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DIREÇÃO

Mary Lou Paris

PREPARAÇÃO
Fábio Bonillo

REVISÃO
Luiz Fukushiro

PROJETO GRÁFICO
Jussara Fino

ILUSTRAÇÃO DA CAPA
Studio DelRey

ASSESSORIA EDITORIAL
Dominique Ruprecht Scaravaglioni

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F224c
Farias, Walter.

O capa-branca: de funcionário a paciente de um dos maiores hospitais psiquiátricos do


Brasil / Walter Farias, Daniel Navarro Sonim. – São Paulo: Terceiro Nome, 2014.

Inclui apêndice.
ISBN 978-85-7816-144-6

1. Farias, Walter – Biografia. 2. Hospitais psiquiátricos – Brasil. 3. Doenças mentais. 4.


Juquery – São Paulo. I. Sonim, Daniel Navarro. II. Título.

CDU 929
CDD 920
Índice para catálogo sistemático:
1. Farias, Walter: Biografia 929

Copyright © Walter Farias e Daniel Navarro Sonim 2014

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA TERCEIRO NOME


Rua Professor Laerte Ramos de Carvalho, 159
01325-030 - São Paulo - SP
www.terceironome.com.br
fone 55 11 32938150
SUMÁRIO

O AMIGO DO CAPA-BRANCA Daniel Navarro Sonim

SOU ESQUISITO, E DAÍ? Walter Farias


PRIMEIRA PARTE HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
JUVENTUDE EM FRANCO DA ROCHA • TRATAMENTOS
PARA A LOUCURA • CONCURSO PÚBLICO • ENTRANHAS
DO JUQUERY • LOUCOS, MALUCOS E PIRADOS •
APRENDIZADO NA SEXTA COLÔNIA • TRABALHO NA
TERCEIRA CLÍNICA • EXTRAVAGÂNCIAS E CONFORTO • O
ESPECIALISTA • O PACIENTE QUE MANDAVA •
FUNCIONÁRIOS INESQUECÍVEIS • O PADRE • A VIAGEM
SEM VOLTA

SEGUNDA PARTE MANICÔMIO JUDICIÁRIO


RECOMEÇO • O BATISMO • AS PORTAS DO INFERNO •
RELAÇÕES PERIGOSAS • O SER INDOMÁVEL • A BESTA
FERA • NEGUINHO DA MADAME • ROSEMIRO, O
BOXEADOR • O DETENTO INTRAGÁVEL • O GUARDA-
COSTAS • OS MISTÉRIOS DE ADAMA • LUZ VERMELHA

TERCEIRA PARTE INTERNAÇÃO


O FILME • COLAPSO MENTAL • A SOLUÇÃO DEFINITIVA •
EU ME TORNEI UM DELES • NA PRÓPRIA CARNE DÓI
MAIS • IDENTIDADE PERDIDA • SORRISO ARRANCADO À
FORÇA • O REENCONTRO • UMA DOSE DE LIBERDADE •
APRISIONADO NA LOUCURA • DE VOLTA PARA CASA • O
JUQUERY SEMPRE DENTRO DE MIM

APÊNDICE
AGRADECIMENTOS
O AMIGO DO CAPA-BRANCA Daniel Navarro Sonim

Franco da Rocha, município da região metropolitana de São Paulo, distante


cerca de 30 quilômetros da capital, até hoje é lembrado por abrigar o
Juquery, conjunto que compreende o Hospital Psiquiátrico e o Manicômio
Judiciário. Por razões óbvias, é inevitável associar o local à loucura e,
consequentemente, à imagem de uma multidão de homens vestindo farrapos
ou nus perambulando pelos pátios do hospital. Já de Franco da Rocha, nos
últimos anos, apenas saem notícias de enchentes que atingem a população
ou crimes que ocupam as páginas policiais dos jornais.
Eu nunca tinha ido a Franco da Rocha, muito menos ao Juquery, até
assistir ao programa Casos de Família, na emissora de televisão SBT, na
tarde do dia 7 de junho de 2007, feriado de Corpus Christi. Walter Farias, o
dono das memórias deste livro, participou do programa, que, naquela tarde,
tinha como tema “Sou esquisito, e daí?”.
A apresentadora Regina Volpato o anunciou como um ex-funcionário
que tinha se tornado paciente do Juquery. Antes de entrar no palco, chamou
a mulher dele. A apresentadora e a plateia do programa tentavam entender
por que Walter era considerado esquisito. A mulher dele então revelou que
ele passava muito tempo trancado no quarto escrevendo. Mas o que ele
escrevia?
Walter contou no programa que, após um período de trabalho no
Juquery, acabara enlouquecendo e se vira obrigado a se internar para não
perder o emprego. Anos depois, aposentado por invalidez, passava dia e
noite compondo músicas, criando inventos e escrevendo suas memórias.
Segundo ele, vizinhos e amigos achavam que estava perdendo tempo
porque ninguém se interessaria em ler as histórias de um louco que morava
em Franco da Rocha.
No final do programa, a apresentadora perguntou o que faltava para o
livro dele se transformar em realidade. Walter respondeu que precisava de
alguém que o ajudasse, porque, como havia estudado pouco, não tinha
condições de concluí-lo. Depois de assistir à entrevista, percebi que poderia
ajudá-lo. Então enviei um e-mail à produção do programa pedindo que nos
colocasse em contato.
Na segunda-feira à tarde, um dos produtores do programa me ligou
para avisar que Walter gostaria de conversar comigo. Imediatamente
telefonei para a casa de Walter. Conversamos rapidamente e marcamos um
encontro na quarta-feira seguinte.
Uma de suas filhas o levou até o centro de São Paulo para me
encontrar na escola de idiomas onde eu dava aulas de francês e de italiano.
Lembro que ele se animou bastante quando falei que eu, além de ser
professor de idiomas, era jornalista, embora não estivesse exercendo a
profissão no momento. A conversa durou mais de duas horas e, antes de ir
embora, ele me entregou três folhas manuscritas com breves descrições de
alguns pacientes do Juquery.
Walter pediu para que eu desse uma olhada naquele material e, caso o
considerasse realmente interessante, me disse que mandaria o restante pelo
correio. Mais do que interessantes, achei aquelas três folhas fascinantes.
Não demorou muito para eu receber mais manuscritos pelo correio. Por
coincidência, Mancuso, o carteiro que entregava a correspondência no
prédio onde eu morava, não só conhecia Walter como também tinha um
estúdio em Franco da Rocha que gravava as composições dele.
Levei seis meses para digitar e organizar todos os manuscritos.
Enquanto isso, continuei dando aulas de idiomas e passei a trabalhar como
assessor de imprensa em uma agência especializada em turismo. Só
consegui visitar Walter no início de 2008, quando pedi demissão da
agência.
Peguei o trem da CPTM na estação Palmeiras Barra-Funda e, em
janeiro de 2008, parti rumo a Franco da Rocha pela primeira vez. Walter já
me esperava na estação para irmos à casa dele. Passamos o dia todo
conversando até decidirmos que as histórias, que se passam na década de
1970, seriam divididas em três partes: o trabalho no Hospital Psiquiátrico, a
transferência para o Manicômio Judiciário e o tempo em que viveu como
paciente.
Passei a visitar Walter com mais frequência. Além de entrevistá-lo, ele
foi meu guia em Franco da Rocha e nas clínicas do Hospital Psiquiátrico,
que já estavam bem diferentes do que eram antes. Apesar de manter a
antiga estação de trem e de o centro ser bem movimentado, cheio de lojas,
bancos e vendedores ambulantes, grande parte da população do município
saía todas as manhãs para pegar o trem e trabalhar em São Paulo. Franco da
Rocha se transformara em uma cidade-dormitório, e, diferente de antes,
pouca gente trabalhava no Juquery.
No Hospital Psiquiátrico, enquanto caminhávamos pelos corredores
dos prédios de paredes amareladas, percebia que Walter olhava para tudo
aquilo com melancolia e tristeza. Pouco mais de duzentos pacientes
permaneciam internados. Nessa minha primeira vez no hospital, consegui
ver apenas o rosto de um paciente idoso que nos observava pelas grades de
uma janela.
Em maio de 2008, decidi me mudar para Fortaleza, mas continuamos a
escrever o livro. À medida que eu escrevia os capítulos, imprimia as folhas,
as colocava em um envelope e enviava pelo correio. Walter lia o material,
escrevia seus comentários à mão com caneta esferográfica e devolvia o
envelope. Eu aguardava ansiosamente por recebê-lo.
Trabalhamos assim por dois anos e meio até eu voltar a São Paulo.
Passei, então, a visitá-lo aos sábados. No mesmo quarto em que ele se
trancava para escrever suas memórias, compor suas canções e bolar seus
inventos, trabalhávamos até o início da madrugada de domingo.
À medida que Walter dividia comigo suas memórias como funcionário
e paciente do local onde trabalhou por cerca de uma década, fui
descobrindo que o Juquery era mais grandioso do que eu poderia imaginar.
Tratava-se de uma instituição que recebia pacientes da capital, de
municípios do interior de São Paulo e de outros estados. Atendia, desde o
início do século XX, não apenas Franco da Rocha, mas também os
municípios vizinhos de Francisco Morato, Cajamar, Caieiras e Mairiporã.
O Juquery começou a nascer na segunda metade do século XIX,
quando os locais reservados ao atendimento de doentes mentais na capital e
no interior de São Paulo já não comportavam a quantidade de pacientes, que
não parava de aumentar. Para aliviar essa superlotação e com o propósito de
se tornar um centro de estudos psiquiátricos e pesquisas científicas, em
1895 começou a construção, com projeto do arquiteto Ramos de Azevedo,
da Colônia Agrícola Juquery, em uma área de 150 hectares.
A população da metrópole aumentava, acompanhando o acelerado
desenvolvimento da indústria e a chegada de imigrantes. O número de
desempregados, mendigos, prostitutas, sifilíticos, pessoas com deficiência,
doentes mentais, alcoólatras e ex-escravos, entre outros indivíduos
considerados improdutivos pela sociedade, também aumentou. A burguesia
e a ciência apoiaram a criação de um local afastado da capital que pudesse
receber esses excluídos da sociedade. Além de promover a disciplina e a
moralidade através do trabalho, os gastos públicos diminuiriam.
Em 18 de maio de 1898, o psiquiatra paulista Francisco Franco da
Rocha foi incumbido pelo governo do estado de São Paulo de administrar o
Asylo de Alienados do Juquery, que, em 1929, passou a se chamar Hospital
e Colônia de Juquery. Inaugurado com capacidade inicial de oitocentos
leitos, o hospital ocupava um terreno à margem da linha férrea, próximo à
Estação Juquery, no então município de Mairiporã. Franco da Rocha se
tornaria município apenas em 30 de novembro de 1944, quando houve sua
emancipação.
Durante a gestão de Franco da Rocha, foram construídos outros
prédios e instaladas oficinas e colônias agrícolas, além de alas reservadas a
homens, mulheres e crianças. Até 1921, internos menores de idade
conviviam com adultos.
Mas havia ainda a necessidade de separar os pacientes criminosos dos
comuns. Antonio Carlos Pacheco e Silva, sucessor de Franco da Rocha,
fundou em 31 de janeiro de 1933 o Manicômio Judiciário de Franco da
Rocha. Atualmente conhecido como Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima, surgiu com o objetivo de
abrigar pessoas que cometeram delitos e estão sob custódia da justiça como
inimputáveis, isto é, aqueles que não podem ser responsabilizados nem
condenados porque não têm condições psíquicas de compreender nem
reconhecer seus atos transgressores.
Em 1934, o manicômio recebeu a primeira turma de 150 criminosos
doentes mentais. O jardineiro austríaco Wilheim Holtezmann é o paciente
de registro nº 1. Aos 21 anos, um ataque de psicose aguda o levou a
assassinar um amigo a coronhadas de uma garrucha durante um baile de
carnaval.
De 1938 a 1945, durante a Era Vargas, o processo de limpeza das
cidades se intensifica, resultando no aumento do número de internações. O
auge de lotação do Juquery aconteceu na década de 1970. O complexo foi
moradia de 16 mil pacientes psiquiátricos, embora a capacidade máxima
fosse de 9 mil.
E é em 1972 que Walter Farias entra nesse mundo. Ele é um dos
primeiros funcionários concursados a trabalhar no Juquery. Primeiro, ele vai
lidar com os pacientes do Hospital Psiquiátrico. Em seguida, é transferido
para o Manicômio Judiciário, onde, desde o primeiro dia, teve a impressão
de estar cercado por detentos de um presídio. A rotina no manicômio o
levou a abandonar sua capa branca, o jaleco que os funcionários vestiam no
Juquery. Walter é internado no Hospital Psiquiátrico e se transforma em
paciente.
Três anos antes de eu conhecer Walter, em 2005, além do início da
desativação do Hospital Psiquiárico, um incêndio atingiu o setor
administrativo do prédio do Hospital. Seis horas de fogo destruíram o
edifício de dois andares tombado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), sua biblioteca –
a mais completa em livros e periódicos de psiquiatria da metade do século
XIX até metade do século XX – e os prontuários dos pacientes do início da
década de 1950 até 2005. Do edifício sobraram apenas as estruturas e uma
parte da cobertura do piso inferior em uma de suas laterais. O prédio havia
acabado de ser restaurado, com reformas do telhado, do piso, vitrais e da
estrutura elétrica.
As páginas adiante reconstroem as memórias de Walter Farias e
retratam o Juquery a partir de suas experiências pessoais. Para proteger a
identidade dos funcionários e dos pacientes, alguns nomes reais não foram
citados – utilizamos apenas apelidos ou os trocamos.
SOU ESQUISITO, E DAÍ? Walter Farias

Muita gente entra na loucura pelo medo de endoidecer, mas permanece nela
por outro medo: o de abandoná-la. Por sete anos vivi cercado de todo tipo
de louco, maluco, pirado ou qualquer outro nome para um doente com
problemas mentais ou psiquiátricos. Acredito que as pessoas pensam que
sou meio esquisitão por causa disso. Hoje estou aposentado e muita gente
classifica meu comportamento como loucura. Mas aposto que essas pessoas
nem imaginam quais são os verdadeiros limites da loucura – se é que a
mente humana tem algum limite.
Sinto um desconforto muito grande quando minha mulher coloca a
mesa para as refeições e vejo no meu lugar um prato raso de louça, um
garfo e uma faca de metal na minha frente. Se ela insiste em fazer isso,
recolho tudo, me levanto e jogo os talheres e o prato na pia. Então abro o
armário e vou à caça de um prato fundo de plástico e uma colher. Só me
sinto à vontade para comer assim.
Muito raramente, quando vou a um restaurante, tenho que me esforçar
muito para usar garfo e faca. Fico incomodado com o barulho dos talheres
batendo na louça. Tampouco me agrada a ideia de levar algo de metal até
minha boca.
Meus colegas de trabalho já achavam estranho eu cortar as unhas das
mãos e dos pés com gilete. Em casa, mantive esse hábito, mas também
comecei a usar as lâminas de aparelhos de barbear descartáveis. Para
executar essa tarefa, bastava quebrar o aparelho e retirar as lâminas.
Diferentemente da gilete comum, esse tipo de lâmina não envergava, por
ser bem mais dura. Eu a encaixava debaixo da unha, tomando cuidado com
a carne na ponta do dedo, e puxava-a para cima para cortá-la.
Parei de fazer isso quando uma imagem passou a perturbar minha
mente: era só minhas unhas começarem a crescer para eu ver a gilete cortar
meu cérebro em fatias.
Não saio por aí vestindo frangalhos ou trapos imundos, mas detesto
usar roupa nova. Só sei que me incomoda colocar uma camisa ou calça que
nunca foram usadas por mim antes. Esse incômodo também compreende os
lençóis da minha cama. Fico extremamente irritado quando minha mulher
os troca, apesar de ter plena consciência de que isso é absolutamente
necessário para meu bem-estar.
Apesar disso, já fiquei cinco anos sem tomar banho, durante minha
aposentadoria. Poderia ser inverno ou verão, os dias passavam e nada de eu
entrar debaixo do chuveiro. Só quando a situação estava insuportável para
quem convivia comigo é que, depois de muita insistência da minha mulher
e de um primo meu, eu ia para o chuveiro me lavar.
Eu não tinha a mínima noção do meu cheiro. Até hoje não sei se o
fedor realmente me afastava das pessoas porque eu dificilmente saía do meu
quarto. Passava o tempo dormindo ou compondo minhas músicas. Mas, aos
poucos, os intervalos sem tomar banho foram diminuindo e retomei esse
hábito diário.
Chuvas fracas ou tempestades me atormentam. Peço na hora a Deus e
a todos os santos de que me lembro para que a água pare de cair do céu.
Também não consigo entrar no mar. Apesar de eu saber nadar, tenho medo
de ser levado pela correnteza e morrer afogado. Eu só conseguia tomar
banho de mar em uma praia de Ubatuba, no litoral paulista, mas tinha que
estar acompanhando de um amigo, que, infelizmente, já morreu.
Desde o início da minha aposentadoria compus mais de 400 canções
nos mais variados estilos, só que nunca entendi como pude fazer isso sem
gostar de ouvir música. Na verdade, eu gosto de ver a música: assisto a
programas e shows na TV ou em DVDs. Não suporto discos, fitas e CDs.
Rádio, nem pensar. Nem tenho condições de ir a shows, porque começo a
passar mal logo que eu vou me aproximando do local da apresentação.
Já tentei entrar em alguns shows em locais ao ar livre ou fechados, mas
não consegui ficar por muito tempo. Tenho pavor da multidão entrando e
saindo. E também acho que os seguranças fazem a revista de forma
extremamente desleixada. Muitas mulheres passam sem uma averiguação.
Sempre imagino quantas poderiam estar carregando algum tipo de arma. Se
mataram o John Lennon na porta da casa dele, por que outra pessoa não
poderia fazer o mesmo comigo no meio da multidão? Já recebi inúmeros
convites para ir a bares nos quais alguns cantores apresentariam minhas
músicas, mas sempre dou um jeito de escapar desse suplício.
Até hoje não entendi como isso aconteceu, mas poucos anos atrás
insisti em ir a um show em que se apresentariam a banda Ira! e a cantora
Pitty. Houve um atraso de mais de uma hora e meia, mas, mesmo assim,
nada me incomodou. Não reparei nos seguranças, que deviam estar fazendo
revistas superficiais; a multidão não representou uma ameaça; e nem me
passou pela cabeça que alguém poderia me agredir ou tentar me matar.
Permaneci no local fechado até a última música. Eu me senti muito bem e à
vontade o tempo inteiro.
Porém, foi só dessa vez. Não sei se essa experiência vai se repetir.
Na verdade, não consigo frequentar nenhum local com multidão. Os
shows são apenas um exemplo. Tenho pavor de shopping centers, lojas,
vagões de trem, ônibus e supermercados. Escapo até das filas de banco. Se
preciso pagar alguma conta, dou um jeito de convencer alguém a fazer esse
favor para mim.
Ao contrário das pessoas que só se sentem seguras trancadas em casa,
eu só fico tranquilo se as portas estiverem destrancadas ou abertas. Tenho
certeza de que é pior deixar tudo fechado. Essa atitude acaba chamando
mais atenção dos ladrões, porque eles podem pensar que estou escondendo
objetos de valor e dinheiro. As trancas, fechaduras, correntes e cadeados
não servem para dificultar o acesso deles, já que conhecem todos os
mecanismos e têm todas as ferramentas para entrar e levar tudo o que lhes
interessa.
Mas tem uma coisa que ninguém pode tomar de mim: minhas
memórias. Acho que só a morte pode apagá-las.
E foi no meu quarto, sozinho, que decidi sentar e pegar papel e caneta
para escrever minha história. Para você entender como me tornei essa
pessoa que muita gente acha esquisita, estranha, maluca, pirada ou sejá lá o
que for, vou voltar ao tempo em que eu era jovem em Franco da Rocha e
não imaginava que entraria em um mundo conhecido como Juquery.
JUVENTUDE EM FRANCO DA ROCHA

Mais de 20 mil pacientes viviam ali no Juquery, diziam. Alguns calculavam


30 mil. Na verdade, ninguém tinha parado para contar cada um dos loucos
que ficavam isolados no Hospital Psiquiátrico e no Manicômio Judiciário,
ambos na cidade de Franco da Rocha, no estado de São Paulo. Alguns
também viviam nas oito colônias agrícolas distribuídas por Franco da
Rocha, Caieiras e na Serra dos Cristais, próxima a Jundiaí. O prédio do
Hospital Central já estava lá muito antes do meu nascimento. Em 1898, um
doutor com o mesmo nome da cidade onde moro inaugurou o Juquery. Um
arquiteto chamado Ramos de Azevedo projetou o local para que alguns
enfermeiros e alguns poucos médicos cuidassem de doentes indesejáveis no
convívio com a maioria da população considerada normal.
No início dos anos 1970, sem ainda ter atingido a maioridade, eu
levava uma vida pacata, não muito diferente da dos outros 15 mil habitantes
de Franco da Rocha. Caminhávamos por ruas de terra batida com casas
simples. Nas poucas avenidas com paralelepípedos quase não se viam
carros. A maioria dos automóveis pertencia aos taxistas, que levavam os
passageiros em modelos importados da Chevrolet e da Ford fabricados na
década de 1950. Às vezes, víamos o rabecão da polícia passando de um
lado para o outro. Um ou outro fusquinha dividia espaço com charretes
puxadas por cavalos ou burros. O trem nos levava à estação da Luz, no
centro de São Paulo, em uma viagem de pouco mais de uma hora.
Nos empórios encontrávamos um pouco de tudo, desde peças de carne
seca, linguiça defumada e mortadela penduradas no teto até fumo de rolo,
balas e pirulitos no balcão. Vendidos a granel, o arroz, o feijão, o sal, a
farinha e o milho para as galinhas ficavam expostos em sacos de estopa; só
o açúcar cristal era armazenado em sacos de linho. Além dos mantimentos,
havia pares de botas, foices, facões e enxadas para o trabalho na roça. O
dono do empório anotava em uma caderneta aquilo que gastávamos, e só
precisávamos pagar quando recebíamos o salário no final do mês. Outra
entrada dava acesso ao balcão de pinga: apesar de fazer parte do mesmo
estabelecimento, mulheres e crianças não se atreviam a entrar nesse recinto,
onde os pinguços passavam o tempo enchendo a cara e jogando conversa
fora.
A igreja, localizada na praça ao lado da estação ferroviária, recebia os
fiéis que acompanhavam a missa aos domingos de manhã. Na época de São
João, balões coloridos cobriam o céu a qualquer hora do dia ou da noite.
Para prepará-los, comprávamos as folhas de papel nos empórios e as
colávamos com um preparado à base de água e farinha de trigo.
Toda manhã eu pegava o trem para ir ao trabalho na fundição da Voith,
uma metalúrgica, próxima da estação Jaraguá, a cerca de vinte minutos de
Franco da Rocha. Eu queria mesmo era sair por aí pilotando uma moto
Yamaha de cinquenta cilindradas. Com meu salário, não dava para comprar
uma. Infelizmente, a única opção de duas rodas era a bicicleta.
Essa motocicleta passou a povoar meus pensamentos quando fui ao
único cinema da cidade assistir a um filme estrelado pelo cantor e galã
Antônio Marcos. Nem sei qual era o nome do filme, mas me lembro de uma
cena em que o cara descia a serra pilotando aquela motocicleta rumo à
Baixada Santista. Atrás dele, seguia um grupo de 150 jovens montados
naquelas “cinquentinhas”. Todos eles levavam uma garota na garupa.
Dava para contar nos dedos quantas vezes tinha ouvido o barulho do
motor e visto aquela moto em Franco da Rocha. Cresci habituado a ter
apenas o essencial. Diferentemente da moçada do filme, jogávamos bola
nos campos de areia, de terra batida ou com algum gramado. Se sobrasse
alguma grana para o final de semana, a rapaziada se juntava e descia a serra
de ônibus para tomar banho de mar na Praia Grande. Éramos chamados de
farofeiros. E, aos domingos, quando os bolsos ficavam vazios ou ninguém
tinha bola para emprestar, atravessávamos a cidade a pé procurando algum
conhecido que possuísse televisor preto e branco.
Se não dava para ver TV, recorríamos ao rádio, que garantia a
transmissão das partidas de futebol. Tínhamos, assim, acesso à pouca
informação que chegava. Apesar de o país viver a ditadura militar, as
notícias diziam que tudo transcorria na mais completa paz, sem torturas,
prisões ou manifestações contra o governo.
Enquanto isso, se a coisa engrossava entre nós, resolvíamos o
problema na base do tapa, soco ou pontapé. Quando a situação ficava feia
de verdade, o rabecão da polícia passava e levava os brigões para dormir na
delegacia.
Às vezes, pelo que me lembro, alguns loucos do Juquery conseguiam
atravessar os portões, as muralhas ou as cercas, para mudar nossa pacata
rotina. Sem polícia para persegui-los, se embrenhavam no mato e
caminhavam até encontrar uma rua residencial. Uma vez do lado de fora do
Juquery, tentavam se adaptar à nova realidade, que, na verdade, já
conheciam.
A primeira preocupação era cuidar da aparência. Os habitantes do
Juquery vestiam calça azul-clara bem larga e camisa parda de algodão cru
sem colarinho. Uma fita de pano fazia as vezes de cinto. A cabeça raspada
(para evitar a proliferação de piolhos) e a ausência de dentes também
compunham o visual dos fujões. Maltrapilhos e imundos, tentavam roubar
roupas dos varais. Quando não encontravam nada, batiam na porta das casas
para amolecer o coração das donas de casa, que acabavam doando camisas
e calças limpas.
Bem-sucedidos ou não, continuavam com o desejo de sair daquela
cidade. Viajavam sem destino até desaparecerem. A maioria dos pacientes
perdia família, amigos, conhecidos, endereço, documentos e profissão. O
abandono tornava-se a única referência.
TRATAMENTOS PARA A LOUCURA

Como até o final dos anos 1960 não havia concurso público, só alguns
poucos doutores escolhiam trabalhar no Juquery, com o objetivo de estudar,
entender e tentar curar a loucura. As outras vagas eram preenchidas à força.
Brigas, um bate-boca à toa, dívidas financeiras e até mesmo uma discussão
na família podiam credenciar o sujeito a passar os dias cercado por um
bando de doentes mentais que babavam, olhavam para as paredes e
conversavam com alguém que não estava lá.
Além dos loucos diagnosticados com os mais variados problemas
mentais, havia ainda histórias de japoneses internados só por terem olhos
puxados e se assemelharem a mongoloides ou de italianos que tinham feito
greve no porto de Santos. Presos políticos, drogados, alcoólatras e até
mesmo homens que haviam traído a mulher com outro homem podiam
parar lá dentro. Geralmente as famílias não pensavam duas vezes e os
internavam com a esperança de tentar consertá-los.
Mesmo sem receber qualquer tipo de treinamento, em pouco tempo os
funcionários eram capazes de dominar algumas técnicas para acalmar os
pacientes. Além de trancar os loucos descontrolados em celas, utilizavam
camisas de força para imobilizá-los. Na falta delas, amarravam pernas e
braços com lençóis ou trapos. Os pacientes só eram soltos quando, caídos
no chão, chegavam à exaustão de tanto se debater. Todas essas práticas
continuavam a ser adotadas na época em que comecei a trabalhar no
Hospital Psiquiátrico.
No passado havia outras opções, como a banhoterapia. Consistia em
manter o paciente amarrado em uma cadeira que permitia girá-lo embaixo
de uma ducha com água gelada. Diziam que esse método funcionava
melhor no inverno. O gelo também poderia ser empregado. Nesse caso, o
louco, sentado sobre cubos de gelo em uma bacia, permanecia nessa
posição até o gelo derreter. Para garantir sua permanência, dois ou três
funcionários o seguravam até o final do tratamento.
O boticão do dentista servia como método de prevenção contra
mordidas que podiam ferir outros pacientes, funcionários ou eles mesmos.
De uma só vez, todos os dentes eram arrancados sem qualquer tipo de
anestesia. A seringa, além de ser utilizada para aplicar calmantes, servia
para injetar o parasita da malária. À medida que a doença avançava, um
paciente mais eufórico apena sorria e balbuciava palavras sem sentido de
maneira idiota. Mesmo sem sofrer de diabetes, o louco raivoso recebia
injeções com doses exageradas de insulina. Quando entrava em coma
insulínico, ficava fora de combate, na cama, por um bom tempo.
Bastava os pacientes ouvirem as letras E, C e T para morrerem de
medo. ECT é a sigla de eletroconvulsoterapia – ou simplesmente
eletrochoque. Antes de entrar no Hospital, não podia imaginar que aqueles
louquinhos de cabeças raspadas recebessem choque elétrico. Só quando
participei da primeira sessão me dei conta da crueldade daquela prática.
Cerca de quarenta ou cinquenta pacientes eram submetidos ao
tratamento em cada sessão. A aplicação do eletrochoque acontecia em um
salão do andar térreo da Terceira Clínica. Pelo menos seis funcionários
recebiam a convocação para dar conta de um paciente por vez. O primeiro
colocava o louco deitado em um colchão, desamarrava ou desabotoava a
calça do paciente e enfiava na boca dele um rolo de pano na horizontal.
Essa técnica prevenia a quebra de dentes ou feridas no lábio, se o paciente
fosse banguela. O pano também absorvia a saliva durante a sessão. O
segundo funcionário ficava responsável por segurar a cabeça do paciente. O
terceiro e o quarto imobilizavam o braço esquerdo e o braço direito,
respectivamente, segurando os punhos do paciente com a mão ou
simplesmente sentando sobre ele. O quinto se apoiava nas pernas para que
os joelhos não se dobrassem.
Do lado de fora, os funcionários buscavam os pacientes da lista.
Desconfiados ou já sabendo que receberiam o ECT, eram caçados dentro da
clínica até serem conduzidos à sala onde acontecia a sessão. O próximo
paciente entrava só depois de o anterior ter recebido o choque. Outros
funcionários vigiavam os que já tinham recebido sua dose de eletricidade
para ver como despertavam.
E ainda tinha o sexto funcionário, o responsável pela temida máquina
do eletrochoque. Tratava-se de uma caixa de madeira rústica com
aproximadamente trinta centímetros de comprimento por vinte centímetros
de altura, conectada a uma tomada. Dela saía um par de fios de cobre de
mais ou menos dois metros. Nas pontas de cada fio havia duas hastes
metálicas encapadas medindo mais ou menos dez centímetros. E, na
extremidade das hastes, duas esferas de cobre achatadas do tamanho do
fundo de uma lata de cerveja serviam para conduzir a eletricidade a partir
das têmporas do paciente.
O funcionário que aplicava o choque também trazia um pincel de
barba e um copo com água. Antes de aplicá-lo, passava o pincel molhado
nas têmporas do paciente. Em seguida, girava uma chave para ligar a
máquina e esperava o ponteiro no mostrador girar até atingir o nível
máximo de carga. Então, encostava as hastes metálicas nas têmporas
umedecidas do paciente por alguns segundos.
A partir daí a eletricidade percorria o corpo pelos fios ligados na
cabeça. As veias dos braços, mãos, pernas e pés inchavam, ficando muito
avermelhadas. Estufado, o paciente estrebuchava freneticamente e se
contorcia sem parar. Os funcionários tinham que segurá-lo com força para
que a cabeça, os braços, costas e as pernas não batessem violentamente no
chão. Eles diziam que a força do choque poderia torcer algum membro,
causando lesões irreversíveis em músculos e nervos. Os funcionários então
se esforçavam ao máximo para deixar o corpo do paciente o mais rígido
possível, sem que envergasse. Sua boca se contraía, e ele mordia o pano
com força. Alguns perdiam o controle e se mijavam e se cagavam. De olhos
fechados, babavam e gemiam. Após o término da sessão, dormiam
profundamente. Os corpos permaneciam estirados no chão por alguns
minutos.
Aos poucos, um por um, os pacientes abriam os olhos vagarosamente e
acordavam enfraquecidos, sem qualquer poder de reação. Quando se
levantavam, caminhavam lentamente tentando se escorar nas paredes.
Pareciam não ter entendido o que havia acontecido nem sabiam onde
realmente estavam. Quando vi aquilo pela primeira vez, não consegui
dormir à noite. Depois, as sessões se tornaram recorrentes, e acabei sendo
convocado para participar outras vezes. Nunca apliquei o choque nos
pacientes. Essa tarefa sempre tinha que ser executada por funcionários com
mais tempo de casa. Sempre era convocado a segurar os pacientes que
receberiam o ECT. Só nunca entendi como não tomávamos choque, apesar
de a carga passar por todo o corpo dos pacientes quando os segurávamos.
Nunca soube exatamente o que acontecia nos porões do Juquery além
dessa amostra de métodos aplicados lá dentro, mas circulavam muitas
lendas sobre pacientes submetidos a cirurgias de extração de pedaços do
cérebro. Jamais acompanhei um procedimento assim, apesar de muitos
loucos com cicatrizes medonhas na cabeça perambularem nos pátios como
verdadeiros zumbis.
CONCURSO PÚBLICO

O Juquery, antes reservado apenas aos baderneiros, que trabalhavam à força


auxiliando os médicos a lidarem com os doentes mentais, passou a receber,
em 1970, funcionários públicos concursados. Dois anos depois, surgiu para
mim uma oportunidade de prestar o concurso para trabalhar como atendente
de enfermagem no Hospital Psiquiátrico. Eu estava com 19 anos e vi a
garantia de estabilidade, benefícios e, principalmente, um bom salário.
Tanto eu quanto o batalhão de jovens que disputaram as oitocentas vagas
desconhecíamos completamente o que se passava no Juquery. Só sabíamos
que nossa tarefa seria cuidar de pacientes com problemas mentais, mas, na
minha cabeça, eles eram apenas um bando de malucos sujos e maltrapilhos
de cabeça raspada.
O concurso público possuía três etapas, e a única exigência para fazer
a inscrição era ser maior de idade. Na primeira fase, fiz uma prova de
português e matemática. Em seguida, fui encaminhado à entrevista com um
psicólogo. Depois das duas primeiras etapas, uma lista com os nomes dos
aprovados já na ordem de classificação foi afixada na entrada do Juquery.
Depois ocorreu o exame médico, que servia para verificar se o candidato
estava em boas condições físicas e de saúde. Por fim, a relação final dos
aprovados saiu no Diário Oficial do Estado de São Paulo.
Nunca achei que seria aprovado, na verdade. Sempre fui um aluno
muito desleixado; odiava matemática e nunca conseguia tirar boas notas em
português. Às vezes, os professores quebravam meu galho e davam um jeito
de eu passar de ano — eu me destacava nas aulas de teatro. Como larguei a
escola várias vezes no meio do caminho, só tinha completado o curso
primário aos 18 anos. Quando resolvi prestar o concurso, alguns amigos já
se preparavam para entrar na faculdade, enquanto eu ainda frequentava o
curso de admissão.
Naquela época, quando se terminava a quarta série do curso primário,
geralmente com 11 anos, era necessário estudar por um ano e prestar o
exame de admissão para entrar (ou não, dependendo das notas no exame
final) no curso ginasial, que durava quatro anos. Depois de passar pelo
ginásio, o aluno estudava três anos no colegial e, com 18 ou 19 anos, podia
prestar vestibular para tentar ingressar em alguma faculdade.
Embora nunca tenha gostado de estudar, sempre prestei atenção às
aulas. Porém, isso era complicado: a maioria dos professores,
independentemente da disciplina, entrava na sala de aula, virava de costas
para os alunos, pegava o giz, começava a cuspir o conteúdo na lousa e,
depois de terminar, mandava a gente copiá-lo, sem dar um pio.
Quando eu estava no curso de admissão, conheci um professor de
matemática que ensinava de forma diferente. Ele explicava o porquê das
coisas. Dava gosto assistir às suas aulas. Finalmente tive a sensação de estar
aprendendo alguma coisa. Apesar de nunca ter visto minhas notas, acho que
esse professor acabou colaborando para que eu fizesse uma prova de
matemática razoável no concurso público.
Só que ainda restava a entrevista. E, se eu não fazia ideia do que cairia
nas provas, nem podia imaginar como seria essa etapa. Só os boatos
serviam como preparação. Aqueles que já tinham passado pela entrevista
contavam histórias de todo o tipo e nos alertavam sobre como devíamos nos
comportar na frente do psicólogo. Se o candidato respondesse as perguntas
com a voz muito alta, era considerado desequilibrado e não servia para
ocupar o cargo porque era exaltado demais. Caso falasse muito baixo e
demonstrasse timidez excessiva, não passava de uma pessoa fraca, sem
pulso para dar conta do serviço. Gaguejar na hora de falar o nome também
afundava todas as chances de trabalhar no Juquery. O caso mais famoso era
o do candidato que tinha sido reprovado porque se esqueceu de fechar a
porta depois de entrar na sala.
Aquilo tudo me parecia uma grande loteria. O dia da entrevista se
aproximava e, depois de ouvir tantos relatos de gente que tinha se dado mal,
passei a acreditar que o psicólogo me aprovaria caso fosse com a minha
cara. Quando me apresentei, fui ao local vestindo camisa e calça limpas e
bem passadas e um par de sapatos que, apesar de não serem muito novos,
haviam sido engraxados por mim na véspera. Entrei na sala sem esquecer
de fechar a porta e fui submetido a uma série de perguntas sobre a minha
vida. Do momento em que fechei a porta até me sentar na cadeira em frente
à mesa, percebi que o psicólogo me media dos pés à cabeça. Fez um monte
de anotações, sem olhar na minha cara; perguntou apenas meu nome e
sobrenome, se eu era casado, se eu tinha irmãos e onde eu trabalhava. No
final, pediu para que eu me retirasse e fizesse o favor de chamar o próximo
candidato e deixar a porta aberta. Eu me despedi educadamente,
agradecendo a atenção e desejando-lhe boa tarde. Essas palavras entraram
por um ouvido e saíram por outro, porque ele não esboçou qualquer reação.
A entrevista não durou nem cinco minutos.
Certo dia, dois amigos que também tinham prestado o concurso
apareceram na minha casa para avisar que eu era um dos aprovados. Ambos
já estavam se preparando para fazer vestibular e tinham ficado entre a 400ª
e a 450ª colocação. Se eu realmente tivesse passado na prova e na
entrevista, meu nome estaria bem no fim da lista dos 800 selecionados,
pensei. Por não ter acreditado neles, tive que ir ao Juquery para ver aquela
lista com meus próprios olhos. Começando pelo final, não demorou muito
para achar meu nome, mas, quando os avisei que meu nome estava lá, eles
disseram: “Peraí, seu nome também está em outro lugar!”.
Alguma coisa estava errada. Meu nome também estava entre os cem
primeiros colocados. Para minha surpresa, depois de conferir meu RG,
verifiquei que havia duas pessoas com o mesmo nome na lista de
aprovados. Eu havia passado com uma excelente colocação, e meu xará, por
pouco, não tinha ficado de fora. Hoje ele já está morto. Faleceu por causa
do alcoolismo. Na verdade, passar em primeiro ou em último tanto fazia; eu
nunca entendi o critério de aprovação, porque até um argentino que não
falava português direito acabou sendo aprovado naquele concurso.
Porém, antes de o meu nome sair no Diário Oficial, eu ainda tinha que
passar pelo exame de saúde. Se o psicólogo não tinha levado nem cinco
minutos para me avaliar, o médico foi mais rápido ainda. Apenas mediu
minha pressão e auscultou meu coração e pulmão com um estetoscópio. Em
seguida, pediu para que eu abrisse a boca e deu uma olhada na minha
garganta e nos meus dentes. Enfim, verificou meu peso e minha altura, fez
um monte de anotações e pediu para que eu chamasse a próxima pessoa que
aguardava lá fora na fila. Fiquei sabendo depois que alguns candidatos
foram reprovados porque mancavam, tinham problemas na vista ou na
coluna ou não tinham algum dedo nas mãos ou nos pés.
ENTRANHAS DO JUQUERY

