudência e legislação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 47.
6
RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Curso de Direito do Idoso. São Paulo: Saraiva, 2014. Série IDP.p.124.
7
BRASIL. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741compilado.htm>. Acesso em: 02
out. 2018.
Art. 8º O envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social, nos termos desta Lei
e da legislação vigente.
Art. 9º É obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de
políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.
8
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p.62.
9
BRASIL. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741compilado.htm>. Acesso em: 02
out. 2018.
10
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p. 63.
11
RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Curso de Direito do Idoso. São Paulo: Saraiva, 2014. Série IDP. p.125.
819

permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade”12, faz-se necessário


que o Estado esteja presente promovendo os meios necessários para a preservação destes
direitos inerentes a pessoa idosa.
Esse direito deve ser preservado no sentido de que o idoso tenha pleno direito de
exercício de cidadania.13 Tendo em vista que o direito à vida é o primeiro de todos os direitos,
trata-se da proteção à vida em seus mais diversos aspectos.

1.2. Princípio da dignidade da pessoa humana

Na Constituição Federal de 1988, o artigo 1º, inciso III14 apresenta um dos direitos
fundamentais da República Federativa do Brasil, que é a dignidade da pessoa humana. De
acordo com o Professor Alexandre de Moraes, temos o princípio disposto da seguinte forma:

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa,


que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da
própria vida, e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais
pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico
deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas
limitações dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária
estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. 15

Direitos estes garantidos constitucionalmente aos idosos. O idoso, como qualquer


outra pessoa, tem seus direitos garantidos na Constituição Federal, mesmo se não houver
texto específico sobre o tema. Tais direitos não podem ser retirados ou restringidos, visto
que nascem com o indivíduo e devem ser respeitados. Neste sentido, o Estatuto do Idoso
dispõe em seu artigo 2º:

12
BRASIL. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras
providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741compilado.htm>.
Acesso em: 02 out. 2018.
13
FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de Freitas Junior, Direitos e garantias do idoso: doutrina,
jurisprudência e legislação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p.47.
14
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[..]
III - a dignidade da pessoa humana;
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 02 out de
2018.
15
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. Ed. São Paulo: Atlas, 2001. p.48
820

Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana,


sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei
ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua
saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social,
em condições de liberdade e dignidade.16

O Estatuto do Idoso trata a respeito da dignidade no artigo 10, §3º: “é dever de todos
zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano,
violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.17
No tocante do §3º, o respeito à dignidade pressupõe que o idoso deve ter segurança,
proteção de vínculos, objetos, moradia, saúde e acesso18, consagrando o direito à vida, à
saúde, à moradia, dentre outros. São questões também relacionadas às pessoas que vivem a
volta do idoso, e quanto ao tratamento que dão aos mesmos. Por conta disso, de forma
exemplificativa, a questão de dar tratamento diferenciado a idosos em hospitais é uma forma
de aplicação da dignidade, uma forma de efetivar os fundamentos constitucionais que zelam
pela realização de uma vida digna.
A dignidade da pessoa humana deve ser respeitada, não apenas visando a assegurar
um tratamento coerente, mas também buscando garantias à pessoa e à sua integridade física,
a fim de evitar tratamento degradante.

1.3. Princípio da autonomia da vontade

Seguindo na linha dos princípios norteadores dos direitos dos idosos, não se pode
deixar passar o direito à liberdade, que decorre da possibilidade de o idoso atuar segundo a
sua vontade. De acordo com José Afonso da Silva, a liberdade seria relacionada à felicidade
de cada um, de acordo com o interesse do agente, sendo a mesma um poder de atuação,
vejamos:
O conceito de liberdade humana deve ser expresso no sentido de um poder de
atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade. [...]
Vamos um pouco além, e propomos o conceito seguinte: liberdade consiste na
possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da
felicidade pessoal. Nessa noção, encontramos todos os elementos objetivos e
subjetivos necessários à ideia de liberdade; é poder de atuação sem deixar de ser

16
BRASIL. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras
providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741compilado.htm>.
Acesso em: 02 out. 2018.
17
BRASIL. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras
providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741compilado.htm>.
Acesso em: 02 out. 2018.
18
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p.73
821

resistência à opressão; [...] Tudo que impedir aquela possibilidade de coordenação


dos meios é contrário à liberdade.19

Ele deve ter liberdade de pensar e de se expressar de acordo com sua opinião, suas
crenças e seus valores, sendo esta essencial para o convívio em sociedade. A liberdade que
tratada aqui é representada como autonomia, sendo da capacidade de cada um determinar as
coisas que o envolvam.20
A liberdade refere-se à faculdade de ir e vir e também de pensamento, dando a
possibilidade ao idoso de se locomover da forma como achar melhor,

Notadamente em relação à pessoa idosa, foi que o legislador ordinário dispôs na


Lei n. 10741/2003 que o direito a liberdade deve estar associado à noção de
respeito e dignidade, impondo ao Estado e à sociedade o dever de assegurar à
pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito
de direitos civis, políticos, individuais e sociais, quer dizer, em sua dimensão
completa.21

O idoso deve ter liberdade de pensar e expressar a sua opinião, inclusive quando o
assunto se referir à tomada de decisões sobre o cuidado da sua saúde, visto que é um ato de
direito. Cabe ao idoso optar pelo tratamento de saúde que lhe for melhor indicado, podendo
ainda escolher pelo não tratamento ou tratamentos alternativos, devendo sua opinião ser
respeitada.22
É notável que o exercício da autonomia do idoso depende de condições favoráveis,
de como a sociedade o encara. Por conta disso, o legislador associa o direito à liberdade
com respeito e dignidade para que todos tenham um papel para garantir que o idoso seja
tratado da melhor forma possível e sendo reconhecido como capaz. E é neste ponto que se
começa a notar o erro de percepção da sociedade em relação ao idoso, o erro de classificar a
pessoa idosa como doente, incapaz ou impossibilitado de tomar decisões sobre a sua própria
vida.
Retirar a liberdade de autodeterminação do idoso, tanto nas coisas rotineiras, quanto
na escolha de tratamento de saúde mais adequados ou na possibilidade de recusá-lo, é uma

19
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22.ed. rev. atual. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 232.
20
DINIZ, Fernanda Paula. Direitos dos idosos na perspectiva civil-constitucional. Belo Horizonte: Arraes
Editores, 2011. p.96.
21
RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Curso de Direito do Idoso. São Paulo: Saraiva, 2014. Série IDP. p. 126.
22
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de Direito do Idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p. 71
822

discriminação, que fere os princípios constitucionais, impossibilitando-o de exercê-los de


maneira plena.
O envelhecimento, sendo uma etapa natural da vida, é uma nova fase na qual diversas
mudanças acontecem na pessoa, na sua volta, novas vivencias e talvez de muitas
experiências de perdas, tanto de autonomia, quanto de familiares, amigos, etc. Essas questões
fazem com que a pessoa tenha que se adaptar a esse novo meio em que vive e é neste ponto
que se tem como essencial manter a autonomia da pessoa idosa, sendo necessário que o idoso
preserve e exercite sua capacidade e questões quanto a sua existência.23

2. CONVÍVIO SOCIAL E FAMILIAR DO IDOSO

Segundo pesquisas realizadas pelo IBGE, o número de idosos cresceu 26% entre os
anos de 2012 e 201824. Esses números mostram que essa faixa etária está cada vez mais
representativa no Brasil. Os dados atuais são bem diferentes dos antigos, visto que,
antigamente, por conta da precariedade, as pessoas geralmente não atingiam idades
avançadas. Por conta disso, existia a ideia de que, “uma sociedade que não tem velhos não
se preocupa com eles”.25
Com o crescente número de idosos, o convívio com os mesmos passa a ser diário e é
necessária a mudança de conduta, reconhecendo a importância de estabelecer condições para
essas pessoas.
Depende de como a sociedade enxerga o idoso para que se possa conseguir espaço
para o mesmo, e para que sua aceitação sem estereótipos seja garantida. Conforme dispõe
Paulo Roberto, “acompanhando esse processo, uma consciência cada vez maior acerca da
necessidade de respeito à dignidade da pessoa humana, que não pode ser subtraída ao homem
com o avançar da idade”.26
Todos passam por essa etapa da vida, são todos ‘’envelhescentes’’27 como se refere
Pérola Braga, no sentido em que todos caminham para o envelhecimento e

23
SARAIVA, Luana de Lima. A tutela constitucional da pessoa idosa. 2016. Disponível em:
<http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-tutela-constitucional-da-pessoa-idosa,55852.html>. Acesso
em: 16 set. 2018.
24
VALOR ECONOMICO. Disponível em: < https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/05/22/populacao-
idosa-no-brasil-cresce-26-em-seis-anos.ghtml>. Acesso em: 17 de ago. 2020.
25
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p. 45.
26
RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. Curso de Direito do Idoso. São Paulo: Saraiva, 2014. Série IDP. p. 42.
27
Braga, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. Nota introdutória, XX.
823

consequentemente para a morte. É necessário tirar a ideia de que o envelhecimento somente


se refere ao tempo e à idade, e passar a verificar que envelhecer não é somente acumular
anos, mas também experiências, princípios éticos e morais. Sendo assim, é indispensável
exercer sua autonomia, cabendo à família e a sociedade mudar essa visão, pois o
envelhecimento existe e não devemos ser omissos a isso28.
Neste sentido, o convívio familiar para a vida do idoso é essencial e deve estimulado,
cabendo à família compreender essa etapa e os processos de transformação que a
acompanham, mantendo o idoso sempre integrado ao meio em que vive. Esse convívio
familiar e social favorece o envelhecimento saudável.29
Assim, essa família não pode ser confundida com autoridade para decidir o que ele
deve ou não fazer. Nas palavras de Roberto Mendes de Freitas Junior, “imperiosa, pois, a
obediência ao livre-arbítrio do idoso, ou seja, o respeito ao seu direito de livre escolha, para
conduzir sua vida da maneira que melhor atender as suas expectativas”.30
É necessário que o idoso participe das questões atuais de forma assídua e contínua,
fazendo com que as gerações futuras sejam estimuladas a dar essa importância também.
Sempre deve ser levado em consideração que, nas palavras de Pérola Braga, “cidadania não
tem idade e só termina com a morte”.31
A integração social dos idosos faz-se necessária para que a sociedade consiga
incorpora-los de maneira mais eficaz. De acordo com a corregedora Clarissa Costa de Lima,
coordenadora do Comitê Interinstitucional de Defesa e Proteção da pessoa idosa do TJRS,
”A questão do idoso precisa da participação da sociedade. Temos uma legislação recente,
que oferece garantias e direitos, mas precisamos enfrentar os desafios.”.32

28
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p. 46.
29
CIOSAK, Suely Itsuko et al. Senescência e senilidade: novo paradigma na atenção básica de saúde. Rev.
esc. enferm. USP, São Paulo, v. 45, n. spe2, p. 1763-1768, Dec. 2011. Disponível <em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S008>. Acesso em: 02 out. 2018.
30
FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de Freitas Junior, Direitos e garantias do idoso: doutrina,
jurisprudência e legislação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 10.
31
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p.51.
32
SOUZA, Rafaela. Audiência pública apresentou dados inéditos sobre população idosa no RS. Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul: Notícias. [S.l.], 01 dez. 2018. Acesso em: 03 out. 2018.
824

3. A AUTONOMIA DO IDOSO FRENTE À ESCOLHA DO TRATAMENTO


MÉDICO
O direito à saúde é um direito de todos e dever do Estado, conforme preconiza o art.
196 da Constituição Federal.33 Diante disso, é função do Estado a obrigação de promover
saúde a todos, sem saúde não se tem uma vida digna, o que acarreta na violação dos direitos
fundamentais,34

Por direito à saúde entende-se o acesso universal e equânime a serviços e ações de


promoções, proteção e recuperação da saúde, garantindo a integralidade da
atenção, indo ao encontro das diferentes realidades e necessidades de saúde da
população e dos indivíduos.35

O direito à saúde está concretizado junto aos direitos fundamentais das pessoas
idosas, sendo alicerce para a sua proteção integral.36 No artigo 3º do Estatuto do idoso, temos
em seu inciso VIII “a garantia de acesso à rede de serviços de saúde” sendo imprescindível
a ação do Estado, da sociedade e da família neste aspecto.37
Quanto ao idoso, tem-se a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, Portaria
2.528/06 do Ministério da Saúde, a qual tem a finalidade de “recuperar, manter e prover a
autonomia e independência dos indivíduos idosos, direcionando medidas coletivas e
individuais de saúde”,38 tendo como premissa o envelhecimento saudável, a manutenção e
melhoria, da capacidade funcional dos idosos.39 Juntamente com ela, tem-se o Estatuto do
Idoso que traz artigos visando a proteção legislativa do mesmo, sempre contando com a
obrigação do Estado para fiscalizar, aplicar e provê-la.

33
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em: 02 out. 2018. Art. 196: a
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.
34
FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de Freitas Junior, Direitos e garantias do idoso: doutrina,
jurisprudência e legislação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 56.
35
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p. 64.
36
BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Direitos da pessoa idosa e seus princípios normativos. 2008. 288f. Tese
(Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: < https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/Busca_etds.php?strSecao=resultado&nrSeq=11847@1>. Acesso em: 13 out. 2018.
37
BRASIL. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras
providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741compilado.htm>.
Acesso em: 02 out. 2018. Art. 3.
38
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p. 65.
39
PAULAIN, Amanda Karen. Políticas públicas de atenção ao idoso. Disponível em:
<https://www.sabedoriapolitica.com.br/ci%C3%AAncia-politica/politicas-publicas/idoso/>. Acesso em: 13
out. 018.
825

Essa saúde, a qual o texto se refere, não se trata somente de questões direcionadas a
remédios, doenças, mas também visa “todas as oportunidades e facilidades para preservar a
saúde física e mental das pessoas idosas”.40
Além da Constituição Federal e do Estatuto do Idoso, tem-se a Lei nº 8080, de 19
de setembro de 1990, que também visa abordar esse assunto e enfatizar sobre as condições
para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes.41 O artigo 2º da referida Lei coloca a saúde como um direito
fundamental e que deve o Estado prover condições para seu exercício pleno novamente
temos o dever do estado de assegurar a saúde e consequentemente o direito à vida, garantindo
melhores condições42.
Diante de todo o narrado, devido ao número de idosos no Brasil ser considerável,
faz-se necessário ter uma estrutura social que os proteja e que proporcione o cumprimento
dos seus direitos. Neste aspecto, a autonomia do idoso vem como fator essencial para que o
mesmo possua qualidade de vida. Tem-se a autonomia da seguinte forma de acordo com
Nunes “Caracteriza-se pela competência humana em dar leis a si próprio”.43
Neste sentido, de acordo com Fabio Ulhoa constata-se que, “A velhice por si só, não
é causa de incapacidade. Por mais avançada na idade, à pessoa tem plena aptidão para cuidar
diretamente de seus negócios, bens e interesse”.44
O idoso, estando em condições de responder por si mesmo, deve ter sua autonomia
preservada e aplicada. A ideia de que a idade traz a perda de autonomia deve ser retirada,
visto que são muitos os idosos que possuem total consciência de seus atos, tendo somente a
idade como fator diferencial.

40
BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Direitos da pessoa idosa e seus princípios normativos. 2008. 288f. Tese
(Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: < https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/Busca_etds.php?strSecao=resultado&nrSeq=11847@1 >. Acesso em: 13 out. 2018.
41
PAULAIN, Amanda Karen. Políticas públicas de atenção ao idoso. Disponível em:
<https://www.sabedoriapolitica.com.br/ci%C3%AAncia-politica/politicas-publicas/idoso/>. Acesso em: 13
out. 2018.
42
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção
e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
providências. Art. 2º: A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições
indispensáveis ao seu pleno exercício. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 02 out. 2018.
43
NUNES, Lucília. A autonomia e responsabilidade na tomada de decisão clínica em enfermagem. II
Congresso Ordem dos Enfermeiros. (2006). Disponível em: <
http://lnunes.no.sapo.pt/adescoberta_files/autonomia&responsabilidade_IICongressoOE.pdf>. Acesso em: 30
set. 2018
44
ULHOA, Fabio. Curso de direito civil. 1. vol. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 178.
826

De acordo com Perlingieri, “somente quando as faculdades intelectuais forem


gravemente comprometidas, poderá, realmente, justificar-se a introdução de limites ao
direito do idoso de concluir negócios”.45 Portanto, sendo o idoso capaz, levando em
consideração a senescência que é caracterizada pelo envelhecimento saudável,46 é essencial
que seja analisada a relação de autonomia e tratamento médico, visto que “a população sênior
receia viver os últimos anos de vida em sofrimento ou num estado de dependência agravado
que lhe confine a qualidade de vida”,47 levando em consideração a escolha ao tratamento
médico ou a recusa do mesmo quando não desejado.48
Neste tocante, diante de todos os desafios do envelhecimento manter a autonomia
dos idosos em questões diárias, torna-se árdua a manutenção e a execução desse e de outros
princípios essenciais.
O ato de legislar por si próprio, lidar com situações, é essencial quando se refere ao
quesito saúde, visto que, se trata de um processo pessoal, onde a própria pessoa saberá como
agir e decidirá o curso de sua vida diante das opções dadas. E é neste aspecto que se deve
zelar pela autodeterminação, tendo o princípio da autonomia expressando esse direito que
deve ser executado sem a redução da liberdade pessoal.49
De acordo com o art. 5º da Declaração Universal sobre Bioética e Direito Humanos,
da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura50, tem-se que a

45
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, 2007. p. 167.
46
SAQUETTO, Micheli et al. Aspectos bioéticos da autonomia do idoso. Rev. Bioét., Brasília, v. 21, n. 3, p.
518-524, Dec. 2013.. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-
80422013000300016&lng=en&nrm=iso>. http://dx.doi.org/10.1590/S1983-80422013000300016. Acesso em:
13 mar. 2018.
47
TAVARES, Ana Rita; SIMÕES, Jose Augusto Rodrigues; PIRES, Cátia Isabel. Autonomia do
Idoso: Perspectiva ética, médica e legal. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/236331511_Autonomy_of_the_Elderly_Ethical_medical_and_leg
al_perspective_Portuguese_original_Autonomia_do_Idoso_Perspectiva_etica_medica_e_legal>. Acesso em:
02 out. 2018.
48
TAVARES, Ana Rita; SIMÕES, Jose Augusto Rodrigues; PIRES, Cátia Isabel. Autonomia do
Idoso: Perspectiva ética, médica e legal. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/236331511_Autonomy_of_the_Elderly_Ethical_medical_and_leg
al_perspective_Portuguese_original_Autonomia_do_Idoso_Perspectiva_etica_medica_e_legal>. Acesso em:
02 out. 2018.
49
JUNGES, JR. Bioética: perspectivas e desafios. São Leopoldo: Unisinos; 1999 apud SAQUETTO, Micheli
et al. Aspectos bioéticos da autonomia do idoso. Rev. Bioét., Brasília, v. 21, n. 3, p. 518-524, Dec. 2013.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-
80422013000300016&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 out. 2018.
50
UNESCO. Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos. Lisboa: Comissão Nacional da UNESCO – Portugal, 2006. Disponível
em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf> Acesso em: 07 out. 2018.
827

autonomia da pessoa deve ser respeita, respeitando a autonomia dos outros e devendo a
pessoa se responsabilizar quanto a essa tomada de decisões.51
Diante disto, pode-se destacar que, muitas vezes, pensar no idoso como sinônimo de
pensar em alguém dependente ou incapaz, conforme já referido, reforça a ideia dos
estereótipos e da relação da pessoa idosa frente à sociedade em que vivemos. Assim,
compromete-se sua autonomia, contribuindo para atitudes que, “desconsideram a pessoa
idosa como participante do processo existencial e de tomada de decisões pautadas na
autonomia”.52
Nos tratamentos médicos, o idoso deve ser informado de todas as possibilidades,
todos os prós e contras do procedimento, para que ele consiga decidir de forma coerente se
aceitará ou não o fazer.53 Se o idoso recusa o tratamento, tendo consciência do que pode
acarretar, o profissional da saúde deve respeitar essa decisão, preservando o respeito pela
autonomia e dignidade da pessoa humana.54
Com base nisso, a Juíza Maria Aglaé Tedesco Vilardo, titular da 15ª Vara de Família
no Rio de Janeiro e doutora em bioética e ética aplicada à saúde coletiva, quanto à autonomia
do idoso em decidir/optar pelo tratamento de saúde diz que:

Deve haver respeito na tomada da decisão pelo idoso, pois este poderá
perfeitamente recusar algum tratamento invasivo que não lhe proporcione
possibilidade de cura e cause mais sofrimento. Mesmo uma pessoa com algum
comprometimento cognitivo deve ser ouvida quanto ao que será feito com seu
corpo [ ...].55

51
UNESCO. Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura. Declaração Universal
sobre Bioética e Direitos Humanos. Lisboa: Comissão Nacional da UNESCO – Portugal, 2006.
Artigo 5º Autonomia e responsabilidade individual
A autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva
responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de
exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger os seus direitos e interesses.
Disponível em: < http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf>. Acesso em: 07 out. 2018
52
SAQUETTO, Micheli et al. Aspectos bioéticos da autonomia do idoso. Rev. Bioét., Brasília, v. 21, n. 3, p.
518-524, Dec. 2013. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-
80422013000300016&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 out. 2018.
53
TAVARES, Ana Rita; SIMÕES, Jose Augusto Rodrigues; PIRES, Cátia Isabel. Autonomia do
Idoso: Perspectiva ética, médica e legal. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/236331511_Autonomy_of_the_Elderly_Ethical_medical_and_leg
al_perspective_Portuguese_original_Autonomia_do_Idoso_Perspectiva_etica_medica_e_legal>. Acesso em:
02 out. 2018.
54
CUNHA, Jorge Manuel Alves da. A AUTONOMIA E A TOMADA DE DECISÃO NO FIM DA
VIDA. 2004. 157 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Bioética, Faculdade de Medicina do Porto,
Universidade do Porto, Porto, 2004. Disponível em: <https://repositorio-
aberto.up.pt/bitstream/10216/9658/5/5506_TM_01_P.pdf>. Acesso em: 07 out. 2018.
55
TAVARES, Mariza. Por dentro do Estatuto do Idoso: direitos na área da saúde. 2017. Disponível em:
<http://g1.globo.com/bemestar/blog/longevidademodo-de-usar/post/por-dentro-do-estatuto-do-idoso-direitos-
na-area-da-saude.html>. Acesso em: 11 abr. 2018.
828

Ainda, cabe frisar que a recusa do tratamento não quer dizer que a pessoa será largada
sem nenhum auxilio. A mesma terá o suporte para que ao longo do desenvolvimento da
doença, sejam realizados cuidados que amenizem os sintomas e façam com que passe por
esse processo de maneira natural.

A recusa voluntária de tratamento de suporte ou de prolongamento de vida por


parte de um doente deve ser respeitada, mesmo que resulte na sua morte. Contudo,
a recusa deste tipo de tratamento não deverá significar o abandono do doente. Os
cuidados de saúde destinados a proporcionar alívio sintomático e conforto devem
ser mantidos.56

Nesse sentido, Serrão menciona,

O doente é autónomo, não está submetido ao médico e tem o direito de participar


nas decisões que lhe são propostas e a liberdade de as aceitar ou não, depois de
convenientemente informado dos fundamentos dessas decisões. 57

É notável que o exercício da autonomia do idoso dependa de condições favoráveis e


de como a sociedade encara o idoso, e é aqui que se encontra o erro. O erro de classificar o
idoso como doente, incapaz ou impossibilitado de tomar decisões quanto a sua própria vida.
Retirar a liberdade de autodeterminação do idoso, tanto nas coisas rotineiras, mas
com ênfase na escolha de tratamento de saúde mais adequados ou possibilidade de recusá-
lo, é uma discriminação, que fere a igualdade e dignidade da pessoa humana. O artigo 17 do
Estatuto do Idoso traz exatamente este ponto, o tratamento médico a ser administrado pelo
próprio idoso: “Art. 17. Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é
assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais
favorável.”.58
Reduzir o idoso a ponto de o mesmo não poder tomar decisões quanto a sua saúde,
reflete não somente na forma como os idosos são percebidos e tratados, mas também na

56
CUNHA, Jorge Manuel Alves da. A AUTONOMIA E A TOMADA DE DECISÃO NO FIM DA
VIDA. 2004. 157 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Bioética, Faculdade de Medicina do Porto,
Universidade do Porto, Porto, 2004. Disponível em: <https://repositorio-
aberto.up.pt/bitstream/10216/9658/5/5506_TM_01_P.pdf>. Acesso em: 07 out. 2018.
57
SERRÃO, D. Relações entre os profissionais de saúde e o paciente. In: PATRÃO-NEVES M. C., Comissões
de ética: das bases teóricas à actividade quotidiana. Centro de estudos de Bioética - Pólo Açores. p. 61.
apud CUNHA, Jorge Manuel Alves da. A AUTONOMIA E A TOMADA DE DECISÃO NO FIM DA
VIDA. 2004. 157 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Bioética, Faculdade de Medicina do Porto,
Universidade do Porto, Porto, 2004. Disponível em: <https://repositorio-
aberto.up.pt/bitstream/10216/9658/5/5506_TM_01_P.pdf>. Acesso em: 07 out. 2018.
58
BRASIL. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras
providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741compilado.htm>.
Acesso em: 02 out. 2018.
829

forma como são levados a se comportar ‘’Partindo do pressuposto de estar no domínio, por
inteiro, de suas faculdades mentais, ele é o único com direito de escolher a modalidade de
tratamento.’’59
A forma como o idoso é tratado contribui para que ele vá perdendo a autonomia,
independentemente de ter algumas restrições advindas do envelhecimento. A sua capacidade
funcional deve ser mantida, sendo necessário que as pessoas ao seu redor o tratem como ser
autônomo.60
Ainda sobre o artigo 17 do Estatuto do Idoso, que é considerado um artigo
emblemático, tem-se o mesmo como assunto principal, visto que ele traz o direito de escolha
do idoso de forma assídua, promovendo sua autonomia:

O artigo 17 do Estatuto do Idoso, um dos mais emblemáticos dentro do Estatuto do


Idoso, o direito de escolha do tratamento de saúde tem significância ímpar. Este
artigo elimina qualquer dúvida sobre a aventada possibilidade de internar o idoso
contra sua vontade em asilos, clínicas e congêneres. 61

Neste sentido cabe colacionar um trecho da seguinte decisão:

APELAÇÕES CÍVEIS. FAMÍLIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERNAÇÃO


COMPULSÓRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA DO MUNICÍPIO. ESTATUTO
DO IDOSO. AUSÊNCIA DE INTERESSE NAINTERNAÇÃO.
PECULIARIDADE. RESPEITO À VONTADE DA IDOSA. SENTENÇA
MODIFICADA[...] Internação compulsória. Embora o direito à saúde seja
assegurado a todos, não é de ser reconhecida a internação da idosa que manifestou
sua discordância com tal medida, declarando que sua vida decorre de suas próprias
escolhas. No conflito de direitos que o caso apresentou, é de prevalecer a dignidade
da pessoa humana e o respeito ao idoso, que deve ter sua autonomia preservada
[...](Apelação Cível Nº 70069941540, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Alexandre Kreutz, Julgado em 13/07/2017).62

Na decisão acima, expressa-se que esse direito deve ser priorizado, sem passar por
cima da dignidade da pessoa humana, devendo o idoso em situações como esta, ter o poder

59
MARTINEZ, Wladimir Novaes. Comentários ao Estatuto do Idoso. São Paulo: LTr, 2004.p. 61.
60
SAQUETTO, Micheli et al. Aspectos bioéticos da autonomia do idoso. Revista Bioética, Brasília, v. 21, n.
3, p.518-524, dez. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-
80422013000300016&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 07 out. 2018.
61
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p.69.
62
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº
70069941540. Relator: Alexandre Kreutz. Cruz Alta de 13 de jul. 2017. Diário da Justiça. Brasília, 19 jul.
2017. Disponível em:
<http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=+70069941540+&proxystylesheet=tjrs_index&client=tjrs_index&filt
er=0&getfields=*&aba=juris&entsp=a__politica-site&wc=200&wc_mc=1&oe=UTF-8&ie=UTF-
8&ud=1&sort=date%3AD%3AS%3Ad1&as_qj=&site=ementario&as_epq=&as_oq=&as_eq=&as_q=+#mai
n_res_juris>. Acesso em: 07 out. 2018.
830

de se autodeterminar a optar pelo melhor para sua vida. As pessoas não podem ter seu direito
à liberdade de escolha violado e, com o devido discernimento, sabendo o que é melhor para
a situação, devendo ter sua vontade respeitada. Caso ocorra o contrário, haverá uma ofensa
aos direitos fundamentais, com fulcro no artigo 10, §2º, do Estatuto do Idoso, Lei 10.741/03,
que diz que é assegurado a pessoa idosa o direito à liberdade, dignidade e respeito, este
respeito abrange a preservação da autonomia da pessoa.63
A pessoa idosa precisa de proteção diante das políticas públicas para garantir sua
autonomia64. A relação deve ser conduzida com respeito aos seus direitos e capacidade:

Qualquer pessoa adulta tem o direito de poder optar pelo tratamento de saúde que
lhe parece mais conveniente e até por optar pelo não tratamento, mas quando a
opção vem de um idoso existe uma tendência da família, e até dos médicos, de não
respeitar sua vontade, como se ele não fosse mais dono da própria vida. 65

O idoso tem o direito de escolher o melhor para si próprio, optando pelo tratamento
que melhor lhe couber.
Respeitar a autonomia das pessoas é respeitar sua individualidade e seu direito de
se autodeterminar, segundo suas próprias convicções. O idoso não perde o
discernimento com a idade avançada, e se este estiver em pleno discernimento de
sua capacidade mental deverá sim optar pelo tratamento que lhe entender mais
favorável.66

É importante enxergá-lo de maneira igualitária, com poder de exercício de autonomia


e conhecer sua vontade como paciente.
A recusa do tratamento ou a escolha de outro, traz à tona direitos fundamentais muito
importantes, sendo eles a liberdade individual e a autonomia, de maneira a respeitar o
princípio da dignidade da pessoa humana.67 Um exemplo quanto à autonomia que está

63
BRASIL. Lei nº 10.741 de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741compilado.htm>. Acesso em: 02
out. 2018. Art. 10 §2º.
64
SCHUMACHER, Aluisio Almeida; PUTTINI, Rodolfo Franco; NOJIMOTO, Toshio. Vulnerabilidade,
reconhecimento e saúde da pessoa idosa: autonomia intersubjetiva e justiça social. Saúde em Debate, Rio de
Janeiro, v. 37, n. 97, p.281-293, jun. 2013. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042013000200010&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 07 out. 2018.
65
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de direito do idoso. São Paulo: Atlas, 2011. p 69.
66
DIREITOCOM. Capítulo IV do direito à saúde (do artigo 15 ao 19). Disponível em:
<https://www.direitocom.com/estatuto-do-idoso-comentado/titulo-ii-dos-direitos-fundamentais-do-artigo-8-
ao-42/capitulo-iv-do-direito-a-saude-do-artigo-15-ao-19/artigo-17-8>. Acesso em: 14 out. 2018.
67
TAVARES, Ana Rita; SIMÕES, Jose Augusto Rodrigues; PIRES, Cátia Isabel. Autonomia do
Idoso: Perspectiva ética, médica e legal. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/236331511_Autonomy_of_the_Elderly_Ethical_medical_and_leg
al_perspective_Portuguese_original_Autonomia_do_Idoso_Perspectiva_etica_medica_e_legal>. Acesso em:
02 out. 2018.
831

sempre em discussão é a questão das pessoas Testemunhas de Jeová que devem ter sua
liberdade de escolha preservada, independentemente da situação, pois trata-se de uma
escolha pessoal e cabe somente a pessoa decidir.

CONCLUSÃO

Portanto, diante dos direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas, a


recusa livre e consciente quanto a questões médicas deve ser analisada de forma a não
ultrapassar a vontade da pessoa que ali encontra-se em uma situação delicada, somente a
pessoa que está naquela situação saberá decidir o que é melhor para si própria.
Considerando a características que esta faixa etária possui, o exercício de sua
autonomia, juntamente com as leis de proteção a pessoa idosa, proporciona independência
em um momento da vida no qual a imagem que se tem é de vulnerabilidade. Sendo esse
direito preservado, consequentemente, preserva-se o espaço do idoso na sociedade,
contribuindo para um convívio social mais ativo e integrado, levando a um reconhecimento
social que trará ao idoso mais condições favoráveis para o exercício de sua cidadania e sendo
considerado como um sujeito atuante e que propicia experiências e sabedoria.
O direito serve de base para aplicação das leis e a regulação da vida em sociedade,
diante disso, com o aumento populacional da terceira idade, faz-se necessário priorizar e
atender essa faixa etária. Tendo a necessidade de ter condições que sejam favoráveis ao
idoso, as leis sendo aplicadas, os seus direitos sendo respeitados e acima de tudo a vontade
da pessoa que está nessa etapa da vida. Nesta acepção, a ideia é trazer a visão do idoso capaz,
autodeterminado.
Por conseguinte, a questão da escolha do tratamento médico entra como um exercício
primordial da autonomia da vontade da pessoa idosa, sendo necessário que esteja ciente de
todas as possibilidades que podem ajuda-la, garantindo o direito de opção.
Portanto, é importante se desvencilhar da ideia de que a velhice está ligada a
incapacidade e também ressaltar que a ideia de proteção não pode ultrapassar a vontade da
pessoa, buscando a qualidade de vida do idoso, sendo necessária uma mudança de
pensamento da sociedade e uma ampla proteção do Estado. Não somente no sentido de
criação de leis, mas também na sua efetivação, visando uma velhice digna, zelando pelo
bem-estar e defendendo o direito à vida, reconhecendo os ciclos da vida e dando proteção a
estas etapas pelas quais todos iremos passar.
832

REFERÊNCIAS

BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Direitos da pessoa idosa e seus princípios normativos.


2008. 288f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em:
<https://www.maxwell.vrac.puc-
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835

A PRÁTICA DA VAQUEJADA: INCONSTITUCIONALIDADE,


VEDAÇÃO À CRUELDADE ANIMAL E O EFEITO BACKLASH

Nicolle Bittencourt Rocha1

Resumo: O presente artigo buscará analisar a inconstitucionalidade da prática cultural da


vaquejada que ocorre, predominantemente, na região nordeste do país. A referida prática já
foi objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal, através da ADI n.º 4.983/CE em razão
da existência da Lei n.º 15.299/13 do estado do Ceará, que versava sobre a regulamentação
da vaquejada. No período compreendido pelo ano de 2016, mesmo ano em que a prática foi
declarada inconstitucional, o Congresso Nacional aprovou a Lei n.º 13.364/16,
reconhecendo a vaquejada como manifestação cultural, contrariando a decisão e
interpretação firmada pela Corte Suprema. No ano seguinte, houve a aprovação da Emenda
Constitucional n.º 96/17, que afastou a incidência de crueldade aos animais que são
submetidos às práticas desportivas, desde que essas sejam manifestações culturais. Assim,
através das perspectivas jurídico-filosóficas oriundas do Direto Animal, busca-se demonstrar
a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 96/17 e da Lei n.º 13.364/6 que, sob o
efeito backlash, afrontam a primazia constitucional da regra de vedação à crueldade animal
disposta no artigo 225, §1º, VII da Constituição Federal.

Palavras chaves: Vaquejada. Emenda Constitucional nº. 96/17. Lei nº. 13.364/16.
Dignidade do Animal Não Humano. Efeito backlash

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como enfoque principal analisar a constitucionalidade da


prática cultural da vaquejada que resultou na elaboração da Lei n.º 13.364/16, a qual
considera vaquejada como patrimônio histórico cultural imaterial e que, portanto, está
inclusa no conceito de manifestação cultural, inclusive resultando na aprovação da Emenda
Constitucional n.º 96/2017, responsável pela inserção do parágrafo sétimo no artigo 225 da
Constituição Federal de 1988, afirmando que não há crueldade em práticas desportivas que
utilizam de animais, desde que essas práticas sejam reconhecidas como manifestações
culturais.
A importância da presente temática repousa sobre a presença de uma crueldade
intrínseca à prática da vaquejada, demonstrando que o debate proposto está intimamente
conectado à redação da regra constitucional de vedação à crueldade animal, observada no

1
Mestranda em Direito, Especialista em Direito Animal, Especialista em Direito Tributário, Especialista em
Direito Imobiliário, Membro da Comissão de Defesa Animal da OAB Subseção Canoas/RS, OAB 114.575,
nicolle@nicollebittencourtadv.com.br
836

artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal de 1988, asseverando a concepção biocêntrica
da norma constitucional que, para além da dignidade da pessoa humana, também reconhece
o dever de proteção em relação aos animais não humanos, estendendo o conceito de
dignidade para aqueles que, na medida de suas peculiaridades, compartilham de semelhanças
biológicas e emocionais que não podem ser ignoradas.
Por meio do método bibliográfico e documental, serão abordadas as perspectivas
jurídico-filosóficas que norteiam o Direito Animal, no intuito de demonstrar a capacidade
de sentir dos animais não humanos que implicaram no alargamento do conceito de
dignidade, buscando o reconhecimento dos direitos de proteção também para os animais não
humanos, resultando na indubitável obrigatoriedade de uma efetiva tutela constitucional
quando submetidos à práticas cruéis.
Nesse sentido, cumpre mencionar que a prática cultural da vaqueja foi declarada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na ADI n.º 4.983/CE em razão das
evidências de maus tratos e crueldade intrínsecas à atividade, comprovado, inclusive, por
laudos veterinários que atestavam o sofrimento dos animais.
Dessa forma, valendo-se dos mesmo argumentos que foram aplicados na julgamento
de inconstitucionalidade da rinha de galo na ADI n.º 1.856/RJ e na ADI n.º 2.514/SC, bem
como no RExt n.º 153.531/SC, que declarou inconstitucional a farra do boi, o Supremo
Tribunal Federal manteve seu posicionamento na ADI n.º 4.983/CE, demonstrando o
compromisso com a regra constitucional de vedação à crueldade animal e inaugurando a
autonomia do Direito Animal no Estado Brasileiro.
Assim, considerando a decisão do Supremo Tribunal Federal pela
inconstitucionalidade da vaquejada na ADI n.º 4.983/CE, o Congresso Nacional demonstrou
sua divergência quanto ao julgamento através da elaboração da Lei n.º 13.346/16 e da
Emenda Constitucional n.º 96/17, que passou a permitir a prática da vaquejada no país
mediante instrumentos legislativos, ocasionando o efeito backlash, compreendido como a
reação política que contraria decisões judiciais da Corte Suprema que, no caso em tela,
aponta para um evidente retrocesso em matéria de Direito Ambintal e Animal.
Assim, o objetivo deste artigo será demonstrar a inconstitucionalidade da prática da
vaquejada e, portanto, a própria inconstitucionalidade da Emenda n.º 96/2017 e da Lei n.º
13.364/2016, por evidente afronta ao dispositivo constitucional que, desde 1988, declarou a
importância e o compromisso com a proteção dos animais não humanos, inclusive
837

reconhecendo seu valor em si mesmo, expandindo o conceito de dignidade para além da vida
humana, devendo gozar de salvaguarda constitucional, conforme prevê a Carta Magna.

