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O segredo do alquimista

Scott Mariani

Portugal — Planeta
Um antigo membro da elite do SAS, Ben Hope torturado por uma
tragédia ocorrida no passado dedica a sua vida a salvar crianças
raptadas.
Um dia Ben é contactado por um milionário com o objectivo de
encontrar um manuscrito antigo que pode salvar a vida de uma
criança moribunda. Ao aceitar, Ben não suspeita que esta demanda
será a mais mortífera da sua vida.
O documento contém alegadamente a fórmula do elixir da vida,
descoberta feita pelo brilhante e misterioso alquimista francês
Fulcanelli. Mas cedo se torna evidente que outros procuram este
precioso tesouro para ser usado em proveito próprio.
Ben vai fazendo descobertas surpreendentes sobre as pessoas e
organizações que desejam desesperadamente o segredo da
imortalidade: desde os nazis durante a Segunda Guerra Mundial à
poderosa organização católica Gladius Domini.
De Paris até às fortalezas Cathar no Languedoc, a Terra dos
Cátaros onde um assombroso segredo jaz escondido há séculos...
Um thriller alucinante, uma caçada ao tesouro que irá deliciar os
fãs de Dan Brown.
Ficha Técnica
Scott Mariani Segredo do Alquimista

Título original: The Alchemist's Secret radução Carlos Pereira


laneta

Grupo Planeta laneta Manuscrito ua do Loreto, nº 16 — 1º Direito


1200-242 Lisboa — Portugal

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor


(c) Scott Mariani, 2007
(c) Planeta Manuscrito, 2009

Revisão: Clara Joana Vitorino aginação: Lígia Pinto


1ª edição: Maio de 2009

Depósito legal nº 294 369/09


ISBN: 978-989-657-017-0
Impressão e acabamento: Guide — Artes Gráficas
Para Marco, Miriam e Luca
Busca, meu Irmão, sem ficares desencorajado; a tarefa é difícil, eu
sei, mas conquistar sem perigo é como triunfar sem glória.
O Alquimista Fulcanelli
Capítulo 1
França, Outubro de 2001

O padre Pascal Cambriel enfiou o chapéu bem justo e subiu o


colarinho do casaco para se proteger contra a chuva fustigante. A
tempestade fizera abrir a porta do galinheiro e as aves corriam à
deriva em pânico. O sacerdote de sessenta e quatro anos reuniu-as
com a bengala, fazendo-as regressar, contando-as enquanto
entravam. Que noite!
Um relâmpago iluminou o pátio à sua frente e a totalidade da
velha aldeia de pedra. Por detrás do muro do jardim da sua casa
ficava a igreja do século X de Saint-Jean com o seu cemitério
simples, as lápides a desmoronarem-se e hera. Os telhados das casas
e a paisagem agreste para além destas ficaram brilhantemente
iluminados pelo relâmpago que riscou o céu, depois mergulharam de
novo na escuridão enquanto o troar do trovão se lhe seguia um
segundo depois. A escorrer da água da chuva, o padre Pascal colocou
o ferrolho da porta do galinheiro no sítio apropriado, trancando as
aves que grasnavam em segurança.
Outro relâmpago, e algo mais prendeu o olhar do sacerdote
quando se virava para correr na direcção de casa. Deteve-se com uma
expressão de surpresa.
Visível durante somente um instante, uma figura rústica, alta e
magra, observava-o de pé do outro lado do muro baixo. Depois
desapareceu.
O padre Pascal esfregou os olhos com as mãos molhadas.
Imaginara-o? Outro relâmpago faiscou, e no instante de cintilante
luz branca viu o estranho homem fugindo a correr, passando pelos
limites da aldeia e entrando nos bosques.
O instinto natural do sacerdote depois de todos aqueles anos como
pastor da sua comunidade era o de tentar ajudar imediatamente
qualquer alma necessitada. "Espere!", gritou por cima do vento.
Correu para fora do seu portão, coxeando ligeiramente devido à sua
perna má, e percorreu a estreita passagem por entre as casas, na
direcção para onde o homem desaparecera entre as sombras das
árvores.
O padre Pascal em breve descobriu o desconhecido caído de cara
para baixo entre as silvas e folhas na extremidade do bosque. Tremia
violentamente e agarrava-se aos flancos descarnados. No meio da
escuridão molhada o sacerdote conseguiu ver que as roupas do
homem pendiam em farrapos.
— Senhor — gemeu compadecido, tirando instintivamente o casaco
para cobrir o desconhecido. — Meu amigo, sente-se bem? Qual é o
problema? Por favor, deixe-me ajudá-lo.
O desconhecido falava consigo mesmo numa voz baixa, uma
desarticulada algaraviada misturada com soluços, e estremecendo os
ombros. O padre Pascal estendeu o casaco por sobre as costas do
homem, sentindo a sua própria camisa instantaneamente
encharcada com a chuva que caía.
— Temos de ir para dentro — disse com voz suave. — Tenho a
lareira acesa, comida e uma cama. Vou chamar o doutor Bachelard.
Consegue andar?
Tentou gentilmente virar o homem, para lhe agarrar nas mãos e
ajudá-lo a erguer-se.
E recuou com o que viu com o relâmpago seguinte. A camisa
retalhada do homem encharcada em sangue. Os longos e profundos
golpes tinham sido abertos no seu corpo emaciado. Golpes em cima
de golpes. Feridas que haviam sarado e abertas por novos cortes.
Pascal olhou fixamente, dificilmente acreditando no que estava a
ver. Estes não eram cortes ao acaso, mas padrões, formas, símbolos,
incrustados de sangue.
— Quem é que lhe fez isto, meu filho? — O sacerdote estudou a
face do estranho. Encontrava-se definhada, descarnada quase a
ponto de ser fantasmagórica. Quanto tempo vagueara ele neste
estado?
O homem articulou algo numa voz entrecortada:
— Omnis qui bibit hanc aquam...
O padre Pascal compreendeu com estupefacção que o homem
falava com ele em latim.
— Água? — inquiriu. — Quer beber água?
O homem continuou a murmurar, fixando-o com olhos alucinados,
esgatanhando a manga da camisa.
— Si fidem addit, salvus erit.
Pascal franziu o sobrolho. Qualquer coisa acerca de fé, salvação?
Está a falar sem sentido, pensou o padre. A pobre alma estava
perturbada. Então brilhou outro relâmpago, quase directamente por
cima deles, e enquanto o trovão rugia instantes depois viu
sobressaltado que os dedos ensanguentados do homem estavam
enclavinhados em redor do punho de uma faca.
Era uma faca como nenhuma outra que o padre jamais vira, uma
adaga cruciforme com um punho ornamentado a ouro e com
cintilantes jóias incrustadas. Pingava sangue da longa e esguia
lâmina.
Foi então que o sacerdote compreendeu o que o desconhecido
fizera a si próprio. Tinha gravado aquelas feridas na sua própria
carne.
— O que foi fazer? — A mente do padre Pascal enxameou-se de
horror. O desconhecido observava-o, erguendo-se nos joelhos, com a
face ensanguentada e enlameada subitamente iluminada pelo faiscar
de mais um relâmpago. Os olhos estavam vazios, perdidos, como se a
sua mente se encontrasse noutro lugar. Acariciou a ornamentada
arma.
Por momentos Pascal Cambriel esteve convencido de que este
homem ia matá-lo. Então era aqui e agora, por fim. Morte. O que
traria ela? Um qualquer género de continuada existência, disso tinha
ele a certeza, embora a sua natureza exacta não lhe fosse clara.
Interrogara-se frequentemente sobre como enfrentaria a morte
quando chegasse o momento. Tivera esperança de que a sua
profunda fé religiosa o preparasse para encarar fosse qual fosse o fim
que Deus lhe destinara com serenidade e compostura. Agora, no
entanto, a perspectiva daquele aço frio a afundar-se na sua carne
transformou-lhe as pernas em água.
Naquele momento, quando já não havia qualquer dúvida na sua
mente que ia morrer, pensou acerca de como iria ser recordado.
Teria sido um homem bom? Teria sido a sua uma vida meritória?
Senhor, dá-me forças.
O louco fixava a adaga na sua mão com extasiada fascinação,
depois o impotente sacerdote, e começou a rir — uma gargalhada
grave que se ergueu até um estridente grito histérico.
— Igne natura renovatur integra! — gritou as palavras uma e outra
vez, e Pascal Cambriel observou aterrorizado enquanto ele começava
a enterrar febrilmente a lâmina no seu próprio pescoço.
Capítulo 2
Algures perto de Cádis, Sul de Espanha
Setembro de 2007

Ben Hope deixou-se cair do muro e aterrou silenciosamente de pé


no interior do quintal. Ficou um momento agachado na escuridão.
Tudo o que conseguia ouvir era o cricri áspero dos grilos, o piar de
uma qualquer ave nocturna incomodada com a sua aproximação
através do bosque, e o bater controlado do seu coração. Arregaçou a
apertada manga negra do seu blusão de combate. 04h34m.
Efectuou uma última verificação à Browning de 9 mm,
certificando-se de que havia um projéctil na câmara e de que a
pistola se encontrava pronta para a acção. Accionou silenciosamente
a patilha de segurança e colocou a pistola no coldre. Retirou do bolso
a máscara negra de esqui e enfiou-a na cabeça.
A casa semiabandonada estava escura. Seguindo o plano que lhe
fora fornecido pelo seu informador, Ben contornou o muro, meio à
espera de um súbito eclodir das luzes de segurança que não chegou a
acontecer. Alcançou a entrada das traseiras. Encontrava-se tudo
conforme lhe tinham dito. A fechadura na porta ofereceu pouca
resistência, e passados alguns segundos esgueirou-se para o interior.
Percorreu um corredor na obscuridade, passou por uma sala e
depois por outra, com o estreito feixe de luz do projector LED
montado na pistola a revelar paredes bolorentas e soalhos
apodrecidos, e montes de lixo no chão. Chegou a uma porta que
estava fechada por fora com um cadeado e um ferrolho. Quando fez
incidir a luz na fechadura viu que era trabalho para um amador. O
ferrolho encontrava-se somente aparafusado à madeira carunchosa.
Em menos de um minuto, trabalhando em silêncio, tinha a fechadura
extraída da porta e estava a entrar, lenta e cautelosamente de modo a
não alarmar o menino que dormia.
Julián Sanchez, de onze anos, agitou-se e gemeu enquanto Ben se
agachava junto ao catre improvisado.
— Tranquilo, soy un amigo — sussurrou ao ouvido do menino.
Apontou a luz da Browning aos olhos de Julián. Praticamente sem
reflexo das pupilas — tinha sido drogado.
O quarto tresandava a humidade e lixo. Um rato, que estivera em
cima da pequena mesa aos pés da cama a comer os restos de uma
refeição frugal num prato de lata, saltou para o chão e pisgou-se. Ben
virou gentilmente o menino nos lençóis sujos. As mãos encontravam-
se atadas com um cabo plastificado que lhe estava a morder os
pulsos.
Julián gemeu novamente enquanto Ben enfiava uma faca esguia
por entre os cabos e lhe libertava os braços. A mão esquerda tinha
um trapo enrolado, incrustado de sujidade e sangue seco. Ben teve
esperança de que fosse apenas do dedo que fora amputado. Já vira
muito pior.
O resgate exigia dois milhões de euros em notas usadas. Como
símbolo da sua sinceridade os raptores tinham enviado um dedo
cortado pelo correio. Uma atitude disparatada, tal como chamar a
polícia, dissera a voz ao telefone, e a próxima encomenda conteria
outros pedaços. Talvez outro dedo, talvez os tomates. Talvez a
cabeça.
Emilio e Maria Sanchez tinham levado as ameaças da maneira
correcta — seriamente. Arranjar os dois milhões não era um
problema para o abastado casal de Málaga, mas sabiam
perfeitamente que pagar o resgate não garantiria de modo algum que
o seu filho não regressasse a casa num saco para cadáveres. Os
termos do seu seguro de rapto estipulavam que as negociações
deveriam, em todas as circunstâncias, passar pelos canais oficiais.
Isso significava o envolvimento da polícia -e seria assinar o
certificado de óbito de Julián ter os chuis metidos nisto. Eles tinham
necessitado de encontrar uma alternativa viável para equilibrar as
hipóteses de favorecer o regresso a salvo de Julián.
Era aí que Ben Hope entrava na equação, se se soubesse o número
certo para onde ligar.
Ben rolou a criança drogada para fora do catre e içou o corpo
inerte para cima do ombro esquerdo. Um cão começara a ladrar
algures por detrás da casa. Ouviu alguma agitação, abriu-se uma
porta. Empunhando a Browning com silenciador à sua frente como
projector, transportou Julián através dos sombrios corredores.
Três homens, dissera-lhe o informador. Um deles estava caído de
bêbedo a maior parte do tempo mas ele teria de prestar atenção aos
outros dois. Ben acreditara no informador, como acreditava
habitualmente em qualquer homem com uma pistola apontada à
cabeça.
Abriu-se uma porta à sua frente e uma voz gritou na escuridão. A
luz de Ben assentou na figura de um homem, barba por fazer, o corpo
a oscilar de gordura, vestido com uns calções e uma T-shirt rasgada.
A cara contorcia-se com o feixe brilhante apontado aos olhos. Nas
mãos encontrava-se uma caçadeira de canos serrados, com os canos
inclinados para baixo e apontados ao estômago de Ben.
A Browning tossiu instantaneamente duas vezes através do
comprido supressor de som e o estreito feixe LED seguiu o arco do
corpo do homem enquanto este se abatia morto no chão. O homem
jazeu imóvel com dois buracos limpos no centro da T-shirt, o sangue
já a espalhar-se por debaixo. Sem pensar no assunto, Ben fez o que
tinha sido treinado para fazer nestas circunstâncias, aproximar-se do
corpo e acabar o trabalho com um tiro de precaução na cabeça.
O segundo homem, alertado pelo som, chegou a correr descendo
um lanço de escadas, com uma lanterna oscilante na sua frente. Ben
alvejou a luz. Houve um grito breve e o homem precipitou-se de
cabeça pelas escadas abaixo antes de ter uma hipótese de disparar o
revólver. A arma deslizou pelo chão. Ben caminhou até ele e
certificou-se de que não voltaria a levantar-se. Depois fez uma pausa
de trinta segundos, aguardando por qualquer som.
O terceiro homem nunca chegou a aparecer. Não acordara.
Não ia acordar.
Com Julián inconsciente por cima do ombro, Ben caminhou pela
casa até uma cozinha sórdida. A luz da sua pistola incidiu numa
barata em fuga, seguiu o trilho da apressada corrida e deteve-se num
velho fogão que se encontrava ligado a uma botija de gás de grandes
dimensões. Deixou gentilmente deslizar Julián para uma cadeira.
Ajoelhando-se no escuro ao lado do fogão, cortou com a faca o
tubo de borracha que saía da parte de trás do aparelho doméstico, e
usou um antigo barril de cerveja para entalar o tubo contra a parte
lateral do frio cilindro. Abriu um quarto de volta da válvula rotativa
no alto do cilindro, acendeu o isqueiro e o pequeno jacto de gás a
silvar inflamou-se com uma curta chama amarela. Depois abriu
completamente a válvula. A chama tremeluzente transformou-se
num feroz jacto de fogo azul a rugir que lambeu e se encaracolou
agressivamente cilindro acima, escurecendo o aço.
Três projécteis abafados provenientes da Browning e as correntes
caíram dos portões da frente. Ben ia contando os segundos enquanto
transportava o menino para longe da casa na direcção das árvores.
Encontravam-se à beira do bosque quando a casa foi pelos ares. O
súbito faiscar e uma maciça e concentrada bola de fogo cor de laranja
iluminaram as árvores e a cara de Ben quando este se voltou para ver
o esconderijo dos raptores feito em pedaços. Bocados flamejantes
dos destroços caíam em redor. Uma espessa e grossa coluna de fumo
incandescente cor de sangue ergueu-se para o céu estrelado.
O carro fora ocultado mesmo do outro lado das árvores.
— Vais para casa — disse Ben para Julián.
Capítulo 3
Costa ocidental da Irlanda, quatro dias depois

Ben acordou com um sobressalto. Por momentos ficou ali deitado,


desorientado e confuso enquanto a realidade se instalava
lentamente. Ali ao lado, na mesa-de-cabeceira, o telefone berrava
estridentemente. Estendeu o braço para o auscultador. Desajeitada
devido ao longo sono, a mão às apalpadelas derrubou o copo vazio e
a garrafa de uísque que deixara junto ao telefone. O copo esmagou-se
contra o chão de madeira. A garrafa atingiu o soalho com um baque
pesado e rolou para longe até um monte de roupa suja.
Praguejou, sentando-se na cama amarrotada. A cabeça latejava-lhe
e tinha a garganta seca. Ainda tinha na boca o gosto a uísque cediço.
Atendeu o telefone.
— Estou? — disse, ou tentou dizer. O grasnar rouco deu lugar a um
ataque de tosse. Fechou os olhos, e teve aquela desagradável e
familiar sensação de ser sugado para trás em espiral através de um
túnel comprido e escuro, fazendo-lhe sentir a cabeça leve e o
estômago às voltas.
— Peço desculpa — disse a voz no outro lado da linha. Uma voz de
homem, com uma acentuada pronúncia inglesa. — Será que é o
número correcto? Queria falar com o senhor Benjamin Hope. — A
voz denotava desaprovação, o que irritou imediatamente Ben, apesar
da cabeça zonza.
Tossiu de novo, passou as costas da mão pela cara e tentou
descolar os olhos.
— Benedict — articulou, depois clareou a garganta e falou mais
perceptivelmente. — É Benedict Hope. O próprio... que horas são
isto? -acrescentou irritadamente.
A voz soou ainda mais desagradada, como se a sua impressão de
Ben tivesse acabado de ser confirmada.
— Bem, na verdade dez e meia.
Ben afundou a cabeça na mão. Olhou para o relógio. O Sol brilhava
através do espaço entre os cortinados. Começou a concentrar-se.
— Muito bem. Desculpe. Tive uma noite atarefada.
— Evidentemente.
— Em que posso ajudá-lo? — disse bruscamente Ben.
— Senhor Hope, o meu nome é Alexander Villiers. Estou a ligar da
parte do meu empregador, o senhor Sebastian Fairfax. Fui instruído
para lhe dizer que o senhor Fairfax gostaria de contratar os seus
serviços. — Uma pausa. — Aparentemente você é um dos melhores
detectives particulares.
— Então informaram-no mal. Eu não sou detective. Eu encontro
pessoas perdidas.
A voz continuou.
— O senhor Fairfax gostaria de o ver. Podemos marcar um
encontro? Naturalmente, vamos buscá-lo e pagar-lhe pelo incómodo.
Ben endireitou-se contra a cabeceira de carvalho e pegou nos
Gauloises e no Zippo. Entalou o maço entre os joelhos e colheu um
cigarro. Accionou a roda do isqueiro e acendeu-o.
— Lamento, não me encontro disponível. Terminei agora uma
missão e vou fazer uma pausa.
— Compreendo — disse Villiers. — Também estou instruído para o
informar de que o senhor Fairfax está disposto a oferecer uma
quantia generosa.
— A questão não é o dinheiro.
— Então talvez eu deva dizer-lhe que isto é um caso de vida ou de
morte. Disseram-nos que você pode ser a nossa única possibilidade.
Não poderá pelo menos vir conhecer o senhor Fairfax? Quando ouvir
o que ele tem para dizer, talvez possa mudar de ideias.
Ben hesitou.
— Obrigado por ter concordado — disse Villiers depois de uma
pausa. — Por favor aguarde pelo transporte nas próximas horas.
Adeus.
— Aguente aí. Onde?
— Nós sabemos onde se encontra, senhor Hope.
Ben dedicou-se à sua corrida diária ao longo da praia deserta, com
apenas a água e algumas gaivotas ensurdecedoras voando em
círculos por companhia. O oceano sussurrante estava calmo, e o sol
mais fresco agora que o Outono vinha a caminho.
Depois de cerca de quilómetro e meio para um lado e para o outro
na areia macia, a ressaca somente um eco desmaiado, tomou o
caminho que descia até à enseada rochosa que era a sua parte
preferida da praia. Nunca aqui vinha ninguém a não ser ele. Era um
homem que gostava de solidão, embora o seu trabalho fosse procurar
reunir pessoas separadas à força. Era para aqui que gostava de vir
por vezes quando não estava a trabalhar. Era um lugar onde podia
esquecer tudo, onde o mundo e os seus problemas podiam sair-lhe
da mente durante uns preciosos momentos. Até a casa se encontrava
fora da vista, escondida por detrás da íngreme encosta de barro e
calhaus e tufos de erva. Pouco se importava com a casa de seis
quartos — era de longe demasiado grande para apenas ele e Winnie,
a sua idosa governanta — e só a comprara porque vinha junta com
esta extensão de quase meio quilómetro de praia particular, o seu
santuário.
Sentou-se na mesma rocha, grande, plana e coberta de lapas, em
que sempre se sentava, e pôs-se distraidamente a atirar uma mão-
cheia de seixos, um a um, para o mar enquanto a maré marulhava e
silvava nas pedras em redor. Com os olhos azuis semicerrados devido
ao sol observou a queda em curva de uma pedra contra o céu, e o
pequeno esparrinhar que produziu enquanto desaparecia na cava da
onda que aí vinha. Que rico serviço, Hope, pensou com os seus
botões. Aquela pedra levou um milhar de anos a chegar à costa, e
agora atiraste-a de volta. Acendeu outro cigarro e estendeu o olhar
para o mar, com a gentil brisa salgada a despentear-lhe o cabelo
louro.
Passado algum tempo ergueu-se relutantemente, saltou da sua
rocha e fez o caminho de regresso na direcção da casa. Foi encontrar
Winnie de volta das panelas na enorme cozinha, fazendo-lhe o
almoço.
— Eu vou ter de sair daqui a umas horas, Win. Não faças nada
especial.
Winnie virou-se e olhou para ele.
— Mas tu só voltaste ontem. Para onde é que vais desta vez?
— Não faço ideia.
— Quanto tempo vais ficar fora?
— Isso também não sei.
— Bom, o melhor é comeres alguma coisa — disse ela firmemente.
— Sempre a correr de um lado para o outro, nunca o tempo
suficiente num sítio que dê para respirar fundo. — Winnie suspirou e
abanou a cabeça.
Winnie era uma companheira fiel e determinada da família Hope
há muitos anos. Já há muito tempo que Ben era o único que restava.
Depois da morte do pai, vendera a casa da família e mudara-se para
aqui, na costa ocidental da Irlanda. Winnie seguira-o. Mais do que
apenas uma governanta, Ben sentia-a como sua mãe — ansiosa,
frequentemente exasperada, mas sempre uma paciente e devotada
mãe.
Winnie abandonou o almoço cozinhado que começara a fazer para
ele e preparou rapidamente uma pilha de sanduíches de fiambre.
Ben sentou-se à mesa da cozinha e mastigou um par delas, perdido
nos seus pensamentos.
Winnie deixou-o e dedicou-se a outros afazeres pela casa. Não
havia muito para ela fazer. Ben raramente lá estava, e quando vinha
a casa ela mal dava pela presença dele. Nunca falava acerca do
trabalho, mas ela sabia o suficiente a esse respeito para ter a noção
de que era perigoso. Isso preocupava-a. Também se preocupava com
a bebida, e com as caixas de uísque que chegavam demasiado
regularmente numa carrinha. Nunca falara abertamente com ele
sobre isso, mas receava que, de uma maneira ou de outra, ele fosse
parar a uma sepultura cedo de mais. Só o bom Deus sabia qual o
apanharia primeiro, se o uísque ou uma bala. O seu maior receio era
o de pensar que a ele tanto se lhe dava.
Se ele ao menos conseguisse encontrar algo de que gostasse,
pensava ela. Alguém de quem gostasse. Ele mantinha a vida privada
um segredo muito bem guardado, mas ela sabia que das poucas vezes
que uma mulher tentara aproximar-se dele, para o fazer amá-la, ele
tinha-a rejeitado e deixado que ela se afastasse. Nunca trouxera
ninguém lá a casa, e muitas chamadas telefónicas tinham ficado por
atender. Elas acabavam sempre por deixar de telefonar. Ele tinha
receio de amar alguém. Era como se tivesse morto essa parte de si
próprio, como se se tivesse esvaziado a si próprio emocionalmente,
tornando-se oco por dentro.
Ela ainda conseguia lembrar-se dele como um jovem cheio de
optimismo e de sonhos, com algo em que acreditar, algo que lhe
desse forças que não saísse de uma garrafa.
Isso fora há muito, muito tempo atrás. Antes de aquilo ter
acontecido. Suspirou com a memória daqueles tempos terríveis.
Teriam alguma vez acabado? Ela era a única pessoa, para lá do
próprio Ben, que compreendia o que secretamente o movia.
Conhecia a dor que se instalara no coração dele.
Capítulo 4
O jacto particular transportou-o sobre o mar da Irlanda e para sul
na direcção da costa do Sussex. Aterrou num aeródromo, onde foram
recebidos por uma elegante limusina preta Bentley Arnage. Ben foi
instado a entrar para os bancos traseiros do carro pelos mesmos
homens anónimos em fatos cinzentos que o tinham ido buscar a casa
e viajado com ele no avião, de faces sombrias e taciturnos. Os dois
homens entraram num Jaguar Sovereign preto que aguardava na
pista com o motor a ronronar, à espera que o Bentley arrancasse.
Instalando-se no sumptuoso interior do Bentley em cabedal creme,
Ben ignorou o armário de bebidas de bordo, extraiu o seu usado
frasco de bolso e deu uma golada no uísque. Enquanto fazia de novo
deslizar o frasco para o bolso, notou que os olhos do condutor
uniformizado o tinham estado a observar pelo espelho.
A viagem durou cerca de quarenta minutos. O Jaguar seguiu-os
durante todo o caminho. Ben observava as indicações e tomou nota
da rota, orientando-se. Depois de alguns quilómetros com via dupla
o Bentley dirigiu-se para o campo, acelerando com um suave
sussurro através de estradas secundárias vazias. Uma aldeia passou
num abrir e fechar de olhos. Finalmente o carro enfiou por uma
pacata estrada campestre e deteve-se junto a uma arcada inserida
numa parede alta em pedra. O Jaguar estacionou atrás. Portões
automáticos, negros e dourados, abriram-se para deixar passar os
carros. O Bentley rolou por uma tortuosa estrada particular, passou
por um terraço de casas de campo. Ben virou-se para observar uns
belos cavalos a galopar numa pista rodeada com uma vedação
branca. Quando voltou a olhar pela janela de trás, o Jaguar
desaparecera.
A estrada continuou, com jardins formais muito bem arranjados
em cada um dos lados. Ao fim de uma álea de majestosos ciprestes a
casa apareceu-lhes à frente, uma mansão jorgiana com uma
escadaria de degraus de pedra e colunas clássicas.
Ben interrogou-se acerca do que o seu potencial cliente fazia para
ganhar a vida. A casa parecia dever valer pelo menos sete ou oito
milhões. Isto acabaria por ser provavelmente outro trabalho de R&R,
como era o caso com a vasta maioria dos seus clientes mais
abastados. O rapto e resgate tinha-se tornado um dos negócios de
expansão mais rápida do mundo nos dias que corriam. Em alguns
países, a indústria de R&R tinha mesmo ultrapassado a da heroína.
O Bentley passou por uma grande fonte ornamental e encostou
junto à base dos degraus. Ben não aguardou que o condutor lhe
abrisse a porta. Um homem desceu os degraus para o saudar.
— Eu sou Alexander Villiers, o assistente pessoal do senhor
Fairfax. Falámos ao telefone.
Ben limitou-se a anuir, e estudou Villiers. Parecia encontrar-se a
meio dos quarenta ou assim. O cabelo era escorrido e a ficar grisalho
nas têmporas. Trazia um casaco azul-marinho sóbrio e uma gravata
que parecia ser um emblema de uma faculdade ou de uma escola
pública.
— Ainda bem que veio — disse Villiers. — O senhor Fairfax está à
sua espera lá em cima.
Ben foi conduzido através de uma larga entrada para um átrio com
o chão em mármore, o qual era suficientemente grande para
acomodar um avião de dimensões médias, e depois subindo uma
escadaria curva até um corredor com as paredes apaineladas a
madeira, com quadros e expositores em vidro alinhados ao longo
dele. Villiers guiou-o em silêncio através do extenso corredor e
deteve-se junto a uma porta. Bateu, e uma voz ressonante gritou do
interior "Entre".
Villiers introduziu Ben num estúdio. Os feixes de luz do Sol
brilhavam através de uma janela de arco flanqueada por pesados
cortinados de veludo. O cheiro a couro e polimento de madeiras
pairava no ar.
O homem sentado à avantajada secretária ergueu-se quando Ben
entrou no estúdio. Era alto e esguio dentro de um fato escuro, uma
melena de cabelo branco puxada para trás a partir da fronte alta. Ben
colocou a sua idade à volta dos setenta e cinco, embora parecesse em
forma e desempenado.
— O senhor Hope, senhor — disse Villiers, e partiu, fechando as
pesadas portas atrás de si. O homem alto dirigiu-se a Ben a partir da
secretária, estendendo a mão.
Os olhos cinzentos eram velozes e penetrantes. — Senhor Hope, eu
sou Sebastian Fairfax — disse calorosamente. — Muito obrigado por
ter concordado em fazer todo este caminho, e com tão pouca
antecedência.
Apertaram as mãos.
— Por favor, sente-se — disse Fairfax. — Posso oferecer-lhe uma
bebida? — Aproximou-se de um armário à sua esquerda, e retirou
um decantador de cristal. Ben alcançou o bolso e extraiu o seu velho
frasco, desenroscando a tampa. — Vejo que trouxe a sua própria
reserva -disse Fairfax. — Um homem cheio de recursos.
Ben bebeu, consciente de que Fairfax o observava atentamente.
Sabia o que o velho estava a pensar.
— Isto não afecta o meu trabalho — disse, voltando a enroscar a
tampa.
— Tenho a certeza que não — disse Fairfax. Sentou-se por detrás
da secretária. — Agora, vamos direitos ao assunto?
— Isso seria óptimo.
Fairfax recostou-se na sua cadeira, franzindo os lábios.
— Você é um homem que encontra pessoas.
— Tento — retorquiu Ben.
Fairfax contraiu os lábios e continuou.
— Tenho alguém que quero que me encontre. É uma missão para
um especialista. O seu currículo é altamente impressionante.
— Continue.
— Estou à procura de um homem cujo nome é Fulcanelli. É um
assunto extremamente importante e necessito de um profissional
com os seus talentos para o localizar.
— Fulcanelli. Ele tem um primeiro nome? — inquiriu Ben.
— Fulcanelli é um pseudónimo. Ninguém conhece a sua verdadeira
identidade.
— É uma ajuda. Estou a partir do princípio de que este homem não
é um seu particular amigo íntimo, nem um membro da família
desaparecido ou coisa do género, não é? — Ben sorriu friamente. —
Normalmente, os meus clientes conhecem as pessoas que querem
que eu encontre.
— Está correcto, não é de todo.
— Então, qual é a ligação? Para que o quer? Ele roubou-lhe alguma
coisa? Isso é um assunto para a polícia, e não para mim.
— Não, nada desse género — disse Fairfax com um gesto de
desdém. — Não tenho qualquer má vontade contra Fulcanelli. Pelo
contrário, ele significa imenso para mim.
— Muito bem. Pode dizer-me onde e quando foi esta pessoa vista
pela última vez?
— Fulcanelli foi visto pela última vez em Paris, tanto quanto fui
capaz de saber — disse Fairfax. — Quanto a quando foi visto pela
última vez... — Fairfax fez uma pausa. — Já foi há algum tempo.
— Isso torna sempre as coisas mais difíceis. Estamos a falar do
quê, mais do que, digamos, dois anos?
— Um pouco mais do que isso.
— Cinco? Dez?
— Senhor Hope, a última aparição confirmada de Fulcanelli foi em
1926.
Ben olhou-o fixamente. Fez um cálculo rápido.
— Isso foi há mais de oitenta anos. Estamos a falar de algum caso
de rapto de crianças?
— Ele não era uma criança — afirmou Fairfax com um sorriso
calmo. — Fulcanelli era um homem de oitenta e tal anos à altura do
seu desaparecimento súbito.
Ben estreitou os olhos.
— Isto é uma qualquer espécie de brincadeira? Vim de muito
longe, e francamente...
— Garanto-lhe que estou a falar perfeitamente a sério — retorquiu
Fairfax. — Não sou um homem que ache graça a brincadeiras.
Repito, gostaria que me encontrasse Fulcanelli.
— Eu procuro pessoas vivas — disse Ben. — Não estou interessado
em demandas por espíritos que já partiram. Se é isso que quer,
precisa de ligar para o instituto de parapsicologia e eles poderão
enviar-lhe um dos seus caça-fantasmas.
Fairfax sorriu.
— Aprecio o seu cepticismo. No entanto, existem razões para
pensar que Fulcanelli se encontra vivo. Mas talvez necessitemos de
objectivar aqui o assunto. O meu interesse principal não é tanto o
homem em si, mas um dado conhecimento que está, ou esteve, na
posse dele. Informação de uma natureza crucialmente importante, a
qual eu e os meus agentes não conseguimos até agora localizar.
— Informação de que tipo? — perguntou Ben.
— A informação está contida num documento, um manuscrito
precioso para ser exacto. Quero que localize e me traga o manuscrito
Fulcanelli.
Ben apertou os lábios.
— Terá havido aqui alguma falha de comunicação? Villiers, o seu
homem, disse-me que isto era um caso de vida ou de morte.
— E é — retorquiu Fairfax.
— Não estou a acompanhá-lo. De que informação estamos a falar?
Fairfax sorriu tristemente.
— Eu explico-lhe. Senhor Hope, eu tenho uma neta. O nome dela é
Ruth.
Ben esperou que a sua reacção ao nome não se notasse.
— A Ruth tem nove anos, senhor Hope — continuou Fairfax — e
receio que ela nunca chegue a ver o seu décimo aniversário. Sofre de
um tipo de cancro raro. A mãe dela, minha filha, desespera pela
recuperação. Assim como todos os médicos particulares
especialistas, os quais, apesar de todos os meios que tenho à minha
disposição, têm sido incapazes de inverter o curso desta terrível
doença.
Fairfax estendeu uma mão esguia. Em cima da secretária, de frente
para ele, encontrava-se uma fotografia numa moldura em ouro.
Fairfax virou-a para que Ben a visse.
A fotografia mostrava uma pequena rapariga loura, toda sorrisos e
felicidade, montada num pónei.
— É desnecessário dizer — prosseguiu Fairfax — que esta
fotografia foi tirada há algum tempo, antes de a doença ter sido
detectada. Ela já não tem este aspecto.
Eles mandaram-na para casa para morrer.
— Lamento imenso tudo isso — disse Ben. — Mas não percebo o
que tem isto a ver com...
— Com o manuscrito Fulcanelli? Tem tudo a ver. Acredito que o
manuscrito Fulcanelli contém informação vital, conhecimento
ancestral que poderia salvar a vida da minha adorada Ruth. Poderia
trazê-la de volta à família e restituir-lhe o aspecto que tem nesta
fotografia.
— Conhecimento ancestral? Que género de conhecimento
ancestral?
Fairfax sorriu sombriamente.
— Senhor Hope, Fulcanelli era... e ainda é, acredito eu, um
alquimista.
Houve um silêncio pesado. Fairfax estudou intencionalmente a
face de Ben.
Ben olhou para as mãos durante alguns instantes. Suspirou.
— O que está a dizer é que este manuscrito lhe mostrará como
fazer uma espécie... uma espécie de poção salva-vidas?
— Um elixir alquímico — disse Fairfax. — Fulcanelli conhecia o seu
segredo.
— Olhe, senhor Fairfax. Eu compreendo quão dolorosa é a sua
situação — disse Ben, medindo as palavras. — Posso estar solidário
consigo. É fácil querer acreditar que um qualquer remédio secreto
pode operar milagres. Mas um homem do seu intelecto... não lhe
parece que talvez esteja a iludir-se? Quer dizer, alquimia? Não seria
melhor procurar mais conselhos de outros médicos especialistas?
Talvez uma nova forma de tratamento, tecnologia moderna...
Fairfax abanou a cabeça.
— Já lhe disse, tudo o que pode ser feito, de acordo com a ciência
moderna, já foi feito. Analisei todas as possibilidades. Acredite em
mim, eu investiguei este assunto extremamente a fundo e não levo o
assunto de ânimo leve... há mais coisas no livro da ciência do que os
actuais peritos nos querem fazer acreditar. — Fez uma pausa. —
Senhor Hope, eu sou um homem orgulhoso. Tenho sido
extraordinariamente bem-sucedido na minha vida e sou uma pessoa
consideravelmente influente. E no entanto você vê-me aqui como um
avô velho e triste. Eu pôr-me-ia de joelhos para lhe suplicar que me
ajude... que ajude a Ruth... se pensasse que isso o persuadiria. Pode
pensar que a minha busca é uma tolice, mas por amor de Deus e pela
saúde daquela doce criança, seria capaz de fazer a vontade a um
velho e aceitar a minha oferta? O que tem a perder? Nós é que somos
os que têm muito a perder, se a nossa Ruth não sobreviver.
Ben hesitou.
— Eu sei que não tem família ou filhos seus, senhor Hope —
continuou Fairfax. — Talvez apenas um pai ou um avô possa
realmente compreender o que significa ver alguém da sua querida
prole sofrer ou morrer. Nenhuns pais deveriam ter de suportar essa
tortura. — Olhou Ben nos olhos com firmeza. — Encontre o
manuscrito Fulcanelli, senhor Hope. Eu acredito que consegue.
Pagar-lhe-ei um milhão de libras esterlinas, um quarto dessa soma
adiantado, e o restante contra a entrega do manuscrito a salvo. —
Abriu uma das gavetas da secretária, retirou uma tira de papel e fê-la
deslizar sobre a superfície de madeira polida. Ben pegou-lhe. O
cheque tinha escrito a quantia de £250 000 e passado em seu nome.
— Requer apenas a minha assinatura — disse calmamente Fairfax.
— E o dinheiro é seu.
Ben pôs-se de pé, ainda a segurar o cheque. Fairfax observou-o
atentamente enquanto Ben caminhava até à janela e olhava para o
exterior ao longo da vasta propriedade na direcção de algumas
árvores que oscilavam gentilmente com o vento. Esteve em silêncio
durante um minuto, e então respirou pelo nariz de forma audível e
voltou-se lentamente para Fairfax.
— Não é isto que eu faço. Eu localizo pessoas desaparecidas.
— Estou a pedir-lhe para salvar a vida de uma criança. Importa-lhe
como isso é conseguido?
— Está a pedir-me que parta numa caçada aos gambozinos que o
senhor acredita que a pode salvar. — Atirou o cheque de volta para
cima da secretária de Fairfax. -
Mas eu não consigo ver como. Lamento, senhor Fairfax. Obrigado
pela sua oferta, mas eu não estou interessado. Agora, gostaria que o
seu motorista me levasse de volta para o aeródromo.
Capítulo 5
Num grande campo aberto repleto de flores selvagens e de
luxuriante relva ondulante, um rapaz adolescente e uma menina
corriam, rindo, de mão dada. Os seus cabelos louros ficavam
dourados à luz do Sol. O rapaz largou a mão da menina e caiu de
joelhos para colher uma flor. Rindo, ela correu em frente, olhando
para trás com o nariz franzido de diabrura e a face sardenta rosada.
O rapaz ofereceu-lhe a flor, e subitamente ela estava muito longe.
Junto a ela encontrava-se uma passagem com um portão, que
conduzia a um labirinto com paredes muito altas.
— Ruth! — gritou ele. — Volta! — A menina pôs as mãos em
concha em redor da boca, e gritou: — Vem encontrar-me! — E
desapareceu, sorrindo, passando pelo portão.
O rapaz correu atrás dela, mas algo não estava bem. A distância
entre ele e o labirinto continuava a aumentar mais e mais. Gritou:
— Não vás, Ruth, não me deixes aqui! — Ele correu e correu, mas
agora o chão debaixo dos seus pés já não era relva mas areia, areia
profunda e macia na qual ele se afundava e tropeçava.
Depois, um homem alto com brancas vestes esvoaçantes bloqueou-
lhe o caminho. A cabeça do rapaz chegava somente à cintura do
homem, e ele sentiu-se pequeno e impotente.
Conseguiu passar pelo homem e chegar à entrada do labirinto
mesmo a tempo de ver Ruth a esvoaçar à distância. Ela já não estava
a rir, mas a chorar de medo enquanto desaparecia ao contornar uma
esquina. Os olhos deles encontraram-se uma última vez. Depois ela
desapareceu.
Agora havia outros homens altos com vestes brancas, e barbas
negras. Agruparam-se em seu redor e dominaram-no das alturas,
bloqueando-lhe o caminho e a vista, vociferando numa língua que ele
não compreendia, olhos redondos e brancos em caras de mogno que
o assombravam de perto, gargalhando com falhas entre os dentes. E
então agarraram-lhe os braços e os ombros com mãos poderosas e
seguraram-no e ele gritava e berrava e lutava mas vinham mais e
mais deles e ele estava pregado ao chão e não se conseguia mexer...
Agarrou firmemente o copo que tinha na mão e sentiu a
queimadura do uísque na língua. À distância, para lá das arfantes
ondas cinzentas que se esmagavam de encontro às rochas da baía, o
arco do horizonte estava lentamente a tingir-se de vermelho com a
alvorada.
Afastou-se da janela ao ouvir a porta abrir atrás de si.
— Bom dia, Win — disse, conseguindo um sorriso. — O que andas
a fazer a pé tão cedo?
Ela olhou para ele com preocupação, com o olhar a desviar-se do
copo na mão dele para a garrafa na mesa por detrás.
— Pensei ter ouvido vozes. Está tudo bem, Ben?
— Não consegui voltar a adormecer.
— Outra vez pesadelos? — perguntou ela sabendo do que falava.
Ele assentiu. Winnie suspirou. Pegou na velha e gasta fotografia
para que ele estivera a olhar e deixara em cima da mesa junto à
garrafa de uísque.
— Ela não era bonita? — sussurrou a senhora idosa, abanando a
cabeça e mordendo o lábio.
— Sinto tanto a falta dela, Winnie. Depois destes anos todos.
— Achas que eu não sei disso? — retorquiu ela, olhando-o. — Sinto
a falta de todos eles. — Pousou cuidadosamente a fotografia em cima
da mesa.
Ele ergueu novamente o copo, e esvaziou-o rapidamente.
Winnie franziu o sobrolho.
— Ben, essa bebida...
— Não me dês sermões, Win.
— Nunca te disse uma única palavra anteriormente — retorquiu ela
firmemente. — Mas estás cada vez pior. Qual é o problema, Ben?
Desde que voltaste daquela reunião com aquele homem que tens
estado inquieto. Não comes. Mal dormiste nas últimas três noites.
Estou preocupada contigo. Olha só para ti: estás pálido. E eu sei que
só abriste essa garrafa a noite passada.
Ele sorriu um pouco, inclinou-se e beijou-lhe a fronte.
— Peço desculpa se disparatei. Não era minha intenção preocupar-
te, Win. Eu sei que é difícil viver comigo.
— Afinal o que ele queria de ti?
— O Fairfax? — Ben virou-se na direcção da janela e olhou de novo
para o mar, observando enquanto o Sol nascente tocava na parte
inferior das nuvens com ouro. -
Ele queria que eu... ele queria que eu salvasse a Ruth — disse ele, e
desejou que o copo não estivesse vazio.
Esperou até mesmo antes das nove, depois pegou no telefone.
— Está a reconsiderar a minha oferta? — inquiriu Fairfax.
— Não encontrou mais ninguém?
— Não.
— Nesse caso, eu aceito o trabalho.
Capítulo 6
Oxford