Assim que vi meu nome publicado no Diário Oficial, no início de 1973,


larguei meu emprego de metalúrgico. Na primeira vez que fui ao Juquery,
acordei bem cedo. Caminhei pelas ruas com pouca iluminação, já que o sol
ainda nem tinha começado a nascer.
Antes de entrar no hospital, passei por uma guarita onde ficava um
senhor baixinho que vestia terno e gravata pretos e camisa branca. Na
cabeça, levava um chapéu redondo, também preto, com abas pequenas. Ele
recepcionava funcionários, médicos e familiares, que em dia de visita
recebiam autorização para entrar. Carlito, como gostava de ser chamado, foi
internado por sua própria mãe no Juquery, em 1935, aos 22 anos. Nunca se
soube qual era o diagnóstico de sua doença nem se receberia alta. Por causa
do bom comportamento e por ter conquistado a confiança e o respeito dos
doutores, começou a trabalhar na primeira portaria.
Apesar de morar no Brasil por tanto tempo, ele não tinha conseguido
perder o sotaque. Nascido na Argentina, falava meio enrolado. Apesar
disso, entendi a explicação de como se chegava ao prédio da administração.
Por fim, pediu licença e foi atender uma ligação em um telefone de
manivela.
Atravessei outra portaria até alcançar uma ponte. Olhei por debaixo
dela e vi as águas do rio Juquery. Andei mais alguns metros para chegar a
uma avenida larga e comprida cercada por coqueiros muito altos. A
folhagem espessa me protegia do sol, que acabara de nascer. No final da
avenida, virei à direita e avistei a casa do doutor Franco da Rocha, um
palacete diferente de tudo que existia na cidade. A antiga residência do
médico responsável pela construção do Complexo Juquery, vazia havia
muito tempo, possuía paredes amarelas e detalhes nas portas, janelas e
corrimões na escadaria da entrada. Ninguém morava lá dentro.
Passei pelo palacete e avistei, em uma rua com calçamento de pedra, a
creche para os filhos dos funcionários, o campo de futebol e a saboaria,
local onde eram fabricados todos os sabonetes do Juquery. Segui adiante,
cheguei à portaria do Hospital Central e subi a ampla escadaria de acesso
aos escritórios e à biblioteca. Passei pelo busto do doutor Franco da Rocha
e entrei em uma sala para entregar meus documentos e assinar a papelada
de admissão.
Depois de dar jeito naquilo, me juntei a outros novatos que estavam no
corredor, e fomos até a passagem que dava para um jardim. Lá encontramos
um funcionário com mais tempo de casa, que nos guiou até às clínicas. No
início, todos nós tínhamos que passar por estágios e treinamentos
obrigatórios com duração de 40 dias, até sabermos qual seria nosso local
definitivo de trabalho. O veterano se comprometeu a nos mostrar
rapidamente as dependências do Hospital Psiquiátrico, porque o complexo
era muito grande e possuía muitos departamentos.
Cruzamos o jardim com grama aparada, flores nos canteiros, uma
fonte que jorrava e postes com lâmpadas que garantiam a iluminação à
noite. Alguns beija-flores e sabiás aproveitavam para descansar e se
alimentar. Os bancos, vazios naquele dia, estavam reservados aos familiares
que vinham aos domingos visitar os parentes internados. Um domingo era
reservado aos homens e o seguinte, às mulheres.
Além daquele jardim, conseguíamos ver os prédios das clínicas
psiquiátricas, que, interligados por galerias cobertas com telhas, possuíam
dois andares e subsolo. Do lado direito, ficavam cinco clínicas masculinas
e, à esquerda, outras cinco femininas. As janelas com as grades saltadas
para fora, barrigudas, permitiam que médicos e funcionários observassem,
com segurança, aquilo que acontecia por todos os lados sem que
precisassem sair. Dividindo as clínicas havia ainda uma torre alta com um
relógio e um sino no topo. Na parte de baixo dessa torre ficava o refeitório
dos médicos.
Continuamos andando na direção das clínicas masculinas. Antes de
descer por outra escadaria, avistei duas torres um pouco menores que a torre
do relógio. Cada uma se localizava no final dos pavilhões masculino e
feminino. Tratavam-se das rotundas, o primeiro destino dos pacientes antes
de serem encaminhados às clínicas. Ao chegarem para a internação, eram
fotografados e tinham colhidas as impressões digitais. Ali ficavam por
períodos de 7, 14 ou 21 dias, dependendo do caso. Diariamente, médicos,
psiquiatras e funcionários subiam por uma escada em formato de parafuso e
gastavam de trinta minutos a uma hora para observar os pacientes isolados
em celas redondas com as paredes revestidas de borracha. Por fim, os
doutores os transferiam para as clínicas.
As colônias geralmente recebiam pacientes sem qualquer chance de
cura, mas que já tinham recebido tratamento nas clínicas psiquiátricas.
Apesar de receberem medicação regularmente, raramente psiquiatras,
médicos e familiares os visitavam. Nunca vi um paciente das colônias
receber alta. Morriam abandonados e eram enterrados no Cemitério do
Juquery.
A rotunda também servia para segurar os pacientes em estado de surto.
Mesmo com a medicação, o local isolava quem ousava atacar outros
pacientes ou funcionários. Quando a própria família não trazia os parentes
para tratamento, também se chamava a polícia para levar pessoas que
enlouqueciam de repente, mesmo que fossem de outras cidades ou estados.
Quando um caso desses chegava, um funcionário do Juquery o recebia das
mãos de um policial e, se fosse necessário, tinha que bater nele para
acalmá-lo, amarrá-lo e aplicar um calmante até conseguir trancá-lo na cela
da rotunda. O curioso é que a rotunda para os homens se localizava junto às
clínicas femininas, enquanto as mulheres ficavam na rotunda situada no
setor masculino do Hospital Psiquiátrico.
Cada clínica psiquiátrica possuía um refeitório para os pacientes.
Distribuída a partir da cozinha central, que se localizava em um pátio
grande em frente ao refeitório da Terceira Clínica Masculina, a comida
preparada servia tanto aos funcionários como aos pacientes. As clínicas
ainda eram compostas por salas de medicação, consultório psiquiátrico,
banheiros para pacientes e funcionários, barbearia e rouparia. Os
dormitórios ficavam dispostos nos dois andares. O andar de baixo recebia
os pacientes incapazes de controlar suas necessidades fisiológicas. Os
cagões e mijões sujavam as camas, os lençóis e o chão. Desconheciam os
banheiros. Urinavam e defecavam em qualquer lugar. No andar de cima,
ficavam os pacientes que conseguiam se manter limpos. Durante o dia,
todos dividiam o espaço do pátio para o banho de sol.
Atravessamos a Primeira Clínica para chegar à Segunda. Passamos
pelo refeitório dos funcionários. Subimos alguns lances de escada que, até a
última clínica, terminavam em galerias abertas que se juntavam à próxima
clínica, aos pátios ou a outros prédios, como os laboratórios, a diretoria das
colônias e a garagem reservada à frota de viaturas, ônibus e caminhões,
além da gráfica que imprimia todo tipo de documentação interna, desde
receituários, prontuários, cartões de internação até blocos de anotações para
os médicos.
Atrás do prédio de dois andares da Primeira Clínica, havia também um
conjunto com oito ou dez casas, se bem me lembro, que compunham a vila
onde moravam os doutores. Alguns deles voltavam para a capital nos finais
de semana, mas outros preferiam ficar direto no Juquery, porque faziam
residência médica ou tinham trazido a família.
Quando parecia que o Juquery acabava, percebi que depois das cinco
clínicas psiquiátricas masculinas e femininas ainda havia as clínicas médica
e cirúrgica, sem falar na lavanderia, no pavilhão-escola, no necrotério e nos
consultórios dentários. E, depois de tudo isso, dava para avistar, bem lá no
alto, uma das colônias psiquiátricas.
Mais ao fundo, já longe da minha vista, viviam pacientes espalhados
por outras colônias, que ultrapassavam os limites de Franco da Rocha. Cada
qual era composta por campo de futebol, cozinha, refeitório, campo de
bocha, consultórios médico e dentário, rouparia, farmácia, dormitórios e
pátio.
O Juquery também abrigava criminosos que não podiam mais conviver
em sociedade por causa do perigo que representavam à população de bem.
Condenados pela justiça, esses marginais ficavam encarcerados no
Manicômio Judiciário. Com suas muralhas altas, o manicômio era
comandado pela Secretaria da Saúde. A Quarta Colônia Penal também
podia receber os internos que já tinham passado pelo Manicômio.
LOUCOS, MALUCOS E PIRADOS

Muitos funcionários trabalhavam sem precisar lidar diretamente com os


loucos: jardineiros, pintores, motoristas, encanadores, entre outras
profissões de que nem consigo me lembrar. Vestiam macacões, jardineiras,
uniformes ou roupas sociais mais caras ou mais modestas.
Com a supervisão dos chefes e dos poucos enfermeiros graduados,
uma legião de atendentes e auxiliares de enfermagem com suas capas
brancas corria de um lado para o outro para cuidar dos pacientes do
Hospital Psiquiátrico. Também havia um punhado de médicos e psiquiatras.
No meu caso e no dos outros oitocentos funcionários, todos contratados de
uma tacada só, passávamos o dia cercados por uma multidão de loucos com
uma infinidade de problemas mentais e psiquiátricos.
Aquele lugar parecia uma maçã podre. Por fora, a casca era bonita e
reluzente, com prédios e construções que eu nunca tinha imaginado que
veria na minha vida. Do lado de dentro, a polpa estava podre e carcomida
por vermes famintos. Um amontoado de homens pelados ou maltrapilhos
com a cabeça raspada passava o dia perambulando pelas galerias e
corredores e povoava cada um dos pátios.
Jovens esqueléticos ou gordos, velhos enrugados e corcundas: não
importava a idade, eles marchavam em ritmo próprio. Também podiam
pular em um pé só. Com dificuldades de andar, alguns se arrastavam pelo
chão. Ainda havia quem andasse vagarosamente se esforçando para
sustentar a cabeça, que parecia pesar mais que o corpo. A maioria
permanecia com os olhos esbugalhados ou piscava sem parar.
Mas o que predominava mesmo era o olhar que transmitia apatia e
tristeza. Os olhos embaçados mostravam que não estavam presentes no
Juquery. Habitavam mundos distantes, desordenados e confusos. Esses
pacientes não tinham condições de diferenciar um doente mental de um
enfermeiro ou médico. Por outro lado, porém em menor número, havia
aqueles que permaneciam em estado de alerta permanente. Os olhos
arregalados e fixos se moviam rapidamente na direção de algum ruído ou
movimento brusco de alguém que estivesse ao seu redor. Mesmo passando
a impressão de serem ferozes, não passavam de seres inofensivos. Na
maioria das vezes, os remédios conhecidos como psicotrópicos os
mantinham assim.
Com a língua de fora e a baba escorrendo pelo queixo, tinha também
aqueles que olhavam para as mãos e contorciam os dedos, entrelaçando uns
nos outros até o ponto que ossos e juntas permitiam. Outros pacientes
tombavam e permaneciam por horas estirados sobre os próprios
excrementos. Nem se importavam se alguém tropeçava em seus corpos.
Também podiam receber pontapés e chutes sem reagir. Conseguíamos
carregar alguns para dentro dos dormitórios, mas outros se agarravam ao
que podiam para permanecer no mesmo lugar em meio à sujeira produzida
por eles mesmos.
Os pacientes que só se vestiam nos dias de visita eram considerados
um caso à parte. De banho tomado, cabelo penteado e com roupas para a
ocasião, chegavam calmamente e se acomodavam próximos dos seus
parentes, que viviam além das muralhas, cercas e portões. Assim que a
visita acabava, se despediam e passavam pelo portão para imediatamente
desabotoar a camisa e arrancar a calça, cueca, meias e sapatos ou sandálias.
Pelados, retomavam a marcha pelos corredores e pátios.
No entanto, mesmo no calor, alguns pacientes exageravam na
quantidade de roupa. Possuíam dois, três e até quatro casacos imundos e
ensebados, vestidos todos ao mesmo tempo, um em cima do outro. Para
completar o figurino, penduravam colheres, canecas e pratos de alumínio.
Com o tempo, os utensílios ficavam nojentos. Por não passarem pela
lavagem com a água fervente das caldeiras, acabavam adquirindo um
aspecto feio, além de o metal perder o brilho.
Era comum ver pacientes com um bonezinho na cabeça e, a tiracolo,
um bornal. Essa espécie de bolsa, que só servia para carregar tralhas como
sabonetes ou espelhinhos, era confeccionada, assim como o boné, nas
oficinas de costura, e garantia a segurança dos poucos pertences que
conseguiam juntar. Entretanto, não faltavam larápios dispostos a dar sumiço
em qualquer coisa deixada na cama dos dormitórios.
Apesar de não ser difícil ouvir o canto de passarinhos e até o grunhido
de macacos, prevaleciam os ruídos sem sentido dos pacientes. As conversas
podiam ser entre duas, três e quatro pessoas, mas também havia quem
preferisse falar sozinho. Berros, uivos, gemidos e lamúrias compunham a
sinfonia nos pátios e corredores; dava até para montar um dicionário só com
palavrões. Enquanto uns caminhavam de cabeça baixa e reclamavam
baixinho, outros buscavam um palanque e gritavam a plenos pulmões.
Quando cansavam, sentavam-se, abaixavam a cabeça para dentro dos
braços cruzados e olhavam para o chão. Recuperavam o fôlego e voltavam
a marchar sem rumo, enquanto gritavam sem parar. Muita gente não se
incomodava com a barulheira, e os funcionários aprendiam rapidamente a
ignorá-la.
Um paciente mais patriota cantava o Hino Nacional Brasileiro do
começo ao fim, várias vezes ao dia, até o anoitecer. Às vezes se arriscava
com os hinos à Bandeira ou da Independência. Como não os dominava
muito bem, entretanto, quando percebia que errava ou esquecia um trecho
da letra, mandava à merda quem cruzasse seu caminho. Não perdoava
médicos, enfermeiros, auxiliares, atendentes, pacientes e vizinhos de cama.
Alheios a tudo que acontecia nos pátios, alguns pacientes tapavam os
olhos com as mãos para tentar fugir da luz das lâmpadas ou dos raios de sol
que entravam pelas janelas dos dormitórios. Tampouco conseguiam
atravessar a porta dos dormitórios. Sentados no chão ou na cama,
balançavam de um lado para o outro, para frente e para trás, murmurando
palavras que ninguém conseguia entender, quase chorando, sem derramar
lágrimas. Um deles perguntava de onde vinham os monstros que entravam
pela porta ou atravessavam a janela e se escondiam debaixo da cama. Dizia
que só conseguia ver as criaturas apavorantes à noite, porque brilhavam no
escuro e voavam perto do teto.
No outro extremo, estavam os furiosos. Forçados a conviver com a
solidão, passavam dias e noites confinados em celas, se debatendo e
gritando. Ficavam amarrados pelos pulsos e pernas em camas de ferro. A
cabeça com ataduras era o resultado das pancadas contra a parede, de
quando estavam soltos. Muitas vezes só o cansaço dava conta de detê-los;
nem a medicação ou os choques elétricos conseguiam acalmá-los.
Os furiosos recebiam medicação reforçada antes do confinamento,
principalmente se um funcionário fosse agredido. O procedimento, além de
bastante confuso, não possuía critério, e a chefia fazia vista grossa. Em um
primeiro momento, o paciente era encaminhado ao médico e recebia duas
ou três medicações diferentes. Depois de liberado, um enfermeiro
aumentava a dose administrada. O louco continuava passando de mão em
mão e, em alguns casos, até chegar ao responsável por dar os remédios, já
tinha tomado oito comprimidos ou uma série de injeções.
No caso de algum paciente tentar burlar a medicação, colocando os
comprimidos debaixo da língua para cuspir em seguida ou escondendo
debaixo do colchão depois de o enfermeiro virar as costas, a orientação,
caso fosse descoberto, era chamar o médico para que autorizasse o
funcionário a aplicar o remédio diretamente na veia. Mas, como
conhecíamos todo mundo com quem lidávamos, dificilmente alguém
tentava nos passar a perna. Para aqueles que se recusavam a abrir a boca,
bastava gritar. Amedrontados depois dos comandos de “Abre a boca!” ou
“Toma!”, eles engoliam qualquer coisa: Diazepam, Gardenal, Neozine,
entre outras medicações que deixavam os pacientes dopados.
APRENDIZADO NA SEXTA COLÔNIA

Por mais ou menos dois meses, aprendi a medicar, verificar o pulso e a


temperatura, dar banho, arrumar a cama de pacientes recém-operados,
preparar curativos e esterilizar materiais cirúrgicos e de laboratório. Depois
do treinamento nas clínicas do Hospital Psiquiátrico, meu grupo foi
encaminhado para a sexta colônia, um local bem distante do Hospital
Central, localizado no limite entre Franco da Rocha e Caieiras.
No primeiro dia, dois senhores com capas brancas encardidas e sapatos
surrados nos aguardavam em um dos prédios de dois andares e paredes
amarelas cercadas por jardins, hortas e um campo de futebol. Um dos
senhores permaneceu calado o tempo todo, enquanto andava de um lado
para o outro nos examinando dos pés à cabeça. O outro homem, o chefe de
seção, disse sem ao menos dar um bom dia: “Esperamos que vocês gostem
daqui. Alguns serão aproveitados como aconteceu com a outra turma que
chegou dias antes. Agora vamos ao que interessa!”.
O funcionário que não falava nos levou para dentro de um dos galpões
e finalmente abriu a boca para informar que nosso dever era cuidar dos
paraplégicos. Um dos encarregados, que já estava dentro do dormitório,
veio na nossa direção. Estava com os olhos vermelhos e, com dificuldade
para se equilibrar, tentava dar passos firmes. Percebi que levava uma
garrafinha em um dos bolsos de sua capa branca. Quando conseguiu se
aproximar de nós, abriu a boca e, com a voz mole e um tremendo bafo de
onça, mandou um recado: “Aí, garotada, o serviço aqui é moleza. Vocês só
têm que dar banho e comida, cortar as unhas e colocar a roupa nos
aleijados”. Soluçou alto e se retirou.
Nunca havíamos nos deparado com aquela cena. Tinha mosca em tudo
quanto é lugar. O lugar cheirava a carne podre com urina, fezes e vômito
velho. Esqueléticos, os pacientes passavam dia e noite babando com a boca
aberta e olhavam para o nada, deitados sobre colchões finos e esburacados.
O capim saía pela costura desfeita nas laterais. O caldo formado pela
mistura de merda e mijo manchava os lençóis e escorria pelo chão. Os
colchões e os doentes apodreciam absorvendo toda aquela sujeira.
As costas, pernas, cotovelos, orelhas e calcanhares dos pacientes
tinham escaras medonhas. Pequenas larvas brancas entravam e saíam das
perfurações provocadas pelo apodrecimento da pele cheia de manchas
avermelhadas. As moscas, sem cerimônia, saciavam sua fome com o pus
acumulado nas feridas infeccionadas em qualquer parte do corpo, até em
lábios ressecados. Tubos infectos que entravam pelas narinas alimentavam
alguns pacientes, quando alguém se lembrava de trocar o frasco da
alimentação.
Para começar a limpeza, os encarregados colocaram no pátio vários
latões com água, creolina, nacos de sabão, esponjas, toalhas, panos de chão,
vassouras e esfregões. Em duplas, erguíamos os pacientes pelas pernas e
braços, enquanto outros funcionários se livravam dos lençóis e colchões
velhos. Outra equipe se dividia na limpeza do chão.
Lavei tantos pacientes que até perdi a conta. Depois de passar água
com a esponja e esfregar a sujeira com sabão, meus colegas limpavam as
feridas e colocavam os curativos. De volta à cama, os pacientes deitavam
sobre colchões novos e roupas de cama limpas. No chão, muita água, sabão
e creolina. O ritmo da faxina chamava a atenção dos funcionários mais
antigos, que, sem conseguir controlar as gargalhadas, diziam: “Sai daí,
moleque. Isso aí não tem mais jeito. Pra que insistir em lavar esse monte de
merda?”.
Resolvemos não dar bola e continuamos trabalhando. Depois da
primeira faxina, o dia a dia ficou mais fácil. Tratávamos das feridas e
trocávamos os curativos. Mudávamos os pacientes de posição e dávamos
comida na boca daqueles que conseguiam engolir sozinhos. Limpávamos os
corpos, cortávamos as unhas e os cabelos, além de barbeá-los. Com
alimentação e medicação adequadas, ganharam peso. Passamos a levar
alguns em cadeiras de rodas para tomar banho de sol no pátio. A maioria
permanecia calada o dia inteiro, mas, com a melhora das condições físicas,
até tentavam falar ou balbuciar alguma coisa.
Com a chegada de uma nova turma de estagiários, conseguimos lavar
as paredes internas dos dormitórios da colônia. Descobrimos ali uma
brancura há muito tempo escondida. Mesmo com a limpeza do local, os
outros setores não possuíam uma imagem muito animadora. Pacientes nus
ou com o uniforme em frangalhos perambulavam pelos pátios e jardins na
companhia de cães e gatos sarnentos. Os animais e os pacientes se coçavam
sem parar para aliviar as picadas de pulgas, percevejos e carrapatos. Os
urubus lá no alto rondavam o pátio e nos observavam, ensaiando, às vezes,
uma aproximação.
Essa cena se repetiu em cada uma das colônias nas quais passei por
estágio ou treinamento. Os 800 atendentes de enfermagem contratados após
passarem no concurso público foram divididos em diversos grupos. Esses
grupos, por sua vez, iam se revezando dentro do Complexo do Juquery.
TRABALHO NA TERCEIRA CLÍNICA

Como não me faltava disposição, com o tempo, acabei me acostumando


com a rotina e o ambiente de trabalho. Aos poucos, descobri alguma beleza
nos jardins bem cuidados. O gramado estava sempre bem aparado e flores
de todas as cores exalavam um perfume agradável. Os pássaros assobiavam
melodias que faziam bem aos meus ouvidos. Nas folgas, jogávamos bola no
campo de futebol ou bocha com alguns dos funcionários mais velhos.
Durante o almoço em um dia quente e abafado, um funcionário mais
antigo entrou, suando em bicas, no refeitório onde eu estava com outros
quinze colegas. Ele interrompeu a refeição, batendo três vezes com a mão
direita na mesa para chamar nossa atenção. Com a voz rouca e cansada,
tomou fôlego e se esforçou em dizer: “É muito bonito o que vocês estão
fazendo aqui, mas não adianta nada, porque, quando o estágio terminar,
tudo vai voltar a ser o mesmo monte de bosta que era antes!”. Engoli uma
colherada de arroz com feijão a seco. A comida custou a descer, e nem
percebi que ele tinha saído pela mesma porta.
Já no dia seguinte, o chefe-geral estava nos aguardando na entrada da
colônia. À medida que chegávamos, mandava que aguardássemos do lado
de fora. Não podíamos entrar nem sabíamos o porquê. Quando o último
membro da nossa turma chegou, ele anunciou: “Vocês estão liberados.
Precisamos receber o resto dos concursados. O estágio acabou!”.
Antes da partida, serviram o café da manhã. Terminamos de comer e
nos colocaram em um ônibus para sermos levados até o prédio da
Administração do Hospital Central. Chegando lá nos dirigimos ao escritório
do Departamento Pessoal, onde os encarregados de cada uma das clínicas
do Hospital Central apontavam para nós e diziam onde trabalharíamos dali
em diante.
Alguns funcionários que moravam em Caieiras, cidade mais próxima
da colônia onde aconteceram os treinamentos, foram mantidos no local.
Fiquei incumbido, com mais quatro funcionários da minha turma, de tratar
dos pacientes da Terceira Clínica Psiquiátrica Masculina. Nosso
comandante, o Joaquim, demonstrou ser uma pessoa educada e paciente
com os jovens. Mal sabíamos que também encontraríamos chefes
prepotentes e analfabetos. Na verdade, os funcionários mais antigos diziam
que, no Hospital Central, os novatos sempre sofriam na mão de superiores
incompetentes.
Como o Joaquim já sabia que eu havia cuidado de paraplégicos
acamados, ele me passou imediatamente essa tarefa. Junto de um colega
conhecido como Macalé, encontramos pacientes em melhores condições
físicas e clínicas, se comparados com aqueles de que tratamos nas colônias.
Diariamente dávamos banho e comida na boca deles. Também trocávamos
as roupas de cama sempre que necessário. Às sextas-feiras, encerávamos o
chão e limpávamos as vidraças.
Enquanto pegávamos no batente, alguns funcionários encontravam um
canto sossegado para descansar e, se pudessem, folheavam o Diário Oficial
durante todo o expediente. Outros passavam o tempo rindo de nós e diziam
que éramos os verdadeiros loucos, porque queríamos transformar aquele
lugar.
Na verdade, a única mudança aconteceria dentro de nós mesmos.
Sempre que saíamos da Terceira Clínica, dávamos de cara com a
Cozinha Central, onde havia uma enorme caldeira capaz de cozinhar
grandes quantidades de arroz ou feijão de uma só vez. Lá dentro, também
ficavam enormes panelões de alumínio sobre as chamas de um fogão
industrial. Cozinheiros com conchas e colheres do tamanho de pás mexiam
a comida e corriam de um lado para o outro, sempre suados, em meio a
nuvens de vapor. Os internos com mais tempo de casa, mais respeitosos e
asseados, eram selecionados pelas equipes médicas para auxiliar a equipe
de profissionais. Todas as colônias também possuíam suas cozinhas, mas
nenhuma tinha aquele tamanho.
Um dos pacientes que exercia a função de ajudante de cozinha tinha o
hábito de cantarolar palavrões enquanto passava o escovão no chão. No
início fazia o trabalho de modo frenético, esfregando o piso sem parar. Só
interrompia o serviço quando o chefe da despensa mandava. Aos poucos,
foi se acalmando e foi promovido. Passou a abastecer os panelões com
arroz e feijão. Mas tinha um problema. Depois de colocar o arroz, ele
demorava muito para esvaziá-la e pôr o feijão. O chefe sempre gritava para
ele acelerar. Um dia o ajudante teve uma ideia para tentar ir mais rápido.
Pegou a panela de feijão e derramou na do arroz. Depois de muita gritaria,
recebeu o escovão de volta.
Todas as noites, os caminhões descarregavam todo tipo de alimentos.
Caixas de madeira com frutas e legumes, sacas de arroz e de feijão e leite
em tonéis de plástico chegavam enquanto os pacientes dormiam. Os pães só
vinham quando o sol dava seus primeiros sinais. Grande parte dos
alimentos ficava armazenada na Cozinha Central, enquanto o restante era
distribuído às outras colônias.
EXTRAVAGÂNCIAS E CONFORTO

Quando comecei a tratar de outros pacientes da Terceira Clínica além dos


acamados, descobri por que eles não gostavam de banho. Em uma manhã
fria, colocávamos em fila trinta sujeitos que recebiam uma mangueirada de
água gelada. Em poucos instantes, um caldo escuro escorria pelo ralo. Essa
técnica acalmava os mais agitados e limpava quem ficava por muitos dias
longe do chuveiro.
Em poucos meses conheci alguns funcionários das clínicas vizinhas.
Às vezes, combinávamos de trabalhar 14 dias sem parar para acumular
folgas suficientes, que nos dessem a oportunidade de viajar. Abríamos um
mapa do Estado de São Paulo no chão, jogávamos um comprimido em cima
dele, e o ponto onde caía determinava nosso destino. Podíamos pegar a
estrada e seguir rumo ao litoral ou ao interior. Não nos importávamos com a
distância, porque nosso salário do Juquery cobria todas as despesas.
O contracheque também nos permitia comprar relógios Rolex e Tissot.
Fazíamos uma brincadeira boba. Afundávamos nossos relógios em um dos
latões de água localizados na galeria de acesso às clínicas e esperávamos
algumas horas para ver quanto tempo aguentavam ficar lá dentro.
Obviamente, por causa da excelente qualidade, a água não entrava neles e
recuperávamos nossos relógios funcionando perfeitamente. A gente se
divertia, mas, ao mesmo tempo, tentava medir forças para ver quem tinha
mais coragem de arriscar perder artigos caros como aqueles.
Mas as viagens e os relógios eram apenas extravagâncias. Além do
bom dinheiro que recebíamos, contávamos com o excelente atendimento no
Hospital do Servidor Público, em São Paulo. Antes mesmo de passar no
concurso público, eu já tinha casa e mulher para sustentar. Só nos casamos
no papel depois do nascimento da nossa terceira filha. Como éramos apenas
amigados, fiquei bastante chateado quando fui ao cartório registrar minhas
duas primeiras filhas, gêmeas: o funcionário, ao preencher as certidões de
nascimento delas, escreveu em ambas “filha de pai ilegítimo”. Reclamei o
quanto pude, mas não dava para lutar contra a lei. Esse aborrecimento se
repetiu por mais uma vez com minha outra menina. Só meu filho caçula,
felizmente, não passou por isso.
Com meu primeiro salário, deixei a conta paga no empório perto de
casa. À medida que os mantimentos acabavam, minha mulher ia lá e pegava
o pão, leite e tudo mais que estava faltando. Eu quitava as despesas depois
de receber o pagamento. Ela nem precisava carregar dinheiro. Logo nos
primeiros meses de trabalho, consegui juntar o suficiente para comprar
móveis novos e uma televisão preto e branco na loja do Mappin ao lado do
Teatro Municipal, no centro de São Paulo.
O ESPECIALISTA

Apesar da rotina de trabalho se resumir geralmente a algumas tarefas como


medicar e limpar os pacientes, muitas surpresas surgiam, principalmente
quando tentávamos conversar com eles. Certo dia, um deles veio implorar
por ajuda. Curvado para frente e com a mão no ventre, ele insistia em dizer
que um médico tinha instalado um telefone na barriga dele. Um colega
passou pelo local e me falou que ele sempre aparecia na enfermaria se
queixando de fortes dores do estômago quando recebia uma ligação. Dar
risada era a única coisa que podíamos fazer naquela situação.
De repente, um rapaz magro com pouco mais de 18 anos se
aproximou, apontou para a cabeça raspada dele e disse: “Toc toc!”. Então,
levantou a camisa e mostrou um sinal nas costas. Segundo ele, aquela
mancha esverdeada do tamanho de uma ervilha provava que ele era filho
legítimo do imperador dos Mares do Sul.
Diferentemente dos pacientes filhos de imperadores ou que tinham
telefones na barriga, um paciente me contou que conseguia arrancar os
olhos das pessoas fiéis a uma crença que não permitia enxergar a verdade.
A mesma voz o ensinou a realizar o procedimento, e também ordenava o
momento exato em que esse ato deveria ser cumprido. Um dia ele mesmo
foi encontrado desmaiado sobre uma poça de sangue segurando um olho em
cada mão. Levado à enfermaria, os médicos só puderam costurar suas
pálpebras.
Essa história só voltou à minha cabeça alguns meses depois, quando
chegou à Terceira Clínica um paciente diferente de todos aqueles que eu
tinha visto desde então. Todos o chamavam por DB e morriam de medo de
chegar perto dele. Quando estagiei na colônia, alguém já tinha falado sobre
esse paciente, mas achava que era lorota. (Na verdade, o Juquery possuía
uma coleção de tipos estranhos, donos de histórias curiosas. Um deles
dificilmente saía da enfermaria do Hospital. Volta e meia os médicos
tiravam com cirurgia molas de colchão que ele engolia. Em uma única
cirurgia foram extraídas cinco molas enormes. Quando esse item estava em
falta, punha para dentro até cabo de colher. Esse paciente tinha nome e
sobrenome lá dentro: João Barriga de Mola.)
DB não era capaz de fazer mal a si mesmo, mas podia marcar para
sempre a vida de quem ousasse cruzar seu caminho, por possuir a
habilidade de arrancar com precisão cirúrgica e incrível rapidez os olhos de
qualquer pessoa. Por ser um especialista em usar os dedos das mãos com o
único objetivo de cegar pacientes ou funcionários, ele permanecia
confinado em uma das três celas da Terceira Clínica. Essas celas eram
usadas apenas para deixar os pacientes se acalmarem depois de uma briga
ou quando ficavam muito agressivos. Depois do castigo, retornavam aos
dormitórios coletivos.
Apesar de aparentar ser calmo, dócil e extremamente asseado, DB
nunca circulava pelos pátios. O especialista só tinha contato com os
funcionários que se revezavam para entrar na cela e limpá-la. Para distraí-lo
durante a faxina, entregávamos um cigarro já aceso e pedíamos para que
permanecesse do lado de fora por alguns minutos. O funcionário
responsável por vigiá-lo também não ficava muito confortável, mas tinha
que manter a atenção para não perder um olho. Sempre brigávamos para
decidir quem tinha coragem de executar as tarefas. A limpeza tinha que
acabar antes de o cigarro terminar. Ao voltar para a cela, DB lá encontrava
comida e medicação.
Em uma noite em que tudo estava calmo e quieto demais, eu tinha
trocado de turno com outro atendente de enfermagem. Eu assistia a um
filme qualquer na televisão da sala da enfermaria com outros dois
funcionários da Terceira Clínica, quando, de repente, começamos a sentir
um cheiro forte de queimado. Saímos correndo para descobrir de onde
vinha aquele cheiro até que avistamos uma nuvem de fumaça saindo por
debaixo da porta da cela do DB.
Depois de um dos meus colegas abrir a porta, vimos o colchão ardendo
em chamas. Ele estava caído desacordado em um canto da cela. Carregamos
o especialista até a enfermaria, enquanto outros funcionários corriam de um
lado para o outro com baldes para apagar o fogo antes que se espalhasse
pela clínica.
Naquela época, os colchões eram confeccionados no Juquery. Alguns
tinham molas, mas a maioria recebia palha e capim, o recheio ideal para que
o fogo se alastrasse rapidamente. Ninguém nunca descobriu o que provocou
o princípio de incêndio. Provavelmente, um cigarro aceso foi entregue ao
DB pela janela que dava para a rua, em frente à gráfica.
Depois de passar uma temporada amarrado a uma cama da enfermaria
para tratar das queimaduras, ele retornou à cela. Viveu trancafiado na
Terceira Clínica até o final dos seus dias. Depois do incidente, passou a ser
vigiado noite e dia, sete dias por semana.
O PACIENTE QUE MANDAVA

