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O HOMEM DO DESERTO

ROMANCE CONTEMPORÂNEO

AMBRA BLANCHETT
Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se
preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.
Clarice Lispector
PRÓLOGO

"Você não se sente sozinha aqui no deserto?"


"No meio da multidão também nos sentimos sozinhos."
Antoine de Saint Exupéry

Lara encheu o peito de ar e soltou-o lentamente. Estar ali à beira da piscina com o sol
alaranjado a levantar-se a este, era o equivalente a estar no céu depois de morrer. Sentia-se ridícula,
mas não conseguia tirar o sorriso da face. A sensação de liberdade era a melhor coisa do mundo.
Finalmente podia descansar e deixar de olhar por cima do ombro como se fosse seguida, como
muitas vezes sentiu que era. Ouvia a azáfama da cozinha com barulho de panelas e pratos e sentiu-se
em casa, protegida. O dia ali começava cedo. Ouvia Ema a combinar com Miriam, a cozinheira, o
que iria comprar no mercado.
- Queres ir ao mercado? – ouviu Ema a perguntar do interior da cozinha do Riad.
- Não. Prefiro ficar aqui. – gritou-lhe Lara.
Ema foi ao encontro dela transportando um saco de ráfia debaixo do braço e abeirou-se da
piscina onde Lara estava deitada numa espreguiçadeira.
- Está bem. O que é que queres fazer? Não estás muito alegre. – observou.
- Não percebo onde queres chegar? – disse Lara franzindo o sobrolho à amiga.
- Não queres conhecer gente nova? A cultura da região, os vizinhos… sei lá… tudo o que existe
aqui de maravilhoso. – perguntou-lhe com alguma inquietação.
- Não. Estou melhor sozinha.
Ema abanou a cabeça em desaprovação.
- Acredita ninguém está melhor sozinho.
- Eu estou.
- Então o que me estás a dizer é que desde que tenhas abrigo e comida basta-te, não precisas de
ninguém. Não te reconheço Lara Santiago. Fica difícil ajudar as pessoas quando elas ocultam a
verdade.
- O que te leva a pensar que eu não estou a dizer a verdade?
- Porque a mulher que está aqui na minha frente – e apontou para ela – já foi uma das mulheres
mais admirada e sociável da sociedade Lisboeta. Gostavas disso. O que é que se passou para que
viesses enfiar-te aqui no deserto? O bicho-do-mato sou eu, tu sempre gostaste da ribalta. O que me
entristece mais é não confiares em mim. Lara, não me interpretes mal, gosto de ti como de uma irmã e
devo tudo o que sou à tua família, mas desde que me telefonaste, há duas semanas, que me estás a
mentir. Todos mentem, ou ocultam a verdade, mas a parte que as pessoas omitem é a mais importante.
As palavras de Ema atingiram Lara no íntimo e sentiu a respiração pesada e a voz a falhar.
- Estás a referir-te a mim?
Ema olhou em volta de si, com um gesto teatral.
- E vês aqui mais alguém? O que é que se passou contigo? O Pedro tem outra mulher? Nunca
gostei dele, nem ele de mim, mas por ti, sempre o suportei. Mas ele deve ter aprontado alguma coisa
bem grave. Cá por mim, aquele asno do teu marido, não é o que parece.
Lara pensou que se fosse só isso, se fosse outra mulher, era fácil de resolver.
- Não. Estava apenas no meu limite e não quero que ninguém saiba de mim durante um tempo,
talvez assim me dêem mais valor.
- Vou aceitar a tua resposta, por enquanto. – suspirou. – Mas mulher! Levanta-te – e levantou a
voz - e vem ajudar-me a carregar as compras. Daqui a pouco o sol fica insuportável.
Ema colocou as mãos na cintura em jeito de desafio e Lara riu-se – ela sempre tivera
capacidade de persuasão nem que fosse pela autoridade -, levantou-se e colocou o lenço à maneira
das mulheres marroquinas, enfiou a djellaba preta pela cabeça e estava pronta a enfrentar o mundo
fora dos muros do hotel de amiga.
As duas mulheres saíram pela porta de madeira pesada e dirigiram-se ao mercado de
Ouarzazate embrenhando-se nas ruas estreitas com muros feitos de lama que preservavam a
privacidade dos moradores. Ema precisava abastecer a cozinha. Dali a um par de dias voltava a ter
os quartos do Riad Dar Ema preenchidos com um grupo de franceses e gostava de servir bem os
clientes. Cliente satisfeito divulga o hotel e era assim que trabalhava desde que se instalara em
Marrocos.
A azáfama era enorme no mercado vivo e colorido. Comerciantes apregoavam os seus produtos.
Hortaliça, roupa, e todo o tipo de utensílios para as funções mais variadas; desde dentaduras usadas
a próteses para pernas e braços, tudo isso era possível de comprar ali. Parecia-lhe ter retrocedido à
época medieval. Lara estava extasiada pelos sons da língua, em diferentes cambiâncias, desde o feliz
ao zangado; ao francês - usado para os negócios - ao dialecto e ao árabe e também a mistura de
cheiros, desde especiarias, animais, peixe, pessoas, e pela multiplicidade de tonalidades entre o
laranja e o amarelo. Tudo o que a rodeava era uma fonte de inspiração para Lara.
- Então? Não valeu a pena.
- Credo mulher! Só te falta ser bruxa! Era o que estava a pensar. – respondeu Lara com um
sorriso. – Nem imaginas a quantidade de ideias que já recolhi para os meus desenhos.
- Essa é a velha Lara. Bem-vinda de volta. Já não era sem tempo.
Lara deu graças a Deus por ter cumprido o juramento feito a Ema de não revelar a sua
localização quando ela resolveu sair do país num acto de desespero. Ema era uma mulher
extremamente generosa e bonita, mas sofrera o mais duro golpe que uma mulher pode sofrer: apanhou
o noivo em flagrante na cama com uma das suas amigas, na véspera do casamento. Para além de ter
cancelado o casamento, na segunda-feira seguinte despediu-se do emprego - como gerente de hotel -
pegou em todas as suas roupas, objectos pessoais economias e rumou a Marrocos. Na época Lara
tentou demovê-la dessa loucura, mas hoje reconhece que a amiga está bem e foi bom ela estar ali, de
outra forma não tinha onde se esconder.
Ema e Lara andavam de banca em banca, escolhendo batata-doce, courgettes, cenouras, carne de
borrego, salsichas merguez, peixe, fruta e Ema que já falava um pouco de darijá – dialecto
marroquino – regateava com os vendedores que ora faziam cara feia quando o preço proposto não
lhes agradava, ora cediam e acabava tudo com riso e saudações em nome de Alá. Ema era conhecida
na comunidade e aceite por todos.
Tudo o que via à sua volta era novo e um fascínio para o sentido de artista que Lara possuía e,
por momentos, Lara esqueceu-se do que a levara até àquela cidade situada entre as montanhas do
atlas com neve nos picos, e o deserto do Saara. Não podia existir lugar mais apropriado e mais
remoto para se esconder.
- Cher ami. – soou uma voz masculina com um tom de tenor, num francês muito fluente com
sotaque, diferente do falado pelos marroquinos, e também no norte de França, onde Lara viajava
amiúde a negócios.
Não resistiu e voltou-se na direcção do som. Um europeu ali, naquele local remoto, era uma
curiosidade. Um homem alto, moreno, com um corpo atlético, com barba e cabelo grande,
envergando uma camisa branca por fora das calças de ganga cumprimentava Ema com decoro,
porque os costumes árabes não permitiam manifestações de afecto em público, sobretudo entre um
homem e uma mulher.
- Janvier! – exclamou Ema com alegria. – Quando voltaste?
Afastada, uns dois metros, Lara via o brilho dos olhos da amiga em direcção ao rosto do
homem.
- Acabei de chegar. Vim abastecer a despensa senão a Fadila mata-me, sabes como ela é. –
disse a rir.
- E Hamed? Veio contigo?
- Sim claro. Aquele agora deu em pensar que tem que me proteger. Não me larga, mas eu tenho
cá as minhas teorias sobre o assunto.
E riram os dois, cúmplices, mostrando que existia alguma intimidade, alheios à presença dela,
até que Ema pousou os olhos em Lara e viu a gafe que estava a cometer. Ema deu um passo na sua
direcção e pegou-lhe pela mão, aproximando-a deles.
- Apresento-te a minha amiga Lara. – disse para o tal Janvier.
O homem, com uns olhos intimidantes, do alto do seu metro e oitenta, respondeu em Darijá.
- Prazer em conhecê-la senhora, Alá a proteja.
Lara olhou para ele sem perceber nada e Ema gargalhou.
- Desculpem – disse em francês – esqueci-me de te dizer que Lara é portuguesa e Janvier é
francês mestiço.
Janvier abriu muito os olhos verdes azeitona - a primeira coisa em que Lara se fixou quando ele
a cumprimentou – e disse:
- Converteu-se?
- Oh! Não! – respondeu Ema por ela. – Lara é mesmo assim, em Roma sê romano, entendes?
Janvier assentiu e perguntou directamente a Lara.
- Fala francês?
- Sim, estou habituada a viajar para Paris com frequência a negócios. – e arrependeu-se logo de
seguida de ter aberto a boca. Raio de língua a sua!
- Então podemos comunicar sem problemas?
Lara assentiu com a cabeça.
O burburinho das pessoas à sua volta era alto e o movimento contínuo e, rapidamente o homem
foi afastado delas pelos velhos anciãos, que o cumprimentavam com um abraço, lhe punham a mão no
peito e perguntavam coisas em Darijá.
- Não sorrias para ninguém, sobretudo para um homem. Aqui os sorrisos das mulheres são
interpretados de outra forma. – avisou Ema.
Lara pode constatar isso com rapidez. Os homens mais novos olhavam-nas com um misto de
curiosidade e cobiça, sobretudo para Lara, vestida como muçulmana. O objectivo de passar
despercebida, vestindo-se como os nativos, estava a dar o efeito contrário. Mulheres e homens
olhavam para ela, muito sérios, sabiam distinguir quando alguém não era da terra, mesmo que
vestisse os seus trajes.
O homem desenvencilhou-se do grupo que o cercava e voltou para junto de Ema e Lara. Com um
olhar penetrante – como se lhe quisesse roubar a alma –, e sem qualquer sorriso no rosto disse:
- Espero que nos possamos encontrar de novo …senhorita? - questionou querendo saber se ela
era solteira.
Lara ignorou a pergunta à questão e assentiu com a cabeça. Não lhe ocorria mais nada.
- Vemo-nos mais tarde em casa. – disse Ema para o homem. – Vamos continuar as compras.
Daqui a pouco o calor é intenso.
O homem despediu-se e afastou-se em direcção a um comerciante de cordeiros.
- Vemo-nos em casa? – questionou Lara. – Quem é? São muito íntimos, ou é impressão minha?
Não me digas que é o teu príncipe esperado?
Ema nunca pensara ter intimidade com ele. Apetecia-lhe rir da questão de Lara, mas refreou-se.
- Janvier? É uma ave de arribação como eu. Apaixonou-se pelo deserto e passa aqui grande
parte do ano. É francês, filho de um marroquino e de uma francesa. É nosso vizinho. Ele e o irmão,
Hamed.
Capítulo Um

Mansur Janvier Lamar Mustápha

Ouarzazate
- Porque é que tenho que me decidir por uma das duas mulheres? - disse Janvier um tanto
irritado. –Estás com ciúmes…mas, deixa-me pensar – e coçou a cabeça desfazendo os cabelos pretos
e revoltos no cimo da cabeça -, qual é a eleita? Querido irmão, essa tua preocupação comigo e com a
minha vida amorosa, não terá alguma coisa escondida, um sentimento recalcado? Nunca te
preocupaste com as minhas namoradas, porquê agora? – disse Janvier olhando a direito para o irmão
com os olhos verde azeitona hipnotizadores e incisivos, e com um toque trocista que ele sabia usar
muito bem, deixando as pessoas desarmadas. Desde criança que o fazia e Hamed conhecia bem essa
faceta do irmão.
Hamed viu-se apanhado na sua própria rede. O irmão mais novo passou-lhe uma rasteira e, ao
invés de lhe responder, questionou-o. Para um homem com quarenta anos era quase uma humilhação,
mas aprendera a lidar com o feitio impossível de Mansur Janvier, como lhe chamava a mãe para
aborrecer o pai que apenas queria que lhe chamassem Mansur, o nome árabe.
- Na verdade a minha preocupação é contigo. Desde que Lara chegou a casa de Ema que te
vejo…indeciso.
- Indeciso! Eu? Mas indeciso com o quê? – exclamou Mansur enquanto se atirava para o
conjunto de almofadas coloridas dispostas no chão em volta da mesa de chá, fazendo uma saltar para
o ar com o embate do seu peso que foi aterrar mesmo em cima do bule de chá de menta entornando-
o.
O ruido do bule de estanho cinzelado à mão, a cair no chão. Fadila apareceu de imediato com o
balde e um pano a postos como era hábito.
- O senhor derrubou o quê agora? Ora valha-me Alá! – e deitou as mãos à cabeça com algum
dramatismo. – O chão vai ficar todo manchado de verde. – e apressou-se a limpar o estrago feito por
Mansur.
- Desculpe Fadila. Esqueço-me que por vezes tenho modos de urso, ou melhor, de camelo. – e
apressou-se a recolher o objecto do chão.
A mulher de meia-idade, roliça e com um olhar vivo, limpou rapidamente o chão, recolheu o
tabuleiro com os copos e o bule e desapareceu na cozinha, deixando os dois homens de novo a sós.
O ambiente entre os dois irmãos tornara-se pesado nos últimos dias. Mansur olhava para o
irmão e pensava que ele não tinha salvação. Aos quarenta anos ainda estava solteiro e apesar de ter
sido um dos homens mais cobiçados pelas mulheres de Marselha nos tempos de juventude, Hamed
preferiu conhecer o mundo a casar e ter filhos. A opção de se enfiar com ele em Ouarzazate nunca
ficou muito bem esclarecida entre os dois, mas Mansur tinha uma suspeita que aumentava de dia para
dia, sobretudo pela implicância de Hamed consigo.
Colocou o olhar interrogativo sobre o irmão, desafiando-o a esclarecer o raio da pergunta
inoportuna e esperou, recostado nas almofadas, que ele respondesse.
Hamed ficou entre a espada e a parede e sem saber por onde se safar evitando responder-lhe. O
irmão estava prestes a descobrir porque é que ele estava na sua casa, às portas do deserto do Saara,
há um ano de forma permanente, ficando mesmo quando Mansur se ausentava a Marselha a períodos
curtos para resolver assuntos do gabinete de arquitectura.
- Muito bem! Não respondes? Pois vou eu dizer-te o que te corrói…
- Estava a brincar contigo. – apressou-se a dizer antes que ele abrisse a boca e o deixasse
completamente indefeso.
Era ridículo mas aos quarenta anos tornara-se um homem tímido, ou cauteloso, era talvez a
palavra mais adequada ao que sentia.
- A brincar?! Querido irmão, já tens idade para ter juízo e uma família, pareces um garoto
adolescente, ciumento e a rivalizar com um amigo por uma rapariga. – observou sarcástico. – Neste
caso comigo, mas sem qualquer motivo para isso.
Mansur era implacável mesmo com o irmão. Sempre fora assim, os papéis entre irmão mais
novo e irmão mais velho, estavam invertidos desde que eram crianças. Mansur era protector com o
irmão e fingia que se deixava proteger. Tinham quatro anos de diferença, mas o ar reservado de
Hamed, o contrário de Mansur extrovertido boémio, e até há um par de anos sempre rodeado por
mulheres bonitas, provocavam-lhe alguma inveja.
- Os dois temos idade para casar e ter filhos, a mãe todos os dias dizia que não se conformava
com o facto de os filhos estarem enfiados no deserto, quando deveriam estar…
- Casados e a darem-lhe netos. – completou Mansur. – Mas para isso acontecer preciso de
encontrar uma mulher.
- Mas já tiveste tantas? Nenhuma te tocou o suficiente para casares com ela?- inquiriu Hamed
mais interessado em saber se ele tinha alguma coisa com Ema do que nas namoradas que tivera
outrora.
- Sim, claro. Sobretudo na minha carteira. – respondeu com sarcasmo. - A última queria um anel
de diamantes. Nenhuma se interessou por Mansur, todas se interessavam pelo arquitecto famoso do
mundo árabe, Janvier Lamar. O homem por detrás do arquitecto era como se não existisse. Sentia-me
como um cão de luxo preso à trela… estou melhor aqui.
- Mas saíste em direcção ao deserto por um par de horas com aquela espanhola, como é mesmo
o nome dela?
- Sei lá! Caty ou Mary, não me lembro.
Hamed deu uma gargalhada desanuviando o ambiente. Reconhecia que estava com ciúmes do
irmão. Mas chamar Caty ou Mary a uma espanhola, tinha a sua graça. Mansur continuou a explicar.
Com ele não havia lugar para meias verdades.
- Querias que fosse para um hotel com ela? Esqueces a nossa origem? Mano, a moral aqui é…
diferente como sabes. Como marroquino não posso entrar num hotel com uma mulher sem ser casado
com ela e como sou tanto marroquino como francês, não preciso explicar mais, pois não?
Mansur não queria explicar ao irmão o óbvio. Era homem e a mulher atirara-se descaradamente
a ele. Estava sozinho há tanto tempo que explodia se não tivesse sexo e por vezes uma turista solteira
punha-se a jeito. Mas, mais uma vez só viam o homem do deserto, misterioso, e que lhes fazia
recordar as mil e uma noites num cenário exótico. Nenhuma mulher até hoje o interessou o bastante
para que estivesse muito tempo com ela. Fizera uma tentativa de viver alguns meses com a última
namorada, mas, mais uma vez sentiu-se tratado como um banco onde ela podia recolher todo o
dinheiro que queria. As estudantes de arquitectura veneravam-no e pediam-lhe lições, as outras
veneravam a posição e a carteira dele.
- Precisas de ir a um barbeiro e tirar essa barba, e o teu cabelo está demasiado comprido, não
achas? – disse Hamed, desviando o assunto de propósito.
A proximidade de Mansur com Ema começava a roer-lhe as entranhas, sobretudo porque não
tinha coragem de se declarar. Ema era uma mulher tão independente que chegava a assustar. Não
tinha bons pensamentos acerca de si próprio nas últimas semanas. Quando olhava para Mansur e
Ema, ficava com raiva do irmão. Talvez tivesse que partir dali para preservar a relação dos dois.
Jamais iria zangar-se com o irmão pela disputa de uma mulher.
Mansur levantou-se para se olhar no lindo espelho marroquino colocado na parede. Desde a
morte da mãe, havia seis meses, que apenas aparava a barba e não cortava o cabelo, e não ia ao
escritório.
- Não pareço o homem que era em Marselha pois não? – perguntou Mansur pensativo? Não
queria sair de Marrocos e já discutira com o sócio algumas vezes. Tinha alguns projectos atrasados,
mas ali sentia-se em casa.
- Não gosto do que estás a pensar. – disse Mansur.
- Pensava que tinhas orgulho em mim, mano. Ao contrário de ti, não tenho uma mulher
apaixonada por mim.
Hamed crispou os nós dos dedos e apertou os lábios, levantando-se de um salto e encarando o
irmão. Naquele instante Mansur julgou que o irmão lhe ia dar um soco na cara.
- Explica-te! Deves estar a gozar com a minha cara. Que mulher?
Hamed estava habituado ao desrespeito do irmão mais novo desde a juventude. O pai nunca
tinha conseguido refrear a sua rebeldia e, dos dois irmãos foi o que se sentiu perdido durante algum
tempo entre duas culturas, chegando a pertencer a grupos de rebeldes e a participar em desacatos de
rua e até mesmo a estar preso.
Vendo que se tinha metido numa trapalhada, Mansur disfarçou o assunto.
- Estava a brincar contigo. – não lhe dizia respeito, nem ia revelar o que já percebera há muito
tempo.
Hamed tinha que ver por ele próprio. Mansur por vezes achava que ele estava tão cego por
pensar que ele e Ema tinham um caso que não via o que todos já tinham percebido. – Mas aconselho-
te a abrir os olhos, senão um dia ficas sozinho. – e arregalou-lhe os olhos com um grande sorriso
branco a aparecer por detrás da barba despenteada.
- Em vez de falares por enigmas responde-me com qual das duas queres ficar. Ou estás a pensar
ficar com as duas?
- Estás a falar de Lara?
Hamed assentiu.
- Mas ela foge de mim como quem foge da lepra. Sempre que vou à piscina de Ema, ou tento
meter conversa com ela, Lara desaparece.
- Deve ser por teres essa barba horrível e esse cabelo medonho.
Mansur voltou a olhar para o espelho, alisou a barba comprida com a mão e reconheceu que o
irmão tinha razão. O seu aspecto assustava. Pegou nas chaves do jipe e saiu directamente para a rua,
fechando a pesada porta de madeira cravejada de pregos, atrás de si.
Capítulo Dois

- És tão previsível. - disse Ema olhando à socapa para os esboços com padrões florais
coloridos que Lara rabiscava com lápis de diversas cores.
Lara levantou os olhos do esboço e sorriu-lhe com aquele olhar doce que cativava qualquer
pessoa depois de estar com ela alguns minutos. Considerava Ema como uma irmã e depositava a sua
vida nas mãos dela, ao ponto de lhe pedir que a ajudasse a esconder-se, ali, às portas do deserto no
interior de Marrocos.
- Sempre preocupada comigo. - observou Lara enquanto continuava a desenhar um padrão de
natureza morta em tons de ocre e verde-esmeralda: as cores de Marrocos. Estava atrasada com a
entrega dos desenhos ao cliente, para a nova colecção do ano seguinte, e o prazo acabava na próxima
semana. Não podia arriscar-se a perder este trabalho sob pena de ficar sem liquidez financeira
dentro de algum tempo.
Ema sentou-se numa pedra na margem do rio, ao seu lado, e inspirou profundamente.
- A nossa casa é onde nos sentimos bem. – afirmou.
Lara desviou o olhar do esboço e sorriu-lhe. Sempre comunicaram pelo olhar.
Há dois meses, quando Ema a foi buscar a Marraquexe com o seu jipe todo o terreno, tinha o
semblante mais triste que alguma vez alguém lhe vira. Nem parecia a mesma jovem de há dez anos,
alegre e brincalhona e sempre pronta para uma boa farra noite dentro.
Há dois anos que não se viam, desde o casamento de Lara com Pedro Almeida. Lara
Santiago arrebatara o homem mais cobiçado da sociedade Lisboeta e Ema tomou um rumo diferente
do previsto para a sua vida.
- Alguma vez vais deixar de usar esse véu Lara? Não és muçulmana e este país é de costumes
brandos. Aqui todos são livres, até as mulheres, não precisas de usar isso.
- Ema – disse com convicção -, quando eu sentir que estou segura, farei isso. Mas, por enquanto
vou usar o lenço e a djelaba.
- Como queiras. - resignou-se Ema, muito à vontade nas suas calças de ganga, t-shirt e ténis.
Lara aspirou o aroma da terra quente, único, que a transportava para um lugar onde só havia
espaço para o prazer. Estava apaixonada pelo país e pelas pessoas afáveis e solidárias. Mas
sobretudo pela segurança que aquele vale lhe dava, longe de tudo e especialmente de quem ela tinha
receio que a ferisse de morte.
O sol a desaparecer no horizonte por cima das montanhas do atlas, os tons alaranjados em
contraste com o verde e o ocre das casas de lama, transportavam-na para uma galeria de pintura a
céu aberto. Levantou-se e fez um pequeno esgar de dor que não passou despercebido a Ema.
- Ainda te dói?
Lara assentiu com a cabeça e sorriu.
- Menos, mas ainda tenho marcas. Dói-me mais na alma. Vamos para casa? - disse tentando
desviar o assunto.
Do outro lado do rio, chegava um som familiar. Uma caravana de camelos em fila regressava de
mais uma excursão ao Saara. Ema apontou na direcção do som chamando a atenção da amiga.
- Voltaram. – disse com um brilho no olhar.
- Sim.- limitou-se a responder para abreviar o assunto incomodativo.
Lara não precisava que Ema lhe falasse nos vizinhos e especialmente num dos irmãos, vincando
a simpatia e a generosidade dele e até o entusiasmo que sentia quando estavam juntos. Habituara-se a
ver aqueles olhos verdes e pele ligeiramente queimada da exposição do sol, desde que chegara à
cidade, mas sempre o admirara à socapa. O que julgava morto dentro de si – o interesse pelos
homens – despertou. Ele tinha um magnetismo que a atraia. Chegou a pensar que tinha queda para um
tipo de homens do qual só deveria fugir. Mansur estava ocupado. Os homens eram como as sanitas
quando uma pessoa estava com uma valente dor de barriga: ou não prestavam, ou estavam ocupados
por outras pessoas. Neste caso era a segunda hipótese.
Os olhares, as conversas veladas, as piadas que só eles entendiam, as risadas de alegria
indicavam que Ema e Mansur eram um par apaixonado.
Mansur Janvier Lamar Mustápha era um homem que não passava despercebido. Com modos de
cavalheiro educado na europa, muito diferente de alguns marroquinos atiradiços mas inofensivos,
tratava as mulheres como se fossem princesas. No entanto essas características não o faziam menos
perigoso aos seus olhos. O homem mais educado e bonito que conheceu na sua vida, era também o
que mais temia neste momento. Esperava que Ema não se enganasse e que tivessem uma vida feliz.
No entanto, a amiga insistia que Janvier estava apaixonado por ela, o que não fazia qualquer sentido.
- Ema, não perdes uma oportunidade. Porque não aproveitas tu o homem? Disse fazendo
beicinho e com ar amuado. - Afinal já estás nos trinta e ainda estás solteira!
- Vou casar com um príncipe. Estou a guardar-me para a realeza. – e iniciou uma dança em torno
de Lara, fazendo-a rir.
- Rei dos beduínos? -provocou Lara, rindo à gargalhada enquanto faziam um esforço para
caminhar no leito pedregoso do rio e Ema se estatelava com estrondo em cima do cascalho ao pisar
uma pedra rolada.
Lara pegou na mão de Ema para a ajudar a erguer-se e disse:
- Estou mesmo a ver-te a converteres-te ao islão!- e fez um esgar de dúvida.
- E porque não? Mas se casar com um príncipe muçulmano não preciso de me converter. As
mulheres muçulmanas só podem casar com um homem da sua religião, mas os homens não, podem
casar com mulheres de outras crenças.- esclareceu, enquanto sacudia as calças de ganga de pedaços
de terra e folhas secas que ficaram agarradas com a queda. - Olha, aí vem o teu beduíno.
Aquela frase tornara-se habitual, mas o que Lara pensava era que Ema disfarçava o interesse em
Mansur, desculpando-se com ela. Os dois pareciam usar a mesma estratégia e não conseguia
perceber porquê. Por vezes pareciam dois patetas e chegava a ser ridículo, afinal ambos passavam
dos trinta anos.
A caravana já estava bem próxima. Sentia o olfacto inundado de cheiro a camelo. O coração
acelerou e as palmas das mãos começaram a suar. Não conseguia deixar de sentir-se inquieta sempre
que ele se aproximava. Janvier mais parecia um beduíno do que um arquitecto famoso pelos
projectos arrojados e as inúmeras conquistas femininas, que trocara o estirador pela liberdade do
deserto. Vestido com roupas azuis e brancas e um enorme turbante azul enrolado em volta da cabeça
para protecção do sol e da areia, confundia-se com a restante população rural e nómada. O que é que
um homem que nasceu e cresceu na europa estava a fazer naquela região remota? Que segredo
esconderia?
- Não brinques com coisas sérias Ema. Sabes porque estou aqui. Agora já sabes.
- Desculpa amiga – e abraçou-a pelos ombros- apenas quero animar-te. A minha falta de jeito
para estas coisas ainda é a mesma.
Lara não tinha coragem de lhe dizer, que pensava que ela e Janvier se amavam.
O blaterar dos camelos anunciava a proximidade da caravana dirigida pelos dois irmãos. Lara e
Ema afastaram-se do caminho de terra vermelha, batida das patas dos camelos, para verem os
turistas a contorcerem-se de dores nas costas e no traseiro. Dois dias em cima de um camelo
deixavam qualquer turista com dores para duas semanas. O grupo de jovens, ingleses, fazia esgares
de dor e diziam – com risos à mistura - que Alá era abençoado pelo término da viagem. Lara
imaginou que as dores deviam ser dolorosas para principiantes. Nunca experimentou andar de
camelo mas conseguia imaginar. Montava a cavalo com agilidade mas o camelo era demasiado
desengonçado para lhe inspirar confiança.
Na frente, montado no primeiro camelo da fila, Janvier ria-se dos comentários do grupo de
jovens e deixava-se conduzir pelo animal, mais que habituado ao trajecto. Hamed fechava a excursão
no fim da fila. A poucos metros de distância o olhar de Janvier pousou em Lara e ao passar por ela
fez-lhe um cumprimento com a cabeça.
- Ema, quando é que convences a tua amiga a ir numa viagem connosco? – disse olhando para
Lara, mas dirigindo-se a Ema.
- Não precisas de mim para isso Mansur, convence-a tu. - respondeu com alguma irritação. –
Não achas que estás bem crescidinho para que possas cuidar de ti. Desde quando é que precisas de
intermediários.
Mansur deu umas boas gargalhadas. Ema e Mansur viviam a implicar um com o outro. Lara
ficou às cotoveladas a Ema duas adolescentes, e Mansur virou-se para trás e sorriu-lhe fazendo-a
corar, enquanto os camelos se afastavam levando com eles o cheiro e bedum com a ajuda do vento
leve que se levantou. Tinha os olhos mais verdes e bonitos que ela alguma vez vira. Sacudiu a cabeça
levemente para espantar os pensamentos.
Saindo de trás da fila, Hamed cutucou o camelo com a vara e aproximou-se do irmão.
- Então, quando é que te decides a qual fazes a corte?
- A corte? Isso é do tempo dos reis. Estás muito antiquado Hamed, precisas mesmo de passares
para o século vinte e um. - e continuou serenamente ao ritmo do animal.
- Sim! Sim! - respondeu em árabe para que não os entendessem. - És tu que não te decides por
uma delas, já pensaste nisso? Mas passas a vida a olhar para Lara? Isso é o quê?
- Curiosidade masculina. – respondeu seco.
- Curiosidade? Já lhe vi chamar outras coisas. Paixão, amor, luxúria…
- Tornaste-te num homem azedo, meu irmão. Precisas urgentemente de arranjar uma mulher. O
que é que se passa contigo? Sempre tiveste namoradas?
- Com tantas no mundo como é que vou escolher. - era sempre a resposta de Hamed quando o
irmão o provocava.
- Começas a passar do prazo, como dizia a mãe. Qualquer dia ninguém te quer. - Mansur picava-
o sabendo que ao irmão bastava estalar os dedos e tinha as mulheres que quisesse caídas aos seus
pés. Mas Hamed parecia buscar a princesa encantada que lhe levasse o coração.
Passavam serões inteiros numa picardia afectuosa um com o outro enquanto tratavam dos
negócios e falavam sobre a vida, actualidades, arte, politica e sobretudo viagens.
Lara carregava a prancha em formado A3 com os esboços feitos nessa tarde e Ema tagarelava
alegremente sobre os próximos clientes franceses que iria receber no fim-de-semana, o dinheiro que
iria ganhar e a próxima viagem à Patagónia dali a uns seis meses, quando fosse verão lá.
A uns metros de distância, no curral Mansur e Hamed começavam o ritual depois de mais uma
excursão ao deserto. Mansur entregou o camelo a Abu, um jovem pastor que contratara e desfez-se do
turbante enrolado em volta da cabeça. O sol estava a pôr-se e suspirava por um banho e, ao vê-la
aproximar-se na direcção do curral pensou que seria bom tê-la consigo na imensa banheira de
mármore rosa e poder abraça-la e beijá-la. Sacudiu o cabelo preto pegado à cabeça pelo suor e pela
pressão do turbante e gritou outra vez a Ema.
- Ei! Ema! Quando é que fazemos uma festa com música e cuscuz?
- Amanhã. Fazemos a recepção ao novo grupo que chega de França. Espero-vos às dezanove
horas para um chá de menta e jantar com música. Quem sabe se consegues mais uns clientes! -
exclamou ela.
- Combinado.- e fez-lhe um sinal de okay com o polegar.
Há algum tempo que Ema e os dois irmãos tinham um acordo de negócios. Ema era dona do
Riad Dar Ema, hospedava turistas e, Mansur e Hamed faziam excursões ao deserto de jipe ou
camelo. Com os contactos que tinham na europa angariavam muitos clientes. Tornara-se um negócio
bem coordenado, profícuo e prazeroso. Tinham uma amizade sincera com Ema e de ajuda mútua.
Os dois homens, caminhavam um pouco mais atrás que Ema e Lara, e trocaram aqueles olhares
que os homens trocam quando estão interessados numa mulher. Sorriram os dois e começaram numa
luta simulada – como quando era mais novos – e queriam arreliar a mãe.
- Gostas dela, não gostas?- perguntou Hamed ao irmão mais novo.
Mansur entrou num mutismo que Hamed conhecia muito bem desde que eram crianças e quando
o irmão tinha dificuldade em falar sobre sentimentos, apesar de ser um dos seres humanos mais
generosos que conhecia. Mansur ajudava todas as pessoas que podia e até patrocinava causas em
segredo, mas não fazia alarde disso. Já atravessara a África desde Marrocos até à Guiné, de mota,
para receber dois contentores com material para um hospital de província que ajudou a montar. Mas
quando uma estação de televisão quis fazer a cobertura da viagem, Mansur parecia ter engolido fogo
e cuspiu impropérios para deixar claro que não queria publicidade.
Lara e Ema desapareceram na rua estreita de cor ocre e quando eles chegaram a casa já as duas
mulheres se tinham esfumado para o interior do imenso jardim escondido por muros altos, não
deixando adivinhar aos transeuntes a beleza que existia por detrás das paredes forradas a lama, com
ar velho e tosco.
Protegida pelos muros e pela pesada porta de madeira, Lara ficou aliviada apesar de um
frenesim de luxuria lhe percorrer o corpo sempre que o via. Sensação vivida quando conheceu
Pedro, mas passados dias de ter casado já a tinha substituído por outra bem mais desagradável.
Mansur entrou em casa e Hamed notou-lhe o semblante carregado, mas não fez comentários.
Mansur subiu ao quarto no primeiro andar e abriu a torneira dourada deixando-a a correr água
quente vinda do painel solar colocado estrategicamente no terraço no terceiro andar. Há três dias que
apenas conseguia lavar o rosto, as mãos e pouco mais. Quase toda a água do acampamento montado
no deserto era para garantir o bem-estar dos turistas. Mas não trocava o silêncio e a paz do deserto,
sobretudo de noite, pela vida na cidade. Felizmente tinha Marcel, em quem confiava totalmente e que
geria o gabinete de arquitectura na sua ausência, embora reclamasse sempre que ele estava mais de
dois meses sem ir a Marselha. Na última visita a casa foi ver o pai e ao cemitério onde a mãe estava
sepultada e regressou ao deserto sem ter visitado Marcel.
Aos trinta e cinco anos trocou o gabinete de arquitectura pela experiência de viver livremente e
sem a loucura da grande cidade, durante parte do ano. O problema é que «a parte do ano» se estava a
tornar no ano inteiro. No último apenas fora duas vezes a casa e Marcel ameaçou-o em várias
ocasiões de deixar a direcção do gabinete, sentia-se velho e cansado e, por mais que gostasse de
Mansur, havia limites que não estava disposto a deixá-lo ultrapassar.
Mansur saiu do chuveiro e vociferou impropérios contra si próprio por ainda não ter terminado
a construção da casa. Faltava o jardim e a piscina. Contava com a amizade de Ema para utilizar a do
seu Riad, mas não queria abusar. Limpou-se com a toalha felpuda deixada no toalheiro por Fadila,
tirou os calções de banho do armário e vestiu-os. Por cima enfiou uma djellaba castanha – a cor dos
celibatários- de tecido leve, um sinal para as mulheres marroquinas não terem ideias acerca dele,
enfiou as velhas babouches e desceu as escadas em direcção à rua. Hamed viu-o sair e uma sombra
passou pelos seus olhos. Sempre que chegavam do deserto, Mansur corria para casa de Ema e ele
ficava a roer-se por dentro, porque apesar de ter liberdade para fazer o mesmo, achava que estava a
abusar da hospitalidade dela e, com isso ficava sempre na mó de baixo.
Lara retirou a djellaba preta e o lenço branco, desfez-se das sandálias rasas e mergulhou
directamente na piscina. A água era sempre tão purificante que a utilizava para lavar o corpo e a
mente, na esperança que lhe levasse da alma as dores antigas e os olhos verdes de Mansur - o homem
do deserto - tão perturbadores como os olhos de uma cobra, um misto de fascínio e perigo mortal.
Fez várias piscinas para se exercitar e saiu estendendo-se numa espreguiçadeira de madeira,
afastada da piscina para evitar os ingleses. O calor embalou-a e os olhos fecharam-se.
O sol já se escondera e a iluminação do jardim acendeu-se de forma automática emprestando um
ambiente mágico ao lugar. Pareceu-lhe ouvir uma voz de homem conhecida, vinda do fundo do
jardim, à mistura com gargalhadas. Levantou a cabeça e ao espreitar teve um baque. Mansur estava
ali em calção de banho e toalha ao ombro, falando tranquilamente com Ema e com os três casais de
turistas ingleses que tinham regressado do deserto. Pegou na toalha, calçou as sapatilhas de pele
decorada, recolheu a djellaba e o lenço, e esgueirou-se por entre a sebe de arbustos esculpidos,
devagar, em silêncio, e tentando manter a cabeça abaixo do nível de visão das outras pessoas, para
escapar aos olhos verdes perigosos. Com o nariz enfiado no chão não via nada para além dos bonitos
mosaicos cerâmicos com motivos árabes. Esbarrou numas pernas musculadas, com alguns pelos
pretos e que acabavam nuns pés grandes, calçados com uns sapatos azuis pontiagudos. O impacto
arremessou-a em direcção ao chão mas uma mão forte e quente segurou-lhe o braço direito, enquanto
outro braço a segurava pela cintura, impedindo-a de cair e, quando deu por si estava a bater com o
nariz num peito moreno e forte. Ao levantar os olhos, já adivinhara a quem pertencia aquele corpo.
Capítulo três

- Perdeu algum objecto precioso?