Ben chegou cedo para o seu encontro na Oxford Union Society. Tal
como muitos dos antigos estudantes da universidade ele era membro
vitalício da venerável instituição que se alberga junto ao Cornmarket
e que tem servido de lugar de encontro, sala de debates e clube só
para membros durante séculos. Como fizera nos seus anos de
estudante, evitou a grande entrada principal e entrou pelas traseiras,
atravessando um beco estreito contíguo ao restaurante McDonald's
do Cornmarket. Exibiu de fugida na recepção o seu velho e
esfarrapado cartão de membro e caminhou através dos consagrados
corredores pela primeira vez em quase vinte anos.
Parecia-lhe estranho estar de regresso a este lugar. Nunca pensara
que voltaria a pôr os pés neste local, ou mesmo que voltaria a esta
cidade, com todas as memórias sombrias que lhe trazia — memórias
de uma vida outrora planeada, e da vida que a fortuna fizera para ele
em vez disso.
O professor Rose ainda não chegara quando Ben deu entrada na
velha biblioteca da Union. Nada mudara. Olhou em redor para o
apainelamento de madeira escura, para as mesas de leitura e para as
altas galerias de livros encadernados a couro. Lá mais para cima, o
tecto pintado com frescos com as suas pequenas janelas de rosácea e
os inestimáveis murais de lendas arturianas dominavam a
magnificente sala.
— Benedict! — chamou uma voz atrás de Ben. Voltou-se para ver
Jonathan Rose, mais corpulento, mais grisalho e mais careca mas
instantaneamente reconhecível como o catedrático de História que
conhecera há tanto tempo, caminhando alegremente através do
soalho polido para lhe apertar a mão.
— Como está, professor? Passou imenso tempo.
Instalaram-se num par de cadeirões de couro gasto da biblioteca, e
trocaram conversa de circunstância por alguns minutos. Pouco
mudara para o professor — a vida académica em Oxford prosseguia
como sempre.
— Fiquei um pouco surpreendido por me ter contactado depois
destes anos todos, Benedict. A que devo este prazer?
Ben expôs o seu objectivo ao ter pedido para se encontrar com ele.
— E depois lembrei-me de que conhecia um dos especialistas em
história antiga mais proeminentes do país.
— Desde que não me chame historiador antigo, como a maior
parte dos meus alunos. — Rose sorriu. — Então está interessado em
alquimia, não é? — Ergueu as sobrancelhas e perscrutou Ben por
cima dos óculos. — Nunca pensei que esse género de coisa fosse a sua
onda. Espero que não se tenha tornado um desses tipos da New Age,
ou foi?
Ben riu-se.
— Nos dias que correm sou escritor. Ando apenas a fazer alguma
pesquisa.
— Escritor? Óptimo, óptimo. Como é que disse que este tipo se
chamava... Fracasini?
— Fulcanelli.
Rose abanou a cabeça.
— Não posso dizer que já tenha ouvido falar dele. Eu não sou
realmente a pessoa que o pode ajudar nesse domínio. Esse assunto é
um pouco esquisito de mais para a maioria de nós, académicos do
dia-a-dia... mesmo nesta era pós-Harry Potter.
Ben sentiu um baque de desapontamento. Não criara grandes
expectativas acerca de Jon Rose poder ter grande coisa a oferecer-lhe
sobre Fulcanelli, quanto mais sobre um manuscrito de Fulcanelli,
mas com tão pouco por onde começar era uma vergonha perder
qualquer potencial fonte de informação credível.
— Há alguma coisa que me possa dizer sobre alquimia em geral? —
perguntou.
— Como digo, não é o meu ramo — retorquiu Rose. — Tal como a
maior parte das pessoas, eu sentir-me-ia inclinado a considerá-la
como uma total charlatanice. — Sorriu.
— Embora tenha de ser dito que poucos cultos esotéricos
prevaleceram assim tão bem ao longo dos séculos. Desde o antigo
Egipto e China, através da Baixa e Alta Idade Média e pela
Renascença fora... é uma subcorrente que tem vindo à superfície uma
e outra vez ao longo da história. — O professor recostou-se no couro
gasto do cadeirão enquanto ia falando, adoptando a pose do tutor
que era uma segunda natureza para ele. — Embora só Deus saiba o
que andavam eles a fazer, ou pensavam que andavam a fazer... ao
tentar transformar chumbo em ouro, a criar poções mágicas, elixires
da longa vida, e tudo o resto.
— Parto do princípio de que não acredita na possibilidade de um
elixir alquímico que pudesse curar os doentes?
Rose franziu o sobrolho, reparando na expressão neutra de Ben e
interrogando-se sobre para onde quereria ele ir com isto.
— Penso que se eles tivessem desenvolvido um remédio mágico
para a peste, a varíola, a cólera, o tifo, e para todas as outras doenças
que nos devastaram ao longo da história, nós teríamos tomado
conhecimento disso. — Encolheu os ombros. — O problema é que
isto é tudo tão especulativo. Ninguém sabe realmente o que os
alquimistas possam ter descoberto. A alquimia é famosa pela sua
inescrutabilidade: todo aquele aparato de capa e espada, irmandades
secretas, enigmas e códigos e conhecimentos supostamente ocultos.
Pessoalmente, não acho que houvesse grande substância em tudo
isso.
— Para quê toda essa obscuridade? — perguntou Ben, pensando
nas leituras que andava a fazer nos últimos dias, pesquisando na
Internet termos como "conhecimento antigo" e "segredos da
alquimia" e navegando de uma página esotérica para outra.
Encontrara uma alargada variedade de escritos alquímicos, desde os
actuais até aos do século XIV. Todos eles partilhavam a mesma
desconcertante e grandiosa linguagem, o mesmo sombrio ar de
secretismo. Não fora capaz de decidir o quanto era genuíno e o
quanto era apenas postura esotérica para benefício dos crédulos
devotos que vinham a atrair desde há séculos.
— Se eu quisesse ser cínico diria que era devido a eles não terem
na verdade nada que valesse a pena revelar. — Rose riu-se. — Mas
tem de lembrar-se também de que os alquimistas tinham inimigos
poderosos, e que talvez alguma da sua obsessão com o secretismo
fosse uma maneira de se protegerem a si próprios.
— Contra o quê?
— Bem, num dos lados da balança encontravam-se os tubarões e
especuladores que lhes davam caça — disse Rose. — Lá de vez em
quando, um desgraçado alquimista que se gabara demasiado alto
acerca de fazer ouro, era raptado o obrigado a dizer como é que se
fazia. Quando não conseguia fazê-lo, o que naturalmente era o que
aconteceria sempre, acabava pendurado numa árvore. — O professor
fez uma pausa. — Mas o verdadeiro inimigo deles era a Igreja,
particularmente na Europa, onde a Igreja passava o tempo a queimá-
los como heréticos e bruxas. Veja o que a Inquisição Católica fez aos
cátaros na França medieval, sob as ordens directas do papa
Inocêncio III.
Chamaram à liquidação de um povo inteiro o trabalho de Deus.
Hoje em dia chamamos-lhe genocídio.
— Já ouvi falar dos cátaros — disse Ben. — Pode dizer-me algo
mais?
Rose tirou os óculos e poliu-os com a extremidade da gravata.
— É uma história terrível — disse. — Eles foram um movimento
religioso medieval razoavelmente espalhado que ocupava
principalmente a parte do Sul de França agora conhecida por
Languedoc. Tiraram o nome da palavra grega Catharos, que
significava "puro". As suas crenças religiosas eram um pouco radicais
já que consideravam Deus como uma espécie de princípio cósmico
do amor. Não atribuíam grande importância a Cristo, e podem nem
sequer ter acreditado que existira. A ideia deles era a de que, mesmo
que ele tivesse existido, certamente não poderia ter sido o filho de
Deus. Acreditavam que toda a matéria era fundamentalmente
grosseira e corrupta, incluindo os seres humanos. Para eles, a
adoração religiosa tinha tudo a ver com espiritualidade,
aperfeiçoando e transformando essa matéria de base para atingir a
união com o divino.
Ben sorriu.
— Consigo ver como é que essas posições podem ter aborrecido um
pouco os ortodoxos.
— Absolutamente — disse Rose. — Os cátaros tinham
essencialmente criado um estado livre que a Igreja não conseguia
controlar. Pior, estavam a pregar abertamente ideias que poderiam
minar seriamente a sua credibilidade e autoridade.
— Os cátaros eram alquimistas? — perguntou Ben. — A parte
acerca de transformar a matéria de base tem muito a ver com as
ideias da alquimia.
— Penso que ninguém sabe isso ao certo — disse Rose. —
Enquanto historiador, não poria a cabeça no cepo por causa disso.
Mas tem bastante razão. O conceito alquímico de purificar matéria
de base para obter algo mais perfeito e incorruptível está certamente
sintonizado com as crenças cátaras. Nunca saberemos ao certo,
porque os cátaros não chegaram a viver o tempo suficiente para
contar a história.
— O que lhes aconteceu?
— Em poucas palavras, extermínio em massa — disse Rose.
— Quando o papa Inocêncio III chegou ao poder em 1198, as
alegadas heresias dos cátaros deram-lhe um pretexto magnífico para
estender e reforçar os poderes da Igreja.
Dez anos depois ele reuniu um formidável exército de cavaleiros, o
maior jamais visto na Europa até àquela altura. Eram soldados
experimentados, muitos dos quais tinham servido em combate na
Terra Santa. Sob o comando do antigo cruzado Simão de Montforte,
que era também o duque de Leicester, esta enorme força militar
invadiu o Languedoc e massacraram uma a uma todas as fortalezas,
cidades e vilas que tivessem sequer a mais pequena ligação aos
cátaros. De Montforte tornou-se conhecido por "le glaive de L'eglise".
— A espada da Igreja — traduziu Ben.
Rose aquiesceu.
— E ele não brincava em serviço. As notícias ao tempo, falavam de
cem mil homens, mulheres e crianças chacinadas só em Béziers. Ao
longo dos anos seguintes, o exército do papa devastou a região
inteira, destruindo tudo no seu caminho e queimando vivos todos
aqueles que não tinham morrido pela espada. Em Lavaur, em 1211,
atiraram quatrocentos heréticos cátaros para a pira.
— Porreiro — disse Ben.
— Foi um episódio infame — continuou Rose. — E foi durante esta
fase que a Igreja Católica formou a Inquisição, uma nova ala oficial
da Igreja para emprestar maior autoridade às atrocidades
perpetradas pelo exército. Superintendiam casos de interrogatório,
tortura e execução. Só respondiam pessoalmente perante o papa. O
poder deles era absoluto. A certa altura, em 1242, os inquisidores
agiam de uma forma tão sedenta de sangue que um destacamento de
cavaleiros enojados se afastou das suas posições e chacinou um
grande grupo num lugar chamado Avignonet. Naturalmente, os
cavaleiros rebeldes foram rapidamente suprimidos. Então,
finalmente em 1243, depois de a resistência cátara se ter aguentado
muito mais tempo do que alguém antecipara, o papa decidiu que era
tempo de acabar com eles de uma vez por todas. Oito mil cavaleiros
montaram cerco à última fortaleza cátara, o castelo no cimo da
montanha de Montségur, disparando rochas enormes contra os seus
baluartes a partir de catapultas durante dez meses inteiros até que os
cátaros foram finalmente traídos e forçados a render-se. Duzentas
das pobres almas foram trazidas montanha abaixo e assadas vivas
pelos inquisidores. E isso foi mais ou menos o fim deles. O fim de um
dos mais escandalosos holocaustos de todos os tempos.
— Estou a ver que uma pessoa meter-se na heresia alquímica deve
ter sido um assunto arriscado — disse Ben.
— Ainda é, em alguns aspectos — retorquiu Rose, brincalhão.
Ben foi apanhado desprevenido.
— O quê?
O professor atirou a cabeça para trás e riu-se.
— Não estou a querer dizer que eles ainda executam heréticos na
praça pública. Estava a pensar no perigo para as pessoas como eu,
académicos ou cientistas. A razão pela qual ninguém quer tocar neste
assunto é a reputação que se arranja por se ser excêntrico. De
quando em vez alguém dá uma dentada na maçã proibida e a sua
cabeça rola. Houve aí um desgraçado qualquer que foi despedido
justamente por isso, há pouco tempo.
— Que se passou?
— Foi numa universidade parisiense. Um assistente de Biologia
americano meteu-se em apuros por causa de uma investigação não
autorizada...
— Sobre alquimia?
— Algo desse género. Escreveu alguns artigos na imprensa que
incomodaram as pessoas erradas.
— Quem era esse americano? — perguntou Ben.
— Estou a tentar lembrar-me do nome — disse Rose. — Um
doutor... doutor Roper, não, Ryder, é isso. Houve um grande furor
acerca disso no mundo académico. Chegou mesmo a ser referido no
boletim da Sociedade Francesa Medieval. Aparentemente o Ryder foi
a tribunal universitário por despedimento sem justa causa. Não fez
diferença nenhuma, no entanto. Como eu disse, assim que nos
rotulam de excêntricos é uma verdadeira caça às bruxas.
— O doutor Ryder em Paris — repetiu Ben, tomando nota.
— Há um artigo inteiro acerca disso num número atrasado da
Scientific American que foi deixado na sala comum da faculdade.
Quando lá voltar depois dou-lhe uma vista de olhos por si e ligo-lhe.
Talvez tenha para lá um número de contacto para o Ryder.
— Obrigado, talvez seja melhor eu verificar isto.
— Oh... — Rose recordou-se subitamente. — Só uma ideia. Se for
até Paris, talvez queira contactar também outra pessoa chamada
Maurice Loriot. Ele é um grande editor de livros, fascinado por todos
os géneros de tópicos esotéricos, edita imensa coisa desse tipo. E um
bom amigo meu. Aqui tem o cartão dele... Se for ter com ele, diga-lhe
que mando cumprimentos.
Ben pegou no cartão.
— Direi. E dê-me aquele número do doutor Ryder, se o descobrir.
Gostaria realmente de o conhecer.
Separaram-se com um caloroso aperto de mãos.
— Boa sorte para a sua pesquisa, Benedict — disse o professor
Rose.
— Tente não deixar a próxima para daqui a vinte anos.

Longe dali, duas vozes falavam ao telefone.


— O nome dele é Hope — repetiu um deles. — Benedict Hope.
— A voz do homem era inglesa e falava com um sussurro
apressado e furtivo, levemente abafada como se estivesse a colocar a
mão em concha em redor do bocal para impedir outros de o ouvir.
— Não esteja preocupado — disse a segunda voz. O italiano soava
confiante e sereno. — Trataremos dele como tratámos dos outros.
— O problema é esse — silvou a primeira voz. — Este não é como
os outros. Acho que ele nos pode arranjar problemas.
Uma pausa.
— Mantenha-me informado. Nós trataremos disso.
Capítulo 7
Roma, Itália

O homem grande folheou o número atrasado da Scientific


American até chegar à página marcada. O artigo de que estava à
procura chamava-se "Ciência Quantum Medieval".
A sua autora era a doutora Roberta Ryder, uma bióloga americana
a trabalhar a partir de Paris. Já o lera antes, mas devido aos
relatórios que vinha a receber nos últimos dias, estava a lê-lo de novo
a uma luz completamente nova.
Quando vira pela primeira vez o artigo de Ryder ficara agradado
com a forma como os editores da revista tinham atacado o trabalho
dela. Tinham-na feito em pedaços, dedicando um editorial inteiro a
desmascarar e ridicularizar tudo o que ela dissera. Até tinham feito
pouco dela na primeira página. Fazer dela um tal exemplo público
fora um evidente trabalho subterrâneo, mas que mais se podia fazer
quando uma jovem cientista, outrora respeitada e com prémios
ganhos, começava subitamente a fazer loucas e não consubstanciadas
alegações acerca de uma coisa como a alquimia? A comunidade
científica não iria, não poderia tolerar uma radical deste género que
exigia que a investigação alquímica fosse levada a sério e lhe fossem
dados os fundos apropriados, salientando que a sua reputação
popular de charlatanice era imerecida, possivelmente mesmo uma
conspiração, e que iria um dia revolucionar a física e a biologia.
Seguira a carreira dela desde então, e ficara satisfeito com a forma
como esta se despenhara. Ryder fora largamente desacreditada. O
mundo da ciência voltara-lhe as costas, excomungara-a
praticamente.
Ela até perdera o seu emprego na universidade. Quando na altura
ouvira estas notícias, ficara deliciado.
Mas agora já não estava tão satisfeito. De facto, estava furioso, e
ansioso.
Esta maldita mulher não desaparecia de vez. Mostrara uma dureza
e uma determinação inesperadas em face da adversidade. Apesar do
escárnio universal dos seus pares, apesar de quase se lhe ter acabado
o dinheiro, continuara a persistir na sua investigação particular. Os
relatórios da sua fonte diziam-lhe agora que ela conseguira um
avanço. Não um dos grandes, necessariamente — mas
suficientemente grande para o deixar preocupado.
Inteligente, esta mulher. Perigosamente inteligente. Estava a obter
melhores resultados com um orçamento paupérrimo do que toda a
sua bem equipada e muito bem paga equipa. Não lhe poderia ser
permitido que ela continuasse assim. E se ela descobrisse
demasiado? Teria de ser detida.
Capítulo 8
Paris

Se a escolha dos objectos que uma pessoa se dava ao trabalho de


guardar num cofre de um banco de alta segurança dissesse alguma
coisa acerca das prioridades dessa pessoa, então Ben Hope era um
homem com uma visão simples da vida.
O seu cofre de depósitos no Banque Nationale de Paris era
praticamente idêntico aos outros que tinha em Londres, Milão,
Madrid, Berlim e Praga. Todos eles continham apenas duas coisas. A
primeira coisa que continham variava apenas com a moeda corrente
de cada país. A quantia era sempre a mesma, o suficiente para o
deixar movimentar-se livremente por indeterminados períodos de
tempo. Hotéis, transporte, informação, eram as suas maiores
despesas. Era difícil dizer quanto tempo este trabalho o ia manter em
França. Enquanto os guardas da segurança vigiavam no exterior da
sala particular, Ben acarretou cerca de metade dos maços de notas de
euros para dentro do seu velho saco de campanha do exército.
A segunda coisa que Ben conservava guardada no coração daquela
meia dúzia de grandes bancos europeus nunca variava de todo. Ben
retirou a parte de cima da caixa com o resto do dinheiro, pousou-a na
mesa e retirou a pistola do fundo da caixa.
A Browning Hi-Power GP35 semiautomática de 9 mm era um
modelo antigo, ultrapassada as mais das vezes pelas novas gerações
plastificadas de pistolas de combate SIG,
HK e Glock. Mas tinha um extenso registo de provas dadas, era
absolutamente fiável, era simples e robusta com potência e
penetração suficientes para deter qualquer agressor. O carregador
transportava treze projécteis mais um na câmara, o suficiente para
levar rapidamente a bom termo qualquer situação mais complicada.
A arma acompanhara-o durante metade da sua vida, e assentava-lhe
como uma luva velha.
A questão era se a devia deixar no banco ou se devia levá-la
consigo. Havia prós e contras. Os prós eram: se havia alguma coisa
que se pudesse prever neste trabalho, era a de que era totalmente
imprevisível. A Browning representava paz de espírito, e isso valia
imenso. Os contras eram: haveria sempre algum risco em
transportar uma arma de fogo não registada. A arma escondida
significava que tinha de se ser extracuidadoso com tudo o que se
fazia. Só era preciso um chui cheio de zelo para decidir revistar os
teus pertences, e se fosses suficientemente descuidado para o deixar
encontrar a arma, isso podia meter-te num monte de sarilhos. Um
cidadão com olhos de águia poderia descortinar o coldre de anca Di
Santis por debaixo do teu casaco e entrar em histeria,
transformando-te instantaneamente num fugitivo.
Em cima de tudo isso, era quase certo que nunca iria necessitar
dela neste trabalho, que tinha todo o ar de acabar por ser uma total
caça aos gambozinos.
Mas que diabo, valia a pena o risco. Colocou a pistola, o comprido
e tubular silenciador, os carregadores de reserva, as caixas de
munições e o coldre no saco juntamente com o dinheiro e chamou os
guardas para levarem a caixa de depósitos de volta para o cofre.
Deixou o banco e caminhou pelas ruas de Paris. Esta era uma
cidade na qual passara imenso tempo. Sentia-se como em casa em
França e falava a língua com apenas um ligeiro vestígio de sotaque.
Apanhou o metro de regresso ao apartamento. O lugar fora uma
oferta de um cliente rico a quem salvara o filho. Embora se
encontrasse bem localizado no centro de Paris, estava invisivelmente
aconchegado no fundo de um beco e escondido no meio de um
aglomerado de velhos edifícios em ruínas. A única entrada era
através do parque de estacionamento do metropolitano por debaixo,
subindo umas escadas lúgubres e passando por uma pesada porta de
segurança em aço. Ben pensava no apartamento como uma casa
segura. O interior era confortável mas espartano — uma pequena
cozinha utilitária, um quarto de cama simples, uma sala de estar com
uma cadeira de braços, uma secretária, uma televisão e o seu portátil.
Isso era tudo o que Ben necessitava como porta de entrada para a
Europa.
A Catedral de Notre Dame avultava-se nos céus parisienses sob o
sol do fim de tarde. Enquanto Ben se aproximava do pujante edifício,
uma guia turística dirigia-se a um grupo de americanos adoradores
de máquinas fotográficas. "Fundada em 1163 e tendo levado cento e
setenta anos a construir, esta esplêndida jóia em pedra esteve perto
de ser destruída durante a Revolução Francesa, tendo sido mais
tarde restaurada na sua glória original a meio do século XIX..."
Ben entrou pela porta oeste. Tinham passado muitos anos desde
que pusera os pés numa igreja, ou mesmo reparado numa. Era um
sentimento estranho o de regressar. Não tinha a certeza de estar a
gostar muito. Mas até ele tinha de admitir a espectacular
grandiosidade do lugar.
À sua frente a nave central subia de forma impressionante até ao
tecto abobadado. Os arcos e pilares da catedral encontravam-se
banhados pelos raios do pôr do Sol que se filtravam através dos
vitrais da magnificente janela de rosácea na fachada oeste do edifício.
Passou muito tempo a caminhar para cima e para baixo, com os
passos a ecoar nas lajes de pedra, espreitando para aqui e para ali as
muitas estátuas e baixos-relevos.
Debaixo do braço transportava um exemplar em segunda mão de
um livro escrito pelo homem que supostamente teria de encontrar —
o misterioso mestre alquimista Fulcanelli.
O livro era uma tradução de Os Mistérios das Catedrais, escrito em
1922. Quando Ben se cruzara com este na secção do Oculto de uma
antiga livraria de Paris, ficara excitado, com esperanças de encontrar
algo de valor. As pistas mais úteis que poderia ter desejado eram
uma fotografia do homem, alguma informação pessoal tal como a
indicação do seu nome verdadeiro ou pormenores de família, e
qualquer espécie de referência a um manuscrito.
Mas não havia nenhuma destas coisas. O livro era todo sobre
símbolos alquímicos ocultos e criptogramas que Fulcanelli alegava
terem sido inseridos nos baixos-relevos das paredes da catedral onde
Ben se encontrava neste preciso momento.
O Pórtico do Julgamento era uma grande arcada gótica coberta de
intricados baixos-relevos em pedra. Por debaixo de filas de santos
encontrava-se uma série de imagens esculpidas representando
diferentes figuras e símbolos. De acordo com o livro de Fulcanelli,
estas esculturas tinham supostamente um qualquer significado
oculto — um código secreto que apenas os iluminados podiam ler.
Mas raios o partissem se conseguia perceber alguma coisa daquilo.
Não sou obviamente um iluminado, pensou.
Como se precisasse do Fulcanelli para me dizer isso.
No centro do maciço pórtico, aos pés da estátua de Cristo,
encontrava-se uma imagem circular mostrando uma mulher sentada
num trono. Tinha dois livros na mão, um aberto e um fechado.
Fulcanelli alegava que estes eram símbolos de conhecimento aberto e
oculto. Ben percorreu com o olhar as outras figuras no Pórtico do
Julgamento.
Uma mulher exibindo um caduceu, o velho símbolo da cura com
uma serpente enrolada num bordão. Uma salamandra. Um cavaleiro
com uma espada e um escudo enfrentando um leão. Um emblema
circular com um corvo. Tudo, aparentemente, a veicular uma
qualquer mensagem velada. No pórtico norte, o "Pórtico da Virgem",
o livro de Fulcanelli guiou-o até um sarcófago esculpido na cornija
média que representava um episódio da vida de Cristo. As
decorações ao longo da parte lateral do sarcófago eram descritas no
livro como sendo os símbolos alquímicos do ouro, mercúrio, chumbo
e outras substâncias.
Mas seriam mesmo? Para Ben, pareciam apenas motivos florais.
Onde é que estava a prova de que os escultores medievais tinham
conscientemente inserido mensagens esotéricas no seu trabalho?
Podia apreciar a beleza e o valor artístico destas esculturas. Mas
teriam algo para lhe ensinar? Poderiam ser de utilidade para uma
criança moribunda?
O problema deste tipo de simbologia, reflectiu, era que
praticamente qualquer das imagens podia ser interpretada como o
intérprete quisesse. Um corvo podia ser apenas um corvo, mas
alguém em busca de significados ocultos podia encontrá-los
facilmente, mesmo que não tivesse sido pretendido que lá
estivessem. Era demasiado fácil projectar significados subjectivos,
crenças, ou desejos, para um baixo-relevo velho de séculos cujo
criador já cá não estava para o contrariar. Tal era o material das
teorias da conspiração e dos cultos que rodeavam os "conhecimentos
ocultos". Andavam demasiadas pessoas desesperadas por versões
alternativas da história, como se os reais factos dos tempos idos
fossem um entretenimento insuficientemente satisfatório. Talvez
fosse para compensar a monótona verdade da existência humana, o
injectar um pouco de intriga nas suas próprias vidas entediantes e
pouco estimulantes. Subculturas inteiras cresciam em redor destes
mitos, reescrevendo o passado como um guião para um filme.
Parecia-lhe, da sua pesquisa sobre alquimia, que esta era apenas
mais uma subcultura alternativa a caçar a sua própria cauda em
busca de emoções.
Estava a ficar com comichões. Não pela primeira vez, arrependeu-
se de ter aceitado este trabalho. Se não tivesse sido pelos duzentos e
cinquenta mil palhaços do dinheiro de Fairfax que se encontravam
agora na sua conta, teria jurado que alguém lhe estava a pregar uma
partida. O que devia fazer era sair dali agora mesmo, apanhar o
primeiro avião para Inglaterra e devolver o dinheiro ao velho idiota.
Não, ele não é um velho idiota. Ele é um homem desesperado com
uma neta moribunda. Ruth. Ben sabia a razão por que aqui estava.
Sentou-se num banco e durante alguns minutos organizou os
pensamentos entre as figuras espalhadas que tinham vindo rezar.
Abriu novamente o livro de Fulcanelli, respirou fundo e fez correr na
sua mente o que conseguira dele colher até esse momento.
A introdução de Os Mistérios das Catedrais era um
acrescentamento mais recente ao texto de Fulcanelli, escrito por um
dos seus seguidores. Descrevia como, em 1926,
Fulcanelli confiara certo material ao seu aprendiz parisiense —
ninguém parecia saber exactamente o quê — e depois desaparecera
prontamente sem deixar rasto. Desde então, de acordo com quem
escrevera, muitas pessoas tinham tentado encontrar o mestre
alquimista — incluindo, aparentemente, uma agência de informações
internacional.
Iá, pois. Era o mesmo com a maior parte do material que
descobrira nas pesquisas da Internet. Havia diversas versões da saga
de Fulcanelli, dependendo do sítio que se visitasse. Alguns diziam
que Fulcanelli nunca existira de todo. Alguns diziam que era uma
figura compósita montada a partir de um determinado número de
diferentes pessoas, o testa-de-ferro de uma sociedade secreta ou de
uma irmandade dedicada à exploração do oculto. Outros alegavam
que ele era afinal uma pessoa real. De acordo com uma das fontes, o
alquimista fora avistado em Nova Iorque décadas após o seu
misterioso desaparecimento, quando já devia ter passado há muito
os cem anos.
Ben não acreditava em nada disso. Nenhuma das alegações era
substanciada. Se não havia fotografias conhecidas do alquimista,
como é que se poderia confiar em quaisquer aparições dele? Era tudo
uma baralhada confusa. Só havia uma coisa em comum em todas
aquelas fontes de assim chamada informação, e era a de que não
conseguia encontrar uma referência a um manuscrito Fulcanelli em
lado nenhum.
Ben não avistou nada particularmente iluminante durante o seu
passeio por Notre Dame. Mas uma coisa que avistou, não muito
depois de ter chegado, foi o homem a segui-lo.
O tipo não estava a fazer grande trabalho. Era demasiado furtivo,
demasiado cuidadoso em manter-se fora do caminho de Ben. Num
momento estava sentado num canto distante a olhar por cima do
ombro, no seguinte encontrava-se nas filas de bancos a tentar
esconder o ar anafado por detrás de um livro de orações. Se tivesse
sorrido e perguntado uma direcção a Ben teria sido menos
conspícuo.
Os olhos de Ben estavam na decoração da catedral, a sua
linguagem corporal era relaxada e o porte era o do zé-turista. Mas
desde que o vira, estava a estudar atentamente o seu seguidor. Quem
era ele? O que se estava a passar ali?
Em tais casos, Ben acreditava muito na honestidade e na acção
directa. Se queria descobrir porque é que alguém o seguia, ia direito
a ele e perguntava-lhe quem era e o que queria. As duas coisas que
precisava de fazer primeiro eram apanhar o homem num sítio
sossegado, e cortar-lhe quaisquer possibilidades de fuga. Então Ben
poderia espremê-lo como a uma laranja. O quão polidamente lidaria
com a situação dependeria inteiramente da reacção do tipo ao ser
encurralado e desafiado. Um amador como aquele poderia muito
bem ceder imediatamente com apenas um pouco de pressão.
Ben dirigiu-se para a zona interior da catedral perto do altar. Uma
escada em espiral conduzia às torres, e ele começou a subi-la. Mesmo
antes de ficar fora de vista, viu a linguagem corporal do seu homem
alterar-se nervosamente. Ben prosseguiu sem pressas pelas escadas
acima até chegar à segunda galeria. Saiu para uma estreita
passadeira de pedra que emergia no exterior à luz do Sol, bem acima
dos telhados parisienses. Encontrava-se rodeado de gárgulas de
pesadelo, demónios de pedra e duendes ali postos pelos canteiros
medievais para afastar os maus espíritos.
A passadeira ligava as duas altas torres da catedral, mesmo por
cima da enorme janela de rosácea da fachada. Apenas uma barreira
de pedra em treliça, mais baixa que a cintura, o separava de uma
queda de mais de sessenta metros para o solo lá em baixo. Ben
movimentou-se para fora de vista e aguardou que o seu seguidor
aparecesse.
O homem alcançou o parapeito ao fim de um ou dois minutos,
olhando em redor à procura de Ben. Ben esperou que ele estivesse
longe da passagem para as escadas, e depois apareceu por detrás de
uma estátua de um diabo sorridente.
— Eh pá, tu aí — disse, aproximando-se dele. O homem parecia em
pânico, com os olhos a dardejar para aqui e para ali. Ben pressionou-
o para um canto, usando o corpo para lhe cortar a linha de fuga. —
Porque é que me andas a seguir?
Ben já vira imensos homens a reagir debaixo de stresse, e sabia
que todos reagiam de forma diferente. Alguns cediam, alguns
fugiam, alguns resistiam.
A reacção deste tipo foi a violência letal instantânea. Ben viu a
crispação da mão direita uma fracção de segundo antes de esta se
enfiar no casaco e sair com a faca. Era uma arma de estilo militar
com uma lâmina negra de duplo gume — uma cópia barata da faca de
combate Fairbairn-Sykes que Ben conhecia do passado.
Evitou a facada, agarrou o pulso da faca e fê-la saltar batendo com
o pulso no joelho do homem. A lâmina matraqueou na passadeira.
Ben manteve o controlo do pulso, dobrando-o numa chave que sabia
por experiência ser extremamente dolorosa.
— Porque é que me estás a seguir? — repetiu calmamente. — Eu
não quero realmente magoar-te.
Não estava preparado para o que aconteceu a seguir.
Não há saída de uma boa chave de pulso. A não ser que a pessoa
deliberadamente deixe que lhe partam o pulso. Nenhuma pessoa sã
fará isso, mas este homem fez. Torceu-se contra o aperto de Ben.
A princípio, Ben pensou que ele estava apenas a tentar escapar-se,
e reforçou o aperto. Mas depois sentiu os ossos a ceder no pulso do
homem. Sem qualquer resistência da mão frouxa, ficou subitamente
sem tracção sobre o braço do homem. O seu seguidor afastou-se,
com os olhos bulbosos, o suor a acumular-se no sobrolho, gemendo
de agonia enquanto a mão balançava como um pano de louça fora da
manga. E antes que Ben o pudesse deter, virou-se, correu para a
beira e atirou-se para o espaço por cima da barreira baixa.
Enquanto o homem caía ainda a meio do ar, Ben estava já a descer
rapidamente pelos degraus de pedra da escada em espiral. Quando o
corpo acabou de tombar numa paragem macabra contra os espigões
da vedação de ferro mesmo junto a um grupo de turistas, Ben ia no
caminho de regresso ao canto mais escuro da catedral. Assim que os
primeiros turistas começaram a gritar e as pessoas correram à pressa
para o exterior para ver o que acontecera, Ben deslizou pelo edifício
sem ser visto e fundiu-se com a multidão que apontava, tagarelando.
Já se encontrava longe antes que o primeiro gendarme tivesse
chegado ao cenário.
Capítulo 9
Luc Simon estava atrasado. Mudara de roupa no quartel-general
da polícia para um fato sofisticado, correndo para o carro ainda a
apertar a gravata enquanto os seus agentes se interrogavam sobre
para onde corria o inspector todo aperaltado.
Consultou o relógio enquanto deslizava por entre o tráfego de
Paris. Reservara mesa para as oito no Guy Savoy. Eram 20h33m
quando lá chegou. Um empregado de mesa conduziu-o
apressadamente através da sala. O restaurante encontrava-se cheio
de comensais e de um zunzum de conversas. Jazz suave a ser tocado
algures. Conseguia ver Hélène sentada à mesa de canto para dois,
com o seu brilhante cabelo negro a obscurecer-lhe a face enquanto
folheava tensamente uma revista. Pediu ao empregado para trazer
imediatamente champanhe, e foi ter com ela.
— Deixa-me adivinhar — suspirou ela enquanto ele se sentava na
sua frente à pequena mesa redonda -, não podias sair.
— Vim o mais depressa que pude. Surgiu uma coisa.
— Como habitualmente. Até no nosso aniversário de casamento, o
trabalho vem em primeiro lugar, não é?
— Bem, a coisa é assim. Os maníacos homicidas não têm
geralmente grande respeito pelos compromissos particulares das
pessoas — articulou ele, sentindo aquela familiar barreira de tensão a
crescer rapidamente entre eles. Isso também era assaz habitual. —
Ah, aqui está o champanhe — disse, tentando o seu melhor para
sorrir.
Ficaram sentados em silêncio enquanto o empregado de mesa
fazia soltar a rolha, servia o champanhe e colocava a garrafa num
balde de gelo prateado. Luc esperou que ele se fosse embora.
— Bem... feliz aniversário. — Fez tilintar o seu copo no dela.
Ela ficou em silêncio, observando-o. Isto não estava a correr por aí
além.
— Tenho aqui uma coisa para ti. — Vasculhou no bolso e retirou
um pequeno embrulho. Colocou-o em cima da mesa. — Comprei-te
uma coisa. Vá lá, abre-a.
Hélène hesitou antes de desembrulhar o presente com os dedos
compridos e esguios. Abriu a tampa da caixa e olhou para o interior.
— Um Omega Constellation?
— Eu sei que sempre quiseste ter um — disse ele, observando-lhe a
face para obter uma resposta.
Ela enfiou o relógio na caixa e atirou-a para o meio da mesa.
— É muito bonito. Mas não é para mim.
— Que queres dizer? Claro que é para ti.
Ela abanou tristemente a cabeça.
— Dá-o à mulher que se segue.
A face dele escureceu.
— Estás a falar do quê, Hélène?
Ela olhou para as mãos, evitando os olhos dele.
— Quero sair deste casamento, Luc. Já tive que chegasse.
Ele fez uma longa pausa. Os champanhes ficaram incólumes,
perdendo o gás.
— Eu sei que ultimamente as coisas têm andado complicadas -
disse ele, tentando manter a voz calma. — Mas vão melhorar, Hélène,
prometo.
— Já passaram quatro anos, Luc. Não vai acontecer.
— Mas... eu amo-te. Isso não conta para nada?
— Conheci outra pessoa.
— Escolheste mesmo uma bela altura para me falares sobre isto.
— Lamento. Tenho tentado. Mas nunca te vejo. Tivemos de marcar
um compromisso para que nos pudéssemos sentar e falar.
Ele sentiu um espasmo a formar-se na cara.
— Então conheceste outra pessoa. Que bom. Quem é o filho-da-
puta?
Ela não respondeu.
— Eu-perguntei-te-quem-é-o-filho-da-puta — explodiu ele,
batendo violentamente com o punho na mesa a cada palavra. O seu
copo tombou, rolou, e esmagou-se no chão.
O restaurante ficou em silêncio durante alguns segundos enquanto
toda a gente se virava para olhar.
— Isso mesmo, faz uma cena.
Aproximou-se um empregado de mesa, com ar tímido. Simon
virou-se para o olhar intensamente.
— Monsieur, devo pedir-lhe para respeitar...
— Afaste-se desta mesa — disse Simon em voz baixa, por entre um
rilhar de dentes. — Ou eu atiro-o através daquela janela de merda. —
O empregado de mesa recuou rapidamente, e foi ter uma conversa
com o gerente de sobrolho carregado.
— Estás a ver? Sempre o mesmo. A tua resposta.
— Então talvez me queiras dizer com quem tens andado a foder
enquanto eu ando por aí com sangue e merda até ao pescoço. —
Simon sabia que falar deste modo só ia tornar as coisas piores para
ambos. Calma, mantém-te calmo.
— Não o conheces. Tu só conheces chuis, vigaristas, assassinos e
pessoas mortas.
— É o meu trabalho, Hélène.
Uma lágrima rolou pela cara dela abaixo e ele observou a lágrima a
percorrer o perfeito contorno da face dela.
— Sim, é o teu trabalho, e é a tua vida. — Fungou. — Só pensas
nisso.
— Tu sabias o que fazia quando nos conhecemos. Sou um polícia,
faço o que os polícias fazem. O que mudou? — Lutou para controlar a
voz enquanto sentia o seu temperamento a descontrolar-se
novamente.
— Fui eu que mudei. Pensei que me podia habituar a isto. Pensei
que podia viver com as esperas e as preocupações com a
possibilidade de o meu marido poder vir um dia para casa dentro de
um caixão. Mas não consigo, Luc. Não consigo respirar, preciso de
me sentir viva de novo.
— Ele faz-te sentir viva de novo?
— Ele não me faz sentir como se estivesse a morrer por dentro 54

