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Scott Mariani
Portugal — Planeta
Um antigo membro da elite do SAS, Ben Hope torturado por uma
tragédia ocorrida no passado dedica a sua vida a salvar crianças
raptadas.
Um dia Ben é contactado por um milionário com o objectivo de
encontrar um manuscrito antigo que pode salvar a vida de uma
criança moribunda. Ao aceitar, Ben não suspeita que esta demanda
será a mais mortífera da sua vida.
O documento contém alegadamente a fórmula do elixir da vida,
descoberta feita pelo brilhante e misterioso alquimista francês
Fulcanelli. Mas cedo se torna evidente que outros procuram este
precioso tesouro para ser usado em proveito próprio.
Ben vai fazendo descobertas surpreendentes sobre as pessoas e
organizações que desejam desesperadamente o segredo da
imortalidade: desde os nazis durante a Segunda Guerra Mundial à
poderosa organização católica Gladius Domini.
De Paris até às fortalezas Cathar no Languedoc, a Terra dos
Cátaros onde um assombroso segredo jaz escondido há séculos...
Um thriller alucinante, uma caçada ao tesouro que irá deliciar os
fãs de Dan Brown.
Ficha Técnica
Scott Mariani Segredo do Alquimista
Ben chegou cedo para o seu encontro na Oxford Union Society. Tal
como muitos dos antigos estudantes da universidade ele era membro
vitalício da venerável instituição que se alberga junto ao Cornmarket
e que tem servido de lugar de encontro, sala de debates e clube só
para membros durante séculos. Como fizera nos seus anos de
estudante, evitou a grande entrada principal e entrou pelas traseiras,
atravessando um beco estreito contíguo ao restaurante McDonald's
do Cornmarket. Exibiu de fugida na recepção o seu velho e
esfarrapado cartão de membro e caminhou através dos consagrados
corredores pela primeira vez em quase vinte anos.
Parecia-lhe estranho estar de regresso a este lugar. Nunca pensara
que voltaria a pôr os pés neste local, ou mesmo que voltaria a esta
cidade, com todas as memórias sombrias que lhe trazia — memórias
de uma vida outrora planeada, e da vida que a fortuna fizera para ele
em vez disso.
O professor Rose ainda não chegara quando Ben deu entrada na
velha biblioteca da Union. Nada mudara. Olhou em redor para o
apainelamento de madeira escura, para as mesas de leitura e para as
altas galerias de livros encadernados a couro. Lá mais para cima, o
tecto pintado com frescos com as suas pequenas janelas de rosácea e
os inestimáveis murais de lendas arturianas dominavam a
magnificente sala.
— Benedict! — chamou uma voz atrás de Ben. Voltou-se para ver
Jonathan Rose, mais corpulento, mais grisalho e mais careca mas
instantaneamente reconhecível como o catedrático de História que
conhecera há tanto tempo, caminhando alegremente através do
soalho polido para lhe apertar a mão.
— Como está, professor? Passou imenso tempo.
Instalaram-se num par de cadeirões de couro gasto da biblioteca, e
trocaram conversa de circunstância por alguns minutos. Pouco
mudara para o professor — a vida académica em Oxford prosseguia
como sempre.
— Fiquei um pouco surpreendido por me ter contactado depois
destes anos todos, Benedict. A que devo este prazer?
Ben expôs o seu objectivo ao ter pedido para se encontrar com ele.
— E depois lembrei-me de que conhecia um dos especialistas em
história antiga mais proeminentes do país.
— Desde que não me chame historiador antigo, como a maior
parte dos meus alunos. — Rose sorriu. — Então está interessado em
alquimia, não é? — Ergueu as sobrancelhas e perscrutou Ben por
cima dos óculos. — Nunca pensei que esse género de coisa fosse a sua
onda. Espero que não se tenha tornado um desses tipos da New Age,
ou foi?
Ben riu-se.
— Nos dias que correm sou escritor. Ando apenas a fazer alguma
pesquisa.
— Escritor? Óptimo, óptimo. Como é que disse que este tipo se
chamava... Fracasini?
— Fulcanelli.
Rose abanou a cabeça.
— Não posso dizer que já tenha ouvido falar dele. Eu não sou
realmente a pessoa que o pode ajudar nesse domínio. Esse assunto é
um pouco esquisito de mais para a maioria de nós, académicos do
dia-a-dia... mesmo nesta era pós-Harry Potter.
Ben sentiu um baque de desapontamento. Não criara grandes
expectativas acerca de Jon Rose poder ter grande coisa a oferecer-lhe
sobre Fulcanelli, quanto mais sobre um manuscrito de Fulcanelli,
mas com tão pouco por onde começar era uma vergonha perder
qualquer potencial fonte de informação credível.
— Há alguma coisa que me possa dizer sobre alquimia em geral? —
perguntou.
— Como digo, não é o meu ramo — retorquiu Rose. — Tal como a
maior parte das pessoas, eu sentir-me-ia inclinado a considerá-la
como uma total charlatanice. — Sorriu.
— Embora tenha de ser dito que poucos cultos esotéricos
prevaleceram assim tão bem ao longo dos séculos. Desde o antigo
Egipto e China, através da Baixa e Alta Idade Média e pela
Renascença fora... é uma subcorrente que tem vindo à superfície uma
e outra vez ao longo da história. — O professor recostou-se no couro
gasto do cadeirão enquanto ia falando, adoptando a pose do tutor
que era uma segunda natureza para ele. — Embora só Deus saiba o
que andavam eles a fazer, ou pensavam que andavam a fazer... ao
tentar transformar chumbo em ouro, a criar poções mágicas, elixires
da longa vida, e tudo o resto.
— Parto do princípio de que não acredita na possibilidade de um
elixir alquímico que pudesse curar os doentes?
Rose franziu o sobrolho, reparando na expressão neutra de Ben e
interrogando-se sobre para onde quereria ele ir com isto.
— Penso que se eles tivessem desenvolvido um remédio mágico
para a peste, a varíola, a cólera, o tifo, e para todas as outras doenças
que nos devastaram ao longo da história, nós teríamos tomado
conhecimento disso. — Encolheu os ombros. — O problema é que
isto é tudo tão especulativo. Ninguém sabe realmente o que os
alquimistas possam ter descoberto. A alquimia é famosa pela sua
inescrutabilidade: todo aquele aparato de capa e espada, irmandades
secretas, enigmas e códigos e conhecimentos supostamente ocultos.
Pessoalmente, não acho que houvesse grande substância em tudo
isso.
— Para quê toda essa obscuridade? — perguntou Ben, pensando
nas leituras que andava a fazer nos últimos dias, pesquisando na
Internet termos como "conhecimento antigo" e "segredos da
alquimia" e navegando de uma página esotérica para outra.
Encontrara uma alargada variedade de escritos alquímicos, desde os
actuais até aos do século XIV. Todos eles partilhavam a mesma
desconcertante e grandiosa linguagem, o mesmo sombrio ar de
secretismo. Não fora capaz de decidir o quanto era genuíno e o
quanto era apenas postura esotérica para benefício dos crédulos
devotos que vinham a atrair desde há séculos.
— Se eu quisesse ser cínico diria que era devido a eles não terem
na verdade nada que valesse a pena revelar. — Rose riu-se. — Mas
tem de lembrar-se também de que os alquimistas tinham inimigos
poderosos, e que talvez alguma da sua obsessão com o secretismo
fosse uma maneira de se protegerem a si próprios.
— Contra o quê?
— Bem, num dos lados da balança encontravam-se os tubarões e
especuladores que lhes davam caça — disse Rose. — Lá de vez em
quando, um desgraçado alquimista que se gabara demasiado alto
acerca de fazer ouro, era raptado o obrigado a dizer como é que se
fazia. Quando não conseguia fazê-lo, o que naturalmente era o que
aconteceria sempre, acabava pendurado numa árvore. — O professor
fez uma pausa. — Mas o verdadeiro inimigo deles era a Igreja,
particularmente na Europa, onde a Igreja passava o tempo a queimá-
los como heréticos e bruxas. Veja o que a Inquisição Católica fez aos
cátaros na França medieval, sob as ordens directas do papa
Inocêncio III.
Chamaram à liquidação de um povo inteiro o trabalho de Deus.
Hoje em dia chamamos-lhe genocídio.
— Já ouvi falar dos cátaros — disse Ben. — Pode dizer-me algo
mais?
Rose tirou os óculos e poliu-os com a extremidade da gravata.
— É uma história terrível — disse. — Eles foram um movimento
religioso medieval razoavelmente espalhado que ocupava
principalmente a parte do Sul de França agora conhecida por
Languedoc. Tiraram o nome da palavra grega Catharos, que
significava "puro". As suas crenças religiosas eram um pouco radicais
já que consideravam Deus como uma espécie de princípio cósmico
do amor. Não atribuíam grande importância a Cristo, e podem nem
sequer ter acreditado que existira. A ideia deles era a de que, mesmo
que ele tivesse existido, certamente não poderia ter sido o filho de
Deus. Acreditavam que toda a matéria era fundamentalmente
grosseira e corrupta, incluindo os seres humanos. Para eles, a
adoração religiosa tinha tudo a ver com espiritualidade,
aperfeiçoando e transformando essa matéria de base para atingir a
união com o divino.
Ben sorriu.
— Consigo ver como é que essas posições podem ter aborrecido um
pouco os ortodoxos.
— Absolutamente — disse Rose. — Os cátaros tinham
essencialmente criado um estado livre que a Igreja não conseguia
controlar. Pior, estavam a pregar abertamente ideias que poderiam
minar seriamente a sua credibilidade e autoridade.
— Os cátaros eram alquimistas? — perguntou Ben. — A parte
acerca de transformar a matéria de base tem muito a ver com as
ideias da alquimia.
— Penso que ninguém sabe isso ao certo — disse Rose. —
Enquanto historiador, não poria a cabeça no cepo por causa disso.
Mas tem bastante razão. O conceito alquímico de purificar matéria
de base para obter algo mais perfeito e incorruptível está certamente
sintonizado com as crenças cátaras. Nunca saberemos ao certo,
porque os cátaros não chegaram a viver o tempo suficiente para
contar a história.
— O que lhes aconteceu?
— Em poucas palavras, extermínio em massa — disse Rose.
— Quando o papa Inocêncio III chegou ao poder em 1198, as
alegadas heresias dos cátaros deram-lhe um pretexto magnífico para
estender e reforçar os poderes da Igreja.
Dez anos depois ele reuniu um formidável exército de cavaleiros, o
maior jamais visto na Europa até àquela altura. Eram soldados
experimentados, muitos dos quais tinham servido em combate na
Terra Santa. Sob o comando do antigo cruzado Simão de Montforte,
que era também o duque de Leicester, esta enorme força militar
invadiu o Languedoc e massacraram uma a uma todas as fortalezas,
cidades e vilas que tivessem sequer a mais pequena ligação aos
cátaros. De Montforte tornou-se conhecido por "le glaive de L'eglise".
— A espada da Igreja — traduziu Ben.
Rose aquiesceu.
— E ele não brincava em serviço. As notícias ao tempo, falavam de
cem mil homens, mulheres e crianças chacinadas só em Béziers. Ao
longo dos anos seguintes, o exército do papa devastou a região
inteira, destruindo tudo no seu caminho e queimando vivos todos
aqueles que não tinham morrido pela espada. Em Lavaur, em 1211,
atiraram quatrocentos heréticos cátaros para a pira.
— Porreiro — disse Ben.
— Foi um episódio infame — continuou Rose. — E foi durante esta
fase que a Igreja Católica formou a Inquisição, uma nova ala oficial
da Igreja para emprestar maior autoridade às atrocidades
perpetradas pelo exército. Superintendiam casos de interrogatório,
tortura e execução. Só respondiam pessoalmente perante o papa. O
poder deles era absoluto. A certa altura, em 1242, os inquisidores
agiam de uma forma tão sedenta de sangue que um destacamento de
cavaleiros enojados se afastou das suas posições e chacinou um
grande grupo num lugar chamado Avignonet. Naturalmente, os
cavaleiros rebeldes foram rapidamente suprimidos. Então,
finalmente em 1243, depois de a resistência cátara se ter aguentado
muito mais tempo do que alguém antecipara, o papa decidiu que era
tempo de acabar com eles de uma vez por todas. Oito mil cavaleiros
montaram cerco à última fortaleza cátara, o castelo no cimo da
montanha de Montségur, disparando rochas enormes contra os seus
baluartes a partir de catapultas durante dez meses inteiros até que os
cátaros foram finalmente traídos e forçados a render-se. Duzentas
das pobres almas foram trazidas montanha abaixo e assadas vivas
pelos inquisidores. E isso foi mais ou menos o fim deles. O fim de um
dos mais escandalosos holocaustos de todos os tempos.
— Estou a ver que uma pessoa meter-se na heresia alquímica deve
ter sido um assunto arriscado — disse Ben.
— Ainda é, em alguns aspectos — retorquiu Rose, brincalhão.
Ben foi apanhado desprevenido.
— O quê?
O professor atirou a cabeça para trás e riu-se.
— Não estou a querer dizer que eles ainda executam heréticos na
praça pública. Estava a pensar no perigo para as pessoas como eu,
académicos ou cientistas. A razão pela qual ninguém quer tocar neste
assunto é a reputação que se arranja por se ser excêntrico. De
quando em vez alguém dá uma dentada na maçã proibida e a sua
cabeça rola. Houve aí um desgraçado qualquer que foi despedido
justamente por isso, há pouco tempo.
— Que se passou?
— Foi numa universidade parisiense. Um assistente de Biologia
americano meteu-se em apuros por causa de uma investigação não
autorizada...
— Sobre alquimia?
— Algo desse género. Escreveu alguns artigos na imprensa que
incomodaram as pessoas erradas.
— Quem era esse americano? — perguntou Ben.
— Estou a tentar lembrar-me do nome — disse Rose. — Um
doutor... doutor Roper, não, Ryder, é isso. Houve um grande furor
acerca disso no mundo académico. Chegou mesmo a ser referido no
boletim da Sociedade Francesa Medieval. Aparentemente o Ryder foi
a tribunal universitário por despedimento sem justa causa. Não fez
diferença nenhuma, no entanto. Como eu disse, assim que nos
rotulam de excêntricos é uma verdadeira caça às bruxas.
— O doutor Ryder em Paris — repetiu Ben, tomando nota.
— Há um artigo inteiro acerca disso num número atrasado da
Scientific American que foi deixado na sala comum da faculdade.
Quando lá voltar depois dou-lhe uma vista de olhos por si e ligo-lhe.
Talvez tenha para lá um número de contacto para o Ryder.
— Obrigado, talvez seja melhor eu verificar isto.
— Oh... — Rose recordou-se subitamente. — Só uma ideia. Se for
até Paris, talvez queira contactar também outra pessoa chamada
Maurice Loriot. Ele é um grande editor de livros, fascinado por todos
os géneros de tópicos esotéricos, edita imensa coisa desse tipo. E um
bom amigo meu. Aqui tem o cartão dele... Se for ter com ele, diga-lhe
que mando cumprimentos.
Ben pegou no cartão.
— Direi. E dê-me aquele número do doutor Ryder, se o descobrir.
Gostaria realmente de o conhecer.
Separaram-se com um caloroso aperto de mãos.
— Boa sorte para a sua pesquisa, Benedict — disse o professor
Rose.
— Tente não deixar a próxima para daqui a vinte anos.
PERIGO
PASSAGEM DE NÍVEL
9 de Fevereiro de 1924
A escalada da montanha foi longa e perigosa. Estou a ficar de
longe demasiado velho para este género de coisa. Muitas vezes
quase caí para a morte quando me encontrei dormente a seguir o
percurso centímetro a centímetro em rocha quase vertical e com a
neve que tombava a transformar-se em tempestade. Finalmente, lá
me arrastei para o cume da montanha e descansei o meu corpo
estafado por alguns momentos, tentando respirar, com os músculos
a tremer do esforço. Limpei a neve dos olhos e olhei para ver o
castelo arruinado à minha frente.
A passagem dos séculos não tem sido carinhosa para o que
outrora foi a orgulhosa fortaleza de Amauri de Lévis. Guerras e
pestes vieram e partiram, dinastias de guerreiros floresceram e
morreram, a terra foi passada de um governante para outro. Já lá
vão mais de cinco séculos desde que o castelo, por essa altura já
antigo e degradado, foi cercado, bombardeado e finalmente
destruído no curso de uma há muito esquecida disputa de clã. As
suas fortes torres redondas estão na maior parte reduzidas a
entulho, as paredes com as cicatrizes de batalhas cobertas de
musgo e líquenes. A certa altura o fogo deve ter devastado o
interior do castelo efeito desabar o telhado. O tempo, o vento, a
chuva, o sol fizeram o resto.
Grande parte das ruínas está coberta de tojo e silvas, e eu tive de
abrir um caminho através da arcada gótica da entrada principal.
Os portões de madeira apodreceram até ao nada e apenas restam
as suas enegrecidas dobradiças de ferro, penduradas dos cravos
enferrujados no arruinado arco de pedra. Quando passei o portão,
o silêncio de morte de um cemitério pairava sobre a armação vazia
e cinzenta. Desesperei de alguma vez encontrar o que me fizera cá
vir. Vagueei no interior do pátio com neve e olhei em redor para os
despojos das paredes e dos baluartes. No fundo de uma escadaria
em espiral encontrei a entrada de uma velha arrecadação, onde me
abriguei do vento e acendi uma pequena fogueira para me ir
aquecendo.
O nevão encurralou-me no interior das ruínas do castelo durante
dois dias. As escassas rações de pão e queijo que eu trouxera eram
suficientes para me sustentar, e eu tinha uma manta e um pequeno
tacho para derreter neve para beber. Passei o tempo a explorar as
ruínas, fervorosamente esperançado de que se provasse ser
verdadeiro o que as minhas investigações haviam revelado.
Eu sabia que o meu prémio, se é que existia, seria encontrado não
acima do solo no que restava dos baluartes das torres, mas algures
lá em baixo na rede de túneis e câmaras escavadas na rocha por
debaixo do castelo. Muitos dos túneis ruíram com o tempo, mas
outros permanecem intactos. Nos níveis mais baixos descobri
masmorras escuras, com os ossos dos seus miseráveis habitantes há
muito reduzidos a pó. Vagueando pelas passagens húmidas e
escuras e pelas escadarias em espiral à luz da minha candeia a óleo,
eu procurei e rezei.
Depois de muitas horas de cruel desapontamento rastejei através
de um túnel meio desabado bem abaixo do solo e dei comigo numa
câmara quadrada. Ergui a minha lanterna, reconhecendo o tecto
abobadado e os brasões de armas esfarelados da velha e gasta
xilogravura que descobrira em Paris. Naquele momento eu soube
que a minha busca terminara, e o meu coração pulou de alegria.
Circulei pela câmara até chegar ao sítio. Afastei para o lado
densas teias de aranha e soprei nuvens de pó, e as marcas no bloco
de pedra, suavizadas pelo tempo, apareceram perante mim. Como
eu soubera que o fariam, as marcas dirigiram-me para uma
determinada laje no chão. Escavei a terra acumulada nas
extremidades até ser capaz de enfiar os dedos por debaixo, então,
com grande esforço, ergui-a completamente. Quando vi o espaço
oco em pedra que a laje ocultara e compreendi o que tinha
descoberto, depois de uma vida inteira de busca, caí de joelhos com
silenciosas lágrimas de alívio e exultação.
O meu coração martelava temerosamente enquanto arrastava o
pesado objecto para fora do buraco e lhe limpava a sujidade e os
restos apodrecidos do invólucro de pele de ovelha. O guarda-jóias
em aço está bem preservado. Houve um silvo do ar que se escapava
quando eu forcei a caixa a abrir-se com a minha faca. Acedi ao
interior com dedos trementes, e à luz vacilante da minha candeia
bebi a visão da minha incrível descoberta.
Ninguém, em quase setecentos anos, pousou os olhos nestas
coisas preciosas. Que alegria!