2. VAQUEJADA: PRÁTICA CULTURAL OU CRUELDADE ANIMAL?

A grande extensão territorial do Brasil é responsável por uma vasta diversidade


cultural, sendo constituída por danças, músicas, artesanatos, culinária local e também
manifestações culturais que, eventualmente, utilizam animais para sua realização, como
ocorre com os rodeios, paleteadas e vaquejadas. Essas últimas ocorrem, substancialmente,
nos estados da região nordeste do país.
Nesse sentido, a prática da vaquejada surge entre os séculos XVII e XVIII, na região
do Seridó Potiguar, compreendida entre os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba,
momento em que era utilizada para reunir o gado marcado que fugiu para a mata em razão
da ausência de cercas que delimitassem seu espaço.2
Ainda que os resquícios históricos da vaquejada permaneçam, cumpre ressaltar que
sua compreensão foi modificada para atribuir-lhe um caráter esportivo em que dois homens,
montados a cavalo cada um, perseguem o gado até pressiona-lo entre os equinos, iniciando
sua condução até uma marca delimitada no chão, momento em que deverá ser derrubado
pela cauda.3 Além disso, de acordo com o artigo 1º, parágrafo único da Lei n.º 10.220/01, o
peão de vaquejada é considerado um atleta profissional.4
Dessa forma, a prática da vaqueja acaba por suscitar indagações acerca da existência
de uma crueldade intrínseca em seu ato, visto que expõe o gado a uma condição de confronto
com os cavalos, submetendo esses animais à uma realidade diametralmente oposta daquela
que estão acostumados em seu habitat natural, ausente de competição ou derrubadas forçadas
pela cauda.
Assim, considerando a preocupação acerca da saúde física e mental dos animais
envolvidos na prática cultural da vaquejada, por meio de uma pesquisa realizada em uma
monografia de graduação na Universidade de Campina Grande/PB, se revelou as

2
Conheça a história da vaquejada. Blog RodeoWest, 2018. Disponível em:
<https://blog.rodeowest.com.br/curiosidades-rodeio/conheca-historia-da-vaquejada/>. Acesso em: 30 set.
2020.
3
Ibidem.
4
BRASIL. Lei n.º 10.220, de 11 de abril de 2001. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/L10220.htm#:~:text=LEI%20No%2010.220%2C%20D
E%2011%20DE%20ABRIL%20DE%202001.&text=Institui%20normas%20gerais%20relativas%20%C3%
A0,Art.>. Acesso em: 30 set. 2020.
838

consequências da vaquejada para esses animais, demonstrando danos irreparáveis à saúde


dos equinos envolvidos na vaquejada, de modo que, de 1.170 equinos, responsáveis por
38,83% dos atendimentos no Hospital Veterinário, 110 foram acometidos por afecções
locomotoras traumáticas, correspondendo a 9,4% destes equinos atendidos.5
Nesses 110 casos de afecções locomotoras traumáticas nos equinos de vaquejada,
constatou-se a incidência de doenças como tenossinovite (17,27%), exostose (12,27%),
miopatias (9,8%), fraturas (9,3%) e osteoartrite társica (8,18%), sendo o esforço exagerado
de extensão sobre os tendões, o choque durante o trabalho e acidentes em provas de
obstáculos fatores determinantes para a ocorrência das referidas enfermidades.6
De acordo com a Dra. Irvênia Luiza de Santis Prada, médica veterinária e professora
de Anatomia Animal:

Particularmente em relação aos rodeios, considerando-se as características de


violência e agressividade das provas e treinamentos (...), a utilização de recursos
inaceitáveis como o sédem e as esporas (...), a estrutura orgânica dos eqüinos e
bovinos, passível de lesões corporais na ocorrência de quaisquer procedimentos
violentos, bruscos e/ou agressivos (...), pode-se concluir que os sinais
fisiológicos e comportamentais exibidos pelos animais, nos treinamentos e
provas de rodeio, são coerentes com a vivência de dor/sofrimento.7 (grifo
nosso)

Importante salientar que a crueldade animal também decorre do estresse aos quais os
animais são submetidos, uma vez que estão distanciados de seu habitat natural, encontrando-
se inseguros, agitados e desnorteados, demonstrando que não apenas no espetáculo, como
também fora dele, permanecem sob pressão e assustados antes, durante e após o evento.
Para os veterinários Mariângela Freitas de Almeida e Souza e William Ribeiro
Pinheiro, em parecer técnico sobre rodeios realizado para o Fórum Nacional de Proteção e
Defesa Animal:
O som alto da música e do espetáculo pirotécnico os barulhos diversos, a luz
forte, a grande movimentação humana e o cheiro e visão da plateia assim como
o horário noturno avançado em que se realizam os rodeios podem provocar
altíssimo nível de estresse em cavalos e touros, uma vez que são produzidos em
condições totalmente diversas de seu habitat e contrariando os hábitos naturais

5
FERNANDES DE OLIVEIRA, Carlos Eduardo. Afecções locomotoras traumáticas em eqüinos (Equus
caballus, LINNAEUS, 1758) de vaquejada atendidos no Hospital Veterinário /UFCG, Patos – PB. 2008.
Monografia de Graduação em Medicina Veterinária. Campina Grande: Universidade Federal, p. 45 – 48.
6
Ibidem.
7
SANTIS PRADA, Irvênia Luiza de et. al. Bases metodológicas e neurofuncionais da avaliação de
ocorrência de dor/sofrimento em animais. Revista de Educação Continua da Medicina Veterinária e
Zootecnia de São Paulo. São Paulo, volume 5, fascículo 1, p. 1 – 13, 2002. Disponível em:
<https://www.revistamvez-crmvsp.com.br/index.php/recmvz/article/view/3278/2483>. Acesso em: 03 out.
2020.
839

dessas espécies, provocando reações contrárias ao que se observa do


comportamento normal desses animais. Esses estímulos estressantes
provocam medo e suas reações consequentes como taquicardia, taquipnéia,
enrijecimento muscular, entre outros, podendo até produzir um estado de
pânico ou de confusão mental. A observação das pupilas dilatadas, por
exemplo, embora estejam sobre iluminação intensa, é um dos sinais
indicadores de estresse.8(grifo nosso)

Nesse sentido, o sofrimento e a crueldade são, indubitavelmente, inerentes à


realização da prática da vaquejada, haja vista a existência de laudos veterinários atestando
as situações de maus tratos em que se encontram os animais, o que inaugura a necessidade
do debate acerca da capacidade de sentir além da esfera humana e as implicações decorrentes
dessa capacidade.
Para tanto, no dia 07 de julho de 2012, por meio do documento intitulado de
Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, um
grupo composto por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas,
neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos, reavaliaram os substratos
neurológicos acerca da experiência consciente e de comportamentos relacionados aos
animais humanos e não humanos, revelando que animais não humanos, como mamíferos,
aves e até polvos, possuem a capacidade de experimentar dor e prazer que, assim sendo, são
idênticas às sensações humanas, também compreendida como o fenômeno da senciência.9
Para Daniel Braga Lourenço, a dor é uma ocorrência mental, permitindo concluir que
seres biologicamente semelhantes aos humanos possuam a mesma capacidade fisiológica de
sentir dor, de modo que utilizam grande parte dos sinais externos utilizados pelos humanos
para indicar o seu sofrimento.10

8
ALMEIDA E SOUZA, Mariângela Freitas de; PINHEIRO, William Ribeiro. Parecer técnico sobre rodeios
e vaquejadas. Disponível em: >http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/9/docs/rodeio_-
_parecer_geral_em_texto.pdf>. Acesso em: 30 set. 2020.
9
“A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos.
Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos,
neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir
comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os
únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos
os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos
neurológicos”. INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Declaração de Cambridge sobre a Consciência em
Animais Humanos e Não Humanos. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511936-
declaracao-de-cambridge-sobre-a-consciencia-em-animais-humanos-e-nao-humanos>. Acesso em: 30 set.
2020.
10
LOURENÇO, Daniel Braga. Entre bois e homens: Considerações Iniciais Sobre o Julgamento da ADI
4983. Revista do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. Bahia, volume
27, nº. 01, p. 1 – 264, 2017. p. 88. Disponível em:
<https://portalseer.ufba.br/index.php/rppgd/article/view/23347/14730>. Acesso: 03 out. 2020.
840

Por esse ângulo, a capacidade de sofrer e de sentir prazer não é apenas necessária
como suficiente para assegurar que um ser possui interesses de, pelo menos, não sofrer, o
que demonstra que os animais não humanos não buscam direitos diferentes daqueles que
possam lhe garantir a vida, a liberdade e a integridade física.11
Para o abolicionista Francione, os animais não humanos são semelhantes aos
humanos pelo menos no aspecto da senciência, possuindo o mesmo interesse em não sofrer
como resultado de ser utilizado como recurso,12 expondo que os animais não humanos não
estão no mundo para servir aos humanos mas para compartilhar o universo com eles,
afastando a mercantilização e instrumentalização da vida desses animais, visto que humanos
e não humanos devem ser protegidos contra o sofrimento de serem tratados como
propriedade ou recurso alheio.13
Oportuno mencionar que quando um dano é causado ao corpo humano, a mensagem
é transmitida pelo mesmo destino que nos corpos dos animais não humanos sencientes, ou
seja, sendo encaminhada até o cérebro, demonstrando que as estruturas físicas são as
mesmas, assim como os sistemas nervosos também o são, razão pela qual não há diferença
no sentir de um humano e de um não humano, o que revela a necessidade de proteção dos
interesses dos não humanos assim como ocorre com os interesses humanos.14
Em verdade, os animais não humanos estão conscientes do que lhes ocorre e do
mundo em que vivem, assim como os humanos, de modo que o que acontece na vida deles
importa tanto quanto o que acontece na vida humana, quer alguém se preocupe com isso ou
não. Os humanos e os não humanos possuem muitas diferenças, mas são idênticos em uma
característica crucial: a senciência, o que demonstra que nós e eles somos sujeitos de uma
vida.15
Especificamente sobre rodeios, Regan desconsidera-o como esporte por
compreender que a prática produz dor e sofrimento aos animais envolvidos, sejam equinos
ou bovinos, reconhecendo que esses animais também são sujeitos de uma vida e por esta
razão, não deveriam ser explorados e abusados da forma que ocorre, pois a morte é o único

11
SINGER, Peter. Libertação Animal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 13.
12
FRANCIONE, Gary L. Introdução aos direitos animais: seu filho ou o cachorro? Campinas: Editora da
Unicamp, 2013. p. 29.
13
Ibidem, p. 33.
14
REGAN, Tom. Jaulas Vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006. p.
69.
15
REGAN, Tom. Jaulas Vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006. p.
72.
841

destino para o gado utilizado, seja por acidente na competição ou na chegada para o
abatedouro, haja vista que um animal ferido ou inválido em razão do dito esporte não serve
para a continuidade do evento e por isso, a morte é seu único fim.16
É nesse sentido que se afirma a possibilidade de expandir o conceito de dignidade ou
valor em si mesmo para os animais não humanos, visto que essa atribuição decorre da
capacidade de sentir, oriunda do desenvolvimento de um sistema nervoso central
característico de animais vertebrados.17
A existência da ética e da responsabilidade jurídica em relação à vida não humana
acaba por impactar a atitude do homem em relação aos animais utilizados, por exemplo, em
práticas de rodeios e tantas outras que consideram o animal não humano como um objeto à
disposição da vontade humana, ignorando seu valor em si mesmo,18 contrariando a
perspectiva biocêntrica da Constituição Federal que, em uma evidente preocupação com a
preservação da vida desses seres, proibiu práticas que submetam os animais à crueldade,
constatando que para além da vida humana, o valor em si mesmo é a própria dignidade da
vida e, portanto, pode ser estendida e atribuída aos não humanos.
Entretanto, ainda que as perspectivas da filosofia do Direito Animal sejam
esclarecedoras acerca da senciência e da consideração moral dos animais não humanos e,
embora a existência de laudos veterinários que confirmem a incoerência da continuidade de
vaquejadas e rodeios por conta da crueldade intrínseca à atividade e suas severas
consequências físicas e psicológicas causadas aos animais, há uma forte resistência em
extinguir essas atividades sob a alegação de que os referidos eventos geram empregos para
a região, obtendo uma vantagem financeira atrativa.
Nesse sentido, conforme dados disponibilizados pela Associação Brasileira da
Vaquejada – ABVAQ, a maior vaquejada do país ocorreu em Serrinha/BA, entre os dias 04
e 09 de setembro de 2019, no Parque Maria do Carmo, em que a premiação totalizava o
montante de R$ 280.000,00 (duzentos e oitenta mil reais), corroborando com o argumento
acerca do atrativo financeiro que essas atividades representam.19

16
REGAN, Tom. Jaulas Vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006. p.
187.
17
SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ecológico: constituição,
direitos fundamentais e proteção da natureza. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 136.
18
Ibidem, p. 137.
19
Resultados. Associação Brasileira da Vaquejada, 2019. Disponível em:
<https://www.abvaq.com.br/resultados>. Acesso em: 30 set. 2020.
842

No que tange a vantagem econômica oriunda dos rodeios, a tradicional Festa do Peão
de Barretos/SP, que ocorreu entre os dias 15 e 25 de agosto de 2019, recebeu 800 mil pessoas
e movimentou mais de R$ 900 milhões de reais, distribuídos entre os mais diversos setores
vinculados ao evento, como é o caso da hotelaria, que recebeu 53,4% do público.20
Em razão da pandemia que assola o país, a Festa do Peão de Barretos/SP foi
cancelada para o ano de 2020, contudo, isso não impediu que a programação para 2021 fosse
definida para os dias 19 a 29 de agosto de 2021, contando com grandes nomes da música
sertaneja, de modo que os ingressos para os shows musicais podem alcançar o valor de até
R$ 890,00 (oitocentos e noventa reais) por noite.21
Ainda sobre rodeios, o tradicional Rodeio de Jaguariúna/SP, que ocorrerá entre os
dias 17 e 25 de setembro de 2021, conta com ingressos de até R$ 399,00 (trezentos e noventa
e nove reais) por noite, incluindo diversas atrações musicais para cada dia do evento.22
Oportuno referir que as vaquejadas, rodeios e exposições de animais somam uma
quantia significativa para a economia das regiões que proporcionam os eventos, tanto para
os organizadores, quanto para as redes hoteleiras e de transportes que são necessárias para a
acomodação e mobilidade dos participantes e visitantes.
Contudo, a atividade principal dos eventos organizados demonstra que a maior fonte
de renda advém de outras diversas atrações complementares, como os shows musicais,
contrariando o fundamento de que os rodeios e vaquejadas, por si só, movimentam a
economia.
Assim como a percepção biocêntrica da Constituição Federal de 1988 possibilitou a
extensão do conceito de dignidade para além da pessoa humana, as compreensões jurídico-
filosóficas do Direito Animal junto de laudos veterinários revelam a existência de danos
físicos e emocionais aos animais submetidos à prática da vaquejada, afrontando a norma
constitucional disposta no artigo 225, §1º, VII , razão pela qual foi declarada inconstitucional
pelo Supremo Tribunal Federal no recente julgamento da ADI n.º 4.983/CE, conteúdo que
será abordado no próximo tópico.

20
Festa do Peão de Barretos/SP movimento R$ 900 milhões, diz pesquisa da Secretaria de Turismo. G1
Ribeirão Preto e Franca. 30 de agosto de 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-
franca/festa-do-peao-de-barretos/2019/noticia/2019/08/30/festa-do-peao-de-barretos-sp-movimentou-r-900-
milhoes-diz-pesquisa-da-secretaria-de-turismo.ghtml>. Acesso em: 30 set. 2020.
21
65ª Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos 2021. TotalAcesso. Disponível em:
<https://cart.totalacesso.com/65festadopeaodeboiadeirodebarretos2021>. Acesso em: 30 set. 2020.
22
Ingressos. Jaguariúna Rodeo Festival 2021. Disponível em:
<https://www.jaguariunarodeofestival.com/#setores>. Acesso em: 30 set. 2020.
843

3. A LEI N.º 13.364/16 E A EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 96/17: O EFEITO


BACKLASH

O estado do Ceará, marcado pela vaquejada como âmago do seu histórico cultural,
aprovou, em 08 de janeiro de 2013, a Lei n.º 15.299/1323 a qual passou a regular a prática da
vaquejada como uma atividade desportiva e cultural que, posteriormente, foi objeto de
controvérsia na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n.º 4.983/CE24 ajuizada em 18
de junho de 2013 perante o Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, quando do ajuizamento da ADI n.º 4.983/CE, o Procurador Geral da
República alegava que os animais utilizados na vaquejada eram enclausurados e violentados
antes do espetáculo, tudo no intuito de garantir o desempenho do evento, visto que, em razão
das lesões e torturas que eram submetidos, os animais saiam desnorteados na arena,
evidenciando seu pavor e instituto de fuga da dor.25
Ainda, a petição inicial abordou questões técnicas da área de medicina veterinária
mediante apresentação de laudos veterinários que comprovavam os graves danos físicos e
psicológicos dos animais utilizados nas vaquejadas, como é o caso das luxações de vértebras,
rupturas de ligamentos e de vasos sanguíneos.26
Para embasar sua fundamentação jurídica acerca da inconstitucionalidade da Lei n.º
15.299/13, o Procurador Geral da República utilizou alguns precedentes julgados pelo
Supremo Tribunal Federal, como a ADI n.º 1.856/RJ27 e a ADI n.º 2.514/SC28 que declararam

23
CEARÁ. Lei n.º 15.299, de 08 de agosto de 2013. Disponível em:
<https://www.al.ce.gov.br/legislativo/legislacao5/leis2013/15299.htm>. Acesso em: 03 out. 2020.
24
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.983/CE. Requerente:
Procurador-Geral da República. Intimados: Governador do estado do Ceará e Assembleia Legislativa do estado
do Ceará. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em:
<http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4425243>. Acesso em: 03 out. 2020.
25
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.983/CE. Requerente:
Procurador-Geral da República. Intimados: Governador do estado do Ceará e Assembleia Legislativa do estado
do Ceará. Relator: Ministro Marco Aurélio. Petição Inicial. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?s
eqobjetoincidente=4425243>. Acesso em: 03 out. 2020.
26
Ibidem.
27
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.856/RJ. Requerente:
Procurador-Geral da República. Intimados: Governador do estado do Rio de Janeiro e Assembleia Legislativa
do estado do Rio de Janeiro. Relator: Ministro Celso de Mello. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=180541>. Acesso em: 03 out. 2020.
28
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.514/SC. Requerente:
Procurador-Geral da República. Intimado: Assembleia Legislativa do estado de Santa Catarina. Relator:
Ministro Eros Grau. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=65127&caixaBusca=N>. Acesso em:
03 out. 2020.
844

a inconstitucionalidade da prática da rinha de galo e o RExt n.º 153.531/SC29 que declarou


a inconstitucionalidade da farra do boi, uma vez que essas condutas violam a regra
constitucional da vedação à crueldade, constante no artigo 225, §1º, VII da Constituição
Federal de 1988.
Assim, no dia 06 de outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal proferiu acórdão
relativo à ADI n.º 4.983/CE, decidindo pela inconstitucionalidade da Lei n.º 15.299/15 do
estado do Ceará e, portanto, considerando a vaquejada uma prática inconstitucional.
Para tanto, o Ministro Relator Marco Aurélio revela a perspectiva do Supremo
Tribunal Federal em interpretar, de forma mais favorável, o direito à proteção do meio
ambiente quando em aparente conflito com o direito à cultura, visto que a crueldade existente
na prática da vaquejada não tolera a permanência ou manutenção de manifestações culturais
que afrontem a regra constitucional de vedação à crueldade animal, votando pela
inconstitucionalidade da Lei n.º 15.299/13. Assim explica:

A atividade de perseguir animal que está em movimento, em alta velocidade,


puxá-lo pelo rabo e derrubá-lo, sem os quais não mereceria o rótulo de vaquejada,
configura maus-tratos. Inexiste a mínima possibilidade de o touro não sofrer
violência física e mental quando submetido a esse tratamento. A par de
questões morais relacionadas ao entretenimento às custas do sofrimento dos
animais, bem mais sérias se comparadas às que envolvem experiências
científicas e médicas, a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a
prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos
fundamentais da Carta de 1988. O sentido da expressão “crueldade” constante
da parte final do inciso VII do § 1º do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem
sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a
prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana
autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito de composição dos interesses
fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão de
proteção ao meio ambiente. Ante o exposto, julgo procedente o pedido
formulado na inicial para declarar inconstitucional a Lei nº 15.299, de 8 de janeiro
de 2013, do Estado do Ceará.30(grifo nosso)

Nesse sentido, o Ministro Luís Roberto Barroso asseverou a autonomia do Direito


Animal, por compreender que a vedação à crueldade animal não se finda apenas na proteção

29
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 153.531/SC. Recorrente: APANDE –
Associação Amigos de Petropolis – Patrimônio, Proteção aos animais, Defesa da Ecologia e outros. Recorrido:
estado de Santa Catarina. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em:
<http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfJurisprudencia_pt_br&id
Conteudo=185142&modo=cms>. Acesso em: 03 out. 2020.
30
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.983/CE. Requerente:
Procurador-Geral da República. Intimados: Governador do estado do Ceará e Assembleia Legislativa do estado
do Ceará. Relator: Ministro Marco Aurélio. p. 13. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?s
eqobjetoincidente=4425243>. Acesso em: 03 out. 2020.
845

ao meio ambiente como também reconhece o seu valor independente, assegurando, de forma
inédita, o reconhecimento do Direito Animal como norma autônoma no direito brasileiro,
decorrente da interpretação do artigo 225, §1º, VII da Constituição Federal. Vejamos:

Antes de analisar as questões constitucionais envolvidas no caso, é oportuno abrir


um tópico para reflexão acerca das profícuas discussões que têm-se desenvolvido
no âmbito da ética animal. Nesse domínio, antecipe-se desde já, tem-se evoluído
para entender que a vedação da crueldade contra animais, referida no art. 225, §
1º, VII da Constituição, já não se limita à proteção do meio-ambiente ou mesmo
apenas a preservar a função ecológica das espécies. Em outras palavras:
protegem-se os animais contra a crueldade não apenas como uma função da
tutela de outros bens jurídicos, mas como um valor autônomo. 31(grifo nosso)

A Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.983/CE, que teve como Relator o


Ministro Celso de Mello, foi julgada procedente por maioria de votos, seguindo o voto do
relator os Ministros Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e a presidente
do Supremo Tribunal Federal, Carmén Lúcia, ficando vencidos os votos dos Ministros Dias
Toffoli, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Luiz Fux e Teoria Zawascki.32
No entanto, no dia 29 de novembro de 2016 e, portanto, mesmo ano em que o
Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a prática da vaquejada, o Congresso
Nacional, em evidente retaliação à decisão proferida, aprovou a Lei n.º 13.364/2016, a qual
é responsável por reconhecer o rodeio, a vaquejada e outras expressões artísticos-culturais
como patrimônio cultural imaterial brasileiro, conforme artigo 1º e 3º da referida lei.33
Nesse sentido, cumpre mencionar que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) é o único órgão competente e legítimo para atribuir a condição de
patrimônio histórico imaterial para determinada manifestação cultural, mediante análise de
seu Conselho Consultivo de Patrimônio Cultural, conforme dispõe o artigo 3º, 4º e 5º do
Decreto nº 3.551/00.34

31
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.983/CE. Requerente:
Procurador-Geral da República. Intimados: Governador do estado do Ceará e Assembleia Legislativa do estado
do Ceará. Relator: Ministro Marco Aurélio. p. 34. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?s
eqobjetoincidente=4425243>. Acesso em: 03 out. 2020.
32
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF julga inconstitucional lei cearense que regulamenta
vaquejada, de 06 de outubro de 2016. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326838&caixaBusca=N>. Acesso em:
03 out. 2020.
33
BRASIL. Lei n.º 13.364, de 29 de novembro de 2016. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13364.htm>. Acesso em: 03 out. 2020.
34
BRASIL. Decreto nº 3.551, de 04 de agosto de 2000. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3551.htm>. Acesso em: 03 out. 2020.
846

Contudo, a Presidente do IPHAN à época, Kátia Santos Bógea, encaminhou um


ofício ao Senado Federal em que se manifesta contrária à Lei n.º 13.364/2016, bem como
contrária aos projetos que versem sobre vaquejada e/ou rodeio, declarando ainda que os
efeitos práticos da referida lei são nulos, visto que além das normas serem inconstitucionais,
a classificação como “Patrimônio Cultural” só pode ser conferida pelo IPHAN, visto tratar-
se de competência exclusiva deste instituto.35
Assim, ainda sob clima de boicote e repressão à decisão judicial do Supremo Tribunal
Federal, em 06 de junho de 2017, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional
n.º 96/17, a qual adicionou o sétimo parágrafo à Constituição Federal de 1988 com a seguinte
redação:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserva-lo para as presentes e
futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem
em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os
animais a crueldade.
§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não
se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que
sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição
Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do
patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica
que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. 36(grifo nosso)

Portanto, a partir da Emenda Constitucional n.º 96/17, não se consideram cruéis as


práticas desportivas que utilizam de animais, como rodeios e vaquejadas, desde que sejam
classificadas como manifestação cultural e devidamente registradas como bem de natureza
imaterial, situação que depreende-se da análise da Lei n.º 13.364/16 que, antes mesmo da
aprovação da Emenda Constitucional n.º 96/17, catalogou a vaquejada como manifestação
cultural e bem de natureza imaterial.
A reação do Congresso Nacional, mediante a elaboração e aprovação da Lei n.º
13.364/16 e da Emenda Constitucional n.º 96/17, justamente após a decisão do Supremo
Tribunal Federal na ADI n.º 4.983/CE, demonstra o completo descompasso entre os

35
BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda Constitucional n.º 50/16. Ofício n.º 852/2016, do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de 08 de novembro de 2016. Disponível em:
<https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4609625&ts=1593932945789&disposition=inline>.
Acesso em: 03 out. 2020.
36
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de
outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 03 out. 2020.
847

interesses políticos dos representantes legislativos e os julgamentos proferidos pela mais alta
Corte de justiça do país, resultando em um fenômeno conhecido como efeito backlash,
Segundo George Marmelstein, o efeito backlash é “um contra-ataque político ao
resultado de uma deliberação judicial” em que não se trata de um ataque ao conteúdo jurídico
explicitado na decisão judicial mas à perspectiva ideológica que normalmente encontra-se
por detrás da temática em discussão, de modo que, no contexto constitucional
contemporâneo, percebe-se a incidência de uma jurisdição constitucional de vanguarda,
contrária ao sistema político mais conservador. Essa postura jurisdicional desperta a
insatisfação dos interesses políticos envolvidos, resultando no retrocesso legal como efeito
colateral.37
Nesse sentido, o julgamento da ADI n.º 4.983/CE, o qual foi diametralmente oposto
aos interesses políticos que fomentam as grandes exposições agropecuárias, rodeios e
vaquejadas, revelou sua tendência pioneira diante do aperfeiçoamento das compreensões
constitucionais que garantem os direitos fundamentais, retomando medidas progressistas
para que retrocessos ambientais não ocorram, haja vista que o Supremo Tribunal Federal
permanece afixado na prevalência do Direito Animal e Ambiental perante casos que
decorram do direito à cultura que envolvam animais em suas práticas.
O ambiente político resultante da aprovação da Lei n.º 13.364/16 e a Emenda
Constitucional n.º 96/17 evidenciou o retrocesso em matéria ambiental assentado na
Constituição Federal desde sua promulgação em 1988, momento em que compreende os
animais não humanos como seres tutelados pelo Estado, definindo a proibição de atos cruéis
cometidos contra esses.
Inclusive, cumpre ressaltar que a autonomia do Direito Animal, derivado do rol de
incisos que constitui o artigo 225 da Carta Magna, o qual dispõe sobre o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, constitui direito fundamental de ordem individual,
social e intergeracional e, portanto, possui envergadura de cláusula pétrea, nos termos do
artigo 60, §4º, IV, razão pela qual impensável sua alteração por meio do poder constituinte

37
MARMELSTEIN, George. Efeito backlash da Jurisdição Constitucional : reações políticas ao ativismo
judicial. Terceiro Seminário Ítalo-Brasileiro, 2016, Bolonha/IT. p. 02-04. Disponível em:
<https://www.cjf.jus.br/caju/Efeito.Backlash.Jurisdicao.Constitucional_1.pdf>. Acesso em: 03 out. 2020.
848

reformador, visto que somente o poder constituinte originário, por meio de uma nova
Constituição, poderia alterar matéria de direito e garantia individual.38
Isso porque a perpetuidade de determinadas cláusulas constitucionais revela o núcleo
essencial do projeto do poder constituinte originário e, portanto, expressa a vontade do povo,
que resulta por limitar a vontade dos representantes do povo no exercício do poder
constituído, de modo que o núcleo deva ser preservado perante qualquer modificação
institucionalizada pelo poder constituinte derivado, uma vez que este é juridicamente inferior
ao poder originário.39
Diante do cenário proporcionado pela movimentação política contrária à
interpretação constitucional promovida pelo Supremo Tribunal Federal, o Fórum Nacional
de Proteção e Defesa Animal ajuizou, no dia 13 de junho de 2017, a ADI n.º 5.728,
requerendo a declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 96/17,
arguindo a violação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, na modalidade
da proibição da submissão de animais a tratamentos cruéis, constante no artigo 225, §1º, VII
da Constituição Federal que, por tratar de um direito fundamental, encontra-se inserido como
cláusula pétrea, motivo pelo qual não poderia ter sido modificado pelo poder constituinte
derivado.40
Além disso, o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal constata que a crueldade
e o sofrimento animal não deixam de existir em razão de uma norma que defina determinadas
práticas como culturais, autorizando a utilização de animais, razão pela qual requereu
medida cautelar para suspender a eficácia da Emenda Constitucional n.º 96/17 que, todavia,
encontra-se pendente de julgamento sem data prevista para votação.41
Nesse sentido, o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, ajuizou a ADI n.º
5.772 no intuito de declarar a inconstitucionalidade da Lei n.º 13.364/16 e da Emenda
Constitucional n.º 96/17, alegando que a crueldade, intrínseca à prática da vaquejada,

38
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de
outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 03 out. 2020.
39
MENDES, Gilmar Ferreira; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 9.ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 178/179.
40
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5.728. Requerente: Fórum
Nacional de Proteção e Defesa Nacional. Intimado: Mesa da Câmara dos Deputados. Relator: Ministro Dias
Toffoli. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?s
eqobjetoincidente=5208901>. Acesso em: 03 out. 2020.
41
Ibidem, p. 10-19.
849

permanecerá, seja qual for o tratamento jurídico a ela atribuído, de modo que rotula-la como
manifestação cultural através de uma norma jurídica não ocultará sua brutalidade. Assim
como na ADI n.º 5.728, a ADI n.º 5.772 também aguarda julgamento.42
Por fim, necessário recordar o julgamento da ADI n.º 939-7, a qual declarou a
inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 03/93 e da Lei Complementar n.º 77/93
que instituíam o Imposto Provisório sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de
Créditos e Direitos de Natureza Financeira – IPMF, momento em que o Supremo Tribunal
se manifesta para afirmar que uma emenda, oriunda do poder constituinte derivado que
resulte em violação ao poder constituinte originário, poderá ser declarada inconstitucional
em razão da função precípua daquele tribunal de garantir a salvaguarda da Constituição
Federal, nos termos do seu artigo 102, I, a.43
Dessa forma, havendo afastamento, por parte do poder derivado, do núcleo essencial
dos princípios que dão lógica à Constituição, perceber-se-á a ocorrência de um desvio de
poder, uma vez que o poder derivado deve adequar a Constituição mantendo sua identidade
perante as novas conjunturas.44
Assim, como se depreende do caso prático apresentado, não poderia o poder
constituinte derivado, exercido pelo Congresso Nacional na elaboração da Emenda
Constitucional n.º 96 e da Lei n.º 13.364/17, violar o poder constituinte originário que
determina a própria identidade da Constituição Federal de 1988, calcada na preservação do
meio ambiente ecologicamente equilibrado e na proteção dos animais não humanos que,
reitera-se, tem firmado seu compromisso sempre que necessária a interpretação
constitucional acerca da crueldade existente em práticas culturais que envolvam animais.
Portanto, inadmissível que a decisão de inconstitucionalidade da vaquejada,
proferida pelo Supremo Tribunal Federal, seja modificada por instrumentos legislativos que
nem mesmo possuem estatura para tanto, invadindo a competência que cabe,

42
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Procurador-geral questiona normas que autorizam a prática da
vaquejada no país, 08 de setembro de 2017. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=355108>. Acesso em: 03 out. 2020.
43
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 939-7. Requerente:
Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio. Requeridos: Presidente da República e Congresso
Nacional. Relator: Ministro Sydney Sanches. Disponível
em:<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266590>. Acesso em: 03 out.
2020.
44
MENDES, Gilmar Ferreira; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 9.ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 181.
850

exclusivamente, ao poder constituinte originário, por tratar-se de cláusula pétrea oriunda do


direito fundamental à proteção do meio ambiente e dos animais não humanos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou demonstrar a crueldade intrínseca à prática da vaquejada


que, constituindo uma atividade comum e lucrativa para a região norte, assim como os
rodeios em toda a extensão territorial, revelaram a existência de danos físicos e emocionais
irreversíveis aos animais submetidos à prática, haja vista sua violência intrínseca constatada
em laudos veterinários, verificando um total incoerência com a disposição constitucional de
vedação à crueldade animal, disposta no artigo 225, §1º, VII da Constituição Federal de
1988.
Para tanto, através das concepções da filosofia do Direito Animal, demonstrou-se que
a capacidade de sentir dor não é exclusivamente humana, o que acabou por motivar a
extensão do conceito de dignidade para além da esfera humana, atribuindo o dever de
proteção aos interesses dos animais não humanos que, conforme demonstrado, consiste na
tutela do direito à vida, à liberdade e à integridade física.
E nesse seguimento foi a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n.º 4.983/CE,
a qual declarou a inconstitucionalidade da prática da vaquejada, confirmando o
comprometimento com a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado que, na
presente demanda, versava sobre a proteção do animal não humano frente às práticas
culturais que os submetessem à crueldade.
Considerando que a decisão judicial não atendia aos interesses políticos daqueles
relacionados aos setores que fomentam a atividade da agropecuária e dos eventos relativos
aos rodeios e vaquejadas, o Congresso Nacional reagiu, contrariando o veredito do Supremo
Tribunal Federal e proporcionando o verdadeiro efeito backlash quando da aprovação da Lei
n.º 13.364/16 e da Emenda Constitucional n.º 96/17, as quais abordavam conteúdo
permissivo e regulatório da vaquejada, representando um grave retrocesso em matéria de
Direito Ambiental e Animal que constitui um direito fundamental de tríplice dimensão desde
a Constituição Federal de 1988.
No entanto, cumpre salientar que o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado e suas modalidades, como é o caso da vedação de crueldade animal constante no
artigo 225, §1º, VII da Constituição Federal, constitui um direito fundamental de lógica
851

individual, coletiva e intergeracional e, portanto, está categorizada como cláusula pétrea que,
por sua vez, só poderá ser modificada pelo poder constituinte originário e jamais pelo poder
constituinte derivado, como ocorreu no caso em tela.
Tratando-se de direito fundamental privilegiado por cláusula pétrea, qualquer
modificação constitucional deverá ser realizada pelo poder constituinte originário, nos
termos do artigo 60, §4º, IV da Constituição Federal, de modo que, havendo usurpação de
competência por parte do poder constituinte derivado, a norma resultante de intrusão deverá
ser declarada inconstitucional.
Portanto, ainda que haja autorização constitucional para a prática da vaquejada desde
a aprovação da Lei n.º 13.364/16 e da Emenda Constitucional n.º 96/17, cumpre ressaltar
que sua permissão não reduz a crueldade intrínseca dessa prática, tampouco invalida as
comprovações de lesões físicas e emocionais causadas aos animais, motivo pelo qual
advoga-se pela declaração de inconstitucionalidade dessas normas, uma vez que refletem o
grave retrocesso de princípios constitucionais basilares, assim como revela a ingerência por
parte do poder derivado, atuando como se poder originário fosse, situação inadmissível pela
Constituição Federal que resultou, inclusive, no ajuizamento das ADI n.º 5.772 e ADI n.º
5.728.

REFERÊNCIAS

65ª Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos 2021. TotalAcesso. Disponível em:


<https://cart.totalacesso.com/65festadopeaodeboiadeirodebarretos2021>. Acesso em: 30
set. 2020.

ALMEIDA E SOUZA, Mariângela Freitas de; PINHEIRO, William Ribeiro. Parecer


técnico sobre rodeios e vaquejadas. Disponível em:
>http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/9/docs/rodeio_-_parecer_geral_em_texto.pdf>.
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852

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Requerente: Procurador-Geral da República. Intimados: Governador do estado do Rio de
Janeiro e Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro. Relator: Ministro Celso de
Mello. Disponível em:
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Requerente: Procurador-Geral da República. Intimado: Assembleia Legislativa do estado de
Santa Catarina. Relator: Ministro Eros Grau. Disponível em:
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5.728.


Requerente: Fórum Nacional de Proteção e Defesa Nacional. Intimado: Mesa da Câmara dos
Deputados. Relator: Ministro Dias Toffoli. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProces
soEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5208901>. Acesso em: 03 out. 2020.

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Requerente: Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio. Requeridos:
Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Sydney Sanches.
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APANDE – Associação Amigos de Petropolis – Patrimônio, Proteção aos animais, Defesa
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CEARÁ. Lei n.º 15.299, de 08 de agosto de 2013. Disponível em:


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855

HOMO SAPIENS X HOMO TECNOLOGICUS: A QUEM


PERTENCEM AS PROFISSÕES DO FUTURO?

Camile Serraggio Girelli1


Priscila Krieger2
INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende analisar de que forma o ser humano vem se adaptando às
transformações antrópicas que ocorreram desde a Idade da Pedra até os dias
contemporâneos. A análise será dividida em quatro capítulos, sendo o primeiro deles
denominado: Da Idade da Pedra à Era da Automação das Atividades Repetitivas; o segundo:
Automação das Atividades Intelectuais e o papel das Universidades; o terceiro: Elementos
que diferenciam Seres Humanos e Seres Tecnológicos; e, por fim, a conclusão e quarto
capítulo: Análise do Desemprego e da Desigualdade gerados (ou não) pela Automação.
A escolha do tema se fixa na base em que, durante o transcurso do semestre, fora
abordada a temática da substituição das atividades repetitivas e intelectuais humanas pelas
atividades de máquinas e robôs e, especificamente, como as profissões jurídicas seriam no
futuro, quais delas ainda seriam realizadas por seres humanos, e quais seriam realizadas por
máquinas. Discutiu-se, também o uso de programas de computação para a realização de
peças processuais básicas e outras atividades simples do dia a dia do advogado. Discutiu-se,
ainda, a eficácia do Projeto Victor, já em pleno funcionamento na mais alta Corte3 do país.
No presente artigo pretendeu-se analisar, sem ter a pretensão de exaurir o tema, por
óbvio, quais as características humanas que são incapazes de ser atingidas pelo mais

1
Doutoranda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Mestre em Direito pela
Universidade de Passo Fundo – UPF. Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela Universidade
Anhanguera-Uniderp. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo – UPF.
Advogada inscrita na OAB/RS 81.921. Endereço eletrônico: camilegirelli@outlook.com.
2
Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduada em Ciências Jurídicas e
Sociais pela Universidade da Região da Campanha – URCAMP. Advogada inscrita na OAB/RS 88.166.
3
“A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, anunciou ao final da sessão
plenária desta quinta-feira (30) que já está em funcionamento o Projeto VICTOR, que utiliza Inteligência
Artificial (IA) para aumentar a eficiência e a velocidade de avaliação judicial dos processos que chegam ao
tribunal. Desenvolvido em parceria com a Universidade de Brasília – UnB, o projeto é o mais relevante no
âmbito acadêmico brasileiro relacionado à aplicação de IA no Direito.” SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
Ministra Cármen Lúcia anuncia início de funcionamento do Projeto Victor, de inteligência artificial. Disponível
em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=388443. Acesso em fevereiro de
2020.
856

sofisticado algoritmo e que, assim, assegurariam a vitaliciedade de determinadas profissões


e, analisou, também, quais as probabilidades de automatização de algumas profissões com a
final análise de índices de desemprego e de desigualdade e uma abordagem crítica a respeito
da real vinculação desses dados a nível mundial com o avanço das tecnologias.
Para uma melhor abordagem da temática, fora adotada a metodologia sistêmica4, a
qual tem como marca a construção do conhecimento através da análise multidisciplinar para
se chegar à conclusão. É a partir dessa metodologia de estudo que foi confeccionado o
presente artigo, utilizando-se de pesquisas bibliográficas em diversos autores, de doutrinas
jurídicas e não jurídicas que se debruçam em torno do avanço tecnológico no mercado de
trabalho.

1. DA IDADE DA PEDRA À ERA DA AUTOMAÇÃO DAS ATIVIDADES


REPETITIVAS

Na sociedade contemporânea é adotado o conceito de evolução decorrente dos


estudos do naturalista, geólogo e biólogo britânico Charles Robert Darwin (1809-1882),
publicado em sua obra prima denominada “A origem das Espécies por Meio da Seleção
Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida”5, no ano de 1859, a qual
apresenta à comunidade acadêmica a conclusão de seus estudo resultantes da combinação
de três teorias.

Darwin inicia suas pesquisas com a teoria da variabilidade, onde analisa uma região
específica em que todos os seres semelhantes, ou seja, da mesma espécie, mas com grande
variabilidade (multiplicidade) genética, possuem a capacidade de reprodução – ser da
espécie A que se reproduz com outro ser da espécie A –, e geram um descendente.

4
O Método Sistêmico, considerando o Conceito Operacional simples e objetivo antes apresentado, pode,
segundo alguns, ser utilizado em qualquer dos tipos de produto acadêmico a gerar em Pesquisa Científica,
desde que o investigador tenha as fontes seguras disponíveis e domine todo o fenômeno que vai descrever. (...)
De outra parte, preciso advertir ao meu leitor que o “calcanhar de Aquiles” do uso deste Método na Pesquisa
Jurídica, na maior parte das vezes, encontra-se no elemento paradigmático ambiente, porque a sua precisa
descrição implicará necessariamente uma antecedente e cuidadosa operação investigatória multidisciplinar.
Nesta, dependendo do Tema/Referente, o Investigador terá recorrer à Sociologia e/ou à História e/ou à
Psicologia Social e/ou à Economia para desenhar claramente o ambiente do fenômeno jurídico que está
investigando. Portanto, se o pesquisador tem disponíveis o tempo, a orientação e as fontes pertinentes, poderá
lograr êxito neste mister. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica. Teoria e Prática. 14 ed.
rev. atual. e amp. Florianópolis: EMais, 2018, p. 109-112.
5
DARWIN, Charles Robert. On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation
of Favoured Races in the Struggle for Life. New York: D. Appleton. And c,1859.
857

O ser gerado traz consigo a carga genética de ambos os genitores de forma


aprimorada, trazendo melhores condições de adaptação às influências externas. Os seres
mais fracos, aqueles que não sobrevivem aos predadores, às intempéries do tempo, às
disputas sociais, portanto denominados pelo autor como os seres menos adaptados, acabam
por ser eliminados, extintos. Baseado nisso, Charles desenvolve sua segunda teoria, a teoria
da adaptação, a qual identifica que a morfologia e a fisiologia de cada ser encontram-se em
harmonia com as condições do meio sobre seus metabolismos. Assim, os seres mais
adaptados vão sobrevivendo por mais tempo e vão se reproduzindo, ao contrário dos menos
adaptados que acabam por ser extintos.
Com a combinação dessas suas teorias, o autor passa a observar que há a
predominância de espécies em determinada área estudada e passa, assim, a confirmar que
algumas espécies são extintas e outras sobrevivem e nessa simbiose, observa que os
sobreviventes são os melhores adaptados, passando, portanto, por um processo de seleção
natural, promovendo, à longo e gradativo prazo, o melhoramento genético daquela espécie,
daquela variabilidade.
Há que se ressaltar, também, que Darwin somou às suas pesquisas a observação de
que a humanidade sempre esteve sob ações antrópica, que nada mais são do que “ações
exercidas pelo homem”6, ou seja a influência do homem no meio, podendo ser tanto positivas
como negativas. É possível citar como exemplo de ações antrópicas: o avanço da
urbanização, a industrialização, a degradação ambiental, a alteração das cadeias alimentares
através da caça e pesca predatória, entre outros. Com isso conclui o autor que, não apenas as
influências naturais acabam por causar a seleção natural das espécies, mas, também, a ação
do próprio homem influencia sua própria sobrevivência, a sobrevivência de sua espécie.
Uma das ações humanas que permitiu a evolução da humanidade foi a substituição
do trabalho humano por ferramentas, ou seja, o homem, desde a Idade da Pedra, há
aproximadamente 2,57 milhões de anos, já fazia uso das pedras para confeccionar armas e
ferramentas a fim de otimizar seu trabalho diário. Com o passar dos anos, constantes foram
as evoluções da sociedade, como, por exemplo, há aproximadamente há 300 mil anos atrás

6
SOUSA, Rafaela. Ações antrópicas no meio ambiente. Brasil Escola. Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/acoes-antropicas-no-meio-ambiente.htm. Acesso janeiro de 2020.
7
Muito antes de haver história, já havia seres humanos. Animais bastante similares aos humanos modernos
surgiram por volta de 2,5 milhões de anos atrás. HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da
humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 26 ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017, p. 11.
858

o homem descobriu o fogo; há 70 mil anos atrás ocorreu a Revolução Cognitiva; há 30 mil
anos atrás ocorreu a extinção dos neandertais; há 12 mil anos atrás houve a domesticação de
plantas e animais e a criação de assentamentos permanentes; há 5 mil anos atrás a criação da
escrita e do dinheiro; 2,5 mil a invenção da moeda como dinheiro universal; há 500 anos
atrás houve a Revolução Científica; há 200 anos atrás houve a Revolução Industrial;
atualmente vive-se em tempos de big data, internet das coisas, transcendência dos limites do
planeta Terra, inteligência artificial, banco de dados, entre tantas outras questões
contemporâneas que poder-se-ia constatar.
Ocorre que essas evoluções não se deram de forma linear, harmônica ou
sincronizada, mas sim, elas vêm acompanhadas de quebras de paradigmas, grandes crises,
grandes depressões, num ciclo oscilante denominado pelo economista e cientista político
austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) de “processo de destruição criadora”8, onde
explica:
O aço ilustra o mesmo processo de mutação industrial - se é que posso usar esse
termo biológico - que revoluciona incessantemente a estrutura econômica a partir
de dentro, destruindo incessantemente a antiga, criando incessantemente uma
nova. Esse processo de destruição criativa é o fato essencial sobre o capitalismo.
É nisso que o capitalismo consiste e em que toda preocupação capitalista deve
viver.9

Esse constante processo de destruição dos paradigmas antigos que provocam a


criação de novos paradigmas é o que permite a constante evolução da sociedade. Importante
ressaltar que, de acordo com o professor estadunidense de história Edward Mcnall Burns
(1897-1972) em sua obra “História da Civilização Ocidental”10, a história é dividida em sete
momentos, sendo eles: 1) A aurora da história – considerado pelo autor desde a Idade da
Pedra até as Culturas Higita e Egéia; 2) As civilizações clássicas – Grécia e Roma; 3) As
novas civilizações do começo da Idade Média – consideradas até as civilizações bizantina e
sarracena; 4) A segunda faze da Idade Média e a Renascença; 5) A civilização ocidental
moderna – mercantilismo, absolutismo e racionalismo; 6) A civilização ocidental moderna

8
SHUMPETER, Joseph A. Capitalism, socialismo & democracy. London and New York: Routledge, 2003,
p. 81.
9
“Steel illustrate the same process of industrial mutation—if I may use that biological term—that incessantly
revolutionizes the economic structure from within, incessantly destroying the old one, incessantly creating a
new one. This process of Creative Destruction is the essential fact about capitalism. It is what capitalism
consists in and what every capitalist concern has got to live in.” SHUMPETER, Joseph A. Capitalism,
socialismo & democracy. London and New York: Routledge, 2003, p. 83.
10
BURNS, Edward McNail. História da Civilização Ocidental. Do Homem das Cavernas até a Bomba
Atômica. O drama da raça humana. Tradução de Lourival Gomes Machado, Lourdes Santos Machado e Leonel
Vallandro. 3. ed. Volumes I e II Porto Alegre: Editora Globo, 1974.
859

– democracia, nacionalismo, industrialismo; e 7) A civilização ocidental moderna –


nacionalismo, democracia e ditadura. Por se tratar de um autor falecido no ano de 1972 sua
obra analisa e considera a cultura contemporânea até o ano de 1953.
Vittorio Frosini11 foca na separação por fases da comunicação, sendo a primeira
marcada pela comunicação oral dos povos primitivos; a segunda com o surgimento através
do alfabeto, que permite a fixação do conhecimento, e, portanto, a transmissão deste para as
futuras gerações; a terceira fica a encargo da imprensa, que possibilita que a informação seja
difundida rapidamente para um grande número de pessoas; e, por fim, a quarta ocorre com
os meios de comunicação em massa, como o rádio, o cinema, a televisão e os computadores.
Já se analisarmos a história a partir da abordagem mais contemporânea do professor
israelense de história Yuval Noah Harari (1976), foram três importantes revoluções que
definiram o curso da sociedade contemporânea: “A Revolução Cognitiva deu início à
história, há cerca de 70 mil anos. A revolução Agrícola a acelerou, por volta de 12 mil anos
atrás. A Revolução Científica, que começou há apenas 500 anos, pode muito bem colocar
um fim à história e dar início a algo diferente.”12
Não obstante a divergência quanto aos diferentes marcos da história, ambos os
estudiosos consideram que o grande salto e a grande crise – processo de destruição criadora
– da civilização contemporânea teve seu marco com o advento da Revolução Industrial.
Segundo Burns13, A Revolução Industrial não só ampliou ainda mais a esfera dos grandes
empreendimentos comerciais gerados pela Revolução Comercial, mas, também, e
principalmente, se estendeu aos níveis de produção.

