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ALDOUS

HUXLEY
O macaco
e a essência
tradução
Fábio Bonillo
Sumário
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I. Tallis
II. O roteiro
Notas
Sobre o autor
Créditos
I. Tallis

Era o dia do assassinato de Gandhi; mas no Calvário os passantes


estavam mais preocupados com o conteúdo de suas cestas de
piquenique do que com a possível importância do (convenhamos)
deveras trivial evento que acabaram por testemunhar. A despeito do
que possam dizer todos os astrônomos, Ptolomeu estava
perfeitamente certo: o centro do universo é aqui, e não lá. Gandhi
pode estar morto; mas deste lado da escrivaninha do escritório,
deste lado da mesa de almoço no Studio Commissary, Bob Briggs
estava interessado em falar somente de si.
“Você sempre foi de tanta ajuda”, garantiu-me Bob enquanto se
preparava, não sem deleite, para narrar o mais recente
desdobramento de sua história.
Mas no fundo, como eu muito bem sabia e como o próprio Bob
sabia ainda melhor que eu, ele não desejava de fato ser ajudado. Ele
bem que gostava de ter suas concubinas e, mais ainda, gostava de
falar de seus apuros. Os rolos em que se metia e sua dramatização
verbal possibilitavam-lhe ver a si mesmo como se fora todos os
poetas românticos personificados num só — Beddoes cometendo
suicídio, Byron cometendo fornicação, Keats fulminado por Fanny
Brawne, Harriet fulminada por Shelley. E ao se imaginar como todos
os poetas românticos, conseguia esquecer-se um pouco das duas
causas mestras de seu infortúnio — o fato de não ter nenhum dos
talentos e muito pouco da potência sexual dos supracitados.
“Chegamos num ponto”, disse ele (tão tragicamente que me
ocorreu que teria se saído melhor como ator do que como escritor de
roteiros), “chegamos num ponto, Elaine e eu, em que nos sentíamos
como... como Martinho Lutero.”
“Martinho Lutero?”, repeti um tanto assombrado.
“Você sabe... ich kann nicht anders. Simplesmente não
poderíamos, não poderíamos mesmo fazer nada senão partirmos
juntos para Acapulco.”
E Gandhi, refleti, nada pôde fazer senão resistir passivamente à
opressão e ser preso e por fim baleado.
“Então lá estávamos”, prosseguiu ele. “Pegamos um avião e
fomos para Acapulco.”
“Finalmente!”
“Que quer dizer, finalmente?”
“Bem, você vem pensando sobre isso há um bom tempo, não?”
Bob pareceu aborrecido. Mas me lembrei de todas as ocasiões
anteriores em que ele falara comigo sobre o problema. Devia ou não
devia tomar Elaine como sua amante? (Era essa sua maneira
admiravelmente ultrapassada de exprimi-lo.) Devia ou não devia
pedir o divórcio de Miriam?
Divórcio este da mulher que num sentido muito prático ainda era
o que sempre havia sido — seu único amor; mas, em outro sentido
muito prático, também Elaine era seu único amor — e o seria ainda
mais caso ele finalmente decidisse (e eis por que ele não conseguia
decidir) “tomá-la como sua amante”. Ser ou não ser — o solilóquio
delongara-se durante quase dois anos, e se Bob pudesse ter feito
tudo à sua maneira, teria se delongado dez anos mais. Agradava-o
que seus rolos fossem crônicos e sobretudo verbais, nunca tão
intensamente carnais a ponto de submeter sua incerta virilidade a
mais uma humilhante prova. Mas sob a influência de sua eloquência,
da barroca fachada daquele perfil e dos cabelos prematuramente
níveos, Elaine havia evidentemente se cansado da ligação
meramente crônica e platônica. Bob foi confrontado com um ultimato:
seria ou Acapulco ou um rompimento completo.
Então lá estava ele, fadado e comprometido ao adultério não
menos irrevogavelmente do que estivera Gandhi fadado e
comprometido à não violência, à prisão e ao assassínio, embora
Gandhi, poder-se-ia suspeitar, tivesse mais numerosas e mais
profundas inquietações. Inquietações as quais o incidente havia
perfeitamente justificado. Pois embora o pobre Bob não me
houvesse de fato contado o que acontecera em Acapulco, o fato de
que Elaine estivesse agora, como ele colocou, “agindo
estranhamente” e tivesse sido avistada várias vezes na companhia
daquele inefável barão moldavo, cujo nome felizmente esqueci,
parecia contar toda a ridícula e patética história. E entrementes
Miriam não apenas se recusara a dar-lhe o divórcio: ela aproveitara a
oportunidade da ausência de Bob e o usufruto do seu poder como
advogado para transferir o título da fazenda, dos dois carros, dos
quatro prédios de apartamentos, dos lotes de esquina em Palm
Springs e de todos os seguros do nome dele para o seu. E
entrementes ele devia trinta e três mil dólares ao governo por calote
no imposto de renda. Mas quando ele pediu ao seu produtor aquele
extra de duzentos e cinquenta dólares semanais que lhe havia sido
tão prometido, fez-se apenas um longo e prenhe silêncio.
“O que me diz, Lou?”
Medindo as palavras com solene ênfase, Lou Lublin deu sua
resposta.
“Bob”, disse ele, “neste estúdio, nestes tempos, nem o próprio
Jesus Cristo conseguiria um aumento.”
O tom era amigável; mas quando Bob tentou insistir, Lou
esmurrou sua mesa e disse-lhe que ele estava sendo antiamericano.
Isso bastou.
Bob prosseguiu. Mas que belo tema, pensava eu, para uma
maravilhosa pintura religiosa! Cristo diante de Lublin, suplicando por
um aumento de apenas duzentos e cinquenta pratas semanais e
sendo categoricamente rechaçado. Teria sido um dos temas
preferidos de Rembrandt, desenhado, gravado, pintado uma porção
de vezes. Jesus virando-se tristemente em direção à treva do
imposto devido, enquanto no dourado facho de luz, reluzindo com
joias e relevos metálicos, Lou, metido num monstruoso turbante,
ainda ri triunfantemente do que acaba de fazer ao Varão de Dores.
E haveria também a versão de Breughel sobre o tema. Uma
estupenda vista sinóptica do estúdio todo; um musical de três
milhões de dólares em plena produção, com cada detalhe técnico
fielmente reproduzido; duas ou três mil personagens, todas
perfeitamente caracterizadas; e no canto inferior direito uma longa
busca por fim revelaria um Lublin, não maior que um gafanhoto,
cobrindo de contumélias um Jesus menor ainda.
“Mas tenho uma ideia absolutamente deslumbrante para um
original”, dizia Bob com aquele entusiasmo otimista que é a
alternativa ao suicídio de um homem desesperado. “Meu agente está
completamente louco por ela... E acha que devo conseguir vendê-la
por cinquenta ou sessenta mil.”
Ele começou a contar a história.
Ainda pensando no Cristo perante Lublin, visualizei a cena tal
como Piero a teria pintado — a composição, luminosamente
explícita, uma equação de vazios e sólidos, de matizes
harmonizadores e contrastantes; as personagens em adamantino
repouso. Lou e seus produtores-assistentes estariam todos vestindo
aqueles toucados faraônicos, aqueles imensos cones invertidos de
feltro branco ou colorido que no universo de Piero servem ao duplo
propósito de realçar a natureza sólido-geométrica do corpo humano
e a estranheza dos orientais. Devido à sua suavidade sedosa, os
vincos de cada vestimenta apresentariam a inevitabilidade e
definitividade de silogismos esculpidos em pórfiro, e no todo
sentiríamos a ubíqua presença do Deus platônico, para sempre
matematizando o caos na ordem e na beleza da arte.
Mas a partir do Partenon e do Timeu uma lógica capciosa
conduz à tirania que, na República, se sustenta como a forma ideal
de governo. No campo da política, o que equivale a um teorema é
um exército perfeitamente disciplinado; a um soneto ou uma pintura,
um Estado policial sob uma ditadura. O marxista refere a si mesmo
como científico, e a esta reivindicação o fascista acrescenta outra: é
ele o poeta — o poeta científico — de uma nova mitologia. Ambos
justificam suas pretensões; afinal cada um aplica a situações
humanas os procedimentos que se provaram eficientes no
laboratório e na torre de marfim. Eles simplificam, abstraem,
eliminam tudo aquilo que, segundo seus propósitos, é irrelevante e
ignoram tudo o que escolhem considerar prescindível; impõem um
estilo, torcem os fatos para comprovar uma hipótese favorita,
confiam ao cesto de lixo tudo aquilo que, segundo sua consciência,
carece de perfeição. E porque ora agem como bons artistas, ora
como consistentes pensadores e ora como experimentadores
calejados, as prisões estão cheias, os hereges políticos matam-se de
trabalhar como escravos, os direitos e as preferências de meros
indivíduos são ignorados, os Gandhis são assassinados, e de manhã
até a noite um milhão de professores escolares e locutores
proclamam a infalibilidade dos chefes que calharam de no momento
estar no poder.
“E no fim das contas”, dizia Bob, “não há razão para que um
filme não possa ser uma obra de arte. Esse maldito comercialismo...”
Ele falou com toda a justa indignação de um artista inepto
denunciando o bode expiatório que escolheu para levar a culpa pelas
lamentáveis consequências de sua própria falta de talento.
“Você acha que Gandhi tinha interesse em arte?”, perguntei.
“Gandhi? Não, é claro que não.”
“Acho que você tem razão”, concordei. “Nem em arte nem em
ciência. E foi por isso que nós o matamos.”
“Nós?”
“Sim, nós. Os inteligentes, os ativos, os previdentes, os crentes
na Ordem e na Perfeição. Ao passo que Gandhi era um reacionário
que acreditava nas pessoas apenas. Esquálidos individuozinhos
governando a si próprios, cidade por cidade, e louvando o Brahman
que também é Atman. Era intolerável. Não à toa nos livramos dele.”
Mas mesmo enquanto eu falava, pensava que aquela não era a
história toda. A história toda incluía uma inconsistência, quase uma
traição. Esse homem que acreditava apenas nas pessoas envolvera-
se na loucura de massa sub-humana do nacionalismo, nas pretensas
super-humanas (mas na realidade diabólicas) fundações do Estado-
nação. Ele envolvera-se nessas coisas imaginando que poderia
mitigar a loucura e converter o que era satânico no Estado em algo
parecido com humanidade. Mas o nacionalismo e a política do poder
haviam se provado demais para ele. Não é a partir do centro, a partir
de dentro da organização, que o santo consegue curar nossa
arregimentada esquizofrenia; é apenas a partir de fora, a partir da
periferia. Se ele se torna parte da máquina, na qual a loucura coletiva
está encarnada, uma dentre duas coisas está fadada a ocorrer. Ele
pode permanecer ele mesmo, e nesse caso a máquina irá usá-lo o
quanto puder e, assim que se tornar inutilizável, rejeitá-lo ou destruí-
lo. Ou ele será transformado à semelhança do mecanismo com o
qual e contra o qual trabalha, e nesse caso testemunharemos Santas
Inquisições e alianças com qualquer tirano disposto a garantir
privilégios eclesiásticos.
“Bem, voltando ao asqueroso comercialismo deles”, disse Bob
por fim. “Deixe-me dar um exemplo...”
Mas eu estava pensando que o sonho da Ordem gera tirania; o
sonho da Beleza, monstros e violência. Atena, a patrona das artes, é
também a deusa da guerra científica, a celeste comandante de todo
Estado-maior. Nós o matamos porque, após ter brevemente (e
fatalmente) jogado o jogo político, ele recusou-se a continuar
sonhando nosso sonho de uma Ordem nacional, de uma Beleza
social e econômica; porque tentou trazer-nos de volta aos concretos
e cósmicos acontecimentos das pessoas reais e à Luz interior.
As manchetes que eu havia lido naquela manhã eram parábolas;
os eventos que registravam, uma alegoria e uma profecia. Com esse
ato simbólico, nós que tanto ansiávamos pela paz rejeitáramos o
único meio possível para a paz e emitíramos uma advertência a
todos que, no futuro, viessem a advogar quaisquer condutas que não
aquelas que levam inevitavelmente à guerra.
“Bem, se você terminou seu café”, disse Bob, “vamos indo.”
Nós nos levantamos e saímos à luz do sol. Bob pegou meu
braço e apertou-o.
“Você tem sido de muita ajuda”, garantiu-me novamente.
“Queria poder acreditar nisso, Bob.”
“Mas é verdade, é verdade.”
E talvez fosse verdade, no sentido de que repassar os seus
apuros perante um público compadecido o fazia sentir-se melhor,
mais de acordo com os românticos.
Caminhamos por um tempo em silêncio — passando as Salas
de Projeção e por entre os churriguerescos bangalôs dos executivos.
Diante da entrada do maior deles uma grande plaqueta de bronze
trazia a inscrição: LOU LUBLIN PRODUCTIONS.
“E quanto àquele aumento de salário?”, perguntei. “Que tal
entrarmos e tentar mais uma investida?”
Bob soltou uma risadinha pesarosa, e houve outro silêncio.
Quando por fim falou, foi num tom pensativo.
“Que azar, o do velho Gandhi”, disse ele. “Creio que seu grande
segredo foi não desejar nada para ele mesmo.”
“Sim, creio que esse era um dos segredos.”
“Por Deus, quisera eu não desejar tanto as coisas.”
“Digo o mesmo”, concordei fervorosamente.
“E quando enfim se consegue o que desejou, nunca é o que se
pensava que seria.”
Bob suspirou e recaiu em silêncio. Pensava, sem dúvida, em
Acapulco, na horrível necessidade de passar do crônico ao agudo,
do vagamente verbal ao muito definitiva e concretamente carnal.
Emergimos da rua de bangalôs dos executivos, atravessamos
um estacionamento e entramos num cânion entre altaneiros estúdios
de gravação. Um trator passou, puxando um reboque baixo, sobre o
qual estava a metade inferior de uma fachada ocidental de uma
catedral italiana do século XIII.
“É para Catarina de Siena.”
“O que é isso?”
“O novo filme da Hedda Boddy. Trabalhei no roteiro dois anos
atrás. Então o passaram para Streicher. E depois disso foi reescrito
pela equipe O’Toole-Menendez-Boguslavsky. É péssimo.”
Outro reboque passou estrepitando com a metade superior da
porta da catedral e um púlpito de Niccolò Pisano.
“Se parar para pensar bem”, disse eu, “ela é bem parecida com
Gandhi, de certa forma.”
“Quem? Hedda?”
“Não, Catarina.”
“Ah, entendo. Pensei que estivesse falando da tanga dela.”
“Eu estava falando de santos na política”, disse eu. “Eles na
realidade não a lincharam, é óbvio; mas isso só porque ela morreu
muito jovem. As consequências de sua política não tiveram tempo
para aparecer. Você trata disso tudo no roteiro?”
Bob balançou a cabeça.
“É deprimente demais”, disse ele. “O público gosta de ver os
astros tendo sucesso. Além disso, como se poderia falar da política
da Igreja? Certamente soaria anticatólico e poderia muito bem soar
antiamericano. Não, nós apostamos no garantido: enfatizamos o
garoto a quem ela ditava suas cartas. Ele está ferozmente
apaixonado... Mas tudo é sublimação e espiritualidade, e depois que
ela morre, ele vai para uma ermida e reza diante da imagem dela. E
também tem esse outro garoto que de fato se insinuou para ela. É
mencionado nas cartas. Nós apostamos nisso, se é que vale alguma
coisa. Eles ainda esperam conseguir assinar com o Humphrey...”
Uma estridente buzina fez-nos pular.
“Cuidado!”
Bob pegou meu braço e puxou-me para trás. Vindo do pátio na
parte de trás do Departamento de Roteiro um caminhão de duas
toneladas emergiu na rua.
“Vocês não olham por onde andam?”, gritou o motorista ao
passar.
“Idiota!”, berrou Bob de volta; então, virando-se para mim: “Você
viu com o que está carregado?”, perguntou ele. “Com roteiros.” Ele
balançou a cabeça. “Eles os estão levando ao incinerador. Que é
onde merecem ficar. Um milhão de dólares em literatura.”
Ele riu com melodramática amargura.
Dezoito metros rua acima, o caminhão gingou
contundentemente para a direita. Sua velocidade devia estar
excessiva; propulsionada centrifugamente, meia dúzia de roteiros, do
topo, transbordaram na rua. Eram tal qual prisioneiros da Inquisição,
pensei eu, empreendendo uma prodigiosa fuga a caminho da
fogueira.
“O homem não sabe dirigir”, resmungava Bob. “Algum dia
desses ele ainda vai matar alguém.”
“Mas enquanto isso, vejamos quem se salvou.”
Peguei o roteiro que estava mais próximo.
“Uma senhorita vale tanto quanto um homem, de Albertine
Krebs!” Bob lembrava-se daquele roteiro. Era pavoroso.
“Bem, e o que acha de Amanda?” Folheei as páginas. “Devia ser
um musical. Eis um pouco de poesia:
‘Amelia precisa de uma refeição,
Mas Amanda precisa de um homem...’”
Bob não me deixou prosseguir.
“Chega, chega! Arrecadou quatro milhões e meio durante a
Batalha das Ardenas.”
Larguei Amanda e peguei outro dos volumes lá estatelados.
Este, notei eu, fora encadernado em verde, e não no carmesim
padrão do estúdio.
“O macaco e a essência”, li em voz alta a capa manuscrita.
“O macaco e a essência?”, repetiu Bob com certa surpresa.
Passei à folha de guarda.
“‘Argumento original de William Tallis, Cottonwood Ranch,
Murcia, Califórnia.’ E há aqui uma anotação a lápis. ‘Recibo de
rejeição enviado em 26/11/47. Sem endereço de devolução no envelope.
P/ incinerador’, duas vezes sublinhado.”
“Eles recebem milhares dessas coisas”, explicou Bob.
Entrementes eu olhava o miolo do roteiro.
“Mais poesia.”
“Cristo!”, disse Bob num tom de desgosto.
“‘Certamente é óbvio’”, comecei a ler:

‘Certamente é óbvio.
Não o sabe todo estudante?
Os fins são escolhidos pelo símio; apenas os meios são do
homem.
Alcoviteira dos pápios e tesoureira dos babuínos,
A razão vem a toda, sequiosa para ratificar;
Vem, lacaia da filosofia, subjugando-se a tiranos;
Vem, cafetina da Prússia, com a patente História de Hegel;
Vem, com a medicina, para administrar o afrodisíaco do Macaco-
Rei;
Vem, versejando e com Retórica, para escrever-lhe os
discursos;
Vem com o Cálculo para mirar-lhe os foguetes
Precisamente no orfanato além do oceano;
Vem, tendo já mirado, com lisonja para suplicar à
Nossa Senhora devotamente por um ataque certeiro.’

Fez-se silêncio. Olhamos um para o outro interrogativamente.


“Que acha disso?”, disse Bob por fim.
Dei de ombros. Realmente não sabia.
“De qualquer maneira, não jogue fora”, continuou ele. “Quero ver
como isso continua.”
Retomamos nossa caminhada, contornamos uma última
esquina, e lá, como um convento franciscano em meio a palmeiras,
estava a Casa dos Roteiristas.
“Tallis”, dizia Bob a si mesmo, ao entrarmos, “William Tallis...”
Ele balançou a cabeça. “Nunca ouvi falar dele. E de qualquer
maneira, onde fica Murcia?”
No domingo seguinte nós soubemos a resposta — soubemo-la
não somente em teoria e no mapa, mas por meio de experiência, por
ter ido lá, a 130 quilômetros por hora, no Buick conversível de Bob (ou
melhor, de Miriam). Murcia, Califórnia, era duas bombas vermelhas
de gasolina e uma minúscula mercearia além da margem sudoeste
do deserto de Mojave.
A longa estiagem havia irrompido dois dias antes. O céu estava
ainda nublado e um vento frio soprava insistentemente do oeste.
Fantasmagóricas debaixo de seu teto de névoa de ardósia colorida,
as montanhas San Gabriel estavam brancas com a neve recém-
caída. Mas no norte, lá longe no deserto, o sol brilhava numa
comprida e estreita faixa de luz dourada. Em todo o nosso redor se
encontravam os suaves e ricos cinza e prateados, os ouros-pálidos e
os castanhos-avermelhados da vegetação desértica — sálvia,
ambrósia, capim-de-touceira e trigo-sarraceno, e cá e acolá uma
estranhamente gesticulante árvore-de-josué, cascuda ou guarnecida
com espinhos secos e empenachada, na extremidade de seus
braços cheios de cotovelos, com grossos feixes de pregos verde-
metálicos.
Um velho homem surdo, a quem tivemos de gritar nossas
perguntas, por fim entendeu do que falávamos. Cottonwood Ranch
— é claro que ele conhecia. Peguem aquela estrada empoeirada ali;
rodem um quilômetro e meio até o sul; então virem a oeste, sigam a
vala de irrigação por mais um quilômetro, e lá estarão. O velho nos
quis contar muito mais sobre o lugar; mas Bob estava impaciente
demais para ouvir. Engrenou o carro e partimos.
Ao longo da vala de irrigação, os álamos e salgueiros eram
párias, agarrando-se precariamente a outro modo de ser, mais
simples e mais voluptuoso, em meio àquelas árduas vidas ascéticas
do deserto. Estavam agora desfolhados, meros esqueletos de
árvores, brancas contra o céu; mas era possível imaginar quão
intenso, sob o feroz e claro sol, seria o esmeralda de suas jovens
folhas dali a três meses.
O carro, que estava sendo guiado rápido até demais, chocou-se
pesadamente contra um declive inesperado. Bob praguejou.
“Eu não consigo imaginar por que um homem com juízo
escolheria viver no fim de uma estrada assim.”
“Talvez ele dirija por ela um pouco mais devagar”, atrevi-me a
sugerir.
Bob não condescendeu tanto a ponto de olhar para mim. O carro
estrepitava a uma velocidade inalterada. Tentei concentrar-me na
paisagem.
Lá fora, no chão do deserto, havia ocorrido uma silenciosa mas
quase explosiva transformação. As nuvens tinham se deslocado e o
sol agora brilhava sobre o mais próximo daqueles repentinos e
chanfrados montículos, que se elevavam tão inexplicavelmente,
como ilhas saindo da enorme planície. Agora há pouco eles estavam
enegrecidos e mortos. Então subitamente voltaram à vida; entre um
ensombrecido primeiro plano e um segundo plano de nublada
escuridão eles brilhavam como se com incandescência própria.
Toquei o braço de Bob e apontei.
“Agora você entende por que Tallis escolheu viver no fim desta
estrada?”
Ele deu uma olhadela, guinou contornando uma árvore-de-josué
caída, observou novamente durante uma fração de segundo e levou
os olhos de volta para a estrada.
“Me lembrou aquela gravura de Goya, você sabe qual. Uma
mulher cavalga um garanhão, e o animal está virando a cabeça e
tomando o vestido dela entre os dentes, tentando puxá-la, tentando
arrancar as roupas dela. E ela ri como uma maníaca num frenesi de
prazer. E em segundo plano há uma planície, com montículos
salientes, assim como esses. Só que se você olhar cuidadosamente
os montículos de Goya, vai ver que eles são na verdade animais
agachados, metade ratos, metade lagartos... tão grandes quanto
montanhas. Comprei uma reprodução para Elaine.”
Mas Elaine, refleti durante o subsequente silêncio, não havia
entendido a alusão. Ela permitira que o garanhão a arrastasse até o
chão; ela lá repousara, gargalhando e gargalhando,
incontrolavelmente, enquanto os grandes dentes lhe rasgavam o
corpete, estraçalhavam a saia em farrapos, arranhando a suave pele
logo abaixo com uma assustadora mas deliciosa ameaça, com a
formigante iminência da dor. E depois, em Acapulco, aqueles
imensos ratos-lagartos despertaram de seu sono pétreo, e de
repente o pobre e velho Bob se encontrou cercado não de Graças
deliciosamente esmorecidas, não da risonha tropa de Cupidos de
traseiros rosados, mas de monstros.
Mas entrementes havíamos chegado a nosso destino. Entre as
árvores ao longo da vala, vi uma casa branca de madeira debaixo de
um enorme álamo, com um moinho de vento num dos lados e um
celeiro de aço corrugado no outro. O portão estava fechado. Bob
parou o carro e saltamos. Uma tábua branca havia sido pregada na
coluna do portão. Nela, uma mão inábil pintara em cinabre uma
extensa inscrição.

A sanguessuga o beija, a lula o enlaça,


Do lascivo símio vem o toque conspurcante:
E gosta você da humana raça?
Não, não o bastante.
OU SEJA: MANTENHA DISTÂNCIA

“Bem, evidentemente viemos ao lugar certo”, disse eu.


Bob assentiu. Abrimos o portão, atravessamos uma ampla
extensão de terra batida e batemos à porta da casa. Ela foi aberta
quase que imediatamente por uma robusta mulher idosa de óculos,
trajando um vestido florido azul de algodão e um casaco vermelho
muito velho. Ela nos lançou um sorriso amigável.
“Pane no carro?”, indagou ela.
Balançamos a cabeça, e Bob explicou que vínhamos visitar o
senhor Tallis.
“O senhor Tallis?”
O sorriso dissipou-se de seu rosto; ela parecia solene e
balançou a cabeça.
“Não ficaram sabendo?”, disse ela. “O senhor Tallis faleceu faz
seis semanas.”
“Quer dizer que ele está morto?”
“Falecido”, insistiu ela, e então encetou a contar sua história.
O senhor Tallis alugara a casa por um ano. Ela e o marido foram
então morar na pequena e antiga choupana atrás do celeiro. Tinha
somente um toalete externo, mas eles estavam acostumados àquilo
na Dakota do Norte e afortunadamente aquele havia sido um inverno
cálido. De qualquer maneira, estavam contentes com o dinheiro,
considerando hoje em dia os preços de então; e o senhor Tallis não
poderia ser mais encantador, uma vez que se entendesse que ele
apreciava muito sua privacidade.
“Imagino que foi ele quem pôs aquele letreiro no portão.”
A velha senhora assentiu e disse que aquilo era até meio fofo;
ela pretendia deixá-lo lá.
“Ele estava doente havia muito tempo?”, perguntei.
“Nem um pouco”, respondeu ela. “Embora sempre dissesse que
tinha problemas cardíacos.”
E foi assim que ele faleceu. No banheiro. Ela o encontrou de
manhã ao levar-lhe seu quartilho de leite e sua dúzia de ovos diretos
da despensa. Frio como uma pedra. Deve ter jazido lá durante toda a
noite. Ela nunca sofrera tamanho choque em toda a vida. E depois,
que comoção foi não existir nenhum parente de que se tivesse
notícia! O doutor foi chamado e em seguida o xerife, e deveria haver
uma ordem judicial antes que o pobre homem pudesse ser
enterrado, que dirá antes de ser embalsamado. E então todos os
livros, os documentos e as roupas tiveram de ser embrulhados, e
selos foram postos nas caixas e tudo foi armazenado em algum lugar
em Los Angeles, na eventualidade de existir um herdeiro em alguma
parte. Bem, agora ela e o marido haviam voltado à casa, e ela sentiu-
se bastante mal sobre aquilo tudo, porque o pobre senhor Tallis tinha
ainda quatro meses de seu arrendamento em aberto e ele havia
pagado adiantado por tudo. Mas é claro que, por um lado, ela era
grata, agora que a chuva e a neve por fim haviam chegado — uma
vez que o toalete ficava dentro da casa, e não fora, como quando
eles estavam morando na choupana.
Ela pausou para retomar o fôlego. Bob e eu trocamos olhares.
“Bem, diante dessas circunstâncias”, disse eu, “acho que é
melhor irmos andando.”
Mas a velha senhora não quis nem ouvir.
“Entrem”, insistiu ela, “entrem.”
Hesitamos; então, aceitando seu convite, seguimo-la através de
uma minúscula entrada de vestíbulo até a sala de estar. Uma estufa
a óleo queimava num canto do aposento; o ar estava quente e um
cheiro quase palpável de comida frita e fraldas enchia a casa. Um
homenzinho velho como um duende estava sentado numa cadeira
de balanço próxima à janela, lendo as histórias em quadrinhos
dominicais. Perto dele uma jovem garota de semblante apreensivo —
ela não devia ter mais que dezessete anos — segurava no braço um
bebê e, com a outra mão, abotoava sua blusa rosa. A criança
arrotou; uma bolha de leite surgiu no canto de sua boca. A jovem
mãe deixou desabotoado o último botão e ternamente limpou-lhe o
beicinho. Através da porta aberta de outro aposento veio o som de
uma viçosa voz soprano cantando “Now is the Hour”, acompanhando
um violão.
“Este é o meu marido”, disse a velha senhora. “O senhor
Coulton.”
“Prazer em conhecê-los”, disse o duende, sem tirar os olhos dos
quadrinhos.
“E esta é nossa neta, Katie. Ela se casou ano passado.”
“Vejam só”, disse Bob. Ele cumprimentou a garota e abriu-lhe
um daqueles fascinantes sorrisos pelos quais era tão famoso.
Katie olhou-o como se ele não passasse de uma peça da
mobília; depois, abotoando aquele último botão, virou-se sem dizer
palavra e começou a escalar a íngreme escada que conduzia ao
andar superior.
“E estes”, prosseguiu a senhora Coulton, indicando Bob e eu,
“são dois amigos do senhor Tallis.”
Tivemos de explicar que não éramos exatamente amigos. Tudo
que conhecíamos do senhor Tallis era seu trabalho; mas este nos
havia interessado tanto que viéramos para cá esperando conhecê-lo
— apenas para saber da trágica notícia de sua morte.
O senhor Coulton tirou os olhos do jornal.
“Sessenta e seis”, disse ele. “Era somente isso que ele tinha. Eu
mesmo tenho setenta e dois. Completei setenta e dois em outubro
passado.”
Ele soltou o breve e triunfante riso de alguém que obteve uma
vitória e, em seguida, retornou a Flash Gordon — Flash, o invencível;
Flash, o imortal; Flash, o perpétuo cavaleiro errante para as garotas,
não como elas lamentavelmente são, mas como os idealistas da
indústria de sutiãs proclamam que elas deveriam ser.
“Calhou de eu ler o que o senhor Tallis enviou ao nosso estúdio”,
disse Bob.
Novamente o duende olhou para cima.
“Você trabalha com cinema?”, indagou ele.
Bob admitiu que sim.
Na sala contígua a música cessou subitamente no meio de um
fraseado.
“Você é um daqueles figurões?”, indagou o senhor Coulton.
Com a mais encantadora falsa modéstia, Bob garantiu-lhe ser
apenas um escritor que às vezes se arriscava na direção.
O duende assentiu lentamente.
“Li no jornal que aquele tal de Goldwyn disse que todos os
figurões vão levar um corte de cinquenta por cento no salário.”
Seus olhos pestanejaram alegremente, e ele uma vez mais
soltou sua triunfante risadinha. Então, de repente desinteressando-se
da realidade, retornou aos seus mitos.
Cristo perante Lublin! Tentei mudar o doloroso assunto
perguntando à senhora Coulton se ela sabia que Tallis se interessava
por cinema. Mas enquanto eu falava, um som de passos no
aposento interno distraiu sua atenção.
Virei a cabeça. Na soleira da porta, vestida com um suéter preto
e uma saia axadrezada, quedava — quem? Lady Hamilton aos
dezesseis, Ninon de Lenclos quando perdeu a virgindade com
Coligny, la petite Morphil, Anna Kariênina na sala de aula.
“Esta é Rosie”, disse a senhora Coulton orgulhosamente, “nossa
outra neta. A Rosie está estudando canto”, confidenciou ela a Bob.
“Ela quer entrar para o cinema.”
“Que interessante!”, gritou Bob entusiasticamente, enquanto se
levantava e apertava as mãos de sua futura Lady Hamilton.
“Talvez você pudesse lhe dar alguns conselhos”, disse a
veneradora avó.
“Eu ficaria mesmo muito feliz...”
“Pegue outra cadeira, Rosie.”
A garota soergueu as pálpebras e lançou a Bob um breve mas
intenso olhar.
“A não ser que não se importe de sentar na cozinha”, disse ela.
“É claro que não!”
Desapareceram juntos dentro do aposento. Olhando pela janela,
vi que os montículos estavam novamente na sombra. Os ratos-
lagartos haviam fechado os olhos e fingiam-se de mortos — mas
apenas para embalar sua vítima numa sensação de falsa segurança.
“É mais do que sorte”, dizia a senhora Coulton, “é a Providência.
Um figurão do cinema vir aqui justamente quando Rosie precisa de
uma mão amiga.”
“Justamente quando o cinema está falindo como o vaudeville”,
disse o duende sem levantar os olhos da página diante de si.
“O que te leva a dizer essas coisas?”
“Não sou eu quem digo”, respondeu o velho. “É aquele tal de
Goldwyn.”
Da cozinha veio o som de uma risada assustadoramente infantil.
Bob evidentemente fazia suas investidas. Eu já previa outra viagem a
Acapulco, com consequências ainda mais desastrosas do que a
primeira.
Inocentemente a alcoviteira senhora Coulton sorriu de prazer.
“Gosto de seu amigo”, disse ela. “Se dá bem com crianças. Nem
um pouco presunçoso.”
Aceitei sem comentários a reprimenda implícita e voltei a lhe
perguntar se ela sabia que o senhor Tallis se interessava por cinema.
Ela assentiu. Sim, ele lhe contara que estava enviando algo para
um daqueles estúdios. Queria fazer algum dinheiro. Não para si; pois
embora houvesse perdido a maior parte do que possuía, tinha ainda
o suficiente para viver. Não, ele queria um dinheiro extra para
mandar para a Europa. Fora casado com uma garota alemã, havia
muito tempo, antes da Primeira Guerra Mundial. Depois eles se
divorciaram e ela permanecera na Alemanha com o bebê. E agora
não sobrevivera ninguém a não ser uma neta. O senhor Tallis queria
trazê-la para cá; mas o pessoal em Washington não o deixava.
Portanto, o que restava fazer era enviar-lhe um bom dinheiro para
que ela pudesse se alimentar direito e concluir sua educação. Por
isso ele havia escrito aquilo para o cinema.
As palavras dela de repente me fizeram lembrar de algo do
roteiro de Tallis — algo sobre crianças na Europa do pós-guerra
prostituindo-se em troca de barras de chocolate. A neta... Acaso
seria ela uma daquelas crianças? “Ich lhe dou Schokolade, du me dá
Liebe. Compreende?” Oh, elas compreendiam perfeitamente. Uma
barra de Hershey agora; outras duas, mais tarde.
“Que aconteceu à esposa?”, perguntei. “E aos pais da neta?”
“Faleceram”, disse a senhora Coulton. “Imagino que fossem
judeus, ou algo assim.”
“Veja bem”, disse bruscamente o duende, “nada tenho contra os
judeus. Mas são todos da mesma laia...” Ele fez uma pausa. “Talvez
Hitler não fosse tão estúpido afinal de contas.”
Desta vez, conforme pude ver, era aos Katzenjammer Kids[1] que
ele volvera.
Outro rimbombo de risada pueril irrompeu na cozinha. Aos
dezesseis, Lady Hamilton soava como se tivesse onze. E ainda
assim, quão maduro, quão tecnicamente perfeito havia sido o olhar
com que cumprimentara Bob! Obviamente, o fato mais inquietante
sobre Rosie era que ela era ao mesmo tempo inocente e cônscia,
uma aventureira premeditada e uma estudante com tranças.
“Ele se casou novamente”, prosseguiu a velha senhora,
ignorando tanto o cacarejo quanto o antissemitismo. “Com alguém
dos palcos. Ele me disse o nome, mas esqueci. De qualquer forma,
não durou muito. Ela fugiu com outro sujeito. Bem feito para ele, por
ter saído com ela mesmo tendo uma esposa lá na Alemanha. Não
concordo com essa história de ficar se divorciando e se casando com
o marido das outras.”
No silêncio que se seguiu forjei toda uma biografia para esse
homem que nunca vi. Um jovem de boa família da Nova Inglaterra.
Educado com zelo, mas não ao ponto do pedantismo. Naturalmente
talentoso, mas não tão irresistivelmente de modo a fazê-lo desejar
trocar uma vida de lazer pelas estafas da autoria profissional. De
Harvard partira para a Europa, levara vida airada, conhecera as
melhores pessoas em todos os lugares. E então — em Munique, eu
tinha certeza — se apaixonara. Visualizei a garota, trajando o
equivalente alemão dos vestidos da Liberdade — a filha de algum
artista bem-sucedido ou patrono das artes. Um daqueles quase
desencarnados e volúveis produtos da riqueza e da cultura
guilhermina; um ser a um só tempo vago e intenso, fascinantemente
imprevisível e loucamente idealístico, tief[2] e germânico. Tallis
apaixonara-se, casara-se, concebera uma criança apesar da frigidez
de sua mulher, quase se asfixiara com o opressivo sentimentalismo
da atmosfera doméstica. Quão fresco e saudável, por comparação,
lhe parecera o ar de Paris e o ambiente individual daquela jovem
atriz da Broadway que ele conhecera ao lá passar suas férias!