- Não exactamente. Mas podia ter perdido.
- Ah! Então estava a procurar algo que pudesse ter perdido?
- Precisamente. – respondeu muito séria. – Podia soltar-me?
- Ah! Claro. É que estava tão confortável que me esqueci que a tinha aqui junto a mim.
Janvier afrouxou um pouco a pressão na cintura de Lara, mas não a largou. Podia não ter outra
oportunidade e queria aproveitar esta até poder.
Lara sentia os joelhos a fraquejar e o coração quase a saltar pela boca, já para não falar na face
cor de tomate bem maduro. Parecia ter voltado aos tempos de colégio e da primeira paixão. Até um
friozinho no fundo da barriga sentiu.
Ele não despegava os olhos dos dela e não mostrava sinais de a querer soltar.
- Acho que Ema não vai gostar de o ver a agarrar outra mulher… assim pela cintura, de forma
tão…
- Intima?
- Isso. – rematou ela, mas conservando as palmas das mãos no peito dele.
- Temos uma relação muito…aberta, percebe?
- Não. – e soltou-se do abraço aproveitando ele ter afrouxado um pouco. – Não sei o que é isso.
E se bem conheço Ema, ela não é mulher de relações abertas. Devia ter vergonha na cara.
Contornou-o e apressou-se a entrar em casa, passando por Ema com os olhos a chispar.
Ema subiu as escadas no seu encalço e chamou-a.
- Que foi Lara? Viste algum monstro?
- Vi. Tens a certeza que o teu namorado é tudo aquilo que tu dizes?
- O meu namorado?! – perguntou com a testa franzida. – Mas quem?
- Ora, esse Mansur, ou lá o que ele é! – respondeu com um brilho nos olhos.
Nem era preciso ser bruxa para perceber que Janvier se tinha metido com Lara. Ema mal
conseguiu disfarçar uma gargalhada.
- Lara, minha querida. – disse com voz de mãezinha. – Quanto é que tu entendes que eu e
Janvier, não nos vemos dessa forma. Somos amigos, entendes? Ele estava a tirar partido da situação,
só pode. Não tem emenda, brinca com tudo.
Então ele esteve a gozar com a cara dela? Um rubor subiu-lhe à face, os olhos quase saíram das
orbitas e crispou os punhos em direcção ao jardim da casa.
- Um dia mato-o. – e entrou no quarto fechando a porta à chave não fosse ele atrás dela.
Ema deu uma gargalhada e, com o nariz colado à porta do quarto disse alto para ela ouvir.
- Já vi coisas sérias começarem dessa forma. Isso ainda vai aquecer, acredita em mim.
E desceu as escadas em direcção ao jardim. Janvier ia ouvir um ralhete. A amiga estava muito
frágil para que brincassem com ela dessa forma. Tanto mais que se não estava enganada ela tinha um
fraquinho por ele e, depois de tudo o que lhe acontecera, não merecia que outro homem brincasse
com ela, ainda que tudo não passasse de um jogo de sedução.
Janvier nadava suavemente na piscina, a água ajudava-o a descontrair os músculos doridos da
viagem no deserto. Avistou a silhueta de Ema fazendo sombras no chão projectadas pela iluminação
nocturna e sorriu. Lá vinha bronca. Já conhecia o lado protector de Ema em relação à amiga, só ainda
não percebera o mistério, sim, porque havia um mistério. Lara era uma mulher misteriosa. Bela na
sua simplicidade, mas do tipo que deixava um homem doido por ela.
Ema aproximou-se do bordo da piscina, puxou umas das espreguiçadeiras e sentou-se mesmo à
beira da água. Do outro lado Janvier esperava que ela o chamasse.
- Vem cá. Preciso contar-te um assunto. – disse Ema.
Ele deu quatro braçadas, atravessou a piscina até onde ela estava e agarrou-se ao rebordo
elevando-se com um salto ficando sentado no chão ao lado dela a escorrer água. Olhou para Ema e
fez sinal que avançasse.
- Janvier Mansur. Sou tua amiga, quase irmã, sabes isso. Foste tu que me acolheste e me
ajudaste a montar tudo o que construi aqui…
- Desembucha Ema, não vais agora fazer um discurso de agradecimento, pois não?
- Não. – respondeu séria. – Tenho-te observado desde que Lara chegou há dois meses. Eu sei
que ela é um mistério e é mesmo muito bonita, mas tem uma ferida em carne viva, a jorrar sangue,
que ela teima em esconder dos outros. Não sou eu que te vou revelar os segredos dela, mas peço-te
que a deixes em paz, se pretendes apenas brincar com ela. Lara não é mulher para brincar.
Janvier baixou a cabeça. Sentia-se envergonhado, mas não pretendia brincar com ela, essa
suposição era injusta da parte de Ema.
- Eu vou desculpar-me com ela, mas fica descansada, não está nos meus planos brincar com
ninguém, muito menos com ela. Ema…eu sei avaliar uma mulher, já conheci todo o tipo de…enfim,
sei distinguir, era o que queria dizer.
- Fico mais descansada. Janvier?
- Sim Ema. Vais ralhar mais comigo? – ironizou a rir.
- Não. Só que…vai com calma, não a assustes.
- Já entendi. Só gostava de saber quem foi o traste que a tratou mal.
Ema ergueu-se e sorriu-lhe.
- Meu querido, isso não posso dizer-te. Sou leal aos meus amigos.
- É por isso que te adoro. – e pôs-se em pé, sacudindo a cabeça, para tirar o excesso de água. A
noite estava tão quente que o corpo já secara.
- Miriam está a preparar um tagine de cordeiro, querem jantar connosco? Tu e Hamed?
- Eu quero, mas tens que convidar o meu irmão pessoalmente. Vai ficar nas nuvens.
Ema preferiu não responder. As previsões de Janvier estavam sempre enganadas. Hamed era um
lobo solitário e não a via, sentia-se invisível perto dele.
- Sim, já lhe telefono. Daqui a meia hora na minha sala de jantar.
E entrou na cozinha para ajudar Miriam, a preparar a mesa. Era a primeira vez que iam jantar os
quatro. Ou o mundo pegava fogo hoje, ou algo inédito tinha que acontecer. Os quatro eram uma
mistura estranha. Estava com receio da reacção de Lara quando soubesse que tinha convidado os
vizinhos.
Colocou os pratos de porcelana azul e a toalha de damasco vermelho escuro. A luz ténue das
lamparinas e as tapeçarias penduradas na parede davam um ar acolhedor à sala de jantar decorada ao
estilo marroquino, com espaço para umas vinte pessoas. Ema colocou os quatro pratos num canto da
mesa e deu ordens a Miriam que trouxesse o chá de menta e o tagine de cerâmica decorada, contendo
a comida.
Ouviu passos na escada e calculou ser Lara.
A primeira coisa em que reparou quando entrou na sala foi nos quatro pratos.
- Chegaram mais hóspedes?
- Não. Só daqui a dois dias. Os ingleses já foram para Marraquexe. Se te referes aos pratos,
vamos ter companhia para jantar. Convidei Janvier e Hamed. – e olhou de soslaio para o rosto dela
para perceber a reacção.
Lara não disse nada, nem mostrou qualquer sinal de indignação.
Limitou-se a anuir com a cabeça e saiu até ao jardim. Adorava aquele espaço do interior das
casas marroquinas. Um oásis entre muros. Ouviu o tilintar da campainha. Chegaram. Esfregou as
mãos uma na outra. Tinha que se deixar de paranóias e classificar os homens todos da mesma forma,
afinal os outros não tinham culpa das suas escolhas e do que ela tinha vivido. Não era justo pensar
que os homens eram todos iguais ao marido.
- Desculpa. – soou uma voz conhecida atrás dela.
Não deu um salto, mas também não se virou de imediato.
- Por vezes sou demasiado brincalhão e esqueci-me que podias não gostar.
Lara voltou-se lentamente e viu uns olhos fatigados e uma face de arrependimento.
- Não te preocupes. Eu é que peço desculpa da minha conduta de gazela assustada.
Janvier queria perguntar-lhe porquê mas conteve a curiosidade. Estava extasiado com a beleza
natural dela. Um simples vestido branco e umas sandálias vermelhas como indumentária, cabelo
castanho-escuro meio ondulado a cair-lhe em cascata pelos ombros e aqueles lábios cheios, rosados,
sem batom, convidativos, desorientavam-no ao ponto de lhe tirar o sono.
- És tão linda Lara. – não resistiu a dizer-lhe.
- Não me digas isso Mansur. Não podemos. – pediu.
- Gostei. – e aproximou-se dela pegando-lhe nas mãos geladas, mesmo com a temperatura
quente que ainda fazia aquela hora.
- Mansur… todos me tratam por Janvier o meu segundo nome.
- Gosto do teu nome.- descaiu-se.
O que ela queria dizer é que gostava de tudo nele, mas não podia, não queria. Estava fora de
cogitação qualquer relação com outro homem.
Mansur aproximou-se até ficar juntinho a ela, beijou-lhe as mãos que emanavam uma fragância
suave e exótica, fresca, algures entre o café e o anis e olhando-a nos olhos, do alto dos quinze
centímetros sobre a cabeça dela e disse:
- Tréguas. Quero ser teu amigo, quero conhecer-te melhor.
E num tom de brincadeira – ele era mesmo assim – apresentou-se.
- Muito prazer. Sou Mansur Janvier Lamar Mustápha.Janvier Lamar da mãe e o resto do pai. –
apertou-lhe a mão direita entre as suas.
Lara estremeceu com aquele toque macio e quente e entrou na brincadeira.
- Muito prazer, Lara Isabel Pereira Santiago.
Do interior Ema chamou-os. O jantar estava na mesa.
- Vamos? – e pegou-lhe na mão levando-a até ao interior da enorme casa.
Mansur sorriu interiormente. Conseguiu quebrar-lhe algumas defesas, agora só faltava uma
estratégia para se tornar mais próximo dela.
Capítulo Quatro

A campainha tocou e Cristina Santiago dirigiu-se à porta. Encontrou o marido em frente ao


vídeo- porteiro com ar apreensivo, ombros baixos e lábios apertados.
- Quem é? – perguntou.
- Pedro.
- Não abras. – suplicou com as mãos unidas ao peito.
- Já é a quinta vez esta semana. Já não sei que fazer. – respondeu-lhe o marido completamente
desarmado.
- Queixa à polícia. – rematou Cristina com veemência.
Francisco premiu o botão da abertura automática e o homem avançou para o interior do prédio
com rapidez.
- Não é tão simples assim. Estava a pensar que ele desistia.
- Sempre te disse que o polimento social dele não era natural. A mim nunca me enganou,
justifica o ódio que me tem e tudo o resto que sabemos.
Ouviram o elevador a abrir e o som insistente da campainha interna fazia notar a urgência de
Pedro Almeida em ver a porta de casa do sogro aberta para si.
Francisco abriu e Cristina manteve-se ao lado do marido barrando-lhe a entrada. Não queria
aquele homem dentro de sua casa. J
Pedro tinha uma figura imponente e máscula. Alto, com músculos definidos, cabeço preto curto,
olhos pretos e um rosto harmonioso. Um homem punha as mulheres doidas sempre que ele aparecia
em algum evento social e, só desviavam o olhar quando ele saia do campo de visão.
Confiante, com um sorriso nos lábios Pedro Almeida cumprimentou-os.
- Boa tarde Francisco – e apertou-lhe a mão que Francisco evitava estender -, Cristina como
vai? – e beijou-a na face como sempre fazia.
- Mais uma vês a que devemos a honra Pedro? – perguntou Francisco com as sobrancelhas
franzidas. Estava a perder a paciência com o «ainda genro» e fechou as mãos enterrando as unhas nas
palmas das mãos para evitar mandá-lo escada abaixo.
- Venho falar-vos dos meus direitos. – disse com cinismo. Sou o marido de Lara, quero saber
onde ela está ou…
- Ou o quê Pedro? – soou uma voz forte e jovem vinda detrás do casal.
Francisco e Cristina olharam para o filho que estava com os braços cruzados encostado à
parede do corredor e em posição de tomar alguma decisão mais drástica. Afastaram-se para o lado e
os dois homens ficaram frente a frente com menos de três metros a separá-los.
- Ora André, venho em paz, sabes que adoro a tua irmã e apenas quero o bem dela. – respondeu
com ar condoído e sem qualquer alteração na face. Quem não soubesse quem era o verdadeiro Pedro
acreditava na dor que apregoava.
- Já te dissemos várias vezes, que não há noticias. Há dois meses que não sabemos dela. A
última vez que a vi foi quando veio buscar a mota à garagem do prédio. – respondeu o pai.
- Mota que se esfumou no vento. – respondeu Pedro com ar arrogante, estalando os dedos para
exemplificar.
- Não insistas. Os meus pais estão com demasiada idade para se aborrecerem. Já chega a
preocupação de não sabermos onde está a minha irmã. Não venhas tu aborrecer-nos com direitos e
perguntas todos os dias. Aliás, nunca te perguntei porque é que ela saiu de casa sem deixar rasto. O
que é que tu lhe fizeste? Lara não me quis dizer porque se ia embora e onde ia e, quanto a mim és tu o
responsável. Já que fazes tantas ameaças, de advogado, para advogado, informo-te que fizemos
queixa na polícia sobre o desaparecimento de Lara. Estão a ser feitas investigações para a
encontrarmos. Ninguém aqui está de braços cruzados à espera de um milagre. – respondeu André
Santiago com voz alta e firme.
Pedro não alterou um único músculo da face nem mudou de postura perante a posição do
cunhado.
- Estão no vosso direito enquanto família, esse gesto só prova como te treinei bem cunhado. –
respondeu com ar de convencido como sempre fazia.
- É verdade Pedro, és o melhor advogado da praça, mas agora já não és o meu patrono , somos
colegas.
Pedro anuiu com um ar frio que arrepiava.
- Vocês estão a protegê-la, ela fugiu com outro homem. Mas eu vou descobri-la. – ameaçou de
novo.
- Avisa-nos por favor se a descobrires. – disse Francisco, tomando a iniciativa de o convidar a
ir embora fazendo um gesto em direcção ao elevador.
- O mesmo espero de vocês. – fez um aceno de cabeça em jeito de despedida e afastou-se em
direcção ao elevador.
Cristina Santiago soltou o ar dos pulmões com ruído e Francisco foi em direcção à sala e atirou-
se para a sua velha poltrona.
- Temos sido descuidados pai, ele está desconfiado. - disse André pressionando levemente o
ombro do pai.
- Encontrei-me com a Teresa na estação do metro da Amadora numa hora de ponta, para não
levantar suspeitas. O tempo de ela me entregar a carta de Lara.
- Vocês não sabem do que ele é capaz. Durante um ano assisti a coisas naquele escritório que só
não revelo por uma questão de ética e protecção aos clientes. Se ele apanhar uma ponta da pista
chega lá, é como os leões quando perseguem uma presa ferida, vai ao cheiro do sangue.
Cristina estremeceu e Francisco deixou cair uma lágrima. Pensar que a sua menina estava numa
situação daquelas dava-lhe vontade de pegar numa arma e matar o genro. Cristina sentou-se no braço
da poltrona e abraçou o marido. Criara aquela menina desde que ela tinha seis anos e gostava dela
como filha. A sua filha mais velha.
André saiu da sala, deixou os pais com a dor deles e foi buscar a pasta. Estava na hora de ir
para o tribunal e já estava uns dez minutos atrasados. Não via a hora de resolver a situação da irmã e
de ela regressar a casa.

- Senhora Lara chegou uma carta para si. – disse Miriam com o envelope branco na mão e
estendido na sua direcção.
Lara deu um salto da cadeira e quase arrancou a carta das mãos da empregada.
- Obrigado Miriam. – e apressou-se a subir ao quarto para estar sozinha.
Pegou no corta papel com as mãos a tremer e rasgou o envelope até à ponta. À medida que ia
lendo, as gotas de suor acumulavam-se na testa. Sentia o sangue a fugir-lhe do corpo e a cabeça à
roda. Não podia ser. Era demasiada coincidência na mesma semana o pai ter sofrido um acidente e o
irmão ser perseguido por um motard na serra de Sintra quando regressava do tribunal. Pedro
apertava o cerco em torno da sua família e já estava a ir longe demais. Só ela sabia do que ele era
capaz. Desde que encontrara as fotos que confirmou as suas suspeitas. Foi quando decidiu
desaparecer. As lágrimas correram-lhe pela face e lutou para se controlar. Estava na hora de ir a casa
de Mansur e apresentar-lhe os desenhos que fizera para os azulejos da piscina e não queria que ele
suspeitasse que ela estava preocupada e triste.
Limpou as lágrimas, colocou um pouco de base para disfarçar e desceu as escadas com os
croquis debaixo do braço.
- Onde vais? – perguntou Ema da cozinha.
- Entregar os desenhos a Mansur. Já volto para te ajudar com os preparativos do jantar.
Em honra dos franceses, e como Ema tinha prometido a Mansur, hoje havia cuscuz, salchicha
merguez e música com um grupo local para animar o jantar.
- Não preciso de ajuda. Aproveita a companhia.
- Não sejas inconveniente Ema. – e saiu a rir.
Ema tinha a capacidade de a fazer esquecer as coisas más.
Abriu a porta – presa apenas no trinco – e entrou como ele lhe dissera para o fazer.
Fadila apareceu para a receber com o seu ar jovial e roliço de quem comia mais do que
necessitava.
- Madame salamu aleikum. – cumprimentou em árabe. - Espere na sala, o senhor Mansur está a
terminar o banho e já a recebe.
- Wa aleikumu salam.- respondeu ao cumprimento da empregada.
Lara sabia pouco da língua árabe para além das saudações mais usuais.
Seguiu atrás da mulher por um corredor largo pintado de rosa claro e decorado com objectos
tipicamente marroquinos. A dimensão da casa fazia-a sentir-se pequena. Era uma casa antiga
reconstruida- obra de Mansur certamente – e que se tornara num espaço muito agradável. Fadila
indicou-lhe que entrasse na sala na sua frente. Lara encheu o peito de ar. Estava boquiaberta com o
que via. A sala decorada em tons de amarelo desmaiado e vermelho escuro, com o chão
completamente coberto por extensas carpetes tinha passagem para o jardim interior, menor que o de
Ema, mas com um requinte de cortar a respiração. Sentou-se numa poltrona europeia de frente para o
jardim. Só faltava terminar a piscina e Mansur queria algo original e, como já vira os seus desenhos,
um dia que a apanhou a desenhar no jardim de Ema, pediu-lhe que desenhasse os azulejos da
piscina.
Esfregou as mãos uma na outra e sorriu apesar de estar preocupada com as notícias de casa.
Mesmo sabendo que o pai saiu ileso do acidente, sabia que havia hipóteses de não ser coincidência e
de se repetir.
Sentia paz ali. Aquelas casas com um jardim interior davam-lhe a sensação de estar protegida
dentro de um castelo com muralhas. Nada lhe acontecia.
- Olá. Desculpa fazer-te esperar. – soou uma voz forte e calma.
Lara levantou-se e ficou frente a Mansur. Era bom voltar a vê-lo.
- É linda a tua casa. – disse cumprimentando-o.
- Obrigado. Tem sido a minha prioridade nos últimos dois anos. Estava muito velha e
degradada.
- Está óptima, parece nova. – e baixou os olhos para os rolos de papel que pousara em cima dos
poufs artisticamente ordenados em volta de uma mesa de chá decorada a madrepérola.
- É impressão minha ou tens uma nuvem negra no olhar. – e pegou-lhe delicadamente no queixo
para a encarar.
Lara desviou a cara e disfarçou.
- Não adianta mentir-te pois não?
- Não.
- Bom, recebi notícias de casa dos meus pais. O meu pai teve um acidente e o meu irmão quase
teve um também. – omitiu a perseguição. – Mas estão bem. Apenas fiquei inquieta, coisas de família,
percebes?
- Claro. – e sentou-se num dos poufs no chão cruzando as pernas à maneira marroquina.
Lara imitou-o mantendo uma distância de segurança.
- A minha mãe faleceu há um ano. Cancro. – disse ele com semblante pesado.
- Lamento muito. – disse de forma sentida. – Deve ser difícil aceitar isso.
- É. Muito. Mas a fase pior já passou. Agora tenho muitas saudades dela, mas não há nada que a
traga de volta. – e Lara notou a tristeza no olhar dele.
- Foi por isso que vieste para cá?
- Não. Há muitos anos que venho a Marrocos, o meu pai é marroquino de primeira geração a
viver em França. Quando tinha dezoito anos comecei a passar temporadas com os berberes, foi com
eles que aprendi os segredos do deserto.
Lara estava fascinada. Ficava ali o resto da tarde a ouvi-lo.
- E tu, que segredos escondes, doce Lara?
Lara sentiu um choque no peito. Não queria falar dela. Mas o momento estava tão intimo que
quase baixou as defesas. Tinha que tomar cuidado. Mansur era muito hábil a obter o que queria.
- Vamos falar dos desenhos? – e pegou nos três canudos de papel estendendo-os nos tapetes.
Mansur fingiu não perceber a manobra evasiva e dirigiu a atenção para os esboços, afinal não
queria assustá-la. Bastava-lhe tê-la por perto por enquanto.
Lara tentava adivinhar o que ele pensava. Mansur olhava ora para um, ora para outro desenho e
não se decidia. Até que abriu a boca:
- Gosto de todos, mas este é o que me atrai mais, as cores e as formas geométricas vão fazer um
efeito fantástico com a água. Está decidido. Amanhã vou contactar os artesãos que fazem os azulejos.
Vão ser todos fabricados de forma artesanal.
Mansur escolheu um padrão geométrico com motivos árabes, em verde marroquino, rosa e azul
tuaregue.
- Foi o trabalho mais difícil que fiz. Sou especialista em têxteis, não em cerâmica, isto foi uma
aventura e também um desafio. – disse Lara.
- Regista a patente, senão ainda te roubam a ideia.- aconselhou ele.
- Não brinques Mansur. Fiz porque me pediste, este vai ser o único.
- Uau! Que privilégio. – levantou-se e puxou-a até si.
- Vem cá Lara. Não fujas de mim. Juro que não te vou magoar, de forma alguma. Agora és minha
prisioneira – a passou-lhe os braços em volta da cintura mantendo alguma distância – e nunca mais te
solto. – atreveu-se a aproximar-se mais um passinho. Com Lara era assim: um passo de cada vez.
Mas ele tinha tempo e paciência.
Nem por um momento Lara sentiu o que já experienciara com Pedro. Ao invés de medo, sentiu
paz, calor e aquele friozinho na barriga que julgou nunca mais experimentar.
Mansur, surpreendido pela reacção dela, cingiu-a mais a si, num abraço que pretendia aparentar
ternura, mas que era de paixão. Uma paixão que vinha a recalcar desde que ela chegara à cidade.
Lara deixou-se abraçar. Precisava tanto de calor humano e há tanto tempo que não tinha que já
julgara estar imune ao contacto físico. Mesmo que ele a beijasse agora, não ia fugir. Não sabia
explicar porquê, mas o que sentia por ele ia para além do racional, e estava incapaz de descer das
nuvens.
Quando ele baixou os lábios até aos dela, entreabriu os seus e deixou a língua dele penetrar na
sua boca com avidez e com paixão. O entrelaçar dos corpos, os beijos sôfregos e húmidos e o toque
de pele, despertara a paixão e a necessidade urgente de satisfazer aquela súbita descoberta. Mansur
afastou os lábios dos dela, olhou nos olhos de Lara e tentou ver até ao amago da sua alma.
- Eu amo-te Lara.
Lara pôs-lhe um dedo nos lábios e não o deixou continuar.
- Xiu…não digas mais. Não posso aceitar, isto não devia ter acontecido.
- Mas aconteceu e eu não quero esquecer. – e voltou a beijá-la ao de leve, com ternura.
- Mansur! Quem é essa mulher? – disse uma voz feminina com um timbre jovem, num francês
arrastado e com ar de ofendida.
Lara tentou desenvencilhar-se dos braços dele, mas ele segurou-a.
- Boa tarde Raissa. Não sabia que tinhas voltado. Continuas inconveniente como sempre. Não
sabes bater à porta?
- Inconveniente, eu? Esqueces que sou a tua noiva?
Lara não quis ouvir mais. Empurrou Mansur com ambas as mãos e saiu a correr em direcção à
porta que dava para a rua. Não quis ouvir mais. O seu sexto sentido sempre a avisara que não era boa
ideia deixá-lo aproximar-se.
Mansur soprou com força. Estava tudo estragado.
- Sai daqui, Raissa. Se fosses minha filha dava-te uns açoites. Mas em respeito à tua mãe e ao
teu pai, a quem estimo, vou fingir que não disseste essas mentiras absurdas. Tens noção do estrago
que causaste na minha vida?
Raissa continuava a olhá-lo com ar sedutor e nem se dignou responder-lhe.
- Queres jogar cartas, xadrez, tomar chá? – perguntou num tom firme e sedutor, como se
estivesse em sua casa. Quando se tratava de Raissa, Mansur já sabia que tinha que lhe por limites,
coisa que a jovem não aceitava.
- Não. – respondeu seco e num tom zangado.
- Então o que queres? – continuou ela.
- Não quero nada.- respondeu com ar gélido.
- Quero-te daqui para fora! Sai daqui Raissa. – fui suficientemente claro.
E virou-lhe as costas percorrendo o largo corredor até às escadas de acesso ao primeiro andar
com a passada forte e larga. Só faltava mesmo esta fedelha mimada e inconveniente para estragar
tudo. Maldita miúda. Se não devesse tanto ao pai dela, dava-lhe uns açoites.
Capítulo Cinco

Ema ouviu as passadas pesadas pela escada e calculou que a reunião não tinha corrido
conforme era suposto. Colocou o cuscuz no forno, lavou as mãos e disse a Miriam que já voltava.
Subiu as escadas e bateu ao de leve na porta do quarto de Lara.
- Quem é?
- Abre Lara, sou eu.
Lara levantou-se da cama, limpou as lágrimas com um lenço de papel, assoou-se
estrondosamente e destrancou a porta. Se pudesse fazia como a avestruz, enterrava a cabeça num lado
qualquer. Se o ridículo matasse, já estaria caidinha e dura no chão.
Deu de caras com uma Ema com as mãos na cintura, ar inquisidor, tipo «o que é que foi agora?»
- Desculpa, parece que voltei aos quinze anos. – disse Lara.
- Mas o que aconteceu? Janvier não gostou dos desenhos?
- Adorou. Mas…tenho uma certa tendência para escolher o homem errado.
- Não entendo?
- Os homens são como as sanitas quando mais precisamos delas, ou não prestam ou estão
ocupadas.
- Sobretudo quando estamos muito feridas. Vem cá. – e Ema abraçou-a com muito carinho.
Ema e Lara eram como irmãs, para além de serem amigas intimas.
- Isto passa. Só a morte não tem remédio. – disse Lara tentando desanuviar a situação.
- Credo! Hoje estás muito melodramática. O que é que o Janvier fez desta vez?
- Beijou-me… beijámo-nos. – emendou.
- Ups! Isso é bom. Porquê o drama?
- Ainda perguntas porquê? Pensei que sabias. Esqueceu-se de me dizer que tinha uma noiva que
nos apanhou em flagrante. Não tenho idade nem disposição para jogos destes. Assunto arrumado.
Ema estava com ar de riso, mas não se atreveu a imitir qualquer opinião. Suspeitava quem era a
«noiva», e Janvier era crescido demais para precisar de ajuda.
- Qual é a graça? – perguntou irritada com Ema.
- Nada. Depois descobres, não sou eu que me vou meter nisso. Vamos acabar os preparativos
para o jantar. Daqui a uma hora os convidados chegam.
- Vou ajudar-te, mas não vou estar presente. Não quero encarar Mansur.
- Lara Santiago, se fosses uma criança dava-te umas boas palmadas, mas como és adulta, faz o
que quiseres. Tu e ele que se entendam. Vens?
Lara anuiu e desceram as escadas em direcção à sala de refeições, onde, ao fundo, um duo
musical tocava músicas berberes. O serão prometia ser bem animado com os hóspedes franceses e
alguns vizinhos que Ema convidou, para além dos dois irmãos, o que depois do incidente de há
pouco já não agradava a Lara.

Mansur vestiu umas calças de ganga meio usadas e uma camisa branca imaculadamente limpa e
engomada, e calçou os mocassins da Gucci. Fazia questão de demarcar as suas origens europeias,
sobretudo para evitar as investidas de Raissa, que desde miúda alimentava a esperança de um dia
casar com ele. Raissa não queria casar com um homem muçulmano, tinha outras aspirações. Quando
ela tinha dezasseis anos, Faruk, o pai de Mansur, fez uma viagem a Marraquexe para tomar posse da
herança paterna. O administrador dos bens da família Jamal Mustapha era o pai de Raissa, que mais
tarde, Mansur convidou para continuar a trabalhar com ele em Ouarzazate, pela lealdade que ele
devotava à família do seu pai. Desde o dia em que a conheceu tinha Mansur vinte seis anos, não lhe
deu descanso, insinuando-se de forma descarada sempre que o encontrava.
- Sejam bem-vindos à minha casa. – disse Ema ao abrir a porta a Hamed e Mansur. – Sintam-se
à vontade. – e indicou-lhes que entrassem na sala onde já estavam três casais de jovens franceses e o
grupo de música étnica entoava uma canção marroquina, um chamamento do deserto e voltou a
desaparecer até à cozinha.
Mansur e Hamed cumprimentaram os franceses de novo e fizeram alguma conversa de
circunstância, sobre a viagem ao deserto, da qual tinham chegado nessa tarde. Risos e comentários
sobre a experiência animaram a conversa. Disfarçadamente Mansur perscrutou o ambiente visível
através da porta da sala de refeições, na tentativa de localizar Lara. Nem sombra dela. Maldisse
Raissa pela ousadia e inconveniência.
Hamed desculpou-se e tomando coragem foi à cozinha. Encontrou apenas Miriam a tirar os
tagines do forno.
- A paz esteja contigo Miriam. – disse Hamed entrando na cozinha.
- Contigo também Hamed. Procuras Ema?
- Sim.
- Foi vestir-se. Se me quiseres ajudar, leva este tagine para a mesa.
Hamed pegou no objecto com luvas grossas de cozinha e sentindo-se ridículo por ter ido meter
o nariz onde não devia, subiu o degrau que fazia desnível com o corredor de acesso ao resto da casa,
construída em torno do jardim interior e dirigiu-se à sala de refeições. Mansur conversava animado
com um dos homens, arquitecto também, e Raissa acabara de entrar exuberante nas suas vestes das
mil e uma noites, cheia de véus, rendas a esvoaçar. Mais parecia uma bailarina da dança do ventre,
vestida com uma saia de seda azul semi transparente e um top branco que realçava a sua tez morena.
Mansur percebeu que o irmão tinha finalmente tomado coragem de procurar Ema e piscou-lhe o olho,
um gesto cúmplice entre irmãos.
Duas empregadas traziam fruta, pão quente e chá de menta em bules de estanho que deixaram no
centro da mesa comprida. Miriam - amiga, cozinheira e governanta de Ema – entrou acompanhada do
marido. Só faltava a anfitriã e Lara. E, ei-las que surgem na porta. Ema com roupa informal, calças
de ganga e camisa de seda vermelha, que lhe realçava os cabelos negros e a tez branca e Lara num
vestido branco de alças, fazendo conjunto com um lenço azul tuaregue que ela colocou sabiamente
por cima dos ombros para não chocar os músicos presentes. Não gostava de afrontar os costumes dos
outros países.
O lamento das cordas do Laud, e o ritmo do Bendir calaram-se para receber a anfitriã. Ema
agradeceu, fez sinal para continuarem e tomou o seu lugar ao lado de Hamed, assim como indicou a
Lara que se sentasse ao lado de Mansur. As duas criadas retiraram as tampas pontiagudas dos tagines
e um aroma a açafrão e canela inundou o ar. Na mesa estavam expostos tagine de borrego com passas
e canela, tagine de setes legumes, tagine de vitela com ameixas pretas e sementes de sésamo. Salada
de tomate com pimento verde e vermelho, laranja com mel e canela e outros doces. A mesa era um
deleite para os sentidos. Impossível não sentir água na boca só de olhar para a comida.
Entre risos, conversas cruzadas, olhares velados e timidos entre Ema e Hamed, apenas Raissa
tentava a todo o custo disputar Mansur com Lara, que falava com Amélie, uma jovem que fazia parte
do grupo de turistas. Descobriram em comum o gosto por pintura. Mansur escutava atentamente a
conversa entre as duas mulheres e amiúde franzia o olhar a Raissa que fazia olhares dengosos na sua
direcção. Estava a sentir-se na obrigação de ter uma conversa com Faruk e Fadila acerca do
comportamento da filha deles, afinal era ele que lhe pagava os estudos em Marselha e a avaliar pelo
que fazia ali, nem queria imaginar o que acontecia quando estava sozinha sem a vigilância dos pais.
- Parabéns pela escolha da ementa. A refeição está divina. – disse François, um dos homens do
grupo. Todos assentiram.
- Que pena termos que partir. – lamentou-se a outra rapariga.
- Para o ano voltamos.- respondeu Amélie. Fiquei fã do deserto, apesar de não saber qual o
músculo do corpo que me dói mais.
Gargalhada geral. Todos sabiam ao que ela se referia.
- Que se passa com o meu irmão e Lara. Estão zangados? - perguntou em surdina Hamed a Ema,
sentada à sua direita. Um pretexto para meter conversa com ela.
- Parece-me que o motivo está sentado na frente de Janvier. Não conheces Raissa? Miriam bem
me avisou que não a convidasse, e, apesar de eu não o ter feito, ela apareceu. Aprontou mais uma
esta tarde.
- Estou preocupado com o meu irmão. Nunca o vi assim.
- Assim como? – questionou Ema, como se não soubesse do que ele falava. Na verdade a sua
preocupação era com Lara, mas isso não lhe ia dizer.
- Coisas de homens. – rematou o assunto sorrindo-lhe. Não queria falar do irmão assim,
devassando a sua vida, apesar de saber que ele e Ema eram muito amigos.
Ema sentiu um roçar quente e sensual da coxa dura de Hamed encostada à sua. Não fez qualquer
tentativa de se desviar. Hamed encostou o ombro ao dela e se seguida apanhou-lhe a mão debaixo da
mesa e apertou-a com carinho. Estendeu a boca ao ouvido dela, e Ema sentiu o cheiro do Bulgari que
ele usava e o hálito quente com um travo ligeiro a vinho tinto e chá de menta. Um arrepio de
excitação percorreu-lhe a coluna.
- Fazes ideia do que eu sofri a pensar que tu e o meu irmão…
Ela não o deixou terminar a frase.
- Fazes ideia do que eu passei nos últimos dois anos a pensar que era invisível para ti?
Olharam um para o outro ao mesmo tempo e riram-se. Constar que tinham sido dois tolos não
era pacífico, mas rir era o melhor a fazer. O músico do Laúd começou os acordes de Aziza-
acompanhado pelo ritmo do Bendir- uma música marroquina de Mohamed Abdel Wahab, absorvida
pela globalização.
- Este instrumento é muito parecido com a guitarra portuguesa que também tem doze cordas.-
disse Ema.
Hamed anuiu. Ema olhou-o pelo canto do olho, tentava observá-lo de perto e os seus olhos
bateram num tronco forte e musculado e mais acima um rosto quadrado com barba curta
cuidadosamente aparada. Hamed fazia parte da vida dela há tanto tempo – sem no entanto participar
directamente – que não imaginava interessar-se por outro homem. Sabia que um dia o gelo entre os
dois quebraria quando menos esperava, precisou de tempo para avaliar o carácter dele e decidir que
se um dia ele a quisesse, podia confiar nele, mas nada a fazia prever que fosse hoje. A música
terminou e Hamed levantou-se erguendo um dos braços e pedindo a atenção de todos.
Fez-se silêncio na sala. Só Mansur sabia que o irmão era uma caixa de surpresas. Viu-o erguer o
copo de vinho na direcção de Ema e adivinhou o que ele ia fazer.
-Á votre santé. Se os músicos me permitirem – disse em Darijá – dedico esta linda música a
Ema, a nossa maravilhosa anfitriã.
Nem foi necessário tradução. Todos entenderam.
Ema corou ligeiramente e agradeceu saudando-o também no dialecto local.
Mansur sorriu para si próprio. O verdadeiro Hamed estava a aparecer. Extrovertido, sempre
apaixonado e galante com as mulheres. Ema metera-se com o diabo sem saber.
- Hamed… – disse Ema.
Ele olhou para Ema, e ela viu-o pela primeira vez. O brilho do olhar, o sorriso sedutor e o
desejo estampado no rosto. Teve a impressão que conhecia um homem tímido e retraído, mas que
renasceu e se tornou noutro. Ficou tão baralhada que emudeceu. Ele aproximou os lábios do ouvido
dela e provocou-a.
- Sim? Ias dizer que me amavas.
- Convencido. Onde é que estiveste escondido todos estes anos? Via-te todos os dias, mas hoje
não te reconheço.
- Logo, quando todos se forem embora, continuamos esta conversa adiada quase dois anos. – e
voltou a acariciar-lhe a mão por debaixo da mesa.
Alheia a quase tudo o que se passava em sua volta, Lara ouvia a música e recordou-se das casas
de fado chiques onde Pedro a levou algumas vezes. A semelhança do timbre entre o Laúd e a Guitarra
portuguesa era muita. Havia mesmo quem defendesse que a origem do fado estava em Marrocos.
Divagava pela vida passada e coisas que lhe desviassem a atenção de Mansur e até do medo que
tinha de Pedro. Receava pela vida da família. Pedro era um homem perigoso e só ela sabia disso.
- Lara? – Mansur chamou-a baixinho. – Estás equivocada. Eu posso explicar.
Lara não respondeu e não fez qualquer movimento de se virar em sua direcção. Retesou o corpo
e afastou-se dele mais uns centímetros. Doía-lhe os braços de tanto se encolher para não lhe tocar.
Atenta a Mansur, e limitada pelo olhar furioso dele, Raissa, desenquadrada da festa, vingava-se
em beber vinho. Mansur começa a recear a reacção dela. Se já era inconveniente sem beber,
imaginava que dali a pouco ela provocasse um verdadeiro terramoto. Que ideia a de Ema de a
convidar- pensou Mansur. E se o pai dela soubesse que ela estivera a beber álcool, nada a livraria de
um castigo, porque os muçulmanos não bebem álcool.
Surgiram alguns bocejos disfarçados e sinais de irrequietude entre os turistas. Lara esperava
que eles se recolhessem aos seus quartos, não se retirara ainda para não parecer indelicada. Para
além da comida deliciosa de Miriam e da música, apenas ficou feliz com o quebrar do gelo entre
Hamed e Ema. Agora percebia o quanto estava enganada em relação a ela e Mansur. Mas de que lhe
valia saber isso se existia Raissa?
Raissa deitava chispas de raiva pelos olhos e fazia gestos indecorosos na tentativa de ver
Mansur reagir. Mas ele aparentava uma calma que só a irritava mais. Os franceses manifestaram a
vontade de se recolherem aos quartos e Raissa viu a última oportunidade de acabar a noite em beleza
e acabar o que tinha começado, o que quase lhe escapava. Não perdeu tempo.
- Vamos para casa amor? – disse para Mansur com um sorriso de triunfo e um brilho maligno no
olhar na direcção de Lara.
Mansur conteve-se sem lhe responder, apesar de notar que Miriam e Barack foram os primeiros
a trocar olhar inquisidores e de desagrado perante o comportamento da jovem; Hamed e Ema
tentaram disfarçar o clima pesado, enquanto se despediam dos franceses que saiam de madrugada em
direcção ao aeroporto e Mansur rangeu os dentes a Raissa.
- Depois converso contigo Raissa.
Voltou-se na direcção de Lara, mas encontrou o lugar vazio.
Na sala apenas restavam Miriam, Barack, Ema e Hamed, ele e Raissa.
- Desculpem meus amigos. – e pegou no braço de Raissa conduzindo-a até à porta enquanto ela
ria, alcoolizada.
- Vou levar-te a casa e aconselho-te a ires para a cama já. Os teus pais são muçulmanos, não
bebem álcool, e são muito devotos, portanto ficariam muito desgostosos pelo teu comportamento. –
disse em surdina para que a rua não acordasse.
- Larga-me monstro! – gritou perante uma rua deserta e em silencio absoluto.
Mansur puxou-lhe o braço novamente, empurrou-a para o interior do jipe todo o terreno e
arrancou a toda a velocidade pela rua. Quanto mais cedo se desfizesse dela, mais cedo poderia
remediar a trapalhada que ela lhe arranjara com Lara.
Os pneus chiaram no empedrado e a distância que distava da casa de Ema à casa de Barack – o
pai de Raissa - foi percorrida à velocidade da luz. Saiu do Land Rover, deu a volta ao carro, puxou-a
para fora, desenvencilhando-se dos braços dela que teimavam em pendurarem-se-lhe ao pescoço e
retirou-lhe a chave da mala. Com destreza abriu a porta e empurrou-a para dentro. Não era a
primeira vez que a empurrava para dentro de casa naquelas condições.
- Amanhã às dezasseis horas quero-te no meu escritório para acertarmos uns assuntos. – e
fechou a porta dando duas voltas à chave e guardando-a no bolso das calças. Era a garantia que tinha
de ela não voltar a sair novamente atrás dele.
Capítulo Seis

O calor envolvente dos braços musculados de Hamed em torno dela era o que mais desejava
desde que se curara da traição do noivo, fazia muito tempo. Ema aconchegou -se ao corpo dele e
colou a face ao peito desnudo dele. Ficava ali o resto da vida dos dois até serem muito velhinhos e
morreria abraçada a Hamed. Tanto tempo perdido, confusões de afectos e fome um do outro.
- Nunca mais te vou largar Ema. Tens noção disso?
Ela assentiu devolvendo-lhe o olhar mais doce, carinhoso e sincero que ele alguma vez
recebera.
- Só tenho um receio?
- De mim?
- Não, da tua religião?
- Então?
- Não vou converter-me ao islão, nem tornar-me numa mulher submissa. – afirmou com um ar
muito sério.
Hamed deu uma gargalhada.
- Gosto do teu sentido de humor. Querida, cresci entre um muçulmano e uma cristã, podes
imaginar o que isso é? O Deus é todo o mesmo, quer se chame Jesus, Alá, ou seja lá o que for, não
me importa a tua religião, quero saber de ti, e, por mim és tão livre nesse aspecto como há duas horas
atrás.
Ema encostou a face ao seu peito e deixou uma lágrima rolar até cair em cima da pele de
Hamed. Ele desviou-lhe a face do seu peito e com o dedo indicador recolheu-a.
- Se for de felicidade, só quero que saibas que estou tão feliz como tu. Se alguém te magoou, eu
não sou essa pessoa, e prometo que te amarei até estarmos os dois bem velhinhos. Hamed procurou
os lábios de Ema e selou o compromisso com um beijo terno, apaixonado e quente. A língua de
Hamed atreveu-se e Ema permitiu. Os corpos enlaçaram-se, as mãos entraram por baixo da roupa e
estavam prontos para se amarem ali, no chão da sala, em cima das almofadas e dos grossos tapetes
que cobriam o chão. Hamed tirou a camisa pela cabeça, sem desapertar os botões, e com sofreguidão
quase arrancou o vestido de Ema.
- Oh, como tu és linda. – e a boca dele baixou sobre os mamilos dela, fazendo-a arrepiar de
êxtase e desejo.
E, de repente o som da campainha tocando de forma ininterrupta refreou o desejo aos dois.
- Raios! Quem será o louco?
Hamed vestiu a camisa com rapidez. Fosse quem fosse, ia levar um bom sermão.
- Fica aqui. – e saiu fechando a porta atrás de si.
Rodou a chave na fechadura e abriu a porta pronto para se defender de alguém.
- Tu?!
- Deixa-me passar. Tenho que falar com ela hoje ainda.
Hamed afastou-se para o lado e Mansur passou por ele em direcção às escadas do andar
superior a toda a velocidade. Nem que tivesse que abrir todas as portas dos quartos, estava
determinado a encontrá-la. Estava quase doido de tanto pensar nela.
Entrou no corredor que circundava toda a casa em forma de quadrado e ia abrir a primeira porta
quando ouviu a voz de Ema, vinda lá de baixo do jardim interior.
- Quarto número seis.
- Obrigado. – respondeu.
Ema voltou para dentro e Hamed estava sentado no chão de tronco nu, com os braços abertos
para a receber.
Ema correu a aninhar-se de novo.
- Onde é que tínhamos ficado? Já tranquei a porta da sala, ninguém aqui entra.
- Queres subir?
- Não. Um homem solteiro não entra no quarto de uma jovem solteira. – respondeu-lhe com
humor disfarçado de ironia.
Riram-se da piada de Hamed, e os lábios voltaram a encontrar-se com sofreguidão e promessas
de recuperar o tempo perdido.

