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O Capa Branca Daniel Navarro Sonim e Walter Farias
O Capa Branca Daniel Navarro Sonim e Walter Farias
PREPARAÇÃO
Fábio Bonillo
REVISÃO
Luiz Fukushiro
PROJETO GRÁFICO
Jussara Fino
ILUSTRAÇÃO DA CAPA
Studio DelRey
ASSESSORIA EDITORIAL
Dominique Ruprecht Scaravaglioni
F224c
Farias, Walter.
Inclui apêndice.
ISBN 978-85-7816-144-6
CDU 929
CDD 920
Índice para catálogo sistemático:
1. Farias, Walter: Biografia 929
APÊNDICE
AGRADECIMENTOS
O AMIGO DO CAPA-BRANCA Daniel Navarro Sonim
Muita gente entra na loucura pelo medo de endoidecer, mas permanece nela
por outro medo: o de abandoná-la. Por sete anos vivi cercado de todo tipo
de louco, maluco, pirado ou qualquer outro nome para um doente com
problemas mentais ou psiquiátricos. Acredito que as pessoas pensam que
sou meio esquisitão por causa disso. Hoje estou aposentado e muita gente
classifica meu comportamento como loucura. Mas aposto que essas pessoas
nem imaginam quais são os verdadeiros limites da loucura – se é que a
mente humana tem algum limite.
Sinto um desconforto muito grande quando minha mulher coloca a
mesa para as refeições e vejo no meu lugar um prato raso de louça, um
garfo e uma faca de metal na minha frente. Se ela insiste em fazer isso,
recolho tudo, me levanto e jogo os talheres e o prato na pia. Então abro o
armário e vou à caça de um prato fundo de plástico e uma colher. Só me
sinto à vontade para comer assim.
Muito raramente, quando vou a um restaurante, tenho que me esforçar
muito para usar garfo e faca. Fico incomodado com o barulho dos talheres
batendo na louça. Tampouco me agrada a ideia de levar algo de metal até
minha boca.
Meus colegas de trabalho já achavam estranho eu cortar as unhas das
mãos e dos pés com gilete. Em casa, mantive esse hábito, mas também
comecei a usar as lâminas de aparelhos de barbear descartáveis. Para
executar essa tarefa, bastava quebrar o aparelho e retirar as lâminas.
Diferentemente da gilete comum, esse tipo de lâmina não envergava, por
ser bem mais dura. Eu a encaixava debaixo da unha, tomando cuidado com
a carne na ponta do dedo, e puxava-a para cima para cortá-la.
Parei de fazer isso quando uma imagem passou a perturbar minha
mente: era só minhas unhas começarem a crescer para eu ver a gilete cortar
meu cérebro em fatias.
Não saio por aí vestindo frangalhos ou trapos imundos, mas detesto
usar roupa nova. Só sei que me incomoda colocar uma camisa ou calça que
nunca foram usadas por mim antes. Esse incômodo também compreende os
lençóis da minha cama. Fico extremamente irritado quando minha mulher
os troca, apesar de ter plena consciência de que isso é absolutamente
necessário para meu bem-estar.
Apesar disso, já fiquei cinco anos sem tomar banho, durante minha
aposentadoria. Poderia ser inverno ou verão, os dias passavam e nada de eu
entrar debaixo do chuveiro. Só quando a situação estava insuportável para
quem convivia comigo é que, depois de muita insistência da minha mulher
e de um primo meu, eu ia para o chuveiro me lavar.
Eu não tinha a mínima noção do meu cheiro. Até hoje não sei se o
fedor realmente me afastava das pessoas porque eu dificilmente saía do meu
quarto. Passava o tempo dormindo ou compondo minhas músicas. Mas, aos
poucos, os intervalos sem tomar banho foram diminuindo e retomei esse
hábito diário.
Chuvas fracas ou tempestades me atormentam. Peço na hora a Deus e
a todos os santos de que me lembro para que a água pare de cair do céu.
Também não consigo entrar no mar. Apesar de eu saber nadar, tenho medo
de ser levado pela correnteza e morrer afogado. Eu só conseguia tomar
banho de mar em uma praia de Ubatuba, no litoral paulista, mas tinha que
estar acompanhando de um amigo, que, infelizmente, já morreu.
Desde o início da minha aposentadoria compus mais de 400 canções
nos mais variados estilos, só que nunca entendi como pude fazer isso sem
gostar de ouvir música. Na verdade, eu gosto de ver a música: assisto a
programas e shows na TV ou em DVDs. Não suporto discos, fitas e CDs.
Rádio, nem pensar. Nem tenho condições de ir a shows, porque começo a
passar mal logo que eu vou me aproximando do local da apresentação.
Já tentei entrar em alguns shows em locais ao ar livre ou fechados, mas
não consegui ficar por muito tempo. Tenho pavor da multidão entrando e
saindo. E também acho que os seguranças fazem a revista de forma
extremamente desleixada. Muitas mulheres passam sem uma averiguação.
Sempre imagino quantas poderiam estar carregando algum tipo de arma. Se
mataram o John Lennon na porta da casa dele, por que outra pessoa não
poderia fazer o mesmo comigo no meio da multidão? Já recebi inúmeros
convites para ir a bares nos quais alguns cantores apresentariam minhas
músicas, mas sempre dou um jeito de escapar desse suplício.
Até hoje não entendi como isso aconteceu, mas poucos anos atrás
insisti em ir a um show em que se apresentariam a banda Ira! e a cantora
Pitty. Houve um atraso de mais de uma hora e meia, mas, mesmo assim,
nada me incomodou. Não reparei nos seguranças, que deviam estar fazendo
revistas superficiais; a multidão não representou uma ameaça; e nem me
passou pela cabeça que alguém poderia me agredir ou tentar me matar.
Permaneci no local fechado até a última música. Eu me senti muito bem e à
vontade o tempo inteiro.
Porém, foi só dessa vez. Não sei se essa experiência vai se repetir.
Na verdade, não consigo frequentar nenhum local com multidão. Os
shows são apenas um exemplo. Tenho pavor de shopping centers, lojas,
vagões de trem, ônibus e supermercados. Escapo até das filas de banco. Se
preciso pagar alguma conta, dou um jeito de convencer alguém a fazer esse
favor para mim.