La belle Américaine
Qui rend les hommes fous,
Dans deux ou trois semaines
Partira pour Corfou.[3]

Mas esta não partiu para Corfu — e se o fez, foi na companhia


de Tallis. E não era frígida, nem volúvel, nem vaga nem intensa, nem
profunda nem sentimental, nem uma esnobe da arte. Ela era,
infelizmente, meio vaca. E mais foi ficando com o decorrer dos anos.
Quando se divorciou dela, já era uma vaca por completo.
Olhando em retrospecto a partir do vantajoso ponto de 1947, o
Tallis de minha imaginação podia ver precisamente o que ele fizera:
em prol de um prazer físico e, ao mesmo tempo, do entusiasmo e da
satisfação de uma imaginação erótica condenara uma esposa e uma
filha à morte pelas mãos de maníacos, e uma neta às carícias de
qualquer soldado ou vendedor do mercado negro com os bolsos
cheios de doces ou à custa de uma refeição decente.
Românticos devaneios! Voltei à senhora Coulton.
“Bem, queria tê-lo conhecido”, disse eu.
“Você teria gostado dele”, garantiu-me. “Todos gostávamos do
senhor Tallis. Vou lhe contar uma coisa”, confidenciou. “Toda vez que
viajo até Lancaster pelo Clube de Bridge das Senhoras, vou ao
cemitério só para visitá-lo.”
“E eu aposto que ele detesta isso”, disse o duende.
“Ora, Elmer”, protestou sua mulher.
“Mas eu o ouvi dizer”, insistiu o senhor Coulton. “Mais de uma
vez. ‘Se eu morrer aqui’, ele dizia, ‘quero ser enterrado no deserto’.”
“Ele assim escreveu no roteiro que enviou ao estúdio”, disse eu.
“Escreveu?” O tom da senhora Coulton era de incredulidade.
“Sim, ele até mesmo descreve a sepultura em que desejava ser
enterrado. Completamente só, debaixo de uma árvore-de-josué.”
“Eu poderia ter contado a ele que não era permitido”, disse o
duende. “Não desde que os agentes funerários emplacaram aquele
projeto de lei através da legislatura de Sacramento. Conheci um
homem que teve que ser exumado vinte anos depois de enterrado...
logo ali, atrás dos montículos.” Ele acenou com a mão na direção
dos ratos sáurios de Goya. “Custou trezentos dólares ao sobrinho,
quando o serviço estava terminado.”
Ele cacarejou ante a recordação.
“Eu é que não iria querer ser enterrada no deserto”, disse sua
mulher, enfaticamente.
“Por que não?”
“É muito solitário”, respondeu. “Eu odiaria isso.”
Enquanto eu me perguntava o que dizer em seguida, a pálida e
jovem mãe desceu as escadas carregando uma fralda. Ela estacou
um momento para olhar dentro da cozinha.
“Ouça, Rosie”, disse ela numa voz baixa e raivosa, “é hora de
você trabalhar um pouco, para variar.”
Então ela se voltou e caminhou até o vestíbulo, onde uma porta
aberta revelava as modernas conveniências daquele banheiro
interno.
“Ele está com diarreia de novo”, disse ela amargamente, quando
passou por sua avó.
Ruborizada, os olhos brilhantes de entusiasmo, a futura Lady
Hamilton emergiu da cozinha. Atrás dela, na soleira, estava o futuro
Hamilton, diligentemente imaginando que ele viria a ser o Lord
Nelson.[4]
“Vovó”, anunciou a garota, “o senhor Briggs acha que pode me
arranjar um teste de atuação.”
Aquele idiota! Eu me levantei.
“Hora de ir, Bob”, disse eu, sabendo que já era tarde demais.
Da porta entreaberta do banheiro veio o abafado som de fraldas
sendo lavadas na cuba do toalete.
“Ouça aqui!”, sussurrei a Bob ao caminharmos.
“O que foi?”, perguntou ele.
Dei de ombros. Eles têm ouvidos, mas não ouvem.[5]
Bem, isso foi o mais perto que chegamos de Tallis em carne e
osso. A seguir, o leitor poderá desvendar o reflexo da mente daquele
homem. Reproduzo o texto de O macaco e a essência tal como o
encontrei, sem alterações e sem comentários.
II. O roteiro

Título, créditos e por fim, acompanhado de trombetas e um coro de


jubilosos anjos, o nome do PRODUTOR.
A música muda de caráter, e se Debussy estivesse vivo para
escrevê-la, quão delicada seria, quão aristocrática, quão
impecavelmente purificada de toda lascívia e petulância wagneriana,
de toda vulgaridade straussiana! Pois aqui na tela, em uma técnica
melhor que Technicolor, é a hora antes da alvorada. A noite parece
demorar-se na escuridão de um mar quase imperturbável; mas das
franjas do céu uma palidez transparente ajusta-se de verde a azul
intenso até o zênite. No Oriente a Estrela da Manhã é ainda visível.

NARRADOR

Inexprimível beleza, paz além do entendimento...


Mas, infelizmente, em nossa tela
Este emblema de um emblema
Provavelmente parecerá
A ilustração de uma sra. Fulana qualquer
Para um poema de Ella
Wheeler Wilcox.
A partir do sublime na Natureza
A arte quase sempre manufatura
Somente o ridículo.
Contudo deve-se correr o risco;
Pois você aí, você na plateia,
De alguma forma e a qualquer preço,
Com Wilcox ou pior,
Deve de alguma forma ser lembrado
Ser induzido a lembrar,
Ser suplicado a ter vontade de
Entender o que é o Quê.
Enquanto o Narrador fala, fade out de nosso emblema de um
emblema da Eternidade para o interior de uma sala de cinema com
máxima lotação. A luz sobe um pouco além da opacidade e
repentinamente tomamos consciência de que a plateia é toda
composta de bem-vestidos babuínos de ambos os sexos e de todas
as idades da primeira à segunda infância.

NARRADOR

Mas o homem, o orgulhoso homem,


Munido de breve e pouca autoridade —
Muito ignora o que ele mais assegura.
Sua vítrea essência — qual um raivoso macaco
Prega peças tão fantásticas perante o alto firmamento
Que aos anjos faz chorar.

Corta para a tela, a qual tão atentamente os macacos contemplam.


Num cenário tal como somente Semíramis ou Metro-Goldwyn-Mayer
poderiam ter imaginado, vemos uma jovem babuína peituda, num
vestido de noite cor-de-rosa pálido, a boca pintada de púrpura, o
focinho empoado de malva, os ardentes olhos vermelhos delineados
de rímel. Gingando tão voluptuosamente quanto a pequenez de suas
pernas traseiras a permitem, ela caminha até o palco claramente
iluminado de uma casa noturna e, sob o aplauso de duzentos ou
trezentos pares de mãos peludas, aproxima-se do microfone à Luís
XV. Atrás dela, sobre as quatro patas e amarrado a uma leve corrente

de aço presa a uma coleira de cão, vem Michael Faraday.[6]

NARRADOR

“Muito ignora o que ele mais assegura.” E eu nem preciso


acrescentar que aquilo que chamamos de conhecimento é
meramente outra forma de Ignorância — altamente organizada, é
claro, e eminentemente científica, mas devido mesmo a esta exata
razão ainda mais completa, ainda mais produtora de macacos
raivosos. Quando a Ignorância era meramente ignorância, éramos os
equivalentes dos lêmures, dos saguis e dos bugios. Hoje, graças a
essa Alta Inteligência que é nosso conhecimento, a estatura do
homem avultou de tal modo que o menor entre nós é agora um
babuíno, e o maior, um orangotango ou até mesmo, caso alcance o
posto de Salvador da Sociedade, um verdadeiro gorila.

Entrementes a garota-babuína alcançou o microfone. Virando a


cabeça, ela avista Faraday de joelhos, no ato de endireitar suas
curvadas e doridas costas.
“Sentado, senhor, sentado!”
O tom é peremptório; ela faz no velho homem um corte com sua
chibata de equitação com castão de coral. Faraday crispa-se e
obedece, os macacos na plateia riem deleitosamente. Ela lhes lança
um beijo, e então, puxando para perto dela o microfone, desnuda
seus dentes formidáveis e começa a cantar, num contralto lamentoso
de alcova, o último sucesso popular.

Amor, Amor, Amor...


O Amor é a própria essência
De tudo que penso, de tudo que faço.
Me dê, Me dê, Me dê
Me dê a detumescência.
Isso significa: você.

Close-up no rosto de Faraday, enquanto ele registra


aturdimento, desgosto, indignação e, finalmente, tamanha vergonha
e angústia, que lágrimas começam a rolar bochechas franzidas
abaixo.
Tomadas editadas dos Amigos do Mundo do Rádio,
acompanhando.
Uma robusta babuína dona de casa fritando linguiças, enquanto
o alto-falante lhe traz a imaginária satisfação e a real exacerbação de
seus desejos mais inconfessáveis.
Um bebê babuíno de pé em seu berço, alcançando o portátil
sobre a cômoda e sintonizando na promessa de detumescência.
Um babuíno financista de meia-idade, interrompendo sua leitura
das notícias do mercado de ações para ouvir, de olhos fechados e
com um sorriso de êxtase. Me dê, me dê, me dê, me dê.
Dois babuínos adolescentes, procurando por música num carro
estacionado. “Isso significa: você-ê.” Close-up em bocas e patas.
Corta de volta para as lágrimas de Faraday. A cantora se volta,
avista seu rosto agonizante, exprime um grito de ira e começa a
golpeá-lo, golpe selvagem depois de golpe selvagem, enquanto a
plateia aplaude tumultuosamente. As paredes douradas e jaspe da
casa noturna evaporam-se e por um momento vemos as figuras da
macaca e de seu cativo intelectual silhuetadas contra o nascente
crepúsculo de nossa primeira sequência. Então estas também
desaparecem, e há apenas o emblema de um emblema de
Eternidade.

NARRADOR

O mar, o claro planeta, o infinito cristal do céu — certamente você se


recorda deles! Certamente! Ou acaso teria você esquecido, teria
nunca nem mesmo descoberto o que jaz além do Zoológico mental e
do Asilo interior e de toda aquela Broadway de cinemas imaginários
em que o único nome sob as luzes é sempre o seu próprio?

A Câmera se move pelo céu, e agora o negro formato serrilhado de


uma ilha rochosa rompe a linha do horizonte. Navegando pela ilha há
uma larga escuna de quatro mastros. Aproximando-nos, vemos que
o navio porta a bandeira da Nova Zelândia e tem como nome
Canterbury. Seu capitão e um grupo de passageiros estão na
amurada, reparando atentamente na direção Leste. Vemos através
de seu binóculo e descobrimos uma linha de orla árida. Então, quase
de chofre, o sol sobrevém atrás da silhueta de distantes montanhas.

NARRADOR

Este novo claro dia é o vigésimo de fevereiro de 2108, e estes homens


e mulheres são membros da Expedição Neozelandesa de
Redescoberta da América do Norte. Poupada pelos beligerantes da
Terceira Guerra Mundial — não (nem preciso dizer) devido a
qualquer razão humanitária, mas simplesmente porque, assim como
a África Equatorial, ela era remota demais para que alguém perdesse
seu tempo em obliterá-la —, a Nova Zelândia sobreviveu e até
mesmo floresceu modestamente num isolamento que, por causa da
perigosa condição radioativa do resto do mundo, permaneceu quase
absoluto por mais de um século. Agora que o perigo acabou, vêm aí
seus primeiros exploradores, redescobrindo a América a partir do
Oeste. E entrementes, do outro lado do mundo, os homens negros
vêm abrindo seu caminho Nilo abaixo e Mediterrâneo adentro. Que
esplêndidas danças tribais nos salões infestados de morcegos da
Mãe dos Parlamentos! E o labirinto do Vaticano — que lugar
essencial no qual celebrar os persistentes e complexos ritos da
circuncisão feminina! Todos nós temos exatamente aquilo que
pedimos.

A cena escurece; ouve-se um estampido de tiros. Quando as luzes


retornam, eis agachado o doutor Albert Einstein, numa coleira, atrás
de um grupo de babuínos em uniformes.

A Câmera se move por uma estreita terra de ninguém feita de


entulho, árvores partidas e cadáveres, vindo repousar num segundo
grupo de animais, trajando diferentes ornamentações e debaixo
doutra bandeira, mas com o mesmo doutor Albert Einstein, num
cordão perfeitamente similar, acocorado sob os esporões das botas
de cano alto deles. Debaixo da desgrenhada auréola de cabelo, o
bom e inocente rosto traz uma expressão de dorida perplexidade. A
Câmera percorre de cá para lá, de um Einstein ao outro Einstein.
Closes nos dois rostos idênticos, encarando-se sofregamente por
entre as enceradas botas de couro de seus respectivos senhores.
Na faixa de áudio, a voz, os saxofones e os violoncelos
continuam a ansiar pela detumescência.
“É você, Albert?”, indaga hesitante um dos Einsteins.
O outro assente lentamente com a cabeça.
“Albert, receio que sim.”
Acima as bandeiras dos exércitos rivais repentinamente
começam a tremular na refrescante brisa. Os padrões coloridos se
abrem, em seguida voltam a dobrar sobre si, revelam-se e uma vez
mais se escondem.
NARRADOR

Listras verticais, listras horizontais, jogos da velha, águias e


martelos. Sinais meramente arbitrários. Mas toda realidade à qual se
atribui um signo é desse modo subordinada a ele. Goswami e Ali
costumavam viver em paz. Mas eu obtive uma bandeira, você obteve
uma bandeira, todos os filhos do Deus-Babuíno obtiveram bandeiras.
Então até mesmo Ali e Goswami obtiveram bandeiras; e por causa
das bandeiras tornou-se imediatamente correto e apropriado que
aquele com prepúcio estripasse aquele sem prepúcio, e que o
circuncidado baleasse o não circuncidado, lhe violentasse a mulher e
lhe assasse os filhos em fogo brando.
Mas entrementes, acima do flamular flutuam as imensas formas
das nuvens, e além das nuvens há aquele vazio azul que é um
emblema de nossa vítrea Essência, e ao pé do mastro grassa a
aveia e o arroz verde-esmeralda e o painço. Pão para o corpo e pão
para o espírito. Nossa escolha se dá entre o pão e o flamular. E o
flamular, nem preciso acrescentar, foi o que escolhemos quase por
unanimidade.

A Câmera vai das bandeiras até os Einsteins e passa dos Einsteins


para os ornamentadíssimos Estados-maiores no plano de fundo. De
um só golpe e simultaneamente os dois Marechalíssimos de Campo
berram uma ordem. Imediatamente, de todos os lados, surgem
técnicos babuínos, com equipamento inteiramente motorizado para
lançar aerossóis. Nos tanques de pressão de um dos exércitos
veem-se pintadas as palavras SUPERTULAREMIA; nos de seus oponentes, MORMOS
APERFEIÇOADOS, GARANTIA DE 99,44% DE PUREZA. Cada grupo de técnicos vem acompanhado

de seu mascote, Louis Pasteur, numa corrente. Na faixa de áudio


ouve-se uma reminiscência da garota-babuína. Me dê, me dê, me
dê, me dê a detumescência... E então esses voluptuosos trechos
modulam para “Terra de esperança e glória”[7], executada por
concentrações de fanfarras e cantada por um coro de catorze mil
vozes.

NARRADOR

Que Terra, pergunta-se você? E respondo eu


Qualquer terra antiga.
E a Glória, é claro, é do Macaco-Rei,
Enquanto a Esperança...
Abençoado seja seu coraçãozinho, esperança não há;
Apenas a quase infinita probabilidade
De consumar repentinamente,
Ou então a agonizante passo miúdo,
A definitiva e irremediável
Detumescência.

Close em patas nas torneiras; em seguida a Câmera recua. Dos


tanques de pressão, duas colunas de vapor amarelo começam a
rolar em direção à outra, morosamente, através da terra de ninguém.

NARRADOR

Mormos, meus amigos, mormos — uma doença de equinos,


incomum entre humanos. Mas temer, jamais: a Ciência pode
facilmente torná-la universal. Eis seus sintomas. Dores violentas em
todas as juntas. Pústulas sobre todo o corpo. Debaixo da pele duros
inchaços, que ao fim irrompem e transformam-se em úlceras
esfoliantes. Entrementes a membrana mucosa do nariz inflama-se e
exsuda uma copiosa descarga de fétido pus. Úlceras formam-se
depressa dentro das narinas e devoram o osso circunjacente e a
cartilagem. Do nariz a infecção passa aos olhos, boca, garganta e
brônquios. Dentro de três semanas a maioria dos pacientes morre.
Providenciar que todos eles morram tem sido a função de alguns dos
brilhantes doutores agora a serviço de nosso governo. E não
somente de nosso governo: de todos os outros eleitos ou
autodeclarados organizadores da esquizofrenia coletiva mundial.
Biólogos, patologistas, fisiologistas — ei-los aí, após um dia difícil no
laboratório, voltando para suas famílias. Um abraço da doce
mulherzinha. Uma traquinagem com as crianças. Um calmo jantar
com amigos, seguido de uma noite de música de câmara ou
inteligentes conversas sobre política ou filosofia. Então cama às onze
e os familiares êxtases do amor matrimonial. E pela manhã, após
seu suco de laranja e seus cereais matinais Grapenuts, partem
novamente para seu trabalho de descobrir como ainda mais famílias
precisamente semelhantes às suas podem ser infectadas com uma
cepa ainda mais mortal do Bacillus mallei.

Ouve-se outro ganido de comando dos Marechalíssimos. Entre os


macacos de botas encarregados dos respectivos suprimentos de
Gênios de cada exército há um violento estalar de chicotes, um
repuxar de coleiras.
Close nos Einsteins enquanto tentam resistir.
“Não, não... Não consigo.”
“Estou lhe dizendo que não consigo.”
“Desleal!”
“Antipatriótico!”
“Comunista sujo!”
“Burgo-fascista fedorento!”
“Imperialista vermelho!”
“Capital-monopolista!”
“Toma isso!”
“Toma isso!”
Chutados, chicoteados, quase esganados, cada um dos
Einsteins é finalmente arrastado até uma espécie de guarita. Dentro
dessas guaritas há mesas de controle com mostradores, botões e
interruptores.

NARRADOR

Certamente é óbvio.
Não o sabe todo estudante?
Os fins são escolhidos pelo símio; apenas os meios são do homem.
Alcoviteira dos pápios e tesoureira dos babuínos,
A razão vem a toda, sequiosa para ratificar;
Vem, lacaia da filosofia, subjugando-se a tiranos;
Vem, cafetina da Prússia, com a Patente História de Hegel;
Vem, com a medicina, para administrar o afrodisíaco do Macaco-Rei;
Vem, versejando e com Retórica, para escrever-lhe os discursos;
Vem com o Cálculo para mirar-lhe os foguetes
Precisamente no orfanato além do oceano;
Vem, tendo já mirado, com lisonja para suplicar à
Nossa Senhora devotamente por um ataque certeiro.
As fanfarras cedem lugar ao mais glutinoso dos pianos Wurlitzer;
“Terra de esperança e glória”, a “Avante, soldados cristãos”.
Acompanhado de seu Reverendo Deão do Cabido em pessoa, o
Reverendíssimo Bispo-Babuíno do Bronx avança majestoso, com
seu báculo na pata incrustada de joias, para consagrar a bendição
sobre os dois Marechalíssimos de Campo e seus patrióticos
procedimentos.

NARRADOR

Igreja e Estado,
Cobiça e Ódio:
Dois Homens-Babuínos num só Sumo Gorila.
TODOS

Amém, amém.
O BISPO

In nomine Babuini...

Na faixa de áudio tudo é vox humana e as angélicas vozes dos


coristas.
“Com a (diminuendo) Cruz de (pianissimo) Jesus (fortissimo)
indo na frente...”
Imensas patas erguem os Einsteins de pé e, num close-up,
agarram-lhe os pulsos. Guiados por macacos, esses dedos, que
escreveram equações e tocaram a música de João Sebastião Bach,
fecham-se sobre os interruptores principais e, com horrorizada
relutância, lentamente os pressionam. Ouve-se um pequeno clique, e
em seguida um longo silêncio que é por fim rompido pela voz do
Narrador.

NARRADOR

Mesmo em velocidades supersônicas os mísseis levarão um tempo


considerável para alcançar seu destino. Que dizem então, rapazes,
de um descansinho para um café enquanto esperamos nosso
Julgamento Final?
Os macacos abrem seus embornais, jogam um pouco de pão,
algumas cenouras e dois ou três torrões de açúcar aos Einsteins,
então se precipitam no rum e na mortadela.
Dissolvemos para o convés da escuna, onde os cientistas da
Expedição de Redescoberta também estão desjejuando.

NARRADOR

E eis aqui alguns dos sobreviventes daquele Julgamento. Uma gente


tão boa! E quanto à civilização que representam... Boa também.
Nada muito emocionante ou espetacular, é claro. Nada de Partenons
ou Capelas Sistinas, nada de Newtons ou Mozarts ou Shakespeares;
mas também nada de Azzelinos, nada de Napoleões ou Hitlers ou
Jay Goulds, nem de Inquisições ou NKVDs, de expurgos, pogroms e
linchamentos.[8] Nada de altitudes ou abismos, mas uma abundância
de leite para as crianças, e uma média de QI razoavelmente alta, e
tudo o mais, numa tranquila maneira provinciana, completamente
aconchegante e sensível e humana.

Um dos homens levanta seu binóculo e espreita a orla, agora


distante apenas um ou dois quilômetros. Subitamente ele solta uma
exclamação de encantada perplexidade.
“Vejam!” Ele passa a luneta a um de seus companheiros. “No
cume da colina.”
O outro olha.
Tomada telescópica de colinas baixas. No mais alto ponto da
cordilheira, três torres de perfuração de petróleo erguem-se
recortadas contra o céu, como o equipamento de um modernizado e
mais eficiente Calvário.
“Petróleo!”, exclama o segundo observador excitadamente. “E as
torres ainda estão de pé.”
“Ainda de pé?”
O assombro é geral.
“Isso significa”, diz o velho professor Craigie, o geólogo, “que
não deve ter havido uma grande explosão nas redondezas.”
“Mas não é preciso ter explosões”, explica seu colega do
Departamento de Física Nuclear. “Gases radioativos executam essa
função com a mesma eficácia e em áreas muito mais extensas.”
“Vocês parecem esquecer as bactérias e os vírus”, intervém o
professor Grampian, o biólogo. Seu tom é o de um homem que sente
ter sido menosprezado.
Sua jovem esposa, que não passa de uma antropóloga e
portanto nada tem a contribuir com a discussão, contenta-se em
fulminar colericamente o físico.
Atlética em seu tweed, mas ao mesmo tempo brilhantemente
inteligente por trás de seus óculos de aro de chifre, a senhorita Ethel
Hook, do Departamento de Botânica, lembra-os de que ali teria
havido, quase que comprovadamente, um generalizado uso de
doenças de plantas. Para confirmar o que diz, ela se vira para seu
colega, o doutor Poole, que assente.
“Doenças de plantas alimentícias”, diz ele à sua maneira
professoral, “teriam um efeito de longo prazo não menos conclusivo
do que o efeito produzido por material físsil ou pandemias induzidas
artificialmente. Considerem, por exemplo, a batata...”
“Mas por que se aborrecer com essas coisas extravagantes?”,
retumba bruscamente o engenheiro da comitiva, o doutor Cudworth.
“Cortem os aquedutos, e estará tudo acabado numa semana. Sem o
de beber, não há o de viver.” Satisfeito com o próprio gracejo, ele ri
fartamente.
Entrementes o doutor Schneeglock, o psicólogo, permanece
ouvindo com um sorriso de mal disfarçado desprezo.
“Mas por que mesmo se aborrecer com aquedutos?”, pergunta
ele. “Basta ameaçar seu vizinho com quaisquer das armas de
destruição em massa. O próprio pânico dele cuidará do resto.
Lembrem-se do que o tratamento psicológico fez para Nova York, por
exemplo. As emissões ultramarinas de ondas curtas, as manchetes
nos jornais vespertinos. E imediatamente lá estavam oito milhões de
pessoas pisoteando umas às outras até a morte nas pontes e nos
túneis. E os sobreviventes dispersos pelo interior, como gafanhotos,
como uma horda de ratos infestados pela peste. Contaminando o
abastecimento de água. Propagando a febre tifoide e a difteria e as
doenças venéreas. Mordendo, arranhando, saqueando,
assassinando, violentando. Alimentando-se de cães mortos e dos
cadáveres de crianças. Baleados pelos fazendeiros à primeira vista,
espancados pela polícia, metralhados pela Guarda Estatal,
asfixiados pelos Vigilantes. E a mesma coisa acontecia em Chicago,
Detroit, Filadélfia, Washington; em Londres, em Paris; em Bombaim
e Xangai e Tóquio; em Moscou, em Kiev, em Stalingrado; em toda
capital, todo centro produtor, todo porto, todo entroncamento
ferroviário, por todo o mundo. Nenhum tiro havia sido disparado, e a
civilização estava já em ruínas. Por qual motivo os soldados alguma
vez acharam necessário usar suas bombas, isso realmente não
consigo imaginar.”

NARRADOR

O amor repele o medo; mas, reciprocamente, o medo repele o amor.


E não somente o amor. O medo também repele a inteligência, repele
a bondade, repele todo pensamento de beleza e verdade. O que
resta é a estúpida ou premeditadamente jocosa desesperança de
quem é cônscio da obscena Presença no canto do quarto e sabe que
a porta está trancada, que não há janela alguma. E agora a coisa
investe contra ele. Ele sente uma mão em sua manga, sente um
hálito infecto, à medida que o assistente do carrasco inclina-se quase
amorosamente sobre ele. “Sua vez já é a próxima, irmão. Por
gentileza, venha por aqui.” E num instante, seu calmo terror se
transmuta num frenesi tão violento quanto fútil. Não mais existe um
homem em meio aos seus, não mais um ser racional falando
articuladamente a outros seres racionais; existe apenas um animal
lacerado, gritando e debatendo-se na armadilha. Pois no fim, o medo
repele até mesmo a humanidade de um homem. E o medo, meus
bons amigos, o medo é a própria base e fundação da vida moderna.
Medo da muito apregoada tecnologia que, ao passo que eleva nosso
padrão de vida, aumenta a probabilidade de morrermos
violentamente. Medo da ciência que com uma mão tira muito mais do
que a outra profusamente dá. Medo das comprovadamente fatais
instituições pelas quais, em nossa lealdade suicida, estamos prontos
para matar e morrer. Medo dos Grandes Homens que alçamos, por
aclamação popular, a um poder que eles utilizam, inevitavelmente,
para nos matar e nos escravizar. Medo da Guerra que não queremos
e que, contudo, fazemos tudo que podemos para acarretar.
Enquanto o Narrador fala, dissipamos para o piquenique ao ar livre
dos babuínos e seus cativos Einsteins. Eles comem e bebem com
gosto, ao passo que os dois primeiros compassos de “Avante,
soldados cristãos” são repetidos mais e mais uma vez, mais e mais
rápido, mais e mais alto. De súbito a música é interrompida pela
primeira de uma sucessão de gigantescas explosões. Escuridão. Um
prolongado, ensurdecedor ruído de colisões, rasgos, gritos, gemidos.
Então, silêncio e luz crescente, e uma vez mais é a hora antes da
alvorada, com a estrela da manhã e a delicada e pura música.

NARRADOR

Inexprimível beleza, paz além do entendimento...