Tanto quanto é possível reduzi-la a uma fórmula sintética, pode-se dizer que a
Revolução Industrial compreendeu: 1) a mecanização da indústria e da agricultura;
2) a aplicação da fôrça motriz à indústria; 3) o desenvolvimento do sistema fabril;
4) um sensacional aceleramento dos transportes e das comunicações; e 5) um
considerável acréscimo do contrôle capitalista sobre quase todos os ramos de
atividade econômica.14 (grafia de oridem)

11
FROSINI, Vittorio. Cibernética, Derecho y Sociedad. Madrid: Tecnos, 1982, p. 173.
12
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 26
ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017, p. 11.
13
BURNS, Edward McNail. História da Civilização Ocidental. Do Homem das Cavernas até a Bomba
Atômica. O drama da raça humana. Tradução de Lourival Gomes Machado, Lourdes Santos Machado e Leonel
Vallandro. 3. ed. Volumes II Porto Alegre: Editora Globo, 1974, p. 661.
14
BURNS, Edward McNail. História da Civilização Ocidental. Do Homem das Cavernas até a Bomba
Atômica. O drama da raça humana. Tradução de Lourival Gomes Machado, Lourdes Santos Machado e Leonel
Vallandro. 3. ed. Volumes II Porto Alegre: Editora Globo, 1974, p. 661.
860

Contudo, não apenas de benefícios se faz uma mudança paradigmática, como bem
afirmou Schumpeter15 no conceito supra analisado (o “processo de destruição criadora”),
como os decorrentes da Revolução Industrial que criou todos os benefícios citados por Burns
– e vários outros –, mas também fez com que muitos trabalhadores perdessem seus empregos
sendo substituídos pelas modernas e revolucionárias máquinas lançadas na época, ou mesmo
que desenvolvessem trabalhos setorizados de forma massiva e repetitiva.
Karl Marx (1818-1883) afirmou que as máquinas levariam o homem ao socialismo:
“O moinho movido pelo braço humano nos dá a sociedade com o suserano; o moinho movido
a vapor, a sociedade com o capitalista industrial”16. A ele se uniu Frederich Engels (1820-
1895), ambos acreditavam que se desenvolveriam novas máquinas e que elas levariam a
sociedade ao socialismo. Marx criticava aqueles que davam importância ao trabalho, pois,
segundo ele, as ferramentas é que eram importantes. Ocorre que, o autor olvidou que “as
ferramentas não caem do céu. Elas são produtos de ideias.”17.
Um excelente exemplo dessa conjuntura contraditória (benefícios e malefícios de
uma quebra paradigmática) é o icônico filme dirigido e protagonizado, tanto com humor
quanto com sensibilidade, por Charles Chaplin, “Tempos Modernos”18 onde retrata a vida
urbana do personagem Carlitos nos Estados Unidos no ano de 1930, demonstrando os modos
de produção industrial baseados na divisão e especialização do trabalho nas linhas de
montagens impulsionados pela Revolução Industrial. O Taylorismo e o Fordismo são
modelos de produção fundamentados na divisão do trabalho onde cada trabalhador fica
responsável por uma etapa do processo produtivo, diferentemente do processo feito até então
onde a produção era predominantemente artesanal e feita por poucas pessoas. A produção
dos bens começou a ser feita em grandes quantidades, protagonizada pelas máquinas, de
forma fragmentada e devia ser realizada no menos tempo possível para que fosse possível
gerar o maior lucro possível, para isso preconizava exercícios repetitivos e condições
insalubres de trabalho aos operários.
Essas mudanças na forma de produção encontraram muita oposição, principalmente
dos trabalhadores que, revoltados com as condições de trabalhos acima relatadas, tentaram

15
SHUMPETER, Joseph A. Capitalism, socialismo & democracy. London and New York: Routledge, 2003,
p. 81.
16
MARX, Karl. Misère de la Philosophie. Paris and Brussels, 1847, p. 100.
17
VON MISES, Ludwig. Marxismo desmascarado. Tradução de Alexandre S. Campinas, SP: VIDE
Editorial, 2015, p. 28.
18
MODERN TIMES. Direção Charles Chaplin. New York: Continental Home Vídeo, 1936. 1 DVD. (87 min.)
861

conter o avanço da Revolução Industrial. Mais precisamente no período entre os anos de


1811 e 1817, um movimento de trabalhadores ingleses do ramo da fiação e da tecelagem,
conhecidos como Ludistas19, tendo seu nome inspirado em seu líder Ned Ludd20, invadiu e
destruiu as máquinas e as fábricas que trabalharam na tentativa de retomar seus postos de
trabalho e frear a implementação de novas tecnologias. Além da destruição das máquinas e
das fábricas, os ludistas produziram manifestos na tentativa de angariar mais participantes e
de reverter as novas condições impostas pelos novos tempos. Há diversas versões sobre esse
movimento, uma delas descrita por Eric Hobsbawm21 que analisa os reais motivos da revolta.
O autor afirma que tal prática era uma forma de pressionar os tomadores de mão de obra,
tendo como objetivo melhores condições de trabalho, melhores salários, menor carga horária
e a não substituição dos trabalhadores por máquinas. Esse movimento, que teve seu início
na Inglaterra, também foi registrado em países como Bélgica, Alemanha e Polônia. Tendo
em vista os inúmeros avanços das máquinas dos anos 1800 se comparadas com as da
atualidade, resta desnecessário dizer que o movimento não prosperou, segundo Erik
Brynjolfsson e Andrew McAfee:

A Revolução Industrial, é claro, não é apenas a história da energia a vapor, mas o


vapor começou tudo. Mais do que qualquer outra coisa, isso nos permitiu superar
as limitações da força muscular, humana e animal, e gerar enormes quantidades
de energia útil à vontade. Isso levou a fábricas e produção em massa, ferrovias e
transporte em massa. Isso levou, em outras palavras, à vida moderna. A Revolução
Industrial inaugurou a primeira era da máquina da humanidade - a primeira vez
que nosso progresso foi impulsionado principalmente pela inovação tecnológica -
e foi o momento mais profundo de transformação que nosso mundo já viu. A
capacidade de gerar grandes quantidades de energia mecânica era tão importante
que, nas palavras de Morris, "zombou de todo o drama da história anterior do
mundo".22

19
CHASE, Alston. In a dark wood. New York: Transaction Publishers, 2001, p. 41.
20
PYNCHON, Thomas. Is O.K. to be a Luddite? In: ALSEN, Eberhard. The New Romanticism: a collection
of critical essays. New York & London: Garland Publishing, Inc., 2000, p. 43.
21
HOBSBAWM, Eric. The machine breakers. Disponível em: http://libcom.org/history/machine-breakers-
eric-hobsbawm. Acesso em janeiro de 2020.
22
“The Industrial Revolution, of course, is not only the story of steam power, but steam started it all. More
than anything else, it allowed us to overcome the limitations of muscle power, human and animal, and generate
massive amounts of useful energy at will. This led to factories and mass production, to railways and mass
transportation. It led, in other words, to modern life. The Industrial Revolution ushered in humanity’s first
machine age—the first time our progress was driven primarily by technological innovation—and it was the
most profound time of transformation our world has ever seen. The ability to generate massive amounts of
mechanical power was so important that, in Morris’s words, it ‘made mockery of all the drama of the world’s
earlier history´.” MCAFEE, Andrew, BRYNJOLFSSON, Erik. The second machine age: work, progress, and
prosperity in a time of brilliant technologies. New York and London: W. W. Norton & Company, 2016, p. 23.
862

Com o uso das máquinas, os produtos que antes eram produtos de manufatura ficaram
mais baratos, mais numerosos, portanto mais acessíveis a um número muito maior de pessoas
que antes não tinha acesso a esses bens. Não obstante aos benefícios do acesso, o aumento
das vendas desencadeou uma demanda por atividades relacionadas à produção, como o
fornecimento de mais matéria prima, a criação de profissões que possibilitassem a
fabricação, manutenção e criação de peças e máquinas, o desenvolvimento de tecnologia
para o aprimoramento das atividades, dentre tantos outros.

2. AUTOMAÇÃO DAS ATIVIDADES INTELECTUAIS E O PAPEL DAS


UNIVERSIDADES

Até o descrito momento histórico tinha-se uma sociedade caracterizada pela


automação das atividades repetitivas provocada pela Revolução Industrial. Contudo, há
alguns anos, outra espécie de automação vem atormentando alguns trabalhadores,
movimentando os centros de pesquisa e o mercado global e instigando aqueles que desejam
viver em uma sociedade cada vez mais desenvolvida e interativa: a automação das atividades
intelectuais.
Por considerar a Revolução Industrial, que tornou realidade a automação das
atividades repetitivas, a Primeira Era da Máquina, Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee
consideram que a automação das atividades intelectuais – a qual vivencia-se nos dias atuais
– pode ser considerada com a Segunda Era da Máquinas, exata denominação que deu título
ao livro escrito pelos pesquisadores norteamericanos e diretores da Iniciativa MIT sobre
Economia Digital23 e do MIT Centro para Negócios Digitais24. Os autores25 afirmam que a
Segunda Era, a exemplo da Primeira, trará possibilidades fantásticas de melhora na
qualidade de vida – ao lado de incertezas, desemprego tecnológico e inseguranças, pois
afirmam que a tecnologia não irá afetar a todos de forma igual, poderá ser tendenciosa para
algumas questões e pessoas e contra outras.

23
MIT Initiative on the Digital Economy. Disponível em: http://ide.mit.edu. Acesso em janeiro de 2020.
24
MIT Center for Digital Business. Disponível em: http://ebusiness.mit.edu/about/staff.html. Acesso em
janeiro de 2020.
25
“A slightly more complex model allows for the possibility that technology may not affect all inputs equally,
but rather may be ‘biased’ toward some and against others.” MCAFEE, Andrew, BRYNJOLFSSON, Erik. The
econd machine age: work, progress, and prosperity in a time of brilliant technologies. New York and London:
W. W. Norton & Company, 2016, p. 23.
863

Exercícios de futurologia a respeito da evolução da tecnologia existem há décadas, e


há décadas continuam surpreendendo o mais otimista, o mais pessimista e o mais ousado
dos pesquisadores.
Na obra “A nova divisão do trabalho: como os computadores estão criando o próximo
mercado de trabalho”26, publicado em 2005, os professores de Oxford Frank Levy e Richard
J. Murnane afirmaram que os robôs, por mais desenvolvidos que fossem, continuariam
incapazes de realizar tarefas complexas, como por exemplo, dirigir. Mas eles estavam
errados, pois desde o ano de 1939 existem protótipos de veículos autônomos tanto no campo
de pesquisa de Sistemas Inteligentes de Transportes, como no da Robótica Móvel. Alguns
exemplos famosos são o Firebird27, fabricado na década de 1950 pela General Motors; o
robô Shakey28, criado em 1966 pelo Instituto de Pesquisa da Universidade de Stanford
considerado o primeiro robô móvel a usar técnicas de Inteligência artificial; Stanley29, o
primeiro carro sem motorista, criado em 2005; entre outros de várias empresas, que estão
em fase de teste ou prontos para lançamento no mercado, tais como Audi, BMW, Land
Rover, Mercedes-Bens, Ford, Google, Volvo, General Motors e Volkswagen.
Situações cotidianas que há muitos anos não passavam de uma história de desenho
animado relatadas na série Os Jetsons30, produzida pela Hanna-Barbera, exibida
originalmente no ano de 1962, podem ser consideradas realidade nos dias atuais, são alguns
exemplos: internet das coisas, robôs realizando atividades domésticas,, internet sem fio,
televisões 3-D, esteiras e escadas-rolantes, chamadas de vídeo, telefones celulares, utensílios
domésticos elétricos como: escovas dentais, cafeteiras, fogões, máquinas de lavar, máquina
de secar, micro-ondas, panelas elétricas, entre tantos outros.

26
LEVY, Frank. MURNANE, Richard J. The new division of labor: how computers are creating the next job
market. New York: Russell Sage Foundation, 2004.
27
Sure-Fire starting for the Firebird. 1954 Popular Mechanics January. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?id=1t4DAAAAMBAJ&pg=PA241&dq=1954+Popular+Mechanics+Janu
ary&hl=en&sa=X&ei=VTQqT6rRIMbo2AX_39SHDw&redir_esc=y#v=onepage&q&f=true. Acesso em
janeiro de 2020.
28
SRI International Artificial Intelligence Center. Shakey. Disponível em: http://www.ai.sri.com/shakey/.
Acesso em janeiro de 2020.
29
Thrun S. et al. (2007) Stanley: The Robot That Won the DARPA Grand Challenge. In: Buehler M.,
Iagnemma K., Singh S. (eds) The 2005 DARPA Grand Challenge. Springer Tracts in Advanced Robotics,
vol 36. Springer, Berlin, Heidelberg. Disponível em: https://link.springer.com/chapter/10.1007%2F978-
3-540-73429-1_1. Acesso em janeiro de 2020.
30
Os Jetsons, são desenhos sobre uma família num mundo futurista, podendo até de serem chamados de
"Os Flintstones do Futuro". Os Jetsons. The Jetsons (ABC, 1962). Hanna Barbera. Disponível em:
http://www.hannabarbera.com.br/jetsons/jetsons.htm. Acesso em janeiro de 2020.
864

Contudo, Nicholas Carr31 afirma que o uso de algumas tecnologias têm deixado os
humanos “enfeitiçados pelas tecnologias engenhosas”, no sentido de que o ser humano tem
confiado e entregue cada vez mais atividades cotidianas, seja das mais simples como, por
exemplo, a própria escrita, sendo corrigida por meio do corretor automático, seja a mais
complexa como, por exemplo, o controle da escolha da rota por meio de GPS, como no
exemplo do transatlântico Royal Majesty32.
Há que se atentar para o fato de que, por mais modernas que sejam, e mais bem
codificadas, as tecnologias, assim como os humanos, não são infalíveis. Carr33 aborda, na
mesma obra, outras questões de suma importância, como, por exemplo os riscos da
automação, do uso cada vez maior de softwares e computadores para dirigir nossas vidas, e
das implicações dessa tecnologia para a nossa mente, nossos hábitos e nosso modo de vida.
Harari faz uso de uma situação hipotética para chamar a atenção a respeito da
intensificação do desenvolvimento que a sociedade desenvolveu e presenciou no último
século:

Se, por exemplo, um camponês espanhol tivesse adormecido no ano 1000 e


despertado quinhentos anos depois, ao sim dos marinheiros de Colombo a
bordo das caravelas Niña, Pinta e Santa Maria, o mundo lhe pareceria bastante
familiar. Apesar de muitas mudanças na tecnologia, nos costumes e nas
fronteiras políticas, esse viajante da Idade Média teria se sentido em casa. Mas
se um dos marinheiros de Colombo tivesse caído em letargia similar e
despertado ao toque de um iPhone do século XXI, ele se encontraria em um
mundo estranho, para além de sua compreensão. “Estou no Céu?”, ele poderia
muito bem se perguntar, “Ou, talvez, no Inferno?”34 (grifos de origem)

O economista austríaco Ludwig Von Mises (1881-1973), ao explicar uma das


correntes filosóficas mais preponderantes nos séculos XVIII e XIX, traz o materialismo, e o
separa em duas escolas: a primeira que considera o homem como uma máquina e traz

31
CARR, Nicholas. The glass cage: how our computers are changins us. New York and London, W. W. Norton
& Company, 2015.
32
Na primavera do ano 1995, o transatlântico Royal Majesty encalhou, inesperadamente, em um banco de
areia da ilha de Nantucket. Apesar de estar equipado com o mais avançado sistema de navegação da época se
chocou com esta ilha situada a 48 quilômetros de Cape Cod, Massachussetts, nos Estados Unidos. Vinha das
ilhas Bermudas e se dirigia a Boston, com 1.500 passageiros a bordo. A antena do GPS se soltou, o barco foi
se desviando progressivamente de sua trajetória e nem o capitão, nem a tripulação perceberam o problema. Um
vigilante de guarda não avistou uma importante boia perto da qual o barco devia passar e não informou: como
a máquina vai se equivocar? Felizmente, o acidente não deixou feridos.
33
CARR, Nicholas. The glass cage: how our computers are changins us. New York and London, W. W. Norton
& Company, 2015.
34
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 26
ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017, p. 257.
865

referência à obra do escritor francês Julien de La Mattrie (1709-1751) “Homem, a máquina”,


a qual considera que “a maquina humana funciona exatamente como qualquer outra”35.
A segunda escola, por sua vez, considerada uma doutrina filosófica criada por
Ludwig Feuerbach (1804-1872) e Karl Vogt (1817-1895), defende que “os pensamentos e
ideias são apenas emanações do cérebro”36. Contudo, salienta o autor, “ideias e pensamentos
não são iguais para todas as pessoas numa mesma situação e condição; eles são diferentes”37.
Para comprovar esse pensamento, Von Misses recorda que por diversas vezes uma
maça deve ter caído na cabeça de um jovem que repousava aos pés de uma macieira,
entretanto apenas um – Isaac Newton (1643-1727) – foi capaz de, com essa experiência,
criar a lei da gravidade.

(...) as pessoas não têm sempre os mesmos pensamentos quando expostas aos
mesmos fatos. Por exemplo, na escola alguns aprendem; outros não. Existem
diferenças entre os homens. Bertrand Russel (1872-1970) perguntou: “qual é a
diferença entre homens e pedras?”. A resposta dele foi que não havia nenhuma
diferença exceto que os homens reagem a mais estímulos do que as pedras. Mas,
na verdade, existem diferenças. Pedras reagem de acordo com um padrão definido
que nós podemos conhecer; temos a possibilidade de antecipar o que acontecerá a
uma pedra se ela for tratada de determinada forma. Mas, os homens não reagem
todos da mesma maneira quando recebem um tipo de tratamento; não conseguimos
determinar tais categorias de ação para o homem. 38

Muitos pensadores naquela época acreditavam que o materialismo fisiológico seria


uma solução, quando, na verdade era uma contradição, isto porque, se fosse dado como
solução definitiva, então isso significaria que, em qualquer circunstância, seria possível
prever todo e qualquer movimento de todo e qualquer cidadão, ocorre que é impossível
imaginar quais seriam as consequências desse feito, sem contar o fato de que nada mais seria
capaz de surpreender a humanidade. Ocorre que, felizmente, o futuro ainda é imprevisível e
as novas tecnologias, as pesquisas, o desenvolvimento tem deixado claro que a capacidade
criativa do ser humano está longe de ser exaurida.

35
VON MISES, Ludwig. Marxismo desmascarado. Tradução de Alexandre S. Campinas, SP: VIDE
Editorial, 2015, p. 25.
36
VON MISES, Ludwig. Marxismo desmascarado. Tradução de Alexandre S. Campinas, SP: VIDE
Editorial, 2015, p. 26.
37
VON MISES, Ludwig. Marxismo desmascarado. Tradução de Alexandre S. Campinas, SP: VIDE
Editorial, 2015, p. 26.
38
VON MISES, Ludwig. Marxismo desmascarado. Tradução de Alexandre S. Campinas, SP: VIDE
Editorial, 2015, p. 26.
866

Historicamente, o avanço tecnológico fechou algumas portas, mas abriu muitas


janelas. O desenvolvimento dos últimos quinhentos anos representa um crescimento
fenomenal em vários índices e sem precedentes no poderio humano.39 Tanto o espaço quanto
o tempo estão se transformando sob o efeito combinado do paradigma da tecnologia da
informação e das formas de processos sociais induzidos pelo processo atual de
transformação histórica (...).40 Assim, é possível afirmar que o mundo, a civilização, as
sociedades, as culturas, as relações mudaram, e as profissões também.
As tecnologias chegaram a todos setores das empresas, das Universidades, dos lares
e todos âmbitos da sociedade, revolucionando a forma de fazer e pensar o mundo,
principalmente o mundo do trabalho. Enquanto muitos temem perder seus empregos por
conta das demandas tecnológicas, outras pessoas colhem as informações sobre as novas
tendências para manterem-se ativos no mercado de trabalho.
O jurista, advogado, político, filósofo, professor universitário e poeta brasileiro,
Miguel Reale (1910-2006) atentava nos anos de 1970, em sua obra “Problemas de nossos
tempos”, para algumas questões que, já naquela época, lhe chamavam atenção, dedicou esta
obra para abordar uma diversidade de problemas os quais ele julgava de total relevância,
sendo eles: problemas existenciais, problemas da juventude, problemas universitários,
problemas ideológicos, e inserido nesses, a existência de uma “ideologia cibernética”:

Parece-me que foi Merleau-Ponty, o mais sutil dos pensadores franceses do após-
guerra, o primeiro a empregar a expressão “ideologia cibernética”, para indicar o
sistema de idéias e de crenças determinado pelo objetivo central de obter-se o
máximo rendimento tecnológico do funcionamento automático das máquinas,
inclusive do homem concebido como máquina. Não escondia aquele filósofo as
suas preocupações de humanista, ante o nôvo mito que se está forjando uma
civilização dirigida por engenheiros eletrônicos e computadores. Ainda mais
apreensivo ficaria Merleau-Ponty se estivesse ouvindo os profetas de uma
sociedade de nôvo tipo, cujas relações se desenvolveriam segundo diretrizes
traçadas por complexos sistemas elétricos, capazes de transmitir informações e de
comandar com base nas informações recebidas, tudo com a garantia da correção
automática dos possíveis erros.41 (grafia de origem)

39
No ano de 1500, havia cerca de 500 milhões de Homo sapiens em todo o mundo. Hoje, há 7 bilhões. Estima-
se que o valor total dos bens e serviços produzidos pela humanidade no ano de 1500 era 250 bilhões de dólares.
Hoje, o valor de um ano de produção humana é aproximadamente 60 trilhões de dólares. Em 1500 a
humanidade consumia por volta de 1,5 quadrilhão de calorias por dia. Hoje, consumimos 1,5 quatrilhão de
calorias por dia. (Preste atenção nesses números: a população humana aumentou 14 vezes; a produção, 240
vezes; e o consumo de energia, 115 vezes). HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da
humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 26 ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017, p. 257.
40
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Vol. I.
Tradução Roneide Venancio Majer. 18 ed. revista e ampliada. São Paulo: Paz e Terra, 2017, p. 463.
41
REALE, Miguel. Problemas de nossos tempos. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda, 1970, p. 95.
867

Ressalta-se que Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), filósofo fenomenólogo


francês, conforme afirmou Reale, não escondia suas preocupações de humanista, ou seja,
conforme Paul O. Kristeller42, humanistas são aqueles estudiosos que por profissão ou
vocação estão ligados ao studia humanitatis (estudos culturais), e humanismo como o corpo
de literatura, erudição e pensamento representado pelos escritos dos humanistas.
No mundo jurídico seus operadores “são acostumados à tradição humanista”43, não
obstante a isso, têm-se demandado, não apenas dos juristas mas, de todos os profissionais
contemporâneos, um olhar para além do “homem natural”, porque, conforme a contribuição
de Vittorio Frosini (1922-2001), jurista e filósofo italiano, considerado o pai da informática
jurídica italiana, devido à presença das novas tecnologias chegou-se hoje à Era do “homem
artificial”44.
Defensor de um “humanismo tecnológico”, Frosini iniciou uma reconstrução
sistemática dos problemas da tecnologia da informação, ciente das implicações econômicas
e sociais da regulamentação legal. Na comparação entre direito e tecnologia, o autor defende
que o progresso produz uma evolução social contínua que se reflete no campo jurídico e
econômica, além de proporcionar melhorias qualitativas nas diversas relações com as
instituições, favorecendo um contínuo e imediato confronto entre administradores e
administrados entre uma relação direta horizontal, enquanto que, na primeira era, a relação
era vertical. Dessa forma o cidadão se torna verdadeiramente um ator da vida civil e não
apenas um súdito. Diante disso, é possível perceber uma nova forma de democracia de
massa, na qual “uma nova forma de liberdade individual é realizada com um aparente
paradoxo, um aumento da socialidade humana que se espalhou pelo amplo horizonte do novo
circuito da informação, portanto, um aprimoramento da energia intelectual e operacional do
indivíduo que vive na comunidade”45.

42
“Vorrei parlare piuttosto dell‟umanesimo in senso molto più specifico e considerare umanisti quelli studiosi
che per professione o vocazione erano legati agli studia humanitatis, e umanesimo il corpo di letteratura,
erudizione e pensiero rappresentato dagli scritti degli umanisti.” KRISTELLER, Paul O. Concetti
rinascimentali dell’uomo e altri saggi. Firenze: La nuova Italia Editrice, 1978, p. 139.
43
LIMBERGER, Têmis. Novas tecnologias e direitos humanos: uma reflexão à luz da concepção de esfera
pública. In: LIMBERGER, Têmis. BUNCHAFT. Novas tecnologias, esfera pública e minorias vulneráveis.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 28.
44
FROSINI, Vittorio. L’umo artificiale: ética e diritto nell’era planetária. Milano: Spirali Edizione, 1986.
45
“(...) si realizza con apparente paradosso una nuova forma di libertà individuale, un accrescimento della
socialità umana che si è allargata sull'ampio orizzonte del nuovo circuito delle informazioni, un potenziamento,
dunque, dell'energia intellettuale ed operativa del singolo vivente nella comunità.” FROSINI, Vittorio. La
democrazia nel XXI secolo, Macerata, Liberilibri, 2010, p. 160.
868

Assim, para adaptar-se a essa nova realidade, alerta Reale, citando os estudos de
Marshall McLuhan (1911-1980), que foi educador, intelectual, filósofo e teórico da
comunicação canadense, conhecido por conjeturar a internet quase trinta anos antes de ela
sequer ser inventada:

A primeira mudança de atitude a ser exigida do homem atual põe-se no plano


educacional, com a reformulação das Universidades, para adaptá-las a novas
técnicas operacionais, passando a teoria da informação a desempenhar um papel
fundante, como elemento conectivo e dinâmico entre profissões ou “formas de
trabalho” antes não suspeitadas. A essa luz, diz o mestre de Toronto, os
tradicionais currículos universitários tornam-se, de certo modo, tão obsoletos
como a divisão dos estudos “trivium” e “quatrivium” das Universidades
medievais.46

Miguel Reale, ao concordar com o papel transformador das Universidades para o


prosperar dos novos tempos, afirma que ela “só pode ser ‘critica’, enquanto representa o
centro da livre criação do espírito, que em si mesmo encontra a sua razão de ser e a sua
medida”47. Segundo ele, é inerente aos bancos acadêmicos estar sempre em “marcha
ascensional”48, com isso não significa desprezar todo o conhecimento adquirido, nem a
sôfrega e impensada adesão às mais recentes criações, mas sim, quer dizer que deve estar
presente o espírito crítico que previne que se caia na banalidade e na rotina, mas também
evita a precipitação e histeria que poderia vir a comprometer o progresso científico e o
autêntico debate de ideias.

A rigor, a Universidade crítica só pode vicejar numa sociedade plural, onde a


coexistência pacífica e ordenada de múltiplas diretrizes e correntes de pensamento
permita a pesquisa e o ensino desvinculados de objetivos postos unilateralmente
por fôrças políticas ou econômicas. Isto significa dizer que, em última análise,
“espírito crítico” e “espírito democrático” são valores que se correlacionam e se
completam, o que explica por qual motivo os povos imaturos malogram na
experiência democrática.49 (grafia e grifos de origem)

O senso crítico, mencionado pelo autor, tem-se mostrado visceral, tanto para as
Universidades, como para os profissionais, pesquisadores e para o mercado global. Mas será
que “apenas” o espírito crítico é o suficiente para que um profissional se mantenha no
mercado de trabalho? Quais seriam as características fundamentais para que um profissional

46
REALE, Miguel. Problemas de nossos tempos. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda, 1970, p. 96.
47
REALE, Miguel. Problemas de nossos tempos. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda, 1970, p. 126.
48
REALE, Miguel. Problemas de nossos tempos. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda, 1970, p. 126.
49
REALE, Miguel. Problemas de nossos tempos. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda, 1970, p. 126-127.
869

garanta seu lugar ao sol, ou, melhor dizendo, no mercado de trabalho sem temer os
inevitáveis e irreversíveis avanços tecnológicos?

3. ELEMENTOS QUE DIFERENCIAM SERES HUMANOS E SERES


TECNOLÓGICOS

Um dos efeitos do aumento do uso da tecnologia no setor produtivo é a substituição


da mão de obra humana pela mão de obra automática, ou seja, desde a Revolução Industrial,
com a automação das atividades repetitivas, e seguida da Revolução Tecnológica, com a
automação das atividades intelectuais, o ser humano está tendo sua mão de obra
constantemente substituída pelas novas tecnologias.
Os sinais desse processo no Brasil foram detectados no trabalho realizado para a
mudança na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO50, instituída pela Portaria nº 397,
de 09 de outubro de 200251. O conteúdo dessa classificação utilizado por instituições como
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE52 e o Ministério do Trabalho – MT53,
para reconhecer, nomear e codificar os títulos e o conteúdo das ocupações do mercado
brasileiro. No próprio endereço eletrônico o Ministério declara que “acompanhando o
dinamismo das ocupações, a CBO tem por filosofia sua atualização constante de forma a
expor, com a maior fidelidade possível, as diversas atividades profissionais existentes em
todo o país, sem diferenciação entre as profissões regulamentadas e as de livre exercício
profissional”.

A CBO do ano de 2002 tem uma série de inovações em relação a sua versão anterior
do ano de 1994. Entre as novas ocupações descritas estão as relativas a áreas com perfil
claramente tecnológico como biotecnologia, mecatrônica e informática. Mas as mudanças
na CBO incluem, também, transformações derivadas do mercado, como o crescimento dos
setores de serviços culturais e de comunicações.

50
BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABALHO. Portal Emprega Brasil. Classificação Brasileira de Ocupações.
Disponível em: https://empregabrasil.mte.gov.br/76/cbo/. Acesso em fevereiro de 2020.
51
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Portaria nº 397, de 09 de outubro de 2002. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=0B39D1C37DB8698344DE88D
500EF8E3B.proposicoesWeb2?codteor=382544&filename=LegislacaoCitada+-INC+8189/2006. Acesso em
fevereiro de 2020.
52
BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br. Acesso em fevereiro de 2020.
53
BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABALHO. Portal Emprega Brasil. Classificação Brasileira de Ocupações.
Disponível em: https://empregabrasil.mte.gov.br. Acesso em fevereiro de 2020.
870

Um estudo do Laboratório de Aprendizagem de Máquinas sobre Finanças e


Organizações – LAMFO54, da Universidade de Brasília55, estudou 2.602 profissões
brasileiras registradas na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO e, entre os
trabalhadores sob o regime CLT, 57,37% estava com pelo menos 80% de risco de
automação. As profissões mais ameaçadas, segundo a pesquisa, são Taquígrafo (99,55%),
Torrador de café (99,52%) e Cobrador de transportes coletivos (99,52%). As menos
ameaçadas são as profissões de Engenheiro de telecomunicações (0,38%), Psicanalista
(0,39%) e Engenheiros de sistemas operacionais em computação (0,47%). Já as profissões
ligadas às carreiras jurídicas constam como o seguinte percentual de risco de automação,
alguns exemplos: Advogado (76%), Juiz de Direito (89%), Professor de Direito Ensino
Superior (51%).
O Laboratório estabeleceu um ranking com os postos de probabilidade de automação
em que as profissões que têm maior ou menor probabilidade de seres substituídas pela
automação. As profissões que foram classificadas com a probabilidade de 0.0001 são:
Engenheiro Agrícola, Músico Arranjador, Turismólogo, Produtor na olericultura,
Engenheiro de Minas, Babá, Auxiliar de laboratório de Análises Clínicas, Auxiliar de
Pessoal, Ajustador ferramenteiro, Ajustador naval, Operador de filtro-prensa, Condutor de
turismo de aventura, Chapeador, Funileiro Industrial, Supervisor técnico de mídias
audiovisuais, Técnico de Produção em refino de petróleo e Operador de aparelho de reação
e conversão.
Por outro lado, as profissões que foram classificadas com maior probabilidade de
risco de automação, entre as 2.581 registradas, com a probabilidade de 1.000 são: Montador
de estrutura de aeronaves, Trabalhador de exploração de resinas, Criador de animais
domésticos, Técnico em higiene ocupacional, Despachante Aduaneiro, Técnico de
Alimentos, Operador de Telemarketing ativo e receptivo, Locutor de mídias audiovisuais,
Âncora de Mídias audiovisuais, Professor de Estatística, Técnico de Mineração, Produtor de
algodão, Encarregado de equipe de conservação de vias permanentes, Operador de
motosserra, Técnico em geodésia e cartografia, Avaliador de imóveis, Trabalhador da
cultura de cana-de-açúcar, Oficial de Registro Civil de Pessoas Naturais, dentre outros. O

54
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Laboratório de Aprendizagem de Máquinas sobre Finanças e
Organizações. Disponível em:
http://lamfo.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&id=496&Itemid=415&lang=pt-br. Acesso
em fevereiro de 2020.
55
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Disponível em: https://www.unb.br. Acesso em fevereiro de 2020.
871

Laboratório disponibilizou um banco de dados56 em que podem ser consultadas todas as


profissões e analisar os dados e probabilidades de risco.
Já à nível internacional é possível encontrar uma pesquisa realizada pela Oxford
University’s Martin School, a qual analisou o risco de automatização de 702 cargos. Essa
pesquisa apresenta números diferentes da analisada a cima. Ao analisar, por exemplo, o risco
de automação da atividade de Advogado57 a pesquisa aponta apenas 4% de risco de
automação, apresentando uma projeção de crescimento de 6% até o ano de 2024. Entretanto,
o Juiz de Direito58 consta com o risco de 40%, com a projeção de crescimento de 1%, os
mesmos dados da profissão de Professor Universitário59.
É possível notar uma discrepância significativa entre a pesquisa brasileira, realizada
pela Universidade de Brasília, e a pesquisa norte americana, realizada pela Oxford
University’s Martin School. Mas como saber qual das duas tem a previsão mais precisa? Eis
a questão, por se tratar de uma pesquisa sobre o futuro, apesar de terem sido realizada com
base em dados, nada mais são do que um exercício de futurologia, portanto não há como
afirmar qual das tuas pesquisas se aproxima mais da realidade.
O Linkedin, considerada a maior rede profissional do mundo, com aproximadamente
550 milhões de usuários, publicou em janeiro de 2020 um relatório das “Profissões
Emergentes 2020”60 onde analisa as 15 profissões que mais cresceram no Brasil desde o ano
de 2015 e tendem a continuar em alta nos próximos anos. Entre as profissões de destaque,
nove são ligadas à tecnologia e seis são fortemente procuradas por empresas do ramo
financeiro, como mercado de capitas, investidoras, bancos e serviços afins.

56
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Laboratório de Aprendizagem de Máquinas sobre Finanças e
Organizações. Automation Jobs. Disponível em:
http://lamfo.unb.br/index.php?option=com_wrapper&view=wrapper&Itemid=478&lang=pt-br. Acesso em
fevereiro de 2020.
57
OXFORD UNIVERSITY. Will robots take my Job? Lawyers Disponível em:
https://willrobotstakemyjob.com/23-1011-lawyers. Acesso em fevereiro de 2020.
58
OXFORD UNIVERSITY. Will robots take my Job? Judges, Magistrate Judges and Magistrates. Disponível
em: https://willrobotstakemyjob.com/23-1023-judges-magistrate-judges-and-magistrates. Acesso em fevereiro
de 2020.
59
OXFORD UNIVERSITY. Will robots take my Job? Teachers and Instructors, all other. Disponível em:
https://willrobotstakemyjob.com/25-3099-teachers-and-instructors-all-other. Acesso em fevereiro de 2020.
60
LINKEDIN. Profissões Emergentes 2020. Disponível em:
https://business.linkedin.com/content/dam/me/business/en-us/talent-solutions/emerging-jobs-
report/Emerging_Jobs_Report_Brazil.pdf. Acesso em fevereiro de 2020.
872

Embora as profissões especializadas em máquinas sejam a maioria no rol das


Profissões Emergentes 2020, há também um crescente número de funções que
requerem a habilidade de interagir com pessoas. Na lista, destacam-se os
representantes de vendas e especialistas em sucesso do cliente, na terceira e na
quarta posição, respectivamente.61

Segundo o relatório, as profissões emergentes são: “1. Gestor(a) de mídias sociais;


2. Engenheiro(a) de cibersegurança; 3. Representante de vendas; 4. Especialista em sucesso
do cliente; 5. Cientista de dados; 6. Engenheiro(a) de dados; 7. Especialista em Inteligência
Artificial; 8. Programador(a) de JavaScript; 9. Investidor(a) Day Trader; 10. Motorista; 11.
Consultor(a) de investimentos; 12. Assistente de mídias sociais; 13. Desenvolvedor(a) de
plataforma Salesforce; 14. Recrutador(a) especialista em Tecnologia da Informação; 15.
Coach de metodologia Agile”.
No primeiro lugar da lista está o profissional de gestão de mídias sociais, cuja procura
teve crescimento anual médio de 122% entre os anos de 2015 e 2019. As pessoas nessa
função são responsáveis pela imagem, relacionamento e engajamento e pela prospecção de
pessoas e empresas nas mídias sociais.
Vale o destaque também para a profissão de motorista, que aparece na décima
posição com previsão e mostra o crescimento anual de 68% nesse seguimento,
principalmente dos aplicativos de mobilidade no país. Apesar de não ser uma profissão nova,
o motorista deve ter habilidades além de uma boa direção, a pesquisa aponta que o motorista
deve se aprimorar em serviços ao cliente, vendas, planilhas e habilidades com a internet.
Milton Beck, diretor geral do Linkedin para a América Latina, afirma:

O mercado de trabalho, assim como outras esferas da vida na era da digitalização,


vive uma dinâmica acelerada de transformações, às quais, muitas vezes,
parecemos não ter tempo disponível para nos adaptar. Escolher o melhor caminho
para nos prepararmos às novas demandas da nossa profissão ou, mais ainda, de
uma outra carreira para a qual queiramos migrar é cada dia mais desafiador. 62

Diante desses desafios o que poderia ajudar os pesquisadores e os próprios


profissionais a preservar algumas profissões e prever a extinção de outras? É certo que, como

61
LINKEDIN. Profissões Emergentes 2020. Disponível em:
https://business.linkedin.com/content/dam/me/business/en-us/talent-solutions/emerging-jobs-
report/Emerging_Jobs_Report_Brazil.pdf. Acesso em fevereiro de 2020.
62
LINKEDIN. Profissões Emergentes 2020. Disponível em:
https://business.linkedin.com/content/dam/me/business/en-us/talent-solutions/emerging-jobs-
report/Emerging_Jobs_Report_Brazil.pdf. Acesso em fevereiro de 2020.
873

analisado nos tópicos anteriores, a evolução da tecnologia é inegável e inevitável, assim,


como as tecnologias têm sido as grandes protagonistas destas mudanças, ter ao mínimo uma
leve familiaridade com elas é, portanto, requisito atual para toda e qualquer função. Mas não
só.
A lista apresentada pelo Linkedin é coerente com as características humanas que,
segundo Carl Benedikt Frey e Michael Osborne63, as máquinas são provavelmente menos
capazes de superar: percepção e manipulação, inteligência social e inteligência criativa.
Segundo a percepção dos autores, quanto mais uma profissão depender dessas três
características, menos exposta, menos será a probabilidade de ela estar sujeita à substituição
por automação e menos sujeita a um possível esvaziamento de perspectivas.
De acordo com Frey e Osborne, percepção e manipulação podem ser entendidas
como versatilidade e habilidade física. Robôs executam com força, rapidez e precisão
movimentos repetitivos, habilidade praticamente impossível ao homem, principalmente se
executadas horas a fio ou em carga horária de trabalho de 8 horas, como a carga majoritária
exigida do trabalhador médio.
Contudo, “os robôs ainda não conseguem responder à profundidade e amplitude da
percepção humana”64, é por esta razão que as máquinas não se adaptam a ambientes sujeitos
à mudanças. Enquanto a identificação de formas geométricas básicas é razoável,
possibilitada pelos sensores e programações sofisticados, permanecem os desafios para as
tarefas de execução mais complexa. Assim, tarefas referentes a um ambiente não estruturado
podem tornar algumas profissões menos suscetíveis de informatização. Os autores trazem o
exemplo de uma casa, afirmando que, na maioria delas, não se tratam de um ambiente
estruturado, havendo uma multiplicidade de objetos irregulares que acabam por dificultar a
mobilidade de objetos com rodas, como os robôs. Já ambientes como fábricas, mercados,
aeroportos e outros, têm seus espaços mais estruturados, com menos obstáculos e são
projetados para grandes objetos com rodas como carrinhos, andaimes, e outros objetos

63
FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael. The Future of Employment: how susceptible are jobs to
computerization? Disponível em: https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-
employment.pdf. Acesso em fevereiro de 2020.
64
“Robots are still unable to match the depth and the breadth of human perception”. FREY, Carl Benedikt.
OSBORNE, Michael. The Future of Employment: how susceptible are jobs to computerization? Disponível
em: https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-employment.pdf. Acesso em fevereiro
de 2020.
874

similares, assim comportariam facilmente a presença de robôs na execução de tarefas


manuais rotineiras.
A dificuldade de adaptação das máquinas ficou conhecida como Moravec, decorrente
do professor austríaco de robótica da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos,
Hans Moravec (1948). Segundo ele:

É comparativamente fácil fazer computadores exibirem desempenho de adultos


em testes de inteligência ou jogos de xadrez – e difícil ou impossível dar às
máquinas as habilidades de um bebê de um ano, em questão de percepção e
mobilidade.65

Frey e Osborne reconhecem que essas dificuldades das máquinas têm sido lenta e
gradativamente superadas, por “design inteligente de tarefas”66, e trazem o exemplo usado
pela Amazon que inseriu adesivos com códigos de barras no chão de seus depósitos para que
os robôs pudessem identificar sua localização precisa.
O alto custo de superar esse paradoxo permite vislumbrar longa vida para profissões
que exigem precisão e maleabilidade, como por exemplo Arqueólogo, Dentista, Médico
Cirurgião, entre outras.
Já quando Frey e Osborne67 se referem à inteligência social afirmam que ela pode ser
entendida como diplomacia, negociação, persuasão, cuidado, empatia, afeto, sensibilidade,
habilidade política, capacidade de formar laços de confiança. É um truísmo, de tão
verdadeiro tem tanto calor humano como um ser humano. Profissões como Psicólogo,
Terapeuta, Coordenador de equipes, Salva-vidas, Bombeiro, Cuidador de crianças e idosos,
entre outras profissões, estão praticamente a salvo.

Embora algoritmos e robôs agora possam reproduzir alguns aspectos da interação


social humana, o reconhecimento em tempo real da emoção humana natural
permanece um problema desafiador, e a capacidade de responder de forma
inteligente a essas informações é ainda mais difícil. (...) 68

65
MORAVEC, Hans. Robot: mere machine to transcendent mind. New York: Oxford University Press, 1998.
p. 137.
66
“Clever task design”. FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael. The Future of Employment: how
susceptible are jobs to computerization? Disponível em:
https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-employment.pdf. Acesso em fevereiro de
2020.
67
FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael. The Future of Employment: how susceptible are jobs to
computerization? Disponível em: https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-
employment.pdf. Acesso em fevereiro de 2020.
68
“Human social intelligence is important in a wide range of work tasks, such as those involving negotiation,
persuasion and care. To aid the computerisation of such tasks, active research is be- ing undertaken within the
fields of Affective Computing (Scherer, et al., 2010; Picard, 2010), and Social Robotics (Ge, 2007; Broekens,
875

Basicamente essa dificuldade se dá porque o ser humano é dotado de inúmeras


informações de “senso comum”, difíceis de articular, que precisariam ser fornecidas pelo
programador ao algoritmo para que pudesse surtir efeitos na relação com os humanos. A
emulação do cérebro inteiro, a varredura, o mapeamento e a digitalização de um cérebro
humano, é uma abordagem possível para conseguir isso, mas atualmente é apenas uma
tecnologia teórica.69 Para a perfeita reprodução de um cérebro humano seria necessária uma
compreensão funcional adicional para reconhecer quais dados são relevantes, e, também,
seria necessário uma espécie de roteiro de tecnologias necessárias para sua implementação.
Embora esse roteiro esteja em desenvolvimento por muitos cientistas, Sandberg e Bostrom70
sugerem que é improvável que a emulação do cérebro inteiro se torne operacional dentro das
próximas décadas.
Assim, enquanto algoritmos e desenvolvimentos baseados em big data permitem
automatizar muitas tarefas, sejam elas simples ou sofisticadas, aquelas profissões que
envolvem tarefas complexas de percepção, manipulação, empatia, cuidado, persuasão, e
outras características essencialmente humanas, é improvável que sejam substituídas pelo
capital computacional, ao menos nas próximas décadas.
Do ponto de vista da inteligência criativa, sobreviverá ao avanço da automação as
atividades intelectuais nas profissões como Design de moda ou Arquiteto. Conforme

et al., 2009). While algorithms and robots can now reproduce some aspects of human social interaction, the
real-time recognition of natural human emotion re- mains a challenging problem, and the ability to respond
intelligently to such inputs is even more difficult. Even simplified versions of typical so- cial tasks prove
difficult for computers, as is the case in which social in- teraction is reduced to pure text. The social intelligence
of algorithms is partly captured by the Turing test, examining the ability of a machine to communicate
indistinguishably from an actual human. Since 1990, the Loebner Prize, an annual Turing test competition,
awards prizes to textual chat programmes that are considered to be the most human-like. In each competition,
a human judge simultaneously holds computer-based textual interactions with both an algorithm and a human.
Based on the responses, the judge is to distinguish between the two. Sophisticated algorithms have so far failed
to convince judges about their human resemblance.” FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael. The Future
of Employment: how susceptible are jobs to computerization? Disponível em:
https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-employment.pdf. Acesso em fevereiro de
2020.
69
“Whole brain emulation, the scanning, mapping and digitalising of a human brain, is one possible approach
to achieving this, but is currently only a theoretical technology.” FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael.
The Future of Employment: how susceptible are jobs to computerization? Disponível em:
https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-employment.pdf. Acesso em fevereiro de
2020.
70
SANDBERG, A. BOSTROM, N. Whole Brain Emulation: a Roadmap. Technical Report #2008-3, Future
of Humanity Institute, Oxford University: p. 1-130.
876

afirmam Frey e Osborne71, “Um computador pode criar variações do que faz sucesso, mas é
incapaz de lançar tendências”, sem contar que, ainda segundo os autores, “A moda é uma
abstração humana”72. O processo criativo envolve fazer a combinação de ideias – tarefa que
exige um estoque rico de conhecimento – para chegar a uma combinação de ideias que faça
sentido. Há exemplos de robôs capazes de compor músicas, criar piadas, fazer movimentos
inusitados em um jogo de xadrez, contudo, as produções geradas por esses algoritmos são
de pouco (ou nenhum) ineditismo, mas sim de alto grau de previsibilidade e baixo grau de
dificuldade se for levado em consideração todos os dados fornecidos pelo programador.
Contudo, segundo Frey e Osborne73, a criatividade não depende apenas do
ineditismo, da novidade, mas, também do valor. Valor no sentido do que é importante ou
não como expressão criativa para uma determinada cultura. Para dificultar ainda mais a vida
dos robôs, esses valores são altamente variáveis.
O maior valor deste século parece estar na simbiose entre a criatividade humana e o
poder de computação das máquinas. Serviços como Amazon, Google e redes sociais como
Instagram, Facebook, Linkedin, entre outras, são ótimos exemplos dessa união. Há duas
décadas seus fundadores eram jovens formados em ciências exatas e hoje figuram nas mais
altas posições da lista dos homens mais ricos do mundo, protagonistas de negociações

71
FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael. The Future of Employment: how susceptible are jobs to
computerization? Disponível em: https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-
employment.pdf. Acesso em fevereiro de 2020.
72
FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael. The Future of Employment: how susceptible are jobs to
computerization? Disponível em: https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-
employment.pdf. Acesso em fevereiro de 2020.
73
FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael. The Future of Employment: how susceptible are jobs to
computerization? Disponível em: https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-
employment.pdf. Acesso em fevereiro de 2020.
877

bilionárias. A vida e obra de Bezos74, Page75 e Brin76, Sustrom77 e Krieger78, Zuckerberg79 e


Hoffman80 podem inspirar as novas gerações. Decorar nomes, datas e fórmulas não faz mais
sentido, um grande desafio também para os Professores, já que muitas respostas estão a um
Google de distância. Os alunos deveriam aprender programação, para domar as máquinas.81
Também “deveriam aprender empreendedorismo para identificar problemas e aplicar
soluções”, também deveriam desenvolver mais suas habilidades artísticas para instigar sua
criatividade.