Fugir do Hospital Central do Juquery podia ser considerada uma tarefa


relativamente simples por não existir uma guarda tão severa quanto a do
Manicômio Judiciário. Mesmo assim, poucos pacientes tinham forças para
isso ou até mesmo vontade suficiente de escapar.
Raramente eu levava um paciente da Terceira Clínica para o lado de
fora do Juquery. Isso acontecia quando um dentista saía de férias e tínhamos
que buscar atendimento em outras unidades do complexo, como em uma
colônia, por exemplo. Acompanhado de outros colegas, eu levava grupos de
dez a quinze pacientes que, às vezes, praticavam o “cavalo doido”: assim
que desciam das viaturas, punham-se a correr desesperadamente. Até
tentávamos recapturá-los, mas alguns se escondiam em lugares
inimagináveis, como bueiros. Devidamente medicados, os recapturados
passavam uma temporada trancafiados em uma cela individual.
Essas eventuais fugas não diminuíam a população do Hospital Central.
Os pacientes chegavam aos montes para lotar os corredores, pátios,
dormitórios e refeitórios. Os novatos dormiam no chão e até nas escadarias.
Os psiquiatras, que faziam o acompanhamento dos casos de três em três
meses, não davam conta de atualizar o prontuário de muitos doentes
mentais. Tinha mais gente lá dentro do que a população de muita cidade por
aí.
Então a superlotação começou a incomodar até a direção, que, para
tentar resolver o problema, decidiu remanejar alguns pacientes para outros
hospitais psiquiátricos espalhados pelo interior de São Paulo. Soubemos da
novidade quando um comunicado passou a circular lá dentro.
Poucos dias depois, meu chefe me convocou para participar de uma
das transferências. Eu tinha que viajar acompanhado de um motorista e
mais quatro ou cinco pacientes. Depois da convocação, participei, junto
com os funcionários das outras clínicas, de um curso rápido, que ensinava
técnicas de imobilização em pacientes descontrolados. O instrutor acabou
explicando aquilo que já tínhamos aprendido na prática. Para acalmá-los,
devíamos distribuir pancada, amarrá-los e aplicar um potente sedativo.
Na manhã seguinte, fui diretamente ao prédio da administração e vi
um monte de viaturas estacionadas em frente. Contei mais ou menos trinta
caminhonetes veraneio de cor verde. Esses automóveis eram muito
conhecidos e temidos na época. Os policiais da Rota guiavam essas peruas,
só que com a pintura na cor cinza, para caçar quem desrespeitasse a lei.
Quase todos os motoristas nos aguardavam dentro dos carros tirando
um cochilo. Como fazia muito frio naquele mês de julho, só uns poucos
corajosos permaneciam do lado de fora para fumar. Os funcionários que
chegavam mais cedo matavam o tempo conversando. O vento gelado nos
deixava encolhidos com as mãos nos bolsos da calça ou do casaco. Olhei no
relógio e ainda nem eram sete horas da manhã. Quinze minutos depois, os
primeiros funcionários vestidos com as capas brancas guiavam os internos
das clínicas até os carros. Em fila, caminhavam comportados. Aquele que
vinha na frente segurava com a mão esquerda a mão direita do outro que
vinha logo atrás.
Antes da viagem, eles haviam sido examinados, medicados e tomaram
banho. Um funcionário se aproximou de mim, conferiu a papelada e deixou
quatro pacientes aos meus cuidados. Ele me orientou para que eu
procurasse um motorista, que, por acaso, eu conhecia. Era o Aguiar. Já
tínhamos jogado futebol juntos algumas vezes. Ele no time dos motoristas e
eu na equipe dos funcionários da Terceira Clínica.
Levei os pacientes até a veraneio do Aguiar. Eu o cumprimentei
rapidamente e ele abriu a porta traseira para acomodá-los na parte de trás da
perua. O motorista verificou se as portas estavam trancadas, então entramos
no carro e ele deu a partida. Quando engatou a primeira marcha e acelerou,
começamos a ouvir alguns gritos. Vinham de um paciente da veraneio ao
lado que, descontrolado, arranhava o rosto e se recusava a entrar no carro.
Como o negócio não era com a gente, fomos embora.
Atravessamos a avenida dos Coqueiros e passamos pelas portarias.
Antes de sairmos do Juquery, o moço Carlito pediu que entregássemos um
formulário que estava no painel do carro. Assinei um documento que ele me
entregou preso em uma prancheta. Devolvi o papel e logo ganhamos as ruas
de Franco de Rocha para, em poucos minutos, tomar a direção noroeste do
Estado rumo a Penápolis, cidade na região de Araçatuba. Tínhamos pela
frente mais ou menos 450 quilômetros de estradas em condições precárias.
Levávamos conosco, além dos pacientes, uma caixa com frutas, pães,
alguns sanduíches, um garrafão d’água, garrafas térmicas de chá e café e
uma caixa com medicamentos. Por causa da longa duração da viagem longa
e da falta de postos de combustível pelo caminho, ainda tínhamos à
disposição um galão de gasolina atrás do meu banco.
A medicação funcionou perfeitamente. Os pacientes permaneceram
quietos e até cochilaram, apesar do aperto na parte de trás da viatura. Só
precisamos parar três vezes para levá-los ao banheiro durante as seis horas
de viagem. Antes de chegarmos ao hospital, que ficava afastado do centro
da cidade, demos algumas voltas sem necessidade e tivemos que parar
algumas vezes para perguntar o caminho.
Naquela unidade hospitalar, do tamanho da cozinha do Hospital
Central do Juquery, os médicos acreditavam que a loucura dos pacientes
tinha como causa os espíritos que perturbavam a mente.
Após estacionar a viatura ao lado de duas ambulâncias, eu desci. O
motorista abriu a porta traseira e me ajudou a conduzir os pacientes. Um
funcionário nos recepcionou e levou os novos ocupantes por um corredor.
Entreguei os prontuários a uma enfermeira que estava sentada em frente a
uma mesa cheia de papéis empilhados, que pareciam estar esquecidos há
um bom tempo.
O funcionário que conduziu os pacientes voltou para nos dizer que
poderíamos passar a noite por lá. Um relógio na parede marcava três horas.
Apesar de atrasados para o almoço, nos chamaram para comer. Antes,
deixamos nossas coisas em um quarto espaçoso onde havia quatro camas
com lençóis brancos e bem limpos. Os médicos também dormiam nesse
cômodo, acho.
Fomos ao refeitório e comemos sem pressa. Estávamos bem cansados.
Como só precisávamos retornar no dia seguinte, voltamos para o quarto.
Depois de tirar os sapatos, consegui tirar um cochilo, mesmo com o Aguiar
roncando sem parar.
Acordamos quando já estava escuro. Fiquei deitado até um enfermeiro
bater na porta para nos perguntar se queríamos jantar. Tomamos um banho
antes de comer. No caminho do refeitório, passamos por uma varanda que
dava para uma sala onde havia duas mesas de pebolim. Uma pessoa, que
não vestia roupa de interno nem de enfermeiro, nos interceptou. Estava de
calça marrom, cinto preto e camisa azul clara bem passada e engomada. Os
sapatos pretos brilhavam de tão engraxados. Ele se apresentou como Adolfo
e nos perguntou se queríamos conhecer a cidade.
Antes de termos a chance de dizer sim ou não, Adolfo respondeu por
nós. “Então tá combinado, vamos dar uma volta hoje à noite!”. Demos
risada e continuamos o caminho até o refeitório. Ele nos seguiu, desejou
uma boa refeição e disse que nos encontraria depois. Perguntamos por que
ele não tinha uniforme. Curto e grosso, respondeu: “Sou paciente, mas não
preciso disso!”.
Durante o jantar, conversamos sobre a proposta do paciente. Só
precisávamos voltar no outro dia e já tínhamos descansado bastante. Então
deu vontade de sair. Mas como era possível sair com um paciente por aí? E
as nossas responsabilidades? Foram essas perguntas que o motorista fez
diversas vezes a mim. Mesmo com dúvida, resolvemos arriscar e pagar para
ver até que ponto o convite daria certo.
Na saída do refeitório, Adolfo nos esperava no corredor sentado em
uma cadeira de madeira. Ele se levantou e veio em nossa direção. Aguiar
foi logo perguntando: “Como é que vamos sair com um maluco por aí?”.
Sem perder a calma, o paciente respondeu calmamente: “É fácil! Vocês só
devem avisar o porteiro que vão dar uma volta. Ele libera a saída e o
retorno. O resto deixa comigo!”.
Aí eu resolvi provocar: “Mas como você vai sair com a gente? A porta
da frente estará liberada para você também?”. Adolfo sem hesitar
respondeu: “Vou aparecer na frente do portão quando vocês derem dois
toques na buzina”.
Combinamos que nos encontraríamos dentro de uma hora. Voltamos ao
quarto para nos arrumar e ver se Adolfo nos levaria para conhecer a cidade
ou se estava somente enrolando a gente. Troquei de roupa. Por acaso, além
da muda de roupa que eu tinha levado, tinha uma calça branca a mais nas
minhas coisas. Acabei emprestando-a ao Aguiar. Nunca mais vi aquela
calça.
Enquanto o motorista se arrumava no banheiro, fui para a janela. Vi
que dois pacientes estavam lavando a perua. Um passava a esponja com
sabão, enquanto o outro jogava, aos poucos, a água de um balde. Ainda
tinha um terceiro que enxugava tudo com um pano e enchia o balde em uma
torneira que ficava a poucos passos dali. Quando o motorista saiu do
banheiro, eu o chamei para assistir à cena. Ele percebeu que Adolfo
comandava os três pacientes uniformizados à distância.
Fechamos a porta do quarto e seguimos as orientações do paciente.
Aguiar deu a partida na veraneio, seguiu até o portão e parou o carro. O
porteiro desceu da guarita e abriu o portão. Antes de voltar, acenou e nos
disse: “Já está tudo nos conformes!”. Mas que conformes, respondi. Ele
sorriu, deu boa-noite e disse para nos divertirmos.
Atravessamos a entrada e Aguiar parou o carro novamente. Com o
motor ligado, pedi licença para dar os dois toques na buzina. Em um piscar
de olhos, Adolfo apareceu. Sem pedir licença, abriu a porta traseira, que
não estava trancada. Junto com Adolfo, entrou no carro o cheiro de um
perfume que parecia ser bem caro. Sem nos cumprimentar, propôs: “Vocês
topam ir na zona?”. Não dissemos nem que sim nem que não, apenas
perguntei onde era essa tal zona. Ele respondeu: “Não fica aqui na cidade,
mas conheço o caminho como a palma da minha mão”.
Começamos a trafegar por estradas de terra sem iluminação. Entramos
em um canavial; no entanto, não andávamos em círculos. Já bem distante
do hospital, sentíamos os solavancos quando o carro passava pelos buracos.
Chacoalhava como se estivéssemos dentro um liquidificador.
Durante o trajeto, o paciente fazia questão de explicar que não era
maluco e contava que a família dele tinha fazendas em várias cidades do
interior de São Paulo. Ele estava internado por causa do alcoolismo. Achei
estranho. Aquele hospital não tratava de doenças relacionadas à
dependência química. Só que, para quem trabalhava no Juquery, esses fatos
sem explicação eram absolutamente normais.
Depois de quase uma hora e meia, avistei uma clareira e algumas luzes
vermelhas e azuis ao fundo de uma longa reta. Parecia mesmo que aquele
maluco não era tão doido assim.
Chegamos a uma rua de paralelepípedos onde mulheres caminhavam
vestidas com roupas justas e minissaias. Algumas tinham muita
maquiagem. Homens entravam e saíam das casas. Elas nos chamavam
gesticulando e lançando olhares de desejo. Nas portas, homens parrudos se
ocupavam da segurança.
Nosso guia tentou nos tranquilizar. Dizia que conhecia todo mundo.
Também ficamos preocupados com a veraneio. O paciente falou que
podíamos deixar o carro atrás de um casarão no final da rua. Um amigo dele
ficaria tomando conta. Quando soube disso, um calafrio percorreu minha
espinha. O motorista coçou a cabeça.
Paramos o carro atrás do casarão. Lá estava um homem baixinho com
mais de sessenta anos fumando um cigarro de palha. Adolfo desceu,
entregou uns trocados para ele e disse para ele não desgrudar os olhos da
veraneio. Descemos e cobrimos a placa dianteira com um lençol velho. A
placa traseira não podia ser vista porque ficou rente ao muro da casa.
Adolfo pediu para relaxarmos e aproveitarmos a noite que mal tinha
começado.
Enquanto caminhávamos, várias garotas avistavam Adolfo e corriam
para cumprimentá-lo. Algumas até o abraçavam. Outras, mesmo à distância,
jogavam beijinhos. De repente, ele apontou para uma casa com a fachada
malcuidada. A pintura, que um dia tinha sido verde, estava toda descascada.
Antes de atravessarmos a porta, ele arregalou os olhos e avisou: “Preparem-
se para a diversão”. Fomos muito bem recebidos pelo leão de chácara que
controlava a entrada e saída dos frequentadores. Ele era um senhor negro e
bem forte. Parecia ter já uns quarenta anos e quase dois metros de altura.
Tinha a cabeça raspada e vestia camisa branca, gravata azul e um terno
preto apertado demais: acho que o defunto era maior. Antes de abrir a porta,
deu um sorriso com todos seus dentes amarelos e disse: “É um prazer
receber você, Adolfo, e seus amigos. Sejam muito bem-vindos”. Adolfo era
o rei do pedaço, já não havia dúvidas.
Sentamos em dois bancos em frente ao balcão e pedimos uma cerveja.
No fundo do salão havia um palco. O cantor com peruca preta e costeletas
brancas cantava um bolero em castelhano. Um rapaz muito magro
acompanhava a canção dedilhando um violão com bastante desenvoltura.
A cerveja chegou e, como não estava bem gelada, Adolfo pediu para
trazer outra garrafa. O barman disse “sim, senhor”, virou as costas e botou
outra garrafa na mesa. Depois de nos servir, Adolfo disse que não poderia
nos acompanhar. Nosso guia já tinha um compromisso, ou melhor, uma
festa em outro lugar. Antes de ir embora, ele ainda nos apresentou duas
garotas. Uma era morena, a outra, ruiva com os cabelos pintados, como eu
descobriria depois. Antes de se despedir, cochichou no meu ouvido: “Já
deixei tudo pago!”.
Fiquei com a ruiva. Ela pediu um conhaque. Aguiar, sem perder
tempo, perguntou à morena onde poderiam ficar mais à vontade. O casal se
levantou e entrou por uma porta ao lado do palco.
Secamos mais algumas garrafas de cerveja. Dançamos outros boleros,
que já naquela época eram antigos. Depois ela me convidou para conhecer o
interior da casa. Não pude recusar.
Por volta das três horas da manhã, encontrei com o motorista no bar.
Ele parecia estar bastante satisfeito. Mas, quando me apoiei no balcão,
lembrei que minha carteira tinha ficado em cima da cama. Contei para o
Aguiar e ele apalpou os bolsos. A carteira dele também tinha ficado no
quarto do hospital.
Apesar de o Adolfo ter dito que tudo estava pago, ficamos com a pulga
atrás da orelha. Não fazíamos ideia de quanto tínhamos gasto. Nossas
garotas também não tinham pedido nem sequer um tostão. Eu ainda
sussurrei: “Se o louquinho nos enrolou, pode deixar que eu mato ele!”.
Aguiar apenas concordou balançando a cabeça.
Tomamos coragem e conversamos com o leão de chácara. Pensamos
em duas hipóteses antes de falar com ele. A primeira seria dizer que nossas
carteiras tinham ficado com Adolfo. E a segunda era contar que não
sabíamos onde nossas carteiras estavam.
Comecei a conversa com um tímido boa-noite. Ele sorriu e perguntou
se estávamos satisfeitos. O motorista disse que sim. Depois nos perguntou
se já íamos embora. Respondi que precisávamos falar com Adolfo para
pegar nossas carteiras. Nem precisamos gastar nossas desculpas
esfarrapadas: o leão de chácara sorriu e novamente mostrou o sorriso
amarelo. Perguntou se o motivo era pagar a conta. Antes de respondermos,
ele colocou a mão direita no meu ombro e disse que tudo já havia sido
pago. Respirei aliviado. Adolfo não falhara.
Procuramos Adolfo pela rua, mas não o encontramos. Voltamos para o
lugar onde o carro estava estacionado. Tirei o lençol que cobria a placa
enquanto o motorista dava a partida. O senhor que cuidava do carro ainda
estava lá. Mas, como a madrugada avançou, ele cochilava com um cigarro
de palha apagado no canto da boca.
Quando bati a porta depois de entrar na viatura, o guardião da veraneio
acordou. Aguiar aproveitou para perguntar qual era o caminho para o
hospital. Ele nos disse que deveríamos apenas seguir até o final da rua, virar
à esquerda e seguirmos por uma estrada. Depois de uma hora, avistaríamos
um posto de gasolina. Lá, era só dobrar à esquerda que chegaríamos à
cidade e, depois de algum tempo, ao hospital. O caminho de volta parecia
ser mais fácil.
Chegamos ao hospital tranquilamente. Paramos no portão e o vigia da
noite o abriu e acenou para nós. Passamos pela recepção devagarinho,
segurando os sapatos nas mãos para não fazer barulho. Entramos no quarto
e caímos nas nossas camas.
O motorista acordou às oito e meia, se levantou, lavou o rosto e saiu.
Quando voltou, disse que tinha telefonado para seu chefe no Juquery.
Aguiar avisou que a veraneio estava com um problema mecânico e
atrasaríamos um pouco. Deu tempo de dormir mais um pouco.
Tomamos um café reforçado antes de ir embora. Na saída do refeitório,
perguntamos a um enfermeiro se ele sabia onde estava o Adolfo. Ele nem
deu bola para nós. Antes de entramos na veraneio, vimos que ela estava
limpa novamente. Parecia que o veículo também tinha recebido um bom
polimento.
Perguntamos ao porteiro do período da manhã onde estava o Adolfo.
Ouvimos a seguinte resposta: “Até a hora do almoço ele volta”.
Antes de pegar a estrada, já na saída da cidade, Aguiar estacionou em
frente a um armazém. Queríamos comprar algumas coisas para comer
durante a viagem. Quando saímos do carro, avistamos Adolfo em uma
mesa. O paciente estava conversando com quatro amigos. Ele nos viu
descendo do carro e acenou. Retribuímos o aceno e fomos cumprimentá-lo.
Agradecemos a noitada e a lavagem do carro. Ele nos abraçou e disse: “Foi
um grande prazer!”.
Fizemos as compras e, quando saímos do armazém, ele não estava
mais lá com as outras pessoas, que agora bebiam cerveja. Perguntamos
sobre o paradeiro do Adolfo. Um deles respondeu: “É a hora do almoço, ele
teve que voltar para comer”. Virei para o Aguiar e disse: “Durma com um
barulho desse!”.
FUNCIONÁRIOS INESQUECÍVEIS

Nem só de histórias de pacientes vivia o Hospital Psiquiátrico. Muitos


funcionários se destacavam. Um deles, conhecido apenas por Germano,
possuía uma força descomunal. Levava pacientes no colo aos montes e
carregava caixas de comida e tonéis de leite com extrema facilidade. Era
muito querido por todos dentro e fora do Juquery, mas tinha um defeito:
quando bebia, não tolerava brincadeiras. Gostava de ficar sozinho no bar,
bebendo cerveja. Uma noite, arrumou uma briga feia. Arrebentou a cara de
dois homens e avançou para pegar o balconista.
No meio da confusão, chegou um fusca da polícia. Os policiais
tentaram contê-lo, mas não conseguiram. Quando viu o fusca estacionado,
gritou: “Quero ver alguém me levar embora daqui!”. Não deu outra. Fez
força para erguer o carro. Conseguiu virá-lo com as rodas para cima. Os
reforços chegaram, e um dos agentes da lei, que era seu amigo, o acalmou e
o levou para passar um tempo preso na delegacia.
Bem mais calmo e inofensivo era o famoso Dom Armando.
Funcionário das antigas, ninguém da minha geração sabia como ele se
chamava de verdade. Detestava quando o chamavam assim, mas ficava
ainda mais possesso se assobiassem esse apelido. Por muitas vezes nos
organizávamos para vê-lo ficar doido. Desde a saída do Hospital, nos
distribuíamos até a casa dele. Por onde passava, assobiávamos “Dom
Armando!”. Mesmo quando saía mais tarde, ficávamos esperando para
aprontar. Ele gritava, esbravejava, ameaçava, mas nunca agrediu ninguém.
Outra lenda chamava-se Segurão. O apelido provavelmente vinha de
uma técnica perigosa que tinha desenvolvido ainda na época que trabalhava
como eletricista. Colocava a mão em uma chave de força, justamente na
parte sem isolamento, e aguentava o tranco da energia elétrica que passava
pelo seu corpo.
O ex-eletricista morava em um local ermo em Franco da Rocha, mas
dentro das terras do Hospital Psiquiátrico. Quando morreu, não foi fácil
retirar o corpo do local. Por quase três dias, ninguém encontrava uma
pessoa capaz de entrar na casa dele. Segurão dividia o espaço com diversas
cascavéis, que ficaram tomando conta do defunto.
O PADRE

Circulavam pelos pavilhões e galerias do Juquery desde pacientes que não


sabiam quem eram porque haviam se esquecido do passado até aqueles que,
antes de chegar, ou já lá dentro, acreditavam ser quem bem entendessem.
Viravam cantores, adivinhos, cientistas ou assumiam qualquer outra
identidade que a imaginação deles permitisse criar.
Mesmo na falta de uma capela ou igreja, um dos internos do Hospital
Psiquiátrico jurava de pés juntos ter sido seminarista e recebido a
ordenação. O Padre, como era conhecido, desfilava pelos corredores das
clínicas de batina e Bíblia na mão. O traje não passava de retalhos pretos
costurados. A camisa com a gola de padre sempre estava encardida. Até
com o sol quente e o tempo abafado, o Padre não tirava a batina. No
pescoço levava um grande terço de contas de madeira. Gotas de suor
percorriam sua face até chegarem em um cachecol branco que levava sobre
os ombros.
Alguns funcionários até tentavam obrigá-lo a desistir de sair vestido
como padre. No entanto, quando seu traje era confiscado, o Padre procurava
imediatamente pelos pacientes que trabalhavam nas oficinas de costura. No
mesmo dia, como que por milagre, uma batina novinha em folha estava
pronta.
Caminhava calmamente, a passadas lentas. Observava todos os
internos, que, para ele, faziam parte do seu rebanho. Quem cruzasse seu
caminho recebia a bênção e o sinal da cruz; arriscava ainda algumas
palavras em latim. Depois de receber os remédios, levava os comprimidos
com a palma das mãos abertas para o alto, fechava os olhos e, antes de
engoli-los, dizia: “Amém! Que Deus o acompanhe”. Quando via um
crônico caído no chão, também o abençoava com o sinal da cruz.
Uma vez o Padre passou um sermão em um paciente que costumava
sentar em um degrau e permanecia horas e horas com a mão direita
levantada. Mesmo depois de toda a ladainha, a mão continuou erguida.
À tarde, depois do almoço, gostava de se reunir com os pacientes no
pátio. Subia em um caixote e lia, até não poder mais, passagens da sua
Bíblia. Em uma tarde de inverno, falou sem parar por quase quatro horas,
batendo os dentes e tremendo de frio. Só começou a mostrar sinais de
cansaço quando anoiteceu e o horário da tranca chegou. Eu e mais um
colega tivemos que arrastá-lo para o quarto dele. No caminho, se jogou no
chão e se agarrou até nos batentes das portas. Contrariado, virou para o lado
assim que o colocamos na cama e não nos abençoou.
Se um paciente estivesse doente, já com o pé na cova, o Padre dava um
jeito de arranjar um balde e um pincel. Mergulhava o pincel na água e
molhava o paciente moribundo e todos aqueles que estavam ao seu redor.
Então abria a Bíblia, lia qualquer coisa e se ajoelhava ao lado da cama até
que algum funcionário o convidasse para se retirar.
Aproveitava para surrupiar alguns dos pertences do defunto. Embaixo
da cama do Padre, havia rádios de pilha, anéis, óculos, cordões e pulseiras
de ouro. Quando não tinha acesso ao paciente ou não conseguia esperar a
hora de a Dona Morte levar a alma do falecido, os pertences eram
encaminhados ao mesmo setor em que ficavam guardados os bens dos
pacientes de alto poder aquisitivo.
No dia em que esse setor pegou fogo, o Padre acompanhou à distância
o trabalho dos bombeiros. Apesar de rezar fervorosamente, de nada
serviram suas preces: o incêndio transformou tudo em cinzas. Suas
esperanças em desviar algumas coisas lá de dentro também se dissiparam.
Muita gente dizia que o fogo tinha começado de maneira proposital. Outros
afirmavam que os motivos eram simplesmente acidentais. No entanto,
ninguém nunca explicou ou esclareceu o que de fato tinha acontecido.
Por ter boa aparência, apesar de ser um interno, algumas funcionárias
da ala feminina caíam nos encantos dele. Alguns dos bens afanados dos
pacientes moribundos serviam como presente para conquistar o coração das
fiéis. Isso provocou a ira de alguns funcionários; não entendiam como um
louquinho que se dizia padre podia deixar de lado o voto de castidade e a
batina para fazer pregação na ala feminina. Quando era pego com uma
mulher, passava alguns dias trancafiado. Isolado, tinha tempo de sobra para
orar e meditar.
Uma vez, depois de passar por uma dessas temporadas solitárias,
voltou ao dormitório e esperou todo mundo dormir. Na calada da noite, sem
lua no céu, percorreu os corredores sombrios do Hospital Psiquiátrico
sorrateiramente, como faziam os macacos e raposas que circulavam na
madrugada. Pulou o muro da Terceira Clínica, atravessou o matagal e a
cerca de arame farpado até chegar ao cemitério.
Além de velar e dar a extrema unção ao falecido que estava
aguardando a hora de ser transferido para seu descanso eterno a sete palmos
do chão, passou a noite por lá. Foi a única companhia do defunto esquecido
por amigos e familiares.
O Padre não pôde acompanhar o enterro. Quando o sol raiou, foi
levado de volta à clinica onde estava internado. No entanto, levava
escondido debaixo da batina dois dentes de ouro. No corredor de acesso à
Terceira Clínica, deixou cair os objetos do bolso, que provavelmente devia
estar furado. Olhou para mim e, com um sorriso amarelo, disse: “Meu filho,
afinal de contas, quem precisa levar joias no caixão?”.
A VIAGEM SEM VOLTA

Ver um paciente gritar que estava sendo envenenado e, em seguida, jogar o


prato de comida na parede do refeitório poderia parecer normal no Hospital
Psiquiátrico, cena que presenciei várias vezes. Mas quando era um
funcionário que surtava, isso queria dizer que algo realmente não estava
nada bem.
Certo dia, eu e outros dois colegas paramos para tomar café no
refeitório dos funcionários da Terceira Clínica. Um deles engoliu o café
rapidamente, pegou uma faca de passar manteiga no pão e correu na direção
dos outros funcionários que estavam sentados na copa. Tentei detê-lo, mas
fui encurralado em um canto. Levei um golpe que apenas rasgou o pano da
perna esquerda da minha calça. Antes que ele pudesse tentar me esfaquear
novamente, alcancei um bule de café vazio. Consegui me defender de cada
facada com o bule de alumínio, que ficou em frangalhos depois de algumas
investidas. Outros funcionários o seguraram pelos braços, tomaram a faca e
o acalmaram. Como nosso supervisor estava de férias, abafamos o caso ali
mesmo.
Alguns auxiliares e atendentes de enfermagem, como eu, não
aguentaram ficar muito tempo cuidando de loucos e desistiram do concurso
público. Parte deles rumou para tentar a vida em São Paulo e até em outros
países. Na época, um funcionário da Segunda Clínica chamava os mais
jovens para trabalhar na Argentina. Branco, de olhos verdes e cabeludo, GT
era filho de argentino com brasileira. Ele convenceu vários funcionários a
comprar uma passagem de ônibus até a capital argentina; lá, receberiam
instrumentos e aulas para tocar em bandas de sucesso. Dizia que em pouco
tempo ganhariam o suficiente para comprar casa e carro. Além disso, se
apresentariam no mundo inteiro.
Poucos meses depois, chegou a notícia de que alguns voltaram
arrependidos. Esses poucos ex-funcionários que conseguiram regressar
contavam uma história absolutamente diferente. Ao chegar a Buenos Aires,
não ganhavam violões ou aulas de música: em primeiro lugar, eram
obrigados a trocar de nome. Depois, aprendiam a atirar usando revólveres,
pistolas e metralhadoras. Por fim, passavam por treinamentos de tática de
guerrilha em locais afastados da capital.
Assim como no Brasil, havia uma ditadura militar que conduzia a
Argentina com mão de ferro. A maior parte dos colegas que embarcou na
aventura não voltou a Franco da Rocha nem ao Juquery; as famílias nunca
receberam notícias. GT também foi embora, mas ninguém soube do seu
paradeiro.
Apesar de ter sido convidado diversas vezes, decidi ficar no Hospital
Psiquiátrico. Não quis comprovar a veracidade dos fatos. Os boatos de que
alguns funcionários tinham realmente conseguido seguir carreira artística
com a ajuda de GT em Buenos Aires não me convenceram a embarcar
nessa aventura.
A verdade se perdeu com o tempo.
RECOMEÇO

A notícia se espalhou rapidamente: todas as clínicas e colônias deveriam


ceder alguns funcionários para trabalharem no Manicômio Judiciário. Todos
ficaram extremamente apreensivos com o comunicado do Departamento
Pessoal do Hospital Central do Juquery; sabíamos apenas que a Justiça
mandava para lá os criminosos perigosos, ou seja, portadores de doenças
mentais autores de crimes brutais. O lugar estava abarrotado de assassinos,
estupradores e assaltantes sem condições de permanecer confinados em
presídios comuns. Em muitos casos, só lhes restava a reclusão em celas
isoladas.
A apreensão se juntou ao medo que tomava conta de nós à medida que
as transferências passaram a acontecer. Nunca entendi os critérios de
seleção. Eu era concursado, assim como todos os outros atendentes de
enfermagem, para trabalhar no Hospital Psiquiátrico. Alguns funcionários
que tinham dado o melhor durante anos, sem faltar nem sequer um dia,
seguiam para o Manicômio. Enquanto isso, permaneciam no Hospital
Psiquiátrico outros que faltavam com frequência, batiam nos internos,
passavam o dia jogando conversa fora ou aqueles que simplesmente não
estavam nem aí para suas obrigações e faziam vista grossa para as
necessidades básicas dos pacientes.
Essa bomba estourou quando eu já estava acostumado com a rotina de
lidar com doentes mentais que possuíam os mais variados diagnósticos.
Junto dos meus colegas, alimentávamos um verdadeiro batalhão de
pacientes. Dávamos banho nos acamados, muitos deles com feridas abertas
nas costas e nos quadris.
Também limpávamos os pacientes que se recusavam a entrar no
chuveiro, o que acontecia quase sempre. A gente também acabava tomando
banho, pois éramos obrigados a entrar no chuveiro para segurar os
teimosos. Também medicávamos e vestíamos os pacientes, entre outras
atividades que consumiam todas as horas da nossa jornada diária de
trabalho.
Mas não teve jeito. Antes mesmo de a lista com meu nome sair
oficialmente, todo mundo já sabia que eu começaria a trabalhar no
Manicômio dentro de poucos dias. Não aconteceu só comigo; apesar da
decepção, só nos restava buscar forças para lidar com a situação, aguardar a
lista de remoção, que já circulava pelos bastidores há muito tempo, e rumar
para o novo posto de trabalho. Meu único alento foi lembrar que eu tinha
um primo que trabalhava lá.
Chamava-se José da Conceição. Ele havia prestado quatro ou cinco
anos antes o primeiro concurso público da história do Juquery.
Diferentemente do que aconteceu comigo, ele entrou diretamente no
Manicômio Judiciário. Eu havia concorrido a uma vaga no Hospital
Central, mas apenas quando o segundo concurso foi aberto.
O BATISMO

O dia da transferência chegou. Meu nome estava na lista de remoção, mas eu


já tinha certeza de que isso ia acontecer. Nenhuma novidade até então.
Algumas peruas veraneio nos levaram até o Manicômio Judiciário de Franco
da Rocha. Na chegada, o tamanho das coisas me impressionou.
O portão de ferro na entrada do prédio, de três andares com paredes
amarelas e coberto por tijolos vermelhos, era enorme. Tinha o formato de
uma letra T invertida e possuía dimensões muito maiores do que qualquer
clínica do Juquery. Uma muralha com mais de sete metros de altura e dois
postos de vigia, por onde transitava a Polícia Militar dia e noite, cercava o
manicômio com capacidade para 420 leitos. Quando cheguei lá, esse número
não fazia sentido: nunca tive ideia do número exato de internos, mas acho
que batia a casa dos novecentos. Jamais consegui saber quantos funcionários
se desdobravam para dar conta de tudo aquilo.
No térreo ficavam o setor administrativo, os consultórios, algumas
celas, os pátios e os refeitórios. O primeiro andar abrigava os dormitórios
coletivos com trinta ou cinquenta camas. O segundo andar tinha vinte celas
reservadas para os detentos com alto grau de periculosidade e alguns
dormitórios.
O pé-direito alto logo no térreo me deixou boquiaberto. Avistei um
longo corredor que cortava ao meio o andar, antes de ser conduzido a um dos
escritórios do setor administrativo que se localizavam à esquerda. Depois de
assinar a papelada, voltei ao corredor central.
À direita ficava a portaria e, ao lado, um conjunto com uma dezena de
celas, todas vazias. Separando mais um conjunto com uma dezena de celas
em frente, havia uma ala com os chuveiros, que, como todas as duchas do
Manicômio, só despejavam água fria. As celas eram desprovidas de local
para banho.
Cruzando o corredor, do lado oposto dos chuveiros, do lado esquerdo
havia um vão que separava os escritórios, os consultórios médicos e a
enfermaria. À medida que caminhava na direção de uma grande cortina de
algodão de cor parda, conseguia ouvir barulhos que pareciam ser gritos e
discussões. Ao lado dos consultórios, separado pelo corredor central,
localizavam-se um escritório e o arquivo do Manicômio. Uma parede dividia
o arquivo do conjunto de dez celas que ficava à direita. O acesso para essas
se dava pelo vão onde ficavam os chuveiros.
Antes de chegar à cortina, ainda havia à direita a porta de acesso para o
refeitório dos funcionários. Quando cheguei a esse ponto, já se ouvia um
tremendo barulho. Assim que a cortina se abriu, vi detentos falando alto e
berrando sem parar; o ruído produzido pelo ferro quando as trancas dos
portões abriam e fechavam também era assustador. De repente, um batalhão
de funcionários, incluindo meu primo, passou por mim carregando alguns
presos.
(Nesse corredor, que também dava acesso ao refeitório dos detentos,
circulavam sujeitos com cara de poucos amigos em meio aos funcionários. À
noite, os acessos permaneciam trancados e ninguém podia entrar. Havia uma
passagem à esquerda e, seguindo em frente, à direita, ficava a entrada para
dois pátios. Entre o corredor principal e o primeiro pátio, ao fundo do térreo,
havia ainda algumas salas que serviam para guardar os pertences dos
funcionários.)
Atrás da cortina, a confusão continuava. Eu e o grupo de novatos que se
juntou a mim na chegada ao Manicômio fomos convocados aos gritos para
acompanharmos os veteranos, que sustentavam os detentos pelos braços,
pernas ou pelo tronco. Atravessamos o corredor até entrarmos no refeitório
dos pacientes, à esquerda. Então passamos pelas salas nas quais ficavam
armazenados os produtos de limpeza e seguimos até a escada de acesso para
o primeiro andar.
Silva, A.C. Pacheco. O Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo: histórico, instalação,
organização, funcionamento. São Paulo, Oficinas Gráficas de Assistência a Psicopatas, Juquery, 1935
Silva, A.C. Pacheco. O Manicômio Judiciário do Estado de São Paulo: histórico, instalação,
organização, funcionamento. São Paulo, Oficinas Gráficas de Assistência a Psicopatas, Juquery, 1935

Cruzei com uma infinidade de presos no trajeto e, ao passo que subia as


escadas, aqueles rostos teimavam em ficar grudados na minha cabeça.
Comecei a imaginar que tipo de maldades aqueles homens tinham feito.
Quantas pessoas sofreram ou perderam a vida até eles serem julgados e
trancafiados no Manicômio?
Alguns detentos subiam e desciam por essa escada ignorando nossa
presença. Passamos pelo primeiro andar e continuamos a subir os degraus da
escadaria até o segundo andar. Chegamos até outro longo corredor, idêntico
àquele localizado no térreo, que dava acesso a seis dormitórios, três de cada
lado. Durante essa jornada, os brigões se debatiam, gritavam e tentavam se
jogar no chão. Não consegui contar, mas acho que havia pelo menos catorze
ou quinze detentos sendo carregados. Viramos à esquerda e entramos no vão
onde ficavam os chuveiros ao fundo e dois conjuntos de celas em lados
opostos.
Ainda bem que as algumas celas já estavam abertas. Um dos presos foi
imediatamente atirado contra a parede por um funcionário mais velho.
Tínhamos que trancar a porta rapidamente, mas, por causa da minha
inexperiência, não consegui fechá-la. Para nosso azar, o detento se
transformou em um animal feroz. Além de gritar e de nos xingar de “capas-
brancas de merda”, começou a jogar em nossa direção trouxas de roupa
velha empapadas de urina e fezes que estavam guardadas no boi, o vaso
sanitário do manicômio, que nada mais era que um buraco aberto no chão.
Instalada dessa forma, a louça não podia ser quebrada e usada como arma.
Se o detento quisesse cagar, tinha que ficar de cócoras, e para mijar bastava
mirar no buraco.
Esse foi o meu batismo no Manicômio. Se eu já estivesse vestindo
minha capa branca, ela estaria cheia de merda. Sobrou para a minha roupa
limpa. Naquele dia, eu vestia uma calça Lee novinha e uma camisa branca
bem engomada. Achei que o dia seria especial; acertei na mosca!
Depois que todos os detentos estavam trancados, meu primo veio me
cumprimentar e foi logo dizendo que aquela situação era muito comum lá
dentro. Esses detentos seriam levados às celas do térreo, que normalmente
ficavam vazias, mas naquele dia estavam lotadas. Por causa dos ânimos
exaltados, era praticamente impossível subir a escada e levá-los para os
andares de cima; entretanto, com nossa ajuda, deu para dar conta da
emergência.
Uma semana depois, chegou uma caravana de profissionais de uma
instituição chamada Arca da Saúde para vacinar os detentos e colher
material para exames clínicos. Apesar de a maioria dos presos permitir esses
procedimentos, alguns poucos causaram um enorme rebu, atirando um
amontoado de mijo e bosta para nos afugentar. E lá estava eu, sujo
novamente. Abri a porta de uma das celas para que a equipe de enfermeiros
realizasse os exames em um preso e levei uma carga daquele líquido
nojento. Só depois de o imobilizarmos o trabalho pôde ser feito. Saímos de
lá imundos, minha capa branca toda salpicada de merda.
Infelizmente, esse banho de merda tornou-se corriqueiro quando
tínhamos que lidar com alguns detentos trancafiados. Em estado de agitação
incontrolável, não podiam se misturar com os outros presos nos dormitórios,
corredores e pátios; bastava destrancar as celas para levarmos uma saraivada
de excrementos. Por causa desse tratamento, passamos a ser menos
amigáveis com os internos, aumentando o ponto de fervura naquele
caldeirão chamado Manicômio.
AS PORTAS DO INFERNO