Lá ao longe, abaixo do horizonte, uma coluna de fumaça rosada
ascende ao céu, infla-se à semelhança de um enorme cogumelo
venenoso e lá pende, eclipsando o planeta solitário.

Dissolvemos novamente para a cena do piquenique. Os babuínos


estão todos mortos. Horrivelmente desfigurados por queimaduras, os
dois Einsteins jazem lado a lado sob o que resta de uma macieira em
flor. Não longe, um tanque de pressão ainda exsuda seus Mormos
Aperfeiçoados.

PRIMEIRO EINSTEIN

É injusto, não está certo...


SEGUNDO EINSTEIN

Nós, que nunca fizemos mal a ninguém;


PRIMEIRO EINSTEIN

Nós, que vivemos somente pela Verdade.

NARRADOR

E é justamente por isso que vocês estão morrendo no serviço


homicida dos babuínos. Pascal explicou-o há mais de trezentos
anos. “Fazemos da verdade um ídolo; pois a verdade sem a caridade
não é Deus, mas sim sua imagem e seu ídolo, o qual não devemos
nem amar nem venerar.” Vocês viveram pela veneração de um ídolo.
Mas, em última análise, o nome de todo ídolo é Moloch. E eis vocês
aqui, meus amigos, eis vocês aqui.

Alvoroçada por uma súbita rajada, a estagnada névoa da peste


avança em silêncio, emite uma espiral de vapor da cor de pus
redemoinhando entre as florações das maçãs, em seguida desce
para engolfar as duas figuras reclinadas. Um grito asfixiante anuncia
a morte, por suicídio, da ciência do século XX.

Dissolvemos para um ponto na costa do sul da Califórnia, a trinta e


dois quilômetros ou quase isso diretamente a oeste de Los Angeles.
Os cientistas da Expedição de Redescoberta encontram-se no ato de
desembarcar de um baleeiro. Um gigantesco esgoto, destroçado
onde desemboca no mar, ergue-se no plano de fundo.

NARRADOR

Partenon, Coliseu...
A glória que a Grécia foi, esplendor, et cetera.
E há ainda todos os outros:
Tebas e Copán, Arezzo e Ajanta;
Bourges, tomando o céu pela violência,
E a Sagrada Sabedoria, flutuando em descanso.
Mas a glória que a rainha Vitória foi
Permanece inquestionavelmente o W.C.;
O esplendor que foi Franklin Delano
É até agora o maior ralo de todos...
Seco agora e destroçado, Icabode, Icabode;
E seu carregamento de preservativos (irreprimivelmente flutuantes,
Como a esperança, como a concupiscência) não mais embranquece
Esta solitária praia com uma galáxia como que de anêmonas
Ou margaridas de verão.

Entrementes os cientistas, capitaneados pelo doutor Craigie,


atravessaram a praia, escalaram a baixa escarpa e estão abrindo
caminho através da arenosa e erodida planície a caminho dos poços
de petróleo nas colinas além.
A Câmera se detém no doutor Poole, o botânico-chefe da
Expedição. Como uma ovelha pastando, ele se move de planta em
planta, examinando flores através de sua lupa, reservando
espécimes em sua caixa de coleta, fazendo anotações num
caderninho preto.

NARRADOR

Ora, eis aqui nosso herói, Alfred Poole, doutor. Mais conhecido entre
seus alunos e colegas mais jovens como Poça Parada. E o apelido,
infelizmente, é-lhe dolorosamente adequado. Pois embora não seja
desgracioso, como podem ver, embora seja Colega da Real
Sociedade da Nova Zelândia e em hipótese alguma um tolo, nas
circunstâncias da vida prática sua inteligência parece ser apenas
virtual, sua atratividade não mais que latente. É como se ele vivesse
atrás de uma chapa de vidro, pudesse ver e ser visto, mas nunca
estabelecer contato. E a culpa, como o doutor Schneeglock do
Departamento de Psicologia apressa-se até demais em contar a
vocês, a culpa recai naquela devotada e intensamente enviuvada
Mãe dele — aquela santa, aquele pilar da fortitude, aquela vampira,
que ainda preside sua mesa de café da manhã e que com as
próprias mãos lava suas camisas de seda e cerze martirizantemente
suas meias.

A senhorita Hook agora adentra no quadro — adentra com um


arroubo de entusiasmo.
“Isso não é emocionante, Alfred?”, exclama ela.
“Muito”, diz o doutor Poole com polidez.
“Ver uma Yucca gloriosa em seu hábitat natural... Quem poderia
imaginar que algum dia teríamos essa oportunidade? E a Artemisia
tridentata...”
“Ainda há algumas flores na Artemisia”, diz o doutor Poole.
“Você nota algo incomum nelas?”
A senhorita Hook as examina e balança a cabeça.
“Elas são um bom tanto maiores que o descrito nos antigos
manuais”, diz ele num tom de animação estudadamente reprimido.
“Um bom tanto maiores?”, repete ela. Seu rosto se acende.
“Alfred, você não está achando que...”
O doutor Poole assente.
“Estou pronto para apostar nisso”, diz ele. “Tetraploidia. Induzida
por irradiação com raios gama.”
“Oh, Alfred!”, exclama em êxtase.

NARRADOR

Em seu tweed e óculos de aro de chifre, Ethel Hook é uma daquelas


garotas extraordinariamente sadias, incrivelmente eficientes e
intensamente inglesas com quem, exceto quando se é igualmente
sadio, igualmente inglês e até mais eficiente, muito se preferiria não
estar casado. Que decerto é o porquê de, aos trinta e cinco anos,
Ethel ainda não ter um marido. Ainda não tem um marido — mas
não, como ela ousa esperar, por muito mais tempo. Pois embora o
querido Alfred não tenha ainda verdadeiramente proposto, ela sabe
(e sabe que ele sabe) que o mais estimado desejo de sua Mãe é que
ele o faça — e Alfred é o mais obediente dos filhos. Ademais, eles
têm tanto em comum — a botânica, a Universidade, a poesia de
Wordsworth. Ela confia em que antes de voltarem a Auckland tudo
estará arranjado — a cerimônia simples com o velho e caro doutor
Trilliams oficiando, a lua de mel nos Alpes do Sul, o retorno à
adorável casinha em Mount Eden, e então, após dezoito meses, o
primeiro bebê...

Corta para os outros membros da expedição, enquanto vencem a


colina em direção aos poços de petróleo. O professor Craigie, o líder,
estaca para enxugar a testa e repassar suas incumbências.
“Onde está o Poole?”, pergunta ele. “E Ethel Hook?”
Alguém aponta e, num plano geral, vemos as distantes figuras
dos dois botânicos.
Corta de volta para o professor Craigie, que concheia as mãos
sobre a boca e grita:
“Poole, Poole!”
“Por que não os deixa viver esse romancezinho?”, pergunta o
jovial Cudworth.
“Romance mesmo!”, bufa o doutor Schneeglock
zombeteiramente.
“Mas está na cara que ela tem uma queda por ele.”
“Quando um não quer...”
“Uma mulher sabe incitar o homem a fazer a proposta.”
“Você também pode igualmente esperar que ele cometa incesto
com a própria mãe”, diz o doutor Schneeglock enfaticamente.
“Poole!”, ruge o professor Craigie uma vez mais, e voltando-se
para os outros: “Não gosto que fiquem para trás”, diz num tom de
irritação. “Num país estrangeiro, nunca se sabe.”
Ele retoma seus brados.
Corta de volta para o doutor Poole e a senhorita Hook. Eles
ouvem o chamado distante, tiram os olhos de sua Artemisia
tetraploide, acenam com as mãos e partem em busca dos outros.
Subitamente o doutor Poole avista algo que o faz gritar alto.
“Veja!” Ele aponta um indicador.
“O que é?”
“Echinocactus hexaedrophorus... é um belíssimo espécime.”
Plano americano, segundo seu ponto de vista, de um bangalô
destruído em meio às sálvias. Em seguida, close no cacto crescendo
entre duas lajes, próximo à porta de entrada. Corta de volta para o
doutor Poole. Da bainha de couro em seu cinto ele retira uma
espátula comprida e de lâmina estreita.
“Por acaso você está pensando em desenterrá-lo?”
Sua única resposta é caminhar até onde o cacto cresce e
agachar-se ao lado dele.
“O professor Craigie ficará tão zangado...”, protesta a senhorita
Hook.
“Ora, então vá na frente e o acalme.”
Ela olha para ele por alguns segundos com uma expressão de
solicitude.
“Detesto deixá-lo sozinho, Alfred.”
“Você fala como se eu tivesse cinco anos de idade”, responde
ele irritado. “Vá em frente, estou lhe dizendo.”
Ele se vira e começa a cavar.
A senhorita Hook não obedece de pronto, mas queda olhando-o
em silêncio por um pouco mais de tempo.
NARRADOR

Tragédia é a farsa que envolve nossas simpatias; farsa, a tragédia


que acontece a forasteiros. Toda ela tweed e jovialidade, sadia e
eficiente, este objeto do mais fácil tipo de sátira é também assunto
de um Diário Íntimo. Que flamejantes poentes havia visto e
inutilmente tentara descrever! Que aveludadas e voluptuosas noites
de verão! Que dias de primavera liricamente adoráveis! E, oh, as
torrentes de sentimentos, as tentações, as esperanças, o apaixonado
latejar do coração, as humilhantes decepções! E agora, após todos
esses anos, após tantas reuniões do comitê frequentadas, tantas
conferências proferidas e provas corrigidas, agora por fim, agindo por
Sua misteriosa maneira, Deus a fizera, ela sente, responsável por
este homem indefeso e infeliz. E porque ele é infeliz e indefeso, ela o
ama — não romanticamente, é claro, não da maneira como ela amou
aquele patife de cabelos crespos que, quinze anos atrás, tirou-a dos
eixos e em seguida se casou com a filha daquele rico empreiteiro,
mas, não obstante, genuinamente, com uma forte e protetora
ternura.

“Está bem”, diz ela por fim. “Vou na frente. Mas prometa que não vai
demorar.”
“É claro que não vou demorar.”
Ela se vira e vai embora. O doutor Poole a acompanha com o
olhar; então, com um suspiro de alívio por ver-se sozinho mais uma
vez, retoma sua escavação.

NARRADOR

“Nunca”, repete ele para si mesmo. “Nunca! Pode a Mãe dizer o que
for.” Pois embora ele respeite a senhorita Hook como botânica,
confie nela como uma organizadora e admire-a como pessoa de
mente elevada, a ideia de tornar-se uma só carne com ela é-lhe tão
impensável quanto uma violação do Imperativo Categórico.

Subitamente, de trás dele, três homens de aparência vil, de barba


cerrada, sujos e maltrapilhos, emergem muito calmamente das
ruínas da casa, mantêm-se estáticos por um momento, em seguida
se lançam sobre o desavisado botânico e, antes mesmo que ele
possa soltar um grito, metem-lhe uma mordaça na boca, amarram-
lhe as mãos atrás das costas e arrastam-no até uma fossa, fora da
vista de seus companheiros.
Dissolvemos para uma vista panorâmica do sul da Califórnia a
oitenta quilômetros acima da estratosfera. Enquanto a Câmera
despenca, ouvimos a voz do Narrador.

NARRADOR

O mar e suas nuvens, as montanhas de um dourado glauco,


Os vales repletos de uma escuridão índigo,
A estiagem nas planícies da cor do leão,
Os rios de seixos e areia branca.
E no meio deles, a Cidade dos Anjos.
Meio milhão de casas,
Oito mil quilômetros de ruas,
Um milhão e meio de automóveis,
E mais artigos de borracha que Akron,
Mais celuloide que os soviéticos,
Mais náilons que New Rochelle,
Mais sutiãs que Buffalo,
Mais desodorantes que Denver,
Mais laranjas que qualquer lugar,
Com maiores e melhores garotas...
A grande Meretrópole do Oeste.

E agora estamos a apenas oito quilômetros acima e torna-se cada


vez mais óbvio que a grande Meretrópole é uma cidade fantasma,
que o que uma vez fora o maior oásis mundial é agora sua maior
aglomeração de ruínas num terreno baldio. Nada se move nas ruas.
Dunas de areia sopraram-se entre o concreto. As alamedas de
palmeiras e aroeiras não deixaram vestígio.
A Câmera pousa sobre um enorme cemitério retangular,
disposto entre as torres de concreto armado de Hollywood e as do
Wilshire Boulevard. Aterrissamos, passamos debaixo dum portão
arqueado, apreciamos um travelling de gazebos mortuários. Uma
minipirâmide. Uma guarita gótica. Um sarcófago de mármore
encimado por chorosos serafins. A estátua de Hedda Boddy bem
maior que seu tamanho natural — “carinhosamente conhecida”, lê-se
na inscrição no pedestal, “como a Queridinha Pública Número Um.
‘Pegue carona numa estrela’”. Engatamos e prosseguimos; e
repentinamente, no meio de toda essa desolação, eis um pequeno
grupo de seres humanos. Há quatro homens, densamente barbados
e bem mais que sujos, e duas jovens mulheres, todos eles ocupados
com pás dentro ou ao redor duma cova aberta e todos vestidos
identicamente em camisas e calças feitas de andrajos caseiros.
Sobre esses toscos trajes vestem um avental quadrado sobre o qual,
em lã escarlate, está bordada a palavra “NÃO”. Além do avental, as
garotas usam um remendo redondo sobre cada um dos seios e,
atrás, um par um tanto maior de remendos no assento das calças.
Três inequívocas negativas nos saúdam quando elas se aproximam,
e duas outras, que sentimos como apunhaladas, quando se afastam.
Supervisionando os trabalhadores, em cima do telhado de um
mausoléu adjacente encontra-se um homem em seus quarenta e
poucos anos, alto, poderosamente corpulento, com os olhos escuros
e o nariz aquilino de um corsário argelino. Uma barba negra crespa
realça a umidade e o rubor de seus lábios carnudos. Um tanto
incongruentemente, ele veste um terno cinza-pálido de talhe de
meados do século XX, pequeno demais para ele. Quando primeiro o
avistamos, ele está absorto no aparamento das unhas.
Corta de volta para os coveiros. Um deles, o mais jovem e
bonito dos homens, tira os olhos de sua escavação, fita sub-
repticiamente o supervisor no telhado e, vendo-o ocupado com suas
unhas, lança um olhar intensamente concupiscente à roliça garota
que se encontra curvada sobre sua própria pá ao lado dele. Close
nos dois remendos proibitivos. NÃO e NÃO de novo, tanto maiores
quanto mais ansiadamente ele a observa. Já em concha para o
contato deliciosamente imaginado, sua mão se estende, vacilante,
hesitante; então, com um puxão, dado que a consciência
abruptamente leva a melhor sobre a tentação, retrai-se novamente.
Mordendo o lábio, o jovem vira-se e, com redobrado zelo, dirige-se
uma vez mais à sua escavação.
De repente uma pá atinge algo duro. Ouve-se um clamor de
alívio, um agito de atividade conjunta. Um momento depois um belo
caixão de mogno é içado à superfície da terra.
“Arrombem-no.”
“Certo, Chefe.”
Ouvimos o ranger e o fender de madeira rachada.
“Homem ou mulher?”
“Homem.”
“Ótimo! Virem-no.”
Urrando um eia! eles entornam o caixão, e o cadáver rola para a
areia. O mais velho dos coveiros barbudos ajoelha-se ao lado dele e
começa a metodicamente aliviá-lo de seu relógio e suas joias.

NARRADOR

Graças ao clima seco e à arte do embalsamador, o que resta do


diretor administrativo da Companhia Cervejeira Regra de Ouro
parece como se tivesse sido enterrado ontem. As bochechas estão
ainda rosadas com o carmim aplicado pelo agente funerário para o
velório. Costurados num perpétuo sorriso, os erguidos cantos dos
lábios comunicam ao redondo e bolachudo rosto a expressão
desvairadamente enigmática de uma madona de Boltraffio.

Subitamente o açoite de um chicote estala sobre os ombros do


coveiro ajoelhado. A Câmera recua para mostrar o Chefe projetando-
se, chicote na mão, tal qual a encarnação da divina Vingança, da
altura de seu marmóreo Sinai.
“Devolva o anel.”
“Que anel?”, gagueja o homem.
Como resposta o Chefe administra mais duas ou três
vergastadas com o chicote.
“Não, não... por favor! Ai! Eu vou devolver. Pare!”
O acusado insere dois dedos na boca e após um breve tatear
retira o belo anel de diamantes que o falecido cervejeiro comprou
para si quando os negócios iam animadoramente bem durante a
Segunda Guerra Mundial.
“Ponha-o aí junto com as outras coisas”, ordena o Chefe, e,
quando o homem obedece: “Vinte e cinco chibatadas”, continua com
sombria satisfação, “isso é o que você irá levar esta noite”.
Aos berros, o homem implora perdão — só por esta vez. Já que
amanhã é Dia de Belial... E afinal de contas, ele já é velho, trabalhou
legalmente toda a vida, chegou ao posto de supervisor substituto...
O Chefe o abrevia.
“Isso é uma Democracia”, diz ele. “Somos todos iguais perante a
Lei. E a Lei diz que tudo pertence ao Proletariado... Em outras
palavras, tudo vai para o Estado. E qual é a punição por roubar o
Estado?” O homem o contempla em mudo tormento. “Qual é a
punição?”, ruge o Chefe, erguendo o chicote.
“Vinte e cinco chibatadas”, vem a quase inaudível resposta.
“Ótimo! Bem, isso resolve a questão, não é? E agora, como são
as roupas?”
A mais jovem e esguia das garotas curva-se e cutuca o casaco
trespassado preto do cadáver.
“É coisa fina”, diz ela. “E sem manchas. Ele não vazou ou coisa
parecida.”
“Eu vou experimentá-las”, diz o Chefe.
Com certa dificuldade despem o cadáver de suas calças, casaco
e camisa, então o baixam novamente na cova e jogam terra sobre
sua peça única de roupa íntima. Entrementes o Chefe recolhe as
roupas, fareja-as criticamente, então tira o casaco cinza-perolado
que uma vez pertencera ao gerente de produção da Western-
Shakespeare Pictures Incorporated e enfia os braços naquela
alfaiataria mais conservadora, que combina com bebidas de malte e
com a Regra de Ouro.

NARRADOR

Ponham-se no lugar dele. Vocês podem não saber, mas uma


cardadeira ou, antes, uma carda completa consiste num alimentador,
ou tambor pequeno, e dois tambores, com suas facas,
debulhadeiras, pentes, descarregadores de véu etc. anexos. E caso
não se possua nenhum maquinário de cardagem ou teares elétricos,
caso não se possua nenhum motor elétrico para operá-los, ou
nenhum dínamo para gerar a eletricidade, ou nenhuma turbina para
ligar os dínamos, ou nenhum carvão para criar vapor, ou nenhum
alto-forno para produzir aço — ora, então é óbvio que sua fina
vestimenta deve depender dos cemitérios daqueles que uma vez
desfrutaram desses privilégios. E enquanto persistiu a radiatividade,
não houve nem mesmo cemitérios para explorar. Por três gerações o
decrescente restante daqueles que sobreviveram à consumação do
progresso tecnológico viveu à míngua no deserto. Foi somente nos
últimos trinta anos que se tornou seguro desfrutarem dos enterrados
despojos do confort moderne.

Close no Chefe, grotesco no casaco emprestado de um homem


cujos braços eram muito menores e cuja barriga era muito maior que
a sua. O som de passos se aproximando faz com que ele vire a
cabeça.
Num plano geral segundo seu ponto de vista, vemos o doutor
Poole, mãos atadas atrás das costas, marchando sofregamente na
areia. Atrás dele caminham seus três capturadores. Sempre que
tropeça ou atrasa o passo, eles o alfinetam no traseiro com folhas de
iúca afiadas e riem tumultuosamente para vê-lo estremecer.
O Chefe os encara em perplexo silêncio, enquanto eles se
aproximam.
“O que, em nome de Belial...?”, irrompe ele por fim.
A pequena comitiva estaca ao pé do mausoléu. Os três
membros da escolta do doutor Poole fazem uma mesura ao Chefe e
contam sua história. Eles estavam pescando a bordo de seus
coracles ao largo de Redondo Beach; de súbito avistaram um
enorme e estranho navio emergindo da bruma; remaram
imediatamente de volta à praia para evitar serem descobertos. Das
ruínas de uma velha casa eles observaram os forasteiros
desembarcar. Estavam em treze. E então um homem começou a
perambular com uma mulher até a própria soleira do esconderijo
deles. A mulher saiu outra vez, e enquanto o homem cavoucava na
areia com sua pequena pá, eles se lançaram nele por trás, o
amordaçaram, o amarraram e agora o traziam até aqui para ser
interrogado.
Faz-se um longo silêncio, logo rompido pelo Chefe.
“Você fala inglês?”
“Sim, eu falo inglês”, balbucia o doutor Poole.
“Ótimo. Desamarrem-no; pendurem-no.”
Eles o penduram — tão sem cerimônia que ele cai de quatro aos
pés do Chefe.
“Você é padre?”
“Padre?”, repete o doutor Poole com apreensiva perplexidade.
Ele balança a cabeça.
“Então por que não tem barba?”
“Eu... eu me barbeio.”
“Ah, então você não...” O Chefe passa um dedo ao longo do
queixo e das bochechas do doutor Poole. “Entendo, entendo.
Levante-se.”
O doutor Poole obedece.
“De onde vem?”
“Da Nova Zelândia, senhor.”
O doutor Poole engole em seco, deseja que sua boca estivesse
menos seca, sua voz menos trêmula de pavor.
“Nova Zelândia? Fica longe?”
“Muito longe.”
“Você veio num navio grande? Com velas?”
O doutor Poole assente e, adotando aquele trejeito de sala de
aula em que sempre se refugia quando contatos pessoais ameaçam
ficar muito difíceis, passa a explicar por que não lhe foi possível
cruzar o Pacífico num barco a vapor.
“Não haveria lugar algum onde reabastecer. Nossas companhias
de navegação só conseguem fazer uso de vapores para o tráfego
costeiro.”
“Vapores?”, repete o Chefe, seu rosto aceso com interesse.
“Vocês ainda possuem vapores? Quer dizer então que vocês não
pegaram a Coisa?”
O doutor Poole aparenta estar confuso.
“Não sei se entendo bem o que está dizendo”, diz ele. “Que
coisa?”
“A Coisa. Você sabe... Quando Ele assumiu.”
Levando as mãos à testa, ele faz sinal de chifres, com os
indicadores estendidos.
Devotadamente, seus vassalos o imitam.
“Quer dizer, o Diabo?”, diz o doutor Poole duvidosamente.
O outro assente.
“Mas, mas... Quero dizer, realmente...”

NARRADOR

Nosso amigo é um bom congregacionalista, mas, infelizmente, do


lado liberal. O que significa que ele nunca pagou ao Príncipe deste
mundo o Seu tributo ontológico. Sendo muito franco: ele não acredita
Nele.

“Sim, Ele assumiu o controle”, explica o Chefe. “Ele ganhou a batalha


e tomou posse de todos. Foi quando fizeram tudo isto.”
Com um amplo e abrangente gesto ele abarca aquela desolação
que uma vez fora Los Angeles. A expressão do doutor Poole se
ilumina com entendimento.
“Oh, entendo. Quer dizer, a Terceira Guerra Mundial. Não, nós
tivemos sorte; escapamos sem um arranhão. Graças à sua peculiar
situação geográfica”, acrescenta ele professoralmente, “a Nova
Zelândia não foi de nenhuma importância estratégica à...”
O Chefe abrevia a promissora aula.
“Então vocês ainda possuem trens?”, pergunta ele.
“Sim, ainda temos trens”, responde o doutor Poole, um tanto
irritado. “Mas, como eu estava dizendo...”
“E os motores realmente funcionam?”
“É claro que funcionam. Como eu estava dizendo...”
Surpreendentemente o Chefe deixa escapar um urro de
satisfação e lhe dá uma pancadinha no ombro.
“Então você pode nos ajudar a fazer tudo funcionar novamente.
Como nos bons e velhos tempos antes de...” Ele faz sinal de chifres.
“Teremos trens, trens de verdade.” E num êxtase de jubilosa
antecipação ele puxa o doutor Poole para si, envolve-lhe o pescoço
com um braço e o beija em ambas as bochechas.
Retraindo-se de constrangimento reforçado pelo nojo (pois o
grande homem raramente se lava e é horrivelmente desbocado), o
doutor Poole se desvencilha.
“Mas não sou engenheiro”, protesta. “Sou botânico.”
“Que é isso?”
“Um botânico é um homem que sabe sobre plantas.”
“Plantas de guerra?”, pergunta o Chefe esperançosamente.
“Não, não, plantas, somente. Coisas com folhas e caules e
flores... Embora, é claro”, acrescenta às pressas, “não devamos
esquecer os criptógamos. Aliás, os criptógamos são meus
queridinhos. A Nova Zelândia, como você deve saber, é
particularmente rica em criptógamos...”
“Mas e quanto aos motores?”
“Motores?”, repete o doutor Poole desdenhosamente. “Devo lhe
dizer que não sei a diferença entre uma turbina a vapor e uma a
diesel.”
“Então não pode fazer nada para nos ajudar a fazer os trens
funcionarem novamente?”
“Absolutamente nada.”
Sem dizer palavra, o Chefe levanta a perna direita, põe o pé na
boca do estômago do doutor Poole, então rispidamente endireita o
joelho dobrado.
Close no doutor Poole enquanto ele se levanta, abalado e
machucado, porém sem ossos quebrados, do monte de areia sobre o
qual caiu. Por cima do quadro ouvimos o Chefe gritando a seus
asseclas.
Plano médio dos coveiros e pescadores correndo em resposta à
convocação.
O Chefe aponta para o doutor Poole.
“Enterrem-no.”
“Vivo ou morto?”, pergunta a mais roliça das garotas em sua
opulenta voz contralto.
O Chefe a encara. Plano segundo seu ponto de vista. Com certo
esforço ele se afasta. Seus lábios se movem. Ele está repetindo a
relevante passagem do Breve Catecismo. “Qual é a natureza da
mulher? Resposta: A mulher é a vasilha do Espírito Profano, a raiz
de toda deformidade, o inimigo da raça, o...”
“Vivo ou morto?”, repete a garota roliça.
O Chefe dá de ombros.
“Como quiser”, responde com estudada indiferença.
A garota roliça bate palmas.
“Eba, eba!”, exclama ela, e volta-se para seus companheiros.
“Venham, rapazes. Vamos nos divertir um pouco.”
Eles cercam o doutor Poole, levantam-no do chão enquanto grita
e largam-no de pé na cova meio preenchida do diretor administrativo
da Companhia Cervejeira Regra de Ouro. Enquanto a garota roliça o
retém lá embaixo, os homens jogam sobre o local a terra solta.
Dentro de um tempo muito curto ele está enterrado até a cintura.
Na faixa de áudio os gritos da vítima e o excitado riso dos
carrascos diminuem até um silêncio que é rompido pela voz do
Narrador.

NARRADOR

Crueldade e compaixão vêm com os cromossomos;


Todos os homens são piedosos e todos são assassinos.
Loucos por cachorros, constroem suas Dachaus;
Incendeiam cidades inteiras e afagam os órfãos;
Bradam contra os linchamentos, mas consentem com Oakridge;
Repletos de filantropia amanhã, mas, hoje, de NKVD.[9]
A quem perseguiremos, de quem nos apiedaremos?
Tudo se resume aos costumes do momento,
Às palavras em polpa de madeira, aos rádios vociferando,
Aos jardins de infância comunistas ou primeiras comunhões.
Apenas no conhecimento de sua própria Essência
Um homem deixou de ser vários macacos.

O riso e as súplicas de misericórdia retornam à faixa de áudio. Então,


de repente, ouvimos o Chefe.
“Para trás”, grita ele. “Não consigo ver.”
Eles obedecem. Em silêncio, o Chefe olha para o doutor Poole
lá embaixo.
“Você sabe tudo sobre plantas”, diz ele por fim. “Por que então
não cria algumas raízes aí embaixo?”
A caçoada é recebida com ruidosas gargalhadas.
“Por que não germina umas plantinhas cor-de-rosa?”
Vemos um close-up no agonizante rosto do botânico.
“Misericórdia, misericórdia...”
A voz cessa, grotescamente; ouve-se outro acesso de
hilaridade.
“Eu poderia lhe ser útil. Poderia lhe mostrar como ter melhores
safras. Você teria mais para comer.”
“Mais para comer?”, repete o Chefe com repentino interesse.
Então franze o cenho selvagemente. “Você está mentindo!”
“Não estou. Juro por Deus Todo-Poderoso.”
Ouve-se um murmúrio de estarrecido protesto.
“Ele pode ser todo-poderoso na Nova Zelândia”, diz o Chefe.
“Mas não aqui... Não desde que a Coisa aconteceu.”
“Mas estou certo de que posso ajudá-lo.”
“Está preparado para jurar por Belial?”
O pai do doutor Poole era um clérigo e ele próprio é um assíduo
frequentador de igreja; mas é com sincero fervor que ele faz o que
lhe pedem.
“Por Belial. Eu juro por Belial Todo-Poderoso.”
Todos fazem sinal de chifres. Há um longo silêncio.
“Desenterre-o.”
“Ah, Chefe!”, protesta a garota roliça. “Não é justo!”
“Desenterre-o, sua vasilha de Profanação!”
Seu tom transmite urgente convicção; eles escavam com
tamanho fervor que em menos de um minuto o doutor Poole está
fora de sua cova e erguido, bastante desaprumado, ao pé do
mausoléu.
“Obrigado”, consegue dizer; então seus joelhos lhe faltam e ele
tomba.
Ouve-se um coro de risada desdenhosamente bem-humorada.
O Chefe se inclina de seu poleiro de mármore.
“Ei, você aí, vasilha ruiva.” Ele entrega uma garrafa à garota.
“Faça-o beber um pouco disso”, ordena. “Ele tem que conseguir
caminhar. Voltaremos ao Quartel-General.”
Ela se senta ao lado do doutor Poole, ergue seu corpo frouxo,
escora a cambaleante cabeça nas interdições de seu busto e
administra o tônico.
Dissolve para uma rua. Quatro dos homens barbudos carregam
o Chefe numa liteira. Os outros vagueiam logo atrás, movendo-se
lentamente através da areia dispersa. Cá e lá, sob os alpendres de
postos de abastecimento destroçados, nas soleiras escancaradas de
prédios comerciais, jazem pilhas de ossos humanos.
Plano americano do doutor Poole. Ainda segurando a garrafa na
mão direita, ele caminha um tanto inseguro, cantando “Annie Laurie”
consigo mesmo com intenso sentimento. Embriagado e de estômago
vazio — o estômago vazio, aliás, de um homem cuja Mãe sempre
fizera conscienciosas objeções ao álcool —, o forte vinho tinto faz
efeito imediato.