74
Jeffrey Bezos (1964), empresário estadunidense criador e CEO da Amazon, fundada em 1994, atualmente
considerada a maior empresa de comércio eletrônico do mundo. Além dela, Bezos fundou uma empresa
aeroespacial, a Blue Origin, em 2000 e comprou o jornal The Washington Post no ano de 2013. Atualmente
figura na primeira posição da classificação da Forbes das pessoas mais ricas do mundo, com uma fortuna
estimada em US$ 131 bilhões. FORBES. 20 maiores bilionários do mundo em 2019. Disponível em:
https://forbes.com.br/listas/2019/03/20-maiores-bilionarios-do-mundo-em-2019/. Acesso em fevereiro 2020.
75
Lawrence Edward Page (1973), norteamericano, um dos criadores do Google, Presidente Executivo e de
Produtos da empresa que é uma multinacional de serviços de serviços online e software, fundado em 1998. Em
2011 Page foi considerado uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. TIME. The 2011
Time 100. Larry Page. Disponível em:
http://content.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,2066367_2066369_2066485,00.html. Acesso
em fevereiro de 2020.
76
Sergey Mihailovich Brin (1973), russo, um dos criadores e ex-presidente da Google, atualmente presidente
da Alphabet Inc. Em 2012, a revista Forbes classificou Brin como a 24ª pessoa mais rica do mundo, com um
patrimônio estimado em US$ 18,7 bilhões. FORBES. Billionaire Scorecard: Google´s Surge Sends Brin To
New Highs. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/scottdecarlo/2012/10/03/billionaire-scorecard-
googles-surge-sends-brin-to-new-highs-oracles-slide-sinks-ellison/#7766f56530f3. Acesso em fevereiro de
2020.
77
Kevin Systrom (1983), norteamericado, empreendedor e engenheiro de software, co-fundador e CEO do
Instagram. No ano de 2012 constou na lista da Fortune como um dos 40 jovens com menos de 40 anos mais
influentes do mundo dos negócios, também da Fortune. FORTUNE. 40 under 40 2012. Kevin Systrom.
Disponível em: https://fortune.com/40-under-40/2012/kevin-systrom/. Acesso em fevereiro de 2020.
78
Michel Krieger (1986), brasileiro, engenheiro de software e empresário, co-fundador do Instagram. No ano
de 2012 vendeu o aplicativo para o Facebook por US$ 1 bilhão. REVISTA EXAME. Instagram, o aplicativo
de 1 bilhão de dólares. Disponível em:
https://web.archive.org/web/20160203205057/http://exame.abril.com.br/revista-
exame/edicoes/1014/noticias/instagram-o-aplicativo-de-1-bilhao-de-dolares. Acesso em fevereiro de 2020.
79
Mark Elliot Zuckerberg (1984), norteamericano, empresário e programador, criou a rede social mais acessada
do mundo e lançado em 2004, o Facebook. No ano de 2016 ficou em 10º lugar na lista da Forbes das pessoas
mais poderosas do mundo. FORBES. The word´s most powerfil people 2016. Disponível em:
https://www.forbes.com/sites/davidewalt/2016/12/14/the-worlds-most-powerful-people-
2016/#6b8574bf1b4c. Acesso em fevereiro de 2020.
80
Reid Hoffman (1976), norteamericado, empresário e investidor de risco e escritor, fundou o Paypal, um
serviço eletrônico de transmissão de dinheiro, mas, ficou mundialmente conhecido quando fundou, juntamente
com Allen Blue, Konstantin Guericke, Eric Ly e Jean-Luc Vailan, em 2002, o Linkedin que é uma rede social
profissional com 21,4 visitantes mensais. O Linkedin foi vendido em 2016 para a Microsoft que pagou US$
26,2 bilhões, sendo esta a maior aquisição da Microsoft. MICROSOFT. Microsoft buys Linkedin. Disponível
em: https://news.microsoft.com/announcement/microsoft-buys-linkedin/. Acesso em fevereiro de 2020.
81
FREY, Carl Benedikt. OSBORNE, Michael. The Future of Employment: how susceptible are jorbs to
computerization? Disponível em: https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/future-of-
employment.pdf. Acesso em fevereiro de 2020.
878

De acordo com a Origem das Espécies de Darwin, não é o mais inteligente da espécie
que sobrevive, não é o mais forte que sobrevive, mas a espécie que sobreviverá é aquela
capaz de melhor se adaptar e ajustar às mudanças do ambiente em que se encontra.82

4. CONCLUSÃO E ANÁLISE DO DESEMPREGO E DA DESIGUALDADE


GERADOS (OU NÃO) PELA AUTOMAÇÃO

A mecanização da produção industrial teve ascensão em decorrência da Revolução


Industrial. Com essa ascensão também cresceram as preocupações com o desemprego da
mão de obra humana e a desigualdade entre quem detém os meios de produção – empregador
– e quem vende sua força de trabalho. Há que se dizer, entretanto, que o progresso da
implementação da tecnologia no mercado de trabalho não é o responsável pelos índices de
desemprego mundial. Na obra “Economia numa única lição”83, o economista estadunidense
Henry Hazlitt (1894-1993), inicia o capítulo VII que denomina de “A maldição da
maquinaria” e que diz respeito aos efeitos da automação sobre os empregos, da seguinte
maneira:

Entre as mais viáveis de todas as ilusões econômicas está a crença de que a


máquina, na realidade, cria desemprego. Destruída mil vezes, tem ressurgido
sempre das próprias cinzas com a mesma firmeza e o mesmo vigor. Sempre
que há prolongado desemprego em massa, é a máquina que, novamente, leva a
culpa. Essa falácia é ainda a base de muitas manifestações de sindicatos. O
público tolera tais manifestações porque acredita que, no fundo, eles têm razão, ou
sente-se demasiado confuso para ver com justeza por que estão errados. 84

Segundo o autor, essa é uma das mais antigas e resilientes lendas econômicas, pois,
acreditar que as máquinas causam desemprego conduz a ridículas conclusões. Devemos estar
causando tanto desemprego com o aperfeiçoamento tecnológico de hoje em dia, quanto o

82
“According to Darwin’s Origin of Species, it is not the most intellectual of the species that survives; it is not
the strongest that survives; but the species that survives is the one that is able best to adapt and adjust to the
changing environment in which it finds itself.” MEGGISON, Leon C. DNA Cético. Disponível em:
https://darwin.bio.br/dnacetico/?p=151. Acesso em fevereiro de 2020.
83
HAZLITT, Wilian. Economia numa única lição. Traduzido por Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo:
Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010.
84
HAZLITT, Wilian. Economia numa única lição. Traduzido por Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo:
Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. p. 258.
879

homem primitivo deve ter começado a causar com os primeiros esforços feitos no sentido
de poupar, para si, trabalho e suor inúteis.85
O pensamento vulgar segue a seguinte linha: se os empresários implementam
tecnologias, máquinas e robôs para realizar o serviço de um empregado, ou mais, logo,
poderão dispensá-los, assim, o efeito dessa implementação, se praticado em larga escala por
toda a economia, a consequência é o inevitável desemprego.
Ocorre que o uso da tecnologia, das máquinas e robôs não veio acompanhado de
queda nos índices de emprego ou mesmo de renda dos trabalhadores. Ao contrário, levou a
um aumento dos padrões de vida para todas as classes sociais. Se essa análise se der por
dados, o Banco Mundial estima que “nos 25 anos entre 1990 e 2015, a taxa de pobreza
extrema baixou em média um ponto percentual por ano – de quase 36% para 10%”86, mesmo
tendo em vista o aumento populacional nesse mesmo período.
Não obstante a isso, Steve Crowe (1947) demonstrou, em um estudo87 publicado no
ano de 2018, que o avanço da tecnologia e da automação não causou desemprego, redução
de renda ou queda nos níveis de vida dos trabalhadores. Foram analisados vários países e os
que têm mais índices de automação (Coreia do Sil, Cingapura, Alemanha, Suécia,
Dinamarca, Estados Unidos, Bélgica, Holanda, Canadá, Finlândia e Suíça) são países
conhecidos pelo alto padrão de vida dos trabalhadores e pela alta qualidade dos empregos
ofertados. A segunda constatação do autor é a de que nenhum dos países do mundo
conhecidos pela pobreza estão na lista.
A principal preocupação referente à automação é de que ela deixaria milhares de
trabalhadores desempregados. Contudo, a exemplo da Coreia do Sul88, o nível de
desemprego caiu desde os anos 2000, ficando quase o tempo todo abaixo do índice de 4%,
índice que representa um valor diminuto.
Outra preocupação seria quanto a desigualdade promovida pela automação, uma vez
que aqueles que detém os meios de produção – os empresários – poderiam produzir cada vez
mais e com maior eficiência com cada vez menos mão de obra humana, resultando numa

85
HAZLITT, Wilian. Economia numa única lição. Traduzido por Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo:
Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. p. 258.
86
BANCO MUNDIAL. Pobreza. Panorama geral. Disponível em:
https://www.bancomundial.org/es/topic/poverty/overview#1. Acesso em fevereiro de 2020.
87
CROWE, Steve. 10 most automated countries in the world. In: The robot report. Disponível em:
https://www.therobotreport.com/10-automated-countries-in-the-world/. Acesso em fevereiro de 2020.
88
CEIC. Coreia do Sul. Taxa de desemprego. Disponível em:
https://www.ceicdata.com/pt/indicator/korea/unemployment-rate. Acesso em fevereiro de 2020.
880

concentração de renda em favor desses detentores da tecnologia produtiva. Ocorre que,


usando ainda a Coreia do Sul89 como exemplo, os índices de desigualdade no país
permanecem praticamente os mesmos desde o ano de 2006 quase estanques em patamares
abaixo do Brasil, por exemplo, que é um país com baixo grau de automação.
No ranking do Banco Mundial90, a Coreia do Sul está entre as 30 nações com maior
igualdade de renda, e mais, o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, que mensura
questões como saúde, renda, padrão de vida e educação teve trajetória ascendente.
Conforme descreve Rodrigo Penaloza, ao se referir ao desemprego e à desigualdade
provocados pela implementação da automação:

Essa onda alarmista, no entanto, é velha. No início do século 19, em plena


Revolução Industrial, trabalhadores do setor de tecelagem destruíram as máquinas
em protesto à substituição técnica. O movimento era liderado por uma personagem
fictícia, Ned Ludd, criada pelos revoltosos para dar legitimidade ao movimento, o
Luddismo. A gota d’água foi a destruição da tecelagem de William Cartwright em
abril de 1812. Apesar da revolta, o mundo progrediu, como depois da invenção da
roda, da moeda e dos direitos de propriedade.91

Assim, é possível identificar que não só as máquinas, a tecnologia, os robôs não têm
a capacidade de gerar desemprego e desigualdade, como, muito antes pelo contrário,
transformaram os índices de extrema pobreza, os níveis de desenvolvimento humano em
números positivos desde o começo de sua implementação.
Segundo o Relatório do Desenvolvimento Mundial de 201992 publicado pelo Banco
Mundial, “durante o último século, máquinas substituíram trabalhos em algumas funções.
No balanço geral, contudo, a tecnologia criou mais postos de trabalho do que os que ela
dispensou”.
É imperativo reconhecer que muitos trabalhadores tiveram seu emprego substituído
pela automação das atividades repetitivas e automação das atividades intelectuais, ocorre
que os fenômenos econômicos, para sua constatação fidedigna, devem ser medidos a longo

89
INDEX MUNDI. Korea – GINI índex. (World Bank estimate). Disponível em:
https://www.indexmundi.com/facts/korea/indicator/SI.POV.GINI. Acesso em janeiro de 2020.
90
BANCO MUNDIAL. GINI index (World Bank estimate) – Country Ranking. Disponível em:
https://www.indexmundi.com/facts/indicators/SI.POV.GINI/rankings. Acesso em fevereiro de 2020.
91
PENALOZA, Rodrigo. Automação e Desemprego: aspectos microeconômicos. In: Economia de serviços.
Disponível em: https://economiadeservicos.com/2018/08/30/automacao-e-desemprego-aspectos-
microeconomicos/. Acesso em fevereiro de 2020.
92
BANCO MUNDIAL. Relatório do Desenvolvimento Mundial 2019. Disponível em:
http://documents.worldbank.org/curated/en/232751580940525237/pdf/Overview.pdf. Acesso em fevereiro de
2020.
881

prazo. Além disso, a implementação das tecnologias e da mecanização gera efeitos


compensatórios, os quais são capazes, tanto de anular tanto a perda desses postos de
trabalhos, como, também, de ampliar o nível de riqueza – tanto do empregado quanto do
empregador –, o bem-estar dos trabalhadores, e também o número de novos empregos e a
melhora na sua remuneração.
A ideia, assim, não é competir com as inovações provocadas desenvolvimento
tecnológico, mas sim compreendê-las, dominá-las e encontrar formas construtivas de
convivência, para que, em resposta ao questionamento capitular desse artigo, as profissões
pertençam a todos, tanto ao homo sapiens quanto homo tecnologicus. Os trabalhadores
deverão desenvolver aptidões cada vez mais humanas, como a inteligência social, a
inteligência criativa e a habilidade de manipulação e adaptação, conforme análise supra, e
deve ter a consciência de que, por mais que alguns postos de trabalho venham a ser extintos,
outros mais serão criados. Dessa forma a humanidade deve – assim como desde a Idade da
Pedra – estar em constante aprimoramento. Afinal, muito mais do que revolução tecnológica,
a civilização está diante de uma transformação da realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BANCO MUNDIAL. GINI index (World Bank estimate) – Country Ranking. Disponível
em: https://www.indexmundi.com/facts/indicators/SI.POV.GINI/rankings.

BANCO MUNDIAL. Pobreza. Panorama geral. Disponível em:


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http://documents.worldbank.org/curated/en/232751580940525237/pdf/Overview.pdf.

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A DESIGUALDADE DE GÊNERO NO CAMPO – UM RETRADO DE


EXCLUSÃO DAS TRABALHADORAS NAS COMUNIDADES
RURAIS TRADICIONAIS

Quélen Kopper1
Francine Nunes Ávila2

Resumo: Em razão das liberdades, o sujeito passa a se questionar a que identidade deve se
ter, pois estas são variáveis, dependendo de questões subjetivas, ancoradas no processo
social. Nesse processo, também aparecem as lutas moralmente motivadas por grupos sociais
que buscam estabelecer formas de reconhecimento recíproco, devendo estar adequadamente
concebidas para auxiliar as lutas por redistribuição. O desafio deste trabalho é compreender
da realidade sociológica vivenciada pelas mulheres agricultoras e analisar as diferenças que
compõe a identidade destas. A partir de uma pesquisa bibliográfica, buscou se compreender
a realidade da mulher rural que é responsável por várias atividades no campo, invisibilizada,
embora integrada no processo produtivo da agricultura familiar. Encontramos um
rompimento de barreiras onde as mulheres mostram sua real identidade ao buscar seu
reconhecimento social e seus direitos.

Palavras-chave: Desigualdade; Gênero; Campo; Trabalhadoras.

Nas sociedades rurais tradicionais3 que ainda resistem paradoxalmente nas


sociedades complexas hodiernas, a separação de gênero no âmbito da agricultura familiar
separa um tipo de trabalho específico para homens e outro para mulheres, hierarquizando-
os, da mesma forma como se hierarquizam os gêneros de modo geral, na medida em que a
mão de obra e os frutos do trabalho masculino recebem maior relevância, valor econômico
e reconhecimento, demarcando sobretudo no ambiente de agricultura familiar a desigualdade
de gênero.

1
Advogada, especialista em Direito de Familia e Gestão Pública, Juíza leiga do TJRS, Professora da Faculdade
IDEAU/Bagé/RS, membro da CMA OAB/RS, membro da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da
OAB/Subsecção Bagé/RS e membro da Comissão da Igualdade Racial da OAB/Subsecção Bagé/RS. OAB/RS
nº 55.593. E-mail:advogadaqk@gmail.com
2
Advogada, doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade FEEVALE. Mestra em
Ciências Criminais pela PUC/RS.Coordenadora da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB,
Subsecção Bagé/RS. Professora e Coordendadora do Curso de Direito da Faculdade IDEAU/Bagé/RS.
OAB/RS 76.677. E-mail:francineavila@yahoo.com.br
3
Por comunidades rurais tradicionais utilizaremos aqui o conceito da Antropóloga Eunice Durhan, a qual
define que a organização do trabalho e a organização social vigentes nas sociedades tradicionais rurais referem
comunidades presas à agricultura de subsistência, em de isolamento relativo, na qual se estabeleceram padrões
culturais próprios. Baseada na grande maioria em um grupo familiar representado pela família conjugal
(homem-mulher-filhos), em que a característica fundamental do grupo conjugal é a dominância paterna.
887

Essa afirmação é a priori compreendida e sustentada na simbologia do trabalho


doméstico destinado historicamente à mulher, atrelando o feminino como um estado
biológico e cultural de disponibilidade de servir ao outro, disponível e solícita, sem contudo
exigir nada em troca, pois nasceu para essa função dentro do contesto social da agricultura
familiar hoje vigente.
Essas relações de gênero também podem ser compreendidas por relações sociais e de
poder, ligado a identidade social a partir do nascimento, naturalizando os papeis do homem
e da mulher por uma falsa construção biográfica e social.
Embora sabe-se que a desigualdade de gênero não é um atributo apenas das mulheres
em situação rural, os ambientes tradicionais rurais tem em si um forte estrutura patriarcal,
com restrito ou nenhum poder decisório na economia familiar, embora desenvolvam também
atividade na lavoura e grande parte do labor rural desenvolvido pelo homem do campo, além
da lida doméstica.
Apesar disso, no universo estudado da mulher rural que vive nas comunidades rurais
tradicionais em agricultura de subsistência esse feminino é visto como membro da família
que presta uma ajuda, mas não como a detentora de uma força de trabalho, uma trabalhadora
rural, uma profissional do campo.
A Constituição Federal de 1988 equiparou homens e mulheres em relação aos direitos
sociais, após muitas lutas encabeçadas por movimentos sociais femininos. Destaca-se que
anterior à citada constituição, mulheres não tinham direito à aposentadoria rural, somente
garantiam o benefício previdenciário de pensão por morte do seu esposo, o que atrelava a
necessidade de “libertação” apenas com a morte de um marido, ou seja, a conservação e
necessidade da instituição do casamento.
Quando se fala no trabalho e papel da mulher no universo da agricultura familiar de
subsistência na zona rural importante perceber dois principais eixos de questões. De um lado
temos a mulher na atividade doméstica, no cuidado com as crianças, na manutenção da casa,
na alimentação e em todos os afazeres que integram as necessidades internas da família e
não representam protagonismo na sociedade em que vive, apesar da importância para o
grupo familiar. De outro lado temos força laboral ativa da mulher na participação da colheita,
lida com animais de pequeno porte (porcos, galinhas, etc) e inclusive no tambo com vacas
de leite, manuseio de ferramentas.
888

Nas duas situações mencionadas se manifesta a invisibilização da mulher rural,


inclusive não sendo reconhecida a duplicidade de trabalho pelo grupo familiar, tampouco há
uma inserção e integração das mulheres nos processos produtivos da agricultura familiar e o
reconhecimento social em um espaço rural onde ainda se mostra presente a ideia de que a
mulher é um apêndice do homem, com menciona Simone de Beauvoir.
Portanto, opera-se necessariamente o condicionamento da mulher em sua
socialização à alienação de servir ao homem, operando a dominação masculina denunciada
por Bourdieu (1989).
Importante percebermos que o Estado brasileiro, à espelho dos movimentos
internacionais iniciados pela ONU em 1975, preocupou-se(de forma bastante retardatária
para que se diga a verdade) em estabelecer políticas públicas para a proteção dos direitos das
mulheres e para igualdade de gênero. Porém, conforme salienta Fraser (2001) necessário
aliar a essa iniciativa a criação de uma política cultural da diferença combinada com política
social de igualdade, através de remédios para injustiça econômica, redistribuindo renda e
reorganizando a divisão do trabalho, também aponta que deve haver um remédio para
injustiça cultural ou simbólica que envolva o reconhecimento positivo da diversidade, o que
ocasiona ao seu sentir uma mudança abrangente nos padrões sociais de representação.
Para Fraser as demandas feministas ao desejar abolir a divisão do trabalho segundo
o gênero tendem a promover a desdiferenciação do grupo, mostrando que a política do
reconhecimento e a política da redistribuição podem ter objetivos contraditórios. Enquanto
a primeira tende a promover a diferenciação do grupo, a segunda tende a desestabilizá-la.
Ao tratarmos desse tema, há que se falar também no conceito de identidade, marcado
por indefinições e controvérsias, entretanto, envolve processos de subjetivação reflexiva
pelas quais a identidade é construída.
Woodward (2005) afirma que identidade é relacional, depende, para existir, de algo
fora dela, que fornece condições para que ela exista, assim, identidade, é marcada pela
diferença.

Observe a frequência com que a identidade nacional é marcada pelo gênero. No


nosso exemplo, as identidades nacionais produzidas são masculinas e estão ligadas
a concepções militaristas de masculinidade. As mulheres não fazem parte desse
cenário, embora existam, obviamente, outras posições nacionais e étnicas que
acomodam as mulheres (WOODWARD, 2005, p. 9).
889

A identidade depende da diferença, segundo Woodward, “uma das mais frequentes e


dominantes dicotomias é, como vimos no exemplo de Lévi-Strauss, a que existe entre
natureza e cultura”.

A escritora feminista francesa Hélène Ci-xous adota o argumento de Derrida sobre


a distribuição desigual de poder entre os dois termos de uma oposição binária, mas
concentra-se nas divisões de gênero e argumenta que essa oposição de poder
também é a base das divisões sociais, especialmente daquela que existe entre
homens e mulheres (WOODWARD, 2005, p. 50)

Para Ricoeur (2006), “(...)identidade é o primeiro ponto tratado no discurso do


reconhecimento(...)”. O referido autor entende que o reconhecimento de si, passa pelo plano
da consciência reflexiva, o que denomina também de hermenêutica de si. As considerações
das capacidades que encontram expressão na forma do ‘eu posso’, abrindo caminho para
problemática do ser reconhecido, bem como, na capacidade narrativa reflexiva, o sujeito
como identidade narrativa, também são pontos presentes no reconhecimento.
De acordo com Honneth (2003), processo da individualização está ligado ao
pressuposto de ampliação das relações de reconhecimento mútuo.

(...) a reprodução da vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento


recíproco porque os sujeitos só podem chegar a auto relação prática quando
aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação,
como seus destinatários sociais (HONNETH, 2003, p. 155).

Para Fraser (2001), deve ser desenvolvida uma teoria critica de reconhecimento que
identifique uma defesa somente daquelas versões da política cultural da diferença que
possam ser combinadas coerentemente com a política social da igualdade a partir da relação
traçada entre redistribuição e reconhecimento, conceituando igualdade social e
reconhecimento cultural. Para iniciar, precisa se compreender a injustiça econômica
informada por um compromisso com a igualdade e a injustiça cultura ou simbólica.
Assim, para Fraser é preciso complementar o conceito de reconhecimento com o de
redistribuição, já para Honneth as questões de justiça distributiva seriam tratadas melhor no
quadro da Teoria do Reconhecimento, pontuando aqui uma discordância quanto aos
conceitos a partir das reflexões do processo subjetivo, no olhar de cada autor.
O que se tem majoritariamente na literatura é que a identidade está em construção,
pois constantemente a partir de mecanismos de reflexão subjetiva, alinhas se aos fenômenos
890

que ocorrem a partir da vivência e experiência dos sujeitos, nas suas relações sociais,
econômica, política e cultural.
Para os autores filiados à ideia de identidade elemento dinâmico, ancorado no
processo da vida social, está filhada a corrente chamada interacionismo simbólico.

Goffman (1982) defende que a construção indenitária, enquanto um contínuo


processo social, permite o abandono de uma identidade e a procura de uma nova,
pelo que os sujeitos acumulam uma multiplicidade de “apresentações do eu”.
Também Mead (1967) realça o facto de qualquer pessoa dividir-se em vários
“eus”. Para Lewis e Phoenix (2004), todo o indivíduo acumula um conjunto de
diferentes identidades, simultaneamente, mediante as diferentes posições sociais
ocupadas. (apud SANTOS, 2016, p. 03)

Woodward, 2005, pontua que a construção da identidade está tanto no campo


simbólico quanto social. A luta para afirmar as diferentes identidades tem causas e
consequências materiais.

O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles


é necessário para a construção e a manutenção das identidades. A marcação
simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais,
definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. E por meio da
diferenciação social que essas classificações da diferença são “vividas” nas
relações sociais (WOODWARD, 2005, p. 13)

Por fim, podemos dizer que as identidades são fluidas e cambiantes, variando quanto
a intensidade e a complexidade das dimensões envolvidas, uma identidade desenvolvida no
setor rural está imerso o ambiente natural e de saberes tradicionais.
A prática social cotidiana de uma comunidade rural é orientada por saberes
tradicionais que expressam diferentes culturas, em especial no campesinato onde muitas
vezes há reprodução de práticas de outras nacionalidades trazidas por imigrantes, juntamente
com suas crenças.
Os recursos naturais disponíveis no ambiente rural também são utilizados e
manejados de acordo com as práticas e saberes guiados por uma identidade étnica,
influenciada pelo processo histórico de colonização, ou seja, a identidade está relacionada
ao ambiente natural e a saberes tradicionais, em constante mudança já que executado em
conjunto com suas relações sociais.
Nesse sentido o reconhecimento social das atividades produtivas da mulher rural
perpassa pela (re) definição da identidade sócio profissional da mulher, que implica na
análise dos conceitos de reconhecimento e interpretação dos fenômenos sociais.
891

Na teoria de reconhecimento do Honneth (2003) o desrespeito por alguma das formas


de reconhecimento gera as lutas em diferentes dimensões da vida: no âmbito privado do
amor, nas relações jurídicas, e na esfera da solidariedade social.
As formas individuais das capacidades e formas sociais suscetíveis de fazer a
transição entre o reconhecimento de si e o reconhecimento mútuo perpassa pelas
reivindicações coletivas e são submetidas a apreciação e aprovação pública. Na questão da
mulher rural, tradicionalmente, desempenha suas atividades produtivas na unidade familiar,
entretanto, a sua identidade é construída, durante a história, como “dona de casa”, como
atividade de reprodução social para família e não como contribuição econômica, o que
impossibilita seu reconhecimento social como agente econômico.
Para Honneth (2003), o vínculo entre representações e práticas sociais se expressa
pela mediação simbólica, que resulta na configuração de uma identidade, que se atam laços
sociais em instauração.
Ainda, dentro da concepção de Honneth, toda análise de processo construção
indenitária, como no caso de gênero, mediante uma interação cotidiana, observa se a busca
do indivíduo pelo reconhecimento identificação e reconhecimento atestação.

Dir-se-á que há uma grande distância entre as identidades que implicam


capacidades pessoais e as identidades que dizem respeito à instauração do vínculo
social. No primeiro caso, tratava-se do reconhecimento-atestação. Ora, a
identidade dos atores sociais engajados em uma ação coletiva não se deixa
expressar tão diretamente em termos de reconhecimento-atestação, mesmo se leva
em consideração a complexidade das articulações induzidas pela diversidade das
capacidades em jogo. Mas, por mais próxima que "a prática da história" queira se
manter da "história das práticas" - segundo o título do artigo- manifesto de Bernard
Lepetit, a reflexão sobre as identidades coletivas não pode escapar a uma
sofisticação de grau mais elevado que a identidade-ipseidade dos sujeitos
individuais da ação. ( HONNETH, 2003, p. 152).

Tomando como base os paradigmas estabelecidos por Hegel e Mead, Honneth vê a


constituição da identidade, quando os sujeitos usam essas representações para se verem e
formarem uma avaliação de si mesmos, com base nas reações das outras pessoas e nas
representações feitas dos “outros”. Assim, podemos dizer, que a constituição da identidade
da mulher rural e o seu reconhecimento está também sendo construída através da interação
social, a medida que esta busca a sua liberdade individual e sua autonomia.
A mulher rural embora tenha sua identidade e reconhecimento intersubjetivo atrelado
as relações de solidariedade, relações jurídica, de amor e vínculos afetivos (dimensões de
892

reconhecimento proposta por Honneth), principalmente de ordem familiar, visto o local de


sua atuação e interação social, em oposição tem o seu não reconhecimento pela privação de
direitos frente ao patriarcado o desrespeito ao amor pelos maus tratos, ameaças a integridade
física e psíquica, tendo a sua honra e dignidade ofendida como membro de uma comunidade
cultural, consequente desrespeito a solidariedade. Nesse sentido se percebe avanço dos
movimentos sociais e a criação de políticas sendo trabalhadas para atender este processo de
emancipação, motivando as ações coletivas e transformações na buscando uma evolução
moral.
No caso das mulheres rurais, podemos pensar também na questão da solidariedade
(ou eticidade) proposta por Honneth (2003), como última esfera de reconhecimento, que
remete à aceitação recíproca das qualidades individuais, julgadas a partir dos valores
existentes na comunidade. Por meio dessa esfera, gera se a autoestima, ou seja, uma
confiança nas realizações pessoais e na posse de capacidades reconhecidas pelos membros
da comunidade.
No que tange aos desdobramentos do conceito de Axel Honneth feitos pela pensadora
americana Nancy Frase, que também comunga da ideia de que o reconhecimento das
diferenças são motivações para lutas de grupos que defendem a nacionalidade e etnicidade,
assim, pode se dizer que a identidade profissional das mulheres rurais pode ser alterada,
deixando de estar vinculada apenas ao lar a medida que se usam e tomam conhecimento dos
conteúdos materiais e simbólicos dos processos da vida social do trabalho, mudando sua
condição dentro da unidade de produção familiar a partir de suas lutas combinadas com
política social de igualdade, relacionada a redistribuição e reconhecimento cultural.

O remédio para a injustiça econômica é alguma espécie de reestruturação político-


econômica. Pode envolver redistribuição de renda, reorganização da divisão do
trabalho, controles democráticos do investimento ou a transformação de outras
estruturas econômicas básicas. Embora esses vários remédios difiram
significativamente entre si, doravante vou me referir a todo esse grupo pelo termo
genérico “redistribuição”. O remédio para a injustiça cultural, em contraste, é
alguma espécie de mudança cultural ou simbólica (...) Pode envolver, também, o
reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural (...) (FRASER,
2011, p. 232).

Fraser, explica que a luta de reconhecimento promove a diferenciação do grupo, ao


chamar atenção para especificidade de algum grupo e a luta de redistribuição busca abolir
893

os arranjos econômicos que embasam as especificidades do grupo, ficando os dois tipos tem
tensão. Assim apresenta o dilema da distribuição-redistribuição.

Quando lidamos com coletividades que se aproximam do tipo ideal da classe


trabalhadora explorada, encaramos injustiças distributivas que precisam de
remédios redistributivos. Quando lidamos com coletividades que se aproximam
do tipo ideal da sexualidade desprezada, em contraste, encaramos injustiças de
discriminação negativa que precisam de remédios de reconhecimento. No primeiro
caso, a lógica do remédio é acabar com esse negócio de grupo; no segundo caso,
ao contrário, trata-se de valorizar o “sentido de grupo” do grupo, reconhecendo
sua especificidade (FRASER, 2011, p. 233).

Por fim, pode se dizer que Nancy Fraser compartilha da ideia de Honneth, entretanto
em relação a imposição de todos os desejos dos sujeitos, pondera que o paradigma
indenitário de Honneth carece de critérios para garantir a auto realização, pois nem toda
reivindicação pode ser defendida, como concretização dos anseios extremistas, neonazistas
e terroristas.
De acordo com Krischke, 2003, pg. 02, “Nancy Fraser (1999) e Axel Honneth (2003),
enfatizam a necessidade de agregarem-se políticas de reconhecimento sócio-político-cultural
às tradicionais políticas de redistribuição econômica”, as quais se verificou no contexto
brasileiro sobretudo no Governo Lula, com a implantação de políticas públicas de
redistribuição sócio-econômica e sócio-culturais e que se entrelaçam com reconhecimento
entre as diferenças de identidade, as quais parecem ter declinado abruptamente no atual
momento político conservado do país. Fraser, afirma que a justiça social acontece quando
presente a redistribuição e o reconhecimento, afirmando também que nenhum deles por sí
só é o suficiente. Fraser crítica Honneth em relação ao conceito de reconhecimento.

Axel Honneth e Charles Taylor, dois dos principais teóricos do reconhecimento, o


interpretam como uma questão de auto-estima. Considero, ao contrário, que é uma
questão de justiça (...) O que torna o não-reconhecimento um erro moral é a sua
negativa a indivíduos e grupos da possibilidade de participação paritária com os
demais numa interação social (...) Essa norma paritária apela a uma concepção de
justiça que pode ser aceita por pessoas que aderem a visões doutrinárias
divergentes, desde que concordem assumir termos eqüitativos de interação sob
condições de pluralismo valorativo”. (Ibid. p.5) 11 ( apud. KRISCHKE, 2003, p.
08)

Para Krischke, 2003, pg. 08, Fraser aborda a questão da perspectiva de que o
“(...)reconhecimento é uma reparação à injustiça, e não a satisfação de uma necessidade
genérica (...) Assim, as formas de reconhecimento exigidas pela justiça em cada caso,
894

dependem das formas de não-reconhecimento que demandam reparação”. Nesse sentido, as


políticas públicas de reconhecimento e as de distribuição precisam ser complementares.
Outro aspecto importante a ser considerado é a questão da linguagem como símbolo
indenitário. Wookward, 2005, em seu texto “Identidade e diferença: uma introdução teórica
e conceitual”, relata uma situação de guerra em que enxerga identidades a partir da
linguagem simbólica, trabalhando o que é visto como sendo a mesma coisa e o que é visto
como sendo diferente em duas identidades, podemos trazer esta análise também para questão
de gênero no ambiente rural, as práticas de relação de poder que moldam uma cultura.
Na concepção de Wookward, 2005, pg. 17, a representação inclui as práticas de
significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,
inclusive, sugerindo que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e
aquilo no qual podemos nos tornar.
Todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações
de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído. A
cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar,
entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade -
tal como a da feminilidade loira e distante ou a da masculinidade ativa, atrativa e
sofisticada dos anúncios do Walkman da Sony (DU GAY & HAEE et all., 1997,
apud WOOKWARD, 2005).

A sociedade moderna, afetada pelas mudanças sociais constituíram vários núcleos de


identidades, onde os indivíduos vivem em diferentes instituições, chamado por Bourdieu de
“Campos sociais”, Woodward, 2005.

Laclau argumenta que não existe mais uma única força, determinante e totalizante,
tal como a classe no paradigma marxista, que molde todas as relações sociais, mas,
em vez disso, uma multiplicidade de centros. Ele sugere não somente que a luta
de classes não é inevitável, mas que não é mais possível argumentar que a
emancipação social esteja nas mãos de uma única classe. Laclau argumenta que
isso tem implicações positivas porque esse deslocamento indica que há muitos e
diferentes lugares a partir dos quais novas identidades podem emergir e a partir
dos quais novos sujeitos podem se expressar (LACLAU, 1990: 40). As vantagens
desse deslocamento da classe social podem ser ilustradas pela relativa diminuição
da importância das afiliações baseadas na classe, tais como os sindicatos operários
e o surgimento de outras arenas de conflito social, tais como as baseadas no
gênero, na “raça”, na etnia ou na sexualidade (apud, WOODWARD, 2005, p. 29).

Woodward, deixa visível em seu texto que na vida moderna há uma diversidade de
posições que nos estão disponíveis - posições que podemos ocupar ou não, sendo difícil
separar identidades e estabelecer fronteiras entre elas, podendo estas identidades mudarem,
quanto a forma que representamos a nós mesmos, como homens, mulheres e trabalhadores.
895

As nossas experiências podem trazer fragmentações na nossa identidade aliada a mudanças


no mercado de trabalho e padrões de comportamento, ocasionando também um conflito de
identidade diante desta complexidade da vida moderna.
Os significados culturais sobre a sexualidade são produzidos por meio de sistemas
dominantes de representação, por exemplo, a mãe trabalhadora rural, tem sua escolha
constrangida pelos discursos dominantes do macho, ou seja, a forma como vivemos nossas
identidades sexuais é mediada pelos significados culturais sobre a sexualidade, em razão
disso, surge os novos movimentos sociais, que buscam politicas de identidade.
Estas políticas de identidade partem das diferenças, concentrada nas divisões de
gênero, que tem o poder distribuído de forma desigual, onde homens e mulheres estão em
oposição de poder.

Cixous sugere que as mulheres estão associadas com a natureza e não com a
cultura, com o “coração” e as emoções e não com a “cabeça” e a racionalidade. A
tendência para classificar o mundo em uma oposição entre princípios masculinos
e femininos, identificada por Cixous, está de acordo com as análises estruturalistas
baseadas em Saussure, as quais vêem o contraste como um princípio da estrutura
linguística (HALL, 1997a). Mas, enquanto para Saussure essas oposições binárias
estão ligadas à lógica subjacente de toda linguagem e de todo pensamento, para
Cixous a força psíquica dessa duradoura estrutura de pensamento deriva de uma
rede histórica de determinações culturais (WOOKWARD, 2005, p. 51).

A segunda posição centra-se nas estruturas sociais: aqui as mulheres são identificadas
com a arena privada da casa e das relações pessoais e os homens com a arena pública do
comércio, da produção e da política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da temática apresentada podemos observar que identidade é um conceito


com características variadas e peculiares. A construção da identidade é considerada uma
problemática da modernidade. Em razão das liberdades, o sujeito passa a se questionar a que
identidade deve se ter, pois estas são variáveis, dependendo de questões subjetivas,
ancoradas no processo social.
Nesse processo, também aparecem as lutas moralmente motivadas por grupos sociais
que buscam estabelecer formas de reconhecimento recíproco, devendo estar adequadamente
concebidas para auxiliar as lutas por redistribuição.
896

O desafio ainda é compreender da realidade sociológica vivenciada pelas mulheres


agricultoras, analisar as diferenças que compõe a identidade destas.
A mulher rural é responsável pela alimentação familiar, participação da colheita,
arrumação da casa, cuidados do quintal e dos animais, ou seja, corresponde às atividades
domésticas e a força de trabalho rural, estabelecendo uma dupla jornada ainda mais dura e
penosa que a das zonas urbanas, vivência invisibilizada, já que embora integrada no processo
produtivo da agricultura familiar não há reconhecimento social, pois ainda é relacionada a
sua missão em razão da sua natureza solidária em prol da família.
Entretanto, as mulheres começam a romper com as barreiras das falsas identidades,
buscando seu reconhecimento social e seus direitos, unidas pelos movimentos sociais, frente
as interações no seu ambiente que culminam nos conflitos apresentados na teoria do
reconhecimento elaborada por Honneth, em que o sujeito elabora a sua identidade a partir
da interação social e Nancy Fraser avança a teoria de Honneth ao trazer ao debate acerca do
reconhecimento a questão da redistribuição, no presente trabalho aborda se estes conceitos
pontuando questões sobre identidade e reconhecimento relacionado a desigualdades de
gênero.
A partir do século XX, as lutas pelo reconhecimento da diferença, trouxeram
reivindicações outras que não mais só a redistribuição de riquezas, igualdade e justiça social,
mas também lutas de reconhecimento com base em noções de identidade, acontecendo a
eclosão de conflitos étnicos e religiosos, cada vez mais dependentes de avaliações culturais
em detrimento das económicas.
A invisibilidade do trabalho da mulher no campo e a não remuneração decorrem da
manutenção das sociedade tradicional rural que contempla na sua essência a desigualdade
de gênero, sendo as políticas públicas o caminho para reconhecimento e redistribuição, pois
a mulher do campo necessita do reconhecimento como trabalhadora rural e também de
garantias de autonomia econômica, que possibilite a mudança e transformação nas relações
de desigualdade de gênero.
Podemos concluir que muito embora haja uma discussão entre os autores
apresentados, muito contribuem para o tema da identidade feminina no campo e as divisões
entre reconhecimento e redistribuição relacionada ao gênero, pois o reconhecimento se
baseia na interação entre indivíduos que condescendem de ideais e veem a na luta uma
resposta para injustiças sofridas dentro de uma sociedade.
897

REFERÊNCIAS

BRESSIANI, Nathalie. Redistribuição e reconhecimento - Nancy Fraser entre Jürgen


Habermas e Axel Honneth. Cad. CRH vol.24 nº.62 Salvador May/Aug. 2011, Scielo,
disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
49792011000200007, acessado em 04.04.17
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1989.
DURHAN, Eunice. A Caminho da Cidade. Editora Perspectiva S.A : São Paulo, 1973
FRASER, Nancy. Da distribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era pós
socialista. Caderno de Campo, São Paulo, nº 14/15, p. 1-382, 206
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.
Trad. De Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. P. 7-29 e p. 155-227.
KRISCHKE, Paulo J. Governo Lula: Políticas de Reconhecimento e de Redistribuição.
Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Nº 47 – Outubro de 2003.
RICOEUR, Poul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006. P 105-167
SANTOS, Cristina. O lugar do consumo na problemática identitária contemporânea,
Forum Sociológico [Online], 23 | 2013, posto online no dia 01 Janeiro 2014, consultado o
04 Agosto 2016. 2016.
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual in T. T.
da Silva (org.), Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais, Petrópolis,
Editora Vozes, 2005
898

OS DESAFIOS DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO E


NA ADVOCACIA

Jeane Taysa Andreolli1


Rafaela Berton Bristott 2

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a valorização do profissionalismo


feminino, levando em conta a história da mulher no trabalho, sua evolução e atual realidade.
Com isso, intenta-se compreender o ingresso da mulher no mundo do trabalho, bem como
identificar os desafios já superados e os assuntos que permanecem inacabados em relação à
concretização efetiva da mulher como profissional e, também, analisar a conservação da
figura feminina como sexo frágil e menos competente para a atuação profissional. Visa-se
assim demonstrar a importância da participação da mulher, tanto nos ambientes profissionais
como na sociedade, além de retratar as contínuas discriminações vivenciadas dia a dia por
elas, e ainda, destacar a necessidade premente de direitos igualitários entre homens e
mulheres no cenário do trabalho.
Palavras-chave: desafios do profissionalismo feminino; direitos igualitários; trabalho
feminino; valorização.