Os loucos do Hospital Central que passavam dia e noite babando, mijando e


cagando nas calças deram lugar aos detentos que entupiam celas,
dormitórios e corredores do Manicômio Judiciário, circulavam, durante o
dia, pelos corredores, e matavam o tempo nos pátios do térreo. Cercado
pelas muralhas, o pátio da esquerda, que tinha até uma quadra aberta de
futebol de salão, concentrava a maior quantidade de presos. Para acessar
esse pátio era preciso ir até a ponta do salão do refeitório dos internos, na
direção da entrada do prédio, e cruzar o tira-fogo, a temida entrada quente.
O tira-fogo era um cubículo de nove metros quadrados, onde um
funcionário controlava a entrada e a saída dos internos que a utilizavam
como passagem do pátio para o refeitório e vice-versa. Nessa gaiola, os dois
portões de ferro permaneciam trancados com chave. O funcionário tinha
que olhar por uma pequena janela em uma das duas pesadas portas de ferro
para liberar a entrada de até no máximo cinco internos. Após abrir a
primeira porta, ele e os outros internos permaneciam lá dentro até que a
outra porta fosse aberta.
Daí era como se ficássemos enclausurados por instantes que pareciam
durar uma eternidade. Se alguém fosse atacado, seja funcionário ou interno,
nada poderia ser feito. Apesar de o tira-fogo não possuir cobertura, os
guardas das muralhas não conseguiam ver ou ouvir nada lá dentro. Os gritos
eram abafados pelos barulhos das atividades do pátio. E se na confusão
algum interno não fizesse parte do grupo, estando ali apenas na hora errada
e no lugar errado, ele não ousaria caguetar.
Recebíamos as escalas periodicamente e nos programávamos de
acordo com os horários e atribuições, mas torcíamos para não nos
encarregarem do tira-fogo. Quando um funcionário descobria que receberia
essa tarefa, cuspia fogo de tanta raiva — exceto um senhor chamado Pires,
que, por motivos que ninguém nunca entendeu, adorava aquele serviço.
Geralmente ele é quem ficava responsável por esse setor. Pelo que o Pires
comentava, os chefes não ficavam no pé dele, e ele sempre conseguia tirar
folga aos sábados e domingos.
Durante as refeições, o refeitório ficava lotado de funcionários que
serviam os internos ou apenas observavam seus comportamentos. O fluxo
de pessoas no tira-fogo, portanto, diminuía. Mas no período entre as
refeições as chances de um ataque aumentavam consideravelmente. O
responsável por aquela pequena sala de passagem tornava a receber e
liberar levas intermináveis de internos. O único momento em que o tira-
fogo ficava com as duas portas escancaradas acontecia depois do jantar dos
internos, quando as atividades no pátio se encerravam, eles subiam para os
dormitórios e, por fim, chegava a hora da tranca.
O pátio oposto, do lado direito de quem entrava no prédio, se dividia
em dois. Para entrar nele era preciso cruzar um corredor que repartia a parte
de trás do refeitório dos funcionários e as salas que serviam como depósito
para os materiais dos internos que trabalhavam costurando bolas ou
produzindo peças de artesanato — desde luvas, cachecóis e bonés para o
frio até luminárias e barquinhos com distintivos de times de futebol
estampados nas velas. Esses internos trabalhavam sob a supervisão dos
auxiliares de laborterapia.
A primeira parte do pátio, mais próxima da entrada do Manicômio, era
reservada às oficinas de laborterapia. No centro, havia um quiosque grande
que servia como abrigo em dias de chuva. Na segunda parte, localizada ao
fundo do prédio, nada de trabalho: os detentos se reuniam para disputas de
dominó, xadrez, damas e baralho. No alto do muro, os guardas apenas
ficavam de olho na movimentação.
A maioria dos detentos possuía três características bem marcantes.
Eles mantinham o asseio, preocupavam-se com a vaidade e observavam a
tudo e a todos. Claro que havia exceções; alguns piradões permaneciam
trancafiados nas celas conhecidas como pela-porco. Localizadas no final do
corredor do segundo andar, os colchões ficavam no chão e os vasos
sanitários eram latões de vinte litros.
Nos pátios, os presos me deixavam intimidado. Eles ficavam nos
medindo dos pés à cabeça e lançavam olhares que pareciam radiografar
nossas entranhas. Logo um funcionário veterano revelou a motivação
daquele comportamento: eles tinham curiosidade de saber o que se passava
do lado de fora das muralhas. Queriam ver quais roupas estávamos vestindo
ou o tipo de sapatos que calçávamos. Olhavam para os relógios de pulso e
para os cortes de cabelo, tentando entender quais eram as tendências da
moda.
Na época, uma tia minha que morava no Rio de Janeiro me deu uma
camiseta sem manga do Colégio Nossa Senhora da Paz. Um dia, fui
trabalhar e a vesti por baixo da capa branca. Cruzei com um preso que foi
logo apontando para mim e disse: “Ei, rapaz, você é do Rio de Janeiro?”.
Eu o ignorei. Fingi que não era comigo, porque tive receio de cair na
conversa dele. No Manicômio, reinava a pilantragem. Vai saber o que ele
estava pensando.
Mas não era só a vaidade e a curiosidade que moviam os detentos.
Apesar de proibido, o dinheiro circulava dentro das muralhas do
Manicômio. No pátio da jogatina, os presos apostavam alto. Só quem era
muito tonto podia pensar que os presos se mantinham ocupados com
inocentes jogos de tabuleiro e dominó. Em qualquer tipo de disputa, fosse
palitinhos, dados ou xadrez, as apostas rolavam soltas.
Vários detentos organizavam a banca de apostas dos jogos de azar e
vendiam cigarros. Com dinheiro na mão, a comida era melhor. Presos e
alguns funcionários também faziam sua fezinha diariamente no jogo do
bicho. Capitão, um detento que se apresentava no concurso de música nas
festas de São João, organizava as apostas, controlava o caixa, ouvia os
resultados em um radinho de pilha e distribuía os prêmios aos ganhadores.
Funcionários e internos endividados recorriam ao Ceará. Esse preso
emprestava dinheiro a juros, digamos, módicos. Pra que recorrer a um
banco se o auxílio financeiro estava logo ali?
Também tinha cachaça à venda. Uma vez, um preso chegou a ganhar
uma garrafa em uma rifa. Os chefes da disciplina tentavam acabar com os
jogos de azar, rifas, venda de bebida alcoólica e outros tipos de
transgressão. No entanto, bastava fechar uma banca de jogo do bicho, sumir
com a cachaça ou confiscar o dinheiro para, em um piscar de olhos, outra
banca abrir, uma caixa de pinga aparecer e a grana voltar a correr no
carteado.
O dinheiro só tinha valor no Manicômio. No Hospital Psiquiátrico,
cinco milhões de cruzeiros ou um monte de bosta na latrina eram a mesma
coisa; os loucos não tinham nenhuma noção do que representava um maço
de notas, um punhado de moedas ou um monte de merda. Uma bituca de
cigarro e uma caneca de café puro já representavam a glória nos pátios das
clínicas psiquiátricas.
Apesar de o dinheiro e outros objetos considerados proibidos entrarem
no Manicômio em um passe de mágica — até um fogão conseguiu
atravessar as muralhas —, havia um departamento que controlava tudo
aquilo que os familiares deixavam para os detentos. Trabalhei dois meses
como responsável por essas coisas que vinham de fora. Cigarro, maçã,
bolacha ou roupa, qualquer objeto lá dentro se chamava muamba ou jumbo.
A muamba ficava armazenada em uma pequena casa ao lado do
Batalhão da Polícia Militar, portanto do lado de fora do Manicômio.
Quando terminava o horário das visitas, uma perua Kombi chegava para
levar os presentes que, antes, passavam por uma minuciosa vistoria. A
intenção era dificultar a entrada de objetos indesejados, como facas e
estiletes, camuflados dentro de bolos ou pacotes de cigarros.
No começo, eu discriminava tudo nos mínimos detalhes. Se recebia
nove bananas, registrava no livro “nove bananas”. Mas depois de um tempo
vi que isso não adiantava. Muitas vezes, funcionários e presos sumiam com
tudo que era entregue, principalmente cigarros. O preso ia atrás, querendo
saber o que tinha ganhado, e as reclamações sobravam para mim. A solução
encontrada foi, em vez de registrar “duas cuecas e três maçãs”, colocar
“roupas e frutas”. Assim o preso não reclamava tanto se algum item sumia.
Além disso, o controle era muito complicado porque, mesmo se todos os
internos não recebessem visitas, chegavam a circular mais de mil sacolas
dentro das muralhas.
Uma vez, a direção do Manicômio surpreendentemente resolveu
instalar alguns televisores preto e branco nos pátios para distrair os presos.
A experiência durou pouco tempo. No primeiro Corinthians versus
Palmeiras, antes mesmo do início do jogo, o pau começou a rolar solto e
sobrou até para as TVs, que nunca mais voltaram.
Os detentos realmente se esforçavam para manter ligações com o
mundo exterior. Sem TV, rádio ou jornais, exceto aqueles que entravam de
forma ilegal, as cartas, única fonte de notícias de parentes ou amigos,
passavam pela censura rígida dos responsáveis pelo setor de disciplina.
Esses funcionários tinham autorização para abrir os envelopes e ler as
correspondências entregues pelo correio, mas eles rasgavam e jogavam
quase todas no lixo. Na verdade, nem se davam ao trabalho de lê-las.
Pouquíssimas cartas entravam, e raramente alguma saía.
Mesmo com todo esse controle, rolava a história de um preso que
trocava correspondências com autoridades do Vaticano. Ele jurava de pés
juntos que recebia regularmente informações importantes e até mensagens
assinadas pelo papa. Eu nunca vi nada disso, até onde vai minha memória.
Mas, ali dentro, a gente não podia duvidar de nada.
RELAÇÕES PERIGOSAS

Tudo aquilo que aprendi e pratiquei no Hospital Central não servia mais no
Manicômio. Os cinco anos de trabalho com os pacientes da Terceira Clínica
acabaram indo parar na latrina. As muralhas guardavam um novo mundo
com regras ditadas por uma cartilha completamente diferente. O respeito
pelo capa-branca não existia mais lá dentro. Só alguns dos presos mais
inteligentes e malandros demonstravam algum tipo de consideração por
nós, mas nunca sabíamos se algum interesse estava em jogo por trás desse
comportamento.
Como o Hospital era habitado por loucos, para que entendessem aquilo
que pedíamos bastavam alguns comandos simples, como “Sai daí, louco!”
ou “Come aí, maluco!”. Além de obedecerem, não ficavam magoados. Eles
abaixavam a cabeça rapidinho e nem precisavam dizer “Sim, senhor”.
Alguns viviam em outros mundos, fora da nossa realidade, sem ter um
pingo de noção daquilo que acontecia ao seu redor ou do lado de fora do
Complexo Juquery.
Tínhamos que lidar com os presos do Manicômio de outro modo,
porque podiam se irritar ou reagir com violência. Não dava para brincar
com sujeitos perigosos, capazes de aprontar com você sem dó e de maneira
cruel. Nenhum de nós era louco a ponto de dar um tapa em um detento que
se recusava ir para o chuveiro. As consequências poderiam ser escabrosas.
Se o detento levava um grito, raramente abaixava a cabeça.
Lá dentro havia outro tipo de pessoa. No Hospital, caso acontecesse
um ataque, a reação do louco acontecia imediatamente, porque agiam por
impulso. Já os presos do Manicômio geralmente pensavam antes de agir;
passavam horas, dias e até meses planejando uma forma de revidar.
Se você dava o remédio na mão de um dos presos, você poderia ouvir:
“Ô, eu vou tomar depois, viu?”. A gente nem ligava para isso. Uma hora ele
tomaria ou jogaria fora no boi. A lógica era essa. Eles eram muito astutos, e
esse tipo de convivência assustava qualquer funcionário. Apesar de os
chefes de disciplina serem corretos e extremamente rigorosos, não tínhamos
condições de manter tudo em ordem. Vivíamos em permanente estado de
tensão por causa do código de conduta estabelecido pelos próprios detentos.
A maioria dos presos perambulava pelos pátios e corredores durante o
dia, mas alguns nunca saíam das celas. A dor e o frio pareciam não fazer
parte da vida deles. Só eram retirados quando aparecia o pessoal da faxina.
Alguns detentos com bom comportamento eram selecionados para ajudar os
encarregados dessa tarefa que durava, no máximo, vinte minutos.
Durante a faxina, dois ou três funcionários passavam o pente-fino para
buscar facas, punhais, bebidas alcoólicas ou qualquer outro item proibido
no Manicômio. Os detentos ficavam do lado de fora da cela, de costas para
a parede. Enquanto fumavam um cigarro oferecido estrategicamente por um
faxina ou funcionário para acalmar e distrair o preso, às vezes até dez
capas-brancas tinham que vigiá-lo, dependendo do seu grau de
periculosidade.
Esse procedimento ia por água abaixo quando alguém resolvia dar
espetáculo. Não foram poucas as vezes em que um ou outro detento tentou
partir para a agressão. Nem dava para saber quando a pancadaria poderia
chegar ao fim. Em outros momentos, sem um motivo aparente, começavam
a se debater no chão e só sossegavam depois de imobilizados. Então, os
psiquiatras chegavam para fazer suas observações. Sem entrar na cela,
analisavam a situação pela janela da porta, que, obviamente, permanecia
trancada enquanto a consulta acontecia.
Durante os dois anos e meio em que trabalhei no Manicômio, soube
que havia apenas três psiquiatras disponíveis. Essa situação só mudou
quando outro doutor foi contratado para auxiliar no acompanhamento
psiquiátrico de mais de novecentos internos. Porém, ele durou só alguns
meses lá dentro, porque pediu demissão. Ninguém mais teve notícias dele.
Para controlar os detentos, os médicos prescreviam alguns
medicamentos. A escopolamina era o remédio mais popular. O detento que
recebia uma dose ficava totalmente fora de combate. Geralmente
aplicávamos injeções de sulfa, que doíam muito, combinadas com
escopolamina. Tinha também o Depot, medicamento com o princípio ativo
que, como o nome parecia indicar, permanecia depositado no organismo
para ser liberado aos poucos. Alguns remédios usados no Manicômio
também eram prescritos no Hospital Central, como Gardenal, Neozine,
Haloperidol, entre outros. Tudo dependia do diagnóstico.
Os funcionários mais experientes diziam que essas medicações
serviam apenas para castigar os presos que apresentavam mau
comportamento. Como não éramos especialistas no assunto, tanto no
Hospital como no Manicômio não víamos as prescrições, só aceitávamos as
ordens e cumpríamos com a nossa obrigação.
Quando alguém se recusava a tomar os remédios por bem, recebia toda
a dose de uma vez em uma injeção aplicada na bunda. No caso de tentativa
de fuga, a punição era aplicada em três etapas: escopolamina, sulfa e surra;
por fim, o fujão passava uma temporada trancado em uma cela no térreo ou
no segundo andar.
O SER INDOMÁVEL

Os presos com alto grau de periculosidade ou aqueles que tinham cometido


algum erro grave lá dentro poderiam ficar em dois tipos de confinamento: a
cela comum e a cela escura, mais conhecida como cela surda.
As celas comuns, localizadas apenas no segundo andar, possuíam
apenas uma porta de entrada, janela com grades e o boi. Os detentos
dormiam em um colchão no chão. Essas celas ficavam no lado da frente do
prédio, do lado esquerdo. Nós tínhamos acesso rápido a elas, já que uma
escada exclusiva para os funcionários ligava o primeiro e o segundo andar.
Saindo à esquerda pelo portão da escadaria, onde um funcionário
controlava nosso acesso à noite, havia um conjunto de celas pela-porco, que
abrigavam os piradões. Ao lado delas, ainda ficavam mais algumas celas.
No fundo de um corredor menor que o central, uma coluna de chuveiros
servia aos detentos do segundo andar. Na frente das celas pela-porco,
localizava-se a sala de medicamentos e à esquerda as celas surdas.
Para entrar em uma cela surda, primeiro se atravessava uma porta com
grades de ferro que dava para um pequeno corredor em formato de L. Na
outra extremidade, havia mais uma porta idêntica à primeira, que
finalmente dava acesso à cela. O detento permanecia em total isolamento.
Assim como na cela comum, só havia uma privada aberta no chão, mas não
havia janela.
As paredes tinham mais de cinquenta centímetros de espessura, e as
portas de ferro eram bastante grossas. Mesmo assim, alguns detentos batiam
a cabeça com tanta força nas portas que o barulho dos golpes dos ossos do
crânio no metal ultrapassavam todos os limites do corredor da cela surda e
chegavam aos ouvidos de quem estava nas outras celas, nos chuveiros ou
até mesmo no corredor principal.
No lado oposto do local onde estavam as celas surdas, saindo do
portão de acesso à escadaria dos funcionários, à direita, ficavam mais dois
conjuntos de celas separados por um vão onde, ao fundo, havia uma coluna
de chuveiros. E, no corredor central, ficavam três dormitórios à esquerda e
outros três à direita. Lá no fundo, à esquerda, os detentos tinham acesso à
escadaria que vinha do térreo.
Quando eu estava distraído, aquele barulho de ossos batendo no ferro
me chamava de novo para a realidade. Mas nem precisava de um estrondo
como esse para eu saber onde estava: logo após bater o cartão de ponto,
parecia que eu carimbava meu passaporte para um mundo distante da
realidade do lado de fora das muralhas. Dentro do Manicômio Judiciário do
Juquery, conheci detentos diferentes de qualquer ser humano.
Um deles morava sozinho em uma das celas surdas e se chamava
Sansão. Apesar de nunca ter conhecido Dalila, tinha sempre a cabeleira
raspada pelo barbeiro e mantinha uma força descomunal. Não apanhava de
ninguém, mas estava sempre com a cara inchada. Levava na cabeça um
monte de cicatrizes, calombos e galos. Ninguém conseguia calcular a
quantidade de suturas que já tinha recebido.
Esse detento costumava passar dia e noite dando cabeçadas
ininterruptas nas paredes de sua cela surda. Por causa da força das
pancadas, o barulho conseguia passar pela porta de acesso à cela, percorria
o corredor, atravessava mais uma porta e, por fim, ecoava nos corredores do
pavilhão. Quando batia a cabeça na porta de ferro, o som se confundia com
o de uma marreta golpeando uma bigorna. As cabeçadas se misturavam aos
urros e gritos de outros detentos e deixavam todos assustados. Alguns
internos amedrontados com aquele cenário de horror também engrossavam
o coro e gemiam. Outros ainda mais apavorados berravam em suplício
“socorro”, “meu Deus do céu”, “me salve” e “ai, minha Nossa Senhora”.
Mas o que mais se ouvia era: “pelo amor de Deus, me tire daqui”.
Os mais corajosos se irritavam e pediam para que calassem a boca. A
confusão só parava quando o cansaço, que demorava a chegar, fazia com
que Sansão desmaiasse. Só assim uma atmosfera de aparente tranquilidade
reinava naquele local, e os internos podiam dormir em paz. Isso só
acontecia porque vários frascos de calmantes eram misturados no caldo do
feijão que Sansão recebia. Não adiantava colocar algumas gotas do
remédio. Tínhamos que arrancar a tampa e despejar todo o conteúdo na
refeição dele.
Dentro da cela, as marcas de sangue borrifavam o chão de piso
marrom, as paredes de cimento puro, a pesada porta de ferro e até mesmo o
teto coberto de infiltrações. Essas manchas não saíam de jeito nenhum.
Mesmo se os faxinas passassem uma tarde inteira esfregando-as com todo o
sabão disponível no estoque do almoxarifado e toda a água do Juquery, as
marcas nunca desapareceriam.
O pouco ar e o cheiro de mofo se misturavam com o odor de fezes,
urina e carne podre que impregnava o ar. Sansão entupia o vaso sanitário
com pedaços de carne das refeições e roupas que rasgava com as próprias
mãos. Outros detentos também adotavam esse procedimento para tapar o
boi ou ralos nos pátios, evitando assim o aparecimento de ratos que
transitavam pelo encanamento. Os presos rasgavam pedaços das calças e
das camisas, mas também podiam usar chinelos velhos.
Nos dormitórios, a situação era outra, senão aconteceriam brigas entre
os presos. Já havia um clima de tensão entre aqueles que dormiam perto dos
banheiros, por causa do desconforto quando o fedor se espalhava se o boi
entupisse, já que mais de cinquenta presos podiam dividir o mesmo vaso
sanitário. Ninguém se atreveria a obstruir a passagem dos dejetos com
trapos velhos ou qualquer outra coisa.
A sujeira atraía visitantes que dividiam o espaço com Sansão. As
baratas percorriam todos os cantos da cela. As pulgas e percevejos se
instalavam em seu colchão, que, mesmo quando o trocávamos por um novo,
rapidamente ganhava a aparência de um trapo velho e encardido. Com ou
sem colchão, Sansão parecia não se importar em descansar no chão duro,
porque só dormia quando desmaiava e tombava em qualquer canto da cela.
Durante o verão ou o inverno, estava sempre nu da cintura para cima.
Só vestia uma calça de algodão imunda. Nunca calçava as sandálias, que
ficavam jogadas em um canto da cela — até o dia que em acabavam dentro
do boi.
Só entrávamos na cela de Sansão nos dias reservados exclusivamente
para a faxina. A ordem para limpar o local demorava muito a chegar,
porque todo mundo sabia que a tarefa nunca era fácil. Tomávamos alguns
cuidados para evitar sustos: tirávamos o cadeado para abrir a segunda porta
de ferro, lhe oferecíamos uma caneca de café e um cigarro. Depois,
conduzíamos o detento até o corredor onde ficavam os chuveiros. Enquanto
bebia o café e fumava o cigarro, os faxinas tentavam deixar aquele local um
pouco menos imundo e fétido. A primeira água que escorria pela porta tinha
a aparência de um caldo grosso e escuro, no qual os insetos, quase mortos,
se debatiam em vão.
Mas nem sempre as coisas funcionavam na perfeita ordem. Às vezes,
bastava ele dar o primeiro gole no café para perder o controle, enquanto
organizávamos a entrada dos faxinas. Sansão atravessava o corredor dos
chuveiros em direção à primeira porta para retornar à cela. Lá dentro,
socava o ar e dava cabeçadas na parede. Os capas-branca tentavam detê-lo,
mas todo o esforço era em vão. Ele parecia estar possuído por uma força
ainda maior do que aquela que pensávamos conhecer.
Quando atacava, os faxinas não interferiam. Saíam da cela e deixavam
o rojão na mão dos capas-brancas. Fazíamos de tudo para tentar segurá-lo e
acalmá-lo, mas sua incrível força nos vencia. Outros funcionários até
apareciam para ajudar, mas ele conseguia derrubar todos. Um por um.
Em uma dessas inúmeras ocasiões, ainda nos recuperávamos dos
primeiros golpes, e o confronto se transformou em uma briga de rua.
Alguns capas-brancas começaram a dar chutes, pontapés e até socos na
nuca de Sansão. Depois de mais de 20 minutos de pancadaria, Sansão
parecia dar os primeiros sinais de cansaço. Ele caiu no chão e levou alguns
chutes nos testículos. Dava a impressão de que a briga estava ganha, mas,
na verdade, os golpes, que deveriam ter encerrado o combate, o deixavam
ainda mais forte. Ele se levantava e a confusão recomeçava como se nada
tivesse acontecido.
Sansão continuou caindo e se levantando por mais de meia hora. Os
funcionários tentavam acertá-lo, só que também apanhavam muito. Os
capas-brancas estavam visivelmente cansados e doloridos. Naquela bagunça
era difícil aplicar a injeção. Mas, depois de cair no chão sem fôlego,
finalmente foi possível aplicá-la com um potente sossega-leão. Alguns
segundos depois, ele não esboçava qualquer tipo de reação.
Os funcionários chegaram à enfermaria como soldados que acabavam
de voltar de uma batalha. Além de as roupas estarem rasgadas, os corpos
apresentavam hematomas e arranhões. A exaustão tomava conta de todo
mundo. Várias capas brancas foram diretamente para o lixo. Alguns
funcionários estavam com o supercílio aberto. Outros tiveram que carregar
tipoias nos braços por semanas. A maioria recebeu licença para tratamento
de saúde, pois só assim podiam curar as feridas da pancadaria.
Por sorte eu estava entre os poucos funcionários com menos
ferimentos que conseguiram voltar ao trabalho poucas horas depois. Esse
também foi o tempo necessário para que Sansão, já trancafiado na cela
surda, recobrasse as forças. Ele voltou a gritar e bater a cabeça na porta. O
expediente terminou, mas as pancadas de Sansão continuaram. O episódio
da confusão ainda se repetiu diversas vezes. O resultado era sempre o
mesmo: funcionários feridos e pouca limpeza na cela.
Os capas-brancas só conseguiram entrar na cela três dias depois pela
manhã para anestesiá-lo, costurar os buracos da cabeça dele e limpar toda
aquela imundície. Depois desse episódio, passamos a acreditar que Sansão
tinha feito algum pacto com o diabo. Depois da limpeza, antes do almoço,
Sansão começou a gritar e bater a cabeça na pesada porta de ferro; ele só
parou para comer. A comida era a mesma dada aos outros detentos, servida
em pratos de alumínio com uma colher de plástico.
Devorou a refeição em poucos minutos, jogou o prato e a colher pela
pequena janela na porta da cela e, quando achávamos que a gritaria deveria
parar, aconteceu exatamente o contrário. Sansão passou mais de seis horas
urrando e batendo a cabeça na pesada porta de ferro. Ouvíamos os
estrondos que se repetiam com frequência cada vez maior.
Chegamos à conclusão que nada nem ninguém poderiam detê-lo.
Sansão era um indivíduo que aparentava não sentir dor, medo ou frio. Para
ele, os calmantes serviam como aperitivo, e o sossega-leão, como
estimulante.
A BESTA FERA

Não bastasse a confusão que Sansão provocava, outro interno também se


destacava no quesito pancadaria. Ele era conhecido apenas como Cota. Ele
não possuía movimento nas pernas, que não tinham se desenvolvido e
ficaram pequenas como as de uma criança de seis anos de idade. Em
compensação, seu tronco, ombros e braços eram bem fortes, e com eles
andava de um lado para o outro da cela surda arrastando as pernas.
Mas além de esbanjar rapidez e agilidade ao caminhar usando as mãos,
que estavam sempre sujas, cheias de bolhas e calos, possuía uma apurada
técnica de ataque. Não aguentava apanhar por tanto tempo quanto Sansão,
mas quando se irritava e, por motivos que desconhecíamos, resolvia atacar,
comportava-se como uma jiboia enfurecida.
Agarrava as pernas da presa, arrastando o corpo da vítima junto ao seu.
Em seguida as apertava sem dó e com a força de um animal selvagem,
desejando esmagá-las sem dó nem piedade. Quando algum funcionário
aparecia mancando ou até mesmo com a perna engessada, Cota,
provavelmente, tinha entrado em ação. Ele poderia atacar a qualquer
momento. Um mínimo descuido se transformava em fatalidade.
Para soltar a vítima das garras de Cota, pelo menos uma dezena de
funcionários tinha que sair para dar cabo à missão. Segurávamos a fera pelo
tronco, braços e punhos. Tratava-se de uma tarefa bastante árdua, pois nos
obrigava a ir ao campo de batalha dele, o chão, que também era tão imundo
quanto o da cela de Sansão. Quando uma parte dos funcionários se cansava
de lutar, outro grupo assumia.
Os ataques, que aconteciam quase sempre quando tentávamos fazer a
limpeza da cela, passaram a ficar cada vez menos frequentes. Os remédios
diminuíram pouco a pouco sua fúria. Mesmo assim, não podíamos baixar a
guarda e arriscar. Como uma serpente repousando, podia dar o bote a
qualquer momento. A fúria de Cota esbarrou na medicação que fortalecia
Sansão. Depois de alguns anos de sua chegada, os remédios o
transformaram em um detento babão, que passava dia e noite caído no chão.
Só se arrastava para alcançar o prato de comida. Seus músculos tornaram-se
inúteis.
NEGUINHO DA MADAME

Um funcionário idoso com muito tempo de Manicômio dizia sempre que


tinha matado três esposas de tanto fazer sexo. Quando contava essa história,
ajeitava para trás com a mão esquerda os cabelos brancos já amarelados,
porém com fios bem grossos, enquanto com a mão direita ameaçava abrir a
braguilha da calça e mostrar o instrumento capaz de matar as mulheres. Às
vezes enchia a cueca de panos, erguia o corpo para frente e falava alto:
“Esse aqui matou mesmo e está pronto para cometer mais um assassinato”.
Eu, particularmente, achava que aquelas esposas tinham morrido de tanto
rir.
Nem sempre as brincadeiras tinham esse jeito descontraído. As
refeições para os funcionários durante o turno da noite começavam às seis
horas da tarde e deviam terminar, no máximo, às oito horas da noite, mas
geralmente se estendiam. Até as nove horas da noite, a balbúrdia dos
detentos perturbava nosso sossego. Se chegasse a informação de que uma
confusão podia tomar proporções descontroladas, tínhamos que largar a
comida e partir para resolver o entrevero. Mas nem adiantava a gente voltar:
os funcionários que permaneciam no refeitório acabavam comendo aquilo
de melhor que a gente tinha deixado para trás. Não perdoavam o suco, a
coalhada, o pedaço de queijo, o doce de abóbora ou qualquer outra
guloseima. Antes de sair correndo para atender uma emergência, eu me
protegia e cuspia na minha comida. Detestava ter que parar de comer para
correr atrás de um preso que aprontava.
Tanto no Hospital Central quanto no Manicômio Judiciário, alguns
internos eram conhecidos como boca de rancho. Por mais que comessem à
vontade no horário das refeições, nunca estavam satisfeitos. Aqueles sacos
sem fundo sempre pediam mais. Viviam pendurados nos funcionários
implorando por mais uma concha de feijão, uma banana extra ou qualquer
outro alimento do cardápio do dia.
Um dos bocas de rancho que mais chamavam a atenção era o
Neguinho da Madame. Assim como outros internos, poucos o conheciam
pelo nome verdadeiro. Todos o chamavam por Neguinho ou Madame. A
escolha dependia da intimidade.
Quase nada tirava do sério aquele homem baixinho, negro, alegre e
com cara de bebê chorão. Até quando os funcionários o chamavam de boca
de rancho, ele levava numa boa. Mas às vezes acordava virado e dava
trabalho. Rápido e ligeiro na capoeira, de repente atacava quem se atrevia a
mexer com ele, além de quebrar tudo que via pela frente. Por essa razão,
poucos pacientes ousaram arrumar briga com o Neguinho da Madame nos
pátios. Aqueles que tentaram sofreram com a habilidade dos seus golpes.
Em um piscar de olhos a gente via a vítima voando, para logo em seguida
cair no chão como uma fruta madura.
Um ou outro funcionário sempre pregava a mesma peça nele na hora
em que os internos chegavam na fila para pegar o café da manhã. Neguinho
recebia um pão minúsculo e uma fruta bem machucada. Antes de ele pegar
sua porção, o paciente da frente ganhava um pão grande e uma fruta bem
bonita. Ele olhava para o pão e para a fruta por alguns segundos e, depois,
balançando a cabeça, dizia: “Será possível!”. Não nos cansávamos de cair
na gargalhada.
Por incrível que pareça, ele perdoava a brincadeira com o pão e a fruta,
mas seu olhar acompanhava cada movimento de quem servia a caneca com
leite, achocolatado ou café, e, se o funcionário a enchesse só com um
tiquinho, a fúria tomava conta dele. Em um piscar de olhos, ele atirava a
caneca de alumínio na parede e saía gritando e xingando todo mundo que
estivesse no recinto. Quando terminava toda a gritaria e a confusão, alguém
ia até ele e levava outra caneca bem servida, um pão e uma fruta. Ele nunca
atacou um funcionário.
Manteiga era o nome do seu companheiro. Os dois andavam juntos
pelos pátios e corredores do Manicômio. Com traços delicados, olhos
verdes e pele clara, não foram raras as vezes em que alguns pacientes
tentaram dominá-lo e fazê-lo de garoto. Como também era capoeirista,
conseguia se defender com maestria. E quando a coisa ficava feia,
Neguinho também aparecia para livrá-lo dos apuros.
Mas um dia parecia que os golpes e a habilidade como capoeirista não
seriam suficientes para salvar o parceiro de Neguinho. De repente, um
círculo se formou no pátio da jogatina. Ele gingava de um lado para o outro
para tentar intimidar um detento que tinha tentado estuprar o Manteiga.
Mesmo assim, ele não tomou conhecimento dos movimentos de capoeira e
partiu para cima do Neguinho. A tentativa de ataque foi frustrada quando o
agressor recebeu um chute na boca; o sangue jorrava sem parar.
Ainda de pé, furioso e cheio de sangue na boca, o detento tirou uma
faca presa no elástico da calça. Aquela arma escondida debaixo da camisa
não era apenas um pedaço qualquer de ferro raspado no cimento do muro
ou do chão de algum pátio. Como ficava enterrada em buracos na terra ou
escondida dentro de ralos de chuveiro ou em tanques de lavar roupa, a
ferrugem que se formava poderia provocar uma grave infecção por menor
que fosse o corte. No buraco, o metal também ficava envolto por pedaços
de ratos mortos. Com o tempo, a carne apodrecia, ajudando a criar na
lâmina uma capa verde conhecida como azinhavre. Além de perfurar
facilmente a carne humana, provocava dor e sofrimento indescritíveis.
Em um piscar de olhos, Madame deu dois saltos mortais para
confundi-lo. Logo em seguida aplicou uma série de rasteiras e conseguiu
tomar a faca sem sofrer um mísero arranhão.
Madame deixou a vítima caída no chão e nem teve tempo de
comemorar a vitória. Bateu com a palma das mãos nas calças para tirar um
pouco da poeira e, quando abriu os olhos depois de tirar o suor do rosto,
avistou três capas-brancas que já o aguardavam. Só conseguiu ver que seu
agressor já estava sendo levado embora dali. Em poucos minutos, Neguinho
foi trancafiado em uma cela comum. Seu oponente recebeu alguns cuidados
na enfermaria, teve todos os dentes arrancados no consultório do dentista e
passou um tempo longe de confusão.
Dias depois, eu e mais dois funcionários fomos à cela onde estava
Madame para dar segurança aos faxinas durante a limpeza. Ele estava
encostado na parede quando começou a encarar um dos meus colegas. De
repente, disse: “Não sei por que não quebro sua cara!”. O funcionário nem
deu bola. Já sabia que o Neguinho da Madame não brigava com
funcionários nem mesmo quando o sacaneavam na hora do café da manhã.
Então o capa-branca deu um tapinha no rosto e em tom de gozação disse:
“Tá aqui, quebra!”. Mal a frase chegou ao fim, o capa-branca recebeu uma
forte pancada com o peito do pé direto no nariz. Só deu tempo de ver meu
colega cair no chão. Foi um baita tombo!
A partir daí, a confusão tomou conta da cela. Madame ficou livre, leve
e solto para distribuir pancada em todo mundo, sendo quase impossível
imobilizá-lo e, por isso, todos nós ficamos bem machucados. A bagunça foi
tanta que nem me lembro quantos golpes recebi. Já com as roupas em
frangalhos, conseguimos dar uma surra exemplar no Madame. Sem forças
para levantar do chão, aplicamos nele um sossega-leão e, finalmente, os
faxinas puderam limpar a cela.
Quando o castigo terminou, Madame já não era mais visto como um
interno inofensivo. As brincadeiras na hora do café da manhã não
aconteciam mais. Ninguém ousava entregar-lhe uma maçã amassada ou
apenas colocar um golinho de café na caneca dele.
Nessa época, a bolsa de apostas tentava organizar o confronto entre
Madame e Manteiga. Os fofoqueiros de plantão espalhavam boatos,
dizendo até que o Madame tinha um caso com um capa-branca. Outros
internos escondiam os objetos um do outro para provocar a desconfiança
deles e incitar uma briga. Mas nada foi capaz de acabar com a tranquilidade
do casal, que deve ter vivido feliz para sempre.
ROSEMIRO, O BOXEADOR