Com os sapatos na mão, evitando fazer qualquer ruído ao pisar o chão de tijoleira, aproximou-
se da porta do quarto. Não queria acordar os hóspedes ou assustar Lara. Tinha dúvidas sobre o
desfecho daquela incursão nocturna na casa de Ema, mas não podia deixar as coisas como estavam.
Rodou a maçaneta da porta e o objecto ofereceu resistência. Olhou à sua volta e vislumbrou uma
fresta da janela que dava para o pátio interior aberta. Meteu a mão no interior e soltou o trinco que a
impedia de abrir caso houvesse vento. Passou um pé e depois o outro transpondo a pequena altura de
parede e já estava no interior do quarto.
Mansur colocou os sapatos em cima do tapete aos pés da cama. A luz brilhante do luar
penetrava pelas persianas de madeira das janelas altas, formando losangos de sombra, dando um
aspecto fantasmagórico ao quarto. Um gemido ténue, parecendo dor, fê-lo pensar que estava no
quarto errado. Pé ante pé aproximou-se da larga cama tipicamente marroquina e ajoelhou-se para ver
o rosto de quem emitia aqueles frémitos de sofrimento. Lara abanava a cabeça de um lado para o
outro da almofada e emitia sons imperceptíveis. Passou-lhe as mãos pelo rosto suado e ajeitou-lhe os
cabelos em desalinho. O rosto contorcia-se e as lágrimas afloraram. Limpou-as com uma ponta do
lençol de linho. Não sabia nada da vida dela, mas tinha a certeza que já passara muito na vida.
Subitamente Lara gritou um «nãooooo», profundo e abriu os olhos, assustada e a chorar.
Silêncio. Silêncio e uns olhos cravados na figura ajoelhada ao lado da cama. Não estava a
sonhar, ele estava mesmo ali. Fugir. Mas como?
- Lara. Sou eu.
A voz era familiar, mas a figura apenas iluminada pelos losangos de luz que passavam através
das persianas, era assustadora. Ele estava ali. Como uma gazela, saltou da cama e correu para a
porta.
Mansur deu um passou rápido e abriu os braços onde ela caiu sem hipótese de escapar. O cheiro
a madeira de sândalo sossegou-a. Não era Pedro que estava ali. Era Mansur.
- Mansur. – disse ela. E foi tudo.
Ela ficou nos braços dele e os lábios dele colaram-se aos dela. Por um momento beijaram-se
como o haviam feito na casa dele: experimentando. Mas depois os braços apertaram-se, ela inclinou
a cabeça e o beijo transformou-se. Lara abriu os lábios e ali estava ele envolvendo-a.
A fragância de sândalo desvaneceu-se. Ela sentiu o cheiro a especiarias e a sabonete, à mistura
de cavalheiro e homem do deserto marroquino que Mansur era.
- Mansur. Como é que entraste?
- Deixaste a janela aberta. – disse com um tom jocoso enquanto lhe procurava o pescoço e o
beijava com fervor.
Aquilo não era um flirt, era um desejo tão intenso e profundo que todo o corpo de Lara vibrava
com a necessidade de estar mais próxima dele. Lançou-lhe os braços ao pescoço, pôs-se em bicos de
pés, permitiu que uma mão de Mansur lhe puxasse o corpo de encontro aos planos duros do corpo
dele. A outra segurava-lhe a nuca, numa posição em que a obrigava a inclinar a cabeça para o poder
beijar melhor, num beijo ávido e escaldante que lhe disse sem palavras o desejo que sentia por ela.
Lara estava sem sexo há tanto tempo que não resistiu quando ele a levou de volta à cama e a
deitou suavemente cobrindo o corpo dela com o seu. Mansur era um homem invadido pelo prazer,
disse o instinto dela.
Ele afastou-se dela.
- Se quiseres paro.
- Não. Por favor. Nem imaginas o quanto isto é importante para mim. Mesmo que venha a
arrepender-me não quero morrer sem…
- Isto não é um flirt. – a voz dele era rouca enquanto deixava com os lábios uma esteira de calor
na face dela.
- Não. – murmurou Lara, estremecendo junto dele.
- É um fogo no deserto. – disse ele depositando-lhe um beijo nos lábios e depois afastou-se
dela.
- Lara. Estavas a sonhar com alguma coisa que te assusta?
- Talvez, não me lembro. Tenho uma vaga sensação de sentir medo e de pensar que um homem
me ia matar.
- Lara, eu amo-te. Nunca te iria fazer mal.
- Desculpa, mas fiquei tão…ciumenta, esta é a palavra correcta, com a tua…
Mansur, que entretanto acendera um pequeno abajur para lhe ver o rosto, franziu o cenho.
- A Raissa. Pronto. – disse ela a muito custo.
- A Raissa é problema meu, não te preocupes com ela. – e voltou a apoderar-se dos lábios
cheios e com sabor a morango.
Lara despiu-lhe a camisa e deitou a cabeça no peito peludo e moreno de Mansur, acariciando-
lhe o pescoço e a face.
- Lara…- chamou-a. - Se não parares, não me vou embora daqui.
- Não vás. Por favor. Ama-me, como nunca ninguém me amou.
Aquela frase confirmava as suspeitas dele, mas não era hora de perguntas. Tirou-lhe a camisa de
noite pela cabeça, deixando-lhe os seios generosos nus e, num ápice despiu as calças, tirando do
bolso uma carteirinha de preservativo que colocou em cima da mesinha de cabeceira junto à cama.
- É isso mesmo que queres?
- É. – disse sem hesitação.
- Lara Santiago. És minha para o resto das nossas vidas.
- O resto das nossas vidas é muito tempo Mansur. Eu quero-te agora. – e encostou o seu corpo
nu e quente ao dele, sentindo a macieza dos seus pelos e o tamanho da excitação dele.
Lara queria desesperadamente aquele momento terno e doce e erótico. Há tanto tempo que
ninguém a tratava assim que ia aproveitar enquanto podia. Amanhã não sabia se teria que fugir
novamente.
Capítulo Sete

Uma chuvinha tola de Verão descia sobre a cidade e o rio dificultando a tarefa aos
mergulhadores que tentavam recolher o veículo do fundo do Tejo. Três horas depois dos trabalhos
iniciados o guindaste içou um carro com matrícula recente e sem cadáver no interior. O que parecia
ser um homicídio ou suicídio, não podia ser provado. Não existia corpo a prová-lo. Policia e
bombeiros uniam esforços para identificar o jipe azul-escuro coberto de algas e lama.
- Já identificámos o proprietário. – disse o inspector para a equipa forense reunida em torno da
viatura. – Estranho não existir cadáver. Vamos até à esquadra. Os peritos analisam o que resta do
carro.
Era domingo. Pedro dormia profundamente na cama larga com lençóis de cetim cinzentos,
depois de uma noite inesquecível, daquelas a que se habituara há muito, mas que vivia em completo
segredo. Pareceu-lhe ouvir uma campainha ao longe, mas pensou ser sonho. A insistência com que
premiam o botão despertou-o de vez.
- Foda-se! Não podem esperar! – vociferou enquanto saltava da cama e vestia o roupão de seda.
Com o cérebro a latejar, caminhou até à porta e abriu-a deparando com duas caras que conhecia
dos tribunais.
- Doutor Pedro Almeida? – perguntou o inspector.
Pedro anuiu com a cara séria e fechada.
- Este veículo é seu? – e mostrou-lhe a fotografia do carro.
Sem confirmar, retirou a foto da mão do polícia e observou os pormenores do carro. Devolveu a
foto e manteve-se em silêncio. Pedro Almeida não estava habituado a ser questionado, estava sempre
do outro lado, do lado que fazia perguntas.
- Então? É seu ou não?
- É.
- Retiramos o seu carro do rio Tejo hoje de manhã. Um pescador avistou-o a dez metros de
profundidade, quando a linha de pesca ficou presa no para lamas. Pode esclarecer-nos o que fazia o
seu carro no fundo do rio?
- Não. Quem andava com ele era a minha esposa. Não sei responder. – disse sem alterar um só
musculo da face.
- E onde está a sua esposa?
- Em viagem de negócios. Partiu para Paris há duas semanas.
- Doutor Pedro, o carro está no fundo do rio há mais de três meses. Posso contactar a sua
esposa?
- Claro. Dou-lhe o contacto dela. – e dirigiu-se à mesa de apoio onde escrevinhou um número
de telemóvel num papel.
- É natural que o telemóvel esteja desligado, mas eu aviso-a que o senhor quer falar com ela.
Os dois polícias agradeceram e dirigiram-se ao elevador desejando-lhe um resto de bom dia.
Prestes a entrar no elevador, o inspector Fontes recuou e olhou na direcção de Pedro ainda parada à
porta.
- Tem a certeza que não tem algo para nos contar?
- O que é que o senhor quer dizer com isso, inspector?
- Nada doutor, nada. Tenha um bom dia.
Os dois polícias entraram no elevador e Fontes premiu o botão do piso zero.
- Não confio neste gajo. É o advogado mais bem pago de Lisboa, mas quanto a mim é um pulha
que se veste de Armani para cima, arrogante e perigoso.
- O inspector nunca gostou dele. – observou o adjunto .- Desde o caso daquela prostituta do
Intendente, recorda-se? Ele livrou o industrial da acusação de assassínio de uma forma brilhante, mas
você ficou com a pulga atrás da orelha.
- Não gosto do gajo, mas não é só isso. O meu velho faro de investigador diz-me que ele não
está a contar a verdade. Ventura, verifique se a esposa, Lara Santiago, embarcou para Paris, quando,
e em que companhia aérea.
O polícia mais novo, Ventura, como era conhecido na investigação criminal, anuiu às ordens do
chefe. Tinham ali coisa graúda, aquele engomadinho playboy nunca o enganou, apesar de se proteger
atrás da capa de advogado sério, famoso e pago a peso de ouro.
Pedro atirou-se para cima da cama e socou as almofadas de penas, retomando a compostura de
imediato. Fora enganado por ela. Lara estava viva, sempre o soube, mas onde? Pegou no sofisticado
iphone e marcou um número.
- O carro dela foi retirado do rio esta manhã. Veja se consegue descobrir o que sabe a polícia. –
disse com voz autoritária e desligou o aparelho sem esperar resposta.
Colocou duas pastilhas de Gurosan num copo e ficou a observar a efervescência até ela acabar.
Meteu o copo à boca e emborcou o conteúdo de uma só vez. Depois de uma noite com álcool e umas
quantas linhas de cocaína, tinha que limpar os sinais de cansaço. Despiu o roupão e entrou na cabine
de chuveiro. Ligou os jactos de massagem e sentiu a força da água a massajar-lhe o corpo vigoroso e
musculado. A fadiga começou a desaparecer aos poucos.
Fazia quatro meses que Lara desaparecera e estava na altura de fazer mais uma diligência junto
da família dela para apurar a verdade. Só tinha que dar ordens para apertarem o velho e o irmão
outra vez e, quem sabe desta vez não tinham tanta sorte e partiam qualquer osso do corpo. Deu uma
gargalhada. Como ele gostava de ver o velho a guinchar que nem um porco quando lhe apertassem as
bolas. Infelizmente não se podia envolver, tinha uma reputação a defender.

- Aproveita o silêncio e a paz do deserto. – disse Ema despedindo-se da amiga.


Lara subiu para o cavalo negro de raça árabe, e seguiu atrás da caravana. Mansur chamou-a
para perto dele e Lara trotou com o cavalo até estar junto a ele. O grupo formado por dez camelos e
um cavalo dirigiu-se para sudeste, em direcção ao vale do Draa e às dunas de Erg Chebbi.
Era a primeira vez que Lara ia ao deserto. Depois de muita insistência de Mansur aceitou o
convite para o acompanhar numa excursão. Passados quatro meses de ter saído de Lisboa, quase se
esquecera dos motivos que a levaram ali e baixou a guarda em relação à sua protecção. No último
mês não se separou de Mansur por mais de uma hora. Trabalhavam juntos em projectos, Lara
começou a desenhar azulejos e mosaicos originais para algumas obras especiais que Mansur estava a
projectar e amavam-se pelos cantos do Riad fugindo ora dos empregados, ora de Raissa, ou mesmo
de Ema e Hamed que também viviam finalmente um para o outro. Ocorreu um movimento curioso
depois da noite de despedida do grupo francês. Hamed passou a ficar grande parte do tempo em casa
de Ema a ajudá-la, e Lara mudou-se para a casa de Mansur.
Se a felicidade fosse a paisagem deslumbrante que estava na sua frente sentia-se feliz. Já
avistavam o rio Draa que corria directamente das montanhas do Atlas e os milhares de palmeiras que
enchiam o vale de verde.
- Lindo, não é?- perguntou Mansur.
- Nunca vi nada igual. Mesmo com o calor é fantástico. - proferiu Lara extasiada com a vista
magnifica do vale.

O inspector adjunto Ventura entrou na esquadra e irrompeu pelo gabinete do comissário


fechando a porta atrás de si.
O comissário Fontes, homem de meia-idade, ponderado e raposa velha, sabia que os seus
cálculos estavam certos, mesmo antes de Ventura abrir a boca. Já vira muita coisa e muito filho da
puta astuto, disfarçado de homem de bem, para saber que este era mais um dessa estirpe que tinha
escapado até ali.
- A mulher não saiu do país, pelo menos de avião. Aliás parece ter desaparecido. Há vários
meses que os vizinhos não a vêem pelo prédio.
- Não me surpreende. – disse Fontes com a maior calma do mundo. – Vamos ficar atentos ao
sujeito e manter as coisas em segredo na esquadra. Receio que ele tenha contactos aqui, o homem
move muitas influências. É uma cobra de colarinho branco tão venenoso quanto uma mamba.
Ventura concordou. Ia começar a escrutinar todos os meios de transporte que a jovem mulher
possa ter usado.

- Bom dia doutor Pedro. – cumprimentou a secretária assim que ele entrou no átrio do
escritório.- Coloquei o jornal em cima da sua mesa.
- Obrigado Marília. Que seria de mim sem a sua devoção.
Marília nunca sabia se aquelas palavras eram sinceras ou apenas escárnio pela dedicação
canina que lhe devotava desde que ele a contratara. Viu-o entrar no gabinete, fechar a porta sem olhar
para trás e mergulhou no trabalho. O acórdão tinha que estar pronto para o julgamento do dia seguinte
e não queria ouvi-lo a dizer o quanto ela era irresponsável e pouco profissional. Nos últimos anos,
depois de o ter visto casar com outra, perguntava a si própria o que é que a fazia estar ali e sujeitar-
se a humilhações diárias.
Pedro pousou a pasta preta de executivo - de couro puro - delicadamente em cima da secretária.
Raramente tinha um gesto brusco ou descontrolado, mesmo que estivesse sozinho. Sentou-se na
cadeira importada que custava três salários mínimos e pegou no jornal. Começou a folheá-lo pelo fim
lendo apenas os títulos. Chegou à página de anúncios para adultos e percorreu as imagens de
mulheres que ofereciam os seus serviços. Anotou vários números e nomes no Notebook para usar
mais tarde. Regressou às noticias nacionais e um título em letras garrafais chamou-lhe a atenção.
«Mulher jovem encontrada quase sem vida, asfixiada com lingerie feminina, num quarto de
hotel.»
Um sorriso aflorou-lhe os lábios. Acendeu um cigarro e puxou um longo trago de fumo que
expirou para o ar fazendo uma espiral. Com um dedo, desmanchou-a. Como era belo o fumo azul a
cair em canudos. Não suportava a beleza e o maior prazer que tinha na vida era poder destruí-la, ou
dar-lhe novas formas. Outro era defender criminosos pervertendo o sentido das coisas. Que gozo
podia ter em defender um homem honesto? Nenhum. Defender um assassino, ou um banqueiro
desonesto era um desafio muito rentável.
Marília bateu à porta, entrou com os ombros encolhidos, e estendeu-lhe o maço de papéis. Sem
proferir palavra, saiu batendo os saltos de sete centímetros no vidrado do mármore preto que cobria
o chão. Pedro olhou-lhe as pernas altas e esguias que saiam dos sapatos. A única coisa bonita que ela
tinha. Logo que ela saiu, Pedro pegou o iphone e ligou um dos números que anotara. Ouviu a voz da
rapariga a dizer as condições e onde era o ponto de encontro e respondeu:
- Espero-te no carro na rua atrás do hotel às vinte e duas horas.
Para tudo ficar bem e sentir-se um homem completo, triunfante só lhe faltava encontrar a cabra
da Lara, mas até lá, divertia-se com as que tinha por perto. Tirou a chave pequena da pasta, abriu a
gaveta e olhou com deleite para a quantidade de calcinhas de renda ordenadas por cores. Hoje ia
levar umas cor-de-rosa choque. Tirou-as de entre as outras e meteu-as no bolso, cuidadosamente
dobradas. Durante o dia podia sentir a macieza da renda nos seus dedos sempre que levava a mão ao
bolso. Havia lá sensação mais excitante? Para ele não.
O telefone interno tocou tirando-o do transe. O dia de trabalho ia começar e a partir dali
assumia outra postura.
Capítulo Oito

O silêncio das estrelas ecoava por todo o deserto, ouvia-se um grão de areia a deslocar-se a
metros de distância como se fosse mesmo ali e, o que mais surpreendia Lara era sentir que bastava
estender um braço para tocar numa das estrelas. Tudo não passava de uma ilusão, mas era sublime.
Do alto da duna, o casal abraçado, contemplava a abóboda celeste, escura como breu e iluminada
apenas por pontinhos luminosos. Parecia um postal ilustrado de Natal.
- Não imaginavas que seria tão belo, pois não?
- Não. Entendo agora porque precisas disto. Aqui os problemas desaparecem. A dimensão do
espaço é tão grande que tudo o resto é relativo, tornamo-nos insignificantes perante tamanha
grandeza.
Lara estava sentada na areia fina, aninhada no meio das pernas de Mansur e envolta nos braços
dele. Estavam ali desde que os outros se recolheram às tendas para dormir, fazia mais de uma hora.
Mansur tinha a certeza que ela era a mulher que procurava. A mulher que o aceitava como ele
era. A mulher que não lhe importava se ele vivia como os beduínos numa tenda ou como um
arquitecto rico numa casa de luxo.
- A minha vida nem sempre foi tão linear como agora. Ter um pai marroquino, muçulmano,
apesar de ter um estatuto económico elevado, nem sempre foi fácil. A minha mãe tentava proteger-
nos da descriminação – dizia-nos sempre para usarmos o nome francês - mas também ela pagou um
preço por casar com um estrangeiro. – Mansur falava em surdina para que no acampamento - uma
centena de metros abaixo - os turistas e Hamed não ouvissem a conversa. O silêncio absoluto que
reinava tornava possível ouvir murmúrios a centenas de metros de distância.
Mansur nunca tinha falado da sua vida a Lara. Durante quase um mês fizeram um pacto
inconsciente de guardar para eles os aspectos da sua vida que não se orgulhavam. Nenhum
perguntava sobre a vida do outro. Mas sabiam que haveria um dia que a conversa ia surgir e, ali
ninguém os interrompia.
- Não te perguntei nada Mansur. Só me interessa o que és para mim agora, neste momento, só
posso viver o presente.
- Porquê? Foges do passado?
- Sim, mas não de algo que me possa envergonhar. Foi uma decisão difícil de tomar mas foi por
sobrevivência.
- Queres contar-me?
- Não, desculpa, ainda não. Não te quero envolver nesse assunto.
- Só quero que saibas que estou contigo em tudo. – e beijou-a com ternura.
Perto dele, Lara sentia-se protegida. Não tinha medo.
Mansur sabia que ela escondia algo muito doloroso, mas não a pressionava. Talvez falar dele
próprio, fosse o mote para que ela se abrisse e deixasse de o recear.
- Quando entrei na adolescência senti-me perdido. A minha mãe adoeceu com cancro e passou
muito tempo no hospital em tratamentos, restava-me o meu pai sempre ocupado com os negócios, e
Hamed que já não conseguia travar-me, eu era demasiado rebelde para um jovem calmo e pacifico
como o meu irmão. Juntei-me a um grupo de jovens marroquinos de um bairro de Marselha. Passaram
a ser a minha companhia depois das aulas. Esses não me descriminavam. Quando dei por mim
andava a incendiar caixotes de lixo e, um dia, já tinha dezassete anos incendiamos um carro.
Lara ouvia atentamente. Ele estava a pôr a sua alma a nu. Imaginava o que seria crescer com o
especto da morte da mãe numa idade tão complicada.
- Fomos presos. Estive preso numa casa de correcção seis meses e sai com a sentença lida. Se
cometesse mais algum crime, ia preso de novo. Foi um desgosto enorme para a minha mãe, o meu pai
deu-me um sermão e uns cascudos na cabeça e pôs-me a trabalhar na loja. A minha mãe voltou para
casa passado algum tempo e eu isolei-me. Dediquei-me a estudar e pouco mais que isso. Passei
quase dois anos sem me relacionar com ninguém da minha idade.
- Nem uma namorada? – brincou tentando aligeirar o ambiente. Estava a ser difícil para ele falar
sobre si.
- Não. Nessa altura, só queria tornar-me num homem bom, como o meu pai. O meu pai é um
homem cheio de coragem. Apaixonou-se pela minha mãe, quando ela visitou Marraquexe, devia ter
uns vinte anos, e nunca mais a largou. Abandonou Marrocos e foi atrás dela para França. Costumava
contar-nos, a mim e a Hamed, que desistira de a conquistar e, no dia em que apanhou o barco para
voltar a casa, ela correu até ao cais e pediu-lhe que ficasse. Casaram pelo civil assim que obtiveram
autorização do governo marroquino.
- É uma história linda.
- É. Eles amavam-se muito e o meu pai deixou-a viver livremente. Ela era uma artista, pintava,
esculpia e dava aulas numa escola particular. Ele nunca a impediu de continuar com a vocação dela.
Dizia que não se prende quem se ama. O meu avô não gostou da escolha do meu pai, mas com o
passar dos anos aceitou.
- Quando há amor, tudo se ultrapassa. – disse com um tom ferido.
- E tu, não tiveste amor na tua vida?
Lara ficou em silêncio, não porque lhe faltasse a resposta, mas porque tinha receio que ele se
assustasse com o que tinha guardado dentro de si.
- Do meu pai, da minha madrasta que foi uma mãe para mim e do meu irmão, sim. Fui muito
amada pela minha família. A minha mãe morreu quando eu tinha cinco anos, vítima de doença
prolongada. Cancro. O meu pai casou passado um ano com Cristina e depois nasceu o meu irmão
André. Fomos sempre uma família unida.
Mansur escutava sem emitir qualquer opinião ou fazendo perguntas e estreitava-a mais contra si.
Estava frio. Há noite o deserto era sempre frio.
- Deves estar a perguntar-te porque é que fugi para cá. Fugi. Essa é a realidade. Lembras-te
quando ias à piscina de Ema, poucos dias depois de eu cá chegar?
- Claro! Só ia lá para te ver. – riu-se. – Apesar de Ema ser a minha melhor amiga desde há dois
anos e passarmos muito tempo juntos, nunca a vi como uma mulher que eu desejasse. Contigo foi
diferente. Assim que te vi, sabia que me eras destinada. – disse a rir.
– Maktub, como se diz em árabe. – rematou.
Lara sorriu sem entusiasmo. O semblante estava sério.
- Eu fugia porque não queria que me visses em biquíni. Tinha o corpo todo marcado com
hematomas negros. Braços, pernas e costas, pareciam um mapa.
Ela nem precisava dizer quem tinha sido. Ele sabia que ela fora casada e conseguia adivinhar o
resto.
- Compreendo. – respondeu, embora não entendesse o que levava um homem a tratar uma mulher
daquela forma. – Só uma mente muito doente maltratava uma mulher.
- E hoje não quero falar mais sobre isso. Estou com frio. - desculpou-se.
- Então vamos para a nossa tenda enrolar-nos nas mantas quentes. – e puxou-a pela mão para
que ela se erguesse da areia.
Lara ficou junto a ele e o beijo aconteceu. Mágico. Aquele lugar era especial. Lançou os braços
em volta do pescoço dele aproveitando o desnível da duna e entregou-se aos lábios sedentos de
Mansur que lhe forçavam a abrir os seus e lhe devorava a boca com sofreguidão. Desejou ficar ali
para sempre. Se pudesse parava o tempo.

- Que a paz esteja sobre ti. – disse Miriam ao entrar na cozinha do Riad ainda o sol não
nascera.
- E sobre ti a paz. – devolveu Ema.
- Vamos preparar os quartos? E depois vamos ao mercado. A caravana chega hoje. – disse Ema.
– Precisamos de mantimentos frescos.
O dia ia ser longo com os preparativos para o grupo que ia regressar do deserto.
- Sim, claro.
Miriam tinha qualquer coisa diferente no tom da voz que Ema notou.
- Que foi Miriam. Brigaste com o marido?
Miriam abanou a cabeça em negação.
- Barack contou-me que temos um novo vizinho. Diz ser advogado e comprou aquela casa
pequena ao fundo da rua.
- Aquela que não tem jardim?
Miriam assentiu.
- Como é que um advogado vai comprar uma casa modesta como aquela? E porque é que vem
para este fim de mundo?
- Também já fizemos essas perguntas. Barack não gostou dele. O homem andou por ai a fazer
perguntas sobre os vizinhos. Muito deselegante da parte dele. A nossa comunidade é feita de gente
honesta e sincera. Podia ter-se dirigido à mesquita e apresentar-se.
- E como se chama o advogado?
- Abdul Abujamal. Tem uma placa de latão na porta. Com o nome e por baixo a dizer advogado
em árabe. Vi-o quando vinha para cá. O mais estranho é que ele não vai à mesquita. Não atendeu ao
chamamento nem uma única vez e parece que já cá está há uma semana.
- A chegada de um estranho causa sempre burburinho numa cidade onde todos se conhecem.
Quando eu cheguei foi igual, lembras-te?
- Talvez tenhas razão. – concordou com o semblante menos carregado.
- Devo ter. – afirmou com o maxilar tenso, mas com o intuito de não levantar muito alarme.
Ema premiu os lábios, e coçou o nariz. Miriam já a conhecia demasiado bem para saber o que
aqueles gestos significavam.
- Estás preocupado com o estranho, não é?
- Sim. Receio sempre por Lara. Temos que ficar alerta.
- Os homens estão quase a chegar. Logo mais esse assunto fica resolvido. Barack só está à
espera que Mansur e Hamed voltem para investigarem o homem.
- Não vamos ficar todos paranóides, mas tenho que proteger Lara.
Miriam assentiu com a cabeça e as duas mulheres subiram ao primeiro andar para dar ordens às
criadas de serviço aos quartos.
Entretanto no deserto, o grupo assiste ao nascer do sol, um momento sublime de luz, cor e
sombras. Ao alcance da vista, no horizonte, o sol surgia tímido e a emanar um tom alaranjado que se
insinuava aos poucos. Todos estavam em silêncio desfrutando daquele momento único na vida de
uma pessoa e que levariam para sempre na memória. Hamed dá ordem de saída e todos montam os
animais para a viagem de regresso. Lara cobre a cabeça com um turbante por causa do calor, sobe
para o cavalo e olha em volta. Mais à frente Mansur observa-a e nota-lhe o semblante carregado. Os
pensamentos de Lara ainda vão parar a Pedro de vez em quando e, nessas alturas nota-se o peso na
sua expressão facial. A imagem dele ia ficando cada vez mais distante, mas não impedia que um
manto de trevas surgisse sobre ela, sempre que vivia um momento de prazer como aquele. Era como
se não tivesse direito a ser feliz e, por mais que racionalizasse as coisas, o medo fazia-a ter
sentimentos masoquistas. Se ele a visse agora decerto não a reconheceria. Podia passar o resto da
vida disfarçada, mas as saudades da família começavam a apertar. Ia resolver o assunto com Pedro
nem que tivesse que fazer queixa à polícia e contratar alguém para a proteger. Não queria esconder-
se o resto da vida e andar sempre a olhar por cima do ombro como se fosse uma criminosa.
Capítulo Nove

- Não creio que Pedro me encontrasse aqui. Elaborei um plano tão meticuloso que não deixei
rasto. Amiga, sei que só queres proteger-me, mas o homem deve mesmo ser advogado, vocês estão a
ficar paranóicos a verem espiões em todo o lado? – disse tentando disfarçar a preocupação.
- O seguro morreu de velho. A comunidade anda muito desconfiada. O homem não vai à
mesquita, não procura as pessoas daqui. Não sei… para um advogado é estranho não conviver com
as pessoas da cidade. Parece que não tem interesse em arranjar clientela.
- Ora Ema, deixa lá o homem. Vamos viver a nossa vida.
- Tudo bem Lara. Gosto de te ver assim, sobretudo porque sei que o motivo dessa tua confiança
é o meu melhor amigo, a quem eu prezo muito. Mas não te esqueças quem é o teu marido. – avisou-a.
- Quem me dera esquecer. Algum dia tenho que resolver esse problema, mas não sei como,
bom… vou trabalhar mais um pouco nos projectos. – e saiu em direcção à rua.
Ema ouviu-a cumprimentar Hamed e um sorriso esboçou-se-lhe nos lábios de forma
involuntária. Em duas semanas descobriu um homem com um sentido de humor acintoso, Hamed ria-
se das coisas mais improváveis, e quase sempre dele próprio; generoso, solidário, e com um sentido
de protecção com o irmão que Ema achava exagerado, Mansur não precisava disso. Por vezes ficava
na dúvida de quem é que protegia quem, mas tinha a certeza que o que unia os dois era um amor
fraternal profundo e sólido.
Os olhos castanhos esverdeados e os lábios cheios mostrando uma fila de dentes certos e
brancos, eram o seu primeiro cartão-de-visita; um corpo firme e sensual dava-lhe vontade de o
devorar ali mesmo em cima da bancada da cozinha, assim que ele surgiu na porta com aquele ar de
falso tímido. Nunca sentira isso por outro homem, nem mesmo por Álvaro, com quem quase casou.
Hamed aproximou-se dela, abriu os braços e Ema refugiou-se neles. O beijo aconteceu, sensual, com
uma mistura fresca de hálitos e um desejo que satisfaziam sempre que a casa estava vazia, o que
acontecia com frequência, pois o Riad Dar Ema, não era um hotel convencional, apenas recebia
turistas uma vez por semana e por pouco tempo.
- Vais acabar por me matar. Sou um velho, comparado contigo. – disse enquanto mergulhava os
lábios no pescoço dela e a mordiscava.
- Não se queixe, senhor, está mais vivo que nunca. – provocou-o. – Parece-me que, na parte que
me interessa mais, o senhor está…quer dizer…funciona muito bem.
Hamed pegou-lhe ao colo de supetão e carregou-a para fora da cozinha.
- Vamos já testar essa teoria.
- Não poderá ficar para um pouco mais tarde? – dizia Ema, fingindo que não queria mas sem
vontade de sair dos braços que a carregavam até ao primeiro andar.
- Não me parece. A senhora é muito…provocadora. Tem que ser castigada. – dizia Hamed
enquanto abria a porta do quarto dela, com o pé abrindo-a de par em par e, logo de seguida a
trancava por dentro com a chave.
Quando ele a colocou em cima da cama e se debruçou sobre ela, beijando-a enquanto lhe tirava
a roupa, Ema sentiu a excitação a crescer no baixo-ventre. Descobrira um amante insaciável em
Hamed e coisas que nunca imaginara fazer. Não era púdica, nem virgem, mas parece que o seu noivo
de anos, guardava o melhor para as outras.
A visão do corpo dele nu, era tudo aquilo que sonhara num homem que um dia viesse a amar,
depois de Álvaro. Hamed era alto, ligeiramente musculado e muito viril.
As persianas de madeira fechadas mergulhavam o quarto numa agradável penumbra, aumentando
o erotismo do momento. Hamed colocou um joelho junto às coxas de Ema, passou a outra perna por
cima do ventre alvo e firme e ficou sobre ela. Ema preparou-se para o receber e, quando o sentiu, as
lágrimas de felicidade correram-lhe pela face. Amava aquele homem há tanto tempo que lhe parecia
quase impossível o que estava a acontecer. Hamed investiu em movimentos lentos e calculados,
aumentando-lhe o desejo e só quase quando estava a alcançar o clímax, a deixou fluir em gritos de
prazer.

Lara adentrou a casa esperando ouvir Mansur por ali a fazer telefonemas e a vociferar alguns
impropérios contra algum dos clientes mais difíceis de satisfazer, mas tudo estava num silêncio
absoluto. Mansur tinha uma clientela especial. Tinha fama de satisfazer os pedidos mais excêntricos
dos clientes, mas também de conseguir dar-lhe a volta e levá-los onde ele queria, não sem umas
discussões mais acesas por vezes. Percorreu o corredor até meio e olhou para a piscina ainda por
terminar. Dentro de dias as obras estariam a começar e a piscina forrada com os azulejos desenhados
por ela tomaria forma. Uma estreia para Lara apenas familiarizada com padrões de tecidos para alta-
costura. Passou pela cozinha e ouviu Fadila às voltas com as panelas e resmungando com alguma
coisa, sentiu o cheiro do borrego misturado com açafrão e legumes e de pão fresco. Subiu os degraus
de mármore até ao primeiro andar e o silêncio continuava. Nem sinal de Mansur. Abriu a porta do
quarto onde o tinha deixado há um par de horas, sem fazer ruído, e espreitou. Mansur dormia nu, a
sono solto e com um ligeiro ressonar. Era tão bonito que até doía a alma, só de olhar para ele. Como
é que aquele homem se pôde interessar por ela? Lara sorriu e fechou a porta. Ele merecia dormir o
sono dos justos depois de uma noite em que a tinha amado até de madrugada. Lara sabia que aquele
estado de alma não ia durar para sempre, por isso aceitou o amor de Mansur. Talvez fosse a
derradeira oportunidade de viver plenamente como mulher. Não quis preocupar Ema, mas suspeitava
que o homem que apareceu na cidade fosse um detective privado disfarçado de árabe, daqueles que
Pedro costumava contratar para efectuarem qualquer serviço, inclusive fazer desaparecer provas
vivas, como o ouviu referiu ao telefone um dia em que passava em frente ao seu escritório em casa.
Enquanto viver, aquela sensação de terror, ao descobrir quem ele era na verdade, há-de acompanhá-
la sempre. Sacudiu a cabeça para que os pensamentos se fossem. Ele estava longe e já aprendera a
viver um dia de cada vez. Ali, na casa de Mansur, estava protegida.
Não conhecia o gabinete de Mansur, o santuário onde ele guardava todos os projectos que
desenvolvia, e os estiradores sofisticados onde desenhava e que mantinha fechado à chave quando
não estava em casa. Aproximou-se da porta com a esperança que ele se tivesse esquecido de a
trancar e fez pressão no trinco que se soltou de imediato. O espaço amplo e iluminado com a luz
natural que provinha do exterior tinha uma decoração minimalista – ao contrário do resto da casa,
decorada com esmero - muito típico do espaço de trabalho de um homem que não se entendia com
móveis a mais numa divisão. No centro, uma mesa de trabalho de madeira, ampla e contendo muitos
esboços em cima. Lara foi pegando neles um a um e admirando-os. Eram sobretudo mansões enormes
desenhadas à mão, com um traço firme e harmonioso. Sempre o imaginou a desenhar no estirador ou
num programa informático, e estava surpreendida com a beleza dos desenhos. Em nada se pareciam
com projectos de arquitectura e, se não soubesse a profissão dele, ia pensar que seria pintor. Todas
as casas tinham um nome de pessoa, provavelmente quem tinha contratado os seus serviços. Voltou a
colocar os desenhos no seu lugar e olhou em volta. Na parece dois quadros emoldurados. Desenhos
de casas novamente. Uma com um jardim interior no centro da casa, piscina, flores em canteiros e
relva no restante espaço; dois andares e…reconheceu a casa. Era esta casa, a casa onde estava. O
quadro ao lado parecia uma ruina, destroços de uma casa que em tempos deveria ter sido bonita.
- Era assim que estava quando a comprei. – disse Mansur da porta.
Lara sentiu o coração acelerado. Invadiu um espaço privado. Não se invade a caverna de um
homem, essa era uma regra que há muito tinha ouvido falar ao pai, quando, com delicadeza, pedia a
Cristina que não trocasse o sítio aos seus papéis quando arrumava o escritório, ou mesmo que não
entrasse lá, pois como todas as mulheres tinha tendência para arrumar tudo o que pensava estar
desarrumado e esse gesto causava muito tempo perdido à procura de documentos.
- Desculpa. A curiosidade foi mais forte e a porta…
- Estava aberta. Eu sei.
- Sim, mas não me convidaste a visitar o teu atelier. Fui intrusiva.
- Não. Tu nunca és intrusiva.
E acercou-se dela. A visão de Mansur era deliciosa. De duche tomado e barbeado, vestindo
apenas um par de Levi’s meio rasgadas nos joelhos, o tronco e os pés nus, uma imagem muito distante
do homem do deserto que parecia um berbere, ali estava ele: lindo e desejável.
Lara olhou para ele com uma expressão enigmática. Mansur ficou momentaneamente
desorientado, mas tentou disfarçar.
- Que foi?- e abraçou-a pela cintura beijando-lhe os cabelos e depois o pescoço.
- Tenho receio do que nos possa suceder, de te perder, de morrer.
E procurou refúgio no peito dele, um muro que ela julgava intransponível. Enquanto estivesse
ali, nada lhe poderia acontecer.
Mansur estreitou-a contra si. Partilhava dos receios dela. Queria protegê-la mas não sabia de
quem nem como. Enquanto ela não abrisse o seu coração, todos os perigos e receios que enfrentava,
ficavam vagos para ele, apesar de perceber a angústia dela estampada no rosto em momentos que a
apanhava desprevenida.
Capítulo Dez

Lara não conseguia conciliar o sono. Talvez fosse o facto de ter dormido até às onze horas
naquela manhã, ou talvez fosse porque sentia a falta de Mansur, duas noites depois de ele ter partido
em viagem para Marselha. Assuntos relacionados com o atelier. O sócio ameaçou abandoná-lo caso
ele não fosse de imediato ao escritório.
Por outro lado a sua falta de sono podia ser causada pelo vizinho misterioso. O homem batera à
porta do Riad com a desculpa de precisar de alojar um grupo de visitantes e insistiu para ver toda a
casa e, quando ele perguntou se Ema vivia sózinha atrapalhou-se dizendo que sim e só depois viu o
que tinha feito. Hamed, apareceu vindo do nada e postou-se a seu lado interpelando o homem.
- A paz esteja consigo. – disse Hamed em Darijá.
- Uhmm.- grunhiu o homem olhando de baixo para o metro e oitenta de Hamed. – Quem é ele? –
perguntou num francês com sotaque do sul olhando para Ema.
Hamed adiantou-se e não a deixou responder.
- Quem sou eu não lhe deve interessar, mas quem é o senhor? – perguntou em francês.
- Ora meu amigo – mudou de tom – não era minha intenção ofendê-lo. Estava apenas a fazer uma
pesquisa sobre a possibilidade de alojar um grupo de pessoas que espero na próxima semana.
- Quartos não faltam aqui. Quando quiser reservar é só voltar com as identificações das
pessoas. Agora se nos dá licença…- e encaminhou-o para a porta de saída.
Hamed sugeriu Lara que ela ficasse fechada na casa deles, até o irmão regressar.
- Lara, não sei o que se passa para ficares tão amedrontada mas fico mais descansado se ficares
em minha casa enquanto o meu irmão está fora.
- Aceito a tua sugestão. Vou ter que conversar com Mansur.
E nessa mesma tarde mudou-se para o quarto de Mansur. Fadila tinha ordens para não falar com
ninguém sobre a estadia dela em casa e Raissa estava proibida pelos pais de aparecer em casa de
Mansur, ou falar de Lara a qualquer pessoa.
À meia-noite desistiu de tentar dormir. Sentia que o cerco estava a apertar-se e tinha a certeza
que aquele homem era um espião de Pedro. Já a tinham localizado. Mas como? Foi tão cautelosa.
Abriu o computador portátil e ganhou coragem para contar a Mansur o que tinha sido a sua vida
de casada. Tinha receio que depois de saber a verdade ele não a quisesse mais. Mais valia correr o
risco de ser rejeitada do que viver na angústia.
Um aviso de email soou no iPad. Decidiu ignorar. O esboço da casa de campo estava quase
terminado para a reunião com o cliente, na manha seguinte e era a sua garantia que Marcel não
deixava o atelier.
- Não abuses de mim, Mansur. Estou a ficar velho para tanta responsabilidade. – avisou com
uma palmadinha nas costas.
Sabia que o amigo não queria reconhecer que tinha saudades dele. Marcel tirou-o das ruas por
um acaso do destino e ensinou-lhe tudo o que sabia sobre arquitectura. Sentia falta das conversas
sobre arte e de o ver desenhar. Recordava-lhe Pauline nos tempos em que eram namorados: o mesmo
traço, o mesmo talento e uma força da natureza vinda do interior. Dois sobreviventes da vida. Mansur
era parecido com a mãe. Marcel ainda hoje lamentava que ela não o tivesse querido e o trocasse pelo
árabe, mas já não havia nada a fazer: Pauline partira para o além e oxalá estivesse em paz.
Uma hora depois o sinal de correio voltou a soar. Passava da uma da manhã em Marselha e
sentia-se cansado. Enrolou o papel de esquiço com o desenho da casa e meteu-o no tubo de plástico.
Abriu a caixa de email no iPad e viu que não reconhecia o endereço como fazendo parte da sua
lista. Abriu-o. Não referia o assunto.