Ao contrário das pessoas que só se sentem seguras trancadas em casa,
eu só fico tranquilo se as portas estiverem destrancadas ou abertas. Tenho
certeza de que é pior deixar tudo fechado. Essa atitude acaba chamando
mais atenção dos ladrões, porque eles podem pensar que estou escondendo
objetos de valor e dinheiro. As trancas, fechaduras, correntes e cadeados
não servem para dificultar o acesso deles, já que conhecem todos os
mecanismos e têm todas as ferramentas para entrar e levar tudo o que lhes
interessa.
Mas tem uma coisa que ninguém pode tomar de mim: minhas
memórias. Acho que só a morte pode apagá-las.
E foi no meu quarto, sozinho, que decidi sentar e pegar papel e caneta
para escrever minha história. Para você entender como me tornei essa
pessoa que muita gente acha esquisita, estranha, maluca, pirada ou sejá lá o
que for, vou voltar ao tempo em que eu era jovem em Franco da Rocha e
não imaginava que entraria em um mundo conhecido como Juquery.
JUVENTUDE EM FRANCO DA ROCHA
Como até o final dos anos 1960 não havia concurso público, só alguns
poucos doutores escolhiam trabalhar no Juquery, com o objetivo de estudar,
entender e tentar curar a loucura. As outras vagas eram preenchidas à força.
Brigas, um bate-boca à toa, dívidas financeiras e até mesmo uma discussão
na família podiam credenciar o sujeito a passar os dias cercado por um
bando de doentes mentais que babavam, olhavam para as paredes e
conversavam com alguém que não estava lá.
Além dos loucos diagnosticados com os mais variados problemas
mentais, havia ainda histórias de japoneses internados só por terem olhos
puxados e se assemelharem a mongoloides ou de italianos que tinham feito
greve no porto de Santos. Presos políticos, drogados, alcoólatras e até
mesmo homens que haviam traído a mulher com outro homem podiam
parar lá dentro. Geralmente as famílias não pensavam duas vezes e os
internavam com a esperança de tentar consertá-los.
Mesmo sem receber qualquer tipo de treinamento, em pouco tempo os
funcionários eram capazes de dominar algumas técnicas para acalmar os
pacientes. Além de trancar os loucos descontrolados em celas, utilizavam
camisas de força para imobilizá-los. Na falta delas, amarravam pernas e
braços com lençóis ou trapos. Os pacientes só eram soltos quando, caídos
no chão, chegavam à exaustão de tanto se debater. Todas essas práticas
continuavam a ser adotadas na época em que comecei a trabalhar no
Hospital Psiquiátrico.
No passado havia outras opções, como a banhoterapia. Consistia em
manter o paciente amarrado em uma cadeira que permitia girá-lo embaixo
de uma ducha com água gelada. Diziam que esse método funcionava
melhor no inverno. O gelo também poderia ser empregado. Nesse caso, o
louco, sentado sobre cubos de gelo em uma bacia, permanecia nessa
posição até o gelo derreter. Para garantir sua permanência, dois ou três
funcionários o seguravam até o final do tratamento.
O boticão do dentista servia como método de prevenção contra
mordidas que podiam ferir outros pacientes, funcionários ou eles mesmos.
De uma só vez, todos os dentes eram arrancados sem qualquer tipo de
anestesia. A seringa, além de ser utilizada para aplicar calmantes, servia
para injetar o parasita da malária. À medida que a doença avançava, um
paciente mais eufórico apena sorria e balbuciava palavras sem sentido de
maneira idiota. Mesmo sem sofrer de diabetes, o louco raivoso recebia
injeções com doses exageradas de insulina. Quando entrava em coma
insulínico, ficava fora de combate, na cama, por um bom tempo.
Bastava os pacientes ouvirem as letras E, C e T para morrerem de
medo. ECT é a sigla de eletroconvulsoterapia – ou simplesmente
eletrochoque. Antes de entrar no Hospital, não podia imaginar que aqueles
louquinhos de cabeças raspadas recebessem choque elétrico. Só quando
participei da primeira sessão me dei conta da crueldade daquela prática.
Cerca de quarenta ou cinquenta pacientes eram submetidos ao
tratamento em cada sessão. A aplicação do eletrochoque acontecia em um
salão do andar térreo da Terceira Clínica. Pelo menos seis funcionários
recebiam a convocação para dar conta de um paciente por vez. O primeiro
colocava o louco deitado em um colchão, desamarrava ou desabotoava a
calça do paciente e enfiava na boca dele um rolo de pano na horizontal.
Essa técnica prevenia a quebra de dentes ou feridas no lábio, se o paciente
fosse banguela. O pano também absorvia a saliva durante a sessão. O
segundo funcionário ficava responsável por segurar a cabeça do paciente. O
terceiro e o quarto imobilizavam o braço esquerdo e o braço direito,
respectivamente, segurando os punhos do paciente com a mão ou
simplesmente sentando sobre ele. O quinto se apoiava nas pernas para que
os joelhos não se dobrassem.
Do lado de fora, os funcionários buscavam os pacientes da lista.
Desconfiados ou já sabendo que receberiam o ECT, eram caçados dentro da
clínica até serem conduzidos à sala onde acontecia a sessão. O próximo
paciente entrava só depois de o anterior ter recebido o choque. Outros
funcionários vigiavam os que já tinham recebido sua dose de eletricidade
para ver como despertavam.
E ainda tinha o sexto funcionário, o responsável pela temida máquina
do eletrochoque. Tratava-se de uma caixa de madeira rústica com
aproximadamente trinta centímetros de comprimento por vinte centímetros
de altura, conectada a uma tomada. Dela saía um par de fios de cobre de
mais ou menos dois metros. Nas pontas de cada fio havia duas hastes
metálicas encapadas medindo mais ou menos dez centímetros. E, na
extremidade das hastes, duas esferas de cobre achatadas do tamanho do
fundo de uma lata de cerveja serviam para conduzir a eletricidade a partir
das têmporas do paciente.
O funcionário que aplicava o choque também trazia um pincel de
barba e um copo com água. Antes de aplicá-lo, passava o pincel molhado
nas têmporas do paciente. Em seguida, girava uma chave para ligar a
máquina e esperava o ponteiro no mostrador girar até atingir o nível
máximo de carga. Então, encostava as hastes metálicas nas têmporas
umedecidas do paciente por alguns segundos.
