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outubro/2021
Temática
A derrisão da esfera

NOTAS DE Heloisa Marcon

LEITURA DO Vamos – eu e Cleuza Bueno – tentar não ser esféricas.

SEMINÁRIO A Essa é uma lição, “A derrisão da esfera”, como disse a Cleuza quando conversamos, complexa. Embora, dessa
vez, na primeira leitura, não tenha parecido assim, imediatamente, para mim. E então fiquei me perguntando o
TRANSFERÊNCIA porquê dessa discrepância.

Uma primeira resposta me veio: talvez porque o que ficou para mim foram os três registros, como se Lacan
estivesse de algum modo tentando articular Real, Simbólico e Imaginário.

Então, tomaremos a alegoria de Aristófanes, de que vou trazer um fragmento adiante: Real, Simbólico e
Sumário Editorial
Imaginário do corpo.

Mas depois, também por causa da alegoria, o que me ficou como fio lógico dessa lição é a pregnância do
Imaginário, a forma como ele impregna, “contamina” os outros registros. Lacan começa falando da teoria e da
Temática Debates práxis, e depois da episteme (que ele toma como sinônimo de ciência, ao que parece), o que nos levaria a
pensar no Simbólico. E, sim, precisamente Simbólico enquanto a rede de significantes que tenta ler de algum
modo alguma coisa do Real. Mas o que acompanhamos na fala de Lacan a partir da ideia da esfera e
posteriormente sobre o movimento circular, e também na alegoria, é justamente o modo como algo da
estrutura do Imaginário transborda para os outros registros.

“Ora, a ilustração incidental disso que nos é dada sob a pena de Platão, que se pode também chamar de poeta,
não nos mostra que o que está em questão, nessas formas onde nada se prolonga e se deixa pegar, tem seus
fundamentos na estrutura imaginária?” (Lacan, 1960-1961/2010, p.122-123)

Então, como essa ideia da esfera – “(...) definida como a forma que porta em si as virtudes da suficiência”
(ibidem, p.119) – aparece na história do pensamento? Ele vai falar aqui da física, nessa repetição da leitura do
movimento dos astros sempre como um movimento circular. E, então, sublinha, por exemplo, que, mesmo
Kepler tendo feito a descoberta de que as órbitas planetárias são elipses, isso não foi levado em conta na
história do pensamento posterior a Kepler: “Estão vendo o tempo que levam as verdades para abrir seus
caminhos, diante de um preconceito tão sólido como a perfeição do movimento circular” (ibidem, p.121).

Lembra do Eros e Thanatos freudiano como de algum modo também impregnado dessa circularidade perfeita
na medida em que Eros, o amor, é ali “potência unificante pura e simples” (ibidem, p.118), e que teríamos a
ambivalência amor-ódio, mais fecunda que Eros e Thanatos para pensarmos melhor essa questão.

Acompanhemos um fragmento da alegoria trazida por Aristófanes, no Banquete de Platão, que nos possibilita
sentir algo do que está sendo iluminado por Lacan nessa lição:

Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três
eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a
mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome; andrógino era então um gênero
distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada
mais é que um nome posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso
redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos
sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao
outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E
quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas
quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para cima
fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se
locomoviam em círculo. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de
início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem
de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhante
genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham;
mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a
tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses. Zeus então e os demais deuses
puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los
e após fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça – pois as honras e os templos que
lhes vinham dos homens desapareceriam – nem permitir-lhes que continuassem na impiedade. Depois de
laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas
parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei cada um em
dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem
tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não
quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles
andarão, saltitando.” Logo que o disse pôs-se a cortar os homens em dois, como os que cortam as sorvas
para a conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-
lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação,
fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e
repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam,
ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras
pregas, numerosas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos
sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à
volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição. Por conseguinte, desde que a
nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-
se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em
geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a
que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era
mulher – o que agora chamamos mulher – quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado
de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente – pois até então eles o
tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras; pondo assim o
sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea,
pelo seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo
gerassem e se fosse constituindo a raça, mas se fosse um homem com um homem, que pelo menos
houvesse saciedade em seu convívio e pudessem repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida.
É então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da antiga
natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana. (Platão, 1972, p.28-29-30)

O que Lacan nos traz, no final dessa lição, a partir dessa alegoria é a castração. Na alegoria estando situada
nos genitais, quer dizer no corte real, momento em que Lacan ainda brinca ser como o pequeno Hans,
aparafusando os genitais na frente agora. E como é difícil a castração, tanto que Zeus fala que, se for preciso,
vai cortar os humanos de novo em dois.

A castração como efeito da incidência do significante na relação do sexo - Simbólico, portanto. Lacan faz
referência a um apaziguamento amoroso a partir da castração, ou seja, que a partir dali começa a existir para
uma pessoa o Impossível (Real) da relação sexual ou o Impossível da complementaridade - o que, obviamente,
apazigua. Quer dizer, a possibilidade da não tentativa de fazer de dois, um, embora o estádio do espelho nos
lembre que esse nó de servidão imaginária sempre ronda e fica completamente evidente nas paixões e, claro,
na transferência, no amor de transferência isso também está posto, o que aparece aqui como a fascinação da
forma esférica à qual se adere para (ou por) forcluir a castração.

Fica ressoando ainda a questão de por que Lacan insiste em que os deuses são do Real, o que ele já tinha
afirmado em outra lição, embora agora situe isso como fazendo parte do delírio de Sócrates, a saber, que
Sócrates obedece ao oráculo de Delfos, que disse que ele era o maior filósofo, e então ele faz tudo – inclusive
morrer – para que isso seja verdade. Nessa posição de Sócrates, aparece a operação em cima da qual está
assentado todo edifício da filosofia ocidental, desde Platão e Aristóteles: situar toda a verdade dentro da
1
proposição, ou do Simbólico.

Por último, destaco ainda que Lacan afirma que o que é mais próprio do amor para nós modernos é o que
aparece na alegoria na boca de Aristófanes, que é um bufão e, além de tudo, obsceno. O cômico, o ridículo,
clownesco está em que, em outro texto, Platão apresenta a sua própria ideia da esfera; então aqui, através do
Aristófanes, é como se Platão estivesse tirando sarro dele mesmo e, por tabela, hoje, de nós, dessa nossa ideia
de amor.

Referências bibliográficas:

Lacan, Jacques. (1960-1961) O Seminário. Livro 8 – A transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Platão. O Banquete. In: Os Pensadores, Vol. III. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

Heloisa Marcon é psicanalista, membro da APPOA, Mestre em Filosofia/UFRGS, Doutora em Psicologia/USP,


Pesquisadora do LAPCIP/UFSC.

1 A verdade reduzida à verdade proposicional foi apontada por Heidegger e trabalhada por mim em um
subcapítulo na tese de doutorado intitulada “Quando o sujeito descompleta o universal”, que pode ser
encontrada no repositório de teses da USP.
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