Não consigo dormir. O mundo assombra-me e a tua partida trouxe ao cimo todos os meus
medos. A última coisa que pensei foi em contar-te o que me levou a fugir para tão longe da minha
cidade, do meu país, queria esse assunto fora das nossas vidas. Mas creio que já não há volta a
dar. Pois bem, vou contar-te. Quando voltares poderei já não estar aqui e se um dia eu partir, não
me procures, é perigoso aproximares-te de mim.
Conheci o Pedro quando ele já era um eminente advogado, apesar de jovem. Era a gentileza
em pessoa, e tinha uma horda de admiradoras querendo caçá-lo. Vá-se lá saber porquê escolheu-
me a mim, quando eu nem sequer o via dessa forma. Aos poucos conquistou-me e casamos ao fim
de dois anos de um namoro em que ele me exibia e saí em quase todas as revistas cor-de-rosa da
sociedade Lisboeta. Pedro era muito mediático. Advogado famoso por defender causas
impossíveis, criminosos com dinheiro, destilava charme por onde passava. Era o «senhor capa de
revista» mais famoso que o Grey das Cinquenta Sombras. Fui admirada e odiada pelas mulheres
que o rodeavam, mas nada me fazia supor que ele se interessasse por alguma delas. Casamos há
dois anos e fui feliz durante duas noites. Na tarde do terceiro dia depois de casados, em plena lua-
de-mel, num hotel de cinco estrelas na Tunísia, depois de um passeio pela zona antiga da cidade,
quando entravamos no hotel, um casal de portugueses cumprimentou-nos e deu-nos os parabéns
pelo casamento, pois percebera que eramos recém-casados. Um gesto de simpatia apenas. Pedro
transfigurou-se de imediato. Jogou-me ao chão com um soco na cabeça e pontapeou-me até se
cansar, indiferente aos meus gritos de socorro e diante do pessoal do hotel e do casal que nem se
atreveu a interferir. Num país muçulmano entre marido e mulher ninguém se mete. Ninguém me
defendeu. Fiquei a agonizar no chão junto ao elevador e, quando dei por ele, estava a chorar e a
pedir-me perdão. Carregou-me até ao quarto, limpou-me as feridas e disse-me que a culpa era
minha. Eu tinha olhado para o homem do casal que nos cumprimentou. Por mais que eu dissesse
que ele estava equivocado, nada o demoveu. Não conhecia aquele Pedro e quis deixá-lo de
imediato. Pedi-lhe o passaporte e comecei e emalar a minha roupa. Enfureceu-se de novo, bateu-
me de novo e escondeu-me o passaporte. Durante duas semanas fiquei fechada no quarto até os
hematomas desaparecerem. Depois desse dia cuidava das minhas pisaduras com desvelo.
Transformou-se no príncipe que eu conhecia. Mas eu deixei de confiar nele. Mantive a fachada
com medo que ele me matasse.
Nesta altura já deves ter pensado que não sirvo para ti, tenho demasiadas complicações na
minha vida.
Mansur sentia a cabeça a rodar e a testa a escorrer suor. Não conseguia raciocinar sobre o que
tinha terminado de ler. Abriu o segundo email com a garganta seca e apertada e as mãos crispadas.
Preparou-se para o pior.

Quando voltámos a Lisboa, pediu-me uma segunda oportunidade e jurou nunca mais voltar a
tocar-me. Implorou-me que ficasse e pediu-me perdão todos os dias durante mais de um mês.
Qualquer coisa se quebrou dentro de mim desde o dia em que ele me agrediu no átrio do hotel, não
foram só as costelas que me partiu com os pontapés e, que só mais tarde pude verificar nas
radiografias quando, às escondidas consultei um médico amigo do meu pai. Fui eu própria que
liguei o tronco com ligaduras para suportar a dor.
Mantive a minha família na ignorância do que se passara e fiz o papel da esposa feliz sempre
que os visitava. Dediquei-me ao trabalho, felizmente já tinha um contrato com dois costureiros
franceses e trabalhava a partir de casa, como sempre fiz, deslocando-me a Paris com frequência.
Sentia-me vigiada todo o dia por duas empregadas que Pedro contractou para me ajudarem nas
tarefas domésticas. Hoje sei que o papel delas era esse apenas. Estávamos casados há quatro
meses e um dia obrigou-me a acompanhá-lo a uma festa social, daquelas que eu odiava, com gente
oca e fútil e mulheres que o perseguiam. Quando circulava pelo imenso jardim onde decorria a
festa, numa das mansões da linha de Cascais, ouvi um comentário sobre as saídas de trabalho de
Pedro. Segundo a mulher - que o disse de propósito para eu ouvir - ele viajava com frequência
para Praga onde frequentava clubes de sexo. Na época pensei que o comentário era despeito puro,
mas dias depois, ao arrumar um dos seus fatos no roupeiro encontrei uma carteira de fósforos de
um clube de sexo em Praga. Naquela altura só pensava em acabar com aquele casamento. Alguns
dias depois enchi-me de coragem e pedi-lhe o divórcio. Fiquei com os olhos negros durante duas
semanas. Tive que inventar uma viagem para que a minha família não fizesse perguntas e fiquei
escondida até os hematomas desaparecerem. A partir desse dia o pânico tomou conta de mim.
Fiquei paralisada. Aquele homem com quem eu tinha casado, apaixonada, era um psicopata
perverso muito perigoso.
Pedro trabalhava sempre até tarde, mesmo em casa, no escritório do apartamento de luxo
onde morava-mos, numa torre de Lisboa e, uma noite, quando passava pelo corredor ouvi-o dizer
a um homem, em francês, que liquidasse a testemunha. Sempre falei bem o francês desde pequena,
Cristina, a minha madrasta é professora de francês e ensinou-me a língua desde muito cedo, pelo
que não havia hipótese de ter ouvido mal. Passei a evitá-lo o mais que podia, e a fugir da minha
família para que não percebessem. Um dia o meu irmão André confrontou-me. Ele conhecia bem o
carácter de Pedro. André estagiou no escritório de Pedro que foi também o seu patrono. André
pressionou-me para eu apresentar queixa, mas eu sabia que era inútil. Ninguém fazia nada contra
ele. Ninguém se atrevia. Pedro movia-se nos tribunais e nas esquadras de policia com muito à
vontade e eu sabia que tinha muitos informadores entre as próprios policias.
Mansur deixou escapar uma lágrima. Queria estar com ela agora e abraçá-la.
E o tempo foi passando assim, entre olhos negros, costelas partidas e ameaças de morte caso
o deixasse. Há cinco meses, depois de mais uma sova em que fiquei mais duas semanas de cama,
sem qualquer tratamento, comecei a arquitectar um plano de fuga. Foi assim que aqui cheguei.
Felizmente tinha Ema, uma irmã para mim, e que me escondeu aqui. Mas nesta altura meu
querido, penso que Pedro já me descobriu. Pode ser paranóia, mas creio que o homem que se diz
advogado é um dos assassinos dele. Tenho que tomar uma decisão rapidamente, pelo que, talvez
não me encontres quando voltares.
Amo-te muito e para sempre.
Lara Santiago

Mansur pegou no telefone portátil e ligou para o telemóvel de Hamed.


- Sim? – respondeu uma voz ensonada.
- Hamed? Onde está Lara?
- A dormir. Tens noção das horas? – resmungou.
Mansur olhou para o relógio. Duas horas da madrugada. Seria meia-noite em Ouarzazate.
- Onde?
- Onde o quê?
- Onde está ela, merda! – vociferou Mansur.
- Sossega. Estamos os três na nossa casa. Eu e Ema estamos atentos. Vai dormir.
- Volto amanhã. – e desligou o telefone mais descansado.
Pegou nas chaves do carro e desceu os degraus até á garagem. Era urgente falar com Marcel.
Regressava no primeiro voo que conseguisse apanhar.
Capítulo Onze

Marcel ouviu Mansur atentamente. Estava siderado com a história que o seu protegido lhe
contara, mas sobretudo tinha um ar de preocupação.
- Deves amar muito essa mulher, mas…Mansur, estar perto dela é um perigo, ela tem razão. O
que é que pensas fazer?
- Não sei. Não vou ficar a assistir à morte dela, isso é garantido. Marcel, gosto de ti como se
fosses meu pai… mas…
- Pena que não tenha casado com a tua mãe, ela preferiu o teu pai. – lamentou.
- O meu pai é um bom homem, ela escolheu-o, pensei que já tivesses ultrapassado isso, já lá vão
tantos anos. – fez uma pausa e encarou-o com compreensão. - O que eu ia dizer e não me deixaste
concluir é que gosto muito de ti, prezo muito a tua opinião, estou eternamente agradecido pelo que
fizeste por mim, mas desta vez não te vou dar ouvidos.
- Desculpa o meu egoísmo. Sou daqueles homens que só amam uma vez na vida, tive outras
mulheres, mas nunca consegui substituir a tua mãe no meu coração. – disse com tristeza. - Queres que
eu te represente na reunião, não é? – perguntou ao mesmo tempo que lhe dava uma palmada carinhosa
no braço.
- Sim. Estão aqui os desenhos. Se o cliente aceitar, começo a trabalhar na planta. És o meu anjo
da guarda. Não digas ao meu pai que estive cá e muito menos o que se passa. Isto resolve-se. Vou
voltar no primeiro avião, daqui a três horas.
Os dois homens abraçaram-se com afecto e Mansur saiu apressado da casa do seu mentor. Tinha
um avião para apanhar. Chegava a Ouarzazate ao nascer do sol, contando com a diferença horária.

O imã fazia a chamada para a primeira oração do dia através do altifalante da mesquita. O dia
ia começar na cidade. Mansur subiu as escadas a correr e entrou no quarto onde Lara dormia
profundamente. Abeirou-se da cama e beijou-lhe a face.
- Lara. – chamou-a baixinho. – Acorda. – e sacudiu-lhe o ombro ligeiramente.
Ela resmungou e abriu um olho, depois outro e sentou-se na cama de repente como se tivesse
visto um fantasma.
- Mas tu…não estavas cá. Onde é que…quando…- preferiu num discurso atabalhoado. Só
conseguira conciliar o sono de madrugada. Não estaria a dormir há mais de três horas.
- Depois explico. Veste-te com uma djelaba e cobre o rosto. Vamos até ao deserto.
Enquanto Lara se vestia, Mansur pegou numa mochila de lona e atirou alguns objectos de
higiene pessoal lá para dentro enquanto a apressava.
- Onde vamos?
- Ao deserto.
- Mas porquê?
- Quero testar uma teoria. Quando estivermos no jipe conto-te.
Era quase noite quando chegaram ao acampamento. Mansur demorou algum tempo a percorrer
os duzentos e poucos quilómetros, para conseguir dar tempo a que o seu plano se concretizasse.
Hassan tinha deixado mantimentos no dia anterior de forma a não levantar suspeitas e por precaução
não foram de camelo.
Mansur colocou a mesa com os mantimentos que Hassan deixara. Foram saboreando a refeição
e conversando enquanto, lá fora, as estrelas saíam do seu esconderijo.
- Ainda não me contaste porque viemos para aqui como dois foragidos?
- Porque temos que certificarmo-nos que o tal vizinho não é um emissário do teu marido. Hamed
vai tentar investigar. É um excelente programador informático e como hacker tenho a certeza que
faria carreira em qualquer organização de espionagem. – disse a rir.
- Ummm. Não me digas que…
- Ele vai tentar. Amanhã já sabemos e entretanto, vem cá que ainda não te abracei o suficiente.
Lara deslizou no tapete até ele e refugiou-se nos braços fortes e compridos. Era ali o seu porto
seguro, onde, se pudesse, ficava até morrer.
- Quando fugi, achei que seria capaz de pôr o passado para trás das costas e começar uma nova
vida, compreendes? Estava decidida a viver a minha vida e a fingir que nunca se passara nada. Mas
como é que eu serei capaz de fazer isso?
- Compreendo. Não é fácil enterrar os nossos fantasmas. Eu próprio demorei alguns anos até
perdoar-me a mim próprio o que tinha feito. Tive a sorte de encontrar Marcel. Já te falei nele?
- Não.
- Marcel é o meu mentor, o meu anjo da guarda. Tinha saído da cadeia há poucos dias e estava
tão revoltado que decidi vingar-me. Estava cego pelo ódio. Ainda não tinha percebido que era eu que
provocava a minha própria descriminação. Bastava não ter ligado a algumas provocações, como a
minha mãe me ensinou sempre, e não tinha chegado tão longe. Naquela altura não conseguia ignorar
os actos de burrice dos outros e, não se discute com um asno, não muda nada. Concordas?
- Sim, por vezes pomo-nos a jeito para que abusem de nós. Devia ter denunciado Pedro e
pedido protecção à polícia, mas tive muito medo da fúria dele. Ainda tenho.
Mansur apertou-a mais contra si, um sinal de que estava ali para a proteger.
- Mas conta-me de Marcel, interrompi-te... – pediu Lara
Ele continuou numa voz calma.
- Um dia fiz um cocktail molotof com uma garrafa e fui até um dos bairros ricos da cidade com a
intenção de incendiar um carro. Escolhi o carro mais bonito que estava na rua, em frente a uma
vivenda fantástica e, quando me preparava para arremessar a garrafa ao carro, senti um braço a
prender-me os movimentos. Era Marcel.
- Voltaste a ser preso?
- Não. Marcel fez um acordo comigo. Não me denunciava se eu trabalhasse para ele depois das
aulas. Todos os dias eu saia da escola e ia limpar o jardim, regar as flores, despejar lixo, lavar o
carro, tudo o que a empregada de Marcel me pedisse para fazer.
Lara não conseguiu deixar de rir. Estava a imaginar Mansur a fazer aquelas tarefas com ar
contrariado só para não voltar a ser preso.
- E os teus pais sabiam?
- Não. O meu pai vivia a trabalhar para nós, esforçava-se muito para que não nos faltasse nada,
e estava muito triste por eu ter sido preso. Castigou-me durante um tempo, não me dirigia a palavra,
dizia que eu o envergonhara. Hamed, como irmão mais velho, tentou meter-me juízo na cabeça, mas
não conseguiu. Mas a minha ligação com Marcel começou no dia em que ele me apanhou debruçado
sobre o seu estirador a desenhar uma casa. Pensei que ele me fosse bater por estar a mexer nas coisas
dele mas, ao invés disso, elogiou-me e a partir dai passou a interessar-se por mim. Marcel não
casou. Mas, o mais curioso é que um dia descobri que ele fora apaixonado pela minha mãe.
- Estás a brincar!
- Não. Ele e a minha mãe foram namorados antes de ela conhecer o meu pai. E a história é tão
longa que fica para amanhã. Como vez também tenho os meus segredos.
- Isso não tem importância, tornaste-te num homem melhor com essa experiência e isso é que
importa.
No silêncio que se seguiu Mansur ouviu apenas o tic tac do relógio digital. Do outro lado da
rede que servia de janela a Lua erguera-se e ficara suspensa acima das montanhas do Atlas.
Adorava tanto aquela mulher que se dera a conhecer como nunca o fizera com nenhuma outra.
Pôs a alma a nu sem receio de ser rejeitado. Com ela conseguia despir a capa de homem de negócios
bem-sucedido e duro. Não precisava de fingir o que não sentia.
Mansur assentou-lhe uma mão na anca e chegou-se mais a ela. Apenas o luar entrava pela rede
da janela, tudo o mais era escuridão. Quando os lábios finalmente se juntaram, Lara saboreou-lhe o
vinho na língua, entregou-se a ele deixando que lhe beijasse a face e o pescoço, e reclinou-se para
trás deleitada com a sensação. Sentia-lhe a humidade nos lábios à medida que lhe afloravam a pele e
enroscou as pernas nas dele. «É assim que nos devemos sentir quando amamos alguém, e essa pessoa
retribui o nosso amor». Pensou.
Nunca viveu nada parecido com Pedro, nem mesmo quando namoravam e ainda não sabia a
verdade.

- Já o tinha avisado para não andar a fazer perguntas na vizinhança. Quer espantar a caça?
Recolha-se em casa e não dê nas vistas. Em breve estarei aí, é só o tempo de resolver alguns
assuntos pendentes.
Pedro bateu com as mãos na secretária com quanta força tinha, fazendo cair alguns objectos no
chão. Estava irritado com o imbecil do homem, por pouco não deitava tudo a perder. Estava-lhe a
pagar uma pipa de massa e só fazia asneiras. Estaria a ficar velho, ou ele ainda não tinha dado pela
incompetência do homem ao fim de alguns anos em que trabalhavam juntos.
Pegou no telemóvel e escolheu um dos números que tirara há dias do jornal. Marcou o número,
deixou chamar, mas ninguém atendeu. Tentou outro e ao primeiro sinal, uma voz feminina soou do
outro lado.
- Olá, sou a Suzi. Em que posso servi-lo?
Pedro sorriu. «Em muito» pensou com um sorriso perverso.
- Preciso de companhia para esta noite. Apanho-te em dez minutos à porta de que hotel? -
perguntou.- Quero-te com um vestido de noite.
Ouviu a resposta, pegou nas chaves do Audi, entrou para o elevador e saiu na garagem, na cave
da torre. Apenas o som da sola dos sapatos italianos, de puro couro, ressoavam nos ladrilhos. Um
sorriso aflorou-lhe os lábios. Tirou um cigarro da cigarreira de prata e acendeu-o chupando com
força. Meteu a mão no bolso para verificar se tinha tudo o que precisava. Sentiu as rendas e a seda
entre os dedos e a excitação a subir. A mesma excitação que começou a sentir, ainda criança, sempre
que o pai lhe apertava o pescoço quando estava alcoolizado.
«Maldito.» Se não tivesse morrido naquele dia, de ataque cardíaco, ele próprio o mataria.
Odiava-o por lhe ter tirado o prazer de o estrangular ele mesmo.
Conduziu o carro até à saída da garagem, premiu o comando automático e saiu para a noite.
Lisboa e as mulheres esperavam-no, e hoje era uma mulher especial, com um pescoço bem longo e
bonito. Agradara-lhe a fotografia que vira no jornal. Esperava que fosse autêntica, senão atropelava-
a ali mesmo no passeio e deixava-a a agonizar. Detestava mentirosas. Já se via com as mãos a tocar-
lhe. Bastava um aperto e tudo acabava em segundos. Tanto poder. Triunfante, riu à gargalhada,
enquanto ouvia o Requiem em dó menor de Mozart, a música que o acompanhava sempre que saia
para caçar.
Capítulo Doze

O cenário estava sempre montado embora não se servisse do apartamento há meses: um balde
com gelo e uma garrafa de champanhe reles. As putas não mereciam melhor, não notavam a diferença
para um bom vinho. Música ambiente. Sempre o Requiem de Mozart. Como a maioria era ignorante
não associava a música à morte o que lhe proporcionava um prazer ainda maior. Há tanto tempo que
estava inactivo que sentiu um ligeiro frenesim nas mãos.
Pedro olhou-a com ar sedutor. A jovem Suzi desfazia-se em sorrisos tentando agradar.
Ao olhar para a figura na sua frente, Suzi pensou que hoje o sacrifício não era grande, até o fazia
de graça. O homem era jovem, tinha uma figura muito atraente e cheirava muito bem. Muito diferente
de alguns dos homens que atendia e que só suportava quando fechava os olhos e imaginava que
estava com outra pessoa. Com um pouco de sorte ia ser uma noite normal e que lhe renderia dinheiro
para pagar as propinas do próximo semestre da universidade. Reparou nos gestos delicados quando
ele encheu as duas flutes com champanhe e lhe estendeu uma, olhando-a profundamente. Suzi, nome
de guerra, desejou que fossem pessoas diferentes e as circunstâncias fossem outras. Era este tipo de
homem que procurava há tanto tempo. Um homem que pudesse amar, que fosse bonito e rico. O
apartamento era fantástico e o homem tinha bom gosto. Só a música não tinha graça. Não percebia
porque é que ele ouvia musica de funeral – apesar de ser Mozart – num encontro de sexo. Algo mais
romântico seria mais adequado. Se era para fingir, o ambiente ajudava muito.
- Não tens outra música?
Pedro desejou dar-lhe um murro que lhe partisse o maxilar. Que atrevimento. Controlou-se,
sorriu e pensou que ela não perdia em esperar.
- Que mal tem esta?
- Não é muito romântica. – observou Suzi.
Pedro sorriu-lhe escondendo o que lhe ia no pensamento. Era bonita e talvez não fosse
ignorante. Mas uma puta não tinha direito de o questionar. Crispou as mãos ligeiramente – Pedro
raramente se descontrolava – e sugeriu:
-Bebe o champanhe, vais ver que até a música te soa diferente.
Suzi levou a flute aos lábios pintados de vermelho e saboreou o líquido. Só não fez má cara
porque não queria desagradá-lo. O champanhe era de má qualidade. Começou a perceber que o
homem era um sovina.
- Gostas?
- Sim muito. – mentiu.
Pedro mantinha-se a uma distância considerável, fumando o seu cigarro, bebericando o
champanhe e apreciando a figura esbelta e delicada metida dentro de um vestido de imitação,
comprado em alguma loja chinesa das muitas que existiam na capital. Pobre rapariga. Detestava
gente pobre.
Insistiu para que ela bebesse mais um copo.
Suzi começava a estranhar ele não se aproximar, não lhe pedir que lhe fizesse aquelas coisas
que todos eles queriam dela. Em contrapartida o champanhe, mesmo de má qualidade, estava a deixá-
la muito relaxada. Demasiado até. Sentiu os pés leves e como se estivesse prestes a levantar voo.
Deixou-se cair na poltrona de veludo castanho e riu-se à gargalhada sem conseguir controlar-se.
Flutuava em volta dele e ria. A figura do homem começava a ficar esbatida e uns pássaros coloridos
esvoaçavam com um chilreio alegre. O cheiro a selva húmida inundou-lhe as narinas e um calor
insuportável subiu-lhe pelo peito e face. Começou a retirar o vestido e Pedro disse:
- Anda, vamos passear. – e ajudou-a a levantar-se pegando-lhe pela cintura. Estava no ponto em
que ele a queria.
Suzi não reclamou e deixou-se dirigir. Era capaz de o acompanhar à lua e voltar. Que homem
lindo. Um príncipe só para ela.
Pedro olhou para a figura dela, direita, esguia e com a cabeça recostada no banco do carro. Era
uma mulher daquelas que viram a cabeça aos homens, mas isso não a tornava menos desprezível.
Putas. Putas eram para eliminar. Abrandou a velocidade e saiu da via principal virando à direita em
direcção a uma estrada de terra batida, embrenhando-se na floresta centenária. A serra de Sintra,
àquela hora da madrugada estava mergulhada num sossego absoluto. Depois de alguns quilómetros
parou o carro numa clareira junto à entrada de um palacete abandonado. Abriu-lhe a porta e puxou-a
para fora sem qualquer cuidado. Suzi estava num estado letárgico e de obediência total. Quase não
abria os olhos e começava a ficar sem sentidos.
Tirou um lençol de seda pura branca, da mala do carro, e estendeu-o no chão enquanto ela
esperava deitada no Audi preto. Puxou-a para fora do carro e deitou-a sobre o lençol estendido em
cima de um montão de folhas velhas. Puxou-lhe o vestido de noite até à cintura, retirou-lhe as
calcinhas e, de pé, desapertou as calças que lhe caíram até aos joelhos. Suzi continuava de olhos
semi cerrados, com um sorriso tolo nos lábios e sem reagir. Pedro ajoelhou-se, pegou-lhe nas pernas
e afastou-as deixando-lhe o sexo visível. Os faróis mínimos do carro iluminavam o suficiente para
que a visse. Sentia o sexo quase a explodir de desejo. Desde que Lara fugira que nunca mais se
atreveu a procurar outras mulheres. Concentrou toda a sua energia em localizá-la e esquecera-se de
si próprio. Lara era a próxima, não merecia o amor que ele lhe devotava.
Suzi continuava com o sorriso estúpido estampado no rosto. Pedro levantou a mão e assentou-
lhe a palma na face com toda a força que tinha e, antes que ela começasse a gritar – por esta altura
imaginou que o efeito do Valium começasse a desaparecer – enfiou-lhe as próprias calcinhas na boca
para abafar o som dos gritos. Baixou-se sobre ela e penetrou-a com força. Arremessou uma vez e
outra, e outra. Suzi começou a debater-se ainda com pouca energia. Pedro socou-a na cara
derrubando-lhe um sobrolho e continuava o movimento de vaivém. Meteu a mão no bolso do casaco
e retirou as calcinhas de seda. Desviou-lhe as mãos que começavam a levantar-se para se proteger e
enrolou-lhe a peça íntima no pescoço. Apertou, apertou e sentiu a vida dela a esvair-se e o orgasmo a
chegar com intensidade. Lançou um urro e sentiu os espasmos a projectarem o sémen no
preservativo. Deixou-se cair sobre o corpo sem vida.
O vento ligeiro de verão agitou as árvores milenares produzindo um restolhar de folhas que
mais parecia os passos apressados de alguém que o estava a espiar. Mais distante soou o pio do
mocho em resposta ao grito dele. O céu estava limpo e a lua cheia inundando a terra de luz. Pedro
terminou o ritual. Retirou o preservativo, colocou-o num saco de amostras e verificou se ela
respirava. Abanou-lhe a cabeça. Completamente inerte. Puxou as calças para cima e abriu a
bagageira do carro. Retirou o outro lençol de seda vermelha, e estendeu-o por cima de Suzi.
Sentou-se no carro, ligou a ignição e dirigiu-a à estrada principal em velocidade lenta. Sorriu
ao recordar-se da avó. Pobre avó que o criou, mas que sempre defendeu o filho, mesmo quando este
maltratava o neto. Anos mais tarde descobriu que conseguia reproduzir o prazer que sentiu quando a
velha deu o último suspiro.

- O que foi Ema? Estás branca. – observou Hamed assim que ela entrou na sala. Ema tinha ido a
casa conversar com Miriam.
- O senhor Francisco telefonou para minha casa, esperando falar com Lara. André está no
hospital. Foi assaltado na rua há três dias e está muito mal. Parece que lhe bateram até o deixarem
inconsciente. Disse-lhe que Lara estava no mercado. Não consegui dizer-lhe que ela estava com
Mansur. Iria preocupá-lo mais.
Ema estava preocupada com a notícia que iria dar à amiga.
- Eles são a minha família. Quando os meus pais morreram acolheram-me só porque eu era a
melhor amiga de Lara. – e as lágrimas caíram-lhe pela face.
Ema tinha nervos de aço, mas já não suportava tanta coisa ao mesmo tempo.
Hamed abraçou-a, tentando reconfortá-la. Nem tudo era mau.
- Eles estão no deserto.
- Eles quem?
- Lara e Mansur. Partiram ontem de madrugada. Entretanto tenho estado a investigar o vizinho
com a ajuda do Imã. O homem é mesmo advogado e parece inofensivo. Na internet não existe nada
que indique o contrário, já fiz umas…
Ema levantou o sobrolho quando percebeu o que ele andara a fazer.
- Fizeste o quê Hamed? Isso não é crime?
- Depende, se fores apanhado é. Mas foi tudo por uma boa causa. – riu-se.
- Podemos ficar descansados em relação ao homem, é isso?
- Sim. Vou pedir a Hassan que vá a Zagora avisá-los. O rapaz é jovem, vais ver que se recupera
depressa.- tentou sossegá-la. -Vem cá minha princesa. Conta-me lá essa história da tua ligação com a
família de Lara.
Ema limpou as lágrimas e fez um sorriso amarelo. Ainda tinha bem presente o dia em que a
professora de francês, directora da sua turma e a madrasta da sua melhor amiga, a chamara ao seu
gabinete para lhe comunicar que os pais estavam gravemente feridos no hospital vítimas de um
choque frontal com o camião desgovernado quando regressavam do emprego na periferia de Lisboa.
Cristina não conseguiu dizer-lhe que eles tiveram morte imediata, mas Ema pressentiu que eles já não
estavam entre os vivos. Para uma criança perder os pais é devastador e considera que teve muita
sorte em poder ficar com a família Santiago.
Depois do funeral e das formalidades de heranças de bens – Ema era a única herdeira – restava
uma tia no norte do país que pudesse acolhê-la. Mas Ema não queria viver fora de Lisboa, longe do
bairro onde estavam todos os seus amigos, inclusive Lara, com quem tinha crescido. Lara suplicou
aos pais que deixassem ficar Ema com eles e, depois de algumas ponderações Francisco e Cristina
acederam e tornaram-se os tutores dela.
- E foi assim que eles se tornaram nos meus tutores. Vivi com a família até terminar a escola de
hotelaria e logo depois fui morar sozinha. Devo-lhes muito, são muito bondosos.
- Sim, é raro ouvir que alguém fez isso por uma criança.
- Eu tinha apenas doze anos, impediram que eu adoecesse e ajudaram-me a fazer o luto. Foram
anos muito difíceis. – fez uma pausa e engoliu as lágrimas antes de continuar. - Há três anos tinha um
namorado, ia casar, mas descobri-o na cama com uma das minhas amigas na nossa casa e na véspera
do casamento. – e fez um esgar de nojo. – Mas não guardo rancor da vida. Segui em frente e vim para
cá porque queria paz e achei que aqui a encontrava.
- Encontraste?
- Agora sim.
- Óptimo. Vamos almoçar que estou com uma fome de lobo e a comida de Fadila cheira
divinamente. Hoje damos folga a Miriam.
Ema riu-se. Hamed estava tão à vontade com ela que já decidia o que iam fazer sem a consultar.

O sol ainda estava alto e apenas a lona grossa das tendas e uma protecção de tecido isolante,
impediam que derretessem.
- Já podemos partir. É seguro. As nossas suspeitas eram infundadas. – disse Mansur ao entrar na
tenda vindo da rua. – Recebi um recado de Hassan agora. Está tudo bem. Vamos esperar mais um par
de horas e vamos embora.
- Mansur? – chamou-o tentando disfarçar o nervosismo.
Ele olhou-a com ternura.
- Não te contei tudo nos emails. Há algumas coisas que deves saber a meu respeito. – murmurou
ela.
- Seja lá o que for, tenho a certeza que serei capaz de aguentar.
Ela inclinou-se para junto dele. Mansur colocou-lhe as duas mãos na estreita cintura e beijou-a
com sofreguidão.
- Aqui está a resposta. – disse ele olhando-a com amor.
- Tu não entendes. Não posso continuar contigo. Tenho um marido algures à minha procura e
tenho que resolver este assunto. Não posso casar contigo.
- Eu sei.
- E isso incomoda-te?
- Preferia que não tivesses um marido. Assim estarias livre, mas vamos levar as coisas com
calma. Vamos resolver tudo e se algum dia estiveres preparada eu estou cá. Lara, eu amo-te. Nunca
disse isto a nenhuma mulher. Nenhuma se interessou por mim como tu. Tu viste o homem que há em
mim e as outras viam mais para além disso, viam apenas o arquitecto mundano que as podia levar a
festas entre a nata da sociedade. Mesmo que tu não me ames, isso não altera os meus sentimentos por
ti.
- Mansur…
- Não precisas de o dizer. – interrompeu-a ele.
- Quero explicar-te.
E afastou-se dele indo sentar-se num dos poufs de couro pintado.
Mansur estava a ficar curioso e tentou disfarçar, fazendo uma expressão neutra.
- Quero contar-te uma coisa. – disse ela. – Quero contar-te uma coisa que nunca tive coragem de
contar a ninguém. Foi isso que despoletou a minha fuga.
Capítulo Treze

Cinco dias antes de Lara ter abandonado Lisboa uma chuva forte fustigava a cidade provocando
algumas inundações. Pedro esperava-a à saída do centro comercial dentro do Audi preto. Tinha-lhe
ordenado antes de sair para o escritório, que fosse ao cabeleireiro e se vestisse para sair à noite. Iam
jantar a casa de um casal amigo em Azeitão. Casal que Lara não conhecia. Não se atreveu a dizer que
não queria ir. Sabia o que a esperava.
Há vários dias que cogitava na melhor forma de desaparecer sem deixar rasto, mas não
encontrava solução. André, desconfiado que se passava alguma coisa grave ofereceu-se para a
ajudar. Mas o que André não sabia é que Pedro a tinha avisado de forma velada que «por vezes
acontecem acidentes às famílias que ficam por desvendar por falta de provas, e tu adoras o teu irmão,
o teu pai e a tua madrasta, não é querida?», disse enquanto a beijava na testa.
Saiu do centro comercial Corte Inglês pela porta lateral junto à avenida António Augusto de
Aguiar e pelo canto do olho, debaixo da protecção do guarda-chuva, viu-o ao volante do luxuoso
carro estacionado do outro lado da avenida. Ele fez-lhe adeus e Lara acenou-lhe disfarçando a
irritação. Sentia a chuva a bater-lhe nas pernas e os sapatos de salto alto a inundarem-se.
Mentalmente foi proferindo todos os palavrões que sabia e desejando que um raio o fulminasse
naquele instante e ficasse viúva. Seria a viúva mais alegre de Lisboa. Atravessou a rua movimentada
evitando os carros e, à medida que se aproximava dele uma dor de estâmago lancinante começou a
incomodá-la. Lara tinha consciência que estava a somatizar, esconder o que vivia há dois anos, tinha
o seu preço e o seu corpo estava a dar sinais.
Entrou no carro e a primeira coisa que ele fez foi olhar para os pés dela em ar de desaprovação.
- Vais mudar de sapatos e de meias. Não te quero com sapatos molhados e meias salpicadas de
lama da rua.
Lara não esperava outra coisa, até sabia o que ele ia dizer. Beijou-o na boca, como ele exigia
sempre e focou o olhar em direcção ao fundo da avenida, olhando o vazio para não lhe vomitar em
cima.
Duas horas depois Pedro avisava que chegaram ao destino. Atravessaram um portão alto de
ferro fazendo lembrar os portões das casas assombradas dos filmes de terror, e seguiram por uma
longa estrada ladeada de choupos muito altos. A mansão dos finais do século dezanove era
imponente. No parque fronteiriço à casa estavam estacionados alguns carros. Todos modelos caros e
luxuosos. Lara cogitou se a propriedade ladeada de vinhas e escondida na base da serra da Arrábida
seria de algum cliente de Pedro, mas depressa desviou a atenção para outra coisa. Na verdade não
lhe interessava estar ali, nem de quem era a mansão.
Assim que pisaram o tapete junto à porta de madeira maciça, um criado vestido com uma libré
verde, abriu-lhes a porta fazendo uma vénia. Lara teve a impressão de estar a entrar num salão de
baile há duzentos anos atrás.
- Vamos entrando. – disse Pedro, pegando-lhe levemente no cotovelo.
Um cheiro suave a canela inundava o ambiente. Trespassaram um hall com chão de madeira
brilhante - onde Lara fez um esforço por se equilibrar com os saltos de agulha de sete centímetros -
decorado com espelhos com molduras de talha dourada, credências estilo Luís XV e cortinados
pesados em veludo azul claro. Entraram num corredor iluminado com luz ténue e que parecia não ter
fim. O chão atapetado abafava os sons dos passos e quanto mais avançavam, mais sentia os
batimentos cardíacos e os joelhos a fraquejarem. Lara ouviu risos cristalinos, vozes de mulheres e
outras mais graves que identificou como sendo de homens e sentiu os músculos menos contraídos. Em
público Pedro era polido e cavalheiro passando a imagem de um casal perfeito, portanto estaria
segura das fúrias dele.
De forma elegante, como ele sabia fazer quando queria cativar uma mulher, abriu-lhe a porta e
deu-lhe passagem para a divisão, fechando-a atrás de si sem ruído. A sala era ampla, com luz difusa
e decorada no mesmo estilo. As vozes emudeceram de repente e vários olhos pregaram-se neles.
Lara sorriu e Pedro cumprimentou os presentes.
- Boa noite. Sou o Pedro e esta linda mulher é a minha esposa Lara.
Uma mulher alta, loura e que ainda não passara dos quarenta anos levantou-se ostentando um
modelo de alta-costura de renda verde semi transparente, deixando adivinhar a roupa interior, e
dirigiu-se a eles de mãos estendidas com ar caloroso.
- Bem-vindos. – e apertou as mãos de Pedro, beijando-o na face.
Lara olhou para Pedro e não viu qualquer emoção. Um arrepio de medo percorreu-lhe o corpo
fazendo-a estremecer.
- Sou a Sónia. – e repetiu o gesto com Lara.
A mulher tinha um perfume inebriante e toda ela era glamour.
- Aqui não existem apelidos nem revelações pessoais. Certo?
Todos anuíram, inclusive Pedro. Lara ficou estática sem saber o que dizer. Que jogo era aquele?
Veio-lhe à mente a imagem da carteira de fósforos do clube de sexo em Praga que encontrou no bolso
do casaco de Pedro e estremeceu.
- Pedro, Lara, - disse a mulher de nome Sónia – apresento-vos o meu marido António, a Dulce e
o Luís e a Mónica e o Rui. Espero que se sintam bem na nossa casa, não é querido? – disse
esperando que o marido a corroborasse, o que ele fez prontamente.
Os casais levantaram-se dos sofás e uma mistura de perfumes e o roçagar das meias de seda
debaixo dos vestidos longos soou como um ruido de fundo que noutras circunstâncias podia ser
engraçado, mas Lara ficou intimidada. Todos se aproximaram e apertaram-lhes as mãos e beijaram-
nos na face. Lara sentiu os pelos dos braços a eriçarem-se apesar de não os conseguir ver. O seu
corpo estava a dar o alerta.
As conversas fluíam sobre banalidades e elogios comuns «estás linda querida», «tens umas
curvas sinuosas, dá para um homem se perder» e, Lara desligou do ambiente. Começou a centrar a
sua atenção nos painéis de parede, de madeira pintada de tons bege e dourado, formando rectângulos
à altura das paredes, nas cadeiras de estilo em preto e dourado, nos candeeiros que pareciam peças
de arte. Deixou de os ouvir. Afastou-se ligeiramente do grupo e passou-lhe pela mente a ideia de
começar a correr e fugir dali.
- Querida…- e sentiu umas mãos lisas e finas na cintura.
Virou-se de repente e deu de caras com os olhos pretos da anfitriã que se destacavam no cabelo
muito louro.
- Está lívida, minha querida. Assustei-a? – e as mãos continuavam na cintura de Lara como se
não as fosse tirar nunca.
Lara deu um passo atrás escapando-se das mãos da mulher.
- Claro que não. Desculpe, estava apenas distraída.
- Compreendo. Vamos passar à sala de jantar?
Lara anuiu e acompanhou a mulher. Pedro e os restantes despareciam numa porta lateral.
- É a sua primeira vez? – perguntou Sónia voltando a tocar-lhe com os dedos. Desta vez nos
seios levemente.
- Como? Não entendi?
- É a primeira vez que participa numa… festa deste género?
- Um jantar? Claro que não. Apenas não sou uma pessoa muito social.
- Fico feliz que seja assim. Tenho a certeza que vai adorar.
Lara anuiu com um sorriso desmaiado, mas não concordava com ela. Deixou-se conduzir até à
porta por onde desapareceram os outros e tentou controlar as gotículas de suor que teimavam em
escorrer-lhe pela testa.
Era só um jantar. Estava a ser ridícula.
Capítulo Catorze
A comida exalava um aroma que faria qualquer pessoa salivar até lhe cravar os dentes e sentir o
sabor no palato. Mas não a ela. Lara não conseguia engolir. O tema de conversa à mesa parecia um
quebra-cabeças. Esforçou-se para perceber do que estavam a falar numa espécie de código, mas a
certa altura deixou de prestar atenção. Rui, um dos homens presentes, com ar de executivo, boa
figura, sedutor, insistira para que ela bebesse mais vinho. Lara olhou para Pedro – não queria que ele
tivesse pretexto para lhe bater mais tarde - e ele assentiu. Rui encheu-lhe o copo de vidro vermelho e
convidou-a a fazer um brinde. Lara voltou a olhar para Pedro, sentado na sua frente e ele encorajou-
a. Tinha receio do que pudesse fazer-lhe quando saíssem da mansão, mas aquele homem que estava
do outro lado da mesa não era o mesmo Pedro que a tinha pontapeado na Tunísia por ciúmes e que a
avisava para nunca mais olhar para outros homens.
Lara ergueu o copo num gesto pouco convincente e os outros imitaram-na brindando também.
- Ao prazer. – disse Sónia, a anfitriã.
Lara não conseguiu proferir uma única expressão. Não conseguia raciocinar. O vazio tomou o
lugar do pensamento. Bebeu um grande gole de vinho e quase se engasgava. Sentiu os olhos
vermelhos, a traqueia a estreitar-se tentando expulsar o líquido intruso e fez um esforço para não
tossir. Pedro lançou-lhe um olhar aniquilante. O oódio e o desprezo dele atingiram-na como um raio.
Baixou a cabeça e tentou que não reparassem nela. A conversa era tão animada entre os outros, que
teve esperança que não se dirigissem a ela.
Meia hora depois estava relaxada, ria sem sentido como se estivesse fora do seu corpo e aquela
fosse outra Lara. Por momentos parecia flutuar noutra dimensão como se tivesse saltado da sala de
jantar para um mundo paralelo. Tudo brilhava à sua volta. Deuses. Era isso, as pessoas pareciam
Deuses. Nus. Onde estava a roupa das pessoas? Um ataque de riso surgiu-lhe sem que o conseguisse
controlar e deixou-se cair em cima de um canapé de veludo vermelho. Não conseguia conter-se.
Sentia as lágrimas a correrem e contorcia-se agarrada ao ventre. As vozes pareciam longe e as caras
viradas na sua direcção, como se estivessem a apontar-lhe o dedo eram patéticas, distorcidas, como
se fossem extraterrestres.
No chão, sob as almofadas, havia corpos entrelaçados em posições estranhas. Estranhas? Ainda
a rir, olhou melhor. Não. Sónia beijava Pedro e Rui…não, estava a alucinar ou a sonhar. Tinha que
acordar daquele pesadelo. Alguém lhe chegou um copo de vinho aos lábios e a obrigou a beber um
golo e depois outro e outro.
- Linda menina. Agora vamos tratar de ti. – disse uma voz feminina.
O vestido de seda preta escorregou-lhe pelo corpo e caiu-lhe aos pés. Umas mãos suaves
começaram a percorrer-lhe o corpo, o sexo, a boca e, lá no fundo do seu cérebro uma voz que mal
ouvia dizia-lhe para fugir mas o corpo não obedecia.
Lara alheou-se do que as duas mulheres lhe faziam e tentou concentrar-se em algo que a
acordasse daquele transe. O prazer e o nojo misturaram-se sem que conseguisse destrinçar qual dos
dois era mais forte. Os seus olhos incidiram em dois homens debruçados sobre a mesa aspirando uma
linha de pó branco. E Pedro? Procurou-o varrendo a sala com os olhos meio abertos, sem força, com
a esperança que ele a tirasse daquele inferno. Pedro acenou-lhe enquanto se ajoelhava em frente à
mesa onde estavam as linhas de pó. O seu cérebro estava a sucumbir a tanta informação. Fechou os
olhos e tentou adormecer, tudo aquilo não passava de um sonho ruim. Ao longe ouviu uma voz
feminina a murmurar.
- Desmaiou.
-…
Um túnel de escuridão engoliu-a.