“And for bonny Annie Laurie I’d lay me doon and dee...”[10]

No meio da frase final, as duas garotas coveiras adentram no


quadro. Aproximando-se do cantor por trás, a roliça dá-lhe um
amigável tapa nas costas. O doutor Poole se sobressalta, vira-se e
parece subitamente apreensivo. Mas o sorriso dela é tranquilizador.
“Me chamo Flossie”, diz ela. “E espero que não esteja zangado
comigo por ter eu sugerido enterrá-lo.”
“Oh, não, não, nem um pouco”, assegura-lhe o doutor Poole no
tom de alguém que diz não ter objeção alguma a uma jovem dama
acender um cigarro.
“Não é como se eu tivesse algo contra você”, assegura-lhe
Flossie.
“É claro que não.”
“Apenas queria rir, só isso.”
“Certo, certo.”
“As pessoas parecem tão gritantemente engraçadas quando
estão sendo enterradas!”
“Gritantemente”, concorda o doutor Poole, e força uma nervosa
risadinha.
Sentindo necessidade de mais coragem, ele se tonifica com
mais um trago da garrafa.
“Bem, nos vemos depois”, diz a garota roliça. “Tenho que ir e
falar ao Chefe sobre encompridar as mangas do novo casaco dele.”
Ela lhe dá outro tapa nas costas e apressa-se em ir embora.
O doutor Poole é deixado sozinho com a companheira dela. Ele
a olha de soslaio. Ela tem dezoito anos; tem cabelos ruivos e
covinhas, um rosto encantador e um corpo esbelto, adolescente.
“Meu nome é Loola”, ela toma a dianteira. “Qual é o seu?”
“Alfred”, responde o doutor Poole. “Minha Mãe era uma grande
admiradora de ‘In Memoriam’”,[11] acrescenta ele à guisa de
explicação.
“Alfred”, repete a garota ruiva. “Vou te chamar de Alfie. Te digo
uma coisa, Alfie: eu não gosto desses enterros públicos. Eu não
deveria ser diferente das outras pessoas, mas esse tipo de coisa não
me faz rir. Não consigo ver nada de engraçado nisso.”
“Fico feliz em ouvir isso”, diz o doutor Poole.
“Sabe, Alfie”, retoma ela, após breve silêncio, “você é realmente
um homem de muita sorte.”
“Sorte?”
Loola assente.
“Primeiro você é desenterrado, o que eu já nunca vi acontecer
antes, e agora você caminha diretamente para as Cerimônias de
Purificação.”
“Cerimônias de Purificação?”
“Sim, é Dia de Belial amanhã... Dia de Belial”, insiste ela, em
resposta ao inexpressivo olhar de incompreensão no rosto do
interlocutor. “Não me diga que não sabe o que acontece na Véspera
de Belial.”
O doutor Poole balança a cabeça.
“Mas então quando é que vocês fazem sua Purificação?”
“Bem, nós tomamos banhos todos os dias”, diz o doutor Poole,
que acaba de ser lembrado, uma vez mais, de que Loola
decididamente não os toma.
“Não, não”, diz ela impacientemente. “Quero dizer, a Purificação
da Raça.”
“Da Raça?”
“Que diabos, seus padres não permitem que os bebês
deformados vivam, permitem?”
Há um silêncio; então o doutor Poole contra-ataca com uma
pergunta própria.
“Há muitos bebês deformados nascidos aqui?”
Ela mexe a cabeça afirmativamente.
“Desde que a Coisa... desde que Ele está no comando.” Ela faz
sinal de chifres. “Dizem que antes disso não havia nenhum.”
“Alguém já lhe contou sobre o efeito dos raios gama?”
“Raios gama? O que é um raio gama?”
“É a razão por que há todos esses bebês deformados.”
“Você não está querendo sugerir que não foi obra de Belial,
está?” Seu tom é de indignada suspeita; ela o observa como são
Domingos deve ter observado um herege albigense.
“Não, não, é claro que não”, apressa-se em assegurar-lhe o
doutor Poole. “Ele é a causa principal, isso nem preciso dizer.”
Desajeitada e inabilmente, ele faz sinal de chifres. “Eu estava
meramente sugerindo que a natureza das causas secundárias... os
meios que Ele usou para levar a cabo Seu... Seu propósito
providencial... se você entende o que quero dizer.”
Suas palavras e, ainda mais, seu gesto devoto acalmam as
suspeitas de Loola. Seu rosto se desanuvia; ela lhe oferece seu mais
encantador sorriso. As covinhas em suas bochechas ganham vida
como um par de adoráveis criaturinhas levando intermitentemente
uma secreta e autônoma existência independente do resto da face
de Loola. O doutor Poole retribui-lhe o sorriso, mas quase que
instantaneamente olha para longe, corando até a raiz dos cabelos ao
fazê-lo.

NARRADOR

Além da enormidade de seu respeito pela sua Mãe, esse nosso


pobre amigo ainda é, aos trinta e oito, um solteirão. Muito cheio de
uma piedade anormal para poder se casar, gastou metade de uma
vida a queimar sup-repticiamente. Sentindo que seria um sacrilégio
pedir a uma virtuosa jovem dama que compartilhasse sua cama, ele
habita, sob a carapaça da respeitabilidade acadêmica, um mundo
ardente e furtivo, onde fantasias eróticas geram uma agonizante
contrição e onde desejos adolescentes lutam eternamente com os
preceitos maternos. E agora eis aqui Loola — Loola sem a menor
pretensão de educação ou boa criação, Loola au naturel com uma
fragrância almiscarada que, pensando bem, tem um quê realmente
fascinante. Não admira que ele core e (contra a vontade, pois anseia
continuar olhando para ela) desvie os olhos.

Por consolação e na esperança de um arroubo de audácia, ele


recorre de novo à garrafa. Subitamente o bulevar se estreita até um
mero atalho entre duas dunas de areia.
“Depois de você”, diz o doutor Poole, fazendo-lhe uma educada
mesura.
Ela sorri reconhecendo uma cortesia à qual, neste lugar onde os
homens assumem a primazia e as vasilhas do Espírito Profano os
seguem, ela está totalmente desacostumada.
Travelling, segundo o ponto de vista do doutor Poole, das costas
de Loola. NÃO NÃO, NÃO NÃO, NÃO NÃO, passo a passo em ondulante alternância.
Corta de volta para um close no doutor Poole, contemplando, olhos
arregalados, e de volta do rosto do doutor Poole para as costas de
Loola.

NARRADOR

É o emblema, exterior, visível, tangível, de sua própria consciência


interior. O princípio em desacordo com a concupiscência, sua Mãe e
o Sétimo Mandamento sobrepostos às fantasias e aos fatos da Vida.

As dunas retrocedem. Mais uma vez a estrada torna-se ampla o


bastante para que os dois caminhem lado a lado. O doutor Poole
olha de soslaio o rosto da companheira e o vê nublado com uma
expressão de melancolia.
“O que passa?”, pergunta ele solicitamente e, muito ousado,
acrescenta: “Loola”, e pousa uma mão em seu braço.
“É terrível”, diz ela num tom de calma aflição.
“O que é terrível?”
“Tudo. Você não quer ficar pensando sobre essas coisas; mas
quando se é um desses azarados, não dá para evitar o pensamento.
E você quase enlouquece. Pensando e pensando em alguém, e
desejando e desejando. E você sabe que não deve. E você morre de
medo do que podem fazer se descobrirem. Mas você daria tudo no
mundo em troca de apenas cinco minutos, de ficar livre por cinco
minutos. Mas não, não, não. E você aperta os punhos e se contém...
e é como fazer-se em pedaços. E então de repente, após todo esse
sofrimento, de repente...” Ela para.
“De repente, o quê?”, indaga o doutor Poole.
Ela olha para ele rispidamente, mas vê em seu rosto apenas
uma expressão de indagação e incompreensão genuinamente
inocente.
“Não consigo entendê-lo”, diz ela por fim. “É verdade o que disse
ao Chefe? Que você não é padre.”
Imediatamente ela se ruboriza.
“Se não acredita em mim”, diz o doutor Poole com galhardia
gerada pelo vinho, “estou pronto para lhe provar.”
Ela olha para ele por um momento, então balança a cabeça e,
numa espécie de pavor, vira-se para longe. Nervosamente ela alisa o
avental.
“E no entanto”, continua ele, incentivado por essa recém-
descoberta timidez dela, “você não me contou ainda o que é isso que
acontece de repente.”
Loola vislumbra ao redor para garantir que ninguém está ao
alcance da voz, então por fim fala quase num sussurro.
“De repente Ele começa a tomar posse de todos. Durante
semanas Ele os faz pensar sobre aquelas coisas... e isso é contra a
Lei, é perverso. Os homens ficam tão furiosos que passam a bater
em você e chamá-la de vasilha, da maneira como fazem os padres.”
“Vasilha?”
Ela assente.
“Vasilha do Espírito Profano.”
“Ah, entendo.”
“E então vem o Dia de Belial”, prossegue ela após breve pausa.
“E então... bem, você sabe o que isso significa. E depois, se você
tem um bebê, é capaz que Ele a castigue por aquilo que Ele a fez
fazer.” Ela se crispa e faz sinal de chifres. “Sei que temos que aceitar
o que Ele quer”, acrescenta. “Mas, oh, também espero que, se algum
dia eu tiver bebês, eles fiquem bem.”
“Mas é claro que ficarão bem!”, exclama o doutor Poole. “Afinal
de contas, não há nada de errado com você.”
Encantado com a própria audácia, ele a admira.
Close segundo seu ponto de vista. NÃO NÃO NÃO, NÃO NÃO NÃO...
Pesarosamente, Loola balança a cabeça.
“É aí que você se engana”, diz ela. “Eu tenho um par extra de
mamilos.”
“Ah”, diz o doutor Poole num tom que nos faz perceber que um
mero pensamento em sua Mãe momentaneamente obliterou os
efeitos do vinho tinto.
“Não que haja algo realmente ruim nisso”, apressa-se em
acrescentar Loola. “Até mesmo as melhores pessoas têm. É
perfeitamente permitido. Eles permitem até três pares. E sete
artelhos e dedos. Tudo acima disso é liquidado na Purificação. Minha
amiga Polly, ela... teve um bebê nesta temporada. É o primeiro dela.
E ele tem quatro pares e nenhum polegar. Não tem chance alguma.
Na verdade, já foi até condenada. Ela teve a cabeça raspada.”
“A cabeça raspada?”
“Fazem isso com todas as garotas cujos bebês são liquidados.”
“Mas por quê?”
Loola dá de ombros.
“Só para lembrá-las de que Ele é o Inimigo.”

NARRADOR

“Para dizê-lo”, como disse Schroedinger, “drasticamente, embora


talvez um pouco ingenuamente, a perniciosidade de um casamento
entre primos de primeiro grau pode muito bem ser agravada pelo fato
de a avó deles ter trabalhado longo período como enfermeira de raio
X. Não é um pormenor que precise preocupar uma pessoa
individualmente. Mas qualquer possibilidade de aos poucos infectar a
raça humana com indesejadas mutações latentes deve ser motivo de
preocupação para a comunidade.” Deveria ser; mas, nem é preciso
que eu diga, não é? Oakridge opera com três turnos diários; uma
usina atômica está sendo construída na costa de Cumberland; e do
outro lado da cerca sabe-se lá o que Kapitza está aprontando no
topo do monte Ararat, que surpresas aquela maravilhosa alma russa,
sobre a qual Dostoiévski costumava escrever com tamanho lirismo,
têm na manga para os cadáveres russos e as carcaças de
Capitalistas e Social-Democratas.

Mais uma vez a areia barra a estrada. Eles entram noutra tortuosa
vereda entre as dunas e encontram-se subitamente sozinhos, como
se no meio do Saara.
Travelling segundo o ponto de vista do doutor Poole. NÃO NÃO, NÃO NÃO...
Loola estaca e volta na direção dele. NÃO NÃO NÃO. A Câmera sobe até
seu rosto e de imediato ele nota que sua expressão é trágica.
NARRADOR

O Sétimo Mandamento, os Fatos da Vida. Mas há ainda outro Fato,


ao qual não se pode reagir com uma mera negação
departamentalizada ou com uma não menos fragmentária exibição
de luxúria — o Fato da Personalidade.

“Não quero que cortem meus cabelos”, diz ela numa voz rachada.
“Mas eles não vão.”
“Vão sim.”
“Eles não podem, eles não devem.” Então, espantado com a
própria ousadia, ele acrescenta: “É bonito demais”.
Ainda trágica, Loola balança a cabeça.
“Eu sinto”, diz ela, “em meus ossos. Eu simplesmente sei que
ele terá mais do que sete dedos. Eles vão matá-lo, vão raspar meu
cabelo, vão me açoitar... e Ele é quem nos leva a fazer essas
coisas.”
“Que coisas?”
Ela olha para ele um momento sem falar nada; então, com uma
expressão quase de pavor, baixa os olhos.
“É porque Ele quer que sejamos miseráveis.”
Cobrindo o rosto com as mãos, ela começa a soluçar
incontrolavelmente.
NARRADOR

O vinho dentro, e, fora, o almiscarado lembrete


Daqueles tão próximos, quentes, maduros, telúricos e senão
Comestíveis Fatos da Vida... E agora as lágrimas dela, as lágrimas...

O doutor Poole toma a garota nos braços e, enquanto ela soluça


contra seu ombro, afaga-lhe os cabelos com toda a ternura do
macho padrão em que ele momentaneamente se tornou.
“Não chore”, sussurra ele, “não chore. Ficará tudo bem. Sempre
estarei lá. Não deixarei que façam nada a você.”
Ela aos poucos se deixa ser confortada. O soluçar fica menos
violento e por fim cessa por completo.
Ela olha para cima, e o sorriso que ela lhe dá entre as lágrimas é
tão inequivocamente amoroso que qualquer um exceto o doutor
Poole teria sem demora aceitado o convite. Os segundos se passam
e, enquanto ele ainda hesita, a expressão dela se altera, ela baixa as
pálpebras ante uma confissão que agora lhe parece ter sido franca
demais, e vira-se para o outro lado.
“Me desculpe”, murmura, e começa a esfregar as lágrimas com
o nó dos dedos de uma mão tão imunda quanto a de uma criança.
O doutor Poole pega seu lenço e ternamente enxuga-lhe os
olhos.
“Você é tão amável”, diz ela. “Nem um pouco como os homens
daqui.”
Ela sorri para ele novamente. Como um par de encantadores
animaizinhos selvagens emergindo de seu covil, surgem as
covinhas.
Tão impulsivamente que não lhe sobra tempo para se sentir
surpreso com o que está fazendo, o doutor Poole toma o rosto dela
entre as mãos e a beija na boca.
Loola resiste por um momento, então se abandona numa
rendição tão completa que tenciona ser mais ativa do que a investida
dele.
Na faixa de áudio, “Me dê a detumescência” modula para a
“Liebestod” do Tristão.[12]
Subitamente Loola endurece numa trêmula rigidez. Empurrando-
o, ela selvagemente encara seu rosto; então se vira e olha por cima
do ombro com uma expressão de culpado pavor.
“Loola!”
Ele tenta puxá-la novamente para perto, mas ela se solta e
começa a correr pela estreita vereda.
NÃO NÃO, NÃO NÃO, NÃO NÃO...

Dissolvemos para a esquina da Fifth Street com a Pershing


Square. Como antigamente, a praça é o eixo e o centro da vida
cultural da cidade. De um raso poço em frente ao Philharmonic
Auditorium duas mulheres retiram água com um odre, o qual
esvaziam em jarras de faiança para que outras mulheres carreguem.
De uma barra pendurada entre dois enferrujados postes de luz
pende a carcaça de um boi recém-abatido. Postado numa nuvem de
moscas, um homem com uma faca remove-lhe as entranhas.
“Isso parece bom”, diz o Chefe jovialmente.
O açougueiro arreganha um sorriso e, com os dedos
ensanguentados, faz sinal de chifres.
Alguns metros adiante estão os fornos comunitários. O Chefe
ordena uma parada e graciosamente aceita um pedaço do pão
recém-assado. Enquanto come, dez ou doze garotinhos adentram no
quadro, cambaleando debaixo de desmesurados carregamentos de
combustível vindos da Biblioteca Pública vizinha. Eles derrubam
seus fardos no chão e, incitados pelos golpes e imprecações de seus
anciões, correm para trazer mais. Um dos padeiros abre a porta de
uma fornalha e começa a lançar os livros nas chamas.
O erudito, o bibliófilo dentro do doutor Poole se ultraja com o
espetáculo.
“Mas isso é assustador!”, protesta.
O Chefe apenas ri.
“Ali entra A fenomenologia do espírito e sai o pão de milho. E
caramba, que pão bom!”
Ele dá outra mordida.
Entrementes o doutor Poole se curvou e, à beira daquela
destruição, custodiou um encantadorzinho in-duodecimo de Shelley
apanhado do chão.
“Graças a D...”, principia ele, mas felizmente se lembra de onde
está e consegue conter-se a tempo.
Ele mete o volume no bolso e, virando-se para o Chefe:
“E quanto à cultura?”, pergunta. “E quanto à herança social da
sabedoria da humanidade, dolorosamente alcançada? E quanto ao
ápice do pensamento e...”
“Eles não sabem ler”, responde o Chefe de boca cheia. “Não,
essa não é bem a verdade. Nós os ensinamos a ler aquilo.”
Ele aponta. Plano médio, segundo seu ponto de vista, de Loola
— Loola com as covinhas e tudo o mais, só que também com os
grandes e vermelhos NÃO em seu avental, os dois NÃO menores no peito
de sua camisa.
“Isso é todo o aprendizado de que precisam. E agora”, comanda
aos seus condutores, “prossigam.”
Travelling da liteira ao ser carregada através da entrada sem
porta do que um dia foi a Cafeteria Biltmore. Aqui, no malcheiroso
crepúsculo, vinte ou trinta mulheres, algumas na meia-idade,
algumas jovens, algumas simples garotas, estão atarefadamente
tecendo em teares primitivos do tipo utilizado pelos índios da
América Central.
“Nenhuma das vasilhas teve bebê nesta temporada”, explica o
Chefe ao doutor Poole. Ele franze o cenho e balança a cabeça.
“Quando não estão produzindo monstros, estão estéreis. O que
faremos quanto à mão de obra, só Belial sabe...”
Eles avançam mais cafeteria adentro, passam por um grupo de
crianças de três e quatro anos sob a supervisão de uma vasilha com
fenda palatina e catorze dedos, e fazem uma parada debaixo de um
arco que dá acesso a uma segunda sala de jantar apenas
ligeiramente menor do que a primeira.
Fora do quadro ouvimos o som de um coro de vozes juvenis
recitando em uníssono as frases de abertura do Breve Catecismo.
“Pergunta: Qual é o principal objetivo do Homem? Resposta: O
principal objetivo do Homem é apaziguar Belial, deplorar Sua
malquerença e evitar a destruição por tanto tempo quanto possível.”
Corta para um close no rosto do doutor Poole, no qual vemos
uma expressão de assombro misturado com crescente horror.
Depois um longo plano geral segundo seu ponto de vista. Em cinco
fileiras de doze, sessenta garotos e garotas entre treze e quinze
anos postam-se rigidamente atentos, tagarelando tão rápido quanto
podem numa esganiçada e áspera monotonia. Encarando-os, num
tablado, está sentado um homem pequeno e gordo trajando um
comprido robe preto e branco de pele de cabra e um gorro de pele
com bainha de couro duro, no qual estão afixados dois chifres de
tamanho médio. Imberbe e lívido, seu rosto brilha com uma profusa
transpiração, a qual ele está sempre enxugando com a peluda
manga de sua batina.
Corta de volta para o Chefe, enquanto ele se curva e toca o
ombro do doutor Poole.
“Aquele”, sussurra ele, “é nosso principal Praticante de Ciência
Satânica. Vou lhe dizer, ele é um verdadeiro ás do Magnetismo
Animal Malicioso.”
Fora do quadro ouvimos o estúpido tagarelar das crianças.
“Pergunta: A que está predestinado o Homem? Resposta: Belial,
para Seu próprio bel-prazer, desde toda a eternidade elegeu todos os
viventes à eterna perdição.”
“Por que ele usa chifres?”, pergunta o doutor Poole.
“Ele é um Arquimandrita”, explica o Chefe. “Em vias de receber
seu terceiro chifre, a qualquer momento.”
Corta para um plano médio do tablado.
“Excelente”, está dizendo numa ciciante voz alta o Praticante de
Ciência Satânica, como a voz de um garotinho extraordinariamente
pedante e enfatuado. “Excelente!” Ele enxuga a testa. “E agora me
digam por que vocês merecem a perdição eterna.”
Há um momento de silêncio. Então, num coro que começa um
tanto irregular, mas em breve cresce até uma ruidosa unanimidade,
as crianças respondem.
“Belial nos perverteu e corrompeu a todos os recantos do nosso
ser. Portanto, simplesmente por causa dessa corrupção, fomos
merecidamente condenados por Belial.”
O professor anui com a cabeça.
“Assim é”, chia ele untuosamente, “a inescrutável justiça do
Senhor das Moscas.”
“Amém”, respondem as crianças.
Todas fazem sinal de chifres.
“E quanto ao seu dever com respeito ao seu próximo?”
“Meu dever com respeito ao meu próximo”, vem a resposta do
coral, “é fazer o meu melhor para impedir que ele faça a mim aquilo
que eu gostaria de fazer a ele; me sujeitar a todos os meus
governantes; manter meu corpo em absoluta castidade, exceto
durante as duas semanas após o Dia de Belial; e cumprir meu dever
naquela fase da vida à qual Belial aprouve me condenar.”
“O que é a Igreja?”
“A Igreja é o corpo do qual Belial é a cabeça e todos os
condenados são os membros.”
“Muito bom”, diz o Praticante, enxugando o rosto mais uma vez.
“E agora necessito de uma jovem vasilha.”
Ele corre os olhos sobre as fileiras de pupilos, então aponta um
dedo.
“Você aí. A terceira a partir da esquerda, na segunda fila... A
vasilha com cabelos loiros. Venha aqui.”
Corta de volta para o grupo ao redor da liteira.
Os condutores arreganham um sorriso de feliz expectativa e,
parecendo intensamente vermelhos e úmidos e suculentos entre os
negros cachos de bigodes e barbas, até mesmo os lábios do Chefe
se curvam num sorriso. Mas não há sorriso no rosto de Loola. Pálida,
a mão sobre a boca, os olhos abertos e pasmos, ela observa os
procedimentos com o horror de quem já passou por esse tipo de
provação. O doutor Poole olha para ela, então novamente para a
vítima, que agora vemos, segundo seu ponto de vista, avançando a
passo miúdo em direção ao tablado.
“Aqui em cima”, chia a voz quase pueril no tom autoritário dos
conquistadores. “Fique ao meu lado. Agora se vire para a classe.”
E a criança faz como lhe pedem.
Plano americano de uma alta e esguia garota de quinze anos
com um rosto de madona nórdica. NÃO, proclama o avental preso à
cintura de suas calças corsário; NÃO e NÃO, os remendos sobre seus
seios florescentes.
O Praticante aponta-lhe um dedo recriminador.
“Olhem para ela”, diz ele, franzindo o rosto numa careta de
desgosto. “Já viram coisa mais revoltante?”
Ele se volta para a classe.
“Rapazes”, chia ele. “Levante a mão quem de vocês sente
qualquer Magnetismo Animal Malicioso emanando desta vasilha.”
Corta para um plano geral da classe. Sem exceção, todos os
garotos estão com as mãos levantadas. Seus rostos trazem aquela
expressão de luxuriosa e malévola diversão com a qual os ortodoxos
sempre observaram enquanto seus pastores espirituais atormentam
os bodes expiatórios hereditários ou punem ainda mais severamente
os hereges que ameaçam os interesses da Ordem.
Corta novamente para o Praticante. Ele suspira hipocritamente e
balança a cabeça.
“Era o que eu temia”, diz ele. Então ele se volta para a garota ao
lado dele no tablado. “Agora me diga”, continua ele, “qual é a
Natureza da Mulher?”
“A Natureza da Mulher?”, hesita a criança.
“Sim, a Natureza da Mulher. Ande!”
Ela olha para ele com uma expressão de pavor nos olhos azuis,
então se vira para o outro lado. Seu rosto se torna mortalmente
pálido. Seus lábios tremem; ela engole em seco.
“A mulher...”, principia ela, “a mulher...”
Sua voz cessa, seus olhos marejam de lágrimas; num
desesperado esforço para controlar seus sentimentos, ela cerra os
punhos e morde o lábio.
“Vamos!”, exclama esganiçadamente o Praticante. E pegando do
chão uma vara de salgueiro, ele aplica à criança um brusco açoite
sobre as panturrilhas de suas pernas nuas. “Vamos!”
“A mulher”, principia de novo a garota, “é a vasilha do Espírito
Profano, a raiz de toda deformidade, a... a... Ai!”
Ela se contrai debaixo de outro golpe.
O Praticante ri e toda a classe o imita.
“O inimigo...”, incita ele.
“Ah, sim... O inimigo da raça, punido por Belial e invocando
punição para todos aqueles que nela sucumbem a Belial.”
Há um longo silêncio.
“Bem”, diz por fim o Praticante, “eis aí o que você é. É o que
todas as vasilhas são. E agora vá, vá!”, guincha ele, e com súbita
fúria a acerta mais e mais uma vez.
Chorando de dor, a criança pula do tablado e corre de volta ao
seu lugar nas fileiras.
Corta novamente para o Chefe. Sua testa está enrugada em
uma carranca de descontentamento.
“Toda essa educação progressiva!”, diz ele ao doutor Poole.
“Nenhuma disciplina adequada. Não sei o que será de nós. Ora,
quando eu era garoto, nosso velho Praticante costumava amarrá-las
em cima de um assento e flagelá-las com um chicote de vidoeiro.
‘Isso vai ensiná-la a ser uma vasilha’, ele dizia, e então plaft, plaft,
plaft! Ó, Belial, como elas uivavam! Isso é o que eu chamo de
educação. Bem, para mim, chega”, acrescenta. “Marcha rápida!”
Enquanto a liteira se encaminha para fora do quadro, a Câmera
se detém em Loola, que lá permanece, encarando com uma agonia
solidária o rosto molhado de lágrimas e os agitados ombros da
pequena vítima da segunda fila. Uma mão toca o seu próprio braço.
Ela se sobressalta, vira-se apreensivamente e fica aliviada ao
descobrir-se olhando para o bondoso rosto do doutor Poole.
“Eu concordo inteiramente com você”, sussurra ele. “É errado, é
injusto.”
Somente depois de lançar um rápido olhar sobre o ombro, Loola
arrisca oferecer-lhe um sorrisinho de gratidão.
“Agora devemos ir”, diz ela.
Eles se apressam no encalço dos outros. Seguindo a liteira,
repisam seus passos através da Cafeteria, então dobram à direita e
entram no Cocktail Bair. Numa das extremidades da sala uma
enorme pilha de ossos humanos quase atinge o teto. Acocorados no
chão, sobre um espesso pó branco, uma porção de artesãos se
ocupa de confeccionar copos a partir de crânios; agulhas de tricô, de
cúbitos; flautas e pífanos, das tíbias mais compridas; conchas,
calçadeiras e dominós, de pélvis; e torneiras, de fêmures.
Ordena-se uma parada, e, enquanto um dos trabalhadores toca
“Me dê a detumescência” numa flauta feita de tíbia, outro presenteia
o Chefe com um esplêndido colar de vértebras gradativas variando
de tamanho entre as cervicais de um bebê e as lombares de um
boxeador peso-pesado.

NARRADOR

“E ele me pôs no meio do vale que estava cheio de ossos; e eis que
estavam sequíssimos.” Os ossos secos de alguns daqueles que
morreram, aos milhares, aos milhões, no decurso daqueles três
claros dias de verão que, para vocês aí, se encontram ainda no
futuro. “E ele me perguntou: Filho do homem, poderão viver estes
ossos?” A resposta, disse eu, é negativa. Pois embora Baruque
possa (talvez) nos salvar de assumir nossos lugares em um ossuário
como esse, ele nada pode fazer para impedir aquela outra morte,
mais lenta, mais perversa...

Travelling da liteira sendo carregada pelos degraus até o vestíbulo


principal. Aqui, o fedor é avassalador, a sujeira, indescritível. Close-
up em dois ratos roendo um osso de carneiro, em moscas nas
pálpebras purulentas de uma garotinha. A Câmera recua para um
plano geral. Quarenta ou cinquenta mulheres, metade das quais com
cabeça raspada, estão sentadas nas escadas, entre o rebotalho no
chão, nos esfarrapados remanescentes de antigas camas e sofás.
Cada uma delas alimenta um bebê, todos os bebês têm dez
semanas de vida e todos aqueles pertencentes a mães raspadas são
deformados. Sobre close-ups em rostinhos com lábios leporinos,
tronquinhos com cotocos em lugar de pernas e braços, mãozinhas
com ramos de dedos excedentes, corpinhos adornados com uma
dupla fileira de mamilos, ouvimos a voz do Narrador.
NARRADOR

Pois esta outra morte — não pela praga, desta vez, não pelo veneno,
não pelo fogo, não pelo câncer induzido artificialmente, mas pela
sórdida desintegração da própria substância da espécie —, esta
aterrorizante e infinitamente covarde morte no nascimento bem
poderia ser produto tanto da indústria atômica como da guerra
atômica. Pois num mundo provido pela fissão nuclear, a avó de todos
teria sido uma profissional do raio X. E não apenas a avó de todos —
o avô e o pai e a mãe de todos igualmente, os ancestrais de todos
voltando até três e quatro e cinco gerações daqueles que Me
odeiam.

Do último bebê deformado a Câmera recua de volta para o doutor


Poole, que está de pé, o lenço mantido em seu nariz ainda sensível
demais, fitando com horrorizado assombro a cena à sua volta.
“É como se todos os bebês tivessem a mesma idade”, diz ele,
virando-se para Loola, que ainda está ao seu lado.
“Bem, o que você esperava, já que praticamente todos eles
nasceram entre dez e dezessete de dezembro?”
“Mas isso deve significar que...” Ele se detém, profundamente
constrangido. “Eu acho que”, conclui às pressas, “aqui as coisas
devem ser bastante diferentes do que são na Nova Zelândia...”
A despeito do vinho, ele se recorda de sua grisalha Mãe do
outro lado do Pacífico e, corando de culpa, tosse e desvia os olhos.
“Ali está a Polly”, grita sua companheira, e precipita-se pela sala.
Resmungando pedidos de desculpas enquanto escolhe seu
caminho por entre os acocorados e as mães reclinadas, o doutor
Poole a segue.
Polly está sentada numa saca forrada de palha perto do que
uma vez fora o balcão do caixa. Ela é uma garota de dezoito ou
dezenove anos, pequena e frágil, a cabeça raspada como a de um
criminoso preparado para sua execução. Tem um rosto cuja beleza
reside toda nos ossos finos e nos grandes olhos luminosos. É com
uma expressão de dorido assombro que aqueles olhos agora fitam o
rosto de Loola e do rosto de Loola se movem sem curiosidade,
quase sem compreensão, até o do estranho que a acompanha.
“Querida!”
Loola se curva para beijar sua amiga. NÃO NÃO, segundo o ponto de
vista do doutor Poole. Então ela se senta ao lado de Polly e a
envolve com um braço confortador. Polly esconde o rosto no ombro
da outra e ambas as garotas começam a chorar. Como se infectado
por aquele pesar, o monstrinho nos braços de Polly desperta e solta
um fino uivo queixoso. Polly levanta a cabeça do ombro da amiga e,
o rosto ainda molhado de lágrimas, baixa o olhar até a criança
deformada, então abre sua camisa e, puxando de lado um dos NÃO
carmesins, dá-lhe o peito. Com uma fome quase frenética a criança
começa a sugar.
“Eu o amo”, soluça Polly. “Não quero que o matem.”
“Querida”, é tudo que Loola encontra para dizer, “querida!”
Uma voz alta a interrompe.
“Silêncio aí! Silêncio!”
Outras vozes engrossam o refrão.
“Silêncio!”
“Silêncio aí!”
“Silêncio, silêncio!”
No vestíbulo toda conversa cessa abruptamente e há uma
longa, expectante quietude. Então uma corneta é soprada, e outra
daquelas vozes estranhamente pueris mas enfatuadas anuncia: “Sua
Eminência o Arquivigário de Belial, Senhor da Terra, Primaz da
Califórnia, Servo do Proletariado, Bispo de Hollywood”.
Plano geral da principal escadaria do hotel. Trajando um
comprido robe de pele de cabra Núbia e vestindo uma coroa dourada
cravejada de quatro chifres altos e afiados, vê-se o Arquivigário
descer majestosamente. Um acólito segura um grande guarda-sol de
pele de cabra sobre sua cabeça e vem seguido de vinte ou trinta
dignitários eclesiásticos, variando em hierarquia desde Patriarcas de
três chifres até Presbíteros de um chifre e Postulantes sem nenhum.
Todos eles, do Arquivigário para baixo, são conspicuamente
imberbes, suados e ancudos, e, quando qualquer um deles fala, é
sempre num aflautado contralto.
O Chefe se levanta de sua liteira e avança para reunir-se com a
encarnação da autoridade espiritual.

NARRADOR

Igreja e Estado,
Cobiça e Ódio:
Dois Homens-Babuínos
Num só Sumo Gorila.