A partir daí a eletricidade percorria o corpo pelos fios ligados na
cabeça. As veias dos braços, mãos, pernas e pés inchavam, ficando muito
avermelhadas. Estufado, o paciente estrebuchava freneticamente e se
contorcia sem parar. Os funcionários tinham que segurá-lo com força para
que a cabeça, os braços, costas e as pernas não batessem violentamente no
chão. Eles diziam que a força do choque poderia torcer algum membro,
causando lesões irreversíveis em músculos e nervos. Os funcionários então
se esforçavam ao máximo para deixar o corpo do paciente o mais rígido
possível, sem que envergasse. Sua boca se contraía, e ele mordia o pano
com força. Alguns perdiam o controle e se mijavam e se cagavam. De olhos
fechados, babavam e gemiam. Após o término da sessão, dormiam
profundamente. Os corpos permaneciam estirados no chão por alguns
minutos.
Aos poucos, um por um, os pacientes abriam os olhos vagarosamente e
acordavam enfraquecidos, sem qualquer poder de reação. Quando se
levantavam, caminhavam lentamente tentando se escorar nas paredes.
Pareciam não ter entendido o que havia acontecido nem sabiam onde
realmente estavam. Quando vi aquilo pela primeira vez, não consegui
dormir à noite. Depois, as sessões se tornaram recorrentes, e acabei sendo
convocado para participar outras vezes. Nunca apliquei o choque nos
pacientes. Essa tarefa sempre tinha que ser executada por funcionários com
mais tempo de casa. Sempre era convocado a segurar os pacientes que
receberiam o ECT. Só nunca entendi como não tomávamos choque, apesar
de a carga passar por todo o corpo dos pacientes quando os segurávamos.
Nunca soube exatamente o que acontecia nos porões do Juquery além
dessa amostra de métodos aplicados lá dentro, mas circulavam muitas
lendas sobre pacientes submetidos a cirurgias de extração de pedaços do
cérebro. Jamais acompanhei um procedimento assim, apesar de muitos
loucos com cicatrizes medonhas na cabeça perambularem nos pátios como
verdadeiros zumbis.
CONCURSO PÚBLICO
Tudo aquilo que aprendi e pratiquei no Hospital Central não servia mais no
Manicômio. Os cinco anos de trabalho com os pacientes da Terceira Clínica
acabaram indo parar na latrina. As muralhas guardavam um novo mundo
com regras ditadas por uma cartilha completamente diferente. O respeito
pelo capa-branca não existia mais lá dentro. Só alguns dos presos mais
inteligentes e malandros demonstravam algum tipo de consideração por
nós, mas nunca sabíamos se algum interesse estava em jogo por trás desse
comportamento.
Como o Hospital era habitado por loucos, para que entendessem aquilo
que pedíamos bastavam alguns comandos simples, como “Sai daí, louco!”
ou “Come aí, maluco!”. Além de obedecerem, não ficavam magoados. Eles
abaixavam a cabeça rapidinho e nem precisavam dizer “Sim, senhor”.
Alguns viviam em outros mundos, fora da nossa realidade, sem ter um
pingo de noção daquilo que acontecia ao seu redor ou do lado de fora do
Complexo Juquery.
Tínhamos que lidar com os presos do Manicômio de outro modo,
porque podiam se irritar ou reagir com violência. Não dava para brincar
com sujeitos perigosos, capazes de aprontar com você sem dó e de maneira
cruel. Nenhum de nós era louco a ponto de dar um tapa em um detento que
se recusava ir para o chuveiro. As consequências poderiam ser escabrosas.
Se o detento levava um grito, raramente abaixava a cabeça.
Lá dentro havia outro tipo de pessoa. No Hospital, caso acontecesse
um ataque, a reação do louco acontecia imediatamente, porque agiam por
impulso. Já os presos do Manicômio geralmente pensavam antes de agir;
passavam horas, dias e até meses planejando uma forma de revidar.
Se você dava o remédio na mão de um dos presos, você poderia ouvir:
“Ô, eu vou tomar depois, viu?”. A gente nem ligava para isso. Uma hora ele
tomaria ou jogaria fora no boi. A lógica era essa. Eles eram muito astutos, e
esse tipo de convivência assustava qualquer funcionário. Apesar de os
chefes de disciplina serem corretos e extremamente rigorosos, não tínhamos
condições de manter tudo em ordem. Vivíamos em permanente estado de
tensão por causa do código de conduta estabelecido pelos próprios detentos.
A maioria dos presos perambulava pelos pátios e corredores durante o
dia, mas alguns nunca saíam das celas. A dor e o frio pareciam não fazer
parte da vida deles. Só eram retirados quando aparecia o pessoal da faxina.
Alguns detentos com bom comportamento eram selecionados para ajudar os
encarregados dessa tarefa que durava, no máximo, vinte minutos.
Durante a faxina, dois ou três funcionários passavam o pente-fino para
buscar facas, punhais, bebidas alcoólicas ou qualquer outro item proibido
no Manicômio. Os detentos ficavam do lado de fora da cela, de costas para
a parede. Enquanto fumavam um cigarro oferecido estrategicamente por um
faxina ou funcionário para acalmar e distrair o preso, às vezes até dez
capas-brancas tinham que vigiá-lo, dependendo do seu grau de
periculosidade.
Esse procedimento ia por água abaixo quando alguém resolvia dar
espetáculo. Não foram poucas as vezes em que um ou outro detento tentou
partir para a agressão. Nem dava para saber quando a pancadaria poderia
chegar ao fim. Em outros momentos, sem um motivo aparente, começavam
a se debater no chão e só sossegavam depois de imobilizados. Então, os
psiquiatras chegavam para fazer suas observações. Sem entrar na cela,
analisavam a situação pela janela da porta, que, obviamente, permanecia
trancada enquanto a consulta acontecia.
Durante os dois anos e meio em que trabalhei no Manicômio, soube
que havia apenas três psiquiatras disponíveis. Essa situação só mudou
quando outro doutor foi contratado para auxiliar no acompanhamento
psiquiátrico de mais de novecentos internos. Porém, ele durou só alguns
meses lá dentro, porque pediu demissão. Ninguém mais teve notícias dele.