Acredito que estes artefactos foram produzidos pelo trabalho dos
meus antepassados, os cátaros. São um trabalho de grande
mestria, que tem estado escondido das épocas e das gerações.
Juntos podem conter a chave do Segredo dos Segredos e o objectivo
de todo o nosso trabalho. É um milagre tão grandioso que receio
contemplar o seu poder...
3 de Novembro de 1924
Era como eu suspeitava. O antigo pergaminho provou ser bem
mais difícil de decifrar do que eu antecipara a princípio. Por muitos
meses tenho trabalhado na tradução das suas línguas arcaicas, nas
suas tortuosas mensagens encriptadas, nas suas numerosas e
deliberadas decepções. Mas hoje, Clément e eu fomos finalmente
recompensados pela nossa longa labuta.
As substâncias foram fundidas num cadinho, na fornalha, depois
de terem sido reduzidas aos seus sais submetidas a preparações
especiais e a destilação. Houve um silvo que nos sobressaltou e
torrentes de vapor encheram o laboratório. Eu e Clément ficámos
atónitos com o aroma a terra fresca e a flores doces. A água
adquiriu uma cor dourada. A isto juntámos uma quantidade de
mercúrio e a solução foi deixada a arrefecer. Quando abrimos o
cadinho...
8 de Dezembro de 1924
Como é que se testa um Elixir da Longa Vida? Preparámos a
mistura de acordo com as instruções pormenorizadas dos meus
antepassados. Clément, aquele adorável companheiro, estava com
receio de a tomar. Eu consumi até agora aproximadamente trinta
dracmas do doce líquido. Não observo qualquer efeito adverso. Só o
tempo dirá dos seus poderes de preservação da vida...
Esta manhã voltei à Rue Lepic depois do meu passeio diário para
ser recebido pelo mais pútrido fedor que emanava do meu
laboratório. Ainda ia a descer a escadaria para a cave e já sabia o
que acontecera, e tal como esperava, quando abri a porta do
laboratório, descobri o meu jovem aprendiz Nicholas Daquin
rodeado por nuvens de fumo e os destroços de uma experiência
disparatada.
Apaguei as chamas, e a tossir com o fumo voltei-me para ele. "Eu
avisei-te sobre este género de coisas, Nicholas", disse eu.
"Peço desculpa", retorquiu Nicholas com aquele olhar desafiante
dele. "Mas, mestre, eu quase consegui."
"As experiências podem ser perigosas, Nicholas. Perdeste o
controlo dos elementos. Equilibrar os elementos requer um toque
muito apurado."
Ele olhou para mim. "Mas o senhor disse-me que eu tinha jeito
para isto, mestre."
"E tens mesmo", retorqui eu. "Mas só a intuição não é suficiente.
O teu talento está por polir, meu amigo. Deves aprender a dominar
a impulsividade da tua juventude."
"Leva tudo tanto tempo a aprender. Eu quero saber mais. Quero
saber tudo."
O meu noviço de vinte anos é por vezes obstinado e arrogante,
mas que tem um grande talento não posso negar. Nunca antes me
cruzei com um jovem estudante tão ávido.
"Não podes esperar que eu condense em poucas lições três mil
anos de filosofia e os esforços de toda a minha vida", disse
pacientemente a Nicholas. "Os grandes segredos da natureza são
coisas que deves aprender lentamente, degrau a degrau. Assim é
com a alquimia."
"Mas, mestre, eu estou tão cheio de perguntas", protestou
Nicholas, fixando-me com os seus escuros e intensos olhos. "O
senhor sabe tanto. Odeio sentir-me tão ignorante."
Eu aquiesci. "Aprenderás. Mas deves aprender a controlar a tua
natureza obstinada, jovem Nicholas. Não é sensato tentar correr
quando ainda não se aprendeu a andar.
De momento deves confinar-te aos estudos teóricos."
O jovem sentou-se pesadamente numa cadeira, com ar agitado.
"Estou cansado de ler livros, mestre. Aprender a teoria do nosso
trabalho está tudo muito bem, mas eu preciso de algo prático, algo
que eu possa ver e tocar. Tenho de acreditar que há um propósito
no que fazemos."
Eu disse-lhe que compreendia. Enquanto o observava, preocupei-
me que demasiada aprendizagem teórica pudesse, no fim, afastar
este estudante extremamente dotado.
Eu próprio estou bem ciente de quão árida e infrutífera uma vida
de estudo parece sem a recompensa de um avanço real, um prémio
tangível.
Pensei no meu próprio prémio. Talvez se eu pudesse partilhar um
pouco daquele incrível conhecimento com Nicholas, isso poderia
certamente satisfazer a sua curiosidade ardente?
"Muito bem", disse eu depois de uma longa pausa. "Eu vou
deixar-te ver mais, algo que não se encontra nos teus livros."
O jovem ergueu-se de um salto, os olhos a faiscar de excitação.
"Quando, mestre? Agora?"
"Não, agora não", retorqui. "Não sejas tão impaciente, meu
jovem aprendiz. Em breve, muito em breve." Aqui ergui um dedo
avisador. "Mas lembra-te disto, Nicholas.
Nenhum estudante da tua idade virá a ser levado tão longe ou tão
rapidamente ao âmago da sabedoria alquímica. É para ti uma
pesada responsabilidade, e deves estar pronto a aceitá-la. Assim
que tiver partilhado contigo os maiores segredos, estes não podem
ser divulgados a ninguém. A ninguém, compreendes? Vou fazer-te
jurar este voto."
À sua maneira orgulhosa ele ergueu o queixo. "Eu juro esse voto
agora mesmo", declarou ele.
"Reflecte nisso, Nicholas. Não te precipites. É uma porta que, uma
vez aberta, não pode ser fechada."
Enquanto falávamos, Jacques Clément entrara e começara
tranquilamente a limpar os destroços da explosão. Depois de
Nicholas sair, Clément dirigiu-se a mim com um olhar apreensivo.
"Perdoe-me, mestre", disse ele hesitantemente. "Como sabe eu
nunca questionei as suas decisões..."
"Em que estás a pensar, Jacques?"
Jacques falou cuidadosamente. "Eu sei que tem uma grande
estima pelo jovem Nicholas. Ele é inteligente, e aplicado, disso não
há qualquer dúvida. Mas a sua natureza impetuosa... ele anseia por
conhecimento da mesma maneira que um homem ganancioso tem
luxúria pela riqueza. Há demasiado fogo dentro dele."
"Ele é jovem, é só isso", retorqui eu. "Nós já fomos jovens outrora.
O que estás a tentar dizer, Jacques? Fala à vontade, meu velho
amigo."
Ele hesitou. "Tem a certeza absoluta, mestre, de que o jovem
Nicholas está pronto para este conhecimento? É um grande passo
para ele. Poderá ele lidar com isso?"
"Acredito que sim", retorqui eu. "Eu confio nele."
Ben fechou o Diário e reflectiu por momentos. Era claro que o que
quer que fosse este grande conhecimento, Fulcanelli aprendera-o
com os artefactos que recuperara no castelo, e que se encontravam
agora, aparentemente, nas mãos de Klaus Rheinfeld. Finalmente,
tinha uma pista adequada.
A seu lado na secretária, o portátil ronronava tranquilamente. Ben
aproximou-se e começou a bater nas teclas. Deu-se o familiar ruído
da ligação à Internet, e apareceu a página do motor de busca do
Google. Deu entrada ao nome Klaus Rheinfeld na caixa de busca e
carregou em ENTER.
— Está à procura do quê? — perguntou Roberta, puxando de uma
cadeira ao lado de Ben.
Os resultados da busca apareceram, surpreendendo-o com 271
correspondências para o termo "Klaus Rheinfeld".
— Cristo — murmurou ele. Começou a percorrer a longa lista.
— Bem, isto parece prometedor.
Klaus Rheinfeld dirige Proscrito, com Brad Pitt e Reese
Witherspoon....
"Um arrebatador thriller de suspense... Rheinfeld é o novo
Quentin Tarantino", leu Roberta em voz alta.
Ben grunhiu e continuou a procurar. Quase tudo na lista eram
críticas ao novo filme Proscrito ou entrevistas com o realizador, um
californiano de trinta e dois anos.
Depois havia a Klaus Rheinfeld Exportações, um comerciante de
vinhos.
— E aqui está Klaus Rheinfeld, o domador de cavalos — apontou
ela.
Ao fim de diversas páginas dos resultados da busca chegaram a
uma notícia regional. Fora tirada de um pequeno jornal de Limoux,
uma cidade na região do Languedoc, no Sul de França. No cabeçalho
lia-se:
E FOU DE SAINT-JEAN
— Não diz para onde o levaram depois disso. Bolas. Pode estar em
qualquer lugar.
— No entanto, está vivo — fez notar Roberta.
— Ou estava vivo há seis anos. Se é que possa ser o mesmo Klaus
Rheinfeld.
— Aposto o que quiser em como é o mesmo tipo — disse ela.
Marcas satânicas? Leia-se marcas alquímicas.
— Porque é que ele estaria todo cortado? — interrogou-se Ben.
Roberta encolheu os ombros.
— Talvez fosse mesmo maluco.
— Muito bem... portanto temos um alemão maluco coberto de
ferimentos de faca, que poderá ou não ser portador de importantes
segredos relacionados com o Fulcanelli, e que pode estar em
qualquer parte do mundo. Isso reduz imenso as possibilidades. —
Suspirou, limpou o monitor e começou uma nova busca. — Já que
estamos online é melhor vermos isto. — Teclou o nome do servidor
de correio electrónico de Michel Zardi, aguardou que a página
carregasse e entrou no nome da conta. Só necessitava da palavra-
chave para aceder às mensagens, e sabia que a maior parte das
pessoas usava alguma palavra da sua vida privada. — O que sabe
acerca da vida pessoal do Michel? Namorada, algo desse género?
— Não muito ... Que eu conheça não havia nenhuma namorada
regular.
— Nome da mãe?
— Um... espere aí... acho que o nome dela é Claire.
Ben escreveu o nome na caixa da palavra-chave.
claire
palavra-chave incorrecta
lutin
3 de Setembro de 1926
Finalmente aconteceu: o aluno desafiou o mestre. Enquanto
escrevo, consigo ainda ouvir as palavras de Daquin a soar-me nos
ouvidos quando ele hoje me confrontou no laboratório. Os olhos
dele estavam ardentes, e os punhos fechados ao lado do corpo.
"Mas, mestre", protestou ele. "Não estaremos a ser egoístas?
Como é que pode dizer que é correcto guardar segredo de tão
importante conhecimento quando este poderia beneficiar tantas
pessoas? Não está a ver o bem que isto poderia fazer? Pense em
como isto poderia mudar tanta coisa!"
"Não, Nicholas", insisti eu. "Não estou a ser egoísta. Estou a ser
cauteloso. Estes segredos são importantes, sim. Mas são demasiado
perigosos para poderem ser revelados a qualquer um. Somente os
iniciados, os seguidores, deverão ser alguma vez autorizados a
possuir este conhecimento."
Nicholas olhou-me fixamente com fúria. "Então não vejo para
que possam servir", gritou ele. "O mestre está velho. Passou a maior
parte da sua vida à procura, mas não valerá de nada se não o usar.
Use-o para ajudar o mundo."
"E tu és jovem, Nicholas", retorqui eu. "Demasiado jovem para
compreender o mundo que tanto queres ajudar. Nem todos são tão
puros de coração como tu és. Há pessoas que usariam este
conhecimento para servir a sua própria ganância e os seus
próprios fins. Não para fazer o bem, mas para fazer o mal."
Na mesa junto a nós encontrava-se o antigo pergaminho no seu
tubo de couro. Peguei-lhe e exibi-o perante Nicholas. "Eu sou um
descendente directo dos autores desta sabedoria", disse eu. "Os
meus antepassados cátaros sabiam a importância de preservar os
seus segredos, a todo o custo. Sabiam quem andava atrás deles, e
sabiam o que teria acontecido se estes tivessem caído nas mãos
erradas. Deram as suas vidas a tentar preservar esta sabedoria."
"Eu sei, mestre, mas..."
Interrompi-o. "Este conhecimento com que fomos privilegiados é
poder, e o poder é uma coisa perigosa. Corrompe os homens, e atrai
o mal. Foi por isso que te avisei sobre a responsabilidade que te
estava a dar. E não te esqueças — juraste um voto de silêncio."
Deixei cair a cabeça de tristeza. "Receio ter-te revelado demasiado",
acrescentei. "Quer isso dizer que não me vai revelar mais nada? E o
resto? O segundo grande segredo?"
Abanei a cabeça. "Lamento, Nicholas. É demasiado conhecimento
para alguém tão jovem e impulsivo. Eu não posso desfazer o que já
está feito, mas não te levarei mais longe até teres demonstrado
maior sabedoria e maturidade."
Ao ouvir estas palavras, ele saiu intempestivamente do
laboratório. Eu podia ver que ele se encontrava à beira das
lágrimas. Também eu senti uma faca no coração sabendo o que se
interpusera entre nós.
Ben ouviu uma suave batida na porta do quarto. Olhou por cima
do Diário enquanto a porta se abria uma nesga e aparecia a face de
Roberta.
— Como é que te estás a sentir agora? — inquiriu ela. Ela parecia
preocupada ao entrar transportando um tabuleiro.
Ben fechou o Diário.
— Estou óptimo.
— Olha aqui, eu preparei isto para ti. — Roberta depositou uma
tigela de canja de galinha a deitar fumo em cima da mesa. — Come
enquanto está quente.
— Quanto tempo estive eu de fora?
— Dois dias.
— Dois dias! — Ben tomou um sorvo de uísque, estremecendo com
o movimento.
— Achas que devias beber, Ben? Tens estado a antibióticos. —
Roberta suspirou. — Pelo menos come alguma coisa. Precisas de
reaver as forças.
— Vou comer. Podes dar-me aí um jeito com o meu saco? Os meus
cigarros estão aí.
— Neste momento fumar não te faz bem.
— Nunca me faz bem.
— Fixe. Faz como quiseres. Eu vou buscá-los.
— Não, só... — Ben mexeu-se demasiado abruptamente e a dor
disparou através dele. Encostou-se para trás contra a almofada,
fechando os olhos.
Roberta agachou-se. Enquanto procurava no interior do saco, um
pequeno objecto caiu e aterrou no chão. Roberta apanhou-o. Era
uma minúscula fotografia numa moldura de prata. Roberta
observou-a, interrogando-se sobre o que estaria aquilo a fazer ali. A
fotografia era antiga e desmaiada, dobrada e gasta nas extremidades
como se tivesse sido transportada numa carteira durante anos. Era
uma fotografia de uma criança, uma menina doce com cerca de oito
ou nove anos e cabelo louro. Tinha olhos azuis, cintilantes e
inteligentes, e uma cara sardenta, e estava a sorrir para a máquina
com uma expressão de aberta felicidade.
— Quem é ela, Ben? É adorável. — Roberta olhou para ele e o seu
sorriso desvaneceu-se.
Ele fixava-a com uma expressão de fria ira que ela nunca antes
vira.
— Larga isso e põe-te daqui para fora — disse ele.
O padre Pascal viu a expressão de fúria e mágoa na face de Roberta
quando esta desceu as escadas. Pousou-lhe uma mão no braço.
— Por vezes quando um homem está a sofrer, disparata e diz e faz
coisas que não quer dizer e fazer — disse ele.
— Só porque ele está ferido, isso não o desculpa por se comportar
como um filho-da... — Roberta controlou-se. — Eu só estava a tentar
ajudá-lo.
— Não era a esse sofrimento que me referia — disse Pascal. — A
verdadeira dor encontra-se no coração dele, no espírito, não nos
ferimentos. — Sorriu calorosamente.
— Eu vou falar com ele.
Pascal foi até ao quarto de Ben e sentou-se ao lado dele na beira da
cama. Ben estava deitado a fixar o infinito, agarrado ao seu frasco. O
uísque adormecia-lhe ligeiramente as dores. Tinha conseguido
recuperar os cigarros, somente para descobrir que o maço se
encontrava quase vazio.
— Não se importa que me junte a si? — inquiriu Pascal.
Ben abanou a cabeça.
Pascal esteve em silêncio por instantes, depois falou carinhosa e
calorosamente a Ben.
— Benedict, a Roberta contou-me algumas coisas sobre a sua
ocupação. Você sente um apelo para ajudar os necessitados... uma
coisa realmente nobre e recomendável.
Também eu sinto um apelo, que desempenho o melhor que posso.
Devo dizer que é menos dramático, menos heróico, do que o seu.
Mas o propósito que o Senhor tem para mim é, não obstante, um
importante dever para cumprir. Eu ajudo os homens a aliviar o seu
sofrimento. A encontrar Deus. Para alguns, isso é simplesmente o
encontrar da paz dentro de si próprios, seja qual for a forma em que
isso se revela.
— Esta é a minha paz, padre — murmurou Ben. Exibiu o frasco.
— Você sabe que isso não é suficiente, que nunca será o suficiente.
Não o pode ajudar, só o pode magoar. Enterra o seu sofrimento
ainda mais fundo no coração. A dor é como um espinho envenenado.
Se não for libertada, irá ulcerar como um ferimento terrível. E não
será um ferimento que possa ser curado pela simples aplicação de
penicilina destinada a uma cabra.
Ben riu-se amargamente.
— Iá, provavelmente tem razão.
— Você tem ajudado imensas pessoas, segundo parece — disse
Pascal. — E no entanto continua no seu trajecto de autodestruição,
dependendo do álcool, esse falso amigo.
Quando a alegria de ajudar os outros se desvaneceu, não volta a
dor pouco depois, e cada vez pior?
Ben não disse nada.
— Eu acho que você conhece a resposta.
— Olhe — disse Ben. — Eu estou agradecido por tudo o que fez por
mim. Mas já não ando interessado em mais sermões. Essa parte de
mim morreu há muito tempo. Portanto, com o devido respeito para
consigo, padre, se veio aqui acima para me pregar, está a perder o
seu tempo.
Ficaram sentados em silêncio.
— Quem é a Ruth? — perguntou subitamente Pascal.
Ben atirou-lhe um olhar penetrante.
— A Roberta não lhe disse? A menina que está a morrer, a neta do
meu cliente. A que estou a tentar salvar. Se não for demasiado tarde.
— Não, Benedict, não é a essa que me refiro. Quem é a outra Ruth,
a Ruth dos seus sonhos?
Ben sentiu o sangue transformar-se em gelo e o coração acelerou-
se. Com a garganta apertada disse:
— Não sei do que está a falar. Não há nenhuma Ruth nos meus
sonhos.
— Quando um homem passa duas noites com um paciente a
delirar — disse Pascal -, é capaz de descobrir coisas sobre ele que
podem não ser discutidas abertamente. Você tem um segredo, Ben.
Quem é a Ruth... quem era a Ruth?
Ben deixou escapar um profundo suspiro. Ergueu de novo o frasco.
— Porque é que não me deixa ajudá-lo? — disse gentilmente
Pascal.
— Vá, partilhe o seu fardo comigo.
Após um longo silêncio Ben começou a falar calma, quase
mecanicamente. Os olhos fixavam o espaço enquanto passava as
imagens familiares e dolorosas pela milionésima vez na sua mente.
— Eu tinha dezasseis anos. Ela era minha irmã. Tinha apenas nove
anos. Éramos tão próximos... éramos almas gémeas. Ela foi a única
pessoa que alguma vez amei com todo o meu coração. — Ben
produziu um sorriso amargo. — Ela era como a luz do Sol, padre. Só
queria que a visse. Para mim, ela era a razão para acreditar num
Criador.
Isto pode ser uma surpresa para si, mas a certa altura eu estive
para me tornar um homem do clero.
Pascal ouvia atentamente.
— Continue, meu filho.
— Os meus pais levaram-nos para umas férias no Norte de África,
em Marrocos — prosseguiu Ben. — Ficámos num grande hotel. Um
dia os meus pais decidiram ir visitar um museu, e deixaram-nos no
hotel. Disseram-me para tomar conta da Ruth e para não sair das
instalações do hotel sob quaisquer circunstâncias.