O Chefe inclina respeitosamente a cabeça. O Arquivigário leva as


mãos até sua tiara, toca os dois chifres dianteiros, então pousa na
testa do Chefe a ponta de seus dedos investidos espiritualmente.
“Que você nunca seja empalado em Seus chifres.”
“Amém”, diz o Chefe; então, aprumando-se e mudando seu tom
abruptamente do devoto para o vivaz homem de negócios: “Está
tudo certo para hoje à noite?”, pergunta ele.
Com a voz de um menino de dez anos, mas com a serpenteante
e polissilábica untuosidade de um eclesiástico veterano muito
acostumado a representar o papel do ser superior sendo apartado (e
erguido acima) dos seus camaradas, o Arquivigário responde que
tudo está em ordem. Sob a supervisão pessoal do Inquisidor de Três
Chifres e do Patriarca de Pasadena, um devotado séquito de
Fâmulos e Postulantes viajou de assentamento em assentamento,
fazendo o censo anual. Todas as mães de monstros foram
registradas. Cabeças foram raspadas e os açoites preliminares
administrados. No momento todos os culpados já haviam sido
transportados para este ou aquele dos três Centros de Purificação
em Riverside, San Diego e Los Angeles. As facas e os vergalhos
consagrados foram preparados e, se Belial quiser, as cerimônias
começarão à hora marcada. Antes da aurora amanhã, a purificação
da terra estará completa.
Mais uma vez o Arquivigário faz sinal de chifres, então paira por
alguns segundos em recolhido silêncio. Reabrindo os olhos, vira-se
para os eclesiásticos em seu cortejo.
“Vamos, apanhem as raspadas”, guincha ele, “apanhem essas
vasilhas conspurcadas, essas testemunhas vivas da malquerença de
Belial, e levem-nas ao local de sua vergonha.”
Uma dúzia de Presbíteros e Postulantes precipita-se escada
abaixo e além, até a multidão de mães.
“Depressa, depressa!”
“Em nome de Belial.”
Lentamente, relutantemente, as mulheres de cabeça raspada
ficam de pé. Com seus pequenos fardos de deformidade
pressionados contra peitos repletos de leite, elas se movem em
direção à porta num silêncio mais dolorosamente expressivo de
tormento do que qualquer outro clamor.
Plano geral de Polly em sua saca de palha. Um jovem
Postulante se aproxima e a soergue com rudeza.
“De pé!”, grita ele com uma voz de criança raivosa e malévola.
“Levante-se, sua parideira de imundície!”
E a estapeia no rosto. Retraindo-se contra um segundo golpe,
Polly quase corre à entrada para se juntar às suas companheiras de
infortúnio.
Dissolve para um céu noturno, com estrelas entre finas faixas de
nuvem e uma lua minguante quase baixa no poente. Há um longo
silêncio; então começamos a ouvir o som de um distante cântico.
Aos poucos ele se articula nas palavras “Glória a Belial, a Belial nas
profundezas”, repetidas mais e mais uma vez.

NARRADOR

A uma polegada dos olhos, a negra pata do macaco


Eclipsa as estrelas, a lua, e até mesmo
O próprio espaço. Cinco dedos fedorentos
São o Mundo todo.

A silhueta de uma mão de babuíno avança em direção à Câmera,


torna-se maior e mais ameaçadora, e por fim engolfa tudo no
negrume.
Corta para o interior do Los Angeles Coliseum. Por entre a
fumacenta e intermitente luz das tochas vemos os rostos de uma
grande congregação. Ala por cima de ala, como gárgulas
aglomeradas, jorrando a fé infundada, a excitação sub-humana, a
imbecilidade coletiva, que são os produtos da religião cerimonial —
jorrando-os de negras órbitas oculares, de frementes narinas, de
lábios entreabertos, enquanto o cântico continua monotonamente:
“Glória a Belial, a Belial nas profundezas”. Abaixo, na arena,
centenas de garotas e mulheres raspadas, cada qual com seu
pequeno monstro nos braços, ajoelham-se perante os degraus do
Altar-Mor. Impressionantes em suas casulas de pele de cabra Núbia,
em suas tiaras de chifres dourados, Patriarcas e Arquimandritas,
Presbíteros e Postulantes postam-se em dois grupos à cabeceira dos
degraus do altar, cantando antifonamente num intenso agudo
acompanhando a música de pífanos de osso e uma batelada de
xilofones.
SEMICORO I

Glória a Belial,

SEMICORO II

A Belial nas profundezas!

Então, após uma pausa, muda-se a música do cântico e começa


uma nova etapa do serviço.

SEMICORO I

É coisa terrível,
SEMICORO II

Terrível, terrível,
SEMICORO I

Cair nas mãos,


SEMICORO II

As enormes e cabeludas mãos,


SEMICORO I

Nas mãos do presente Mal,


SEMICORO II

Aleluia!
SEMICORO I
Nas mãos do Inimigo do homem,
SEMICORO II

Nossos companheiros de dádiva;


SEMICORO I

Do Rebelde Contra a Ordem das Coisas...


SEMICORO II

E com ele conspiramos contra nós mesmos,


SEMICORO I

Da grande Varejeira que é o Senhor das Moscas,


SEMICORO II

Rastejando no coração;
SEMICORO I

Do Verme nu que nunca morre,


SEMICORO II

E que, ao nunca morrer, é a origem de nossa vida eterna;


SEMICORO I

Do Príncipe dos Poderes do Ar...


SEMICORO II

Spitfire e Stuka, Belzebu e Azazel, Aleluia!


SEMICORO I

Do Senhor deste mundo;


SEMICORO II

E seu conspurcador;
SEMICORO I

Do grande Senhor Moloch,


SEMICORO II

Patrono de todas as nações;


SEMICORO I

De nosso mestre Mamon,


SEMICORO II

Onipresente:
SEMICORO I

Do todo-poderoso Lúcifer,
SEMICORO II

Na Igreja, no Estado;
SEMICORO I

De Belial,
SEMICORO II

Transcendente,
SEMICORO I

Contudo, oh, quão imanente!


TODOS JUNTOS

De Belial, Belial, Belial, Belial.

Enquanto o cântico se dissipa, dois Postulantes sem chifres descem,


apanham a mais próxima das mulheres raspadas, botam-na de pé e
a conduzem acima, estupefata de pavor, para onde, à cabeceira dos
degraus do altar, o Patriarca de Pasadena encontra-se amolando a
lâmina de uma comprida faca de açougueiro. A atarracada mãe
mexicana permanece encarando-o com fascinado pavor,
boquiaberta. Então um dos Postulantes toma-lhe a criança dos
braços e a suspende perante o Patriarca.
Close num produto característico da progressiva tecnologia —
um idiota mongol de lábio leporino. Por cima do quadro ouvimos o
cântico dos Coros.

SEMICORO I

Eu mostro a vocês o símbolo da malquerença de Belial,


SEMICORO II

Sujo, sujo;
SEMICORO I

Eu mostro a vocês o fruto da graça de Belial,


SEMICORO II

Porcaria infundida em porcaria.


SEMICORO I

Eu mostro a vocês a penalidade por obediência à Sua Vontade,


SEMICORO II
Na terra como no Inferno.
SEMICORO I

Quem é o procriador de toda deformidade?


SEMICORO II

A mãe.
SEMICORO I

Quem é a vasilha escolhida pela Profanidade?


SEMICORO II

A mãe.
SEMICORO I

E a maldição que se acha em nossa raça?


SEMICORO II

A mãe.
SEMICORO I

Possuída, possuída...
SEMICORO II

Por dentro, por fora:


SEMICORO I

Seu íncubo, um objeto; seu sujeito, um súcubo...


SEMICORO II

E ambos são Belial;


SEMICORO I

Possuída pela Varejeira.


SEMICORO II

Rastejando e ardendo,
SEMICORO I

Possuída por aquilo que irresistivelmente


SEMICORO II

A espicaça, a guia,
SEMICORO I

Como a uma doninha-fétida,


SEMICORO II

Como a uma porca no cio,


SEMICORO I

Ribanceira abaixo
SEMICORO II

Rumo a indizível imundície;


SEMICORO I

Donde, após muito chafurdar,


SEMICORO II

Após muitas longas goladas de lavagem,


SEMICORO I

A mãe emergindo, nove meses depois,


SEMICORO II

Traz essa monstruosa paródia de homem.


SEMICORO I

Como então haverá expiação?


SEMICORO II

Pelo sangue.
SEMICORO I

Como Belial será aplacado?


SEMICORO II

Somente pelo sangue.

A Câmera se move do altar até o local onde, ala por cima de ala, as
pálidas gárgulas fitam com faminta expectativa a cena lá embaixo. E
subitamente os rostos abrem suas bocas negras e começam a
salmodiar em uníssono, hesitantemente num primeiro momento,
então com crescente confiança e um volume sempre maior de som:
“Sangue, sangue, sangue, o sangue, o sangue, sangue, sangue,
o sangue...”
Cortamos de volta para o altar. O som do irracional, sub-humano
cântico continua monotonamente por cima do quadro.
O Patriarca entrega sua pedra de amolar a um dos
Arquimandritas assistentes, então com sua mão esquerda pega pelo
pescoço a criança deformada e a empala com a faca. Ela solta dois
ou três balidos, e silencia.
O Patriarca se vira, concede que metade de um quartilho de
sangue espirre sobre o altar, então atira o minúsculo cadáver na
escuridão além. O cântico sobe num crescendo selvagem:
“Sangue, sangue, o sangue, o sangue, sangue, sangue, o
sangue...”
“Levem-na embora!”, grita o Patriarca num autoritário guincho.
Aterrorizada, a mãe se vira e precipita-se pelos degraus. Os dois
Postulantes a seguem, golpeando-a selvagemente com seus
vergalhos consagrados. O cântico é pontuado por gritos lancinantes.
Da congregação vem um rumor que é metade um gemido de
comiseração, metade um grunhido de satisfação.
Vermelhos e um tanto esbaforidos devido a tão incomum
exercício extenuante, os jovens e roliços Postulantes apanham outra
mulher — dessa vez uma garota, frágil e esguia, quase beirando a
infantilidade.
Seu rosto está escondido enquanto a arrastam degraus acima.
Então um deles recua um pouco e reconhecemos Polly.
Sem os polegares, com oito mamilos, a criança é erguida
perante o Patriarca.

SEMICORO I

Sujeira, sujeira! Como haverá expiação?


SEMICORO II

Pelo sangue.
SEMICORO I

Como Belial será aplacado?

Dessa vez é a congregação inteira que responde:


“Somente pelo sangue, sangue, sangue, sangue, o sangue...”
A mão esquerda do Patriarca fecha-se em volta do pescoço do
infante.
“Não, não, não façam isso. Por favor!”
Polly faz um movimento em direção a ele, mas é retida pelos
Postulantes. Muito deliberadamente, enquanto ela soluça, o Patriarca
empala a criança em sua faca, então atira o corpo na escuridão atrás
do altar.
Ouve-se um choro intenso. Cortamos para um plano americano
do doutor Poole. Conspícuo em seu assento na primeira fila, ele
desmaiou.
Dissolve para o interior do Profano dos Profanos. O santuário,
que fica numa extremidade do menor eixo da arena, ao lado do Altar-
Mor, é uma pequena câmara oblonga de tijolos de adobe, com um
altar numa das pontas e, na outra, portas corrediças, no momento
fechadas, exceto por uma fresta no centro, através da qual se pode
entrever o que está acontecendo na arena. Num divã no meio do
santuário se recosta o Arquivigário.
Não muito longe, um Postulante sem chifres frita pés de porco
sobre um braseiro a carvão, e perto dele um Arquimandrita de dois
chifres faz seu melhor para reavivar o doutor Poole, que jaz
inanimado numa maca. Água fria e duas ou três fortes bofetadas no
rosto por fim produzem o efeito desejado. O botânico suspira, abre
os olhos, apara um terceiro tapa e se senta.
“Onde estou?”, pergunta ele.
“No Profano dos Profanos”, responde o Arquimandrita. “E eis aí
Sua Eminência.”
O doutor Poole reconhece o grande homem e tem suficiente
presença de espírito para inclinar sua cabeça respeitosamente.
“Tragam um tamborete”, ordena o Arquivigário.
O tamborete é trazido. Ele acena para o doutor Poole, que se
embaralha com os próprios pés, caminha um tanto sem firmeza pela
sala e toma seu assento. Ao fazê-lo, um ganido particularmente
intenso o leva a virar a cabeça.
Plano geral, a partir do seu plano de vista, do Altar-Mor. O
Patriarca encontra-se no ato de atirar mais um monstrinho na
escuridão, enquanto seus acólitos cumulam de golpes a clamorosa
mãe.
Corta de volta para o doutor Poole, que estremece e cobre o
rosto com as mãos. Por cima do quadro ouvimos o monótono
salmodiar da congregação. “Sangue, sangue, sangue.”
“Horrível!”, diz o doutor Poole. “Horrível!”
“E contudo também há sangue em sua religião”, observa o
Arquivigário, sorrindo ironicamente: “‘Lavado pelo sangue do
Cordeiro.’ Não está correto?”.
“Perfeitamente correto”, admite o doutor Poole. “Mas na
realidade não fazemos a limpeza. Apenas falamos sobre ela... ou,
mais frequentemente, apenas a cantamos, em hinos.”
O doutor Poole desvia os olhos. Silêncio. Neste momento o
Postulante se aproxima com uma escudela, que, junto com um par
de garrafas, deposita numa mesa ao lado do divã. Espetando um dos
pés de porco com uma autêntica falsificação antiga do século XX de
um garfo pré-georgiano, o Arquivigário começa a roer.
“Sirva-se”, guincha ele entre duas mordidas. “E aqui há um
pouco de vinho”, acrescenta, indicando uma das garrafas.
O doutor Poole, que está extremamente faminto, obedece com
alacridade e há um segundo silêncio, intensificado com o fragor das
bocadas e do cântico do sangue.
“Você não acredita, é claro”, diz por fim o Arquivigário, com a
boca cheia.
“Mas eu lhe garanto...”, protesta o doutor Poole.
Seu zelo para integrar-se é excessivo, e o outro ergue uma mão
roliça, engordurada de porco.
“Ora, ora, ora! Mas eu gostaria que você soubesse que temos
boas razões para acreditar como acreditamos. A nossa fé, meu caro
senhor, é uma fé racional e realista.” Há uma pausa enquanto ele
toma um trago da garrafa e serve-se de outro pé. “Presumo que
conheça bem a história mundial?”
“Meramente enquanto diletante”, responde, modesto, o doutor
Poole. Mas ele pensa que pode dizer que já leu a maior parte dos
mais óbvios livros sobre o assunto — Ascensão e extinção da
Rússia, de Graves, por exemplo; O colapso da civilização ocidental,
de Basedow; o inimitável Europa, uma autópsia, de Bright; e, nem é
preciso dizer, aquele livro absolutamente delicioso e, embora seja
somente um romance, aquele livro genuinamente verídico Os últimos
dias de Coney Island, do velho e prezado Percival Pott. “Certamente
deve conhecê-lo...”
O Arquivigário balança a cabeça.
“Não conheço nada que foi publicado após a Coisa”, responde
secamente.
“Mas como sou burro!”, exclama o doutor Poole, arrependendo-
se, como tantas vezes no passado, daquela transbordante
loquacidade com que compensava uma timidez que, por si só, quase
o reduziria à mudez.
“Mas li bastante do que apareceu antes”, continua o
Arquivigário. “Eles tinham umas bibliotecas muito boas aqui no sul da
Califórnia. Agora minadas, na maioria. No futuro, infelizmente,
teremos que ir muito longe em busca de combustível. Mas enquanto
isso assamos nosso pão e eu consegui salvar três ou quatro mil
volumes para nosso Seminário.”
“Assim como a Igreja na Idade das Trevas”, diz o doutor Poole
com erudito entusiasmo. “A civilização não tem amigo melhor que a
religião. É isso que meus amigos agnósticos não irão nunca...”
Subitamente recordando que os dogmas daquela Igreja não eram
exatamente os mesmos daqueles professados por esta, ele se detém
e, para ocultar seu constrangimento, toma um longo gole de sua
garrafa.
Mas felizmente o Arquivigário está preocupado demais com
suas próprias ideias para ofender-se com aquele faux pas ou até
mesmo para notá-lo.
“Da forma como entendo a história”, diz ele, “é o seguinte. O
homem opondo-se contra a Natureza, o Ego contra a Ordem das
Coisas, Belial” (faz um perfunctório sinal de chifres) “contra Aquele
Outro. Por cem mil anos ou quase, a batalha ficou inteiramente
inconclusa. Então, três séculos atrás, quase da noite para o dia, a
maré começa a correr ininterrupta em uma direção. Coma mais um
desses pés de porco, por gentileza!”
O doutor Poole serve-se de um segundo pé, enquanto o
interlocutor começa seu terceiro.
“Primeiro lentamente, depois com acumulado ímpeto, o homem
começa a avançar contra a Ordem das Coisas.” O Arquivigário faz
uma pausa por um momento para cuspir um pedaço de cartilagem.
“Com mais e mais da raça humana caindo em linha atrás dele, o
Senhor das Moscas, que é também a Varejeira em cada coração
individual, inaugura Sua triunfal marcha através de um mundo do
qual Ele irá muito em breve se tornar Mestre incontestável.”
Enlevado por sua própria esganiçada eloquência e por um
momento esquecendo que não está no púlpito da Santo Azazel, o
Arquivigário faz um gesto de varredura. O pé despenca de seu garfo.
Rindo-se da própria trapalhada, ele o pega do chão, limpa-o na
manga de sua batina de pele de cabra, dá outra mordida e
prossegue.
“Começou com as máquinas e os primeiros navios graneleiros
vindos do Novo Mundo. Alimento para os famintos e um fardo
erguido dos ombros dos homens. Ó Deus, Vos agradecemos por
todas as bênçãos que em Vossa bondade... et cetera et cetera.” O
Arquivigário ri zombeteiro. “Desnecessário dizer que nunca ninguém
consegue algo em troca de nada. As bondades de Deus têm seu
preço, e Belial sempre vê que esse é um preço alto. Pegue aquelas
máquinas como exemplo. Belial sabia perfeitamente bem que, ao
encontrar um pouco de alívio da labuta, a carne ficaria subordinada
ao ferro e a mente seria feita escrava das rodas. Ele sabia que se
uma máquina é à prova de falhas, também o seria de habilidade,
talento, inspiração. Garantimos seu dinheiro de volta caso o produto
seja defeituoso, e o dobro do dinheiro caso consiga nele encontrar o
menor traço de gênio ou individualidade! E havia também aquela boa
comida do Novo Mundo. Ó Deus, Vos agradecemos... Mas Belial
sabia que alimentar significa procriar. Nos velhos dias, quando as
pessoas faziam amor, elas meramente aumentavam a taxa de
mortalidade infantil e diminuíam a expectativa de vida. Mas depois da
vinda dos navios de alimentos foi diferente. Copulação resultou em
população... com uma vingança!”
Uma vez mais o Arquivigário emite sua esganiçada risada.
Dissolve para uma tomada, através de um poderoso
microscópio, de espermatozoides freneticamente lutando para
alcançar seu Destino Final, o vasto e lunar óvulo ao canto superior
esquerdo do diapositivo. Na faixa de áudio ouvimos a voz tenor do
último movimento da Sinfonia Fausto de Liszt: La femme éternelle
toujours nous élève. La femme éternelle toujours...[13] Corta para uma
vista área de Londres em 1800. Então de volta para a corrida
darwiniana por sobrevivência e autoperpetuação. Então para uma
vista de Londres em 1900 — e de novo para os espermatozoides — e
de novo para Londres, tal qual os aviadores alemães a viram em 1940.
Dissolve para um close no Arquivigário.
“Ó Deus”, entona ele na voz ligeiramente trêmula que é sempre
considerada apropriada para tais enunciações, “Vos agradecemos
por todas essas almas imortais.” Então, mudando o tom: “Essas
almas imortais”, continua ele, “hospedadas em corpos que se
desenvolvem progressivamente mais doentios, sarnentos, raquíticos,
ano após ano, tal como todas as coisas previstas por Belial
inevitavelmente vêm a acontecer. A superpopulação do planeta.
Quinhentas, oitocentas, às vezes quase duas mil pessoas num
quilômetro quadrado de terra produtiva... e a terra no processo de
ser destruída pela má agricultura. Por todo lugar a erosão, por todo
lugar a lixiviação de minerais. E os desertos se alastrando, as
florestas escasseando. Até mesmo na América, até mesmo naquele
Novo Mundo que uma vez foi a esperança do Velho. Eis subindo a
espiral da indústria, eis descendo a espiral da fertilidade do solo.
Maior e melhor, mais rica e mais poderosa... e então, quase que de
repente, mais e mais faminta. Sim, Belial previu tudo isto: a
passagem da fome para a comida importada, da comida importada
para a florescente população e da florescente população de volta à
fome novamente. De volta à fome. A Nova Fome, a Maior Fome, a
fome de enormes proletariados industrializados, a fome de
habitantes endinheirados da cidade, com todas as conveniências
modernas, com carros e rádios e toda engenhoca imaginável, a fome
que é a causa das guerras totais e as guerras totais que são a causa
de ainda mais fome”.
O Arquivigário faz uma pausa para tomar outro gole de sua
garrafa.
“E lembre-se disto”, acrescenta ele: “mesmo sem mormos
sintéticos, mesmo sem a bomba atômica, Belial podia ter alcançado
todos os Seus propósitos. Com mais vagar, talvez, mas tão
seguramente quanto, os homens teriam se destruído ao destruir o
mundo em que viviam. Não conseguiriam escapar. Ele os tinha
espetados em ambos os Seus chifres. Se tivessem saracoteado para
fora do chifre da guerra total, acabariam se vendo empalados na
fome. E se estivessem morrendo de fome, ficariam tentados a
recorrer à guerra. E no caso de tentarem encontrar uma maneira
pacífica e racional de superar o dilema, Ele já teria um chifre mais
sutil de autodestruição prontinho para eles. Desde o começo da
revolução industrial Ele previu que os homens se tornariam tão
irresistivelmente presunçosos devido aos milagres de sua própria
tecnologia, que em breve iriam perder todo senso de realidade. E foi
precisamente o que aconteceu. Esses miseráveis escravos das
rodas e dos livros-razão começaram a parabenizar a si mesmos por
serem os Conquistadores da Natureza. Conquistadores da Natureza,
é verdade! Mas na verdade, é claro, eles haviam meramente
contrariado o equilíbrio da Natureza e estavam prestes a sofrer as
consequências. Basta considerar o que eles estiveram armando
durante o século e meio antes da Coisa. Sujando os rios, extinguindo
os animais selvagens, destruindo as florestas, varrendo o solo para
dentro do mar, incendiando um oceano de petróleo, esbanjando os
minerais que levaram a totalidade do tempo geológico para serem
depositados. Uma orgia de imbecilidade criminal. E eles ainda
chamaram isso de Progresso. Progresso”, repete ele, “Progresso! Eu
lhe digo, essa era uma invenção rara demais para ter sido produto de
qualquer simples mente humana... diabolicamente irônica demais!
Tinha que haver uma Ajuda Externa para isso. Tinha que haver a
Graça de Belial, que, é claro, é sempre vindoura... quer dizer, para
qualquer um que esteja preparado para colaborar com ela. E quem
não está?”
“Quem não está?”, repete o doutor Poole com uma risadinha;
pois ele sente que precisa de alguma forma reparar sua gafe sobre a
Igreja na Idade das Trevas.
“Progresso e Nacionalismo: essas eram as duas grandes ideias
que Ele lhes meteu na cabeça. Progresso, a teoria de que você pode
obter algo em troca de nada; a teoria de que você pode ganhar numa
batalha sem compensar pelo seu ganho em outra; a teoria de que só
você entende o significado da história; a teoria de que você sabe o
que vai acontecer daqui a cinquenta anos; a teoria de que, na
contramão de toda experiência, você pode prever todas as
consequências de suas presentes ações; a teoria de que a Utopia
reside logo à frente e que, desde que fins ideais justifiquem os mais
abomináveis meios, é seu privilégio e dever roubar, fraudar, torturar,
escravizar e assassinar todos aqueles que, em sua opinião (a qual,
por definição, é infalível), obstruem a progressiva marcha para o
paraíso terrestre. Lembra-se daquela frase de Karl Marx: ‘A Força é
a parteira do Progresso’? Ele bem poderia ter acrescentado — mas,
é claro, Belial não queria deixar escapar nada naquele estágio inicial
dos procedimentos — que o Progresso é a parteira da Força.
Duplamente parteira, pelo fato de que o progresso tecnológico
abastece o povo com os instrumentos de uma destruição ainda mais
indiscriminada, enquanto o mito do progresso político e moral serve
como desculpa para usar esses meios até o limite. Eu lhe digo, meu
caro senhor, um historiador ímpio é louco. Quanto mais se estuda a
história moderna, mais se encontram indícios da Mão Orientadora de
Belial.” O Arquivigário faz sinal de chifres, refresca-se com um outro
gole de vinho, então continua: “E então havia também o
Nacionalismo, a teoria de que o Estado a que você calha de ser
subordinado é o único e verdadeiro deus, e que todos os outros
Estados são falsos deuses; de que todos esses deuses, os
verdadeiros bem como os falsos, têm a mentalidade de delinquentes
juvenis; e de que todo conflito por prestígio, poder ou dinheiro é uma
cruzada pelo Bom, pelo Verdadeiro e pelo Belo. O fato de que tais
teorias vieram, em dado momento da história, a ser universalmente
aceitas é a melhor prova da existência de Belial, a melhor prova de
que finalmente Ele havia ganhado a batalha”.
“Não sei se entendo”, diz o doutor Poole.
“Mas certamente é óbvio. Aqui se tem duas noções. Cada uma é
intrinsecamente absurda e cada uma leva a condutas de ação que
são comprovadamente fatais. E ainda assim a maioria da
humanidade civilizada decide, quase que de repente, aceitar essas
noções ou guias para o conflito. Por quê? E por sugestão de Quem,
incitação de Quem, inspiração de Quem? Só pode haver uma
resposta.”
“Você quer dizer... Você acha... que foi o Diabo?”
“Quem mais desejaria a degradação e a destruição da raça
humana?”
“Certo, certo”, concorda o doutor Poole. “Mas ao mesmo tempo,
como um cristão protestante, eu realmente não consigo...”
“É mesmo?”, diz o Arquivigário sarcasticamente. “Então você
sabe mais que Lutero, você sabe mais que toda a Igreja Cristã. O
senhor está ciente de que a partir do segundo século nenhum cristão
ortodoxo acreditava que um homem pudesse ser possuído por
Deus? Ele apenas poderia ser possuído pelo Diabo. E por que as
pessoas acreditavam nisso? Porque os fatos lhes impossibilitavam
crer de outra forma. Belial é um fato, Moloch é um fato, a possessão
diabólica é um fato.”
“Eu protesto”, exclama o doutor Poole. “Como um homem de
ciência, eu...”
“Como um homem de ciência você está destinado a aceitar a
hipótese vigente que explica os fatos de maneira mais plausível.
Bem, quais são os fatos? O primeiro é um fato de experiência e
observação, a saber, o de que ninguém deseja sofrer, ser degradado,
mutilado ou morto. O segundo é um fato de história: o fato de que,
em certa época, a esmagadora maioria dos seres humanos acolheu
crenças e adotou condutas de ação que não poderiam mesmo
resultar em nada além de sofrimento universal, degradação geral e
indiscriminada destruição. A única explicação plausível é que os
humanos teriam sido inspirados ou possuídos por uma consciência
alienígena, uma consciência que desejou sua aniquilação e a
desejou mais fortemente do que eles mesmos foram capazes de
desejar a própria felicidade e sobrevivência.”
Há um silêncio.
“É claro”, arrisca-se por fim em sugerir o doutor Poole, “que
esses fatos poderiam ser explicados de outras maneiras.”
“Mas não de maneira tão plausível, tão simples”, insiste o
Arquivigário. “E considere então todas as outras evidências. Pegue a
Primeira Guerra, por exemplo. Se as pessoas e os políticos não
tivessem sido possuídos, eles teriam ouvido Bento XV ou lorde
Lansdowne... teriam chegado a um acordo, teriam negociado a paz
sem vitória. Mas eles não podiam, não podiam. Era impossível que
agissem em interesse próprio. Eles tiveram que fazer o que o Belial
dentro deles lhes ditou... e o Belial dentro deles queria a Revolução
Comunista, queria a reação fascista àquela revolução, queria
Mussolini e Hitler e o Politburo, queria a fome, a inflação e a
depressão; queria que os armamentos fossem uma cura para o
desemprego; queria a perseguição aos judeus e aos Kulaks;[14] queria
que os nazistas e os comunistas dividissem a Polônia e então
entrassem em guerra uns com os outros. Sim, e Ele queria o
indiscriminado reflorescimento da escravidão em sua forma mais
brutal. Ele queria migrações forçadas e a pauperização das massas.
Ele queria campos de concentração e câmaras de gás e fornos
crematórios. Ele queria bombardeios de saturação (que frase
deliciosamente suculenta!); Ele queria da noite para o dia a
destruição de um século de acumulação de riqueza e de todas as
potencialidades da prosperidade, decência, liberdade e cultura
futuras. Belial queria tudo isso, e, sendo ele a Grande Varejeira no
coração dos políticos e dos generais, dos jornalistas e do Homem
Comum, foi Ele facilmente capaz de fazer o papa ser ignorado até
mesmo pelos católicos, fazer condenar Lansdowne como mau
patriota, quase um traidor. E assim a guerra se arrastou por quatro
anos inteiros; e depois tudo ocorreu pontualmente de acordo com o
Plano. A situação mundial passou de mal a pior, e, enquanto piorava,
homens e mulheres se tornaram cada vez mais dóceis às
orientações do Espírito Profano. As velhas crenças no valor da alma
individual se dissiparam; as velhas restrições perderam sua eficácia;
as velhas compunções e compaixões se evaporaram. Tudo o que
Aquele Outro havia alguma vez metido na cabeça das pessoas se
esvaiu, e o subsequente vácuo foi preenchido pelos lunáticos sonhos
de Progresso e Nacionalismo. Admitida a validade desses sonhos,
aconteceu que as reles pessoas, vivendo aqui e agora, não eram
melhores que formigas e percevejos e podiam ser assim tratadas de
acordo. E elas foram tratadas de acordo, elas certamente foram!”
O Arquivigário cacareja esganiçadamente e serve-se do último
pé.
“Para a época dele”, continua, “o velho Hitler foi um belo de um
exemplar do demoníaco. Não tão completamente possuído, é claro,
como muitos dos grandes líderes nacionais nos anos entre 1945 e o
começo da Terceira Guerra Mundial, mas definitivamente acima da
média em seu próprio tempo. Mais do que qualquer um de seus
contemporâneos, ele tinha o direito de dizer: ‘Não fui eu, mas o Belial
em mim’. Os outros estavam possuídos apenas em partes, apenas
em determinados períodos. Pegue os cientistas, por exemplo.
Homens bons e bem-intencionados, em sua maioria. Mas Ele tomou
posse deles mesmo assim... tomou posse deles no ponto em que
perderam sua humanidade e se tornaram sumidades. Por isso os
mormos e aquelas bombas. E você se lembra daquele homem... qual
era mesmo o nome?... aquele que foi presidente dos Estados Unidos
por tanto tempo...”
“Roosevelt?”, sugere o doutor Poole.
“Isso, Roosevelt. Bem, você se recorda daquela frase que ele
ficou repetindo durante toda a Segunda Guerra Mundial? ‘Rendição
incondicional, rendição incondicional.’ Inspiração plena, é o que isso
foi. Inspiração direta e plena!”
“Se você diz...”, objeta o doutor Poole. “Mas qual é sua prova?”
“A prova?”, repete o Arquivigário. “Todo o conjunto da história
subsequente é a prova. Veja o que aconteceu quando essa frase se
tornou uma política e foi realmente colocada em prática. Rendição
incondicional... Quantos milhões de novos casos de tuberculose?
Quantos milhões de crianças forçadas a roubar por sobrevivência ou
a se prostituir por barras de chocolate? Belial estava particularmente
satisfeito em relação às crianças. E, de novo, rendição
incondicional... os destroços da Europa, o caos na Ásia, a fome em
toda parte, as revoluções, as tiranias. Rendição incondicional, e mais
inocentes tiveram que passar por sofrimentos piores que em
qualquer outro período da história. E, como você sabe muito bem,
não há nada que Belial goste mais do que o sofrimento de inocentes.
E finalmente, é claro, houve a Coisa. Rendição incondicional, e...
bang!, assim como ele sempre pretendeu. E tudo aconteceu sem
nenhum milagre ou intervenção especial, meramente por meios
naturais. Quanto mais se pensa sobre o funcionamento de Sua
Providência, mais insondavelmente maravilhoso ele parece.”
Devotadamente, o Arquivigário faz sinal de chifres. Segue-se uma
pequena pausa. “Ouça”, diz ele, suspendendo a mão.
Por alguns segundos eles permanecem sem falar. A fraca e
obscurecida monotonia do cântico cresce até se tornar audível.
“Sangue, sangue, sangue, o sangue...” Ouve-se um esvaído grito
enquanto outro monstrinho é trespassado pela faca do Patriarca,
depois o baque dos vergalhos na carne e, por sobre o agitado
bramido da congregação, uma sucessão de gritos altos,
improvavelmente humanos.
“Você dificilmente pensaria que Ele poderia ter nos produzido
sem um milagre”, continua o Arquivigário, pensativo. “Mas Ele
produziu, Ele produziu. Por meios puramente naturais, usando seres
humanos e sua ciência como Seus instrumentos, Ele criou uma raça
de homens inteiramente nova, com deformidade no sangue, com
sordidez ao redor deles, e diante deles, no futuro, perspectiva
nenhuma senão mais sordidez, piores deformidades e, finalmente, a
completa extinção. Sim, é uma coisa terrível cair nas mãos do
Presente Mal.”
“Então por que”, pergunta o doutor Poole, “você continua
reverenciando Ele?”
“Por que é que se joga comida para um tigre que ruge? Para se
garantir uma folga para respirar. Para protelar o horror do inevitável,
mesmo que por apenas alguns minutos. Na Terra como no Inferno...
mas pelo menos se permanece na Terra.”
“Mal parece valer a pena”, diz o doutor Poole no filosófico tom
de alguém que acabou de comer.
Outro grito excepcionalmente lancinante o faz voltar a cabeça
em direção à porta. Ele observa por um momento em silêncio. Dessa
vez, sua expressão é de um horror consideravelmente mitigado pela
curiosidade científica.
“Está se acostumando, é?”, diz o Arquivigário todo jovial.