INTRODUÇÃO

O problema social da desvalorização do trabalho feminino ainda é uma realidade


contemporânea, demonstrada por números alarmantes de mulheres que ocupam cargos
menos favorecidos e salários mais baixos em relação aos homens. Nesse contexto, a
discriminação existente em torno do universo feminino tem contribuído para dificuldades de
ascensão profissional das mulheres no mercado de trabalho.
Desde os primórdios, as mulheres eram vistas como aptas somente para os dotes
domésticos, com habilidades estritamente maternais e voltadas para a família, até o momento
em que começaram a trabalhar fora de casa, sendo colocadas então em espaços
desqualificados, retratadas como figuras frágeis e sem conhecimento técnico, o que perdurou
certo tempo. Mas, com a evolução da sociedade, as mulheres passaram a lutar mais pelos
seus direitos e buscar melhores condições de vida e trabalho.

1
Advogada. E-mail: jeane.taysa@hotmail.com
2
Advogada Especialista em Direito e Processo do Trabalho e Higiene e Segurança do Trabalho. E-mail:
rafaela.bertonbristott@gmail.com
899

A partir disso, resta evidente a essencialidade da valorização do trabalho da mulher,


seja para elas mesmas, como para toda sociedade, para que exista proteção das garantias e
dos direitos fundamentais existentes para todos, independentemente de gênero, e que devem
ser consagrados.
Assim, vislumbra-se ainda nos tempos atuais resistência quanto à progressão
profissional da mulher, nas mais diversas áreas e, principalmente, no meio jurídico. Mesmo
com conquistas já consolidadas, tem-se que o caminho para uma igualdade de direitos no
mundo profissional entre homens e mulheres possui sérios obstáculos a serem ultrapassados.
Portanto, havendo essa questão social e de direito ainda em construção e
desigualdades evidentes no ambiente profissional feminino em relação ao sexo oposto,
objetiva-se discutir nesse estudo os desafios que as mulheres já enfrentaram e os que ainda
precisarão encarar para conquistar reconhecimento pleno e ascensão profissional.

1 APORTES HISTÓRICOS DA FIGURA DA MULHER NO TRABALHO

No decorrer da industrialização ocorreu a inserção da mulher no mercado de trabalho,


tornando-se, dessa forma, o trabalho feminino mais aceitável pelos empregadores. Mas
desde os primórdios essa acessibilidade modelou-se no baixo custo pela sua mão de obra.
Nesse cenário, em todo tempo, a ocupação profissional feminina foi escassamente
valorizada; entretanto, por meio do trabalho as mulheres continuamente favoreceram
intensamente o progresso da sociedade em todos os seus âmbitos.
Ao longo da história, o desempenho da mulher no âmbito social é demarcado pelo
silêncio e diferenciação que se materializou em diversas formas, como nas ocupações
profissionais, na educação, pela família, nas incumbências sociais e na sexualidade. Na
maior parte das situações, as atribuições femininas eram zelar da casa, do marido e
reproduzir. Apenas mulheres de classe social elevada aprendiam a ler e escrever, enquanto
o homem realizava todas as outras obrigações. Segundo Aristóteles (apud ALVES;
PITANGUY, 1991, p. 11): “a mulher era igual ao escravo e ao estrangeiro, considerados
inferiores na sociedade”. A asserção de Platão, referida pelos autores supramencionados,
esclarece bem esta veracidade “Se a natureza não tivesse criado as mulheres e os escravos,
teria dado ao tear a propriedade de ficar sozinho” (p. 9). Assim, um aspecto histórico que
fomentou o ingresso das mulheres no mercado de trabalho foram as I e II Guerras Mundiais
900

(1914-1918 e 1939-1945, respectivamente), momento que os homens foram para as


dianteiras de batalha e as mulheres passaram a encarregar-se dos negócios da família e das
posições masculinas no mercado de trabalho (PELEGRINI; MARTINS, 2010, p. 58).
Dessa forma, foi durante a industrialização que as mulheres adentraram no mercado
de trabalho, sendo delas grande parte dos cargos e espaços não qualificados. A segmentação
do trabalho alicerçou-se assim com o argumento de que as mulheres não possuíam a
compreensão técnica para monitorar os serviços. São essas concepções segmentadas do
saber fazer e do ter o entendimento técnico para certa ocupação e, por conseguinte, o
reconhecimento e provento dos inerentes trabalhos, que levam as mulheres a se planejarem
na tentativa de constituir liames igualitários entre homens e mulheres no mundo do trabalho.
A participação das mulheres no mercado de trabalho retratou uma transformação relevante
na história. O trabalho fora do lar estabeleceu um significativo mediador para que as
mulheres realizassem atividades adiante dos muros de suas moradias, ocupando lugares
sociais e certas atividades profissionais até então consentidas e aprovadas unicamente para
homens (TEIXEIRA, 2009, p. 238).
Em torno do século XIX e o início do século XX no Brasil, imensa parte da classe
trabalhadora era composta por mulheres e crianças imigrantes, por constituírem uma ampla
porcentagem da força de trabalho à disposição e de baixo custo. Nesse período, a política
aplicada pelo governo brasileiro era acarrear milhares de migrantes europeus, para laborar
tanto em lavouras como em fábricas que despontavam nas cidades, sucedendo por sua vez,
a mão de obra escrava. Diante disso, as mulheres brasileiras necessitadas, principalmente
negras, passaram, após a abolição, a ocupar posições de trabalho desqualificadas, ganhando
pequeníssimos salários e dispondo de mau tratamento. Segundo documentos oficiais desse
tempo e estatísticas concedidas por médicos e autoridades policiais, foi possível verificar um
enorme número dessas mulheres como trabalhadoras domésticas, cozinheiras, lavadeiras,
doceiras, vendedoras de rua e prostitutas (RAGO, 2001 apud VASCONCELOS, 2013, p. 3).
Na transição do capitalismo pré-industrial para o capitalismo industrial, se deu a
inserção e participação, em maior número, das mulheres no mercado de trabalho. Também,
as mulheres passaram a ocupar postos de trabalho em maior quantidade após a I Revolução
Industrial, pois, em virtude de grandes guerras, os homens eram convocados para lutar pelo
seu país e restava a mão de obra da mulher para o mercado de trabalho.
901

A mão de obra feminina nas fábricas auxiliou para uma característica de “força de
trabalho ideal”, pois, as mulheres eram, principalmente, moças jovens que não tinham
responsabilidades familiares, sem filhos, com baixos níveis de escolaridade, sendo
submissas às determinações dos empregadores. Assim, devido a todas essas condições de
vida e sem perspectivas, se sujeitavam a salários baixíssimos, não sendo consideradas
pessoas pensantes, mas, simplesmente, tinham que render e dar lucro (NOGUEIRA, 2004
apud VASCONCELOS, 2013, p. 3).
Após esses períodos, é relevante contextualizar a atuação da mulher na esfera global,
com base em atuais estudos realizados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
No contexto internacional, a OIT efetuou um estudo em 2018 sobre o assunto, divulgado nas
proximidades do Dia Internacional da Mulher daquele ano. Depreendeu ele que as mulheres
são menos predispostas a atuar do mercado de trabalho do que os homens. Além disso, elas
possuem mais possibilidades de estarem desempregadas em toda parte dos países do mundo.
Conforme esse relatório, o índice global de atuação das mulheres na força de trabalho restou
em 48,5% em 2018. Isto é, 26,5 pontos percentuais inferiormente à taxa dos homens
(GOLDHAR, 2020, p. 1).
Nos cursos jurídicos, a presença das mulheres atinge consistência a começar da
década de 1970, reforçando-se com a expansão das faculdades privadas de Direito em
meados de 1990, que estendeu as possibilidades de ingresso para aqueles oriundos de origens
sociais diversas. Contudo, as consequências de uma ordem criadora estruturada
majoritariamente por homens, brancos, heterossexuais e da elite predominante no decorrer
do primeiro século de existência dos cursos de Direito substanciam os rastros de
desigualdades que reiteram na atualidade, pois é um passado que marca intensamente o
contemporâneo profissional, entre homens e mulheres (BONELLI; BARBALHO, 2008, p.
275).
Nessa acepção, há 120 anos, Myrthes Gomes de Campos se tornava a primeira
advogada do Brasil. Porém, entre finalizar a faculdade e ser nomeada no quadro de sócios
do Instituto dos Advogados do Brasil, antecedente à OAB, teve que aguardar sete anos. A
classe – até aquele momento tomada só por homens – tinha contrariedade de consentir com
uma mulher advogada em seus quadros. Foi nesse cenário que ocorreu a introdução feminina
no mundo jurídico brasileiro. Depois de um século, a atuação das mulheres como operadoras
do Direito não gera mais a mesma estranheza. Mas foram precisos 50 anos, desde o início
902

de Myrthes, até que o Brasil empossasse a primeira juíza mulher, Thereza Grisólia Tang. A
partir desse momento, outros 46 anos se sucederam até que a primeira mulher fosse
confirmada no STF – Ellen Gracie, em 2000. O ingresso de Gracie na mais alta corte do país
demonstrou uma antiga falta de preparo físico no órgão: o prédio não tinha nem mesmo
banheiro feminino à época (FRANTZ, 2019, p. 1).
À vista disso, a historicidade da mulher no trabalho revela que os âmagos culturais
continuamente influenciaram a figura feminina no ambiente do trabalho, dado que sempre
foram vistas com mais aptidões para cuidar do lar, do que competência e habilidade para
atuar no mercado de trabalho. Contudo, as mulheres lutam ao longo dos tempos por
igualdades de direito, principalmente nas relações de trabalho.

2 DIREITOS CONQUISTADOS ATÉ O MOMENTO PELAS MULHERES NO


MUNDO DO TRABALHO

Atualmente, o caminho da mulher no mercado de trabalho vem crescendo


exponencialmente, com um grande avanço do nível de instrução da população feminina,
além de atuarem em dupla jornada, já que trabalham ocupando cargos de responsabilidade e
ainda administram trabalhos domésticos. Nesse sentido, atuar no mercado de trabalho é êxito
recente das mulheres, assim como seus direitos relacionados à sua colocação e evolução no
mundo profissional.
A mulher sempre foi vista e considerada como um ser inferior ao homem,
principalmente no que tange às relações de trabalho, vivenciando desigualdades salariais,
excessivas jornadas de trabalho e péssimas condições de trabalho, estando expostas e sem
garantia de direitos.
No decorrer dos anos, as mulheres alcançaram paulatinamente seu lugar na
sociedade, na política, na economia e onde ela quiser. Ao observarmos as principais
realizações das mulheres ao longo da história em todas as instâncias, no Brasil e no Mundo,
visualizamos que no ano de 1827 desabrochou a primeira legislação onde se estabeleceu o
direito às mulheres no que tange a educação, permitindo assim, que as mulheres
conseguissem frequentar as escolas de ensino (NAVES; BARBOSA; COMPARINI, 2011,
p. 106).
A garantia de direitos trazidos em legislação, somente ocorreu com a Constituição
Federal de 1934, qual estabeleceu em seu texto, o direito de a mulher gestante usufruir de
903

três meses de licença. Após, com a promulgação da Constituição de 1946, a mulher obteve
como garantias o salário maternidade, ter assistência hospitalar à gestante e, um dos grandes
pontos, sendo proibida a diferença salarial por motivo de sexo, raça, nacionalidade, idade,
entre outras formas de discriminação.
No entanto, somente com a Constituição Federal de 1988 foi pontuado como
princípios fundamentais o respeito à dignidade humana, sem distinção de gênero, mas
considerando o respeito ao ser humano como indivíduos únicos no centro de direitos e
garantias, qual foi um ponto fundamental na busca pela diminuição da discriminação em
diversos aspectos, tal qual está inserido no artigo 5° da Constituição Federal de 1988 3, de
que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
A atual Constituição Federal, diante das evoluções ocorridas no decorrer dos anos,
ainda trouxe uma inovação em seu texto no artigo 7°, inciso XX4, qual evidencia em seu
texto, a necessidade de incentivos específicos, diante da desigualdade de gênero, que ocorreu
durante toda a história perante a mulher, para que esta se insira no mercado de trabalho,
protegendo-a de discriminações.
Cabe ressaltar, conforme mencionado anteriormente, que a Constituição Federal de
1988, procurou resguardar como princípio a dignidade do ser humano e a igualdade de
direitos, independente de gênero, raça, etnia, religião, credo, entre outros, ou seja, a não
discriminação, a proteção do trabalho da mulher, tendo como bem maior garantir ao ser
humano uma vida digna.
Nesse diapasão, o Dia 08 de março, conhecido como Dia Internacional da Mulher,
foi oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 1975, sendo
comemorado desde início do século XIX, qual retrata uma trajetória de lutas das mulheres
por igualdade de gênero, direitos e respeito, conquistas políticas e sociais, que somente
foram concretizadas após muito empenho e esforço.
A mulher vem se destacando numa trajetória incansável e árdua, de muita batalha,
pleiteando condições de igualdade no mercado de trabalho ao longo dos anos, não ficando

3
Artigo 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: - homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
4
Artigo 7º da Constituição Federal: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem
à melhoria de sua condição social: XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos
específicos, nos termos da lei”.
904

restrita somente aos afazeres domésticos, como dona de casa, cuidando do lar e de sua
família, mas se inserindo aos poucos ao mercado de trabalho, nas mais diversas profissões,
até mesmo laborando naquelas consideradas como “profissões masculinas”.
Nos dias atuais o universo da mulher não se confina apenas no âmbito do seu lar, da
vida doméstica e ao redor de sua família, mas estas têm participado cada vez mais ativamente
na sociedade. O reconhecimento como ser humano de direitos e cidadã foi conquistado
mediante muita luta, sendo que esta continua sendo necessária, pois mesmo diante de uma
era tecnológica e cada vez com mais acesso ao conhecimento e tecnologias, ainda há uma
trajetória em virtude das disparidades salariais e preconceito por ser tida como um ser frágil
e com pouca aptidão intelectual (SANTOS; SACRAMENTO, 2011, p. 2).
Os desafios não impediram as mulheres de ocuparem tais cargos, pelo contrário,
impulsionaram e estimularam elas a almejarem seus lugares e espaços nas mais diversas
profissões.
Na advocacia não foi diferente, desde os primórdios da existência se refere que há
indícios da advocacia, haja vista, sempre existir conflitos nos mais diversos aspectos e a
busca pela sua resolução, mesmo sem que houvesse os conhecimentos técnicos pertinentes
a profissão. No entanto, como o conhecimento e a capacidade da mulher eram subjugados
enquanto suas competências, era inaceitável o entrosamento da mulher na área das ciências
jurídicas pelo universo masculino e pela sociedade em geral devido ao contexto cultural.
Como anteriormente mencionado, a primeira mulher a exercer a profissão de
advogada no Brasil, foi Myrthes Gomes de Campos, qual fez a Faculdade Livre de Ciências
Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, se formando em 1898. Mas, Myrthes não foi a primeira
mulher a cursar e se formar em Direito, mas foi a primeira mulher a se desafiar e enfrentar
os preconceitos masculinos para exercer a profissão. Por mais que provou sua competência
ganhando a causa que defendeu na época, ainda levou sete anos para ser reconhecida pelo
Instituto dos Advogados do Brasil como profissional do Direito, qual ocorreu somente em
1906. Foi a pioneira na luta e defesa de Direitos, tais como à emancipação jurídica, sendo o
direito de participar do mercado de trabalho, da política e educação, direito ao voto feminino,
pontos referente ao divórcio e aborto, mesmo em uma época onde o patriarcado era
predominante (BANDEIRA, 2020, p. 1).
Assim, os avanços vêm acontecendo gradativamente, mas são fatos importantes e
fundamentais, inclusive na advocacia, qual vem se desenvolvendo a passos lentos. Conforme
905

pensamento do grande filósofo do Direito, Norberto Bobbio, em uma de suas obras, uma das
maiores metamorfoses do Século XX, ocorreu com a revolução feminina. Na OAB,
recentemente o ano de 2016 foi instituído como o ano das mulheres no Brasil, em que foi
dado uma atenção especial às demandas femininas no quesito de ter reconhecido e
consolidado os direitos humanos da mulher e suas prerrogativas no exercício da profissão,
inclusive, com o Provimento 164/2015 onde foi implementado o Plano Nacional de
Valorização da Mulher Advogada (FRANTZ, 2019, p. 1).
Outro ponto importante na busca por igualdade de gênero na Ordem dos Advogados
do Brasil, qual busca minimizar a desigualdade profissional, é a Comissão da Mulher
Advogada, que presta um importante serviço à sociedade feminina no geral. De acordo com
informação da OAB Seccional do Rio Grande do Sul5, são 39.907 advogadas inscritas e 696
estagiárias, totalizando 40.603 mulheres com cadastro ativo no quadro da Ordem no Estado.
Dessa forma, verifica-se que o reconhecimento da atuação profissional da mulher,
seu ingresso no mercado de trabalho, bem como seu desenvolvimento nesse cenário, foram
ocorrendo de passo a passo, numa estrada vagarosa, mas constante e incessante. Sendo que,
a metamorfose da mulher e sua consciência de importância na ocupação profissional e na
sociedade, somente reafirmam a essencialidade de suas lutas e continua buscas de condições
melhores e mais justas.

3 ADVERSIDADES A ENFRENTAR NO ÂMBITO PROFISSIONAL FEMININO

A mulher tem conquistado um espaço maior no mercado de trabalho, mesmo assim,


representam um número menor de profissionais atuantes em relação aos homens, bem como,
seus salários são inferiores. Dessa forma, ainda vivenciam imensuráveis obstáculos, assim,
a luta que não é de hoje, deve permanecer, pois há muito mais a se conquistar e evoluir na
valorização do trabalho feminino.
Atualmente, é relevante compreender que a mulher possui uma participação mais
objetiva no mercado de trabalho, na economia e na política do país. E é importante seu
desempenho nas carreiras jurídicas, como se verifica pela quantia de mulheres na advocacia.
Contudo, é imperioso que essa atuação seja possibilitada de maneira mais saudável e coesiva

5
Informação prestada pela Ordem dos Advogados do Brasil na data de 25 agosto 2020.
906

com as exiguidades femininas, através de igualdade de rendimentos e participações


(GOLDHAR, 2020, p. 1).
A participação de forma mais ativa por parte das mulheres se deu na década de 70,
no entanto, o marco da emancipação e independência, se deu a partir da década de 90 com o
movimento da redemocratização, quando realmente a mulher sofreu uma rompedora entre a
visão machista e somente maternal e familiar, além da visão de fragilidade e inutilidade em
lidar com situações que exigissem postura mais firme no meio de trabalho, passando
paulatinamente a desenvolver-se quanto a escolarização, iniciando os estudos cada vez mais
cedo, e, desde então, não cessando a busca por qualificação e desenvolvimento profissional,
assim, disputando cargos superiores e de maior visibilidade, mesmo ainda não obtendo a
remuneração igual de um profissional do mesmo cargo, mas do sexo masculino
(GOLDHAR, 2020, p. 1).
Nesse sentido, desde a inclusão das mulheres no mercado de trabalho no Brasil no
período dos séculos XIX e XX não significou a obtenção de espaço entre homens e mulheres
neste cenário, ao inverso, as mulheres eram notadas como uma reserva de mão de obra,
essencial à acumulação do capital, o que confirma a fragilidade de sua mão de obra,
estruturada ao mercado de trabalho no decurso dos períodos de crescimento econômico e
expulsas nas ocasiões de crise (apud HIRATA, 2002, VASCONCELOS, 2013, p. 4).
Historicamente, as mulheres ainda são menoridade no ambiente de trabalho, mas elas
voltam-se a buscar independência financeira, liberdade pessoal, afetiva e realização
profissional. É preciso haver mais espaço para as distinções individuais para que a mulher
busque remediar a secular herança de discriminação e silêncio, demonstrando suas
competências e sabendo lidar com sentimentos, sem permitir que eles as imobilizem ou
sobrecarreguem (PELEGRINI; MARTINS, 2010, p. 64).
Na década de 90, as mulheres começaram a serem chefes de família, alicerces do lar
e isso produziu uma identidade diferente, fazendo-as chegarem a posição de provedoras do
lar, uma responsabilidade que, duas décadas antes, cabia ao sexo masculino. De qualquer
forma, verifica-se que a mulher necessita correr duas vezes mais para atingir oportunidades
de trabalho que o homem possui, ou designado a ele historicamente, além de esquivar-se dos
preconceitos e a misoginia dominante em muitos casos (GOLDHAR, 2020, p. 1).
Considerando o mercado de trabalho, o enfrentamento de desafios pelas mulheres é
cotidiano. Os obstáculos para alcançar cargos de maior prestígio não são poucos, ou seja, a
907

mulher precisa demonstrar e lhe são exigidas ainda mais qualidades para galgar cargos
afamados. Além do conhecimento intelectual, as mulheres precisam demonstrar muita
firmeza, decisão e energia, quais qualidades por vezes, eram julgadas como específicas dos
homens (PELEGRINI; MARTINS, 2010, p. 58).
Corroborando com o entendimento de Saffioti (1979) que as mulheres sempre
estiveram presentes nas questões envolvendo o trabalho, bem como, conduzindo as suas
famílias, elas sempre trabalharam, sendo nas atividades domésticas, no trabalho rural, entre
outras atividades, quais contribuíram para o provimento de mantimentos, gerando
lucratividade, bem como, o desenvolvimento da importância do trabalho digno às mulheres
e o crescimento da mão-de-obra feminina (VASCONCELOS, 2013, p. 2).
Ocorre que, de acordo com pesquisas realizadas pelo IBGE6, no ano de 2019, o
rendimento médio mensal das mulheres foi 28,7% abaixo do que os ganhos dos homens,
observando os lucros de todos os trabalhos.
Nessa sequência, no mundo jurídico ainda há o predomínio de valores masculinos, a
despeito das mulheres representarem os mais variados cargos. Existem mulheres na
advocacia, na magistratura, desembargadoras, atuando como delegadas, entre outras. No
entanto, conforme maior o nível de poder de uma profissão na esfera do Direito, menos se
acham mulheres no poder (SALGADO, 2016, p. 64).
Assim, mesmo que existam progressos nos direitos femininos, estes são lentos, e
ainda existem muitas questões que necessitam ser dominadas. Os obstáculos da advocacia
feminina nunca encerram. E, no âmbito jurídico, costuma ocorrer de forma mais sutil,
singularmente por envolverem mulheres que possuem conhecimento de seus direitos.
Entretanto, em virtude do fato de mulheres já serem desprezadas em outros lugares, muitas
habituam nem estranhar o comportamento preconceituoso de colegas. Em razão disso,
muitas vezes, é necessário um olhar treinado para reconhecer determinadas discriminações
no dia a dia, tendo como exemplo a situação da mulher advogada não ser ouvida, a maneira
como suas opiniões não são consideradas, entre tantas outras (FRANTZ, 2019, p. 1).
Nesse sentido, a mulher nas profissões jurídicas não é impactada somente por uma
adversidade de alcançar os altos cargos, mas por uma série muito extensa de discriminações

6
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27598-homens-
ganharam-quase-30-a-mais-que-as-mulheres-em-2019.
908

diárias, que não terminam nem mesmo no momento em que essas mulheres desempenham
os mais altos cargos (SALGADO, 2016, p. 65).
Consoante Feuvre e Lapeyere (2005), a concepção do gênero na advocacia consiste
num ‘script sexuado’ de desenvolvimento na carreira, o qual presume que os homens são
eficientes no âmbito profissional não tendo que provar isso de antemão, ao passo que as
mulheres necessitam demonstrar que são capacitadas. Existe também a presunção que elas
não têm disponibilidade integral para o trabalho, outorgando-se somente às mulheres a
harmonização da vida familiar e profissional. Os homens estão desobrigados dessa
harmonização concebendo o perfil almejado pelas firmas de devoção integral à profissão.
Essa concepção das diferenças de gênero na advocacia foi vista em estudos internacionais,
embora à dimensão de atuação feminina na carreira varie muito conforme características
nacionais (BONELLI; BARBALHO, 2008, p. 276).
Deste modo, não houve adaptação da profissão a entrada maciça de mulheres
ocorrida nas últimas décadas, sendo que várias delas têm obrigações familiares, o que as
exige a confiar os cuidados com os filhos, dado que a maior parte das atividades reprodutivas
sempre pertence às mulheres. Resta comprovado que essas sociedades não manifestam
grande inquietude com tal situação, o que se torna um real contratempo à progressão das
advogadas e mesmo à sua conservação na sociedade (BERTOLIN, 2017, p. 16).
Atualmente, ainda se percebe não somente a resistência de certos homens à
progressão da mulher nas carreiras jurídicas, mas acima de tudo e tristemente, resistência da
própria mulher, que diversas vezes não comemora as conquistas da outra. Esta é uma questão
frágil, mas sobre a qual é necessário projetar o olhar. Em suma, é uma revolução cultural
que tem a ver com a mudança da mentalidade masculina, num primeiro momento. Apesar
disso, tem essencialmente a ver com a mentalidade das próprias mulheres e das mulheres na
advocacia. Elas necessitam se confirmar, assim, com novos papéis e posições no campo
profissional. E precisam se ver em regime cooperativo para com a própria classe
(GOLDHAR, 2020, p. 1).
Portanto, as conquistas e os caminhos a serem traçados para um reconhecimento
integral do profissionalismo feminino e sua adequada colocação no mercado de trabalho são
muitos, e precisam do apoio e comprometimento global. A relevância do trabalho feminino
na sociedade é de extrema importância e agrega muito valor a própria sociedade em si, mas
para que seja um exercício de profissão justo e gratificante muitos assuntos precisam ser
909

revistos e colocados em prática, para que direitos profissionais igualitários entre mulheres e
homens não sejam somente um demagogismo.

CONCLUSÃO

A valorização do trabalho feminino é uma questão em construção há muitas décadas.


Porém, em virtude do comportamento majoritariamente masculino no mundo do trabalho,
tal assunto é extremamente delicado, levando as mulheres a lutas e receptividades
lamentáveis em busca de uma melhor posição, confrontando discriminações e situações
indesejadas.
Dentre toda a história da mulher no trabalho, dedicou-se maior atenção à
padronização da figura feminina como mera cuidadora de lar, sem capacidades técnicas para
atuar no mercado de trabalho, assim como na sociedade em geral, devido a depreciação do
gênero feminino como um todo.
Com a industrialização, a mulher começou a se introduzir no ambiente do trabalho,
pois, vista com a força de trabalho necessária e baixo custo de produção despertou interesse
dos empregadores. Assim, deixou de ter somente a função de gestora do lar e passou a se
inserir no mercado de trabalho, mesmo ocupando os cargos menos favorecidos.
A discriminação da mulher na sociedade fez com que essa não fosse reconhecida
como cidadã de direitos por longo período de tempo. Com o passar dos anos, diversas
mulheres se desafiaram e lutaram por melhores condições de vida na sociedade, sendo
inserido aos poucos trechos nas Constituições respaldando direitos às mulheres.
A grande conquista de mais garantias, se deu com a Constituição Federal de 1988,
abrangendo direitos já adquiridos pelos homens nas constituições anteriores, às mulheres,
ou seja, sendo assegurado indiscutivelmente a igualdade entre homens e mulheres, e com
relação ao mercado de trabalho, a proteção de direitos e garantias ao trabalho da mulher.
Importante ressaltar que, no que se referem ao trabalho feminino, muitas batalhas
foram travadas pelas mulheres, até conquistarem o mínimo de direitos que são inerentes a
todos os indivíduos, principalmente na esfera do trabalho, independente de gênero. Dessa
forma, a valorização da mulher como trabalhadora ganhou certo destaque e vem crescendo
de forma exponencial, mas estudos mostram que são mais propensas ao desemprego e
salários inferiores.
910

Além do mais, o acúmulo de funções ainda é exigido a mulher, sendo que as mulheres
exercem, em grande número, multitarefas, tais como o seu trabalho profissional, ser esposa,
cuidar dos filhos e demais familiares e cuidar dos afazeres domésticos. Por vezes,
provocando uma estafa física e emocional.
Contudo, percebe-se que o predomínio de valores masculinos é o fator que atinge
diretamente esse desabono, e consequentemente dificultam a ascensão da mulher no cenário
profissional, razão que demonstram as diferenças que pontuam o abismo entre mulheres e
homens no mundo do trabalho, e que merecem serem revistas e reavaliadas.
Assim, o que se depreende é que a evolução da mulher no cenário trabalhista e sua
progressão profissional precisam de um olhar cuidadoso e oportunidades mais justas e
condizentes com suas capacidades, dado que, cada vez mais, os grupos femininos buscam
maiores conhecimentos e qualificações, para desempenharem bem suas funções, sejam elas
quais forem.
Portanto, diante do atual contexto social, que vive constantes mudanças e evoluções,
a valorização do trabalho da mulher é de extrema importância, além de o trabalho ser
condição fundamental para a subsistência e concretização social do indivíduo, livre de
gênero, assegurando-se a dignidade humana de todas as mulheres trabalhadoras, tanto no
ramo jurídico, como em qualquer outra profissão, bem como todos os seus direitos
fundamentais.
No âmbito da advocacia e ciências jurídicas não é diferente, as mulheres percorreram
uma longa trajetória, muitos desafios, preconceitos e discriminações até serem aceitas no
quadro de inscritos da OAB e serem reconhecidas como advogadas. Mesmo assim, a busca
pela igualdade é incansável, e com o passar dos anos vem ganhando espaço durante a sua
caminhada, e a trajetória para ter reconhecimento como profissional do meio é constante e
incessante, mesmo assim, muitas conquistas já foram alcançadas e outras são vislumbradas
pelas mesmas, de poder exercer sua profissão com igualdade de tratamentos e de
remuneração.
No atual contexto vivenciado, retrocessos não são possíveis de acontecer, mas sim,
cada vez mais avanços e reconhecimento da necessidade da igualdade entre homens e
mulheres no âmbito profissional.
Essa conclusão a que se chega baseia-se nas condições já vividas pela mulher nos
espaços de trabalho, na desvalorização que sentiram ao longo do tempo, no reconhecimento
911

dos enfrentamos que suportaram no propósito de melhores condições de trabalho, melhores


posições, e principalmente, na busca por direitos igualitários com os homens no âmbito do
trabalho.

REFERÊNCIAS

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BONELLI, Maria da Glória; BARBALHO, Rennê Martins. O profissionalismo e a


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912

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913

MULHERES RURAIS, MULHERES DE DIREITOS: ASPECTOS


PREVIDENCIÁRIOS E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA DE 2019

Diocelia Martins Teixeira1,


Rosane Marizeti Brum Vargas2

Resumo: A aposentadoria da mulher rural é uma das políticas públicas de igualdade de


gênero mais efetivas ao meio rural brasileiro. Desta forma, este estudo propõe apresentar a
situação da mulher do campo em relação a Previdência Social, os avanços e as mudanças
evidenciadas com a Reforma da Previdência, com a Lei 13.846/2019. Assim, através de
pesquisa bibliográfica, documental e dados estatísticos, como base de informações para
evidenciar essas conquistas e seu protagonismo, procurou-se caracterizar a mulher no mundo
rural, os aspectos principais da previdência social em relação às mulheres rurais, as
mudanças significativas que a reforma trouxe para a aposentadoria rural, além de esclarecer
quem tem direito a esse benefício, os requisitos, o valor do benefício e a nova forma de
comprovar as atividades rurais. Por fim percebe-se que a Reforma da Previdência, nesta
situação especial, não trouxe alterações significativas ao trabalhador rural, exceto na forma
de cálculo de benefícios e na comprovação de tempo de atividade rural.

Palavras chaves: Previdência Social; Reforma da Previdência, Mulher Rural,


Aposentadoria Rural.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição de 19883 foi um marco na história das mulheres ao proporcionar-lhes


o direito à aposentadoria por idade rural concedida aos homens há mais tempo, desde que
comprovassem vínculo com a agricultura familiar. Entretanto, segundo Souza, et al4, a
previdência social para o rural brasileiro foi tardia em relação ao urbano. A inserção das
mulheres no sistema previdenciário ocorreu ainda mais tarde, efetivou-se somente com as
aprovações das Leis n° 8.212 e n° 8.213 de julho de 1991.
Por outro lado, no Brasil, a conquista dos trabalhadores rurais pelos direitos
previdenciários vem acompanhada de muita luta. A Consolidação das Leis do Trabalho

1
Advogada OAB/RS 114.594, Mestre em Educação (UFSM/RS), Doutoranda e Ciências Jurídicas
(UMSA/AR). Membro do COMDIM-SM. e-mail: dioceliateixeira@yahoo.com.br.
2
Advogada OAB/RS 56.383B, Mestre em Ciências Ambientais (UFAM/AM). Membro do COMDIM-
SM./RS. e-mail: rosanebv.adv@gmail.com
3
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (CF). Rio de Janeiro: Ed. Saraiva, 1988. 331p.
4
SOUZA, E., L., da C; STADUTO, J., A., R.; KRETER, A., C. Previdência Rural e Mulher: uma análise
interregional a partir da perspectiva de gênero. Revista da ABET, v. 16, n. 1, Janeiro/Junho de 2017. p. 19 -
37.
914

(CLT)5 instituída em 1943, por exemplo, sequer mencionava-os e, mesmo após a criação do
Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural)6 em meados de 1971, os benefícios
previdenciários eram concedidos mediante uma série de restrições.
Atualmente, o princípio que garante a equivalência de benefícios às populações
urbanas e rurais encontra-se na Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.213)7, e
concede aos segurados especiais, desde 1991, o acesso à aposentadoria por invalidez, à
aposentadoria por idade, ao auxílio-doença e ao auxílio-reclusão ou de pensão, através da
comprovação do exercício de atividade rural, de forma contínua ou não.
Entretanto entre os anos de 2018 e 2019, estas leis anteriormente citadas, foram alvos
de uma extensa reforma previdenciária pelo Governo Federal e Congresso Nacional,
consolidada por intermédio da aprovação da Lei 13.846 de 18 de junho de 20198,
evidenciando marcos importantes dessa caminhada pela mulher rural em busca de seus
direitos.
Desta forma, o presente estudo tem por objetivo analisar a situação da mulher rural
em relação a previdência social, após a Reforma da previdência de 2019. Pretendemos aqui,
mostrar aspectos principais da previdência social em relação ás mulheres rurais, as mudanças
significativas que a Reforma trouxe para a Aposentadoria Rural, além de esclarecer quem
tem direito a esse benefício, os requisitos, o valor do benefício e a nova forma de comprovar
as atividades rurais.
Este trabalho baseou-se na análise empírica de dados relativos à demografia e à
previdência social. A base de dados da arrecadação e da concessão de benefícios da
previdência social, urbana e rural, foi obtida por meio de acesso aos dados abertos,
disponíveis na Secretaria de Previdência Social, referente ao período 2006-2017. Este banco
de dados inclui grandes números da previdência social, como quantitativo de benefícios

5
BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 03/10/2020.
6
O Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – FUNRURAL, é um instrumento de financiamento do
Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (PRORURAL), instituído pelo Governo Federal por intermédio
da Lei Complementar nº 11, de 25 de maio de 1971 (BRASIL, 1971).
7
BRASIL. Lei n° 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social
e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213compilado.htm .
Acesso em: 03/10/2020.
8
BRASIL. Lei n° 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social
e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213compilado.htm .
Acesso em: 03/10/2020
915

concedidos, dados do atendimento do INSS, arrecadação previdenciária, valores pagos aos


beneficiários, entre outros.
Para a análise demográfica do meio urbano e rural brasileiro, foram utilizados dados
da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD)9, referentes ao período 2012 -2019,
e do Censo Agropecuário de 201710, referente ao período de 2016-2017, ambos do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A PNAD, que tem como unidade de coleta o
domicílio, obtém informações anuais sobre as características demográficas e
socioeconômicas da população, como sexo, idade, educação, trabalho, rendimento,
informações sobre migração, fecundidade, nupcialidade, etc. Já o Censo Agropecuário, tem
como unidade de coleta a Propriedade Rural, sendo o último censo realizado em 2017. Essas
estatísticas possuem periodicidade variável.
Assim, para a concretização dos objetivos, o presente artigo compõe-se de cinco
partes, sendo que a primeira está incluída nesta introdução. Na segunda seção oferece-se um
panorama geral sobre a mulher no mundo rural e seu protagonismo na conquista de direitos.
Na terceira seção, são demonstradas as principais mudanças na legislação da previdência
social para os trabalhadores rurais, a partir dos movimentos da década de 1980 e da
Constituição Federal de 1988(CF/88). A quarta seção, trata da aposentadoria rural em 2020,
pós reforma previdenciária, apresentando-se uma análise à atual condição desse benefício,
dando ênfase à nova legislação previdenciária. Finalmente, na quinta seção apresentam-se
as considerações finais do presente estudo.

2. A MULHER NO MUNDO RURAL E O SEU PROTAGONISMO

Ao falar de mulher rural é preciso tecer considerações relevantes sobre sua atuação,
pois o protagonismo das mulheres rurais reflete a diversidade da atuação feminina em
campo. No Brasil, há uma tradição de organização de mulheres, que ganhou força no período
e 1960 a 1980. Nos anos 1980, os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais deram início a

9
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua - PNDA Contínua. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-
continua-mensal.html?=&t=o-que-. Acesso em: 25 de abril de 2020.
10
INTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA. Censo agropecuário. 2017. Disponível
em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/agricultura-e-pecuaria/21814-2017-censo-
agropecuario.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 03/10/2020.
916

movimentos como a Marcha das Margaridas, que tem sido uma das formas mais relevantes
para as mulheres rurais assumirem seu protagonismo no contexto nacional.
Processos emancipatórios de mulheres, em especial das agricultoras, produziram
significados culturais e de grandes impactos históricos, econômicos, religiosos e políticos e
sociais ao longo dos séculos. As mulheres sempre trabalharam, principalmente as mais
pobres, e as rurais, ainda mais, mas, a partir de uma visão elitista, colocou-se o trabalho
feminino como uma invenção do século 20.
Elas exercem múltiplas atividades além das do lar, são agricultoras, artesãs,
assistentes de saúde, comerciantes, professoras, líderes na comunidade. Antes vistas
meramente como ajudantes, as trabalhadoras rurais têm se destacado em diferentes etapas
do processo produtivo de alimentos e outras atividades relacionadas à geração de renda e
desenvolvimento econômico social no campo.11.
As pesquisas demonstram que as mulheres rurais são as responsáveis por mais da
metade da produção de alimentos do mundo quando sabemos que de 70% a 80% dos
alimentos são produzidos pelas mulheres rurais, principalmente os alimentos para
autoconsumo, além de exercem também um importante papel na preservação da
biodiversidade. É preciso dar visibilidade ao trabalho e a vida dessas mulheres.12.
Por outro lado, segundo Bojavic13, dados da FAO (Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e a Agricultura), apontam que as mulheres rurais são as que mais vivem
em situação de desigualdade social, política e econômica. Apenas 30% são donas formais de
suas terras, 10% conseguem ter acesso a créditos e 5%, a assistência técnica.
E os desafios para as produtoras rurais não param por aí. No mundo, em todas as
regiões, as mulheres rurais enfrentam mais restrições do que os homens no acesso à terra,
insumos agrícolas, água, sementes, tecnologia, ferramentas, crédito, assistência técnica,
culturas rentáveis, mercados de produção, cooperativas rurais e poder e decisão, embora em
muitas comunidades representem a base.

11
VARGAS, R., M., B. As feiras de produtos regionais: uma transformação do habitus na mulher
agricultora familiar. 2015. 160 f. Dissertação (Mestrado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade) -
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2015
12
VARGAS, R., M., B. ibidem
13
BOJANIC, A. A importância das mulheres rurais no desenvolvimento sustentável do futuro. Artigo
publicado pela FAO Brasil em 06/12/17. Disponível em: http://www.fao.org/brasil/noticias/detail-
events/pt/c/1071672/. Acesso em: 28/08 /2020
917

Essas mulheres, também são vítimas de discriminação nos trabalhos rurais, são as
mais mal remuneradas, e responsáveis pela maior parte do trabalho não remunerado, como
o cuidado da casa, dos filhos e dos afazeres domésticos. Esses são fatores que diminuem a
capacidade de cooperar com a produção agrícola e o desenvolvimento rural.
Mas esse quadro é possível ser mudado, nesse processo de estudar e entender as
mulheres rurais, a FAO tem constatado que, quando as produtoras conseguem ter acesso
igual ao dos homens a recursos produtivos e financeiros, oportunidades de renda, educação
e serviços, há um aumento considerável na produção agrícola e uma redução significativa
no número de pessoas pobres e com fome14.
O Perfil das mulheres rurais, segundo dados do IBGE15, cerca de 15 milhões de
mulheres vivem na área rural, o que representa 47,5% da população residente no campo no
Brasil. Considerando a cor e raça das mulheres habitantes da área rural, mais de 56% delas
se declaram como pardas, 35% brancas e 7% pretas. As indígenas compõem 1,1% da
população rural feminina.
Entre as mais de 11 milhões de mulheres com mais de 15 anos de idade que viviam
na área rural em 2015/17, pouco mais da metade (50,3%) eram economicamente ativas.
Considerando o rendimento médio, cerca de 30% ganhavam entre meio e um salário mínimo
e quase 30% não tinham rendimento.
Ainda, segundo o último Censo Agropecuário do IBGE de 2017 16, O número de
mulheres dirigindo propriedades rurais no Brasil alcançou quase 1 milhão.,
aproximadamente 20%, como pode-se observar na Figura 1 a seguir.
O IBGE identificou também, que 947 mil mulheres são responsáveis pela gestão de
propriedades rurais, de um universo de 5,07 milhões. Sendo que a maioria está na região
Nordeste (57%), seguida pelo Sudeste (14%), Norte (12%), Sul (11%) e Centro-Oeste, que
concentra apenas 6% do universo de mulheres dirigentes17.

14
BOJANIC, A. A importância das mulheres rurais no desenvolvimento sustentável do futuro. Artigo
publicado pela FAO Brasil em 06/12/17. Disponível em: http://www.fao.org/brasil/noticias/detail-
events/pt/c/1071672/. Acesso em: 28/08 /2020
15
INTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA. Censo agropecuário. 2017. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/agricultura-e-pecuaria/21814-2017-censo-
agropecuario.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 03/10/2020
16
Ibidem
17
Ibidem
918

Figura 1 - Mapa, Embrapa e IBGE divulgam resultados sobre Mulheres Rurais

Fonte: Banco de imagens Embrapa/IBGE/MAPA (2020)

De acordo com a mesma pesquisa, juntas, elas administram cerca de 30 milhões de


hectares, o que corresponde apenas a 8,5% da área total ocupada pelos estabelecimentos
rurais no país18.
Do total geral de estabelecimentos identificados pelo Censo Agropecuário 201719
(5,07 milhões), as mulheres são proprietárias de apenas 19%, enquanto os homens detêm
81%. Com relação às atividades econômicas desempenhadas nas propriedades, há uma
diferença entre mulheres proprietárias e não proprietárias.
Entre as proprietárias, 50% das atividades econômicas estão relacionadas à pecuária
e criação de outros animais; 32% à produção de lavouras temporárias e 11% à produção de
lavouras permanentes. Entre as não proprietárias (produtoras sem área; concessionárias ou
assentadas aguardando titulação definitiva; ocupantes; comendatárias; parceiras ou

18
INTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA. Censo agropecuário. 2017.
Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/agricultura-e-pecuaria/21814-2017-censo-
agropecuario.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 03/10/2020.
19
Ibidem
919

arrendatárias), 42% das atividades econômicas estão relacionadas à produção de lavouras


temporárias; 39% à pecuária e criação de outros animais e 7% à produção de lavouras
permanentes.
As demais se encontram distribuídas entre produção florestal (florestas nativas e
florestas plantadas), horticultura e floricultura, aquicultura, pesca e produção de sementes e
mudas certificadas.
Em Santa Maria, o quadro não difere muito do restante do pais, nas comunidades
rurais, as mulheres são mais longevas, mas, em número menor que os homens, quase todas
trabalham nas lidas da casa, cuidando dos filhos, horta e criação de animais do em torno da
moradia (galinhas, porcos, vacas). Segundo dados do PNDA /201720, a população rural é de
12.684 pessoas, onde 6.530 são homens e 6.154 são mulheres, que vivem em nove distritos
do Município. Com a seguinte distribuição: Arroio do Só- 318; Arroio Grande- 1.147; Boca
do Monte – 945; Pains- 2052; Palma – 405; Passo Verde – 248; Santa Flora – 425; Santo
Antão – 362; São Valentim -252; Total 6.154.
De acordo com as informações do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Santa Maria/RS (STRSM)21, as idosas, em geral são aposentadas e quase todas as
mulheres, mesmo as mais jovens, tem uma renda informal que vem da venda de ovos,
verduras, pequenos animais, alguns serviços extras como faxina e artesanato. Suas principais
demandas são quanto à saúde, consultas especializadas e informações encaminhamentos de
aposentadoria.
Nesse quesito, das demandas por saúde e aposentadoria, destaca-se a importância da
presença do STR (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) nas comunidades rurais, na
orientação e encaminhamento aos locais competentes, sendo o primeiro órgão a ser buscado,
pelas trabalhadoras rurais. Exercendo sua função de apoio, com bastante credibilidade entre
as trabalhadoras rurais locais.
Quando se trata dos direitos das mulheres: direito à educação, direito à saúde, direito
a uma vida digna, à alimentação e direito ao lazer, ao descanso, a não violência. Segundo as
experiências de trabalho, junto ao COMDIM/SM (Conselho Municipal dos Direitos da

20
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua - PNDA Contínua. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-
continua-mensal.html?=&t=o-que-. Acesso em: 25 de abril de 2020.
21
Entrevista oral realizada em 24 de abril de 2020 pelas autoras junto ao Sr. CELIO LUIZ FONTANA,
Presidente do STRSM.
920

Mulher): “ quando em contato com as mulheres rurais, ficamos surpresas, porque muitas
mulheres nos perguntam: “mas, isso é um direito? Observa-se casos de violência que se
perpetuam há anos, sem que elas não sabiam que é uma violência”22. Percebe-se assim,
que o desconhecimento das mulheres rurais acerca dos próprios direitos, merece atenção por
parte da Sociedade.
Além disso, os direitos da mulher, são devidos às mulheres em face do contexto de
desigualdade de poder e violência de gênero verificado na sociedade, em consonância com
o princípio da dignidade humana e demais direitos humanos. Visa a diminuição dos números
alarmantes de violência e desigualdade e o fim da cultura da opressão. Apesar dos inúmeros
avanços e conquistas no âmbito da Leis, como a Lei Maria da Penha/200623, que cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, Lei do
Feminicídio/201524, entre outras, constata-se um aumento nos casos de violência, e se faz a
leitura de que a lei por si só não é eficaz, é preciso um esforço conjunto toda a sociedade
para mudança deste quadro atual. É preciso mais políticas públicas de gênero.
E fica evidente também, a importância do recebimento de uma renda, seja
governamental ou de trabalho, pois, fortalece essas mulheres, cria protagonismos, liberta-as
de diversos ciclos de violência, traz dignidade.