Abriu os olhos e ficou perdida. A cabeça azoada e a boca seca eram desconfortáveis. Precisava
de tomar uma aspirina e beber água com urgência. Pôs as pernas fora da cama e tentou situar-se. O
tapete era familiar e os móveis também. Estava no seu quarto. Descalça e nua dirigiu-se à cozinha. A
boca estava colada, fazia um esforço para a abrir. Tirou a garrafa do frigorífico e levou-a aos lábios
deixando o líquido frio limpar-lhe a garganta. Sentou-se num banco junto à ilha da cozinha e tentou
ordenar as ideias. A sensação era de ter sido trucidada por um elefante a espezinhá-la até lhe
desfazer a carne.
Uma imagem passou-lhe em flash pelo cérebro. Cadeiras decoradas a veludo e talha. Oh! Sim!
Lembrava-se. Que vergonha! Tudo o que se passou naquela maldita mansão era contra a sua forma de
estar na vida, contra os seus valores morais. Sentia-se suja.
As lágrimas correram pela face e o nojo subiu-lhe pelo corpo. Levou as mãos ao cabelo, à face,
ao peito, ao sexo, tentando desviar-se das pessoas como se ainda ali estivessem. Lançou um grito de
revolta e dor, vindo das profundezas da sua alma, pouco se importando que ele a ouvisse. Correu
para o chuveiro, abriu a água no máximo, e meteu-se debaixo do jacto forte e frio. O impacto da água
avivou-lhe a memória sensorial de mãos, línguas, dedos e… a percorrerem o seu corpo. Colocou gel
de duche numa esponja e esfregou-se com violência até doer, num acto de masoquismo. Agora sabia
no que tinha participado. Pedro também não conhecia aquelas pessoas e a casa não pertencia a
nenhum dos presentes.
Perdeu a noção do tempo em que esteve debaixo do chuveiro a chorar convulsivamente, até
sentir os olhos inchados e o coração destruído. Efectuou todos os gestos para se vestir, de forma
mecânica e só o som da campainha a despertou do transe em que se encontrava. Foi verificar quem
era: André. Não podia abrir a porta. Não conseguia nem podia explicar os olhos inchados e o rosto
vermelho, e não conseguia enganar o irmão. Depois de alguns toques na campainha André desistiu e
Lara viu-o afastar-se pelo vídeo porteiro.
A casa estava silenciosa. Nem sinal de Pedro e a empregada diária também não estava. O
telemóvel tocou dentro da bolsa pequena prateada que fazia conjunto com o vestido de noite. Não se
recordava de onde a colocara. Seguiu o som e encontrou-a no quarto em cima da cadeira onde estava
o vestido.
Era André. Atendeu.
- Maninha, onde estás?
- Na outra margem, estou com uma amiga. – mentiu.
- Queres almoçar comigo? Queria falar contigo, sem a presença do teu marido.
- Vou almoçar por aqui mesmo. Telefono-te depois. – e desligou antes que começasse a chorar
outra vez.
Chegava. Dois anos de tortura chegavam. A noite passada tinha ultrapassado tudo o que ela o
julgava capaz de fazer. Tinha casado com um homem doente. Rico e doente. Um monstro perverso
que julgava só existir nas páginas dos jornais de crime e em romances de terror.

Lara fixou o olhar no tapete da sala como se procurasse um lugar entre as formas geométricos
intricadas para se esconder. A vergonha do que acabara de narrar era imensurável. Levantar-se é um
processo que exige cair, mas convém não exagerar e, temia que ele não suportasse esta revelação.
Mansur manteve-se em silêncio enquanto ouvia a descrição. Apetecia-lhe dizer-lhe que ela era
uma mulher magnífica, que não devia preocupar-se por algo que não mudava nada do que ela era e
que ele jamais iria julgá-la, mas o que quer que lhe dissesse não aliviava a culpa e a vergonha que
Lara sentia por ter sido abusada daquela forma. Puxou-a para si, e Lara encostou a cabeça ao peito
dele soluçando.
- Lara…- e puxou-lhe o queixo para cima encarando-a nos olhos. – Não tens que ter vergonha.
Para mim és a mesma pessoa, mas entendo, é contigo que estás em conflito.
- É. Devia tê-lo deixado desde o dia em que ele me bateu a primeira vez. Mas ele dizia-me
sempre que se eu o abandonasse podia acontecer alguma coisa à minha família. O que fui
descobrindo ao longo do tempo, conversas veladas ao telefone, viagens misteriosas, saídas nocturnas
várias vezes na semana, não me restaram dúvidas do que ele era. Enganava todos com a sua simpatia
e com o estilo de vida que levava. Pedro é rico. A avó deixou-lhe uma fortuna em imóveis na cidade
de Lisboa que lhe rende dinheiro suficiente para não precisar de trabalhar e viver muito bem, e o que
ganha como advogado a defender criminosos e traficantes de drogas rende-lhe fortunas. O dia em que
ele me levou a um «encontro cego», foi o fim da linha. Não aguentava mais. O que veio a seguir foi a
pior prova que passei na minha vida. Julguei não conseguir.
Mansur escutava-a no mais absoluto silêncio, sentado a seu lado no chão da sala.
Lara contara-lhe a sua história por entre lágrimas, embora duvidasse que ele notasse que ela
estava a chorar. Falava com ele sem emoção na voz, quase em transe, como se os acontecimentos se
tivessem passado com outra pessoa. Quando a voz dela por fim se calou, Mansur sentia-se nauseado.
Lara não teve coragem de olhar para ele enquanto falava. Mansur já lera uma versão da mesma
história, nos emails que ela lhe mandou, mas desta feita era diferente. Lara não era uma simples
vítima, era a mulher por quem se apaixonara. Prendeu-lhe uma madeixa solta do cabelo atrás da
orelha e, ao sentir o seu toque, ela começou por se retrair ligeiramente e só depois descontraiu.
Ouviu-a soltar um suspiro, um suspiro cansado. Cansada de falar, cansada do passado.
- Fizeste bem em fugir. – disse ele, num tom calmo e compreensivo.
- Eu sei.
- Fizeste o que foi preciso para sobreviver. – salientou ele.
- Lamento ter-te contado tudo isto – disse com a voz embargada. – Não foi boa ideia.
- Ainda bem que contaste. – afirmou.
- O único motivo porque contei foi porque tu já sabias.
- Eu sei.
- Mas não precisavas de ficar ao corrente dos pormenores do que eu era obrigada a fazer.
- Não tem importância. Há coisas que é melhor deitar para fora, senão podem envenenar-nos, e
este segredo que carregavas contigo acabava por funcionar dessa forma.
- Odeio-o. – desabafou. – Mas também me odeio a mim própria por ter consentido tempo
demais.
Ao vê-la outra vez à beira das lágrimas, Mansur acabou por se levantar do chão. Puxou-lhe pela
mão, a pedir-lhe que se levantasse também. Lara acedeu mas continuava com o olhar pregado no
chão. Mansur tentou conter a raiva que sentia do marido dela e manteve a voz baixa.
- Ouve. – e com a ajuda de um dedo levantou-lhe o queixo. Lara resistiu mas depois cedeu
olhando finalmente para ele.
- Nada do que possas dizer é capaz de alterar os meus sentimentos por ti. Nada. Porque não és
tu que está em causa. Tu és a mulher que eu conheci e amo.
- Mas…
- Não há mas, nem meio mas – interrompeu-a – tu vês-te como uma pessoa incapaz de escapar.
Eu vejo a mulher corajosa que conseguiu escapar. Tu vês-te como uma pessoa que devia sentir
vergonha ou culpa por deixar aconteceu o que aconteceu. Eu vejo uma mulher, bonita, talentosa, e que
deveria estar orgulhosa de si mesma. Poucas mulheres possuem a força para fazer o que fizeste. Só
lamento que tenhas sido obrigada a passar por isso.
- Ainda estou a passar por isso.
- Tens medo que ele te procure?
- Eu tenho a certeza que ele anda à minha procura. Anda e sempre andará. – fez uma pausa. –
Ele tem um problema qualquer…é
- Um manual de psicopatologia. – atalhou ele dando um toque de humor à coisa.
Lara riu-se. Só mesmo Mansur para se lembrar de uma piada com humor negro.
- Nada me convence que Pedro não está por detrás do acidente do meu irmão e de ter sido ele a
mandar espancá-lo mais tarde.
- Nunca fizeste queixa à polícia?
- Não valia de nada. Ele tem muitos conhecimentos, e ainda me internava por loucura. Avisou-
me muitas vezes que perdia o meu tempo a fazer queixa. Ele é um dos melhores advogados do país,
conhecido por ser implacável e arrasar em tribunal. Mais tarde ou mais cedo vai encontrar-me e
desta vez mata-me, como fez à avó.
Mansur estremeceu.
- Como? Achas que…
- Morte por asfixia, dizia a certidão de óbito. Asfixiada pelo próprio vómito enquanto dormia.
Muito conveniente. O Pedro tem uma história de vida estranha.
E não se atreveu a falar nos cadernos.
Capítulo Quinze

Pedro Almeida acabara de chegar à galeria onde decorria a inauguração dos quadros de
Francisco Santiago, primo de Lara. Todas as mulheres admiravam o charme e a segurança do senhor
doutor Pedro Almeida. Muita saliva tinha sido gasta em conjecturas sobre a vida do homem mas nada
fora provado. O que se dizia à boca pequena pelas festas mundanas que ele frequentava, não
passavam de calúnias – proclamavam as admiradoras de Pedro esperando que nem lobas entocadas à
espera que o casamento dele com Lara ruísse.
- Lara viajou para Paris novamente, o cliente exigiu a presença dela enquanto o processo de
fabrico dos tecidos está em andamento. Vai estar ausente algum tempo. – explicava à esposa do
primo de Lara.
- Há quanto tempo foi? Não disseste nada? – perguntou Sofia, a esposa de Francisco e uma das
pessoas que não simpatizava com Pedro, embora fosse sempre educada quando se lhe dirigia.
- Há quatro dias.
Os empregados de mesa circulavam com bandejas de bebidas e canapés. Pedro serviu-se de um
whisky, pediu licença a Sofia e afastou-se em direcção a um conhecido seu. Detestava Sofia.
- O que se passa com ele? – perguntou Francisco.
Sofia encolheu os ombros para o marido e fez uma careta.
- Isto não me agrada. Ela não me atende o telefone desde segunda-feira e hoje é sábado. Nunca
gostei deste homem. E não percebo o que as mulheres vêem nele.
- Bem, deixa lá isso. Daqui a pouco falo com o meu tio sobre Lara, ele decerto sabe o que se
passa. Vou conversar com as pessoas, fica bem o pintor falar com os convidados, afinal o artista sou
eu. – disse Francisco com ironia apontando para si próprio em tom de brincadeira, algo que lhe era
característico.
- Ah claro! Mas olha quem atrai atenções. – e apontou na direcção de Pedro. – Descuida-te e ele
ainda te vende os quadros dizendo que são dele. Homenzinho horrível! – vociferou Sofia em voz
baixa.
- Gostas mesmo dele. – ironizou Francisco.
Sofia fez uma careta ao marido e circulou pela galeria recebendo os convidados. Mais tarde
iriam comemorar a inauguração da exposição com um grupo restrito de amigos onde Pedro não se
incluía.
Pedro estava rodeado de mulheres e alguns homens e dissertava acerca de qualquer assunto para
uma assistência que quase se babava para o seu metro e setenta e oito, corpo bem definido, rosto
cuidado, olhos azuis, cabelo preto azeviche e uns lábios sempre sorridentes.
Só estava ali, porque não queria dar azo a comentários e para tentar perceber se alguém sabia
alguma coisa de Lara.
Passadas duas horas em que conversou com todos os convidados da festa que conheciam a sua
esposa, desistiu. Nem o pai e o irmão de Lara apareceram. Ninguém sabia nada, nem aqueles idiotas
do Francisco e da Sofia que sempre fizeram vista grossa ao casamento dos dois.
De regresso a casa, Pedro atravessou a sala de estar e resistiu à tentação de chamar Lara. Se ela
estivesse ali a cama estava aberta, o seu roupão de seda estava estendido em cima da cama à espera
que ele o vestisse e ela estaria ali a ajudá-lo a tirar a roupa. Depois enchia a banheira de
hidromassagem e enfiava-se lá dentro com ele. Lara era sua, e só ele podia decidir o seu destino.
Abriu o roupeiro e observou a roupa dela: os vestidos caros que lhe oferecia, os sapatos, a roupa
interior, as blusas e calças, tudo sem qualquer uso. Até a mala de viagem Louis Vuitton estava na
prateleira de cima. Lara não levara nada de casa. Nem o computador onde trabalhava.
Não ia permitir que começassem a fazer comentários sobre eles, antes que isso acontecesse ia
descobri-la. E quando a descobrisse ela ficaria com pouca vontade de fugir novamente. Abriu o
frigorífico. Vazio. Lara tinha sempre o cuidado de o rechear com acepipes de que ele gostava: caviar,
fois gras, presunto e bebidas. A raiva subiu-lhe pela garganta e crispou as mãos. Subestimou as
capacidades dela. Talvez tivesse aprendido alguma coisa com ele, afinal – pensou. Sabia que ela não
estava morta. Lara encenara qualquer coisa – que ele ainda não descobrira – e fugiu sem deixar rasto.
Amanhã resolvia o assunto. Tinha a pessoa certa para a descobrir.
Nunca se arrependia de nada que fazia, mas não a devia ter levado ao encontro em Azeitão. Ela
não era desse calibre, nunca aceitaria tal coisa e ele devia saber isso. Durante anos conseguiu manter
uma vida dupla e logo agora estragou tudo. A irritação por ter cometido um erro grande, quase lhe
rebentava os miolos. Devia ter-lhe pedido perdão. Lara aceitava sempre as suas desculpas. Despiu-
se e sentou-se na cama. Abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e tirou uma caixa de alprazolan.
Engoliu dois comprimidos. Foi até à sala, encheu um copo de whisky, uma garrafa de reserva com
doze anos, bebeu-o de um trago e tornou a enchê-lo antes de começar a deambular pela casa com a
garrafa na mão. A ausência de Lara provocava-lhe uma grande mágoa e muita raiva, mas se ela
aparecesse agora, Pedro sabia que lhe pediria desculpa e que acabariam por se reconciliar e fazer
amor no quarto, algo que ele não fazia com as outras mulheres, com outras mulheres fodia. Estava
desejoso de a abraçar e de lhe dizer o quanto a amava. Desde o dia em que André os apresentara há
quatro anos atrás, quando era o patrono do irmão dela que a escolher para esposa. Lara tinha o perfil
para ser uma esposa dedicada. Sabia que ela não ia voltar e apesar de a amar havia alturas em que
ela o enfurecia a sério. Uma esposa não abandona o marido assim. Apetecia-lhe esmurrá-la, dar-lhe
pontapés com força por ser estúpida aquele ponto e apertar-lhe a garganta. Seriam tão mais felizes se
ela gostasse das mesmas coisas que ele. Se ela alinhasse nos encontros, se ela quisesse ir com ele
aos clubes em Praga. Mas Lara era uma parola puritana. Só pensava nela própria. Em breve ia
mostrar-lhe que não valia a pena fugir. Era tudo tão confuso na sua mente. A casa estava vazia e suja.
Não entendia porque a mulher da limpeza não aparecia há uma semana se continuava a pagar-lhe.
Descalço, em tronco nu e apenas com as calças vestidas bebia copos de whisky de enfiada.
A porta da casa de banho do quarto deles estava lascada junto à fechadura. Pedro assentara-lhe
um pontapé numa ocasião em que Lara se trancara lá dentro. Esmurrou-a e pontapeou-a na sala e ela
correu para o quarto e escondeu-se na casa de banho. Pedro fora atrás dela e abriu a porta como o
faria o Van Damme ou Steve Seagal - ao pontapé. Já nem se recordava do motivo da zanga, só sabia
que ela ficara de cama uma semana e não a deixou ir ao hospital até as nodoas negras passarem.
Todos os dias lhe fazia massagens de Trombocid na cara, nas pernas, por onde houvesse carne negra.
Durante quase duas semanas Lara não conseguiu trabalhar. Os olhos estavam tão inchados que
impediam a visão. Passou dias e dias com sacos de gelo em cima da cara para atenuar o inchaço.
Três semanas depois comprou-lhe um vestido de noite caro e convidou-a para jantar e ir ao
teatro. Ela era tão bonita que tinha orgulho em desfilar com ela em público. Formavam um casal
perfeito, era a frase que mais ouvia quando frequentavam algum evento social.
Capítulo Dezasseis

Dia após dia Lara e Mansur descobriam que tinham mais coisas em comum do que imaginavam.
Não era apenas a centelha da paixão que fervilhava entre eles, era também a calma, a serenidade e a
paz que transmitiam um ao outro. Lara rendeu-se aos encantos da vida simples do deserto, mas com
as comodidades que precisava para trabalhar à distância como sempre fizera. Quando Mansur não
acompanhava turistas ao deserto, passavam os dias a conversar, a rir de tudo e nada e a trabalhar.
Lara gostava de desenhar e Mansur também e, nas últimas semanas tinham ensaiado misturar os
conhecimentos de cada um. Os padrões que Lara desenhava passaram a fazer parte dos azulejos e
mosaicos personalizados para casas que Mansur desenhava para clientes excêntricos.
- A minha mãe era uma pintora contemporânea conceituada, para além de dar aulas. Cresci a vê-
la desenhar e por mais que o meu pai me tentasse levar a mim e a Hamed a interessarmo-nos pelo
negócio da loja de produtos marroquinos, sempre fugimos de lá. O meu sonho era desenhar mas o
velho Faruk dizia que isso não era trabalho de homem e que rendesse dinheiro. Durante um tempo
isso revoltou-me imenso e cheguei a odiá-lo, aquelas coisas dos adolescentes…entendes? –
perguntou.
Lara assentiu com a cabeça e Mansur continuou. - Hamed virou-se para a informática e entrou
na universidade mal terminou o secundário. Já eu… bom…já sabes que fui um delinquente…
- Nem tanto amor. És muito duro contigo. – abraçou-o pelas costas aspirando o aroma dos
cabelos acabados de lavar.
- Estava a testar-te. – e beijou-a nos lábios com paixão e puxou-a mais para si. Há horas que
estavam ali sentados no chão da sala a conversar. O amor entre os dois era visível mesmo para quem
não soubesse. Emanavam uma aura de felicidade em redor deles. Lara escutava atentamente – agora
era a vez de ele fazer confidências – e Mansur falava de si.
– Mas foi complicado gerir a minha relação com Marcel quando o meu pai soube da existência
dele. Não conseguia evitar ter ciúmes da minha mãe, embora ela nunca mais se aproximasse de
Marcel desde que terminaram o namoro. O meu pai esteve um tempo sem me dirigir a palavra.
Marcel ensinou-me tudo o que sei. Incentivou-me a ir para arquitectura e quando entrei na faculdade
já desenhava casas e jardins que ele transformava em projectos. Quando terminei a universidade fui
trabalhar com ele e quando Marcel se reformou fiquei com o gabinete. Marcel não casou nem teve
filhos, viu em mim o filho que não teve e ajudou-me. Sou-lhe eternamente grato por isso, mas sei que
o facto de ser filho de Pauline Janvier teve um peso muito grande. No fundo eu era o filho que ele
queria ter tido com ela.
- E o teu pai?
- Passou a tolerar. Mas tivemos uma longa conversa os três homens, quando a minha mãe já
estava doente. Foram anos muito complicados e o meu pai quase enlouqueceu com a doença dela. Já
passaram dois anos sobre a sua morte e tenho imensas saudades dela.
- É…entendo… mal me lembro da minha mãe, tinha cinco anos quando ela morreu, e embora a
Cristina me tenha dado muito amor, senti falta dela de igual forma.
- Nas derradeiras semanas de vida da minha mãe, o velho Faruk manteve uma presença
constante à sua cabeceira. Embora ela passasse a maior parte do tempo a dormir com sedativos para
aguentar as dores, ele não queria perder os raros instantes em que ela estava acordada, por muito
breves que pudessem ser.
- Só não entendo o que é que a tua mãe tinha em comum com o teu pai? Parecem pessoas tão
diferentes.
- E eram. Mas a paixão que o meu pai tinha por ela, venceu-a. Ele sabia ser sedutor e era um
homem esclarecido, apesar de viver do comércio. Lia muito e tinha uma cultura acima da média para
um marroquino tinha apenas o ensino médio. Pouco dado a convenções sociais e religiosas
confrontou sempre o meu avô e acabou por sair de Marraquexe quando conheceu a minha mãe. Não
foi fácil manterem-se juntos, havia conflitos, mas o amor dos dois superou tudo. Nunca desistiram.
O silêncio instalou-se durante uns momentos. Partilhar afectos dolorosos não era fácil. Mansur
quebrou o momento.
- Vamos trabalhar. Prometeste ajudar-me no projecto e tenho dois dias para o mandar para
Marcel, senão ele abandona-me como já ameaçou. – disse a sorrir.

Lara gostava demasiado de Mansur para seu próprio bem. Sabia que estava a enveredar por um
caminho perigoso. Contar-lhe o seu passado, parecera-lhe a decisão mais acertada e desabafar
permitia-lhe livrar-se do fardo pesado dos seus segredos. Todavia, seria apenas uma questão de
tempo até Pedro a encontrar. Não contara a Mansur que Pedro era dotado de uma capacidade sinistra
de associar factos aleatórios e descobrir segredos bem escondidos. Sabia sempre onde desencantar
testemunhas fulcrais que criavam uma brecha no caso que defendia e quase sempre ganhava as causas
que outros advogados não aceitavam. Pedro tinha mente de criminoso, por isso sabia como os
defender.
Porém, à medida que as semanas iam passando, sentiu os seus receios a aquietar. Mansur
comportava-se como se as revelações que ela lhe confidenciou não tivessem qualquer relação com a
vida dela e os dias foram passando livres de sombras do passado de Lara. Quando faziam amor, o
que acontecia com uma frequência surpreendente, tinham a certeza que estavam destinados um ao
outro. Lara mudara-se por completo para casa de Mansur e Hamed não largava Ema. Tudo parecia
estar no seu lugar.
Entretanto a mais de mil quilómetros de Ouarzazate, o inspector Fontes tentava saber quando é
que a rapariga podia prestar declarações à polícia judiciária. Fora encontrada há três semanas por
um guarda-florestal quando fazia a ronda habitual pela serra. Os paramédicos ficaram horrorizados
com o estado de Suzi. A face parecia uma massa negra sem contornos, os olhos não se viam
afundados numa poça de sangue e o pescoço tinha um vergão negro como se uma corda o tivesse
apertado até a estrangular e as cordas vocais estavam com lesões.
- Está sedada inspector, e vai continuar assim até a cara cicatrizar. Se ela acordar e se vir ao
espelho é capaz de ter um surto psicótico, ou suicidar-se, a pobre rapariga ficou com a cara
desfigurada. – informou o médico de serviço.
- Obrigado, mas qualquer alteração que haja informe-nos. Por precaução fica um polícia de
vigilância vinte e quatros por dia na porta do quarto. Quem fez isto pensa que a matou, e se descobrir
que falhou pode tentar terminar o serviço.
- Quem fez isto é muito doente. – disse o médico.
- Creio que estamos a falar de um psicopata? – perguntou o detective e o médico concordou. -
Já fez várias vítimas em casas de alterne. Há uns anos uma foi estrangulada num quarto de uma casa
clandestina da mesma forma que esta, mas teve menos sorte. Morreu. Um empreiteiro foi indiciado,
mas acabou por ser ilibado em tribunal por …um advogado bem esperto.
E quanto mais pensava no caso mais as pontas se iam juntando.
Estava na polícia há mais de vinte anos e já vira muita coisa na área do crime, mas psicopatas
apareciam poucos. Restava-lhe uma tarefa ingrata, informar a família da rapariga que vivia na
província, e que desconhecia o que se passava com a filha. Suzi era apenas um nome de guerra, na
realidade chamava-se Joana Silva, estudava informática e vivia uma vida dupla. De dia estudava, de
noite vestia a pele de Suzi, a acompanhante de luxo. O dinheiro permitia-lhe ter acesso a bens
materiais que os pais nunca lhe puderam proporcionar.

Cristina Santiago fez sinal ao marido que não se levantasse do sofá. Dirigiu-se à porta quando a
campainha tocou. Olhou para o vídeo porteiro, mas não conheceu os dois homens. Por precaução não
abriu sem perguntar quem eram.
- Policia Judiciária minha senhora, queremos falar com a família do senhor André Santiago.
Francisco ouviu a conversa, levantou-se de onde estava e dirigiu-se à porta. Olhou para a
esposa e ficaram os dois apreensivos, embora já esperassem que mais cedo ou mais tarde a policia
os procurasse. Os vincos profundos na face de Francisco denotavam o sofrimento e a preocupação.
Há meses que não a via a filha e depois André foi vítima de assalto e quase perdia a vida.
- Inspectores da polícia judiciária. Lopes e Ventura. – apontou para o colega a seu lado e os
dois mostraram a identificação. - Queríamos fazer-lhe algumas perguntas.
Francisco convidou-os a entrarem. De certa forma sentia-se aliviado por estarem ali. Chegara a
altura de desvendar alguns segredos.
Meia hora depois o casal estava aliviado, mas com razões para temeram pela vida da filha.
- Sabe inspector, a minha filha fugiu para defender a vida. Se ela tivesse ficado talvez já não
estivesse viva. Nós todos corremos perigo. Ninguém imagina o que aquele psicopata é capaz de
fazer. Depois que ela partiu eu e o meu filho tivemos acidentes completamente despropositados, até
que André ia perdendo a vida, como sabe.
O inspector assentiu.
- Estamos quase a chegar ao ponto onde queríamos. Falta-nos apenas comparar amostras de
ADN. Mas não encontramos o seu genro. Parece ter-se evaporado.
Capítulo Dezassete

- Vou voltar tarde querida. – disse Pedro despedindo-se dela com um beijo na boca. – O
julgamento deve ser demorado, importas-te de jantar sozinha?
- Não. Claro que não. Tenho imensa coisa para fazer. Sabes que eu me entretenho com os meus
desenhos.
- Só mesmo como distracção. Não te quero a trabalhar, seja para quem for. – avisou-a.
- Claro. – apressou-se a concordar, não queria enfurece-lo, não agora.
Passou-lhe a pasta de couro castanho, e abriu-lhe a porta ficando a vê-lo entrar no elevador.
Este ritual mantinha-se desde que se casaram há dois anos.
Quando Pedro saiu, Lara foi postar-se à janela, a vê-lo sair do túnel da garagem e entrar na
movimentada avenida com o seu mercedes ultimo modelo. Mal o perdeu de vista entrou no quarto,
trocou a saia e a blusa que tinha vestido para calças de ganga, t-shirt, botas e blusão de motard.
Abriu o roupeiro e do fundo de uma gaveta retirou uma cabeleira loira. Atou o cabelo e prendeu-o
numa rede. Por cima colocou a cabeleira. Um pouco de baton, óculos escuros e estava
irreconhecível. Só de pensar no que vinha a seguir ficou atordoada.
Dentro da mochila previamente preparada e escondida dentro da mala de viagem Louis Vuitton
tinha tudo o que precisava: duas mudas de roupa, um par de ténis, duas pen-drive com toda a
informação retirada do computador que não ia levar, dinheiro e um computador novo. Retirou o
dinheiro da conta onde os costureiros franceses lhe depositavam o pagamento pelo seu trabalho e
encerrou a conta. Fazia um ano que Pedro pensava que ela não trabalhava, mas Lara continuava a
trabalhar e juntou um bom pé-de-meia. Na tarde anterior apagara a informação do disco rígido do
computador pessoal e, disfarçada com a cabeleira e a roupa saiu do prédio tentando testar o disfarce
e também para comprar outro computador.
Chegara o dia. Saiu de casa assim que Pedro foi para o escritório e prometera a si própria não
olhar para trás. Dentro de uma hora estava entregar o jipe. Meteu um anúncio na internet a oferecer
um serviço bem remunerado e depressa encontrou o candidato. A troco de uma quantia avultada o
homem comprometeu-se a fazer desaparecer o carro num local que ela indicava. O homem podia não
cumprir a promessa e ficar com o dinheiro e com o jipe, mas estava disposta a arriscar. Era a sua
vida que estava em jogo.
O homem na casa dos quarenta, com aspecto jovem, blusão de cabedal preto, cabelo curto e
louro já estava sentado na esplanada do quiosque. Lara aproximou-se, perguntou-lhe se podia sentar-
se – ele assentiu - e pediu um café ao empregado que se aproximara da mesa assim que se sentou. O
homem olhou para ela com curiosidade mas não fez qualquer comentário. Lara colocou as chaves em
cima da mesa e um envelope volumoso que o homem enfiou no bolso interno do blusão de cabedal
preto. Era cedo e a esplanada estava deserta. Pouco passava das nove da manhã. Olhou para ela à
espera de instruções e verificou que ela estava muito bem disfarçada. Como é que seria sem os
acessórios que usava para despistar quem quer que fosse.
- É só fazer o que eu lhe pedi, hoje de noite sem falta. Não sei quem você é, nem quero saber, só
quero que me garanta que cumpre.
- Só uma pergunta, por favor satisfaça-me a curiosidade. Cometeu algum crime? Matou alguém?
- Não. Mas se tivesse feito, fazia diferença?
- Não. – respondeu com ar de tanto faz. - Mas é motard, certo?
Lara estranhou a pergunta, mas depois percebeu que estava vestida dessa forma.
- Fui, há uns anos atrás. O blusão é dessa altura.
- Porque pergunta?
- Tem estilo.
Lara levantou-se da cadeira sem responder ao piropo e sem tocar no café desaparecendo em
direcção à praça de táxis com a mochila às costas. O homem recolheu as chaves e sorriu. Aquele
dinheiro iria salvá-lo de apuros e era dinheiro honesto, mas se não fosse o problema não era dele.
Dinheiro era dinheiro viesse de onde viesse.

Lara saiu do táxi no Chiado e desceu até ao Rossio a pé. Ia começar a segunda parte do plano.
Entrou na loja e começou a observar a montra. Encontrou o que queria, um iphone 6. Pagou em
dinheiro e pediu ao funcionário que lhe passasse a informação do seu telemóvel para o novo iphone
com um novo número e, meia hora depois saia da loja em direcção à casa dos pais.
Quando o pai lhe abriu a porta não a reconheceu.
- Lara, se não fosse a tua voz, não te abria a porta. Porque é que estás assim?
Lara olhou para o pai e os dois entenderam-se sem precisarem falar. Francisco sabia que um dia
ia acontecer algo, mas sempre temeu que fosse uma tragédia. Mas se a filha ia partir era sinal que
havia esperança para ela.
- Para onde vais?
- Não te posso dizer. Quando chegar aviso-te. Pai… vou levar a mota do André. Pede-lhe
perdão por mim, mas é a única maneira de eu sair daqui sem que Pedro me persiga. Ele tem o meu
telemóvel controlado e o meu carro também. Penso que hoje consegui despistar o homem que ele
contratou para me vigiar. Passei por ele várias vezes com este disfarce e ele não me seguiu.
Francisco abraçou a filha e uma lágrima correu-lhe pelo canto do olho. Não sabia quando a
voltaria a ver. As pernas tremeram-lhe e as palavras que proferiu saíram-lhe entarameladas.
- Filha, não faças nada que te ponha em perigo.
- Vou tentar encontrar a paz e o discernimento noutro lugar para me livrar de Pedro. Aqui não
tenho força mental e um dia posso fazer uma loucura, ou… ele matar-me. – pela primeira vez
conseguiu falar sobre o seu receio. - Desculpa paizinho, tinhas razão, tu e o André. Já não aguento
mais esta vida. – e agarrou-se com força ao pescoço do pai.
Cristina estava hirta a observá-los. Não suportava ver o marido e a enteada a quem criara como
filha naquela situação absurda.
- Ninguém adivinha o que vai na alma das pessoas, filha. Tu não podias saber o que estava por
detrás daquela máscara de simpatia. – disse Cristina na tentativa de a consolar.
Todos sabiam que Pedro não era o que aparentava e que Lara vivia infeliz. Por muito tempo,
ninguém percebeu porque é Lara não se divorciava, mas depois descobriram que o homem era
perigoso e que o medo comandava a vida dela. Lara estava apenas a tentar encontrar uma solução
para sobreviver.
Abraçou Cristina e saiu sem olhar para trás. As lágrimas cegavam-na e mal via por onde
caminhava.