Para controlar os detentos, os médicos prescreviam alguns
medicamentos. A escopolamina era o remédio mais popular. O detento que
recebia uma dose ficava totalmente fora de combate. Geralmente
aplicávamos injeções de sulfa, que doíam muito, combinadas com
escopolamina. Tinha também o Depot, medicamento com o princípio ativo
que, como o nome parecia indicar, permanecia depositado no organismo
para ser liberado aos poucos. Alguns remédios usados no Manicômio
também eram prescritos no Hospital Central, como Gardenal, Neozine,
Haloperidol, entre outros. Tudo dependia do diagnóstico.
Os funcionários mais experientes diziam que essas medicações
serviam apenas para castigar os presos que apresentavam mau
comportamento. Como não éramos especialistas no assunto, tanto no
Hospital como no Manicômio não víamos as prescrições, só aceitávamos as
ordens e cumpríamos com a nossa obrigação.
Quando alguém se recusava a tomar os remédios por bem, recebia toda
a dose de uma vez em uma injeção aplicada na bunda. No caso de tentativa
de fuga, a punição era aplicada em três etapas: escopolamina, sulfa e surra;
por fim, o fujão passava uma temporada trancado em uma cela no térreo ou
no segundo andar.
O SER INDOMÁVEL
Charuto não ia com a minha cara e eu não ia com a cara dele. Apesar de
possuir bom relacionamento com a maioria dos capas-brancas, comigo a
história era outra. Eu não prestava muita atenção na figura dele; apenas
recordo que era comprido e roliço da cabeça aos pés. Além desse detalhe
que lhe valeu o apelido, lembro-me muito bem de seu comportamento, que
me incomodava bastante.
Tinha como hábito dar boas-vindas aos detentos que adentravam as
muralhas, levando-os para o dormitório dele no primeiro andar, próximo da
escada usada pelos detentos. Gostava de recepcionar principalmente os
fracotes e delicados, transformando-os em seus garotos. Usava e abusava
deles. Depois os deixava de lado quando outra novidade chegava. Os
detentos que abusavam sexualmente dos garotos eram chamados de
fanchos.
Possuía uma lábia bastante eficiente. Dizia que havia muita gente
perigosa lá dentro e oferecia os cuidados de um irmão mais velho. Quando
esse papo não colava, usava força e ameaças. Com um sorriso no rosto,
falava que poderiam amanhecer com um monte de formigas na boca. Se
essa tática não desse certo, pegava as vítimas pelo pescoço e só sossegava
quando saciava seus desejos. Também se aproveitava da fraqueza
provocada pela medicação aplicada em suas vítimas.
Descobri a artimanha de Charuto por acaso. Um dia eu estava no pátio
de visitas quando uma senhora com os olhos úmidos, quase a ponto de
chorar, se aproximou de mim, me encarou e fez um pedido com a voz
embargada: “Por favor, gostaria que o senhor tomasse conta do meu filho.
Ele está aqui, mas tem uma mente muito infantil”.
Em seguida, apontou para um rapaz magrinho e branquelo e disse:
“Ele é bobo! Os outros vão tomar as coisas dele. Eu pago...”. Antes de
continuar a frase, respondi que ela poderia ficar sossegada. Com a voz
firme, eu a tranquilizei: “Vou olhar seu filho. Não quero receber nada. Esse
é o meu trabalho”.
Eu me lembrei da história que meu primo tinha contado — certo dia,
um recém-chegado foi disputado pelos caçadores de garotos. A disputa para
ver quem traçava aquele novato aconteceu no palitinho.
No mesmo dia, Charuto puxou conversa com aquele rapaz que tinha
chegado há poucos dias. Quando os dois subiram para o dormitório, eu os
segui. Percebi na hora que ele estava sendo camarada demais com o rapaz.
Deixei que Charuto o conduzisse até a cama dele para ver onde aquela
história terminaria. Entrei e, sem dar qualquer explicação, retirei a vítima da
cama e a levei para longe dali. Esse episódio acendeu o estopim de uma
verdadeira guerra. Charuto levava a vítima para a cama e eu a retirava das
mãos dele.
Nenhum funcionário ainda tinha desafiado o Charuto, pois ele tinha
muita influência dentro do Manicômio. O silêncio dos outros presos
também o ajudava a saciar seus desejos. O comportamento de um cagueta
ou dedo-duro não tinha boa receptividade lá dentro. Espancamentos,
amputação da língua, dedos e mãos, além de uma infinidade de crueldades,
inclusive a pena de morte, serviam como punição para o detento que dava
com a língua nos dentes.
Essa perseguição aconteceu incansavelmente por mais ou menos duas
semanas. Fui vencido pela escala montada pelos meus superiores. Tirei
folga e, quando retornei, encontrei o novato na enfermaria, de bruços, todo
arrebentado: eu havia decepcionado aquela pobre mãe. Mesmo assim,
busquei forças para tentar apagar o fogo do Charuto.
Contei o ocorrido a outros capas-brancas. Alguns me apoiaram.
Outros, acomodados, simplesmente davam as costas e ignoravam aquilo
que me preocupava. Descobri que muitos internos bobinhos já tinham
passado pela cama de Charuto.
Encaixei, por conta própria, uma tarefa dentro da minha lista de
afazeres. No início da noite, quando os internos começavam a se recolher,
eu o seguia. Caso o perdesse de vista ou outra tarefa não me permitisse
acompanhá-lo, entrava no dormitório onde ficava sua cama. Sem dar
explicações, eu levantava os lençóis para ver se algum bobinho estava
escondido.
Perdi a conta de quantas vezes encontrei as vítimas de Charuto
amedrontadas, esperando pelo pior. Aos poucos, minha presença se
transformava em uma enorme pedra no sapato dele. Até nas minhas folgas,
um ou outro colega, que, depois de eu muito insistir, tinha se aliado à minha
causa, esforçava-se em vigiar esse detento insuportável.
Se calhasse de ter que trabalhar no turno noturno, eu chegava antes das
seis horas da tarde para dar tempo de acompanhar a entrada dos internos
nos dormitórios. Depois de picar meu cartão, subia as escadas correndo para
fazer minha conferência na cama daquele intragável. Salvei a pele de vários
internos que poderiam se transformar em garotas. Com o tempo, por eu
conseguir frustrar os planos dele, Charuto passou a trocar de dormitório. Ele
deixava na cama travesseiros ou cobertores enrolados para tentar me
despistar.