— irrompeu Hélène. Esfregou os olhos. — Eu só quero ter uma


vida normal.
Ele inclinou-se e tomou-lhe as mãos.
— E se eu desistir? Se eu fosse apenas um tipo vulgar... vou
entregar a minha demissão, arranjo um trabalho a fazer outra coisa
qualquer.
— A fazer o quê?
Ele fez uma pausa, compreendendo que não conseguia pensar
numa única coisa no mundo inteiro que pudesse fazer em vez do
trabalho de polícia.
— Não sei — concedeu.
Ela abanou a cabeça e retirou as mãos das dele.
— Tu nasceste para ser polícia, Luc. Irias odiar tudo o mais. E irias
odiar-me, por ter feito com que deixasses a coisa de que mais gostas.
Ele ficou em silêncio por momentos, a pensar. Sabia, lá bem no
fundo, que o que ela estava a dizer era verdade. Negligenciara-a, e
agora estava a pagar por isso.
— Então e se eu tirar algum tempo, digamos um mês? Podíamos ir
para qualquer lado juntos... para onde queiras, que tal Viena? Estás
sempre a falar em ir a Viena.
O que achas? Sabes, a ópera, dar uma volta de gôndola, tudo isso.
— As gôndolas são em Veneza — disse ela secamente.
— Então vamos também a Veneza.
— Acho que já estamos um pouco para lá disso, Luc. Mesmo que
eu dissesse que sim, e depois? Depois desse mês começaria tudo
outra vez, tal como antes.
— Consegues dar-me uma oportunidade? — perguntou ele em voz
baixa. — Eu vou tentar mudar. Eu sei que tenho a força para mudar.
— É demasiado tarde — soluçou ela, olhando para o copo. — Esta
noite não vou contigo para casa, Luc.
Capítulo 10
O lugar não se encontrava bem como Ben esperara. Para ele, o
termo "laboratório" conjurava imagens de instalações modernas,
espaçosas, construídas de propósito e totalmente equipadas. A
surpresa crescera enquanto seguia as direcções que o tipo lhe dera ao
telefone e chegava ao velho edifício de apartamentos no centro de
Paris.
Não havia elevador, e a escada em espiral com um corrimão gasto
em ferro forjado conduziu-o para cima passando por três andares
rangentes até chegar a um patamar estreito com uma porta de cada
lado. Conseguia sentir o cheiro almiscarado a amoníaco da
humidade.
Enquanto subia as escadas, continuou a pensar no incidente em
Notre Dame. Assombrara-o. Tivera cuidado a caminho daqui,
parando frequentemente, olhando as montras das janelas, tomando
nota das pessoas em seu redor. Se tinha agora alguém à perna, não o
conseguia detectar.
Verificou o número do apartamento e tocou à campainha.
Passados alguns instantes, um homem jovem e magro com cabelo
escuro encaracolado e feições pálidas abriu a porta e fê-lo entrar para
o que acabou por ser apenas um apartamento apertado.
Bateu à porta marcada com LAB, fez uma pausa e entrou.
O laboratório não era mais do que um quarto de cama convertido.
As superfícies de trabalho afundavam-se debaixo do peso de pelo
menos uma dúzia de computadores.
Pilhas de livros e dossiês por todo o lado ameaçavam despenhar-
se. Numa das extremidades encontrava-se um lavatório e uma
variedade de equipamento científico usado, provetas num contentor,
um microscópio. Mal havia espaço para a secretária, à qual se
encontrava sentada uma mulher jovem no início dos trinta, vestindo
um casaco branco de laboratório. O cabelo ruivo-escuro estava
apanhado num coque, dando-lhe um ar de seriedade. Era
suficientemente atraente para não usar maquilhagem, e o seu único
adorno era um par de simples brincos de pérolas.
Ela olhou para cima e sorriu quando Ben entrou.
— Perdão. Estou à procura do doutor Ryder? — disse ele em
francês.
— Encontrou-a — respondeu ela em inglês. A pronúncia era
americana. Ergueu-se. — Por favor, trate-me por Roberta. —
Apertaram as mãos.
Ela observou-o aguardando uma reacção, esperando pelo
inevitável sobrolho erguido e pela fingida surpresa "oh — uma
mulher!" ou "ena, os cientistas estão cada vez a ficar mais bonitos", o
género de comentário com que se saíam praticamente todos os
homens com quem se encontrava, para grande aborrecimento seu.
Quase que se tornara o seu teste de rotina para avaliar os homens
que conhecia. Era o mesmo tipo de resposta trapalhona que a
enfurecia quando contava aos rapazes sobre o seu cinturão negro em
karaté Shotokan: "Oh, é melhor pôr-me à tabela." Parvalhões.
Mas enquanto convidava Ben para se sentar, não reparou em
vestígio de coisa nenhuma na face dele. Interessante. Ele não era o
típico género de homem inglês que ela aprendera a conhecer — faces
cor-de-rosa, barriga de cerveja, péssimo gosto em roupas ou com o
cabelo penteado para cobrir a careca. O homem na frente dela era
relativamente alto, ligeiramente abaixo do metro e oitenta, com bom
ar em calças de ganga e um casaco leve sobre um pólo preto que
cobria uma estrutura esbelta mas musculada.
Era cinco, talvez seis anos mais velho do que ela. Tinha o
bronzeado profundo de quem passara algum tempo num país
quente, e o espesso cabelo louro estava descolorado pelo sol. Era o
género de homem por quem poderia cair. Mas havia uma dureza na
postura do maxilar, e algo naqueles olhos azuis que era frio e
distante.
— Obrigado por ter aceitado receber-me — disse ele.
— Michel, o meu assistente, disse que você era do Sunday Times.
— Exactamente. Estou a trabalhar num artigo para a nossa revista
de suplemento.
— Hum-hum? E em que é que posso ajudá-lo, senhor Hope?
— Ben.
— Muito bem, em que é que posso ajudá-lo, Ben? Oh, já agora, este
é Michel Zardi, meu amigo e ajudante. — Acenou para Michel, que
entrara no laboratório para procurar um dossiê. — Ouça, eu ia agora
mesmo fazer café — disse. — Também quer?
— Café seria óptimo — disse Ben. — Preto, sem açúcar. Preciso de
fazer uma chamada rápida. Importa-se?
— Com certeza, esteja à vontade — disse ela. — Virou-se para
Michel. — Queres um café? — perguntou-lhe. O seu francês era
perfeito.
— Non, merci. Vou sair daqui a pouco para comprar peixe para o
Lutin.
Ela riu-se.
— Esse teu maldito gato come melhor do que eu.
Michel sorriu e saiu da sala. Roberta fez o café enquanto Ben
puxava pelo telefone. Ligou para o número de Loriot, o editor que
Rose referira. Ninguém atendeu. Ben deixou-lhe uma mensagem e o
seu número.
— O seu francês é bastante bom para um jornalista inglês — disse
ela.
— Tenho viajado. O seu também é muito bom. Há quanto tempo
aqui vive?
— Quase há seis anos. — Deu um gole no café quente. — Então
vamos lá direitos ao assunto, Ben. Quer falar comigo acerca de
alquimia? Como é que ouviu falar de mim?
— O professor Jon Rose da Universidade de Oxford chamou-me a
atenção sobre si. Ele tinha ouvido falar do seu trabalho e pensou que
você talvez me pudesse ajudar.
Naturalmente — mentiu — será totalmente creditada por qualquer
informação usada no artigo.
— Pode deixar o meu nome fora disso. — Riu-se amargamente.
— Provavelmente o melhor é não me referir de todo. Sou
oficialmente a intocável do mundo científico nos dias que correm.
Mas se puder ajudá-lo, fá-lo-ei. O que quer saber?
Ben inclinou-se para a frente na cadeira.
— Procuro descobrir mais acerca do trabalho de alquimistas tais
como... Fulcanelli, por exemplo — disse, soando deliberadamente
casual. — Quem eram, o que faziam, o que poderão ter descoberto,
esse género de coisas.
— Certo. Fulcanelli. — Fez uma pausa, olhando a direito para ele.
— O que sabe acerca de alquimia, Ben?
— Muito pouco — disse ele com verdade.
Ela assentiu.
— Muito bem. Bom, antes de mais, vou deixar clara uma coisa. A
alquimia não tem só a ver com transformar metais de base em ouro,
está bem?
— Importa-se que tome umas notas? — Retirou do bolso um
pequeno bloco-notas.
— Esteja à vontade. Quero dizer, em teoria não é impossível criar
ouro. A diferença entre um elemento químico e outro é apenas uma
questão de manipulação de minúsculas partículas de energia. Saque
um electrão daqui, junte outro ali, e poderá em teoria transformar
qualquer molécula numa outra. Mas para mim, não é isso que é
realmente a alquimia. Eu vejo essa coisa de transformar os metais de
base em ouro mais como uma metáfora.
— Uma metáfora de quê?
— Pense nisso, Ben. O ouro é o mais estável e incorruptível metal.
Nunca se corrói, nunca se mancha. Os objectos de ouro puro
conservam-se perfeitos durante milhares de anos. Compare isso com
algo como o ferro, que enferruja até ao nada num ápice. Agora,
imagine se pudesse descobrir uma tecnologia que fosse capaz de
estabilizar matéria corruptível, prevenir a deterioração?
— Do quê?
— De tudo, em princípio. Tudo no nosso universo é
fundamentalmente feito da mesma matéria. Penso que aquilo de que
os alquimistas estavam no fim à procura era um elemento universal
na natureza que pudesse ser extraído, ou aproveitado, e usado para
conservar ou restituir a perfeição à matéria... qualquer género de
matéria, não apenas metais.
— Estou a perceber — disse ele, tomando uma nota no bloco.
— Está bem? Agora, se fosse possível descobrir uma tecnologia
desse tipo, e pô-la a funcionar, o seu potencial não teria limites. Seria
como o inverso da bomba atómica, usando a energia da natureza
para criar em vez de ser para destruir. Para mim, pessoalmente,
enquanto bióloga, estou interessada nos potenciais efeitos nos
organismos vivos, especialmente os humanos. E se conseguíssemos
retardar a deterioração dos tecidos vivos, talvez até restabelecer o
funcionamento saudável nos que estão doentes?
Ben não precisou de pensar muito no assunto.
— Teríamos a melhor tecnologia médica de todos os tempos.
Ela assentiu.
— Teríamos certamente. Seria incrível.
— Acha mesmo que eles estavam no caminho certo? Quer dizer,
será possível que possam ter criado algo desse género?
Ela sorriu.
— Eu sei o que está a pensar. É verdade, na sua maior parte, os
alquimistas eram provavelmente maluquinhos, velhotes meio
passados com imensas ideias sobre magia... talvez até alguns a
vissem como bruxaria, tal como a Internet ou mesmo um telefone
pareceriam obra das artes negras para alguém que fosse
transportado para o presente vindo de uns duzentos anos atrás. Mas
também havia alquimistas que eram cientistas sérios.
— Exemplos?
— Isaac Newton? O pai da física moderna era também um
alquimista encoberto; algumas das suas maiores descobertas, que os
cientistas ainda hoje usam, podem ter sido baseadas nas suas
pesquisas alquímicas.
— Não sabia disso.
— Absolutamente. E pode já ter ouvido falar de um outro tipo
intensamente envolvido em alquimia, Leonardo da Vinci.
— O artista?
— Também um brilhante engenheiro, projectista e inventor -
retorquiu ela. — E depois havia o matemático Giordano Bruno... isto
é, até que a Inquisição Católica o mandou queimar vivo em 1600. —
Fez um esgar. — Esse era o género de alquimistas no qual estou
interessada, aqueles que estavam a lançar as fundações para uma
nova ciência moderna que irá mudar tudo. É nisso que acredito, e é
basicamente sobre isso que trata o meu trabalho. — Fez uma pausa.
— Vejamos, em vez de eu estar aqui apenas a falar consigo, porque é
que não lhe mostro uma coisa? Tem algum problema com a bicharia?
— Bicharia?
— Insectos. Algumas pessoas passam-se quando os vêem.
— Não, tudo bem.
Roberta abriu uma porta dupla que conduzia ao que teria sido
originalmente uma despensa ou um roupeiro. Fora adaptado, com
prateleiras de madeira à medida, para suportar aquários. Que não
estavam cheios de peixes. Estavam cheios de moscas. Aos milhares.
Enxames negros e peludos, amontoando-se na superfície do vidro.
— Meu Deus — articulou ele, recuando.
— Um nojo, hum? — disse Roberta alegremente. — Bem-vindo à
minha experiência.
Os dois aquários encontravam-se marcados com um A e um B.
— O tanque B é o grupo de controlo — explicou ela. — Significando
isso que aquelas moscas são apenas moscas vulgares, bem cuidadas
mas não tratadas. O tanque A pertence às moscas experimentais.
— Muito bem... então o que é acontece a estas? — perguntou ele
cautelosamente.
— São tratadas com uma fórmula.
— E qual é a fórmula?
— Não tenho nenhum nome para essa fórmula. Inventei-a... ou
copiei-a, melhor dizendo, de velhos escritos alquímicos. Na realidade
é apenas água que passou por alguns processos especiais.
— Que tipo de processos?
— Ela sorriu manhosamente.
— Especiais.
— E o que acontece às moscas que são tratadas com isso?
— Ah, isso agora é que é a parte interessante. A longevidade de
uma mosca caseira adulta, bem alimentada, é de seis semanas. É
mais ou menos isso que as minhas moscas B estão a viver. Mas as
moscas do tanque A, as quais recebem ínfimas quantidades da
fórmula misturada na comida, estão a viver consistentemente trinta
a trinta e cinco por cento mais tempo, à volta de oito semanas.
Ben estreitou os olhos.
— Tem a certeza disso?
Ela anuiu.
— Já vamos na terceira geração, e os resultados estão a aguentar-
se.
— Então isto é apenas um avanço recente?
— Iá, estamos realmente no primeiro estágio. Ainda não sei porque
é que está a resultar, como explicar o efeito. Sei que posso obter
melhores resultados, e obterei... e quando os obtiver, vai ser como
enfiar uma malagueta pelo cu acima da comunidade científica.
Ben estava prestes a responder quando o seu telefone tocou.
— Merda. Peço desculpa por isto. — Esquecera-se de desligá-lo
durante a entrevista. Tirou o telefone do bolso.
— Então? Não vai atender? — perguntou ela, erguendo uma
sobrancelha.
Ben carregou na tecla de atendimento e disse:
— Estou?
— É Loriot. Recebi a sua mensagem.
— Obrigado por ter devolvido a chamada, senhor Loriot — disse
Ben, relanceando um pedido de desculpas a Roberta e erguendo um
dedo como que a dizer "é só um minuto".
Ela encolheu os ombros e deu um gole no café, depois sacou um
pedaço de papel de cima da secretária e começou a lê-lo.
— Eu estaria interessado em conhecê-lo. Gostaria de vir a minha
casa esta noite para uma bebida e uma conversa?
— Isso seria óptimo. Onde é que vive, senhor Loriot?
Roberta atirou com a folha de papel, suspirou e consultou
exageradamente o relógio.
— A minha casa é a Villa Margaux, perto da aldeia de
Brignancourt, do outro lado de Pontoise. Não é longe de Paris.
Ben anotou os pormenores.
— Brignancourt — repetiu rapidamente, tentando concluir a
conversa sem ser desagradável para com Loriot. O homem poderia
ser um importante contacto. Mas se vais brincar aos jornalistas, pelo
menos tenta fazê-lo com a porra de um pouco de estilo profissional,
pensou, irritado consigo mesmo.
— Eu envio o meu carro para o apanhar — disse Loriot.
— Muito bem — disse Ben, escrevendo no bloco. — Oito e quarenta
e cinco esta noite... sim... aguardo ansiosamente por isso... bem, mais
uma vez obrigado por ter telefonado... adeus. — Desligou o telefone e
deixou-o cair de volta ao bolso. — Peço desculpa por isto — disse
para Roberta. — Já está desligado.
— Oh, não se preocupe com isso. — Ela deixou-o ouvir uma nota
de sarcasmo na sua voz. — Não é que eu tenha um emprego para
onde ir, pois não?
Ben aclarou a garganta.
— Em todo o caso, esta sua fórmula...
-Sim?
— Já a experimentou noutras espécies? E nos seres humanos?
Ela abanou a cabeça.
— Ainda não. Isso é que seria fantástico, não acha? Se os
resultados correspondessem à experiência das moscas, a expectativa
de vida de um ser humano saudável poderia aumentar de, digamos,
oitenta para cerca de cento e oito anos. E eu penso que podemos
fazer ainda melhor.
— Se uma das suas moscas ficasse doente ou a morrer, esta coisa
teria o poder de curar o que a afectava, de a conservar viva? —
perguntou Ben de forma hesitante.
— Está a perguntar-me se isto tem propriedades medicinais? —
retorquiu ela. Roberta fez estalar a língua e suspirou. — Gostava de
poder dizer que sim. Tentámos administrá-lo a moscas moribundas
do grupo B para ver o que aconteceria, mas elas morreram na
mesma. Até ver parece que só actua preventivamente. — Encolheu os
ombros. — Mas quem sabe? Estamos apenas no princípio. Com o
tempo, talvez possamos ser capazes de desenvolver algo que não se
limite a prolongar a vida de espécimes saudáveis, mas que possa
curar os que ficam doentes, talvez mesmo impedir indefinidamente
que alguma morra. Se em última instância conseguíssemos
reproduzir esse efeito nos seres humanos...
— Parece que você pode ter descoberto uma espécie de elixir da
longa vida?
— Bem, não façamos saltar a rolha ainda — disse ela com uma
risada. — Mas penso que estou a caminho de qualquer coisa, sim.
O problema é a falta de financiamento. Para pôr realmente esta
coisa na rua de forma segura teriam de ser levados a cabo alguns
testes clínicos a sério. Isso pode levar anos.
— Porque é que não obtém financiamento da parte de companhias
farmacêuticas?
Roberta riu-se.
— Eh pá, você é mesmo ingénuo. Estamos a falar de alquimia.
Bruxaria, vudu, superstição. Porque é que acha que estou a trabalhar
nesta coisa no quarto do fundo?
Ninguém me leva a sério desde que escrevi sobre isto.
— Ouvi dizer que teve alguns problemas por causa disso.
— Problemas? — troçou ela. — Iá, pode dizer-se que sim. Primeiro
escarrapacharam-me na capa da Scientific American... Um editor
espertalhão pôs-me um chapéu de bruxa e uma tabuleta ao pescoço
que dizia "Americana Não Científica". A seguir, aqueles cabrões da
universidade puseram-me os patins, deixaram-me aos papéis. Não
tem sido propriamente uma ajuda para a minha carreira. Eles até o
pobre Michel despediram do posto dele de técnico de laboratório.
Disseram que ele andava a desperdiçar o tempo e o dinheiro da
universidade no meu projecto de abracadabra. Ele foi o único que me
apoiou no meio disto tudo. Pago-lhe o que posso, mas tem sido duro
para ambos. — Roberta suspirou e abanou a cabeça. — Filhos-da-
mãe. Mas eu vou mostrar-lhes.
— Tem por aí alguma da sua fórmula? — perguntou ele. — Gostaria
de lhe dar uma vista de olhos.
— Não, já não tenho — disse ela firmemente. — Acabou-se, preciso
de fazer mais.
Ben observou-lhe os olhos em busca de sinais de uma mentira.
Difícil de dizer. Fez uma pausa por momentos.
— Então, acha que me podia arranjar uma cópia dos apontamentos
da investigação? — perguntou, com esperança de que o pedido não
parecesse demasiado arrojado. Brincou com a ideia de lhe oferecer
dinheiro por eles, mas isso tê-lo-ia instantaneamente tornado
suspeito aos olhos dela.
Ela abanou-lhe o dedo.
— Ah, ah. Nem pensar, companheiro. Em todo o caso, você acha
que eu seria suficientemente parva para escrever a fórmula? — Deu
um toque na cabeça. — Está tudo aqui dentro. Isto é o meu bebé, e
ninguém lhe vai pôr as mãos em cima.
Ben sorriu lastimavelmente.
— Está bem, esqueça que eu falei nisso.
Houve alguns segundos de silêncio entre eles. Roberta olhou para
ele, expectante, depois colocou as mãos nos joelhos como que para
assinalar o fim da entrevista.
— Posso ajudá-lo em mais alguma coisa, Ben?
— Não vou tomar mais do seu tempo — disse ele, preocupado por
poder ter estragado tudo ao pedir-lhe para ver os apontamentos. —
Mas se conseguir alguns avanços significativos, poderá telefonar-me?
— Entregou-lhe um cartão.
Roberta aceitou-o e sorriu.
— Se quiser, mas não fique muito entusiasmado. É um processo
lento. Ligue-me de novo daqui a, digamos, três anos.
— Combinado — disse ele.
Capítulo 11
Roberta Ryder parecia subitamente muito menos a cientista
austera, com o cabelo ruivo-escuro ondulado a cair-lhe para lá dos
ombros e a bata de laboratório trocada por um casaco de ganga.
— Michel, vou sair. Podes tirar o resto do dia, está bem? — Pegou
no saco de desporto que se encontrava no quarto, apanhou as chaves
do carro e dirigiu-se para a sua sessão semanal no centro de artes
marciais do outro lado da cidade em Montparnasse.
Enquanto conduzia ia pensando na sua entrevista com o jornalista
Ben Hope. Ela tinha sempre de se mostrar como a cientista com
tomates, dura, dissidente e desafiante que um dia lhes ia mostrar a
todos como era... fora a imagem a que se agarrara. Ninguém
conhecia a real fragilidade da sua situação. Não sabiam dos medos
que tinha, das preocupações que a mantinham acordada durante a
noite. No dia em que fora despedida da universidade, podia muito
facilmente ter feito as malas e apanhado o voo seguinte para os
Estados Unidos. Mas não o fizera. Ficara para combater. Agora
interrogava-se acerca da sabedoria dessa decisão. Tinham valido a
pena todos os sacrifícios que fizera? Andaria apenas atrás do arco-
íris, enganando-se a si própria, ao pensar que a posição que assumira
fosse alguma vez fazer qualquer diferença? Em breve todo o seu
dinheiro desapareceria, e teria de tentar obter algures um
rendimento suplementar — talvez como tutora particular de ciências
para crianças. Mesmo isso poderia não trazer o suficiente para se
safar, pagar o miserável ordenado a Michel e financiar a sua
investigação.
Os dois ou três meses seguintes seriam decisivos para saber se
poderia continuar, ou se tinha de desistir de tudo.
Regressou ao apartamento por volta das cinco e meia. Sentia as
pernas pesadas enquanto subia pela escada em espiral e produzindo
ecos até ao terceiro andar. Fora uma sessão cansativa nesse dia, e
encontrava-se afogueada pelo tráfego da hora de ponta.
Quando atingiu o patamar e pegou nas chaves, descobriu que a
porta estava aberta. Teria Michel voltado para vir buscar alguma
coisa? Ele era a única pessoa que tinha a chave, para além dela e da
porteira. Mas não era dele o deixar a porta aberta.
Entrou, espreitando pela fresta da porta entreaberta para o quarto
do laboratório.
— Michel? Estás aí? — Não houve resposta, nem sinal dele. Entrou
no laboratório.
— Oh, Jesus.
Tinha sido tudo virado do avesso. Dossiês espalhados pelo chão,
gavetas de pernas para o ar, tudo vasculhado. Mas não foi para isso
que ficou ali a olhar de boca aberta. Foi para o homem grande de
capuz preto que vinha a correr direito a ela.
Uma mão enluvada disparou na direcção da sua garganta. Sem
pensar, bloqueou o movimento atirando as mãos para cima e para a
frente para deflectir os braços dele para os lados. O surpreendido
atacante hesitou durante meio segundo, o tempo suficiente para que
Roberta fizesse seguir o seu movimento com um potente pontapé
baixo ao joelho. Se tivesse acertado em cheio teria terminado com a
luta nesse preciso momento. Mas ele saltou para trás mesmo a tempo
e o pé dela apenas lhe roçou o queixo.
Ele recuou com um grunhido de dor, cambaleou e caiu
pesadamente.
Roberta virou-se e correu. Mas ele estendeu um longo braço e fê-la
tropeçar, fazendo-a cair ao comprido no chão. Bateu com a cabeça na
parede e viu estrelas. Quando se pôs novamente de pé ele
encontrava-se somente a dois metros com uma faca na mão. Atirou-
se a ela, erguendo a faca bem alto para a esfaquear de cima para
baixo.
Isto era um assunto acerca do qual Roberta sabia um pouco. Um
lutador de faca treinado conserva a arma junto ao corpo e esfaqueia a
partir daí, usando a rotação dos músculos das costas para emprestar
uma força letal ao golpe. Muito pouco pode ser feito para bloquear o
movimento ou para lhe tirar a faca. Mas a facada de cima para baixo,
com a mão a pegar na faca por baixo, era outra coisa. Teoricamente,
ela sabia que podia bloquear isto. Teoricamente. No clube de karaté
só tinham praticado este movimento com uma suave lâmina de
borracha, e mesmo assim nunca a toda a velocidade. A lâmina ficou
visível e faiscou para baixo dura e velozmente. Roberta foi mais
rápida. Apanhou-lhe o pulso e fê-lo descer de lado enquanto com a
outra mão lhe torcia o cotovelo em sentido contrário com toda a sua
força. Ao mesmo tempo, atirou-se a ele com uma joelhada ao baixo-
ventre.
O movimento funcionou. Roberta sentiu um terrível estalar
quando o braço dele se partiu. Ouviu o grito dele nos seus ouvidos. A
cara dele contorceu-se de agonia por detrás da máscara. A faca caiu,
e o corpo dele em rotação tombou em cima dela. Caiu no chão,
aterrando contorcido sobre a barriga, e gritou de novo.
Roberta ficou posicionada sobre ele, fixando-o com horror,
enquanto ele se contorcia e rolava para ficar deitado de costas. A faca
encontrava-se profundamente enterrada no plexo solar. Ele aterrara
em cima dela, com o seu próprio peso e inércia a provocarem a
penetração. Ele esgatanhou desesperadamente o cabo, tentando
puxá-lo para fora. Depois de alguns segundos, os movimentos
abrandaram, as convulsões acalmaram, e depois ficou imóvel. O
sangue fluía para fora formando um regato esguio ao longo dos
mosaicos.
Roberta fechou os olhos com força, os joelhos a tremerem
violentamente. Talvez quando os abrisse, não estivesse ali um tipo
morto no meio de uma poça de sangue.
Mas não, lá estava ele, fixando-a com o olhar vidrado, com a boca
meio aberta como um peixe numa banca.
Todos os nervos do seu corpo lhe gritavam que fugisse, mas ela
combateu o impulso. Lentamente, com o coração na boca, agachou-
se junto ao corpo. Estendeu uma mão tremelicante e enfiou-a por
dentro do casaco preto do homem morto. Lá dentro descobriu um
pequeno diário, meio ensopado em sangue. Foi virando as páginas a
pingar, estremecendo de repulsa com o sangue nos dedos e
procurando um nome, um número, uma pista.
O diário estava quase completamente em branco. Então, na última
página, encontrou duas moradas, escritas a lápis. Uma era dela. A
outra era a de Michel.
Será que o tinham apanhado? Procurou o telefone, percorreu
febrilmente o seu livro de endereços até chegar a "M.Z.", e carregou
na tecla de chamada.
— Vá lá, vá lá — murmurou, aguardando.
Ninguém atendeu, apenas o gravador de chamadas.
Interrogou-se sobre se deveria chamar a polícia. Agora não havia
tempo para isso, decidiu — levaria uma eternidade a passar pelos
recepcionistas e ela tinha de se deslocar a casa dele agora mesmo.
Passou por cima do cadáver e abriu uma nesga da porta de entrada.
Ninguém. Fechou a porta atrás de si e correu pelas escadas abaixo.
O carro parou com uma chiadeira, num ângulo maluco, à porta do
edifício de apartamentos onde Michel vivia, e ela correu para a porta.
Tocou no botão da campainha junto ao nome dele no
intercomunicador diversas vezes, batendo com os calcanhares, a
tensão a acumular-se.
Passados dois ou três minutos um casal risonho saiu do edifício e
ela esgueirou-se para o interior. Deu consigo num corredor escuro
em pedra, passou pela porta da porteira e chegou ao átrio central. O
apartamento de Michel ficava no rés-do-chão. Bateu à porta.
Nenhuma resposta. Correu de volta através da zona de entrada e
voltou ao átrio. A janela da casa de banho de Michel encontrava-se
ligeiramente aberta. Saltou para o parapeito da janela. Era apertado,
mas ela era suficientemente esguia para conseguir passar.
Uma vez no interior do apartamento, deslocou-se furtivamente de
sala em sala. Não havia sinal de vida. Mas uma chávena de café quase
vazia em cima da mesa, junto aos restos de uma refeição, ainda
estava quente ao toque e o portátil na secretária encontrava-se
ligado. Ele deve apenas ter saído, pensou ela. E sendo esse o caso,
tinha de querer dizer que ele estava bem. Sentiu o alívio a relaxar-lhe
os músculos. Talvez ele não se demorasse.
O telefone tocou subitamente, fazendo-a saltar. Depois de dois
toques, o gravador de chamadas começou a funcionar
automaticamente.
A gravação da voz murmurada de Michel saiu pelo altifalante,
seguida de um sinal sonoro, e depois quem ligara deixou a sua
mensagem.
Roberta ouviu a profunda e grave voz francesa.
— É o Saul. O teu relatório foi recebido. O plano foi levado a cabo.
Esta noite vamos tratar do BH.
O que se estava a passar aqui? Que relatório? O que andara o
Michel a enviar, e a quem? Estaria este tipo, seu amigo e assistente,
alguém em quem ela confiava - também metido nisto? O plano foi
levado a cabo. Roberta estremeceu. Quereria aquilo dizer o que ela
pensava que queria?
Foi até à secretária e abriu o computador de Michel. A máquina
encontrava-se em suspensão, e arrulhou rapidamente para funcional.
Clicou duas vezes no ícone de e-mail.
A cabeça de Roberta nadava enquanto percorria a lista de correio
enviado. Não levou muito tempo a descobrir uma coluna inteira de
mensagens enviadas marcadas como relatório. Estavam numeradas
em ordem consecutiva e datadas desde uns meses atrás até ao
presente. Correndo a lista, viu que tinham sido enviadas a intervalos
regulares de cerca de duas semanas.
Clicou num dos recentes, número 14. Apareceu no monitor e ela
examinou-o. O seu coração começou a acelerar. Sentou-se na cadeira
da secretária e leu-o novamente, mais lentamente, mal acreditando
no que estava a ver.
Era um relatório sobre as suas últimas descobertas científicas, o
avanço com as expectativas de vida das moscas do grupo A. Estava
tudo ali, até ao mais ínfimo pormenor.
O coração bateu-lhe mais depressa.
Abriu a mais recente mensagem enviada. Estava datada desse dia,
enviada apenas há uma hora ou assim. Continha um anexo. Leu a
mensagem primeiro: Hoje, 20 de Setembro, reunião com o jornalista
inglês Ben Hope. Abanando a cabeça em desnorte, clicou no logotipo
de um clipe no canto da mensagem. Quando o anexo abriu, viu que
continha uma série de ficheiros jpeg, fotografias digitais. Foi clicando
uma a uma, e a sua carranca acentuou-se a cada clique.
Eram instantâneos dela e de Ben Hope no laboratório. Tinham
sido tiradas nessa mesma manhã, e havia apenas uma pessoa que as
podia ter tirado. Michel, usando o seu telefone enquanto fingia andar
à procura de um dossiê.
Esta noite vamos tratar do BH, dissera a mensagem ao telefone. E
agora ela sabia quem era o BH.
Endireitou-se e desviou o olhar do monitor. Ouvira algo. Alguém
se aproximava da porta de entrada. Reconheceu a melodia familiar
que Michel costumava assobiar frequentemente no laboratório.
Tilintaram chaves na fechadura, e a porta abriu-se. As passadas
vinham ao longo do corredor. Roberta mergulhou para trás de um
sofá e agachou-se aí, mal se atrevendo a respirar.
Michel entrou na sala. Transportava um saco de compras, e
enquanto ia assobiando a sua melodiazinha começou a arrumar as
mercearias. Tocou no botão das mensagens e passou a que recebera.
Roberta espreitou por cima do sofá e observou-lhe a face enquanto
ele ouvia a voz de Saul. Não houve qualquer emoção, apenas um
assentimento.
A mente de Roberta corria a toda a velocidade, tonta com a ideia
de que este era o mesmo Michel que ela conhecia. Devia desafiá-lo,
resolver a questão com ele ali mesmo. Mas estava a tornar-se claro
que não o conhecia tão bem como pensara. E se ele tivesse uma
arma? Talvez a confrontação não fosse uma boa ideia.
Michel apagou a mensagem telefónica.
— Cristo, está calor aqui dentro — murmurou ele para si próprio.
Abriu uma janela no lado contrário da sala. Depois agarrou numa
embalagem de chocolate e numa garrafa de cerveja que trouxera no
saco de compras, refastelou-se num cadeirão e ligou a televisão com
o comando remoto. Ali ficou a rir a bandeiras despregadas com um
desenho animado e sorvendo a cerveja.
Esta era a hipótese de Roberta. Agachou-se de novo e começou a
gatinhar por detrás do sofá, conservando-se baixa. Ela ia gatinhar
mesmo pelo meio da sala e sair por aquela janela aberta enquanto ele
estava distraído com a televisão.
Já se encontrava meio fora do sofá quando ele gritou.
— Eh! O que estás tu aí a fazer?
Michel levantou-se da cadeira.
Roberta não se atreveu a olhar para cima. Merda, fui apanhada.
— Desce daí, vá — dizia ele numa voz mais gentil. Roberta olhou
para cima, sobressaltada e confusa.
Ele encontrava-se no outro lado da sala, junto à secretária.
— Anda lá, meu bebé, não devias fazer isso. — Um gato branco de
pêlo abundante saltara para a secretária e lambia o prato que ele ali
deixara da refeição anterior.
Ele pegou-lhe nas patas da frente, acari-ciando-o com adoração. O
gato miou em protesto e soltou-se do aperto, saltou para o chão e
correu para fora da sala. Michel correu atrás dele, agarrado a um
dedo arranhado. — Lutin! Vem cá! — Desapareceu para fora da vista
e Roberta ouviu-o a gritar com o gato. — Lutin, sai daí debaixo, seu
malandro!
Vendo a oportunidade, Roberta levantou-se de um salto e correu
pela estreita passagem para a porta de entrada, abriu o trinco
silenciosamente e esgueirou-se para o exterior.
Capítulo 12
Quando Michel Zardi fora pela primeira vez contactado pelo
homem que conhecia apenas por "Saul" uns meses antes, não fizera
ideia de quem o estava a contactar, ou o que realmente queria. Só
soube que lhe estavam a pedir para observar o trabalho de Roberta
Ryder e para enviar relatórios sobre o progresso da investigação dela.
Michel não era idiota. Estivera com o projecto dela desde o
princípio, e tinha uma muito boa ideia do seu valor potencial se ela
conseguisse convencer alguém a levá-lo a sério. Agora parecia que
alguém o estava a fazer, embora não fosse o género de atenção que
Roberta quereria. Michel era suficientemente esperto para não fazer
demasiadas perguntas. O que eles queriam que fizesse era simples
que bastasse, e o dinheiro era bom.
Bom o suficiente para o fazer começar a pensar que talvez ele não
quisesse passar o resto da vida a assobiar por aí enquanto técnico de
laboratório mal pago, especialmente agora que Roberta fora forçada
a mudar a localização da operação para o seu próprio apartamento.
O projecto não ia a lado nenhum, ambos sabiam disso. Ele também a
conhecia suficientemente bem para saber que ela nunca aceitaria a
realidade. O seu casmurro orgulho era o que a mantinha a andar,
mas ia também arrastá-los aos dois para o fundo.
Durante muito tempo, Michel brincara com a ideia de a deixar e
arranjar um trabalho melhor noutro lado qualquer. Mesmo quando
estava prestes a dizer-lhe que para ele acabara, Saul aparecera do
nada.
Subitamente, tudo parecera diferente. A promessa de um futuro
mais estável e interessante a trabalhar para Saul e a sua gente, quem
quer que fossem, significava que ele tinha perspectivas. E ajudara-o a
endurecer a sua atitude para com a cientista americana que outrora
considerara como sua amiga. Todos os quinze dias ou assim enviava
o seu relatório, e no fim de cada mês o envelope recheado de
dinheiro apareceria na sua caixa de correio. A vida era boa.
Era uma pirâmide de poder, larga na base, estreita no cimo. Na
base, era constituída por imensos homens ignorantes e
insignificantes, como Michel Zardi — homens pequenos cuja
lealdade podia ser comprada barata. O cimo da pirâmide era
ocupado apenas por um homem e um grupo seleccionado dos
associados mais próximos. Eles eram os únicos que conheciam a
verdadeira natureza, propósito e identidade da organização que tão
cuidadosamente conservava as suas actividades escondidas de olhos
indiscretos.
Os dois homens no cimo da pirâmide encontravam-se agora
reunidos numa sala a conversar. Não era uma sala vulgar, situada na
torre abobadada no centro de uma elegante villa renascentista dos
arredores de Roma.
O homem grande e autoritário que se encontrava junto à janela
chamava-se Massimiliano Usberti. Fabrizio Severini era o seu
secretário particular e o único homem em quem Usberti confiava
completamente e com quem falava abertamente.
— Daqui a cinco anos teremos evoluído para uma força de longe
mais poderosa do que somos agora, meu amigo — dizia Usberti.
Severini degustava vinho num copo de cristal.
— Já somos poderosos — disse ele com uma nota de precaução na
voz. — Como é que espera poder ocultar as nossas actividades
daqueles à nossa volta, se crescermos ainda mais em tamanho e em
força?
— Quando os meus planos estiverem prontos — disse Usberti -, já
não teremos mais de nos preocupar com a ocultação. Esta posição
em que nos encontramos, a necessidade de preservar o secretismo, é
apenas uma fase temporária do nosso desenvolvimento.
Fabrizio Severini era o homem vivo mais próximo de Massimiliano
Usberti. Agora, com ambos no final dos cinquenta, já se conheciam
um ao outro há muitos anos. Quando se conheceram enquanto
jovens, Massimiliano era apenas mais um padre, embora um padre
excepcionalmente empenhado e com o apoio da imensa riqueza da
sua família nobre para consumar as suas ambições. Mas nem mesmo
Severini conhecia na totalidade qual era em última instância o
objectivo de Usberti, o fim primordial destes planos aos quais ele tão
frequentemente aludia. Severini não fazia muita pressão ou inquiria
de forma demasiado aberta. A relação deles enquanto amigos
evoluíra ao longo dos anos à medida que Usberti crescera em poder,
autoconfiança e — ele não gostava de usar a palavra, mas era única a
usar — fanatismo. Severini sabia que o seu amigo, ou na verdade o
seu mestre, como lentamente se tornara, era um homem altamente
impiedoso que não se deteria por nada. Receava-o, e sabia que
Usberti desfrutava secretamente desse facto.
Usberti afastou-se da janela e voltou a juntar-se ao seu secretário
por debaixo da grande abóbada. Em cima da ornada e bela mesa de
madeira do século XVII encontrava-se um computador portátil
exibindo uma sequência de slides. As fotografias eram de uma
mulher e de um homem a falar. Um deles era uma cara familiar. A
doutora Roberta Ryder. A em breve falecida doutora Roberta Ryder.
O homem nas fotografias era alguém que Usberti tivera esperança
de nunca chegar a ver. Já sabia tudo acerca do inglês por um dos
seus informadores, que lhe dissera que um investigador profissional
ia meter o nariz onde não era chamado. O informador avisara-o que
Benedict Hope possuía um currículo de especialista e que era um
homem de muitos talentos. Isto pareceu ser confirmado quando o
assassino contratado que fora enviado contra ele não regressara nem
os contactara. Ninguém soubera nada acerca dele, e então uma das
suas fontes em Paris ligara a dizer que aparecera nas notícias que um
homem se atirara do parapeito da Catedral de Notre Dame.
O homem deles.
Usberti não esperara que Hope chegasse tão longe. Mas não se
preocupou. Não iria muito mais longe.
— Arcebispo... — começou Severini, esfregando as mãos
nervosamente.
— Sim, meu amigo?
— Deus perdoar-nos-á pelo que fazemos?
Usberti olhou bruscamente para ele.
— Claro que sim. Nós fazemo-lo para proteger a Sua casa.
Depois de Severini sair, o arcebispo dirigiu-se à antiga Bíblia
encadernada a ouro que se encontrava em cima da sua secretária.