Ben fez uma pausa para acender o seu último cigarro.
— No mesmo hotel encontrava-se uma família suíça. Tinham uma
filha cerca de um ano mais velha do que eu. O nome dela era
Martina. — Falando disto pela primeira vez em anos, conseguia
lembrar-se perfeitamente de tudo. Viu a face de Martina na sua
mente. — Ela era muito atraente. Eu gostava mesmo dela, e ela
convidou-me para sair. Queria visitar um souk sem os pais atrás. A
princípio eu disse que não, tinha de ficar no hotel e tomar conta da
minha irmã. Mas a Martina ia voltar para a Suíça no dia seguinte. E
disse-me que se eu fosse com ela ao souk, quando voltássemos ela
ia... enfim, eu fui tentado. Decidi que não haveria problema em levar
também a Ruth. Pensei que os meus pais nunca haveriam de saber.
— Continue — disse Pascal.
— Saímos do hotel. Vagueámos pelo mercado. Estava cheio de
gente, de bancas com produtos, de encantadores de serpentes, todas
essas estranhas vistas e músicas e cheiros.
Pascal anuiu.
— Eu estive na Argélia, durante a guerra, há muitos anos. Um
mundo estranho e exótico, para nós europeus.
— Foram bons momentos — disse Ben. — Eu gostava de estar com
a Martina, e ela estava sempre a dar-me a mão enquanto ia olhando
para as bancas. Mas eu conservei a Ruth vigiada de perto. Ela ficou
mesmo a meu lado. Depois a Martina viu um pequeno guarda-jóias
em prata de que gostou. Ela não tinha dinheiro suficiente, e eu disse
que lho oferecia. Virei as costas à Ruth enquanto contava o dinheiro.
Foi apenas por instantes. Comprei o presente para a Martina, e ela
abraçou-me. — Ben fez nova pausa. Tinha a garganta seca. Ia dar
outro gole do frasco.
Pascal deteve-lhe o braço, gentil mas firmemente.
— Deixemos de momento os amigos da onça fora disto.
Ben aquiesceu, engoliu com dificuldade.
— Não sei como poderá ter acontecido tão depressa. Só tirei os
olhos dela por alguns segundos. Mas depois ela tinha... desaparecido.
— Encolheu os ombros. — Desapareceu simplesmente, tal e qual.
Sentia o coração como uma enorme bolha pronta a rebentar.
Colocou a cabeça nas mãos, abanando-a lentamente de um lado para
o outro.
— Ela já não estava ali. Não a ouvi chamar. Não vi coisa nenhuma.
Estava tudo normal à minha volta. Era como se eu tivesse sonhado
tudo aquilo. Como se ela nunca tivesse existido.
— Ela não andava simplesmente a vaguear.
Ben retirou a cabeça das mãos e endireitou-se.
— Não — disse ele. — É um negócio lucrativo, e a gente que as leva
é constituída por profissionais experientes. Tudo o que podia ser
feito foi feito... polícia, consulado, meses de buscas. Não
encontrámos uma única pista.
A bolha rebentou. Tinha-a contido durante tanto tempo. Algo foi
penetrado no seu íntimo, uma sensação de ferida. Não chorara desde
esses dias, só nos seus sonhos.
— E foi tudo por minha culpa, porque lhe voltei as costas. Perdi-a.
— Desde então nunca mais amou ninguém — disse Pascal. Não era
uma pergunta.
— Eu não sei como amar — disse Ben, recompondo-se. — Não me
consigo recordar da última vez em que estive realmente feliz. Não sei
como é.
— Deus ama-o, Benedict.
— Deus é tão meu amigo como o uísque.
— Perdeu a fé.
— Naquela altura eu tentei conservar a fé. A princípio rezei todos
os dias para que ela fosse encontrada. Rezei para ser perdoado. Eu
sabia que Deus não me estava a ouvir, mas continuei a acreditar e
continuei a rezar.
— E a sua família?
— A minha mãe nunca me perdoou. Não podia nem ver-me. Não
lhe podia levar a mal. Depois ela caiu numa depressão profunda. Um
dia a porta do quarto dela estava trancada.
O meu pai e eu gritámos e batemos, mas ela não respondia.
Tomara uma dose maciça de comprimidos para dormir. Eu tinha
dezoito anos, estava a começar os meus estudos de teologia.
Pascal aquiesceu tristemente.
— E o seu pai?
— Depois de perdermos a Ruth ele foi-se abaixo, e a morte da
minha mãe tornou a coisa pior. A minha única consolação era que eu
pensava que ele me tinha perdoado.
— Ben suspirou. — Eu estava em casa de férias. Fui ao estúdio
dele. Nem sequer me lembro da razão. Penso que precisava de papel.
Ele não estava lá. Encontrei o diário dele.
— Leu-o?
— E descobri o que ele realmente pensava. A verdade era que ele
me odiava. Culpava-me por tudo, achava que eu não merecia viver
após o que fizera à família. Depois disso eu não podia voltar para a
universidade. Perdi o interesse por tudo. O meu pai morreu pouco
depois.
— O que fez então, meu filho?
— Não me lembro de grande coisa no primeiro ano. Fartei-me de
vagabundear pela Europa, tentei perder-me. Depois regressei a casa,
vendi-a. Mudei-me para a Irlanda com a Winnie, a nossa governanta.
Depois fui para a tropa. Não me consegui lembrar de mais nada para
fazer. Odiava-me a mim próprio. Estava cheio de raiva, e apliquei-a
até ao limite na recruta. Eu era o recruta mais disciplinado e
motivado que eles já tinham visto. Não faziam ideia do que estava
por detrás disso. Depois, com o tempo, tornei-me um muito bom
soldado. Eu tinha uma certa atitude. Uma certa dureza. Eu andava
passado, e eles fizeram uso disso. Acabei por fazer uma data de
coisas sobre as quais não gosto de falar.
Ben hesitou antes de prosseguir, e a sua mente encheu-se
brevemente de memórias, imagens, sons, cheiros. Abanou a cabeça
para as limpar.
— Por fim compreendi que o exército não era o que eu queria.
Odiava tudo aquilo que eles representavam. Vim para casa, tentei
reorganizar a minha vida. Passado algum tempo fui contactado para
encontrar um adolescente desaparecido. Era no Sul de Itália. Quando
tudo terminou e o miúdo se encontrou a salvo, compreendi que
descobrira o que queria fazer. — Olhou para Pascal. — Isso foi há
quatro anos.
— Você descobriu que ao devolver pessoas desaparecidas aos seus
entes queridos, estava a sarar a ferida provocada pela perda da Ruth.
Ben anuiu.
— Cada vez que trazia um para casa a salvo, isso impulsionava-me
para o trabalho seguinte. Era como um vício. Ainda é.
Pascal sorriu.
— Você passou por imenso sofrimento. Estou satisfeito por ter
confiado em mim o suficiente para falar disso, Benedict. A confiança
é uma grande curandeira. A confiança e o tempo.
— O tempo não me sarou — disse Ben. — A dor fica mais
adormecida, mas mais profunda.
— Você acredita que encontrar a cura para esta menina Ruth o vai
ajudar a expulsar o demónio da culpa.
— De outra forma não teria aceitado esta missão.
— Espero que tenha sucesso, Ben, pela menina e por si. Mas eu
penso que a verdadeira redenção, a verdadeira paz, deve vir do ser
mais profundo. Deve aprender a confiar, a abrir o seu coração, e a
descobrir o amor dentro de si próprio. Só então as suas feridas
poderão sarar.
— Faz parecer com que seja fácil — disse Ben.
Pascal sorriu.
— Você já começou o seu caminho ao confessar-me o seu segredo.
Não existe qualquer salvação em enterrar os seus sentimentos. Pode
doer ao extrair o veneno da ferida: em tais ocasiões ficamos cara a
cara com o demónio. Mas assim que o trouxer à superfície e o
libertar, pode encontrar a liberdade.
A cera da vela pingou na mão de Ben enquanto entrava
furtivamente na igreja de Saint-Jean. A porta nunca estava fechada,
nem mesmo às duas da manhã. Tinha as pernas ainda fracas e
trementes ao percorrer a álea. As sombras oscilavam em seu redor no
edifício vazio e silencioso. Caiu de joelhos em frente ao altar e a luz
da vela incidiu na reluzente estátua branca de Cristo lá em cima.
Ben inclinou a cabeça e rezou.
O rasto conduzia Luc Simon para sul. Era fácil de seguir — era um
rasto de balas e homens mortos.
Um agricultor de Le Puy, no Centro de França, relatara que ouvira
tiros e dois carros envolvidos numa perseguição em estradas rurais.
Quando a polícia descobrira o campo onde tivera lugar a batalha
encontrara três homens mortos, dois carros destruídos crivados de
balas, armas e cartuchos usados espalhados por todo o lado.
Nenhum dos carros se encontrava registado por alguém, e o BMW
fora dado como roubado uns dias antes em Lyon.
Mais interessante, no interior do outro carro, um Peugeot prateado
com matrícula de Paris, tinham encontrado impressões digitais que
correspondiam às de Roberta Ryder. Entre os muitos cartuchos
usados encontrados na erva havia dezoito de 9 mm que tinham vindo
da mesma pistola tipo Browning usada na limusina Mercedes e no
cenário da matança à beira-rio.
Ben Hope bem podia ter gravado o nome numa árvore.
Capítulo 36
Instituto Legrand, perto de Limoux, Sul de França
Três meses antes
19 de Setembro de 1926,
Começo a arrepender-me verdadeiramente da fé que coloquei em
Nicholas Daquin. É com um coração pesado que escrevo estas
palavras, sabendo agora o idiota que tenho sido. A minha única
consolação é que não lhe revelei a soma completa do conhecimento
ganho dos artefactos cátaros.
Os meus piores receios foram ontem confirmados. Contra todos
os meus princípios e para minha eterna vergonha, contratei um
investigador, um homem discreto e de confiança que dá pelo nome
de Corot, para seguir Nicholas e me relatar as suas movimentações.
Parece que o meu jovem aprendiz é há já algum tempo membro de
uma sociedade parisiense chamada os Observadores. Naturalmente
que eu conhecia a existência deste pequeno círculo de intelectuais,
filósofos e iniciados do conhecimento esotérico. Também conhecia o
que atraíra Nicholas para eles. O objectivo dos Observadores é o de
se afastar dos rigores da secreta tradição alquímica. Nas suas
reuniões mensais numa sala por cima da livraria Chacornac
discutem como os frutos do conhecimento alquímico poderão ser
integrados na ciência moderna e usados para beneficiar a
humanidade. Para um jovem como o Nicholas, eles só podem
representar o futuro, a fundação de uma nova era — e eu bem
compreendo quão dividido ele se deve sentir entre a visão
progressista de uma nova alquimia e o que ele percepciona como a
antiquada, guardada e desconfiada abordagem que eu represento.
Tal espírito e candura da juventude não são para desprezar. Mas
o que Corot me veio relatar deu-me grande causa de preocupação.
Através da sua associação com os bservadores, Nicholas fez uma
nova amizade. Sei pouco deste homem, salvo que o nome dele é
Rudolf, que é um estudante do oculto e que lhe chamam "O
Alexandrino" devido ao seu local de nascimento no Egipto.
Corot observou Nicholas com este Rudolf em diversas ocasiões,
vigiando-os enquanto se encontravam em cafés e tinham longas
discussões. Ontem seguiu-os até um restaurante dispendioso e foi-
lhe possível escutar parte da conversa deles quando se sentaram na
esplanada.
Rudolf atestou o meu jovem aprendiz com copo atrás de copo de
champanhe, e é claro que o estava a fazer para lhe soltar a língua.
"Mas é a verdade, sabes", dizia Rudolf enquanto Corot tomava
discretamente apontamentos numa mesa próxima. "Se Fulcanelli
realmente acreditasse no poder da sua sabedoria, não tentaria
reter uma das suas estrelas mais brilhantes." Aqui encheu o copo de
Nicholas até à borda.
"Não estou habituado a tal boa vida", ouviu Corot Nicholas dizer.
"Um dia, vais ter toda a boa vida que alguma vez poderás desejar",
disse Rudolf.
Nicholas franziu o sobrolho. "Não ando atrás de fama e glória.
Eu só quero usar os meus conhecimentos para ajudar as pessoas,
apenas isso. É isso que não consigo entender no mestre, porque é
que ele pensa que isso é uma coisa assim tão má."
"O teu altruísmo é louvável, Nicholas", disse Rudolf. "Talvez eu te
possa ajudar. Eu tenho alguns contactos influentes."
"A sério?", retorquiu Nicholas. "Embora isso significasse quebrar
o meu voto de secretismo. Sabes que penso frequentemente nisso —
mas ainda não me consigo decidir."
"Devias confiar nos teus sentimentos", disse Rudolf. "Que direito
tem o teu professor de te impedir de cumprires o teu destino?"
"O meu destino...", ecoou Nicholas.
Rudolf sorriu. "Os homens com um destino são uma rara e
admirável raça", disse ele. "Se eu estiver certo a teu respeito, isso
quer dizer que terei tido o privilégio de conhecer dois desses homens
durante a minha vida." Rudolf serviu o resto do champanhe. "Há
um homem que eu conheço, um visionário que partilha dos teus
ideais.
Eu falei-lhe de ti, Nicholas, e ele, como eu, acha que tu podias ter
um papel muito importante a criar um futuro maravilhoso para a
humanidade. Um dia vais conhecê-lo."
Nicholas esvaziou o seu copo de um trago e pousou-o na mesa.
Respirou fundo. "Muito bem", disse ele. "Já decidi. Vou partilhar o
que sei contigo. Quero fazer a diferença."
"Sinto-me honrado", retorquiu Rudolf, com um ligeiro inclinar da
cabeça.
Nicholas inclinou-se para a frente. "Se ao menos soubesses o
quanto ansiei por falar sobre isto com alguém. Há dois segredos
importantes, e ambos foram revelados por um antigo documento
codificado. O meu mestre descobriu-o no Sul, nas ruínas de um
velho castelo." "Então ele mostrou-te estes segredos?", perguntou
avidamente udolf.
"Mostrou-me um deles. Eu testemunhei o seu poder. É
verdadeiramente incrível. Eu tenho o conhecimento. Sei como o
usar, e posso mostrar-te."
"E o segundo segredo?"
"O seu potencial é ainda mais incrível", disse Nicholas. "Mas há
um problema. Fulcanelli recusa-se agora a ensinar-mo."
Rudolf colocou uma mão no ombro do jovem. "Tenho a certeza de
que com o tempo o vais aprender", disse com um sorriso. "Mas no
entretanto, porque é que não me contas mais acerca deste teu
fantástico conhecimento? Talvez devêssemos continuar esta
discussão no meu apartamento."
23 de Dezembro de 1926,
Está tudo perdido. A minha adorada mulher Christina foi
assassinada. A traição de Daquin colocou o nosso precioso
conhecimento nas mãos do Alexandrino. Possa Deus perdoar-me
por ter permitido que isto acontecesse. Receio por muito mais do
que a minha própria vida. O mal que estes homens podem fazer é
inimaginável.
Os meus planos estão em curso. Vou partir imediatamente de
Paris com a Yvette, a minha querida filha que é tudo o que me resta
agora, e deixo tudo nas mãos do meu fiel Jacques Clément. Avisei o
Jacques que também ele deve tomar todas as precauções. Pela
minha parte, não regressarei.
Anna pousou a caneta. Pouco passava das nove, mas ela decidiu
que se iria deitar cedo. As suas melhores ideias chegavam
frequentemente quando se encontrava relaxada na cama. Ia tomar
um banho quente, servir-se de uma bebida e aconchegar-se com os
seus pensamentos. Talvez a manhã a visse com uma mente mais
desanuviada, e ela poderia ser capaz de ligar a Ben Hope e arranjar
maneira de o ver de novo.
Anna interrogou-se sobre o trilho que ele percorria, que
significância poderiam ter a cruz de ouro e este manuscrito
Fulcanelli. Estariam relacionados com a sua própria pesquisa acerca
do tesouro dos cátaros? Era sabido tão pouco sobre esse assunto que
a maior parte dos historiadores tinha praticamente desistido da
velha lenda.
Um sentimento curioso, que já não sentia há imenso tempo...
Sorriu para si própria. A excitação que sentia com a perspectiva não
se devia somente a curiosidade intelectual.
Anna mal podia esperar pelo próximo encontro com Ben.
Fechou a porta do estúdio e caminhou pelo corredor até ao quarto.
Foi até à casa de banho adjacente e abriu as torneiras da banheira,
depois despiu-se e enfiou um roupão de banho, apanhando o cabelo.
Olhou para a cara no espelho, mas este encontrava-se já embaciado
pelo vapor da água quente.
Ficou tensa. Teria aquilo sido um ruído lá em baixo? Fechou as
torneiras e espetou a cabeça, escutando. Talvez os canos. Voltou a
abrir as torneiras, estalando a língua de irritação com o seu próprio
nervosismo.
Mas mesmo quando estava a despir o roupão para entrar na
banheira, ouviu-o novamente.
Atou o cinto do roupão de banho enquanto atravessava
agitadamente o quarto e chegava ao patamar. Ficou ali à escuta, com
a cabeça inclinada de lado, com um franzir a carregar-lhe a
sobrancelha.
Nada. Mas ela tinha definitivamente ouvido alguma coisa. Ergueu
silenciosamente a estátua de bronze egípcia de Anúbis do seu
pedestal de madeira no patamar. Tomando o peso da efígie do deus
com cabeça de chacal e empunhando-a como um bastão, desceu as
escadas de pés descalços sem fazer barulho. A sua respiração
acelerava-se.
Os nós dos dedos estavam brancos de se agarrarem à estátua. O
átrio de entrada no andar térreo erguia-se ao seu encontro a cada
degrau. Se conseguisse chegar ao interruptor da luz...
Lá estava, aquele som outra vez.
— Quem é que está aí? — Anna queria que a sua voz soasse forte e
confiante, mas o que saiu foi um esganiçar tremelicante.
A forte pancada na porta fê-la saltar. Anna arfou, com o coração
aos saltos.
— Quem é?
— Anna? — disse uma voz de homem no exterior. — Sou eu, o
Edouard.
Os ombros de Anna afundaram-se com o alívio e o braço pendeu
flácido no flanco, ainda agarrado a Anúbis. Correu para a porta e
abriu-a, deixando-o entrar.
Edouard Legrand não estivera à espera de tão calorosa recepção,
depois de ela o rejeitar prontamente ao telefone diversas vezes. Ficou
agradavelmente surpreendido quando ela o apressou para o interior
do átrio de entrada.
— O que andas a fazer com essa coisa? — inquiriu ele com um
sorriso, acenando para a estátua na mão dela.
Anna olhou a estátua, sentindo-se subitamente uma idiota. Pousou
o Anúbis em cima de uma mesa.
— Assustei-me tanto agora mesmo — disse, colocando a palma da
mão sobre o ainda instável coração e fechando os olhos. — Ouvi
barulhos.
Ele riu-se.
— Oh, estas casas velhas estão cheias de barulhos estranhos. A
minha é o mesmo. Provavelmente ouviste um rato. É incrível o
barulho que um minúsculo rato pode fazer.
— Não, foi a ti que eu ouvi — disse ela. — Desculpa se te pareci
perturbada.
— Não tinha intenção de te alarmar, Anna. Não estavas a dormir,
espero? — acrescentou ele, reparando no roupão.
Anna sorriu, agora relaxando.
— Na verdade eu estava prestes a ir tomar banho. Talvez te possas
servir de uma bebida, e eu desço em cinco minutos.
— Por favor, fica à vontade, não te apresses por minha causa.
Bolas, ia ela a pensar ao entrar na casa de banho cheia de vapor.
Parecia encorajamento, a maneira como o apressara a entrar.
Depois queixa-te de passares sinais contraditórios.
Anna não podia dizer que não gostava realmente de Edouard
Legrand. Ele não era completamente falho de charme. Também não
era de todo pouco atraente. Mas nem num milhão de anos poderia
ela corresponder aos sentimentos que ele obviamente tinha por si.