Por outro lado, meu faro começou a ficar cada vez mais apurado, e, de
dormitório em dormitório, eu acabava encontrando esse predador. Os outros
capas-brancas também me informavam se alguém tinha visto o Charuto em
outro dormitório que não o dele.
Evidentemente, nem sempre eu conseguia estragar a festa. Em dias de
folga ou se alguma emergência me prendesse, ele fazia seus trambiques,
apesar de eu ter conseguido fechar o cerco. Mas, como toda ação possui
uma reação, Charuto também começou a querer dar o troco.
Certa feita, eu havia sido escalado para o turno da noite, dessa vez para
cobrir a folga de um funcionário que estava doente. Acompanhávamos a
subida dos internos nos corredores dos dormitórios, quando Charuto passou
por mim acompanhado de três colegas. Esses internos não faziam parte de
sua coleção de garotos. Altos e fortes, havia alguns dias podiam ser vistos
passando a tarde conversando com ele no pátio. Cada um, inclusive o
Charuto, acenou a cabeça para me cumprimentar, franzindo a testa após um
seco “boa noite”.
Como naquele ambiente um pingo era letra e qualquer atitude tinha um
porquê, fiquei preocupado com a novidade. Depois que a perseguição se
intensificou, Charuto nunca subia para o dormitório logo que os primeiros
internos começavam a se recolher; ficava perambulando pelos pátios na
esperança de eu estar ocupado resolvendo alguns problemas. Assim ele
tentava levar a presa sem que eu a visse.
Já haviam se passado mais de duas horas desde a hora da tranca.
Apenas os capas-brancas circulavam pelos corredores. Os internos estavam
descansando depois da costumeira troca de objetos e do pagamento do
prêmio do jogo do bicho. Os dormitórios só seriam abertos de manhã cedo.
Enquanto eu conversava com outros dois funcionários, um passarinho
apareceu e me contou: “Toma cuidado! Já armaram uma pra você!”.
Passei a noite com a pulga atrás da orelha. Na hora do café da manhã,
antes de os internos começarem a descer, entrei no refeitório e avistei
Kaneu e Cochu, dois internos responsáveis pela limpeza do refeitório dos
funcionários e chefes do dormitório onde dormiam. Ambos olharam para
mim e se mostraram bastante apreensivos.
Um funcionário se aproximou e me contou que o chefe responsável
pelo controle dos alimentos estava me procurando para esclarecer a
denúncia de que eu havia surrupiado e trancado um saco de feijão em um
dos armários do refeitório para levá-lo para casa.
Felizmente, isso não passou de um boato; o autor da denúncia nunca
apareceu. Eu desconfiava de quem queria armar confusão para o meu lado.
Mesmo assim, o administrador me chamou para conversar. Com a
consciência tranquila, expliquei que eu sempre participava da entrada de
alimentos. No entanto, eu só executava essa tarefa durante o dia. Quando o
saco de feijão sumiu, eu estava trabalhado no turno da noite.
Antes de chegar à saída, o corredor principal do térreo desembocava
em um portão. Um percurso de quinze metros garantia o acesso ao portão
de saída. Esses portões nunca ficavam abertos ao mesmo tempo. Nós, os
capas-brancas, acompanhados de alguns detentos de confiança,
carregávamos em pesados caldeirões ou em macas as frutas e alimentos,
como carne, frango, arroz, feijão ou qualquer outro item. Caminhões e
peruas descarregavam os produtos do lado de fora do prédio, onde também
ficava a cozinha.
A cozinha se localizava ao lado do Batalhão da Polícia Militar. Sendo
assim, as refeições também serviam os policiais que trabalhavam por ali.
Não tenho ideia de quantas toneladas de alimentos chegavam diariamente;
porém, para se imaginar a quantidade de comida preparada, além da
caldeira, as panelas tinham cerca de dois metros de altura por três metros de
largura. Dava para assar uns dois detentos nela. As carnes e alimentos
perecíveis ficavam armazenados em enormes câmaras frigoríficas.
Quem trabalhava na cozinha ou acompanhava a chegada e o transporte
de alimentos, fosse funcionário ou detento, sempre passava por uma revista
bastante rigorosa. Às vezes ficávamos com alguma coisa que sobrava, mas
sempre em pequena quantidade. Nunca passava de uma laranja ou uma
lasca de queijo com goiabada; comíamos lá mesmo. O administrador se
convenceu de que não havia lógica em um funcionário querer levar do
manicômio um volume tão grande de feijão. Eu teria que passar com um
saco de cinquenta quilos nas costas por todos os setores administrativos
bem na hora em que a maioria dos funcionários estaria chegando. Além
disso, capas-brancas, médicos, contínuos, secretárias, entre outros
funcionários, teriam me visto passando com toda aquela carga. Havia
apenas dois portões naquele enorme edifício: um na saída e outro na
entrada.
Quando o falatório sobre o sumiço do feijão estava para terminar, meu
nome começou a ser ouvido novamente da boca de alguns internos. A
boataria começou a se espalhar depois da noite em que ouvi sussurros
abafados no dormitório do Charuto. Com extremo cuidado, empurrei a
porta, que ainda não estava trancada, e flagrei um interno magrinho,
completamente nu, parado enquanto Charuto se preparava para sodomizá-
lo. Puxei o rapaz pelos braços e o cobri com um lençol para levá-lo à
enfermaria. Além de quase ser violentado, estava ardendo em febre.
Charuto se deitou e não disfarçou sua cara de poucos amigos. Consegui
deixá-lo trancafiado em uma cela por duas semanas.
Passei quinze dias sem me preocupar com nada. Mas quando Charuto
saiu da solitária, começou a circular pelos corredores do Manicômio o
boato de que uma fuga poderia acontecer a qualquer momento.
Chegaram a dizer que eu era uma das mentes responsáveis por
arquitetar o plano. Também corria a fofoca de que eu estava participando
das reuniões para facilitar a saída dos internos. Na verdade, outro
passarinho me contou que meu nome havia sido mencionado nessas
reuniões por outra razão.
Os detentos escapariam quando eu estivesse próximo aos portões dos
corredores. No meio da correria, mais conhecida como cavalo doido,
alguém meteria o ferro em mim e em quem mais estivesse no caminho. Não
daria tempo nem de ver quem iria me furar.