3. A PREVIDÊNCIA RURAL E A MULHER

A Previdência Social Rural constitui-se num dos principais direitos sociais


alcançados pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais e uma das mais efetivas políticas
públicas que chega ao campo brasileiro.
Fruto de uma histórica e intensa luta do Movimento Sindical de Trabalhadores e
Trabalhadoras rurais (MSTTR) desde o início da década de 1960, a proteção previdenciária
só foi efetivamente alcançada com a Constituição Federal de 1988, que foi um marco na
história das mulheres, a inserção destas no sistema previdenciário ocorreu ainda mais tarde
do que aos homens, efetivou-se somente com a Lei n° 8.212 e n° 8.213 de julho de 1991.

22
Entrevista concedida em 24 de abril de 2020 pelo Jornal Diário de Santa Maria pela autora (Rosane
M.B.Vargas), Presidente do COMDIM/SM.
23
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 03/10/2020
24
BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Lei do Feminicídio. Disponível em:.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm Acesso em: 03/10/2020
921

De acordo com Delgado e Cardoso Junior (1999) apud Kreter (2005)25, até a
Constituição de 1988, o meio rural só havia tido algumas tentativas de integração ao sistema
de previdência. Se comparado ao trabalhador urbano, houve substancial defasagem nas
políticas públicas voltadas a estes trabalhadores. Com a mudança, o sistema de previdência
social criou novas oportunidades de inclusão na concessão do benefício, dando igualdade de
direitos a homens e mulheres.
Os trabalhadores rurais participam do sistema de previdência e contribuem para o
Regime Geral da Previdência Social, por meio de dois tipos de benefício: o de contribuição
obrigatória e o de contribuição facultativa.
No primeiro deles, os trabalhadores rurais trabalham com carteira assinada,
contribuem para a previdência social durante suas vidas laborais e gozam da aposentadoria
na inatividade, recebendo até 100% do salário-de-benefício. A segunda categoria abrange,
principalmente, os trabalhadores rurais classificados como segurados especiais. Nesta
categoria, estão sendo considerados os trabalhadores rurais informais, que participam da
agricultura familiar ou da agricultura de subsistência. Estes trabalhadores, apesar de não
contribuírem compulsoriamente para a previdência social, têm o direito de receber a
aposentadoria por idade ou por invalidez no valor de um salário mínimo, mediante
comprovação de exercício na atividade rural.
Assim, a previdência social considera o trabalhador rural por conta-própria ou em
regime de agricultura familiar como segurado especial. Este segurado especial é definido no
inciso VII do artigo 11º da Lei no 8.213/91 e CF/88 (com inclusões pela Lei nº 11.718, de
2008), onde inclui seus respectivos cônjuges e companheiras.
Delgado e Castro (1999) apud Souza at al26 (2017) analisaram o sistema de
previdência rural como uma espécie de seguro social no campo, capaz de financiar a
agricultura e reconfigurar o papel do idoso no ambiente familiar, ao possibilitar que os idosos
migrem da condição de dependentes, ao contribuírem com sua renda na família.

25
KRETER, A., C. A Previdência Rural e a condição da mulher. Revista Gênero, v. 5. n.2. Niterói, Rio
de Janeiro, Brasil. ISNN 2316-1108. 2005.
26
SOUZA, E., L., da C; STADUTO, J., A., R.; KRETER, A., C. Previdência Rural e Mulher: uma análise
interregional a partir da perspectiva de gênero. Revista da ABET, v. 16, n. 1, Janeiro/Junho de 2017. p.
19 -137
922

Já de acordo com Nascimento et al. (2013) e Staduto et al. (2015) apud Souza at al27,
os homens ainda são os maiores responsáveis pela formação da renda familiar. Por outro
lado, as transferências governamentais –aposentadorias e pensões– são as principais fontes
de renda das mulheres.
Autores como Caldas e Sacco dos Anjos,28 veem a previdência rural como um regaste
histórico de uma população que ficou durante muito tempo esquecida, também concordam
que é uma forma de manter o agricultor no campo.
A trajetória de luta das mulheres no campo no período recente da
história brasileira, que remete aos anos 1980, seus movimentos sociais, mostram a força da
reivindicação pelo reconhecimento como trabalhadora e como cidadã.
Há que se destacar nessa trajetória das mulheres do campo, a luta para ser aceita
como sindicalizada nos sindicatos dos trabalhadores rurais, a luta pelo acesso à previdência
e a licença-maternidade. A concessão do salário maternidade para a segurada especial foi
implementada pela Lei no 8.861/94.
A superação da subordinação das mulheres rurais e da luta por reconhecimento de
direitos e igualdade, tem sido objeto da ação política dos
movimentos de mulheres e da auto-organização dessas em movimentos sociais. Como
exemplo dessa mobilização, destaca-se no Brasil a Marcha das Margaridas. Estas
mobilizações criaram condições mais favoráveis para a formulação e a implementação de
políticas públicas para as mulheres rurais e para a afirmação de uma agenda feminista no
desenvolvimento29.
Considerando que em 2019, houve a reforma da Previdência Social, mantendo
muitos direitos já conquistados, fazendo apenas alteração na forma de comprovar esse
direito. Nesse contexto, destaca-se a importância da previdência rural para mulheres,
enquanto política pública, cujo benefício, contribui para a autonomia econômica das
trabalhadoras rurais, bem como uma maneira de reconhecimento do trabalho delas.

27
I SOUZA, E., L., da C; STADUTO, J., A., R.; KRETER, A., C. Previdência Rural e Mulher: uma análise
interregional a partir da perspectiva de gênero. Revista da ABET, v. 16, n. 1, Janeiro/Junho de 2017. p. 19 -
137
28
CALDAS, N.V.; SACCO DOS ANJOS, F. Agricultura familiar e previdência social: envelhecendo na
pobreza? Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 24, n. 1/3, p. 131-158, jan. /dez. 2007.
29
BUTTO, A. Políticas para as mulheres rurais: autonomia e cidadania. In: BUTTO, A.; DANTAS, I. (Orgs.).
Autonomia e cidadania: políticas de organização produtiva para as mulheres no meio rural. Brasília: Ministério
do Desenvolvimento Agrário, 2011. 192 p.
923

A previdência social pode ser vista também, como uma política de enfrentamento da
pobreza no Brasil, bem como da extensão plena desse benefício para os trabalhadores por
conta-própria e para aqueles que trabalham em regime de agricultura familiar, mesmo sem-
contribuição, significam medidas que impactam a vida de uma grande parcela da população
brasileira.
O protagonismo das mulheres desde os anos 80, com o marco na Constituição
Federal de 1988, trouxe mudanças institucionais e avanços nos direitos das mulheres, além
do reconhecimento do trabalho das mulheres rurais por meio da aposentadoria como
trabalhadora na agricultura familiar, o auxílio maternidade, o crédito pelo Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), a documentação da
trabalhadora rural, dentre outros.
Esses chamados recursos previdenciários estariam assumindo o papel de uma
espécie de “seguro-agrícola” ante a reiterada instabilidade dos mercados e a precariedade
das políticas de apoio às atividades agrícolas. Delgado e Cardoso Jr.30 afirmam que o
importante, nesse caso, é a sua função viabilizadora da produção familiar, na qual os
aposentados continuam vinculados a estabelecimentos rurais familiares na condição de
responsáveis.
Essa viabilização se dá de duas maneiras: utilizando-se o benefício previdenciário
como meio de produção familiar; e conferindo ao seguro previdenciário a condição de seguro
agrícola, dirigido a um público específico, agora desonerado dos altos riscos inerentes à
produção e à renda agrícola. Aqui, o seguro previdenciário funciona não apenas como seguro
de subsistência, mas também como seguro de produção familiar.
Na área rural, a implantação do subsistema rural de previdência social foi
fundamental na diminuição da pobreza e da desigualdade na distribuição da renda, além de
fomentar a economia local, e o aumento da inclusão social.

30
DELGADO, G.; CARDOSO JUNIOR, J. C. O idoso e a previdência rural no Brasil: a experiência recente
de universalização. Brasília: IPEA, 1999 (Texto para Discussão 688).
924

4. APOSENTADORIA RURAL DE 2020 – COM A REFORMA DA PREVIDÊNCIA

Com a reforma da Previdência, editada na Lei 13.846 de 18 de junho de 201931,


deixou a sociedade, principalmente os trabalhadores com dúvidas sobre as mudanças que
aconteceram. A seguir, numa breve interpretação da lei, vamos discorrer sobre os principais
pontos para a concessão da aposentadoria rural, em especial às mulheres, e o que mudou
com a reforma.

4.1. Quem tem direito à aposentadoria rural

A aposentadoria Rural é destinada aos trabalhadores que trabalham na zona rural dos
Municípios, e que devido à essa condição, possuem requisitos diferentes dos trabalhadores
da zona urbana, porque geralmente convivem com situações mais difíceis no dia a dia.
A lei que regula os trabalhadores rurais divide estes em quatro categorias de
segurado, levando em conta as circunstâncias da profissão e/ou condição pessoal dos
profissionais:
a) Segurado empregado: Essa categoria de trabalhador presta serviço, de forma
32
habitual, subordinado a um empregador, em um prédio rústico ou em uma propriedade
rural. Têm um vínculo de emprego, com o registro na Carteira de Trabalho das atividades
rurais prestadas. São os próprios empregadores que fazem a contribuição de seus
empregados para o INSS;
b) Segurado trabalhador avulso: a categoria é bem parecida com a dos
contribuintes individuais, pois, prestam serviço rural a várias empresas, sem vínculo de
emprego. Mas agora, houve uma mudança, com a Reforma da previdência– deve
haver intermediação obrigatória do sindicato da categoria ou do órgão gestor. Isso significa
que os segurados trabalhadores avulsos são vinculados a uma cooperativa ou a um
sindicato que administra os ganhos e eles mesmos fazem a contribuição previdenciária
correspondente. Nesta categoria, predominam os trabalhadores boias-frias e diaristas rurais;

31
BRASIL. Lei nº 13.846, de 18 de junho de 2019. Reforma da Previdência Social. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13846.htm. Acesso em: 03/10/2020.
32
Prédio rústico é aquele que se destina, pelas suas características, à lavoura, ou à exploração agrícola,
pecuária, extrativa ou mista, esteja situado ou não em zona rural.
925

c) Segurado contribuinte individual: estes segurados prestam serviços de


forma habitual e sem vínculo de emprego a uma ou mais empresas. O trabalhadore desta
categoria deve fazer sua própria contribuição para o INSS através de guias de recolhimento.
São em sua maioria, os boias-frias, diaristas rurais e trabalhador volantes; e;
d) Segurado especial: esses são os trabalhadores “mais conhecidos” quando falamos
de Aposentadoria Rural. Os segurados especiais são aqueles que
exercem algumas atividades rurais de maneira individual ou em regime de economia
familiar sem vínculo de emprego. O trabalho rural exercido pelo segurado especial deve ser
indispensável à sua própria subsistência e ao desenvolvimento da economia familiar,
precisando ser realizado em condições de mútua dependência e colaboração, sem utilizar
nenhum empregado. Esse é o significado de regime de economia familiar. A família é
responsável pela produção da propriedade (plantio, cria, etc.) sem ajuda de empregados, bem
como pela venda desses produtos. O que recebem é direcionado ao sustento da família e
compra de materiais para o trabalho (regime de subsistência). Em razão da maioria desses
trabalhadores não conseguirem reunir muitos documentos para comprovar suas atividades e
muito menos têm um vínculo de trabalho com alguém e também raramente
fazerem contribuições ao INSS, as regras são mais brandas para eles em relação aos outros
tipos de trabalhadores. A lei define quais são os tipos de trabalhadores que podem
ser segurados especiais: produtores rurais; pescador artesanal; indígena; garimpeiro;
membros da família de segurado especial.

4.2. Os requisitos da aposentadoria rural

Assim como as aposentadorias urbanas, a Aposentadoria Rural tem três espécies:


a Aposentadoria por Idade, Aposentadoria por idade híbrida e a Aposentadoria por Tempo
de Contribuição. As três têm diferentes requisitos e características, principalmente quando
tratamos do segurado especial.
- A aposentadoria por idade é destinada ao trabalhador rural que cumpre uma idade
mínima de 60 anos para homens e 55 anos para as mulheres, e 180 meses de carência para
ambos. A aposentadoria rural por idade, nada mudou na reforma da previdência.
- A aposentadoria rural por idade hibrida é aquela, desde 2008, quando é
possível juntar o tempo de carência de atividades urbanas com as atividades rurais. Isso
significa que há uma soma simples do tempo que você contribuiu para o INSS na zona rural
926

e na zona urbana para poder cumprir o requisito da carência. É o caso daquelas pessoas que
trabalharam durante certo tempo no campo e se mudaram para a cidade, conseguem utilizar
o tempo no rural para somar com o tempo urbano na aposentadoria. Os requisitos para a
Aposentadoria Híbrida são diferentes da Aposentadoria por Idade Rural. Os homens devem
ter 65 anos de idade e as mulheres 60 anos de idade e ambos 180 meses de carência. O
segurado especial também pode utilizar a Aposentadoria Híbrida, mas, ao invés da carência,
deve comprovar os meses de exercício de atividade rural.
- Aposentadoria rural por tempo de contribuição: nesta espécie de aposentadoria
o trabalhador precisa cumprir um tempo mínimo de tempo de contribuição para poder se
aposentar. Normalmente, essa aposentadoria vale para os segurados empregados,
contribuintes individuais e trabalhadores avulsos, porque os segurados especiais não
contribuem de forma direta para a Previdência. Para ter direito à ela, é preciso ter como
tempo de contribuição33, 35 anos para os homens, 30 anos para as mulheres e 180 meses de
carência para ambos.
Destaca-se que existem contagens específicas para o período rural. Os trabalhos
feitos no âmbito rural antes de 28 de novembro de 1999 são contados como tempo de
contribuição, devido uma lei que vigorava antes. O que configura no Direito o
chamado direito adquirido, quem contribuiu na zona rural antes dessa data, tem tempo de
contribuição realizado, e não carência. Portanto, se exerceu atividades, na condição de
segurado especial antes de 31 de outubro de 1991, todos os períodos são considerados
como tempo de contribuição, mesmo não tendo contribuído ao INSS. Só precisa comprovar
que você exercia as atividades antes dessa data na condição de segurado especial.
Isso acontece porque veio uma outra lei, de 1991, que modificou as normas
previdenciárias. Mas, para preservar os procedimentos feitos até a entrada em vigor desta
lei, os segurados especiais tiveram direito adquirido à essa norma. A Reforma da Previdência
não alterou os requisitos para a Aposentadoria Rural por Tempo de Contribuição.

33
O tempo de contribuição é diferente de tempo de carência. Isso porque o tempo de contribuição é contado
de data em data e a carência de mês a mês. Por exemplo, A entrou no trabalho no dia 31/01/2020 e saiu no dia
03/02/2020. Vai ter 3 dias de tempo de contribuição e 2 meses de carência (porque estava na empresa em
janeiro e em fevereiro, mesmo que não tenha trabalhado os 2 meses inteiros).
927

4.3. Valor da aposentadoria rural com a reforma da previdência

A Reforma alterou um pouco a forma do cálculo do benefício. A partir da Reforma


é considerado a média dos 100% salários desde julho de 1994, antes era considerada a média
dos 80% maiores salários. Ou seja, será feito a média de todos os seus salários para depois
ser aplicado o redutor. Isso significa que essa nova forma de cálculo pode causar um déficit
na sua aposentadoria. O valor da Aposentadoria dependerá de qual categoria de segurado
pertence. Os únicos não afetados com o novo cálculo são os segurados especiais que
recebem um salário-mínimo, quando comprovar 180 meses de atividade rural, porque não é
feito nenhuma média dos salários de contribuição deles. Em 2020 o valor do benefício é R$
1.045,00.

4.4. Nova forma de comprovar o período rural

Antes, eram aceitas declarações sindicais, mas isso acabou após a aprovação de
regras para tentar evitar fraudes nos benefícios do INSS. Desde a Lei 13.846/19, as
aposentadorias rurais passaram a ser concedidas com base no autodeclaração preenchida
pelo trabalhador rural, além das provas contemporâneas (da época do período de trabalho).
A Reforma da Previdência, que entrou em vigor no dia 13/11/2019, determina que a
partir de 01 de janeiro de 2023 a forma de comprovação da atividade rural e da condição de
segurado especial vai ser feita somente pelo Cadastro Nacional de Informações Sociais
(CNIS), quando este atingir a cobertura mínima de 50% dos segurados rurais. Isto é, quando
o cadastro atingir essa condição que vão utilizar o CNIS como forma de comprovação de
atividades rurais e do reconhecimento dos segurados especiais.
Com isso percebe-se que é preciso cuidar bem dos documentos que vão salvar
aposentadoria, tais como, contrato individual de trabalho ou CTPS, contratos rurais,
declaração de aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar ou
bloco de notas do produtor rural, notas fiscais de entrada de mercadorias emitidas pela
empresa adquirente da produção, com indicação do nome do segurado como vendedor,
comprovantes de recolhimento de contribuição à Previdência Social decorrentes da
comercialização da produção, cópia da declaração de imposto de renda, com indicação de
renda proveniente da comercialização de produção rural, licença de ocupação ou permissão
outorgada pelo INCRA.
928

Para comprovar a atividade rural para as diferentes categorias de segurados


empregados, contribuintes individuais e trabalhadores avulsos se dará através da
apresentação da sua documentação pessoal, como a sua Carteira de Trabalho e os
documentos que conseguir dos elencados acima.
Quanto ao Segurado especial, a Lei prevê uma forma diferente de comprovar sua
atividade rural e sua própria condição de segurado. O INSS está fazendo o cadastro dos
segurados especiais no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), que é abastecido
com informações de outros bancos de dados e também com documentos dos próprios
trabalhadores. Além dos documentos pessoais, é preciso preencher uma autodeclaração, em
que vai descrever quando foram suas atividades rurais, em que tipo de imóvel exercia o
trabalho, se seus familiares participaram das atividades, etc. Após o preenchimento, deverá
autenticar o documento em alguns dos órgãos do PRONATER34. Importante na hora de
certificar o documento, que sejam juntados documentos adicionais que comprovem situação
de segurado especial (o tempo de trabalho rural).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As lutas pela conquista de direitos das mulheres do meio rural, são tantas quanto os
papéis por elas desempenhados. Muitas são as histórias de vida inspiradoras. Entretanto, não
têm o devido reconhecimento, sofrem com preconceitos, violência, com desigualdades de
gênero e com outros problemas que herdaram da vida. Existe, ainda um longo caminho para
equilíbrio de direitos e oportunidades entre homens e mulheres. A equidade de gênero e
respeito são valores indispensáveis além da autonomia financeira buscada com a renda
mensal e a devida aposentadoria.
A previdência social rural constitui-se, num dos principais direitos sociais alcançados
pelos trabalhadores rurais, e uma das mais efetivas políticas públicas que chega ao campo
brasileiro. Foi fundamental na diminuição da pobreza, da desigualdade e diferenças de
gênero, na distribuição de renda, além de fomentar a economia local, e o aumento da inclusão
social. Trouxe dignidade e respeito à mulher no ocaso da vida.

34
A Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pronater) foi instituída em 2010 com a Lei
12.188/2010. Disponivel em : https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/agricultura-familiar/assistencia-
tecnica-e-extensao-rural-ater. Acesso: 03/10/2020
929

Apesar dos amplos esforços que vem sendo desenvolvidos percebe-se que não houve
mudanças significativas, pela nova Lei. A Reforma da Previdência de 2019, não alterou os
requisitos para a aposentadoria rural por idade e por tempo de contribuição. A Lei alterou a
forma do cálculo do benefício e a forma de comprovação da atividade rural e da atividade
de segurado da condição de segurado especial. A forma de cálculos, onde antes constava
80% dos maiores salários, passou a ser de 100% de todos os salários, o que possivelmente
irá causar um déficit na aposentadoria, dependendo da categoria. Quanto a forma de
comprovação, desde a Lei da Reforma, de 2019, as aposentadorias rurais passaram a se com
base na autodeclaração, autenticados pelo PRONATER. E a partir de janeiro de 2023, essas
comprovações serão feitas somente pelo CNIS.
Ainda que a previdência social não se caracterize como uma política de gênero, nem
como uma política para mulheres, a equiparação do direito à aposentadoria para mulheres e
homens pode ser vista como uma inclinação do Estado em formular políticas públicas
sensíveis ao gênero. Apesar das conquistas, muito ainda há a ser feito.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Saraiva,


1988. 331p.

BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Consolidação das Leis do Trabalho


(CLT). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm.
Acesso em: 03/10/2020.

BRASIL. Lei Complementar nº 11, de 25 de maio de 1971. Programa de Assistência ao


Trabalhador Rural. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp11.htm. Acesso em: 03/10/2020

BRASIL. Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade


Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências. Disponível em:
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932

EMBARGOS À EXECUÇÃO: A DEFESA DO EXECUTADO NO


CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Sara Daniela Silva de Souza1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo o estudo dos embargos à execução em relação
à defesa do executado no Código de Processo Civil de 2015. Será abordada a natureza
jurídica dos embargos, as matérias que podem ser alegadas na defesa do executado bem
como a possibilidade do efeito suspensivo. Ademais, será examinada a possibilidade de
audiência de conciliação ou mediação, a sentença e a coisa julgada no que concerne ao estudo
dos embargos à execução. Além disso, será analisada a jurisprudência e a doutrina
pertinentes ao tema.

Palavras-chave: Defesa do executado; embargos à execução; processo de execução.

1 INTRODUÇÃO

O novo Código de Processo Civil acarretou uma mudança na sistemática do processo


civil em relação ao Código anterior, ele pretendeu dar maior efetividade as decisões judiciais
buscando concretizar a segurança jurídica. Assim, busca-se na execução a agilidade do
processo bem como a satisfação da obrigação assumida pelas partes como forma de obter
um processo justo, eficiente e célere.
Dessa forma, em relação ao processo de execução no Código de Processo Civil de
2015 será analisada a defesa do executado através dos embargos à execução, visto que a
execução possui como fundamentos a satisfação do crédito do exequente e a expropriação
dos bens do executado quando este não realiza o pagamento da dívida de forma espontânea.
A execução por fundar-se em título executivo extrajudicial, já expõe a dívida e pede seu
cumprimento. Diante disso, de acordo com os princípios constitucionais que tutelam o
contraditório e a ampla defesa; o executado pode através dos embargos à execução
demonstrar a sua defesa perante a execução.

1Pós-graduanda em direito civil e processo civil pela FMP/RS. Bacharela em direito pela PUCRS. Advogada
OAB/RS 115.219. E-mail: sarasouzaadvocacia@gmail.com
933

Nesse estudo, portanto, serão abordadas as matérias que podem ser alegadas como
defesa do executado nos embargos à execução, a sua natureza jurídica e a possibilidade de
concessão de efeito suspensivo nos embargos. Com relação ao procedimento dos embargos
será examinada a possibilidade de audiência de conciliação ou mediação, a revelia do
embargado e a reconvenção, os prazos, a intervenção de terceiros e a possibilidade do
parcelamento na execução e por fim o estudo da sentença e da coisa julgada e seus efeitos
nos embargos à execução. O artigo tem por base a análise da jurisprudência e da doutrina
brasileiras bem como os princípios que protegem a execução evitando a maximização da sua
onerosidade.

2 EMBARGOS À EXECUÇÃO: PROCEDIMENTO

Os embargos à execução possuem a natureza jurídica de uma ação incidente, pois são
opostos pelo executado contra a execução em uma ação autônoma. Ademais, os embargos à
execução possibilitam que o executado apresente objeções quanto à execução e a
inexistência do direito de crédito do exequente, visto que no processo de execução o título
executivo extrajudicial possui uma presunção relativa de veracidade do crédito pretendido
pelo credor2.
A doutrina majoritária define que o pedido formulado nos embargos tem a natureza
de ação constitutiva negativa, pois o executado pretende a desconstituição do título executivo
extrajudicial. No entanto, quando o pedido se tratar de cumulação indevida de execuções,
não há a discussão sobre a plausibilidade do título, podendo o título ser executado mesmo
com a procedência dos embargos; portanto, a ação neste caso teria a natureza declaratória.
Destarte, Marcelo Abelha afirma que os embargos à execução podem ter a natureza de uma
ação declaratória ou constitutiva, ou até de ambas conforme o pedido do executado3.
Desse modo, os embargos à execução devem ser propostos no prazo de 15 (quinze)
dias a contar da juntada aos autos da citação. Quando se tratar de execução por carta
precatória o prazo dos embargos será contado a partir da data da juntada do comprovante de
citação nos autos da carta precatória, nos casos de os embargos versarem somente sobre os
vícios na alienação, na penhora ou na avaliação no juízo deprecado de acordo com artigo

2
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil:
tutela dos direitos mediante procedimentos diferenciados. 4 ed. vol. 3.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
3
ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
934

915, §2, inciso I do CPC; se os embargos forem interpostos por outras razões o prazo contará
a partir da juntada nos autos de origem da informação dada pelo juiz deprecado ao juiz
deprecante referente à realização da citação com base no artigo 915, §2, inciso II do CPC4.
Na citação por edital o executado terá o prazo de 15 (quinze) dias para interpor os
embargos à execução contados a partir do dia útil seguinte ao final do prazo assinado pelo
juiz em conformidade com o artigo 231, inciso IV do CPC5.
Na hipótese de haver vários executados, o prazo não será contado em dobro e será
contabilizado de forma individual para cada um dos executados a contar da juntada do
comprovante de citação com base no artigo 915, § 1º do CPC6. Quando houver cônjuges ou
companheiros o prazo é contado a partir da juntada aos autos da citação do último.
Os embargos à execução que forem interpostos fora do prazo serão considerados
intempestivos devendo o juiz rejeitá-los liminarmente nos termos do artigo 918, inciso I do
CPC. Ademais os embargos também serão rejeitados liminarmente pelo indeferimento da
petição inicial ou pela improcedência liminar do pedido, visto que se aplicam as regras dos
artigos 330, 331 e 332 do CPC7.
O juízo competente para julgar os embargos à execução é o juízo da execução; logo,
o juízo para conhecer os embargos na execução por carta poderá ser do juízo deprecante ou
será do juízo deprecado na hipótese de os embargos tratarem apenas dos defeitos na
avaliação, na penhora ou na alienação dos bens8.
Os legitimados para propor a ação são o devedor, seu cônjuge quando se tratar de
penhora de bem imóvel, e o sócio da empresa ou o responsável tributário.

Não é admitida a intervenção de terceiros nos embargos; todavia, é admissível a


figura do assistente processual e do amicus curiae. Não é possível a denunciação a lide e o
chamamento ao processo, visto que implicam em direito a uma prestação que geralmente
ocorre em processo condenatório, o que não é cabível nos embargos, já que não possuem

4 DIDIER JR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 7 ed. vol. 5. Salvador: JusPodivm, 2017.
5 DIDIER JR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 7 ed. vol. 5. Salvador: JusPodivm, 2017.
6 Artigo 915. Os embargos serão oferecidos no prazo de 15 (quinze) dias, contado, conforme o caso, na forma
do art. 231.
§ 1o Quando houver mais de um executado, o prazo para cada um deles embargar conta-se a partir da juntada
do respectivo comprovante da citação, salvo no caso de cônjuges ou de companheiros, quando será contado a
partir da juntada do último.
7
DIDIER JR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 7 ed. vol. 5. Salvador: JusPodivm, 2017.
8
TESHEINER, José Maria. Embargos à execução no novo código de processo civil. vol. 267. São Paulo:
Revista de processo, 2017. p. 273-286.
935

conteúdo condenatório, além disso, nos embargos somente há a condenação de forma


acessória por custas e honorários advocatícios9.
Os embargos não podem ser manifestamente protelatórios sob pena de o executado
responder pelas sanções do ato atentatório a dignidade da justiça; destarte, os embargos serão
julgados improcedentes10.
O embargado terá o prazo de 15 (quinze) dias conforme o artigo 920, inciso I do
CPC, para impugnar os embargos à execução, caso não se manifeste ocorrerá a revelia.
Ademais, como o embargado já trouxe seus argumentos na petição inicial da execução,
caberá a ele na impugnação contestar os pontos trazidos pelo devedor nos embargos ou
alegar caso de suspeição ou impedimento.
A revelia do embargado-exequente não terá efeitos quando os embargos tiverem por
objeto a desconstituição do título executivo, visto que o título possui presunção de
veracidade; contudo, a revelia terá efeitos quando os embargos se fundaram em outras
alegações, ou seja, o excesso de execução, a penhora ou avaliação incorreta, entre outras.
Sendo assim, em relação à reconvenção do embargado Araken de Assis afirma que
seria possível nos embargos à execução interpostos contra o processo de execução de título
executivo extrajudicial, destarte, serão observadas as regras do artigo 343 do CPC podendo
o embargado utilizar-se só da reconvenção conforme artigo 343, §6 do CPC11.
Neste sentido, Eduardo Alvim, Daniel Granado e Eduardo Ferreira também citam
que é possível a reconvenção do exequente, visto que não é vedado expressamente pela Lei
Processual, além disto, não há incompatibilidade entre a reconvenção nos embargos e o
processo de execução, já que são procedimentos distintos12.
Cabe destacar que a legislação processualista permite que o executado possa pagar
no mínimo 30% da dívida incluindo honorários advocatícios e custas processuais, e pagar o
restante em até 6 (seis) parcelas mensais acrescidas de juros de 1% ao mês e correção
monetária; entretanto, não poderá apresentar embargos à execução de acordo com o artigo
916 do CPC. Trata-se de um direito potestativo do executado não necessitando do aceite do
exequente; o credor será intimado apenas para se manifestar sobre o preenchimento dos

9
DIDIER JR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 7 ed. vol. 5. Salvador: JusPodivm, 2017.
10
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil:
tutela dos direitos mediante procedimentos diferenciados. 4 ed. vol. 3.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
11
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
12 ALVIM, Eduardo Arruda; GRANADO, Daniel William; FERREIRA, Eduardo Aranha. Direito processual
civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
936

requisitos do parcelamento com base no artigo 916, § 1 da Lei Processual Civil. Na hipótese
de inadimplemento o executado deverá pagar uma multa de 10% sobre as parcelas não pagas.
Assim, a decisão que defere ou indefere o pagamento em parcelas é impugnável por agravo
de instrumento13.
Os embargos à execução podem ser oferecidos sem a necessidade de depósito,
caução, ou penhora de bens em conformidade com o artigo 914 do Código de Processo Civil.
Trata-se de novidade do novo CPC, pois no CPC anterior, os embargos eram opostos com a
garantia do juízo, logo, a execução era suspensa. Já no atual Código os embargos do devedor,
como regra, não possuem o efeito suspensivo, exceto em alguns casos como veremos a
seguir.

2.1 DO EFEITO SUSPENSIVO

Os embargos à execução, em regra, não possuem efeito suspensivo; todavia, poderão


ter efeito suspensivo quando houver a garantia do juízo de acordo com o artigo 919, §1 do
CPC14, que pode ser por meio de indicação de bens à penhora, caução ou depósito. Para
suspender a execução é imprescindível que haja os requisitos da tutela provisória como o
fumus boni iuris e o periculum in mora, ou seja, que haja a probabilidade do direito e que
exista a possibilidade de dano grave ou de difícil reparação para o executado. Além disso, é
necessário o requerimento do embargante para a concessão do efeito suspensivo, já que o
efeito suspensivo não pode ser concedido de ofício pelo juiz. Ademais, a suspensão engloba

13
TESHEINER, José Maria. Embargos à execução no novo código de processo civil. vol. 267. São Paulo:
Revista de processo, 2017. p. 273-286.
14
Artigo. 919. Os embargos à execução não terão efeito suspensivo.
§ 1o O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando verificados
os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora,
depósito ou caução suficientes.
§ 2o Cessando as circunstâncias que a motivaram, a decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a
requerimento da parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fundamentada.
§ 3o Quando o efeito suspensivo atribuído aos embargos disser respeito apenas a parte do objeto da execução,
esta prosseguirá quanto à parte restante.
§ 4o A concessão de efeito suspensivo aos embargos oferecidos por um dos executados não suspenderá a
execução contra os que não embargaram quando o respectivo fundamento disser respeito exclusivamente ao
embargante.
§ 5o A concessão de efeito suspensivo não impedirá a efetivação dos atos de substituição, de reforço ou de
redução da penhora e de avaliação dos bens.
937

apenas aquilo que for impugnado, podendo a outra parte da execução que não foi questionada
prosseguir15.
A jurisprudência em conformidade com a Lei Processual elenca os requisitos para a
concessão do efeito suspensivo aos embargos do devedor. Vejamos16:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO FISCAL. ATRIBUIÇÃO DE


EFEITO SUSPENSIVO AOS EMBARGOS À EXECUÇÃO.
PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS.
- A atribuição de efeito suspensivo aos embargos à execução fiscal (art. 919, §1º,
do CPC/15, aplicável aos executivos fiscais por força do art. 1º da Lei 6.830/80) é
excepcional e depende (i) de requerimento do embargante; (ii) da
probabilidade do direito; (iii) da demonstração do perigo de dano ou o risco
ao resultado útil do processo; (iv) de garantia do juízo; todos presentes no caso
concreto, motivo pelo qual não merece reforma a decisão.
AGRAVO DESPROVIDO. (Grifou-se).

Presentes os requisitos da concessão do efeito suspensivo aos embargos, o Tribunal


de Justiça do Rio de Janeiro manteve o efeito suspensivo e negou provimento ao agravo de
instrumento. Examinemos!17

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMBARGOS À EXECUÇÃO.


INSURGÊNCIA QUANTO À ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO. I- No
caso, em exame perfunctório, restou comprovado o preenchimento de todos os
requisitos para a concessão do efeito suspensivo, a que alude o §1º, do art. 919, do
CPC, a saber: probabilidade do direito e perigo de dano de difícil ou de incerta
reparação, além da suficiente garantia da execução. II- Ausente a
demonstração de que as circunstâncias que motivaram a decisão não estão
presentes, deve ser mantida a decisão. III- Recurso desprovido. (Grifou-se).

O Tribunal de Justiça de São Paulo ao constatar a ausência dos requisitos de


concessão do efeito suspensivo dos embargos à execução não deu provimento ao recurso de
agravo de instrumento. Vejamos!18

15
CATHARINA, Alexandre de Castro. Da execução. In: ARAÚJO, Luis Carlos de; MELLO, Cleyson de
Moraes. et. al. (Coord.). Novo curso de processo civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015.
16
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de instrumento nº 70076289636. Relatora:
desembargadora Marilene Bonzanini. 20ª câmara cível. Julgado em 22 março de 2018. Disponível em:
https://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc. Acesso em 15 jun. 2020.
17
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Agravo de instrumento nº 0044791-25.2018.8.19.0000. Relator
desembargador: Ricardo Couto De Castro. 7ª câmara cível. Julgado em 28 agosto de 2018. Disponível em:
http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=00046C42AFCCC3BEDF01DDFD3F9
917C96EA6C50856561B03&USER= . Acesso em 01 fev. 2020.
18
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de instrumento nº 2099880-04.2018.8.26.0000.
Relator desembargador: L. G. Costa Wagner. 34ª câmara de direito privado. Julgado em 17 de setembro de
2018. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=11822856&cdForo=0. Acesso
em 10 mar. 2020.
938

Agravo de instrumento. Embargos à execução. Recurso contra indeferimento de


efeito suspensivo. Inviabilidade do pleito por ausência de requisitos autorizadores
exigidos pelo art. 919 do CPC, quais sejam, falta de pressupostos para concessão
de tutela provisória e de garantia do juízo da execução. RECURSO
DESPROVIDO. (Grifou-se).

No tocante ao litisconsórcio no processo de execução, o litisconsorte que não for


beneficiado com o efeito suspensivo, a execução continuará, já que o efeito suspensivo
possui limite subjetivo, isto é, o efeito suspensivo concedido a um dos executados não se
estende aos demais. Outrossim, a suspensão da execução não irá inibir os atos de
substituição, reforço ou redução da penhora e a avaliação de bens de acordo com o artigo
919, § 5 do CPC.
Nas palavras de José Medina19:
Nada impede que, concedido efeito suspensivo aos embargos à execução, o
embargado requeira a substituição da medida por caução. O CPC/2015 previu a
possibilidade expressamente, em relação à impugnação à execução de sentença
(cf. art. 525, § 10 do CPC/2015), devendo tal solução ser aplicada, por analogia,
também aos embargos à execução de título extrajudicial. Além disso, em princípio,
a prestação de caução idônea pelo exequente/embargado afasta, em princípio, o
perigo de dano que pode ter embasado a concessão de efeito suspensivo. Assim, o
efeito suspensivo atribuído aos embargos pode ser afastado, permitindo-se o
prosseguimento da execução, mediante caução idônea e suficiente, requerida e
prestada pelo embargado/exequente.

Poderá em situações excepcionais o juiz conceder o efeito suspensivo aos embargos


do devedor sem que haja a garantia do juízo. Conforme Luiz Marinoni, Sérgio Arenhart e
Daniel Mitidieiro20 a suspensão da execução não pode estar atrelada a garantia da execução
de forma inconquistável, pois caso o devedor não tenha patrimônio suficiente para garantir
a execução ou demonstrar que a execução é indubitavelmente inviável, poderá o juiz
conceder o efeito suspensivo sem a garantia desde que presentes os demais requisitos e que
o executado não tenha patrimônio para assegurar a execução.
Destarte, a decisão que concede, revoga ou modifica o efeito suspensivo dos
embargos à execução é impugnável por agravo de instrumento conforme previsão expressa
do artigo 1.015, inciso X do Código de Processo Civil; além disso, esta decisão poderá ser

19
MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil moderno. 5 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2020.
20
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil:
tutela dos direitos mediante procedimentos diferenciados. 4 ed. vol. 3.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
939

modificada a qualquer momento desde que cessadas as circunstâncias que a motivaram na


forma do artigo 919, §2 do CPC21.

2. 2 DA POSSIBILIDADE DE CONCILIAÇÃO

O artigo 139, inciso V do CPC trouxe como uma solução alternativa para solucionar
a lide a possibilidade da realização da audiência de conciliação ou mediação; devendo o juiz
promover a autocomposição com o auxílio de mediadores ou conciliadores sempre que
possível.
Logo, entendemos que a audiência de conciliação ou medição seria possível nos
embargos à execução, já que segue o procedimento comum, pois se trata de uma ação
incidental; além disso, no processo de execução há a discussão sobre direitos disponíveis,
ou seja, o direito patrimonial, cabível, portanto, a solução consensual entre as partes. Assim,
o juiz poderá designar a audiência de conciliação ou mediação ou designar a audiência de
instrução e julgamento ou julgar o processo no estado em que se encontra.
Diante disso, o artigo 771, parágrafo único indica que se aplicam subsidiariamente
as disposições do livro I da parte especial do CPC; portanto, poderia ser aplicada a solução
consensual de conflitos à execução, visto que o CPC traz essa possibilidade de as partes
buscarem soluções autocompositivas em razão do principio da cooperação entre as partes
para a solução do litigio de forma justa e efetiva, além do dever dos operadores do direito de
incentivar a conciliação entre os litigantes.
Luiz Marinoni, Sérgio Arenhart e Daniel Mitidiero também citam que é possível a
realização de audiência de conciliação nos embargos à execução 22 bem como Araken de
Assis que também possui esse posicionamento23. Embora não haja previsão expressa na
legislação processual civil é cabível o pedido de audiência de conciliação se o juiz entender
que há a possibilidade de autocomposição com base nos artigos 3, §3 e 139, inciso V do
CPC24.

21
Artigo 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:
X - concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução.
22
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil:
tutela dos direitos mediante procedimentos diferenciados. 4 ed. vol. 3.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
23
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
24
DIDIER JR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 7 ed. vol. 5. Salvador: JusPodivm, 2017.
940

Nesse diapasão, a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu que


não cabem embargos à execução somente para fazer a audiência de conciliação25.

EMBARGOS À EXECUÇÃO. APELAÇÃO CÍVEL. AUDIÊNCIA DE


CONCILIAÇÃO. DESIGNAÇÃO. ÚNICO PEDIDO. MEIO INADEQUADO.
NATUREZA DE DEFESA. RESISTÊNCIA À EXECUÇÃO. POSSIBILIDADE
DE PLEITO DA AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO NA AÇÃO DE
EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE PROPOSTA CONCRETA. DESINTERESSE DO
EMBARGADO. OBRIGATORIEDADE NA DESIGNAÇÃO. AUSENTE. 1. Os
embargos à execução, em razão de sua natureza de defesa, como ação
autônoma para resistir à execução, são meio inadequado para se pleitear
unicamente a audiência de conciliação, visto que se há interesse na
composição não há que se falar em resistência a execução. 2. Além disso, a
composição pode ser realizada a qualquer momento na própria ação de execução,
não se revelando viável o acolhimento da tese recursal, no sentido da cassação da
sentença, com objetivo de somente se pleitear a audiência de conciliação nos
embargos. 3. Noutro giro, percebe-se que o embargante, apesar de solicitar
audiência de conciliação, não apresenta qualquer proposta de pagamento ao
embargado. 4. No processo de embargos à execução, presente o desinteresse
do embargado na designação de audiência de conciliação, não há
obrigatoriedade de se designar audiência para tal fim. 5. Recurso conhecido e
desprovido. (Grifou-se)

Na decisão o tribunal entendeu que não é possível realizar a audiência de conciliação


nos embargos do devedor quando este é o único motivo para a interposição dos embargos,
além disso, o posicionamento da corte foi de que os embargos são um meio de defesa e
resistência ao processo de execução; o que não ocorreu no caso concreto, pois o objetivo da
interposição dos embargos era apenas a autocomposição. O tribunal ainda se manifestou no
sentido de não haver a obrigatoriedade da audiência de conciliação nos embargos caso o
embargado manifeste o seu desinteresse.
Dessa forma, quando houver a audiência de conciliação ou mediação prevista no
artigo 334 do CPC o prazo que o embargado terá para oferecer a sua defesa nos embargos
será contado a partir da data da audiência da conciliação ou mediação ou de sua última sessão
de acordo com o artigo 335, I do CPC; ou do protocolo da manifestação do exequente sobre
o seu desinteresse em conformidade com o artigo 335, II do CPC; ou conforme dispõe o
artigo 335, III do CPC na forma do artigo 231 do CPC, por exemplo, da intimação feita ao
advogado do exequente por meio eletrônico26.