Lara acelerava a mota o máximo que podia sem transpor o limite de velocidade. Fazia tanto
tempo que não andava de mota que já desaprendera os truques de fuga à polícia. Conduzia junto ao
rio Tejo, pelas docas, em direcção à ponte Vasco da Gama e, apesar de saber que ia escapar, os
nervos estavam ao rubro. Já ouvira o telemóvel várias vezes dentro da mochila que transportava às
costas. Pedro ligava-lhe para a controlar a qualquer hora do dia ou da noite. Parou a mota junto a um
contentor do lixo e jogou o aparelho sofisticado lá para dentro. Não ia incomodar mais. Subiu de
novo na Yamaha, acelerou e pôs-se em fuga. Restava-lhe pouco tempo para atravessar a fronteira e
desaparecer do outro lado do estreito de Gibraltar. Agradecia ao irmão que a ensinou a andar de
mota antes de Pedro aparecer na sua vida. Mas não sabia se André lhe ia perdoar por lhe ter levado a
“sua menina”, a sua mota. Todos os motards tinham uma relação especial com as suas máquinas,
tratavam-nas como se fossem um prolongamento deles próprios, e ela entendia porquê. A sensação de
liberdade é indiscritível: homem e máquina fazem um só percorrendo o asfalto. Ao anoitecer estaria
na capital Marroquina e, no dia a seguir chegava a Marraquexe. Mas, até lá ainda tinha providências
a tomar.
Viu nuvens ao largo no horizonte, vindas do mar e esperava que não desabassem antes de chegar
a Faro, não era agradável conduzir uma mota sob chuva e de vez em quando sentia uns salpicos na
cara que depressa secavam com o vento.
Pela leitura que o GPS indicava, estava a chegar ao local combinado. Avistou o número pintado
por cima do portão basculante e estacionou a mota. Tocou à campainha e um homem abriu-lhe a porta
sem fazer perguntas. Era o combinado. Entregou as chaves e o capacete e o homem estendeu-lhe as
chaves do carro e os documentos. Entrou no carro, atirou a mochila para o banco de trás e saiu pelo
portão. Acelerou pela rua deserta e viu a mota de André desaparecer por detrás do portão, através do
espelho retrovisor. Arrancou a cabeleira loura e sacudiu a cabeça para soltar o farto cabelo
comprido.
A fome começou a fazer-se sentir com uma impressão de ter um buraco no estomago por
preencher. Estava na hora de parar para comprar comida e depois seguir viagem até Algeciras.
Oito horas depois o GPS indicava que estava a chegar a Rabat, faltavam apenas cinco
quilómetros, mas a ausência de luz era total. Quase não acreditava estar na estrada certa.
Ocasionalmente avistava uma luz ténue ao longe, vinda de alguma casa de pastores nas encostas das
montanhas. As estradas eram desertas e medonhas, sem qualquer luz a indicar que estava em terra
habitada.
Faltavam três quilómetros para chegar ao hotel que reservara pela internet e nem uma única luz
era visível. De repente viu um clarão no céu ao longe. Era o primeiro dos muitos candeeiros da
extensa avenida fronteira ao palácio real que desembocava na cidade.
Avistou a placa a indicar a rua e o hotel. Lara virou à direita e seguiu pela movimenta avenida.
Carros circulavam em várias direcções num movimento apressado e um tanto desordenado. Pessoas
atravessavam as passadeiras e, lá adiante, adivinhava-se a entrada da Medina pelo bulício de
pessoas indo e vindo naquela direcção. Assadores improvisados em bidões de combustível, assavam
espetadas de carneiro. Lara sentiu o cheiro a comida a entrar pela janela do carro. Noutra
circunstância iria aventurar-se por ali e descobrir a gastronomia e a cultura daquele povo que mal
conhecia e de quem Ema falava com carinho, mas hoje não podia. O GPS indicava-lhe que virasse à
esquerda e lá estava o hotel de dez andares com as janelas iluminadas. Chegara finalmente.
Estacionou o carro a vinte metros da entrada do hotel e respirou de alívio. Metade do percurso já
estava cumprido, restava agora passar a noite e amanhã estaria no deserto a salvo.
Capítulo Dezoito

Acordou em sobressalto. Um lamurio de alguém a falar muito alto entrou-lhe pelos tímpanos.
Adormeceu de exaustão já a madrugada ia longe, o medo e a excitação impediam-na de conciliar o
sono. Só o cansaço físico venceu a mente sempre alerta. Passados uns segundos identificou o
chamamento para a primeira oração do dia e isso recordou-lhe onde estava. O imã chamava os fiéis.
Olhou para o relógio de pulso. Marcava cinco e meia da manhã. Voltou a fechar os olhos e tentou
conciliar o sono. Não havia um único musculo do corpo que não lhe doesse. A energia despendida na
fuga deixara-a exausta. Pedro devia andar louco a tentar encontrá-la. Atrevia-se a reconstituir os
passos dele: a esta hora já telefonara a todas as suas amigas - as amigas com quem ele a tinha
proibido de conviver, ao pai e ao irmão e já devia ter feito ameaças veladas a todos, como ele tão
bem sabia fazer - para saber o seu paradeiro. Temia pela vida da família. Só ela conhecia o
verdadeiro Pedro e do que ele era capaz. Para além do que já lhe fizera desde o casamento, o que
descobriu naquela tarde em que a curiosidade por saber quem era na verdade o verdadeiro Pedro,
falou mais alto que o bom senso, deixou-a aterrada e a temer pela vida a partir desse dia.
Pedro mantinha a casa da avó, uma residência dos finais do século dezanove - intacta e bem
conservada- na família há várias gerações, mas não a utilizava nem deixava alguém aproximar-se o
que era no mínimo intrigante. Lara adorava a casa apalaçada, com dois andares, quartos grandes com
paredes forradas com sedas em tons pastel, tectos altos trabalhados em gesso, madeiras pintadas,
janelas amplas e muita luz. Uma sala grande com uma lareira de ferro fundido e um conjunto de
pequenas saletas que permitiam privacidade a uma família numerosa que ali habitasse. Toda a casa
era rodeada por um jardim com árvores e canteiros floridos cuidados por um jardineiro,
semanalmente. Um desperdício. Visitou-a apenas uma vez, no início do namoro e, quando Lara o
questionou, sobre a possibilidade de viverem ali, Pedro disse que a casa não tinha condições.
Precisava de obras e ficavam muito dispendiosas, estava a considerar vendê-la. Mas passou um ano
e outro e a casa manteve-se igual. Uma tarde, depois daquela noite horrível em que a obrigou a ir
àquele encontro nojento, aproveitando uma das viagens em que o marido ficava vários dias fora do
país e sabendo onde guardava a chave, pegou nela e foi até lá. Talvez estivesse ali a resposta que
procurava às dúvidas que tinha sobre o homem com quem casou. Quem era na verdade Pedro
Almeida?
Ao entrar na casa sentiu um ambiente pesado, como se fosse habitada por fantasmas a
deambularem pelas paredes e a trespassarem-na deixando-lhe uma sensação de frio interno.
Estremeceu e as mãos tremeram-lhe. O soalho antigo rangeu como se alguém andasse no piso
superior em passos lentos. Lara passou os braços em volta do corpo e subiu as escadas, aterrorizada
como se fosse perseguida e à espera de esbarrar em alguém. Sentiu uma presença sinistra. Os pelos
dos braços ficaram completamente eriçados e o corpo gelado. A casa emanava qualquer coisa de
tétrico, como se as paredes a quisessem avisar de algum perigo. Havia cheiro a morte em todo o
lado. Ou era imaginação ou parecia-lhe ouvir gritos de uma criança a ser espancada e a chorar.
Apelou à racionalidade e tentou acalmar-se. Estava sugestionada por ter entrado clandestina, à
socapa, e pelo que Pedro já lhe fizera - pensou. O que é que a casa tinha que ver com a selvajaria do
marido? Procurava respostas e esperava encontrá-las, mas era ingenuidade pensar resolver o
mistério da vida de Pedro com uma simples visita à casa onde cresceu. Não ia encontrar nada.
Começou pelo andar superior, pelo quarto que parecia ter sido o da velha senhora, já falecido
quando Lara conheceu Pedro. Uma cama de dossel forrada por uma colcha de veludo azul e um
toucador com todos os objectos intactos, como se a dona ainda ali estivesse. Uma caixa de pó de
arroz que em tempos fora cor-de-rosa pálido, com o cartão amarelecido a assinalar a passagem dos
anos, um guarda-jóias contendo anéis, colares e pregadeiras, uma escova de prata com cerdas de
pelo de cavalo, e um livro de Edgar Allen Poe, a iluminar um pouco dos gostos da ocupante da
divisão. Tudo limpo e arrumado. Passou um dedo sobre a madeira do criado mudo. Nem uma
centelha de pó. A casa era limpa com regularidade. Nada do que observava fazia sentido naquele
momento. Que tipo de pessoa deixava uma casa como aquela- linda, ampla e bem conservada -,
fechada, e optava por viver num andar de uma torre de luxo? Que segredo encerrava Pedro ali?
Saiu do quarto sentindo uma presença forte, mas que não conseguia ver. Não acreditava em
fantasmas mas estava verdadeiramente assustada. Avançou mais uns metros no corredor ricamente
decorado com peças antigas, e abriu uma porta ao acaso das muitas que existiam. Um quarto de
homem – pensou ao entrar. Sim, era um quarto de homem. Paredes forradas a papel em tons de cinza
e azul claro, móveis simples e modernos, e uma estante contendo livros. Livros de advocacia. Era o
quarto de Pedro, tinha a certeza. Voltou a ter a sensação de ouvir uma criança a chorar. Estremeceu e
com uma atitude paranóica olhou em volta à procura de encontrar a criança. Nada. Era apenas a sua
imaginação a pregar-lhe partidas. Tentou acalmar-se e sentiu a pulsação a abrandar. O que poderia
acontecer-lhe? Estava em pleno dia e a casa estava deserta. Aproximou-se da escrivaninha onde
estavam empilhados alguns livros de literatura conhecidos e vários pisa papéis de vidro colorido,
pesados o suficiente para ao serem arremessados à cabeça de alguém provocarem morte instantânea.
Por detrás do móvel uma janela-porta deixava entrar a luz do dia, dando vida aquele espaço cuja
beleza transmitia algo ameaçador. Arrastou a cadeira e sentou-se. Livros, papéis soltos, cartas e
canetas de tinta. Várias canetas com marcas conhecidas pelo seu preço exorbitante. Era um
coleccionador de objectos caros. Duas gavetas. Uma de cada lado da mesa. Agarrou o puxador e fez
pressão. Para sua surpresa abriu. No interior muitos cadernos pretos com capa de cartão. Cadernos
vulgares de apontamentos. Pegou num e abriu-o. Uma letra regular enchia a primeira página.
10 de Abril de 1989 – duas horas da madrugada.
Hoje fiz doze anos. Mais um ano que passa no caminho para me tornar adulto. A mãe ofereceu-
me um livro e no final da tarde organizou uma festa com os meus colegas de escola. Que chatice! Ter
que fazer boa cara àqueles estúpidos ignorantes que apenas sabem falar de futebol e filmes. O pai
apareceu bêbado mais uma vez. Que ódio! E depois a mãe desapareceu, foi para a rua, não suportava
estar na presença dele. A avó veio interceder pelo seu querido filho. Que o desculpasse, que ele era
assim e assado. A velha defende sempre o monstro. Gritei-lhe que se fosse embora e não me fizesse
passar vergonhas perante os meus colegas. Riu-se. Com aquele riso que um dia hei-de ver findar-se.
Já sabia. Tudo se ia repetir. A mãe ia voltar tarde, o pai ia chamar-lhe puta e bater-lhe e depois
era a minha vez. E foi. Entrou no meu quarto, sentou-se na cadeira da escrivaninha, chamou-me e fez-
me descer as calças. E depois bateu, bateu, bateu, bateu… indiferente aos meus gritos e só parou
quando eu deixei de gritar e talvez já lhe doesse a mão e eu já não sentisse nada. E as putas não me
acudiram. Nem uma nem outra.
Lara fechou o caderno com os dedos trémulos. Que espécie de monstro era aquele pai? Que
espécie de mãe e avó deixavam um adulto maltratar uma criança daquela forma? Colocou o caderno
dentro da gaveta e retirou outro ao acaso. A mesma caligrafia escrita a caneta de aparo, talvez com
alguma daquelas expostas na escrivaninha. O mistério começava a revelar-se.
11 de Agosto de 1990 – meia noite
O monstro morreu. Caiu das escadas, perdido de bêbado e partiu o pescoço. Como eu me ri.
Ninguém o vai tirar das profundezas da terra. Nunca mais me vai bater até o meu traseiro ficar negro
com a carne pisada e ferida, impedindo-me de me sentar sem dores durante semanas. Poupou-me o
trabalho de o despachar, se bem que teria sido um prazer enorme vê-lo a morrer com as minhas mãos
em volta daquele pescoço a apertar até partir. Como eu me ia sentir satisfeito! A velha está
inconsolável, chora dias inteiros a morte do seu amado filhinho. Odeio gente que chora.
Pela testa corriam-lhe pingas de suor. Lara limpou-as com as costas da mão e achou que
bastava. Mas, a curiosidade era mais forte que o medo. Enterrou o caderno no meio dos outros e
retirou outro ao acaso.
12 de Abril de 1999 – duas horas da madrugada
Hoje a velha estava especialmente chorosa pela morte do suíno, o filho querido que me sovava
até eu ter as nádegas em sangue. Quando me ouvia gritar, a minha querida avó, escondia-se nos
fundos do jardim para não tomar conhecimento. A porca, a outra que dizia ser minha mãe, nunca
estava, andava por ai em busca de algum garanhão que a fodesse melhor que o bêbado alguma vez foi
capaz de o fazer. Essa já se foi, desapareceu com um ricaço qualquer, não atrapalha mais e, a velha
chorou hoje pela última vez. Odeio gente que chora. «Não chores! Homem que é homem aguenta
porrada e cala-se. Maricas! Logo me havia de sair um maricas», berrava direito a mim exalando um
bafo nojento a whisky barato, «o meu velho batia-me todos os dias, foi assim que me tornei
homem»…e continuava a gritar comigo até se fartar.
Hoje aconteceu uma tragédia. Coitada, a avó morreu sufocada durante o sono no próprio
vómito.
Lara levantou-se de supetão, recuou arrastando a cadeira que bateu com estrondo na parede
atrás da escrivaninha, levou as mãos à boca para abafar o grito, sentiu um calafrio a percorrer-lhe o
corpo e a náusea a provocar-lhe espasmos de vómito. Não precisava de procurar mais, nem de mais
explicações. Aos vómitos e com as lágrimas a escorrem-lhe pela cara saiu a correr escada abaixo,
galgando vários degraus. Estatelou-se no chão ao saltar o último, torcendo um pé. Gritou de dor.
Agarrou-se ao pé e levantou-se a coxear. Tinha que sair daquela casa com urgência. Tudo fedia a
morte.
Dias depois, não conseguia ainda assentar o pé no chão. Tinha uma ruptura de ligamentos
provocada pelo entorse. Arrastava-se pela casa apoiada a uma bengala e quando Pedro chegou de
viagem encontrou-a naquele estado. Esperava no mínimo um interrogatório, ou um ralhete, mas, ao
invés disso ele ignorou-a. Trazia um ar de felicidade estampado na cara e, nessas alturas pouco lhe
ligava. Lara respirou de alívio, mas nesse mesmo dia à noite, quando Pedro chegou a casa, trazia o
semblante carregado.
- A chave da casa da minha avó, não estava na posição em que a deixei. Porque foste meter o
nariz nas minhas coisas?
Lara estremeceu de terror, mas tentou disfarçar. Recordou-se que não fora cuidadosa. Deixou
pistas.
- Não sei do que falas.
No instante seguinte, um punho fechado caiu-lhe na cabeça e derrubou-a da cadeira. Enroscou-
se sobre si própria – já sabia o que se seguia – e sentiu uns quantos pontapés a acertarem-lhe nas
costas e no ventre. Gritou e contorceu-se de dor. Pensou morrer ali naquele instante. Mas ele parou
de a pontapear tão depressa como começou.
- A seguir é o teu querido irmão, o advogadozinho medíocre e otário, e os teus queridos pais. É
só abrires a boca e já sabes o que acontece. – e virou-lhe as costas com um ar sereno como era
hábito nele. Raramente demonstrava emoções e arrependimento. As poucas vezes que lhe pediu
desculpa pela barbaridade dos seus actos foi no inicio do casamento.
Horas depois, com o corpo repleto de hematomas, começou a urinar sangue. Um dos pontapés
atingira-a no rim. Não podia ir ao hospital. A arrastar-se com esforço foi à caixa dos medicamentos e
tomou três comprimidos de anti-inflamatório, a dose mais alta que podia tomar e um valium para
adormecer rápido. Sabia que não acordava tão depressa e era o que pretendia: dormir para não sentir
a dor.
Nos dias que se seguiram, lembra-se vagamente de alguém a alimentar- soube depois ser a
mulher da limpeza que ia diariamente cuidar da casa- e de lhe dar medicamentos. Quando acordou
daquele transe, com o corpo doido e a alma em frangalhos, decidiu fugir. O encontro às escuras
acendeu uma campainha de alerta no seu cérebro e o espancamento deixou-a em alerta vermelho. Era
só o tempo de se refazer até conseguir planear a fuga e desaparecer no mundo se queria viver mais
algum tempo. Na próxima vez podia ser a última em que ficasse viva.
Capítulo Dezanove

- Raios! Era só o que me faltava! – resmungou. – Quem é que vai tirar esta porcaria daqui?- e
pregou um pontapé no grampo que prendia a roda.
Lara saiu do hotel pronta para se fazer à auto-estrada até Marraquexe e ao chegar ao carro
deparou-se com as rodas dianteiras trancadas. Olhou em todas as direcções em busca de ajuda, mas
àquela hora da manhã – passavam poucos minutos das nove – as pessoas passavam atarefadas para o
trabalho, sem que alguém lhe prestasse atenção. Por mais que estendesse o pescoço em busca de
algum polícia nas imediações, não vislumbrou nenhum. Com ar de desolação, a mochila às costas e
com vontade de chorar, encostou-se ao carro e deixou-se escorregar até ao chão enfiando a cabeça
entre os joelhos. Começava a não aguentar a tensão emocional sem desmoronar.
Ouviu uma voz fresca e jovem num francês misturado com árabe a perguntar-lhe se precisava de
ajuda. Levantou a cabeça de cima e deu de caras com um rapaz que não teria mais de doze anos.
- Sim. Onde é o posto da polícia, preciso que tirem a tranca do carro. – e apontou para a roda.
O garoto riu-se com ar de chacota.
Lara começava a enfurecer-se mas tendo em conta que estava num país estrangeiro - e fora da
Europa - tentou mantar a calma e pespegou um sorriso nos lábios.
- Eu vou chamar o senhor que tira a tranca. – disse o rapaz com descontracção.
- Shukran bezzef – agradeceu com as únicas palavras que sabia dizer em árabe.
O garoto saiu a correr em direcção a uma casa do outro lado da rua e voltou logo de seguida
com um homem com vestes tradicionais, alto, moreno e que rondava os sessenta anos. Calculou ser o
avô do miúdo. O homem trazia um enorme sorriso nos lábios e um molho de chaves na mão.
- Salaamu âleekoum – cumprimentou-a com uma vénia.
- Bom dia. – respondeu Lara. – Pode chamar a polícia? Tenho pressa em viajar.
- Não é necessário senhorita, sou eu que trato desse assunto.
- Como assim? – perguntou incrédula.
- A senhora estacionou no local da minha banca de fruta e hortaliças. Por isso posso multá-la.
Estupefacta Lara voltou a olhar na tentativa de encontrar um sinal que confirmasse o que o
homem acabara de dizer. Não queria acreditar que aquilo lhe estava a acontecer. O homem das
hortaliças multava-a por estacionar num local onde não havia qualquer proibição de o fazer.
- São cem dirhams. – disse o homem estendendo a mão para que Lara pagasse.
Sentiu uma onda de indignação a subir-lhe pela garganta e crispou as unhas nas palmas das mãos
para não dar um berro ao velho que o fizesse desaparecer dali, mas, muniu-se do sorriso mais cínico
que tinha e regateou.
- Cinquenta.
- Setenta e cinco. – disse o homem a rir-se.
O que o homem estava a fazer era ilegal, mas se fosse queixar-se à polícia, nunca mais saía dali.
Mostrou as notas e fez sinal para que removesse o objecto. O rapaz pegou as chaves da mão do avô e
com perícia tirou as trancas com um sorriso de triunfo. Lara estendeu o dinheiro ao homem e com a
cara fechada enfiou-se no carro. Avô e neto deixaram de sorrir assim que viram o dinheiro e rumaram
a casa com os ferros prontos para enganar outro turista papalvo que ali estacionasse. Bela fonte de
rendimento – pensou irritada. Arrancou com o carro e foi seguindo o GPS. Avistou a entrada da auto-
estrada. Dali a três horas e meia estaria a abraçar Ema.

Ema ouvia a amiga atentamente de boca aberta. Estava transtornada com o que acabara de saber.
Apesar de nunca ter confiado em Pedro, o excesso de simpatia do «senhor perfeito», como lhe
chamavam sem que Lara ouvisse, parecia-lhe falso. Algumas vezes ainda tentou abordar o assunto,
depois de ouvir alguns boatos sobre as viagens de turismo sexual que ele fazia com alguns grupos,
mas Lara estava demasiado apaixonada e não queria ouvir.
- Não precisas de dizer que tentaste avisar-me. Fui muito cega. Todos sabiam, menos eu.
- Ora Lara, agora não adianta lamentares, as pessoas só vêem o que querem e tu não estavas
capaz de ver o óbvio. Agora é sarar as feridas e rezar para que ele não te encontre.
- Se isso acontecer, o que acho provável, desapareço de novo.

- Não Lara. O teu marido tem que ser preso e julgado. Obrigado por teres confiado finalmente
em mim.
- Desculpa por não ter confiado, mas queria ter a certeza que ele não viera atrás de mim.
- Já passaram algumas semanas, podes dormir descansada.

O inspector Lopes voltou a ler a carta pela quarta vez. Coçou a cabeça e franziu o sobrolho. Há
muito que andava desconfiado do homem e não era pelo facto de se esconder atrás da lei que deixava
de ser um criminoso.
- Ventura. Creio que temos o nosso homem identificado. Que achas?
- Coincide. Aliás são demasiadas coincidências. A descrição da tal Suzi condiz com a da carta
anónima. Cá para mim, esta é a outra prostituta que ele tentou estrangular o ano passado e que
sobreviveu.
- Bem pensado. O problema é que o nosso homem parecer ter-se evaporado. Ninguém o viu,
nem sabem onde está. Nem no escritório, nem em casa.

Lara e Mansur passeavam descontraidamente pelo mercado conversando e rindo. Mansur tinha
imensa vontade de lhe pegar na mão ou abraçá-la, mas não podia. As manifestações de afecto em
público não eram bem vistas e apesar de terem aspecto europeu – estavam os dois de calças de ganga
e ténis – não queriam chocar os locais. Lara já fora ali umas dezenas de vezes nos últimos quatro
meses, mas não deixava de se surpreender com a quantidade e variedade de objectos que eram
vendidos. Até dentaduras velhas estavam à venda.
- Quanto tu não tiveres dentes ofereço-te uma daquelas. – disse Lara a rir e apontando na
direcção da banca.
Falavam em inglês para que não os entendessem.
- E aquela peruca para ti? – Mansur apontou para um monte de cabeleiras postiças de todas as
cores e tipos de cabelos.
- Apostava mais naquela prótese de perna para ti. – replicou Lara de novo.
- A tua sorte é estarmos em público menina Lara Santiago. Isso é lá coisa que se diga ao
namorado.
Andavam nesta brincadeira há mais de uma hora e nem deram pela presença de um homem com
vestes berberes a segui-los.
A uns metros de distância, Pedro seguia no encalço dos dois desde que saíram de casa. A raiva
ia aumentando à medida que os ia ouvindo a rir e a brincar. A sua mulher era sua, não podia ser de
outro. Meteu a mão no bolso das calças por baixo das vestes berberes que Abdul lhe conseguira e
tacteou o bisturi. Tinha um corte tão preciso que bastava um pequeno encosto na jugular e o sangue
jorraria até à última gota. Estugou o passo, a multidão que circulava pelo mercado estava a atrasá-
los, e Pedro percebeu que poderia facilmente apanhá-la por trás e cortar-lhe a garganta. Era tão fácil.
Levou a mão ao bisturi e meteu-o na mão escondida pela manga larga. Subitamente percebeu que
tinha que matar também o fulano dos olhos verde azeitona. Poderia matá-lo à frente dela. Bastava-lhe
puxar da pistola que tinha no outro bolso e disparar, embora entendesse que era impossível atingi-lo,
havia gente à volta, iriam reparar na arma e começar aos guinchos numa histeria colectiva.
- Vamos. Tenho que partir para o deserto daqui a pouco. – disse Mansur pegando no braço de
Lara. Mas como é que ele se atrevia?
Puta! A fazer-se esquisita quando era para estar com os amigos dele e agora andava a fornicar
com este tipo! Imaginava as coisas porcas que ele lhe dizia ao ouvido, e lhe fazia. Lara a fingir que
não era casada com ele a urdir planos contra ele. Com que então o fulano ia para o deserto! Abdul
tinha razão. O homem tinha um acampamento nas dunas onde levava turistas a pernoitar. Era uma
questão de tempo até estar tudo resolvido. Assim que despachasse o tipo, era fácil levá-la. Desta vez
ia-lhe dar o mesmo destino de Suzi que já devia ter os olhos comidos pelos corvos e o corpo cheiro
de larvas de moscas. Viu-os desaparecer em direcção a casa e abrandou o passo. Não ia estragar os
planos agora. Sempre fora tão meticuloso.

As duas amigas ficam a acenar para os seus homens que partiam para mais dois dias no deserto
com um grupo de turistas.
- Ficas comigo enquanto Mansur está fora?- perguntou Ema.
- Sim claro. Aproveito para adiantar algum trabalho e vou tentar saber como está o meu irmão.
Há dois dias que o meu pai não consegue telefonar-me. Sempre que tenta acercar-se de uma cabine
de telefone, acaba sempre por descobrir alguém que o segue. Vou a casa buscar algumas coisas e
avisar Fadila. – e nisto enfiou-se para dentro da porta de madeira grossa cravejada de espigões de
ferro. Subiu as escadas, gritou por Fadila que lhe respondeu da cozinha. Foi só o tempo de reunir
alguma roupa e o material de trabalho e já estava na cozinha.
- Fadila. Tranque a porta quando sair. Vou ficar em casa de Ema até amanhã.
- Ora senhora, e que faço eu com esta comida? – apontou para o guisado que fervia no fogão
com indignação, mas a sorrir.
- Leve para sua casa. Amanhã à noite Mansur está de volta e eu também.
Com a mochila às costas e o computador portátil debaixo do braço saiu para a rua. Uma bola
passou-lhe rente à cabeça aterrando aos seus pés. Lara apanhou a bola e lançou-a aos garotos que
brincavam na rua a uns metros de distância. Ao arremessar a bola desviou o olhar para uma figura
que lhe pareceu conhecer. Apesar de o homem estar ligeiramente de lado, qualquer coisa na postura
dele a alertou. Fingiu estar a ver uns tapetes pendurados na parede da loja ao lado da casa de Mansur
e disfarçadamente voltou a olhar. Era ele. Estava a vigiá-la. Há quanto tempo estaria ali?
Apressadamente e sentindo os olhos nas suas costas estugou o passo e percorreu os cinquenta metros
até ao Riad de Ema. Entrou e trancou a porta com a chave colocada do lado de dentro.
Ema surgiu, sorridente, vinda da cozinha onde conversava com Miriam.
- Lara! Que foi? Estás branca.
- Nada, foi só uma quebra de pressão arterial, é do sol. - disfarçou.
- Vai descansar um pouco até ao almoço.
Lara assentiu. Subiu as escadas até ao quarto e a única coisa que tinha a certeza é que ali não
podia ficar nem mais um dia. Se ele estava cá, Pedro estava a chegar ou já estaria na cidade.
Capítulo Vinte

Olhou para o interior do saco do pequeno saco de viagem mais uma vez e voltou a relembrar o
que levava lá dentro: roupa, objectos de higiene e o computar Mac, leve que nem uma pena e
pequeno o suficiente para passar despercebido. Em cima da cadeira já estava preparada a roupa para
a viagem. Djelaba preta e um véu preto a cobrir a cara e a face. Não conseguia parar quieta, quando
mais dormir como lhe recomendou Ema. Verificava o relógio quase a cada segundo e espreitava pela
janela virada para o jardim interior em busca de movimento que lhe pudesse atrapalhar a fuga. Tudo
estava calmo.
Consultou o horário do autocarro para Marraquexe e viu que tinha bastante tempo ainda.
Almoçava com Ema, e perto da hora em que o autocarro partia saia sorrateiramente e embarcava sem
ser reconhecida. Mais uma vez tinha que desaparecer. Sentou-se na mesa junto à janela onde por
vezes costumava trabalhar e tirou uma folha de papel de carta que Ema mantinha ali para os
hóspedes, caso quisessem usar. Não queria que ficassem preocupados com ela.

Meus queridos Mansur e Ema, tenho que partir mais uma vez. Não me procurem e por favor
não façam nada que possa pôr a vossa vida em perigo. Reconheci o advogado como sendo um dos
espiões de Pedro, um assassino a soldo que costumava estar em Lisboa e que ele contratava para
fazer desaparecer testemunhas. Temo que Pedro já esteja por cá. Não se aproximem dele por favor.
Assim que puder entro em contacto convosco.
Colocou o bilhete dentro de um envelope em cima da mesa em jeito que o encontrassem
facilmente e desceu para o almoço.
A comida tinha um cheiro que poderia deixar água na boca a qualquer um, mas hoje não
conseguia comer, tinha um nó a subir e a descer na garganta impedindo-a de engolir.
- Mal tocaste na comida. O que se passa? Estás grávida?- perguntou Ema.
Lara deu uma pequena gargalhada tentando desviar o assunto.
- Quem sabe? Talvez. – mentiu.
Não podia estar grávida. Usava a pílula diariamente.
- Ia adorar ser tia. – disse Ema com um grande sorriso na face.
E começou a divagar se seria rapaz ou rapariga, onde ia nascer, tinha que ir nascer a França, e
que cor de olhos teria com uns pais tão bonitos. Lara deixou de a ouvir. Sorria para disfarçar e fingia
meter alguma comida na boca, sem qualquer vontade de a engolir. Os talheres quase lhe
escorregavam da mão com o suor acumulado nas palmas das mãos e sentiu o rosto húmido do
nervosismo.
- Vou-me deitar um pouco.
- Vai sim e de seguida vai à farmácia comprar um teste de gravidez. – disse Ema com um sorriso
maroto.
Já só faltava duas horas para embarcar. Às dezasseis horas partia para Marraquexe e depois
para Fez. Ia esconder-se uns dias na Medina de Fez, um autêntico labirinto e pensar no próximo
passo.

Desceu as escadas descalça e sorrateiramente saiu para a rua sem que ninguém desse pela sua
presença. A temperatura rondava os quarenta graus e àquela hora poucas pessoas se aventuravam
fora de casa. Apenas alguns turistas em grupo deambulavam pelas lojas.
Tentou apresentar um ar descontraído e verificou o perímetro com o olhar. Ninguém conhecido.
Apertou o lenço junto à face para se certificar que não corria o risco de ficar de cara descoberta.
Percorreu rapidamente as ruas até ao ponto onde iria apanhar o autocarro da Supratours e dirigiu-se
à bilheteira. Com o bilhete na mão aproximou-se do motorista e estendeu-lho. O homem fez-lhe sinal
que entrasse e Lara apressou-se a subir os degraus. Sentou-lhe no lugar que o ingresso indicava e
tentou descontrair. O autocarro partia dentro de dez minutos e contava-os mentalmente na urgência de
fugir.

Francisco Santiago exultou quando finalmente o filho saiu do hospital depois de algumas
semanas em convalescença. André não conseguiu esclarecer a polícia sobre quem o tinha atacado.
Francisco Saiu de casa com ar descontraído e foi até à paragem do autocarro. Há vários meses que
seguia aquele ritual todas as semanas. Encontrava-se com a sobrinha Teresa, filha da irmã mais
velha, em sítios movimentados para ela lhe entregar as cartas de Lara e dava-lhe outra para ela
enviar. Mas hoje resolveu usar o número de telefone do Riad de Ema para tentar conversar com a
filha, queria dar-lhe a boa noticia sobre o irmão.
Ema atendeu o telefone e sorriu quando ouviu a voz de Francisco.
- Francisco que bom ouvir a sua voz. Como vão por aí?
Francisco respondeu que André estava a salvo, portanto, muito melhor. Queria saber de Lara e
falar com ela, tinha algumas novidades que podiam por fim ao cativeiro da filha. Ema subiu as
escadas para chamar a amiga e entrou no quarto de rompante, já estava a ver o ar de felicidade de
Lara quando soubesse que o pai estava ao telefone.
- Lara! – chamou-a.
Um silêncio absoluto.
-Lara! – voltou a chamar mais alto, abrindo a porta da casa de banho pensando que ela estaria
lá.
Vazio. O quarto estava vazio. Desconcertada olhou em volta procurando algum sinal que a
elucidasse do paradeiro da amiga e os seus olhos incidiram num envelope com o logotipo do Riad
encostado ao espelho do toucador e endereçada a Mansur e Ema. Estremeceu por dentro. Foi como
se um soco a tivesse atingido no estomago.
Com os dedos trémulos abriu o envelope e leu o conteúdo. Sentiu o chão a fugir-lhe debaixo dos
pés. Nem Hamed estava ali para a ajudar. Oh, Deus! Que mais vai acontecer à pobre rapariga? Seria
possível que aquele monstro ali estivesse?
Guardou a carta no bolso e desceu as escadas com as pernas a tremer. Não podia revelar a
verdade.
- Francisco, a Lara saiu, foi às compras. Assim que ela chegar aviso-a que ligou.
E ficaram mais uns minutos à conversa. Francisco contou-lhe que Pedro era suspeito de
homicídio e de tentativa de homicídio de uma jovem que o conseguiu identificar, e que estava
desaparecido há mais de uma semana.
Essa revelação não sossegou Ema, pelo contrário. Faltavam apenas umas horas para que Mansur
e Hamed regressarem. Mansur ia enlouquecer e matar Pedro.

Pedro Almeida fora sempre um homem meticuloso, mesmo nos crimes que cometera. Tudo tinha
que estar no seu lugar. Não deixava nenhum indício em casa para a empregada descobrir, embora
tivesse deixado a camisa suja de terra para ela lavar. A menos, claro, que houvesse sangue, nesse
caso destruía ele mesmo as roupas, queimava-as junto com o lixo do jardim na casa da avó. Odiava
essa parte das coisas, porque com ela vinha uma certa forma de realidade que se recusava a
enfrentar. Mal terminava o assassínio, o prazer sexual, que o enchia de sensação de poder alcançado,
não sentia nada. De qualquer forma, não queria saber de mulheres. Atraía-as com facilidade, com um
sorriso, com a sua beleza máscula e com as suas qualificações de advogado famoso e bem-sucedido.
Um informador disse-lhe que uma jovem tinha sido encontrada na serra de Sintra ainda com vida e,
assim que alguém fosse indiciado, deveria ter outro cliente. Tinha-se comportado de forma
impulsiva, abrira uma fenda na armadura que construíra com tanta cautela desde o dia em que
sufocou a avó com uma almofada e encenou a sua morte. Nunca fora descuidado, nem mesmo no
estrangeiro. Era um assassino aleatório, embora gostasse de matar putas. Agora tinha que ser mais
cuidadoso. Estava na casa da avó e voltou a organizar os cadernos onde escrevia a sua vida. Esses
cadernos eram o seu tesouro, os companheiros das noites de solidão. A casa era limpa uma vez por
semana e sempre com ele presente, não havia a menor hipótese de a empregada bisbilhotar as suas
coisas. Até ao dia em que Lara meteu o nariz na casa. Devia tê-la morto mas era demasiado
arriscado. Não lamenta os murros e pontapés que lhe dera. Agora tinha que levar a cabo a tarefa
inacabada e como já sabia onde ela se encontrava – o velho Francisco pensava que ele não conhecia
o resto da família, era mesmo um idiota – graças ao trabalho de Abdul, um óptimo detective, só lhe
restava apagar a única testemunha que restava. Depois seria a vez de Suzi. Mirou o aço do bisturi
afiado e enfiou-o na bainha de couro. Quantas vezes usou aquele bisturi ao longo dos anos? Quantos
lugares, quantas mulheres, todas jovens, voluptuosas, inocentes e de faces límpidas matou? Foi
sempre cuidadoso até há pouco tempo quando fez a asneira de não verificar se a prostituta estava
morta.

Há vários dias que Pedro via passar aquela beldade em frente à sua casa. Morena, olhos
castanhos amendoados, e por baixo daquela roupa sempre igual que as mulheres marroquinas
usavam, adivinhava-se uma mulher de encher a mão. Servia dois propósitos. Podia dar-lhe
informações e quem sabe mais qualquer coisa, mas desta vez tinha que ser cuidadoso. A melhor
forma de a abordar era forçar um encontro casual na rua.

Lara dormitava com a cabeça encostada à janela do autocarro. As lembranças perseguiam-na.


Receava o confronto com Pedro, sabia que não tinha força física para o dominar e não possuía
qualquer tipo de arma de defesa. Por outro lado a mágoa de deixar o homem que amava, o seu homem
do deserto, estava a dilacerá-la por dentro. Temia pela sua vida. Nestes meses em que viveu perto de
Mansur aprendeu a conhecer a sua natureza paciente, mas também o lado guerreiro. Não ia ficar
quieto e moveria céus e terra até a encontrar. Fugira para proteger os dois.
A paisagem de montanha era deslumbrante, mas estava a ficar impaciente, estava deserta de sair
do autocarro. Cinco horas até Marraquexe era demais para quem fugia. Se Pedro tivesse um carro
conseguia apanhá-la rapidamente, o carro deslocava-se a uma velocidade superior ao autocarro e
transpunha a montanha com mais facilidade.

Mansur olhava para o bilhete de Lara de forma fixa. Estava em choque.


- Vai tomar banho e refrescar-te e depois tentamos planear o que fazer. – aconselhou Hamed.
Ema anuiu com a cabeça, reforçando o que Hamed acabara de dizer. Mansur olhou para os dois
e sem proferir palavra, meteu o bilhete no bolso e caminhou com passo apressado até à porta. Hamed
já conhecia o irmão. Sabia que ele ia fazer asneira.
- Mansur! – gritou. – Não vás! – disse adivinhando onde ele se dirigia.
Já era tarde. Mansur corria a passos largos pela rua abaixo e Ema e Hamed correram no seu
encalço.
Viram-no bater à porta e, quando esta se abriu, Mansur empurrou quem a abriu para dentro de
casa com um gesto brusco e fechou a porta atrás de si.
Capítulo Vinte e Um

Mansur pegou nos colarinhos do homem, ou melhor, na gola da djelaba, apertou-o até sentir a
carne quente nas mãos e chegou cara junto à tez morena que lhe abriu a porta.
- Ouve uma coisa meu filho da puta, diz-me onde está o teu patrão ou ficas sem pescoço já! –
ameaçou chispando raiva pelos olhos e valendo-se da vantagem de ser mais alto que o outro.
O homem de estatura média, tez morena e olhos de doninha esboçou um sorriso de escárnio e
não fez qualquer gesto para se defender.
Mansur espumava pela boca parecendo um animal enjaulado à força. Empurrou-o para trás
contra a parede e o homem caiu em cima de uma cadeira com grande estrondo, levantando as mãos
para se proteger pensando que Mansur ia esmurrá-lo.
- Onde está aquele cobarde do teu patrão? Diz-me antes que eu perca a paciência! – berrou
levantando os punhos em riste.
O homem levantou-se e sem desarmar ou dar sinais de medo enfrentou-o com o olhar.
- Deve estar equivocado cavalheiro. Não sei quem o senhor é, nem do que fala. Invadiu a minha
casa sem ser convidado.
- Claro que não! Não invadi a sua casa. Vim apenas contratar os seus serviços, senhor
advogado, ou estou equivocado? – acentuou a palavra advogado de forma irónica.
Abdul mantinha a calma. Mansur percebeu que era alguém treinado para situações extremas.
Dali não ia tirar nada, nem conseguia que ele perdesse as estribeiras e o agredisse.
Entretanto ouvia o irmão e Ema a baterem na porta com força e a chamarem o seu nome.
- Não acha melhor abrir, antes que eles deitem a porta abaixo? – perguntou o homem como se
estivessem a tratar de negócios.
Mansur deu uma passada em direcção à porta e abriu-a. Ema e Hamed precipitaram-se para o
interior da casa que mais parecia um tugúrio do que um escritório de advocacia.
- Vamos Mansur. – e o irmão puxou-o pelo braço. – Queira desculpar o meu irmão senhor... – e
ficou à espera que ele se apresentasse.
Abdul, com ar de raposa velha, manteve-se calado. – Sabe, ultimamente, ele não anda bem. -
disse Hamed, sentindo-se a fazer figura de parvo.
Não escapou a ninguém o sorriso escarninho do homem.
Hamed puxou o irmão em direcção à porta com a ajuda de Ema. Naquele momento Mansur
estava capaz de matar. Hamed já vira esse olhar no irmão quando ele era adolescente e receava que
ele voltasse.
Do outro lado da porta de madeira grossa que dava acesso ao interior da casa, Pedro escutava o
desacato sem se mexer, como qualquer lobo esperava emboscado a altura certa de atacar. Tudo era
estudado meticulosamente. Não podia dar-se ao luxo de cometer mais um erro. Enfrentar o amante da
mulher agora era deitar tudo a perder.
Os três subiam a rua em passadas largas e Hamed advertia o irmão sobre a perigosidade do
homem.
- Há um mandato de captura internacional em nome desse Pedro. O homem é perigoso. Parece
que finalmente conseguiram ligá-lo a uma série de crimes ocorridos nos últimos anos, mas há muito
que este homem era um predador da noite.
Mansur abriu a porta de casa e os três entraram. Começou a tirar as roupas do deserto, cobertas
de poeira vermelha e ficou apenas com as calças, em tronco nu e descalço.
- Não vale a pena, perguntar como sabes isso, pois não?- ironizou Mansur.
Hamed era óptimo a entrar em sites e obter informações.
– Tens a certeza que não fazes espionagem?
- Não sejas maluco Mansur. O desgosto está a cegar-te. Pensa. Raciocina. Onde é que ela se
poderá ter escondido?
Mansur deixou-se cair pesadamente em cima do sofá feito de tijolo e coberto de almofadas
coloridas.
- Tens razão. Vou começar por pedir ajuda aos beduínos. São homens muito astutos e que vêem o
que nós não conseguimos ver. Quem sabe se ela fugiu para o vale do Draa ou para algum Kasbah dos
muitos que existem por aqui. Mas o marido de Lara está escondido naquela casa, ninguém me
convence do contrário.
- É provável, mas tens colocar uma isca para ele morder. Pensa nisso. Tens que ser mais astuto.
- É fácil falar Hamed. Se fosse contigo já terias pegado numa arma. Pensas que não te conheço?
Por baixo dessa capa…há outro homem.
- Compreendo a tua dor, tu sabes pelo que já passei. Mas não estragues tudo. Não arranjes
forma de te prenderem. - pediu.