E eu vi os Céus abrirem-se, e contemplei um cavalo branco; e


aquele que nele montava era chamado Fiel e Verdadeiro, e com
integridade produzia julgamento e fazia a guerra.
E ele estava envolto numa veste tingida com sangue: e o seu
nome é chamado a Palavra de Deus. E os exércitos que se
encontravam no céu seguiram-no.
E ele trazia uma espada afiada, que com ela deveria punir as
nações: e ele deveria governá-las com um bastão de ferro: e ele
subjugou-os com a prensa da ferocidade e da ira do Deus Todo-
Poderoso.

Usberti fechou o livro. Olhou para o infinito por um momento,


com uma expressão sombria e determinada na face. Então,
aquiescendo solenemente para si próprio, pegou no telefone.
Capítulo 13
Paris

Roberta conseguiu chegar ao 2CV, olhando por cima do ombro e


meio à espera de ver Michel Zardi a irromper da porta do prédio em
sua perseguição. As mãos tremiam-lhe tanto que mal conseguiu
enfiar a chave na fechadura.
Enquanto conduzia de volta ao seu apartamento marcou o 17 e foi
conectada ao serviço de emergências da polícia.
— Quero comunicar uma tentativa de homicídio. Está um corpo no
meu apartamento. — Deu-lhes os pormenores da sua identificação
num repente sem respirar enquanto acelerava por entre o trânsito,
conduzindo com uma mão.
Uma ambulância e dois carros da polícia estavam a chegar ao
mesmo tempo que ela estacionava no exterior do seu prédio dez
minutos depois. Os agentes uniformizados eram encabeçados por um
vigoroso inspector à paisana nos seus trinta e tais. Possuía um cabelo
escuro penteado para trás, e os olhos eram de um verde pouco
comum e intenso.
— Sou o inspector Luc Simon — disse ele, observando-a
atentamente. — Foi você que comunicou o incidente?
— Sim.
— Portanto você é... Roberta Ryder? Cidadã dos Estados Unidos.
Tem a sua identificação?
— Agora? Está bem. — Andou à pesca na mala e tirou o passaporte
e visto de trabalho. Simon passou-lhes os olhos por cima e devolveu-
os.
— Tem o título de doutora. Doutora de medicina?
— Bióloga.
— Estou a ver. Mostre-nos o cenário do crime.
Subiram as escadas em espiral até ao apartamento de Roberta,
com os rádios a emitir ruídos de estática na escadaria. Simon foi à
frente, movimentando-se depressa, com o maxilar tenso. Roberta
trotou atrás dele, seguida pela meia dúzia de polícias uniformizados
e uma equipa de paramédicos encabeçada por um médico forense
transportando uma mala.
Roberta explicou a situação a Simon, observando os seus intensos
olhos verdes.
— E depois ele caiu, e foi direito à faca — disse ela, gesticulando.
— Era um tipo grande e pesado, deve ter caído com muita força.
— Nós vamos recolher as suas declarações completas daqui a
pouco. Quem é que está lá em cima agora?
— Ninguém, só ele.
-Ele?
— O... pronto — disse ela com uma nota de impaciência. — O
corpo.
— Deixou o corpo sozinho? — disse ele, erguendo os sobrolhos.
— Onde é que foi?
— Fui visitar um amigo — disse ela, estremecendo para si mesma
com a maneira como aquilo soara.
— A sério... muito bem, falamos sobre isso depois — disse
impacientemente Simon. — Vejamos o corpo primeiro.
Chegaram à porta, e Roberta abriu-a.
— Importa-se que eu aguarde aqui fora? — perguntou ela.
— Onde é que está o corpo?
— Está logo a seguir à porta, no corredor.
Os agentes e os paramédicos entraram, com Simon a abrir
caminho. Ficou um polícia com Roberta no patamar. Ela encostou-se
à parede e fechou os olhos.
Após alguns segundos, Simon voltou ao patamar com uma
expressão severa e carregada.
— Tem a certeza de que este é o seu apartamento? — perguntou.
— Iá. Porquê?
— Anda a tomar alguma medicação? Sofre de perdas de memória,
epilepsia ou de qualquer outro género de desarranjo mental?
Consome drogas, álcool?
— Está a falar do quê? Claro que não.
— Então explique-me isto. — Simon agarrou-a pelo braço e
impulsionou-a firmemente para a porta, apontando e olhando para
ela na expectativa. Roberta ficou de boca aberta. O detective
apontava para o chão da entrada.
Vazio. Limpo. O corpo desaparecera.
— Tem uma explicação?
— Talvez ele se tenha arrastado — articulou ela. O quê, e limpou o
rasto de sangue atrás de si? Esfregou os olhos, com a cabeça a andar
à roda.
Simon virou-se para a olhar duramente.
— Fazer desperdiçar tempo à polícia é uma ofensa grave. Eu podia
detê-la agora mesmo, está a compreender?
— Mas eu estou a dizer-lhe que havia um corpo! Eu não o
imaginei, o corpo estava mesmo ali!
— Humm. — Simon voltou-se para um dos seus homens. —
Arranje-me um café — ordenou. Encarou Roberta com um olhar
sardónico.
— Então para onde é que ele foi? Para a casa de banho? Talvez o
encontremos lá sentado na sanita a ler o Le Monde?
— Isso gostava eu de saber — retorquiu ela, impotente. — Mas ele
estava ali... eu não o imaginei.
— Passem uma busca ao apartamento — ordenou Simon aos seus
agentes. — Falem com os vizinhos, descubram se eles ouviram
alguma coisa. — Os homens começaram a passar o apartamento a
pente fino, um ou dois deles a olhar irritadamente de relance para
Roberta. Simon virou-se de novo para ela. — Você diz que ele era um
homem grande e poderoso? Que ele a atacou com uma faca?
— Sim.
— Mas você não se encontra ferida?
Roberta mostrou-se aborrecida.
— Não.
— Como é que você pode esperar que eu acredite que uma mulher
do seu tamanho... cerca de um metro e sessenta e cinco?... pudesse
matar um atacante grande e armado com as mãos nuas, e não ter
uma única marca?
— Espere aí, eu não disse que o matei. Ele caiu em cima da faca.
— O que ele estava a fazer aqui?
— O que um criminoso faz normalmente no apartamento de outra
pessoa? Ele estava a assaltar-me a casa. Virou-me o laboratório de
pernas para o ar.
— O seu laboratório?
— Claro, a casa foi toda virada do avesso. Veja você mesmo.
Apontou para a porta do laboratório, e ele abriu-a. Espreitando
por cima do ombro dele, Roberta viu com um choque que a sala fora
arrumada — tudo nos seus devidos lugares, os dossiês perfeitamente
ordenados, as gavetas fechadas. Estaria a ficar doida?
— Um ladrão arrumado — comentou Simon. — Gostava que eles
fossem todos assim.
Um dos agentes apareceu à porta.
— Senhor, os vizinhos do outro lado do patamar estiveram em casa
a tarde toda. Eles dizem que não ouviram nada.
— Hum — bufou Simon. Olhou em redor no laboratório, apanhou
um pedaço de papel de cima da secretária. — O que é isto? A Ciência
Biológica da Alquimia? — Os seus olhos saltaram da folha e
cravaram-se nela.
— Eu disse-lhe, eu... eu sou cientista — gaguejou ela.
— A alquimia agora é uma ciência? Consegue transformar chumbo
em ouro?
— Por favor.
— Talvez tenha inventado uma maneira de fazer as coisas...
desaparecer? — disse ele com um gesto expansivo. Atirou o papel
para cima da secretária e caminhou resolutamente através da sala. —
E o que está aqui?
Antes que ela o pudesse impedir ele abrira as portas que davam
para os tanques das moscas.
— Putain! Isto é um nojo.
— Faz parte da minha investigação.
— Isto é um sério problema de saúde e de segurança, madame.
Estas coisas transportam doenças. — O médico forense encontrava-
se à porta por detrás de Roberta, anuindo em concordância e
revirando os olhos. Os outros agentes regressavam das suas buscas
ao resto do pequeno apartamento, abanando as cabeças. Roberta
sentia olhares hostis a virem de todas as direcções.
— O seu café, senhor.
— Ah, graças a Deus. — Simon agarrou no copo de papel e bebeu
uma valente golada. O café era a única coisa que lhe acabava com as
dores de cabeça devidas ao stresse.
Precisava de descansar mais. Não chegara a conseguir dormir na
noite anterior.
— Eu sei que isto parece esquisito — protestou Roberta. Estava a
gesticular demasiado, na defensiva. Não estava a gostar da maneira
como a sua voz se esganiçava.
— Mas estou a dizer-lhe.
— É casada? Tem namorado? — perguntou bruscamente Simon.
— Não... Tive um namorado, mas agora não... Mas que tem isso a
ver seja com o que for?
— Está emocionalmente perturbada por ele a ter deixado —
sugeriu Simon. — Talvez o stresse... — É irónico, pensava ele,
lembrando-se da sua actuação da noite anterior com Hélène.
— Oh, então você pensa que eu estou a ter um esgotamento
nervoso? A mulher frágil que não consegue viver sem um homem?
Ele encolheu os ombros.
— Mas para que raio são estas perguntas? Quem é o seu oficial
superior?
— Devia ter cuidado, madame. Lembre-se de que cometeu uma
ofensa grave.
— Por favor, ouça-me. Eu acho que eles estão a planear matar
outra pessoa. Um fulano inglês.
— Oh, a sério? Quem é que está a planear isso?
— Eu não sei quem. As mesmas pessoas que me tentaram matar.
— Nesse caso eu sugeriria que o seu amigo inglês não corre grande
perigo. — Simon contemplou-a com um óbvio olhar de desprezo.
— E por acaso sabemos quem é esse inglês? Talvez seja o amigo
com quem foi tomar chá enquanto o cadáver imaginário jazia no seu
apartamento?
— Meu Deus — exclamou ela impotente, quase rindo com a
frustração. — Diga-me que você não é realmente assim tão parvo.
— Doutora Ryder, se não se calar imediatamente, levo-a dentro.
Vai ficar fechada à chave enquanto eu isolo isto tudo com fita da
polícia e mando os técnicos forenses passar o seu apartamento a
pente fino.
— Atirou para o chão o copo de papel vazio e dirigiu-se a Roberta.
A cara avermelhava-se-lhe. Ela recuou. — Será examinada pelo
médico legista -continuou ele. -
Cada centímetro da sua pessoa. Já para não falar de uma avaliação
completa levada a cabo pelo psicólogo. Faço com que a Interpol
vasculhe a sua conta bancária. Vou espiolhar a sua vida toda pedaço
a pedaço... É isso que quer?
Roberta tinha as costas contra a parede. O nariz dele quase que
tocava o seu, os olhos verdes abrasadores.
— Porque é isso que lhe vai acontecer!
Os agentes estavam todos a olhar para Simon. O médico veio por
detrás dele e pousou-lhe suavemente uma mão no ombro, quebrando
a tensão. Simon recuou.
— Faça isso! — gritou ela em resposta. — Leve-me! Eu tenho
provas... Eu sei quem está envolvido nisto.
Ele olhou-a intensamente.
— Para que possa ser a estrela no seu próprio filme? Você ia gostar
disso, não ia? Mas eu não lhe vou dar essa satisfação. Já vi que
chegasse. Corpos que desaparecem... aquários cheios de moscas...
alquimia... planos para assassinar pessoas. Lamento, doutora Ryder,
a polícia não serve para fazer companhia a malucos em busca de
atenção.
— Apontou com um dedo avisador. — Considere-se sob vigilância.
Não faça isto de novo. Compreendido? — Gesticulou para os outros e
saiu à frente. Estes roçaram por Roberta, ao deixarem-na sozinha à
entrada do apartamento.
Roberta ficou ali, paralisada por momentos pelo choque e
surpresa, fixando a porta de entrada e escutando os ecos dos passos
dos polícias enquanto estes desciam as escadas. Não conseguia
acreditar nisto. O que ia fazer agora?
Esta noite vamos tratar do BH. Ben Hope. Fosse como fosse que
ele estivesse envolvido nisto, tinha de o avisar imediatamente. Mal
conhecia o tipo, mas se os polícias não iam levar esta situação a sério,
cabia-lhe a ela alertá-lo para o que diabo estivesse a acontecer.
Roberta atirara o cartão que ele lhe dera para o cesto dos papéis,
sem nenhuma intenção de alguma vez lhe ligar — graças a Deus,
pensava agora, que não o fizera passar na retalhadora. Virou o cesto
de pernas para o ar, entornando papéis amarrotados, cascas de
laranja e uma lata esmagada de uma bebida com gás para o chão do
laboratório. O cartão encontrava-se por debaixo, com manchas de
Coca-Cola. Agarrou no telefone e matraqueou as teclas, encostou-o
ao ouvido e aguardou pelo toque de chamada.
Respondeu uma voz.
— Está? Ben? — começou ela urgentemente. Mas então percebeu o
que estava a ouvir.
— Bem-vindo ao serviço de atendimento de chamadas Orange.
Lamentamos, mas a pessoa para quem ligou não está disponível...
Capítulo 14
Quarteirão da Ópera, centro de Paris

O ponto de encontro que Ben escolhera para o compromisso dessa


noite foi a Igreja da Madeleine na extremidade do quarteirão da
Ópera. Era seu hábito nunca estabelecer contacto ou ser recolhido
perto de um lugar onde estivesse instalado. Não tinha gostado da
maneira como a gente de Fairfax conhecera a sua localização na
Irlanda e o tinham ido buscar a casa.
Deixou o apartamento às 08 h 20 m e caminhou vigorosamente
até à estação de metro de Richelieu Drouot. Eram somente duas
paragens até ao seu destino no oscilante e ruidoso comboio. Abriu
caminho por entre as multidões que enchiam os túneis subterrâneos
e emergiu na rua na Place de la Madeleine. Aos pés da altiva igreja,
Ben acendeu um cigarro e encostou-se a uma das colunas coríntias,
observando o trânsito que passava.
Não teve de esperar muito. À hora marcada, uma grande limusina
Mercedes guinou para fora da linha de trânsito e deslizou até se deter
junto ao lancil. O motorista uniformizado saiu.
— Monsieur 'Ope?
Ben anuiu. O motorista abriu-lhe a porta traseira e Ben entrou.
Observou Paris a passar-lhe pela janela. Estava a ficar escuro ao
deixarem os arrabaldes da cidade, e a comprida e silenciosa limusina
seguiu o seu caminho ao longo de estradas secundárias cada vez mais
estreitas e mal iluminadas. Arbustos e árvores, um ocasional edifício
na penumbra, e um pequeno bar à borda da estrada passavam à luz
dos faróis.
O motorista era curto de conversa, e Ben mergulhou nos seus
pensamentos. Loriot era obviamente um editor altamente bem-
sucedido, a julgar pelo tipo de transporte que fora enviado para o
recolher. Não parecia provável que o sucesso da sua actividade
dependesse muito, se é que alguma coisa, da publicação de títulos
com temas esotéricos ou alquímicos — uma busca na página da
Internet das Editions Loriot revelara apenas uma mão-cheia deles, e
nada que parecesse relacionado com o que ele procurava. Em todo o
caso essa área dificilmente era das mais comerciais do mercado
livreiro. Mas Rose dissera que Loriot era um verdadeiro entusiasta.
Provavelmente era apenas um passatempo para ele, talvez um
interesse pessoal nesse assunto que ele introduzira na actividade
como uma linha marginal, para satisfazer outros correligionários em
matéria de interesses na alquimia. Talvez ele lhe pudesse apontar a
direcção correcta. Um coleccionador abastado podia até possuir
livros raros, ou papéis ou manuscritos, que podiam ser de interesse.
Talvez mesmo... não, isso era esperar demasiado. Teria de se limitar
a esperar para ver até onde o encontro desta noite o levaria.
Consultou os ponteiros luminosos do relógio. Deviam estar a chegar.
Os seus pensamentos vaguearam.
Sentiu o Mercedes a abrandar. Já tinham chegado? Olhou para lá
do motorista na direcção da estrada escura. Não se encontravam em
nenhuma aldeia, e não parecia haver quaisquer casas nas
redondezas. Viu um grande sinal rodoviário iluminado pelos faróis.

PERIGO
PASSAGEM DE NÍVEL

As barreiras de madeira encontravam-se erguidas, permitindo a


passagem ao carro. A limusina entrou lentamente na passagem e
deteve-se em cima dos carris. O motorista carregou num dos botões
do tablier e ouviu-se um ruído surdo quando o fecho centralizado foi
activado. Um som vibrante, e ergueu-se um separador de vidro
grosso, isolando-o do motorista.
— Eh — gritou ele, batendo no vidro. A voz soou-lhe oca no
compartimento à prova de som.
— O que se passa? Eh, estou a falar consigo.
Sem um único olhar ou uma palavra em resposta, o motorista
desligou a ignição e os faróis apagaram-se. O motorista abriu a
pesada porta e acendeu-se a luz interior do carro. Ben reparou que o
separador era reforçado a aço, com uma malha cruzada interna de
arame tenso.
O motorista saiu calmamente do carro. Bateu com a porta e o
interior do carro ficou às escuras. Um feixe oscilante de luz pálida de
uma lanterna materializou-se enquanto o homem inspeccionava o
terreno à sua frente, caminhando estrada acima. O feixe da lanterna
varria a estrada de lado a lado como se estivesse em busca de algo
mais à frente. A luz tremeluzente assentou num Audi preto
estacionado na berma, aí a uns cinquenta metros depois da
passagem de nível. As luzes traseiras acenderam-se e foi aberta uma
porta quando o motorista da limusina se acercou do carro. Entrou.
Ben martelou o separador de vidro, depois os vidros fumados. A
única coisa que conseguia ver no escuro eram as luzes traseiras do
Audi. Passado cerca de um minuto o carro arrancou e desapareceu
estrada acima.
Ben andou às apalpadelas nos bancos de trás do Mercedes em
busca de uma saída. Experimentou novamente as portas, sabendo
que era escusado e combatendo uma maré enchente de ansiedade.
Haveria uma saída. Havia sempre uma saída para tudo. Já estivera
em situações piores do que esta.
Ouviu um som no exterior, uma campainha. Foi seguido por uma
série de ruídos mecânicos, e as barreiras de madeira desceram.
Embora estivesse às cegas na escuridão, conseguia visualizar a cena
muito claramente. O Mercedes encontrava-se atravessado nos carris,
entalado entre as barreiras, e agora vinha aí um comboio.
— Tudo resolvido, Godard? — inquiriu Berger, o tipo gordo ao
volante, olhando por cima do ombro enquanto o motorista da
limusina entrava para o banco traseiro do Audi.
Godard tirou o seu boné de motorista.
— Sem problemas. — Sorriu.
Berger ligou o carro.
— Vamos lá então beber essa cerveja.
— Não seria melhor ficarmos por aqui mais um pouco? —
perguntou o terceiro homem, olhando nervosamente para o relógio.
Olhou pouco à vontade para a sombra do Mercedes cinquenta metros
atrás.
— Ná... Por que carga de água? — troçou Berger enquanto
engrenava o Audi e arrancava, acelerando a fundo estrada acima. —
O comboio passa daqui a dois minutos. O filho-da-puta do bife não
vai a lado nenhum.
Os olhos de Ben encontravam-se agora completamente ajustados à
escuridão. Visto através da janela lateral do Mercedes, o horizonte
era um mergulhante V negro de céu estrelado flanqueado pelos ainda
mais negros taludes a pique que nasciam em cada um dos lados dos
carris. Enquanto observava, o brilho baço entre os taludes foi ficando
regularmente mais brilhante. Transformou-se em duas luzes
distintas, ainda muito distantes mas crescendo alarmantemente em
dimensão enquanto o comboio se aproximava. Através do troar na
sua cabeça podia vagamente distinguir o som das rodas de aço nos
carris.
Bateu com mais força na janela. Mantém-te calmo. Retirou a
Browning do coldre e usou-a como um martelo, batendo fortemente
com o punho por diversas vezes contra a janela. O vidro não cedia.
Rodou a arma na mão, protegeu a cara com a mão livre e disparou
contra a face interior do vidro. O crescente ribombar do comboio
desapareceu no meio de um silvo agudo enquanto os seus ouvidos
assobiavam com o disparo. O painel distorceu-se num estranha teia
de aranha de rachas mas não cedeu. Vidro à prova de bala. Baixou a
arma. Não valia a pena tentar destruir as fechaduras das portas.
Seriam necessários muito mais do que doze projécteis de uma
franzina 9 mm para penetrar no aço maciço.
Hesitou, depois começou a bater novamente. As luzes distantes
estavam a tornar-se maiores e mais brilhantes, inundando o vale
entre os taludes com um halo esbranquiçado.
Houve um estrondo e Ben afastou-se da janela. Outro impacto
violento e o painel destruído deslocou-se na sua direcção.
Uma voz vinda do exterior, abafada mas conhecida.
— Está aí dentro? Ben? — Era uma voz de mulher, americana. A
voz de Roberta Ryder!
Roberta bateu outra vez na janela com a chave de rodas do seu
Citroën. O vidro reforçado ficou metido para dentro mas não ia
ceder. O comboio aproximava-se rapidamente.
Roberta gritou através da janela rachada.
— Ben, agarre-se bem. Vai haver um impacto!
O uivo do comboio estava a ficar mais audível. Ben mal conseguiu
ouvir a porta do Citroën a fechar-se e o som do seu motor pouco
potente. O 2CV atirou-se para a frente, esmagando as barreiras e
arremessando o seu débil peso contra o pesado metal da traseira do
Mercedes. O pára-brisas de Roberta foi estilhaçado pela barra de
madeira. O metal guinchou contra o metal. Roberta agarrou na
alavanca das mudanças e engrenou brutalmente a marcha atrás,
largou a alavanca e recuou para outra pancada.
A limusina fora arrastada um metro para a frente, com as rodas
bloqueadas a abrir trincheiras na terra. Roberta abalroou o Mercedes
uma segunda vez, e conseguiu colocar o nariz do grande e pesado
carro por debaixo da barreira do lado oposto. Mas não era o
suficiente.
Ben encontrava-se agachado e bem agarrado no compartimento
traseiro da limusina. Outro impacto pô-lo aos trambolhões. O
Mercedes foi arrastado por cima do segundo par de carris, com os
restos da barreira a tamborilar-lhe no tejadilho.
O comboio estava quase em cima deles, a 250 metros e a reduzir
rapidamente a distância.
Roberta pisou violentamente o acelerador a fundo uma vez mais.
Última hipótese. O muito maltratado 2CV acertou em cheio na
traseira do Mercedes e Roberta suspirou de alívio enquanto a
limusina era empurrada para fora das linhas ferroviárias.
O condutor vira os carros nos carris. No meio da parede de ruído
que descia sobre Roberta, ela conseguia ouvir o grito dos travões.
Mas nada poderia parar o comboio a tempo. Durante um momento
aterrador, o 2CV ficou preso ao Mercedes e mesmo no caminho do
comboio, com as carroçarias juntas numa amálgama, as rodas a
patinar em marcha atrás.
Então os destroços soltaram-se e o carro saltou para trás, saindo
dos carris para a segurança apenas um segundo antes de o comboio
passar a uivar com uma enorme estalada de vento. A sua maciça
extensão projectou-se durante dez segundos, depois desapareceu na
noite e as pequenas luzes vermelhas esfumaram-se no nada.
Ficaram sentados silenciosamente nos respectivos carros, e
aguardaram que os corações e as respirações se normalizassem. Ben
aconchegou a Browning de volta ao coldre e prendeu-o no devido
lugar.
Roberta saiu do 2CV, olhou para ele e produziu um gemido
involuntário. Os faróis tinham sido esmagados sem remissão,
pendurados dos apoios entre as ruínas retorcidas do capô e dos
guarda-lamas da frente. Roberta passou por cima dos carris e
dirigiu-se à limusina, com os joelhos a tremer.
— Ben? Fale comigo?
— Consegue tirar-me daqui? — perguntou ele do interior com a voz
abafada.
Roberta tentou abrir a porta do condutor do Mercedes.
— Duh, bem pensado, Ryder — murmurou para si própria. —
Aberta este tempo todo. — Pelo menos as chaves não estavam na
ignição. Isso teria sido realmente estúpido.
Entrou no carro e bateu no separador de vidro que se interpunha
entre ela e Ben. A cara dele apareceu vagamente no outro lado.
Roberta olhou em redor. Tem de haver um botão para o painel de
vidro. Se ela o conseguisse baixar, ele podia safar-se por ali.
Descobriu um botão que parecia ser o tal e carregou nele. Nenhuma
reacção.
Provavelmente necessitava da ignição ligada. Merda. Encontrou
outro botão e carregou nesse, e com um satisfatório ruído surdo o
mecanismo do fecho centralizado da traseira abriu-se.
Ben cambaleou para o exterior, gemendo e massajando o corpo
dorido. Fechou o casaco, mantendo o coldre cuidadosamente
coberto.
— Jesus, esta foi por pouco — exalou ela. — Está tudo bem?
— Hei-de viver. — Ben apontou para o arruinado 2CV. — Aquilo
ainda anda?
— Obrigado, Roberta — disse ela num tom meio trocista meio
sarcástico. — Que sorte teres aparecido. Obrigado por me teres
safado as nalgas.
Ben não produziu qualquer resposta. Ela atirou-lhe um olhar,
depois voltou a fixar os destroços do seu carro.
— Eu gostava mesmo daquele carro, sabe. Já não os fazem.
— Eu arranjo-lhe outro — disse ele, coxeando na direcção do 2CV.
— Pode crer que me arranja outro — prosseguiu ela. — E acho que
também me deve uma explicação.
Depois de dar umas quantas vezes à chave, o motor do 2CV tossiu
para a vida, produzindo um batimento que soava a terminal. Roberta
virou o carro na direcção contrária, com as rodas a roçar nos guarda-
lamas desmantelados, e saiu dali. Ao ganharem velocidade, o roçar
dos pneus no metal cresceu para um uivo torturado, e o vento
assobiava em redor deles ao passar pelo pára-brisas partido. O motor
sobreaquecia gravemente e um fumo acre começou a escapar-se do
capô amolgado.
— Não consigo ir longe com isto — gritou ela por cima do
estampido do vento, espreitando para a escuridão através do pára-
brisas estilhaçado.
— Limite-se a levá-lo até lá mais abaixo de qualquer maneira —
gritou ele em resposta. — Acho que vi um bar lá para aqueles lados.
Capítulo 15
O Citroen conseguiu levá-los até ao tranquilo bar à borda da
estrada antes de expirar finalmente em consequência de um radiador
perfurado. Roberta deu-lhe um último e triste olhar depois de o
deixarem num canto sombrio do parque de estacionamento e
dirigiram-se, passando por diversas motas e alguns carros, para o bar
com a luz intermitente do letreiro de néon por cima da porta.
A sala do bar estava praticamente vazia. Dois motards de cabelo
comprido jogavam bilhar e riam roucamente lá atrás, bebendo as
cervejas directamente da garrafa.
Pouco falaram enquanto se sentavam numa mesa de canto longe
do cagaçal de hard-rock vindo da jukebox. Ben foi ao balcão e
regressou um minuto depois com uma garrafa de vinho tinto barato e
dois copos. Serviu um copo para cada um deles e fez deslizar o dela
por cima do tampo manchado da mesa. Roberta deu um gole e
fechou os olhos.
— Livra, que dia. Então qual é a sua história?
Ele encolheu os ombros.
— Eu estava apenas à espera do comboio.
— E também quase que apanhou com um.
— Reparei nisso. Obrigado pela intervenção.
— Não me agradeça. Diga-me o que se passa e o porquê de nos
termos tornado subitamente tão populares.
— Nós?
— Iá, nós — disse ela afogueada, batendo com um dedo na mesa.
— Desde que tive o prazer de o conhecer esta manhã, já tive
intrusos que tentaram matar-me, amigos que afinal eram inimigos,
homens mortos a desaparecer do meu apartamento e polícias
cretinos que pensam que eu sou maluquinha.
Ele ouviu atentamente e com crescente apreensão enquanto ela lhe
contava tudo o que lhe acontecera durante as últimas horas.
— E em cima disso tudo — terminou ela -, quase que sou feita em
puré de batata por um comboio ao safar-lhe as nalgas. — Fez uma
pausa. — Parto do princípio de que não recebeu a minha mensagem -
acrescentou indignadamente.
— Qual mensagem?
— Talvez devesse conservar o telefone ligado.
Ben deu uma gargalhada amarga ao lembrar-se de que desligara o
telefone durante a entrevista deles nessa manhã. Sacou o telemóvel
do bolso e activou-o.
— Mensagem — gemeu ele quando o logotipo com o pequeno
envelope piscou no ecrã.
— Bem pensado, Sherlock — disse ela. — Então foi assim mesmo
que depois de não me ter devolvido a chamada, eu decidi vir avisá-lo
pessoalmente. Embora esteja a começar a interrogar-me sobre o
porquê de me ter dado ao trabalho.
Ben franziu o sobrolho.
— Como é que sabia onde me encontrar?
— Lembra-se? Eu estava lá quando você recebeu a chamada do...
— Loriot.
— Como queira. Lindos amigos que você tem. Seja como for, eu
lembrei-me de que você falara que vinha esta noite a Brignancourt,
calculei que talvez o conseguisse apanhar lá se não me atrasasse
muito.
— Roberta olhou duramente para ele. — Então você vai contar-me
o que se passa, Ben? Os jornalistas do Sunday Times têm sempre
estas vidas tão excitantes?
— Parece-me que você teve um dia mais excitante do que o meu.
— Deixe-se de tretas. Você tem alguma coisa a ver com tudo isto,
não tem?
Ben ficou em silêncio.
— Então? Não tem? Vá lá. Devo eu pensar que tudo isto é
supostamente uma coincidência, que você aparece a fazer perguntas
acerca do meu trabalho, e que andamos a ser fotografados, e que
alguém nos tenta matar aos dois no mesmo dia? Eu não vou nessa
cena do jornalista. Quem é você realmente?
Ben voltou a encher os copos. O cigarro ardera todo. Atirou a beata
pela janela. Puxou do Zippo e acendeu outro.
Roberta tossiu quando o fumo se deslocou por cima da mesa na
sua direcção.
— Tem mesmo de fazer isso?
— Tenho.
— É proibido.
— Estou-me a cagar — disse ele.
— Então, vai contar-me a verdade... ou limito-me a chamar a
polícia?
— Acha que vão acreditar em si desta vez?
O coração do condutor do comboio ainda lhe estava na boca
enquanto seguia mais à frente na linha. Quando as luzes do comboio
tinham apanhado os dois carros no seu trajecto, era demasiado tarde
para poder fazer alguma coisa. Respirou fundo. Jesus. Nunca
apanhara mais do que um veado na linha. Não gostava de pensar no
que poderia ter acontecido se os carros não tivessem saído do
caminho a tempo.
Mas que género de idiota tentaria passar por debaixo das barreiras
da passagem de nível com um comboio a chegar? Miúdos,
provavelmente, a fazer asneiras com carros roubados. O condutor
deixou escapar um longo suspiro enquanto o batimento do coração
voltava ao ritmo normal, e depois pegou no aparelho de rádio.
— Oh, foda-se.
— Eu disse-vos que devíamos ter ficado por lá.
Os três homens encontravam-se sentados no Audi numa zona com
vista para a linha de caminho-de-ferro onde tinham deixado o
Mercedes. Naudon disparou um olhar cáustico para os seus colegas e
recostou-se no assento. Enquanto Berger e Godard se tinham ficado
a rir no bar, ele estivera a ouvir a rádio. Se tivesse havido um
acidente ferroviário seria noticiado. Nada — portanto continuara a
importunar os outros acerca disso até que finalmente tinham cedido,
só para o calarem.
E tivera razão. Nenhuns destroços, nenhum comboio descarrilado,
nenhum inglês morto. O Mercedes vazio encontrava-se a uns metros
dos carris, e certamente que não tinha o ar de um carro que fora
atingido por um comboio a alta velocidade.
Pior, não se encontrava só. A carroçaria escura reflectia as luzes
giratórias azuis de dois carros-patrulha da polícia estacionados de
cada um dos lados.
— Isto é fodido — exalou Berger, agarrando-se ao volante.
— Pensei que tinhas dito que os polícias nunca vinham para estes
lados — disse Godard. — Foi só por isso que escolhemos a porra
deste sítio, não foi?
— Eu disse-vos — repetiu Naudon lá de trás.
— Como é que...
— Bom, rapazes, o patrão não vai ficar nada satisfeito.
— É melhor ligar-lhe.
— Eu não lhe ligo. Liga-lhe tu.
Os agentes da polícia passaram o cenário a pente fino, feixes de
lanternas a dardejar para aqui e para ali como holofotes enquanto os
rádios estalavam e silvavam lá atrás.
— Eh, Jean-Paul — disse um deles, segurando um emblema
rachado da grelha de um Citroen que encontrara caído na terra. —
Pedaços de vidro de faróis por todo o lado nesta área — acrescentou.
— O condutor do comboio falou num Citroen 2CV — retorquiu
outro.
— Para onde terá ido?
— Não para muito longe, de certeza. Há líquido refrigerante por
todo o lado.
Dois outros agentes produziam feixes de luz no interior da
limusina. Um deles vislumbrou um pequeno objecto brilhante caído
na zona para os pés do compartimento traseiro. Sacou de uma
esferográfica e usou-a para apanhar o invólucro vazio.
— Olá, o que é isto? Um invólucro de 9 mm. — Cheirou-o, sentindo
o aroma da cordite. — Foi disparado recentemente.
— Ensaca isso.
Um outro polícia encontrou algo, um cartão caído no assento.
Piscou os olhos com o brilho da sua Maglite.
— Um nome estrangeiro qualquer.
— O que achas que se passou aqui?
— Quem sabe?
Vinte minutos depois chegou o camião de reboque da polícia. Com
o girar das luzes azuis e cor de laranja o Mercedes foi içado e levado,
com um carro da polícia na frente e outro a fechar a retaguarda. Os
carris foram deixados na escuridão silenciosa.
Capítulo 16
Roma