Havia algo nele, algo que Anna não conseguia definir, que a fazia
sentir desconfortável nas proximidades dele. Teria de se livrar de
Edouard o mais gentilmente possível, mas rápida e firmemente antes
que ele começasse a ter ideias erradas.
Anna não conseguiu evitar uma pequena pontada de culpa. Pobre
Edouard.
No piso de baixo, Edouard passeava de um lado para o outro na
sala de estar, trabalhando nas frases que preparara. Então lembrou-
se do champanhe e das flores que deixara no carro, não tendo
querido ser demasiado atrevido à porta como um pretendente a fazer
uma serenata e a transbordar de expectativas. Mas quando ela o
deixara entrar sem protestos e obviamente ansiosa pela sua
companhia, era a altura para os fazer aparecer. Onde é que ficava a
cozinha? Talvez tivesse tempo para enfiar a garrafa no congelador
para a arrefecer enquanto ela tomava banho. Podiam passar juntos
uma noite tão perfeita. Quem é que sabia onde isto poderia levar?
Ansioso de excitação, voltou lá fora ao carro.
Anna saiu da banheira, secou-se com a toalha e enfiou umas calças
de jogging e uma blusa. A sinfonia de Mozart que tocava na
aparelhagem do seu quarto entrava no seu alegre segundo
andamento, e ela acompanhou-a trauteando. Quando desceu para o
andar inferior não tinha ainda resolvido como deveria lidar com o
seu visitante inesperado. Talvez o deixasse ficar algum tempo, tentar
levar a coisa na boa.
A porta da frente encontrava-se escancarada. Anna indignou-se.
Para onde fora ele? Dar um passeio no jardim, às escuras?
— Edouard? — chamou ela da porta de entrada.
Então viu-o. Estava debruçado na janela aberta do carro, com a
cabeça e os ombros no interior como se estivesse à procura de
alguma coisa.
— O que estás a fazer? — perguntou ela, meio a sorrir. Trotou pelos
degraus abaixo, aspirando o cálido aroma nocturno das flores.
Os joelhos dele encontravam-se dobrados e o corpo parecia
encostado à parte lateral do carro. Ele não se mexia.
— Edouard, estás bem? — Estaria bêbedo?
Anna estendeu a mão e abanou-lhe o ombro.
Os joelhos de Edouard cederam e o corpo caiu para trás. Estatelou-
se de costas nos seixos e jazeu ali fixando-a com os seus olhos sem
visão. Tinha a garganta aberta numa ferida que se estendia de orelha
a orelha, cortada até à espinha. O corpo estava encharcado em
sangue.
Anna gritou. Voltou-se e correu em direcção à casa. Bateu com a
porta atrás de si e pegou no telefone da entrada com uma mão a
tremer. Estava cortado.
Ouviu-o novamente — o som que ouvira antes. Desta vez era mais
claro, mais alto. Era o raspar metálico do aço contra o aço. Era
dentro de casa. Na sala de estar.
A lâmina de uma faca a arrastar-se lenta e deliberadamente pelas
grades da sua gaiola.
Anna correu para as escadas. O seu pé pisou algo macio, quente e
húmido. Olhou para baixo. Era um dos seus canários, jazendo
quebrado e ensanguentado no degrau.
As mãos voaram-lhe para a boca.
Através da porta meio aberta da sala de estar ouviu uma
gargalhada, a risada áspera e irritante de um homem que desfrutava
plenamente do seu pequeno jogo com ela.
Na mesa ao fundo das escadas, a estátua de Anúbis estava onde a
deixara. Anna apoderou-se novamente dela com uma mão tremente.
Podia ouvir os passos a vir na sua direcção. Precipitou-se de volta às
escadas. O seu telemóvel estava no quarto. Se conseguisse chegar lá e
fechar-se na casa de banho...
A cabeça foi-lhe puxada para trás e ela gritou de dor. O homem
que lhe surgiu por detrás era alto e musculado, com cabelo curto da
cor do aço e uma cara talhada em granito. Puxou-lhe novamente o
cabelo, rodou-a e socou-a com força na cara com uma mão enluvada.
Anna caiu para o chão, aos pontapés. Ele inclinou-se por cima dela.
Anna fustigou-o com o Anúbis e apanhou-o no malar com um som
cavo.
A cabeça de Franco Bozza saltou para o lado com o impacto. Levou
os dedos enluvados à face e estudou o sangue com um olhar
impassível. Depois sorriu. Muito bem, o jogo terminara. Agora
vamos a coisas sérias. Agarrou-lhe o pulso e torceu-o brutalmente.
Anna gritou de novo, e a estátua caiu-lhe da mão e saltitou pelas
escadas abaixo. Anna fugiu a gatinhar, e ele observou-a a afastar-se.
Ela encontrava-se quase no cimo da escadaria quando ele a agarrou
novamente. Bateu-lhe com a cabeça contra o corrimão e a visão de
Anna explodiu de luz branca. Abateu-se de costas, provando o seu
sangue.
Ele ajoelhou por cima dela, levando o seu tempo. Os olhos dele
estavam a brilhar quando enfiou uma mão no blusão e sacou a
lâmina da bainha com um suave silvo de aço contra a fibra sintética.
Os olhos dela abriram-se muito enquanto ele passava divertidamente
a lâmina da garganta dela até ao abdómen. A sua respiração chegava
em rápidos tremores. Ele manteve-lhe a cabeça para trás com um
punhado de cabelo agarrado.
— A informação atrás da qual andava o inglês — sussurrou ele.
— Dá-ma. E talvez te deixe viver. — Encostou-lhe calmamente a
faca à face.
Ela conseguiu arranjar maneira de falar. A sua voz soava
pequenina.
— Qual inglês?
Ela sentiu a frieza do aço, e depois gritou de agonia quando ele
pressionou a lâmina para o interior da sua carne. Ele afastou a faca,
olhando para o golpe de sete centímetros. O sangue corria-lhe pela
cara. Ela abanou a cabeça de lado a lado, debatendo-se contra o
aperto dele. Ele encostou-lhe a faca à garganta.
— Diz-me o que ele queria de ti — repetiu ele no seu tom grave e
agreste. — Ou corto-te em pedacinhos pequeninos.
A mente de Anna corria.
— Eu não lhe dei nada — insistiu ela, com o sangue a pingar-lhe
nos lábios.
Bozza sorriu.
— Diz-me a verdade.
— Estou a dizer — protestou ela. — Ele andava à procura de um
documento... um manuscrito antigo.
Bozza aquiesceu. Fora isto que lhe tinham dito.
— Onde é que está? — sussurrou.
Anna fez uma pausa, pensando com força. Ele apontou-lhe a faca
ao olho e olhou-a de forma inquisitiva.
— Por cima da lareira — choramingou ela. — N-na moldura.
Os frios olhos dele olharam por um momento para os dela, como
se estivessem a avaliar se ela estava a dizer a verdade. Com
movimentos deliberados ele limpou a lâmina à carpete e pousou a
faca no chão ao lado da cabeça dela. Depois puxou o punho atrás e
esmagou-o na cara dela. A cabeça de Anna pendeu para o lado.
Bozza deixou-a deitada nas escadas, embainhando a faca enquanto
descia para a sala de estar. Arrancou a moldura da parede, partiu o
vidro contra a esquina da prateleira da lareira e sacudiu os
fragmentos. Puxou o pergaminho medieval dos seus apoios, enrolou-
o num cilindro apertado e enfiou-o no profundo bolso interior do
blusão.
Então a Manzini não dera nada ao inglês. Usberti iria ficar
satisfeito consigo. Encontrara a mulher rápida e eficientemente, e
recuperara o que motivara o seu envio pelo seu chefe. Agora ia fazer
a mulher vir a si e desfrutar dela durante algum tempo. Adorava a
expressão nas caras delas quando compreendiam que afinal ele não
as ia deixar viver.
Aquele terror nos olhos delas, aquele delicioso momento quando
elas se encontravam tão impotentes em seu poder. Era ainda melhor
do que a lenta tortura e o clímax dos gritos que vinham depois.
Voltou ao átrio de entrada e os seus olhos estreitaram-se. A mulher
desaparecera.
Anna cambaleara até ao seu estúdio. Podia ouvir o som do vidro a
partir-se no piso de baixo enquanto ele destruía a moldura. O sangue
do corte na face corria-lhe garganta abaixo, a frente da blusa
encontrava-se peganhenta e quente. Tinha a cabeça a andar à roda
mas conseguiu concentrar-se na secretária. A mão esticada pingava
manchas de sangue nas suas notas de pesquisa. Os dedos fecharam-
se em redor do bloco-notas embrulhado no plástico. Agarrando-o
firmemente, meio cega com a dor e a náusea, cambaleou de regresso
ao corredor na direcção do quarto.
Do patamar inferior das escadas Bozza viu a porta do quarto a
fechar-se. Seguiu nessa direcção, subindo as escadas com o seu andar
fácil e não apressado. A medida que se ia aproximando da porta do
quarto estendeu a mão para a bolsa de plástico que trazia no cinto.
O quarto da mulher encontrava-se vazio. No lado mais distante do
quarto havia outra porta. Bozza experimentou o puxador. Estava
trancada pelo interior.
Fechada na casa de banho, Anna atirou-se em pânico ao telefone,
esborratando as suas impressões digitais sanguinolentas no plástico.
Com um vacilar nauseado lembrou-se de que não tinha saldo. Deixou
cair o telefone, com uma vertigem de horror. Sabia que este louco
não a ia deixar viva. Ia morrer horrivelmente. Conseguiria matar-se
antes que ele a apanhasse? A janela não era suficientemente alta.
Ficaria apenas com uma perna partida e ele não tardaria a apanhá-la
de novo.
A porta voou com um estalar da madeira em lascas. Bozza
percorreu a casa de banho e esbofeteou-a. A cabeça de Anna bateu
nos azulejos e ela caiu no chão, desmaiada.
A mão que passara à sua frente estava agarrada a algo. Abriu-lhe
os dedos ensanguentados, tirou-lho da mão e estudou-o.
— Estavas a tentar esconder isto, não estavas? — sussurrou ele
para o corpo inerte. — Brava rapariga. — Enfiou o bloco-notas
embrulhado no plástico dentro do bolso do blusão, depois despiu-o e
pendurou-o nas costas de uma cadeira. Por baixo usava um duplo
coldre de ombro, com uma pequena semiautomática e carregadores
suplentes no sovaco esquerdo e a faca embainhada no direito.
Desembainhando primeiro a faca e pousando-a na borda do
lavatório, abriu o fecho da bolsa e retirou o macacão bem dobrado.
Enfiou a ruidosa vestimenta de plástico por cima da cabeça e
ajustou-a cuidadosamente ao corpo como sempre fazia.
Depois pegou na faca que se encontrava na borda do lavatório com
um tinido de aço contra cerâmica, e caminhou lentamente até Anna
Manzini. Sacudiu o corpo com o pé. Ela gemeu, mexendo-se
dolorosamente. Os olhos meio abertos. Depois abriram-se de horror
quando ela o viu a pairar sobre si.
Ele sorriu. A faca cintilou, e o mesmo fizeram os olhos.
— Agora vai começar a dor — sussurrou ele.
Capítulo 41
Ben virou o Renault para o pátio de entrada de Anna, com os
pneus usados a escorregar na gravilha e os faróis a varrer a fachada
da villa.
— Olha, ela tem visitas — disse Roberta, reparando no Lexus GS
negro brilhante estacionado em frente da casa. — Eu disse-te que
devíamos ter telefonado primeiro.
É muita falta de educação, sabes, aparecer assim a pessoas como
estas.
Ben estava fora do carro, sem ouvir. Tinha notado algo caído no
chão, destacando-se da sombra do Lexus. Percebeu em choque que
era um braço. Um braço de um homem morto, com a mão
enclavinhada, sanguinolenta.
Ben correu à volta do carro, com cenários a passarem-lhe pela
mente. Agachou-se junto ao corpo e percorreu com o olhar a extensa
ferida na garganta do homem. Ben vira suficientes gargantas
cortadas na vida para reconhecer o trabalho de um profissional.
Tocou na pele; ainda restava alguma temperatura.
— O que é, Ben? — perguntou ela, surgindo por detrás dele. Ben
ergueu-se rapidamente e agarrou-a pelos ombros, desviando-a. — É
melhor não olhares. — Mas Roberta vira o corpo. Pressionou as mãos
contra a boca, tentando não vomitar.
— Fica junto a mim — sussurrou ele. Correu para a villa, saltando
os degraus. A porta da frente estava trancada. Ben correu para a
parte lateral da casa, com Roberta a segui-lo, e encontrou a janela
francesa aberta. Deslizou para o interior da casa, sacando da
Browning. Roberta apanhou-o, com a face cinzenta, e ele gesticulou
para ela ficar quieta e em silêncio.
Passou por cima do corpo torcido e quebrado de um canário nos
estertores da morte, com as penas amarelas manchadas de vermelho.
Uma estátua pequena estava caída no patamar inferior das escadas.
Conseguia ver luz lá em cima, música a tocar. A sua face endureceu.
Subiu os degraus três a três, accionando a patilha de segurança da
Browning.
O quarto de Anna estava vazio, mas a porta da casa de banho
encontrava-se entreaberta. Atirou-se lá para dentro, erguendo a
arma à altura de tiro, sem saber o que ia encontrar no interior.
Franco Bozza estivera a divertir-se. Passara os últimos cinco
minutos a cortar lentamente os botões da blusa dela, um de cada vez,
esbofeteando-a de volta à sua poça de sangue quando ela se debatia.
Um cintilante regato carmim corria pelo vale entre os seios dela. Ele
fez correr a parte romba da lâmina pela pele dela até ao estômago
tremente, enganchou a ponta do gume por debaixo do botão seguinte
e estava prestes a cortá-lo quando o súbito som de passos a correr o
sobressaltou para fora do transe.
Rodou velozmente, com saliva no queixo. Era um homem grande e
pesado mas as suas reacções eram rápidas. Agarrou a mulher pelo
cabelo e puxou-a até ela se levantar aos gritos, enquanto se erguia,
torcendo-lhe o corpo até ela ficar à sua frente quando a porta se
escancarou com um estrondo vibrante.
O horror de Ben perante a cena à sua frente abrandou-o um meio
segundo a mais. Os olhos de Anna encontraram os dele, grandes e
brancos numa máscara de sangue. O poderoso homem de cabelo
grisalho tinha o braço em redor da garganta dela, usando-a como
escudo.
O dedo de Ben estava no gatilho. Não podes disparar. A sua visão
oscilou, com o alvo incerto. Ben abrandou a pressão no gatilho.
O braço de Bozza moveu-se e a lâmina faiscou através do quarto
numa mancha a silvar. Ben baixou-se. O aço passou-lhe a três
centímetros da cara e embebeu-se na porta atrás de si com um
baque. A mão de Bozza cruzou o peito e atravessou a gola do seu
macacão de plástico, arrancando a pequena Beretta .380 do coldre.
Ben correu o risco e disparou um tiro, mas a sua bala transviou-se
por medo de atingir Anna. Quase no mesmo instante a pistola de
Bozza soou e Ben sentiu a bala a ricochetear no frasco que trazia no
bolso. Recuou um passo a cambalear, momentaneamente aturdido,
mas recuperou depressa e trouxe a Browning de volta à posição de
tiro enquanto a sua raiva explodia e a mira caía em cheio na testa de
Bozza. Agora apanhei-te.
Mas antes que Ben pudesse disparar, Bozza fez Anna voar através
do quarto na sua direcção como se fosse uma boneca de trapos. Ben
apanhou-a, salvando-a de embater com a face nos ensanguentados
mosaicos do chão. Perdeu o alvo.
O homem grande saltou para trás através da janela como um
mergulhador. Ouviram-se ferozes sons de rasgões e raspões quando
ele esgravatou pela frágil latada abaixo.
Caiu no chão, arranhado e sujo de lama. Soou um tiro e uma bala
passou-lhe junto ao ouvido, abrindo um rasgão no tronco de árvore
atrás de si.
Ben debruçou-se da janela e disparou novamente, cego na
escuridão. O atacante desaparecera. Por um segundo pensou em dar-
lhe caça, mas decidiu-se contra. Quando se voltou para Anna,
Roberta chegara e inclinava-se por cima do corpo imóvel.
— Oh, meu Deus.
Ben tomou-lhe o pulso.
— Está viva.
— Graças a Deus. Que... — A face de Roberta estava branca. — Isto
não é apenas uma coincidência, pois não, Ben? Isto tem alguma coisa
a ver connosco. Jesus, fomos nós que lhe trouxemos isto?
Ben não respondeu. Ajoelhou-se e examinou Anna em busca de
ferimentos. Tirando o feio corte na face, com as extremidades a secar
e incrustado de sangue acastanhado, não tinha mais nada.
Tirou o telefone do bolso e atirou-o a Roberta.
— Chama uma ambulância — disse. — Mas não a polícia, e limita-
te a dizer que houve um acidente. Não toques em nada.
Roberta assentiu e correu para o quarto ao lado.
Ben alcançou o varão cromado na parede da casa de banho e
puxou uma toalha branca de pêlo comprido. Levantou gentilmente a
cabeça de Anna, depois colocou a toalha por baixo a servir de
almofada.
Cobriu-lhe o corpo com um roupão de banho e uma outra toalha
para a conservar quente, e fechou a janela. Voltando a ajoelhar-se
junto dela, acariciou-lhe suavemente o cabelo. Estava espetado e
peganhento do sangue.
— Vais ficar bem, Anna — murmurou. — A ambulância não
demora. Ela mexeu-se, e os olhos abriram-se. Focaram-se
lentamente nele, e ela murmurou qualquer coisa.
— Shh, não tentes falar. — Ben sorriu, mas as suas mãos tremiam
de fúria e jurou silenciosamente que ia matar o homem que fizera
isto.
O atacante deixara cair a pistola quando se atirara contra a janela.
Ben fechou-lhe o cão e enfiou-a à cintura. Havia alguns cartuchos
vazios no chão. Apanhou-os e aconchegou-os no bolso. Conseguia
ouvir Roberta no quarto de dormir, falando urgentemente ao
telefone.
Foi quando reparou no blusão negro pendurado nas costas da
cadeira.
Capítulo 42
O hotel rural era visível da estrada por entre as árvores, inundado
de luz e convidativo na escuridão. Ben virou o Renault para fora da
estrada e desceu o longo e sinuoso caminho de acesso no meio dos
terrenos arborizados. Estacionaram à entrada, junto a alguns outros
carros e um autocarro de turismo.
— Traz o teu saco, vamos ficar aqui esta noite.
— Porquê um hotel, Ben?
— Porque dois estrangeiros num hotel é uma coisa normal, mas
dois estrangeiros a ficar com um pároco de aldeia dá que falar. Não
podemos voltar para casa do Pascal depois desta noite.
No interior, Ben aproximou-se do balcão da recepção e tocou à
campainha. Instantes depois apareceu a recepcionista vinda do
escritório.
— Tem quartos? — perguntou Ben.
— Não, monsieur, estamos cheios.
— Não há quartos nenhuns? Nem sequer estamos na época alta.
— Temos um grupo de turistas ingleses para o Tour Cátaro. Está
quase tudo ocupado.
— Quase?
— A única acomodação que resta é a nossa melhor suite. Mas é
normalmente... isto é... está reservada para...
— Ficamos com ela — disse Ben sem hesitação. — Devo pagar-lhe
já? — Ben meteu a mão no bolso. Tirou para fora o passaporte falso
em nome de Paul Harris e a carteira. Pousou o passaporte em cima
do balcão e mostrou-lhe o dinheiro. Havia o suficiente na carteira
para alugar o hotel inteiro durante um mês. A recepcionista abriu
desmesuradamente os olhos. — N... não há necessidade de pagar já
— gaguejou ela.
A recepcionista tocou uma campainha no balcão da recepção.
— Joseph! — chamou ela numa voz mais baixa do que seria de
supor, e um velhote seco num uniforme de paquete apareceu
instantaneamente a seu lado. — Leva a madame e o monsieur 'Arris à
suite lua-de-mel.