Felizmente, eu já começava a contar com a proteção de um detento que
parecia meu guarda-costas quando os boatos começaram a se espalhar.
Mesmo assim, passei alguns dias com medo de sentir a lâmina fria
atravessando minhas entranhas. A morte poderia aparecer a qualquer
momento.
Aos poucos, a visita da Dona Morte foi sendo adiada. Também passei a
contar com a ajuda dos chefes de disciplina, que intensificaram a vigilância.
Dois pentes-finos nos dormitórios deixaram o Manicômio livre de qualquer
arma que poderia ser usada durante uma fuga. Alguns suspeitos tomaram
algumas semanas de solitária. Outros receberam altas doses de calmantes,
permaneceram dopados por um bom tempo e foram vigiados de perto.
Charuto também se acalmou. Ele passou a dormir antes da hora da
tranca, e eu já não o via cercando os novatos. Depois, deixou de circular
pelos corredores e descer para os pátios durante o dia. Foi emagrecendo até
o dia em que o encontrei sozinho em uma das camas da enfermaria. Tinha
contraído tuberculose. Perdeu o fôlego e a vontade de converter detentos
recém-chegados em garotos.
O GUARDA-COSTAS
Até hoje não sei como consegui, mas saí da cama. Já tinha perdido a conta
de quanto tempo tinha permanecido em casa. Meu primo e minha mulher
tinham conversado com meu psiquiatra. Analisando meu caso, o doutor
Giles se convenceu de que a única solução para eu não perder o emprego
seria a internação.
Não me rendi à internação logo de cara. Ainda insisti em ir ao
trabalho, mas, em pouco tempo, eu não sabia mais o que era certo ou
errado. E com um prontuário sujo, cheio de advertências e sem boas
recomendações, ninguém mais queria um funcionário como eu. Ganhei
fama de preguiçoso, respondão, folgado e doente.
Pulei de setor em setor, nas clínicas e nas colônias. Às vezes eu já nem
sabia mais onde iria trabalhar no dia seguinte. O cartão de ponto nem saía
do bolso da minha calça. Um dia, quando cheguei a um dos setores do
Hospital, aquele que seria meu chefe disse para o funcionário que me
acompanhava: “Ah, esse maluco não entra aqui nem por cima do meu
cadáver. Manda esse louquinho embora!”.
Tive que entrar no trem outra vez para ser submetido à perícia médica
e conseguir uma licença. Apesar de conseguir entrar no vagão, eu tinha a
impressão de que estava embarcando em uma viagem sem volta. Senti
náuseas no meio da multidão que andava pelas ruas do centro de São Paulo.
Achei que a qualquer momento a calçada poderia abrir e me engolir. Os
carros e ônibus me acertariam a qualquer momento.
Na volta, comecei a pensar que todos os problemas seriam
solucionados se eu me trancasse no quarto e não saísse mais de lá. Cheguei
em casa, tomei os remédios e caí na cama. Dali em diante, perdi a vontade
de fazer qualquer coisa. O desejo sexual também foi por água abaixo.
Sem dar as caras por mais de uma semana, o doutor Giles resolveu se
reunir com os diretores do Hospital Central para analisar meu caso. Então
chamaram minha mulher para comunicá-la que a única saída para o meu
problema era a internação. Um diretor foi curto e grosso e não mediu as
palavras para justificar a decisão. Disse: “Olha, senhora, interna logo, senão
ele vai perder o emprego”.
Acredito que, naquele momento, a internação significava a vitória do
sistema sobre mim. Aquelas mesmas pessoas que no passado tinham sido
meus algozes agora se mostravam amáveis e preocupadas com o meu bem-
estar e o da minha família. Era uma situação muito estranha.
Esses “medalhões” da alta cúpula do Juquery, exceto o doutor Giles,
que tanto lutaram para me destruir, quando finalmente me encurralaram,
pareciam que não queriam mais me aniquilar. Digo isso porque tenho
certeza de que seria muito mais fácil simplesmente me tocar para fora do
Juquery com uma mão na frente e outra atrás.
Minha derrota poderia servir como exemplo para os funcionários que,
como eu, um dia, por acaso, tentassem lutar contra o sistema. Eles veriam
com os próprios olhos o que realmente acontecia caso alguém discordasse
das regras pré-estabelecidas lá dentro.
O tratamento no Hospital Psiquiátrico também representava um duro
golpe na minha vida. Eu cansei de ver sujeitos que entravam no Juquery e
não saíam nunca mais, tanto do hospital quanto da loucura. Abandonados
pela família sem um mísero pingo da razão que ainda conseguiam conservar
no início da internação, transformavam-se em animais irracionais incapazes
de se comportar como seres humanos considerados normais pelos padrões
da sociedade.
EU ME TORNEI UM DELES
Se por um lado fiquei aliviado por ter escapado do eletrochoque, por outro,
quando as coisas se acalmaram, o pavor começou a tomar conta de mim de
maneira inesperada. Assim que escurecia, eu me sentia entregue à sorte
quando ia dormir. Mesmo acordado, algo de ruim poderia acontecer a
qualquer momento. Em uma noite em que chovia muito lá fora,
conversávamos deitados em nossas camas. De repente, um paciente subiu
as escadarias e entrou no dormitório.
Ele começou a caminhar de um lado para o outro. O Pena foi ao
encontro do maluco e pediu para que saísse dali. Sem dar um pio, o
paciente deu um soco na vidraça, catou um caco de vidro e cortou a
garganta dele. Como a maior parte dos pacientes naquele dormitório era
composta de ex-funcionários, imobilizamos rapidamente o agressor, até os
capas-brancas chegarem. O paciente saiu de lá vestindo uma camisa de
força. Já o Pena por pouco não morreu, mas ganhou uma cicatriz medonha
na garganta, que o acompanhou pelo resto da vida.
Depois desse episódio, começaram a aparecer na minha mente
fantasmas do passado. Uma das assombrações recorrentes tinha origem na
época em que meu psiquiatra estava de férias e eu tinha acabado de sair da
rotunda. Um paciente que permanecia o tempo inteiro deitado e calado
morreu no leito dele, segurando uma maçã. Bastava eu fechar os olhos para
dormir e ele aparecia me chamando. Só nos meus pesadelos eu conseguia
ouvir a voz dele. Depois de abrir os olhos, não via nem ouvia ninguém, mas
a imagem dele era tão real que me assustava a ponto de ficar sem dormir
por quase uma semana.