25
DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 0011650-79.2017.8.07.0001. 7ª turma cível.
Relatora: Gislene Pinheiro. Brasília (DF), 07 de junho de 2018. Disponível em:
https://oabjuris.neoway.com.br/process/b9dcee519a4620de39e10a429a46f4f5c55f59bc821224c976c6db9eae
21977a?searchId=c143666e-9181-4c0f-bcd1-6d48427492a8. Acesso em: 07 ago. 2020.
26
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
941

2.3 A DEFESA DO EXECUTADO

Os embargos à execução são uma forma de oposição à execução proposta pelo


exequente. Dessa forma, a Lei Processual Civil no seu artigo 917 elenca as matérias de
defesa que podem ser alegadas nos embargos do devedor.
Diante disso, Arakem de Assis aduz que os embargos à execução apresentam
cognição plenária quando fundados em título executivo extrajudicial presente no artigo 784,
inciso II a XI, podendo também ter cognição ampla em títulos encontrados em leis
extravagantes com base no artigo 784, inciso XII. O artigo 917, inciso VI, traz a
possibilidade de o embargante alegar toda e qualquer matéria que seja lícita ao processo de
conhecimento; entretanto, os embargos podem exibir uma cognição sumária, por exemplo,
quando se tratar de títulos de créditos, ou seja, nota promissória, cheque, que tenham sido
endossados a terceiro de boa fé, visto que não poderá ser discutido o negócio subjacente ao
título em nome do princípio da autonomia dos títulos cambiais disposto na Lei Uniforme de
Genebra27.
José Tesheiner afirma que os embargos podem apresentar defesa ampla quando as
partes, que pactuaram o negócio jurídico que deu origem ao título executivo extrajudicial,
forem as mesmas do processo de execução28.
As matérias que podem ser suscitadas nos embargos à execução estão arroladas no
artigo 917 do CPC, que apresenta um rol meramente exemplificativo, visto que são admitidas
outras hipóteses, por exemplo, quando ocorre a inconstitucionalidade de norma tributária
que é superveniente a inscrição da dívida ativa. Poderá ser alegado: a inexigibilidade do
título ou da obrigação, a avaliação ou penhora incorreta, excesso de execução ou cumulação
indevida de execuções, retenção de benfeitorias úteis ou necessárias, a incompetência do
juízo e qualquer matéria de defesa que poderia ser alegada em processo de conhecimento.
A novidade do novo CPC é que agora é possível a alegação da inexigibilidade da
obrigação ou inexequibilidade do título e a incompetência absoluta ou relativa do juízo da
execução, as demais matérias continuam sendo as mesmas do CPC anterior. O Código de

27
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
28
TESHEINER, José Maria. Embargos à execução no novo código de processo civil. vol. 267. São Paulo:
Revista de processo, 2017. p. 273-286.
942

Processo Civil de 1973 já permitia a alegação de incompetência relativa nos embargos, e


permitia a alegação da incompetência absoluta por petição simples29.
A incompetência absoluta poderá ser alegada a qualquer tempo, pois se trata de
matéria de ordem pública. Ademais, trata-se de incompetência em razão da matéria,
hierarquia ou pessoa. Já a incompetência relativa deverá ser requerida pela parte, já que
apresenta interesse privado sob pena de preclusão em conformidade com a Súmula 33 do
STJ, visto que se trata de incompetência territorial ou em razão do valor da causa.
A inexequibilidade do título extrajudicial poderá ser mencionada quando o título não
contém um de seus requisitos como a exigibilidade, liquidez e certeza na forma do artigo
784 do CPC. Por exemplo: um contrato particular de confissão de dívida que não possui a
assinatura das testemunhas; portanto, o título não conterá um de seus requisitos essenciais
como a exigibilidade30.
Já a inexigibilidade da obrigação poderá ser proposta nos embargos quando a
obrigação depende de uma condição ou termo para ser exigida pelo exequente. A prova da
ocorrência do termo ou da condição incumbe ao exequente; destarte, quando interpostos os
embargos pelo executado e ocorrer o termo ou condição durante o processo dos embargos,
eles serão extintos sem resolução de mérito ficando o exequente responsável pelo pagamento
de custas e honorários advocatícios do artigo 85, §10 do CPC31.
O excesso de execução pode ser alegado nos embargos à execução quando: a quantia
pedida pelo exequente for superior à dívida; quando a dívida recair sobre coisa diferente
daquela declarada no título executivo; quando a dívida for processada de forma diversa da
prevista em sentença; quando o credor exige o cumprimento da dívida sem que tenha
realizado a sua parte no acordo, e quando o credor não faz prova de que a condição foi
realizada em conformidade com o artigo 917, §2º do CPC. É importante destacar que o
excesso de execução recai sobre o principal e o acessório, isto é, os juros de mora e os juros
compensatórios. Para a alegação do excesso de execução é necessário que seja apresentado
o cálculo que o embargante entende ser o correto sob pena de indeferimento liminar dos
embargos.

29
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
30
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
31
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
943

A cumulação indevida de execuções pode ser proposta quando o exequente na mesma


execução por título executivo extrajudicial cumula dois títulos executivos contra dois
devedores diferentes.
A alegação de retenção de benfeitorias somente será feita em razão das benfeitorias
necessárias e úteis na obrigação de entrega de coisa certa. As benfeitorias necessárias são
aquelas destinadas a consertar o bem, já as benfeitorias úteis são aquelas destinadas a
melhorar a utilidade do bem.
Dessa forma, se o executado realizar melhoramentos no bem ele tem o direito de
retenção das benfeitorias úteis e necessárias até que ele seja indenizado, desde que seja
possuidor de boa-fé nos termos do artigo 1.219 do CC, ademais poderá levantar ou ser
indenizado pelas benfeitorias voluptuárias, isto é, as benfeitorias de mero deleite e de
aformoseamento do bem, todavia não possui o direito de retenção. Já com relação ao
executado que seja possuidor de má-fé, ele não possui direito de retenção das benfeitorias
necessárias, não podendo também levantar as benfeitorias voluptuárias com base no artigo
1.220 do Código Civil32.
O exequente poderá também pedir a compensação do valor das benfeitorias
realizadas com os frutos que foram percebidos pelo executado nos termos do artigo 917, §5
do CPC; assim, é necessária a nomeação de um perito que irá apurar os valores conforme o
artigo 810 do CPC. Além disso, o exequente poderá pedir a imissão na posse desde que
apresente caução ou ressarça os valores das benfeitorias realizadas pelo executado em
conformidade com o artigo 917, §6 do CPC33.
Poderá ser argumentada também nos embargos do devedor a penhora ou avaliação
errônea. Geralmente é realizada a avaliação pelo oficial de justiça e após ocorre à penhora
no prazo para a interposição de embargos. Posteriormente a interposição dos embargos se
houver algum vício na penhora ele poderá ser questionado por simples petição no prazo de
15 (quinze dias) a contar da ciência do embargante sobre o vício34.
Nos embargos poderá ser alegada qualquer matéria que seja lícita ao processo de
conhecimento, assim, abriu-se um leque de possibilidades de argumentos em relação ao

32 ALVIM, Eduardo Arruda; GRANADO, Daniel William; FERREIRA, Eduardo Aranha. Direito processual
civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
33 ALVIM, Eduardo Arruda; GRANADO, Daniel William; FERREIRA, Eduardo Aranha. Direito processual
civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
34 DIDIER JR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 7 ed. vol. 5. Salvador: JusPodivm, 2017.
944

processo de execução com base no artigo 917 inciso VI do CPC. Podem ser trazidos
argumentos relativos à matéria processual disposta no artigo 337 do CPC como a conexão,
a coisa julgada e também poderão ser expostos argumentos relativos à defesa de mérito como
as alegações de fato e de direito35.
Com relação às alegações de impedimento ou de suspeição do julgador estas devem
ser requeridas por petição em incidente próprio conforme os artigos 146 e 148 do CPC, visto
que não podem ser requeridas juntamente com os embargos à execução, pois é necessário
processo próprio para cada uma das medidas com fundamento no artigo 917, §7 do CPC36.
Cabe destacar que o processo de execução deve ser interpretado e orientado pelos
princípios do contraditório e da ampla defesa previstos no artigo 5, inciso LV da CF, pelo
princípio da dignidade da pessoa humana disposto no artigo 1, inciso III da CF e o princípio
do menor gravame disposto no artigo 805 do CPC, visto que a execução deve se pautar de
forma que cause menos onerosidade ao executado, mas, também visando a efetividade da
execução para o exequente; por exemplo, permitindo que o executado ofereça o bem menos
oneroso para si para ser objeto de penhora.

2.4 DA SENTENÇA E DA COISA JULGADA

A sentença, provimento jurisdicional que põe fim ao processo de primeiro grau, traz
algumas peculiaridades em relação aos embargos à execução e a sua carga de eficácia.
Assim, a sentença que julga improcedente os pedidos dos embargos à execução possui
natureza jurídica declaratória, pois declara inexistente o direito do embargante de contestar
a execução. Já a sentença que julga procedente os embargos pode ter eficácia mandamental,
por exemplo, quando libera o bem penhorado; ademais, poderá ter eficácia desconstitutiva
ou declaratória, no caso de não haver bem penhorado37.
É importante destacar que a sentença de improcedência dos embargos não condena
o embargante a pagar o título executivo extrajudicial, mas declara que o direito exposto pelo
executado não existe. Logo, havendo a suspensão do processo de execução, com a sentença
de improcedência dos embargos, o processo de execução será retomado.

35
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
36
JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil. 52 ed. vol. 3. Rio de Janeiro: Forense,
2019.
37
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
945

Os efeitos da sentença que julga os embargos improcedentes são produzidos mesmo


que possa ter a indiscutibilidade do caso pela coisa julgada material no futuro; portanto, a
execução seguirá. Nesse sentido, a Súmula 317 do Superior Tribunal de Justiça38 cita que:
“É definitiva a execução de título extrajudicial, ainda que pendente apelação contra sentença
que julgue improcedentes os embargos”.
Todavia, o eventual recurso de apelação a ser interposto pelo embargante poderá ter
o efeito suspensivo mediante o preenchimento dos requisitos elencados no artigo 1.012, § 4
do CPC.
A sentença que julga totalmente procedente os embargos à execução implicará na
extinção do processo de execução, mas, como os processos são autônomos a extinção deverá
ser declarada por sentença nos autos do processo de execução nos termos do artigo 925 do
CPC. Já em relação ao julgamento de parcial procedência dos embargos não haverá a
extinção do processo executivo, mas, sim, a desconstituição dos atos executivos39.
A sentença que acolhe os embargos do devedor não irá desfazer a venda do imóvel
já arrematado, exceto se a sentença seja concedida antes da assinatura do auto de arrematação
do bem, de acordo com a disposição do artigo 903 do CPC. Entretanto, não caberá na
adjudicação, tendo em vista que na arrematação protege-se o direito do terceiro de boa-fé40.
Diante disso, a sentença transitada em julgado em relação aos embargos de cognição
plenária está protegida pela coisa julgada, não podendo se discutir novamente acerca do
título executivo extrajudicial. Além disso, é importante destacar que a estabilidade da
sentença se limita ao objeto litigioso dos embargos do devedor41.
Por fim, cabe ressaltar que a coisa julgada possui limites subjetivos, podendo o
cônjuge que não embargou propor ação autônoma para desconstituir o título; no entanto, não
poderá pedir o efeito suspensivo da execução. Ademais, a improcedência dos embargos
interpostos por um dos executados, não impede que os outros, que não tenham embargado,

38
BRASIL. Superior Tribunal de justiça. Súmula nº 317. É definitiva a execução de título extrajudicial, ainda
que pendente apelação contra sentença que julgue improcedentes os embargos. 2005. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_26_capSumula317.pdf.
Acesso em: 16 ago. 2020.
39
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
40
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de processo civil:
tutela dos direitos mediante procedimentos diferenciados. 4 ed. vol. 3.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
41
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
946

ajuízem ação autônoma para impugnar o título executivo extrajudicial durante o processo de
execução 42.

3 CONCLUSÃO

Os embargos à execução buscaram a efetivação dos princípios do contraditório e da


ampla defesa, já que possibilitaram ao executado utilizar como sua defesa no processo de
execução os embargos sem a necessidade de garantia do juízo. Ademais, abrangeu as
hipóteses de cabimento dos embargos à execução, visto que permite que o embargante utilize
os meios de defesa do procedimento comum.
Sendo assim, em relação ao efeito suspensivo dos embargos do devedor é necessário:
o requerimento do embargante, pois não pode ser concedido de ofício pelo juiz; o
preenchimento dos requisitos da tutela provisória como a probabilidade do direito e o perigo
de dano ou risco ao resultado útil do processo e a garantia do juízo por meio de indicação de
bens a penhora, caução ou depósito.
Dessa forma, com relação à legislação anterior o novo CPC permitiu a alegação de
incompetência absoluta ou relativa por meio dos embargos do devedor além da alegação da
inexigibilidade da obrigação ou inexequibilidade do título.
Além disso, nos embargos do devedor acreditamos que é possível a realização de
audiência de conciliação ou mediação, em virtude dos embargos seguirem o procedimento
ordinário, sendo uma oportunidade para que as partes possam encontrar uma solução justa
para resolver o processo de execução.
Desse modo, os embargos promoveram também os princípios da execução como o
princípio do menor gravame, que permite que o executado apresente outro bem menos
oneroso para si para ser objeto de penhora. Além disso, há a possibilidade de parcelamento
que proporciona que o devedor se livre da dívida sem a necessidade da aquiescência do
credor; no entanto, o executado não poderá utilizar os embargos à execução.
Os embargos à execução, portanto, trouxeram importantes mudanças no tocante a
legislação processual anterior, já que os embargos almejaram dar maior efetividade a defesa
do executado buscando um processo mais justo e democrático; por conseguinte, viabilizando
também a satisfação do crédito do credor.

42
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
947

REFERÊNCIAS

ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
ALVIM, Eduardo Arruda; GRANADO, Daniel William; FERREIRA, Eduardo Aranha.
Direito processual civil. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 20 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso
em: 11 mai. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de justiça. Súmula nº 317. É definitiva a execução de título
extrajudicial, ainda que pendente apelação contra sentença que julgue improcedentes os
embargos. 2005. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-
revista-sumulas-2011_26_capSumula317.pdf. Acesso em: 16 ago. 2020.

CATHARINA, Alexandre de Castro. Da execução. In: ARAÚJO, Luis Carlos de; MELLO,
Cleyson de Moraes. et. al. (Coord.). Novo curso de processo civil. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 2015.
DIDIER JR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 7 ed. vol. 5. Salvador:
JusPodivm, 2017.
DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 0011650-79.2017.8.07.0001.
7ª turma cível. Relatora: Gislene Pinheiro. Brasília (DF), 07 de junho de 2018. Disponível
em:
https://oabjuris.neoway.com.br/process/b9dcee519a4620de39e10a429a46f4f5c55f59bc821
224c976c6db9eae21977a?searchId=c143666e-9181-4c0f-bcd1-6d48427492a8. Acesso em:
07 ago. 2020.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil. 52 ed. vol. 3. Rio de
Janeiro: Forense, 2019.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de
processo civil: tutela dos direitos mediante procedimentos diferenciados. 4 ed. vol. 3. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil moderno. 5 ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Agravo de instrumento nº 0044791-


25.2018.8.19.0000. Relator desembargador: Ricardo Couto De Castro. 7ª câmara cível.
Julgado em 28 agosto de 2018. Disponível em:
http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=00046C42AFCCC3B
EDF01DDFD3F9917C96EA6C50856561B03&USER= . Acesso em 01 fev. 2020.
948

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de instrumento nº 70076289636.


Relatora: desembargadora Marilene Bonzanini. 20ª câmara cível. Julgado em 22 março de
2018. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc. Acesso em 15 jun. 2020.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de instrumento nº 2099880-04.2018.8.26.0000.


Relator desembargador: L. G. Costa Wagner. 34ª câmara de direito privado. Julgado em 17
de setembro de 2018. Disponível em:
https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=11822856&cdForo=0. Acesso em 10
mar. 2020.
TESHEINER, José Maria. Embargos à execução no novo código de processo civil. vol. 267.
São Paulo: Revista de processo, 2017. p. 273-286.
949

O DEVER FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE

Sheila Pegoraro1

Resumo: O trabalho propõe uma reflexão sobre o dever fundamental de proteção ao Meio
Ambiente. O objetivo é analisar o reconhecimento do dever fundamental de proteção ao
meio ambiente que emerge da Constituição Federal, tanto pela doutrina, como pelas decisões
dos Tribunais Superiores, além de abordar sua estrutura jurídica. O método utilizado é
analítico, tendo por objeto conceitos, normas e casos concretos. A literatura especializada
sobre o tema, as fontes do direito e a jurisprudência constituem os materiais de apoio. No
plano de execução de pesquisa, examinou-se brevemente a proteção do meio ambiente como
dever fundamental na doutrina, abordando-se conceitos e a relação entre o dever e o direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Discorreu-se sobre a estrutura
dos deveres fundamentais, tentando se estabelecer uma classificação. Verificou-se o
reconhecimento do dever fundamental de proteção ao meio ambiente na jurisprudência das
cortes superiores. Revelou-se a notável importância do reconhecimento do dever
fundamental como forma de tutela ao meio ambiente. Como conclusão, a constatação do
reconhecimento pela doutrina e jurisprudência do dever fundamental de proteção ao meio
ambiente e a necessidade de se constituir uma esfera de deveres que norteie o ideal de
proteção ao meio ambiente e concretize o direito fundamental a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado. O reconhecimento do dever fundamental de proteção ambiental
como um primeiro passo na efetivação da proteção ambiental.

Palavras-chave: Meio ambiente. Direito Ambiental. Direitos Fundamentais. Deveres


fundamentais.

1 INTRODUÇÃO

O Direito Ambiental é resultado de concepções sociais, culturais e políticas e se


modifica conforme as mudanças nesses campos ocorram.
Com a evolução social no decorrer dos anos, surgem novos problemas relacionados a
temática ambiental que clamam por ações que tragam alternativas jurídicas para a manutenção
e preservação do meio ambiente. Nesse contexto, emerge a importância do reconhecimento
não somente de direitos, mas também de deveres fundamentais ligados à proteção ambiental.
Com o objetivo de analisar o reconhecimento do dever fundamental de proteção ao
meio ambiente na Constituição Brasileira, em um primeiro momento, aborda-se o

1
Sheila Pegoraro. Advogada OAB/RS 59.210. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul.
Especialista em Direito Processual pela Universidade de Caxias do Sul. Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Direito - Mestrado - da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: sheilapegoraro@gmail.com.
950

reconhecimento do dever fundamental de proteção do meio ambiente pela doutrina, que o


entende como um dever conexo ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, expresso no artigo 225 da Constituição Federal, nascido a partir de sua dimensão
objetiva, e imputa a toda a coletividade um agir ou deixar de agir compulsório, visando a
proteção e preservação do meio ambiente.
Na segunda parte do trabalho, de forma breve, aborda-se a estrutura dos deveres
fundamentais, tentando se estabelecer uma classificação, com base nas obras estudadas,
dividida quanto ao seu conteúdo e quanto aos seus titulares, para melhor compreender a
dimensão e o alcance das normas.
No terceiro tópico, verifica-se o reconhecimento do dever fundamental de proteção ao
meio ambiente na jurisprudência das cortes superiores, tanto no Superior Tribunal de Justiça
quanto no Supremo Tribunal Federal, que, ao tratarem de diferentes assuntos, convergem no
sentido de reconhecer a importância do bem ambiental e a necessidade de preservá-lo para as
presente e futuras gerações, exatamente como determina o texto do artigo 225 da Constituição
Federal. A análise dos casos selecionados, revela-se em mais um importante indicativo do
reconhecimento quanto à notável importância que o meio ambiente representa para toda a
humanidade, se fazendo necessária a imposição do dever de preservação pelo Poder Público e
pela coletividade de forma geral.

2 A PROTEÇAO DO MEIO AMBIENTE COMO DEVER FUNDAMENTAL

O direito não é algo estático e imutável, sendo imprescindível que acompanhe a


evolução da sociedade. O Direito Ambiental, por sua vez, é resultado de concepções sociais,
culturais e políticas e, da mesma forma, se modifica conforme as mudanças nesses campos
ocorram.
Antes da década de 1970, a legislação que tratava de matéria ambiental mostrava mais
aspectos de interesse econômico e, em alguns casos, de tutela da saúde pública, do que
interesses ambientais propriamente ditos.
O despertar de uma consciência ecológica, nas décadas de 1960 e 1970, nos Estados
Unidos e na Europa, impulsionou a consagração de legislações nacionais, com propósitos
ecológicos, naqueles países, tais como a lei norte-americana de Política Nacional do Meio
951

Ambiente e a criação da Agencia de Proteção Ambiental, em 1970, e a edição do Programa de


Meio Ambiente do Governo Federal pela Alemanha, em 19712.
No Brasil, antes de 1980, a positivação legislativa era fragmentada e dispersa,
regulando matérias específicas quanto ao uso e proteção dos recursos naturais com um caráter
mais utilitarista, tutelando os recursos naturais mais em razão de interesses econômicos e de
proteção da saúde humana.
O marco do Direito Ambiental brasileiro se deu com o surgimento da Lei de Política
Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), que alinhou-se à legislação internacional e
sistematizou a proteção jurídica ao meio ambiente no Brasil.
A consagração da proteção ambiental no direito interno foi levada à efeito pela
Constituição Federal de 1988, assegurando lugar de destaque aos valores e direitos ecológicos
no ordenamento jurídico brasileiro.
Conforme afirma Sarlet

A Consagração do objetivo e dos deveres de proteção ambiental a cargo do Estado


brasileiro (em relação a todos os entes federativos) e, sobretudo, a atribuição do
status jurídico-constitucional jusfundamental ao direito ao ambiente
ecologicamente equilibrado colocam os valores ecológicos no "coração"do nosso
sistema jurídico, influenciando todos os ramos jurídicos, inclusive a ponto de limitar
outros direitos(fundamentais ou não). Tal período legislativo inaugurado em 1988-
vigente desde então - batizamos de fase da "constitucionalização"da proteção
ambiental.3

Vê-se, então, que a ruptura entre o homem e a natureza, com o homem se tornando
adversário do planeta, levou à positivação do direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado na Constituição Federal de 1988, sendo estabelecido, a partir
disso, um complexo de direitos e deveres, dentre os quais o direito ao meio ambiente sadio e
o dever de proteger os bens ambientais4.
Assim, em capítulo próprio, e sob os auspícios do seu artigo 2255, a Carta Magna
previu direitos e deveres fundamentais abstratos, além de determinar, de maneira concreta e
pontual, uma série de condutas e proibições que, ao desejo do constituinte originário,

2
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito ambiental: introdução, fundamentos e teoria
geral. São Paulo: Saraiva, 2014.
3
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito ambiental: introdução, fundamentos e teoria
geral. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 183.
4
TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito
fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2006.
5
Refere o artigo 225 da Constituição Federal: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações".
952

concretizariam o direito fundamental previsto no caput do referido artigo6.


Nesse contexto, emerge a necessidade de se constituir uma esfera de deveres, associada
ou não aos direitos fundamentais, que norteiem o ideal de proteção ao meio ambiente.
O tema dos deveres fundamentais é um dos mais esquecidos pela doutrina
constitucional e não dispõe de um regime constitucional equivalente àquele destinado aos
direitos fundamentais, o que possivelmente encontra sua razão na configuração histórica do
Estado de Direito, especialmente como herança da sua conformação liberal. Melhor
explicando, o Estado Liberal fundamentado na ideia de um Estado mínimo, ao contrário do
Estado Absolutista, abstém-se de interferir na liberdade dos indivíduos. A ideia de "direito"
está vinculada ao trânsito livre do indivíduo e à função de manter o exercício do poder estatal
dentro de determinados limites, assegurando ao cidadão liberdade e autonomia, através de
posições jurídicas ativas dos particulares em face do Estado, enquanto a ideia de "dever"
retoma uma limitação à liberdade. Dentro desse contexto, é possível compreender a primazia
dos direitos subjetivos em detrimento dos deveres7.
Importante entender, ainda, que a noção de direitos fundamentais está diretamente
ligada às noções de pessoa e direito subjetivo. E, segundo explica Lorenzetti8, o
desenvolvimento ilimitado dos direitos subjetivos e o surgimento dos bens coletivos tem
demandado uma teoria dos direitos fundamentais mais elaborada. Ao mesmo tempo que é
imprescindível manter o conteúdo mínimo das garantias de bens primários fundamentais dos
seres humanos, é necessário também encontrar um ponto de conexão entre o indivíduo e a
sociedade, entre os bens individuais e coletivos. E, nesse campo, é onde deve ser
complementada a teoria dos direitos, ampliando os bens tutelados: bens individuais e coletivos.
"Esta nova 'ontologia' dá lugar ao surgimento de deveres de proteção dos bens coletivos e a
limites no exercício dos direitos individuais que surgem quando afetam o bem coletivo de
modo irreversível" .

6
BELO, Ney. Os deveres ambientais na Constituição brasileira de 1988. In: SILVA, Vasco Pereira;
SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.) Direito público sem fronteiras. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-
Políticas da Universidade de Lisboa, 2011.
7
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008.
8
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria geral do direito ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
953

Nessa linha de pensar, Fensterseifer9 alude que os deveres fundamentais vinculam-se


à dimensão axiológica da função objetiva dos direitos fundamentais, os quais devem ter a sua
eficácia valorada não só sob um ângulo individualista, isto é, com base no ponto de vista da
pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também sob o ponto de vista da
sociedade, já que se cuida de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar. O autor bem
explica que

Em razão dos direitos fundamentais expressarem os valores fundamentais da


comunidade político-estatal, o exercício empregado pelo indivíduo ao seu direito
subjetivo no trânsito jurídico comunitário deve ajustar-se e harmonizar-se com tais
valores objetivos que lhe conferem legitimidade no âmbito comunitário,
constituindo-se de verdadeiros pressupostos da existência e do funcionamento do
Estado e da sociedade, bem como da garantia dos direitos fundamentais no seu
conjunto. Nesse contexto, com base na força normativa da Constituição, retoma-se
a lição de Hesse no sentido de que "direitos fundamentais não podem existir sem
deveres".10

Já, para Belo, o texto constitucional traz dois tipos de deveres, os deveres
constitucionais autônomos e os deveres fundamentais correlatos a uma norma de direito
fundamental. E, segundo o autor, "os deveres fundamentais são categorias autônomas
diferenciadas dos direitos, pois não comportam subjetividade e existem na quadratura
dogmática sem a correspondente assunção de uma posição jurídica equivalente"11.
A correlação entre direito e dever, conforme leciona Sarlet12, procura estabelecer o
equilíbrio nas relações sociais, através do balizamento de responsabilidades e limites ao
exercício dos direitos. E, nesse sentido, os deveres fundamentais representam uma medida de
justiça e correção de possíveis desigualdades no exercício e acesso aos direitos fundamentais.
De qualquer forma, é inegável que o dever fundamental à proteção ambiental está
associado ao direito fundamental de usufruir de um meio ambiente saudável e se caracteriza
pela obrigação incumbida ao Estado e aos cidadãos em manter um ambiente saudável e
equilibrado, adotando desde cuidados básicos com o meio ambiente como também

9
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008.
10
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008.
11
BELO, Ney. Os deveres ambientais na Constituição brasileira de 1988. In: SILVA, Vasco Pereira;
SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.) Direito público sem fronteiras. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-
Políticas da Universidade de Lisboa, 2011.
12
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito ambiental: introdução, fundamentos e teoria
geral. São Paulo: Saraiva, 2014.
954

participando ativamente na luta pela preservação do habitat natural13.


Nesse contexto, "o homem, na condição de cidadão, torna-se titular do direito ao
ambiente ecologicamente equilibrado e também sujeito ativo do dever fundamental de
proteger o meio ambiente". A defesa do meio ambiente passa a ser tarefa e finalidade do Estado
e obrigação dos indivíduos a fim de garantir o direito fundamental à proteção ambiental, que
possui características de direito e dever14.
A relação entre o direito fundamental ao meio ambiente com o dever fundamental de
proteção do ambiente é explanada por Medeiros:

A dimensão protecional dos direitos à prestação está vinculada ao direito


fundamental à proteção ambiental. O Estado tem o dever de prestar a proteção aos
recursos naturais, conforme previsto na Constituição, contra intervenções de
terceiros, do próprio Poder Público e de outros Estados. Esse direito fundamental
devido pelo Estado e exigido pela sociedade atua como medida preventiva para que
se efetive o direito fundamental de proteção do meio ambiente como reflexo da
proteção do direito fundamental de proteção à vida.15

No mesmo sentido, de forma bastante didática, Augustin sintetiza o dever fundamental


de proteção do meio ambiente como um dever conexo ao direito fundamental ao ambiente, ou,
em outras palavras, que nasce a partir da dimensão objetiva do direito fundamental ao meio
ambiente, previsto, de forma geral, no caput do art. 225 da Constituição Federal, e compreende
uma posição de passividade incondicional (agir ou deixar de agir compulsoriamente)
imputável a toda a coletividade, assumindo concretude quanto a formas específicas de
cumprimento a partir de regulamentação legal esparsa. E, "reconhecido o bem jurídico
ambiental como valor objetivo da ordem constitucional brasileira, surge a exigibilidade
comportamental (igualmente objetiva) no sentido de protegê-lo e preservá-lo"16.
Importante salientar que os deveres fundamentais não devem ser entendidos como
meros limites dos direitos fundamentais, mas sim como elementos imprescindíveis para cobrar
da população uma posição atuante e responsável, tanto quanto a que cobramos dos Poderes
Públicos, na preservação do meio ambiente. Afinal, possuímos o direito fundamental de

13
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004.
14
TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito
fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2006.
15
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004.
16
AUGUSTIN, Sérgio; BRANDÃO, André da Fonseca. O dever fundamental de proteção do meio
ambiente e as consequências jurídicas de seu reconhecimento. Revista Direito Ambiental e sociedade,
Caxias do Sul, v. 8, n. 2, p. 39-55, 2018.
955

vivermos em um meio ambiente saudável e equilibrado, mas também o dever fundamental de


lutarmos para que esse ambiente se mantenha íntegro para a próximas gerações17.
Seguindo o mesmo raciocínio, Benjamin18 afirma que a construção de um mundo
sustentável é uma tarefa que não é exigível somente do Estado. Os deveres oriundos desta
mudança de paradigma são cobráveis de qualquer pessoa, em especial dos agentes
econômicos. Assim, não é suficiente dirigir a norma constitucional apenas contra o Estado,
porque a defesa do meio ambiente há de ser dever de todos. Aduz ainda, que a Constituição
Federal acertou ao afastar o modelo político do Liberalismo, fundado na cisão entre Estado e
sociedade civil, o que fica claro no artigo 225, que reconhece a indissolubilidade entre Estado
e sociedade civil. Ainda, segundo o autor, para a efetividade da tutela ambiental não basta
assegurar uma liberdade negativa, orientada a rejeitar a intervenção legítima ou o abuso do
Estado. A norma constitucional atinge a todos os cidadãos, parceiros do pacto democrático,
convencida de que só assim chegará à sustentabilidade.
Sob outro perspectiva, é possível verificar que o direito de cada cidadão a um ambiente
ecologicamente equilibrado não se traduz apenas no aproveitamento individual de um bem,
mas sim, na possibilidade de utilização desse bem, aliada a um "dever fundamental de
utilização racional", numa perspectiva de solidariedade com os demais membros da
comunidade atual e também com as gerações futuras (princípio da solidariedade entre
gerações). Não podemos esquecer que o ambiente é um bem da comunidade e possui uma
dimensão coletiva. Assim, é importante a ideia que vê no direito ao ambiente um direito-dever
de utilização racional dos bens ambientais19.
Verifica-se, portanto, que o dever constitucional de defender o ambiente e preservá-lo
para as atuais e as futuras gerações é um dever atribuído ao Estado e também à sociedade civil
e disso decorre a existência de um dever autônomo e abstrato, atribuído ao administrador, ao

17
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004.
18
BENJAMIN, Antônio Herman. O meio ambiente na Constituição Federal de 1988. In: KISHI, Sandra
Akemi Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (Coord.). Desafios do Direito
Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros,
2005. p.363-398.
19
GOMES, Carla Amado. Direito Ambiental: o ambiente como objeto e os objetos do direito do ambiente.
Curitiba: Juruá, 2010.
956

legislador e ao juiz, de realizar o princípio constitucional da preservação ambiental, que possui


conteúdo aberto e que deve ser densificado pelo aplicador da Constituição20.
Assim, a norma constitucional obriga os titulares da posição jurídica ativa de uso dos
bens ambientais ao dever genérico de preservação desses bens, numa lógica comunitária de
presente e de futuro. Essa contraposição entre direito a usar e dever de preservar é uma
consequência da garantia de aproveitamento de um bem cuja fruição cabe a todos os membros
da comunidade e pela qual todos devem responsabilizar-se21.
Além disso, o dever fundamental decorre do direito ao ambiente ecologicamente
equilibrado, vincula o Poder Público e os particulares e é de aplicação imediata22.
Nesse sentido, Belo23 ensina que, para que se alcance um Estado democrático de
direitos ambientais, esse Estado, por intermédio de seus poderes, deve considerar
positivamente os deveres ambientais, os princípios ambientais e os direitos ambientais "ao
ponto de tomá-los em relevância quando da ponderação com outros deveres e outros direitos
em um processo de colisão". A conclusão desse raciocínio é que a norma constitucional não
acompanha o dinamismo da sociedade, razão pela qual o Judiciário, também guiado pelo dever
constitucional ambiental de preservar o ambiente, deve interpretar as normas a partir de uma
leitura ambiental da Constituição. Assim, todos os Poderes terão o dever constitucional de
preservar o meio ambiente24.
Nesse contexto, é possível verificar que o direito ao meio ambiente impõe limites à
soberania do Estado, que passa a ter obrigações constitucionais e não apenas a faculdade de
defender os bens ambientais. E, nesse sentido, Teixeira bem destaca a importância desse
instituto, cujas palavras merecem destaque:

O dever fundamental de proteger e de preservar o meio ambiente leva o homem a


zelar pelo patrimônio ambiental que pertence à humanidade, às presentes e futuras
gerações; e leva ao desenvolvimento sustentável, à implementação de tecnologia

20
BELO, Ney. Os deveres ambientais na Constituição brasileira de 1988. In: SILVA, Vasco Pereira;
SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.) Direito público sem fronteiras. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-
Políticas da Universidade de Lisboa, 2011.
21
GOMES, Carla Amado. Direito Ambiental: o ambiente como objeto e os objetos do direito do ambiente.
Curitiba: Juruá, 2010.
22
TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito
fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2006.
23
BELO, Ney. Os deveres ambientais na Constituição brasileira de 1988. In: SILVA, Vasco Pereira;
SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.) Direito público sem fronteiras. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-
Políticas da Universidade de Lisboa, 2011.
24
BELO, Ney. Os deveres ambientais na Constituição brasileira de 1988. In: SILVA, Vasco Pereira;
SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.) Direito público sem fronteiras. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-
Políticas da Universidade de Lisboa, 2011.
957

para recuperar a qualidade ambiental e a efetiva defesa dos recursos naturais,


especialmente os não-renováveis. Tal ônus apresenta como vantagem, entre outras,
a instituição e a definição de direitos e obrigações; indicando os respectivos titulares
do direito. Os deveres decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana e do
direito de defesa da sadia qualidade de vida.25

Outro ponto que se mostra importante na questão entre direitos e deveres refletida na
realidade ambiental e que revela a importância da ampliação da esfera dos deveres, é a
necessidade de auto-limitação do comportamento humano, não somente em termos práticos,
mas também em termos normativos, em razão de que o ser humano, ao mesmo tempo que
necessita explorar os recursos naturais, é também dependente deles. Assim, o exercício de
direitos em face dos recursos naturais e da qualidade do ambiente deve ser limitado por
restrições ecológicas, emergindo a necessidade de configuração de um dever fundamental
como forma de prevenir o dano ambiental. Os direitos humanos não são absolutos e podem
ser limitados. No entanto, qualquer limitação a um direito individual deve passar pelo teste da
proporcionalidade, avaliando-se, ainda, a proteção do núcleo essencial do direito fundamental
objeto das limitações26.
E, desse raciocínio, que traz a ideia de prevenção do dano ambiental e preservação do
meio ambiente, emerge a questão relacionada aos direitos de solidariedade, que estão
diretamente atrelados a ideia de direitos-deveres. O direito fundamental ao meio ambiente
possui estrutura de direito-dever, ou seja, por um lado, constitui direito, por outro constitui
dever para o respectivo titular, que, de algum modo acaba por se voltar para o próprio titular -
o que é chamado por alguns doutrinadores de efeito boomerang - limitando seus direitos
subjetivos de modo a ajustar o seu exercício ao comando constitucional de proteção ambiental.
Nesse contexto, desponta o princípio da solidariedade para caracterizar a ideia de deveres
fundamentais, especialmente diante dos novos direitos fundamentais de terceira geração
(direitos ecológicos), que incorporam ao seu conteúdo normativo a ideia de responsabilidade
social e comunitária, de essencial importância para o enfrentamento dos novos desafio
existenciais postos pela degradação ambiental27.

25
TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito
fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2006.
26
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008.
27
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008.
958

3 ESTRUTURA DOS DEVERES FUNDAMENTAIS: TENTATIVA DE


CLASSIFICAÇÃO DOS DEVERES FUNDAMENTAIS DE PROTEÇÃO
AMBIENTAL

Não há na doutrina uma classificação específica no que tange aos diferentes deveres
fundamentais. Tenta-se, nesse tópico, estabelecer-se uma classificação, com base nas obras
estudadas, para melhor compreender a dimensão e o alcance dessas normas, sem, contudo,
aprofundar o tema de cada item e, portanto, longe de esgotar o tema.
Feito o necessário esclarecimento, conforme a doutrina estudada, podemos identificar
os deveres fundamentais classificados quanto ao seu conteúdo e quanto aos seus titulares.

3.1 Classificação dos deveres fundamentais quanto ao seu conteúdo

Nesse aspecto, uma das classificações possíveis dos deveres fundamentais é como
Autônomos e Não Autônomos.
Define-se como Autônomos aqueles que existem independentemente da consagração
constitucional de um direito fundamental, ou seja, que não estão relacionados à conformação
de nenhum direito subjetivo. São exemplos de deveres autônomos do cidadão: pagar impostos
e prestar serviço militar.
Os deveres Autônomos comportam ainda ser classificados como Concretos, quando
seu conteúdo está previamente consignado em um artigo de lei, ou Abstratos, quando se
caracterizam por um dever genérico28. A norma do artigo 225 da Constituição Federal
estabelece o dever constitucional concreto de preservar o meio ambiente, através de
mandamentos concretos dirigidos ao Executivo, ao Legislativo, ao Judiciário e aos
particulares. São deveres autônomos, que existem independentemente da consagração
constitucional do direito fundamental ao ambiente e são concretos, pois seu conteúdo está
previamente consignado no artigo 22529.

28
BELO, Ney. Os deveres ambientais na Constituição brasileira de 1988. In: SILVA, Vasco Pereira;
SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.) Direito público sem fronteiras. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-
Políticas da Universidade de Lisboa, 2011.
29
BELO, Ney. Os deveres ambientais na Constituição brasileira de 1988. In: SILVA, Vasco Pereira;
SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.) Direito público sem fronteiras. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-
Políticas da Universidade de Lisboa, 2011.
959

Já os Não Autônomos (também chamados de conexos ou correlatos) são os que tomam


forma a partir de um direito fundamental a que estão atrelados materialmente30. Nessa
categoria está a maioria dos deveres fundamentais e seu conteúdo possui uma relação de
integração com os direitos fundamentais. Como exemplo, está o dever de defesa do meio
ambiente, pois relacionado ao direito fundamental de usufruir um ambiente sadio e
equilibrado. Nessa categoria há a exigência de cumprimento de um dever para que se possa
usufruir em sua plenitude o direito fundamental a que está atrelado31.
Os deveres podem ser divididos ainda entre deveres Positivos - esses subdivididos em
deveres de prestações de fato (ex. prestar serviço militar, votar) e deveres de prestações
materiais (ex. pagar impostos) - e deveres Negativos, assim entendidos os deveres de
abstenção, a exemplo da isenção político-partidária das forças armadas32.
Ainda no que tange ao conteúdo, os deveres fundamentais podem ser classificados
como Imediatamente Aplicáveis ou Mediatamente Aplicáveis quando necessitam de lei para
a perfectibilização33. Nesse ponto, reside grande divergência que permeia o tema dos deveres
fundamentais. Há quem defenda, como Nabais, que os deveres fundamentais, mesmo que
estejam determinados na Constituição, não são diretamente aplicáveis, exigindo para seu
emprego a intervenção do poder Legislativo. Por outro lado, Medeiros34 discorda desse
posicionamento e aduz que "o dever de defesa do ambiente é singular quanto à importância de
seu conteúdo e da urgência de sua exigibilidade, quando a Constituição regulou a existência
de uma norma disciplinando o dever do Estado e da Coletividade em preservar o ambiente
sadio e equilibrado, imbuindo a norma de princípios e valores jurídicos éticos que determinam
a sua aplicabilidade imediata para que e preserve a vida na Terra".
Por fim, podemos encontrar ainda deveres de conteúdo Cívico-político, assim
definidos aqueles que estabelecem o comprometimento e a responsabilização das pessoas para
a existência e o funcionamento do Estado; e deveres de conteúdo Socioeconômico-Cultural,
que exprimem a responsabilização dos indivíduos na conservação e promoção da sociedade,

30
FENSTERSEIFER, Tiago; SARLET, Ingo Wolfgang. Direito constitucional ambiental. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012.
31
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004.
32
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004.
33
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004.
34
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004.
960

citando-se como exemplo o dever de defesa do ambiente, que exige a prestação de um dever
para a manutenção da sociedade35.
Feita essa breve abordagem, respeitadas as divergências que surgem a respeito da
matéria, é possível dizer que o dever fundamental de defesa do meio ambiente, de modo geral,
pode ser classificado como um dever fundamental de cunho positivo e negativo, pois impõe
ao indivíduo um comportamento dual de defesa, ora através de ação ora através de abstenção;
diretamente aplicável, devido a relevância de seu conteúdo; não autônomo, pois está associado
a um direito fundamental e, ainda, que possui caráter socioeconômico-cultural, em virtude de
vincular o homem e a coletividade.

3.2 Classificação dos deveres fundamentais pela perspectiva dos seus destinatários

Nesse tópico, Sarlet36 aborda nova diferenciação, sob a perspectiva dos destinatários
dos deveres fundamentais de proteção do ambiente, classificando-os como a) Deveres
fundamentais de proteção do ambiente para com as pessoas da mesma geração - que são os
deveres fundamentais ambientais propriamente ditos; b) Deveres fundamentais de proteção do
ambiente de cunho transnacional - relacionados a pessoas situadas em outros estados, uma vez
que a degradação ambiental não respeita fronteiras; c) Deveres fundamentais de
proteção do ambiente para com as gerações futuras - que segue o norte do artigo 225 da
Constituição Federal, que conclama a defesa e proteção do ambiente para presentes e futuras
gerações, tornando imperativa a preservação da qualidade ambiental para as gerações futuras.
Aqui aparece também a ideia de desenvolvimento sustentável, no sentido de atender as
necessidades dos presentes sem comprometer as necessidades futuras; e d) Deveres
fundamentais de proteção do ambiente para com os animais não humanos e a natureza como
um todo - justiça interespécies. Nesse tópico, Sarlet37 concebe a ideia de deveres com a
natureza não humana mediante a atribuição de um valor próprio e não meramente instrumental
à vida não humana. Nesse sentido, a Constituição Federal também modula o comportamento
humano e limita direitos em benefício dos animais, reconhecendo seu valor intrínseco, a

35
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004.
36
FENSTERSEIFER, Tiago; SARLET, Ingo Wolfgang. Direito constitucional ambiental. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012.
37
FENSTERSEIFER, Tiago; SARLET, Ingo Wolfgang. Direito constitucional ambiental. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012.
961

exemplo da proibição de crueldade em animais, do que se extrai a existência de um dever de


respeito e proteção à vida animal.