O velho Joseph levou-os escadas acima, abriu uma porta e
cambaleou para o interior do quarto carregando os sacos.
— Deixe-os aí na cama — disse-lhe Ben, e presenteou-o com uma
farta nota como gorjeta, a qual era só o que tinha de trocos.
Roberta olhou em redor da acomodação. A antecâmara, com um
sofá, cadeirões de braços e uma mesa de café abria-se para um
enorme espaço quadrado dominado por uma cama de dossel
adornada com um coração vermelho gigante. Numa grande mesa de
nogueira estavam flores, chocolates atados com fitas e estatuetas de
pequenas noivas de vestidos brancos e noivos com abas de grilo.
Ben sentou-se na cama e desfez-se dos sapatos, deixando-os onde
caíram no tapete com um Cupido. Que quarto mais absurdo, pensou.
Se não fosse por Roberta, estaria a dormir no carro, escondido
algures nalguma densa floresta. Despiu o blusão e o coldre e atirou-
os para cima da cama, depois deitou-se de costas, alongando os
músculos fatigados. Como reflexo meteu a mão no bolso e tirou o
frasco. Estava amolgado onde deflectira a bala uma hora antes. Se o
projéctil da .380 o tivesse atingido na perpendicular, tê-lo-ia
perfurado de um lado ao outro.
Olhou-o fixamente durante alguns segundos. Mais uma vida gasta,
pensou, deu um gole e pousou o frasco.
— A Anna vai ficar bem? — perguntou Roberta numa voz sumida.
Ben mordeu o lábio.
— Iá, acho que sim. Talvez precise de uns pontos e tratamento
para o choque. Eu ligo de manhã para descobrir em que hospital é
que ela está. — Pelo menos podia ficar descansado sabendo que ela
se encontrava em segurança. Assim que a ambulância lá tivesse
chegado, os polícias teriam sido alertados e ela teria protecção no
hospital.
— Como é que eles chegaram a ela, Ben? O que queriam dela?
— Eu próprio me tenho interrogado sobre isso — murmurou ele.
— E o homem morto no exterior da casa dela? Quem era ele?
Ben encolheu os ombros.
— Não sei. Talvez um amigo dela que esteve apenas no sítio errado
à hora errada.
Roberta suspirou de forma audível.
— Não consigo suportar pensar no assunto. Vou tomar um banho.
Ben sentou-se e pensou enquanto ouvia vagamente a água a
esparrinhar em segundo plano. Estava lixado consigo próprio. Fora
pura sorte que tivessem chegado a Anna a tempo. Ben vira imensas
mortes e sofrimento durante a sua vida, mas nem sequer queria
imaginar a forma como ela teria morrido se tivessem chegado cinco
minutos depois.
Há muito tempo, prometera a si mesmo que nunca mais permitiria
que os seus erros prejudicassem inocentes. Mas de alguma forma
estava a acontecer. Aquela gente estava a aproximar-se de novo, e os
riscos aumentavam demasiado.
Tomou uma decisão. No dia seguinte ia levar Roberta à cidade de
Montpellier e ia pô-la num voo para os Estados Unidos. E ia ficar no
aeroporto até ver o avião a deixar o solo com ela lá dentro. Já o devia
ter feito há dias.
Afundou a cabeça nas mãos, tentando afastar os persistentes
sentimentos de culpa. Por vezes parecia que por muito que tentasse
fazer o que era correcto, tudo o que fez durante a sua vida — cada
mudança, cada decisão — estava de alguma maneira condicionado
inexorável e magneticamente a regressar para o atormentar. Quanto
arrependimento e auto-recriminação podia um homem carregar?
Uma pancada na porta dispersou-lhe os pensamentos. Enquanto
caminhava para a antecâmara para averiguar, enfiou a Browning no
cinto, ao centro do fundo das costas.
Desfraldou a camisa para a cobrir.
— Quem é? — perguntou com suspeitas.
— A comida que pediu, monsieur 'Arris — chegou-lhe a voz
abafada de Joseph. — E o vosso champanhe.
— Eu não pedi champanhe nenhum. — Ben destrancou a porta,
com a mão a pairar perto de onde aninhara a pistola fria contra a
pele. Quando viu o velhote seco ali fora sozinho com o carrinho de
serviço, relaxou e abriu a porta.
— Monsieur, o champanhe faz parte — disse Joseph enquanto fazia
entrar o carrinho no quarto. — Vem com a suite.
— Obrigado, deixe-o ficar aí.
Com a grande gorjeta ainda aninhada no bolso, e a promessa de
mais, os passos do velhote pareceram mais vivos enquanto
empurrava o carrinho para o interior do quarto.
Havia charcuterie e uma selecção de queijos, baguette acabada de
fazer e champanhe no gelo. Ben deu mais algum dinheiro a Joseph,
conduziu-o até à porta e trancou-a a seguir.
O champanhe suavizou-lhes a disposição. Comeram em silêncio.
Em segundo plano a rádio dava um jazz suave. Quando a garrafa
ficou vazia era quase meia-noite. Ben agarrou numa almofada do
dossel e atirou-a para o sofá de cabedal perto da janela no extremo
oposto do quarto. Tirou alguns cobertores do roupeiro e ajeitou uma
cama de recurso para si próprio.
A rádio mudara para uma velha canção de Edith Piaf. Roberta
aproximou-se dele.
— Ben, queres dançar comigo?
— Dançar? — Ben olhou para ela. — Tu queres dançar?
— Por favor. Eu adoro esta canção. — Roberta tomou-lhe as mãos,
sorrindo incertamente, e podia senti-lo a ficar tenso.
— Eu não sei dançar — disse ele.
— Oh, pois, isso é o que dizem todos.
— Não, a sério, eu não sei dançar. Nunca dancei.
— Nunca?
— Nem uma vez sequer.
Pelos movimentos rígidos e estranhos ela podia ver que ele dizia a
verdade. Roberta olhou para ele.
— Tudo bem, eu ensino-te. Limita-te a pegar-me nas mãos e
relaxa. — Roberta aproximou-se suavemente dele e pousou-lhe uma
mão no ombro, tomando-lhe a mão com a outra.
— Põe a tua mão livre aqui na minha cintura — incitou-o ela. A
mão estava rígida. Roberta moveu-se com ele, e ele tentou
acompanhar os movimentos dela, arrastando os pés de chumbo atrás
dos dela.
— Estás a ver? Sente o ritmo.
— Está bem — disse ele hesitantemente.
A canção terminou e seguiu-se imediatamente outra: La Vie en
ose.
— Oh, esta também é boa. Muito bem, aqui vamos nós outra vez...
é isso... estás a gostar?
— Não sei... talvez.
— Acho que podias ser bom nisto, se conseguisses relaxar um
pouco mais. Ai, o meu pé.
— Desculpa. Eu avisei-te.
— Estás a pensar demasiado.
A partir de uma simples dança ele podia sentir um milhão de
emoções conflituosas. Era uma sensação tão estranha, e ele não
conseguia decidir se era ou não agradável.
Um mundo quente e convidativo parecia estar a acenar-lhe. Ele
queria abraçar o calor, deixá-lo mais uma vez entrar no seu coração
após tantos anos sozinho ao frio.
No entanto, assim que começou a sentir que lhe cedia, ficou tenso,
e uma barreira pareceu fechar-se algures dentro dele.
— Cheguei a pensar que tinhas apanhado o jeito.
Ben afastou-se. Era demasiado para si. Era como se o seu espaço
tivesse sido invadido, a sua zona de conforto penetrada depois de
anos só. Atirou um olhar de lado ao minibar.
Roberta interceptou-lhe o olhar.
— Não, Ben, por favor. — Ela pousou uma mão quente na dele.
Ele olhou para o relógio.
— Ei — riu-se ele nervosamente. — Já é tarde. Temos de nos
levantar cedo.
— Não pares. É bom — murmurou ela. — Vá lá, hoje tivemos um
péssimo dia. Ambos precisamos disto.
Dançaram um pouco mais. Ele sentiu o corpo dela a aproximar-se
do seu. Ele fez a sua mão percorrer-lhe o braço até ao ombro e
acariciou-o. O coração batia-lhe mais depressa. As cabeças
começaram a juntar-se.
A canção chegou ao fim, e a voz do apresentador da rádio
estragou-lhes o momento. Separaram-se, sentindo-se subitamente
conscientes de si próprios.
Durante alguns minutos houve silêncio entre eles. Ambos sabiam o
que estivera prestes a acontecer e ambos, de maneiras diferentes,
sentiam uma tristeza a descer sobre si.
Ben foi até à sua cama improvisada no sofá e, demasiado cansado
para se despir, deitou-se. Roberta subiu para a vasta cama nupcial e
ficou a olhar para a cobertura por cima.
— Nunca dormi numa cama destas — disse ela passado algum
tempo.
De novo silêncio enquanto se conservavam deitados em lados
opostos do quarto às escuras.
— Como é que está o sofá? — inquiriu ela.
— Bom.
— Confortável?
— Já dormi em sítios piores.
— Nesta cama cabem para aí umas seis pessoas.
— E então?
— Estava a pensar.
Ben levantou a cabeça da almofada e olhou para onde ela se
encontrava deitada no escuro.
— Estás a pedir-me para me enfiar na cama contigo?
— É... em cima da cama, então — gaguejou ela, embaraçada. —
Não era um engate, se é isso que estás a pensar. Estou apenas um
pouco nervosa. Dava-me jeito um pouco de companhia.
Ben hesitou por instantes. Depois levantou-se e puxou os
cobertores do sofá. Dirigiu-se para a cama às apalpadelas, às cegas
no quarto desconhecido. Instalou-se no outro lado da cama e deitou-
se junto a Roberta. Puxou os cobertores por cima do corpo.
Ficaram ali na escuridão, com espaço entre os dois. Roberta virou-
se para o lado dele, querendo tocar-lhe, sentindo-se estranha. Podia
ouvir a respiração dele a seu lado.
— Ben? — sussurrou ela.
— Iá?
Roberta hesitou antes de falar.
— Quem é a menina naquela fotografia?
Ben apoiou-se num cotovelo e olhou para ela. A face de Roberta
era uma mancha pálida ao luar.
Roberta desejou estender a mão e tocar-lhe, abraçá-lo.
— Vamos dormir — disse ele em voz baixa, voltando a deitar-se.
Por volta das duas, Ben despertou e deu com o braço esbelto de
Roberta estendido por cima do peito. Ela dormia. Ben deixou-se ali
ficar algum tempo, olhando fixamente para o leve reflexo do luar no
dossel da cama, sentindo o suave subir e descer do cálido corpo de
Roberta a dormir.
O toque do braço dela era uma curiosa sensação. Era
estranhamente electrizante, enervante e no entanto um profundo
conforto. Deixou-se relaxar com essa sensação, fechou os olhos e
adormeceu com um sorriso a formar-se aos cantos da boca.
Capítulo 43
Ben dormiu menos de uma hora antes de os seus pensamentos
sonhados o terem feito despertar com um sentimento de culpa, e
atirou as pernas para fora da cama. Levantou cuidadosamente do
peito o braço adormecido de Roberta e rolou para sair da cama.
Levantou-se, ergueu a Browning da mesa e agarrou no saco.
Tacteando o caminho ao luar foi até à antecâmara. Fechou
suavemente a porta atrás de si e ligou um candeeiro de mesa.
As regras do jogo tinham mudado. Subitamente tornara-se mais
claro que esta gente, quem quer que fossem, também andava atrás
do manuscrito. Tinha trabalho para fazer.
O simples blusão negro que trouxera da casa de Anna ainda se
encontrava no seu saco. Puxou-o para fora e passou novamente os
bolsos em revista. Tirando o bloco-notas de Rheinfeld e o
pergaminho forjado que o atacante arrancara à moldura, estavam
vazios. Não havia um vestígio de uma pista quanto à identidade do
seu proprietário.
Quem era ele? Um assassino contratado, talvez. Já se cruzara antes
com esta gente, mas nunca com um destes, nunca com um maníaco
doentio que torturava mulheres.
Interrogou-se sobre o pergaminho forjado. Porque o arrancara o
homem da parede de Anna? Tal como o proprietário precedente que
o passara a Anna, ele devia ter sido enganado pelo estilo antigo e
aparência da cuidadosa falsificação. Isso só podia querer dizer que
quem mais andava à procura do manuscrito não fazia melhor ideia
do que ele acerca do que exactamente era ou da sua aparência. Mas
era certamente importante para eles. Suficientemente importante
para matarem por ele.
Tirou o bloco-notas de Rheinfeld, retirou-o da cobertura plástica e
sentou-se com ele num sofá perto do candeeiro. Até agora, não tivera
uma boa oportunidade de o estudar de perto. Teria Roberta razão
acerca dele? Seria possível que Rheinfeld tivesse transcrito de
memória os segredos que roubara a Gaston Clément? Ben tinha
esperança que sim. Não havia mais nada por onde pegar.
Virou lentamente as páginas imundas, escrutinando o texto e os
desenhos. Muito daquilo parecia não fazer sentido. Espalhadas
aparentemente ao acaso ao longo das páginas, encontravam-se
combinações alternadas de letras e números. Algumas das
combinações eram extensas, outras curtas. Andou para trás e para a
frente e contou nove destas anotações. Lembravam-lhe um pouco as
diatribes de Rheinfeld na gravação do dictafone de Anna.
N 18 N 26 O 12 I 17 R 15 22 R 20 R 15
U 11 R 9 E 11 E 22 V 18 A 22 V 18 A
13 A 18 E 23 A 22 R 15 O
Nos seus dias de estudante Ben tivera de lidar com imensos textos
religiosos antigos escritos em latim. Mas isso tinha sido há muito
tempo. Levou-lhe algum tempo a desenrascar-se com as palavras e
chegar a uma tradução. Lia-se: Enquanto o sangue flui da abençoada
chaga de Cristo e a santa Virgem aperta o seu virginal seio, o leite e o
sangue esguicham e misturam-se e tornam-se a fonte da vida e a
nascente do Bem-estar.
A fonte da vida... a nascente do bem-estar. Isto soava como
referência a algum elixir da longa vida. Mas eram tão vagas.
Continuou a ler denodadamente. Chegou a uma página com apenas
uma linha de texto, e por baixo dessa linha um símbolo circular. A
escrita era em francês, o texto encaracolado dificilmente visível por
entre manchas de sangue velho e as marcas dos dedos de Rheinfeld.
Mais uma vez traduziu.
Consideremos o símbolo do corvo, porque este oculta um ponto
importante da nossa ciência
FIN
L'EAU ROTIE
LE LAC D'SANG
M.L.R
THE END
THE ROASTED WATER
THE LAKE OF BLOOD
M.L.R
FIN
L'EAU ROTIE
LE LAC D'SANG
M.L.R
RECHERCHÉ
ARMÉ ET DANGEREUX
Capítulo 46
Dezasseis minutos depois, as unidades de resposta táctica da
polícia agrupavam-se no exterior do Hotel Royal. Separando-se em
grupos, agentes paramilitares vestidos de negro, fortemente armados
com pistolas-metralhadoras, caçadeiras de canos curtos e lançadores
de granadas de gás lacrimogéneo cercaram o edifício. Os confusos
hóspedes e pessoal foram agrupados, levados para o exterior e
colocados a uma distância segura nos terrenos em redor. Espalhou-
se palavra, e em breve toda a gente sabia do perigoso e armado
criminoso que a polícia procurava. Seria um terrorista? Um
psicopata? Todos tinham as suas próprias versões da história.
O rasto do homem foi em breve descoberto nas traseiras do hotel.
Por trás do parque de estacionamento do pessoal havia um campo
relvado não cortado que dava para as quintas vizinhas. Um agente da
polícia de olho vivo descobriu a pista onde a relva alta fora
espezinhada. Alguém correra recentemente por ali. Os pastores-
alemães da polícia apanharam-lhe imediatamente o cheiro.
Ladrando furiosamente e fazendo esticar as trelas conduziram os
seus tratadores através do campo enquanto agentes armados os
seguiam logo atrás. O rasto cortava através do campo até um
pequeno bosque. O fugitivo não podia ter ido longe.
Mas o rasto não levava a lado nenhum. Parava à beira do bosque.
Os agentes olharam para as árvores mas não havia sinal dele. Era
como se ele se tivesse evaporado.
Os perseguidores levaram alguns minutos a compreender que a
sua presa os enganara. Regressara pelo mesmo caminho para deixar
uma pista falsa.
Com os narizes no chão, os pastores-alemães conduziram-nos de
volta ao hotel. O cheiro levou-os para as traseiras, através de uma
entrada para as cozinhas. Os agentes sacaram das pistolas.
Juntaram-se-lhes mais alguns com caçadeiras.
Os cães pararam subitamente, desorientados, espirrando, levando
as patas aos focinhos. Alguém espalhara um frasco grande de
pimenta moída pelo chão.
Ao sinal, o esquadrão táctico, de capacetes e vestidos de negro,
varreu todos os quartos do hotel. Trocando sinais de mãos, cobrindo-
se uns aos outros com as armas, movimentaram-se eficientemente
do corredor para as escadas e subiram um andar de cada vez, um
quarto de cada vez, verificando todos os cantos possíveis em busca
do fugitivo.
Encontraram um homem na suite lua-de-mel, mas não o homem
que esperavam encontrar. Era um francês de cinquenta e dois anos
em roupa interior, preso a um dos pilares da cama com as suas
próprias algemas. Tinha a cara vermelha e os olhos protuberantes
quando os atiradores da polícia irromperam por ali adentro e lhe
apontaram as armas. Alguém lhe enfiara uma toalha de mãos do
hotel na boca. Chamava-se sargento Emile Dupont.
O uniforme da polícia táctica era um pouco largo para Ben, e as
calças eram alguns centímetros mais curtas. Mas ninguém notou
quando ele saiu confiantemente do hotel, gritando ordens severas a
alguns agentes juniores. Ninguém reparou no saco militar verde
alheio ao equipamento que ele transportava.
E ninguém reparou quando ele se encaminhou pelo meio da
multidão de hóspedes tagarelas, se enfiou num dos carros da polícia
estacionados na parte da frente do hotel e tranquilamente arrancou.
A testemunha dissera que o Porsche preto virara à esquerda. Mas
estivera hesitante. Ben virou à direita. Uma vez fora das vistas do
hotel meteu prego a fundo, relanceando o olhar pelo espelho
retrovisor para confirmar que passara despercebido. Chegavam
mensagens via rádio. Não podia ficar muito tempo com este carro.
Ela só cá viera abaixo para ver a pequena boutique à saída do átrio
do hotel. Ben dormia a sono solto por cima de um monte de notas e
papéis na antecâmara. Não quisera incomodá-lo. Assim como assim,
estaria de volta dentro de cinco minutos, finalmente com algo limpo
e fresco para vestir.
A boutique só abria às 8 h 45 m. Espreitou a montra, decidiu-se
por uma camisola da qual gostou do aspecto, e um par de calças de
ganga pretas. Alguns minutos para matar, e o ar da manhã estava
limpo e fresco. Passeou à frente do hotel, admirando algumas das
plantas, ainda a tentar não pensar no dia anterior.
Não reparara no homem que lhe surgira por detrás. A aproximação
foi silenciosa e rápida. Logo a seguir, uma mão enluvada de negro
cobria-lhe a boca e uma pontiaguda ponta de faca fazia-lhe pressão
na garganta.
— Começa a andar, puta — disse-lhe uma voz rouca e sussurrante
ao ouvido. A pronúncia era densamente estrangeira.
Do outro lado do parque de estacionamento, meio escondido por
detrás de um grande arbusto ornamental, encontrava-se um Porsche
preto com as portas abertas. O homem era grande e poderoso. Ela
não conseguia libertar-se do aperto dele no seu braço, ou gritar com
aquela mão forte a cobrir-lhe a face. Ele atirou-a para dentro do
carro e socou-a na cara, com força. Soube-lhe a sangue antes de
desmaiar.