Era difícil colocar a cabeça no travesseiro e acordar com a certeza de que


nada aconteceria de mau durante um longo dia de trabalho. Os internos
também pensavam assim; a violência poderia irromper qualquer momento.
Brigas e tentativas de estupro eram constantes. Existiam aqueles que não se
preocupavam porque conseguiam se defender sozinhos. Esses afortunados
acumulavam dinheiro e poder, dois ingredientes que garantiam proteção.
Sem um tostão, Rosemiro parecia não se preocupar com algo que
ameaçasse sua tranquilidade. Com os ombros caídos, perambulava a passos
lentos pelos corredores e atravessava calmamente os pátios, balançando as
mãos para frente e para trás. Parecia sempre estar com sono por causa dos
fortes medicamentos que recebia.
Ninguém poderia imaginar que um dia aquele homem molenga,
conhecido como o Pelé do Boxe, já tinha sido campeão sul-americano.
Diziam que depois de fraturar o braço direito ao cair de mau jeito durante
uma luta, viu-se obrigado a interromper uma carreira promissora e
vitoriosa. Por deixar de receber o tratamento adequado, não servia mais
para subir nos ringues e disputar competições. Abandonado até pela família,
nunca mais lutou.
Afastado do pugilismo, não conseguiu vencer a batalha contra a
depressão. Em uma noite de solidão, enlouqueceu. Começou a gritar e a
quebrar tudo que via pela frente em casa. Os vizinhos assustados chamaram
a polícia, e Rosemiro deu muito trabalho até ser dominado e colocado no
rabecão da polícia.
Ao chegar ao Manicômio Judiciário, por ser considerado agitado e
perigoso, passou a tomar muitos medicamentos. Aos poucos perdeu a
agilidade dos tempos áureos, nos quais desviava dos adversários como um
bailarino e derrubava-os com golpes certeiros dados por suas mãos
extremamente grandes e robustas
Tranquilo e extremamente educado, nunca deixava de falar “por favor”
e “obrigado”. Depois de pendurar as luvas, apenas jogava longas partidas de
damas e xadrez com outros presos e funcionários. Quando executava uma
jogada de mestre, dava uma boa e sonora gargalhada.
Os jogos de tabuleiro, juntamente com a medicação, contribuíram para
que sua forma física decaísse. Engordou e, no lugar dos músculos, ganhou
uma senhora barriga.
Rosemiro podia ser lento quando andava, falava e comia. Mas, se
tivesse que se defender de uma agressão, despertava rapidamente e voltava
à velha forma. Alguns detentos, sem imaginar as consequências, tentavam
fazê-lo de garoto. Para se livrar da ameaça, gingava por alguns segundos,
olhava para a linha de cintura do oponente e desferia um golpe no queixo,
fígado ou estômago. A patada de Rosemiro era mais potente do que
qualquer outro sossega-leão disponível nos armários da enfermaria.
O ex-campeão dividia um dormitório do primeiro andar com outros 47
detentos. Dois deles se destacavam: Gibi e Cruzada. Diferentemente de
Rosemiro, que quase não abria a boca, a dupla conversava com todo mundo
e gostava, às vezes, de uma boa briga.
Rosemiro nunca saía do sério. O pugilista só batia quando era
ameaçado e nunca provocava os detentos à toa. No entanto, seus colegas de
cela sabiam que barulhos durante a noite o deixavam bastante incomodado.
Em uma noite gelada de inverno, já passava das nove da noite, e a paz
reinava absoluta no dormitório. Ninguém ouvia nem um pio sequer. De
repente Gibi e Cruzada começaram a conversar cada vez mais alto.
Rosemiro, enrolado no cobertor, pediu para que falassem mais baixo.
Obviamente, pediu “por favor” e quando ficaram quietos agradeceu com
seu famoso “obrigado”.
Bastaram alguns minutos para que Cruzada pegasse um violão para
começar a ensaiar alguns acordes. Rosemiro calmamente pediu para que
parassem novamente. A solicitação foi em vão. Além de dedilhar o
instrumento, Gibi começou a cantarolar. Cruzada percebeu que isso estava
irritando o companheiro de quarto e passou a fazer mais barulho, tocando
qualquer coisa sem afinação.
Rosemiro teve paciência suficiente e pediu cinco vezes para que se
calassem. Em nenhum momento levantou a voz ou ameaçou a dupla de
músicos. Porém, quando Gibi gritou “Cala a boca, maluco! Vai dormir e
não enche o saco!”, o ex-lutador se levantou calmamente, saiu da cama e
caminhou até o canto onde a dupla estava.
Sem hesitar, tomou o violão do Cruzada e o arrebentou. Sobraram só
cacos de madeira e cordas espalhadas pelo chão.
Gibi parou de rir e cantar e foi para cima de Rosemiro. Antes de
qualquer tipo de ataque, levou um soco que abriu seu supercílio na hora,
fazendo voar sangue para todo o lado. Cruzada se deu conta do perigo e
também tentou acertar Rosemiro. No entanto, tomou um cruzado na região
do baço e um murro na boca. Caiu como um saco de batatas.
Como a gritaria tomou conta do dormitório, uma verdadeira plateia se
formou em volta de toda aquela confusão; eu e outros funcionários
corremos até o local. Abrimos a porta e, ao entrarmos, vimos dois crioulos
fortes arrebentados no chão. O destino dos nocauteados foi a enfermaria,
onde receberam medicação e alguns pontos na cara. Em seguida, foram
levados para o confinamento em celas separadas. Depois de carregá-los,
nossas capas brancas ficaram manchadas de sangue. Outros funcionários
realizaram a remoção de Rosemiro para uma cela. Dessa vez, o prêmio pela
vitória foi a solitária. Ele encaminhou-se para sua punição sem reagir.
No primeiro andar, além dos dormitórios dispostos nas laterais do
corredor principal, no setor correspondente à entrada do Manicômio, havia,
à esquerda, algumas salas. A maioria tinha os armários onde guardávamos
nossas roupas e pertences do dia a dia. Mais além, separadas desse setor por
um corredor, ficavam a enfermaria e a sala dos medicamentos. Entre elas,
no fundo do corredor, localizavam-se os banheiros dos funcionários.
À esquerda, ficavam os dormitórios do Seguro, a ala reservada aos
xaropes, detentos muito parecidos com os louquinhos do Hospital Central, e
em frente, separados por um corredor onde havia a coluna de chuveiros
colada à parede, encontrávamos os dormitórios dos evangélicos e dos
detentos que trabalhavam no Manicômio. O corredor entre os dois
conjuntos de dormitórios possuía um portão que permanecia trancado à
noite.
Depois de uma semana trancafiados, Gibi e Cruzada ainda se
recuperavam da surra com curativos no rosto, mas sempre víamos a dupla
treinando boxe em algum canto do pátio da esquerda. Pela manhã faziam
flexões, abdominais e pulavam corda. Ficavam extremamente suados. Iam
até uma torneira, lavavam o rosto e começavam a sessão de levantamento
de peso. Haviam improvisado duas latas de tinta cheias de cimento
suspensas por uma vara de madeira que envergava até o limite. Por pouco
não partia ao meio.
Passavam a tarde socando um saco de farinha cheio de areia e de
trapos velhos preso a uma escada velha em um dos muros do Manicômio.
Acho que tinham colado naquilo a foto do Rosemiro. Também enfaixavam
a mão com trapos e davam socos nas paredes de concreto puro. Essa era a
rotina dos dois: café da manhã, treino, almoço, treino, tranca, jantar...
Enquanto a dupla Gibi e Cruzada treinava forte, Rosemiro permanecia
trancafiado apenas tomando remédios, sem ver a luz do sol. Ao ser liberado,
dissemos que, se quisesse, poderia ser transferido para algum dormitório da
Ala dos Crentes. Ele sabia que nessa ala também ficava o Seguro; quem
estava ameaçado não corria nenhum risco por lá. E também não havia
muitos crentes, no máximo uns vinte. No dormitório deles também
moravam alguns detentos que trabalhavam. À noite, o portão trancado
oferecia uma dose a mais de segurança.
Rosemiro não aceitou a proposta mesmo quando soube que
provavelmente uma revanche aconteceria em breve. Os três ficaram no
mesmo dormitório e, por incrível que pareça, nenhuma confusão aconteceu.
Depois de dois meses de preparação, a dupla já se sentia apta para
enfrentar o Pelé do Boxe. Funcionários e detentos já haviam organizado
uma bolsa de apostas. Rosemiro não se incomodava. Depois da temporada
no isolamento, falava menos ainda e nem jogava damas ou xadrez. Apesar
de Rosemiro estar mais molengão do que nunca, todos estavam ansiosos
para assistir à luta do século que aconteceria entre as muralhas do
Manicômio Judiciário do Juquery.
Já fazia dois dias que Gibi e Cruzada haviam abandonado os treinos.
No terceiro dia, a dupla desceu para tomar café bem cedo. Chegaram antes
de todo mundo e esperaram Rosemiro fazer a refeição. No final, ele saiu
caminhando muito lentamente na direção do pátio, se escorando nas
paredes.
Cruzada e Gibi foram ao seu encontro e começaram a empurrá-lo na
direção de uma das paredes da muralha do pátio. Em poucos segundos se
formou um semicírculo de internos em volta dos lutadores. A dupla
escolheu o pátio da jogatina para a revanche por ser uma área ampla, livre
de camas, e onde os apostadores poderiam se reunir.
Rosemiro tropeçou e, mesmo com tontura, levantou-se. Cruzada e Gibi
chamaram o ex-campeão para a luta. Quando ficou de pé, só conseguia se
esquivar para se defender dos golpes, que vinham a quatro mãos. Parecia
que daquela vez Rosemiro sairia derrotado. Os apostadores deliravam.
De repente, Rosemiro passou a mão direita no rosto para se
transformar em uma inacreditável máquina de bater. Olhava fixamente na
altura da cintura dos oponentes e desferia golpes com uma velocidade
incrível. Dividia os socos entre Cruzada e Gibi, reservando murros bem
dados ao estômago, fígado e rosto.
Os desafiantes não conseguiram escapar. Caíram pelo menos cinco
vezes. No final, nocauteados em uma luta que durou poucos minutos, os
rostos de Cruzada e Gibi ficaram desfigurados. Não dava para distinguir
quem era quem. Os hematomas pelo corpo também atestavam o quanto
haviam apanhado.
Depois do combate, descobrimos que alguns comprimidos tinham
sumido do armário da enfermaria naquela madrugada. Como acontecia em
todos os setores do Manicômio, pacientes também ajudavam no serviço na
enfermaria. Havia uma lista de suspeitos e um montão de boatos de como
os remédios teriam aparecido no café de Rosemiro, mas nada jamais foi
confirmado.
Gibi e Cruzada passaram uma temporada amarrados em camas na
enfermaria, cheios de curativos. Quando melhoraram, passaram outra
trancafiados em celas individuais. De volta ao dormitório, não ousaram
encarar Rosemiro nunca mais.
O pugilista, depois de ficar mais uma vez de castigo, aproveitou a paz
e o silêncio todas as noites antes de dormir, além de acumular mais um
título em sua vitoriosa carreira: havia derrubado dois adversários na mesma
luta.
O DETENTO INTRAGÁVEL

Charuto não ia com a minha cara e eu não ia com a cara dele. Apesar de
possuir bom relacionamento com a maioria dos capas-brancas, comigo a
história era outra. Eu não prestava muita atenção na figura dele; apenas
recordo que era comprido e roliço da cabeça aos pés. Além desse detalhe
que lhe valeu o apelido, lembro-me muito bem de seu comportamento, que
me incomodava bastante.
Tinha como hábito dar boas-vindas aos detentos que adentravam as
muralhas, levando-os para o dormitório dele no primeiro andar, próximo da
escada usada pelos detentos. Gostava de recepcionar principalmente os
fracotes e delicados, transformando-os em seus garotos. Usava e abusava
deles. Depois os deixava de lado quando outra novidade chegava. Os
detentos que abusavam sexualmente dos garotos eram chamados de
fanchos.
Possuía uma lábia bastante eficiente. Dizia que havia muita gente
perigosa lá dentro e oferecia os cuidados de um irmão mais velho. Quando
esse papo não colava, usava força e ameaças. Com um sorriso no rosto,
falava que poderiam amanhecer com um monte de formigas na boca. Se
essa tática não desse certo, pegava as vítimas pelo pescoço e só sossegava
quando saciava seus desejos. Também se aproveitava da fraqueza
provocada pela medicação aplicada em suas vítimas.
Descobri a artimanha de Charuto por acaso. Um dia eu estava no pátio
de visitas quando uma senhora com os olhos úmidos, quase a ponto de
chorar, se aproximou de mim, me encarou e fez um pedido com a voz
embargada: “Por favor, gostaria que o senhor tomasse conta do meu filho.
Ele está aqui, mas tem uma mente muito infantil”.
Em seguida, apontou para um rapaz magrinho e branquelo e disse:
“Ele é bobo! Os outros vão tomar as coisas dele. Eu pago...”. Antes de
continuar a frase, respondi que ela poderia ficar sossegada. Com a voz
firme, eu a tranquilizei: “Vou olhar seu filho. Não quero receber nada. Esse
é o meu trabalho”.
Eu me lembrei da história que meu primo tinha contado — certo dia,
um recém-chegado foi disputado pelos caçadores de garotos. A disputa para
ver quem traçava aquele novato aconteceu no palitinho.
No mesmo dia, Charuto puxou conversa com aquele rapaz que tinha
chegado há poucos dias. Quando os dois subiram para o dormitório, eu os
segui. Percebi na hora que ele estava sendo camarada demais com o rapaz.
Deixei que Charuto o conduzisse até a cama dele para ver onde aquela
história terminaria. Entrei e, sem dar qualquer explicação, retirei a vítima da
cama e a levei para longe dali. Esse episódio acendeu o estopim de uma
verdadeira guerra. Charuto levava a vítima para a cama e eu a retirava das
mãos dele.
Nenhum funcionário ainda tinha desafiado o Charuto, pois ele tinha
muita influência dentro do Manicômio. O silêncio dos outros presos
também o ajudava a saciar seus desejos. O comportamento de um cagueta
ou dedo-duro não tinha boa receptividade lá dentro. Espancamentos,
amputação da língua, dedos e mãos, além de uma infinidade de crueldades,
inclusive a pena de morte, serviam como punição para o detento que dava
com a língua nos dentes.
Essa perseguição aconteceu incansavelmente por mais ou menos duas
semanas. Fui vencido pela escala montada pelos meus superiores. Tirei
folga e, quando retornei, encontrei o novato na enfermaria, de bruços, todo
arrebentado: eu havia decepcionado aquela pobre mãe. Mesmo assim,
busquei forças para tentar apagar o fogo do Charuto.
Contei o ocorrido a outros capas-brancas. Alguns me apoiaram.
Outros, acomodados, simplesmente davam as costas e ignoravam aquilo
que me preocupava. Descobri que muitos internos bobinhos já tinham
passado pela cama de Charuto.
Encaixei, por conta própria, uma tarefa dentro da minha lista de
afazeres. No início da noite, quando os internos começavam a se recolher,
eu o seguia. Caso o perdesse de vista ou outra tarefa não me permitisse
acompanhá-lo, entrava no dormitório onde ficava sua cama. Sem dar
explicações, eu levantava os lençóis para ver se algum bobinho estava
escondido.
Perdi a conta de quantas vezes encontrei as vítimas de Charuto
amedrontadas, esperando pelo pior. Aos poucos, minha presença se
transformava em uma enorme pedra no sapato dele. Até nas minhas folgas,
um ou outro colega, que, depois de eu muito insistir, tinha se aliado à minha
causa, esforçava-se em vigiar esse detento insuportável.
Se calhasse de ter que trabalhar no turno noturno, eu chegava antes das
seis horas da tarde para dar tempo de acompanhar a entrada dos internos
nos dormitórios. Depois de picar meu cartão, subia as escadas correndo para
fazer minha conferência na cama daquele intragável. Salvei a pele de vários
internos que poderiam se transformar em garotas. Com o tempo, por eu
conseguir frustrar os planos dele, Charuto passou a trocar de dormitório. Ele
deixava na cama travesseiros ou cobertores enrolados para tentar me
despistar.
Por outro lado, meu faro começou a ficar cada vez mais apurado, e, de
dormitório em dormitório, eu acabava encontrando esse predador. Os outros
capas-brancas também me informavam se alguém tinha visto o Charuto em
outro dormitório que não o dele.
Evidentemente, nem sempre eu conseguia estragar a festa. Em dias de
folga ou se alguma emergência me prendesse, ele fazia seus trambiques,
apesar de eu ter conseguido fechar o cerco. Mas, como toda ação possui
uma reação, Charuto também começou a querer dar o troco.
Certa feita, eu havia sido escalado para o turno da noite, dessa vez para
cobrir a folga de um funcionário que estava doente. Acompanhávamos a
subida dos internos nos corredores dos dormitórios, quando Charuto passou
por mim acompanhado de três colegas. Esses internos não faziam parte de
sua coleção de garotos. Altos e fortes, havia alguns dias podiam ser vistos
passando a tarde conversando com ele no pátio. Cada um, inclusive o
Charuto, acenou a cabeça para me cumprimentar, franzindo a testa após um
seco “boa noite”.
Como naquele ambiente um pingo era letra e qualquer atitude tinha um
porquê, fiquei preocupado com a novidade. Depois que a perseguição se
intensificou, Charuto nunca subia para o dormitório logo que os primeiros
internos começavam a se recolher; ficava perambulando pelos pátios na
esperança de eu estar ocupado resolvendo alguns problemas. Assim ele
tentava levar a presa sem que eu a visse.
Já haviam se passado mais de duas horas desde a hora da tranca.
Apenas os capas-brancas circulavam pelos corredores. Os internos estavam
descansando depois da costumeira troca de objetos e do pagamento do
prêmio do jogo do bicho. Os dormitórios só seriam abertos de manhã cedo.
Enquanto eu conversava com outros dois funcionários, um passarinho
apareceu e me contou: “Toma cuidado! Já armaram uma pra você!”.
Passei a noite com a pulga atrás da orelha. Na hora do café da manhã,
antes de os internos começarem a descer, entrei no refeitório e avistei
Kaneu e Cochu, dois internos responsáveis pela limpeza do refeitório dos
funcionários e chefes do dormitório onde dormiam. Ambos olharam para
mim e se mostraram bastante apreensivos.
Um funcionário se aproximou e me contou que o chefe responsável
pelo controle dos alimentos estava me procurando para esclarecer a
denúncia de que eu havia surrupiado e trancado um saco de feijão em um
dos armários do refeitório para levá-lo para casa.
Felizmente, isso não passou de um boato; o autor da denúncia nunca
apareceu. Eu desconfiava de quem queria armar confusão para o meu lado.
Mesmo assim, o administrador me chamou para conversar. Com a
consciência tranquila, expliquei que eu sempre participava da entrada de
alimentos. No entanto, eu só executava essa tarefa durante o dia. Quando o
saco de feijão sumiu, eu estava trabalhado no turno da noite.
Antes de chegar à saída, o corredor principal do térreo desembocava
em um portão. Um percurso de quinze metros garantia o acesso ao portão
de saída. Esses portões nunca ficavam abertos ao mesmo tempo. Nós, os
capas-brancas, acompanhados de alguns detentos de confiança,
carregávamos em pesados caldeirões ou em macas as frutas e alimentos,
como carne, frango, arroz, feijão ou qualquer outro item. Caminhões e
peruas descarregavam os produtos do lado de fora do prédio, onde também
ficava a cozinha.
A cozinha se localizava ao lado do Batalhão da Polícia Militar. Sendo
assim, as refeições também serviam os policiais que trabalhavam por ali.
Não tenho ideia de quantas toneladas de alimentos chegavam diariamente;
porém, para se imaginar a quantidade de comida preparada, além da
caldeira, as panelas tinham cerca de dois metros de altura por três metros de
largura. Dava para assar uns dois detentos nela. As carnes e alimentos
perecíveis ficavam armazenados em enormes câmaras frigoríficas.
Quem trabalhava na cozinha ou acompanhava a chegada e o transporte
de alimentos, fosse funcionário ou detento, sempre passava por uma revista
bastante rigorosa. Às vezes ficávamos com alguma coisa que sobrava, mas
sempre em pequena quantidade. Nunca passava de uma laranja ou uma
lasca de queijo com goiabada; comíamos lá mesmo. O administrador se
convenceu de que não havia lógica em um funcionário querer levar do
manicômio um volume tão grande de feijão. Eu teria que passar com um
saco de cinquenta quilos nas costas por todos os setores administrativos
bem na hora em que a maioria dos funcionários estaria chegando. Além
disso, capas-brancas, médicos, contínuos, secretárias, entre outros
funcionários, teriam me visto passando com toda aquela carga. Havia
apenas dois portões naquele enorme edifício: um na saída e outro na
entrada.
Quando o falatório sobre o sumiço do feijão estava para terminar, meu
nome começou a ser ouvido novamente da boca de alguns internos. A
boataria começou a se espalhar depois da noite em que ouvi sussurros
abafados no dormitório do Charuto. Com extremo cuidado, empurrei a
porta, que ainda não estava trancada, e flagrei um interno magrinho,
completamente nu, parado enquanto Charuto se preparava para sodomizá-
lo. Puxei o rapaz pelos braços e o cobri com um lençol para levá-lo à
enfermaria. Além de quase ser violentado, estava ardendo em febre.
Charuto se deitou e não disfarçou sua cara de poucos amigos. Consegui
deixá-lo trancafiado em uma cela por duas semanas.
Passei quinze dias sem me preocupar com nada. Mas quando Charuto
saiu da solitária, começou a circular pelos corredores do Manicômio o
boato de que uma fuga poderia acontecer a qualquer momento.
Chegaram a dizer que eu era uma das mentes responsáveis por
arquitetar o plano. Também corria a fofoca de que eu estava participando
das reuniões para facilitar a saída dos internos. Na verdade, outro
passarinho me contou que meu nome havia sido mencionado nessas
reuniões por outra razão.
Os detentos escapariam quando eu estivesse próximo aos portões dos
corredores. No meio da correria, mais conhecida como cavalo doido,
alguém meteria o ferro em mim e em quem mais estivesse no caminho. Não
daria tempo nem de ver quem iria me furar.
Felizmente, eu já começava a contar com a proteção de um detento que
parecia meu guarda-costas quando os boatos começaram a se espalhar.
Mesmo assim, passei alguns dias com medo de sentir a lâmina fria
atravessando minhas entranhas. A morte poderia aparecer a qualquer
momento.
Aos poucos, a visita da Dona Morte foi sendo adiada. Também passei a
contar com a ajuda dos chefes de disciplina, que intensificaram a vigilância.
Dois pentes-finos nos dormitórios deixaram o Manicômio livre de qualquer
arma que poderia ser usada durante uma fuga. Alguns suspeitos tomaram
algumas semanas de solitária. Outros receberam altas doses de calmantes,
permaneceram dopados por um bom tempo e foram vigiados de perto.
Charuto também se acalmou. Ele passou a dormir antes da hora da
tranca, e eu já não o via cercando os novatos. Depois, deixou de circular
pelos corredores e descer para os pátios durante o dia. Foi emagrecendo até
o dia em que o encontrei sozinho em uma das camas da enfermaria. Tinha
contraído tuberculose. Perdeu o fôlego e a vontade de converter detentos
recém-chegados em garotos.
O GUARDA-COSTAS

Apesar de os guardas das muralhas, que faziam parte da Polícia Militar,


vigiarem a todo o momento o Manicômio Judiciário, era impossível ver o
que acontecia dentro das celas durante o dia ou depois da tranca. Também
não dava para ouvir aquilo que os presos conversavam no pátio; só se
escutava o barulho da confusão quando a coisa saía do controle. Alguns
policiais tinham permissão para entrar no Manicômio, mas só eram
convocados mediante pedidos de seus comandantes para restabelecer a
ordem em uma rebelião e evitar que os funcionários fossem feitos reféns.
Em outras palavras, não tínhamos proteção nos pátios, nas celas, nas
escadarias, no tira-fogo e mesmo no refeitório dos internos: valia a lei do
mais forte. Quem vacilava podia ser vítima de qualquer tipo de violência,
quando menos esperasse. A tensão reinava lá dentro. Tínhamos que
conviver com uma multidão de psicopatas, bandidos, estupradores,
esquartejadores, entre outros internos capazes de cometer qualquer tipo de
atrocidade.
Apesar de a gente se desdobrar para evitar qualquer tipo de desordem
lá dentro, em uma manhã, depois da abertura das portas dos dormitórios, vi
uma cena pavorosa. Um detento estava com mãos e pés amarrados na cama.
O pescoço cortado derramou sangue empapando os lençóis. Com os olhos
abertos, parecia que olhava para mim. Por diversas noites, aquela imagem
atrapalhou meu sono. Eu acordava assustado, suando frio.
O dia a dia estava repleto de surpresas desagradáveis, mas o que fazer
para nos protegermos de um possível ataque rápido, eficiente e letal? A
proteção nascia de acordos. Alguns funcionários escolhiam um interno para
dar um apoio, ou vice-versa. A moeda de maior valor era a confiança. Se o
acordo fosse quebrado, no entanto, a dívida a ser paga continha juros
altíssimos; a vida estava em jogo.
Tive a sorte de conhecer um interno que aos poucos foi se
aproximando de mim. Ele me estudava, e eu, desconfiado, também ficava
atento ao comportamento do Serra Grande. Apesar de falar apenas o
essencial, quando me dei conta Serra Grande estava sempre me
acompanhando. Caminhava pelos corredores, pátios, celas e escadarias
sempre com um olho grudado em mim. Agia discretamente, como um
guarda-costas profissional. Pelo que consigo me lembrar, no começo Serra
Grande também oferecia proteção a outros funcionários, mas com o tempo
fiquei com serviço exclusivo.
Com dois metros de altura, a presença de Serra Grande intimidava
qualquer um. Além da estatura avantajada, o guarda-costas tinha músculos
bem definidos. As veias dos braços eram bem grossas. Quem teve a
infelicidade de levar um simples tapa jurava que suas mãos eram tão
pesadas como marretas. Ninguém em sã consciência pensaria em arranjar
confusão com ele — apesar de o Manicômio realmente não abrigar muitas
mentes saudáveis.
Quando não estava de olho nos meus passos, passava o dia inteiro
tranquilo. Não se metia em encrenca nem pensava em fugir ou levar
vantagem sobre outro preso. Eu tinha a impressão de que Serra Grande
queria apenas cumprir seu destino encarcerado dentro das muralhas do
Manicômio Judiciário.
Com a ficha limpa, nada podia atrasar sua saída, que, mesmo assim,
ainda levaria um bom tempo. Graças ao comportamento exemplar e aos
serviços que prestava, Serra Grande possuía alguns privilégios. A comida
dele era guardada e servida separadamente. O café, mercadoria cara naquele
lugar, chegava a Serra Grande um pouco mais encorpado e, ao cair da noite,
ele recebia uma cota extra. Essa era a vida dele e de outros internos que
desempenhavam a função de guarda-costas de alguns capas-brancas como
eu.
Outros funcionários sabiam que eu contava com a proteção de Serra
Grande. Certo dia, até fizemos uma vaquinha para comprar um radinho de
pilha. Para minha surpresa, nunca vi o Serra Grande de ouvido colado no
rádio. Ele só ligava o aparelho quando estava de folga, ou seja, quando eu
também não estava trabalhando. Além do rádio, ganhou um barbeador
elétrico por ser extremamente asseado. Gilete, nem pensar; navalha, nunca.
Bastava um descuido mínimo para aquela arma cair nas mãos de outro
interno, e não queríamos encontrar ninguém com a garganta cortada.
Alguns internos que andavam limpos e com o uniforme sem manchas,
como o Serra Grande, trabalhavam durante o dia nos refeitórios ou na
limpeza dos escritórios e consultórios. Só os guarda-costas não eram
convocados para esses serviços. Quem selecionava os internos aptos a
ajudar nos refeitórios eram os chefes de disciplina. Esses auxiliares
trabalhavam na limpeza, carregavam a comida que chegava, lavavam pratos
e talheres. Além disso, serviam os internos e até mesmo os funcionários.
Em menor número, havia detentos encarregados da manutenção dos jardins.
Nas horas vagas, ainda faziam bico para garantir uns trocados: vendiam
café para os presos que podiam pagar.
Os dois únicos detentos que nunca vi praticando esse tipo de comércio
eram Kaneu e Cochu, os responsáveis pela distribuição de tarefas nos
refeitórios. Por terem a mesma estatura, cerca de um metro e sessenta, e
olhos puxados, alguns internos confundiam um com o outro. Quando
alguém se enganava, um dos dois dizia: “Japonês não é tudo igual!”. Na
verdade, o Cochu usava óculos e tinha aparência de intelectual. Já o Kaneu
era mais velho e um pouco mais magro.
Um senhor de barba branca, baixinho, porém forte, conhecido como
Carneiro, trabalhava com a dupla Kaneu e Cochu, mas nunca olhava nos
seus olhos. Carneiro tinha ódio mortal desse povo que parecia “tudo igual”.
Diziam que esse detento, antes de entrar no Manicômio, tinha estrangulado
mulheres orientais com uma corda.
Dentro das muralhas ninguém sabia ao certo quantas mulheres haviam
sido vítimas dos ataques de Carneiro. A única certeza de internos e
funcionários era o motivo pelo qual ele tinha sido descoberto: uma das
vítimas sobreviveu ao ataque e lembrou-se de contar à polícia que o serial
killer não tinha o dedo mindinho da mão esquerda. Ninguém conhecia, nem
ele mesmo revelava, a razão de não ter um dedo.
De repente, Carneiro abandonou o trabalho nos refeitórios. Sete golpes
de faca na barriga o impediram de continuar trabalhando. Não se sabe até
hoje quem foi o autor do homicídio que aconteceu na calada da noite.
Acredito que nem o Serra Grande o salvaria dessa.
Mesmo com toda a rotina de trabalho do Manicômio, eu conseguia ter
meus momentos de sossego. Às vezes esticávamos a noitada até o sol raiar.
O baile só acabava quando estava perto da hora de pegar no batente, por
isso chegávamos em frangalhos. Minhas olheiras explicavam ao Serra
Grande que eu devia executar meus afazeres mais urgentes e, logo em
seguida, encontrar um canto no pátio para tirar um cochilo revigorante.
Cabia ao meu guarda-costas me acordar caso meus superiores se
aproximassem.
O momento mais tenso do dia era quando a noite caía. Os presos
esvaziavam os pátios antes da tranca e começavam a subir para os
dormitórios. A multidão se concentrava nas escadarias exclusivas dos
internos e entrava e saía dos banheiros de modo frenético. Enquanto alguns
detentos tomavam banho nos chuveiros, outros aproveitavam para trocar e
negociar todo tipo de mercadoria antes de entrar definitivamente nos
dormitórios. Eram revistas desbeiçadas, com fotos de mulheres nuas,
cigarros, café, roupas e tudo mais que se possa imaginar. Não dava para
entender o que era negociação, conversa, discussão ou briga.
Subir as escadas se transformava em um desafio diário. Nós nos
acotovelávamos com os detentos desde o térreo até o segundo andar. Havia
outra escada, maior, exclusiva para os funcionários, na outra extremidade
do edifício. Mas, como controlávamos o sobe e desce até a hora da tranca,
éramos obrigados a subir com a multidão de presos.
Serra Grande sempre me acompanhava no percurso, entrando comigo
nos dormitórios antes do fechamento geral. Nas ocasiões em que fiquei
responsável pelo famigerado tira-fogo, ele permanecia lá dentro comigo.
Às vezes, durante temporais, as luzes se apagavam. Apesar de o
gerador ser ligado, a energia elétrica não voltava tão rapidamente. Serra
Grande sempre me lembrava para ficar de costas, colado à parede,
protegendo minha retaguarda. Ele permanecia ao meu lado, de ouvidos
atentos a qualquer aproximação.
Certa vez, até o Serra Grande ficou com medo. Ele estava no lugar
errado e na hora errada quando ouviu da boca de outro colega de
Manicômio uma história sobre um grande plano de fuga. Mesmo sem saber
exatamente o que aconteceria, ficou marcado e teve que se preocupar em
cuidar da própria pele.
Os boatos davam conta de que, durante uma reunião entre uma dezena
de presos, um deles dissera que se um funcionário, por mais bacana que
fosse, estivesse no meio do caminho, a ordem era passar por cima sem dó e
apagá-lo. Mais uma vez, meu nome foi citado. Nessa hora eu sabia que não
poderia contar com o apoio do Serra Grande. Mesmo se ele soubesse quem
eram os líderes e abrisse a boca, a justiça das muralhas trataria de aplicar a
pena de morte.
Por sorte minha e do Serra Grande, um dedo-duro abriu a boca, e o
nome dos líderes correu pelos corredores, atravessou os pátios e chegou ao
ouvido dos funcionários. Apesar de ninguém ter certeza de se a informação
era correta, tratamos de isolar os prováveis líderes do movimento para
impedir qualquer tentativa de fuga.
Eu não conseguia ver maldade naquele homem do tamanho de um
armário que havia cometido um crime — que explicava em parte por que
havia sido batizado no mundo do crime com aquele apelido. Nunca se
soube o motivo real, mas diziam que o Serra Grande tinha aniquilado toda a
família a golpes de machado. Quando a polícia chegou, ele havia picado
todo mundo em tantos pedaços que teria sido impossível saber quantas
mulheres, crianças e velhos tinham sido assassinados durante a noite de
terror.
Quando minha esposa deu à luz uma menina um ano antes de as
gêmeas nascerem, o Serra Grande fez uma luminária enorme em formato de
barco para o quarto dela. Infelizmente, o bebê faleceu com apenas quinze
dias.
Sem motivo algum para acreditar que meu guarda-costas poderia ser
um assassino, minha mulher se encontrou com ele, por acaso, no Hospital
Central, na época em que trabalhou como servente. Era comum ver alguns
detentos terminarem de cumprir suas penas nas clínicas psiquiátricas.
Apesar de estar com muita dificuldade para falar, o Serra Grande se
aproximou dela e puxou conversa enquanto ela varria o chão da entrada de
uma das clínicas.
O Serra Grande procurava por mim e já tinha perguntado para muita
gente por onde eu andava. Quando descobriu que estava falando com minha
esposa, abriu um enorme sorriso. Ao saber que tínhamos um filho e três
filhas, ele avisou que mandaria um presente, mas ela nunca mais o
encontrou no Juquery.
Ao chegar em casa, minha mulher me contou que havia encontrado
com um paciente chamado Serra Grande. Naquele instante, bateu uma
saudade muito grande daquele detento que havia dedicado parte da vida
dele a me proteger de diversos apuros no Manicômio. Por pouco não chorei.
Infelizmente, nunca mais o vi. Fiquei com vontade de lhe dizer mais uma
vez a palavra “obrigado”.
OS MISTÉRIOS DE ADAMA