Lara chegara finalmente há maior cidade medieval viva do mundo. Ouvira contar a amigos que a
Medina vivia ainda na idade média. Tudo era feito de forma artesanal e só quem conhecia bem o
labirinto de ruas conseguia sair de lá. Sabia que tinha que contratar um guia para a levar até ao
interior onde pretendia esconder-se.
Mudou de roupa nos lavabos da paragem de autocarros e dirigiu-se à porta do primeiro hotel
que encontrou. Era ali que se reuniam os guias oficiais.
Mal pôs o pé no primeiro degrau da escadaria do hotel uns três homens cercaram-na, falando em
francês e oferecendo os seus préstimos. Lara olhou com atenção. Dois jovens e um homem com cerca
de sessenta anos. Decidiu confiar no mais velho.
- Muito bem, senhor…
- Mohamed, senhora.
- Quero alojar-me na Medina, conhece algum hotel discreto e barato?
- Muitos, senhora. Conheço a Medina como as minhas mãos. Posso mostrar-lhe todos os pontos
interessantes por…duzentos dirhams.
- Cento e cinquenta.- contrapôs.
- Fechado. Obrigado. Venha, temos que tomar um pequeno táxi até lá.

Raissa descia a rua a pensar em Mansur e na forma como ele sempre a rejeitara. O que fizera
para ele não a querer? Como é que ele lhe pagava os estudos em França e depois fugia dela a sete
pés? Os homens franceses eram todos malucos, concluiu. Vestindo calças de ganga, uma t-shirt justa e
com o cabelo solto a cair-lhe em cachos pelos ombros, não passava despercebida. Estava farta das
imposições da mãe de se vestir de forma tradicional. Cada vez se identificava menos com a cidade e
com as pessoas. Quando terminasse os estudos em enfermagem, não ia voltar para Ouarzazate. Nem
pensar, o seu lugar não era ali.
Ia tão absorvida que nem reparou no homem que vinha na sua direcção e esbarrou nele com toda
a força.
Atrapalhada pediu desculpa e mal se atreveu a levantar os olhos do chão. Era pecado enfrentar
o olhar de um homem de forma acintosa.
- Desculpe menina…a responsabilidade é minha. Posso compensá-la oferecendo-lhe um chá de
menta?
Raissa levantou os olhos e viu um homem deveras imponente. Não era todos os dias que
aparecia por ali um ocidental com tudo no sítio – pensou.
- Porque não? Sim aceito senhor…
- Afonso, Afonso Silva. – e estendeu-lhe a mão.
- Raissa Amjad. O senhor é novo aqui no bairro, não é?
- Sim. Vim resolver uns negócios e vou ficar uns dias.
Raissa sorriu para dentro. Não ia desperdiçar a oportunidade de fazer ciúmes a Mansur. Este
Afonso era o homem ideal.
Capítulo Vinte e Dois

Pousou o telefone no descanso. Sentiu as pernas a fraquejar o coração quase a sair-lhe pela
boca e uma náusea capaz de a fazer vomitar as entranhas. Reconheceu o sinal do medo e o que vinha
a seguir era assustador. Pensou que ia sofrer um ataque de pânico, como outras vezes. Sentou-se na
cama e tentou normalizar a respiração mas a sensação era de sufoco. Se morresse ali nunca mais a
encontravam e a última coisa que queria agora era morrer. Levantou-se da cama a cambalear, as
pernas a tremer, o suor frio a escorrer-lhe pelo corpo, a garganta apertada pela dificuldade em
respirar, e arrastou-se até ao saco de viagem pousado na cadeira em frente à janela. Tirou um
comprimido pequeno e meteu-o debaixo da língua. O comprimido milagroso que tomava sempre que
ficava com medo: um poderoso ansiolítico que um médico amigo do pai lhe receitara há um ano.
O relato que fizera ao inspector Lopes sobre o calvário que passou durante dois anos, e as
suspeitas que tinha sobre a vida dupla do marido deixaram-na extenuada e morta de medo. O facto de
haver um mandato internacional de captura em nome de Pedro, não significava que o apanhassem
antes que ele a matasse.
Lara começou a tomar consciência que não podia ficar ali. Pedro era como um cão de caça,
conseguia farejar a presa a quilómetros de distância. Talvez o melhor local para se esconder, fosse
no sítio mais improvável para a procurarem, e que Pedro jamais conseguiria chegar. Aos poucos o
coração abrandou e a respiração normalizou. Deitou a cabeça na almofada e fechou os olhos. O
efeito do medicamento deixava-a completamente relaxada e, mesmo que viesse um tornado que a
levantasse no ar, Lara ficava a olhar até ser levada. Sentiu os olhos pesados e adormeceu.
A Medina era um labirinto tão intricado que só quem vivia ali desde criança – ou há bastante
tempo - se sabia movimentar sem se perder. Desde que chegara que apenas saia para comer e voltava
logo com receio de ser descoberta. Em cada homem via um potencial espião de Pedro, e a cada
esquina sentia que o perigo a esperava.

- Então? – questionou Ema ao ver Mansur com os ombros baixos como se carregasse um fardo
pesado.
- Nada. Sumiu-se. Ninguém a viu. Já percorremos o vale e nada…
Mansur estava visivelmente abatido. A barba de dois dias dava-lhe um ar pesado e as olheiras
fundas das noites em claro eram testemunhas do seu sofrimento. Parecia ter mais dez anos.
Ninguém conseguiu abrir a boca para dizer o que quer que fosse. Tudo o que pudessem dizer era
inútil, não trazia Lara de volta. O sentimento geral era de aflição e impotência. Os três estavam a
tentar conter-se para não contagiarem os outros com o seu pessimismo, mas era impossível não
deixar transparecer a angústia.
- Vou começar a procurar nas companhias de transportes, mas creio que seja inútil, ela deve ter
viajado como se fosse marroquina, ninguém a reconhecia.
- Não custa tentar. – disse Hamed. – Vou contigo.
- Não. Fica aqui com Ema. Prefiro ir sozinho.
Meia hora depois estavam desfeitas as esperanças que ela tivesse embarcado em algum
autocarro para uma das cidades maiores. Nenhum motorista reconhecia Lara na foto que Ema lhe
emprestara.
Mansur caminhava cabisbaixo. Uma sombra do homem que era há dois dias atrás. Nunca
pensara apaixonar-se por uma mulher como Lara. Amava tudo nela, até mesmo a teimosia. Deveria
tê-la protegido mais, denunciado o algoz à polícia, ou qualquer outra coisa que a pusesse a salvo do
psicopata do marido. A sensação de estar amarrado a qualquer coisa que o impedia de se mover era
horrível. Estava desorientado e sem conseguir raciocinar, a segunda vez que se sentiu assim e toda a
sua vida. A primeira foi quando pertenceu ao grupo de marginais em França e que esteve preso.

O dia dera lugar à noite e o ciclo repetia-se há mais de uma semana. Lara desaparecera de
Ouarzazate sem que ninguém a visse.
Entretanto, Mansur perdera a conta às voltas que dera na cama. Incapaz de adormecer pegou no
velho álbum de fotografias de quando era criança e folheou-o. Chorou. Chorou a perda da mãe, a
perda de Lara e amaldiçoou a vida que nunca fora fácil para ele. Também tinha os seus fantasmas
internos como qualquer pessoa e, quando pensava que os tinha exorcizado para sempre, e finalmente
encontrara o seu caminho, a companheira para o resto da sua vida, a perda bateu-lhe de novo à porta.
Imaginou os piores cenários: que Lara estava morta em algum sítio, morta por Pedro ou por algum
assassino pago por ele, que ele a tinha deixado estropiada em algum lugar remoto e que os animais se
encarregariam de acabar com os restos dela, ou que ele a teria prisioneira na casa do advogado e
estava a torturá-la até a matar. Precisava da polícia para fazer a busca, mas como é que ia convencer
as autoridades a interferirem entre o casal. A cultura marroquina ainda preservava alguns hábitos que
visavam a não interferência entre casais. No mínimo iam achá-lo louco. Só a polícia internacional
podia fazer alguma diligência. Estava a ficar louco de impaciência e a falta de descanso só piorava o
seu estado. Levantou-se da cama num salto e meteu-se no chuveiro debaixo do jacto de água, forte e
fria, na esperança que esta lhe levasse o cansaço e clareasse as ideias.
Meia hora depois, Mansur sentiu o cheiro a comida vindo da cozinha. Tinha fome, mas não era
capaz de engolir a comida. Ia a descer os degraus até à cozinha, quando ouviu a voz alterada de
Fadila a falar Darijá com alguém. Depois de duas frases percebeu o conteúdo da conversa entre mãe
e filha. Fadila dizia para a filha esquecê-lo que ele tinha outra pessoa e além disso não a queria. Mas
Raissa continuava a provocar a mãe e a afirmar que o conseguia conquistar. Noutra altura acharia
graça à insistência da rapariga, mas hoje não tinha a menor paciência para tontices. Ouviu qualquer
coisa a cair no chão e Raissa a gritar. Depois o silêncio e, finalmente, a porta da rua bateu com força.
Mansur receava que Fadila e Hassan ainda tivessem muitos dissabores com a rebeldia da filha.
Apesar da tragédia que estava a viver, ainda conseguiu sorriu, Raissa lembrava-lhe ele próprio com
a idade dela: livre e irreverente. Só que essa irreverência ia-o destruindo e gostaria muito de estar
enganado mas esta jovem não ia ter um bom fim. Desceu o que restava dos degraus com o intuito de
tentar comer qualquer coisa e de acalmar Fadila. Mesmo a sofrer ainda lhe restava generosidade
suficiente para falar com uma mãe desesperada.
Ao fundo da rua, depois de uma caminhada rápida sob o efeito da irritação e com a dor de uma
vassoura assente nas costas com toda a força que a mãe tinha, Raissa parou em frente à porta do
estrangeiro. Estava na dúvida se aceitava o convite do homem. Que mal podia acontecer? Nada que
ela não quisesse. Para os pais tudo era haraam, já estava farta das proibições, tudo o que queria na
vida, além de Mansur, era ser uma mulher ocidental e comportar-se como elas. Encheu-se de
coragem – coisa que Raissa não precisava muito, já tinha de sobra – e bateu à porta. Esperou uns
segundos e mal a porta se abriu foi recebida com um grande sorriso. Entrou com ar de triunfo como
se estivesse a entrar no céu, algo que lhe fora vedado pela lei paterna. A porta fechou-se atrás dela e
Raissa entrou no desconhecido, com o coração aos pulos. Gostava da adrenalina da transgressão.
Afonso estava vestido com roupa beduína e nem parecia o mesmo executivo que encontrava
todos os dias no caminho para casa. Tornara-se um hábito Afonso esperar por ela todos os dias, por
volta das dezoito horas e darem dois dedos de conversa. Os encontros pareciam casuais e Raissa
ficava mais entusiasmada a cada dia que passava. Que cavalheiro! Que charme! Agora via o tempo
que perdeu a olhar para o bronco que Mansur era. De repente, comparou os dois e Afonso ficou a
ganhar. Parecia mais jovem, mais educado e sabia dizer as coisas que uma mulher queria ouvir. Só
ainda não aceitara o convite para ir a casa dele porque não queria parecer oferecida. Aquele não ia
escapar.
Raissa levantara-se especialmente bem-disposta e, nem o ar carrancudo de Mansur que antes a
incomodava ao ponto de muitas vezes chorar, a fazia alterar o seu humor. Suspeitava que tinha algo a
ver com a portuguesinha, aquela sonsa dissimulada que há uns meses aparecera ali vinda do nada e
lhe roubou o homem.
Há quase duas semanas que a portuguesa não ia a casa de Mansur e, como Ema fazia vista
grossa à sua entrada na casa dela, Raissa não se atrevia a ir lá confirmar se ela estava.
Depois do mercado, viu a caravana partir mais uma vez para o deserto mas desta vez até sentiu
alívio de os ver pelas costas. Durante dois dias tinha a casa só para si. Podia usar a sala e as
maravilhosas almofadas que decoravam o chão e refastelar-se nelas, enquanto a mãe fazia as
obrigações de encarregada da limpeza e cozinheira. Quando Mansur e Hamed estavam em casa não
se podia permitir abusar sem que a pusessem no seu lugar.

Lara chegara à Medina de Fés, há um par de semanas e, já se habituara a deambular pelas ruas
sem se afastar muito da zona do Riad com medo de se perder. Por alguns momentos durante o dia
esquecia-se de Pedro e do motivo de estar escondida numa cidade medieval. Era como se tivesse
retrocedido no tempo meio século. Começava a ficar fascinada pela azáfama diária da cidade
imperial e sentiu mais alguma liberdade sem receio de ser descoberta por algum lacaio de Pedro. Por
outro lado, saber que o irmão estava finalmente em casa e a sarar as feridas causadas pelo ataque de
que foi vitima, deixava-a descansada. Imaginava Mansur a mover céus e terra em sua busca e só
esperava que o pai lhe dissesse que Pedro fora preso, para regressar a Ouarzazate. Ao fim de duas
semanas o dinheiro estava a acabar-se e não lhe restou alternativa senão dirigir-se a uma caixa
multibanco. Esperava que aquele pesadelo terminasse depressa como lhe prometera o inspector da
polícia judiciária.
Aos poucos aventurava-se mais e mais nas ruelas intricadas da velha cidade. A cada vinte
metros encontrava um artesão que a fazia retroceder no tempo. O homem que trabalhava o latão e que
aos poucos lhe dava forma até sair um prato decorado a cinzel ou um bule de chá; o homem que cozia
o pão no forno comunitário, a loja dos perfumes onde era possível experimentar mil essências
diferentes; a loja das malas de pele, poufs, e todo o género de arte em pele curtida, a loja dos tapetes
onde os turistas entravam às dezenas pelos guias experimentados em levarem turistas onde eles não
queriam ir, e as imensas lojas de ouro, tantas que Lara nunca imaginou que pudesse existir uma rua só
de lojas do metal precioso.
De casa lado das estreitas vielas corria um líquido amarelo e nauseabundo, fazendo supor que
as fezes e urina eram despejadas naqueles pequenos regatos talhados na pedra e que iam cair em
alguma fosso comunitário. Lara ouviu um guia explicar a um grupo que a urina dos animais corria por
ali até ao curtume, onde a cor das peles curtidas eram fixadas tal como na idade média: com urina.
Estas descobertas distraiam-na por momentos, mas Mansur não lhe saia da cabeça por um motivo e
Pedro por outro: amava Mansur e temia Pedro.
Entrou numa loja de tecidos com a firme intenção de comprar uma peça que vira na montra, mas
também para tentar perceber como é que faziam os tecidos pela forma artesanal. Enquanto o
vendedor lhe mostrava peças de tecido fazendo uma pilha que já a começava a irritar, notou que um
homem que já vira há uns minutos na loja dos perfumes espreitava para o interior pela montra. Sentiu
o coração a acelerar mas tentou controlar-se. Arrependeu-se de não ter continuado a sair à rua com
roupa marroquina, mas rapidamente desviou o pensamento da paranóia que a começava a incomodar
de novo. Comprou quatro metros de tecido e saiu em direcção ao hotel. Andou devagar e, pelo efeito
espelho das montras, foi verificando se o homem a seguia. Lá estava ele de novo a fingir que
comprava especiarias. Era um homem jovem, com ar de ocidental, mas que Lara reconheceu ser
marroquino pela fisionomia. Entrou no Riad e subiu ao quarto. Pelas frestas das persianas de madeira
tentou perceber se o homem lá continuava ou era apenas delírio da sua cabeça perturbada. Lá estava
ele sentado com os idosos no banco debaixo da única árvore da rua. Era demasiada coincidência mas
não ia entrar em pânico. Dali a pouco ia vestir-se com roupas marroquinas e ia sair de cara tapada.
Se ele ainda lá estivesse tinha que dar um rumo à sua vida de novo.
Capítulo Vinte e Três

Não se via vivalma na rua e a noite ainda demorava um par de horas a dar lugar ao dia, o tempo
suficiente para Lara se por ao largo da cidade passando despercebida. Aproximou-se do cercado
onde estavam os camelos e o cavalo árabe que já a conhecia e pediu a todos os santos para que os
animais não reagissem à sua presença. Sabia que o acampamento estava sempre fornecido de comida
e água, Hassan encarregava-se de o fazer, e durante uns dias estaria bem, até que alguém a
encontrasse ou o deserto a consumisse para sempre. O único receio era não conseguir chegar lá, tinha
mais de cem quilómetros pela frente e o calor a atormentá-la. Confiava no instinto do cavalo para
fazer a viagem, sozinha jamais lá chegaria. Aproximou-se do animal e passou-lhe a mão na cabeça
afagando-o. Apesar do ar imponente o cavalo era dócil e deixou-se conduzir até ao local onde a sela
estava pendurada. Familiarizada com o processo de montar colocou a sela, certificou-se que estava
bem apertada e pendurou os alforges no dorso do animal com garrafas de água na esperança que lhe
chegassem para a viagem. Enrolou o turbante que comprara em Fez, em volta da cabeça e da cara
para se proteger do calor e do pó. Depois de passar o vale, iria entrar nas dunas de pó vermelho que
se colava ao corpo e entrava pela garganta. O cavalo obedeceu prontamente quando Lara subiu para
o dorso, pegou nas rédeas e com um ligeiro toque de calcanhar o incitou a sair do estábulo. O animal,
habituado a fazer a viagem uma vez por semana seguiu pela trilha conhecida e Lara ficou aliviada.
Quando o sol se estivesse a pôr, com sorte, estaria a chegar ao acampamento, ou talvez não, quem
sabe morreria pelo caminho, mas, qualquer morte era preferível do que morrer às mãos de Pedro.
A boca seca e a cara tapada de pó vermelho que voava em pequena ondas saindo das dunas,
dificultavam-lhe a visão. As dores na zona lombar eram tão intensas, que temia que ao saltar do
cavalo se partisse ao meio. A única paragem durante o dia foi num pequeno oásis no vale, para o
cavalo beber e refrescar-se um pouco. Lara saíra da cidade ainda o sol não nascera e sabia que
dentro de uma hora não havia luz. Apressou o cavalo antes que escurecesse e seguiu a trote, sentindo
que o animal estava em esforço.

- Vou à polícia, já não aguento mais esta angústia. Em duas semanas houve tempo para suceder
imensa coisa com ela. Estranho o homem não sair do covil. Apenas o lacaio anda por aí.
- Fazes bem. Há limites para tudo e está na hora de dar um empurrão ao processo. Temos que
fazer alguma coisa.
Ema, Hamed e Mansur tomaram o pequeno-almoço juntos na sala de refeições da casa dos
irmãos, e tentaram encontrar a melhor solução para localizar Lara, partindo da certeza que ela estava
viva.
Com a decisão tomada, os três preparavam-se para sair quando estalou uma gritaria na cozinha.
Fadila gritava com Raissa novamente.
- Onde passaste a noite? Ai que o teu pai mata-me! Desonras o nome da família. Como é que te
vais casar um dia? Nenhum homem te quer.
- Deixa de ser antiquada! Sou uma mulher da europa. Quero lá saber destes costumes estúpidos.
– argumentava Raissa aos gritos.
A troca de argumentos continuou entre mãe e filha. Mansur coçou a cabeça enquanto passavam
pela cozinha. Sentiu-se responsável pelo comportamento de Raissa, senão lhe tivesse pago os
estudos em França nada disto estaria a suceder. No entanto reconhecia que a rapariga era pouco
ajuizada, poderia fazer o que bem quisesse em Marselha e ali portar-se de forma a não chocar os
pais, mas a rebeldia fazia parte dela. Os pais que se entendessem com ela, não ia imiscuir-se.
Os dois irmãos e Ema caminhavam em direcção à esquadra de polícia quando ouviram a porta
da rua bater com força. A uns vinte metros de distância viram Raissa descer a rua apressada.
- Aposto que sei onde ela vai. – disse Ema.
Os dois homens olharam-na com ar inquiridor, e Ema tentou disfarçar. Estava a adiantar
informação não confirmada. Miriam tinha-a informado que vira Raissa com um homem vestido à
ocidental várias vezes durante a semana e que as pessoas comentavam ser um português que estava
há pouco na cidade.
- É alguma coisa que devamos saber? – perguntou Mansur desconfiado.
- Não. São coscuvilhices de mulheres velhas. – mentiu.
Hamed já conhecia Ema tão bem que percebeu de imediato que ela sabia mais do que dizia.
Resolveu calar-se. Quando surgisse a oportunidade esclarecia o assunto.

A polícia marroquina informou Mansur que estava em contacto com a polícia portuguesa e que
havia suspeitas do homem se encontrar em Marrocos, mas até agora ainda não tinha sido localizado.
Mansur passou a noite acordado a tentar encontrar uma solução para localizar Lara antes de Pedro,
mas por mais que pensasse não conseguia. Ela desligara os telemóveis e decerto lhes retirara as
baterias. Era impossível localizá-la.
Por outro lado, Ema e Hamed estavam apreensivos em relação ao que sucedera a Lara. Ema
revelou-lhe suspeitar que Raissa caíra na rede de Pedro que já se encontrava na cidade. Só não
contara a Mansur porque teve receio que ele pegasse numa arma e cometesse um assassínio. Mesmo
Pedro sendo quem era, se Mansur o matasse nunca mais sairia da prisão, e de uma coisa tinha
certeza: Lara estava fora do alcance dele. Era apenas uma intuição, mas confiava nas capacidades de
defesa da amiga.
Hassan achou falta do cavalo preto logo pela manhã mas não avisou o patrão. O sol já caia a
pico quando o animal chegou ao cercado. Sem sela e com fome. Tentava a todo o custo entrar no
estábulo. Hassan abriu-lhe a porta e deixou-o ir em direcção ao balde de aveia. Pelo estado da pele e
pelo cheiro o animal tinha ido ao deserto e, se foi ao deserto não foi sozinho.
Mansur ouvir chamar pelo seu nome e reconheceu a voz do amigo Hassan.
- Entre.
- Senhor, o cavalo preto – era assim que o chamavam nunca lhe deram um nome – desapareceu
ontem de manhã e regressou há pouco, coberto de poeira vermelha, sem sela e com fome. Que acha?
Mansur ficou alerta. Não queria pensar sequer nessa hipótese para não se desiludir, mas a sua
mente focou-se de imediato.
- O mesmo que tu. Mas não digas a ninguém. Amanhã partimos com um grupo de alemães e
vamos verificar. Vamos fazer tudo em segredo Hassan, por favor. Nem uma palavra a ninguém, nem à
tua família.
- Assim farei senhor.
Capítulo Vinte e Quatro

Ema ficou encostada ao curral vendo os camelos a passarem o rio e a afastarem-se cada vez
mais. Não teve coragem de dizer a Mansur e Hamed que Miriam lhe tinha confidenciado que Fadila
estava num pranto de manhã. Raissa não regressara a casa e a pobre mulher já não sabia como
ocultar o facto do marido. Pedro estava a utilizá-la para saber pormenores da vida de Lara. Só
estranhava ainda não ter dado de caras com ele, afinal o covil do lobo ficava apenas a uns quinhentos
metros do Riad. Dissimulado como sempre o achou, decerto fazia tudo para evitar ser visto por quem
o pudesse denunciar. Sempre fora perito em mentir, trapacear e camuflar provas.
Enquanto Raissa subia a rua em direcção a casa e a caravana de Mansur e Hamed se
embrenhava no vale verdejante que precedia o deserto, Raissa pensava estar a viver um conto das
mil e uma noites. Pouco se importava que o pai a expulsasse de casa ou a mãe lhe virasse a cara para
sempre, em poucas horas estaria fora do país em companhia do homem que ela sempre sonhou
encontrar, caso o pai ameaçasse matá-la. Monsieur Afonso era um perfeito gentleman que a encheu de
mimos e palavras bonitas durante toda a noite e, o que mais a espantou foi que não lhe tocou. Queria
desposa-la virgem como mandava a lei do seu país. Ele prometeu-lhe que falaria com os pais dela e
se houvesse resistência haveria de encontrar uma forma de convencer o velho Hassan – dissera-lhe.
Raissa tinha dormido na sala enquanto Pedro dormira no quarto dele. A casa parecia um tugúrio
do lado de fora, mas por dentro era luxuosa. Pedro explicara-lhe que a tinha cedido ao seu amigo
Abdul para exercer advocacia.
- Bom dia minha querida. – e aproximou-se dela beijando-a na testa.
Raissa sorriu, como só ela sabia sorrir. Era uma mulher que deixava os homens tontos só de a
verem, mas até hoje guardou-se para o homem que amava. Mas Mansur entregou o seu coração a
outra, não lhe restava senão esquecê-lo.
- Bom dia senhor.
- Linda menina. Sabe mesmo tratar um homem como ele merece.
Pedro sentou-se à mesa, onde um criado, um rapaz dos seus quinze anos, servia chá, pão e fruta.
Um desjejum matinal leve como Pedro gostava.
Sentado na frente dela, tentou a sorte de sacar alguma informação.
- Diga-me princesa, os vizinhos franceses têm um acampamento no deserto onde costumam fazer
excursões. Verdade?
Raissa olhou curiosa com o raio do interesse num lugar cheio de pó, e sol que derretia tudo.
- Sim. Mas porque pergunta?
- Tenho um grupo de amigos que pensam em contratar os seus serviços. Sabe como se chega lá?
- Não. – e riu-se. – Mas porque quer saber? Tem noção da distância que é?
- Não tenho mesmo querida. Gostava apenas de verificar se o local é indicado para os receber.
- Nesse caso devia ter ido com eles, partiram antes do sol nascer.
- Fica para outra altura. – fingiu-se desinteressado. – Tome, beba este suco de ananas.
Belíssimo! – e estendeu-lhe o copo.
Lara bebeu o sumo adocicado e concordou que era mesmo bom. Mas o que lhe interessava
realmente era que ele falasse com o velho Hassan e a levasse consigo para Lisboa.
- O meu pai regressa amanhã do deserto. Fala com ele amanhã?
- Claro, querida. – e sorriu-lhe de forma sedutora. Dali a minutos ela ia adormecer e só
acordaria passadas muitas horas. Não queria que a tonta lhe atrapalhasse os planos, já que não sabia
onde era o acampamento.
O seu contacto tinha localizado Lara através do levantamento do multibanco em Fez, mas
perdera-lhe o rasto. Pedro enfurecido ameaçou o homem de morte. Como é que se deixou enganar por
uma mulher? Teria que resolver o problema sem ajuda. Mas o que Pedro não sabia é que havia um
mandato de captura sobre si e que as autoridades do país já estavam no seu encalço.
No final da tarde Fadila ainda chorava com as mãos agarrada à cabeça. Temia o regresso do
marido e contar-lhe que não sabia onde se encontrava a filha. Não havia mais desgraça para um
muçulmano que ter a filha desonrada.
Ema e Miriam tentavam consolá-la e pensavam na melhor forma de resgatarem a tola da
rapariga do covil de Pedro.
Miriam chamou Ema à parte, o que tinha para lhe contar não era bom.
- Ela está na casa do advogado, quer dizer, na casa do marido de Lara. o homem está lá há mais
de uma semana. E o pior é que ele suspeita que Lara esteja no acampamento.
Ema fez cara de surpresa. A amiga não conseguia encontrar o caminho sozinha.
- Não olhes para mim assim. Eles não te disseram, mas o cavalo preto desapareceu num dia e
voltou no outro. Isso não te diz nada? – perguntou Miriam.
- Custa-me a acreditar que Lara tenha pensado nisso. Ela não está habituada ao deserto.
- Ela já lá esteve, lembras-te?
Ema anuiu.
- Mas há mais alguma coisa não é? Já te conheço Miriam. Desembucha. – e colocou as mãos na
cintura em ar de desafio.
Miriam hesitou, mas o melhor era mesmo dizer.
- Esse tal Pedro ofereceu dez mil dirhams ao miúdo que trata dos camelos se ele o levasse ao
acampamento.
Ema levou as mãos à cabeça. Não havia forma de avisar Mansur. Resignou-se.
- Resta-nos esperar que eles cheguem amanhã e que a tragam de volta.

A poente, o céu apresentava laivos azuis e vermelhos, anunciado o cair da noite. Avistou o
acampamento a duzentos metros e o coração acelerou. Em silêncio rezou ao deus da mãe e ao do pai,
pedindo-lhes para que ela ali estivesse, a salvo.
Hassan recolheu os animais e afastou-se com eles uns cinquenta metros para os alimentar,
libertá-los das selas e das mantas que lhes serviam de suporte e Hamed indicava ao grupo os seus
aposentos. Dois rapazes tratavam da comida e da água e todos se recolheram às tendas - que
formavam um círculo- para se refrescarem e mudarem de roupa.
Sem fazer alarde, Mansur fez sinal ao irmão que ia entrar na sua tenda e num acto de
cumplicidade Hamed fez-lhe sinal que avançasse.
A noite estava a cair a pique e já existiam lanternas a querosene espalhadas pelo acampamento e
dentro das tendas. Em breve seguia-se o jantar típico acompanhado de música local.
Mansur destapou a entrada da tenda e tirou uma pequena lanterna do bolso apontando-a para o
interior. O seu coração riu-se por dentro em silêncio. A um canto, encolhida, estava Lara. Correu a
abraçá-la e emitiu o grito de um grifo para que Hamed soubesse que Lara estava ali.
- Não precisas de ter medo, nunca mais ficas sozinha. Vou proteger-te sempre. – a abraçou-a
com força enquanto as lágrimas dos dois se misturavam.
Lara soluçava em surdina agarrada a Mansur e justificava o seu comportamento de fera
acossada. Quando Mansur entrou na tenda teve noção que mais parecia um bicho que uma mulher
inteligente e instruída que estava ali, enrolada sobre si a um canto da tenda tentando passar
despercebida.
- Tive um terror de morte que fosse Pedro. Ele descobriu que eu estava em Fés e tive que fugir.
Não me ocorreu outro sítio senão este, mas ele é capaz de me encontrar, não estou segura enquanto
ele for vivo. Tu não o conheces, ele tem gente a trabalhar para ele em todo o lado.
- Não meu amor, não vai encontrar-te. Já sabemos onde ele está, é uma questão de horas até ele
ser preso.
Lara fez um ar de surpresa, mas Mansur recuou no propósito de lhe contar mais. Ema estava
convencida que ele não sabia, mas Mansur tinha as suas fontes de informação, no entanto havia
alturas que era mais prudente fazer-se de morto.
- Quem me dera ter tanta certeza como tu. Ele chega aqui. Tu não o conheces.
- Lara. – abanou-a para a tentar trazer à realidade. – Estamos preparados para isso se acontecer.
Hamed e Hassan estão avisados. Não te preocupes. Amanhã quando o grupo partir, eu fico contigo.
Hamed vai à polícia quando chegar à cidade e só saímos daqui quando ele estiver bem encarcerado.
- Eu fiz a denúncia para a polícia portuguesa, quando li na internet que mais uma prostituta tinha
sido encontrada quase sem vida. Ele pensou que a matara, mas a rapariga sobreviveu e conseguiu
identificá-lo. Há um mandato de captura, mas ele não desiste enquanto não me matar. Eu sei que foi
ele que matou a avó, tenho provas disso.
Lara levou as mãos à cabeça, horrorizada, sem conseguir continuar as revelações. Mansur
começou a achar que o sujeito era mais doente do que imaginava.
- Podes dormir descansada hoje. Vamos fazer turnos de vigia. Não creio que ele consiga cá
chegar. Poucos conhecem a localização do acampamento e os berberes que vivem por aqui não lhe
dizem de certeza, são fiéis e bons amigos. Mansur pegou-lhe ao colo e pareceu-lhe mais leve. Lara
emagreceu nas últimas duas semanas. Deitou-a em cima da cama e disse-lhe:
- Fica ai que vou buscar-te comida.
Mas de súbito voltou atrás e perguntou:
Mas como é que ele te descobriu? Foste tão cuidadosa em apagar o teu rasto desde que saíste de
Portugal.
- Mas esqueci-me de um pormenor. Quando o dinheiro se acabou, em Fés, levantei dinheiro
numa caixa ATM e essa conta está em nome dos dois. No dia a seguir começaram a seguir-me. Foi
assim que ele me descobriu, pelo extracto da conta. Fui tão burra! – levantou a voz irritada.
- Agora não tem importância, não vale a pena martirizares-te. – e saiu da tenda para dar algumas
ordens e combinar pormenores com os seus homens de confiança. De uma coisa Mansur tinha certeza.
Depois de resolvida a situação ia passar uns bons tempos fora de Marrocos e sobretudo do deserto.
Capítulo Vinte e Cinco

Lara dormiu envolta na protecção dos braços de Mansur. Há várias noites que pouco dormia e
sentir-se rodeada do amor de um homem, como ela nunca esperou encontrar, deu-lhe a serenidade
para se deixar embalar por um sono reparador.
Um dos guias mais ou menos da altura de Mansur vestiu as suas roupas e actuou como se fosse
ele. A caravana preparava-se para partir assim que o sol nascesse. Quando chegassem à cidade se
Pedro estivesse entocado em qualquer sítio a tentar perceber se Mansur vinha na caravana ficaria
com a certeza que sim. Nesta altura já não duvidava da personalidade doente do homem. A
capacidade de se transformar de acordo com o ambiente era quase tanta como a dos camaleões.
- Vamos ficar pouco tempo querida. Não tenhas receio que não te deixo sozinha, e a dois
quilómetros temos um acampamento bérbere, meus amigos. Não estamos sozinhos. O silêncio aqui é
tão grande que basta gritar para se ouvir a alguma de distância.
- Não queria envolver-te nisto. É um assunto meu. Tu não tens que ser penalizado pela minha
vida.
Mansur pegou no queixo de Lara, olhou-a na profundidade do castanho dos seus olhos e disse:
- Lara. Amo-te desde o primeiro dia que te vi naquele mercado, vestida de marroquina. Nunca
me passou pela cabeça interessar-me por ninguém daqui, mas, mesmo que fosses natural de cá,
religiosa ou não, nada impediria que eu te perseguisse até te conquistar. Não me perguntes o que vi
em ti. Não sei se foi o mesmo sofrimento que eu carreguei durante anos, se a doçura do teu olhar, se a
tua beleza de mulher simples e sem pretensão, não sei. Só sei que te amo. Mete isso na tua cabecinha.
– e encostou-lhe o dedo indicador na testa. - Tu és a mulher da minha vida, é a ti que eu quero, e,
quando esta trapalhada acabar, vou casar-me contigo.
Lara cingiu-se mais ao corpo de Mansur e encostou a cabeça no peito moreno, deixando rolar as
lágrimas. Ultimamente andava uma chorona.
- Também te amo, mas casar não quero. Não posso, mesmo depois de obter o divórcio se o
conseguir. Entendes?
- Entendo amor. Não preciso de um papel para ficar contigo, se um dia estiveres preparada
casaremos.
Lá fora o bulício da caravana ouvia-se. Os homens falavam alto, os camelos blateravam com a
expectativa de voltar ao curral e o grupo de alemães reclamava do calor. No final do dia estariam a
chegar à cidade.
Raissa deixava-se comprar por pouco. Bastou Pedro acenar-lhe com um anel de ouro cravejado
com um diamante pequeno, pedindo-lhe um favor em troca, e ela acedeu de imediato. Informado por
um garoto da rua da hora habitual da chegada da caravana que vinha do passeio ao deserto, Pedro
pediu a Raissa que fosse ver se Mansur vinha com o grupo. Ninguém melhor que ela para detectar
algo fora do normal. Se estava certo como pensava, Lara estaria no deserto com o amante. Seria um
prazer acabar com os dois ao mesmo tempo.
O sol estaria a pôr-se dali a uma hora e Miriam e Ema já não sabiam que fazer para consolar
Fadila. A mulher lamuriava-se há horas. A filha não lhe obedecia e a sua honra estava desfeita. Era
uma proscrita. Contava com Mansur para consertar as coisas com Hassan, mas temia que desta vez
fosse impossível.
Escondida atrás de umas rochas, Raissa observava a caravana a passar o rio. Reconheceu as
roupas de Mansur no fim da caravana. Estranho, já que Mansur encabeçava sempre a fila. Deixou-os
aproximar mais e um sorriso aflorou-lhe os lábios. Desatou a correr até à casa do estrangeiro e, mal
ele lhe abriu a porta confirmou o que Pedro já suspeitava.
- Mansur não vem na caravana, só Hamed e o meu pai.
Pedro fez-lhe uma festa na face. Estendeu-lhe um copo de sumo e disse-lhe para se sentar e
bebê-lo. Raissa não tinha sede, mas mesmo assim obedeceu. De seguida Pedro desapareceu no
interior da casa e, passados alguns minutos, Abdul, o advogado saiu com uma pequena mala de
viagem. Ao passar por ela, o homem riu-se e nem sequer lhe dirigiu a palavra, mas, o mais curioso é
que o viu meio distorcido, como se fosse a cair. Raissa apenas o tinha visto umas duas vezes, mas
não gostava dele e não entendia qual a ligação dele com Pedro, apesar de este lhe dizer que era um
amigo de longa data. Raissa sentiu os braços pesados, as pernas e os olhos a fecharem-se, mas,
também viu Pedro a aproximar-se dela com um sorriso nos lábios. Que homem bonito pensou. Queria
dizer-lhe que estava cansada, mas os seus lábios não se mexeram e os olhos fecharam-se como se
tivesse as pálpebras presas a pedras.

O sol abrasador quase o punha louco, mas o rapaz apontava para o horizonte indicando que
faltava pouco. Receava que as garrafas de combustível se incendiassem com a temperatura e estava a
perder a paciência com o jovem pastor. Começou a pensar que ele o estava a enganar e rosnou-lhe
ameaças em francês, dizendo-lhe que não lhe pagava e o matava se ele o enganasse. Pela mente
passavam-lhe as imagens que tinha planeado para terminar com os dois amantes. Faltava pouco. Os
dez mil tinham sido bem empregues. Desta vez acabava-se tudo e ia partir para um país distante e
viver do que tinha amealhado durante dez anos a defender criminosos, e com a herança da família,
mais do que suficiente para não precisar de trabalhar. Abdul, o seu fiel Abdul, que ele tinha
defendido de uma acusação de tráfico de droga, ia na sua frente até às ilhas Caimão e não sobravam
testemunhas para deporem contra ele. Sentia-se eufórico, invencível, ria-se de todos os parolos que
tinha espoliado até agora e das putas como Raissa e Suzi que degolara. A esta hora Raissa…estava
morta, mergulhada no seu próprio sangue e Suzi já deveria estar em esqueleto, e a memória já lhe
escapava em relação às outras.
O sol começava a cair a pique e o rapaz dos camelos indicou-lhe que tinham que se esconder
até o sol se pôr. O acampamento estava a quinhentos metros.
Pedro deu-lhe o dinheiro e ordenou-lhe que se fosse embora antes que ele mudasse de ideias e o
matasse. Pedro estava tão cego pelo ódio que nem percebeu que o rapaz se afastou com os dois
camelos. Ficou sozinho no deserto sem hipótese de voltar. Pedro exultava de ódio. Agora era só
esperar que anoitecesse.