4 O DEVER FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE NA


JURISPRUDÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES

O reconhecimento de um dever fundamental de proteção ao meio ambiente, em que


pese a escassa literatura, não parece ser em si objeto de maior resistência no âmbito da
produção doutrinária nacional, contudo, é na esfera da sua aplicação, de um modo geral, que
se verificam as maiores dificuldades.
Antunes38 aduz que a jurisprudência tem um papel de alta relevância na proteção do
meio ambiente, pois se trata da aplicação concreta das normas jurídicas. O papel da
jurisprudência, ainda segundo o estudioso, avulta no Direito Ambiental, na medida em que as
matérias são decididas na base do caso a caso, pois muito raramente se pode tratar de uma
repetição de ações ambientais, "visto que as circunstâncias particulares de cada hipótese
tendem a não se reproduzir".
Por outro lado, ainda que a produção legislativa cresça em velocidade exponencial, ela
não tem capacidade de dar conta das diferentes situações que surgem no dia a dia, o que revela
a importância da jurisprudência ambiental.
Tendo em vista a relevância do tema abordado e da jurisprudência das cortes
superiores, torna-se pertinente analisar alguns casos concretos submetidos ao crivo dos
Tribunais Superiores, conhecendo, pois, as considerações adotadas em cada caso.
Nesse contexto, dentre as decisões emblemáticas que abordaram a temática ora em
estudo, esteve o caso referente à importação de pneus usados e remoldados, através da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 101/DF39, relatada pela
ministra Cármen Lúcia, julgada em 24.6.2009. Na ação, afirmou-se que diversas decisões
judiciais estavam sendo proferidas em contrariedade a determinadas portarias do
Departamento de Operações de Comércio Exterior (DECEX) e da Secretaria de Comércio

38
ANTUNES, Paulo de Bessa. Meio ambiente geral e meio ambiente do trabalho: uma visão sistêmica. São
Paulo: LTr, 2009.
39
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 101/DF.
Relatora: Min. Cármen Lúcia, 24 de junho de 2019. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=629955. Acesso em: 6 ago. 2019.
962

Exterior (SECEX), bem como em relação a certas resoluções do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (CONAMA), além de vários decretos federais que, expressamente, vedavam a
importação de pneus usados e remoldados. Além disso, que decisões proferidas por juízes
federais descumpriam preceitos fundamentais previstos nos artigos 196 e 225 da Constituição
Federal, ao autorizarem a importação dos mencionados produtos. A questão subjacente
envolvia, ainda, interesses empresariais em aparente contraposição a interesses coletivos,
consubstanciados no direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
polaridade que demandou profunda análise por parte dos ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF).
Ao analisar a questão, a ministra Cármen Lúcia, em seu voto, sinalizou que o Estado
brasileiro, com base em diversos princípios do direito - especialmente analisados os princípios
da prevenção e da precaução - , corretamente editou um conjunto de normas destinadas à
proibição da importação de tais produtos, cumprindo com o seu dever de garantir a todos o
direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, aduzindo, ainda, que "a
importação de pneus usados ou remoldados é [...] gerador de mais danos que de benefícios,
em especial aos direitos à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado" (p. 92).
Ao final do julgamento da ADPF, o Plenário do STF entendeu pela constitucionalidade
dos atos normativos exarados pelo Estado brasileiro, os quais proíbem a importação de pneus
usados e remoldados, adotando, como parte da fundamentação o argumento no sentido que a
importação de pneus usados e remoldados configura afronta aos princípios constitucionais da
saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, cuja manutenção é dever do Estado.
Através da decisão exarada, é possível observar que supera-se a visão de mera proteção
dos direitos individuais do cidadão contra o Estado sem o correspondente dever fundamental
para com a coletividade. Deveres que, vinculados aos princípios constitucionais da precaução
e da prevenção, são marcas características do estado Socioambiental e Democrático de
Direito40.

40
WEDY, Gabriel. Decisões do STF e o dever fundamental do desenvolvimento sustentável. Revista
Consultor Jurídico, São Paulo, 14 jan. 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jan-
14/ambiente-juridico-decisoes-stf-dever-fundamental-desenvolvimento-sustentavel#_ftnref4. Acesso em: 6
ago. 2019.
963

Destaca-se, ainda, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.98341,


proposta visando ao reconhecimento da nulidade de Lei do Estado do Ceará que
institucionalizava a prática da vaquejada42. O STF analisou o caso, considerando, sem sombra
de dúvida, o dever fundamental de proteção do meio ambiente. Nas palavras do relator,
Ministro Marco Aurélio, “o dever geral de favorecer o meio ambiente é indisputável”,
referindo, ainda, que “no âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste
processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente”. Sobressalta o comando
de não fazer (não submeter os animais a práticas cruéis) constante do art. 225, parágrafo 1º,
inciso VII da CF/88, imputável em igual medida, a todos os membros da coletividade e
também ao Poder Público.
Contudo, ao final, a decisão restou fundamentada no sopesamento do conflito entre o
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o direito fundamental de
acesso às manifestações culturais, constante do art. 215 da Constituição Federal.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, é possível encontrar decisões que abordam
explicitamente o tema, a exemplo do julgamento do REsp 1163524/SC, de relatoria do
Ministro Humberto Martins, em caso no qual a União recorreu da decisão que determinou que
tomasse providências para que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) realizasse
todos os procedimentos administrativos necessários à elaboração do plano de gestão da Área
de Proteção Ambiental (APA) da Baleia Franca, criada em área que integra o patrimônio
Público Federal. Já na Ementa do Acórdão é possível verificar a observância do dever
fundamental de proteção ao meio ambiente como fundamento da decisão:

2. Nos termos do art. 225 da CF, o Poder Público tem o dever de preservar o meio
ambiente. Trata-se de um dever fundamental, que não se resume apenas em um
mandamento de ordem negativa, consistente na não degradação, mas possui também
uma disposição de cunho positivo que impõe a todos - Poder Público e coletividade
- a prática de atos tendentes a recuperar, restaurar e defender o ambiente
ecologicamente equilibrado.
3. Nesse sentido, a elaboração do plano de manejo é essencial para a preservação da
Unidade de Conservação, pois é nele que se estabelecem as normas que devem
presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das
estruturas físicas necessárias à gestão da unidade (art. 2º, XVII, da Lei n.
9.985/2000).

41
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.983 Ceará. Relator:
Min. Marco Aurélio, 06 de outubro de 2016. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12798874. Acesso em: 6 ago. 2019.
42
Trata-se de uma atividade cultural oriunda do Nordeste Brasileiro, na qual "vaqueiros" montados em cavalos,
tentam derrubar os bois, cuja prática tem sido questionada em razão dos maus tratos aos animais envolvidos.
964

4. Portanto, a omissão do Poder Público na elaboração do plano de manejo e gestão


da APA da Baleia Franca coloca em risco a própria integridade da unidade de
conservação, e constitui-se em violação do dever fundamental de proteção do meio
ambiente.43

Os extratos jurisprudenciais trazidos à reflexão traduzem o entendimento do


Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça em casos diferentes,
relativos a temáticas distintas inerentes ao Direito Ambiental. Nota-se, nos casos
expostos, um dado comum: a importância conferida pelas cortes superiores brasileiras
ao bem ambiental e a necessidade de preservá-lo para as presentes e futuras gerações,
exatamente como determina o texto do artigo 225 da Constituição Federal.
Não restam dúvidas, portanto, que a atual Constituição - interpretada em última
instância judicial - conferiu à tutela do meio ambiente um lugar de destaque e
prevalência. A análise dos casos selecionados, revela-se em mais um importante
indicativo do reconhecimento quanto à notável importância que o meio ambiente
representa para toda a humanidade, se fazendo necessária a imposição do dever de
preservação pelo Poder Público e por toda a coletividade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De forma bastante sucinta, analisou-se o reconhecimento do dever fundamental de


proteção ao meio ambiente que emana da Constituição Federal pela doutrina nacional,
abordando-se conceitos e sua conexão com o direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, emergindo a necessidade de se reconhecer o dever fundamental
de proteção ao meio ambiente, para que haja uma efetiva preservação do mesmo.
Abordou-se a estrutura dos deveres fundamentais, tentando se estabelecer uma
classificação, quanto ao seu conteúdo e quanto aos seus titulares, com o intuito de melhor
compreender a dimensão e o alcance das normas. Nesse aspecto, verificou-se que a temática
dos deveres fundamentais ainda não é tão desenvolvida no estudo do Direito Constitucional,
razão pela qual ainda não há consenso quanto à forma de classificação e sua relação com os

43
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2. Turma). Recurso Especial 1163524/SC. Relator: Min. Humberto
Martins, 05 de maio de 2011. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1058646&num_r
egistro=200902066034&data=20110512&formato=PDF. Acesso em: 6 ago. 2019.
965

direitos fundamentais. Contudo, respeitadas as divergências, com relação ao conteúdo, foi


possível identificar o reconhecimento do dever fundamental de defesa do meio ambiente,
como um dever fundamental de cunho positivo e negativo, pois impõe ao indivíduo um
comportamento dual de defesa, ora através de ação ora através de abstenção; diretamente
aplicável, devido a relevância de seu conteúdo; não autônomo, pois está associado a um direito
fundamental e, ainda, que possui caráter socioeconômico-cultural, em virtude de vincular o
homem e a coletividade. Sob a perspectiva de seus destinatários verificou-se o reconhecimento
de deveres fundamentais de proteção ambiental para com as pessoas da mesma geração e para
as gerações futuras, relacionados a pessoas situadas em outros estados, e deveres fundamentais
de proteção do ambiente para com os animais não humanos e a natureza como um todo - justiça
interespécies, demonstrando a amplitude e importância de seu reconhecimento.
Verificou-se, ao final, o reconhecimento do dever fundamental de proteção ao meio
ambiente na jurisprudência das cortes superiores, tanto no Superior Tribunal de Justiça quanto
no Supremo Tribunal Federal, que convergem no sentido de reconhecer a importância do bem
ambiental e a necessidade de preservá-lo para as presentes e futuras gerações, exatamente
como determina o texto do artigo 225 da Constituição Federal. A análise dos casos
selecionados revelou a importância da imposição do dever de preservação pelo Poder Público
e pela coletividade de forma geral.
Por fim, a necessidade de se constituir uma esfera de deveres que norteie o ideal de
proteção ao meio ambiente e concretize o direito fundamental a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado. O reconhecimento do dever fundamental de proteção ambiental,
nas diversas esferas, mostra-se um primeiro passo na efetivação da proteção ambiental,
restando, também, o desafio ao direito de buscar novos instrumentos que, aliados à ciência e à
tecnologia, contribuam de forma transdisciplinar à resolução da problemática ambiental.

REFERÊNCIAS

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visão sistêmica. São Paulo: LTr, 2009.

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_______. Superior Tribunal de Justiça (2. Turma). Recurso Especial 1163524/SC. Relator:
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_______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação de Descumprimento de Preceito


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_______. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta de Inconstitucionalidade


4.983 Ceará. Relator: Min. Marco Aurélio, 06 de outubro de 2016. Disponível em:
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TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2006.

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fundamental-desenvolvimento-sustentavel#_ftnref4. Acesso em: 6 ago. 2019.
968

O CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE: UMA ANÁLISE


SOBRE OS ASPECTOS PREJUDICIAS AO EMPREGADO

Thaís Vanessa dos Santos da Silva1

Resumo: O presente estudo tem como objetivo elucidar os aspectos prejudiciais ao


trabalhador com aplicação da nova modalidade de contrato de trabalho que é o trabalho
intermitente trazido pelo pela alteração da Consolidação das Leis do Trabalho pela Lei n.
13.467/2017 e MP n. 808/2017. Para o desdobramento desse estudo, foram abordadas
questões relacionadas ao contrato de trabalho intermitente, descrevendo seu conceito,
regulamentação, e aplicação no Brasil e no mundo. Assim, através de estudo bibliográfico,
realizou-se a análise das controvérsias geradas com a inclusão dessa nova forma de relação
de emprego.

Palavras-chave: Contrato intermitente. Reforma trabalhista. Empregado

1 INTRODUÇÃO

A Reforma Trabalhista, introduzida pela Lei 13.467/17, promulgada em 13 de julho


de 2017 e vigente a partir do dia 11 de novembro de 2017, trouxe diversas inovações no
que se refere às relações de trabalho no Brasil.
Entre elas, ressalta-se a regulamentação do contrato de trabalho intermitente, com
acréscimo do art. 452-A na CLT e seus parágrafos 1º ao 9º. Após alguns meses de sua
promulgação, a Lei nº 13.467/2017 teve seu conteúdo alterado, em diversos aspectos, pela
Medida Provisória (MP) nº 808 de 2017, que tinha como objetivo preencher algumas
lacunas da Reforma Trabalhista. No tocante ao trabalho intermitente, a referida Medida
alterou o referido artigo 452-A e incluiu os artigos 452-B a 452-H na CLT. No entanto, após
os 120 dias encerrou a validade da MP, onde não ocorreu nenhuma votação para torná-la
lei, perdendo, assim, sua eficácia.
Entende-se como trabalho intermitente aquele no qual a prestação de serviços não é
contínua, não obstante com subordinação. O contrato de trabalho intermitente é um contrato
por tempo indeterminado e sem jornada determinada. Onde, podem ser alternados períodos
de prestação de serviços com períodos de inatividade, os quais podem ser de horas, dias ou

1
Possui graduação em Direito pela Faculdade CNEC Gravataí (2017). Especialização em Novo Direito do
Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2020). Atualmente é advogada atuante
na área trabalhista. OAB/RS 113.288, thaisvsantos94@gmail.
969

meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador.


No entanto, essa “nova” modalidade de contrato de trabalho, apresenta algumas
controvérsias. A chamada Reforma Trabalhista deixou importantes lacunas quanto a
garantia mínima de salário mensal e a previsibilidade de quantidade mínima de dias de
trabalho por mês ou número de meses de trabalho por ano. Repassando ao empregado os
riscos do contrato, ferindo princípios como o da segurança jurídica e a proteção ao
trabalhador. O art. 452-A da CLT só atende aos interesses dos empresários, e não dos
trabalhadores.
Assim, faz-se necessário a elucidação da legislação acerca do trabalho intermitente,
introduzido pela Lei n° 13.467/2017, analisando o seu conceito, seus requisitos legais, a
forma de convocação do empregado para prestação dos serviços, a remuneração e as lacunas
deixadas pela referida Lei. Logo, o presente estudo se faz relevante por abordar efeitos
práticos gerados por essa nova modalidade de contrato de trabalho, e por se tratar de um
assunto ainda novo na realidade do trabalhador brasileiro.

2 O CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE

2.1 Conceito e elementos constitutivos

A conceituação do trabalho intermitente foi introduzida à legislação trabalhista


através da promulgação da Lei n° 13.467 de 2017. O art. 443, §3º da CLT prevê como
intermitente o contrato de trabalho em que a prestação de serviço, com subordinação, não é
de forma continuada, ou seja, a prestação do serviço é realizada em períodos alternados,
podendo ficar em inatividade por horas, dias ou meses, conforme estabelecerem as partes.
No entanto, de acordo com o parágrafo 3º do art, 443, da CLT, essa modalidade não se
estende para os aeronautas, que são regidos por legislação própria, in verbis:

Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de


serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de
períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias
ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do
empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.

De acordo com Maurício Godinho, essa modalidade de contrato de trabalho, nos


termos que foi proposto pela Lei 3.467/2017, rompe com dois grandes direitos trabalhistas,
que compõem a estrutura central do nosso Direito do Trabalho, quais sejam, a noção de
970

duração do trabalho (e de jornada) e a noção de salário. 2


Depreende-se, então, que no trabalho intermitente existe a constituição de um
vínculo de emprego, no entanto, a remuneração do empregado depende do tempo em que é
efetivamente convocado para trabalhar, tendo em vista que nessa modalidade de relação de
trabalho o empregado é convocado conforme a demanda do empregador, consequentemente
sua remuneração é de acordo com as horas que efetivamente preste serviço. Por
conseguinte, o empregado fica à disposição do empregador na espera de uma convocação
para o serviço. E, se não acontecer, o trabalhador não receberá pelo tempo que ficou à
espera. Causando, assim, prejuízo na garantia mínima de remuneração para o empregado.
Nesse sentido, entende Mauricio Godinho:

A noção de duração de trabalho envolve o tempo de disponibilidade do


empregado em face de seu empregador, prestando serviços efetivos ou não (caput
do art. 4Q da CLT). A Lei n. 13.467/2017, entretanto, ladinamente, tenta criar
conceito novo: a realidade do tempo à disposição do empregador, porém sem os
efeitos jurídicos do tempo à disposição.3

Assim, entende-se que no trabalho intermitente o contrato de trabalho pode ser


acordado para serviços descontínuos e transitórios, com alternância de períodos de trabalho
e de inatividade. Ainda, a necessidade do serviço pode ser é imprevisível e pode variar de
tempos em tempos.4 Onde há vínculo de emprego, todavia a remuneração do trabalhador
depende do tempo em que é efetivamente convocado para trabalhar.

2.3 Requisitos

Quanto aos requisitos e características do contrato de trabalho intermitente, o artigo


452-A da CLT estabelece que o contrato de trabalho intermitente deve ser celebrado por
escrito e conter especificamente o valor da hora de trabalho, não podendo este ser inferior
ao valor hora do salário mínimo ou àquele devido aos demais empregados do
estabelecimento que exerçam a mesma função em contrato intermitente ou não.

2
DELGADO, Mauricio Godinho. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n.
13.467/2017/Maurício Godinho Delgado, Gabriela Neves Delgado. - São Paulo: LTr, 2017. p. 154.
3
DELGADO, Mauricio Godinho. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n.
13.467/2017/Maurício Godinho Delgado, Gabriela Neves Delgado. - São Paulo: LTr, 2017. p. 154.
4
CASSAR, Vólia Bomfim. Resumo de direito do trabalho / Vólia Bomfim Cassar. – 6. ed., rev., atual. e
ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018. p. 108.
971

Nas palavras de Volia Bomfim Cassar, a formalidade do contrato ser escrito é


imprescindível para a validade da cláusula de intermitência, visto que não será regido pelo
contrato intermitente caso trabalhador seja contratado oralmente ou de tacitamente, onde o
tempo que fique à disposição será contado conforme o art. 4º da CLT, consequentemente,
será aplicada as demais regras da CLT.5
Quanto a especificidade do valor da hora do trabalho, Homero Batista Mateus da
Silva entende que: “ajuste à base do salário-hora, para que possa ser aferida com mais
clareza a comparação ao salário-mínimo e, sobretudo, ao salário pago pelos trabalhadores
efetivos, com carga integral, que atuam no mesmo estabelecimento”.6
No que se refere a convocação, o empregado será convocado pelo empregador por
qualquer meio de comunicação eficaz, para prestação de serviços, comunicando qual será
a jornada a ser cumprida (art. 452-A, §1º da CLT). Após o recebimento da convocação, o
empregado terá o prazo de um dia útil para responder a solicitação, que em caso de silêncio,
será caracterizada a recusa (art. 452-A, §2º da CLT). No caso em que houver a recusa não
será considerada a insubordinação, na forma do art. 452-A, §3º da CLT.
Assim, diferentemente das demais modalidades de contrato de trabalho, a recusa do
empregado em prestar o serviço significa insubordinação e pode até mesmo dar origem à
dispensa por justa causa, no trabalho intermitente, o empregado possui a liberdade de
aceitar ou recusar o chamado para o serviço. No entanto, a Lei não deixa claro quantos
vezes o trabalhador poderia recusar o serviço, visto que na prática o empregador escolheria
quem não recusasse. Nessa linha, os ensinamentos de Homero Batista:

Entende-se que a recusa é válida e não macula a subordinação jurídica inerente ao


contrato de trabalho (§ 3º), mas essa afirmação subverte décadas de entendimento
doutrinário, jurisprudencial e legal de que o empregado deve se submeter ao poder
diretivo do empregador e não escolher quantas e quais atividades desempenhará;
esse talvez seja um dos dispositivos de maior estranhamento em toda a reforma
trabalhista de 2017 e não será surpresa se ele vier a ser contestado nos tribunais,
sob a alegação de que a figura é apenas uma maquiagem de um contrato de
trabalho, cuja essência não é um contrato de trabalho e não deveria servir de escudo
para práticas escusas, como a rotatividade de mão de obra barata ou a custo zero.7

5
CASSAR, Vólia Bomfim. Resumo de direito do trabalho / Vólia Bomfim Cassar. – 6. ed., rev., atual. e
ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018. p. 108.
6
SILVA, Homero Batista. Comentários à Reforma Trabalhista. 2. ed. São Paulo: RT, 2017. P SILVA,
Homero Batista. Comentários à Reforma Trabalhista. 2. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 49.
7
SILVA, Homero Batista. Comentários à Reforma Trabalhista. 2. ed. São Paulo: RT, 2017. P SILVA,
Homero Batista. Comentários à Reforma Trabalhista. 2. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 50.
972

Após feita ou aceita a proposta de serviço, o § 4 do art. 452-A da CLT, prevê uma
penalidade de 50% da remuneração que seria devida em caso de descumprimento por
qualquer das partes. A multa deverá ser paga em 30 dias, e é admitido a compensação em
igual prazo. Cabe ressaltar que se trata de pagamento de uma multa de valor elevado para
empregados que estão submetidos a contratos com pagamentos já baixos. A MP nº 808/17
havia revogado integralmente o referido parágrafo, no entanto, perdeu eficácia como
anteriormente explicado.
Quanto ao pagamento, a lei da Reforma Trabalhista trouxe inovação, vez que o
empregado receberá imediatamente ao término de cada período de prestação de serviço a
remuneração, férias proporcionais com acréscimo de um terço, décimo terceiro salário
proporcional, repouso semanal remunerado e adicionais legais (art. 452-A, §6º. CLT). O
recibo de pagamento "deverá conter a discriminação dos valores pagos relativos a cada uma
das parcelas referidas no § 6º deste artigo" (art. 452-A, § 7º, CLT).
Ainda, o empregador deverá efetuar o recolhimento das contribuições
previdenciárias próprias do empregado e o depósito do FGTS, com base nos valores pagos
no período mensal, além de fornecer ao empregado o comprovante do cumprimento dessas
obrigações (art. 452-A, § 8º, CLT).

2.4 Requisitos introduzidos pela portaria MTB Nº 349 DE 23/05/2018

A Medida Provisória nº 808 de 2017 inseriu no art. 452-A na CLT a necessidade de


se registrar a celebração do contrato na carteira de trabalho, ainda que previsto em acordo
coletivo de trabalho ou convenção coletiva, e a identificação, assinatura e domicílio das
partes; a estipulação do valor da hora ou do dia de trabalho, o local e o prazo para o
pagamento da remuneração. Todavia, a referida Medida não foi votada e perdeu sua
validade no dia 23 de abril de 2018, voltando a vigorar, assim, os termos da Lei 13.467/2017.
Considerando a lacuna deixada pela perda de validade da Medida Provisória n nº
808 de 2017, o Ministério do Trabalho (MTB) editou a Portaria nº 349, de 23 de maio de
2018, publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 24/05/2018, seção 1, página 92, com
objetivo de estabelecer “regras voltadas à execução da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017,
no âmbito das competências normativas do Ministério do Trabalho”. No entanto, ao
contrário da Medida Provisória, a Portaria não detém força de lei.
Assim, a Portaria nº 349/2018 visou “regulamentar” os artigos que concernem ao
973

trabalhador autônomo (art. 1º, §§ 1º a 5º), contrato de trabalho intermitente (arts. 2º a 6º),
gorjeta (art. 7º) e a comissão de representantes dos empregados (art. 8º).
No tocante ao contrato intermitente, observa-se, que o texto da Portaria 349 do
Ministério do Trabalho é bem semelhante ao texto da Medida Provisória nº 808 de 2017.
Tal como, a Portaria MTB 349/2018 determina que o contrato deva conter a identificação,
assinatura e domicílio ou sede das partes; o valor da hora ou do dia de trabalho; e o local e
o prazo para o pagamento da remuneração. Ressalta a Portaria que o valor da hora ou do
dia de trabalho não poderá ser inferior ao valor horário ou diário do salário mínimo,
assegurada a remuneração do trabalho noturno superior à do diurno.
Além disso, a Portaria MTB 349/2018 assegura um valor horário ou diário não
inferior ao salário mínimo, mas permite que o trabalhador desta modalidade receba um valor
superior os demais trabalhadores que porventura prestem o mesmo serviço ao mesmo
empregador, independente da modalidade contratual que estabelece o vínculo empregatício.
Entre eles está a que permite contratar autônomos, com ou sem exclusividade. Para
os casos em que o trabalhador autônomo figure em um único trabalho, isso não caracteriza
vínculo de emprego. Também volta a ser permitido que o autônomo recuse atividades, sem
que isso seja considerado um descumprimento do contrato. Assim dispõe o caput e incisos
do art. 2º da portaria:

Art. 2º O contrato de trabalho intermitente será celebrado por escrito e registrado


na Carteira de Trabalho e Previdência Social, ainda que previsto em acordo
coletivo de trabalho ou convenção coletiva, e conterá: I - identificação,
assinatura e domicílio ou sede das partes; II - valor da hora ou do dia de trabalho,
que não poderá ser inferior ao valor horário ou diário do salário mínimo, nem
inferior àquele devido aos demais empregados do estabelecimento que exerçam
a mesma função, assegurada a remuneração do trabalho noturno superior à do
diurno; e III - o local e o prazo para o pagamento da remuneração.

Vê-se, dessa forma, que a Portaria nº 349/2018, visou esclarecer e complementar


questões da Lei nº 13.467/2017.

3 O CONTRATO INTERMITENTE EM OUTROS PAÍSES

O direito comparado se faz necessário, tendo em vista que comparar os institutos


jurídicos permite aprofundação quanto ao contrato intermitente da nossa realizada. Dito isso,
registra-se que quando se fala em contrato de trabalho intermitente, é preciso ter em mente
que não se trata de uma novidade brasileira, visto que já existe em outros países como
974

Alemanha, Inglaterra, Portugal, Itália, EUA e outros. Acontece que, nos países estrangeiros,
a legislação que prevê o trabalho intermitente trouxe, requisitos específicos para a sua
aplicação, como pactuação de jornada mínima, compensação pelo tempo à disposição com
pagamento de um valor menor e restrição de atividades.8

3.1 Alemanha

Na Alemanha, o trabalho intermitente “Arbeit Auf Abruf” foi introduzido em 1985,


na chamada Lei de Promoção ao Emprego, e conhecido como “trabalho a pedido”.
Atualmente, a principal norma sobre o trabalho intermitente é prevista no § 12 TzBfG
(Teilzeit- und Befristungsgesetz).
Entende-se como trabalho de plantão onde o trabalhador deve realizar seu trabalho
de acordo com a carga de trabalho variável na empresa, por exemplo se numa semana ele
trabalhar muitas horas, na semana seguinte menos e precisa trabalhar muitas horas na semana
seguinte, isto é, há uma variante extrema da flexibilidade do horário de trabalho. Destaca-se
que ninguém é forçado a trabalhador a tempo parcial, a menos que este tipo de trabalho está
no contrato de trabalho expressamente regulado. Sendo assim, na Alemanha, por meio de
acordo, é possível trabalhador e empregador estipular a duração semanal e quantidade de
horas diárias. No tocante à duração semanal, se ela não for estipulada será considerada como
acordada a jornada de 20 horas semanais. Frisa-se que até o final de 2018, esse tempo
mínimo semanal de trabalho era de dez horas. Assim, se a duração do horário de trabalho
diário não for fixa, o empregador deverá ter o desempenho no trabalho do funcionário por
pelo menos três horas consecutivas.
Outrossim, o empregado só é obrigado a executar o trabalho se o empregador o
informar do local de seu horário de trabalho com pelo menos quatro dias de antecedência.9
Ressalta-se que o trabalho intermitente acaba transferindo parte dos riscos do
negócio para o empregado, contrariando, assim o § 615 do BGB (Código Civil da

8
NACIF, Cynthia Mara Lacerda; SOUZA, Miriam Parreiras de. Reflexões sobre a aplicação do trabalho
intermitente no trabalho doméstico. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo
Horizonte, MG, v. 64, n. 97, p. 251-268, jan./jun. 2018.
9
Lei sobre trabalho a tempo parcial e contratos a prazo (direito a tempo parcial e temporário - TzBfG) § 12
trabalho a pedido.
975

10
Alemanha), onde dispõe que os riscos econômicos do negócio são do empregador. No
entanto, mesmo que com mais garantias que em outros países, depreende-se que com
essa modalidade de trabalho precariza as condições de vida do empregado fazendo as
cortes trabalhistas alemãs a estipularem outros limites normativos pela via jurisprudencial.
Dessa forma, verifica-se que houve aumento da produção e do lucro, com redução
ao desemprego, no entanto, em detrimento de uma significativa queda de renda da
população, aumento da pobreza e da parcela da população com baixos salários.11

3.2 Itália

Na Itália, a figura jurídica do contrato de trabalho intermitente, conhecida também


como contrato à chamada (“contrato de lavoro intermitente” ou “contrato di lavoro a
chiamata”), foi introduzida por meio do Decreto Legislativo nº 276, de 10 de setembro de
2003. Ocorreu mudanças recentes no instituto a partir da reforma trabalhista italiana de
2015, o Jobs Acts.12
O principal objetivo do Lavoro intermittente é a inclusão no mundo do trabalho
empregado (mercado formal) para segmentos vulneráveis como jovens em busca do
primeiro emprego (até 25 anos) e aposentados ou maiores de 55 anos, isto é, possui
requisitos subjetivos, consequentemente aumentando os números dos empregos formais na
Itália. Ainda, o objeto do contrato é a prestação de trabalho de forma descontínua ou
intermitente, o empregador precisa ser autorizado por meio de acordos ou convenções
coletivas de trabalho que estabeleçam em períodos pré- determinados de dias, meses ou
ano. E se não houver negociação coletiva, o cabimento do trabalho intermitente fica a cargo
de ser regulamentado pelo Ministério do Trabalho.13
Verifica-se que na Itália, com exceção dos setores de turismo e entretenimento, é
autorizado que haja um contrato de trabalho intermitente com o mesmo empregador por um

10
HENSCHE, Martin. Arbeit Auf Abruf.
Disponível em:https://www.hensche.de/Arbeit_Abruf_Arbeit_auf_Abruf_Abrufarbeit.html. Acesso em: 16
de mar 2020.
11
BRAMANTE, Ivani. Contrato Intermitente: Ubertrabalho e Ultraflexiprecarização. Revista Científica
Virtual da Escola Superior de Advocacia Nº 25 - Primavera 2017. São Paulo OAB/SP – p. 09- 42
12
Decreto Legislativo 81/2015
13
FERNANDES, P. R. A figura do contrato de trabalho intermitente do PL nº 6.787 (reforma trabalhista)
à luz do direito comparado, 24 abril 2017. Disponível em:
<http://ostrabalhistas.com.br/figura-do-contrato-de-trabalho-intermitente-do-pl-no-6-7872016-reforma-
trabalhista-luz-do-direito-comparado/>. Acesso em: 16 março de 2020.
976

período de até 400 dias de trabalho, todavia, caso esta quantidade seja extrapolada, o
contrato de trabalho intermitente converte-se em contrato por tempo indeterminado.14
Outro importante aspecto no contrato intermitente italiano, é o fato de que pode haver
uma cláusula em que o trabalhador se obriga responder o chamado do empregador. Sendo
assim, é devida uma compensação ao trabalhador pelo tempo à disposição. Ademais, se não
houver essa referida cláusula, o trabalhador pode recusar a chamada, onde não existirá
nenhuma quantia de compensação, apenas os valores do período trabalhado. Ainda, existe a
vedação da utilização da intermitência para substituir grevistas, no caso de empresas que
tenham realizado demissões em massa ou suspensão/redução da jornada de trabalho nos
últimos seis meses e no caso de empregadores que não tenham avaliação de risco em
segurança do trabalho. Frisa-se que o prazo para a convocação do trabalhador é de um dia
útil. Diante do exposto, verifica-se que em que pese haja uma maior proteção ao trabalhador,
o contrato de trabalho intermitente na Itália, possui várias restrições para sua adoção.15

3.3 Portugal

Em Portugal, o contrato de trabalho intermitente foi inserido pelo Código de


Trabalho de 2009, Lei nº 07 d 12 fevereiro de 2019.
De acordo o art. 157 do Código do Trabalho português, o trabalho intermitente é
admitido “em empresa que exerça atividade com descontinuidade ou intensidade variável,
as partes podem acordar que a prestação seja intercalada por um ou mais períodos de
inatividade”. Além disso, o referido artigo dispõe que o contrato não pode ser celebrado em
regime de trabalho temporário ou a termo resolutivo. Vislumbra-se que como ocorre na
Itália, esse contrato é limitado a atividades empresariais caracterizadas pela descontinuidade
ou intensidade variável e são definidos limites de idade e duração para esse contrato.
Nesse sentido, João Leal Amado entende que “ao utilizar a disjuntiva
descontinuidade (interrupções) ou intensidade variável (flutuações), a lei oferece um recurso

14
CAMERA, Roberto. Dottrina Per il Lavoro: verifica delle giornate di Lavoro Intermittente. Disponível
em:<http://www.dottrinalavoro.it/contratti-c/lavoro-intermittente-c/dottrina-per-il-lavoro-sono- utili-le-
dimissioni-online>. Acesso em: 16 de março de 2020.
15
FERNANDES, P. R. A figura do contrato de trabalho intermitente do PL nº 6.787 (reforma
trabalhista) à luz do direito comparado, 24 abril 2017.
Disponível em:
<http://ostrabalhistas.com.br/figura-do-contrato-de-trabalho-intermitente-do-pl-no-6-7872016-reforma-
trabalhista-luz-do-direito-comparado/>. Acesso em: 16 março de 2020.
977

bastante vasto para o recurso ao trabalho intermitente”. 16


O contrato de trabalho intermitente deve ter forma escrita e pode ser de duas
espécies: o trabalho alternado e o trabalho à chamada. No que tange ao trabalho alternado o
art. 159º do código português dispõe que: “as partes estabelecem a duração da prestação de
trabalho, de modo consecutivo ou interpolado, bem como o início e termo de cada período
de trabalho”, isto é, trata-se de uma espécie adequada às atividades em que se é possível
prever e programar as necessidades de trabalho, por exemplo uma fábrica de ovos de páscoa.
Ainda, o referido artigo ainda prevê que a prestação de trabalho referida no número anterior
não pode ser inferior a cinco meses a tempo completo, por ano, onde pelo menos três meses
devem ser consecutivos. Já a segunda hipótese, o trabalho à chamada, previsto na parte final
do artigo 159º, do Código do Trabalho português, onde dispõe que o empregador deve
convocar o trabalhador com antecedência estabelecida entre as partes, a qual não pode ser
inferior a vinte dias. Nesse caso, o trabalhador fica sujeito à vontade e à necessidade do
empregador, como ocorre no Brasil.
Assim, o contrato intermitente para ser válido deve prever um período definido da
prestação de serviço, sendo consecutivo ou não. Ainda, o início e término de cada período de
trabalho, bem como estabelecer a antecedência com que o empregador deverá informar o
trabalhador. 17
Um importante aspecto do contrato de trabalho intermitente português é que é que
impõe o pagamento de uma “compensação retributiva” pelo período de inatividade, que
corresponde a pelo menos 20% do que for pago normalmente ao trabalhador. E se houver
Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho, o valor a ser pago pode ser maior.18 Assim
dispõe o artigo 160º do Código do Trabalho de Portugal:
Artigo 160.º 1 - Durante o período de inatividade, o trabalhador pode exercer
outra atividade, devendo informar o empregador desse facto.
2 - Durante o período de inatividade, o trabalhador tem direito a compensação
retributiva, a pagar pelo empregador com periodicidade igual à da retribuição, em
valor estabelecido em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou, na
sua falta, de 20 % da retribuição base.

16
AMADO, João Leal. Perspectivas do Direito do Trabalho: um ramo em crise identitária? Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. n. 47. Campinas: 2015.
17
BRAMANTE, Ivani. Contrato Intermitente: Ubertrabalho e Ultraflexiprecarização. Revista Científica
Virtual da Escola Superior de Advocacia Nº 25 - Primavera 2017. São Paulo OAB/SP – p. 22.
18
LIMA, F. G. M. D. Trabalho intermitente, s/d. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pl-6787-16-reforma-
trabalhista/documentos/audiencias-publicas/luis-antonio-camargo-de-melo>. Acesso em: 16 de março 2020.
978

3 - Se o trabalhador exercer outra atividade durante o período de inatividade,


o montante da correspondente retribuição é deduzido à compensação retributiva
calculada de acordo com o número anterior.
4 - Os subsídios de férias e de Natal são calculados com base na média dos
valores de retribuições e compensações retributivas auferidas nos últimos 12
meses, ou no período de duração do contrato se esta for inferior.
5 - Durante o período de inactividade, mantêm-se os direitos, deveres e
garantias das partes que não pressuponham a efectiva prestação de trabalho. 6 -
Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos n.os 2 ou 4.

Verifica-se que, durante o período de inatividade não há exclusividade, todavia,


durante tal período mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não
pressuponham a efetiva prestação de trabalho.

3.4 Estados Unidos e Reino Unido

Primeiramente, importa salientar que o sistema jurídico anglo-saxônico se caracteriza


por uma maior liberdade na contratação das relações de trabalho19. O contrato intermitente
vem retratado no Just-in-time workers, just-in-time scheduling e zero-hour contracts.

Nos EUA, o contrato intermitente, “just-in-time scheduling”, trata-se de uma


modalidade precária de trabalho, onde o trabalhador presta serviços de pouca duração, com
conhecimento da escala com pouco tempo de antecedência, e com grandes oscilações nas
horas de trabalho. A maioria dos estabelecimentos que utilizam o trabalho intermitente nos
Estados Unidos são lojas e restaurantes, onde empregadores utilizam software que estabelece
quantos e quais empregados serão necessários no dia. Ainda, existe um movimento que visa
diminuir os impactos negativos, onde mesmo que não haja lei federal, em e San Francisco,
Seattle e Nova York há regulamentação e limites ao contrato intermitente. Oito estados e o
distrito de Columbia introduziram as designadas leis reporting-time pay que exigem aos
empregadores o pagamento de um valor mínimo aos empregados que trabalham em turnos
calendarizados, mesmo no caso de não lhes ser atribuído trabalho.20
Dessa forma, entende-se que o contrato intermitente vem sendo considerado negativo

19
FERNANDES, P. R. A figura do contrato de trabalho intermitente do PL nº 6.787 (reforma
trabalhista) à luz do direito comparado,24 abril 2017. Disponível em:
<http://ostrabalhistas.com.br/figura-do-contrato-de-trabalho-intermitente-do-pl-no-6-7872016-reforma-
trabalhista-luz-do-direito-comparado/>. Acesso em: 16 março de 2020.
20
BRAMANTE, Ivani. Contrato Intermitente: Ubertrabalho e Ultraflexiprecarização. Revista Científica
Virtual da Escola Superior de Advocacia Nº 25 - Primavera 2017. São Paulo OAB/SP.
979

para os empregados, visto que acabam se tornando reféns das empresas por estarem
disponíveis o dia todo e diversas vezes não serem nem chamados.
Já no Reino Unido, o trabalho intermitente ocorre por meio dos contratos zero hora,
“zero-hour contracts” que se caracterizam pelo fato de que não há uma garantia do número
de horas a serem trabalhadas,21isto é, o empregado se compromete em se colocar à disposição
do empregador para trabalhar quando necessário, onde não existe garantia de remuneração
ou horas de labor.
Frisa-se que, o empregador não é obrigado a dar trabalho, o trabalhador não é obrigado
a trabalhar quando chamado. Ademais, a maioria dos empregados são menores de 25 e
maiores de 65 anos, com carga horária de 26 horas semanais. Entretanto, essa forma de
trabalho gera instabilidade financeira, uma vez que não são assegurados os direitos mínimos,
22
gerando grandes problemas. Por conta disso, o Governo Britânico no ano de 2014, proibiu
o uso de cláusulas de exclusividade nos contratos zero hora. E na Nova Zelândia, o contrato
intermitente foi banido, visto que não especifica o mínimo de horas, os dias e os horários do
trabalho.23

4 ASPECTOS PREJUDICIAIS AO EMPREGADO

Considerando que essa nova modalidade de contrato de emprego visa atingir a


parcela dos trabalhadores que prestam serviços informalmente, a Reforma Trabalhista foi
omissa em diversos aspectos, apresentado diversos vícios. Como não sendo específica ao
determinar em quais relações de emprego poderá ser usado o contrato intermitente,
permitindo a regulamentação do chamado “bico”, e do contrato zero hora, precarizando as
relações laborais.

21
FERNANDES, P. R. A figura do contrato de trabalho intermitente do PL nº 6.787 (reforma
trabalhista) à luz do direito comparado, 24 abril 2017.
Disponível em:
<http://ostrabalhistas.com.br/figura-do-contrato-de-trabalho-intermitente-do-pl-no-6-7872016-reforma-
trabalhista-luz-do-direito-comparado/>. Acesso em: 16 março de 2020.
22
FONTINELE, C. Trabalho Intermitente: breves comentários. Jusbrasil, 2017. Disponível em:
<https://camilafontinele.jusbrasil.com.br/artigos/489161266/trabalho-intermitente>. Acesso em: 16 março
2020.
23
ROY, ELEANOR. Zero-hour contracts banned in New Zealand. Disponível em:
https://www.theguardian.com/world/2016/mar/11/zero-hour-contracts-banned-in-new-zealand. Acesso em: 16
de março 2020
980

Nesse sentido, no tange à precarização, se adentrarmos nas experiências dos países


que adotaram tal modelo, como explanado anteriormente, percebemos que o nosso
protótipo se baseia no “zero-hour contract” do direito inglês. A expressão “contrato de
zero hora”, onde a sua principal característica é que não há garantia de prestação de serviços
e de recebimento de salário.24 O fato de o trabalhador só receber remuneração quando
convocado pela empresa, fere princípios como da dignidade da pessoa humana. Sendo
assim, no contrato intermitente o trabalhador poderá receber nada durante um mês ou
meses, ou auferir remuneração inferior ao salário mínimo, ferindo o que dispões o art 7º,
IV, da CF. 25 Nas palavras de Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado:

Igualmente a noção de salário sofre tentativa de desestruturação pela Lei da


Reforma Trabalhista: conceituado como a parcela contraprestativa devida e paga
pelo empregador a seu empregado em virtude da existência do contrato de
trabalho, a verba salarial pode ser por unidade de tempo (salário mensal fixo - o
tipo mais comum de salário), por unidade de obra (salário mensal variável, em
face de certa produção realizada pelo obreiro), ou por critério misto (denominado
salário-tarefa, que envolve as duas fórmulas de cálculo). Lidos, apressadamente
e em sua literalidade, os novos preceitos jurídicos parecem querer criar um
contrato de trabalho sem salário. Ou melhor: o salário poderá existir,
ocasionalmente, se e quando o trabalhador for convocado para o trabalho, urna
vez que ele terá o seu pagamento devido na estrita medida desse trabalho
ocasional.26

Outro aspecto refere-se a ruptura do conceito de empregador, como aquele que


assume os riscos da atividade econômica, previsto no artigo 2º, caput, da CLT, visto que
ao sujeitar a prestação de serviços à existência de demanda, parte do risco transfere-se ao
empregado.
Depreende-se que, considerando que a intermitência se caracteriza por relação em
que há períodos de trabalho e inatividade, de descontinuidade e de intensidade variável da
atividade econômica, para o trabalhador a descontinuidade no trabalho representa a
instabilidade, não podendo planejar o seu futuro, visto que não saberá qual será a
remuneração mensal. E em que pese seja permitido trabalhar em outros horários, na prática
é difícil, uma vez que o trabalhador dificilmente irá conseguir assumir outro serviço quando

24
HIGA, Flávio da Costa. Reforma trabalhista e contrato de trabalho intermitente. Consultor Jurídico,
opinião, 8 de junho de 2017. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2017-jun-08/flavio- higareforma-
trabalhista-contrato-trabalho-intermitente#_ ftn13>. Acesso em: 16 março 2020.
25
LEITE, C. H. B. Curso de direito do trabalho. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 697.
26
DELGADO, Mauricio Godinho. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n.
13.467/2017/Maurício Godinho Delgado, Gabriela Neves Delgado. - São Paulo: LTr, 2017. P. 154.
981

estiver disponível para responder os chamados do empregador. 27

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos estudos realizados, é possível concluir que o contrato de trabalho


intermitente, nos moldes atuais, gera precarização do trabalho, visto que oferece a
possibilidade de haver contrato sem prestação de serviço e sem contraprestação pecuniária.
E considerando que não se trata de invenção brasileira, já que aparece sob outros
nomes e regras nos ordenamentos justrabalhistas de diversos países, diante do estudo do
direito comparado é possível visualizar um grau elevado da desproteção ao trabalhador no
contrato intermitente brasileiro.
Conclui-se que a regulamentação do trabalho intermitente ainda tem muitos
aspectos a serem discutidos e regulamentados, uma vez que supostamente foi criado para
opor-se a informalidade do trabalho no Brasil, legitimando o “bico”. Ainda, verifica-se que
no contrato intermitente brasileiro temos uma relação de emprego, por escrito, que se
caracteriza pela descontinuidade, com períodos alternados de atividade e inatividade, sendo
este não remunerado. Onde a prestação dos serviços depende da prévia convocação do
empregador, mas o empregado obrigado a aceitar. Em que pese possa manter vários vínculos
intermitentes simultâneos, na prática é difícil acontecer. E como não há obrigatoriedade de
jornada mínima, não qualquer garantia de remuneração mínima, gerando, assim, uma
condição de profunda insegurança, instabilidade e imprevisibilidade para o trabalhador
brasileiro.
Assim, comparando com a realidade do contrato de trabalho intermitente em outros
países, se torna imprescindível que haja pagamento de uma compensação pelo período de
inatividade, como acontece na Itália e em Portugal, bem como estipulação de horas mínimas
a serem prestadas, como ocorre na Alemanha, em contraposição ao objetivo dos detentores
do capital no Brasil, que é minimizar o custo do trabalho em oposição da classe
trabalhadora. Com a flexibilização da legislação trabalhista na articulação contemporânea,
essa classe trabalhadora está vivenciando a precarização do trabalho e da própria vida.

27
VEIGA, Aloysio Corrêa da. Reforma trabalhista e trabalho intermitente. Revista eletrônica [do]
Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 8, n. 74, p. 15-26, dez. 2018/jan.
2019.Disponivel em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/150672. Acesso em: 16 março 2020.
982

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, João Leal. Perspectivas do Direito do Trabalho: um ramo em crise


identitária? Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. n. 47. Campinas:
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2016, do Poder Executivo, que “altera o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de Maio de 1943 –
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Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis n º 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de
11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às nova.

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