NARRADOR

Consciência, hábito — o primeiro produz covardes,


Às vezes faz de nós santos, faz seres humanos.
O outro produz Patriotas, Papistas, Protestantes,
Produz Babbitts,[15] Sádicos, Suecos ou Eslovacos,
Produz assassinos de Kulaks, asfixiadores de judeus,
Produz tudo que desfigura, por elevados motivos,
Carne trêmula, sem escrúpulo ou questionamento
Para estragar sua convicção do Serviço Supremo.

Sim, meus amigos, lembrem-se quão indignados uma vez se


sentiram quando os turcos massacraram mais que a cota normal de
armênios, como agradeceram a Deus por viverem num país
protestante e progressista, onde tais coisas simplesmente não
aconteceriam — não poderiam acontecer porque os homens usavam
chapéus-coco e viajavam diariamente à cidade no das oito e vinte e
três. E então reflitam um momento sobre alguns dos horrores que
agora vocês assumem como certos; os ultrajes contra as mais
rudimentares decências humanas que foram perpetrados em seus
nomes (ou talvez por suas próprias mãos); as atrocidades que você
leva sua filhinha para ver, duas vezes por semana, no cinejornal — e
ela as acha banais e entediantes. Daqui a vinte anos, neste ritmo,
seus netos ligarão seus televisores para dar uma olhada nos jogos
de gladiadores; e quando estes começarem a enjoar, haverá a
crucificação em massa dos Objetores de Consciência promovido
pelo Exército, ou o esfolamento ainda em vida, em cores, das sete
mil pessoas suspeitas, em Tegucigalpa, de atividades anti-
hondurenhas.

Entrementes, no Profano dos Profanos, o doutor Poole ainda está


observando através da fresta entre as portas corrediças. O
Arquivigário palita os dentes. Há um confortável, pós-prandial
silêncio. Subitamente o doutor Poole volta-se para seu
acompanhante.
“Está acontecendo algo”, exclama ele excitadamente. “Estão
abandonando seus assentos.”
“Estive esperando isso por um longo tempo”, responde o
Arquivigário, sem deixar de palitar os dentes. “É o sangue que faz
isso com eles. Isso e, é claro, o açoitamento.”
“Eles estão pulando na arena”, continua o doutor Poole. “Estão
correndo uns atrás dos outros. Mas o que é isso...? Ai, meu Deus!
Perdão”, acrescenta às pressas. “Mas, francamente, francamente...”
Muito agitado, ele se afasta da porta.
“Há limites”, diz ele.
“É aí que você se engana”, responde o Arquivigário. “Não há
limites. Todos são capazes de tudo... de praticamente tudo.”
O doutor Poole não responde. Irresistivelmente atraído por uma
força que é maior do que sua vontade, ele retornou a seu velho lugar
e encara, com avidez e horror, o que está se passando na arena.
“É monstruoso!”, exclama ele indignado. “É completamente
revoltante.”
O Arquivigário levanta-se pesadamente de seu divã e, abrindo
uma pequena despensa na parede, retira um par de binóculos, que
entrega ao doutor Poole.
“Experimente estes aqui”, diz ele. “São de visão noturna.
Equipamento naval de praxe, de antes da Coisa. Você vai ver tudo.”
“Mas você nem imagina...”
“Não somente imagino”, diz o Arquivigário, com um sorriso
ironicamente benigno; “vejo-o com meus próprios olhos. Vá em
frente, homem. Veja. Você nunca viu nada parecido com isso na
Nova Zelândia.”
“Certamente que não”, diz o doutor Poole no tipo de tom que sua
Mãe teria utilizado.
Todavia, ele finalmente leva os binóculos até os olhos.
Plano geral segundo seu ponto de vista. É uma cena de Sátiros
e Ninfas, de perseguições e capturas, provocantes resistências
seguidas da entusiasmada rendição de lábios a lábios barbados, de
peitos arfantes à impaciência de mãos rudes, tudo acompanhado por
uma babel de gritaria, guinchos e esganiçado riso.
Corta de volta para o Arquivigário, cujo rosto está contraído
numa careta de insolente desgosto.
“São como gatos”, diz ele por fim. “Só que os gatos têm a
decência de não serem gregários em seus namoros. E você ainda
tem dúvidas sobre Belial, mesmo depois disso?”
Há uma pausa.
“Isso foi algo que aconteceu depois... depois da Coisa?”, indaga
o doutor Poole.
“Em duas gerações.”
“Duas gerações!”, assovia o doutor Poole. “Não há nada de
recessivo nessa mutação... E eles não... bem, digo, eles não sentem
vontade de fazer esse tipo de coisa em nenhuma outra temporada?”
“Só por cinco semanas, apenas. E só permitimos duas semanas
de acasalamento de fato.”
“Por quê?”
O Arquivigário faz sinal de chifres.
“Em princípios gerais, eles têm que ser punidos por terem sido
punidos. É a Lei de Belial. E, posso dizer, nós realmente os
deixamos fazer caso quebrem as regras.”
“Certo, certo”, diz o doutor Poole, lembrando com desconforto o
episódio com Loola entre as dunas.
“É muito difícil para aqueles que retrocedem ao padrão de
acasalamento à moda antiga.”
“Há muitos deles?”
“Entre cinco a dez por cento da população. Nós os chamamos
de ‘Fogosos’.”
“E vocês não permitem...?”
“Nós os cobrimos de pancadas quando os flagramos.”
“Mas isso é monstruoso!”
“É claro que é”, concorda o Arquivigário. “Mas lembre-se de
nossa história. Se se deseja solidariedade social, é preciso ter ou um
inimigo externo ou uma minoria oprimida. Não temos inimigos
externos, então temos que aproveitar ao máximo nossos Fogosos.
Eles são o que os judeus eram sob Hitler, o que os burgueses eram
sob Lênin e Stálin, o que os hereges costumavam ser em países
católicos e os Papistas sob os Protestantes. Se algo dá errado, é
sempre culpa dos Fogosos. Eu não sei o que faríamos sem eles.”
“Mas nunca parou para pensar no que eles sentem?”
“Por que deveria? Em primeiro lugar, essa é a Lei. Merecido
castigo por ter sido castigado. Segundo, se forem discretos, não
serão punidos. Tudo que têm que fazer é evitar ter bebês na época
errada e dissimular o fato de que se apaixonam e estabelecem
conexões permanentes com pessoas do sexo oposto. E, se não
querem ser discretos, eles sempre poderão fugir.”
“Fugir? Para onde?”
“Há uma pequena comunidade ao norte, perto de Fresno.
Oitenta e cinco por cento de Fogosos. É uma viagem perigosa, é
claro. Muito pouca água no caminho. E se nós os pegamos,
enterramo-los vivos. Mas se escolhem correr o risco, são
perfeitamente livres para fazê-lo. E há também o sacerdócio.” Ele faz
sinal de chifres. “Qualquer garoto esperto que dê sinais precoces de
ser um Fogoso tem seu futuro garantido: fazemos dele um padre.”
Passam-se vários segundos antes que o doutor Poole se
arrisque a fazer sua próxima pergunta.
“Quer dizer que você...?”
“Precisamente”, diz o Arquivigário. “Pelo bem do Reino do
Inferno. Isso sem mencionar as razões estritamente práticas. Afinal
de contas, os negócios da comunidade têm que ser tocados de
alguma maneira, e obviamente os leigos não estão em condição de
fazê-lo.”
O ruído da arena cresce para um clímax momentâneo.
“Nauseante!”, guincha o Arquivigário com uma súbita
intensificação de repulsa. “E isso não é nada perto do que virá
depois. Como sou grato por ter sido preservado de tamanha
ignomínia! Não deles, mas do Inimigo da Humanidade encarnado em
seus corpos nojentos. Por gentileza, olhe aquilo.” Ele atrai o doutor
Poole em direção a si; aponta um grosso dedo indicador. “À
esquerda do Altar-Mor, com aquela vasilha ruivinha. Aquele é o
Chefe. O Chefe!”, repete ele com zombeteira ênfase. “Que tipo de
regente ele será durante as próximas duas semanas?”
Resistindo à tentação de tecer comentários pessoais sobre o
homem que, embora temporariamente afastado, está destinado a
voltar ao poder, o doutor Poole solta uma nervosa risadinha.
“Sim, ele certamente parece estar se relaxando dos cuidados do
Estado.”

NARRADOR

Mas por quê, por que aquele homem tem que relaxar justamente
com Loola? Ordinária, besta, rameira infiel! Mas ao menos há um
consolo — e para um homem tímido, infectado com desejos que não
ousa realizar, é um grande consolo: a conduta de Loola é a
comprovação de uma acessibilidade que, na Nova Zelândia, nos
círculos acadêmicos, na vizinhança de sua Mãe, poderia apenas ser
furtivamente sonhada como boa demais para ser verdade. E não é
somente Loola que se prova acessível. A mesma coisa está sendo
demonstrada, não menos ativamente, não menos verbalmente, por
aquelas garotas mulatas, por Flossy, a roliça teutônica cor de mel,
por aquela imensa matrona armênia, pela tosada adolescentezinha
com grandes olhos azuis...

“Sim, aquele é o nosso Chefe”, diz o Arquivigário amargamente. “Até


que ele e os outros porcos deixem de estar possuídos, a Igreja
simplesmente assume.”
Incorrigivelmente culto, a despeito de seu irresistível desejo de
estar lá com Loola — ou com qualquer outra, caso chegasse às vias
de fato —, o doutor Poole tece um oportuno comentário sobre a
Autoridade Espiritual e o Poder Secular.
O Arquivigário o ignora.
“Bem”, diz ele rapidamente, “é hora de ir direto ao assunto.”
Ele chama um Postulante, que lhe entrega uma vela de sebo,
então passa até o altar na extremidade leste do santuário. Sobre ele
encontra-se uma única vela de cera de abelha amarela, de quase um
metro de altura e de desmesurada grossura. O Arquivigário
genuflete, acende a vela, faz sinal de chifres, então volta para onde o
Poole encontra-se encarando, de olhos arregalados com fascinado
pavor e perplexa concupiscência, o espetáculo na arena.
“Com licença, por favor.”
O doutor Poole obedece.
Um Postulante desliza primeiro uma porta, depois a outra. O
Arquivigário avança e posta-se no centro da abertura, tocando os
chifres dourados de sua tiara. Dos músicos nos degraus do Altar-Mor
vem um esganiçado chiar de pífanos feitos de fêmures. Os rumores
da multidão se dissipam num silêncio que é apenas vez por outra
pontuado pela bestial manifestação de determinados júbilos ou
aflições selvagens demais para serem reprimidos. Antifonamente, o
padre começa a salmodiar.

SEMICORO I

É chegado o tempo,
SEMICORO II

Pois Belial é impiedoso,


SEMICORO I

O tempo do fim do Tempo.


SEMICORO II

No caos da luxúria.
SEMICORO I

É chegado o tempo,
SEMICORO II

Pois Belial está em seu sangue,


SEMICORO I

O tempo de em você nascerem


SEMICORO II

Os Outros, os Alienígenas,
SEMICORO I

A Comichão, O Eczema,
SEMICORO II

O protuberante Verme.
SEMICORO I

É chegado o tempo,
SEMICORO II

Pois Belial o odeia,


SEMICORO I

Da morte da Alma,
SEMICORO II

De a Pessoa perecer,
SEMICORO I

Condenada pela ânsia


SEMICORO II

Tendo o prazer como o carrasco;


SEMICORO I

Tempo de o Inimigo
SEMICORO II

Ter o triunfo total,


SEMICORO I

De o Babuíno ser o mestre,


SEMICORO II

De que monstros possam ser gerados.


SEMICORO I

Não a sua vontade, mas a Dele,


SEMICORO II

De que todos vocês para sempre se percam.

Da multidão sobe um alto e unânime “Amém”.


“Que Sua maldição esteja convosco”, entona o Arquivigário em
sua voz estridente, então se dirige de volta para a extremidade do
santuário e escala o trono que fica próximo ao altar. Vinda de fora
ouvimos uma confusa gritaria que aumenta mais e mais, e
subitamente o santuário é invadido por uma turba de adoradores
coribânticos. Eles correm até o altar, arrancam uns dos outros seus
aventais e lançam-nos numa pilha ao pé do trono do Arquivigário. NÃO,
NÃO, NÃO — e para cada NÃO ouve-se um triunfante grito de “Sim”, seguido

de um gesto inequívoco em direção à mais próxima pessoa do sexo


oposto. À distância os padres estão salmodiando monotonamente:
“Não a sua vontade, mas a Dele, de que todos vocês para sempre se
percam” — de novo e de novo.
Close no doutor Poole enquanto de um canto do oratório ele
observa os procedimentos.
Corta de volta para a multidão, rostos estúpidos e extáticos
entram um após o outro no campo de visão e saem de novo. E eis,
subitamente, o rosto de Loola — os olhos reluzindo, os lábios
entreabertos, as covinhas descontroladamente vivas. Ela vira a
cabeça, encontra o olhar do doutor Poole.
“Alfie!”, grita ela.
Seu tom e sua expressão evocam réplica igualmente extasiada.
“Loola!”
Eles correm ao encontro de um ardente abraço. Segundos se
passam. Como se vaselinados, os trechos da música de Sexta-Feira
Santa do Parsifal[16] fazem-se ouvir na faixa de áudio.
Então os rostos se descolam, a Câmera recua.
“Rápido, rápido!”
Loola agarra-lhe o braço e o arrasta até o altar.
“O avental”, diz ela.
O doutor Poole baixa o olhar até o avental, então,
avermelhando-se tanto quanto o NÃO bordado nele, desvia os olhos.
“Parece tão... tão indecoroso”, diz ele.
Ele estende a mão, a recolhe, então muda de ideia mais uma
vez. Pegando um canto do avental entre o polegar e o indicador, ele
lhe dá dois puxões debilmente ineficazes.
“Mais forte”, exclama ela, “bem mais forte!”
Com uma violência quase desvairada — pois não é apenas o
avental que ele está retirando, é também a influência de sua Mãe e
todas suas inibições, todas as convenções nas quais foi criado — o
doutor Poole faz como lhe pedem. As costuras cedem mais
facilmente do que previra e ele quase tomba de costas. Recobrando
seu equilíbrio, queda-se lá, olhando com acanhado embaraço para a
pequena fralda que representa o Sétimo Mandamento e então para o
sorridente rosto de Loola e então de novo para a proibição carmesim.
Corta de lá para cá: NÃO, covinhas, NÃO, covinhas, NÃO...
“Sim!”, grita Loola triunfalmente. “Sim!”
Arrebatando o avental da mão dele, ela o arremessa ao pé do
trono. Então, com um “Sim” e outro “Sim”, ela rasga os remendos do
peito e, voltando-se para o altar, faz sua reverência para a Vela.
Plano americano das costas de Loola, genufletindo. De imediato
um homem idoso com barba grisalha corre excitadamente para
dentro do quadro, arranca os gêmeos NÃO do assento das calças de
tecido caseiro dela e começa a arrastá-la em direção à porta do
santuário.
Dando-lhe um bofete no rosto e um vigoroso empurrão, Loola se
desvencilha e pela segunda vez atira-se nos braços do doutor Poole.
“Sim?”, sussurra ela.
E enfaticamente ele responde:
“Sim!”
Eles se beijam, sorriem extasiadamente um para o outro, então
se movem na direção da escuridão além das portas corrediças. Ao
passar pelo trono, o Arquivigário se inclina e, sorrindo ironicamente,
dá uma pancadinha no ombro do doutor Poole.
“E o meu binóculo?”, diz ele.
Dissolve para uma cena noturna de sombras retintas e
extensões de luar. No plano de fundo encontra-se o apodrecido
monturo do Los Angeles County Museum. Amorosamente
entrelaçados, Loola e o doutor Poole adentram no quadro, então
somem em impenetrável escuridão. Silhuetas de homens
perseguindo mulheres, ou mulheres atirando-se em homens,
aparecem por um momento e desaparecem. Acompanhando a
música de Sexta-Feira Santa ouvimos um ascendente e decrescente
coro de grunhidos e gemidos, de obscenidades gritadas
explosivamente e morosos uivos de agonizante deleite.

NARRADOR
Considerem os pássaros. Que singeleza há em seu amor! Que
cavalheirismo à antiga! Pois embora os hormônios produzidos no
corpo da galinha reprodutora a predisponha à emoção sexual, seus
efeitos não são nem tão intensos nem tão efêmeros quanto os dos
hormônios ovarianos no sangue dos mamíferos fêmeas durante o
estro. Ademais, por razões óbvias, o galo não está em posição de
impor seus desejos a uma galinha indisposta. Daí a prevalência,
entre pássaros machos, de uma plumagem clara e de um instinto
para o cortejo. E daí a notável ausência dessas encantadoras coisas
entre os mamíferos machos. Onde, como entre os mamíferos, os
desejos amorosos das fêmeas e sua atratividade ao sexo masculino
são inteiramente determinados por meios químicos, que necessidade
há de beleza masculina ou das sutilezas do cortejo preliminar?
Para os humanos todo dia do ano é potencialmente a temporada
do acasalamento. As garotas não são quimicamente predestinadas,
durante alguns dias, a aceitar os avanços do primeiro macho que se
apresente. Seus corpos manufaturam hormônios em doses
suficientemente pequenas para permitir até à mais temperamental
delas uma certa liberdade de escolha. É por isso que, diferente de
seus companheiros mamíferos, o homem sempre foi um galanteador.
Mas agora os raios gama mudaram tudo isso. Os padrões
hereditários do comportamento físico e mental do homem assumiram
outra forma. Graças ao supremo Triunfo da Ciência Moderna, o sexo
tornou-se sazonal, o romance foi tragado pelo estro, e a compulsão
química feminina para acasalar aboliu o cortejo, o cavalheirismo, a
ternura, o próprio amor em si.

Neste momento uma radiante Loola e um consideravelmente


desgrenhado doutor Poole emergem das sombras. Um macho
parrudo, temporariamente desimpedido, vem marchando para dentro
do quadro. Ao avistar Loola, ele para. Sua boca se escancara, seus
olhos se arregalam, ele respira profundamente.
O doutor Poole dá uma olhada no estranho, então se volta
nervosamente para sua acompanhante.
“Acho que talvez seja uma boa ideia irmos por aqui...”
Sem dizer palavra o estranho corre até ele, dá-lhe um empurrão
que o manda pelos ares e toma Loola nos braços. Ela resiste por um
momento; então a química de seu sangue impõe seu Imperativo
Categórico, e ela para de se debater.
Fazendo um barulho como o de um tigre na hora de comer, o
estranho a levanta do chão e a carrega sombras adentro.
O doutor Poole, que teve tempo de se levantar, faz menção de
segui-los, para saciar sua vingança, para resgatar a aflita vítima.
Então uma combinação de apreensão e modéstia leva-o a retardar o
passo. Caso ele avance, só os céus sabem o que ele pode acabar
invadindo. E há aquele homem, aquela peluda carapaça de osso e
músculo... No todo pode talvez ser mais esperto... Ele empaca e
queda-se hesitante, sem saber o que fazer. De repente duas belas
garotas mulatas saem correndo do County Museum e
simultaneamente jogam seus braços marrons em torno do pescoço
dele, cobrindo-lhe a face de beijos.
“Seu grandessíssimo canalha”, sussurram elas em enrouquecido
uníssono.
Por um momento o doutor Poole hesita entre a inibitória
recordação de sua Mãe, a fidelidade a Loola prescrita por todos os
poetas e romancistas, e aqueles mornos e elásticos Fatos da Vida.
Após cerca de quatro segundos de conflito moral, ele escolhe, como
poderíamos esperar, os Fatos da Vida. Ele sorri, retribui os beijos,
murmura palavras que sobressaltariam a senhorita Hook e quase
matariam sua Mãe só de ouvi-las, envolve cada corpo com um braço,
afaga cada busto com mãos que nunca fizeram nada do tipo, exceto
em inconfessáveis fantasias. Os rumores de acasalamento crescem
até um breve clímax, depois diminuem. Por um pequeno tempo há
um completo silêncio.
Acompanhado por um séquito de Arquimandritas, Fâmulos,
Presbíteros e Postulantes, o Arquivigário e o Patriarca de Pasadena
adentram marchando majestosamente no quadro. Ao avistar o doutor
Poole e as mulatas, eles estacam. Abrindo uma careta de enojada
repulsa, o Patriarca cospe no chão. Mais tolerante, o Arquivigário
apenas sorri ironicamente.
“Doutor Poole!”, trina ele em seu esquisito falsete.
Culposamente, como se ele houvesse ouvido sua Mãe chamar,
o doutor Poole larga aquelas suas mãos ocupadas e, virando-se para
o Arquivigário, tenta assumir uma expressão de aérea inocência.
“Essas garotas”, parece sugerir seu sorriso, “quem são essas
garotas? Ora, eu nem sei o nome delas. Estávamos apenas batendo
um papinho sobre os criptógamos mais altos, apenas isso.”
“Seu grandessíssimo...”, principia uma voz rouca.
O doutor Poole tosse alto e afasta o abraço que acompanha as
palavras.
“Não liguem para nós”, diz o Arquivigário prazenteiramente.
“Afinal de contas, o Dia de Belial só acontece uma vez por ano.”
Aproximando-se, ele toca os chifres dourados de sua tiara,
então pousa as mãos na cabeça do doutor Poole.
“A sua conversão”, diz ele com uma untuosidade subitamente
profissional, “foi uma conversão quase milagrosamente repentina.
Sim, quase milagrosamente.” Então, mudando o tom: “A propósito”,
acrescenta ele, “tivemos um bocado de problemas com seus amigos
da Nova Zelândia. Nesta tarde alguém localizou um grupo deles em
Beverly Hills. Suponho que estivessem tentando encontrar você”.
“Sim, suponho que sim.”
“Mas eles não vão encontrá-lo”, diz o Arquivigário jovialmente.
“Um de nossos Inquisidores saiu com uma patrulha de Fâmulos para
lidar com eles.”
“O que aconteceu?”, indaga ansiosamente o doutor Poole.
“Nossos homens prepararam uma emboscada, lançando
flechas. Um foi morto, e os outros fugiram com os feridos. Não creio
que seremos perturbados de novo. Mas só para ter certeza...” Ele
acena para dois de seus assistentes. “Ouçam”, diz ele. “Não haverá
um resgate e não haverá uma fuga. Vocês serão responsabilizados,
entenderam?”
Os dois Postulantes curvam a cabeça.
“E agora”, diz o Arquivigário, voltando-se de novo para o doutor
Poole, “nós o deixaremos gerar todos os monstrinhos que puder.”
Ele dá uma piscadela, pancadinhas nas bochechas do doutor
Poole, então toma o braço do Patriarca e, seguido por sua comitiva,
afasta-se.
O doutor Poole acompanha com o olhar as figuras recuando,
então olha incomodado para os dois Postulantes que foram
designados para vigiá-lo.
Braços marrons jogam-se em torno do pescoço dele.
“Seu grandessíssimo...”
“Não, por favor. Não em público. Não com esses homens por
perto!”
“Que diferença faz?”
E antes que ele tenha tempo de responder, enrouquecidos,
almiscarados, amorenados, os Fatos da Vida enlaçam-no
novamente, e num complicado abraço, como uma espécie de
Laocoonte metade relutante, metade alegremente consensual, ele é
arrebatado para dentro das sombras. Com uma expressão de nojo,
os dois Postulantes cospem ao mesmo tempo.

NARRADOR

L’ombre était nuptiale,


Auguste et solennelle[17]

Ele é interrompido por um acesso de frenéticos miados.

NARRADOR

Quando olho para os tanques de peixes do meu jardim,


(E não só do meu, pois todo jardim está crivado
De tocas de enguias e luas refletidas), a mim me ocorre
Ver uma Coisa armada com um rastelo que parece,
Fora do limo, fora da imanência
Entre as enguias do céu, me golpear...
Golpear a Mim o sagrado, a Mim o divino! Contudo
Quão tediosa é uma consciência culpada! Quão
Tediosa, verdade seja dita, uma não culpada!
Não admira que o horror dos tanques de peixes
Atraia-nos em direção ao rastelo? E a Coisa golpeia,
E eu, a ansiosa Pessoa, na lama,
Ou no líquido luar, agradecidamente
Encontro outros além de mim que têm aquele cego
Ou radiante existir.

Dissolve para um plano médio do doutor Poole adormecido na areia


amontoada ao pé de uma altaneira parede de concreto. A seis
metros dali um dos guardas também dorme. O outro está absorto
num antigo exemplar de Forever Amber.[18] O sol vai já alto no céu e
um close revela um lagartinho verde rastejando sobre uma das mãos
estendidas do doutor Poole. Ele não se remexe, mas jaz como se
estivesse morto.

NARRADOR

E isso, também, é a beatífica existência de alguém que muito


provavelmente não é Alfred Poole, doutor. Pois o sono é uma das
precondições da Encarnação, o instrumento primário da imanência
divina. Dormindo, deixamos de viver o que poderá ser vivido (e quão
abençoadamente!) por algum inominável Outro que aproveita essa
oportunidade para restituir a sanidade à mente e levar a cura ao
abusado e autoflagelado corpo.
Do desjejum à hora de deitar você pode estar fazendo tudo em
seu poder para ultrajar a Natureza e negar o fato de sua Vítrea
Essência. Mas até mesmo o mais raivoso macaco por fim se cansa
de seus truques e tem que dormir. E, enquanto ele dorme, a
habitação da Compaixão preserva-o, quer queira quer não, do
suicídio que, em suas horas desperto, ele tão freneticamente tentou
cometer. Então o sol se levanta de novo, e nosso macaco desperta
mais uma vez para seu próprio eu e para a liberdade de sua vontade
pessoal — para mais um dia de interpretação de truques ou, caso se
prefira, para os primórdios do autoconhecimento, para os primeiros
passos rumo à sua libertação.

Um estrondo de excitado riso feminino abrevia o discurso do


Narrador. O dorminhoco se agita e, ante uma segunda e mais alta
irrupção, recobra-se em vigília total e se senta, olhando ao redor em
perplexidade, sem saber onde está. De novo o riso. Ele volta sua
cabeça em direção do som. Num plano geral segundo seu plano de
vista, nós vemos suas duas amigas de pele parda da noite anterior
emergindo a toda velocidade de trás de uma duna de areia e
disparando rumo às ruínas do County Museum. No encalço delas,
em concentrado silêncio, corre o Chefe. Todos os três desaparecem
de vista.
O Postulante adormecido acorda e volta-se para seu colega.
“Que foi aquilo?”, pergunta.
“O de sempre”, responde o outro, sem tirar os olhos de Forever
Amber.
Enquanto fala, esganiçados guinchos reverberam pelos
cavernosos salões do Museum. Os Postulantes olham um para o
outro em silêncio, então cospem simultaneamente.
Corta de volta para o doutor Poole.
“Meu Deus!”, diz ele em voz alta. “Meu Deus!”
Ele cobre o rosto com as mãos.

NARRADOR

Na saciedade deste dia seguinte, liberte-se de uma consciência


roedora e dos princípios aprendidos num colo de Mãe — não raras
vezes estendido sobre ele (cabeça para baixo e fralda da camisa
bem erguida), em condignas palmadas, triste e piamente
administradas, mas lembradas, ironicamente, como o pretexto e o
acompanhamento de inumeráveis devaneios eróticos, devidamente
seguidos de remorso, e cada remorso trazendo com ele a ideia de
punição e todas as suas concomitantes sensualidades. E assim por
diante, sem cessar. Bem, como eu disse, liberte-se disso, e o
resultado pode muito bem configurar uma conversão religiosa. Mas
uma conversão ao quê? Muito ignorante do que ele mais assegura,
nosso pobre amigo não sabe. E aí vem praticamente a última pessoa
que ele esperaria que o ajudasse a descobrir.

Enquanto o Narrador fala essa última frase, Loola adentra no quadro.


“Alfie!”, grita ela alegremente. “Estava procurando você.”
Corta rapidamente para os dois Postulantes, que olham para ele
por um momento com todo o desgosto da continência forçada, então
se viram para longe e expectoram.
Entrementes, após um breve olhar de relance para aqueles
“lineamentos de satisfeitos desejos”, o doutor Poole culposamente
afasta seus olhos.
“Bom dia”, diz ele num tom de polidez formal. “Espero que você
tenha... Você dormiu bem?”
Loola se senta ao lado dele, abre a bolsa de couro que carrega
pendurada no ombro e extrai metade de um naco de pão e cinco ou
seis laranjas grandes.
“Nesses dias ninguém consegue pensar muito em cozinhar”,
explica ela. “É apenas um longo piquenique até que a estação fria
comece de novo.”
“Certo, certo”, diz o doutor Poole.
“Você deve estar horrivelmente faminto”, prossegue ela. “Depois
de ontem à noite.”
A covinha dela sai do esconderijo quando sorri para ele.
Ardente e corando de constrangimento, o doutor Poole se
apressa em tentar mudar o assunto da conversa.
“São belas laranjas, essas”, comenta ele. “Na Nova Zelândia
elas não dão muito bem exceto no extremo...”
“Aqui”, diz Loola, interrompendo-o.
Ela lhe entrega um grosso pedaço de pão, parte outro para ela e
o morde com fortes dentes brancos.
“Está bom”, diz ela de boca cheia. “Por que você não come?”
O doutor Poole, reconhecendo uma fome voraz mas vendo-se
indisposto, pelo bem do decoro, a admitir o fato, mordisca sua côdea
com delicadeza.
Loola aninha-se contra ele e deita a cabeça em seu ombro.
“Foi divertido, não foi, Alfie?” Ela dá outra mordida no pão e,
sem esperá-lo responder, continua: “Mais divertido com você do que
com qualquer outro. Não acha isso também?”.
Ela o fita ternamente.
Close, segundo o ponto de vista dela, na expressão de
agonizante desconforto moral do doutor Poole.
“Alfie!”, exclama ela. “Qual o problema?”
“Talvez fosse melhor”, consegue ele por fim dizer,
“conversarmos sobre outra coisa.”
Loola se endireita e olha atentamente e em silêncio para ele por
alguns segundos.
“Você pensa demais”, diz ela por fim. “Você não deve ficar
pensando. Se pensar, deixa de ser divertido.” A luz subitamente
some de seu rosto. “Se você pensa”, prossegue ela em voz baixa, “é
terrível, terrível. É uma coisa terrível cair nas mãos do Presente Mal.
Quando me lembro do que eles fizeram à Polly e ao bebê...”
Ela estremece, seus olhos marejam-se de lágrimas e ela se vira
para o outro lado.
NARRADOR

De novo essas lágrimas, esses sintomas de personalidade — vê-las


evoca uma simpatia que é mais forte que o senso de culpa.