A dois quilómetros dali Lara e Mansur jantavam com os berberes no acampamento ao som da
música local. Lara tentava esquecer-se de Pedro e do perigo que corriam. Tinha a certeza que só
estavam ali para ela se distrair, apesar de reconhecer que aquele povo era simpático e interessante.
O cuscuz de borrego e legumes estava divinal – hoje tinha conseguido comer – e a música era
nostálgica, tudo parecia sair de um filme de príncipes e princesas. Riu-se mesmo com a gravidade do
assunto.
- Qual é a graça. – perguntou Mansur curioso. Era tão bom vê-la rir.
- É a minha mente fértil. Estou a sentir-me uma Xerazade.
- A minha Xerazade. Só não te beijo porque não quero chocar os meus amigos, mas assim que
regressarmos ao acampamento, quero tudo a que tenho direito, princesa.
- Prometido. – provocou-o. – Isso se não te perderes na escuridão.
- Fica descansada, sei orientar-me pelas estrelas. – rematou com o mesmo tom.
Perto do acampamento, Pedro tentava perceber se Lara e Mansur estavam nas tendas. Não via
luz, apenas as sombras vermelhas dos panos grossos que protegiam do sol e do frio e o mais absoluto
silêncio reinava por ali. Era hora de agir. Provavelmente estariam a dormir.
Pegou no pesado alforge com as garrafas de gasolina e começou a regar parte das tendas. O
vento estava a favor dele, pelo que levava o cheiro no sentido contrário.
A quatro quilómetros dali o rapaz dos camelos encontrou-se com a polícia. Confirmou que tinha
deixado o homem no acampamento. Com a polícia estava Hamed. O rapaz prendeu os camelos e
sentou-se no chão junto ao patrão. Não perdia aquela prisão por nada e o dinheiro já era seu.
- Lá está o acampamento. – apontou Mansur. – Não te disse que o encontrava.
- O senhor é um verdadeiro homem do deserto. – ironizou Lara com alguma vontade de brincar.
- Entre outras coisas. Vem cá que eu já te mostro. - e puxou-a para o interior do cercado
formado pelas tendas. Mas lembrou-se das regras de segurança e parou refreando a vontade de a
carregar para a cama e amá-la com sofreguidão naquele instante.
- Espera, vou verificar se não entrou nenhuma cobra.
Lara fez cara de horror e Mansur riu-se. Viu-o desaparecer dentro da primeira tenda e uma luz
ténue apareceu através da janela de rede. Ele acendera um dos candeeiros.
- Podes entrar. – chamou-a do interior.
Assim que Lara pôs os pés dentro da tenda ele agarrou-a pela cintura, pegou-lhe ao colo e
suavemente deitou-a em cima da cama feita com lençóis limpos e brancos. Começou a beijá-la no
pescoço, depois na orelha e depois devorou-lhe a boca com intensidade, misturando a sua língua com
a dela. A excitação crescia e Mansur começou a desabotoar-lhe os botões da djelaba. Lara
aventurou-se com as mãos pelo interior das vestes dele e preparava-se para lhe desabotoar as calças
quando ele a fez parar e de repente sentou-se na cama. Fez-lhe sinal que não fizesse barulho e inalou
com profundidade. Havia um cheiro estranho no ar e alguém andava à volta do acampamento. O seu
ouvido treinado detectou uma presença estranha.
- Vou lá fora. – disse-lhe ao ouvido e colocou-lhe o velho Colt 45 na mão.
Lara não queria pegar na arma mas Mansur obrigou-a.
- Por favor. – pediu em surdina. – Não hesites em disparar se ele aparecer. – disse mesmo não
sabendo se ela o sabia fazer.
Enquanto Mansur saia de mansinho tentando não espantar o intruso, Pedro acabara de despejar a
última garrafa nas tendas. Olhou a pequena chama do isqueiro com um brilho no olhar e ateou o fogo.
Imediatamente as labaredas se espalharam lançando fumo negro e chamas cor de laranja. Agora era
esperar que o fogo os consumisse, aos dois. Acidentes acontecem. Sempre avisara Lara. que pena ela
não lhe ter dado ouvidos. Podiam ser felizes os dois.
Pedro desviou-se uns metros do acampamento a ser devorado pelas chamas e ficou à espera de
ouvir os gritos de aflição do casal de amantes.
Capítulo Vinte e Seis

As chamas alastraram rapidamente na lona seca e o que Mansur encontrou no exterior foi o
acampamento a consumir-se em chamas no exterior. O seu pensamento voou para Lara e lançou um
grito vindo da profundeza da garganta ordenando-lhe que saísse da tenda. Correu até à porta antes
que as chamas chegassem onde ela estava, mas a gasolina era altamente inflamável e rapidamente
alastrou. Aos tropeções tentou encontrar uma abertura mas as chamas impediam-no de entrar. Lançou
um urro de dor que deve ter soado a quilómetros e continuou a gritar num desespero absoluto.
Consumido pela dor e pelo ódio tentou localizar Pedro. Ia matá-lo com as suas próprias mãos.
- Aparece covarde! Se és homem mostra-te! –gritou a plenos pulmões.
Um lumaréu de chamas subia até às estrelas, lançando fumo preto que entrava nos pulmões e
provocava tosse. Mansur enrolou parte do turbante em volta da boca para evitar inalar o fumo e fez
mais uma tentativa de entrar. O fogo pegou-se à sua roupa e rebolou-se na areia para o apagar. Lara
tinha sido engolida pelas chamas e nada fizera para a salvar. Sabia que um dia a vida ia castigá-lo
pelas suas acções da juventude.
A poucos quilómetros a polícia avançava com a rapidez que podia. Hamed temia que fosse
tarde demais. As chamas que viram eram tão altas que o acampamento já não devia existir. Esperava
com o coração apertado que o irmão e Lara tivessem escapado a tempo.

Mansur levantou a cabeça da areia onde acabara de se rebolar para apagar o fogo da roupa e
pareceu-lhe ver uma figura iluminada pelas chamas a poucos metros de distância. Com agilidade
pôs-se de pé e correu na direcção do homem que entretanto se pusera em fuga. Mansur não precisou
de correr muito para o apanhar. Agarrou-o pelo pescoço com um golpe de mãos e deu-lhe com o
punho fechado na cabeça. Pedro ficou zonzo e incapaz de reagir. A sua força sempre foi exercida por
mãos alheias. Mansur arrastou-o pela areia até junto das tendas a arder e as lágrimas caiam-lhe pela
cara abaixo. A vontade de o matar desvaneceu-se. Não era um assassino e a culpa pelas atrocidades
que fez na adolescência falaram mais alto. Afrouxou a pressão sobre o pescoço de Pedro e, ele que
até ali se tinha feito de morto, aproveitou para reagir. Deu um encontrão a Mansur que caiu de costas
na areia e tentou escapar. Mas, com um reflexo rápido de mãos Mansur apanhou-lhe uma perna
lançando-o ao chão. Os dois homens começaram uma luta corpo a corpo com socos pontapés e um
riso escarninho de Pedro que estava a levar a melhor a Mansur. Apesar de Mansur ser um homem
forte e alto, Pedro praticava desportos de combate e sabia bem defender-se.
Pedro conseguiu imobilizar Mansur com um golpe de braço, esmagando-lhe a traqueia e,
preparava-se para dar o golpe final quando Mansur conseguiu reagir. Mansur baixou-se e projectou
Pedro por cima das suas costas em voo.
Antes que pudesse ver onde tinha caído o adversário, Mansur ouviu um urro de dor. Pedro caiu
no centro das chamas. O cheiro a carne queimada misturou-se com a gasolina e os materiais que
restavam do acampamento e, subitamente a estrutura desabou engolindo Pedro no seu interior para a
eternidade.
Mansur deixou-se cair na areia com a cabeça entre os joelhos mergulhando num alheamento tal
que nem reparou que a polícia, Hamed e os berberes chegaram estavam atrás dele.
Sentiu uns braços a puxarem-no e uma voz que lhe parecia familiar.
- Mansur! Reage homem! O que aconteceu? Onde está Lara?
Mansur mantinha o olhar vidrado e fixo no fogo.
- Está em choque. – disse um dos policias. – Dêem-lhe tempo.
As chamas começavam a esmorecer e o grupo de mais de vinte homens cercava o que restava do
acampamento à espera que o fogo acabasse e permitisse ver o que restava. Sentado na areia
abraçando o irmão, Hamed tentava trazê-lo à realidade.
Passada uma hora apenas restavam cinzas e olhares perdidos. A polícia tentava encontrar os
corpos carbonizados de Lara e Pedro no meio dos escombros constituídos por utensílios de latão
retorcidos, chuveiros, camas e a estrutura de metal que servia de suporta às tendas.
Mansur começava a voltar a si, e as lágrimas corriam-lhe pela face. Hamed abraçava o irmão.
Não suportava vê-lo a sofrer. Olhou para o céu e pediu à mãe que o protegesse.
Com varas compridas policias e berberes, tentavam encontrar os corpos carbonizados e, ao fim
de algumas tentativas encontraram um corpo enrolado e envolto nos destroços. Era impossível de
identificar apenas com a luz das lanternas, mas Hamed ouviu um dos polícias dizer para outro que
devia ser um homem. Faltava agora encontrar o da mulher. Um dos polícias apareceu com o Colt 45
enfiado na ponta da vara e perguntou a Mansur se reconhecia aquela arma. Mansur ergueu a cabeça
com esforço e anuiu. Se a arma estava ali, Lara também estava.
Nada mais havia a fazer. A polícia recolheu o corpo com a ajuda dos bombeiros e meteu-o num
compartimento de chumbo para ser enviado para autópsia.
Hamed pegou Mansur pelo braço e disse-lhe:
- Vamos? Não resta mais nada. Terminou Mansur, vamos embora. – e agarrou-o pelos ombros
tentando fazer-se forte para o apoiar.
- Não. – respondeu com rispidez. – Vou ficar aqui até amanhecer.
- Não vais não. – impôs-se. -Vamos nos carros da polícia, já não há condições para ficar aqui, o
acampamento está destruído e não podemos voltar a pé.
Mansur sentou-se de novo no chão recusando-se a abandonar o local.
Hamed ouvia os polícias a falarem entre si em surdina, algo se passava que os fazia estar
agitados. Apontavam para os escombros e falavam em Darijá. Por mais que tentasse entender
falavam demasiado rápido para o pouco domínio que ele tinha da língua.
Olhou a direito para Mansur, fez voz grossa e disse-lhe com autoridade e firmeza.
- Pela primeira vez na tua vida vais obedecer-me nem que eu tenha que te carregar às costas ou
pedir à polícia que te leve à força. Compreendo o teu sofrimento, mas se ficares aqui vai ser pior.
Noutra ocasião, Mansur tinha-lhe dado um encontrão – como já o fizera quando adolescente – e
não obedecia. Mas esse Mansur já não existia e, o que estava ali naquele deserto era um homem
cheio de remorsos e culpa. Levantou-se da areia sem retaliar e caminhou ao lado de Hamed até junto
do grupo que se juntara no alto da duna.
Capítulo Vinte e Sete

Do cimo da duna, Mansur, olhou uma vez mais para os escombros do acampamento que tinha
construído com tanto amor e onde a mulher que amava tinha perdido a vida. Na sua mente surgiam
imagens do sorriso de Lara, das mãos pequenas e delicadas que faziam maravilhas apenas com um
pedaço de papel e meia dúzia de lápis coloridos, do corpo esguio e macio que se enroscava no seu
quando faziam amor, do apreço que tinha pela mulher corajosa que ela era, da disponibilidade para
os outros quando os colocava em primeira lugar em vez dela, e das conversas que tinham sobre arte,
história, viagens e literatura, tudo o que tinham em comum. À medida que os pensamentos o
assaltavam, uma raiva silenciosa começou a crescer no seu interior. Não suportava a ideia de nunca
mais a ver e, de súbito, num acto tresloucado, saiu a correr pela escuridão da noite a gritar o nome de
Lara a plenos pulmões e perdendo-se nas dunas sem que desse ouvido aos chamamentos do irmão e
dos polícias. Mansur correu, correu, caiu e levantou-se várias vezes, tropeçou e rolou pelas dunas
abaixo e nem uma única vez sentiu dor física, apesar de ter ficado com contusões provocadas pelas
quedas. Tudo aquilo parecia um sonho do qual tinha dificuldade em acordar. Continuava a gritar o
nome dela que ecoava por todo o deserto. Recusava-se a aceitar que Lara morrera no incêndio com
Pedro. Lara estava por ali escondida. Uma mulher como ela, habituada a defender-se, não tinha
sucumbido de forma tão estúpida.

Lara perdeu a noção do quanto correu e a direcção que tomou. Passou ao lado do acampamento
dos berberes, mas continuou a correr, não podia ficar ali. Era urgente esconder-se.

Com quanta força tinha, Mansur acelerou o passo na direcção do acampamento e em pouco
tempo estava perante um grupo de rostos escuros de homens e mulheres que não entendiam o que se
passava e não o podiam ajudar. Mansur perscrutava os rostos cravados nele, à procura de uma
resposta que o aliviasse. Reinava o silêncio. Ainda há um par de horas tinham jantado ali, recebidos
por um gesto de hospitalidade do chefe do grupo nómada e num abrir e fechar de olhos a sua vida
desmoronou-se.
A uns duzentos metros do acampamento dos berberes dois jovens perscrutavam o terreno em
busca de uma mulher que viram passar a correr pelo acampamento no momento em que os homens
sentados à lareira na rua viram o clarão do fogo das tendas do estrangeiro.
Assim que Mansur saiu da tenda e a deixou com a pistola na mão, Lara sabia que era uma
questão de minutos até Pedro os encontrar e matá-los aos dois. A sua mente raciocinou de forma
acelerada tentando encontrar uma solução para poupar a vida de Mansur. Sentiu o fumo a sufocá-la e
adivinhou o que a mente psicopata de Pedro tinha feito. O medo explodiu na cabeça de Lara. Com o
coração quase a saltar-lhe do peito, largou a pistola no chão, e saiu atrás de Mansur mas em direcção
oposta. Se Mansur não tivesse que a proteger talvez conseguisse vencer Pedro. Correu pelas dunas
até conseguir encontrar o acampamento dos berberes e acabou por esconder-se num sulco cavado
pelo vento. Não era fundo o suficiente para a tapar completamente mas ao abrigo da noite
proporcionava-lhe um esconderijo. O clarão das chamas que consumiam as lonas do acampamento
chegava até ela e, quando se atreveu a erguer a cabeça ligeiramente fora do buraco para tentar
perceber se Pedro a teria perseguido, o horror que sentiu com a eminência da morte de Mansur a
passar-lhe pela mente, a ser devorado pelas chamas, fê-la perder os sentidos. Atingira o limite das
suas forças. Todos os seres humanos tinham um limite para o sofrimento psicológico e físico e o dela
terminara. O cérebro arranjou forma de desligar para se proteger.
No escuro do deserto qualquer luz sobressaia e os berberes viram o clarão ao longe. Uns dez
homens foram em busca de saber o que tinha sucedido ao vizinho estrangeiro, «o homem do deserto»
como lhe chamavam, e ao saberem o que se passara ficaram em silêncio. Os dois rapazes que viram
passar a mulher a correr, desviaram-se do grupo sem dar o alarme e seguiram no seu encalço.
Habituados à noite do deserto era fácil procurar em todos os cantos que conheciam. Facilmente
encontraram Lara. Os dois jovens, fortes e sadios, ergueram-na do buraco e um deles carregou-a às
costas em direcção ao acampamento. Lá, as mulheres saberiam o que fazer. Lara continuava sem dar
sinal de si.
Entretanto, Mansur ficara parado em frente aos rostos das mulheres e dos poucos homens que
tinham permanecido no acampamento. O chefe da tribo sentou-se com ele no chão, em frente à
fogueira meio apagada e falou-lhe como só um velho sábio sabe fazer, tentou consolá-lo e falou-lhe
da vontade de Alá o seu Deus, o Deus que era também do pai de Mansur, mas ele não o ouvia. Com o
olhar perdido e as lágrimas de toda uma vida a escorrerem-lhe pelo rosto já deixara de sentir o que
quer que fosse. O velho fixou o olhar para lá do rosto de Mansur e esboçou um sorriso. Bateu-lhe ao
de leve no ombro e balbuciou qualquer coisa em árabe. O homem continuou a apontar por cima do
ombro de Mansur e abanou-o para que ele olhasse.
Mansur virou-se devagar, como se estivesse em camara lenta e ao deparar-se com Lara
carregada às costas de um dos rapazes, levantou-se de um salto e correu até eles.
Mansur pegou-lhe ao colo e sentou-se no chão abraçado a ela. Apalpou-lhe a cara e as mãos.
Estavam quentes. Estava viva.
O que restou da noite foi passado a fazer a viagem de regresso à cidade. O reencontro dos dois
foi comovente. Ao constatarem que estavam vivos e que para além de uns arranhões estavam inteiros,
caíram nos braços um do outro.
Foram atendidos no hospital para exames de rotina e depois de algumas horas foram
dispensados. Foi nessa altura que ficaram a saber que Raissa se encontrava hospitalizada. Fora
encontrada quase sem vida, tal como a outra jovem, Suzi. Fadila e Hassan estavam sentados no
corredor à porta do quarto onde a jovem recebia assistência médica e quando Mansur se dirigiu a
eles, os dois baixaram os olhos envergonhados. A filha tinha-os coberto de desgraça. Mansur
desculpou-a e confortou-os dizendo-lhes que tudo se ia resolver.
A polícia pediu a Lara e Mansur que não saíssem da cidade até à resolução de todas as
formalidades, mas a vontade de Mansur era sair dali com Lara em direcção a um destino que lhes
desse paz e tranquilidade o mais rápido possível.
Epílogo

Lara tinha que encerrar este capítulo da sua vida para seguir em frente. O que ainda a ligava a
Pedro era apenas o facto de ser a viúva e herdeira. Por sua vontade teria doado tudo a uma
instituição de caridade, mas descobriu que a única coisa que tinha sobrado era a casa da avó. Pedro
tinha muito dinheiro mas Lara não lhe conseguia chegar. Estava aplicado no estrangeiro e no nome da
sociedade a que pertencia. Os sócios passaram-lhe a perna e apropriaram-se do dinheiro assim que
souberam da morte dele. Lara não queria um tostão daquele maldito dinheiro. Todo ele cheirava a
sangue. Quanto à casa da avó de Pedro, por mais que gostasse dela, jamais iria conseguir viver ali.
Encarregou uma agência imobiliária de a vender. Queria resolver esse assunto sozinha, mas Mansur
fez questão de a acompanhar até Lisboa e ajudá-la a encerrar esse lado da sua vida.
Há cinco meses que estavam em Marselha na casa de Mansur e já havia dias em que conseguiam
não falar do pesadelo que viveram naquela noite no deserto. Mansur sabia que escaparam os dois
graças à argucia de Lara que teve o discernimento de fugir.
Cristina Santiago passou a tarde atarefada a cozinhar para reunir a família ao jantar: o filho
André, completamente sarado do ataque cujo mandatário se veio a provar ter sido Pedro, Francisco
que finalmente sabia que a filha estava com um homem bom e que a protegia e Ema e Hamed que
estavam de passagem por Lisboa em direcção à Argentina em viagem. Uma família fora do comum,
mas onde o amor residia. Ema fechou o Riad durante três meses e dispôs-se a acompanhar Hamed
numa viagem, depois tinham planos de continuarem a viver na paz em Ouarzazate. Lara e Mansur já
tinham acordado entre os dois passar parte do ano divididos entre Marselha e Ouarzazate, mas as
viagens ao deserto ainda iriam demorar um tempo. Mansur não queria voltar àquele local, iria
arranjar outro e agora tinha uma pessoa a quem se dedicar: Lara.
Há uma hora que riam e conversavam sobre tudo e nada. Havia um pacto silencioso entre todos.
Ninguém falou sobre Pedro. De alguma forma todos queriam esquecer que aquele homem tinha
cruzado as suas vidas.
Cristina estava encantada de ter os seus três filhos – considerava Ema e Lara como filhas –
reunidos à mesa e Francisco aproveitava para avaliar o novo companheiro da filha. O raio do nome
do homem não era fácil de explicar aos seus amigos, mas pouco lhe importava isso agora, bastava
olhar para a filha e qualquer dúvida que tivesse sobre a sua felicidade dissipava-se naquele instante.
Nunca lhe viu o brilho no olhar que lhe observava hoje quando olhava para Mansur.
- E já pensaram onde vão viver? – deixou escapar sem conseguir conter a curiosidade.
Francisco não se habituava à ideia de ver a filha, uma, a duas vezes por ano.
Cristina e André riram-se e Lara e Mansur olharam-se com cumplicidade.
- O senhor será sempre bem-vindo em nossa casa, bem como a sua esposa e o seu filho. –
respondeu Mansur com sinceridade. – A última coisa que me passaria pela cabeça seria afastar-vos
uns dos outros. Creio que vão começar a passar umas temporadas connosco. Conhecem o deserto?
Francisco acenou que não e sorriu. Finalmente podia ficar descansado em relação a Lara.
Mansur parecia ser um bom homem. Com a aposentadoria ia começar a sobrar-lhe tempo para cuidar
dos netos e apesar de não se atrever a sugerir a qualquer dos três que esperava isso deles, estava
desejando de ver crianças a correrem à volta dele. Cristina sempre teve a capacidade de se antecipar
ao marido e ler-lhe os pensamentos. Coisas de mulher. Costumava justificar-se quando lhe decifrava
o olhar.
- Já reparaste que Lara devora tudo o que está na mesa com sofreguidão? – disse Cristina ao
marido, em surdina para que os outros não ouvissem.
Francisco sorriu-lhe. Quem sabe se vinha um neto a caminho.
No final do jantar fizeram-se brindes às gerações futuras, ao amor e promessas de manter a
família unida.

Sete meses depois, com o filho bebé nos braços, Mansur comtemplava fascinado o pequeno
rosto que lhe devolvia o olhar. Sem saber o que dizer a um recém-nascido e sem vontade de o deitar
no berço, manteve-o aninhado no colo e resolveu dar-lhe um conselho.
- Um dia, filho, vais ser um homem e para lá chegares tens que percorrer um longo caminho, por
isso vou contar-te uma história: Era uma vez um rapaz que se sentiu muito perdido durante a sua
adolescência e nunca quis ouvir os conselhos do pai. Tornou-se um rapaz mau e arrogante e que
destruía coisas…chamava-se…bom, vamos chamar-lhe Janvier.
À porta, discreta, Lara, ouvia embevecida a continuação da conversa:
- Esse Janvier era um garoto estúpido, que não via o bem em ninguém e especialmente nele
próprio. Um dia resolveu incendiar um carro, e foi nesse dia que a sua vida mudou para sempre. Há
pessoas boas no mundo meu querido, e quero que saibas que eu e a tua mãe vamos amar-te sempre,
mesmo quando nos zangarmos contigo.
E continuou a conversa com o filho que parecia entender tudo o que o pai lhe dizia.
- Esse Janvier era um homem errante e um pouco amargurado que procurava a paz no deserto,
até que um dia conheceu um anjo num mercado na rua, quando abastecia a despensa de casa e o que
viu cortou-lhe a respiração.
O bebé olhava para ele e fazia estalidos com a boca.
- E o que é que ele viu assim de tão fabuloso? – perguntou Lara, da porta, num sussurro terno e
comovido.
Mansur ergueu a cabeça, olhou para ela com o coração nos olhos. Com ternura e amor,
respondeu:
- A mulher mais doce à face da terra. A mulher que eu amo.
OBRIGADO POR LER O MEU LIVRO!

Caro leitor,
Espero que tenha apreciado ler “ O Homem do Deserto”. Para mim foi um prazer imenso
escrevê-lo.
Como autora adoro ter feed back dos meus leitores e, mesmo se a critica não é boa mas é justa
serve para melhorar o meu desempenho como escritora. Digam-me o que gostaram, o que detestaram
e até o que faltou no livro. Podem contactar-me por email, subescrever a newsletter no meu blog e
acompanhar os novos lançamentos.
Vou pedir-lhe um grande favor. Gostaria que deixassem uma revisão honesta na amazon quando
terminarem de ler o livro, quer goste, ou não, no caso de o desejarem fazer. Se o fizerem ficarei
muito grata.

Muito obrigado por ter lido o meu livro e por ter despendido algum do seu tempo comigo.

Sempre grata

Ambra Blanchett
SOBRE A AUTORA

Nasci numa cidade pequena do interior Alentejano, no dia em que começa a Primavera, corria o
ano de 1963. Lembro-me de assistir - via televisão- à chegada do homem à lua em 1969, e no mesmo
ano, do terramoto mais devastador depois de 1755. Ah! Já me esquecia, do Maio de 68, não por ter
consciência do que estava a acontecer fora de Portugal a viver em plena ditadura, mas por ser filha
de emigrantes em França que o viveram na primeira pessoa.
Sou do tempo da “Heidi e do Pedro”, e da “Abelha Maia” da telenovela "Gabriela Cravo e
Canela", da “Tieta do Agreste” e outras maravilhas que vieram do lado de lá do Atlântico no final
dos anos 70. Desde que me lembro (assim que aprendi a juntar as maravilhosas letrinhas), comecei a
devorar livros. Sim, a devorar livros. Ninguém lê dez livros por mês aos dez anos, o máximo que o
carro itinerante da Gulbenkian, permitia que cada criança levasse. Hoje leio cerca de dois a três
livros por mês porque não tenho tempo para mais.
Aos sete anos fui viver para França e não me importava, mesmo nadinha, de ser francesa, e não
vou dizer porquê, (já perceberam porque adoptei um pseudónimo francês?), e pronto. Fui trabalhar
muito nova, casei, tive filhos, tirei uma licenciatura em psicologia clínica, seguida de uma
especialização em psicoterapia de adultos e crianças, e fiz metade de outra especialização em
Terapia Familiar e de Casal. Como estudar não é tudo na vida, quando cheguei aos cinquenta, quis
experimentar a escrita. Fiz um curso de escrita criativa e aventurei-me no meu primeiro livro, depois
noutro e já vou no sétimo, dois sem pseudónimo (escritos pela psicóloga Lídia Craveiro) e cinco
pela romancista Ambra Blanchett. Não haja confusão de identidades. Estou a ser irónica, entendem?
E pronto, já plantei árvores (tive a sorte de passar a infância numa quinta), já tive filhos, e já
escrevi livros. Missão cumprida? Claro que não. Falta-me ser avó, viver muitos anos ainda e
escrever muitos livros. Adoro viver e viajar.
Se ainda tiver paciência visite o meu blogue sobre livros e escrita criativa.
www.ambrablanchett.blogspot.com
OBRAS DA AUTORA PUBLICADAS NA AMAZON:

ANNA (saga familiar livro 1)


GABRIELLE (saga familiar livro 2)
BRINCOS DE PRINCESA
JARDINS DE LUAR
ALGUÉM PARA AMAR
SOMEONE TO LOVE (traduzido para inglês)
A PRENDA DA NOIVA
O HOMEM DO DESERTO.
PRÓXIMA PUBLICAÇÃO

Capítulo 1

Lisboa, Maio de 1940


Capítulo Um

- É um homem muito garboso o Diogo. É ele que a faz sorrir assim com esse ar tão… luminoso?
Salomé conteve-se para não dar um salto na cadeira. A condessa era uma mulher muito
perspicaz. Detestava hipócritas e conseguia por a nu tudo o que observava entre os circunstantes
sempre que a criticavam, coisa que ninguém se atrevia a fazer com receio da sua língua. Devia ter
sido uma mulher muito bela e cortejada em jovem, ainda conservava traços de beleza, apesar das
muitas rugas que tentava disfarçar com maquilhagem.
- Pensamentos maus não se revelam condessa.- respondeu Salomé com malicia em surdina.
- Ora minha querida, sei bem do que fala. Mas cá entre nós, são esses que dão sabor à vida. – e
deu-lhe uma palmadinha na mão fazendo soar a quantidade de pulseiras que ostentava no braço, qual
guizo de cobra cascavel. – Todos os que estão aqui sentados pautam por serem santos, e apostava a
vida em como estão a fazer conjecturas acerca de Diogo e da viúva, mas sabe uma coisa?
Salomé olhou-a tentando decifrar o que a nobre senhora queria insinuar.
- Ele é o único verdadeiro aqui. Todos os outros são uns hipócritas.
Quando Salomé voltou a prestar atenção ao que se passava à sua volta, Diogo estava sentado ao
lado de Isabel Carmona, a viúva jovem, e a madrinha fuzilava-o com o olhar. Do outro lado da mesa
Diogo fez-lhe um aceno de cabeça em sinal de cumprimento e ela respondeu sem conseguir evitar um
rubor na face.
- Tome cuidado minha querida. Não se apaixone por ele, é um destruidor de corações. Mas é um
homem – fez um suspiro contido – como deve ser desde o exterior ao interior. Se eu fosse mais nova
não me escapava. – e piscou o olho a Salomé.
Ficou sem perceber a conversa da condessa que por vezes dizia coisas que pareciam não fazer
sentido, mas levantou os olhos do fois gras com o qual se deliciava e dispôs-se a apreciá-lo: rosto
quadrado e bem definido pela estrutura óssea, lábios cheios, nariz aquilino e uma fronte alta como
sinal de inteligência. Diogo conversava com a viúva e sorriam um para o outro. Ficou pasmada a
olhar para o par sem conseguir despegar os olhos.
- Disfarce mais minha querida.- aconselhou a condessa.
- Dona Carminda, a senhora hoje fala por enigmas.
- Um dia deixa de ser enigma. Dou-lhe três dias.
Salomé franziu o sobrolho e pensou que a velha, apesar de divertida, estava a ficar esclerosada.
Uma hora depois as senhoras terminavam a sobremesa de lampreia de ovos - demasiado
enjoativa para o gosto de Salomé que a recusou – e notou que o padrinho estava agitado. Os seus
setenta anos já lhe pesavam o bastante para ficar nervoso em situações que há dez anos ainda
dominava com poder.
José Luís de Andrade levantou-se e propôs um brinde ao regresso do filho Diogo a Portugal.
Diogo agradeceu em voz alta, timbrada, que se fez ouvir em toda a sala e ergueu o copo. Salomé
imitou os convivas e quando todos brindaram, Diogo, do outro lado da mesa, ergueu o copo na sua
direcção, olhando-a como se olha uma mulher: com desejo e admiração. Salomé não baixou a guarda
e retribuiu, mas por dentro abanou como um pudim de gelatina. Afinal ele era o padrinho mais novo,
fora assim que se habituara a vê-lo ao longo da sua meninice. Não entendia aquele homem, ali
presente, que decerto já não era o mesmo que partiu para a colónia portuguesa quando ela era ainda
criança.
- Então minha querida, já percebeu?
- Não Dona Carminda. – mentiu.
Não queria admitir que ele a olhava com lascívia. Foi um erro não lhe ter revelado a sua
identidade. Mas ele não perguntou e sempre adorara jogos de sedução. Era assim que conseguia
quase tudo dos padrinhos. Se o conhecia ainda ele partia para o Alentejo em breve e ela ficava em
Lisboa. Não haveria mais hipóteses de convívio.
- Sempre foi muito má a mentir querida.
- Devo ter aprendido com a senhora. – respondeu insolente.
- Ainda bem que lhe ensinei alguma coisa, detesto mentiras.
A senhora da casa deu a refeição por terminada e convidou as senhoras a passarem ao salão de
chá, enquanto os homens se dirigiram à sala de jogos para disfrutarem de charutos, cigarros e um
bom cognac.
Salomé aproveitou o momento para se esgueirar para o jardim nas traseiras do palacete. As
conversas das amigas da madrinha aborreciam-na de morte e não raras vezes dava consigo a pensar o
que é que aquelas mulheres tinham dentro da cabeça. Gostava de Lisboa pela descoberta e infinidade
de oportunidades de aprender coisas novas, mas as obrigações sociais não eram do seu agrado.
Sentia-se um peixinho no meio dos tubarões.
Percorreu o corredor até à porta que dava acesso directo às escadas que desciam ao jardim
frondoso e antes de sair espreitou para o salão de jogos onde os homens jogavam bilhar e cartas e
discutiam política de forma muito velada. Era-lhe vedado o acesso àquela sala – território masculino
-, mas os temas de conversa eram mais interessantes que falar de chapéus, vestidos, casamentos e
intrigas mundanas. Costumava esconder-se atrás dos cortinados no salão da casa da Herdade, a ouvir
o padrinho José Luís e os filhos a falar de política com os seus amigos. Os saraus de jogo no Outono,
depois de um dia de caça, traziam sempre à baila assuntos que lhe interessavam: a guerra, a posição
de Salazar, que uns criticavam e outros apoiavam, as reformas do estado novo, os refugiados que
chegavam a Portugal fugidos da guerra e a revolução de costumes que trouxeram à capital. O tema
central de conversa nos salões, para além da moda, eram as mulheres estrangeiras que, sem qualquer
pudor, ostentavam grandes decotes e fumavam nas esplanadas do Rossio em pé de igualdade com os
homens. Salomé tinha verdadeiro fascínio pelos passeios de fim de tarde quando a madrinha lhe
pedia que a acompanhasse à baixa de Lisboa. A ousadia daquelas estrangeiras ricas que fugiam ao
avanço das tropas de Hitler era a ultima diversão de Lisboa. Damas e cavalheiros invejavam aquela
liberdade em silêncio, disfarçada de pudor, mas alguns sentiam verdadeira admiração pela ousadia
que demonstravam.
Desceu as escadas com a elegância que começara a ter aos catorze anos, assim que foi mulher e
deitou um corpo que podia ser confundido com uma mulher mais madura. Quase como por milagre –
costumava dizer a mãe – Salomé deixara os modos arrapazados e tornara-se numa jovem bonita. Só
não abdicava de querer ser advogada para desespero de Alda que não conseguia pagar os estudos à
filha.
Quem lhe dera ter vinte e um anos – pensou. Sairia do país rumo à América, a terra de
oportunidades como ouvira falar. Não se atrevia a falar dos seus sonhos a ninguém. A pacatez com
que passava pela casa e pela vida das pessoas não dava a demonstrar o furação que vivia dentro
daquele corpo de menina-mulher.
Olhando-se nos vidros da estufa de inverno que serviam de espelho, gostou do que viu. Alta o
suficiente para que a roupa lhe assentasse bem, cabelo castanho-escuro a cair-lhe em canudos por
baixo do chapéu de feltro, pele branca ligeiramente tisnada pelo sol, olhos verdes e lábios generosos
pintados com batom.
Caminhou até ao caramanchão de roseiras e sentou-se ao fundo no banco de granito. Era ali,
naquele recanto, que dava largas aos seus sonhos e viajava de barco até às américas, juntamente com
os refugiados e montava o seu próprio negócio, ou defendia os direitos das pessoas nas barras dos
tribunais. Não queria ser escrava dos padrinhos como os pais o foram toda a sua vida. Estava muito
agradecida pelo que fizeram por ela, mas sabia reconhecer a realidade da sua família: eram pobres
assalariados.
Ouvia as risadas dos homens vindas do salão através das janelas abertas e a música ténue do
são de chá. Atrevia-se a adivinhar o teor das conversas que não lhe interessavam nada.
**
- Diogo, meu filho! Vai até ao salão. Os homens estão a jogar bilhar. – aconselhou Dona
Catarina.
- A mãezinha sabe que não partilho da opinião dos cavalheiros ali presentes. A minha visão do
mundo e da nossa sociedade não....- e não terminou a frase. A mãe entendia-o. - É preferível manter-
me afastado antes que tenha problemas. – respondeu Diogo dando um abraço na mãe.
Chegara a Lisboa naquela manhã e para dizer a verdade já estava saturado das pessoas. Ansiava
pela liberdade de África, mas estava a enterrar a sua vida naquela fazenda, pelo que acedeu ao
pedido do pai e deixou o administrador a desempenhar as suas funções durante algum tempo. E,
embora não o confessasse tinha saudades da família: da mãe, do teimoso do pai, dos irmãos e da
pirralha que os pais quase adoptaram e que vivia dentro de casa como se fosse da família.
- Meu filho! Quanto a guardares as tuas opiniões acho é acertado, mas não podes deixar de te
mostrar em sociedade. Tantos anos na fazenda fizeram de ti um bicho-do-mato? – perguntou a mãe.
- Talvez mãe. Preciso do meu canto e não sei se será aqui. Por mim voltava para África agora.
Lá sou livre até de pensar, aqui até tenho receio que me leiam os pensamentos.
E afastou-se da mãe a sorrir em direcção ao jardim. Estaria por Lisboa um par de dias e depois
rumava a Monforte. O Alentejo lembrava-lhe África. Não era um homem citadino seguramente, tinha
noção disso.
Os cheiros do jardim lembraram-lhe a infância. Corria por ali com António e Laura
escondendo-se da mãe. Cheirava a rosas e o aroma mais intenso vinha do caramanchão onde passou
muitas tardes a ler. À medida que se aproximava do seu recanto preferido o aroma dos jasmins e do
alecrim entravam-lhe pelas narinas misturados com as rosas. Ia sentar-se a fumar um cigarro até que
os convidados se fossem embora. Não pretendia ter dez raparigas solteiras e respectivas mães a
insinuarem serem um bom partido. Não estava à venda e não tinha grande interesse em casar-se
quando o mundo estava repleto de mulheres disponíveis.
Salomé ouviu os passos pesados em direcção ao caramanchão e sobressaltou-se. Acabara-se –
lhe o sossego. Oh, raio! Quem se lembraria de invadir o seu momento de sossego e reflexão? Esticou
o pescoço e viu-o. Recolheu-se de imediato à segurança do emaranhado de troncos finos e verdes,
enfeitado com rosas pequenas abertas que deixavam cair pétalas no chão, antes que ele a visse.
Diogo deu mais uns passos e estacou. Viu o seu lugar favorito ocupado. Ocupado por uma das
serigaitas que a mãe convidara para a festa. Reconheceu-a do almoço. Tinha uns olhos que
ofuscavam qualquer homem.
- Boa tarde senhorita. – cumprimentou sem sequer mostrar os dentes.
- Boa tarde senhor…
Corou ligeiramente perante aquela figura alta e imponente e atreveu-se a olhá-lo de frente.
Levou as mãos à boca e por pouco não deixava escapar o nome dele.
Há seis anos que não o via. Era apenas uma criança quando ele partiu.
- É agradável este canto não é? – perguntou Diogo, com um ar de irritação na voz.
- Sim é. O meu lugar favorito. – respondeu ela em ar de provocação.
Sabia o quanto ele gostava de sentar-se ali horas a fio a ler.
Diogo concordou com a cabeça. Estava a ser criança mas sentiu que lhe roubaram o lugar. Mas
reconhecia que a ladra era bem…torneada, e pelos vistos de poucas falas.
- Então até mais tarde. – disse com a firme intenção de encontrar outro lugar, já que não ficava
bem a um cavalheiro expulsá-la do caramanchão.
- Há lugar para dois. – e Salomé apontou para o banco em frente.
Salomé lembrava-se bem do senhor Diogo – como o tratavam os pais – um jovem que passava
todas as férias escolares no Alentejo e que além de brincar com ela, lhe instigara o gosto pela leitura.
Salomé aparecia sorrateira na biblioteca sabendo que de tarde o senhor passava horas a ler. Diogo
sentava-a no seu colo e lia-lhe estórias daqueles livros que estavam empilhados nas prateleiras e,
quando aprendeu a ler, o seu lugar preferido era a biblioteca da casa, livre durante grande parte do
ano. A família passava muito tempo em Lisboa, a madrinha dizia que o clima era mais ameno.
Diogo sorriu e deu dois paços em frente. Ela tinha razão. Quem sabe não gostaria de falar com
esta estranha que parecia estar escondida dos demais? Sentiu curiosidade.
- Aceito.
Salomé percebeu que Diogo não a reconhecia. Quem se iria lembrar de uma miúda escanzelada
e de cabelo meio enleado que andava pela herdade aos saltos? Seis anos mudam muito uma pessoa,
sobretudo se ainda é criança ou jovem.
- Desculpe não me apresentar. Diogo Santana. – e apertou-lhe a mão.
- Prazer. Também não gosta de festas?- perguntou sem revelar o seu nome.
- Destas não. As conversas são…ligeiras.
- Fúteis, quer dizer. – rematou Salomé olhando-o com frontalidade.
Diogo deu uma gargalhada. Ora ali estava uma mulher que sabia o que dizia e que partilhava da
sua opinião e, ainda era de uma beleza fora do comum.
Salomé viu-o rir e lembrou-se das brincadeiras da infância. O mesmo riso. Achou-o bonito.
Nunca achara nenhum rapaz bonito. Mas Diogo não era um rapaz da sua idade, era um homem adulto.
Salomé reparou nos olhos castanho mel, no cabelo castanho-escuro e no corpo atlético e queimado
do sol. Queimado do sol de África- pensou. Devia ter alguma mulata por sua conta e uns quantos
filhos por lá- divagou.
- Estou a ver que chama as coisas pelos nomes sem problemas.
- Nem sempre. Só completei o seu pensamento.
- E muito bem. O que pensa sobre os chás de caridade?
Salomé foi apanhada de surpresa, mas agiu com cautela. Não ia destravar a língua como fizera
há pouco.
- Para dizer a verdade…acho que a madrinha é uma excelente pessoa.
- Madrinha?
- Dona Catarina. É assim que me refiro a ela.
- Ah! Curioso. Fez-me lembrar alguém...
Salomé teve esperança que fosse ela, mas ele não deu sinal de a reconhecer.
- E também acho que a menina é óptima a fugir aos assuntos, para além de ser exímia a
argumentar. – riu-se enquanto tirava um cigarro da cigarreira.
Acendeu-o e ofereceu-lho. Salomé aceitou como se fosse a coisa mais natural do mundo, um
homem oferecer-lhe um cigarro. Diogo acendeu outro para si e, por entre as espirais de fumo olhou-a
com insistência. Aqueles olhos eram-lhe familiares.
- Imagino que fuma escondida. – observou.
- Claro. Como muitas – ia dizer jovens - mulheres da minha idade. – Se aquelas amigas da
madrinha me vissem com um cigarro na mão desmaiavam. A única que tem autorização para o fazer
em público é a condessa.
Diogo estava confuso. Parecia uma mulher adulta que estava ali na sua frente, mas havia algo
nela que parecia muito juvenil.
- Ainda não me disse o seu nome e quem é.
- Pois não. Não perguntou.
De repente um vento frio de fim de tarde de início de primavera levantou-se fustigando as flores
e arrancando pétalas de rosa que jogou pelos ares. Salomé levantou-se, apagou o cigarro e passou
pela frente de Diogo.
- Tenho que ir. Até um outro dia senhor Diogo. – e afastou-se em passo apressado em direcção a
casa deixando-o ali plantado com todas as duvidas que tinha e sem se incomodar em explicar quem
era.

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