Adama era um sujeito reservado e discreto que passava o tempo


observando, sem perder nenhum detalhe, a movimentação dos enfermeiros,
dos atendentes de enfermagem e dos internos. Os detentos não mexiam com
ele; dava para perceber que era uma pessoa respeitada dentro do Manicômio
Judiciário. Baixinho, cultivava um bigode com pelos castanhos amarelados
sempre penteados para os dois lados. Não se separava nunca do cachimbo,
que levava muitas vezes sem fumo, pendendo para o lado direito da boca.
Apesar de carregar uma barriga protuberante, não integrava o time dos
bocas de rancho.
Permanecia horas a fio lendo tudo que fosse possível, não perdoava
nem bula de remédio. Adama estudava a fundo alquimia, seitas secretas,
história e filosofia. Os livros de matemática também o enfeitiçavam. Só
virava a página depois de esmiuçar todas as fórmulas.
Os livros tinham as folhas cheias de orelhas e as capas tão puídas que
ele mal podia empilhá-los. Quando cansava da leitura, punha-se a desenhar.
Debruçava-se em cima do papel, fechava o olho esquerdo e grudava o
direito na ponta do toco de lápis. Devagarinho, dava forma aos traços que, a
princípio, apenas pareciam rabiscos de criança. O resultado eram
calhamaços de papel cheios de apontamentos e figuras estranhas e curiosas,
diferentes de tudo que eu pudesse imaginar.
Gostava muito de conversar. Por ler bastante, não lhe faltava assunto,
mas não abria o jogo para qualquer um. Só consegui ver os desenhos e me
aproximar dele porque Adama e meu primo José tinham um bom
relacionamento; dois dos livros que compunham a biblioteca de Adama
tinham sido presente dele.
Assim como acontecia com as cartas, a entrada de livros era permitida
mediante uma breve análise de funcionários do setor de disciplina. Mas
como ninguém entendia daqueles assuntos, nada deixava de chegar às mãos
dele. Só que eu nunca soube quem mandava tudo aquilo.
Enquanto alguns detentos se preocupavam em esconder somas de
dinheiro e objetos de valor, Adama não dava importância a qualquer tipo de
bem material. Ele também não apostava nos jogos que aconteciam nos
pátios. Nem se incomodava em deixar de receber visitas. Alguns internos
não escondiam a ansiedade à medida que se aproximava o domingo, ao
passo que ele permanecia no seu canto, como se nada estivesse
acontecendo.
Sem dúvida, seu principal confidente era meu primo. Mas quando ele
estava de folga ou muito ocupado, Adama puxava papo comigo. Nas
primeiras conversas, descobri que Adama era fã de parapsicologia. Até
tirava o cachimbo da boca para contar que, graças a essa ciência, já havia
praticado técnicas capazes de fazê-lo atravessar a muralha do Manicômio
sem precisar derrubá-la.
Muitas vezes acreditei que a saída dele seria possível por meio de
algum um tipo de transporte mental. Graças aos seus vastos conhecimentos
sobre exercícios que exploravam o poder da mente, Adama parecia ser uma
pessoa bem preparada para fazer tal viagem. Acho que ele até merecia
algum crédito, apesar de a história parecer absurda para quem estava lá
dentro.
Quando não estava lendo ou desenhando, concentrava-se e olhava
fixamente para um determinado ponto da muralha por alguns minutos.
Respirava profundamente e depois fechava os olhos. Por alguns momentos
conseguia passar a impressão de não estar mais lá dentro. Aí é que estava a
minha suspeita sobre a capacidade de Adama de se transportar para o lado
de fora do manicômio, mas minhas suspeitas acabavam quando eu o
encontrava novamente nos pátios ou nos corredores.
Confesso que assim que conheci Adama, apesar de não dar muita bola
para ele, passei a respeitá-lo e ouvia seus relatos sobre parapsicologia e
seitas secretas sem rir ou menosprezá-lo. À medida que o tempo foi
passando, os relatos de Adama começaram a despertar um grande interesse
em mim.
Uma das histórias que mais me despertou a atenção era a das fontes
localizadas nas imediações do Complexo Juquery. Adama um dia me disse:
“Existem três fontes de água pura que formam um triângulo de energia.
Quem se banha com a água que jorra de cada uma delas atrai para si
energias que revigoram o corpo e a alma, ganha equilíbrio e outros
benefícios que duram um certo tempo”. Ainda segundo ele, nós mesmos
éramos capazes de quebrar o equilíbrio e os benefícios adquiridos se
praticássemos atos por ele considerados impuros, como manter relações
sexuais, por exemplo.
Ouvi aquelas palavras e permaneci em silêncio por alguns instantes até
que um funcionário me chamou para levar à enfermaria um interno que se
queixava de dores nas pernas. Não tive tempo de reencontrar Adama
naquele dia. Depois da hora da tranca, voltei para casa, jantei e passei a
noite em claro. Revirei na cama tentando imaginar onde estariam aquelas
três fontes.
No dia seguinte, consegui conter minha ansiedade até que Adama
apareceu para conversar comigo. Senti um arrepio na nuca quando ele tirou
o cachimbo da boca e perguntou se eu me lembrava das três fontes. Sem
pensar duas vezes, respondi que sim. Para minha surpresa, ele pediu
desculpas e se retirou. Disse que tinha muita coisa para ler naquele dia.
Passei uma semana com a curiosidade me corroendo. Depois de passar
sete dias me evitando, Adama voltou a falar comigo. Logo de cara, revelou
o local da primeira das três fontes. Ele me perguntou se eu conhecia a
estrada de terra que levava ao campo de aviação de Franco da Rocha.
Também quis saber se eu já tinha passado por aquele lugar antes. Eu
rapidamente respondi que sim, mas Adama afirmou que eu não havia visto
a fonte. Tive que concordar. Na verdade, quase todo mundo conhecia aquela
estradinha e o campo de aviação. Muito raramente aeronaves de pequeno
porte, conhecidas na época pelo apelido de teco-teco, pousavam lá. Muitos
casais de jovens iam lá para namorar dentro dos fusquinhas.
Tive que esperar por mais de um mês até que ele abrisse o bico
novamente. Um dia em que provavelmente acordou de bom humor, ele
finalmente me disse que eu deveria me banhar nas três fontes somente em
uma noite de lua cheia. Mas foi só isso. Eu continuava sem saber onde
ficavam as duas outras fontes e o local exato daquela próxima ao campo de
aviação.
Quando achava que Adama estava só me enrolando, dois dias depois,
de uma só vez ele descreveu para mim com exatidão como encontrar as
outras duas benditas fontes. A primeira ficava na cabeceira da pista. A
segunda fonte estava na estrada que liga Franco da Rocha a Mairiporã,
antes da Quarta Colônia Agrícola do Juquery. E a terceira localizava-se bem
na entrada da cidade, em um largo onde até hoje há uma imagem de Nossa
Senhora de Lourdes dentro de uma gruta. Naquela época, muita gente ia até
lá buscar água por causa da fama de boa qualidade.
Três dias depois da revelação, com a localização exata das três fontes
nas quais eu deveria me banhar, saí do trabalho, fui para casa, engoli o
jantar e avisei minha mulher que naquela noite teria que ficar de plantão.
Nem bem acabei de comer e já estava na rua. Fazia um tremendo calor
naquela noite em que a lua cheia ocupava um céu sem nuvens e repleto de
estrelas.
Percorri a pé quase quinze quilômetros para encontrar a fonte
localizada próxima ao campo de aviação. Depois de lavar minha nuca e
meu rosto com um pouco daquela água refrescante, senti uma leve tontura,
mas nada que me desencorajasse. Do local onde eu estava via-se, lá
embaixo, a quase um quilômetro, a fonte da estrada entre Franco da Rocha
e Mairiporã.
O rio Juquery cruzava o caminho para eu chegar até a segunda fonte.
Tive que andar mais de cinco quilômetros para contorná-lo. Parei para lavar
o rosto mais uma vez, mas, dessa vez, não tive vertigem. Dali me dirigi até
a terceira fonte, na entrada da cidade. Foram mais sete quilômetros de
caminhada. Depois de molhar o rosto, voltei a sentir um mal-estar, dessa
vez bem mais forte.
Vi o mundo ao meu redor escurecendo aos poucos. Meus pés ficaram
pesados, e minha cabeça, mais leve, rodava sem parar. Tive que me sentar
no chão. O único pensamento que fez sentido na minha cabeça foi a certeza
de que Adama não tinha mentido. Só então percebi que a localização das
três fontes formava exatamente... um triângulo. Poucos minutos depois,
sem precisar de remédio, recuperei as forças. Nem parecia que naquela
noite, onde só a lua e as estrelas me acompanhavam, eu tinha caminhado
tanto.
Não sei bem por que, já que não havia recebido essa orientação, mas
me preocupei em tentar pegar sempre a mesma quantidade de água, fazendo
uma concha com as mãos. Adama só me disse para não lavar a cabeça. Eu
só deveria molhar a nuca e o rosto. Eu me levantei fortalecido e relaxado.
Como o dia já começava a raiar, fui direto ao trabalho.
Quando me encontrei com Adama, ele me disse que eu estava
diferente naquela manhã. Eu me calei. Não tinha contado que pretendia
fazer a peregrinação de madrugada nem contei que estava voltando daquela
jornada. Ele, então, tirou o cachimbo da boca e olhou para o céu. Apesar de
ser uma manhã de sol forte, ainda podíamos ver a lua cheia em meio a
algumas nuvens que timidamente se moviam. Saí de fininho para cuidar dos
meus afazeres.
Adama passou a me procurar mais e mais, só que eu nunca tive
coragem de contar que conhecia as três fontes. Mesmo assim, ele começou
a falar que naquele triângulo de energia havia um tesouro: eu nunca saí de
pá e picareta na mão cavando buracos pelas terras de Franco da Rocha, mas
soube que Filotel Beneducci, em 1886, tentou extrair ouro a poucos metros
do local de uma das fontes. Apesar de Filotel ter montado vários
equipamentos sofisticados para a época, só encontrou minérios de pouco
valor e em pequena quantidade. Acho que nunca vou saber se essa região
realmente guarda ouro e outros metais preciosos.
O tempo passava e eu me perguntava onde Adama estava querendo
chegar. Mesmo sendo apenas mais um interno no meio de tanta gente louca,
seus relatos pelo menos tinham começo, meio e fim. Minha curiosidade
ficava dia após dia mais aguçada.
Aquele homem baixinho de bigodes também acreditava que outros
elementos presentes na natureza poderiam virar ouro. Descobri, graças a
ele, que essa transformação não era mágica: Adama dizia que os adeptos da
alquimia, por meio de processos complicados que misturavam matemática e
química, tinham o poder de realizar com sucesso tal transformação. Esses
cientistas buscavam incansavelmente a pedra filosofal, uma espécie de
varinha mágica que teria poderes de curar todas as doenças e prolongar a
vida indefinidamente.
Às vezes, Adama me mostrava seus desenhos e apontava para alguns
símbolos. Pareciam letras de um alfabeto que eu não conseguia decifrar. Em
um dia de calor insuportável, ele me explicou que alguns dos símbolos eram
utilizados pelos alquimistas em seus experimentos.
No meio da conversa, ele revelou que na cidade de Jundiaí havia pelo
menos duas vinícolas diferentes de todas as outras no mundo e que
produziam e engarrafavam dois tipos de vinho tinto, um em pequena e outro
em grande escala. Ambos tinham o mesmo sabor, coloração e cheiro.
Porém, o vinho de produção menor passava por um tratamento especial.
As garrafas tinham que ficar no sereno por sete noites e eram retiradas
ao amanhecer. Caso chovesse, o vinho não era aproveitado, e o processo
deveria ser iniciado novamente. Segundo Adama, calor ou frio em excesso
também quebravam o encanto, e o líquido tinha que ser jogado fora ou
vendido como vinho comum.
Mas se o líquido não tinha nenhuma diferença em relação a um vinho
comum, como diferenciar aquela safra especial? Adama revelou que o
rótulo das garrafas eram pintados à mão com tinta negra e levavam apenas
dois desenhos, que, na verdade, eram símbolos da alquimia. Em uma folha
de papel cheia de rabiscos, ele traçou esse símbolo:

e, logo ao lado, esse outro:


O primeiro significa “tinta negra”, ou seja, a cor da tinta que deveria
ser usada no rótulo da garrafa. Já o segundo, spiritus vini, quer dizer
espírito do vinho, isto é, depois daquele processo ali estava contida toda a
essência da bebida.
Antes de ser consumida, a bebida ainda tinha que passar uma noite em
Parati, no Rio de Janeiro e, não necessariamente no dia seguinte, devia
seguir para Campos do Jordão, em São Paulo, dentro de uma caixa fechada.
Nas duas cidades, a garrafa permanecia no canto de uma porta ou de uma
janela, de maneira que fosse exposta aos raios do sol ao amanhecer ou em
algum momento antes do meio-dia.
Só então era permitido tirar a rolha para beber o vinho daquela safra
especial. Não precisava ser em Campos do Jordão, mas a garrafa deveria ser
conservada na caixa até o momento de ser aberta na presença de uma ou
mais pessoas, fossem amigos ou familiares.
Achei muito estranha aquela história que parecia não fazer sentido,
mas Adama esclareceu que cada cidade tinha algo em comum. Assim como
Juquery, Jundiaí antigamente se escrevia com a letra Y no final, sendo
Jundiay. Parati também: Paraty. Perguntei o que Campos do Jordão tinha a
ver com a letra Y e ele respondeu que, naquela cidade, o ritual tinha que ser
praticado no bairro de Capivary, também com a letra Y no final.
Mas para mim Capivari sempre foi Capivari, assim como Jundiaí
sempre foi Jundiaí; uma letra no final não faria a menor diferença.
Percebendo que a letra Y não era importante para mim, ele me aconselhou a
tirar uns dias de folga para pensar no caso, mas não dei bola. Como eu era
jovem, achei melhor me preocupar com outras coisas.
Enquanto Adama tentava me convencer da importância da letra Y,
percebi que os olhos dele brilhavam intensamente. Aproveitei aquele
momento de empolgação e perguntei se ele já tinha tomado aquele vinho.
Os olhos dele perderam o brilho, e então recebi uma resposta seca: “Quem
prova do vinho alcança prosperidade e vive por muitos anos”. Depois disso,
calou-se, me deu as costas e ficou um bom tempo sem contar novidades.
Depois da revelação dos locais da fonte e do ritual do vinho, Adama
mergulhou em um silêncio profundo. Parecia estar perdido nos próprios
pensamentos. Não conversava mais com ninguém, nem com meu primo,
muito menos com outros internos. Parou de ler, desenhar e fazer suas
anotações.
Só que certo dia despertou daquele sono e apareceu de repente atrás de
mim, cutucou as minhas costas e apontou com o dedo indicador da mão
direita para a minha cara e disse: “Você é uma das pessoas que eu admiro.
Vá até o campo de aviação e chegue lá às seis horas da manhã. Você vai
participar de um ritual”.
Um frio subiu pela minha espinha e um calafrio percorreu meu corpo
dos pés à cabeça. Adama apenas perguntou se podia contar comigo. Sem
conseguir dar outra resposta, engoli a seco e disse que sim. Não sei como
tomei coragem para perguntar o que aconteceria ou se precisava levar
alguma coisa: ele apenas contou que haveria pessoas esperando por mim e
que eu deveria ir em jejum.
Adama percebeu que eu estava aflito. Enxuguei o suor frio da minha
testa com as mãos trêmulas. Ele me tranquilizou, dizendo que tudo daria
certo. Por fim, queria saber se eu estaria lá no dia, hora e local combinado.
Dei minha palavra de honra e aceitei o convite.
Cheguei ao campo de aviação vinte minutos antes. O sol começava a
surgir imponente, atrapalhando minha visão à medida que eu subia a estrada
esburacada e poeirenta de terra rumo ao local combinado. Ventava muito e
o ar estava bem frio. Algo dentro de mim dizia que eu estaria protegido aqui
em baixo, pois lá em cima morava um Deus que comanda todo o universo.
Nem me lembrei de procurar a fonte para me refrescar.
Várias coisas começaram a passar na minha cabeça. Para mim, rituais
eram banquetes com muita comida e vinho acompanhados de orgias. Eu já
estava lá e não tinha a mínima vontade de voltar. A curiosidade fez com que
eu percorresse um caminho longo e difícil. O silêncio reinava absoluto. Não
dava nem para ouvir os latidos dos cachorros ao longe, nos morros da
cidade. Aguardei exatamente no centro na pista, mas antes já tinha
caminhado por todas as laterais do campo tentando adivinhar o local de
onde aquelas pessoas apareceriam. No fim das contas, fiquei de olho na
cabeceira.
Olhei no meu relógio suíço da marca Tissot, um dos meus xodós na
época, e faltavam apenas dois minutos para as seis horas da manhã.
Comecei a andar em círculos de um lado para o outro. Achei que elas
chegariam de onde eu tinha vindo, mas, de repente, vi pontos luminosos na
cabeceira da pista. Esfreguei os olhos e as luzes continuaram a se mover na
minha direção. Aos poucos consegui distinguir três homens segurando
lamparinas. De onde surgiram não existiam estradas, apenas caminhos de
terra sem iluminação, pelas quais não passavam carros. Essas picadas não
se ligavam a uma colônia ou sítio, e ainda havia um lago bem no meio. Era
tudo desabitado.
Apesar de o vento soprar gelado, comecei a suar frio e ficar ainda mais
apreensivo. Levou uma eternidade até eles chegarem. Não consegui mais
me mover. Quando já estavam mais perto de mim, vi três senhores idosos e
gordos — eu esperava que algumas mulheres lindas também os estivessem
acompanhando.
Todos eram muito parecidos. Tinham cabelos e barbas longas e
brancas. Cada um carregava um bornal atravessado, pendurado do lado
direito do corpo. Suas camisas brancas pareciam ser feitas com o mesmo
tecido dos sacos de farinha. Quando acenaram para me cumprimentar,
reparei que usavam um anel de ouro no dedo mindinho da mão direita.
Minha voz quase não saiu quando perguntei o nome deles. Cada um
foi dizendo como se chamava, na sequência, da esquerda para a direita:
Baltazar, Belquior e Gaspar. Para a minha surpresa, eles tinham os mesmos
nomes dos três reis magos. Não sei o porquê, mas com o passar do tempo
passei a notar uma certa ironia nessa resposta.
Então, perguntaram meu nome. Gaguejei e nenhum som
compreensível saiu da minha boca. Percebendo que eu estava nervoso, cada
um quis saber se eu realmente estava preparado. Limpei o suor da testa e
consegui dizer sim três vezes.
Saímos do meio do campo e fomos até a lateral oposta à entrada.
Diferentemente da pista de pouso, que era de terra batida, todas as laterais,
inclusive a que estávamos, eram cobertas por grama rasteira.
Ali Baltazar abriu o bornal e tirou um saco de sal grosso. Enquanto
espalhava o sal pelo gramado, obedeci a ordem de Baltazar para retirar
meus sapatos e meias. Quando terminei, percebi que ele fazia um círculo
com mais ou menos quatro metros de diâmetro. Gaspar entrou no círculo e
colocou três velas brancas acesas, de modo a formar um triângulo; havia
apenas uma pequena abertura reservada para o entra e sai enquanto
acontecia a preparação do local.
Belquior também entrou pela abertura e retirou do bornal um punhado
de gravetos com cerca de vinte centímetros cada. Ele os amontoou como se
fosse fazer uma fogueira e colocou por cima um punhado de folhas grandes,
todas secas. Acendeu um fósforo e, quando o fogo começou a consumir os
gravetos, saiu do círculo. Daquelas folhas e gravetos que queimavam, uma
fumaça começou a subir.
Permaneci imóvel no centro do círculo feito com sal, sentindo o
perfume que a fogueira exalava. Eu nunca tinha sentido um cheiro igual: era
um aroma muito agradável e reconfortante. Então Gaspar entrou no círculo
e tirou do seu bornal uma espécie de taça de ouro. Em seguida a colocou no
chão, próxima da fogueira. Antes de sair, tirou também uma garrafinha com
um líquido vermelho e despejou todo o conteúdo na taça, enchendo-a até
pouco mais do que a metade. Baltazar ainda jogou mais um pouco de sal
grosso em volta do círculo para fechar a abertura por onde entramos.
Continuei apenas observando os três homens, até que Gaspar começou
a me olhar e pediu para que eu repetisse palavras e frases que ele dizia
calmamente. Repeti tudo, mas em nenhum momento me dei conta daquilo
que eu mesmo estava falando. Então se calou e ordenou que eu bebesse o
líquido na taça de ouro. Virei o líquido na minha boca, tinha gosto de vinho
tinto. O fogo já havia consumido quase todos os gravetos e folhas.
Restavam apenas cinzas, mas o perfume continuava no ar.
Durante o ritual, eu não conseguia ver o rosto daquelas três pessoas
vestidas com roupas extravagantes. Ouvia apenas sons estranhos, risos e
vozes dizendo palavras em línguas que eu não compreendia. As coisas
foram voltando a se encaixar e retomei a consciência, quando vi Baltazar
tirar do bornal uma pequena colher, parecida com a de um pedreiro. Então
começou a juntar o sal e as cinzas que sobraram da fogueira já apagada e
colocou tudo no bornal. Depois foi a vez de Gaspar recolher a taça e
guardá-la. Belquior veio em minha direção e estendeu a mão direita,
tocando meu pulso com o dedo indicador. Baltazar e Gaspar repetiram o
mesmo gesto. Os três homens deram as costas, apanharam as lamparinas e
foram embora calmamente pelo mesmo caminho de onde vieram.
E eu ali fiquei, abobalhado, olhando-os sumir na cabeceira da pista.
Quando desapareceram, percebi que ainda estava descalço e sem meu par
de meias. Sentei na grama e calcei as meias e os sapatos. Então, tomei meu
rumo de volta para casa.
Quando cheguei, eu lembrei que tinha três dias de folga pela frente. As
noites que passei depois do ritual foram muito maldormidas. Acordei
diversas vezes no meio da madrugada, com algumas das frases que eu havia
dito quando estava no meio do círculo. Algumas imagens também não
saíam da minha cabeça, como o cálice com vinho e os três homens
barbudos se aproximando.
Acordava morrendo de vontade de ir para o trabalho apenas para
conversar com Adama. Depois desses três dias de suplício, fui ao
Manicômio trabalhar. Assim que bati o cartão de ponto, me dirigi até o
dormitório onde ele vivia e o encontrei encostado na parede ao lado da
porta. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ele pediu para que eu
ficasse calmo.
Não recebi muitas explicações logo de cara, mas fiquei mais tranquilo
quando ele me contou que as palavras que eu havia dito durante o ritual
eram, na verdade, o salmo 30 da Bíblia. Adama, inclusive, repetiu, palavra
por palavra, o salmo inteiro sem consultar nada. Eu, meio hipnotizado, ouvi
aquelas palavras e me lembrei, nos mínimos detalhes, do ritual do princípio
ao fim. Quando falei para ele o nome dos três personagens que estavam lá,
ele pareceu debochar de mim: “Abigail não estava lá?”. Retruquei, um
pouco irritado: “E eu lá sei quem é Abigail, por acaso?”.
Dei as costas e voltei aos meus afazeres. Durante o expediente, tive a
sensação de que havia despertado de um sonho. Parecia que tudo que eu
tinha vivido depois do ritual até Adama repetir o salmo 30 não era real.
No dia seguinte, voltei a conversar com Adama e expliquei o que eu
estava sentindo. Ele disse que tinha percebido minha irritação depois de
mencionar o nome Abigail, pediu desculpas e, então, revelou que ela tinha
sido a mulher que, com pena de Maria, levou-a até a estrebaria onde Jesus
nasceu. Depois perguntei se aqueles três homens do campo de aviação
realmente se chamavam Belquior, Baltazar e Gaspar. Ele só falou que esses
eram os nomes dos reis magos que visitaram o menino Jesus logo após seu
nascimento.
Depois, ele mudou de assunto e começou a contar com riqueza de
detalhes como os reis magos chegaram à manjedoura para entregar os
presentes ao menino Jesus, e por causa disso fiquei sem saber o verdadeiro
nome dos homens que conduziram o ritual do qual participei. Mesmo sem
conseguir saber quem realmente eram aquelas pessoas, perguntei qual seria
o interesse de eles aparecem no campo de aviação para fazer tudo aquilo
comigo. Mantendo a serenidade, Adama fez mais uma revelação: “Eles
fazem parte de uma seita chamada Guardiões de Segredos”.
De acordo com Adama, os membros dessa seita pertenciam a uma rede
de relacionamento que mantinha laços de amizade e lealdade muito fortes.
Na hora não entendi o que isso significava, mas ele tentou me explicar
dando um exemplo: se eu fizesse parte dessa sociedade secreta e comprasse
um remédio em uma farmácia na qual o proprietário também fosse membro,
eu teria direito a alguns privilégios, como um bom desconto. Além disso,
tínhamos a obrigação de nos ajudar sempre que estivéssemos atravessando
alguma dificuldade em nossas vidas.
Além daquele aperto de mão que presenciei no ritual, o desenho de um
triângulo invertido atrás da caixa registradora também indicava se o
proprietário de um estabelecimento comercial fazia parte da seita. Cada
ponta do triângulo representava, respectivamente, champanhe, vinho e
vinagre. Adama explicou que, assim como a uva, que se transforma em
líquidos diferentes, os membros da irmandade possuem o poder de se unir,
porque apesar de não terem a mesma aparência, são iguais na essência.
Ainda de acordo com Adama, as pessoas que não eram fotogênicas
tinham mais facilidade para entender e dominar os fundamentos da seita.
Eu, por acaso, nunca saio bem nas fotos. Que sorte ser feio numa hora
dessas!
O jogo de damas também possuía um significado muito especial para
ele. Adama afirmou que a vida era igual a um tabuleiro, no qual as pessoas,
caso fossem boas jogadoras, tomariam a decisão correta apenas após o
oponente ter feito sua escolha. Assim era permitido tentar saber o que o
adversário estava pensando e superá-lo com outro movimento mais
inteligente.
Olhando para trás, dá para concluir que Adama era uma pessoa no
mínimo curiosa. Apesar de muita coisa ter sido repassada para mim, acho
que só tive acesso a uma pequena parte daquilo que ele sabia. Também acho
que vou morrer sem ter noção do que meu primo aprendeu com ele; ele
permanece calado provavelmente por ter prometido guardar segredo.
Vou guardar para sempre uma lição importante daquela época. Esse
ensinamento tem a ver com aquilo que Adama chamava de Lei de Murphy.
Ele sempre dizia o seguinte: “É impossível fazer alguma coisa à prova de
idiotas, porque os idiotas sempre tendem a se superar”.
LUZ VERMELHA

Na primeira vez em que o Bandido da Luz Vermelha passou pelo


Manicômio Judiciário, eu ainda cuidava dos pacientes do Hospital
Psiquiátrico. Só na época da transferência é que fiquei sabendo da fama de
João Acácio Pereira da Costa, nome do criminoso. Os funcionários mais
antigos contavam que naquela época ele era perigosíssimo. Quase todos os
dias, recebia em sua cela advogados, jornalistas e até mulheres bonitas,
muito elegantes e bem vestidas.
Meu primo, que o conheceu antes de mim, dizia que o Luz Vermelha
não tinha contato com outros detentos. Não poderia ser diferente, pois ele
trazia do lado de fora das muralhas uma fama que metia medo até no mais
valente dos presos. O sujeito era tão respeitado que, se ele gostasse de um
par de sapatos de um dos visitantes, pedia para que o deixasse como
presente. Ninguém ousava desobedecer.
Em sua segunda passagem, eu já estava do lado de dentro das muralhas
do Manicômio e percebi que o Bandido da Luz Vermelha já não era mais o
mesmo. Sem as visitas diárias, passava dia e noite calado em uma cela
comum, de cinco metros quadrados, no térreo, no lado direito do corredor
de entrada do prédio. Um funcionário com mais tempo de casa o vigiava
sentado em uma cadeira localizada no portão que dava para o corredor; o
temor da direção do Manicômio era que uma faca, punhal ou qualquer outro
tipo de arma branca chegasse até ele.
Várias vezes consegui falar com ele pela janela na porta da cela. Em
uma dessas oportunidades, depois de achar que tinha conquistado minha
confiança, ele me entregou uma carta. Uma das poucas pessoas que ainda o
visitavam esporadicamente, uma senhora de uma igreja, deveria recebê-la.
Apesar de ter encaminhado o envelope aos chefes de disciplina, acredito
que ela nunca o recebeu. Os funcionários responsáveis pelo controle das
correspondências devem ter feito picadinho daquela carta.
Depois desse episódio, fiquei sabendo pelo meu primo que a antiga
cela do Luz Vermelha possuía um tapete vermelho enorme, cobrindo todo o
chão. É bem difícil acreditar em uma história dessas, pois não havia
nenhum detento com esse tipo de regalia ali no Manicômio. E, quando
comecei a ter contato com ele, a cela em que vivia só possuía um colchão
no chão.
Meu primo também contou que uma vez teve que acompanhar o Luz
Vermelha ao médico. Seis funcionários ficaram do lado de fora do
consultório e apenas meu primo entrou com ele. Depois de fechar a porta, o
médico perguntou por que meu primo tinha que acompanhar a consulta e
qual a necessidade de meia dúzia de funcionários do lado de fora. O doutor
então se levantou da mesa, olhou para o paciente e indagou: “Você se acha
perigoso de verdade?”. O Luz Vermelha respondeu calmamente: “Acho que
não! Se eu fosse...”. Então interrompeu a frase para tirar da dobra da manga
um estilete bem fino e extremamente afiado. Em seguida, colocou o objeto
sobre a mesa e pediu para ser examinado. A consulta foi a mais rápida que
meu primo já tinha presenciado. Ninguém abriu a boca para dar um pio.
Certo dia, fui encarregado de levar o Luz Vermelha para tomar banho.
Na volta, ele me chamou para conversar. Assim como no passado, ele ainda
gostava de ser o centro das atenções. Ficamos do lado de fora da cela,
vigiados pelo funcionário que permanecia o dia inteiro de olho nele.
O Luz Vermelha me contou que, quando ainda não tinha ingressado no
mundo do crime, uma mulher da alta sociedade paulistana começou a dar
em cima dele. Casada, tinha um apartamento em Santos, onde podiam se
encontrar enquanto o marido trabalhava na capital durante a semana.
Depois de passarem quinze dias juntos, de repente, a mulher se cansou dele
e disse que não queria mais vê-lo. Os vizinhos já estavam comentando a
permanência dele no apartamento daquela mulher casada e ela não queria
ficar falada.
Indignado com a situação, o amante tentou voltar algumas vezes, mas
foi ignorado. Mesmo dando com a cara na porta, não mudou de ideia.
Esperou o marido chegar em um sábado, tocou a campainha e o chamou
para conversar. Ele abriu a porta, ouviu toda a história e apenas deixou um
recado: “Se você continuar perseguindo minha mulher, eu vou à polícia
dizer que você está rondando minha casa querendo fazer mal para minha
mulher e para minhas filhas!”. Bateu a porta na cara dele sem ao menos se
despedir.
Nessa conversa, o Luz revelou que essa tinha sido uma das razões que
o levaram a praticar seus atos. Disse com ar de tristeza que aquela mulher
nunca saiu de sua cabeça. Passou muito tempo tentando elaborar uma
vingança, mas desistiu, porque a vida dele acabou tomando um outro rumo.
Sorte da mulher e do marido. O Bandido da Luz Vermelha foi acusado
de quatro assassinatos, sete tentativas de homicídio e 77 assaltos, sendo
condenado a mais de trezentos anos de prisão. Boatos na época davam
conta de que ele teria cometido alguns estupros, mas nenhuma de suas
vítimas depôs contra ele — havia inclusive uma lenda de que muitas
mulheres choravam de saudade.
Tinha preferência por mansões na capital paulista. Depois de cometer
seus atos criminosos, voltava a ser um bom moço em Santos, onde morava.
Sempre agia no fim da madrugada. Cortava a energia da casa, cobria o rosto
com um lenço e invadia as residências com uma lanterna com bocal
vermelho. Gastava com mulheres e boates o dinheiro dos assaltos.
Quando o conheci, a vida do Luz Vermelha tinha mudado
radicalmente. O assaltante temido até pela polícia dera lugar a um detento
do Manicômio que serviu até de “laranja”. Foi assim: às vezes, éramos
designados a fazer vistorias em uma determinada ala do Manicômio. Mas a
informação da nossa revista vazava rapidamente e, quando chegávamos,
parecia que estávamos entrando em dormitórios de seminaristas: não
conseguíamos encontrar nada de suspeito.
Para tentar burlar a malandragem dos detentos, começamos a espalhar
nossos próprios boatos. Os chefes do setor diziam que revistariam, por
exemplo, a ala esquerda de um corredor. Eles iam diretamente à ala da
esquerda, mas a gente se separava para vistoriar a ala da direita. Com essa
tática, começamos a encontrar muita coisa. Mas na correria para mudar os
objetos ilegais de lugar, sempre sobrava para os coitados dominados pelos
mais fortes ou com mais poder lá dentro.
Diferentemente dos dormitórios, a cela do Luz Vermelha não era
submetida a vistorias constantes por já possuir vigilância 24 horas. No
entanto, em uma das raras ocasiões em que aconteceu uma revista,
encontrei diversos envelopes dentro de uma sacola escondida debaixo do
colchão. Ainda havia outro pacote enrolado por um plástico preso por um
fio de náilon quase invisível dentro do boi. Aquilo me deixou intrigado.
Coloquei tudo no chão, do lado de fora da cela, mas nenhum chefe deu bola
para aquilo; eles só procuravam por dinheiro e estiletes. Logo que um dos
chefes viu os pacotes, me disse: “Joga fora logo essa porcaria”.
Apesar de a correspondência entregue pelos carteiros passar por um
rígido controle, os detentos mantinham uma espécie de correio interno. Eles
trocavam desde bilhetes com insultos até envelopes com fotos de mulheres
nuas.
Eu não joguei nada no lixo. Enrolei tudo em papel higiênico, coloquei
em um saco plástico e levei para casa. Os envelopes, todos antigos, sem
selos e sem quaisquer indicações de remetentes ou destinatários, guardavam
bilhetes com informações em código.
Dentro do manicômio, quatro grupos haviam criado seus respectivos
códigos de comunicação. As palavras, indecifráveis para quem não
pertencia a um dos grupos, faziam um pouco de sentido para mim. Com o
tempo, fui pescando uma palavra ali e outra acolá.
Antes de eu entrar no Manicômio, quando estava trabalhando no
Hospital, fiz dois cursos por correspondência. O primeiro, de fotografia, eu
abandonei. Achei muito complicado. Já o de detetive particular me pareceu
bastante interessante. Nele, aprendi a decifrar alguns códigos secretos.
O código contido nos bilhetes encontrados na cela do Luz Vermelha
funcionava da seguinte forma: colocavam-se todas as letras do alfabeto em
uma folha de papel. Em seguida, colocavam-se números aleatoriamente por
cima das letras. Os números, por sua vez, substituíam as letras e,
combinados, formavam palavras. À medida que outras pessoas passavam a
decifrar as combinações entre as letras e os números, outros números eram
incluídos, e alguns excluídos. A sequência de números sobre as letras
também mudava. Assim, a tabela das letras com os números podia ser
renovada constantemente.
Juntando as peças do quebra-cabeça, verifiquei que as mensagens se
referiam ao plano de um assalto, provavelmente a um banco. Algumas
palavras não se encaixavam, porque os códigos já deviam ter sido
substituídos, então não consegui identificar o local exato onde aconteceria
esse crime. Porém, coincidentemente, tempos depois houve realmente um
assalto a uma agência bancária dentro do Juquery.
Acredito que os envelopes encontrados na cela do Bandido da Luz
Vermelha possivelmente tinham a ver com essa ação. Mas mesmo se os
planos codificados tiveram relação com esse assalto ou com qualquer outro,
de qualquer forma o Luz Vermelha preso no Manicômio tinha perdido
completamente o brilho. Os assaltos a banco não eram nem de longe sua
especialidade. No passado, ele agia sozinho, sem a necessidade de
mobilizar outras pessoas para praticar seus atos. Os mentores do assalto ao
banco do Manicômio provavelmente aproveitaram o fato de sua cela não
passar por muitas revistas e averiguações para transformar uma estrela do
mundo do crime em um mero coadjuvante, relegado a esconder bilhetes
debaixo do colchão.
O FILME

Aqui, minha memória começa a ficar nublada.


Depois de cumprir com minhas obrigações, sei que piquei o cartão e
saí do Manicômio Judiciário. A noite estava bastante escura, ventava muito
e as nuvens cobriam a lua e as estrelas; não dava nem para ouvir o latido
dos cães. Quando cheguei em casa, tudo estava silencioso. Minha esposa e
meus filhos já dormiam. Acabei não jantando. Nada descia no meu
estômago.
Liguei minha TV amarelinha de 14 polegadas preto e branco da Philco
e me joguei no sofá. Comecei a assistir a um filme que se passava em um
presídio, em que os corredores, as celas e os presos me lembravam muito os
do Manicômio. Bastaram poucos minutos para o terror tomar conta de mim.
Alguns dos personagens possuíam as mesmas feições dos detentos com os
quais eu lidava. O comportamento deles também era idêntico. Circulavam
por corredores e por um pátio querendo demonstrar que eram mais fortes
que os carcereiros.
Parecia que aqueles presos me encaravam de dentro da televisão,
lançando olhares desafiadores. Acho que, se pudessem, atravessariam a tela
e me pegariam de jeito na sala da minha casa. E se soubessem que eu estava
observando o que se passava lá dentro, aumentaria o perigo? Não consegui
me levantar do sofá. Deu vontade de gritar, mas nenhum som saía da minha
boca.
O final do filme me deixou ainda mais impressionado. Os prisioneiros,
após algumas reuniões secretas, formaram um grupo que deu início a uma
rebelião. Muitos carcereiros, funcionários e diretores foram mortos. Alguns
assassinatos tinham requintes de crueldade. Quem ainda não tinha morrido
era perseguido incansavelmente por grupos de detentos furiosos e sedentos
por sangue.
Quando o filme acabou, eu suava frio e minha boca estava seca. Senti
meu coração bater muito rápido. Permaneci no sofá estarrecido com tudo
aquilo que eu tinha acabado de ver. Fiquei com receio de desligar o
televisor e caminhar até o quarto. Adormeci com muito custo no sofá, mas
acordei assustado, de repente. Quando abri os olhos, acordei com a
sensação de ter tido um terrível pesadelo, mas não conseguia me lembrar do
que tinha acontecido durante o sono.
Quando já não estava passando mais nada na TV, saí do sofá e fui para
a cama. Deitei, mas não conseguia pregar os olhos. O travesseiro não se
ajeitava na minha cabeça. Qualquer barulho me apavorava e a escuridão me
amedrontava. Em alguns momentos tive a impressão de ouvir passos lá
fora. Achava que alguém invadiria meu quarto para me matar. Não ousei
colocar a cabeça na janela para ver se realmente alguém rondava minha
casa.
Depois de algum tempo, o cansaço me venceu e finalmente adormeci
profundamente. Mas, dessa vez, tive pesadelos em que o medo tinha rosto.
Um detento com cara de poucos amigos me perseguia por um corredor
infinito, até surgir um sujeito da parede e me agarrar. Ele cortou minha
garganta com uma faca enferrujada, enquanto um grupinho de detentos
maltrapilhos apontava para meu corpo no chão e gargalhava. Eu assistia a
toda aquela crueldade como se eu fosse o telespectador de um filme em
preto e branco. Apareciam outros presos aos montes para furar minha
barriga com o que tivessem à mão. Tesouras, facas de cozinha, pedaços de
ferro. Queriam ter certeza de que eu estava morto.
Outras pessoas passavam por ali apenas para me chutar. Um detento
idoso, muito magro e corcunda conseguiu se abaixar para desferir mais
alguns golpes de punhal na minha barriga, no meu pescoço e nos olhos. Em
seguida, meu corpo foi carregado até um pátio onde havia uma pilha de
cadáveres despedaçados, colchões e móveis quebrados. Um senhor
barrigudo jogou um cigarro que carregava na boca, e o fogo tomou conta de
tudo. Os detentos em festa pulavam, dançavam e cantavam em volta da
fogueira, como se tivessem vencido uma batalha. Minha existência estava
reduzida a cinzas.
Eu acordei suado e extremamente cansado. Já era hora de sair para
trabalhar, mas a ideia de atravessar a porta de casa e me encaminhar para o
trabalho no Manicômio me perturbava muito. Eu não era policial nem
estava ligado à Secretaria de Justiça, só que tinha que trabalhar como os
carcereiros daquele filme. Por que estava sendo obrigado a manter a ordem
em um local cheio de assassinos, psicopatas e bandidos que haviam
cometidos os crimes mais cruéis? Apenas uma resposta vinha à minha
mente: eu, definitivamente, não estava no lugar certo.
COLAPSO MENTAL

Quando aconteceu a transferência, meu salário permaneceu o mesmo.