Os dois homens que tinham ido buscar Giuseppe Ferraro a casa


nessa noite e levado de carro para fora da cidade, escoltavam-no
agora na grande escadaria que levava à cúpula da villa renascentista.
Mal lhe tinham dirigido a palavra durante todo o caminho. Não fora
necessário -Ferraro conhecia as razões para isto, e o motivo pelo qual
o arcebispo o mandara buscar. Os joelhos encontravam-se um pouco
fracos quando foi introduzido na sala abobadada e a porta se fechou
atrás de si. A enorme sala estava às escuras com excepção da luz das
estrelas e da Lua que a penetravam através das muitas janelas em
redor da sua circunferência.
Massimiliano Usberti encontrava-se junto a uma secretária no
lado oposto. Voltou-se lentamente para encarar Ferraro.
— Arcebispo, eu posso explicar. — Ferraro estivera a trabalhar na
sua história desde que recebera a chamada de Paris ao fim da tarde.
Ficara a aguardar que Usberti o convocasse para a villa... apenas não
esperara que fosse tão depressa. Começou a enumerar as suas
desculpas. Contratara idiotas que o tinham deixado ficar mal.
Não era culpa dele que o inglês tivesse escapado. Lamentava,
lamentava imenso, e não voltaria a acontecer.
Usberti caminhou através da sala na sua direcção. Ergueu a mão
num gesto que silenciou o frenético discorrer de lamentos e pedidos
de desculpa.
— Giuseppe, Giuseppe, não precisas de te explicar — disse com um
sorriso, pondo o braço em redor dos ombros do homem mais jovem.
— Somos todos humanos. Todos cometemos erros. Deus perdoa.
Ferraro ficou atónito. Esta não era a recepção por que esperara. O
arcebispo conduziu-o a uma janela iluminada pela lua.
— Que noite gloriosa — murmurou. — Não achas que assim é, meu
amigo?
— ... Sim, arcebispo, está linda.
— Não nos faz sentir tão felizes por estarmos vivos?
— Faz com certeza, arcebispo.
— É um privilégio viver na terra de Deus.
Ficaram ali a olhar pela janela para o céu negro de tinta. As
estrelas eram aos milhões, a Lua parecia de cristal e a Via Láctea
arqueava-se, cintilante em tons de pérola, sobre as colinas romanas.
Passados alguns minutos, Ferraro perguntou:
— Arcebispo, posso ter a sua permissão para sair agora?
Usberti pousou-lhe a mão no ombro.
— Naturalmente. Mas antes de ires, gostaria de te apresentar a um
bom amigo meu.
— É uma honra, arcebispo.
— Eu chamei-te aqui para que o pudesses conhecer. O nome dele é
Franco Bozza.
Ferraro quase desmaiou com o choque ao ouvir aquelas palavras.
— Bozza! O inquisidor? — Subitamente tinha o coração a martelar-
lhe na base da garganta, a boca seca e a sentir-se doente.
— Vejo que já ouviste falar do meu amigo — disse Usberti. — Ele
vai tomar conta de ti daqui para a frente.
— O quê? Mas, arcebispo, eu... — Ferraro caiu de joelhos. —
Imploro-lhe...
— Ele aguarda por ti lá em baixo — retorquiu Usberti, carregando
no botão de uma campainha na sua secretária. Enquanto Ferraro era
arrastado aos gritos pelos dois homens que o tinham trazido, o
arcebispo fez o sinal da cruz e murmurou uma oração em latim pela
alma do homem.
— In nomine patris et filii et spiritus sancti, ego te absolvo...
Capítulo 17
— Então, agora para onde? — perguntou Roberta quando o táxi
chegou ao bar para os apanhar.
— Bem, para começar você vai para casa — retorquiu Ben.
— Está a gozar comigo? Eu não vou voltar para aquele sítio.
— Qual é a morada do seu assistente?
— Para que é que a quer? — perguntou ela, entrando no carro.
— Quero fazer-lhe umas quantas perguntas.
— E você acha que eu não vou também? Tenho umas quantas
perguntas que gostaria de fazer àquele filho-da-puta.
— Você devia ficar fora disto — disse-lhe ele. Sacou da carteira.
— O que está a fazer? — perguntou ela enquanto ele contava as
notas.
Ben estendeu a mão com o dinheiro, oferecendo-o.
— Está aí que chegue para poder passar a noite num hotel decente
e apanhar o avião da manhã de regresso aos Estados Unidos. Aceite-
o.
Roberta olhou com desprezo para as notas, depois abanou a cabeça
e afastou-as.
— Ouça, companheiro, eu estou tão envolvida nisto quanto você.
Quero descobrir o que diabo se está a passar. E nem pense em
deixar-me para trás. — Antes que ele pudesse responder, Roberta
inclinou-se para a frente por entre os bancos e deu ao motorista uma
morada no décimo arrondissement de Paris. O motorista murmurou
algo para si próprio e arrancou.
Ao chegarem a casa de Michel, deram com a rua iluminada por
luzes azuis a piscar. Uma ambulância e alguns carros da polícia
estavam estacionados no exterior do prédio, e juntavam-se pessoas
na zona da entrada. Ben pediu ao motorista do táxi para esperar, e
ele e Roberta furaram por entre a multidão.
No passeio tinham-se juntado grupos de pessoas dos bares ali
próximos, observando, apontando, tapando as bocas com o choque.
Uma equipa de paramédicos empurrava uma maca saída da entrada
do prédio de Michel. Não estavam com pressa. O corpo na maca
encontrava-se coberto por um lençol branco da cabeça aos pés. Na
área onde o lençol tapava a cabeça, uma enorme mancha de sangue
repassava o tecido. A maca foi carregada para as traseiras da
ambulância e as portas foram fechadas.
— O que aconteceu aqui? — perguntou Ben a um gendarme.
— Suicídio — respondeu concisamente o polícia. — Um vizinho
ouviu o tiro.
— Terá sido um rapaz chamado Michel Zardi? — perguntou
Roberta. De algum modo ela sabia.
— Conhecia-o? — perguntou o polícia sem emoção. — Passe,
mademoiselle. O chefe pode querer falar consigo.
Roberta avançou na direcção da entrada. Ben pegou-lhe no pulso.
— Vamos embora daqui — avisou ele. — Não há nada que possa
fazer.
Roberta arrancou o braço do aperto dele.
— Eu quero saber — retrucou ela, e arrancou na frente dele,
passando pela fita da polícia e indo direita à porta. Ben seguiu-a,
praguejando. Uma multidão de polícias bloquearam-lhe o caminho.
— Que cena — dizia um agente para outro. — Nem a própria mãe o
reconheceria. Estoirou com a cara toda.
Entre os agentes uniformizados, um tenente à paisana, gordo e
baixo, dava ordens. Olhou ameaçadoramente para Roberta quando
esta se aproximou.
— Você é da imprensa? Pisgue-se, não há aqui nada para ver.
— Você é o agente encarregado? — exigiu ela. — Eu sou a doutora
Roberta Ryder, o Michel é meu... — Interrompeu-se. — Era meu
empregado. Foi o corpo dele que levaram mesmo agora daqui, não
foi?
— íamos a passar — intrometeu-se Ben, chegado entretanto.
Murmurou-lhe ao ouvido em inglês: — Vamos manter isto curto e
simples, está bem?
— E o seu nome, monsieur? — perguntou o polícia à paisana,
fazendo girar o olhar severo na direcção de Ben.
Ben hesitou. Se desse um nome falso, a reacção de Roberta
denunciá-lo-ia.
— O nome dele é Ben Hope — atalhou ela, e Ben estremeceu
interiormente. — Ouça — prosseguiu ela numa voz alta e firme,
olhando o tenente nos olhos. — O Michel não se matou. Foi
assassinado.
— A madame vê assassínios por todo o lado — disse alguém atrás
deles, e viraram-se. O coração de Roberta afundou-se ao reconhecer
o homem que entrava na sala. Era o jovem inspector da polícia com
que falara anteriormente no seu apartamento.
— Inspecteur Luc Simon — disse ele, caminhando vigorosamente
na direcção deles. Fixou Roberta com os olhos verdes. — Já a avisei
acerca disto. Pare de desperdiçar o nosso tempo. Isto é um simples
suicídio. Encontrámos uma nota... o que está aqui a fazer, em todo o
caso?
— Qual nota? — perguntou ela suspeitosamente.
Simon ergueu um pequeno saco de plástico transparente. No
interior, encaracolada no celofane, encontrava-se uma pequena folha
de bloco com umas poucas linhas escritas à mão. Simon fixou o
papel.
— Ele diz que já não valia a pena. Stresse, depressão, dívidas, os
problemas do costume. Estamos sempre a ver isto.
— Eh oui — disse o tenente, com um filosófico abanar de cabeça.
— La vie, cest de la merde.
— Cala-te, Rigault — rosnou-lhe Simon. — Madame, eu fiz-lhe uma
pergunta. O que está aqui a fazer? Já são duas vezes hoje, quando
sou chamado num falso alarme de homicídio, lá está você.
— Deixe cá ver essa treta dessa nota — disparou ela. — Ele não
escreveu nada disso.
— Peço desculpa — disse Ben para Simon, agarrando no braço de
Roberta e intervindo antes que ela pudesse falar de mais. — A minha
noiva está perturbada. Nós vamo-nos já embora. — Ben puxou-a
para o lado, deixando o inspector a fixá-los atentamente enquanto os
assistentes se reuniam à sua volta.
— A sua noiva! — silvou-lhe ela. — O que supostamente quer isso
dizer? E largue-me o braço, está a magoar-me.
— Cale-se. Você não quer passar as próximas dez horas a ser
chateada pela polícia, e eu também não.
— Não foi suicídio — insistiu ela.
— Eu sei — aquiesceu ele. — Agora ouça-me. Só temos alguns
segundos. Há alguma coisa aqui dentro que esteja diferente, mudada
de lugar, alterada seja como for?
— Andou aqui alguém a mexer. — Roberta moveu-se na direcção
da secretária e tentou não olhar para a enorme mancha vertical de
sangue na parede e no tecto. — A secretária está vazia, desapareceu o
computador do Michel.
— Rigault, ponha-me estas pessoas daqui para fora! Vá, mexam-
se!
— Simon gritava do outro lado da sala, apontando para eles.
— Já vimos o suficiente — disse Ben. — É tempo de sair daqui.
— Conduziu-a em direcção à porta, mas Simon interceptou-os. —
Espero que não esteja a pensar em sair da cidade, doutora Ryder?
Posso querer voltar a falar consigo.
Enquanto saíam do apartamento, Simon observou-os de sobrolho
carregado. Rigault concedeu-lhe um olhar cúmplice e bateu com um
dedo na cabeça.
— Americanos malucos. Vêem demasiados filmes de Hollywood.
Simon assentiu pensativamente.
— Talvez.
Capítulo 18
Montpellier, Sul de França

— Marc, passa-me a chave-de-fendas. Marc... Marc? Onde é que tu


estás, seu fedelho de merda? — O electricista desceu do escadote,
deixando os fios soltos pendurados, olhando ameaçadoramente em
redor. — Aquele sacaninha nunca há-de aprender nada. — Para onde
é que desaparecera agora?
O miúdo era um perigo. Desejava nunca lhe ter dado trabalho.
Natalie, a sua cunhada, apanhada pelo filho, não conseguia ver que
ele era apenas um falhado como o pai.
— Tio Richard, olhe para isto. — A voz excitada do aprendiz ecoou
pelo estreito corredor de betão. O homem mais velho pousou as
ferramentas, limpou as mãos ao fato-macaco e seguiu o som. No fim
do sombrio corredor encontrava-se uma alcova escura. A porta de
aço estava aberta. Degraus de pedra levavam a um espaço negro.
Richard espreitou lá para baixo.
— Que diabo andas tu aí a fazer?
— Tem de vir cá ver isto. — A voz do miúdo ecoava lá de dentro.
— É esquisito.
Richard suspirou e lá desceu os degraus. Deu consigo numa
enorme cave vazia. Colunas de pedra sustentavam o piso de cima.
— Então, é a porra de uma cave. Sai daí, não deves estar aqui. Pára
de desperdiçar tempo.
— Iá, mas olhe. — Marc acendeu a lanterna e Richard viu barras de
aço a brilhar no escuro. Nichos. Argolas presas à parede. Mesas de
metal.
— Vamos lá, põe-te na alheta.
— Então o que é isto?
— Não sei. Canis para cães... quero lá saber?
— Ninguém guarda cães numa cave... — As narinas de Marc
estremeceram com o cheiro do forte desinfectante. Agitou a lanterna
em redor e viu de onde vinha o cheiro, um corte no chão de betão que
levava a uma grande tampa de esgoto.
— Despacha-te, puto — resmungou Richard. — Assim vou chegar
tarde ao próximo trabalho, estás a atrasar-me.
— Só um minuto — disse Marc. Foi até junto da coisa brilhante que
vira nas sombras e apanhou-a do chão. Estudou-a na palma da mão,
interrogando-se sobre o que seria.
Richard caminhou até junto do rapaz, agarrou-o pelo braço e
puxou-o na direcção dos degraus.
— Olha — avisou ele. — Eu já trabalhava nisto ainda tu não eras
nascido. Uma coisa que aprendi, foi que se queres conservar o
trabalho metes-te na tua vida e manténs a boca fechada. Está bem?
— Está bem — articulou o rapaz. — Mas...
— Não há mas. Agora vem ajudar-me com a porra desta luz.
Capítulo 19
Paris

Ben trabalhara a solo nos últimos quatro anos. Apreciava a


liberdade que isso lhe dava, a possibilidade de dormir onde quisesse,
de se movimentar o mais rapidamente e para tão longe e o mais leve
quanto possível, o entrar e sair de lugares só e inconspícuo. Mais
importante que tudo, trabalhar sozinho significava que era
responsável única e exclusivamente por si próprio.
Mas agora encontrava-se sobrecarregado com esta mulher, e
estava a violar todas as suas regras.
Usou um trajecto complicado para regressar à casa segura. A
expressão perplexa de Roberta acentuou-se enquanto ele a conduzia
através da travessa lajeada, pelo parque de estacionamento
subterrâneo, e pela escada dos fundos até à porta blindada do seu
apartamento oculto.
— Você vive aqui?
— Lar, doce lar. — Ben trancou a porta atrás de si e marcou o
código do sistema de alarme. Ligou as luzes e Roberta olhou
estupefacta em redor. — O que é isto, minimalista neo-espartano?
— Quer um café? Algo para trincar?
— Café está bem.
Ben foi para a kitchenette e acendeu a boca de gás por debaixo da
sua pequena cafeteira. Passados alguns minutos, a cafeteira
borbulhou e ele serviu o café com leite quente tirado de uma
frigideira. Abriu uma lata de cassoulet, aqueceu-a e deitou o estufado
de salsichas com toucinho a ferver para cima de dois pratos. Ainda
tinha meia dúzia de garrafas de vinho tinto. Agarrou numa e sacou-
lhe a rolha.
— Devia comer qualquer coisa — disse ele, ao ver Roberta ignorar
o prato.
— Não tenho fome.
— Está bem. — Terminou o seu prato, depois puxou o dela para o
seu lado da mesa e abocanhou o resto do estufado com goladas de
vinho. Enquanto comia, podia ver que Roberta tremia, com a cabeça
entre as mãos. Levantou-se e colocou-lhe uma manta em redor dos
ombros. Ela ficou em silêncio mais alguns minutos. — Não consigo
parar de pensar no Michel — sussurrou.
— Ele não era seu amigo — recordou ele.
— Iá, eu sei, mas ainda assim... — Soluçou, limpou os olhos e
sorriu fracamente. — Mas que estúpida.
— Não, estúpida não. Você tem compaixão.
— Você diz isso como se fosse uma coisa rara.
— É mesmo uma coisa rara.
— Você tem alguma?
— Não. — Serviu o resto do vinho no seu copo. — Não tenho.
— Olhou para o relógio. — É tarde. Tenho trabalho para fazer de
manhã.
— Esvaziou o copo, saltou da cadeira, e agarrou num monte de
cobertores e numa almofada de cadeira.
— O que está a fazer?
— Estou a fazer-lhe a cama.
— Chama cama a isso?
— Bem, você podia ter ficado no Ritz se tivesse querido. Bem que
lhe fiz a oferta, lembra-se? — Ele viu o olhar dela. — É um
apartamento só com um quarto — acrescentou.
— Então você faz os seus convidados dormirem no chão?
— Se lhe servir de consolação, você é a primeira convidada que
aqui tive. Agora, pode dar-me a sua mala, por favor?
— O quê?
— Dê-me a sua mala — repetiu ele. Ben surripiou-lhe a mala e
começou a revistar o interior.
— Mas que diabo está você a fazer? — Roberta tentou puxar a mala
Para si. Ele afastou-a.
— Eu fico com isto — disse ele, metendo no bolso o telefone dela.
— Pode ficar com o resto.
— Porque é que me está a tirar o telefone?
— O que acha? Não quero que faça chamadas daqui nas minhas
costas.
— Chiça, você tem mesmo um grande problema no que diz respeito
à confiança.
Roberta não conseguiu dormir bem nessa noite, não conseguia
isolar-se da memória dos acontecimentos do dia. O que começara
como um dia normal pusera o seu mundo inteiro de pernas para o ar.
Talvez fosse doida, ficando aqui quando podia ter ficado com o
dinheiro e apanhar um avião para casa logo de manhã cedo.
Então e este Ben Hope? Aqui estava ela, trancada num
apartamento escondido com um tipo que só conhecera nesse mesmo
dia e do qual não sabia praticamente nada. Quem era ele? Ele era
atraente, e tinha aquele sorriso de vencedor. Mas também havia
aquela frieza, a maneira como ele a olhava com aqueles pálidos olhos
azuis e ela não era capaz de dizer o que ele estava a pensar.
Havia outro pensamento que não se ia embora. Era o
conhecimento de que andava alguém interessado na sua
investigação. Mesmo muito interessado. Suficientemente interessado
para matar por causa disso. Isso significava diversas coisas.
Significava que alguém estava a sentir-se ameaçado pelo que ela
tinha vindo a descobrir. O que significava que a sua investigação
tinha um valor real. Estava no caminho certo, e mesmo sendo a
posição em que se encontrava bastante perigosa, não conseguia
evitar sentir uma pontinha de excitação. Tinha de saber mais.
Roberta interrompeu os pensamentos e ergueu a cabeça da
almofada, tensa e à escuta. Uma voz. Lutou para se orientar na sala
escura e desconhecida. Após alguns segundos conseguiu-o e tornou-
se-lhe claro que o som vinha da porta do quarto. Era a voz de Ben.
Roberta não conseguia distinguir o que ele dizia. A voz cresceu em
volume, protestando contra qualquer coisa. Estaria ao telefone?
Levantou-se da cama improvisada e arrastou-se até à porta com a
diminuta luz do luar. Encostou suavemente o ouvido à porta, tendo o
cuidado de não fazer barulho, e escutou.
Ele não estava a falar lá dentro, ele gemia — e a voz soava dorida,
torturada. Ben murmurou algo que ela não apanhou, e então ele
gritou mais alto. Roberta estava prestes a abrir a porta quando
compreendeu que ele estava a sonhar. Não, não era um sonho. Era
um pesadelo.
— Ruth! Não vás! Não! Não! Não me deixes! — Os gritos
diminuíram para um gemido grave, e depois, ali mesmo no escuro
onde se encontrava, Roberta ouviu-o soluçar como uma criança
durante muito tempo.
Capítulo 20
Desde a sua infância desfavorecida na Sardenha rural, Franco
Bozza gostava de provocar dor. As suas primeiras vítimas tinham
sido insectos e vermes, e enquanto rapaz passara muitas horas de
contentamento a desenvolver maneiras cada vez mais elaboradas de
os dissecar lentamente e a observá-los a definhar e morrer. Antes dos
oito anos de idade, Franco progredira para praticar os seus talentos
em pequenas aves e mamíferos. As primeiras a sofrer foram umas
avezinhas num ninho. Mais tarde, os cães locais começaram a
desaparecer. Enquanto Franco prosseguia a sua adolescência tornou-
se um mestre torturador e um perito a infligir agonia. Adorava fazê-
lo.
Era a coisa que mais o fazia sentir vivo.
Quando chegou a altura de sair da escola aos treze anos, tinha
adquirido um quase igual fascínio pelo catolicismo. Ficava
arrebatado pelas mais cruas imagens da tradição cristã — a coroa de
espinhos, as chagas de Cristo, a maneira como os pregos tinham sido
martelados na cruz através das mãos e dos pés. Franco aperfeiçoou
as básicas capacidades literárias que aprendera na escola apenas
para poder ler acerca da deliciosamente macabra história da Igreja.
Um dia cruzou-se com um velho livro que descrevia a perseguição de
heréticos pela Inquisição medieval. Leu como, depois da conquista
de uma fortaleza cátara no ano 1210, o comandante das forças da
Igreja ordenara que a cem heréticos cátaros fossem cortadas as
orelhas, narizes e lábios, e lhes arrancassem os olhos, para serem
exibidos como exemplo perante os baluartes de outros castelos
heréticos. O rapaz ficou profundamente inspirado por tal macabro
génio, e ficava acordado de noite a desejar poder de alguma forma ter
participado na acção.
Franco apaixonou-se pela arte religiosa, e caminhava quilómetros
até à cidade mais próxima para visitar a biblioteca e babar-se perante
impressões históricas representando cruas imagens de opressão
religiosa. O seu quadro preferido era O Carro de Feno de
Hieronymus Bosch, pintado na década de 1480, mostrando horríveis
torturas às mãos de demónios, corpos penetrados por lanças e
lâminas, e — o mais excitante — uma mulher nua. Não era a nudez
em si mesma que lhe provocava tais sufocantes sentimentos de
luxúria. Os braços da mulher encontravam-se atados atrás das
costas, e tudo o que cobria a sua nudez era um sapo negro afixado
nos genitais. Era uma bruxa. Seria queimada. Foi isto que gerou tão
intensa, quase frenética, excitação em Franco.
Franco tomou conhecimento dos antecedentes históricos que
precederam o quadro de Bosch, a furiosa misoginia da Igreja Católica
durante o século XV quando o papa Inocêncio VIII emitira a sua Bula
das Bruxas, o documento que dava o selo de aprovação do Vaticano à
tortura e queima de mulheres suspeitas, por vagamente que fosse, de
ter comércio com o Diabo. Franco partiu daí para descobrir o livro
conhecido por Malleus Malificarum, o Martelo das Bruxas, o manual
oficial da Inquisição de tortura e sadismo para aqueles que serviam
Deus ao encharcar-se a si próprios de sangue herético. O livro
instilou no jovem Franco o mesmo violento horror à sexualidade
feminina que permeara a fé cristã medieval. Uma mulher que
praticasse sexo, que dele gostasse, não se limitava a isso, devia ser a
noiva do Diabo. O que significava que tinha de morrer. De uma
forma horrível. Essa era a parte de que ele mais gostava.
Franco tornou-se um perito no passado sangrento da Inquisição
Católica e na Igreja que a dera à luz. Enquanto outros admiravam o
maravilhoso talento artístico de Boticelli e Miguel Ângelo na Capela
Sistina pelo seu próprio valor, Franco delirava com o facto de que
enquanto estas obras de arte estavam a ser comissionadas pela
Igreja, um quarto de milhão de mulheres em toda a Europa estavam
a ser queimadas em fogueiras com a bênção do papa. Quanto mais
aprendia, mais começava a considerar que subscrever a fé católica e
o seu legado era, tacitamente ou não, desposar séculos de sistemático
e incontido assassínio em massa, guerra, opressão, tortura e
corrupção. Encontrara o seu apelo espiritual, e regozijou-se nele.
Finalmente, em 1977, chegou o momento de Franco casar com a
sua prometida, a filha do armeiro local. Concordou relutantemente
em casar com Maria, para agradar aos pais.
Na sua noite de núpcias, descobriu que era completamente
impotente. Na altura, isto não lhe causou qualquer preocupação.
Nunca se tinha importado por ser ainda virgem, porque já sabia que
a única coisa que o conseguia excitar era quando tinha a faca na mão
e podia infligir dor. Era isso que o movia e o fazia sentir-se poderoso.
A carne feminina não possuía qualquer atractivo para si.
Mas quando as semanas se transformaram em meses e ele
continuou a não mostrar qualquer interesse sexual nela, Maria
começou a atormentá-lo. Uma noite foi longe de mais.
— Vou descobrir um homem com tomates a sério — gritou-lhe ela.
— E depois toda a gente vai ficar a saber que o meu marido não é
senão um inútil castrato.
Franco era já poderoso e musculado aos vinte anos. Enraivecido,
agarrou-a pelo cabelo e arrastou-a para o quarto onde a atirou
brutalmente para cima da cama, deixou-a semiconsciente e retalhou-
a com a faca.
Essa fora a noite em que Franco fizera uma descoberta que lhe
mudara a vida, a de que afinal se conseguia excitar com o corpo de
uma mulher. Não lhe tocou — só o aço lhe tocou. Deixou Maria atada
à cama, mutilada e permanentemente desfigurada. Fugiu da aldeia a
meio da noite. O pai e os irmãos de Maria vieram atrás dele, com
votos de vingança.
Franco nunca se aventurara mais do que a alguns quilómetros da
sua aldeia, e em breve se perdera, sem um cêntimo no bolso e
esfomeado na verdejante paisagem rural da Sardenha. Foi à porta de
um bar nos arredores de Cagliari, a esmolar comida, que o irmão
mais velho de Maria, Salvatore, o encontrou uma noite. Salvatore
aproximou-se sorrateiramente por detrás do alheado Franco e
cortou-lhe a garganta com a faca.
Um homem mais fraco teria caído e morrido, teria sido cortado às
postas. Franco encontrava-se meio morto de fome e encharcado no
sangue que espirrava do corte no pescoço. Mas a dor e o cheiro a
sangue deram-lhe novas forças, energia crua. Ficou de pé como um
animal ferido. Em vez de fugir, atacou. Se Salvatore tivesse trazido
uma arma de fogo nessa noite, teria sido diferente. Mas Franco tirou-
lhe a faca, dominou-o e extraiu-lhe o fígado. Lentamente.
Era a primeira vez que matava um homem, mas não seria a última.
Roubou o dinheiro do corpo de Salvatore, e fugiu para a costa onde
apanhou o ferry para o continente italiano. O corte na garganta
sarou, mas ele falaria num sussurro estrangulado para o resto da
vida.
Com a vendetta em curso contra ele, Franco Bozza estava exilado
da Sardenha. Viajou pelo Sul de Itália, vagabundeando de trabalho
em trabalho. Mas a luxúria por infligir dor nunca andava muito
longe, e antes dos vinte e quatro anos, os seus talentos estavam a ser
postos em prática por bandidos mafiosos que o empregavam para
espremer informações dos seus inimigos capturados. A reputação de
Franco Bozza enquanto torturador natural, calejado e de sangue-frio
em breve se disseminou pelo submundo. No que respeitava a
prolongar a vida e a maximizar a agonia, ele era o indisputado
maestro.
Quando Bozza — ou o Inquisidor, como agora gostava de ser
chamado — não se encontrava a praticar a sua arte nalgum infeliz
criminoso, palmilhava as ruas de noite e fazia das prostitutas as suas
presas, atraindo-as à morte com a voz sussurrante. Os seus
comoventes despojos começaram a aparecer em quartos de hotéis
manhosos por todo o Sul de Itália. Alastraram rumores acerca de um
"monstro", um maníaco que se saciava na dor e na morte da mesma
forma que um vampiro se saciava de sangue.
Mas o Inquisidor apagava sempre o seu rasto. O seu registo na
polícia era tão virginal como a sua sexualidade.
Um dia, em 1997, Franco Bozza recebeu uma inesperada chamada
telefónica — não do costumeiro rei do crime ou patrão da Mafia do
submundo, mas de um bispo do Vaticano.
Fora através das sombras do submundo que Massimiliano Usberti
ouvira falar deste Inquisidor. O notório zelo religioso do homem, a
sua absoluta devoção a Deus e a sua inflexível vontade de punir os
maus, eram exactamente as qualidades que Usberti queria na sua
nova organização.
Quando Bozza ouviu qual seria o seu papel, agarrou
imediatamente a oportunidade. Era perfeito para ele.
A organização chamava-se Gladius Domini. A Espada de Deus.
Franco Bozza acabara de se tornar a sua lâmina.
Capítulo 21
Paris

— Estou... Passe-me ao senhor Loriot, por favor?


— De momento ele encontra-se fora em negócios, senhor —
respondeu a secretária. — Só estará de volta em Dezembro.
— Mas ainda ontem eu recebi uma chamada dele.
— Receio que isso não seja possível — disse a secretária
irritadamente. — Ele já está na América há um mês.
— Lamento tê-la incomodado — disse Ben. — Fui obviamente mal
informado. Pode dizer-me se monsieur Loriot ainda vive na Villa
Margaux em Brignancourt?
— Brignancourt? Não, monsieur Loriot vive aqui em Paris. Acho
que deve ter um número errado. Bom dia. — A linha desligou-se.
Agora era claro. Loriot não lhe telefonara de todo — o acidente
com o comboio fora ideia de outra pessoa qualquer. Tal como
pensara. Era demasiado improvável.
Sentou-se e fumou, pensando no assunto. As provas apontavam
numa nova direcção. Ligara para o escritório de Loriot de casa de
Roberta. Michel Zardi estivera na sala com ele, escutara-o, apontara
o seu número. Tinha saído pouco depois — para comprar peixe para
o gato. Iá, e também para passar o número aos compinchas. Portanto
tinham-lhe telefonado fingindo ser Loriot. Era um risco — e se o
verdadeiro Loriot também tivesse ligado? Talvez tivessem
confirmado antes que ele se encontrava em viagem.
Não fora um plano perfeito, mas fora suficientemente bom.
Ben deixara-se apanhar como uma maçã de uma árvore, e apenas a
intervenção aleatória de Roberta o salvara de ser espalhado ao longo
de cem metros de via-férrea.
Sem ela, ainda o estariam a apanhar à colher de entre os intervalos
dos dormentes.
Estaria a perder qualidades? Isto não poderia acontecer de novo.
Também significava que as pessoas que andavam atrás de Roberta
Ryder eram as mesmas que também andavam atrás dele. Estavam a
levar este assunto muito a sério, e isso, gostasse-se ou não, atirava
Ben e Roberta para os braços um do outro.
Já estava acordado desde a alvorada e ponderara toda a manhã
sobre o que fazer com ela. No dia anterior, pensara que tinha de a
abandonar, subornar, forçá-la a regressar aos Estados Unidos. Mas
talvez não tivesse razão. Ela talvez o pudesse ajudar. Ela queria saber
o que se passava, e ele também. E Ben pressentia que, até ao
momento, ela queria ficar com ele, em parte por medo, em parte por
aguda curiosidade. Mas isso não duraria se ele continuasse a deixá-la
às escuras, excluindo-a, não confiando nela.
Sentou-se na cama e pensou no assunto até que a ouviu a cirandar
na sala ao lado. Levantou-se e abriu a porta. Roberta espreguiçava-se
e bocejava, com os lençóis amarrotados no chão a seus pés. O cabelo
encontrava-se desgrenhado.
— Vou fazer café, e depois vou sair daqui para fora — disse ele.
— A porta está aberta. É livre de partir.
Roberta olhou para ele, e nada disse.
— É altura de decidir — disse ele. — Vai ficar ou vai sair?
— Se ficar, tenho de ficar consigo.
Ele assentiu.
— Temos muita coisa em que pensar. E precisamos de fazer isto à
minha maneira.
— Agora já confiamos um no outro?
— Suponho que sim — disse ele.
— Fico.
Ben caminhou ao longo da fila de carros usados, inspeccionando-
os um a um. Algo veloz e prático. Não demasiado ostentoso, não
demasiado ostensivo.
— E este? — perguntou, apontando.
O mecânico limpou as mãos ao fato-macaco, deixando manchas
paralelas de óleo no tecido azul.
— Tem um ano, em perfeitas condições. Como é que vai pagar?
Ben deu uma palmada no bolso.
— Pode ser em dinheiro?
Dez minutos depois, Ben acelerava o Peugeot 206 Sport na Avenue
de Gravelle na direcção da principal circular de Paris.
— Bem, para um jornalista você parece mesmo gastar dinheiro que
se farta, Ben — disse a seu lado Roberta.
— Muito bem, é altura de dizer a verdade. Eu não sou jornalista -
confessou ele, abrandando com o intenso trânsito na aproximação à
Periphérique.
— Ah. Eu sabia. — Roberta bateu palmas. — É-me permitido saber
o que você faz mesmo, senhor Benedict Hope? É esse o seu nome
verdadeiro, já agora?
— É o meu nome verdadeiro.
— É um nome simpático.
— Demasiado simpático para um tipo como eu?
Roberta sorriu.
— Eu não disse isso.
— Quanto ao que faço — disse ele -, suponho que pode dizer-se que
sou alguém que encontra coisas. — Ben infiltrou-se no trânsito,
aguardou por uma abertura, e a aceleração do pequeno carro
desportivo pressionou-os contra os bancos enquanto a melodiosa
nota do motor se elevava para um tom agradável.
— Encontra que coisas? Problemas?
— Bem, sim, por vezes sou alguém que encontra problemas —
disse ele, permitindo-se um sorriso seco. — Mas não estava à espera
de tantos problemas desta vez.
— E então do que anda à procura? E porque é que veio ter comigo?
— Quer mesmo saber?
— Quero mesmo saber.
— Ando a tentar encontrar o alquimista Fulcanelli.
Roberta arqueou uma sobrancelha.
— Ceeerto... hum-hum. Continue.
— Bem, aquilo de que ando realmente à procura é de um
manuscrito que ele supostamente teria em seu poder, ou que teria
escrito... Não sei grande coisa acerca disso.
— O manuscrito Fulcanelli... Esse velho mito.
— Ouviu falar dele?
— Claro, já ouvi falar dele. Mas nesta vida ouve-se falar de muitas
coisas.
— Acha que não existe.
Roberta encolheu os ombros.
— Quem sabe? É como o Santo Graal da alquimia. Alguns dizem
que sim, alguns dizem que não, ninguém sabe o que é ou o que
contém, ou até mesmo se realmente existe.
O que quer dele, em todo o caso? Você não parece ser do género de
quem gosta destas coisas.
— Que género é esse?
Ela bufou.
— Sabe qual é um dos maiores problemas da alquimia? As pessoas
que giram em volta dela. Ainda não conheci nenhum que não fosse
passado dos carretos.
— Esse é o primeiro elogio que me fez.
— Não o leve a sério. Em todo o caso, você não respondeu à
pergunta.
Ben fez uma pausa.
— Não é para mim. Estou a trabalhar para um cliente.
— E esse cliente acredita que o manuscrito pode ajudar a curar
uma doença qualquer, certo? Por isso você estava tão interessado na
minha investigação. Você anda à procura de uma qualquer espécie de
cura medicinal para alguém. O cliente está doente?
— Digamos apenas que ele está desesperado por obtê-lo.
— Pois, deve estar mesmo.
— Interrogava-me se o seu elixir das moscas lhe poderia ser de
alguma utilidade.
— Já lhe disse. Ainda não está pronto. E eu nem sequer o
experimentaria num ser humano. Seria uma total falta de ética. Já
para não falar na prática de medicina sem uma licença. Já estou
suficientemente na merda neste momento, segundo parece.
Ben encolheu os ombros.
— Então, Ben, vai acabar por me dizer onde vamos neste seu novo
brinquedo todo giro?
— O nome Jacques Clément significa alguma coisa para si? —
perguntou ele.
Ela assentiu.
— Era o aprendiz de Fulcanelli nos anos vinte. — Roberta
disparou-lhe um olhar interrogativo. — Porquê?
— A história é a seguinte: Fulcanelli passou certos documentos a
Clément antes de desaparecer — informou Ben. Roberta estava à
espera de mais, de modo que ele prosseguiu.
— De qualquer maneira, isso foi em 1926. Clément morreu
entretanto, morreu já há muito tempo. Mas quero saber mais acerca
do que quer que fosse que Fulcanelli lhe deu.
— Como é que pode descobrir?
— Uma das primeiras coisas que fiz quando cheguei a Paris há três
dias foi verificar se havia família sobrevivente. Pensei que talvez
pudessem ajudar.
-E?
— Localizei o filho, André. Um banqueiro rico, reformado. Ele não
foi muito acolhedor. Na verdade, assim que referi o Fulcanelli, ele e a
mulher mandaram-me basicamente pastar.
— É o que acontece quando se fala a alguém de alquimia — disse
Roberta. — Junte-se ao clube.
— De qualquer maneira, não pensei que voltasse a ouvir falar deles
— prosseguiu. — Mas esta manhã, enquanto você ainda dormia,
recebi uma chamada.
— Deles?
— Do filho deles, Pierre. Tivemos uma conversa interessante.
Acontece que havia dois irmãos, André e Gaston. O André foi o bem-
sucedido, e o Gaston era a ovelha negra da família. O Gaston queria
continuar o trabalho do pai, o qual o André detestava, via-o como
feitiçaria.
— Está-se mesmo a ver.
— E eles basicamente deserdaram o Gaston. Era um embaraço
para a família. Por esta altura eles já não terão nada a ver com ele.
— O Gaston ainda é vivo?
— Aparentemente sim. Vive a alguns quilómetros daqui, numa
velha quinta.
Roberta recostou-se no assento.
— E é para aí que nos dirigimos?
— Não fique demasiado entusiasmada. Ele é provavelmente um
daqueles marados... como é que lhes chamou?
— Passados dos carretos. Termo técnico.
— Vou tomar nota disso.
— Então você pensa que o Gaston Clément pode ainda ter aqueles
papéis, ou o que quer que fosse que o Fulcanelli passou ao pai dele?
— Vale a pena tentar.
— De qualquer maneira, estou certa de que tudo isto é muito
interessante — disse ela. — Mas eu pensava que estávamos a tentar
descobrir que raio se anda a passar e porque anda alguém a tentar
matar-nos?
Ben disparou-lhe um olhar de relance.
— Ainda não acabei. Há mais uma coisa que o Pierre Clément me
contou esta manhã. Eu não fui a última pessoa a estabelecer contacto
com o pai dele para fazer perguntas acerca do Fulcanelli. Ele disse
que há dois dias apareceram lá três homens a fazer as mesmas
perguntas, e a fazer perguntas também sobre mim. De alguma forma
tudo isto está relacionado... você, eu, Michel, as pessoas que andam
atrás de nós, e o manuscrito.
— Mas como? — Roberta abanou a cabeça, confusa.
— Não sei como.
A questão era, pensou para si próprio, teriam os três homens
sabido de Gaston Clément? Podia estar a meter-se noutra armadilha.
Em cerca de uma hora chegaram à decadente quinta onde Pierre
Clément dissera que vivia o seu tio. Encostaram o carro num recanto
arborizado a algumas centenas de metros mais acima.
— É este o lugar — disse Ben, consultando o mapa improvisado
que fizera a partir das indicações.
As nuvens cinzentas lá em cima ameaçavam chuva enquanto
caminhavam na direcção da quinta. Sem deixar que Roberta visse,
Ben fez saltar em silêncio o botão de mola do coldre e conservou a
mão a pairar junto ao peito quando chegaram ao pátio empedrado.
Havia construções desertas e degradadas em ambos os lados. Um
celeiro de madeira, alto e delapidado, surgia por detrás de um curral
desmantelado.
As janelas com vidros partidos tinham pranchas pregadas por
cima. Um lento encaracolar de fumo erguia-se a partir de uma
chaminé de metal enegrecido.
Ben olhou cautelosamente em redor, pronto para o que desse e
viesse. Não se via mais ninguém por ali.
O celeiro parecia vazio. Lá dentro, o ar era espesso e fumarento e
carregado com um desagradável fedor a lixo e estranhas substâncias
em combustão. O edifício era um grande espaço, diminutamente
iluminado por leitosos raios de sol que brilhavam por entre as frestas
das pranchas e através das poucas janelas poeirentas. Aves
chilreantes voavam para dentro e para fora de um buraco bem lá no
alto da empena. Num dos lados do celeiro erguia-se uma plataforma
suportada por estacas de madeira crua que sustinha uma tosca
cadeira de braços, uma mesa com uma televisão antiga e uma cama
com um monte de cobertores sujos. No outro lado encontrava-se
uma enorme fornalha fuliginosa, com a portada de metal negro
aberta alguns centímetros, exsudando um fio de fumo escuro e um
cheiro pungente. A fornalha era rodeada por mesas improvisadas
cobertas de livros, papéis, contentores de metal e de vidro ligados
por tubagens de borracha ou de Perspex. Líquidos estranhos em
banho-maria sobre bicos de Bunsen alimentados por garrafas de gás
que deixavam escapar vapores acres. Amontoados em cada um dos
cantos sombrios estavam pilhas de sucata, caixotes velhos,
contentores quebrados, filas de garrafas vazias.
— Que pocilga — exalou Roberta.
— Pelo menos não está cheio de moscas.
— Ah, ah. — Roberta produziu um riso amarelo. — Parvalhão -
acrescentou em voz baixa.
Ben dirigiu-se a uma das mesas, onde algo lhe despertara a
atenção. Era um velho manuscrito desmazelado com os cantos
incrustados de pedaços de cristal de quartzo.
Pegou-lhe e este desenrolou-se, espalhando uma nuvem de
partículas de pó que apanharam o raio de luz vindo da janela mais
próxima. Ben trouxe o manuscrito para o percurso do raio de sol,
desdobrando-o gentilmente para ler a escrita esbatida.

Se a erva ch-sheng pode fazer com que vivamos mais tempo


Certamente que vale a pena tomar este elixir?
Pela sua natureza o ouro não pode decair ou perecer
E é de todas as coisas a mais preciosa.
Se o alquimista criar este elixir
A duração da sua vida tornar-se-á eterna
Cabelos que eram brancos voltam agora todos a ser pretos
Dentes que tinham caído voltarão a crescer
O velho senil é mais uma vez o jovem luxuriante
A velha desdentada é mais uma vez a donzela
Aquele cuja forma mudou escapa dos perigos da vida.