Não havia maneira de dizer quanta estrada tinham percorrido
antes de ela voltar a si. A sua mente clareou rapidamente quando a
adrenalina se começou a espalhar no seu corpo. A seu lado no
apertado cock-pit do carro de desporto, a cara do seu raptor parecia
granito. Ele empunhou a lâmina contra o seu estômago, conduzindo
com uma mão. O Porsche corria pela estrada rural com 150 no
mostrador, paisagem campestre aberta e uma árvore ocasional a
aparecer de vez em quando.
Seria loucura fazer alguma coisa. Matava-nos aos dois. Ou então
ele enfia-me a faca.
Mas ela fê-lo na mesma.
O carro entrava numa série de apertadas curvas em S, abrandando
para os 85. Por um instante ele distraiu-se. Ela socou-o com toda a
sua força e apanhou-o no ouvido.
A faca saltitou no chão. Ele rugiu. O Porsche oscilou. Roberta
esticou-se no assento e agarrou-se ao volante, torcendo-o na sua
direcção. O carro atravessou-se loucamente para a direita, derrapou
na berma rochosa e bateu de lado numa árvore. Roberta foi
canhoneada contra a porta do passageiro, e a força do impacto atirou
o seu raptor para cima dela.
O pesado corpo tirou-lhe momentaneamente o ar.
O Porsche imobilizou-se numa nuvem de pó. No interior, ele
dominava-a com o próprio peso. Pegou na faca e pressionou a lâmina
contra o pescoço dela. Podia imaginar como, com apenas um pouco
mais de pressão, o fio da navalha de aço meticulosamente afiado
penetraria através das camadas de pele e principiaria a sua lenta e
deliberada viagem para o interior da carne, cada vez mais fundo
enquanto o sangue começava a correr. A princípio correria devagar.
Depois em jactos pulsantes enquanto ele a imobilizava e sentia o
corpo dela a debater-se contra o seu aperto.
Mas por entre a névoa vermelha da luxúria ele lembrou-se da
chamada telefónica para o arcebispo na noite anterior. "O inglês tem
o manuscrito", dissera a Usberti, sem revelar como o deixara
escorregar por entre os dedos.
"Quero-os vivos, Franco", ordenara-lhe a voz de Usberti. "Se não
consegues recuperar o manuscrito, teremos de pensar numa maneira
de forçar o Hope a entregá-lo."
Bozza adorava o seu trabalho para a Gladius Domini, mas a
política e a intriga não tinham qualquer interesse para ele. Olhou
iradamente para a forma de Roberta Ryder que se debatia debaixo
dele, prendendo-a ao assento do carro enquanto ela se contorcia e
lhe cuspia na cara. Era frustrante ser-lhe negado o prazer de a matar.
Pousou a faca, socou-a novamente e conduziu dali para fora.
O carro da polícia roubado atirava nuvens de pó para o ar
enquanto Ben o forçava aos limites pelas estradas desertas. Ben
começava a interrogar-se se deveria ter ido noutra direcção quando
chegou às curvas em S e viu as negras e recentes marcas de
derrapagem do lado direito, subindo a berma rochosa. No alto do
declive, uma velha árvore fora atingida, com a casca arrancada do
tronco e um ramo pendurado como um braço partido.
Parou o carro e agachou-se na berma da estrada. No chão e
incrustadas na casca arrancada da árvore, Ben descobriu lascas de
tinta preta.
Algo escuro e brilhante na berma da estrada lhe prendeu o olhar.
Remexeu-lhe com o dedo. Um pingo de óleo de motor, ainda quente
ao toque. A julgar pela largura, as marcas de derrapagem tinham
sido feitas por pneus desportivos largos e aderentes. Um carro de
competição preto, que ia com pressa a qualquer lado. Tinha de ser o
Porsche.
Encontrou mais óleo um pouco adiante na estrada, manchas e
pingos a intervalos regulares na direcção que trazia. O condutor
devia ter batido numa pedra e danificado o cárter. Porque é que o
carro batera? Qual seria a extensão dos danos? Talvez houvesse uma
possibilidade de o encontrar avariado mais à frente, se continuasse a
perder tanto óleo. Mas embora o carro da polícia fosse veloz e
potente, era altamente conspícuo e ele era um alvo parado se o
conservasse.
Ben seguiu o rasto de óleo durante mais alguns quilómetros,
mantendo uma orelha alerta para as mensagens intermitentes no
rádio da polícia. Conforme esperara, não passou muito tempo antes
que dessem pelo carro em falta e estavam a enviar outros para o
encontrar. Ia ter de trocar de veículo, e perder a oportunidade de
apanhar o Porsche danificado.
Num dos extremos de um sonolento aglomerado rural encontrava-
se uma oficina com uma bomba de gasolina e uma tabuleta que
ondulava e chiava com a brisa. Logo a seguir havia um caminho de
lama esburacado que se estendia para um dos lados. Virou o carro
para aí, suspirando de frustração. Seguiu o caminho ao longo de
cerca de meio quilómetro até este terminar num campo semeado de
pedras, pasto amarelado e arbustos arrancados. Despiu o uniforme
da polícia e mudou-se novamente para as suas próprias roupas,
limpou tudo em que tocara no interior do carro, depois atirou as
chaves para uma vala e começou a correr de volta na direcção da
oficina.
O mecânico olhou para cima quando o homem alto e louro entrou
na oficina pela abertura na grade metálica. Esfregou o queixo
cerdoso com dedos grosseiros e enegrecidos, afastou-se do chaço que
estava a arranjar e acendeu um cigarro. Sim, vira passar um Porsche
preto. Tinha sido há pouco menos de uma hora. Belo carro, uma
pena os danos. Parecia que tivera um acidente, com o guarda-lamas
traseiro todo metido dentro. Havia algo a raspar na roda, soava como
tal.
— Iá, matrícula italiana? O louco filho-da-mãe bateu no meu carro
-disse Ben. — Atirou-me para fora da estrada lá atrás. Tive de andar
uns bons quilómetros.
— Precisa de reboque? — O mecânico virou o queixo na direcção
do ferrugento camião de reboque estacionado lá fora.
Ben abanou a cabeça.
— Tenho um acordo especial com a companhia de seguros. Eu
ligo-lhes. Em todo o caso obrigado. — Enquanto falavam, Ben
percorreu o sítio com o olhar. Havia uma pequena área de exposição
anexa à oficina, vendendo principalmente carros usados e carrinhas.
O olhar prendeu-se-lhe em algo. — Mas digo-lhe uma coisa. Aquilo
está à venda?
Ben não andava de motocicleta há mais de dez anos. A última vez
que andara de mota fora numa antiga mota de estafeta militar que
vibrava como um martelo pneumático e vertia óleo e gasolina. A
elegante Triumph Daytona 900 triple que agora conduzia era uma
máquina de um género completamente diferente, brutalmente
potente e mais veloz que a maior parte das coisas de quatro rodas.
Seguiu a estrada, mantendo-se acutilantemente atento a mais
manchas de óleo. Se tivesse sorte, aqueles pequenos pingos redondos
seriam o rasto de migalhas que o poderiam levar para onde quer que
o Porsche tivesse ido.
Alguns quilómetros mais à frente, o coração afundou-se-lhe
quando o rasto de óleo subitamente se extinguiu. Andou mais cerca
de quilómetro e meio, observando o pavimento atentamente
enquanto reduzia o gás e a Triumph ronronava a passo. Nada.
Praguejou. Ou a fuga se tinha magicamente reparado a si própria, ou
então o condutor mudara de rumo algures. Estação de serviço, com
uma vítima de rapto no carro? Parecia improvável. Devia ter ligado
para um contacto local para ser rebocado. E agora desaparecera.
Ben parou a mota e ficou ali sentado a fixar a estrada deserta.
Perdera-a.
Capítulo 47
Ben estacionou a grande Triumph com o descanso lateral entre as
árvores que bordejavam Saint-Jean e enfiou o capacete completo no
punho da máquina. As ruas da aldeia estavam tão silenciosas e
desertas como sempre. Encontrou o padre Pascal em casa.
— Benedict, eu andava tão preocupado consigo. — Pascal agarrou-
o pelos ombros. — Mas... onde está a Roberta?
Ben explicou-lhe a situação e a face do padre foi caindo mais e
mais. Afundou-se desesperadamente num banco. Subitamente
parecia ter todos os seus setenta anos.
— Não posso ficar aqui muito tempo — disse Ben. — A polícia não
vai perder muito tempo a ligar o Renault no hotel a si. Há-de cá vir
para o interrogar a meu respeito.
Pascal levantou-se. Havia um intenso brilho nos seus olhos que
Ben ainda não vira. Tomou o braço de Ben.
— Venha comigo. Há um sítio melhor para falarmos.
No interior da igreja, Ben ajoelhou no confessionário. A cara de
Pascal encontrava-se meio visível através da janela de rede entre
ambos.
— Não se preocupe com a polícia, Benedict — disse Pascal. — Eu
não lhes direi nada. Mas o que vai fazer? Receio terrivelmente por
Roberta.
Ben tinha um ar sombrio.
— Não sei o que será melhor — disse ele. Não podia deixar uma
criança moribunda à espera. Cada minuto que adiasse seria tempo
perdido para ela. Podia continuar e terminar o seu trabalho... Mas
isso era assinar a sentença de morte de Roberta. Podia ir atrás dela,
mas se já estivesse morta ou não a conseguisse encontrar, arriscava
sacrificar a criança para nada. Suspirou. — Não posso salvar as duas.
Pascal ficou sentado em meditativo silêncio durante um ou dois
minutos.
— É uma escolha difícil que tem pela frente, Ben. Mas tem de
escolher. E uma vez tomada a decisão, não deve arrepender-se dela.
Já houve demasiado arrependimento na sua vida. Mesmo que a sua
escolha leve ao sofrimento, não deve olhar para trás. Deus saberá que
o seu coração estava puro.
— Padre, sabe o que é a Gladius Domini? — perguntou Ben.
Pascal pareceu ficar desconcertado.
— Em latim quer dizer "a espada de Deus". Uma expressão curiosa.
Porque é que pergunta?
— Nunca ouviu falar de um grupo, ou organização, com esse
nome?
— Nunca.
— Lembra-se do que me contou acerca de um bispo...
— Sssh. — Pascal interrompeu-o com um olhar urgente. — Está
aqui alguém — sussurrou.
O pároco caminhou ao longo da álea central e saudou os detectives
da polícia por debaixo da arcada à entrada.
— Padre Pascal Cambriel?
— Sim.
— Eu sou o inspector Luc Simon.
— Falemos lá fora — disse Pascal, afastando-os da igreja e
fechando a porta atrás de si.
Simon estava cansado. Acabara de ser trazido de Le Puy pelo
helicóptero da polícia. A pista aí não dera em nada, mas ele soubera
que Ben Hope em breve ressurgiria algures. Tivera razão. Mas o
porquê das pegadas de Hope o estarem a conduzir para esta pequena
e poeirenta aldeia no meio de nenhures ficava para além da sua
compreensão.
Doía-lhe a cabeça e sentia falta de café.
— Julgo que perdeu um carro — disse ele a Pascal. — Um Renault
14?
— Perdi? — Pascal pareceu surpreendido. — Que quer dizer com
perdi? Não pego nele há semanas, mas tanto quanto sei ainda se
encontra...
— O seu carro foi encontrado no Hotel Royal perto de Montségur.
— O que estava ele lá a fazer? — perguntou incredulamente Pascal.
— Era isso que eu pensava que o senhor me pudesse dizer —
retorquiu Simon com a suspeição na voz. — Padre, o seu carro
encontra-se implicado numa caça ao homem a um criminoso
extremamente perigoso.
Pascal abanou a cabeça de incredulidade.
— Isto é tudo muito chocante.
— Com quem é que estava a falar ali dentro? — exigiu saber Simon,
apontando para o interior da igreja. Começou a abrir a pesada porta
em arco.
Pascal bloqueou-lhe a passagem. O pároco parecia subitamente ter
o dobro do seu tamanho normal. Os olhos eram duros.
— Eu estava a ouvir uma confissão de um dos meus paroquianos -
rosnou. — E uma confissão é sagrada. Os meus paroquianos não são
criminosos. Não o deixarei profanar a casa de Deus.
— Estou-me nas tintas para de quem é a casa — retorquiu Simon.
— Então vai ter de usar a força contra mim — disse Pascal. — Não
o deixarei entrar até que volte com o devido mandado.
Simon olhou duramente para Pascal durante alguns segundos.
— Hei-de cá vir novamente — disse ele enquanto se virava e
afastava.
Simon deitava fumo quando regressou ao carro.
— Aquele velho filho-da-mãe sabe alguma coisa — disse para o
motorista. — Vamos embora.
Passavam pela praça da aldeia quando Simon ordenou ao
motorista que parasse. Saiu do carro e dirigiu-se vivamente para o
bar.
Pediu um café. Ao canto da sala, os três velhos jogadores de cartas
viraram-se para olhar para ele. Simon pousou a sua identificação de
polícia em cima do balcão.
O barman olhou-a desapaixonadamente de relance.
— Alguém viu recentemente estrangeiros na aldeia? — perguntou
Simon, dirigindo-se à sala. — Estou à procura de um homem e de
uma mulher, estrangeiros.
A polícia estava de volta mais depressa do que Pascal esperara.
Menos de cinco minutos depois, Simon encontrava-se a caminhar
pela álea, com os seus passos rápidos a ecoar na igreja vazia.
— Esqueceu-se de alguma coisa, inspector?
Simon sorriu friamente.
— Você é um excelente mentiroso — disse ele. — Para um pároco.
Agora, vai dizer-me a verdade, ou vai querer que o detenha por
obstruir o curso da justiça? Isto é uma investigação de homicídio.
-Eu...
— Não me tente aldrabar. Eu sei que o Ben Hope esteve aqui. Ele
ficou na sua casa. Porque é que o está a proteger?
Pascal suspirou. Sentou-se num banco, descansando a sua perna
doente.
— Se vier a saber-se que você albergou um criminoso — prosseguiu
Simon -, enterro-o tão fundo em merda que você nunca mais de lá
sai. Onde é que está o Hope, e para onde é que ele levou a doutora
Ryder? Eu sei que você sabe, portanto é melhor começar a falar. —
Simon sacou da arma e abriu de rompante as portas dos
compartimentos do confessionário.
— Ele não está aqui — disse Pascal, olhando furiosamente para o
revólver sacado. — Vou pedir-lhe que afaste essa arma, agente.
Lembre-se de onde se encontra.
— Na presença de um mentiroso e possivelmente cúmplice de um
crime — retorquiu Simon. — É onde estou. — Bateu a porta do último
compartimento do confessionário com um estrondo que ecoou pela
igreja. — Agora... sugiro que comece a falar.
Pascal olhou-o desafiador.
— Não lhe vou dizer nada. O que o Benedict Hope me confessou é
entre ele, eu próprio e Deus.
Simon troçou.
— Veremos o que tem o juiz a dizer acerca disso.
— Pode levar-me para a sua prisão se quiser — disse calmamente
Pascal. — Já estive em prisões piores, na guerra da Argélia. Mas não
falarei. Só lhe vou dizer uma coisa. O homem que perseguem é
inocente.
Não é um criminoso. Este homem só faz o bem. Poucos homens
que eu tenha conhecido serão tão heróicos e virtuosos.
Simon riu alto.
— Oh, a sério... realmente? Então talvez, padre, me queira contar
algo mais sobre este santo e as suas obras de caridade.
Capítulo 48
A Daytona levou-o depressa e para longe de Saint-Jean, cortando
por entre a paisagem agreste, debruçado sobre o tanque com o vento
a gritar-lhe em redor do capacete e a estrada a passar-lhe por
debaixo dos pés como um fecho de correr. A expressão de Ben era
fechada enquanto conduzia, pensando em qual deveria ser a sua
próxima acção. No fundo do coração sabia que só havia uma coisa
que poderia fazer, encontrar Roberta. Mas ela podia estar em
qualquer parte. Podia muito bem já estar morta.
Desacelerou à aproximação de uma curva, uma parede de rocha
arenosa de um lado da estrada e um mergulho a pique para a floresta
do outro. A motocicleta inclinou-se acentuadamente no interior da
curva, o joelho esticado quase a raspar na estrada. No vértice da
curva acelerou e a máquina endireitou-se enquanto desenvolvia
potentemente e o ruído do motor subiu para um uivo entre os seus
joelhos.
A luz do Sol cintilou em metal à distância. Ben praguejou por
detrás da viseira negra. Trezentos metros à frente, no fim de uma
comprida recta, uma operação de bloqueio inspeccionava veículos.
Por esta altura já devia ter sido mobilizado um exército de polícia em
todo o Languedoc. Homicídio na Villa Manzini, rapto, e um fugitivo a
monte. Teriam feito circular fotografias dele por todos os polícias da
região.
Ben abrandou. Quatro carros da polícia, polícias com pistolas-
metralhadoras apontadas para baixo, mas a postos. Tinham parado
uma carrinha Volvo. O condutor estava fora do carro, e verificavam-
lhe os papéis. Ben não tinha nenhuns, e assim que o fizessem tirar o
capacete estaria apanhado.
Ser apanhado não era tanto o problema. O problema era o género
de chatices que atrairia sobre si próprio se resistisse à detenção,
como sabia que seria forçado a fazer. Não queria ter de os magoar, e
dificilmente seria de bom grado que tivesse um milhar de polícias e
militares a virar do avesso o Sul de França para o encontrar quando
precisava de todos os minutos para encontrar Roberta e acabar o que
começara.
Travou e a mota fez alto na estrada a uns cem metros do bloqueio.
Durante um momento ficou ali a rodar o punho do acelerador. Se
tentasse passar o bloqueio eles poderiam disparar. Era demasiado
perigoso. Virou o guiador e fez a Triumph descrever uma apertada
curva em U. Abriu o acelerador a fundo e sentiu os braços a esticar e
a roda de trás a patinar e a oscilar com a brutal potência do motor.
Quando a mota alcançou alta velocidade e a estrada serpenteava
na direcção dele tão depressa como conseguia pensar e reagir, um
rápido relance no espelho retrovisor lateral disse-lhe que o tinham
visto e o estavam a seguir — faróis e azul intermitente, seguidos por
uma sirene. Abriu mais o punho do acelerador, atrevendo-se a
libertar um pouco mais da potência da Triumph. A passagem de alta
montanha mergulhou numa extensa sucessão de longas curvas e a
paisagem rochosa desapareceu de vista enquanto ele penetrava num
vale arborizado. O carro da polícia nos espelhos, já distante, estava a
encolher rapidamente para um minúsculo ponto.
Abriu-se uma recta à sua frente, levando-o ao cimo de uma extensa
lomba entre densas margens de floresta verde e dourada. Quando
passara já pelo bosque e a estrada subia de forma íngreme na
direcção da passagem de montanha seguinte, o carro da polícia
desaparecera.
Saiu da estrada no entroncamento seguinte, sabendo que viriam
mais carros à sua procura. Percorreu os caminhos sinuosos cada vez
mais elevados até que toda a extensão do vale do rio Aude ficou
disposta perante si como um modelo em miniatura. O caminho
sinuoso transformou-se numa pista lamacenta intransponível. Parou
a motocicleta junto a um precipício, apoiou-a no descanso e
desmontou, retirando o capacete e caminhando um pouco
rigidamente devido à sela.
Aqui e ali à distância conseguia distinguir as ruínas de antigos
fortes e castelos, manchas de agreste rocha cinzenta contra a floresta
e o céu. Caminhou até à beira do precipício, de modo a ter as
biqueiras sobre a borda. Olhou para baixo, uma queda de entontecer
com centenas de metros.
O que ia fazer?
Ficou ali durante o que pareceu uma eternidade, com o fresco
vento da montanha a assobiar-lhe em redor. Tirou o frasco. Ainda
estava meio cheio. Fechou os olhos e levou-o aos lábios.
Deteve-se. Tinha o telefone a tocar.
— Benedict Hope? — disse-lhe a voz metálica ao ouvido.
— Quem é você?