Esquecendo os Postulantes, o doutor Poole atrai Loola para si, e


com palavras sussurradas, com as carícias que se usam para
acalmar uma criança que chora, tenta confortá-la. Ele é tão bem-
sucedido que, dentro de um minuto ou dois, ela se encontra deitada
bastante quieta na curva de seu braço. Suspirando alegremente, ela
abre os olhos, olha para ele e sorri com uma expressão de ternura, à
qual as covinhas adicionam uma insinuação de travessura
deslumbrantemente incongruente.
“Isso é tudo que sempre sonhei.”
“É mesmo?”
“Mas nunca aconteceu... nunca poderia acontecer. Não até você
chegar...” Ela afaga a bochecha dele. “Eu queria que sua barba
nunca precisasse crescer”, acrescenta ela. “Senão você vai se
parecer com os outros camaradas. Mas você não é como eles, você
é bem diferente.”
“Não tão diferente assim”, diz o doutor Poole.
Ele se inclina e a beija nas pálpebras, no pescoço, na boca —
então se recosta e a contempla com uma expressão de triunfante
masculinidade.
“Não diferente naquele sentido”, modera ela. “Mas diferente
nesse sentido.” Ela afaga a bochecha dele de novo. “Você e eu
sentados juntos e conversando e sendo felizes porque você é você e
eu sou eu. Isso não acontece por aqui. Exceto... exceto...” Ela se
detém. Seu rosto se anuvia. “Você sabe o que acontece às pessoas
Fogosas?”, sussurra ela.
Agora é a vez de o doutor Poole protestar contra pensar demais.
Ele endossa suas palavras com ação.
Close no abraço. Então corta para os dois desgostosos
Postulantes encarando o espetáculo. Enquanto eles cospem, outro
Postulante adentra no quadro.
“Ordens de Sua Eminência”, diz ele, fazendo sinal de chifres.
“Essa tarefa acabou. Devem dirigir-se de volta ao Quartel-General.”
Dissolve para o Canterbury. Um marujo ferido, com uma flecha
ainda cravada no ombro, está sendo rebocado pela eslinga do
baleeiro para o convés da escuna. No convés jazem duas outras
vítimas dos arqueiros californianos — o doutor Cudworth com uma
ferida na perna esquerda e a senhorita Hook. Esta tem uma flecha
incrustada fundo em seu flanco direito. O médico, ao inclinar-se
sobre ela, parece solene.
“Morfina”, diz ele ao seu ordenança. “Depois a desceremos à
sala de cirurgia o mais rápido que pudermos...”
Entrementes houve uma gritaria de ordens e subitamente
ouvimos o ruído do servomotor e o repenicar da corrente da âncora
enquanto é recolhida em volta do cabrestante.
Ethel Hook abre os olhos e observa o entorno. Uma expressão
de nervosismo surge em seu rosto pálido.
“Vocês estão zarpando e o deixando para trás?”, diz ela. “Mas
não podem, não podem!” Ela faz um esforço para se levantar da
maca; mas o movimento causa tanta dor que ela se deita de novo,
com um gemido.
“Quieta, quieta”, diz o doutor para tranquilizá-la, enquanto lhe
assepsia o braço com álcool.
“Mas ele pode ainda estar vivo”, protesta ela debilmente. “Não
podem abandoná-lo; não podem simplesmente lavar as mãos em
relação a ele.”
“Fique quieta”, diz o doutor e, pegando a seringa de seu
ordenança, introduz a agulha na pele.
O repenicar da corrente da âncora sobe num crescendo
enquanto dissolvemos para Loola e o doutor Poole.
“Estou com fome”, diz Loola, sentando-se.
Alcançando sua bolsa, ela tira o que sobrou do pão, parte-o em
dois, entrega o maior fragmento ao doutor Poole e afunda os dentes
no outro. Ela termina sua bocada e está prestes a começar outra,
quando muda de ideia. Virando-se para seu companheiro, toma-lhe a
mão e a beija.
“O que foi isso?”, pergunta ele.
Loola dá de ombros.
“Não sei. De repente senti vontade de fazer isso, apenas.” Ela
come um pouco mais de pão, então, após um silêncio ruminativo,
volta-se para ele com o ar de alguém que acabou de fazer uma
importante e inesperada descoberta.
“Alfie”, anuncia ela, “acho que nunca vou querer dizer Sim a
ninguém além de você.”
Muito comovido, o doutor Poole se inclina adiante e toma a mão
dela e a pressiona contra o coração.
“Sinto que acabo de descobrir do que a vida se trata”, diz ele.
“Eu também.”
Ela se inclina sobre ele, e como um avarento que não consegue
deixar de contar seu tesouro mais uma vez, o doutor Poole corre
seus dedos sobre os cabelos dela, separando os grossos caracóis
cacho a cacho, levantando um e deixando-o cair silenciosamente de
volta ao seu lugar.

NARRADOR

E assim, pela dialética do sentimento, estes dois redescobriram por


conta própria aquela síntese do químico e do individual a que damos
os nomes de monogamia e amor romântico. No caso dela era o
hormônio que excluía o indivíduo; no dele, o indivíduo é que não
conseguia chegar a um acordo com o hormônio. Mas agora há o
início de uma maior unidade.

O doutor Poole vasculha o bolso e extrai o volumezinho que resgatou


ontem da fornalha. Abre-o, vira as páginas e começa a ler em voz
alta:

Cálida fragrância parece exalar de sua veste


E de seu cabelo solto; e onde uma melena inerte
O ar de sua própria pressa fez desembaraçar,
A doçura parece o sutil vento saciar;
E na alma sente-se um odor agreste
Além dos sentidos, como orvalho ardente que derrete
No seio de congelado broto.[19]

“O que é isso?”, pergunta Loola.


“É você!” Ele se curva e beija-lhe os cabelos. “‘E na alma’”,
sussurra ele, “‘sente-se um odor agreste além dos sentidos.’ Na
alma”, repete ele.
“O que é a alma?”, pergunta Loola.
“Bem...” Ele hesita; então, concedendo a Shelley a prerrogativa
da resposta, resume sua leitura:

Vê onde ela se posta, forma mortal dotada


De amor e vida e luz e deidade,
E movimento que pode mudar, mas nunca morrer,
Uma imagem de certa alva Eternidade,
Uma sombra de certo sonho dourado, um Esplendor
Deixando a terceira esfera desgovernada; um candor
Reflexo da eterna Lua de Amor...[20]

“Mas não entendo uma palavra”, queixa-se Loola.


“E até o dia de hoje”, diz o doutor Poole, sorrindo para ela, “até o
dia de hoje, eu também não entendia.”
Dissolvemos para o exterior do Profano dos Profanos, duas
semanas depois. Várias centenas de homens barbudos e mulheres
desmazeladas estão enfileiradas, em fila dupla, aguardando sua vez
de entrar no santuário. A Câmera percorre a longa linha de rostos
entorpecidos e sujos, então se detém em Loola e no doutor Poole,
que estão no ato de passar pelas portas corrediças.
Dentro tudo é penumbra e silêncio. De dois em dois as ninfas e
os cabriolantes sátiros de poucos dias atrás se arrastam
desanimadamente por um altar, cuja possante vela é agora eclipsada
por um extintor de lata. Ao pé do trono vazio do Arquivigário jaz uma
pilha de Sétimos Mandamentos descartados. À medida que a
procissão passa devagar, o Arquimandrita encarregado da Moral
Pública entrega a todo macho um avental e a toda fêmea um avental
e quatro remendos redondos.
“Saída pela porta lateral”, repete ele a cada beneficiário.
E pela porta lateral, quando chega sua vez, Loola e o doutor
Poole devidamente saem. Lá, à luz do sol, uma porção de
Postulantes está ativamente ocupada, com linha e agulha,
costurando aventais a cintos, remendos a assentos de calças e
peitos de camisa.
A Câmera se detém em Loola. Três jovens seminaristas em
batinas de cabra Toggenberg abordam-na quando ela emerge ao ar
livre.
Ela entrega seu avental ao primeiro, um remendo a cada um dos
outros. Todos os três põem-se a trabalhar simultaneamente e com
extraordinária rapidez. NÃO, NÃO e NÃO.
“Vire-se, por favor.”
Entregando seus últimos remendos, ela obedece; e enquanto o
especialista em aventais afasta-se para atender o doutor Poole, os
outros trabalham suas agulhas tão diligentemente que, em meio
minuto, ela não está menos proibitiva atrás do que quando é vista de
frente.
“Ali!”
“E ali!”
Os dois alfaiates clericais se afastam e dão lugar a um close em
seu artesanato. NÃO NÃO. Corta de volta para os Postulantes, que
expressam seus sentimentos cuspindo em uníssono, então se voltam
para a porta do santuário.
“A próxima senhora, por favor.”
Trazendo um olhar de extremo abatimento, as duas inseparáveis
garotas mulatas dão um passo juntas.
Corta para o doutor Poole. Com avental e com uma barba de
quinze dias, ele caminha até onde Loola o espera.
“Por aqui, por favor”, diz uma voz esganiçada.
Em silêncio eles assumem seus lugares no fim de mais uma fila.
Resignadamente, duzentas ou trezentas pessoas estão esperando
ter atribuídas suas tarefas pelo Ajudante Chefe do Grande Inquisidor
encarregado das Obras Públicas. Com três chifres e paramentado
impressionantemente com uma sotaina branca de cabra Saanen, o
grande homem está sentado com uma dupla de Fâmulos de dois
chifres a uma vasta mesa, na qual se encontram vários gabinetes de
arquivos de aço recuperados dos escritórios da Companhia de
Seguros Vida Providencial.
Uma série de tomadas editadas exibe, em vinte segundos, o
lento e demorado avanço de Loola e do doutor Poole rumo à origem
da Autoridade. E agora por fim eles alcançam seu destino. Close no
Ajudante Especial do Grande Inquisidor enquanto diz ao doutor
Poole que se reporte ao Diretor de Produção de Alimentos em seu
escritório nas ruínas do Prédio Administrativo da Universidade do Sul
da Califórnia. Este cavalheiro providenciará que o botânico ganhe um
laboratório, um lote de terra para seu plantio experimental e até
quatro trabalhadores para realizar o trabalho manual.
“Até quatro trabalhadores”, repete o prelado. “Embora em
épocas normais...”
Desautorizada, Loola intervém na conversa.
“Oh, deixe-me ser um dos trabalhadores”, implora ela. “Por
favor.”
O Ajudante Especial do Grande Inquisidor lança-lhe um olhar
fulminante, então se volta para seus Fâmulos.
“E quem, suplico, é esta jovem vasilha do Espírito Profano?”,
pergunta ele.
Um dos Fâmulos extrai a ficha de Loola do arquivo e fornece a
informação relevante. Com dezoito anos e até agora estéril, relata-se
que a vasilha em questão associou-se durante uma entressafra a um
notório Fogoso, mais tarde liquidado enquanto tentava resistir à
prisão. Nada, no entanto, foi provado contra a referida vasilha e sua
conduta tem sido geralmente satisfatória. A referida vasilha foi
empregada, no último ano, como mineradora de cemitérios e deverá
ser assim empregada durante a próxima temporada.
“Mas quero trabalhar com Alfie”, protesta ela.
“Você parece esquecer”, diz o primeiro Fâmulo, “que isso é uma
Democracia...”
“Uma Democracia”, acrescenta seu colega, “em que todo
proletário desfruta de perfeita liberdade.”
“Verdadeira liberdade.”
“Fazendo livremente a vontade do proletariado.”
“E vox proletariatus, vox Diaboli.”
“Enquanto, é claro, vox Diaboli, vox Ecclesiae.”
“E nós aqui somos os representantes da Igreja.”
“Como deve ter percebido.”
“Mas estou cansada de cemitérios”, insiste a garota. “Eu queria
cavar coisas vivas, para variar.”
Há um breve silêncio. Então o Ajudante Especial do Grande
Inquisidor inclina-se e, de baixo de sua cadeira, tira um enorme
vergalho consagrado, o qual deposita na mesa diante de si. Então se
volta para seus subordinados.
“Corrijam-me se estiver errado”, diz ele. “Mas minha impressão é
de que qualquer vasilha que rejeita a liberdade proletária é passível
de vinte e cinco chibatadas para cada uma de tais ofensas.”
Há outro silêncio. Pálida e de olhos arregalados, Loola encara o
instrumento de tortura, então olha para longe, faz um esforço para
falar, descobre-se afônica e, engolindo em seco, tenta novamente.
“Não vou resistir”, consegue falar. “Eu realmente quero ser livre.”
“Livre para continuar escavando cemitérios?”
Ela assente.
“Isso é que é uma boa vasilha!”, diz o Ajudante Especial.
Loola volta-se para o doutor Poole, e por alguns poucos
segundos eles se olham nos olhos sem falar.
“Adeus, Alfie”, sussurra ela por fim.
“Adeus, Loola.”
Passam-se mais dois segundos; então ela baixa o olhar e vai
embora.
“E agora”, diz o Ajudante Especial para o doutor Poole,
“podemos voltar aos negócios. Em épocas normais, como eu estava
dizendo, se esperaria que você dispusesse de não mais que dois
trabalhadores. Fui claro?”
O doutor Poole inclina a cabeça.
Dissolvemos para um laboratório em que os segundanistas da
Universidade do Sul da Califórnia uma vez exerceram o estudo da
Biologia Elementar. Vemos as usuais pias e mesas, bicos de Bunsen
e balanças, gaiolas para ratos e cobaias, tanques de vidro para
girinos. Mas há um pó espesso sobre tudo, e dispersa pela sala jaz
meia dúzia de esqueletos, ainda associados a esboroados despojos
de calças de pano e suéteres, de náilons e bijuterias e sutiãs.
A porta se abre e o doutor Poole entra, seguido do Diretor de
Produção de Alimentos, um homem idoso e de barba grisalha
trajando calças de tecido caseiro, o avental padrão e um fraque que
outrora deve ter pertencido ao mordomo inglês de algum executivo
da indústria cinematográfica do século XX.
“Receio que esteja um pouco bagunçado”, diz o Diretor,
desculpando-se. “Mas mandarei limpar os ossos esta tarde e
amanhã as vasilhas faxineiras podem espanar as mesas e lavar os
pisos.”
“Certo”, diz o doutor Poole, “certo.”
Dissolve para a mesma sala uma semana depois. Os esqueletos
foram removidos e, graças às vasilhas faxineiras, os pisos, as
paredes e os móveis estão quase limpos. O doutor Poole tem três
distintos visitantes. Trajando seus quatro chifres e o hábito marrom
de cabra Núbia da Sociedade de Moloch, o Arquivigário está sentado
ao lado do Chefe, que está vestido no condecoradíssimo uniforme de
um Contra-Almirante da Marinha dos Estados Unidos, recentemente
desenterrado do Forest Lawn. A uma distância respeitável atrás e ao
lado dos Dirigentes da Igreja e do Estado senta-se o Diretor de
Produção de Alimentos, ainda disfarçado de mordomo. Encarando-
os, na postura de um acadêmico francês preparando-se para ler sua
última publicação a uma seleta e privilegiada audiência, senta-se o
doutor Poole.
“Devo começar?”, pergunta ele.
Os dirigentes da Igreja e do Estado trocam olhares; então se
voltam para o doutor Poole e simultaneamente acenam seu
consentimento. Ele abre seu caderno e ajusta os óculos.
“Notas Sobre Erosão do Solo e Fitopatologia no Sul da
Califórnia”, lê em voz alta. “Seguidas de um Relatório Sobre a
Situação Agrícola e de um Plano de Ação Corretiva para o Futuro.
Por Alfred Poole, Doutor, Professor-Assistente de Botânica na
Universidade de Auckland.”
Enquanto ele lê, dissolvemos para um declive no sopé das
montanhas San Gabriel. Desnudo exceto por um cacto cá e lá, o
pedregoso solo jaz morto e destroçado à luz do sol. Uma rede de
ravinas ramificadas sulca a encosta. Algumas delas estão ainda na
infância da erosão, outras abriram seu caminho fundo na terra. As
ruínas de uma substanciosa casa, cuja metade foi já engolfada,
postam-se precariamente à beira de um desses cânions
estranhamente encrespados. Na planície, ao pé da colina, nogueiras
mortas emergem da lama seca na qual sucessivas chuvas as
enterraram.
Por cima do quadro ouvimos o sonoro zumbido da voz do doutor
Poole:
“Na verdadeira simbiose”, está dizendo ele, “há uma relação
mutuamente benéfica entre dois organismos associados. A marca
distintiva do parasitismo, por outro lado, é que um organismo vive à
custa do outro. No fim, esta relação unilateral prova-se fatal às duas
partes; pois a morte do hospedeiro não pode senão resultar na morte
do parasita que o levou à morte. A relação entre o homem moderno
e o planeta, do qual, até tão recentemente, ele se pretendera senhor,
tem sido a relação não entre parceiros simbióticos, mas entre a tênia
e o cão infestado, entre o fungo e a batata bichada.”
Corta de volta para o Chefe. Dentro de seu ninho de barba
negra encaracolada a boca vermelha abriu-se num enorme bocejo.
Por cima do quadro o doutor Poole continua lendo:
“Ignorando o óbvio fato de que sua devastação de recursos
naturais iria, em longo prazo, resultar na ruína de sua civilização e
até mesmo na extinção de sua espécie, o homem moderno
continuou, geração após geração, a explorar a terra de tal maneira
que...”
“Você não poderia ser um pouco mais conciso?”, pergunta o
Chefe.
O doutor Poole começa a parecer ofendido. Então lembra que é
um prisioneiro condenado em liberdade entre selvagens, e força um
sorriso nervoso.
“Talvez fosse melhor”, diz ele, “passarmos sem mais delongas à
seção sobre fitopatologia.”
“Não me importo”, diz o Chefe, “contanto que seja conciso.”
“A impaciência”, cicia o Arquivigário sentenciosamente, “é um
dos vícios favoritos de Belial.”
O doutor Poole, entrementes, passou três ou quatro páginas e
está pronto para começar de novo.
“Dado o atual estado do solo, a produção por hectare seria
anormalmente baixa, mesmo se as principais plantas alimentícias
fossem completamente saudáveis. Mas elas não são saudáveis.
Depois de ver colheitas no campo, depois de inspecionar grãos,
frutas e tubérculos armazenados, depois de examinar espécimes
botânicos debaixo de um microscópio pré-Coisa quase intacto, estou
certo de que há apenas uma explicação para o número e a variedade
de doenças de plantas agora alastradas na área, a saber, a
deliberada contaminação das colheitas por meio de bombas de
fungos, aerossóis com bactérias e o lançamento de muitas espécies
de pulgões vetores de vírus e de outros insetos. De que outra
maneira explicar a prevalência e extrema virulência da Giberella
saubinetti e da Puccinia graminis? Ou da Phytophthora infestans e
da Synchitrium endobioticum? De todas as doenças-mosaico devidas
aos vírus? De Bacillus amylovorus, Bacillus carotovorus,
Pseudomonas citri, Pseudomonas tumefaciens, Bacterium...”
Abreviando-lhe a recitação quase antes mesmo de começada, o
Arquivigário o interrompe.
“E você ainda sustenta”, diz ele, “que essas pessoas não foram
possuídas por Belial!” Ele balança a cabeça. “É incrível como o
preconceito pode cegar até mesmo os mais inteligentes, os mais
bem qualificados...”
“Sim, sim, nós sabemos disso tudo”, diz o Chefe
impacientemente. “Mas cortemos todo esse cacarejo e passemos
aos assuntos práticos. O que você pode fazer em relação a isso
tudo?”
O doutor Poole limpa a garganta.
“A tarefa”, diz ele, imponente, “será arrastada e extremamente
árdua.”
“Mas eu quero mais alimentos agora”, diz o Chefe
imperiosamente. “Preciso tê-los ainda este ano.”
Um tanto apreensivamente, o doutor Poole é forçado a lhe dizer
que variedades de plantas resistentes a doenças não podem ser
criadas e testadas em menos de dez ou doze anos. E ademais há a
questão da terra; a erosão está destruindo o solo, a erosão deve ser
contida a todo custo. Mas o trabalho de terraceamento e drenagem e
compostagem é enorme e deve prosseguir incessantemente, ano
após ano. Mesmo nos velhos tempos, quando a mão de obra e o
maquinário eram abundantes, as pessoas falharam em fazer o que
era necessário para preservar a fertilidade do solo.
“Não porque não podiam”, coloca o Arquivigário. “Mas porque
não queriam. Entre a Segunda Guerra Mundial e a Terceira Guerra
Mundial eles tinham todo o tempo e todo o equipamento necessário.
Mas preferiram se divertir com políticas de poder; e quais foram as
consequências?” Ele conta as respostas em seus dedos grossos.
“Subnutrição agravada para mais pessoas. Mais agitação política,
resultando em nacionalismo e imperialismo mais agressivos. E
finalmente a Coisa. E por que escolheram destruir a si mesmos?
Porque era o que Belial queria que fizessem, porque Ele tinha
tomado a posse...”
O Chefe ergue a mão.
“Por favor, por favor”, protesta. “Isso não é um curso de
Apologética ou Diabologia Natural. Estamos tentando realizar alguma
coisa.”
“E infelizmente essa realização levará longo tempo”, diz o doutor
Poole.
“Longo, quanto?”
“Bem, em cinco anos será possível refrear a erosão. Em dez
anos haverá uma melhoria perceptível. Em vinte anos, parte da terra
já terá revertido algo como setenta por cento de sua fertilidade
original. Em cinquenta anos...”
“Em cinquenta anos”, coloca o Arquivigário, “a taxa de
deformidade será o dobro do que é no presente. E em cem anos o
triunfo de Belial será completo. Nada senão completo!”, repete com
uma risadinha pueril. Ele faz sinal de chifres e levanta-se de sua
cadeira. “Mas enquanto isso sou a favor de esse cavalheiro fazer
tudo que puder.”
Dissolve para o Cemitério de Hollywood. Travelling dos
monumentos, com os quais já nos familiarizáramos em visita anterior.
Plano americano da estátua de Hedda Boddy. A Câmera
despenca da figura para o pedestal e para a inscrição:
“... carinhosamente conhecida como a Queridinha Pública
Número Um. ‘Pegue carona numa estrela.’”
Por cima do quadro ouvimos o som de uma pá sendo enfiada na
terra, então o estrépito de areia e cascalho enquanto a terra é
arremessada de lado.
A Câmera recua, e vemos Loola de pé num buraco de um metro
de altura, cavando fatigadamente.
O som de passos a leva a olhar para cima.
Flossie, a garota roliça da sequência anterior, adentra no
quadro.
“Está se saindo bem?”, pergunta ela.
Loola assente sem falar e enxuga a testa com o dorso da mão.
“Quando você atingir um filão”, continua a garota roliça, “venha
se reportar a nós.”
“Vai levar pelo menos mais uma hora”, diz Loola
melancolicamente.
“Bem, fique firme aí, garota”, diz Flossie no tom insanamente
cordial de uma pessoa disparando palavras de incentivo. “Dê o seu
melhor. Prove a eles que uma vasilha pode tanto quanto um homem!
Se você trabalhar bem”, continua encorajando, “talvez o
Superintendente te deixe ficar com os náilons. Veja só o par que eu
consegui esta manhã!”
Ela puxa do bolso os cobiçados troféus. Exceto por uma
esverdeada descoloração ao redor dos dedões, as meias-calças
estão em perfeitas condições.
“Oh!”, exclama Loola com invejosa admiração.
“Mas não tivemos sorte alguma com as joias”, diz Flossie,
enquanto guarda as meias de novo. “Apenas um anel de casamento
e um braceletezinho apodrecido. Vamos torcer para que esta cova
aqui não nos decepcione.”
Ela afaga o pariano estômago da Queridinha Pública Número
Um.
“Bem, devo voltar”, continua ela. “Estamos cavando em busca
da vasilha enterrada debaixo daquela cruz de pedra vermelha,
sabe?, aquela grandona, perto do portão norte.”
Loola assente.
“Estarei lá assim que eu tiver sorte aqui”, diz.
Assoviando a melodia de “Quando examino os Maravilhosos
Chifres”, a garota roliça caminha quadro afora. Loola suspira e
retoma sua escavação.
Muito suavemente, uma voz pronuncia seu nome.
Ela se sobressalta violentamente e volta-se na direção de onde
o som veio.
Plano médio, segundo o ponto de vista dela, do doutor Poole
avançando cautelosamente de trás da tumba de Rodolfo Valentino.
Corta de volta para Loola.
Ela cora, então fica mortalmente pálida. Sua mão vai até o
coração.
“Alfie”, sussurra ela.
Ele adentra no quadro, pula ao lado dela na cova e, sem dizer
palavra, toma-a nos braços. O beijo é apaixonado. Então ela
esconde o rosto no ombro dele.
“Pensei que nunca mais iria te ver”, diz ela numa voz
embargada.
“Por quem me toma?”
Ele a beija de novo, então a segura à distância de um braço e a
olha no rosto.
“Por que está chorando?”, pergunta ele.
“Não consigo evitar.”
“Você é mais adorável do que eu me lembrava.”
Ela balança a cabeça, incapaz de falar.
“Sorria”, ordena ele.
“Não consigo.”
“Sorria, sorria. Quero vê-las de novo.”
“Ver o quê?”
“Sorria!”
Com esforço, mas cheia de ternura apaixonada, Loola sorri para
ele.
Nas bochechas as covinhas emergem da longa hibernação de
seu pesar.
“Aí estão elas”, exclama ele, deleitado, “aí estão elas!”
Delicadamente, como um homem cego lendo a poesia de Robert
Herrick em braile, ele corre um dedo sobre a bochecha dela. Loola
permite-se um sorriso, a covinha se aprofunda. Ele ri de prazer.
No mesmo momento a melodia assoviada de “Quando examino
os Maravilhosos Chifres” cresce de um distante pianissimo para
piano até mezzo forte.
Uma expressão de terror surge no rosto de Loola.
“Rápido, rápido!”, sussurra ela.
Com assombrosa agilidade o doutor Poole trepa para fora da
cova.
Quando a garota roliça reingressa no quadro ele está inclinado
contra o monumento da Queridinha Pública Número Um numa
atitude estudadamente casual. Abaixo dele, no fosso, Loola está
cavando como louca.
“Esqueci de te dizer que vamos parar para o almoço dentro de
meia hora”, principia Flossie.
Então, avistando o doutor Poole, solta uma exclamação de
surpresa.
“Bom dia”, diz o doutor Poole polidamente.
Há um silêncio. Flossie olha do doutor Poole para Loola, e de
Loola de volta para o doutor Poole.
“O que você está fazendo aqui?”, pergunta ela, desconfiada.
“Estou a caminho da Igreja de Santo Azazel”, responde. “O
Arquivigário mandou avisar que queria que eu participasse de suas
três palestras aos seminaristas. O tema será Belial na História.”
“Você escolheu uma maneira muito esquisita de chegar à Santo
Azazel.”
“Eu estava procurando pelo Chefe”, explica o doutor Poole.
“Bem, ele não está aqui”, diz a garota roliça.
Há outro silêncio.
“Neste caso”, diz o doutor Poole, “é melhor eu ir andando. Não
quero distraí-las de seus deveres, mocinhas”, acrescenta ele com
uma esperteza artificial e inteiramente inconvincente. “Tchau. Tchau.”
Ele faz uma mesura às duas garotas, então, assumindo um ar
de fácil indiferença, vai embora.
Em silêncio Flossie o acompanha com o olhar, então se volta
severamente para Loola.
“Agora ouça aqui, garota”, principia ela.
Loola para de cavar e tira os olhos da cova.
“O que foi, Flossie?”, pergunta ela com uma expressão de
incompreensiva inocência.
“O que foi?”, ecoa a outra zombeteiramente. “Me diz o que é que
está escrito em seu avental.”
Loola baixa os olhos para seu avental, então os ergue até
Flossie. Seu rosto se enrubesce de constrangimento.
“O que está escrito nele?”, insiste a garota roliça.
“‘Não!’”
“E o que está escrito nesses remendos?”
“‘Não!’”, repete Loola.
“E naqueles outros, quando você se vira?”
“‘Não!’”
“Não, não, não, não, não”, diz a garota roliça enfaticamente. “E
quando a Lei diz não, quer dizer não. Você sabe disso tanto quanto
eu, não sabe?”
Loola assente com a cabeça, muda.
“Diga que você sabe”, insiste a outra. “Diga.”
“Sim, eu sei”, irrompe Loola por fim numa voz quase inaudível.
“Ótimo. Então não finja que não foi avisada. E se esse Fogoso
estrangeiro alguma vez vier rondar você de novo, deixe-me saber. Eu
lidarei com ele.”
Dissolvemos para o interior da Santo Azazel. Outrora a Igreja de
Nossa Senhora de Guadalupe, a Santo Azazel sofreu apenas a mais
superficial das alterações. Nos oratórios, as imagens de gesso de
são José, Madalena, santo Antônio de Pádua e santa Rosa de Lima
foram meramente pintadas de vermelho e cravejadas de chifres. No
Altar-Mor nada foi mudado, exceto que o crucifixo foi substituído por
um par de enormes chifres esculpidos em madeira de cedro e
ornados com uma fartura de anéis e relógios de pulso, braceletes,
correntes, brincos e colares, escavados dos cemitérios ou
encontrados associados a velhos ossos e aos apodrecidos restos
dos guarda-joias.
No corpo da igreja, cerca de cinquenta seminaristas vestidos em
Toggenberg — com o doutor Poole, incongruentemente barbudo e
trajando tweed, no meio da primeira fila — estão sentados com a
cabeça inclinada enquanto, do púlpito, o Arquivigário pronuncia as
palavras finais de sua palestra.
“Pois se na Ordem das Coisas tudo pôde, se assim o desejaram
ter vivido, assim também em Belial tudo foi, ou inevitavelmente será,
feito para morrer. Amém.”
Há um longo silêncio. Então o Mestre dos Noviços se levanta.
Com um grande farfalhar de pelicas, os seminaristas imitam-no e
começam a caminhar, de dois em dois, e com o mais perfeito decoro,
rumo à fachada ocidental.
O doutor Poole faz menção de segui-los, quando ouve uma voz
alta e pueril chamando seu nome.
Virando-se, ele vê o Arquivigário acenando dos degraus do
púlpito.
“Bem, o que achou da palestra?”, guincha o grande homem
quando o doutor Poole se aproxima.
“Muito boa.”
“Sem adulação?”
“Real e verdadeiramente.”
O Arquivigário sorri de prazer.
“Fico feliz em ouvir”, diz ele.
“Gostei especialmente do que você disse sobre a religião nos
séculos XIX e XX... seu recuo de Jeremias até o Livro dos Juízes, do
pessoal e portanto universal até o nacional e portanto o mortífero.”
O Arquivigário assente.
“Sim, foi por um triz”, diz ele. “Se eles tivessem se aferrado ao
pessoal e ao universal, teriam estado em harmonia com a Ordem
das Coisas, e o Senhor das Moscas teria perecido. Mas felizmente
Belial tinha um punhado de aliados: as nações, as igrejas, os
partidos políticos. Ele aproveitou seus preconceitos. Ele explorou
suas ideologias. Quando haviam desenvolvido a bomba atômica, ele
devolveu as pessoas ao estado de espírito em que estavam antes de
900 antes de Cristo.”