— Encontrou alguma coisa? — perguntou Roberta, espreitando-lhe


por cima do ombro.
— Não sei. Poderá ser interessante, talvez.
— Deixe-me ver? — Percorreu o pergaminho com os olhos. Ben
passou a mesa em revista em busca de mais coisas daquele género,
mas tudo o que conseguiu encontrar no meio dos rolos amontoados e
das pilhas de papel sujo com as pontas torcidas foram diagramas
abstrusos, cartas e listas de símbolos. Suspirou. — Você percebe
alguma coisa destas cenas?
— Hum, Ben?
Ben soprou o pó a um livro antigo.
— Que foi? — articulou ele, escutando-a apenas com meio ouvido.
Ela acotovelou-o.
— Temos companhia.
Capítulo 22
A mão de Ben voou para a arma. Mas quando se virou e viu o
homem que se aproximava deles, deixou cair o braço ao lado do
corpo.
Os olhos do velho faiscavam selvaticamente por detrás do
comprido e emaranhado cabelo grisalho que caía para se misturar
com um matagal de barba. Mancou rapidamente na direcção deles
com uma bengala, as botas a arrastarem-se no chão de cimento.
— Pouse isso! — gritou rudemente, agitando um dedo ossudo para
Roberta. — Não toque nisso!
Roberta recolocou prontamente o pergaminho em cima da mesa,
onde este se voltou a enrolar. O velho agarrou-o, apertando-o
furiosamente contra o peito. Vestia um sobretudo antigo e
emporcalhado que lhe caía em tiras. A sua respiração era penosa e
assobiante.
— Quem são vocês? — exigiu ele, descobrindo dentes enegrecidos.
— O que estão a fazer na minha casa?
Roberta olhou-o fixamente. O homem parecia que tinha passado
os últimos trinta anos a viver ao relento debaixo das pontes de Paris.
Jesus, pensou ela. Eu ando a tentar convencer o mundo a levar estes
tipos a sério?
— Nós estamos à procura de monsieur Gaston Clément — disse
Ben. — Peço desculpa, a porta estava aberta.
— Quem são vocês? — repetiu o velho. — Polícia? Deixem-me em
Paz. Vão-se foder. — Retirou-se na direcção das sombras, agarrado
ao papel enrolado e agitando a bengala na direcção deles.
— Não somos da polícia. Gostávamos apenas de lhe fazer algumas
perguntas.
— Eu sou Gaston Clément, o que querem de mim? — silvou o
velho. Os joelhos pareceram ceder subitamente debaixo dele, e
tropeçou, deixando cair o pergaminho e a bengala.
Ben ergueu-o e ajudou-o a chegar à cadeira. Ajoelhou-se junto ao
velho alquimista enquanto este tossia espasmodicamente para um
lenço.
— O meu nome é Benedict Hope, e ando à procura de uma coisa.
Um manuscrito escrito por Fulcanelli... ouça, devo mandar chamar
um médico para si? O senhor não me parece bem.
Clément terminou o seu ataque de tosse e ficou a arquejar por um
minuto, limpando a boca. As mãos eram ossudas e artríticas, com
veias azuis a sobressair por entre a pálida pele translúcida.
— Eu estou bem — coaxou. — A sua cabeça grisalha virou-se
lentamente para olhar Ben. — Você disse Fulcanelli?
— Ele foi o professor do seu pai, não é verdade?
— Sim, ele deu grande sabedoria ao meu pai — murmurou
Clément. Encostou-se na cadeira, como se estivesse a pensar.
Durante um minuto irrompeu numa algaraviada desarticulada,
parecendo confuso e distante.
Ben apanhou a bengala caída e colocou-a junto à cadeira do velho.
Desdobrou o pergaminho que caíra no chão.
— Será possível...
Clément pareceu voltar à vida quando viu o pergaminho nas mãos
de Ben. Um braço magricelas disparou e surripiou-o.
— Devolva-me isso.
— O que é isso?
— Que lhe importa a si? O Segredo da Vida Eterna. Chinês, século
II. É inestimável. — Os velhos olhos de Clément focaram-se mais
claramente em Ben. Ergueu-se vacilante, apontando um dedo
tremelicante. — O que quer de mim? — disse com a voz a tremer. —
Mais estrangeiros de merda que vieram roubar! — Agarrou a
bengala.
— Não, monsieur, nós não somos ladrões — assegurou-lhe Ben.
— Só queremos informação.
Clément cuspiu.
— Informação? Informação... foi o que aquele salaud do Klaus
Rheinfeld me disse. — Bateu com a bengala na mesa, fazendo voar
papéis. — O ladrão imundo daquele boche! — Voltou-se para eles. —
Agora ponham-se daqui para fora — gritou-lhes, com o cuspo a
escorrer-lhe dos cantos da boca. Dirigiu-se a um contentor de
equipamento e agarrou numa proveta cheia de um líquido verde
vaporoso, agitando-a ameaçadoramente à sua frente. Mas então os
joelhos cederam novamente e ele tropeçou e caiu. A proveta
esmagou-se no chão e o líquido verde salpicou por todo o lado.
Puseram novamente o velho Clément de pé e ajudaram-no a subir
os degraus para a plataforma onde ele tinha os seus aposentos.
Sentou-se na beira da cama, com ar frágil e doente. Roberta trouxe-
lhe um copo de água. Passado algum tempo acalmou-se e pareceu
mais disposto a falar com eles.
— Pode confiar em mim — disse-lhe sinceramente Ben. — Eu não
quero roubar-lhe nada. Pago-lhe em dinheiro se me ajudar. De
acordo?
Clément anuiu, bebericando a sua água.
— Óptimo. Agora, ouça com atenção. O Fulcanelli deu ao seu pai,
Jacques Clément, certos documentos, antes do seu desaparecimento
em 1926. Eu preciso de saber se o seu pai poderá ter tido na sua
posse um manuscrito alquímico dado pelo seu professor.
O velho abanou a cabeça.
— O meu pai tinha muitos papéis. Destruiu muitos deles antes de
morrer. — A face contorceu-se-lhe de fúria. — Dos que ele deixou, a
maior parte foi-me roubada.
— Pelo homem de nome Rheinfeld que referiu? — perguntou Ben.
— Quem era ele?
As faces enrugadas de Clément ficaram vermelhas.
— Klaus Rheinfeld — disse com uma voz cheia de ódio. — Meu
assistente. Ele veio para aqui para aprender os segredos da alquimia.
Chega aqui um dia, aquele miserável escanzelado de merda, só com a
malcheirosa camisa no corpo. Eu ajudei-o, ensinei-o, dei-lhe de
comer! — A ira do alquimista estava a fazer-lhe faltar o ar. — Confiei
nele. Mas ele traiu-me. Já não o vejo há dez anos.
— Está a dizer que o Klaus Rheinfeld roubou os documentos
importantes do seu pai?
— E também a cruz de ouro.
— Uma cruz de ouro?
— Sim, muito antiga e bela. Descoberta pelo Fulcanelli, há muitos
anos. — Clément interrompeu-se, tossindo e deitando perdigotos. —
Era a chave para um grande conhecimento.
O Fulcanelli passou a cruz ao meu pai mesmo antes de
desaparecer.
— Porque é que o Fulcanelli desapareceu? — perguntou Ben.
Clément disparou um olhar sombrio para Ben.
— Tal como eu, foi traído.
— Quem é que o traiu?
— Alguém em quem ele confiava. — Os lábios murchos de Clément
torceram-se num sorriso misterioso. Estendeu a mão para debaixo
da cama e, agarrando-o com um carinho reverencial, retirou um livro
velho. Encadernado num cabedal azul desgastado, parecia que
tinham andado ratos a mordiscá-lo durante décadas. — Está tudo
aqui.
— O que é isso? — perguntou Ben, espreitando o livro.
— O mestre do meu pai conta a história nestas páginas — retorquiu
Clément. — Isto era o seu Diário privado, a única coisa que o
Rheinfeld não me roubou.
Ben e Roberta trocaram olhares.
— Posso vê-lo? — perguntou Ben a Clément.
O alquimista abriu hesitantemente a capa para que Ben visse,
segurando o livro junto a si. Ben apanhou um relance de uma
caligrafia fora de moda.
— Isto são definitivamente os escritos do próprio Fulcanelli?
— Naturalmente — murmurou o velho, e mostrou-lhe a assinatura
no interior da capa.
— Monsieur, eu gostaria de lhe comprar este livro.
Clément bufou.
— Não se encontra à venda.
Ben pensou por momentos.
— E o Klaus Rheinfeld? — perguntou. — Sabe onde está ele agora?
O velho fechou o punho.
— A arder no inferno que é onde ele pertence, espero eu.
— Quer dizer que ele morreu?
Mas Clément estava longe dum dos seus ataques balbuciantes.
— Ele morreu? — repetiu Ben.
Os olhos do alquimista encontravam-se longe dali. Ben agitou a
mão na sua frente.
— Não me parece que vá conseguir tirar muito mais dele, Ben -
disse Roberta.
Ben assentiu. Colocou uma mão no ombro do velho e abanou-o
suavemente até ele voltar a si.
— Monsieur Clément, ouça com atenção e lembre-se disto. Tem de
sair daqui por uns tempos.
Os olhos do velho focaram-se novamente.
— Porquê? — grasnou.
— Porque há uns homens que podem cá vir. Não são homens
simpáticos, o senhor não quer conhecê-los, compreende? Eles
andaram a fazer perguntas em casa do seu irmão e podem saber
onde o encontrar. Receio que eles o queiram magoar. Portanto quero
que fique com isto.
— Ben sacou de um grosso maço de notas.
Os olhos de Clément abriram-se muito quando viu quanto ali se
encontrava.
— Para que é isso? — perguntou com voz tremida.
— É para que o senhor possa sair daqui por uns tempos — disse-
lhe Ben. — Arranje roupas novas, vá a um médico se precisar.
Apanhe um comboio para o mais longe possível e alugue uma casa
por um ou dois meses. — Meteu a mão no bolso e mostrou a Clément
outro maço de notas. — E dou-lhe também isto, se concordar em
vender-me aquele livro.
Capítulo 23
— Leitura interessante?
— Muito interessante — retorquiu ele, ausente, olhando-a da
secretária. Roberta estava sentada a olhar pela janela, bebericando
um café e com ar de entediada. Ben voltou ao Diário, virando
cuidadosamente as páginas amarelecidas pelo tempo e procurando
por entre as entradas compostas pela mão suave e elegante do
alquimista.
— Vale os trinta mil?
Ben não respondeu. Talvez valesse o que pagara a Clément, e
talvez não. Muitas das páginas pareciam estar em falta, outras
encontravam-se danificadas e não eram legíveis. Tivera esperanças
de que o Diário pudesse conter algumas pistas acerca do fabulado
elixir, talvez até uma receita de qualquer tipo. Enquanto folheava o
Diário compreendeu que era provavelmente uma expectativa
ingénua. Parecia ser um diário como qualquer outro, um relato do
dia-a-dia da vida do homem. O seu olhar assentou numa extensa
entrada e começou a ler.

9 de Fevereiro de 1924
A escalada da montanha foi longa e perigosa. Estou a ficar de
longe demasiado velho para este género de coisa. Muitas vezes
quase caí para a morte quando me encontrei dormente a seguir o
percurso centímetro a centímetro em rocha quase vertical e com a
neve que tombava a transformar-se em tempestade. Finalmente, lá
me arrastei para o cume da montanha e descansei o meu corpo
estafado por alguns momentos, tentando respirar, com os músculos
a tremer do esforço. Limpei a neve dos olhos e olhei para ver o
castelo arruinado à minha frente.
A passagem dos séculos não tem sido carinhosa para o que
outrora foi a orgulhosa fortaleza de Amauri de Lévis. Guerras e
pestes vieram e partiram, dinastias de guerreiros floresceram e
morreram, a terra foi passada de um governante para outro. Já lá
vão mais de cinco séculos desde que o castelo, por essa altura já
antigo e degradado, foi cercado, bombardeado e finalmente
destruído no curso de uma há muito esquecida disputa de clã. As
suas fortes torres redondas estão na maior parte reduzidas a
entulho, as paredes com as cicatrizes de batalhas cobertas de
musgo e líquenes. A certa altura o fogo deve ter devastado o
interior do castelo efeito desabar o telhado. O tempo, o vento, a
chuva, o sol fizeram o resto.
Grande parte das ruínas está coberta de tojo e silvas, e eu tive de
abrir um caminho através da arcada gótica da entrada principal.
Os portões de madeira apodreceram até ao nada e apenas restam
as suas enegrecidas dobradiças de ferro, penduradas dos cravos
enferrujados no arruinado arco de pedra. Quando passei o portão,
o silêncio de morte de um cemitério pairava sobre a armação vazia
e cinzenta. Desesperei de alguma vez encontrar o que me fizera cá
vir. Vagueei no interior do pátio com neve e olhei em redor para os
despojos das paredes e dos baluartes. No fundo de uma escadaria
em espiral encontrei a entrada de uma velha arrecadação, onde me
abriguei do vento e acendi uma pequena fogueira para me ir
aquecendo.
O nevão encurralou-me no interior das ruínas do castelo durante
dois dias. As escassas rações de pão e queijo que eu trouxera eram
suficientes para me sustentar, e eu tinha uma manta e um pequeno
tacho para derreter neve para beber. Passei o tempo a explorar as
ruínas, fervorosamente esperançado de que se provasse ser
verdadeiro o que as minhas investigações haviam revelado.
Eu sabia que o meu prémio, se é que existia, seria encontrado não
acima do solo no que restava dos baluartes das torres, mas algures
lá em baixo na rede de túneis e câmaras escavadas na rocha por
debaixo do castelo. Muitos dos túneis ruíram com o tempo, mas
outros permanecem intactos. Nos níveis mais baixos descobri
masmorras escuras, com os ossos dos seus miseráveis habitantes há
muito reduzidos a pó. Vagueando pelas passagens húmidas e
escuras e pelas escadarias em espiral à luz da minha candeia a óleo,
eu procurei e rezei.
Depois de muitas horas de cruel desapontamento rastejei através
de um túnel meio desabado bem abaixo do solo e dei comigo numa
câmara quadrada. Ergui a minha lanterna, reconhecendo o tecto
abobadado e os brasões de armas esfarelados da velha e gasta
xilogravura que descobrira em Paris. Naquele momento eu soube
que a minha busca terminara, e o meu coração pulou de alegria.
Circulei pela câmara até chegar ao sítio. Afastei para o lado
densas teias de aranha e soprei nuvens de pó, e as marcas no bloco
de pedra, suavizadas pelo tempo, apareceram perante mim. Como
eu soubera que o fariam, as marcas dirigiram-me para uma
determinada laje no chão. Escavei a terra acumulada nas
extremidades até ser capaz de enfiar os dedos por debaixo, então,
com grande esforço, ergui-a completamente. Quando vi o espaço
oco em pedra que a laje ocultara e compreendi o que tinha
descoberto, depois de uma vida inteira de busca, caí de joelhos com
silenciosas lágrimas de alívio e exultação.
O meu coração martelava temerosamente enquanto arrastava o
pesado objecto para fora do buraco e lhe limpava a sujidade e os
restos apodrecidos do invólucro de pele de ovelha. O guarda-jóias
em aço está bem preservado. Houve um silvo do ar que se escapava
quando eu forcei a caixa a abrir-se com a minha faca. Acedi ao
interior com dedos trementes, e à luz vacilante da minha candeia
bebi a visão da minha incrível descoberta.
Ninguém, em quase setecentos anos, pousou os olhos nestas
coisas preciosas. Que alegria!
Acredito que estes artefactos foram produzidos pelo trabalho dos
meus antepassados, os cátaros. São um trabalho de grande
mestria, que tem estado escondido das épocas e das gerações.
Juntos podem conter a chave do Segredo dos Segredos e o objectivo
de todo o nosso trabalho. É um milagre tão grandioso que receio
contemplar o seu poder...

Ben folheou mais algumas páginas, ávido por descobrir mais.

3 de Novembro de 1924
Era como eu suspeitava. O antigo pergaminho provou ser bem
mais difícil de decifrar do que eu antecipara a princípio. Por muitos
meses tenho trabalhado na tradução das suas línguas arcaicas, nas
suas tortuosas mensagens encriptadas, nas suas numerosas e
deliberadas decepções. Mas hoje, Clément e eu fomos finalmente
recompensados pela nossa longa labuta.
As substâncias foram fundidas num cadinho, na fornalha, depois
de terem sido reduzidas aos seus sais submetidas a preparações
especiais e a destilação. Houve um silvo que nos sobressaltou e
torrentes de vapor encheram o laboratório. Eu e Clément ficámos
atónitos com o aroma a terra fresca e a flores doces. A água
adquiriu uma cor dourada. A isto juntámos uma quantidade de
mercúrio e a solução foi deixada a arrefecer. Quando abrimos o
cadinho...

O resto da página estava comido pela humidade e pelos ratos.


— Merda — exalou Ben. Talvez afinal não houvesse nada de útil
nesta coisa. Continuou a leitura, fixando de perto a escrita
desmaiada. Nalguns sítios mal era visível por entre as manchas de
humidade.

8 de Dezembro de 1924
Como é que se testa um Elixir da Longa Vida? Preparámos a
mistura de acordo com as instruções pormenorizadas dos meus
antepassados. Clément, aquele adorável companheiro, estava com
receio de a tomar. Eu consumi até agora aproximadamente trinta
dracmas do doce líquido. Não observo qualquer efeito adverso. Só o
tempo dirá dos seus poderes de preservação da vida...

O tempo dirá, muito bem, pensou Ben. Frustrado, saltou algumas


Páginas e deu consigo a olhar para uma entrada de Maio de 1926 que
não se encontrava danificada e absolutamente intacta.

Esta manhã voltei à Rue Lepic depois do meu passeio diário para
ser recebido pelo mais pútrido fedor que emanava do meu
laboratório. Ainda ia a descer a escadaria para a cave e já sabia o
que acontecera, e tal como esperava, quando abri a porta do
laboratório, descobri o meu jovem aprendiz Nicholas Daquin
rodeado por nuvens de fumo e os destroços de uma experiência
disparatada.
Apaguei as chamas, e a tossir com o fumo voltei-me para ele. "Eu
avisei-te sobre este género de coisas, Nicholas", disse eu.
"Peço desculpa", retorquiu Nicholas com aquele olhar desafiante
dele. "Mas, mestre, eu quase consegui."
"As experiências podem ser perigosas, Nicholas. Perdeste o
controlo dos elementos. Equilibrar os elementos requer um toque
muito apurado."
Ele olhou para mim. "Mas o senhor disse-me que eu tinha jeito
para isto, mestre."
"E tens mesmo", retorqui eu. "Mas só a intuição não é suficiente.
O teu talento está por polir, meu amigo. Deves aprender a dominar
a impulsividade da tua juventude."
"Leva tudo tanto tempo a aprender. Eu quero saber mais. Quero
saber tudo."
O meu noviço de vinte anos é por vezes obstinado e arrogante,
mas que tem um grande talento não posso negar. Nunca antes me
cruzei com um jovem estudante tão ávido.
"Não podes esperar que eu condense em poucas lições três mil
anos de filosofia e os esforços de toda a minha vida", disse
pacientemente a Nicholas. "Os grandes segredos da natureza são
coisas que deves aprender lentamente, degrau a degrau. Assim é
com a alquimia."
"Mas, mestre, eu estou tão cheio de perguntas", protestou
Nicholas, fixando-me com os seus escuros e intensos olhos. "O
senhor sabe tanto. Odeio sentir-me tão ignorante."
Eu aquiesci. "Aprenderás. Mas deves aprender a controlar a tua
natureza obstinada, jovem Nicholas. Não é sensato tentar correr
quando ainda não se aprendeu a andar.
De momento deves confinar-te aos estudos teóricos."
O jovem sentou-se pesadamente numa cadeira, com ar agitado.
"Estou cansado de ler livros, mestre. Aprender a teoria do nosso
trabalho está tudo muito bem, mas eu preciso de algo prático, algo
que eu possa ver e tocar. Tenho de acreditar que há um propósito
no que fazemos."
Eu disse-lhe que compreendia. Enquanto o observava, preocupei-
me que demasiada aprendizagem teórica pudesse, no fim, afastar
este estudante extremamente dotado.
Eu próprio estou bem ciente de quão árida e infrutífera uma vida
de estudo parece sem a recompensa de um avanço real, um prémio
tangível.
Pensei no meu próprio prémio. Talvez se eu pudesse partilhar um
pouco daquele incrível conhecimento com Nicholas, isso poderia
certamente satisfazer a sua curiosidade ardente?
"Muito bem", disse eu depois de uma longa pausa. "Eu vou
deixar-te ver mais, algo que não se encontra nos teus livros."
O jovem ergueu-se de um salto, os olhos a faiscar de excitação.
"Quando, mestre? Agora?"
"Não, agora não", retorqui. "Não sejas tão impaciente, meu
jovem aprendiz. Em breve, muito em breve." Aqui ergui um dedo
avisador. "Mas lembra-te disto, Nicholas.
Nenhum estudante da tua idade virá a ser levado tão longe ou tão
rapidamente ao âmago da sabedoria alquímica. É para ti uma
pesada responsabilidade, e deves estar pronto a aceitá-la. Assim
que tiver partilhado contigo os maiores segredos, estes não podem
ser divulgados a ninguém. A ninguém, compreendes? Vou fazer-te
jurar este voto."
À sua maneira orgulhosa ele ergueu o queixo. "Eu juro esse voto
agora mesmo", declarou ele.
"Reflecte nisso, Nicholas. Não te precipites. É uma porta que, uma
vez aberta, não pode ser fechada."
Enquanto falávamos, Jacques Clément entrara e começara
tranquilamente a limpar os destroços da explosão. Depois de
Nicholas sair, Clément dirigiu-se a mim com um olhar apreensivo.
"Perdoe-me, mestre", disse ele hesitantemente. "Como sabe eu
nunca questionei as suas decisões..."
"Em que estás a pensar, Jacques?"
Jacques falou cuidadosamente. "Eu sei que tem uma grande
estima pelo jovem Nicholas. Ele é inteligente, e aplicado, disso não
há qualquer dúvida. Mas a sua natureza impetuosa... ele anseia por
conhecimento da mesma maneira que um homem ganancioso tem
luxúria pela riqueza. Há demasiado fogo dentro dele."
"Ele é jovem, é só isso", retorqui eu. "Nós já fomos jovens outrora.
O que estás a tentar dizer, Jacques? Fala à vontade, meu velho
amigo."
Ele hesitou. "Tem a certeza absoluta, mestre, de que o jovem
Nicholas está pronto para este conhecimento? É um grande passo
para ele. Poderá ele lidar com isso?"
"Acredito que sim", retorqui eu. "Eu confio nele."

Ben fechou o Diário e reflectiu por momentos. Era claro que o que
quer que fosse este grande conhecimento, Fulcanelli aprendera-o
com os artefactos que recuperara no castelo, e que se encontravam
agora, aparentemente, nas mãos de Klaus Rheinfeld. Finalmente,
tinha uma pista adequada.
A seu lado na secretária, o portátil ronronava tranquilamente. Ben
aproximou-se e começou a bater nas teclas. Deu-se o familiar ruído
da ligação à Internet, e apareceu a página do motor de busca do
Google. Deu entrada ao nome Klaus Rheinfeld na caixa de busca e
carregou em ENTER.
— Está à procura do quê? — perguntou Roberta, puxando de uma
cadeira ao lado de Ben.
Os resultados da busca apareceram, surpreendendo-o com 271
correspondências para o termo "Klaus Rheinfeld".
— Cristo — murmurou ele. Começou a percorrer a longa lista.
— Bem, isto parece prometedor.
Klaus Rheinfeld dirige Proscrito, com Brad Pitt e Reese
Witherspoon....
"Um arrebatador thriller de suspense... Rheinfeld é o novo
Quentin Tarantino", leu Roberta em voz alta.
Ben grunhiu e continuou a procurar. Quase tudo na lista eram
críticas ao novo filme Proscrito ou entrevistas com o realizador, um
californiano de trinta e dois anos.
Depois havia a Klaus Rheinfeld Exportações, um comerciante de
vinhos.
— E aqui está Klaus Rheinfeld, o domador de cavalos — apontou
ela.
Ao fim de diversas páginas dos resultados da busca chegaram a
uma notícia regional. Fora tirada de um pequeno jornal de Limoux,
uma cidade na região do Languedoc, no Sul de França. No cabeçalho
lia-se:

E FOU DE SAINT-JEAN

— O louco de Saint-Jean — traduziu Ben. — Está datada de


Outubro de 2001... Bom, ouça isto...

Foi encontrado um homem ferido a vaguear seminu na floresta


dos arredores de Saint-Jean, Languedoc. De acordo com o padre
Pascal Cambriel, o sacerdote local que encontrou o homem, ele
balbuciava numa estranha língua e parecia sofrer de demência
grave. Acredita-se que o homem, identificado pelos seus
documentos como Klaus Rheinfeld, um antigo residente de Paris,
tenha infligido sérios ferimentos de faca a si próprio. Um
funcionário da ambulância disse ao nosso jornalista: Nunca vi
nada como isto. Havia marcas estranhas, triângulos e cruzes e
coisas, por todo ele. Era doentio. Como é que alguém poderia fazer
aquilo a si próprio? Os rumores têm sugerido que estes ferimentos
bizarros estão ligados a rituais satânicos, embora isto fosse
rigorosamente negado pelas autoridades locais. Rheinfeld foi
tratado no Hospital de Sainte Vierge...

— Não diz para onde o levaram depois disso. Bolas. Pode estar em
qualquer lugar.
— No entanto, está vivo — fez notar Roberta.
— Ou estava vivo há seis anos. Se é que possa ser o mesmo Klaus
Rheinfeld.
— Aposto o que quiser em como é o mesmo tipo — disse ela.
Marcas satânicas? Leia-se marcas alquímicas.
— Porque é que ele estaria todo cortado? — interrogou-se Ben.
Roberta encolheu os ombros.
— Talvez fosse mesmo maluco.
— Muito bem... portanto temos um alemão maluco coberto de
ferimentos de faca, que poderá ou não ser portador de importantes
segredos relacionados com o Fulcanelli, e que pode estar em
qualquer parte do mundo. Isso reduz imenso as possibilidades. —
Suspirou, limpou o monitor e começou uma nova busca. — Já que
estamos online é melhor vermos isto. — Teclou o nome do servidor
de correio electrónico de Michel Zardi, aguardou que a página
carregasse e entrou no nome da conta. Só necessitava da palavra-
chave para aceder às mensagens, e sabia que a maior parte das
pessoas usava alguma palavra da sua vida privada. — O que sabe
acerca da vida pessoal do Michel? Namorada, algo desse género?
— Não muito ... Que eu conheça não havia nenhuma namorada
regular.
— Nome da mãe?
— Um... espere aí... acho que o nome dela é Claire.
Ben escreveu o nome na caixa da palavra-chave.

claire
palavra-chave incorrecta

— Equipa de futebol preferida?


— Não faço a mínima ideia. Não me parece que ele fosse do tipo
desportivo.
— Marca do carro, mota?
— Andava de metro.
— Animais de estimação?
— Um gato.
— É isso. O peixe — disse Ben.
— Aquele cretino com o seu peixe... como é que me fui esquecer?
Enfim, o nome do gato é Lutin. L-U-T-I-N.

lutin

— Bingo. — As mensagens de Michel apareceram no monitor. A


maior parte era spam, a vender comprimidos Viagra e extensões para
o pénis. Nada de nenhum dos seus misteriosos contactos. Roberta
inclinou-se para a frente e clicou em mensagens enviadas. Todas as
mensagens contendo os relatórios de Michel para "Saul" saltaram à
vista numa longa coluna por ordem da data de envio.
— Veja só isto — disse ela, percorrendo a lista com o cursor. — Está
aqui a última, com o anexo de que lhe falei. — Roberta clicou
novamente no logotipo do anexo e mostrou-lhe os ficheiros de
fotografias JPEG. Ben relanceou o olhar pelas fotografias antes de
fechar a caixa e clicar em compor nova mensagem. Visualizou a
página em branco.
— O que está a fazer?
— A ressuscitar o nosso amigo Michel Zardi. — Endereçou a nova
mensagem a Saul, como as outras. Os olhos de Roberta alargaram-se
de alarme enquanto Ben teclava.

Adivinhem quem eu sou? É isso, vocês apanharam o tipo errado.


Vocês mataram um amigo meu, seus filhos-da-mãe. Agora querem
a mulher Ryder, sou eu que a tenho. Sigam as minhas instruções e
dou-vo-la.

— Não é propriamente Shakespeare, mas serve.


— O que diabo está você a escrever? — Roberta deu um salto,
fixando-o com horror.
Ben pegou-lhe no pulso. Roberta lutou contra o aperto. Ben
afrouxou-o, e guiou-a gentilmente de volta à cadeira.
— Você quer descobrir quem são estas pessoas, não quer? —
Roberta sentou-se novamente, mas ele podia ver a desconfiança nos
olhos dela. Suspirou e atirou um molho de chaves para cima da
secretária.
— Aí tem. Como lhe disse, é livre de partir quando quiser. Mas
você concordou em fazer isto à minha maneira, lembra-se?
Roberta não disse nada.
— Confie em mim — disse ele em voz baixa.
Roberta suspirou.
— Está bem, eu confio em si.
Ben virou-se para o monitor e acabou de escrever a mensagem.
— Bombas largadas — disse enquanto carregava em enviar.
Capítulo 24
Gaston Clément fora demasiado lento a seguir o conselho de Ben.
Contando a riqueza recentemente adquirida, serviu-se de um copo de
vinho barato e bebeu à saúde do estranho visitante estrangeiro.
Quando três outros visitantes o encontraram estava a dormitar na
sua velha cadeira de braços, com a garrafa meio vazia ao lado.
Godard, Berger e Naudon arrastaram o suplicante Clément da
plataforma e atiraram-no para o chão de cimento. Foi dominado e
preso a uma cadeira. Um punho pesado esmagou-se-lhe na face e
partiu-lhe o nariz. Correu-lhe sangue das narinas, ensopando-lhe a
barba grisalha.
— Quem é que te deu este dinheiro? — rugiu-lhe uma voz ao
ouvido. — Fala! O aço frio de uma pistola encostou-se na sua
têmpora.
— Quem é que aqui esteve? Como é que se chamava?
Clément moeu o cérebro mas não se conseguia lembrar, e portanto
bateram-lhe mais ainda. Bateram-lhe uma e outra vez até os olhos se
lhe fecharem de inchados e haver sangue e vómito por todo o lado, a
barba e o cabelo escorregadios do sangue.
— Il est anglais! — deixou escapar num grito amarfanhado e
borbulhante, recordando-se.
— O que ele disse?
— Esteve aqui o inglês.
A cara de Clément encontrava-se pressionada contra o chão frio
por uma pesada bota no pescoço e a ameaçar parti-lo. Clément
gemeu, e depois desmaiou.
— Calma aí, rapazes — disse Berger, olhando para a miserável
forma inconsciente no chão. — Temos de o entregar vivo.
Enquanto o Audi acelerava para longe da delapidada quinta com
Clément enfiado na bagageira, as chamas apareciam já nas janelas do
celeiro e o fumo negro subia para o céu.

Monique Banel estava a caminhar pelo Parque Monceau com


Sophie, a sua filha de cinco anos. Monceau era um pequeno parque
agradável, com uma atmosfera pacífica onde os pássaros cantavam
nas árvores, os cisnes nadavam no pitoresco lago em miniatura e
Monique gostava de se descontrair durante alguns minutos depois de
terminar o seu trabalho como secretária a tempo parcial e ir buscar
Sophie ao jardim-de-infância. Monique disse um alegremente
educado "Bonjour, monsieur" ao velho e elegante cavalheiro que se
encontrava frequentemente sentado no mesmo banco a ler o jornal
nesta altura do dia.
A menina, como sempre, estava cheia de atenção a todas as vistas e
sons do parque, com os olhos brilhantes a cintilar de alegria.
Enquanto caminhavam por um dos percursos que seguiam por entre
os relvados do parque, Sophie exclamou de alegria.
— Maman! Olha! Vem aí um cãozinho! — A mãe sorriu.
— Sim, não é bonito?
O cão era um pequeno e bem tratado spaniel, um King Charles
Cavalier, branco com manchas castanhas e trazia uma coleira
vermelha. Monique olhou em redor. O dono devia estar por ali.
Muitos parisienses traziam aqui os seus cães para passear à tarde.
— Posso brincar com ele, maman? — Sophie encontrava-se
extática com o pequeno spaniel a trotar na sua direcção. — Olá,
cãozinho — chamou a criança. — Como é que te chamas? Maman, o
que é aquilo que ele tem na boca?
O pequeno cão alcançou-as e deixou cair o objecto que trazia no
chão aos pés de Sophie. O cão olhou para ela, na expectativa,
abanando a cauda. Antes que a mãe a pudesse impedir, a criança
dobrara-se e apanhara a coisa e estava a examiná-la curiosamente.
Voltou-se para Monique de sobrolho franzido, exibindo o objecto
para o mostrar à mãe.
Monique Banel gritou. A sua filhinha segurava na mão parte de
uma mão humana, cortada e mutilada.
Capítulo 25
Montpellier, França

O aprendiz de electricista não conseguia afastar a cave da mente.


Continuava a pensar nas estranhas coisas que vira. O que se passara
ali? Não era um sítio para guardar coisas. Definitivamente não
tinham lá cães nenhuns. Havia grades, como as grades das
masmorras, e anéis nas paredes. Pensou no que lera no seu livro
sobre os castelos dos velhos tempos. O prédio moderno com a
fachada em vidro não era nenhum castelo — mas aquela cave
parecia-lhe ser uma espécie de estranha masmorra.
Terminara o trabalho às 18 h 30 m e agora estava livre até
segunda-feira. Graças a Deus. O tio Richard era um gajo porreiro — a
maior parte do tempo, pelo menos — mas o trabalho era uma seca. O
tio Richard era uma seca. Marc queria uma vida mais excitante. A
sua mãe estava sempre a dizer-lhe que tinha uma imaginação
hiperactiva.
Estava tudo muito bem em querer ser escritor, mas a imaginação
nunca o faria ganhar dinheiro nenhum. Uma boa profissão — como
electricista — isso é que era. Ele não queria acabar como o pai, pois
não? Sempre teso, um viciado no jogo, um miserável que andava
dentro e fora da prisão o tempo todo, que abandonara a família
porque não conseguia assumir quaisquer responsabilidades? Ser
como o tio Richard — bem instalado na vida, respeitável, com um
carro novo de dois em dois anos, uma hipoteca, sócio do clube de
golfe local, uma esposa devotada e dois filhos — era essa a vida que a
mãe tinha em mente para ele, e nada menos que isso serviria.
Mas Marc não tinha tanta certeza de querer acabar como qualquer
dos irmãos. Tinha as suas próprias ideias. Se não pudesse ser
escritor, talvez pudesse ser detective.
Ficava fascinado por mistérios, e encontrava-se razoavelmente
seguro de ter descoberto um.
Estava sempre a voltar à gaveta da mesa-de-cabeceira, onde
escondera a coisa que encontrara na cave. Não falara a ninguém
acerca disso. Parecia que podia ser de ouro. Fazia isso dele um
ladrão, como o pai? Não, encontrara-a, era sua. Mas o que
significaria? O que era aquele lugar?
Terminou a sua refeição da noite, cumpriu o seu dever de colocar o
prato e os talheres na máquina de lavar loiça e dirigiu-se para a
porta, agarrando no capacete e retirando as chaves do armário do
corredor. Enfiou uma lanterna num saco, atirou-o por cima do
ombro, depois, pensando duas vezes, deixou cair também no saco
uma pequena barra de chocolate Poulain.
— Marc, onde é que vais? — chamou a mãe por detrás dele.
— Sair.
— Sair para onde?
— Vou só sair.
— Bem, não venhas tarde.
O sítio ficava relativamente próximo, a cerca de quinze
quilómetros de distância. Depois de umas quantas falsas partidas e
enganos, Marc deu consigo no portão de entrada do edifício quando
a noite começava a cair. O portão alto com grades negras de ferro
encontrava-se fechado. Espreitando por entre as grades conseguia
ver o edifício iluminado à distância no meio das escuras e
sussurrantes árvores. Desligou o motor vibrante da motorizada e
descobriu um sítio do outro lado da estrada onde a pôde deixar
escondida nos arbustos.
O perímetro do muro de pedra corria numa larga curva afastando-
se da estrada. Trepou para um aterro e seguiu o seu curso, pisando as
ervas altas, até chegar a um velho carvalho cujos ramos pendiam
sobre o cimo do muro. Pendurou o saco no ombro, trepou pelo
tronco e seguiu por um dos ramos mais grossos até conseguir Pousar
um pé e depois o outro no cimo do muro. Passou as pernas Para o
interior do muro e deixou-se cair levemente para os arbustos no
interior dos terrenos do centro.
Ficou algum tempo debaixo de umas árvores, mordiscando a barra
de chocolate e observando o edifício. As janelas do piso térreo
encontravam-se iluminadas. Acabou o chocolate, limpou a boca e
esgueirou-se furtivamente através dos relvados, mantendo-se nas
zonas de sombra. Alcançou o edifício. As janelas do piso térreo
encontravam-se demasiado altas para poder espreitar para dentro.
Um lanço de escada conduzia ao que parecia ser a porta da frente, no
primeiro andar. Se o subisse até meio, conseguiria ver para dentro
daquelas janelas iluminadas.
Mesmo quando começara a subir os degraus, apareceram faróis no
alto do caminho de acesso. Os portões de ferro abriram-se
automaticamente com um som vibrante e dois grandes carros pretos
desceram o caminho, ronronando na direcção do edifício. Passaram
por ele e viraram numa esquina. Marc foi atrás deles, conservando-se
nas sombras.
Viu os carros a descer uma rampa, com o ruído dos motores
subitamente amplificado pelo espaço subterrâneo. Dobrou
furtivamente a esquina, observando. Podia ouvir as portas a bater, e
as vozes a ecoar. Desceu a rampa nos bicos dos pés até que,
agachando-se, conseguiu ver os homens a sair dos carros e a andar
na direcção de um elevador.
Mas havia algo de errado. Um dos homens não parecia querer ir
com os outros. De facto parecia realmente muito relutante. Estava a
ser arrastado pelos braços, berrando e gritando de medo. Para horror
de Marc, um outro homem sacou de uma arma. Marc pensou que ele
ia disparar contra o homem assustado, mas em vez disso bateu-lhe
com a arma na cabeça. Marc viu sangue salpicado no cimento. Agora
o homem encontrava-se meio consciente, já sem protestar enquanto
os seus captores o arrastavam e os seus pés desenhavam um trilho no
chão.
Marc já vira o suficiente. Virou-se e correu.
Direitinho às mãos do homem alto de negro.
Capítulo 26
Centro de Paris