— Nós temos a Ryder. — A voz aguardou pela resposta, mas Ben
não ofereceu nenhuma.
O homem prosseguiu.
— Se quiser vê-la com vida novamente, vai escutar-me
atentamente e seguir as minhas instruções.
— O que vocês querem? — perguntou Ben.
— Queremo-lo a si, senhor Hope. A si, e ao manuscrito.
— O que o faz pensar que eu o tenho?
— Nós sabemos o que obteve da Manzini — prosseguiu a voz. — Irá
entregar-nos isso pessoalmente. Irá encontrar-se connosco esta noite
na Place du Peyrou em Montpellier.
Junto à estátua de Luís XIV. Onze horas. Irá sozinho. Estaremos a
vigiá-lo. Se virmos alguma polícia, vai ter a Ryder de volta um pedaço
de cada vez.
— Quero uma prova de vida — exigiu Ben. Enquanto escutava,
ouviu um som de restolhar quando o telefone foi passado a alguém.
A voz de Roberta estava subitamente no seu ouvido. Soava receosa.
— ... tu, Ben? Eu... — Depois a voz dela foi cortada abruptamente
quando o telefone lhe foi arrancado.
Ben pensava depressa. Ela estava viva, e eles não a matariam até
que tivessem o que queriam. Isso queria dizer que podia comprar
tempo.
— Preciso de quarenta e oito horas — disse.
Houve uma longa pausa.
— Porquê? — exigiu saber a voz.
— Porque eu já não tenho o manuscrito — mentiu Ben. — Está
escondido no hotel.
— Vai ter de lá ir recuperá-lo — disse a voz. — Tem vinte e quatro
horas, ou a mulher morre.
Vinte e quatro horas. Ben pensou no assunto por momentos. Fosse
qual fosse o plano que conseguisse formular para a tirar deste aperto,
ia precisar de mais do que isso para o pôr em andamento. Negociara
muitas vezes com raptores e sabia como funcionavam as cabeças
deles. Por vezes eram inflexíveis nas exigências e executavam a
vítima por dá cá aquela palha. Mas isso era principalmente quando
sabiam que não tinham grande coisa a ganhar, quando a negociação
estava a correr mal ou quando parecia que ninguém ia pagar. Se
estes tipos queriam assim tanto o manuscrito e pensassem que ele o
ia entregar, era uma carta que podia jogar com todo o peso que tinha.
Já conseguira que o tipo recuasse. Podia pressioná-lo um pouco
mais.
— Espere aí — disse calmamente. — Vamos lá a ser razoáveis.
Temos um problema. Graças a vocês, o hotel está neste preciso
momento pejado de polícias armados. Estou confiante em que posso
recuperar o manuscrito, mas vou precisar desse tempo extra.
Outra longa pausa, conversação abafada em fundo. Depois a voz
do homem regressou.
— Tem trinta e seis horas. Até às onze em ponto de amanhã à
noite.
— Lá estarei.
— É melhor que lá esteja, senhor Hope.
Capítulo 49
Quartel-general da polícia, Montpellier
Roberta não sabia quanto tempo passara ali deitada, naquele catre
duro e estreito. A mente aclarou-se-lhe lentamente enquanto
pestanejava e tentava lembrar-se de onde estava. As memórias
assustadoras regressaram. Um tipo grande e forte a arrastá-la para
fora de um carro. Fora dominada. Injectada com algo, aos gritos.
Depois devia ter desmaiado.
A cabeça latejava-lhe e a boca sabia-lhe mal. Encontrava-se numa
cave mal iluminada, fria e sem janelas. A sala era comprida e larga,
mas a cela em que fora trancada era minúscula e apertada. Em três
dos lados estava rodeada por barras de aço. A parede por detrás era
de pedra fria. Uma única lâmpada pendia de um feixe de fios a meio
da adega, com a sua luz amarela pálida a ser fracamente reflectida
pelos grossos pilares de pedra.
Numa outra cela a alguns metros, um rapaz adolescente jazia
comatoso no chão de cimento. Parecia estar fortemente sedado, ou
morto. Roberta tentou chamá-lo. Ele não se mexeu.
O guarda era um homem com ar enfezado de cerca de trinta anos.
Tinha olhos bulbosos e inquietos e uma barba amarela emaranhada.
Uma pistola-metralhadora pendia-lhe de uma correia em redor do
pescoço. Estava sempre a andar nervosamente de um lado para o
outro. Roberta observou-o, medindo a cave pelo número dos passos.
De vez em quando ele disparava-lhe um olhar, os olhos
protuberantes a varrê-la de alto a baixo.
Passado algum tempo o homem enfezado foi substituído por um
homem bem constituído com a cabeça rapada, mais velho, mais
confiante. Trouxe-lhe uma caneca de café ralo e um pouco de feijão
com arroz num prato de lata. Depois disso ignorou-a.
O adolescente na cela ao lado veio a si. Apoiou-se meio grogue nas
mãos e nos joelhos, e voltou-se para olhar para Roberta com olhos
injectados de sangue.
— Eu sou a Roberta — sussurrou ela por entre as grades. — Como é
que te chamas?
O rapaz estava demasiado alheado para responder. Limitou-se a
olhá-la fixamente. Mas o guarda bem constituído não queria
obviamente que eles falassem um com o outro.
Tirou uma seringa de uma maleta, agarrou no braço do rapaz
através das grades da cela e deu-lhe uma injecção. Passado um
minuto o miúdo estava de novo caído redondo no chão.
— Que porra é que lhe está a dar? — silvou Roberta para o guarda.
— Cala o bico, puta, ou também levas. — Depois voltou a ignorá-la.
Pareceram passar horas e horas até o guarda bem constituído
finalmente trocar novamente de lugar com o homem enfezado de
barba. Pouco depois este voltou a observá-la, fez-lhe um sorriso
hesitante e ela correspondeu.
— Ei, dava para me arranjares um copo de água? — pediu-lhe
Roberta. Ele hesitou, depois foi até uma mesa onde os guardas
tinham um jarro e alguns copos poeirentos.
Depois de Roberta beber a água, ele pareceu querer ficar por perto
da jaula dela. Roberta sorriu de novo.
— Como é que te chamas?
— A-André — respondeu ele nervosamente.
— André, chega aqui. Preciso da tua ajuda.
O guarda enfezado espreitou por cima do ombro, embora não
estivesse mais ninguém por ali.
— O que queres? — articulou ele com suspeição.
— Perdi um brinco — disse ela. Até aí era verdade. Devia ter caído
algures entre ali e o hotel. Roberta apontou para as sombras no chão.
— Caiu aí, desse lado. Não consigo alcançá-lo por entre as grades.
— Vai-te foder, encontra-o tu. — Ele virou-se com um olhar azedo.
— Por favor? É antigo, ouro de vinte e quatro quilates. Vale muito
dinheiro.
Aquilo despertou-lhe o interesse. Ele hesitou, depois fez deslizar a
pistola-metralhadora para trás das costas e aproximou-se dela. Pôs-
se de joelhos, procurando no pó.
— Para que lado está?
Roberta agachou-se encarando-o através das grades.
— Por aí mesmo, acho eu... talvez um pouco para cá... iá, para aí...
— Não consigo vê-lo. — Ele tacteava com os dedos, com uma
expressão de ávida concentração na face. Ele aproximou-se dela e
Roberta apanhou o aroma de suor rançoso misturado com
desodorizante barato, um cheiro do tipo feijões cozidos frios. Roberta
esperou até que a cabeça dele estivesse quase a tocar nas grades da
jaula. Roberta passou as mãos de cada um dos lados, com o coração a
começar a acelerar enquanto pensava no que ia fazer. A atenção dele
fixava-se no chão. Roberta respirou fundo e depois avançou.
Com um movimento súbito, agarrou-lhe a barba com ambas as
mãos. Ele atirou a cabeça para trás com um grito abafado, mas
Roberta aguentou o esticão. Usou os joelhos de encontro às grades
para se apoiar. Puxou com toda a força e a ossuda fronte dele
embateu contra a jaula de aço. Ele gritou de dor e agarrou-lhe os
pulsos. Puxando-lhe mais a barba, Roberta atirou-se violentamente
para trás e fez-lhe embater a cabeça nas grades uma segunda vez. Ele
caiu para o chão, atordoado mas ainda a debater-se.
Roberta enterrou os dedos no cabelo oleoso, reunindo e agarrando
firmemente um punhado dele, e com a brutalidade impensada que
vem com o desespero bateu-lhe com a cabeça repetidamente no chão
de cimento até que ele parou de gritar e de se debater. Ficou inerte
com sangue a escorrer do nariz partido.
Roberta largou-o e caiu para o interior da jaula, respirando com
dificuldade e limpando o suor dos olhos. Viu a argola com as chaves
no cinto dele e rastejou para a frente no meio do pó. Esticou o braço
para as chaves. Estavam no limite do alcance dos seus dedos
esticados e Roberta soltou-as, tacteando desajeitadamente com
receio de que alguém entrasse e a apanhasse. Enquanto
experimentava as diferentes chaves da argola relanceava
nervosamente o olhar pela porta de aço no cimo dos degraus.
A quarta chave que experimentou abriu a fechadura. Empurrou
com força a porta de aço para tirar do caminho o corpo inerte,
apanhou do chão a pistola-metralhadora caída e passou a correia em
redor do pescoço.
— Ei, acorda. — Bateu nas grades da jaula do adolescente, mas este
não respondia. Pensou em abrir-lhe a cela e carregá-lo cá para fora...
mas ele seria demasiado pesado para ela. Se conseguisse sair dali
sozinha, regressaria mais tarde com a polícia.
Roberta correu através da cave para os degraus de pedra. Mesmo
quando ia a chegar ao terceiro degrau, a porta de aço abriu-se lá em
cima, e Roberta ficou paralisada.
O homem alto de negro apareceu na soleira da porta acima dela.
Os olhos encontraram-se.
Roberta conhecia este tipo. O seu raptor. Sem hesitação apontou a
SMG à cabeça dele e apertou o gatilho.
Mas ele limitou-se a descer os degraus, sorrindo largamente para
Roberta. Roberta apertou mais o gatilho, mas este encontrava-se
perro ou coisa do género — a arma não funcionava. Mais três
guardas passaram pela porta, todos a apontar-lhe armas
semelhantes.
E todos se tinham lembrado de engatilhar as deles.
Bozza arrancou-lhe a arma. Apanhou o punho que ela lhe atirou, e
torceu-lhe o braço bem alto atrás das costas. Uma pontada de dor.
Mais uns milímetros e ele parti-lo-ia.
Fê-la marchar até à cela e atirou-a lá para dentro. A porta
gradeada fechou-se atrás dela com um som metálico.
Bozza estava cheio de desejo de cortar aquela mulher, lenta e
deliberadamente. Sacou da faca e raspou a lâmina nas grades de aço.
— Quando o teu amigo Hope se entregar a nós — sussurrou
naquela voz rouca e estrangulada -, vamos todos divertir-nos.
Roberta cuspiu-lhe na cara, e ele limpou-se com uma gargalhada
agreste.
Depois Roberta observou enquanto Bozza cortava o pescoço ao
guarda enfezado e o sangrava a guinchar como um porco para o
esgoto no meio da cave.
Capítulo 51
Os longos verões quentes de França, um fácil ritmo de vida, boa
comida e vinho eram qualidades que atraíam um grande número de
britânicos reformados a deixar para trás a decadente ilha do império
e a instalar-se no continente europeu. Mas nem todos os expatriados
eram os rotineiros antigos solicitadores, académicos ou empresários.
Tinham passado anos desde que o velho amigo dos tempos da
tropa Jack deixara a encharcada cidade de Blackpool e encontrara
uma simpática casa de praia perto de Marselha.
Jack encontrava-se agora semi-retirado, mas ainda tinha alguns
clientes. O seu negócio era o da vigilância electrónica... e umas
quantas coisas relacionadas à parte.
A Triumph Daytona disparou pela estrada da costa francesa fora
como um míssil. Era uma viagem de duas horas até Marselha. Ben
almejou fazê-la em uma.
Cinco horas depois estava de regresso com uma grande bolsa de
viagem amarrada ao assento de trás.
A larga estrada alcatroada cortou por entre relvados luxuriantes
até à cintilante fachada de vidro e pedra branca do moderno edifício
aninhado nas árvores. Num dos altos pilares de pedra junto ao
portão encontrava-se uma brilhante placa metálica com uma cruz e a
inscrição CENTRO PARA A EDUCAÇÃO CRISTÃ. Estacionados no
exterior do edifício estavam filas de carros. De onde Ben se
encontrava junto ao portão, podia localizar as discretas câmaras de
segurança que giravam e inspeccionavam os terrenos no meio da
folhagem. Os portões de ferro forjado encontravam-se fechados.
Havia outra câmara na parede, com uma campainha para os
visitantes.
O miúdo teria subido a parede para entrar, o que significava que a
sua motorizada devia estar algures no exterior dos terrenos. Ben
estacionou a Triumph uns metros mais à frente na estrada, e andou
para um lado e para o outro a espreitar por debaixo dos arbustos e
árvores. Onde a berma de erva selvagem se encontrava com o
alcatrão no lado oposto da estrada, Ben encontrou um rasto ligeiro
de pneu na terra. A berma subia levemente até um maciço de
arbustos espinhosos e às árvores mais além.
Ben seguiu a erva pisada e descobriu parte de uma pegada na
terra. Pelo meio da verdura distinguiu algo de um amarelo brilhante.
Ergueu um ramo cheio de folhas e encontrou a traseira da Yamaha
de 50cc a sair dos arbustos. A matrícula fixada no guarda-lamas
traseiro era a mesma que Natalie Dubois lhe dera.
Ben caminhou silenciosamente de regresso à Daytona. Já fizera o
seu plano. Desamarrou a bolsa de viagem do assento traseiro e pou-
sou-a cuidadosamente na erva. Abriu os painéis laterais da
motocicleta e retirou o fato-macaco azul e o equipamento eléctrico.
A recepcionista estava prestes a fazer a sua pausa para o café
quando o electricista entrou no luxuoso átrio do Centro para a
Educação Cristã e se dirigiu à sua secretária. O electricista vestia
fato-macaco de trabalho e um boné, transportando uma bolsa e uma
pequena caixa de ferramentas.
— Pensei que o trabalho de electricidade já tinha terminado —
disse ela. Ela reparou que ele tinha uns olhos azuis bonitos.
— Só cá vim para fazer a inspecção, mademoiselle — respondeu o
electricista. — Não vai demorar muito. Eu só preciso de verificar
algumas coisas, tomar algumas notas.
Saúde e segurança, essa burocracia toda... regulamentos dos
edifícios, sabe como é.
Ele exibiu-lhe um cartão laminado, o qual ela supôs que fosse o
correcto embora ele não lhe tivesse dado bem o tempo para o ler.
— O que leva aí? — perguntou ela, fazendo um aceno de cabeça
para a bolsa.
— Oh, apenas uns rolos de cabo e consumíveis. Um multímetro,
brocas e bobinas, as ferramentas do ofício. Quer dar uma vista de
olhos?
Deixou cair o saco em cima da secretária e abriu-o parcialmente
para mostrar fios coloridos no interior.
Ela sorriu.
— Não, está tudo bem, eu acredito na sua palavra. Até logo.
Capítulo 52
Place du Peyrou, Montpellier
I. N 18
II. U 11 R
III. 9 E 11 E
IV. 22 V 18 A 22 V 18 A
V. 22 R 15 O
VI. 22 R
VII. 13 A 18 E 23 A
VIII.20 R 15
IX. N 26 O 12 I 17 R 15
26 25 24 23 22 21 20 19 18 17 16 15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1
IGNENATURARENOVATURINTEGRA
ANBOCPDQERFSGTHUIVJWKXLYMZ
i. N 18: CE
ii. U 11 R QUE
iii. 9 E 11 E VOUS
iv. 22 V 18 A 22 V 18 A CHERCHEZ
v. 22 R 15 O CEST
vi. 22 R LE
vii. 13 A 18 E 23 A TRESOR
viii. 20 R 15 DES
ix. N 26 O 12 I 17 R 15 CATHARES
CHERCHEZ A...
PROCURA EM...
KLAUS
LE CHERCHEUR TROUVERA
FULCANELLI
Fulcanelli
Ben olhou para a bacia de pedra aos pés do altar. O elixir vitae
estava ali mesmo à sua frente. A sua busca terminara. Não havia
tempo a perder.
Pôs-se de pé num salto, olhando em redor à procura de algum
recipiente que pudesse usar para levar o elixir a Ruth. Lembrou-se
do seu frasco, e sem pensar duas vezes desenroscou a tampa e verteu
o uísque, salpicando o chão de pedra. O coração martelava-lhe
enquanto mergulhava o frasco na água e o enchia. Acreditaria ele?
Poderia esta substância especial curar realmente?
Gotas do precioso líquido transbordaram da boca do frasco cheio
ao retirá-lo da bacia de pedra. A sua curiosidade dominava-o. Levou
o frasco aos lábios.
O mau gosto quase o fez vomitar. Cuspiu e engasgou-se, limpando
a boca com nojo. Segurando a vela mais próxima, deitou mais água
de volta à bacia. Estava cheia de sedimentos esverdeados.
Ben caiu de joelhos, de cabeça pendida. Acabara. Encontrava-se no
fim da estrada. Falhara.
A súbita explosão no interior da câmara foi como uma faca nos
tímpanos. Um dos leões brancos de pedra abriu-se ao meio e desfez-
se. A bacia estalou e partiu-se em duas. A água estagnada espalhou-
se pela base do altar e expeliu lodo viscoso e esverdeado para o chão.
Saltou a pés juntos em pânico. Antes que pudesse ter a Browning
fora do coldre encontrou-se a olhar fixamente ao longo do cano de
uma pesada Colt automática que avançava para ele vinda das
sombras.
— Surpreendido por me ver, inglês? — arranhou Franco Bozza no
seu rouco sussurro enquanto aparecia à luz tremeluzente. Tinha a
cara selvagem, ensanguentada, uma máscara de ódio puro. — Larga a
arma.
Por debaixo do seu colete à prova de bala a parte superior do
tronco de Bozza ainda lhe doía fortemente do brutal impacto das três
balas de 9 mm. A comprida queda aos trambolhões penhasco abaixo
fora interrompida por uma árvore. Os ramos tinham-lhe ferido a
carne e quase o empalavam. O sangue escorria-lhe de cem cortes e a
face direita fora rasgada da boca à orelha. Mas mal sentira a dor
enquanto subia à pressa o penhasco e atravessava o cume no meio da
violenta tempestade. A sua mente estivera concentrada apenas numa
coisa — o que ia fazer quando voltasse a apanhar Ben Hope. Coisas
que nem sequer as suas mais detestadas vítimas tinham
experienciado.
E agora tinha-o.
Ben olhou-o fixamente durante um segundo, depois deslocou a
mão por cima do peito e fez sair a Browning do coldre. Deixou-a cair
no chão e pontapeou-a para longe, sem nunca tirar os olhos de
Bozza.
— E a Beretta — disse Bozza. — Aquela que me tiraste.
Ben tivera esperanças de que ele se tivesse esquecido daquela.
Sacou lentamente a .380 da cintura e atirou-a.
Os lábios pálidos e finos de Bozza contorceram-se num sorriso
retorcido.
— Óptimo — sussurrou. — E agora aqui estamos nós juntos e
finalmente sós.
— É um grande prazer.
— O prazer será todo meu, asseguro-te — coaxou Bozza. — E
quando estiveres morto eu vou descobrir a tua amiguinha Ryder e
vou divertir-me com ela.
Ben abanou a cabeça.
— Nunca a conseguirás encontrar.
— Ah não? — disse Bozza, com o que era quase uma gargalhada na
voz. Uma mão enluvada de negro foi ao bolso e acenou com a agenda
vermelha de Roberta. — Depois disto vou de férias. — Sorriu. — Para
os Estados Unidos da América.
Uma onda de horror nauseante percorreu Ben quando viu a
agenda. Dissera-lhe para a destruir. Devia estar na mala dela quando
Bozza a raptara.