Houve apenas uma mudança no holerite. Não se lia mais Hospital
Psiquiátrico. Aquele papel passou a trazer duas palavras: Manicômio
Judiciário. Depois do filme, tive a certeza de estar desempenhando o papel
de carcereiro, apesar de ter entrado no Juquery como atendente de
enfermagem concursado. Minha tarefa desde o início consistia em cuidar de
pacientes com os mais diversos diagnósticos de doenças mentais e
psiquiátricas. Mas, com 23 anos de idade, da noite para o dia eu me vi
cercado de criminosos com alto grau de periculosidade.
Com esse conflito na minha cabeça, eu já não tinha um pingo de
disposição para trabalhar. Comecei a achar que não ganhava o suficiente
para tratar de criminosos. Pensando no futuro, desenvolvi um raciocínio que
me deixava ainda com menos vontade de fazer qualquer coisa lá dentro.
Como eu passava doze horas confinado no Manicômio, em vinte anos eu
teria puxado cadeia por mais da metade do meu tempo de vida, imaginava.
Encarcerado, eu também obrigava os outros a continuarem presos.
Naquela época, a única vantagem que eu via naquele emprego, mas
que aos poucos foi perdendo a graça, é que dava para ir ao centro de São
Paulo passear, ir ao Mappin da praça Ramos de Azevedo comprar
eletrodomésticos e relógios e procurar discos de vinil no Shopping Center
Grandes Galerias, hoje conhecido como Galeria do Rock. Não
conseguíamos encontrar nada disso em Franco da Rocha. Também
frequentávamos os cinemas do Edifício Copan e outros localizados nas
avenidas São João e Ipiranga. A polícia que fazia a ronda a cavalo no
Jardim da Luz, próximo à estação de trem, também não nos perturbava.
Quem ficava mais de uma hora era convidado pelos guardas a sair
imediatamente, mas podíamos permanecer o tempo que quiséssemos
olhando a mulherada que trabalhava por ali. Se um policial nos parava,
mostrávamos o holerite e ele dizia: “Pode ficar tranquilo. Você é de casa”.
Éramos tratados como policiais.
Depois de assistir àquele filme na TV, nem sei como cheguei ao
trabalho na manhã seguinte. O filme não saía da minha mente. Não dava
para distinguir um zumbi da minha pessoa. Não penteei os cabelos, tinha
olheiras profundas e suava frio sem parar. Nenhum funcionário reparou na
minha aparência, nem fui levado a sério quando comuniquei a um dos meus
superiores a decisão de não trabalhar mais no Manicômio Judiciário. Ele
achou que eu estava de brincadeira e me mandou voltar ao trabalho.
Comentei com alguns colegas que eu não queria mais pegar as chaves,
ou seja, nunca mais participaria da distribuição das chaves que determinava
o responsável por cada parte do manicômio, como as celas, corredores ou
pátios. Na prática, eu não daria continuidade ao serviço do funcionário da
noite — como se dizia naquela época, eu não renderia mais o funcionário
anterior e não teria mais posto. Ninguém acreditou em mim. Todo mundo
riu da minha cara.
Continuei indo ao Manicômio, mas, quando me entregavam as chaves,
eu dizia sem medir as palavras: “Não vou mais pegar nada!”. Depois, dava
as costas e ia para outro canto. Meus colegas começaram a perceber que eu
não estava para brincadeira e me alertaram sobre os perigos da minha
atitude. Meus superiores apenas diziam que seriam obrigados a comunicar a
administração se eu continuasse a não cumprir com minhas obrigações. A
resposta sempre vinha na lata: “Fique à vontade para fazer o que bem
entender. Não dou a mínima. Não fui concursado para trabalhar aqui”.
Meu comportamento continuou assim até o dia em que a situação
tornou-se insustentável. Acumulei 32 advertências, mas bastariam apenas
três para eu ser mandado embora. Só continuei lá porque eu não estava
negando serviço do Hospital Central, o local para o qual eu tinha prestado
concurso público.
Acompanhado de um de meus superiores e de um capa-branca colega
meu, fui levado à sala do administrador. No caminho, ainda dei um recado
ao meu chefe, dirigido na verdade a todos os funcionários que estavam
acima de mim: “Não tenho nada contra vocês. Só não quero mais trabalhar
nesse lugar”.
Quando cheguei à sala, fui recebido pelo administrador do Manicômio.
Ele se chamava Sebastião Cremasco e era um senhor de cabelos brancos
elegante e educado. Estava vestido com um terno impecável e uma bela
gravata. Ele se levantou da cadeira, me cumprimentou com um aperto de
mão bastante cordial e pediu para que eu me sentasse. Desabei em uma
cadeira de madeira acolchoada; eu parecia um farrapo. Já não me barbeava
havia uma semana e minha capa branca estava amarrotada e encardida.
O diretor se sentou, olhou para mim e me perguntou o que estava
acontecendo. Eu não consegui responder. Permaneci calado e me distraí
com a gravata colorida daquele homem, que se levantou novamente e se
sentou na cadeira ao lado daquela em que eu estava. Então olhou nos meus
olhos, suspirou e, com toda calma do mundo, falou: “Você é um bom
funcionário, mas está cheio de advertências. Seus chefes me comunicaram
que você está se recusando a trabalhar há mais de um mês”. Aí eu retruquei:
“Isso vai continuar assim”. Em seguida, repeti aquilo que não cansava de
comunicar aos meus superiores: “Não quero mais trabalhar aqui. Se o
senhor tivesse me chamado na primeira advertência, não precisávamos ter
chegado a esse ponto”.
Após ajeitar a gravata no colarinho, ele levantou-se e abriu a gaveta de
um armário que continha diversos prontuários de funcionários. Achou o
meu depois de pelo menos um minuto de busca. Tirou uma caneta do bolso
da camisa, escreveu rapidamente algo e o carimbou com força. Por fim,
avisou: “Pronto, você está liberado para voltar ao Hospital Psiquiátrico”.
Vitória. Logo que atravessei a porta da sala da administração, fui
conduzido em uma veraneio até o Hospital Psiquiátrico. Tudo me pareceu
muito fácil. Durante o período em que acumulei as advertências, meus
chefes diziam que não poderiam fazer nada. Mas, em poucos minutos, o
administrador selou meu destino com uma caneta e um carimbo. Saí de lá
com uma frase na cabeça: “Eu venci o sistema!”.
Porém, em pouco tempo, minha vitória se transformou em uma derrota
de sabor amargo. Chegando ao prédio da Administração Central do
Hospital Psiquiátrico, um senhor de óculos fundo de garrafa olhou para
minha ficha, coçou a cabeça e me mandou diretamente para a Sexta
Colônia.
Essa colônia, muito distante do Hospital Central, ficava depois do
campo de aviação, já na saída de Franco da Rocha, a uns trinta metros da
estrada de Mairiporã. Hoje, o local, próximo ao Batalhão do Corpo de
Bombeiros e de algumas unidades da Fundação Casa, abriga a
administração do Parque Ecológico Estadual de Franco da Rocha. Para
quem morava na cidade, como era meu caso, deslocar-se todos os dias até lá
podia ser considerado um verdadeiro castigo.
A condução era muito escassa. Não havia nem ônibus para Mairiporã,
e nenhum funcionário tinha carro ou moto. Só havia um ônibus velho do
tipo jardineira que nos buscava de manhã no centro da cidade e, no final do
expediente, nos deixava no mesmo local. Se perdêssemos o ônibus, só nos
restava gastar a sola do sapato caminhando por estradas escuras,
empoeiradas e sem pavimentação. Com muita sorte, uma perua do Juquery
poderia passar para nos dar carona, mas não dava para contar com esse
privilégio.
Com o prontuário manchado, percebi que minha vida dali para frente
seria um inferno. Além da distância, logo no primeiro dia deparei com o
primeiro entrevero. Bastou chegar atrasado para descobrir que o
administrador da colônia era extremamente autoritário. Ninguém queria
trabalhar com ele nem para ele. E encontrar gente assim era extremamente
fácil.
Ele se enquadrava no grupo de pessoas que se achavam donos do
Juquery e aproveitavam para lotear as colônias, mandando e desmandando
nos funcionários e pacientes como bem entendessem — tanto é que nós não
conhecíamos as colônias por números. Nenhum funcionário se referia, por
exemplo, à Primeira Colônia, mas sim à “Colônia do Fulano” ou “Colônia
do Beltrano”.
O administrador também era um jogador de futebol frustrado e só dava
valor a quem jogava bola. Cuidar dos pacientes ficava em segundo plano,
porque ele gostava mesmo era de ser técnico. Os pacientes circulavam
descalços no meio da imundície, nus ou embrulhados em trapos velhos. Em
compensação, por receber cuidados diários, o gramado do campo de futebol
estava sempre uma beleza, e as marcas de cal nunca desbotavam. As
canchas de bocha também permaneciam um brinco.
E adivinha quem foi incumbido de fazer a manutenção do campo de
futebol?
Logo de cara ganhei uma enxada e nem passei perto dos pacientes. Fui
logo me juntando aos outros quatro funcionários responsáveis por essa
tarefa. Como o campo já estava bem cuidado, pediram para eu capinar seu
entorno; peguei meu instrumento de trabalho sem discutir e me dirigi ao
campo. Minha vontade era fazer buracos por toda a parte, mas resolvi largar
a enxada e ficar dando voltas no local.
Pelo que consigo me lembrar, a cada vinte minutos o administrador ou
um de seus capachos me vigiava pela fresta de um muro. Continuei apenas
matando o tempo, circulando pelo campo sem fazer nada e vendo outros
funcionários bem mais velhos e também com a ficha suja fazendo a
manutenção do local. Alguns vinham me dizer sempre a mesma coisa:
“Aqui é assim mesmo. O homem manda e desmanda, meu filho!”.
Depois de algumas horas, ele viu que eu não ia cortar o mato e mandou
me chamar. Chegando na sala dele, ele perguntou se eu não ia trabalhar. Eu
respondi: “Não! Não fui concursado pra capinar. Quero cuidar de pacientes!
Quero voltar para o Hospital Central!”.
Ele rabiscou algumas palavras no meu prontuário e ordenou que eu
comparecesse imediatamente ao setor administrativo do Hospital Central.
Depois disso, eu perdi a conta de quantas vezes eu retornei ao Hospital
Central para ser transferido às diferentes colônias do Juquery. Minha rotina
se resumia a negar a tarefa incumbida e me deslocar até a administração do
Juquery. A coleção de atribuições envolvia tirar os gatos que moravam no
telhado da casa da colônia e os ninhos de pássaros das calhas, capinar,
receber os alimentos que chegavam; pintar muros e paredes, entre outras
coisas absurdas. Eu sempre me recusava, dizendo que não era do
departamento de manutenção. Depois da minha resposta, o administrador de
uma determinada colônia chamava uma viatura, que me levava até a
administração do Hospital Central para prestar esclarecimentos ao diretor-
geral das colônias.
Ao chegar à administração, meu argumento sempre vencia. Afinal de
contas, eu não era mesmo encarregado da manutenção. Mas quando alguns
dos administradores das colônias me acompanhavam, acabavam me
deixando lá e saíam na frente para voltar sozinhos de veraneio. E eu, sem
carro disponível, tinha que caminhar de volta dezenas de quilômetros pela
estrada de terra.
Entendi então uma coisa. Ao me deixar a pé, eles estavam se vingando
de mim.
Em meio a essas idas e vindas, fui convidado por um grupinho de
diretores para ser um dos caguetas do Juquery. Eles sabiam que os
funcionários mais novos me perguntavam como era o trabalho nos outros
locais pelos quais eu já tinha passado. Nessas conversas, os novatos
acabavam desabafando e revelavam informações que poderiam ser muito
valiosas para os administradores, como casos de funcionários corruptos.
Nem precisei pensar duas vezes para recusar a proposta.
Depois dessa recusa, fui convocado para participar de uma reunião no
Pavilhão Escola do Hospital Central. Na hora, nem me importei. Parti em
uma veraneio rumo ao local e, quando cheguei, vi que vários
administradores, inclusive o “dono” da Sexta Colônia, já estavam do lado
de fora. Bastou ele me ver para entrar e chamar todos os colegas dele.
Um antigo colega dos tempos de Terceira Clínica chamado Jorge
passou por lá, acabou me reconhecendo e me cumprimentou meio sem jeito.
Ele me perguntou o que eu estava fazendo ali. Esperando para uma reunião,
disse apenas. Preocupado, advertiu: “Você vai entrar em uma sala onde tudo
será gravado. Tem uma câmera atrás dos espelhos e eu sou o responsável
por essa tarefa”. Apertou minha mão, me desejou boa sorte e entrou no
prédio para cuidar dos seus afazeres.
Nunca tinha ouvido falar em algo parecido. Achei que era bobagem,
até eu ser chamado por uma senhora gorda que me conduziu até a sala.
Quando entrei, avistei uma mesa redonda com cerca de vinte cadeiras e uma
parede com um espelho enorme; sentei em uma das que ficavam na frente
do espelho. Além dos administradores, também estavam presentes um
psiquiatra e a cúpula de diretores do Hospital Central.
Procurei não olhar para o espelho. Um dos administradores,
considerado um dos “medalhões” do Juquery, me encarou e perguntou se eu
achava justo ter mobilizado gente tão importante para esse tipo de reunião.
Eu respondi que não e disse que eu não estaria ali se os administradores das
colônias me passassem outras atribuições, como cuidar de pacientes. Ainda
disse irritado que eu não tinha passado em um concurso para arrancar ervas
daninhas que cresciam em um campo de futebol ou realizar uma série de
outras atividades absurdas.
Apesar de permanecer calado, o “dono” da Sexta Colônia ficou
vermelho de raiva. Apenas quando um dos diretores deu permissão ele
falou que possuía vários funcionários excelentes, apontou para mim e
exclamou: “E você não é um deles”.
Não aguentei.
Respondi: “Para eu ser um funcionário exemplar, bastaria você me
colocar para trabalhar no mesmo setor que seus funcionários excelentes
trabalham”. Tentando manter a calma, ele perguntou: “O que o senhor quer
dizer com isso?”. Sem pestanejar, eu rebati: “O senhor sabe muito bem do
que eu estou falando”.
Depois da minha resposta, os diretores e o psiquiatra resolveram
encerrar a reunião. Como resultado, fui encaminhado à psiquiatria do
Hospital Central e transferido para trabalhar em uma nova colônia.
Meu novo chefe, o responsável pelo turno da noite, era mais
sossegado. De cara, pediu para eu dar as medicações dos pacientes e
realizar rondas noturnas nos dormitórios. Finalmente minha rotina tinha
voltado ao normal.
Passei dois meses sem sobressaltos. Certa manhã, quando estava
aguardando para pegar o holerite do meu pagamento, o técnico de um dos
times de futebol dos funcionários me convidou para disputar uma partida.
Na hora, nem me importei com o adversário. Apenas aceitei porque
conhecia alguns dos funcionários daquela equipe. Só descobri que jogaria
contra o time da Sexta Colônia minutos antes de entrar em campo. E,
obviamente, o técnico era aquele administrador da Sexta Colônia.
Para me marcar, ele escalou um enfermeiro que me caçou em campo.
Ele não conseguiu me acertar, mas, mesmo assim, demorou para nosso time
abrir o placar. Logo no começo, a bola sobrou para mim na entrada da
grande área. Como eu treinava chutes de longe de manhã cedo, mandei um
forte na forquilha direita. Com um goleiro gordo daqueles, achei que o gol
sairia, mas me enganei. Ele pulou, espalmou a bola para escanteio e depois
veio correndo na minha direção: “Eu pego todas!”. Depois disso, não pegou
quase nada, porque meu time venceu por 4 a 1. No final da partida, o
técnico da equipe da Sexta Colônia estava rangendo os dentes para mim, e
eu desdenhei, para quem quisesse ouvir: “Isso para mim não é jogo. Para
mim foi só um treino”.
Dias depois, um novo funcionário foi escalado para me ajudar.
Descobri que o novato era um informante do chefe da colônia. Ao invés de
me ajudar, contava tudo ao superior. Aquilo me sufocava. O fulaninho não
me dava sossego, estava por toda a parte: acho que me observava até
quando eu ia ao banheiro.
Nessa época, um psiquiatra, do qual não me lembro do nome, pois até
hoje me consultei com uma infinidade desses profissionais, começou a
prescrever remédios para mim. No começo, eu seguia as orientações à risca,
mas depois passei a tomar comprimidos além da conta. Sem consultá-lo,
aumentei minha dose de diazepam e cheguei a tomar mais de oito
comprimidos por dia. As altas doses desse tranquilizante me paralisaram.
Fiquei alguns dias sem conseguir sair da cama.
Além de não levantar para nada, parei de tomar banho e comecei a
sentir fortes pontadas no peito. Depois de três dias, saí da cama e procurei
um cardiologista. Aquela consulta de nada adiantou, porque a dor no peito
tornou-se insuportável mesmo seguindo o tratamento, que consistia em uma
série de remédios para o coração, outros para hipertensão, e repouso em
casa por uma semana (que na verdade acabou se transformando em três
meses). Tive que ir atrás de atestados médicos para me afastar do trabalho.
Como os atestados não me permitiam ficar mais do que quinze dias
afastado, fui obrigado a passar por perícias médicas no centro de São Paulo.
Essas idas à capital se tornaram constantes. Eu passava pela perícia e
aguardava o laudo, o que poderia demorar uma semana, quinze dias ou um
mês. Durante essa espera, não sabia se a licença sairia; perdia dias de
trabalho e era obrigado até a passar por uma nova perícia sem que o laudo
anterior fosse publicado no Diário Oficial. Apesar de ser agendada com
antecedência, às vezes eu chegava lá e o médico não estava presente para
fazer a perícia. Então só me restava remarcá-la.
Chegou a um ponto em que eu nem mais sabia por que ia lá.
Mesmo sem ter certeza do que estava acontecendo, tive que retornar à
perícia. Então peguei o trem para São Paulo e me apavorei. Bastou entrar no
vagão para a viagem se transformar em um martírio. Além da falta de ar,
sentia pontadas horríveis no coração e parecia que as paredes do vagão iam
cair sobre mim a qualquer momento, principalmente quando o trem freava.
Tive a sensação de que vomitaria de repente nas pessoas, até perder todas as
forças. Cheguei à perícia em um estado deplorável. Não sei de onde tirei
fôlego para voltar à minha casa.
Depois de uma semana dessa viagem de terror, um médico pediu para
que eu mantivesse a medicação e retornasse ao centro de São Paulo. Mais
uma vez aumentei a dose de diazepam por conta própria: os doze
comprimidos que eu consumia por dia já nem faziam mais efeito. Dali em
diante, não consegui mais ir ao centro de São Paulo. Chegava à estação de
Franco da Rocha, dava meia-volta e fugia para casa. Não queria me sentir
sufocado novamente no vagão. A cama servia como meu refúgio do mundo
lá fora. Passei um bom tempo no meu quarto. Sem sair de casa.
A SOLUÇÃO DEFINITIVA

Até hoje não sei como consegui, mas saí da cama. Já tinha perdido a conta
de quanto tempo tinha permanecido em casa. Meu primo e minha mulher
tinham conversado com meu psiquiatra. Analisando meu caso, o doutor
Giles se convenceu de que a única solução para eu não perder o emprego
seria a internação.
Não me rendi à internação logo de cara. Ainda insisti em ir ao
trabalho, mas, em pouco tempo, eu não sabia mais o que era certo ou
errado. E com um prontuário sujo, cheio de advertências e sem boas
recomendações, ninguém mais queria um funcionário como eu. Ganhei
fama de preguiçoso, respondão, folgado e doente.
Pulei de setor em setor, nas clínicas e nas colônias. Às vezes eu já nem
sabia mais onde iria trabalhar no dia seguinte. O cartão de ponto nem saía
do bolso da minha calça. Um dia, quando cheguei a um dos setores do
Hospital, aquele que seria meu chefe disse para o funcionário que me
acompanhava: “Ah, esse maluco não entra aqui nem por cima do meu
cadáver. Manda esse louquinho embora!”.
Tive que entrar no trem outra vez para ser submetido à perícia médica
e conseguir uma licença. Apesar de conseguir entrar no vagão, eu tinha a
impressão de que estava embarcando em uma viagem sem volta. Senti
náuseas no meio da multidão que andava pelas ruas do centro de São Paulo.
Achei que a qualquer momento a calçada poderia abrir e me engolir. Os
carros e ônibus me acertariam a qualquer momento.
Na volta, comecei a pensar que todos os problemas seriam
solucionados se eu me trancasse no quarto e não saísse mais de lá. Cheguei
em casa, tomei os remédios e caí na cama. Dali em diante, perdi a vontade
de fazer qualquer coisa. O desejo sexual também foi por água abaixo.
Sem dar as caras por mais de uma semana, o doutor Giles resolveu se
reunir com os diretores do Hospital Central para analisar meu caso. Então
chamaram minha mulher para comunicá-la que a única saída para o meu
problema era a internação. Um diretor foi curto e grosso e não mediu as
palavras para justificar a decisão. Disse: “Olha, senhora, interna logo, senão
ele vai perder o emprego”.
Acredito que, naquele momento, a internação significava a vitória do
sistema sobre mim. Aquelas mesmas pessoas que no passado tinham sido
meus algozes agora se mostravam amáveis e preocupadas com o meu bem-
estar e o da minha família. Era uma situação muito estranha.
Esses “medalhões” da alta cúpula do Juquery, exceto o doutor Giles,
que tanto lutaram para me destruir, quando finalmente me encurralaram,
pareciam que não queriam mais me aniquilar. Digo isso porque tenho
certeza de que seria muito mais fácil simplesmente me tocar para fora do
Juquery com uma mão na frente e outra atrás.
Minha derrota poderia servir como exemplo para os funcionários que,
como eu, um dia, por acaso, tentassem lutar contra o sistema. Eles veriam
com os próprios olhos o que realmente acontecia caso alguém discordasse
das regras pré-estabelecidas lá dentro.
O tratamento no Hospital Psiquiátrico também representava um duro
golpe na minha vida. Eu cansei de ver sujeitos que entravam no Juquery e
não saíam nunca mais, tanto do hospital quanto da loucura. Abandonados
pela família sem um mísero pingo da razão que ainda conseguiam conservar
no início da internação, transformavam-se em animais irracionais incapazes
de se comportar como seres humanos considerados normais pelos padrões
da sociedade.
EU ME TORNEI UM DELES

É, não teve outro remédio. Eu tive que me internar no Hospital Psiquiátrico


do Juquery. Depois de seis anos de trabalho, deixei em casa minha capa
branca. Momentos antes da internação, o doutor Giles se encontrou comigo
e disse que eu teria que me tratar porque eu já não tinha condições físicas
ou psicológicas de trabalhar no Hospital Psiquiátrico nem no Manicômio
Judiciário.
No final do encontro, ele garantiu que me acompanharia de perto,
diariamente. Nenhum paciente tinha esse privilégio. Na despedida, o doutor
Giles apertou minha mão, sorriu e disse: “Confie em mim. Vai dar tudo
certo”. Dali fui levado à rotunda masculina para passar pela triagem.
Apesar de não estar mais em condições de distinguir os dias da
semana, consigo me lembrar que minha internação começou em uma fria
sexta-feira do mês de julho. Eu já conhecia todos os procedimentos, mas,
naquele momento, tudo parecia ser novidade.
Rasparam minha cabeça e, então, recebi o uniforme de paciente: calça
azul, camisa de algodão cru e um casaco preto de pano grosso. Depois,
penduraram no meu pescoço uma placa de identificação com um número
que ficava na altura do peito, e então fui fotografado por um funcionário no
setor de identificação. De frente, o flash da câmera quase me cegou. Em
seguida me colocou de lado, e o flash disparou novamente. Também toquei
“piano”: um funcionário pegou minha mão, melou meus dedos com tinta
preta e depois forçou cada um deles em um cartão, para recolher minhas
impressões digitais. Minha vida tinha se transformado em um prontuário de
paciente.
Por fim, fui colocado em uma das celas com as paredes arredondadas
revestidas de borracha. Dali em diante, os capas-brancas passariam a me
cercar 24 horas por dia. E eu, definitivamente, já não era mais um deles.
O final de semana foi muito ruim. A sensação de sufocamento que eu
tinha no trem para São Paulo voltava constantemente na cela da rotunda. As
paredes pareciam encolher a ponto de a qualquer momento eu ser esmagado
como um inseto. Às vezes, eu adormecia e acordava de repente com a
certeza de que o chão poderia se abrir para me engolir. Na escuridão, só me
restava gritar de pavor. Do lado de fora, eu ouvia alguns capas-brancas me
mandando calar a boca.
Uma janelinha na porta se abria três vezes por dia, e eu via os olhos
dos capas-brancas que entregavam as refeições. Eu recebia uma caneca de
mingau ou canjica no café da manhã. No almoço e no jantar, eles deixavam
uma colher de plástico e a comida em pratos de alumínio. Nesses
momentos, dava para ter ideia de se era dia ou noite lá fora. Mas eu só sabia
disso porque havia troca de turno a cada doze horas e os olhos dos capas-
brancas mudavam. Qualquer outro paciente perdia completamente a noção
do tempo.
Antes de o período de observação chegar ao fim, meu primo apareceu.
Acho que foi na segunda-feira. Como era bem relacionado com os
funcionários de vários setores, ele conseguiu encontrar os responsáveis pela
rotunda masculina para explicar que, na verdade, eu era um funcionário que
estava passando por um momento difícil e, por isso, tinha que ficar sob
observação psiquiátrica. Ele explicou que eu estava confuso e com mania
de perseguição, mas seria incapaz de agredir ou machucar alguém.
No mesmo dia fui transferido para um quarto limpo em um salão
anexo à rotunda. Isso nunca acontecia. Na verdade, os pacientes, depois de
passarem pela rotunda, eram encaminhados diretamente para uma das
clínicas ou colônias, dependendo do diagnóstico.
Mas eu não tinha do que reclamar. No almoço e no jantar, recebi a
comida dos funcionários, que era muito melhor. À tarde, me serviram uma
caneca de café. E era café mesmo. Sem nada misturado. Também recebi
toalhas limpas e pude tomar um banho. Consegui me acalmar e dormi em
uma cama confortável depois do jantar. Passei a acreditar que o tratamento
não teria grandes complicações e que nem precisaria me misturar com
aquela massa de loucos que ocupava o Hospital Psiquiátrico.
Apesar do tratamento diferenciado, nunca via a cara do doutor Giles.
Eu confiava nele e estava tranquilo. Em breve, eu seria recebido por ele na
Segunda Clínica, local sob sua responsabilidade, ou ficaria nesse quarto até
o final da internação.
Três dias depois, no entanto, enquanto eu dormia, um capa-branca me
tirou da cama e me pegou pelo braço, com força. Percebi que ele me
conduzia à Segunda Clínica. Meu corpo estava pesado, e o funcionário
praticamente me arrastava pelas galerias do Hospital Central. As palavras
que meu acompanhante falava se misturavam com os ruídos dos internos.
Próximo à Segunda Clínica, eu disse que estava sendo tratado pelo
doutor Giles. O capa-branca, irritado, disse: “Não me interessa. Ele cuida de
você e de todos os outros malucos daqui!”. Perguntei onde meu psiquiatra
estava, mas ele fingiu que não ouviu. Insisti na pergunta, mas ele
permaneceu calado. Parei de andar e, quando ele me puxou novamente, eu
contei que era funcionário e exigia saber onde estava meu psiquiatra. A
resposta veio em forma de um tapa bem dado na minha cara. Depois, o
capa-branca apontou o dedo para mim e gritou: “O doutor Giles saiu de
férias ontem. Volta só mês que vem.”.
Minhas pernas bambearam. Perdi as forças que ainda me restavam.
Ele me largou em um dormitório no térreo infestado de cagões, mijões
e acamados com feridas abertas, pacientes do mesmo tipo que tratei quando
comecei a trabalhar no Juquery, imundos e esquálidos. Não fiquei muito
tempo lá dentro. Saí e fui para o pátio. Só ouvia risadas quando eu dizia que
era funcionário. O único capa-branca que me deu bola disse: “Todos nós
somos funcionários até que se prove o contrário”. Minha cabeça raspada e
meu uniforme de interno não me davam nenhuma credibilidade.
À noite, tive que voltar ao dormitório. Além do cheiro podre, dormi
com ratos e baratas. O odor de latrina se misturava com os gemidos dos
pacientes. Não preguei o olho a noite inteira. Depois que o sol nasceu, à
medida que o dia clareava, não tive dúvida de que o doutor Giles não
apareceria para me ver.
NA PRÓPRIA CARNE DÓI MAIS

A notícia de um maluco que saía por aí dizendo que era funcionário se


espalhou rapidamente. Depois do café da manhã, alguns atendentes de
enfermagem me cercaram e me obrigaram a vestir uma capa branca
encardida. Um deles mandava eu caminhar enquanto outro apontava para
mim e gritava para todos ouvirem: “Olha aí, pessoal. Nosso novo
funcionário chegou. Ele é doutor em loucura e vai colocar todo mundo na
linha.”.
No começo eu aguentava as gozações, mas quando me cansei e passei
a retrucar dizendo que eu era um funcionário de verdade, comecei a levar
empurrões, chutes e pontapés. Um dos agressores eu já conhecia, mas não
consegui me lembrar do nome dele. Os louquinhos me cercavam e iam ao
delírio. Gritavam. Riam. Outros se penduravam no meu uniforme. Era
difícil ter um momento de tranquilidade em meio a tanta humilhação.
Minha história se somava à de todas as outras dos pacientes recém-
chegados. Na dúvida, qualquer coisa contada por um paciente era
imediatamente classificada como loucura.
Quando me lembrava de que tinha trabalhado a poucos metros de onde
eu estava, minha angústia crescia. Em uma noite, pela janela do dormitório,
vi um grupo de funcionários da Terceira Clínica atravessando uma das
galerias. Tentei chamá-los gritando, mas três capas-brancas entraram
rapidamente para me calar. Fui derrubado e levei chutes na boca e no
estômago. Outro funcionário chegou com uma camisa de força e a
medicação. Depois de ser amarrado, recebi uma injeção bastante dolorida
na bunda. Adormeci rapidamente, caído no chão.
Muitos psiquiatras não permitiam a utilização da camisa de força. O
problema é que eles não viam o que acontecia dentro das clínicas e das
colônias, porque passavam o dia inteiro em suas salas sentados atrás de
mesas lotadas de prontuários de pacientes. O acompanhamento dos casos
dependia dos relatos dos capas-brancas. Sem o doutor Giles por perto,
minha existência se resumia a um desses prontuários.
Passei a noite inteira amarrado à camisa de força. Acordei de manhã
todo cagado e mijado. A medicação forte somada à comida, basicamente
composta por arroz e feijão e a caneca de mingau que recebia todos os dias
pela manhã, faziam com que meus intestinos trabalhassem muito. Um capa-
branca passou por mim e me viu de olhos abertos. Como percebeu que eu
estava dopado, sem condições de me levantar, acabou me desamarrando e
me encaminhado até o chuveiro.
Depois do banho, decidi me manter o mais discreto possível. Não
queria mais ser submetido a uma surra daquelas nem acordar amarrado
caído no chão sobre a minha própria sujeira. Tentei matar o tempo olhando
os loucos. Afinal de contas, antes da internação esse era meu trabalho. No
pátio, no meio de tanta gente pelada, poucos pacientes se mantinham
asseados com o uniforme em bom estado. Foi aí que percebi que meus
planos tinham ido por água abaixo. Um funcionário não demorou em me
identificar e perguntou: “Ei, funcionário, engoliu a língua?”. Depois deu
uma gargalhada que despertou um bando de pacientes nus que estavam
sentados no chão. Eles começaram a rir e a apontar os dedos para mim.
Fugi daquela situação e me refugiei em um canto do pátio. Eu me
lembro de ter sentado no chão e visto que ao meu redor reinava a
degradação física e mental. Cada indivíduo lá dentro era incapaz de
sustentar um raciocínio quando se aproximava de outro paciente. Os
pacientes crônicos largados no chão imundo, nus ou com roupas em
frangalhos, mostraram que em determinado ponto da vida de um ser
humano nada mais fazia sentido. Família, amigos, dinheiro, emprego,
asseio ou qualquer outra coisa indispensável do lado de fora do Juquery não
possuía qualquer importância lá dentro. Àquela altura, passei a acreditar
que o destino me transformaria em uma criatura sem consciência, presa
para sempre dentro da minha loucura.
IDENTIDADE PERDIDA

Meus cabelos começaram a crescer e minhas esperanças de ser reconhecido


por alguém também aumentaram. Mas em uma tarde, logo depois do
almoço, um capa-branca bateu no meu ombro e disse, irônico: “Olha só, sua
juba está ficando grande e a chefia não quer que nosso melhor funcionário
pegue piolho. Vamos já para o barbeiro!”. Tentei fugir, mas alguns socos na
barriga fizeram com que eu mudasse de ideia. Caí no chão e ainda levei um
pontapé na boca. Levantei e percebi que meu uniforme estava manchado de
sangue. Meu lábio estava cortado, mas o funcionário nem se importou com
isso. Ele me pegou pelo braço e me arrastou até a barbearia.
No meio do caminho, sei que paramos em um salão, onde fiquei nu e
levei uma mangueirada de água gelada. O capa-branca se divertia com o
meu sofrimento e falava: “Isso é para seu bem, funcionário. Não quero que
você chegue imundo ao barbeiro!”. Não vi muita lógica naquele banho,
porque ele me deu um trapo imundo e fedorento para que eu me secasse.
Depois jogou na minha cara o mesmo uniforme de antes e pediu para que
eu me vestisse rápido.
Chegamos ao barbeiro e me sentei na cadeira. O capa-branca olhou
para mim, botou o dedo na minha cara e disse para eu me comportar, senão
eu ia ver o que era bom para a tosse. Na verdade, eu não queria ver mais
nada: já sabia que se eu tentasse abrir a boca, levaria uma surra daquelas.
Quando o barbeiro chegou, percebi que eu o conhecia, mas não podia
falar nada. Ele se chamava Seu Brito e também já tinha trabalhado comigo.
No momento em que o barbeiro ia começar a fazer o serviço, ele me
reconheceu e disse: “Ei, eu conheço esse paciente. Já trabalhamos juntos.”.
O funcionário então retrucou: “Que nada! Esse aí é um louquinho que passa
o dia no meio dos cagões. Manda ver e raspa logo a cabeça dele!”. O Seu
Brito guardou a máquina em uma gaveta, apontou a porta para ele e,
irritado, disse: “Sai daqui. Não vou cortar o cabelo dele.”.
O capa-branca me pegou pelo braço e começamos a caminhar. Respirei
aliviado, mas minha tranquilidade acabou logo que entramos em outra sala,
onde, dessa vez, o barbeiro não deu um pio e passou a máquina na minha
cabeça.
Vi os poucos cabelos que tinham crescido caídos no chão.
SORRISO ARRANCADO À FORÇA

No meio da madrugada, acordei com uma dor de dente pavorosa. Minhas


gengivas estavam inchadas e minha garganta e meu ouvido também doíam.
Não consegui dormir a noite inteira. Ao amanhecer, tive que me render a
um funcionário. Antes mesmo do café da manhã, ele me levou ao
consultório dentário que ficava em uma casa colada à lavanderia, bem
distante da Segunda Clínica.
O funcionário me acompanhou com muita má vontade ao consultório.
Lá dentro já havia um rapaz que devia ser o ajudante do dentista. Ele vestia
camisa, calça e sapatos brancos e bocejava o tempo todo. Depois de uns
cinco minutos, chegou um senhor baixinho com um avental verde e
máscara azul cobrindo o rosto. Só consegui ver que ele tinha olhos puxados.
Sem olhar na minha cara, perguntou ao meu acompanhante qual era o meu
problema. Ele respondeu: “Ah, doutor, é só uma dor de dente.”. Então o
dentista calmamente falou: “Tá bom. Vamos arrancar tudo para resolver
esse problema de uma vez por todas.”.
Dei um salto da cadeira e corri na direção da porta. O funcionário me
pegou pelo braço e o auxiliar do dentista me acertou as costelas com um
chute certeiro. Desabei no chão. Urrei de dor. O funcionário se abaixou e,
de lado, segurou minha garganta com a mão direita e colocou o joelho
esquerdo na minha barriga. Em seguida, o auxiliar aplicou uma injeção no
meu braço e entregou uma camisa de força ao meu acompanhante. O
dentista assistia àquela cena sem falar nada.
Tentei me levantar e esconder meus braços enquanto ambos faziam
força para colocar a camisa. Mas quanto mais eu resistia, mais pancada eu
levava. Foram chutes, cotoveladas e tapas na cara. Fui obrigado a me render
para não apanhar mais. Completamente imobilizado, fui colocado
novamente na cadeira. Me debati um pouco, mas o ajudante abriu um
armário e retirou algumas fitas de pano que serviram para amarrar minhas
pernas, braços, tronco e pescoço à cadeira.
Mesmo assim, ainda conseguia gritar e movimentar minha cabeça.
Para acabar com aquilo, o auxilar enfiou um trapo na minha boca e o capa-
branca segurou minha cabeça com as duas mãos e não a largou mais. Só
então o dentista se aproximou de mim e, apesar de a medicação ter
começado a fazer efeito, senti o doutor arrancando meus dentes bons. Cada
puxão do boticão parecia que levaria meu maxilar junto. A dor era pior do
que aquela que eu tinha sentido durante a madrugada.
Não sei se apaguei por causa da dor ou porque o remédio fez efeito.
Acordei sabe-se lá quanto tempo depois caído no chão imundo do
dormitório da Segunda Clínica ainda amarrado à camisa de força e,
novamente, todo cagado e mijado. Procurei com a língua meus dentes de
cima e só senti a gengiva inchada e os pontos costurados. Na parte de baixo
percebi que tinham sobrado poucos dentes. Dali para frente só dava para
comer mingau ou uma papa de arroz e feijão. Perdi o prazer em mastigar
alimentos.
Eu tinha me transformado em um ser banguela e careca que andava
pelos corredores com um uniforme encardido. Minha cabeça raspada e
minha boca sem dentes me deixaram ainda mais irreconhecível. Aos poucos
desisti até de pensar em tomar qualquer atitude. Só saía do quarto para
comer. O fedor e a imundície já não me incomodavam mais.
O REENCONTRO