O pub de Flann O'Brien é um oásis de música irlandesa e Guinness


logo a seguir à esquina do museu do Louvre, não muito distante do
Sena. Às 23 h 27 m dessa noite, seguindo as instruções específicas
que haviam recebido por correio electrónico do inesperadamente
vivo e recomendado Michel Zardi, quatro homens entraram no pub.
Olhando em redor, aproximaram-se do bar, que se encontrava a
abarrotar de gente. O pub estava cheio de gargalhadas roucas, copos
a tilintar e do som de rabecas e banjos.
O chefe dos quatro homens era bem constituído e musculoso com
uma cabeça careca, vestindo um blusão de cabedal negro. Inclinou-se
por cima do balcão e falou para o grande e barbudo barman. O
barman assentiu, procurou debaixo do balcão e pegou num
telemóvel. Entregou-o ao homem careca, que fez sinal aos amigos e
os conduziu de volta à rua.
O telefone tocou exactamente às 23 h 30 m. O homem careca
atendeu.
— Não fale — disse a voz do outro lado. — Ouça o que vou dizer, e
siga as minhas instruções exactamente à letra, estou a observá-lo.
O homem careca olhou para um lado e para outro da rua.
— Não me procure — disse-lhe a voz ao ouvido. — Limite-se a
ouvir. Um movimento em falso e o acordo está cancelado. Perde a
americana e será castigado.
— Muito bem, estou a ouvir — retorquiu o homem careca.
— Use esse telefone para chamar um táxi — disse Ben do outro
lado, sentado atrás do volante do Peugeot 206 a quase um
quilómetro dali. — Vá sozinho, repito, vá sozinho ou a mulher foge.
Quando estiver no táxi, marque "Zardi" e eu digo-lhe para onde ir.
O homem careca sentou-se no táxi Mercedes e o motorista
africano conduziu-o ao longo do cais junto ao rio Sena. Longe dos
barcos de diversão brilhantemente iluminados e dos grupos de
bebedolas e turistas, o táxi virou e tomou uma rua escura e estreita
que levava à margem sombria do rio. O homem careca saiu do carro,
ainda agarrado ao telemóvel. O táxi partiu.
As passadas do homem careca ecoaram por debaixo da ponte
escura enquanto ele se aproximava do ponto de encontro que lhe fora
indicado. Olhou em redor.
— Ben, tenho um mau pressentimento em relação a isto —
sussurrou Roberta na escuridão. — Tem a certeza de que isto é assim
tão boa ideia?
O rio Sena iluminado pela lua corria e gorgolhava por baixo deles.
Bem abaixo do nível da rua, o rumorejar da cidade parecia abafado e
distante. Ao longe, agigantava-se a Catedral de Notre Dame,
iluminada a ouro, por sobre a água. Ben consultou o relógio.
— Descontraia-se.
Bateu uma porta na rua por cima deles, um carro a afastar-se,
passadas. Roberta virou-se para ver uma figura a aproximar-se.
— Ben, está ali...
— Ouça — disse ele suavemente ao ouvido dela. — Confie em mim.
Está tudo bem. — Pegou-lhe no braço e conduziu-a para fora das
sombras da ponte ao aproximar-se o homem careca. Um sorriso
retorcido apareceu na cara do homem.
— Zardi? — perguntou ele, a voz a ecoar debaixo do arco de pedra.
— C'est moi — disse Ben. — Vous avez l'argent?
— Tenho aqui o dinheiro — retorquiu o homem careca em francês.
Exibiu uma pasta.
— Pouse-a no chão — ordenoü Ben. O homem careca pousou
delicadamente a pasta no chão. Desviou o olhar de Ben por um
segundo.
Ben largou o braço de Roberta e moveu-se rapidamente na
direcção dele. Agarrou o homem pelo pulso, torceu-o e então o aço
frio do silenciador da Browning pressionou o pescoço enrugado do
homem.
— De joelhos.
Roberta fixava com horror a pistola na mão de Ben. Queria fugir,
mas as suas pernas não se queriam mexer e ficou ali paralisada,
incapaz de desviar os olhos de Ben enquanto este enfiava a arma na
nuca do homem e começava a revistá-lo. O olhar de Ben desviou-se
momentaneamente para a expressão na face de Roberta e ele soube o
que ela estava a pensar. Dirigiu-lhe um olhar que dizia limite-se a
deixar-me tratar disto.
O homem careca viera preparado. Havia uma Glock 19 no seu
casaco de cabedal. Ben deu-lhe um pontapé e fê-la deslizar pelo chão,
e a arma saltou da margem para a água com um esparrinhar suave.
— Vais morrer por causa disto, Zardi — articulou o homem careca.
— És tu o Saul? — perguntou Ben.
O homem careca não falava. Ben atingiu-o na cabeça com a
coronha e a guarda do gatilho.
— És — tu — o — Saul? — repetiu deliberadamente. O homem
gemeu e um fio de sangue correu do couro cabeludo brilhante.
Roberta desviou o olhar.
— Não — disse o homem careca. — Eu não sou o Saul.
— Então quem é o Saul, e onde é que o posso encontrar?
O homem fez uma pausa, e Ben atingiu-o de novo. O homem caiu
no chão e rolou de costas, fixando Ben com olhos receosos. Mas não
demasiado receosos. Ben podia ver que este tipo estava acostumado
a algum castigo.
— Muito bem, não me serves para nada. — Soltou a patilha de
segurança com o polegar e apontou-lhe a arma à cara.
Deve ter sido a expressão do olhar de Ben que persuadiu o homem
de que isto não era bluff.
— Eu não sei quem ele é! — protestou ele, da forma verdadeira de
um homem com tudo a perder. — Eu limito-me a receber ordens pelo
telefone!
Ben baixou a pistola e tirou o dedo do gatilho. Voltou a accionar a
patilha de segurança.
— Quem é que liga a quem? Tu ligas-lhe? Qual é o número dele?
O homem careca conhecia bem o número. Deitou-o cá para fora.
Ben observou-o, pesando o que fazer com ele. O casaco do homem
estava aberto e por baixo dele trazia uma camisa aberta com uma
corrente de ouro aninhada no peito cabeludo. Ben viu algo mais e
conservando-lhe a arma na cara inclinou-se e rasgou-lhe a camisa. À
luz diminuta do luar e da rua por cima, reflectida pela água correndo
suavemente, conseguiu ver a tatuagem.
Era uma espada, do género medieval com uma lâmina direita e
copos perpendiculares a esta, de modo a parecer um crucifixo.
Enrolada na lâmina estava uma bandeira com as palavras GLADIUS
DOMINI.
— O que é isso? — perguntou Ben, gesticulando com a arma. O
homem careca olhou de relance para o peito.
— Nada.
— Gladius Domini. Espada de Deus — murmurou Ben para si
próprio. Pisou os testículos do homem, e este deixou escapar um
grito.
— Por amor de Deus... — apelou Roberta.
— Eu acho que tu me queres dizer — disse-lhe Ben tranquilamente,
ignorando Roberta e mantendo a pressão.
— Está bem, está bem, tira o pé daí — choramingou o homem
careca, com o suor a escorrer-lhe pela face contorcida. Ben tirou o pé,
com a arma ainda inflexivelmente apontada à fronte do homem. O
homem exalou um suspiro de alívio e ficou deitado de costas no chão
de pedra. — Eu sou um soldado da Gladius Domini — articulou ele.
— O que é a Gladius Domini?
— Uma organização. Eu trabalho para eles... não sei... — A voz
descarrilou. Os olhos fixavam o vazio. Havia uma expressão vaga, um
olhar vazio que fez com que Ben pensasse no suicídio na catedral.
Anda alguém a entrar na cabeça destes tipos.
— Soldado de Deus, é? — inquiriu Ben. — E quando matas pessoas
inocentes, faze-lo por Ele? — Ben ergueu a pistola e deu um passo
atrás. Colocou o dedo no gatilho.
— Agora vais conhecê-Lo pessoalmente.
Roberta correu das sombras na direcção deles.
— O que está a fazer! Não o mate! Deixe-o ir... por favor... você tem
de o deixar ir!
Ben viu o apelo sincero nos olhos dela. Tirou o dedo do gatilho e
baixou a arma. Foi contra todos os seus instintos.
— Vai-te embora — disse ao homem careca. O homem recompôs-
se e ergueu-se lentamente, agarrado às virilhas em agonia. Tinha a
camisa molhada de sangue e o suor brilhava-lhe na face ao luar. Pôs-
se de pé, cambaleante.
Roberta olhava fixamente para Ben. Tinha a cara contraída.
Roberta empurrou-o furiosamente. Ele não reagiu. Ela bateu-lhe no
peito.
— Quem diabo és tu?
Ben viu o brilhante ponto vermelho a passar pela fronte de
Roberta um terço de segundo antes de a agarrar pelos colarinhos e a
atirar violentamente para o lado.
Depois, imediatamente a seguir, a carabina com mira de laser no
outro lado do rio estava a arrancar pedaços de alvenaria da parede.
Sequências de três tiros, tiro totalmente automático. Um dos
projécteis foi direito à cabeça do homem careca. O crânio rebentou,
espalhando sangue para cima de Roberta. O corpo dele em queda
abateu-se sobre o dela e levou-a com ele para o chão. Roberta dava
pontapés no ar debaixo do cadáver enquanto gritava em pânico.
Ben já vira o cintilar da mira telescópica do atirador da carabina a
cinquenta metros e estava a responder ao fogo. A Browning faiscou e
deu-lhe um coice na mão.
O sniper deixou escapar um grito reprimido, tombou do seu
poleiro e caiu no rio. Ouviu-se a sua espingarda de assalto AR-18 a
saltar no chão.
Dois homens mais vinham a correr pela margem do rio na direcção
deles. Com pistolas nas mãos. Uma bala passou junto ao ouvido de
Ben e outra assobiou ao ricochetear na parede a seu lado.
Ergueu a pistola. Calma. Concentra-te no centro do alvo. O gatilho
entra em acção sem pensamento consciente. Dois disparos duplos
em rápida sucessão, derrubando ambos os homens em pouco mais
de um segundo. Os corpos precipitaram-se para o chão e jazeram
inertes, formas negras ao luar.
Ben içou o homem morto de cima de Roberta e deu um pontapé no
corpo para o lado. Metade da cabeça careca desaparecera. As roupas
e os cabelos de Roberta estavam encharcados de sangue.
— Está ferida? — perguntou Ben com urgência.
Roberta cambaleou ao pôr-se de pé. Tinha a cara pálida, e logo a
seguir estava a deitar as tripas de fora contra a parede. Ben ouviu as
sirenes da polícia à distância, diversas, com os tons estridentes a
subir e a descer e a entrar e a sair de fase uns com os outros,
aproximando-se rapidamente.
— Vamos lá.
Roberta não estava a responder. Não havia tempo para discutir
com ela. Pôs-lhe o braço em volta da cintura e transportou-a ao
longo do cais até ao lanço de escadas que conduziam à rua.
No cimo das escadas, Roberta pareceu voltar a dar acordo de si.
Lutou contra o abraço dele e afastou-se à força. Ben gritou o nome
dela. Mas ela corria freneticamente na direcção oposta, mesmo
direita ao som das sirenes. A polícia estaria em cima deles a qualquer
momento.
— Afasta-te de mim! — gritou-lhe ela. Ben perseguiu-a, tentou
agarrar-lhe no braço, argumentar com ela. — Não me toques! —
Roberta afastou-se a cambalear.
Luzes azuis a piscar apareciam ao fundo da rua por entre o trânsito
disperso. Ben não tinha escolha. Teve de a deixar ir. Pelo menos
ficaria em segurança nas mãos da polícia, e dentro de uma hora ele
estaria fora da cidade e já distante. Com um último olhar para
Roberta, virou-se e começou a correr de regresso ao Peugeot.
Roberta encontrava-se hesitante e atordoada no meio da estrada.
Alguns carros buzinaram, ziguezagueando para a evitar. Ben
observou à distância enquanto um carro da polícia derrapou até
parar junto a ela. Saíram três polícias, olharam para o aspecto
aterrorizado e ensanguentado de Roberta e ligaram-na
imediatamente ao tiroteio participado. Mais sirenes berravam
estridentemente à distância — três, talvez quatro carros mais a
acelerar para o local.
Estavam a metê-la no banco de trás do carro da polícia quando o
Mitsubishi negro parou junto a eles.
Ben encontrava-se a uns cem metros quando viu as portas do
Mitsubishi abrirem-se de rompante e saírem dois homens com
caçadeiras de canos serrados. Estoiraram com os polícias antes de
qualquer deles ter tido uma possibilidade de sacar da arma. Roberta
saía a gatinhar enquanto eles rodeavam o carro da polícia,
recarregando as armas.
O Peugeot atingiu o que se encontrava mais próximo, fazendo-o
voar como um boneco partido. Ben disparou contra o outro através
da janela aberta, este abrigou-se por detrás do carro da polícia e
depois pôs-se na alheta. Ben abriu a porta, carregou Roberta para o
interior e arrancou a patinar na direcção da ponte, distanciando-se
mesmo a tempo de fazer a curva seguinte a derrapar e entrar numa
rua secundária antes que a ululante frota da polícia chegasse ao local.
Capítulo 27
Duas horas antes

Durante a ocupação de Paris pelos nazis a inúmera rede de salas


austeras e corredores escuros fora usada como prisão e centro de
interrogatórios pela Gestapo. Hoje em dia a enorme cave por debaixo
do quartel-general da polícia albergava, entre outras coisas, o
laboratório forense e a morgue. Era como se o lugar não se
conseguisse livrar da sua herança macabra.
Luc Simon encontrava-se de pé com o patologista forense, o alto e
magro de cabelo esbranquiçado Georges Rudel, numa sala de exames
iluminada apenas a néon. No bloco à frente deles, jazia um cadáver
coberto por um lençol branco. Somente os pés eram visíveis,
protuberantes por debaixo, pálidos e frios. Uma etiqueta pendurada
de um dedo. Simon não era um homem susceptível mas combateu o
impulso de desviar o olhar quando Rudel puxou casualmente o
lençol para trás o suficiente para descobrir a cabeça, pescoço e peito
do cadáver.
Tinham limpo Michel desde a última vez em que Simon o vira, mas
continuava a não ser bonito de se ver. A bala entrara por debaixo do
queixo, escavara o seu canal de penetração por trás da face, levando a
maior parte dela consigo antes de sair pelo alto da cabeça. Só ficara
um olho, assente no seu encaixe como um ovo cozido, com uma
pupila que parecia estar mesmo a fixá-los.
— O que tem para mim? — perguntou Simon a Rudel.
O patologista apontou para a desgraça da cara de Michel.
— Os estragos aqui são todos consistentes com a bala encontrada
no tecto — disse este, falando mecanicamente como se estivesse a
ditar um relatório. — O ferimento de entrada aqui. A arma foi
empunhada de encontro à parte de cima do peito com a boca do cano
em contacto instável com a parte inferior do maxilar. As
extremidades do ferimento de entrada encontram-se queimadas
devido aos gases de combustão e escurecidas pela fuligem. A arma foi
um revólver Smith & Wesson, cano de três polegadas, .44 Remington
Magnum. O calibre potente explica a quantidade de estragos nos
ossos e tecidos.
Simon bateu impacientemente com o pé. Esperava que isto o
levasse a algum lado.
— Tipicamente, esse calibre usa muito mais pólvora de combustão
lenta do que se tem com projécteis de semiautomáticas como a nove
milímetros — prosseguiu Rudel de forma factual. — Isso quer dizer
que se obtêm muitos resíduos não queimados, em particular com um
cano curto. Não queima de maneira tão limpa. — Apontou. — Pode
ver tudo isto aqui, entranhado na pele. Também aqui pelo pescoço
abaixo.
Simon assentiu.
— Muito bem, então o que me está a dizer?
Rudel virou-se para o olhar com olhos turvos.
— As impressões digitais da vítima encontram-se no carregador e
no gatilho da arma. Portanto sabemos que ele fez o disparo sem
luvas.
— Ele foi encontrado ainda agarrado à arma. Sem luvas. Sabemos
isso. Vai abreviar-me isto antes que um de nós morra?
Rudel ignorou o sarcasmo.
— Bem, isto é o que me deixa perplexo. Com todos estes restos de
pólvora por queimar eu esperava encontrar muitos deles na mão que
empunhava a arma, assim como restos da descarga química normal
que é soprada para trás quando a arma é disparada. Mas as mãos
deste homem estão limpas.
— Tem a certeza disso?
— Certeza absoluta... é um simples teste de recolha para os
resíduos. — Rudel estendeu a mão e ergueu um braço pálido e sem
vida de debaixo do lençol. — Veja você mesmo.
— Está a dizer que não foi ele que fez o disparo.
Rudel encolheu os ombros, e deixou cair a mão morta ao lado do
cadáver.
— As únicas coisas nas mãos deste homem, tirando os usuais suor
e gordura, são alguns vestígios de um peixe oleoso. Sardinhas, para
ser preciso.
Simon achou isto absurdo, e riu-se.
— Fez um teste para sardinhas?
Rudel olhou-o friamente.
— Não, havia uma lata de sardinhas meio aberta na mesa da
cozinha, junto a uma malga de gato. Agora, eu só digo é isto: quem é
que ia estoirar os miolos a meio de dar de comer ao seu gato?
O rapaz foi deixado semiconsciente enquanto o arrancavam ao
beliche duro. Ouviu vozes em redor, o bater de portas metálicas e o
tilintar de chaves. Os sons ecoavam no espaço vazio. Uma profusão
de luzes cegaram-no no meio da sua confusão. Uma súbita dor
lancinante no braço fê-lo estremecer.
Podia ter sido minutos depois, ou podiam ter passado horas — era
tudo indistinto, irreal. Encontrava-se vagamente consciente de não
ser capaz de se mexer, com os braços presos atrás de si. A luz branca
estava a arder-lhe na cabeça, fazendo-o pestanejar e desviar a cabeça
enquanto permanecia amarrado à cadeira.
Não se encontrava só. Estavam dois homens com ele na cave,
observando-o.
— Devo desfazer-me dele? — disse uma voz.
— Não, de momento mantém-no vivo. Pode vir a ser-nos útil.
Capítulo 28
A água quente caía-lhe na cabeça e pingava na banheira sobre a
qual Roberta se encontrava dobrada. A espuma que corria para o ralo
estava tingida de vermelho enquanto ele lhe lavava meticulosamente
o sangue do cabelo.
-Ai.
— Desculpa. Tens aqui uns pedacitos secos agarrados.
— Eu não quero saber, Ben.
Ben colocou o chuveiro lá em cima no seu suporte de parede e
espremeu mais champô para a mão, espalhando-o no cabelo dela.
Os nervos de Roberta encontravam-se agora mais estáveis — a
náusea abandonara-a e as mãos já não tremiam. Ela relaxou ao toque
dele, pensando em como era carinhoso e gentil. Sentia o calor do
corpo dele a pressioná-la por trás enquanto ele limpava a espuma do
seu cabelo e pescoço.
— Parece-me que agora já desapareceu tudo.
— Obrigada — murmurou ela, enrolando uma toalha em volta da
cabeça.
Ben deu-lhe uma camisa para vestir, e depois deixou-a sozinha a
lavar-se do resto. Enquanto ela tomava banho, Ben desmontou,
limpou e voltou a montar rapidamente a sua Browning. Ao mesmo
tempo que passava por estes movimentos fluidos e automáticos, tão
profundamente instilados nele como atar os sapatos ou escovar os
dentes, a sua mente viajou para longe.
Roberta emergiu da casa de banho, vestindo a sua camisa grande
de mais com um nó na cintura, com o comprido cabelo ruivo-escuro
ainda húmido e reluzente. Ben serviu-lhe um copo de vinho.
— Estás bem?
— Iá, estou bem.
— Roberta... eu não fui totalmente sincero contigo. Há algumas
coisas que devias saber.
— Estás a falar da arma?
Ele anuiu.
— E de outras coisas.
Roberta sentou-se a olhar para o chão e a bebericar o vinho
enquanto ele lhe contava tudo. Contou-lhe sobre Fairfax, sobre a sua
demanda, sobre a menina moribunda.
— E isso é basicamente tudo. Agora já sabes tudo o que há para
saber. — Ben observou-a, aguardando uma reacção.
Roberta esteve em silêncio durante algum tempo, com a face calma
e pensativa.
— Então, é isso que fazes, Ben? Salvar crianças? — perguntou ela
suavemente.
Ben olhou para o relógio.
— Já é tarde. Precisas de dormir alguma coisa.
Nessa noite ele deixou-a dormir na cama enquanto ele dormiu no
chão na sala ao lado. Roberta foi despertada de madrugada com o
ruído de Ben a movimentar-se de um lado para o outro. Saiu
ensonada do quarto para o ver a encher o seu saco verde de
campanha.
— Que se passa?
— Vou sair de Paris.
— Vais-te embora? Então e eu?
— Depois da noite passada, ainda queres vir comigo?
— Quero pois. Para onde vamos?
— Para sul — disse ele, enfiando cuidadosamente o Diário de
Fulcanelli no saco e desejando ter mais tempo para o ler. Depois
abriu uma gaveta da secretária e retirou o passaporte que lá
guardava. Mandara-o fazer em Londres, e era indistinguível do
verdadeiro. A fotografia era a sua, mas o nome era Paul Harris.
Enfiou-o no bolso interior do blusão.
— Mas, Ben, há uma coisa — lembrou-se ela. — Tenho de voltar a
minha casa primeiro.
Ele abanou a cabeça.
— Lamento. Nem pensar.
— Tenho mesmo de lá ir.
— Para quê? Se precisas de roupa ou de outras coisas, tudo bem...
vamos comprar-te tudo o que precisares.
— Não, é outra coisa. Esta gente que anda atrás de nós... se eles
voltam ao meu apartamento podem encontrar a minha agenda. Está
tudo naquela agenda, os meus amigos todos e a minha família nos
Estados Unidos. E se eles fazem alguma coisa à minha família para
tentar chegar a mim?
Quando Luc Simon regressou ao seu gabinete, encontrou a
esquadra da polícia toda em alvoroço enquanto chegavam as notícias
acerca do tiroteio no cais. O crime violento era uma coisa normal em
Paris, fazia parte da vida. Mas quando havia um banho de sangue
como este, com dois polícias atingidos a tiro e mais cinco corpos a
juncar as margens do Sena, armas e cartuxos ejectados por todo o
lado, a força policial saía en masse.
Simon encontrou um envelope castanho na secretária. O relatório
no interior provinha da análise da caligrafia. A escrita na nota de
suicídio de Zardi não correspondia com as outras amostras da sua
caligrafia encontradas no seu apartamento, listas de compras,
memorandos, e uma carta meio escrita para a mãe. Era muito
aproximada, mas era definitivamente uma falsificação. E notas de
suicídio falsas apontavam numa só direcção. Em particular quando
já se sabia que a vítima não efectuara o disparo.
Afinal era mesmo um caso de homicídio, tinha mesmo dado
barraca. Não prestara atenção suficiente à mulher Ryder.
Demasiadas coisas na sua mente, talvez, com os problemas no
relacionamento com Hélène a pender sobre ele acima de tudo o mais.
Tentar pôr um casamento afundado a flutuar enquanto tentava
impedir que Paris em peso, que todos se matassem uns aos outros —
as duas coisas não podiam ser compatíveis.
Mas nada de justificações. O facto era que lixara tudo. Roberta
Ryder não era apenas uma doida qualquer. Estava envolvida em
qualquer coisa.
No quê, e como se encontrava relacionada, teria de o descobrir.
Mas eram só perguntas, nenhumas respostas. Quem era o tipo que
aparecera com ela na noite da morte de Michel Zardi? Havia algo
estranho na maneira como tinham actuado em conjunto. Fora como
se o homem estivesse a tentar que ela não falasse demasiado. Não
dissera ele que ela era sua noiva? Não pareciam ser assim tão
próximos. E não lhe dissera Roberta Ryder, apenas umas horas
antes, que não tinha namorado?
O tipo era de algum modo importante. Qual era o nome dele? Se
Simon bem se lembrava, ele não parecera muito disposto a fornecer
o nome e não parecera muito agradado quando Ryder o fornecera
por ele. Abriu o dossiê que tinha sobre a secretária. Ben Hope, era
isso. Britânico, apesar do francês quase perfeito. Ia precisar de o
verificar. Depois passar uma busca ao apartamento da mulher Ryder.
Agora podia arranjar facilmente um mandado.
Simon encontrou o seu colega detective Bonnard e caminharam
juntos ao longo do corredor atarefado. Bonnard parecia sério,
cinzento e macilento.
— Acabei de receber as últimas sobre este múltiplo homicídio e
sobre as mortes dos polícias — disse ele.
— Actualiza-me.
— Temos uma testemunha. Um condutor relatou duas pessoas a
fugir do cenário do incidente, por volta da altura em que estava a
ocorrer. Caucasianos, masculino e feminino.
Mulher jovem, pensamos que com cabelo ruivo, talvez no começo
dos trinta. O homem possivelmente um pouco mais velho, mais alto,
cabelo claro. Parecia que a mulher estava a debater-se, tentando
fugir. A testemunha diz que ela estava coberta de sangue.
— Um homem louro e uma mulher ruiva? — repetiu Simon.
— A mulher estava ferida?
— Não parece provável. Pensamos que é a mesma mulher que os
nossos agentes apanharam mesmo antes de serem mortos. Ela
deixou alguns vestígios de sangue no banco de trás do carro, mas o
sangue pertencia a um dos cadáveres que encontrámos por baixo da
ponte, um tipo com os miolos estoirados por uma bala de carabina.
Bonitas fotografias espalhadas pela parede toda.
— Então para onde foi ela?
Bonnard fez um gesto de impotência.
— Não faço ideia. Parece que se limitou a desaparecer. Ou fugiu
pelos seus próprios meios ou alguém a levou dali muito rapidamente
antes de os nossos rapazes chegarem ao cenário do crime.
— Fantástico. Que mais temos?
Bonnard abanou a cabeça.
— É uma desgraça. Recuperámos a carabina. Arma militar, inde-
tectável a origem e sem uma única impressão digital. O mesmo com
as pistolas que encontrámos. Conhecemos algumas das vítimas...
com mandados por assalto à mão armada e por aí fora. Os suspeitos
do costume, ninguém dará pela falta deles. Mas não temos grandes
pistas sobre que diabo se passou ali. Talvez relacionado com drogas.
— Não acho — disse Simon.
— Uma coisa que sabemos mesmo é que nos falta pelo menos um
atirador. Foram encontrados balázios de nove milímetros em três
dos corpos. Parece que vieram todos da mesma arma, a qual, dizem-
nos os tipos forenses a partir do padrão das estrias, é uma pistola
tipo Browning. É a única arma que não recuperámos.
— Certo — disse Simon, aquiescendo, pensando intensivamente.
— Há mais uma coisa — prosseguiu Bonnard. — Com base naquilo
que pudemos avaliar, o misterioso atirador da 9 mm não é o nosso
típico criminoso de trazer por casa.
Quem quer que possa ser consegue acertar grupos de dois
centímetros e meio em alvos em movimento a vinte e cinco metros
no escuro. Você consegue fazer isso? Eu de certeza que não consigo...
estamos a lidar com um profissional a sério.
Capítulo 29
— Tens a certeza de que está na mesa-de-cabeceira? — perguntou
Ben ao estacionar o amolgado Peugeot a uma distância discreta do
prédio de Roberta.
Roberta trazia o boné de basebol que ele lhe comprara num
mercado nessa manhã, com o cabelo escondido nele. Com isso e com
os óculos escuros estava irreconhecível.
— Mesa-de-cabeceira, livro vermelho pequeno — repetiu ela.
— Tu esperas aqui — disse ele. — A chave fica na ignição. A
quaisquer sinais de problemas, desapareces daqui. Conduz devagar,
não tenhas pressa. Liga-me logo que possas, e eu vou ter contigo.
Roberta assentiu. Ben saiu do carro e pôs os óculos de sol. Ela
observou com receio enquanto ele caminhava decididamente rua
fora e desaparecia na entrada do seu prédio.
Luc Simon já estava farto de dar voltas em redor da casa de
Roberta Ryder. Já aqui estava há meia hora, aguardando com dois
agentes que chegasse a equipa forense.
A sua ira impaciente estava a provocar-lhe mais uma das suas
dores de cabeça assassinas. Como de costume, os tipos da equipa
forense estavam a deixá-lo pendurado.
Bando de filhos-da-mãe indisciplinados — ia dizer-lhes das boas
quando aqui chegassem.
Pensou em enviar um dos seus agentes uniformizados para ir
buscar café. Foda-se. Ia ele mesmo — só Deus saberia que género de
merda é que lhe iam trazer. Havia um bar no outro lado da rua, Le
Chien Bleu; um nome estúpido mas o café talvez não fosse muito
mau.
Desceu os lanços de escadas em espiral a martelar os degraus,
trotou pelo fresco corredor de entrada e saiu para a luz do Sol,
profundamente mergulhado nos seus pensamentos. Estava
demasiado preocupado para reparar no homem alto e louro de
óculos de sol e blusão negro que vinha em sentido contrário. O
homem não abrandou a passada mas reconheceu imediatamente o
inspector da polícia, e soube que estariam outros polícias a aguardar
lá em cima.
Foi rápido, pensaram os dois agentes quando ouviram a
campainha da porta do apartamento de Ryder. Abriram a porta,
esperando Simon. Se tivessem sorte, ele teria trazido café e algo para
comerem — embora isso fosse quase certamente desejar demasiado
tendo em conta que o chefe se encontrava ainda de pior humor do
que era costume.
Mas o homem à porta era um estranho alto e louro. Não pareceu
surpreendido por encontrar dois polícias no apartamento. Encostou-
se descontraidamente à moldura da porta, sorrindo-lhes.
— Olá — disse ele, tirando os óculos de sol. — Será que me
poderiam ajudar...
Simon regressou ao apartamento de Ryder, sorvendo o seu copo de
papel de expresso a escaldar. Graças a Deus, já estava a diminuir a
dor de cabeça. Apressou-se a subir as escadas até ao terceiro andar,
bateu à porta e aguardou que o deixassem entrar. Passados três
minutos, bateu com mais força e gritou para a porta. Que diabo é que
aqueles andavam a fazer ali dentro? Passou outro minuto, e era claro
que algo estava errado.
— Polícia — disse ele ao vizinho, exibindo a identificação. O
pequeno velhote espetou a cabeça por cima de um pescoço enrugado
de tartaruga e olhou com ar preocupado para a identificação, depois
de alto a baixo para Simon, e depois para o copo de café na mão
deste.
— Polícia — repetiu Simon num tom mais elevado. — Preciso de
usar o seu apartamento. — O velhote abriu mais a porta, afastando-
se para o lado. Simon avançou e passou por ele. — Segure-me nisto,
por favor - disse ele, entregando o copo vazio ao velhote. — Onde é
que fica a varanda?
— Por aqui. — O vizinho percorreu o apartamento à frente de
Simon, através de um pequeno corredor com pinturas em aguarela
alinhadas, depois para um salão bem arrumado com um piano
vertical e cadeirões de braços de estilo antigo. A televisão estava em
altos berros. Simon viu o que procurava, as altas janelas duplas que
davam para a estreita varanda no exterior.
Havia um intervalo de apenas cerca de metro e meio entre a
varanda do velhote e a de Ryder. Conservando os olhos
resolutamente afastados da queda de três andares para o pátio lá em
baixo, subiu para o varandim de ferro e saltou de uma varanda para a
outra.
A janela da varanda de Ryder não se encontrava fechada. Sacou da
arma de serviço do coldre lateral e puxou o cão atrás enquanto
entrava silenciosamente no apartamento.
Conseguia ouvir um bater abafado que vinha de algures. Parecia
vir do laboratório improvisado de Ryder. Com o revólver .38 de cão
armado e apontado à sua frente movimentou-se furtivamente na
direcção do som.
No interior do laboratório, ouviu-o novamente. Vinha lá detrás
daquelas portas onde Ryder tinha as suas moscas nojentas. Tum,
tum.
Simon abriu as portas, e o que viu primeiro foram os insectos
negros e peludos a enxamear o vidro, o zunir perturbado abafado por
detrás das grossas paredes dos tanques. Algo se moveu contra a sua
perna. Olhou para baixo.
Entalados no espaço entre os tanques encontravam-se os seus dois
agentes, amarrados e amordaçados com fita adesiva, debatendo-se.
As suas automáticas jaziam lado a lado em cima da secretária,
descarregadas e desmontadas, com os canos desaparecidos.
A equipa da esquadra encontrou-os depois, um em cada tanque de
moscas.

Ben atirou o pequeno livro vermelho para cima do colo dela.


— Assim que seja possível — disse ele, entrando no carro destróis
isso, compreendido?
Roberta anuiu.
— C-claro.
Enquanto o Peugeot acelerava e desaparecia ao fundo da rua, um
homem dissimulado numa entrada virou-se e observou-o a partir. O
homem não era polícia, mas estava a vigiar a casa de Ryder desde a
noite anterior. Assentiu para si mesmo e pegou no telefone. Quando
depois de alguns toques alguém atendeu, ele disse:
— Um coupé 206 prateado com a frente amolgada acabou de sair
pela Rue de Rome dirigindo-se para sul. Um homem e uma mulher.
Podem apanhá-los no Boulevard des Batignolles mas é melhor que se
despachem.
Capítulo 30
Seis meses antes, perto de Montségur, Sul de França

Anna Manzini fora infeliz ao ter-se colocado em tal situação. Quem


teria pensado que a autora de dois aclamados livros sobre história
medieval e uma catedrática respeitada na Universidade de Florença
se iria comportar de modo tão impulsivo e idiotamente romântico?
Desistir de uma posição profissional bem remunerada para partir e
arrendar uma villa — uma villa extremamente dispendiosa, já agora
— no Sul de França para começar da estaca zero uma nova carreira
como escritora de ficção não era o género de comportamento
calculado e lógico pelo qual Anna era conhecida entre os seus antigos
colegas e alunos.
Pior, tinha deliberadamente escolhido uma casa isolada, bem no
interior das agrestes montanhas e vales do Languedoc, na esperança
de que a solidão acendesse a sua imaginação.
Não acendera. Já lá estava há mais de dois meses, e dificilmente
escrevera mais do que uma frase. Para começar ela guardara-se para
si própria, não vendo ninguém.
Mas mais recentemente começara a aceitar as atenções dos
intelectuais e académicos locais que iam descobrindo que a autora
dos livros A Cruzada Que a História Esqueceu e Heréticos de Deus:
Descobrindo os Verdadeiros Cátaros se encontrava agora a viver
apenas a alguns quilómetros no meio do campo. Após meses de tédio
e solidão ficara aliviada com a possibilidade de fazer amizade com a
vivaz Angélique Montei, uma artista local. Angélique apresentara-a a
um interessante novo círculo de pessoas, e Anna decidira finalmente
oferecer um jantar na villa.
Enquanto aguardava pelos seus convidados, recordou-se do que
Angélique lhe dissera ao telefone dois dias antes. "Sabes o que eu
acho, Anna? Tu tens bloqueio de escritor porque te faz falta um
homem. Portanto vou levar um bom amigo meu ao teu jantar. É o
doutor Edouard Legrand. Ele é brilhante, rico, e solteiro."
— Se ele é tão fantástico — disse Anna, sorrindo -, então porque é
que estás tão interessada em passá-lo para mim?
— Oh, rapariga malvada, ele é meu primo. — Angélique deu uma
risada. — Divorciou-se há pouco tempo, e sente-se perdido sem uma
mulher. É seis anos mais velho do que tu, quarenta e oito, mas possui
o físico de um atleta. Alto, cabelo preto, sensual, sofisticado...
— Trá-lo lá — dissera a Angélique. — Estou interessada em
conhecê-lo. — Mas a última coisa que preciso agora na minha vida é
de um homem, pensou para si própria.
Eram oito para jantar. Angélique manobrara estrategicamente
para se assegurar de que o doutor Legrand ficaria sentado ao lado de
Anna à cabeça da mesa. Ela tivera razão — ele era muito charmoso e
bem-parecido, num fato que lhe assentava muito bem, o cabelo a
ficar grisalho nas têmporas.
Durante algum tempo a conversa recaiu sobre uma exposição de
arte moderna que muito dos convidados tinham visitado em Nice.
Agora estavam todos interessados em saber mais acerca do projecto
do novo livro de Anna.
— Por favor, eu não quero falar sobre isso — disse Anna. — É tão
deprimente. Estou com um bloqueio de escritor. Não consigo ser
capaz de o escrever. Talvez seja porque estou a escrever um livro de
ficção pela primeira vez, um romance.
Os convidados ficaram surpresos e intrigados.
— Um romance? Sobre quê?
Anna suspirou.
— É uma história de mistério acerca dos cátaros. O problema é que
estou com muita dificuldade em imaginar as minhas personagens.
-Ah, mas tenho aqui o homem certo para te ajudar — disse
Angélique, vendo a sua oportunidade. — O doutor Legrand é um
famoso Psiquiatra e consegue ajudar quem tenha quaisquer
problemas mentais.
Legrand riu-se.
— A Anna não tem nenhum problema mental. Muitas das pessoas
mais talentosas têm por vezes sofrido de perda temporária da
inspiração. Até Rachmaninov, o grande compositor, descobriu que
tinha a criatividade bloqueada e teve de ser hipnotizado de forma a
poder criar os seus melhores trabalhos.
— Obrigada, doutor Legrand — disse Anna, sorrindo. — Mas a sua
analogia concede-me demasiado crédito. Eu não sou uma
Rachmaninov.
— Por favor, trate-me por Edouard. Mas eu tenho a certeza de que
a Anna tem imenso talento. — Fez uma pausa. — No entanto, se é de
personagens interessantes que está à procura, com um toque de
misterioso e gótico, aí talvez eu a possa ajudar.
— O doutor Legrand é o director do Instituto Legrand — disse
madame Chabrol, uma professora de música de Cannes.
— O Instituto Legrand? — perguntou Anna.
— Um hospital psiquiátrico — esclareceu Angélique.
— É apenas um pequeno estabelecimento privado — disse
Legrand.
— Não muito longe daqui, nos arredores de Limoux.
— Edouard, estás a referir-te àquele estranho homem acerca do
qual me falaste uma vez? — perguntou Angélique.
Ele assentiu.
— Um dos nossos pacientes mais curiosos e fascinantes. Já está
connosco há cerca de cinco anos. O nome dele é Rheinfeld, Klaus
Rheinfeld.
— Esse nome soa ao de Renfield, da história de Drácula —
comentou Anna.
— Isso é muito apropriado, embora ainda não o tenha observado a
comer moscas — retorquiu Legrand, e toda a gente riu. — Mas ele é
certamente um caso interessante.
Ele é um maníaco religioso. Foi encontrado não muito longe daqui,
numa aldeia, por um padre. Auto-mutila-se... tem o corpo coberto de
cicatrizes. Delira com demónios e anjos, convencido de que está no
Inferno... ou por vezes no Céu. Recita continuamente frases em
latim, e é obcecado por séries de números e letras sem significado.
Escreve-as por todo o lado nas paredes do quarto.
— Porque é que lhe permitem ter uma caneta, doutor Legrand? —
perguntou madame Chabrol. — Isso não poderá ser perigoso?
— Já não permitimos — disse ele. — Ele escreve com o próprio
sangue, com a urina e as fezes.
Toda a gente à volta da mesa pareceu chocada e enojada, menos
Anna.
— Ele parece estar terrivelmente infeliz — disse ela.
Legrand anuiu.
— Sim, acredito que provavelmente esteja — concordou ele.
— Mas porque haveria alguém de querer automutilar-se, Edouard?
— perguntou Angélique, enrugando o nariz. — Que coisa tão
horrível de se fazer.
— O Rheinfeld exibe um comportamento estereotipado —
retorquiu Legrand. — Quer isto dizer que ele sofre daquilo a que
chamamos um distúrbio obsessivo compulsivo.
Pode ser desencadeado por stresse crónico e frustração. No caso
dele, pensamos que o distúrbio mental foi provocado por anos e anos
a procurar algo infrutiferamente.
— Do que andava ele à procura? — perguntou Anna.
Legrand encolheu os ombros.
— Não sabemos realmente ao certo. Ele parece acreditar que se
encontrava num qualquer género de demanda por um tesouro
enterrado, segredos perdidos, esse tipo de coisa. É uma mania
comum entre os mentalmente doentes. — Sorriu. — Temos tido uns
quantos intrépidos caçadores de tesouros ao nosso cuidado durante
estes anos. Assim como a nossa quota-parte de Jesus Cristos,
Napoleões Bonaparte e Adolfos Hitler. Receio que não sejam
frequentemente muito imaginativos nas suas escolhas de ilusões.
— Um tesouro perdido — disse Anna, meio para si própria. — E diz
que ele foi encontrado não muito longe daqui... — A sua voz
interrompeu-se em reflexões.
— Não pode ser feito nada para o ajudar, Edouard? — perguntou
Angélique.
Legrand abanou a cabeça.
— Nós tentámos. Quando ele nos foi entregue, foi-lhe feita
psicanálise e terapia ocupacional. Durante os primeiros meses ele
pareceu responder ao tratamento. Foi-lhe dado um bloco-notas para
que ele registasse os seus sonhos. Mas depois descobrimos que ele
andava a encher as páginas com gatafunhos dementes. A partir de
certa altura, o estado mental dele deteriorou-se e ele começou
novamente a auto-mutilar-se. Tivemos de lhe retirar os meios de
escrita e aumentar a medicação. Desde então, receio dizê-lo, ele tem
descido cada vez mais para o que apenas posso descrever como a
loucura.
— Que coisa terrível — exalou Anna.
Legrand voltou-se para ela com um sorriso charmoso.
— Em todo o caso seria mais do que bem-vinda para dar uma volta
pelo nosso pequeno estabelecimento, Anna. E se isso a puder ajudar
a ganhar inspiração para o seu livro, poderei arranjar-lhe maneira de
conhecer pessoalmente o Rheinfeld... naturalmente com
acompanhamento. Nunca vem ninguém visitá-lo. Nunca se sabe,
talvez lhe faça bem ter uma visita.
Capítulo 31
Paris