— Ela vai ser a última a morrer — continuou Bozza, sorrindo para
si próprio. Ben via que ele desfrutava de cada palavra. — Primeiro,
ela vai ver a família a ser lentamente cortada em pedaços à sua
frente. Depois, antes de a matar, vou mostrar-lhe o pequeno troféu
que lhe vou levar. A tua cabeça. E finalmente, voltarei as minhas
atenções para a doutora Ryder. Pois forte é o Senhor que a julgou. —
Bozza sorriu sadicamente e baixou a Colt, apontando ao joelho
esquerdo de Ben. O dedo pressionou o gatilho. Primeiro ia estoirar-
lhe uma rótula, depois a outra. Depois um braço, depois o outro.
Então, quando a sua vítima jazesse indefesa no chão, saía a faca.
Ben fora treinado anos antes nas técnicas de desarmar a curta
distância um homem hostil armado. Era tudo uma questão de
distância, embora fosse uma manobra desesperada as mais das
vezes. Se o oponente estivesse suficientemente próximo era-se
relativamente menos louco em tentar desarmá-lo. Se estivesse
apenas um passo longe de mais, era praticamente impossível mover-
se suficientemente depressa. Só era preciso uma contracção do dedo
e estávamos mortos.
Enquanto Bozza falava, Ben estivera a avaliar a distância entre os
dois. Estava mesmo no limite entre extremo alto risco e loucura
suicida. Sabia que tinha apenas uma ligeira vantagem de reflexo,
meio segundo no máximo. Era uma loucura, mas só tinha uma vida
— havia que lutar por ela.
Levou um décimo de segundo a tomar a decisão. Encontrava-se
prestes a voar para Bozza quando o disparo de uma arma rasgou o ar.
A cara escabrosa de Bozza congelou numa expressão de surpresa,
com a boca a abrir-se num "O" silencioso enquanto deixava cair a
arma com um estrondo e esgravatava desesperadamente na ferida de
saída a espirrar-lhe sangue na garganta.
A figura nas sombras ergueu novamente a pistola e disparou um
segundo ensurdecedor tiro que ribombou pela câmara. O alto da
cabeça de Bozza explodiu num espalhar de sangue e miolos. Durante
um momento ficou ali como se pendurado do espaço, os olhos
procurando Ben enquanto a luz se apagava neles.
Depois caiu abruptamente para o chão. O seu corpo produziu
alguns espasmos, arqueando-se e retorcendo-se, enquanto a vida o
abandonava, e depois ficou inerte.
Ben fixava incredulamente a figura na escuridão, uma aparição
quase fantasmagórica, que avançava lentamente na sua direcção por
entre as sombras dos pilares. Era uma mulher. No escuro, Ben não
conseguia distinguir a cara dela.
— És tu, Roberta?
Mas à medida que a mulher se aproximava da luz, Ben viu que não
era. A antiquada pistola Mauser C96 ainda se encontrava apontada
ao cadáver de Bozza, com um fino fio de fumo a sair encaracolado do
cano comprido e afunilado. A precaução não era necessária. Desta
vez, Franco Bozza não se levantaria de novo.
A luz dourada da vela banhava a face da mulher à medida que esta
se aproximava. Reconheceu-a com um choque. Era a mulher cega.
E já não era cega. Os óculos escuros tinham desaparecido e ela
olhava-o a direito com uma intensidade de falcão. Um pequeno e
enigmático sorriso curvava-lhe os cantos da boca.
— Quem é você? — perguntou Ben, estupefacto.
Ela ficou em silêncio. Ben olhou para baixo e viu que ela lhe
apontava a Mauser directamente ao coração.
Capítulo 62
— Coloque as mãos na cabeça e ponha-se de joelhos — ordenou
ela. Ben viu pela expressão do olhar e pelo inflexível cano da arma
que ela falava a sério. Ela estava demasiado longe para arriscar fosse
o que fosse. Obedeceu. Ela ergueu uma lanterna brilhante e fez
incidir o foco na cara dele.
— Você disse-me que estava interessado em casas antigas — disse
ela enquanto ele ajoelhava indefeso, pestanejando com a forte luz
branca. — Mas parece que também estava interessado noutras coisas.
— Não estou aqui para a roubar — disse ele firmemente.
— Força a entrada na minha casa, traz uma arma, entra
furtivamente na minha capela privada, e no entanto está a dizer-me
que não se encontra aqui para me roubar?
— Dirigiu o feixe da lanterna para o corpo de Bozza. — Quem é ele?
Um seu amigo?
— Parece-lhe que sim?
Ela encolheu os ombros.
— Os ladrões podem discutir. O que está ali dentro? — Apontou a
luz para o saco de Ben, o qual ficara junto ao altar. — Esvazie-o aí no
chão. Mova-se devagar para que eu lhe possa ver as mãos.
Ben virou cuidadosamente o saco de pernas para o ar e ela dirigiu
a lanterna para ver o conteúdo que se espalhava no chão de pedra. O
foco de luz branca pousou no bloco-notas de Rheinfeld e no Diário de
Fulcanelli.
— Atire-me esses dois para cá — ordenou ela, enfiando a lanterna
debaixo do braço. Ben pegou nos objectos e atirou-lhos. Mantendo a
arma apontada a Ben, folheou-os, meneando pensativamente a
cabeça para si própria. Depois de uma pausa pousou-os gentilmente
no chão e baixou a arma para o flanco. — Peço desculpa — disse num
tom mais suave. — Mas tinha de ter a certeza.
— Quem é você? — repetiu ele.
— O meu nome é Antonia Branzanti — disse ela. — Sou neta do
Fulcanelli. — Ela cortou-lhe a resposta com um gesto. — Podemos
falar depois. Primeiro temos de nos livrar deste lixo. — Apontou para
o cadáver de Bozza, onde a poça de sangue se misturava com a
viscosa água verde estagnada do altar quebrado.
Iluminando o caminho à sua frente, Antonia conduziu-o por entre
as colunas até uma passagem onde uma enorme rocha circular, como
uma pedra de mó de um metro e oitenta, e parou na extremidade
junto à parede.
— Esta passagem leva à encosta da montanha. Abra-a.
Grunhindo com o esforço, Ben rolou a pedra para trás através de
um sulco cortado no chão de pedra. Enquanto girava para trás sobre
si mesma com uma chiadeira, o ar frio da noite penetrou
rapidamente na câmara. A rocha cobria a entrada de um túnel curto,
com cerca de cinco metros de fundo, e através da boca da caverna
Ben via um semicírculo irregular de céu nocturno. A tempestade
acabara, e a lua cheia brilhava sobre a paisagem rochosa. Por baixo
deles era uma queda estonteante para uma profunda ravina.
— Nunca o encontrarão ali em baixo — disse Antonia, apontando
para baixo. Ben regressou para onde jazia o corpo de Bozza. Agarrou
o pesado cadáver por debaixo dos braços e arrastou-o para o buraco,
deixando um rasto de sangue aguado no chão de pedra. Deitou o
corpo no ventoso túnel, e rolou-o com o pé até este ultrapassar a
borda. Observou-o a tombar pelo íngreme penhasco, uma forma
negra aos trambolhões contra a rocha iluminada pelo luar, e a
desaparecer na escura ravina arborizada centenas de metros abaixo.
— Agora vamos — disse Antonia.
A derrota pesava duramente sobre Ben enquanto a seguia pelo
túnel até à casa. Portanto o elixir acabara por não ter qualquer valor.
Afinal era apenas uma lenda. Agora teria de regressar para Fairfax
de mãos vazias, olhar o velho nos olhos e dizer-lhe que a criança teria
de morrer.
Chegaram à casa. Ela fechou a lareira atrás deles e levou-o para a
cozinha, onde Ben lavou algum do sangue das mãos e da cara.
— Agora vou-me embora — disse ele sombriamente, pousando a
toalha.
— Não há nada que me queira perguntar?
Ben suspirou.
— Para quê? Acabou.
— Você é o homem que o meu avô disse que viria cá um dia. Seguiu
o caminho oculto. Encontrou o tesouro.
— Não vim cá pelo ouro — retorquiu ele, com as lágrimas a
queimarem-lhe os olhos. — Não tem a ver com isso.
— O ouro não é o único tesouro — disse ela, erguendo a cabeça
com um sorriso curioso. Foi até a um armário. Numa prateleira do
interior encontravam-se garrafas de azeite e vinagre, jarros de ervas
secas e preparados, pimenta e especiarias. Ela separou-os e lá de trás
retirou uma pequena e simples caixa de louça que trouxe com
cuidado e pousou na mesa. Levantou a tampa. No interior da caixa
encontrava-se uma pequena garrafa de vidro. Ela agitou levemente a
garrafa e o líquido claro no interior apanhou a luz e cintilou. Antonia
virou-se para Ben. — É isto que procurava?
Ben estendeu a mão.
— É o...?
— Cuidado. É a única amostra que o meu avô preparou.
Ben caiu numa cadeira, sentindo-se subitamente tão esgotado e
gasto como estava aliviado. Antonia sentou-se à sua frente, pousou
as mãos na mesa e olhou amigavelmente para ele.
— Agora já quer ficar mais um pouco e ouvir a minha história?
Falaram. Ben contou-lhe a sua missão e os acontecimentos que o
tinham conduzido à Casa do Corvo. Depois foi a vez de ele escutar
enquanto ela continuava a história contada no Diário de Fulcanelli.
— Depois de o Daquin ter traído a confiança do meu avô, as coisas
aconteceram depressa. Os nazis assaltaram a casa e viraram o
laboratório do avesso para encontrar os segredos. A minha avó
surpreendeu-os, e eles mataram-na. — Antonia suspirou. — Depois
disso, o meu avô fugiu de Paris e veio para aqui com a minha mãe.
— O que aconteceu ao Daquin?
— Aquele rapaz causou tantos estragos. — Antonia abanou
tristemente a cabeça. — Suponho que ele pensava que estava a agir
correctamente. Mas quando começou a ver o género de pessoas a
quem entregara os ensinamentos do meu avô, não conseguiu viver
consigo mesmo. Tal como Judas, pôs uma corda em redor do
pescoço.
— Qual era a ligação entre Fulcanelli e o arquitecto? — perguntou
Ben. — A Casa do Corvo?
— O Corbu e o meu avô tinham um laço especial entre eles —
explicou ela. — Eram ambos descendentes directos dos cátaros.
Quando o Fulcanelli descobriu os artefactos perdidos dos cátaros,
isso levou-o a localizar o lugar do templo escondido onde os tesouros
tinham sido guardados. A casa foi construída no ano seguinte ao da
sua descoberta, para prestar homenagem ao templo e para guardar
os tesouros no seu interior. Quem iria adivinhar que uma casa como
esta marcava a entrada de um santuário sagrado?
— O Fulcanelli viveu aqui consigo e com a sua mãe?
— A minha mãe foi enviada para a Suíça para estudar. O meu avô
permaneceu aqui até 1930, quando a minha mãe regressou com o
marido. Por essa altura, o meu avô sabia que os seus inimigos lhe
haviam perdido o rasto. A minha mãe tomou então a seu cargo o
papel de guardiã da casa e do seu segredo. O Fulcanelli foi-se
embora. Desapareceu.
— Antonia sorriu melancolicamente. — Por isso é que nunca o
cheguei a conhecer. Ele era uma alma inquieta, que acreditava que
havia sempre algo mais a aprender.
Penso que ele pode ter ido para o Egipto, para explorar o lugar do
nascimento da alquimia.
— Ele já devia ser idoso por essa altura.
— Ia a meio dos oitenta, mas as pessoas tomavam-no por um
homem nos sessenta. O retrato que viu foi pintado pouco antes de ele
partir. Alguns anos depois, em 1940, nasci eu.
Ben ergueu as sobrancelhas. Ela parecia muito mais nova que a
idade que tinha.
Antonia reparou na expressão dele e produziu um sorriso
enigmático.
— Quando fiquei suficientemente crescida tornei-me a guardiã da
casa — prosseguiu ela. — A minha mãe mudou-se para Nice. Ela está
agora no final dos noventa, e continua em forma. — Fez uma pausa.
— Quanto ao meu avô, nunca mais tivemos notícias dele. Penso
que teve sempre receio de que os seus inimigos o pudessem apanhar,
e foi por isso que nunca nos contactou ou revelou a identidade a
quem quer que fosse.
— Então não sabe quando morreu ele?
Outro pequeno sorriso misterioso ergueu-lhe os cantos da boca.
— Porque é que tem tanta certeza de que ele morreu? Talvez ele
ainda ande por aí, algures.
— Acredita que o elixir da vida o conservaria vivo estes anos todos?
— A ciência moderna não tem todas as respostas, Ben. Eles ainda
só compreendem uma minúscula fracção do universo. — Antonia
fixou-o com o seu olhar penetrante. -
Você correu tantos riscos para encontrar o elixir. Não acredita no
seu poder?
Ben hesitou.
— Não sei. Eu quero acreditar. Talvez precise de acreditar. — Ben
tirou do saco o Diário de Fulcanelli, o bloco-notas de Rheinfeld e o
desenho da lâmina da adaga e pousou-os em cima da mesa. — Seja
como for, estas coisas são agora suas. Este é o seu lugar por direito.
— Suspirou. — E então, o que acontece agora?
Antonia franziu o sobrolho.
— Que quer dizer?
— Posso levar o elixir comigo? A guardiã deixa o que busca levar a
garrafa? Ou está o próximo projéctil dessa Mauser reservado para
mim?
Os olhos dela piscaram de regozijo e Ben via a semelhança familiar
com o retrato de Fulcanelli. Ela pousou a mão na antiga e elegante
pistola à sua frente.
— Era a arma do meu avô. Ele deixou-a à minha mãe, para o caso
de os nossos inimigos alguma vez nos encontrarem aqui. Mas não é
para si, Ben. O meu avô acreditava que um dia um verdadeiro
iniciado decifraria as pistas que ele deixara, e viria descobrir o
segredo. Alguém puro de coração que respeitaria o seu poder, nunca
abusando dele ou publicitando-o.
— É um grande risco a correr comigo — disse ele. — Como é que
pode ter a certeza de que eu sou assim tão puro de coração?
Antonia olhou ternamente para Ben.
— Você só pensa na criança. Consigo ver isso nos seus olhos.
Roma
FIM
Nota do autor
As referências a alquimia, ciência alquímica e história neste livro
são baseadas em factos. O misterioso Fulcanelli é uma figura da vida
real, que se acredita ter sido um dos maiores alquimistas de todos os
tempos e o guardião de conhecimentos importantes. Ao longo dos
anos várias teorias têm especulado quanto à sua identidade real, mas
isto permanece tão misterioso hoje como sempre foi. O enigma de
Fulcanelli tem cativado a imaginação de artistas tão diversos como o
mestre italiano do filme de terror Dario Argento — o qual incluiu
uma personagem alquimista baseada em Fulcanelli no seu filme
Inferno de 1980 — e Frank Zappa, que escreveu uma canção
intitulada But Who Was Fulcanelli? Mais recentemente, uma
personagem que poderia ser ou não ser Fulcanelli apareceu na série
de televisão da BBC Sea of Souls.
A comunidade científica dos últimos três séculos tem recusado
levar a sério qualquer dos ensinamentos da alquimia. No entanto,
isto pode estar a mudar. Em 2004, uma colecção de papéis sobre
investigação alquímica de Isaac Newton, o pai da física clássica, foi
redescoberta após ter estado perdida durante oitenta anos. Cientistas
do Imperial College de Londres, acreditam que o trabalho alquímico
de Newton pode ter inspirado algumas das suas posteriores
descobertas pioneiras na física e cosmologia.
A medida que a ciência moderna continua a fazer recuar as
fronteiras da ignorância humana, está a tornar-se crescentemente
claro que os antigos alquimistas podem ter realmente sido, nas
palavras da doutora Roberta Ryder, os físicos quânticos originais.
Os pormenores históricos dos actos de genocídio cometidos pela
Igreja Católica e pela Inquisição são precisos e, quando muito,
eufemísticos. A cruzada albigense do século XIII é indubitavelmente
um dos mais negros capítulos na história da Igreja Católica, um
período de brutal derramamento de sangue e crueldade que alastrou
por todo o Sul de França e cujo objectivo foi o de ostensivamente
exterminar o pacífico e largamente disseminado movimento cristão
conhecido por catarismo sob as expressas ordens do papa Inocêncio
III. Os verdadeiros motivos do papa podem, naturalmente, ter tido
menos a ver com zelo religioso do que com a aquisição de terras e,
em particular, o famigerado tesouro perdido dos cátaros. Como
escreve a historiadora Anna Manzini em O Segredo do Alquimista,
até aos dias de hoje ninguém sabe que tesouro guardavam os cátaros
ou, já agora, o que lhe poderá ter sucedido.
Charles Édouard Jeanneret, mais conhecido pela fama por Le
Corbusier ou simplesmente Corbu, foi um dos mais inventivos e
pioneiros arquitectos do século XX. Tendo a "Casa do Corvo" e o seu
tesouro escondido sido criados para os objectivos do livro, é não
obstante um facto que Le Corbusier foi tido como um dos últimos
descendentes dos cátaros. Toda a sua vida fascinado pela filosofia
esotérica, fez uso activo nos seus projectos de arquitectura do
fenómeno geométrico conhecido através da história por "Divina
Proporção" e pelos matemáticos por Phi. Este fascinante princípio da
natureza, e que alguns cientistas acreditam governar a estrutura de
todas as coisas, era também precioso para os alquimistas da
Antiguidade. A morte por afogamento de Le Corbusier em 1963 está
de algum modo envolta em mistério.
Os incríveis desenhos geométricos esculpidos na paisagem em
redor de Rennes-le-Château no Sul de França existem realmente, e
podem ser traçados num mapa para criar o mesmo bizarro desenho
dos círculos e estrelas gémeos encontrado neste livro. Ninguém sabe
quem o criou, ou quando. Este livro especula com base no incrível
fenómeno real para sugerir que poderá ter sido usado como
marcador secreto para assinalar a localização de um tesouro
escondido. Até aos dias de hoje, Rennes-le-Château permanece um
importante centro para os caçadores de tesouros.
Rudolf Hess, o infame nazi e adjunto de Adolf Hitler, foi realmente
membro da secreta e esotérica sociedade conhecida por Os
Observadores (Les Veilleurs), a qual se costumava congregar na Paris
dos anos 20 — exactamente na mesma época em que se diz lá ter
vivido o próprio Fulcanelli. Nascido em Alexandria, Hess era de facto
fascinado pelo oculto, e pela alquimia. Isto pode ter sido em parte
responsável pelo interesse do próprio Adolf Hitler pelo assunto, e
pela possibilidade histórica de os nazis estarem realmente a fazer
experiências com formas de criar ouro alquímico para financiar o
esforço de guerra e o Reich dos mil anos que planeavam estabelecer.
A Gladius Domini é fictícia. No entanto, os últimos quinze anos
assistiram a um levantamento à escala global de organizações
religiosas fundamentalistas militantes, primariamente cristãs,
pregando a intolerância e dogmas de linha dura. O palco mundial
está preparado para uma nova era de guerras santas que poderão
eclipsar de longe o horror das cruzadas medievais.
Espero que tenham gostado tanto de ler O Segredo do Alquimista
como eu gostei de pesquisar e de o escrever. Ben Hope voltará.
Scott Mariani
Sobre o Autor
SCOTT MARIANI cresceu em St. Andrews, Escócia. Estudou
Línguas Modernas em Oxford e começou a trabalhar como tradutor,
depois como músico profissional, instrutor de tiro de pistola e
jornalista freelancer antes de se tornar escritor a tempo inteiro. Após
ter passado vários anos em Itália e em França, Scott descobriu o seu
porto de abrigo isolado para escrever nas zonas remotas do Gales
Ocidental, uma casa de campo de 1830 completa com bosques para
passeios campestres e uma passagem secreta. Quando não está a
escrever, Scott desfruta de jazz, filmes, motocicletas clássicas e
astronomia.
Para descobrir mais acerca de Scott Mariani visite:
www.scottmariani.com