Busquei refúgio no futebol e na cachaça, mas essas coisas já não me
aliviavam mais. Eu não conseguia relaxar e também passei a ter medo de
me deparar com algum interno do manicômio. Ajudei a dar um pau em um
montão deles; e se algum aparecesse na clínica? Tinha medo de esbarrar em
alguém que porventura poderia se lembrar de mim ou me confundir com
qualquer outro funcionário. Essa possibilidade era bastante real, já que
alguns deles passavam até dois anos internados para avaliação no Hospital
Psiquiátrico antes de conquistarem a liberdade.
Concluí que, por mais que tivesse boa vontade, o Pena não era
infalível. Além disso, apesar de os pacientes do andar de cima serem limpos
e bem tratados, passei a desconfiar de todos. E se alguém surtasse de
repente à noite? Mesmo com os olhos abertos, o medo passou a ser uma
companhia constante.
O pavor bloqueava minha criatividade. Não consegui compor outras
canções. Na minha cabeça passavam filmes sem começo, meio e fim com
imagens recuperadas de um passado não muito distante. Brotavam cenas
das gozações e humilhações que sofri quando tentava explicar que eu era
um capa-branca. Eu também via um boticão enorme arrancando meus
dentes sem anestesia; depois, o dentista os colocava em um colar, que
exibia pendurado no pescoço. Em uma sala cheia de espelhos, eu tentava
fugir do meu reflexo. Eu não passava de um louco de camisola com um
número estampado no peito gritando para me tirarem dali. Eu nem
precisava estar dormindo para ter pesadelos.
Voltei a recorrer aos livros para passar o tempo e tentar buscar alívio.
Eu me espantei ao encontrar um livro chamado O alimento dos deuses. Ao
ver aquele título, achei que a leitura pudesse me reconfortar, mas na
verdade tudo começou a ficar muito mais esquisito. Eu me apavorei com os
ratos, galinhas e insetos que se tornaram monstros gigantes após ingerirem
substâncias criadas por cientistas. Não consegui ler até o fim.
Além dos internos do Manicômio, passei a me preocupar com os seres
assustadores daquele livro. Eu queria me tornar invisível e passei a andar
desconfiado, olhando para todos os lados, com medo de que alguém ou
alguma coisa me atacasse. Com essa paranoia tomando conta de mim, em
uma tarde quente perdi os sentidos e desmaiei em um dos pátios.
Não sei quanto tempo permaneci desacordado caído no chão. Em um
dado momento, tive a impressão de ser observado por vários olhos. Na
verdade, havia mais olhos do que cabeças humanas. Sem sentir as mãos dos
que me conduziam para fora dali, meu corpo flutuava a meio metro do
chão. A confusão dos olhos deu lugar à escuridão que se misturava com o
azul de um céu sem nuvens: em um piscar de olhos o dia se transformava
em noite sem estrelas.
De repente, lembro que as trevas desapareceram e eu estava em uma
sala com móveis luxuosos. Poltronas de couro marrom, cadeiras com
estofamento de veludo vermelho e uma mesa enorme de madeira maciça
ocupavam o cômodo. Então, me colocaram sentado em uma das poltronas,
que era extremamente macia e confortável. Eu esperava alguma coisa
acontecer ou alguém entrar pela única porta do local.
A parede oposta à porta e à poltrona onde eu estava sentado era toda
coberta por um espelho. Não faço ideia se era a mesma sala ou o mesmo
espelho da vez em que me reuni com um psiquiatra, os diretores e os
administradores das colônias no Pavilhão Escola. Apesar de não conseguir
mais juntar os pensamentos, não fazia o mínimo sentido eu estar sentado em
uma poltrona de couro. Comecei a imaginar por que havia um espelho bem
na minha frente. Quando eu tentava reconhecer meu reflexo, o vidro tremia.
O silêncio não era absoluto, mas eu conseguia ouvir um zumbido agudo e
irritante, seguido de estalos. Os barulhos pareciam vir do lado de dentro da
parede. Talvez detrás do espelho.
Instantes depois, três homens vestindo sapatos, calças e camisas
brancas entraram, estenderam a mão para mim e se apresentaram, mas não
consegui guardar o nome de nenhum deles. Foi feita uma série de perguntas
e, embora eu tenha respondido a todas, não tinha a mínima noção do que
estava falando. Eu tremia sem parar e só pensava no espelho. Será que
alguém estava lá atrás me vigiando e gravando tudo aquilo que eu dizia?
Quando a sessão de perguntas terminou, eles se despediram e me
levaram de volta ao pátio da clínica. Durante o caminho, tive a impressão
de que alguém me seguia. Olhava para trás tentando achar essa pessoa que
estava no meu encalço. Eu não encontrava nada. Nem ninguém.
Antes de dormir, os enfermeiros chegaram com os remédios. Fiquei
com medo de engolir os comprimidos. Passei a acreditar que depois daquela
tarde a medicação tinha sido mudada. Não tinha dúvidas de que aqueles
enfermeiros faziam parte de um projeto e eu estava sendo submetido a
testes. Por algum motivo que eu desconhecia, a equipe de médicos e
enfermeiros tinha me escalado como cobaia. Mas para qual projeto? Qual
era o propósito de tudo aquilo? Nunca soube. Acho que nunca vou saber da
verdade.
Naquela noite demorei a pegar no sono. Além dos gemidos e gritos dos
outros pacientes, ouvia passos pelo quarto. Mas quando eu abria os olhos,
não conseguia ver ninguém andando por lá. Estavam todos deitados.
Bastava eu fechar os olhos e o barulho dos passos voltava. No entanto, o
cansaço me venceu e eu finalmente dormi.
Acordei pela manhã sentindo batidas de um pequeno objeto metálico
no meu braço esquerdo. Eram batidas ritmadas. Agora eu sentia alguma
coisa. Não ouvia apenas aqueles ruídos de passos. O pavor tomou conta de
mim. Queria abrir os olhos, mas não conseguia. E se eu não estivesse na
minha cama? Pensei em gritar por socorro. Minha voz não saía. Poderia ser
novamente a sala com o espelho. Foi quando senti um golpe na testa. Abri o
olho e vi um paciente esfarrapado e fedorento com uma caneca na mão.