Enquanto eu comia um mingau, um funcionário começou a me encarar. Eu


me levantei para procurar outro canto para sentar. Queria um pouco de paz
durante o almoço. Ele interrompeu minha caminhada e com um forte
sotaque nordestino disse: “Não se preocupe. Eu sou o Agenor. Não se
lembra de mim?”. Eu me lembrava dele. Ele era um amigo do meu primo
que morava no bairro Jardim São Francisco em Caieiras. Algumas vezes
tínhamos jogado futebol juntos.
Fomos até uma mesa mais vazia, e o Agenor não acreditava no que
estava vendo. Com os olhos marejados de lágrimas olhava para mim e
dizia: “Não é possível! Acabaram com você.”. Contei que tinha sido
afastado do trabalho e estava internado por recomendação médica.
Espantado ele perguntou: “Mas há quanto tempo você está aqui?”.
Respondi que tinha saído da rotunda há mais ou menos três semanas. Ele
continuava sem acreditar como um funcionário poderia ficar naquele estado
em tão pouco tempo.
Assim que terminei de comer, o Agenor disse que me tiraria dali
imediatamente. E ele estava falando sério. Saímos do refeitório e fomos
direto ao primeiro andar da Segunda Clínica. No final da escada, ele me
apresentou ao paciente que cuidava do local. Baixinho com voz rouca, mas
extremamente forte, o Pena não deixava que os cagões e mijões invadissem
o primeiro andar. Caso defecassem ou urinassem, além de emporcalharem
tudo, a sujeira podia vazar para o andar de baixo, porque o piso era de
madeira.
Lá em cima ganhei um par de chinelos, toalha de banho, cama com
lençóis limpos, cobertores novos, papel higiênico e sabonete. Apesar de eu
não precisar, também me entregaram escova e pasta de dentes. Essas
regalias já me deixaram um pouco mais animado, só que eu continuava sem
receber notícias do doutor Giles. Nem o Agenor sabia onde ele estava.
Passei a conviver naquele andar com outros funcionários, internados
por causa do alcoolismo. Rapidamente me enturmei com alguns deles. Um
dos funcionários em tratamento me chamou para conhecer o bar. Enquanto
caminhava até o banheiro, achei aquela história muito estranha. Como é que
podia existir uma coisa daquelas lá dentro se o local era reservado aos
pacientes que estavam tentando se livrar do vício?
Ficava no banheiro o bar. As garrafas eram colocadas dentro de latas
de água e cobertas por panos de limpeza. O funcionário pegou uma garrafa
de uísque, encheu duas canecas de alumínio até a metade e me serviu uma
delas. Brindamos e fomos beber no quarto. Conforme a bebida entrava em
contato com a gengiva e o céu da boca, eu sentia que os pontos estavam
cicatrizando.
Dali em diante, colocava para dentro conhaque, cachaça, vinho —
qualquer coisa que pudesse me deixar embriagado. Bebia mais no Hospital
do que quando estava do lado de fora das muralhas. Mas a mistura de álcool
e remédio para loucos tornava a coisa muito mais complicada. Não era uma
simples bebedeira. Minha cabeça parava de funcionar e eu perdia
completamente a noção do tempo.
Pelo menos ganhei respeito. Finalmente, os funcionários começaram a
me respeitar. As gozações, agressões e a camisa de força não me
atormentavam mais.
Um dia eu estava me recuperando de uma ressaca violenta quando o
Agenor veio falar comigo. Eu estava sentado na cama e o vi entrando no
dormitório, ofegante. Tomou fôlego e revelou que eu estava na lista para
uma sessão de eletrochoque marcada para dali a dois ou três dias.
Minha dor de cabeça passou na hora.
Apesar de tudo que tinha acontecido durante as três semanas de
internação, nunca imaginei que poderia ser submetido ao temido ECT.
Soube também que a dupla de médicas que cobriam as férias do doutor
Giles eram adeptas fervorosas dessa técnica.
Busquei então refúgio na bebida. Convidei três ex-funcionários para
tomar um pileque daqueles em um taquaral. Depois do almoço, enxugamos
três garrafas de pinga comendo uma peça de queijo que um dos pinguços
levou do refeitório. Só voltamos momentos antes da contagem dos
pacientes nos dormitórios. Deitei na cama e apaguei. Quando acordei,
parecia que minha cabeça ia explodir. Aos poucos fui retomando a
consciência e me lembrando do eletrochoque que me esperava em breve.
Tentei entender as razões pelas quais meu nome tinha sido incluído na
lista do eletrochoque. Só podia ter sido por minha permanência no
dormitório dos cagões e mijões e meu comportamento quando tentei
convencer algumas pessoas de que eu era funcionário, refleti.
À tarde, o Agenor cruzou comigo no pátio e tentou me tranquilizar
contando que tinha conseguido encontrar meu primo José. Dali para a
notícia do eletrochoque chegar à minha mulher foi um pulo. Ela saiu de
casa na manhã seguinte com meu filho de menos de um ano nos braços para
ir atrás das médicas da Segunda Clínica. Ela até as localizou, mas não
adiantou nada porque as doutoras só enrolaram minha esposa. Desesperada,
ainda foi bater na porta dos diretores. Eles disseram que estavam de mãos
atadas. Justificaram que todas as etapas do tratamento tinham que ser
seguidas à risca, mas tenho certeza de que eles nem sabiam quem ela era e
que eu estava lá dentro. Eu podia ser um ex-funcionário ou um paciente
crônico, o que daria no mesmo.
Passei o final de semana no quarto, enchendo a cara com os alcoólatras
que dividiam o dormitório comigo. À medida que o tempo passava, eu me
anestesiava com vinho, uísque, pinga; enchia minha caneca de alumínio
sem ao menos ter noção daquilo que eu estava prestes a engolir. Não me
alimentei direito. Só queria saber do álcool.
Na segunda-feira, acordei com o Agenor me chamando. Abri os olhos
e o vi sorrindo. Apesar de estar em frangalhos, com uma ressaca poderosa,
que me obrigou a levantar duas vezes à noite para vomitar água e bile,
aquele sorriso me tranquilizou por alguns segundos. Fechei os olhos
imaginando que ele apenas contaria que a sessão de eletrochoque tinha sido
adiada. Faltavam só dois dias para eu ser submetido ao tratamento.
Mas eu estava enganado. Dessa vez, ele era o portador de uma boa
notícia. Depois de me chacoalhar pelo braço sem parar, abri os olhos
novamente e ele contou que o doutor Giles tinha voltado das férias naquela
manhã, então todas as sessões de eletrochoque foram canceladas.
Diferentemente das médicas, meu psiquiatra não era adepto do ECT.
Respirei aliviado, saí da cama e o Agenor me acompanhou ao
refeitório para que eu tomasse meu mingau no café da manhã. Quando
terminei, um funcionário pediu para que eu o acompanhasse. Sem pegar no
meu braço, fomos caminhando calmamente pela Segunda Clínica até
chegarmos ao consultório do doutor Giles. Quando ele abriu a porta, pude
vê-lo bronzeado, sentado atrás de sua mesa cheia de pilhas de prontuários
de pacientes. O psiquiatra, ao se levantar, não me reconheceu logo de cara.
Teve que perguntar ao meu acompanhante quem eu era. O funcionário
disse: “Esse aí é aquele paciente que o senhor pediu para que eu chamasse”.
Só depois de ouvir essa frase é que meu psiquiatra se deu conta de
quem estava na sala. Os olhos dele imediatamente se encheram. Vi no rosto
daquele doutor toda a decepção para com ele mesmo por causa da minha
aparência. Um mês de internação me transformou em uma pessoa muito
diferente daquela que tinha entrado na rotunda. Banguela, de cabeça
raspada, cheio de cicatrizes e escoriações espalhadas pelo corpo, ninguém
imaginaria que eu tinha apenas 25 anos.
UMA DOSE DE LIBERDADE

Depois de um mês, finalmente o doutor Giles cumpriu a promessa que fez


antes da minha entrada na rotunda e passou a cuidar do meu caso. Meu
psiquiatra me autorizou a circular pelo Hospital Central e me proibiu de
trabalhar. Meu estado de saúde me impossibilitava de cuidar de pacientes
ou manter uma rotina de tarefas como faxina, jardinagem ou preparação de
comida no refeitório.
Hoje, escrevendo isso de memória, acredito que essa proibição tenha
contribuído para manter minha sanidade, principalmente porque eu não
precisava passar o dia no pátio ao lado de piradões nus, maltrapilhos e
imundos.
Matava o tempo passeando pelas clínicas masculinas ou participava de
uma pelada no campo de futebol. Com ou sem a oportunidade de jogar bola,
no entanto, esse local servia como base para que eu pudesse ir embora, nem
que fosse por algumas horas: perto dali, dentro de um matagal, ao lado da
quadra de basquete perto do campo, havia uma árvore com um arbusto onde
eu guardava um saco plástico com uma muda de roupa. Depois do café da
manhã, eu me enfurnava no mato, trocava de roupa, colocava o uniforme no
saco e, sem atravessar a portaria, pulava um braço do ribeirão e seguia até
minha casa pelo caminho da linha férrea. Retornava antes das seis horas da
tarde, botava a roupa no saco e vestia o uniforme. Se eu me atrasasse, meu
prontuário receberia o carimbo de evadido.
Meu esquema só furava quando chovia muito forte e o nível de água
do ribeirão subia a ponto de inundar o campo e a quadra e levar meu saco
de roupa embora. Ainda bem que eu podia contar com a boa vontade do
Agenor, que arranjava uma nova muda de roupa e um saco plástico novinho
em folha para mim.
Em algumas ocasiões, quando não dava para jogar bola ou ir para casa,
eu ia ao taquaral tomar pinga e comer queijo. Mas aos poucos fui deixando
de beber quando passei a frequentar a biblioteca. Descobri que tinha todo o
tempo do mundo para ler o que eu quisesse. Quando vi um livro de capa
vermelha com os cantos gastos, pensei que, como muita gente já o tinha
lido, então a história deveria ser boa.
E eu estava certo: devorei O quarto vermelho, de Alexandre Dumas,
em poucos dias. O problema é que hoje não consigo mais me lembrar do
começo nem do meio e muito menos do final dele. A única recordação que
guardei é que a história se passava em um castelo em um país distante.
Nessa época, também conheci um lado meu que nunca imaginei
possuir: compus minha primeira canção. Na verdade, quando participei do
ritual no campo de aviação, comecei a sonhar com músicas diferentes de
todas aquelas que eu já tinha ouvido. Porém, não fazia ideia de que eram
letras de músicas inéditas e nunca parei para anotá--las. Só durante a
internação comecei a ter consciência de que estava compondo música.
Depois de uma noite tranquila de sono, acordei com uma letra na cabeça.
Até a melodia tinha aparecido durante um sonho. Não perdi tempo e tomei
nota antes mesmo de sair para tomar o café da manhã. A canção era assim:
Levei sete dias e sete noites pra entender o mundo.
Quando dei por mim fui jogado em um sono
profundo.
Acreditei sete vezes no seu jogo insano.
Por mais que eu tentasse...
Se foram todos os meus planos.
Pra mim que não eram assim tão fortes.
Quem sabe um dia uma suástica invertida explique
a morte.

Apesar de possuir apenas cinco versos, eu a batizei de “Sete dias e sete


noites”. Gostei muito do resultado, mas achei que a sequência surgiria em
um outro sonho. O problema é que as palavras e a melodia restantes nunca
apareceram; nem acordado consegui concluí-la.
APRISIONADO NA LOUCURA

Se por um lado fiquei aliviado por ter escapado do eletrochoque, por outro,
quando as coisas se acalmaram, o pavor começou a tomar conta de mim de
maneira inesperada. Assim que escurecia, eu me sentia entregue à sorte
quando ia dormir. Mesmo acordado, algo de ruim poderia acontecer a
qualquer momento. Em uma noite em que chovia muito lá fora,
conversávamos deitados em nossas camas. De repente, um paciente subiu
as escadarias e entrou no dormitório.
Ele começou a caminhar de um lado para o outro. O Pena foi ao
encontro do maluco e pediu para que saísse dali. Sem dar um pio, o
paciente deu um soco na vidraça, catou um caco de vidro e cortou a
garganta dele. Como a maior parte dos pacientes naquele dormitório era
composta de ex-funcionários, imobilizamos rapidamente o agressor, até os
capas-brancas chegarem. O paciente saiu de lá vestindo uma camisa de
força. Já o Pena por pouco não morreu, mas ganhou uma cicatriz medonha
na garganta, que o acompanhou pelo resto da vida.
Depois desse episódio, começaram a aparecer na minha mente
fantasmas do passado. Uma das assombrações recorrentes tinha origem na
época em que meu psiquiatra estava de férias e eu tinha acabado de sair da
rotunda. Um paciente que permanecia o tempo inteiro deitado e calado
morreu no leito dele, segurando uma maçã. Bastava eu fechar os olhos para
dormir e ele aparecia me chamando. Só nos meus pesadelos eu conseguia
ouvir a voz dele. Depois de abrir os olhos, não via nem ouvia ninguém, mas
a imagem dele era tão real que me assustava a ponto de ficar sem dormir
por quase uma semana.
Busquei refúgio no futebol e na cachaça, mas essas coisas já não me
aliviavam mais. Eu não conseguia relaxar e também passei a ter medo de
me deparar com algum interno do manicômio. Ajudei a dar um pau em um
montão deles; e se algum aparecesse na clínica? Tinha medo de esbarrar em
alguém que porventura poderia se lembrar de mim ou me confundir com
qualquer outro funcionário. Essa possibilidade era bastante real, já que
alguns deles passavam até dois anos internados para avaliação no Hospital
Psiquiátrico antes de conquistarem a liberdade.
Concluí que, por mais que tivesse boa vontade, o Pena não era
infalível. Além disso, apesar de os pacientes do andar de cima serem limpos
e bem tratados, passei a desconfiar de todos. E se alguém surtasse de
repente à noite? Mesmo com os olhos abertos, o medo passou a ser uma
companhia constante.
O pavor bloqueava minha criatividade. Não consegui compor outras
canções. Na minha cabeça passavam filmes sem começo, meio e fim com
imagens recuperadas de um passado não muito distante. Brotavam cenas
das gozações e humilhações que sofri quando tentava explicar que eu era
um capa-branca. Eu também via um boticão enorme arrancando meus
dentes sem anestesia; depois, o dentista os colocava em um colar, que
exibia pendurado no pescoço. Em uma sala cheia de espelhos, eu tentava
fugir do meu reflexo. Eu não passava de um louco de camisola com um
número estampado no peito gritando para me tirarem dali. Eu nem
precisava estar dormindo para ter pesadelos.
Voltei a recorrer aos livros para passar o tempo e tentar buscar alívio.
Eu me espantei ao encontrar um livro chamado O alimento dos deuses. Ao
ver aquele título, achei que a leitura pudesse me reconfortar, mas na
verdade tudo começou a ficar muito mais esquisito. Eu me apavorei com os
ratos, galinhas e insetos que se tornaram monstros gigantes após ingerirem
substâncias criadas por cientistas. Não consegui ler até o fim.
Além dos internos do Manicômio, passei a me preocupar com os seres
assustadores daquele livro. Eu queria me tornar invisível e passei a andar
desconfiado, olhando para todos os lados, com medo de que alguém ou
alguma coisa me atacasse. Com essa paranoia tomando conta de mim, em
uma tarde quente perdi os sentidos e desmaiei em um dos pátios.
Não sei quanto tempo permaneci desacordado caído no chão. Em um
dado momento, tive a impressão de ser observado por vários olhos. Na
verdade, havia mais olhos do que cabeças humanas. Sem sentir as mãos dos
que me conduziam para fora dali, meu corpo flutuava a meio metro do
chão. A confusão dos olhos deu lugar à escuridão que se misturava com o
azul de um céu sem nuvens: em um piscar de olhos o dia se transformava
em noite sem estrelas.
De repente, lembro que as trevas desapareceram e eu estava em uma
sala com móveis luxuosos. Poltronas de couro marrom, cadeiras com
estofamento de veludo vermelho e uma mesa enorme de madeira maciça
ocupavam o cômodo. Então, me colocaram sentado em uma das poltronas,
que era extremamente macia e confortável. Eu esperava alguma coisa
acontecer ou alguém entrar pela única porta do local.
A parede oposta à porta e à poltrona onde eu estava sentado era toda
coberta por um espelho. Não faço ideia se era a mesma sala ou o mesmo
espelho da vez em que me reuni com um psiquiatra, os diretores e os
administradores das colônias no Pavilhão Escola. Apesar de não conseguir
mais juntar os pensamentos, não fazia o mínimo sentido eu estar sentado em
uma poltrona de couro. Comecei a imaginar por que havia um espelho bem
na minha frente. Quando eu tentava reconhecer meu reflexo, o vidro tremia.
O silêncio não era absoluto, mas eu conseguia ouvir um zumbido agudo e
irritante, seguido de estalos. Os barulhos pareciam vir do lado de dentro da
parede. Talvez detrás do espelho.
Instantes depois, três homens vestindo sapatos, calças e camisas
brancas entraram, estenderam a mão para mim e se apresentaram, mas não
consegui guardar o nome de nenhum deles. Foi feita uma série de perguntas
e, embora eu tenha respondido a todas, não tinha a mínima noção do que
estava falando. Eu tremia sem parar e só pensava no espelho. Será que
alguém estava lá atrás me vigiando e gravando tudo aquilo que eu dizia?
Quando a sessão de perguntas terminou, eles se despediram e me
levaram de volta ao pátio da clínica. Durante o caminho, tive a impressão
de que alguém me seguia. Olhava para trás tentando achar essa pessoa que
estava no meu encalço. Eu não encontrava nada. Nem ninguém.
Antes de dormir, os enfermeiros chegaram com os remédios. Fiquei
com medo de engolir os comprimidos. Passei a acreditar que depois daquela
tarde a medicação tinha sido mudada. Não tinha dúvidas de que aqueles
enfermeiros faziam parte de um projeto e eu estava sendo submetido a
testes. Por algum motivo que eu desconhecia, a equipe de médicos e
enfermeiros tinha me escalado como cobaia. Mas para qual projeto? Qual
era o propósito de tudo aquilo? Nunca soube. Acho que nunca vou saber da
verdade.
Naquela noite demorei a pegar no sono. Além dos gemidos e gritos dos
outros pacientes, ouvia passos pelo quarto. Mas quando eu abria os olhos,
não conseguia ver ninguém andando por lá. Estavam todos deitados.
Bastava eu fechar os olhos e o barulho dos passos voltava. No entanto, o
cansaço me venceu e eu finalmente dormi.
Acordei pela manhã sentindo batidas de um pequeno objeto metálico
no meu braço esquerdo. Eram batidas ritmadas. Agora eu sentia alguma
coisa. Não ouvia apenas aqueles ruídos de passos. O pavor tomou conta de
mim. Queria abrir os olhos, mas não conseguia. E se eu não estivesse na
minha cama? Pensei em gritar por socorro. Minha voz não saía. Poderia ser
novamente a sala com o espelho. Foi quando senti um golpe na testa. Abri o
olho e vi um paciente esfarrapado e fedorento com uma caneca na mão.
Cansado de batê-la no meu braço, começou a usá-la na minha cabeça.
Levantei de uma vez só, tomei a caneca da mão dele e a joguei longe.
O interno deu uma gargalhada e saiu pulando com as mãos na cabeça para
procurar a caneca. O louquinho repetia a mesma frase até encontrá-la. Ele
dizia: “Meu nome não é Gabriel. Eu sou Lúcifer, o anjo do mal!”. Eu sabia
que não adiantava conversar com ele ou contrariá-lo.
Nada mais me surpreendia lá dentro, há muito tempo. Só me restava
passar os dias. Já não tinha certeza se sairia realmente dali. E, se eu saísse,
como eu ia encarar a vida lá fora? Nada mais seria como antes.
O raciocínio lógico há muito já não fazia parte da minha rotina.
DE VOLTA PARA CASA

Depois de nove meses de internação, um boato dava conta de que eu não


servia mais como funcionário nem como paciente no Juquery. Aquela
sessão de perguntas e respostas era na verdade uma espécie de perícia
médica que servia para determinar minha aposentadoria por invalidez.
Antes de deixar a Segunda Clínica, meu nome ainda teria que sair no Diário
Oficial, mas como eu já não aguentava mais viver lá dentro, resolvi ir ao
campo de futebol pegar o saco com minha muda de roupa para me trocar e
ir embora para minha casa sem esperar pelos trâmites burocráticos.
Se alguém encontrasse meu prontuário, que provavelmente teria
pegado fogo, veria o carimbo de evadido. Mas ninguém foi atrás de mim,
nem o doutor Giles, muito menos a polícia; eu só seria levado de volta se
alguém me encontrasse perambulando pelas ruas de Franco da Rocha com o
uniforme sujo, em frangalhos, e com a cabeça raspada. Não existia um
departamento de busca de evadidos e nunca vi um funcionário ser
designado para cumprir esse tipo de tarefa. Só mais de dez anos depois
recebi um documento com a declaração que eu tinha recebido alta médica
naquela época.
Obviamente eu não estava lá para ver o que aconteceu na hora da
contagem dos pacientes, mas tenho certeza que não aconteceu nada
diferente do habitual. Algum funcionário não me encontrou e então colocou
no livro de contagem que um paciente estava faltando. Em seguida, ele
comunicou a chefia que, por sua vez, cruzou os braços e deixou esse
assunto de lado.
Apesar de eu ser um evadido, o Juquery tinha meu endereço e eu ia lá
receber o pagamento da minha aposentadoria. Também continuei me
consultando com o doutor Giles, e ele nunca tocou no assunto da minha
saída sem qualquer trâmite burocrático. Acho que tanto ele como os outros
psiquiatras pelos quais passei até hoje tinham muito trabalho, além do meu
caso, para dar conta.
Se eu tivesse morrido, meu destino poderia ser o enterro como
indigente, e só minha família me procuraria em vão. O cemitério do
Juquery está cheio de pacientes enterrados em covas sem identificação.
Acho que até a minha sogra foi parar lá. Não há nenhuma documentação
que comprove esse fato, mas nunca recebemos qualquer tipo de
comunicado informando seu paradeiro. Ela foi internada depois de cair de
um caminhão de boias-frias e bater a cabeça no asfalto. Foi levada ao
Juquery pela polícia de Minas Gerais, porque o acidente deve ter acontecido
em Pouso Alegre.
O nome da mãe da minha mulher é Ana Luiza da Silva. Ela foi
internada na Primeira Colônia Feminina logo que comecei a trabalhar no
Juquery. Fomos visitá-la duas ou três vezes, não me lembro bem, mas um
dia retornamos à colônia para vê-la e ninguém sabia de seu paradeiro.
Minha sogra pode ter sido transferida para outra colônia ou instituição
psiquiátrica no Brasil, mas nunca recebemos qualquer tipo de comunicado.
Mesmo como funcionário, eu não tinha acesso às clinicas e às colônias
femininas.
Na verdade, ninguém estava preocupado em me curar. Tanto fazia eu
estar dentro ou fora do Juquery. Eu só sei que passei no concurso público e
comecei a trabalhar como atendente de enfermagem no Hospital
Psiquiátrico, depois fui transferido para tomar conta de bandidos e acabei
me transformando em um paciente. Fui engolido e cuspido pelo sistema
como uma pessoa bem diferente daquela que sonhava em sair por aí
pilotando uma cinquentinha.
Os dias que se seguiram à minha saída foram muito estranhos. Apesar
de estar livre dos pacientes, dos capas-brancas e de toda a sujeira e loucura
que impregnavam o Juquery, acho que acabei levando boa parte de tudo
aquilo para o lado de fora.
Não tenho ideia de como foi minha primeira noite fora do Juquery,
mas pouco tempo depois percebi que estava com muita dificuldade para
dormir. Quando dava dez horas da noite, eu deitava e esperava o sono
chegar, mas, quando ele vinha me pegar, eu acordava assustado, achando
que estava morrendo. Logo em seguida, meu corpo começava a tremer e
não conseguia ficar na cama. Vagava pela casa ou permanecia a noite toda
vendo TV na sala até adormecer. Foi aí que percebi qual era a solução para
o meu problema. Levei o televisor para o quarto e passei a deixá-lo ligado
até o dia nascer. Assim, garanto uma noite de sono bem tranquila até hoje.
Mas como toda regra tem pelo menos uma exceção, nem sempre a TV
garante meu sossego noturno. Se eu ouvir a frase “Nossa, como você está
magro”, já acho que vou morrer; fico ofegante, meu corpo treme e passo a
medir a pressão a todo instante. À noite, o pânico toma conta de mim com
mais força. Só sossego quando vou ao hospital ver um médico.
Às vezes, ninguém precisa falar nada. Basta acordar e me colocar na
frente de um espelho para ter a certeza de que estou muito magro e que
tenho pouco tempo de vida. E se alguém está doente, quase sempre fico
com os mesmos sintomas.
Tenho um primo que há alguns anos descobriu que estava com câncer
de próstata. Foi só ele contar que estava doente para eu começar a sentir
dores agudas nos rins. Corri para o médico e implorei à secretária para que
encaixasse um atendimento imediatamente. Quando ela me disse que o
doutor sairia de férias em poucos minutos e só teria agenda para dali a três
meses, perdi a noção do perigo e invadi a sala dele. Como já me conhecia,
ele não se abalou e foi me acalmando aos poucos. Ele me examinou e
afirmou que eu não tinha nada.
Passei um bom tempo tranquilo depois desse susto. Mas, depois de
uma partida de futebol, acordei sentindo fortes pontadas no peito. Fui ao
hospital imediatamente, mas o atendimento demorou uma eternidade. Saí de
casa às sete da manhã e às onze horas nenhum médico tinha dado sinal de
vida. Comecei a suar frio e a dor no peito aumentou. Tive a impressão de
que a qualquer momento eu morreria sufocado. Uma enfermeira percebeu
que eu não estava passando bem e resolveu tirar minha pressão. Estava
altíssima, marcando 18 por 12.
Finalmente o médico apareceu e pediu que eu fosse submetido a um
eletrocardiograma. O curioso é que, quando ele pediu o exame, consegui
me acalmar. Mas, ao voltar à sala dele, percebi que aquele doutor estava
muito nervoso. Olhou para o exame e afirmou categoricamente, sem olhar
na minha cara, que eu tinha apenas oito meses de vida. Aquela notícia caiu
como uma bomba que explodiu no meu colo. Não sei como voltei para casa,
mas me afastei do futebol e novamente dos banhos.
O médico receitou propanolol para tratar do meu problema. Como
efeito colateral, meu corpo começou a inchar. Li na bula que quando isso
começasse a acontecer o medicamento teria que ser suspenso. Então,
quando eu achava que meu tempo de vida estava chegando ao fim, procurei
por um cardiologista de Jundiaí. Levei uma bateria de exames e, depois de
ele analisar tudo com muita calma, sorriu para mim e disse que minha saúde
estava na mais perfeita ordem e que eu não tinha motivos para me
preocupar em encomendar o caixão. Também suspendeu de vez o
propanolol. Respirei aliviado, mas as pontadas no peito nunca me
abandonaram.
Hoje em dia tomo cinco remédios de manhã e dois à tarde. E a cada
oito horas ponho para dentro três comprimidos de diazepam, além de
paroxetina, um antidepressivo. Quando pego uma gripe forte e minha
garganta inflama, não tomo aspirina ou qualquer outro tipo de comprimido;
sem a ajuda de um farmacêutico ou enfermeiro, corto o mal pela raiz
aplicando uma injeção de Benzetacil em mim mesmo. Sempre leio a bula
dos remédios que tomo, mas nunca fico satisfeito depois de analisá-las do
começo ao fim. Por isso, acabo aumentando e diminuindo a dose das
medicações de acordo com aquilo que estou sentindo.
Vou ao psiquiatra uma vez por mês, mas ele mal fala comigo. Nossa
conversa se resume a ele me perguntar como estou, para eu então responder
que o diazepam acabou. Então ele me dá outra receita. Só em uma ocasião
nossa conversa tomou um rumo diferente. Ele olhou para minha mão e
disse: “Suas mãos estão tremendo muito. Acho que isso pode ser
Alzheimer!”. Apesar de a declaração do doutor não ser um diagnóstico
preciso, aquilo me apavorou. Saí do consultório e fui para casa contar para
minha mulher. Fiquei trancado no quarto esperando pelo pior durante mais
de uma semana. Só quando consegui marcar uma consulta com um
cardiologista que, mais uma vez, me tranquilizou ao afirmar que eu não
sofria de Alzheimer é que consegui respirar aliviado.
Esse alívio durou apenas alguns meses, até eu voltar para minha
consulta habitual e o psiquiatra demorar para me atender. A recepcionista
viu que meu corpo estava tremendo e minha camisa estava empapada de
suor em um dia de sol ameno. A moça me pegou pelo braço, mas quando
levantei, quase desmaiei. Tive que sentar de novo, tomar fôlego e levantar
novamente. Ela foi comigo até uma salinha onde uma enfermeira mediu
minha pressão. Quando a enfermeira disse que o pulso e a pressão estavam
normais, o mal-estar passou imediatamente. Então fui atendido e saí
novamente com minha receita de diazepam.
Quando o doutor abriu a porta para eu ir embora, vi na sala de espera
gente falhando mais do que eu. Algumas pessoas se coçavam. Outras
piscavam sem parar. Um senhor de mais ou menos quarenta anos, já com
cabelos brancos, andava de um lado para o outro resmungando palavras
silenciosas.
Percebi que precisava me controlar. Aquela cena me transportou a um
passado que eu nunca consegui esquecer.
Na verdade, tenho muita dificuldade em controlar minha ansiedade.
Se, por acaso vou a um boteco e estou esperando alguém, a cerveja ajuda a
amenizar os tremores e calafrios. Diferentemente do diazepam, que leva
pelo menos meia hora para fazer efeito e dá sono, um gole de cerveja gelada
proporciona efeito imediato e me deixa desperto.
Ninguém nunca entendeu como uma pessoa com o meu histórico de
ansiedade consegue ficar tranquila depois de acidentes. Poucos anos atrás,
despenquei da laje da minha casa. Foi um tombo de quatro metros de altura.
Ralei minha cabeça no concreto do muro antes de batê-la no chão. Fui
levado às pressas ao hospital e me mantive consciente e calmo o tempo
todo. Quando os enfermeiros me colocaram em uma cama na UTI, eu
pensava que tinha apenas uma vida, mas que tudo ficaria bem. Nessa hora
não tive medo da morte. Minha pressão e batimentos permaneceram
estáveis o tempo todo. Saí do hospital dois dias depois, sem nenhuma
fratura; só precisei ficar com a cabeça enfaixada para tirar os 34 pontos uma
semana depois.
Só uma coisa me incomodou durante a internação. Quando eu me
virava na cama, o bipe do monitor cardíaco ficava contínuo, sem apitar.
Nesse momento, eu achava que ia morrer, porque eu tinha perdido o
controle do meu coração. Então gritei até fazer com que a enfermeira
desligasse aquele barulho e deixasse apenas a imagem na tela.
O JUQUERY SEMPRE DENTRO DE MIM

Às vezes acabo dando uma volta pelas galerias das Clínicas Psiquiátricas.
Geralmente isso acontece quando tenho consulta na psiquiatria no prédio,
hoje restaurado, que antes abrigava o Pavilhão Escola. Por coincidência,
esse é o mesmo local onde aconteceu a reunião com os diretores, um
psiquiatra e os administradores das colônias pouco antes da minha
internação. Ao lado, encontra-se o Hospital Estadual de Franco da Rocha,
construído em 2011, uma construção moderna que não lembra em nada
qualquer um dos lugares nos quais trabalhei e fiquei internado.
As antigas construções ainda continuam lá, mas restam pouquíssimos
pacientes. A maioria dos dormitórios, corredores e pátios permanecem
vazios dia e noite. Quase não reconheço o local onde passei oito anos da
minha vida. O mato ocupou os jardins e agora só cachorros perambulam
pelos pátios, enquanto os gatos dormem ou se espreguiçam na sombra. As
grossas paredes das clínicas permanecem em pé, mas a pintura amarela
desbotou e o reboco está se soltando, revelando os tijolos robustos
empregados na construção com mais de cem anos. Os pilares de ferro,
apesar de estarem cobertos com uma camada de ferrugem, ainda sustentam
a cobertura dos corredores de acesso entre as clínicas. Algumas telhas
desapareceram, mas a maioria segue firme, presa por grossos caibros de
madeira.
Lamento o estado em que se encontra o prédio do setor administrativo
do Hospital Psiquiátrico. Em dezembro de 2005, o fogo destruiu seus dois
andares, sobrando apenas as paredes e uma parte da cobertura do piso
inferior em uma de suas laterais. O busto de bronze do doutor Franco da
Rocha sobreviveu, mas ficou todo chamuscado. Dizem que os livros da
biblioteca, os arquivos com os prontuários dos pacientes e os registros dos
funcionários se transformaram em cinzas depois de seis horas de incêndio.
Os vitrais, a estrutura elétrica, o telhado e o piso, que tinham acabado de ser
trocados, desapareceram para sempre.
O campo de futebol do Hospital Central também não escapou do
abandono. O mato tomou conta do gramado e das arquibancadas ao crescer
pelas rachaduras do cimento. Se eu não tivesse jogado bola, nem poderia
imaginar que as partidas finais dos campeonatos de funcionários das
clínicas, das colônias e do Manicômio aconteciam ali.
A Sexta Colônia, onde trabalhei depois de ser transferido do
Manicômio, também está irreconhecível. Os pátios, que hoje permanecem
vazios, concentravam um bando de homens pelados ou com roupas
rasgadas. Ninguém mais vive nos dormitórios. Apenas o prédio da
administração abriga, coincidentemente, o setor administrativo do Parque
Estadual do Juquery. Os jardins, que tinham plantas e flores muito bem
cuidadas, disputam agora espaço com o mato e as ervas daninhas. O campo
de futebol e as canchas de bocha e malha desapareceram. Do passado,
ficaram apenas os prédios de alvenaria e os coqueiros centenários.
Do lado de fora da muralha, crianças brincam em um parquinho. Os
adultos se embrenham na mata por trilhas bem sinalizadas. Acredito que
muitos frequentadores do parque não têm noção do que realmente acontecia
por ali nem imaginam que de manhã bem cedo a gente passava pelas camas
dos pacientes para verificar se alguém tinha morrido.
Agora vejo os guardas de empresas particulares que, com seu olhar
intimidador, impedem meu acesso aos lugares nos quais vivi por tanto
tempo. Os pacientes que ficavam abandonados foram quase todos embora
ou acabaram morrendo sem fazer falta para ninguém.
Qualquer um que conheceu o Juquery nos anos 1970 deve se perguntar
o que realmente aconteceu com os loucos. Eles foram curados? Não sei a
resposta, mas acho que muitos deles foram enterrados como indigentes no
Cemitério do Juquery. Tenho a nítida impressão de que o Juquery está à
mercê da ação implacável do tempo, sendo corroído aos poucos dia após
dia, agonizando lentamente como um doente acamado sem qualquer
esperança de continuar vivendo neste mundo.
Quando eu trabalhava no Juquery, ouvia gritos e gemidos dos
pacientes por toda a parte. Hoje há o silêncio que só é interrompido durante
a semana pelo movimento das pessoas que vão ao novo hospital. Aos fins
de semana não se escuta nenhuma voz.
Mas o barulho dos pacientes com os quais convivi nunca abandonou
minha mente. Nem preciso ir até lá para minha lembrança trazer de volta o
som do sofrimento daquele batalhão de seres sujos e maltrapilhos que
perambulava pelos corredores e os pátios das clínicas.
O Juquery nunca me abandonou. Os habitantes daquele mundo vão
morar sempre na minha cabeça. Jamais voltei a trabalhar no Hospital, nas
colônias nem no Manicômio, que acabou virando um presídio. Só que, em
pensamento, estarei dentro desses lugares para sempre.
Vista panorâmica do Hospital Central
Escadaria do prédio da Administração do Hospital Central – acesso aos escritórios e à biblioteca
Edifício da administração do Hospital Central
Um dos pavilhões masculinos do Hospital Central
Galerias entre os pavilhões do Hospital Central
Residência do doutor Franco da Rocha, primeiro diretor do Juquery – atual Museu Osório César
Torre do relógio no edifício da padaria e do refeitório – Hospital Central
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, somos gratos às nossas famílias. Também manifestamos


nossa gratidão à jornalista Regina Volpato e à produção do programa Casos
de Família, que, em junho de 2007, nos colocou em contato,
proporcionando assim o início da parceria que culminou com a realização
deste livro. Agradecemos também a algumas pessoas que, com muita boa
vontade, sem cobrar nada, nunca hesitaram em nos ajudar: Estevão
Azevedo, que leu e releu os originais e nos colocou de volta nos trilhos
sempre que precisamos; Fábio Bonillo, que, graças ao seu cuidado e
paciência, eliminou imperfeições no texto e apontou caminhos para que o
trabalho avançasse; Jussara Fino, que, com sua dedicação e disposição,
construiu o projeto gráfico e a capa; Delfin, do Studio DelRey, que com seu
talento criou a ilustração da capa; professor José Parada, que gentilmente
cedeu as fotos do Juquery; e Mary Lou Paris, que abriu as portas da
Terceiro Nome e decidiu publicar este livro.
Walter Farias agradece, antes de tudo, a Deus, e também ao psiquiatra
Giles Luciano Espósito e à cardiologista Isabela M. Lopes, do Citicor.
Por fim, não poderíamos deixar de agradecer a um grupo de pessoas
que, antes mesmo de o livro ficar pronto, nos ajudou a transformá-lo em
realidade, colaborando com o projeto de financiamento coletivo criado no
site Idea.me:

Alexsandro Santos • Ana Lúcia Marques de Souza • Ana Paula Cavagnoli •


Angelo Isaias Baggio • Beth Mie • Bernardo Obadia • Bianca Schmid •
Camilo Y. Campo • Carlos Eduardo Reinaldo Gimenes • Cayube Galas •
Célia Barreto • Charles Salim • Cláudia Villalobo Quero • Cristiano
Siqueira • Daniela Queiroz • Débora Prado • Deolinda do Carmo Casimiro •
Eleonora Paoletti • Estevão Azevedo • Ezequiel José Sonim • Fábio Bonillo
• Fábio Lima • Fernanda Carvalho • Fernanda Gomes de Sá Paulo Poli •
Fernanda Navarro Sonim • Giancarlo Pincelli • Glaucio Cassiano • Igor de
Almeida Giangrossi • Inês Ferreira da Silva Sonim • Iron Mantovanello •
Israel Joca • Jorge Villegas • José Eurico da Conceição • José dos Santos
Sonim • Juliana de Araujo Rodrigues • Juliel Souza da Silva • Kiko
Celeguim • Leandro Dias • Leonardo da Silva • Letícia Méo • Letícia
Oppido de Castro • Luci Mara Gimenes • Luciana Mestrinheri • Luis Pires •
Luiz Fernando Curuci • Marcela Otero Sonim • Marcella Bauer • Marcelo
Boufleur • Marcelo Gianesi Bellintani • Marcus Brandino • Maria Cristina
Schall • Maria Dolores de Lima • Mariane Pontes • Marley Cristiane
Ribeiro • Masao Frone • Naruna Dias Galas • Nayra Schall • Nelson
Cebrian • Patricia Sala • Paula Korosue • Paula Rizzo • Paulo Dini Staliano
• Priscila Schall • Rafaela Otero Sonim • Raquel Ribeiro • Rodrigo Boufleur
• Ronny Raupp • Sandra Machado • Silvia Pedrosa • Silvino Augusto
Sonim • Silvio Vaz • Simone Dias dos Santos • Simone Gonçalves Moretto
• Solange Otero Sonim • Suzana Ezquina • Talita Lima • Tatiana Munuera •
Tatiane Lopes Patrocínio da Silva • Thaís Teixeira • Tiago Garcia Saito •
Virginia Calderón • Xênia Maria Silva • Yara Paoletti Cunha

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