“E depois”, diz o doutor Poole, “gostei do que disse sobre os


contatos entre o Oriente e o Ocidente... sobre como Ele persuadiu
cada um dos lados a pegar somente o pior que o outro tinha a
oferecer. Então o Oriente pegou o nacionalismo ocidental, os
armamentos ocidentais, os filmes ocidentais e o marxismo ocidental;
o Ocidente pegou o despotismo oriental, as superstições orientais e
a indiferença oriental à vida individual. Numa palavra, Ele
providenciou para que a humanidade produzisse o pior de ambos os
mundos.”
“Imagine só se eles tivessem produzido o melhor!”, guincha o
Arquivigário. “O misticismo oriental garantindo que a ciência
ocidental fosse usada apropriadamente; a arte de viver oriental
refinando a energia ocidental; o individualismo ocidental temperando
o totalitarismo oriental.” Ele balança a cabeça em pio horror. “Ora,
teria sido o reino do céu. Felizmente a graça de Belial era mais forte
do que a graça d’Aquele Outro.”
Ele cacareja esganiçadamente; então, pousando uma mão no
ombro do doutor Poole, começa a caminhar com ele rumo à sacristia.
“Sabe, Poole”, diz ele, “acabei me afeiçoando muito a você.”
O doutor Poole balbucia seus embaraçados reconhecimentos.
“Você é inteligente, bem-educado, sabe todo tipo de coisas que
nós nunca aprendemos. Você me poderia ser muito útil e, de meu
lado, eu lhe poderia ser muito útil, quer dizer”, acrescenta ele, “isso
se você se tornar um de nós.”
“Um de vocês?”, repete duvidosamente o doutor Poole.
“Sim, um de nós.”
A compreensão desponta num expressivo close-up no rosto do
doutor Poole. Ele solta um consternado “Oh!”.
“Não irei esconder de você”, diz o Arquivigário, “que a cirurgia
envolvida não seja inteiramente indolor, nem totalmente sem perigos.
Mas as vantagens que se obtém ao entrar no sacerdócio seriam tão
grandes que compensariam qualquer trivial risco ou desconforto.
Tampouco devemos nos esquecer...”
“Mas, Sua Eminência...”, protesta o doutor Poole.
O Arquivigário ergue uma mão roliça, úmida.
“Um momento, por favor”, diz ele severamente.
Sua expressão é tão proibitiva que o Poole apressa uma
desculpa.
“Perdão.”
“Concedido, meu caro Poole, concedido.”
O Arquivigário volta às amabilidades e à condescendência.
“Bem, como eu estava dizendo”, continua ele, “não devemos nos
esquecer de que, se você se submetesse ao que eu diria ser uma
conversão fisiológica, você seria libertado de todas as tentações a
que, como um macho não mutante, seria muito certamente exposto.”
“Certo, certo”, concorda o doutor Poole. “Mas posso lhe
garantir...”
“Onde quer que tentações estejam em jogo”, diz o Arquivigário
sentenciosamente, “ninguém pode garantir nada a ninguém.”
O doutor Poole recorda sua recente entrevista com Loola no
cemitério e sente-se corar.
“Não seria essa uma declaração ampla demais?”, diz ele, sem
muita convicção.
O Arquivigário balança a cabeça.
“Nesses assuntos”, diz ele, “nunca se pode ser amplo demais. E
deixe-me lembrá-lo do que acontece àqueles que sucumbem a tais
tentações. Os vergalhos e o pelotão de sepultamento estão sempre
de prontidão. E é por isso que, para seu próprio interesse, para sua
futura felicidade e paz de espírito, eu lhe aconselho (ou melhor, eu
suplico e imploro) a entrar em nossa Ordem.”
Há um silêncio. O doutor Poole engole em seco.
“Eu gostaria de poder pensar sobre isso”, diz ele por fim.
“É claro, é claro”, concorda o Arquivigário. “Não tenha pressa.
Leve uma semana.”
“Uma semana? Não acho que consigo decidir numa semana.”
“Leve duas semanas”, diz o Arquivigário, e quando o doutor
Poole ainda balança a cabeça: “Leve quatro”, acrescenta, “leve seis,
se quiser. Não estou com pressa. Apenas me preocupo com você.”
Ele dá tapinhas no ombro do doutor Poole. “Sim, meu caro amigo,
com você.”
Dissolve para o doutor Poole trabalhando em seu jardim
experimental, plantando mudas de tomate. Quase seis semanas se
passaram. Sua barba marrom está consideravelmente mais
exuberante, seu casaco de tweed e suas calças de flanela
consideravelmente mais sujas do que quando o vimos da última vez.
Ele veste uma camisa de tecido caseiro cinza e mocassins de
manufatura local.
Quando a última de suas mudas está na terra, ele se endireita,
se estica, esfrega as costas doloridas, então caminha lentamente até
a extremidade do jardim e queda-se lá imóvel, olhando para a vista.
Num plano geral vemos, como se fosse segundo seus olhos, um
vasto panorama de fábricas abandonadas e casas esboroadas,
escoradas à distância por uma extensão de montanhas que
retrocedem, dobra após dobra, rumo ao leste. As sombras são golfos
de índigo, e nas luzes ricamente douradas os detalhes remotos
destacam-se distintos e pequenos e perfeitos, como a imagem das
coisas num espelho convexo. No primeiro plano, delicadamente
gravada e pontilhada pela luz quase horizontal, até mesmo os mais
calvos remendos de terra ressequida revelam uma insuspeitada
suntuosidade de texturas.
NARRADOR

Há tempos, e este é um deles, em que o mundo parece


propositalmente belo, como se algum espírito nas coisas houvesse
subitamente escolhido tornar manifesta, para todos aqueles que
escolhem ver, a sobrenatural realidade que subjaz a todas as
aparências.

Os lábios do doutor Poole se movem e captamos o baixo murmúrio


de suas palavras:

Para o amor e a beleza e o prazer


Não há morte nem mudança; seu poder
Excede nossos órgãos, que não suportam
Luz alguma, sendo que os mesmos se turvam.[21]

Ele se vira e se dirige à entrada do jardim. Antes de abrir o


portão, olha cautelosamente ao redor. Não há sinal de um
observador inamistoso. Tranquilizado, ele desliza e quase que
imediatamente dobra num tortuoso caminho entre dunas de areia.
Uma vez mais seus lábios se movem:

Sou a Terra,
Tua mãe; aquela em cujas pétreas veias
Até a última fibra da mais majestosa árvore,
Cujas finas folhas tremularam no gélido ar,
Alegria correu, tal qual sangue em vívida carcaça,
Quando tu fizeste do peito dela, como uma nuvem
De glória, surgir um espírito de aguda alegria.[22]

Vindo do atalho o doutor Poole emerge numa rua flanqueada por


casinhas, cada uma com sua garagem e cada uma cercada pelo
árido espaço que uma vez fora um lote de grama e flores.
“‘Um espírito de aguda alegria’”, repete ele, e então suspira e
balança a cabeça.

NARRADOR

Alegria? Mas a alegria foi assassinada há muito tempo. Tudo o que


sobrevive é o riso dos demônios nos pelourinhos, o uivo dos
possuídos quando copulam nas trevas. A alegria é apenas para
aqueles cuja vida coaduna com a dada Ordem do mundo. Para
vocês aí, os espertinhos que pensam poder melhorar essa Ordem,
para vocês, os irados, os revoltosos, os desobedientes, a alegria
está rapidamente se transformando numa estranha. Aqueles que
estão condenados a colher as consequências de seus fantásticos
truques nunca chegarão a suspeitar de sua existência. Amor, Alegria
e Paz — esses são os frutos do espírito que é a essência de vocês e
a essência do mundo. Mas os frutos da mente símia, os frutos da
presunção e da revolta do macaco, são o ódio e a incessante
inquietação e a crônica miséria temperada apenas por delírios mais
horríveis do que a própria.

O doutor Poole, entrementes, segue seu caminho.

“O mundo está cheio de lenhadores”, diz ele para si, “O mundo está
cheio de lenhadores, que expulsam/ As dóceis dríades do amor das
árvores da vida/ E em toda toca os rouxinóis molestam.”[23]

NARRADOR

Lenhadores com machados, assassinos de dríades com facas,


molestadores de rouxinóis com escalpelos e tesouras cirúrgicas.

O doutor Poole estremece e, como um homem que se sente


perseguido por alguma malévola presença, apressa o passo.
Subitamente ele estaca e uma vez mais olha em volta.

NARRADOR

Numa cidade de dois milhões e meio de esqueletos, a presença de


alguns milhares de vivos é dificilmente perceptível. Nada se mexe. O
silêncio é total e, em meio a todas essas ruinazinhas burguesas
aconchegantes, parece consciente e, de certa maneira,
conspiratório.

Com a pulsação acelerada pela esperança e pelo medo da


decepção, o doutor Poole se afasta da estrada e apressa-se pela rua
que leva à garagem do Número 1993. Vergando-se em suas dobradiças
enferrujadas, as portas duplas encontram-se entreabertas. Ele
desliza por entre elas para dentro de uma bolorenta penumbra.
Através de um buraco na parede ocidental da garagem um fino feixe
de luz solar da tardezinha revela a roda dianteira esquerda de um
Super de Luxe Chevrolet Sedan de quatro portas e, no chão, ao lado
dele, dois crânios, um de adulto, o outro evidentemente de criança. O
doutor Poole abre a única das quatro portas que não está emperrada
e espreita a escuridão lá dentro.
“Loola!”
Ele entra no carro, senta-se ao lado dela no desintegrado
estofamento do banco traseiro e toma-lhe a mão nas suas.
“Querida!”
Ela olha para ele sem falar. Em seus olhos há uma expressão
quase de terror.
“Então você conseguiu fugir, afinal de contas?”
“Mas Flossie ainda suspeita de algo.”
“Maldita Flossie!”, diz o doutor Poole num tom que se pretende
despreocupado e tranquilizador.
“Ela ficava fazendo perguntas”, prossegue Loola. “Eu contei a
ela que estava indo saquear agulhas e talheres.”
“Mas tudo que você encontrou foi eu.”
Ele sorri para ela ternamente e leva-lhe a mão aos próprios
lábios; mas Loola balança a cabeça.
“Alfie... por favor!”
Seu tom é uma súplica. Ele abaixa-lhe a mão sem beijá-la.
“Mas ainda assim você me ama, não ama?”
Ela olha para ele com olhos arregalados com um assustado
aturdimento, então se vira.
“Eu não sei, Alfie. Eu não sei.”
“Bem, eu sei”, diz o doutor Poole decididamente. “Eu sei que te
amo. Eu sei que quero estar com você. Sempre. Até que a morte nos
separe”, acrescenta com todo o fervor de um introvertido sexualista
subitamente convertido à objetividade e à monogamia.
Loola balança a cabeça de novo.
“Tudo que sei é que eu não devia estar aqui.”
“Mas isso é um disparate!”
“Não, não é. Eu não devia estar aqui agora. Eu não devia ter
vindo daquelas outras vezes. É contra a Lei. É contra tudo que o
povo acredita. É contra Ele”, acrescenta ela após uma pausa de
instantes. Uma expressão de agônico nervosismo aparece em seu
rosto. “Contudo, por que Ele me fez de forma que eu pudesse me
sentir assim em relação a você? Por que Ele me fez como aqueles...
como aqueles...?”, ela não consegue se forçar a proferir a
abominável palavra. “Eu conheci um deles”, continua ela em voz
baixa. “Ele era doce... quase tão doce quanto você. E então eles o
mataram.”
“Qual a vantagem de ficar pensando em outras pessoas?”, diz o
doutor Poole. “Pensemos em nós. Pensemos em quão felizes
poderíamos ser, em quão felizes nós realmente fomos, dois meses
atrás. Você se lembra? O luar... E como estava escuro nas sombras!
‘E na alma sente-se um odor agreste além dos sentidos...’!”
“Mas na época não estávamos agindo errado.”
“Não estamos agindo errado agora.”
“Não, não, é bem diferente agora.”
“Não é diferente”, insiste ele. “Eu não sinto nada diferente do
que sentia então. E nem você.”
“Eu sinto”, protesta ela, alto demais para transmitir convicção.
“Não, você não sente.”
“Eu sinto.”
“Não sente. Você acabou de dizer. Você não é como aquelas
outras pessoas, graças a Deus!”
“Alfie!”
Ela faz um propiciatório sinal de chifres.
“Elas foram transformadas em animais”, continua ele. “Você,
não. Você ainda é um ser humano, um ser humano normal com
sentimentos humanos normais.”
“Não sou.”
“Sim, você é.”
“Não é verdade”, lamuria ela. “Não é verdade.”
Ela cobre o rosto com as mãos e começa a chorar.
“Ele vai me matar”, soluça ela.
“Quem vai te matar?”
Loola soergue a cabeça e olha apreensiva sobre o ombro,
através da janela traseira do carro.
“Ele vai. Ele sabe tudo que fazemos, até mesmo tudo que
pensamos ou sentimos.”
“Talvez Ele saiba”, diz o doutor Poole, cujas ideias liberais-
protestantes sobre o Diabo foram consideravelmente modificadas
durante as últimas semanas. “Mas se sentirmos e pensarmos e
fizermos a coisa certa... Ele não poderá nos ferir.”
“Mas o que é a coisa certa?”, pergunta ela.
Por um segundo ou dois, ele sorri para ela, sem falar.
“Aqui e agora”, diz ele por fim, “a coisa certa é isso.”
Ele desliza um braço sobre os ombros dela e a atrai para perto
de si.
“Não, Alfie, não!”
Acometida de pânico, ela tenta se libertar; mas ele a segura
firme.
“Esta é a coisa certa”, repete ele. “Pode não ser sempre e em
todo lugar a coisa certa. Mas aqui e agora é, definitivamente.”
Ele fala com a força e autoridade da convicção completa. Nunca
em toda sua incerta e dividida vida ele pensara tão claramente e
agira tão decididamente.
Loola de súbito afrouxa sua resistência.
“Alfie, você está certo de que está tudo bem? Está
absolutamente certo?”
“Absolutamente certo”, responde ele das profundezas de sua
nova e autovalidada experiência. Muito gentilmente ele afaga os
cabelos dela.
“‘Uma forma mortal’”, sussurra ele, “‘dotada de amor e vida e luz
e deidade. Uma Metáfora da Primavera e Juventude e Manhã, uma
Visão tal como Abril encarnado.’”
“Continue”, sussurra ela.
Suas pálpebras estão fechadas, seu rosto traz aquela aparência
de sobrenatural serenidade que se vê no rosto dos mortos.
O doutor Poole principia de novo:

E falaremos, até a melodia do pensar


Tornar-se doce demais para proferir, e expirar
Em palavras para renascer em olhares, que ferroam
O mudo coração com elétricos tons que ressoam,
Harmonizando silêncio sem nenhum soprar.
Nosso hálito há de se misturar, nosso peito se atar
E nossas veias juntas pulsar, e nossas bocas beijar
Com eloquência outra que palavras, eclipsar
A alma que queima entre eles, e os mananciais
Que fervem sob as nossas células mais viscerais,
As fontes de nossa mais funda vida, ficarão
Confusas na dourada pureza da Paixão;
Como nascentes de montanhas ao sol diurno,
Tornar-nos-emos a mesma coisa, o uno
Espírito dentro de duas carcaças, oh! para que duas?[24]

Há um longo silêncio. Subitamente Loola abre os olhos, fita-o


intensamente por alguns segundos, então joga os braços ao redor do
seu pescoço e beija-o apaixonadamente na boca. Mas quando ele
tenta encerrá-la mais estreitamente, ela se desvencilha dele e recua
para sua extremidade no assento.
Ele tenta se aproximar, mas ela o detém à distância de um
braço.
“Não pode estar certo”, diz ela.
“Mas está certo.”
Ela balança a cabeça.
“É bom demais para ser certo, eu ficaria feliz demais se fosse.
Ele não quer que sejamos felizes.” Há uma pausa. “Por que você diz
que Ele não pode nos ferir?”
“Porque há algo mais forte do que Ele.”
“Algo mais forte?” Ela balança a cabeça. “Foi contra isso que Ele
sempre lutou... e Ele venceu.”
“Só porque as pessoas O ajudaram a vencer. Mas elas não
precisam ajudá-Lo. E, lembre-se, Ele não pode vencer sempre.”
“Por que não?”
“Porque Ele não poderá sempre resistir à tentação de levar o
mal até o limite. E sempre que o mal é levado até o limite, ele se
destrói. Após o que a Ordem das Coisas volta de novo à superfície.”
“Mas isso está muito longe no futuro.”
“Para o mundo todo, sim. Mas não para meros indivíduos, não
para mim e você, por exemplo. O que quer que Belial possa ter feito
com o resto do mundo, eu e você podemos sempre trabalhar com a
Ordem das Coisas, não contra ela.”
Faz-se outro silêncio.
“Não acho que entendo o que você quer dizer”, diz ela por fim,
“e eu não me importo.” Ela se move de novo em direção a ele e
encosta a cabeça no seu ombro. “Eu não me importo com nada”,
continua ela. “Ele pode me matar se Ele quiser. Não tem importância.
Não agora.”
Ela ergue o rosto em direção ao dele e, quando ele se inclina
para beijá-la, a imagem na tela funde para a escuridão de uma noite
sem luar.

NARRADOR

L’ombre était nuptiale, auguste et solennelle. Mas dessa vez é uma


escuridão nupcial cuja solenidade é desfigurada não por miados, por
“Liebestods”, por saxofones suplicando detumescência. A música
com a qual essa noite é saturada é límpida, mas não descritiva;
precisa e definida, mas trata de realidades inominadas; é
abrangentemente líquida, mas nunca viscosa, sem a menor
tendência a aderir possessivamente (como o sangue ou o esperma,
como o melaço ou o excremento) àquilo que toca e compreende.
Uma música com o espírito de Mozart, delicadamente jovial em meio
às constantes implicações da tragédia; uma música aparentada à de
Weber, aristocrática e refinada, e ainda assim capaz da mais
estouvada alegria e do mais completo entendimento da agonia do
mundo. E acaso haveria aí uma sugestão daquilo que, na “Ave
Verum Corpus”, no Quinteto em Sol maior, reside além do mundo de
Don Giovanni? Haveria já aí uma sugestão do que (em Bach, às
vezes, e em Beethoven, naquela unidade última da arte que é
análoga à santidade) transcende a romântica integração do trágico e
do alegre, do humano e do demoníaco? E quando, nas trevas, a voz
do amante sussurra de novo sobre

uma forma mortal dotada


De amor e vida e luz e deidade,

haveria já aí o começo de um entendimento de que mais além do


Epipsychidion há o Adonais, e além do Adonais a muda doutrina dos
Puros de Coração?

Dissolve para o laboratório do doutor Poole. A luz do sol emana


através das altas janelas e é deslumbrantemente refletida pelo
tambor de aço inoxidável do microscópio até a mesa de trabalho. A
sala está vazia.
De repente o silêncio é rompido pelo som de passos se
aproximando; a porta é aberta e, ainda um mordomo em mocassins,
o Diretor de Produção de Alimentos espia lá dentro.
“Poole”, principia ele, “Sua Eminência veio para...”
Ele se detém e uma expressão de aturdimento surge em seu
rosto.
“Ele não está aqui”, diz ele ao Arquivigário, que agora o segue
sala adentro.
O grande homem volta-se para os dois Fâmulos de sua
companhia.
“Vão ver se o doutor Poole está no jardim experimental”, ordena.
Os Fâmulos fazem-lhe uma mesura, guincham um “Sim, Sua
Eminência” em uníssono e saem.
O Arquivigário senta-se e graciosamente gesticula ao Diretor
para que siga seu exemplo.
“Não acho que lhe contei”, diz ele; “estou tentando convencer
esse nosso amigo a entrar para a religião.”
“Espero que Sua Eminência não pretenda nos privar de sua
inestimável ajuda no campo da produção de alimentos”, diz o Diretor
ansiosamente.
O Arquivigário o tranquiliza.
“Vou providenciar para que ele sempre tenha tempo para lhe dar
os conselhos de que precisa. Mas enquanto isso quero garantir que
a Igreja se beneficie dos talentos dele e...”
Os Fâmulos reingressam na sala e fazem-lhe uma mesura.
“E então?”
“Ele não está no jardim, Sua Eminência.”
O Arquivigário franze o cenho furiosamente para o Diretor, que
se intimida ante seu olhar.
“Você não disse que hoje é o dia que ele trabalha no
laboratório?”
“E é, Sua Eminência.”
“Então por que ele saiu?”
“Não consigo imaginar, Sua Eminência. Nunca o vi mudar a
agenda sem falar comigo.”
Há um silêncio.
“Não estou gostando disso”, diz o Arquivigário por fim. “Não
estou gostando nem um pouco disso.” Ele se volta para seus
Fâmulos. “Corram de volta ao Quartel-General e peçam meia dúzia
de homens a cavalo para procurá-lo.”
Os Fâmulos fazem-lhe uma mesura, guincham simultaneamente
e desaparecem.
“E quanto a você”, diz o Arquivigário, voltando-se para a pálida e
abjeta figura do Diretor, “caso algo tenha acontecido, você terá que
responder por isso.”
Ele se levanta em majestosa cólera e marcha impassível até a
porta.
Dissolve para uma série de tomadas editadas.
Loola com sua bolsa de couro e o doutor Poole com uma
mochila do exército pré-Coisa nas costas estão escalando um
deslizamento de terra que bloqueia uma daquelas soberbamente
projetadas rodovias cujos despojos ainda cicatrizam os flancos das
montanhas San Gabriel.
Cortamos para um cume varrido pelo vento. Os dois fugitivos
estão contemplando a enorme extensão de terra do deserto de
Mojave logo abaixo.
Depois encontramo-nos num pinheiral na encosta norte da
cordilheira. É de noite. Num trecho de luar entre as árvores, o doutor
Poole e Loola jazem adormecendo sob o mesmo cobertor de tecido
caseiro.
Corta para um cânion rochoso, no fundo do qual corre um
riacho. Os amantes fizeram uma parada para beber e encher seus
cantis.
E agora estamos nos sopés acima do leito do deserto. Entre as
moitas de sálvia, as iúcas e os arbustos de juníperos a caminhada é
fácil. O doutor Poole e Loola entram no quadro, e a Câmera os
acompanha à medida que descem a encosta.
“Seus pés estão doloridos?”, pergunta ele solicitamente.
“Não tanto.”
Ela lhe dá um sorriso corajoso e balança a cabeça.
“Acho que é melhor pararmos em breve e comer algo.”
“Como achar melhor, Alfie.”
Ele tira um velho mapa do bolso e o estuda enquanto caminha.
“Ainda estamos a uns bons quarenta quilômetros de Lancaster”,
diz ele. “Oito horas de caminhada. Temos que manter nossa
energia.”
“E quão longe chegaremos amanhã?”, pergunta Loola.
“Um pouco além do Mojave. E depois disso calculo que
levaremos pelo menos dois dias para cruzar as Tehachapis e chegar
a Bakersfield.” Ele devolve o mapa ao bolso. “Consegui obter um
bocado de informação do Diretor”, continua ele. “Ele diz que essas
pessoas do norte são muito amistosas com os fugitivos do Sul da
Califórnia. Não delatam nem mesmo quando o governo os interroga
oficialmente.”
“Graças a Bel... digo, graças a Deus”, diz Loola.
Há outro silêncio. Subitamente Loola estaca.
“Veja! O que é aquilo?”
Ela aponta, e do ponto de vista deles vemos ao pé de uma
altíssima árvore-de-josué uma prancha de concreto gasto, postada
obliquamente à cabeceira de uma antiga sepultura, coberta de
capim-de-touceira e trigo sarraceno.
“Alguém deve ter sido enterrado aqui”, diz o doutor Poole.
Eles se aproximam, e num close na prancha vemos, enquanto a
voz do doutor Poole lê em voz alta, a seguinte inscrição:
WILLIAM TALLIS
1882-1948

Ó meu coração, por que encolher, voltar, tardar?


Tuas quimeras há muito se foram: de tudo aqui
Elas já renunciaram, tu deves agora renunciar![25]

Corta de volta para os dois amantes.


“Ele deve ter sido um homem muito triste”, diz Loola.
“Talvez não tão triste quanto você imagina”, diz o doutor Poole,
enquanto desprende a pesada mochila e senta-se ao lado da
sepultura.
E enquanto Loola abre sua bolsa e dela pega pão, frutas, ovos e
tiras de carne seca, ele folheia as páginas de seu in-duodecimo de
Shelley.
“Achei”, diz ele por fim. “É de fato a estrofe seguinte à que está
citada aqui:

Aquela Luz cujo sorriso aquece o Universo,


Aquela Beleza em que tudo opera desimpedido
Aquela Bendição, que o eclipsante Adverso
Do nascimento não extingue, aquele Amor sustido,
Que pelo enredo da existência cegamente urdido
Pelo homem e a terra e o ar e o mar e a fera bravia
Arde vivo ou fraco, dado que são espelhos
Do fogo a que todos anseiam, ora em mim irradia
E consome as últimas brumas de mortalidade fria.”[26]

Há um silêncio. Então Loola lhe entrega um ovo cozido. Ele o


quebra na lápide e, à medida que o descasca, espalha os brancos
fragmentos da casca sobre a sepultura.
Notas

1. A tirinha cômica de Rudolph Dirks, cujo título traduzido no Brasil à época nada tinha
de germânico (Os sobrinhos do capitão), retratava as diabruras de dois meninos
alemães de sotaque estereotipado. (Todas as notas deste livro são do tradutor.)

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2. Em alemão, no original: “profundo”.

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3. Em francês, no original: “A bela americana/ Que deixa os homens loucos/ Em duas


ou três semanas/ Partirá para Corfu” (trad. literal). Estrofe do poema “Le Los du
Douanier”, de Guillaume Apollinaire, publicado na revista vanguardista alemã Der
Sturm, n. 7, julho de 1914.

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4. Horatio Nelson (1758-1805), audacioso almirante inglês célebre pela vitória contra
Napoleão na batalha naval de Trafalgar, na qual pereceu.

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5. Salmos 115,6.

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6. Físico e químico britânico, Faraday (1791-1867) ficou conhecido principalmente por


suas contribuições ao estudo do eletromagnetismo, como demonstrado pelo célebre
experimento da “gaiola de Faraday”.

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7. Canção patriótica britânica composta por A. C. Benson (1862-1925) e musicada por


Edward Elgar (1857-1934).

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8. Entre os tiranos citados, encontram-se os hoje não tão célebres Azzolino III da
Romano (1194-1259), governante de Pádua, a quem Dante encontra no Inferno em A
divina comédia (Canto XII, verso 110); e Jay Gould (1836-1892), falsário do mercado
acionista de linhas ferroviárias, uma vez apelidado “o Mefistófeles de Wall Street”. Já
NKVD é a abreviação de Narodny Komissariat Vnutrennik Del, ou Comissariado do Povo

para Assuntos Internos, órgão responsável, durante o governo soviético russo, pela
implantação de políticas repressivas contra dissidentes políticos.

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9. O NKVD já nos foi apresentado por Huxley (ver nota 8), mas não Oakridge, cidade no
Tennessee onde em 1942 implantou-se a base de pesquisas científicas que produziria
a bomba atômica.

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10. Em escocês antigo, no original: “E pela bela Annie Laurie eu me deitaria e


morreria” (trad. literal).

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11. Poema de Lord Alfred Tennyson (1809-1892), autor cujo nome a Mãe do doutor
Poole teria homenageado ao batizar o filho.

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12. “Liebestod” (“a morte no amor”) é a última canção da ópera Tristão e Isolda, de
Richard Wagner.

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13. Em francês, no original: “A mulher eterna sempre nos cria. A mulher eterna
sempre...”.

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14. Kulak ou cúlaque: termo pejorativo usado na União Soviética para designar
fazendeiros emergentes que, por terem mais posses que seus antigos colegas
camponeses, eram malquistos e taxados pelo governo.

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15. Protagonista do romance de mesmo nome, escrito por Sinclair Lewis (1885-1951),
típico exemplo de homem comum que adere impensadamente aos ideais da classe
média.

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16. Mais uma ópera de Wagner.

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17. Em francês, no original: “A sombra era nupcial/ Augusta e solene”.

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18. Romance de Kathleen Winsor condenado pela patrulha dos “bons costumes” dos
Estados Unidos. Um ano antes da publicação deste livro de Huxley, no entanto, o livro
fora adaptado às telas pelo cineasta Otto Preminger.

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19. “Warm fragrance seems to fall from her light dress/ And her loose hair; and where
some heavy tress/ The air of her own speed has disentwined,/ The sweetness seems
to satiate the faint wind;/ And in the soul a wild odor is felt/ Beyond the sense, like fiery
dews that melt/ Into the bosom of a frozen bud.” Percy Bysshe Shelley, Epipsychidion,
versos 105-111.

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20. “See where she stands, a mortal shape indued/ With love and life and light and
deity,/ And motion which may change, but never die,/ An image of some bright
Eternity,/ A shadow of some golden dream, a Splendor/ Leaving the third sphere
pilotless; a tender/ Reflection of the eternal Moon of Love…”

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21. “For love and beauty and delight/ There is no death nor change; their might/
Exceeds our organs, which endure/ No light, being themselves obscure.” Shelley, The
Sensitive Plant, versos 134-137.

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22. “I am the Earth,/ Thy mother; she within whose stony veins/ To the last fiber of the
loftiest tree,/ Whose thin leaves trembled in the frozen air,/ Joy ran, as blood within a
living frame,/ When thou didst from her bosom, like a cloud/ Of glory, arise, a spirit of
keen joy.” Shelley, Prometheus Unbound, versos 152-158.

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23. “The world is full of woodmen, who expel/ Love’s gentle dryads from the trees of
life/ And vex the nightingales in every dell.” Shelley, From the Woodman and the
Nightingale, última estrofe.

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24. “And we will talk, until thought’s melody/ Become too sweet for utterance, and it
die/ In words, to live again in looks, which dart/ With thrilling tone into the voiceless
heart,/ Harmonizing silence without a sound./ Our breath shall intermix, our bosoms
bound/ And our veins beat together, and our lips/ With other eloquence than words,
eclipse/ The soul that burns between them, and the wells/ Which boil under our being’s
inmost cells,/ The fountains of our deepest life, shall be/ Confused in Passion’s golden
purity;/ As mountain springs under the morning sun,/ We shall become the same, we
shall be one/ Spirit within two frames, oh! wherefore two?”

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25. “Why linger, why turn back, why shrink, my Heart?/ Thy hopes are gone before:
from all things here/ They have departed, thou shouldst now depart!” Shelley, Adonais,
início do canto LIII.

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26. “That Light whose smile kindles the Universe,/ That Beauty in which all things work
and move/ That Benediction, which the eclipsing Curse/ Of birth can quench not, that
sustaining Love,/ Which through the web of being blindly wove/ By man and beast and
earth and air and sea,/ Burns bright or dim, as each are mirrors of/ The fire for which
all thirst, now beams on me/ Consuming the last clouds of cold mortality.”

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Sobre o autor

Aldous Leonard Huxley nasceu em 26 de julho de 1894 no condado


de Surrey, na Inglaterra. Em 1932 publicou o clássico Admirável
mundo novo, e, em 1954 narrou suas experiências com mescalina
em As portas da percepção. Huxley morreu em 22 de novembro de
1963. Além dos livros citados, a Biblioteca Azul publica também A
situação humana, Sem olhos em Gaza, Contraponto, Contos
escolhidos, entre outros.
Copyright desta edição © 1948 by Laura Huxley
Copyright da tradução © 2017 by Editora Globo S.A.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia,
gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da editora.

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995).

Título original: The Ape and the Essence

Editora responsável: Juliana de Araujo Rodrigues


Editora assistente: Erika Nogueira
Revisão: Tomoe Moroizumi e Huendel Viana
Diagramação: Jussara Fino
Capa: Thiago Lacaz
Imagem da capa: Duncan1890 / Getty Images
Foto do autor: CBS Photo Archive / Getty Images

Editora de livros digitais: Lívia Furtado


Conversão para e-book: Joana De Conti
Revisão do e-book: Maria Marta Cursino

1ª edição impressa, 1950


2ª edição impressa, 1987
3ª edição impressa, 2004
4ª edição impressa, 2017

1ª edição digital, outubro de 2017


ISBN: 978-85-250-6557-5 (digital)
ISBN: 978-85-250-6028-0 (impresso)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
H989m

Huxley, Aldous, 1894-1963


O macaco e a essência [recurso eletrônico] / Aldous Huxley; tradução Fábio Bonillo. 1. ed. – São Paulo: Biblioteca Azul, 2017.
recurso digital

Tradução de: The Ape and the Essence


Formato: ebook
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: world wide web
ISBN 9788525065575 (recurso eletrônico)

1. Romance inglês. 2. Livros eletrônicos. I. Bonillo, Fábio. II. Título.


17-45474 CDD: 823
CDU: 821.111-3

18/10/2017 19/10/2017

Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S.A.
Av. Nove de Julho, 5.229
São Paulo — 01407-907 — SP
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Folha de rosto
Sumário
I. Tallis
II. O roteiro
Notas
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Créditos

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