Cansado de batê-la no meu braço, começou a usá-la na minha cabeça.
Levantei de uma vez só, tomei a caneca da mão dele e a joguei longe.
O interno deu uma gargalhada e saiu pulando com as mãos na cabeça para
procurar a caneca. O louquinho repetia a mesma frase até encontrá-la. Ele
dizia: “Meu nome não é Gabriel. Eu sou Lúcifer, o anjo do mal!”. Eu sabia
que não adiantava conversar com ele ou contrariá-lo.
Nada mais me surpreendia lá dentro, há muito tempo. Só me restava
passar os dias. Já não tinha certeza se sairia realmente dali. E, se eu saísse,
como eu ia encarar a vida lá fora? Nada mais seria como antes.
O raciocínio lógico há muito já não fazia parte da minha rotina.
DE VOLTA PARA CASA
Às vezes acabo dando uma volta pelas galerias das Clínicas Psiquiátricas.
Geralmente isso acontece quando tenho consulta na psiquiatria no prédio,
hoje restaurado, que antes abrigava o Pavilhão Escola. Por coincidência,
esse é o mesmo local onde aconteceu a reunião com os diretores, um
psiquiatra e os administradores das colônias pouco antes da minha
internação. Ao lado, encontra-se o Hospital Estadual de Franco da Rocha,
construído em 2011, uma construção moderna que não lembra em nada
qualquer um dos lugares nos quais trabalhei e fiquei internado.
As antigas construções ainda continuam lá, mas restam pouquíssimos
pacientes. A maioria dos dormitórios, corredores e pátios permanecem
vazios dia e noite. Quase não reconheço o local onde passei oito anos da
minha vida. O mato ocupou os jardins e agora só cachorros perambulam
pelos pátios, enquanto os gatos dormem ou se espreguiçam na sombra. As
grossas paredes das clínicas permanecem em pé, mas a pintura amarela
desbotou e o reboco está se soltando, revelando os tijolos robustos
empregados na construção com mais de cem anos. Os pilares de ferro,
apesar de estarem cobertos com uma camada de ferrugem, ainda sustentam
a cobertura dos corredores de acesso entre as clínicas. Algumas telhas
desapareceram, mas a maioria segue firme, presa por grossos caibros de
madeira.
Lamento o estado em que se encontra o prédio do setor administrativo
do Hospital Psiquiátrico. Em dezembro de 2005, o fogo destruiu seus dois
andares, sobrando apenas as paredes e uma parte da cobertura do piso
inferior em uma de suas laterais. O busto de bronze do doutor Franco da
Rocha sobreviveu, mas ficou todo chamuscado. Dizem que os livros da
biblioteca, os arquivos com os prontuários dos pacientes e os registros dos
funcionários se transformaram em cinzas depois de seis horas de incêndio.
Os vitrais, a estrutura elétrica, o telhado e o piso, que tinham acabado de ser
trocados, desapareceram para sempre.
O campo de futebol do Hospital Central também não escapou do
abandono. O mato tomou conta do gramado e das arquibancadas ao crescer
pelas rachaduras do cimento. Se eu não tivesse jogado bola, nem poderia
imaginar que as partidas finais dos campeonatos de funcionários das
clínicas, das colônias e do Manicômio aconteciam ali.
A Sexta Colônia, onde trabalhei depois de ser transferido do
Manicômio, também está irreconhecível. Os pátios, que hoje permanecem
vazios, concentravam um bando de homens pelados ou com roupas
rasgadas. Ninguém mais vive nos dormitórios. Apenas o prédio da
administração abriga, coincidentemente, o setor administrativo do Parque
Estadual do Juquery. Os jardins, que tinham plantas e flores muito bem
cuidadas, disputam agora espaço com o mato e as ervas daninhas. O campo
de futebol e as canchas de bocha e malha desapareceram. Do passado,
ficaram apenas os prédios de alvenaria e os coqueiros centenários.
Do lado de fora da muralha, crianças brincam em um parquinho. Os
adultos se embrenham na mata por trilhas bem sinalizadas. Acredito que
muitos frequentadores do parque não têm noção do que realmente acontecia
por ali nem imaginam que de manhã bem cedo a gente passava pelas camas
dos pacientes para verificar se alguém tinha morrido.
Agora vejo os guardas de empresas particulares que, com seu olhar
intimidador, impedem meu acesso aos lugares nos quais vivi por tanto
tempo. Os pacientes que ficavam abandonados foram quase todos embora
ou acabaram morrendo sem fazer falta para ninguém.
Qualquer um que conheceu o Juquery nos anos 1970 deve se perguntar
o que realmente aconteceu com os loucos. Eles foram curados? Não sei a
resposta, mas acho que muitos deles foram enterrados como indigentes no
Cemitério do Juquery. Tenho a nítida impressão de que o Juquery está à
mercê da ação implacável do tempo, sendo corroído aos poucos dia após
dia, agonizando lentamente como um doente acamado sem qualquer
esperança de continuar vivendo neste mundo.
Quando eu trabalhava no Juquery, ouvia gritos e gemidos dos
pacientes por toda a parte. Hoje há o silêncio que só é interrompido durante
a semana pelo movimento das pessoas que vão ao novo hospital. Aos fins
de semana não se escuta nenhuma voz.
Mas o barulho dos pacientes com os quais convivi nunca abandonou
minha mente. Nem preciso ir até lá para minha lembrança trazer de volta o
som do sofrimento daquele batalhão de seres sujos e maltrapilhos que
perambulava pelos corredores e os pátios das clínicas.
O Juquery nunca me abandonou. Os habitantes daquele mundo vão
morar sempre na minha cabeça. Jamais voltei a trabalhar no Hospital, nas
colônias nem no Manicômio, que acabou virando um presídio. Só que, em
pensamento, estarei dentro desses lugares para sempre.
Vista panorâmica do Hospital Central
Escadaria do prédio da Administração do Hospital Central – acesso aos escritórios e à biblioteca
Edifício da administração do Hospital Central
Um dos pavilhões masculinos do Hospital Central
Galerias entre os pavilhões do Hospital Central
Residência do doutor Franco da Rocha, primeiro diretor do Juquery – atual Museu Osório César
Torre do relógio no edifício da padaria e do refeitório – Hospital Central
AGRADECIMENTOS