As peças do puzzle estavam praticamente a voar juntas para Luc


Simon. A descrição que os dois seriamente embaraçados agentes
tinham feito do homem que os amarrara na despensa de Roberta
Ryder correspondia exactamente à de Ben Hope.
Depois chegara o relatório acerca da limusina Mercedes envolvida
no recente incidente ferroviário. O carro em si mesmo estava quente
que se fartava. Nenhum proprietário registado. Matrículas falsas.
Números raspados tanto no motor como no chassis. O sistema de
fecho interno fora alterado para um do tipo carro para raptos.
Parecia também que fora usado para esse propósito, já que alguém
tentara obviamente sair dele a tiro com uma pistola de 9 mm.
Quem quer que esse alguém fosse, a julgar pelo relatório da análise
ao cartucho usado de 9 mm encontrado na parte de trás, era a
mesma pessoa que fizera de atirador misterioso no cenário da
matança à beira-rio. E quem era ele? Parecera impossível de
descobrir. Mas depois os polícias no cenário do incidente ferroviário
tinham encontrado um cartão-de-visita no interior do Mercedes. O
nome no cartão era o de Benedict Hope.
Havia mais. Tinham descoberto o Citroën 2CV que estivera
relacionado com o incidente ferroviário num parque de
estacionamento de um bar das imediações. O emblema da grelha
desaparecido, vestígios de tinta do Mercedes, até a terra nas rodas,
tudo correspondia ao cenário da ferrovia. O 2CV encontrava-se
registado no nome da doutora Roberta Ryder.
E ficava ainda melhor. Quando a equipa forense passara o
apartamento de Ryder a pente fino, tinham encontrado uma coisa.
Mesmo no sítio onde ela alegara que o seu agressor jazera morto,
uma pinta de sangue que quem lavara o chão não conseguira retirar.
Simon intimidou os técnicos forenses para conseguir o teste de ADN
mais rápido de sempre, compará-lo com amostras da escova de
cabelo de Ryder e de outros objectos pessoais. O sangue não era dela.
No entanto, correspondia a amostras de ADN retiradas de uma
descoberta macabra que tivera lugar no Parque Monceau. Uma mão
humana cortada.
O anterior proprietário da mão fora um tal Gustave Le Pou, um
criminoso com uma longa história de agressões sexuais, violação
agravada, assalto à mão armada, roubo e duas suspeitas de
homicídio a seu crédito. Afinal parecia que Ryder lhe dissera a
verdade. Mas por que fora Le Pou ao apartamento dela? Teria sido
apenas por roubo?
Nem por sombras. Passava-se algo muito mais importante.
Alguém devia ter contratado Le Pou para a matar, ou para lhe roubar
algo — ou talvez as duas coisas. Simon sentiu-se com vontade de dar
um pontapé a si próprio por não a ter levado a sério na altura.
Mais perguntas. Quem é que apagara os vestígios da morte de
LePou, removera o seu cadáver do apartamento de Ryder, cortara-o
às postas e tentara, com evidente insucesso, fazê-lo desaparecer?
Qual era a relação com Zardi, o assistente de laboratório, e teria sido
a mesma gente a matá-lo? Onde é que encaixava Ben Hope — seria
ele o inglês que estava em perigo, segundo lhe dissera Roberta Ryder.
Se o incidente ferroviário tivera como intenção matar Hope, quando
Simon o vira mais tarde nessa noite ele parecera bastante
descontraído para alguém que acabara de escapar à justa de uma
morte horrível. Onde estariam agora Hope e Ryder? Seria Hope o
predador ou a presa? Esta coisa era um completo enigma.
Simon estava sentado no seu apertado gabinete bebendo um café
com Rigault quando o aguardado fax chegou de Inglaterra. Rasgou-o
da máquina.
— Benedict Hope — murmürou enquanto lia. — Trinta e sete anos
de idade. Educado em Oxford. Pais falecidos. Nenhum cadastro
criminal, nem sequer uma multa de estacionamento. Limpinho, o
filho-da-mãe. — Sorveu o café.
Passou a folha a Rigault enquanto o fax começava a fornecer uma
segunda página. Cuspiu a folha para a sua mão e Simon leu-a, com os
olhos a dardejar ao longo das linhas. No alto da folha encontrava-se
o cabeçalho do Ministério da Defesa britânico. Havia imenso texto
por baixo. Selos oficiais e avisos de confidencialidade em letras
grandes por todo o lado. A segunda página era mais do mesmo.
Assim como a terceira. Assobiou.
— O que é isso? — perguntou Rigault, olhando.
Simon mostrou-lhe.
— O cadastro militar do Hope.
Rigault leu-o e as suas sobrancelhas ergueram-se.
— Caralhos me fodam — exalou. — Isto é material da pesada.
— Olhou para Simon.
— Ele é o nosso atirador misterioso, sem dúvida.
— O que anda ele a fazer? O que se passa?
— Não sei — disse Simon — mas vou trazê-lo para aqui e descobrir.
Vou emitir um alerta para ele agora mesmo. — Pegou no telefone.
Rigault abanou a cabeça e tamborilou com os dedos no papel
impresso pelo fax.
— Vais precisar de metade da força policial francesa para apanhar
este cabrão.
Capítulo 32
A viagem para sul na auto-estrada de Paris era longa e quente. Em
Nevers a via encontrava-se interrompida por algum tempo e eles
tomaram a estrada nacional até Clermont-Ferrand, depois voltaram
à Auto-Estrada 75 na direcção de Le Puy. O destino de Ben ainda
ficava longe lá no Sul, na região do Languedoc onde poderia apanhar
o rasto a Klaus Rheinfeld e, tinha esperanças, fazer alguns progressos
na sua busca.
Com apenas o Diário de Fulcanelli meio lido como guia, ainda não
tinha sequer uma ideia clara sobre o que andava à procura. Tudo o
que podia fazer era seguir as magras pistas o melhor que pudesse e
ter esperança de que as coisas fossem ficando mais prometedoras à
medida que avançasse.
Roberta dormia a seu lado, com a cabeça a rolar-lhe nos ombros.
Estivera a dormir na última hora ou assim, o que era mais ou menos
o mesmo espaço de tempo que decorrera desde que tivera a certeza
de que estavam a ser seguidos. O BMW azul que ele agora observava
com meio olho no espelho retrovisor, mantendo-se no mesmo ritmo
deles através do tráfego, vinha-lhes no encalço desde algures depois
de Paris.
O carro perseguidor chamara-lhe primeiro a atenção numa
paragem para reabastecimento onde o Peugeot estivera à frente na
fila. Os quatro homens no BMW tinham agido nervosamente. Ben
podia perceber que eles não o queriam perder de vista.
Dirigiram-se novamente para a estrada, e Ben testou-os. Sempre
que ultrapassava um veículo mais lento à sua frente, o BMW seguia-
o. Quando abrandava para um ritmo que garantidamente irritava os
outros condutores, o BMW imitava-o, ignorando as buzinadelas
estridentes dos condutores indignados até que Ben acelerava e o
BMW com ele. Não havia qualquer dúvida.
— Porque é que estás a conduzir de forma tão errática? — queixou-
se sonolentamente Roberta a seu lado.
— É apenas a minha errática personalidade, julgo eu — retorquiu
ele. — Na verdade, detesto dizer-te isto, mas arranjámos um amigo.
O BMW azul — acrescentou ele quando ela se virou no assento,
subitamente bem desperta.
— Achas que são eles outra vez?
Ben assentiu.
— Ou isso, ou eles querem perguntar direcções.
— Podemos livrar-nos deles?
Ben encolheu os ombros.
— Depende de quão melgas queiram ser. Se não os conseguirmos
sacudir, eles seguir-nos-ão até chegarmos a uma estrada tranquila e
nessa altura vão tentar algo.
— Tentar o quê? Não respondas. Vê se os consegues sacudir.
— Está bem. Segura-te. — Reduziu duas mudanças e acelerou
fortemente. O Peugeot saltou para a frente, oscilando quando ele
virou bruscamente para ultrapassar um camião. Soou uma buzina lá
atrás. O rugido do motor encheu o carro. Ben olhou de relance para o
espelho e viu o BMW a dar-lhe caça, alternando entre as faixas de
rodagem.
— Se é assim que queres — exalou ele, e pisou ainda mais o
acelerador.
Mais à frente, um semi-reboque mudava de faixa. O Peugeot voou
para a nesga e ultrapassou-o pelo lado errado. O semi-reboque
oscilou furiosamente enquanto encolhia rapidamente no espelho,
com as buzinas a ar a fazerem-se ouvir iradamente.
— Estás com vontade de morrer? — gritou Roberta por cima do
barulho do motor.
— Só quando estou sóbrio.
— Estás sóbrio? — Roberta fez um esgar. — Também não
respondas a essa.
Um troço limpo à frente deles. Ben acelerou a fundo, fazendo a
agulha do velocímetro passar a marca dos 160 Km/h. Roberta
agarrou-se aos lados do assento. O BMW emergiu por entre a
confusão do tráfego que tinham deixado na sua esteira, acelerando
atrás deles.
Ben fez oscilar o 206 a alta velocidade de um lado para o outro
entre o tráfego a buzinar. O Peugeot era de longe mais ágil do que o
pesado BMW, e quando chegaram a uma saída os seus perseguidores
tinham já perdido uns cem metros. O Peugeot acelerou por uma
sinuosa estrada de campo. Ben virou ao acaso em dois
entroncamentos, à esquerda e depois à direita. Mas o que faltava ao
BMW em agilidade sobrava em velocidade de ponta e com um
condutor obviamente determinado era difícil de sacudir.
Apareceu uma tabuleta com a indicação de uma aldeia, e Ben
derrapou para fazer a curva. Encontravam-se numa longa recta. O
carro maior aproximou-se. Ben tinha um olho no mostrador e ia o
mais depressa que se atrevia. Atrás deles, um dos passageiros do
BMW pôs um braço de fora da janela e disparou vários tiros de
pistola.
A janela de trás do Peugeot estoirou.
Entraram na aldeia e aceleraram pela praça principal, derrapando
para evitar uma fonte e fazendo entrar em pânico alguns bebedolas
numa esplanada de um café, os quais rugiram e ergueram os punhos
apenas para mergulhar para se protegerem uma segunda vez quando
o BMW passou a roncar e fez saltar mesas e cadeiras por todo o lado.
Surgiu um entroncamento e Ben derrapou para a esquerda com
um chiar de pneus. Um camião oscilou e falhou-os por pouco,
embatendo num Fiat estacionado. O Fiat rolou para o caminho do
BMW enquanto este vinha a fazer a curva em perseguição. O BMW
bateu no carro à deriva com uma forte pancada lateral e fê-lo entrar
em pião, cruzando a estrada e detendo-se contra uma parede. O
BMW, com um guarda-lamas amolgado e o capô metido dentro,
recompôs-se e voltou à perseguição, ganhando velocidade.
Estavam fora da aldeia, largados numa estrada cheia de curvas
com árvores a pontilhá-la de cada um dos lados. Surgiu uma
abertura entre as árvores do lado direito.
Ben torceu o volante e o Peugeot saltou para fora da estrada,
atingindo o caminho rural com os pneus a patinar na superfície solta.
Controlou o derrapar e o carro endireitou-se, depois a suspensão foi
martelada até aos batentes por um buraco profundo e eles tinham os
estômagos na boca.
O BMW mantinha-se atrás, qual cão de caça. A terra voava na
esteira deles. Roberta voltou-se novamente para ver o nariz
amolgado do BMW desaparecer numa nuvem de pó enquanto
mergulhava no buraco.
O Peugeot correu para uma curva apertada. Um tractor encheu
subitamente a estrada. Derrapando drasticamente na superfície
solta, Ben arranjou maneira de apontar o carro a um estreitíssimo
portão de uma quinta. Este desfez-se em lascas como se fosse de
madeira de balsa e o Peugeot entrou aos solavancos no meio de um
campo de cultivo. Andou aos pinotes sobre a superfície irregular do
campo e desceu um plano acentuadamente inclinado. Um vazio
súbito quando a frente do carro mergulhou num espaço vazio.
Depois um impacto quando se esmagaram na margem oposta da
profunda vala. O Peugeot saltou e jazeu imóvel.
Estavam a sair do carro quando o BMW chegou aos trambolhões
colina abaixo atrás deles. Vendo a coluna de pó levantada pelo
acidentado Peugeot, o condutor travou — com demasiada força,
provocando uma derrapagem lateral ao BMW. Este rodou, embateu
noutro buraco, ergueu-se de lado sobre duas rodas e capotou,
acabando por se deter de pernas para o ar com uma grande nuvem
de pó.
Os seus quatro aturdidos ocupantes rastejaram para o exterior.
Um homem gordo com sangue a correr-lhe da têmpora disparou
uma pistola contra o Peugeot. A janela do passageiro rebentou e fez
chover vidro sobre Roberta enquanto esta se arrastava para se
proteger.
— Roberta! — Ben agarrou na Browning e respondeu ao fogo, a
arma a saltar-lhe na mão enquanto a bala atravessava a parte lateral
do BMW a dez centímetros da cabeça do homem gordo. Roberta
abrigou-se junto a ele.
Três dos seus perseguidores mergulharam para trás do BMW. O
quarto precipitou-se para trás de uma rocha, agarrado a uma
caçadeira de canos curtos. Disparou. O disparo rasgou um buraco
irregular no tejadilho do Peugeot, e Roberta gritou. Ben ergueu de
novo a Browning e deixou sair quatro rápidos disparos. Ergueu-se pó
em redor do atirador prostrado. O quarto disparo de Ben apanhou-o
na parte superior do braço. Rolou para fora da cobertura da rocha,
recarregando a caçadeira. Ben disparou de novo contra ele, e
continuou a atirar projéctil após projéctil até o homem não se mexer
e a Browning ficar sem munições. Ejectou o carregador usado e
procurou outro no bolso.
O bolso estava vazio. Lembrou-se subitamente de que todos os
carregadores e munições se encontravam no seu saco dentro do
carro.
Um outro homem saiu de trás do BMW invertido. A arma nas suas
mãos era negra e oblonga, com um silenciador curto e grosso e um
comprido carregador que servia de punho à arma como uma pistola.
Disparou uma rajada tagarela da pistola-metralhadora Ingram, a
qual polvilhou a parte lateral do Peugeot com buracos e forçou Ben a
abrigar-se quando tentava entrar no carro. O terceiro e o quarto
atiradores estavam a saltar de trás do BMW, com pistolas nas mãos,
avançando cautelosamente. O homem com a Ingram atirou outro
borrifo, chicoteando pó e pedras numa linha para a esquerda de Ben.
Nada bom.
Subitamente a Ingram esvaziara-se a si própria, e o homem lutava
por recarregá-la. Ben viu a sua oportunidade. Alcançou o interior do
Peugeot e agarrou no saco.
Vasculhou no interior e encontrou o que procurava. Enfiou um
carregador novo enquanto o homem com a Ingram se aproximava.
Atirando o braço com a arma para cima do tejadilho do carro, Ben
atingiu-o duas vezes no peito e viu-o cair de costas com as pernas a
dar pontapés no ar. O atirador mais próximo do BMW correu para se
abrigar de novo, disparando ao calhas por cima do ombro. O colega,
percebendo que se encontrava demasiado longe do carro, apoiou-se
num dos joelhos e esvaziou a 9 mm contra Ben.
Ben agachou-se enquanto as balas zuniam ao passar.
Mas uma delas apanhou-o. O impacto no seu lado direito fê-lo
contorcer-se. Endireitou-se e respondeu ao fogo. O homem caiu
esparramado com os braços a esvoaçar e a pistola a tombar no chão.
Ben cambaleou. Havia sangue por todo o lado. A sua visão nublou-
se e subitamente encontrava-se a olhar alucinadamente para um
círculo de copas de árvores e céu cinzento.
Roberta viu-o a cair, gritando NÃO!!! e apanhando a pistola
quando esta tombou. Nunca antes disparara uma arma, mas a
Browning era fácil — apenas apontar e premir. O último atirador
saltou novamente de trás do BMW e disparou contra ela. Roberta
ouviu o assobio quando a bala passou por ela.
Segurando a Browning com ambas as mãos respondeu ao fogo e
fê-lo abrigar-se debaixo de uma chuva de vidro. Roberta agarrou na
mochila através da janela quebrada do Peugeot.
— Consegues correr? — gritou para Ben. Ben gemeu, rolou e
cambaleou para se pôr de pé. Os joelhos estavam fracos. Soou outro
disparo. A bala de resposta ao calhas de Roberta apanhou o homem
na coxa, e com um grito e um jacto de sangue este caiu para trás do
carro. Agora a Browning estava novamente vazia e já não queria
trabalhar mais. O homem ferido saiu de trás do carro a rastejar com
uma caçadeira de canos duplos. Disparou e o espelho lateral do
Peugeot explodiu.
— Vamos! — Roberta agarrou o braço de Ben e correram pelo
plano inclinado. Abaixo deles, um monte irregular de terra conduzia
abruptamente a uma sinuosa estrada rural. Um camião
transportando uma carga de feno arrastava-se lentamente por esta.
Em quatro saltos em passo de corrida encontraram-se a três metros
de altura, mesmo por cima do camião, e então Roberta atirou-se para
o ar, levando Ben consigo. Navegaram pelo espaço durante um
aterrador segundo. A caixa de carga do camião precipitou-se ao
encontro deles — e depois desabaram sobre a espinhosa cama de
feno, numa confusão de pernas e braços.
O homem com a caçadeira coxeou a praguejar pelo declive abaixo,
passando pelos seus três companheiros mortos. Rugiu com fúria ao
observar o camião, com Ben e Roberta na caixa, a desaparecer no
lusco-fusco.
Capítulo 33
Paris

Depois da longa e quente viagem desde Roma, Franco Bozza não


estava com disposição para amabilidades. Conduziu o Porsche 911
Turbo por entre o tráfego dos arredores da cidade e dirigiu-se para o
subúrbio de Créteil. Em breve encontrou o que procurava numa zona
industrial degradada da periferia. A fábrica de embalagens
desactivada estava afastada da rua, por detrás de portões de ferro
enferrujados que se encontravam fechados com uma corrente. As
ervas daninhas enchiam o pátio de entrada. Bozza deixou o motor do
Porsche a trabalhar e caminhou até aos portões. O cadeado era
brilhante e novo. Tirou a chave do bolso e abriu-o. Verificou à
esquerda e à direita para se certificar de que não havia ninguém por
perto, depois empurrou o portão do lado direito com uma chiadeira
de dobradiças enferrujadas. Conduziu o Porsche para o interior,
depois fechou os portões atrás de si. A rua encontrava-se deserta.
Bozza estacionou o carro fora das vistas nas traseiras do
negligenciado edifício, e entrou pela porta de trás que sabia ter sido
deixada aberta para si.
A aparição da alta, larga e silenciosa figura com o comprido
casacão negro criou um arrefecimento no ar para os três homens que
tinham estado a guardar o inconsciente Gaston Clément. Naudon,
Godard e Berger conheciam a reputação do Inquisidor e mantinham-
se o mais afastados possível dele, mal se atrevendo sequer a olhar
para ele enquanto o homem abria a mala negra que transportara
consigo e dispunha o brilhante sortido de instrumentos num
carrinho. Alguns dos artigos eram obviamente de uso cirúrgico,
como os bisturis e a serra. Só se podiam deitar a adivinhar acerca do
macabro propósito dos alicates, martelo e maçarico.
No centro do vasto espaço vazio, o velho alquimista encontrava-se
pendurado pelos pés, nu e flácido, de uma corrente passada em volta
de uma trave. O último artigo que Bozza retirou da mala foi o pesado
macacão plastificado. Enfiou-o cuidadosamente por cima da cabeça e
ajeitou-o ao longo do corpo. Depois percorreu a fila de instrumentos
com um dedo enluvado, decidindo por onde começar. A sua face
estava inexpressiva, impassível. Escolheu uma sonda longa e afiada e
fê-la girar nos dedos enluvados. Assentiu para si mesmo.
Depois começaram as perguntas sussurradas, e a gritaria.
Passado pouco mais de uma hora, os gritos do velhote tinham sido
reduzidos a uma constante e balbuciante choradeira. Havia uma
poça de sangue a alastrar por baixo dele, e o macacão plastificado de
Bozza e os instrumentos no carrinho encontravam-se densamente
manchados do mesmo.
Mas isto fora uma perda de tempo. O velhote estava doente e
frágil, e Bozza podia ver pelos hematomas e feridas incrustadas de
sangue na sua face que os captores o tinham espancado até à
inutilidade muito antes de ele lá ter chegado. Agora o seu corpo
devastado entrara em choque total e o torturador sabia que não valia
a pena prolongar a agonia. Não havia nada que se pudesse obter dele.
Bozza caminhou até ao carrinho e abriu o fecho de uma pequena
bolsa. A seringa no interior continha uma dose maciça da mesma
substância que os veterinários usavam para praticar a eutanásia em
cães. Regressou ao corpo pendurado e espetou a agulha no pescoço
de Clément.
Quando estava tudo acabado, Bozza virou-se e olhou friamente
para os três homens. A ansiedade com a sua presença diminuíra, e
eles encontravam-se de pé num canto distante da fábrica,
tagarelando e fumando cigarros, rindo e brincando acerca de algo.
Bozza sorriu. Não se iriam rir muito mais. O que eles não sabiam
sobre a sua visita era que o obter informações de Clément não era a
única razão para ter sido enviado por Usberti. As suas ordens para
"limpar a casa" iam mais além. Estes três amadores tinham lixado as
suas tarefas vezes de mais. Os dias em que a Gladius Domini
contratava pequenos criminosos para fazer o seu trabalho sujo
estavam a chegar ao fim.
Gesticulou para os fazer aproximar. Godard, Naudon e Berger
esmagaram os cigarros, dispararam olhares sérios uns para os outros
e aproximaram-se. O bom humor evaporara-se subitamente,
rapidamente dando de novo lugar ao nervosismo. Naudon ostentava
um fraco sorriso, prestes a dizer algo.
Encontravam-se a dez metros quando Bozza sacou casualmente
uma Beretta .380 com silenciador e os fez cair numa sucessão rápida
sem uma única palavra. Os corpos tombaram silenciosamente para o
chão. Um cartucho usado tilintou no cimento. Bozza olhou
impassivelmente para os homens mortos enquanto desenroscava o
silenciador e colocava a pequena pistola no coldre.
Quatro corpos para eliminar. Desta vez não sobrariam vestígios.
Capítulo 34
A carrinha afastou-se levantando uma nuvem de pó e fumo de
diesel. O motorista de entregas estava mais do que satisfeito com o
volume no seu bolso, com a melodia de 1000 euros, que esta
estranha boleia que dera — à mulher americana de mau feitio e ao
seu silencioso, pálido e com ar de doente namorado — lhe rendera
para fazer uns quilómetros extra fora da sua rota habitual até ao
pequeno aglomerado de Saint-Jean. Interrogou-se sobre o que seria
aquilo... mas por outro lado, o que tinha a ver com isso? Esta noite as
bebidas seriam por sua conta.
Roberta ainda andava a tirar pedaços de feno do cabelo depois da
noite passada desconfortavelmente no celeiro. O agricultor para cujo
camião tinham saltado não chegara a dar conta dos seus passageiros.
Depois da viagem acidentada através dos caminhos rurais ele metera
o camião no celeiro de marcha atrás e depois desaparecera. Roberta
descera furtivamente e andara à caça até encontrar um velho e usado
cobertor para tapar Ben. Ele tremia e tinha imensas dores.
Roberta passara a maior parte da noite a vigiá-lo e interrogando-se
sobre se devia tê-lo levado a um hospital. Dois gatos da quinta
descobriram-nos e aconchegaram-se a ela na profunda cama de feno.
Roberta deixara-se dormir algum tempo depois das três, e pareceu
que tinham passado apenas minutos antes que o cantar à alvorada de
um galo os despertasse. Arrastaram-se para longe antes que o
agricultor aparecesse.
Levaram horas a chegar a Saint-Jean, e o Sol da tarde estava a
começar a sua curva descendente. A aldeia parecia deserta.
— Este sítio parece que não deve ter mudado muito nos últimos
séculos — disse Roberta, olhando em redor.
Ben encostara-se a uma parede de pedra, com a cabeça pendente.
Ele estava com muito mau aspecto, pensou ansiosamente Roberta.
— Espera aqui. Eu vou ver se consigo descobrir alguém que nos
possa ajudar.
Ben assentiu fracamente. Roberta tocou-lhe na fronte. Estava a
arder, mas ele tinha as mãos frias. A dor no flanco tornava-lhe a
respiração difícil. Acariciou-lhe a face.
— Talvez haja um médico na aldeia — disse ela.
— Não quero um médico — murmurou Ben. — Vai buscar o
sacerdote. Vai buscar o padre Pascal Cambriel.
Pela primeira vez na vida, Roberta deu consigo a rezar enquanto
andava pela rua vazia. O piso era de terra batida, esboroado devido à
falta de chuva. As casas antigas, sujas de uma maneira que teria
parecido esquálida em qualquer lado menos no Sul de França,
pareciam apoiar-se umas nas outras.
— Se estás mesmo aí em cima, Senhor — disse para si própria -,
então por favor deixa-me encontrar o padre Pascal. — Roberta
arrepiou-se subitamente com a ideia de que lhe dissessem que ele
morrera, ou que já não estivesse ali. Acelerou o passo.
A igreja situava-se no extremo oposto da aldeia. Ao lado tinha um
pequeno cemitério e a seguir um chalé de pedra. Roberta podia ouvir
o som acolhedor de galinhas a cacarejar ao abrigo de um anexo. Um
velho Renault 14, poeirento e muito usado, encontrava-se
estacionado à porta.
Um homem saiu de entre duas casas. Parecia um trabalhador do
campo, com a face de linhas profundas como cabedal dos anos a
trabalhar ao sol ardente. O homem abrandou ao vê-la.
— Monsieur, se faz o favor — chamou ela. Ele olhou-a
curiosamente, apressou o passo e desapareceu numa das casas,
fechando-lhe a porta na cara. Roberta ficou chocada — e depois
ocorreu-lhe que uma mulher estrangeira desgrenhada e encardida,
com uma camisa manchada de sangue e as calças de ganga rasgadas
talvez não fosse uma visão típica para estes lados. Apressou-se,
pensando em Ben.
— Madame? Je peux vous aider? — disse uma voz. Roberta virou-
se e viu uma senhora idosa, toda vestida de negro com um xaile em
redor dos ombros. Um crucifixo pendia-lhe do pescoço enrugado
numa corrente.
— Por favor, sim, espero que me possa ajudar — respondeu
Roberta em francês. — Procuro o pároco desta aldeia?
A senhora idosa ergueu as sobrancelhas.
— Sim? Ele está cá.
— O padre Pascal Cambriel ainda é o pároco desta aldeia?
— Sim, ele ainda cá está — disse ela, exibindo um sorriso com falta
de dentes. — Eu sou a Marie-Claire. Tomo conta da casa dele.
— É capaz de me levar até ele, por favor? É importante. Precisamos
de ajuda.
Marie-Claire conduziu-a até ao chalé e entraram.
— Padre — chamou ela. — Temos uma visita.
O chalé era um domicílio humilde, escassamente mobilado e no
entanto transmitindo um ar de imenso calor e segurança. A lareira de
fim de tarde estava pronta para acender, com os troncos empilhados
sobre os gravetos. A uma mesa simples de pinho encontravam-se
duas singelas cadeiras de madeira, e na outra extremidade da sala
estava um velho sofá coberto por um cobertor. Um grande crucifixo
de ébano pendia de uma parede caiada, e havia uma imagem do papa
ao lado de uma imagem da crucificação.
Ouviu-se o ranger de passos incertos vindos das escadas, e o padre
apareceu. Agora com setenta anos, Pascal Cambriel tinha alguma
dificuldade em andar e apoiava-se pesadamente na bengala.
— O que posso fazer por si, minha filha? — perguntou ele,
assentando um olho curioso sobre o aspecto pouco comum de
Roberta.
— Magoou-se? Houve um acidente?
— Eu não estou magoada, mas estou com um amigo que não se
encontra bem — disse ela. — É o padre Pascal Cambriel, não é?
— Sou.
Roberta fechou os olhos. Obrigada, Senhor.
— Padre, nós vínhamos a caminho de propósito para o conhecer
quando o meu amigo foi ferido. Ele está doente.
— Isto é sério. — Pascal franziu o sobrolho.
— Eu sei o que me vai dizer, que ele devia ir a um médico. Eu não
posso explicar agora, mas ele não quer um médico. Pode ajudar-me?
— De qualquer maneira, já cá não há nenhum médico — disse-lhe
Pascal enquanto passavam sobre os buracos na rua no Renault dele.
— O doutor Bachelard faleceu há dois anos, e ninguém ocupou o
seu lugar. Os jovens não querem vir para Saint-Jean. É um lugar a
morrer, lamento dizê-lo.
Ben estava semiconsciente quando o carro do pároco se deteve nos
arredores da aldeia.
— Senhor, ele está muito doente. — Pascal coxeou até à forma
encostada de Ben e tomou-lhe um braço. — Consegue ouvir-me, meu
filho? Mademoiselle, vai ter de me ajudar a metê-lo no carro.
Roberta, Pascal e a velha Marie-Claire ajudaram Ben a subir as
escadas do chalé, para o quarto de hóspedes do pároco. Ben foi
depositado na cama e Pascal desabotoou-lhe a camisa
ensanguentada. Estremeceu ao ver a ferida na zona das costelas. Não
disse nada, mas podia ver que era uma ferida provocada por uma
arma de fogo. Já as vira anteriormente, há muitos anos. Sentiu com
os dedos. A bala passara a direito pelo músculo e saíra pelo outro
lado.
— Marie-Claire, pode fazer-me o favor de trazer água quente,
ligaduras e desinfectante? E ainda temos para aí algum daquele
preparado de ervas para limpar feridas?
Marie-Claire saiu obedientemente em bicos dos pés para cumprir a
sua tarefa.
Pascal tomou o pulso a Ben.
— Está muito acelerado.
— Ele vai ficar bem? — Roberta ficou sem pinta de sangue, com os
punhos cerrados nos flancos.
— Vamos precisar de alguns medicamentos da Arabelle.
— Arabelle? É uma curandeira local?
— A Arabelle é a nossa cabra. Temos alguns antibióticos de quando
ela teve uma infecção na pata há algum tempo. Receio que isso seja o
limite das minhas capacidades médicas. — Pascal sorriu. — Mas a
Marie-Claire sabe muito acerca de remédios de ervas. Já me ajudou
muitas vezes, e a outros membros da nossa pequena comunidade.
Julgo que aqui o nosso jovem amigo está em boas mãos.
— Padre, estou-lhe tão agradecida pela sua ajuda.
— É o meu dever, mas também um prazer, o prestar assistência
aos necessitados — retorquiu Pascal. — Já passou algum tempo
desde que este quarto foi usado para cuidar de um homem doente.
Julgo que devem ter passado uns cinco, seis anos mesmo, desde que
a última alma ferida deu com o caminho para a nossa aldeia.
— Foi o Klaus Rheinfeld, não foi?
Pascal parou abruptamente o que estava a fazer e voltou-se para
conceder um olhar penetrante a Roberta.
— Ele está a dormir — murmurou Pascal enquanto descia as
escadas. — Vamos deixá-lo por algum tempo.
Roberta estava fresca do banho e vestia as roupas que Marie-Claire
lhe dera.
— Mais uma vez obrigada pela sua ajuda — disse ela. — Não sei o
que teríamos feito...
Pascal sorriu.
— Não há necessidade de me agradecer. Você deve ter fome,
Roberta. Comamos.
Marie-Claire serviu uma refeição simples — sopa, pão e um copo
do vinho de Pascal, feito da sua própria pequena vinha. Comeram em
silêncio, tendo por único som o cantar dos grilos no exterior e um cão
a ladrar à distância. De tempos a tempos o pároco estendia a mão e
tirava um tronco rachado de um cesto e atirava-o para a lareira.
Depois de terminada a refeição, Marie-Claire levantou a mesa, e
depois disse boa noite antes de regressar ao seu próprio chalé do
outro lado da rua. Pascal acendeu um comprido cachimbo de
madeira e mudou-se para uma cadeira de balouço junto à lareira.
Desligou a luz principal de modo a ficarem banhados pelo cintilante
brilho alaranjado do lume, e convidou Roberta para se sentar à sua
frente num cadeirão.
— Acho que temos algumas coisas para discutir, você e eu.
— É uma longa e estranha história, padre, e eu nem sequer sei tudo
o que há para saber. Mas farei o meu melhor para lhe explicar a
situação. — Roberta contou-lhe o que sabia acerca da missão de Ben,
o perigo em que se vira metido, as coisas que lhe tinham acontecido a
ela, os seus receios. O relato de Roberta foi errático e desconexo.
Estava terrivelmente cansada e doía-lhe o corpo.
— Agora compreendo a vossa relutância em ir a um médico —
disse Pascal. — Têm receio de ser denunciados e acusados falsamente
destes crimes. — Olhou para o relógio de parede. — Minha filha, está
a tornar-se tarde. Você está exausta e deve descansar. Vai ter de
dormir no sofá. É na verdade muito confortável. Eu trouxe-lhe
alguma roupa de cama para baixo.
— Obrigada, padre. Estou certamente exausta mas penso, se não se
importar, que devo ficar lá em cima com o Ben.
Ele tocou-lhe no ombro.
— Você é-lhe uma companheira leal. Gosta muito dele.
Roberta ficou em silêncio. As palavras atingiram-na.
— Mas eu fico lá em cima com ele enquanto você descansa —
continuou Pascal. — Hoje fiz muito pouco a não ser cuidar das
galinhas, ordenhar a Arabelle, Deus abençoe a querida criatura, e
ouvir duas confissões muito rotineiras. — Sorriu.
Pascal ficou até tarde e leu a sua Bíblia à luz de uma vela, enquanto
Ben se agitava e virava espasmodicamente. Uma vez, por volta das
quatro, Ben acordou e disse:
— Onde é que estou?
— Com amigos, Benedict — retorquiu o pároco. Tocou na fronte
encharcada de Ben e voltou a ajeitá-lo para poder dormir. —
Descanse agora. Está em segurança. Eu vou rezar por si.
Capítulo 35
Ben tentou mexer as pernas para fora da cama. Já estava aqui
deitado há tempo suficiente.
Era uma tarefa dura, um centímetro de cada vez. A pressão nos
músculos feridos era agonizante. Cerrou os dentes enquanto baixava
cuidadosamente os pés para o chão e se erguia lentamente. A camisa
tinha-lhe sido lavada e bem arrumada numa cadeira. Levou imenso
tempo a vestir-se.
Pela janela podia ver os telhados da aldeia e as colinas e
montanhas que se erguiam para o céu claro para além desta.
Amaldiçoou-se furiosamente a si próprio por ter deixado acontecer
esta situação. Tinha subestimado os perigos logo desde o começo da
missão. E ali estava ele, preso naquelas águas-furtadas, mal
conseguindo mexer-se ou fazer algo de útil, enquanto uma criança
moribunda necessitava da sua ajuda. Agarrou no frasco e deu um
grande gole. Pelo menos isto é algo que posso fazer. Desejou ter uma
garrafa inteira, ou talvez mesmo duas.
Então recordou-se do Diário de Fulcanelli. Dobrou-se com
dificuldade e pescou-o do saco. Deitou-se na cama com o Diário,
folheando as páginas, e retomou a leitura:

3 de Setembro de 1926
Finalmente aconteceu: o aluno desafiou o mestre. Enquanto
escrevo, consigo ainda ouvir as palavras de Daquin a soar-me nos
ouvidos quando ele hoje me confrontou no laboratório. Os olhos
dele estavam ardentes, e os punhos fechados ao lado do corpo.
"Mas, mestre", protestou ele. "Não estaremos a ser egoístas?
Como é que pode dizer que é correcto guardar segredo de tão
importante conhecimento quando este poderia beneficiar tantas
pessoas? Não está a ver o bem que isto poderia fazer? Pense em
como isto poderia mudar tanta coisa!"
"Não, Nicholas", insisti eu. "Não estou a ser egoísta. Estou a ser
cauteloso. Estes segredos são importantes, sim. Mas são demasiado
perigosos para poderem ser revelados a qualquer um. Somente os
iniciados, os seguidores, deverão ser alguma vez autorizados a
possuir este conhecimento."
Nicholas olhou-me fixamente com fúria. "Então não vejo para
que possam servir", gritou ele. "O mestre está velho. Passou a maior
parte da sua vida à procura, mas não valerá de nada se não o usar.
Use-o para ajudar o mundo."
"E tu és jovem, Nicholas", retorqui eu. "Demasiado jovem para
compreender o mundo que tanto queres ajudar. Nem todos são tão
puros de coração como tu és. Há pessoas que usariam este
conhecimento para servir a sua própria ganância e os seus
próprios fins. Não para fazer o bem, mas para fazer o mal."
Na mesa junto a nós encontrava-se o antigo pergaminho no seu
tubo de couro. Peguei-lhe e exibi-o perante Nicholas. "Eu sou um
descendente directo dos autores desta sabedoria", disse eu. "Os
meus antepassados cátaros sabiam a importância de preservar os
seus segredos, a todo o custo. Sabiam quem andava atrás deles, e
sabiam o que teria acontecido se estes tivessem caído nas mãos
erradas. Deram as suas vidas a tentar preservar esta sabedoria."
"Eu sei, mestre, mas..."
Interrompi-o. "Este conhecimento com que fomos privilegiados é
poder, e o poder é uma coisa perigosa. Corrompe os homens, e atrai
o mal. Foi por isso que te avisei sobre a responsabilidade que te
estava a dar. E não te esqueças — juraste um voto de silêncio."
Deixei cair a cabeça de tristeza. "Receio ter-te revelado demasiado",
acrescentei. "Quer isso dizer que não me vai revelar mais nada? E o
resto? O segundo grande segredo?"
Abanei a cabeça. "Lamento, Nicholas. É demasiado conhecimento
para alguém tão jovem e impulsivo. Eu não posso desfazer o que já
está feito, mas não te levarei mais longe até teres demonstrado
maior sabedoria e maturidade."
Ao ouvir estas palavras, ele saiu intempestivamente do
laboratório. Eu podia ver que ele se encontrava à beira das
lágrimas. Também eu senti uma faca no coração sabendo o que se
interpusera entre nós.

Ben ouviu uma suave batida na porta do quarto. Olhou por cima
do Diário enquanto a porta se abria uma nesga e aparecia a face de
Roberta.
— Como é que te estás a sentir agora? — inquiriu ela. Ela parecia
preocupada ao entrar transportando um tabuleiro.
Ben fechou o Diário.
— Estou óptimo.
— Olha aqui, eu preparei isto para ti. — Roberta depositou uma
tigela de canja de galinha a deitar fumo em cima da mesa. — Come
enquanto está quente.
— Quanto tempo estive eu de fora?
— Dois dias.
— Dois dias! — Ben tomou um sorvo de uísque, estremecendo com
o movimento.
— Achas que devias beber, Ben? Tens estado a antibióticos. —
Roberta suspirou. — Pelo menos come alguma coisa. Precisas de
reaver as forças.
— Vou comer. Podes dar-me aí um jeito com o meu saco? Os meus
cigarros estão aí.
— Neste momento fumar não te faz bem.
— Nunca me faz bem.
— Fixe. Faz como quiseres. Eu vou buscá-los.
— Não, só... — Ben mexeu-se demasiado abruptamente e a dor
disparou através dele. Encostou-se para trás contra a almofada,
fechando os olhos.
Roberta agachou-se. Enquanto procurava no interior do saco, um
pequeno objecto caiu e aterrou no chão. Roberta apanhou-o. Era
uma minúscula fotografia numa moldura de prata. Roberta
observou-a, interrogando-se sobre o que estaria aquilo a fazer ali. A
fotografia era antiga e desmaiada, dobrada e gasta nas extremidades
como se tivesse sido transportada numa carteira durante anos. Era
uma fotografia de uma criança, uma menina doce com cerca de oito
ou nove anos e cabelo louro. Tinha olhos azuis, cintilantes e
inteligentes, e uma cara sardenta, e estava a sorrir para a máquina
com uma expressão de aberta felicidade.
— Quem é ela, Ben? É adorável. — Roberta olhou para ele e o seu
sorriso desvaneceu-se.
Ele fixava-a com uma expressão de fria ira que ela nunca antes
vira.
— Larga isso e põe-te daqui para fora — disse ele.
O padre Pascal viu a expressão de fúria e mágoa na face de Roberta
quando esta desceu as escadas. Pousou-lhe uma mão no braço.
— Por vezes quando um homem está a sofrer, disparata e diz e faz
coisas que não quer dizer e fazer — disse ele.
— Só porque ele está ferido, isso não o desculpa por se comportar
como um filho-da... — Roberta controlou-se. — Eu só estava a tentar
ajudá-lo.
— Não era a esse sofrimento que me referia — disse Pascal. — A
verdadeira dor encontra-se no coração dele, no espírito, não nos
ferimentos. — Sorriu calorosamente.
— Eu vou falar com ele.
Pascal foi até ao quarto de Ben e sentou-se ao lado dele na beira da
cama. Ben estava deitado a fixar o infinito, agarrado ao seu frasco. O
uísque adormecia-lhe ligeiramente as dores. Tinha conseguido
recuperar os cigarros, somente para descobrir que o maço se
encontrava quase vazio.
— Não se importa que me junte a si? — inquiriu Pascal.
Ben abanou a cabeça.
Pascal esteve em silêncio por instantes, depois falou carinhosa e
calorosamente a Ben.
— Benedict, a Roberta contou-me algumas coisas sobre a sua
ocupação. Você sente um apelo para ajudar os necessitados... uma
coisa realmente nobre e recomendável.
Também eu sinto um apelo, que desempenho o melhor que posso.
Devo dizer que é menos dramático, menos heróico, do que o seu.
Mas o propósito que o Senhor tem para mim é, não obstante, um
importante dever para cumprir. Eu ajudo os homens a aliviar o seu
sofrimento. A encontrar Deus. Para alguns, isso é simplesmente o
encontrar da paz dentro de si próprios, seja qual for a forma em que
isso se revela.
— Esta é a minha paz, padre — murmurou Ben. Exibiu o frasco.
— Você sabe que isso não é suficiente, que nunca será o suficiente.
Não o pode ajudar, só o pode magoar. Enterra o seu sofrimento
ainda mais fundo no coração. A dor é como um espinho envenenado.
Se não for libertada, irá ulcerar como um ferimento terrível. E não
será um ferimento que possa ser curado pela simples aplicação de
penicilina destinada a uma cabra.
Ben riu-se amargamente.
— Iá, provavelmente tem razão.
— Você tem ajudado imensas pessoas, segundo parece — disse
Pascal. — E no entanto continua no seu trajecto de autodestruição,
dependendo do álcool, esse falso amigo.
Quando a alegria de ajudar os outros se desvaneceu, não volta a
dor pouco depois, e cada vez pior?
Ben não disse nada.
— Eu acho que você conhece a resposta.
— Olhe — disse Ben. — Eu estou agradecido por tudo o que fez por
mim. Mas já não ando interessado em mais sermões. Essa parte de
mim morreu há muito tempo. Portanto, com o devido respeito para
consigo, padre, se veio aqui acima para me pregar, está a perder o
seu tempo.
Ficaram sentados em silêncio.
— Quem é a Ruth? — perguntou subitamente Pascal.
Ben atirou-lhe um olhar penetrante.
— A Roberta não lhe disse? A menina que está a morrer, a neta do
meu cliente. A que estou a tentar salvar. Se não for demasiado tarde.
— Não, Benedict, não é a essa que me refiro. Quem é a outra Ruth,
a Ruth dos seus sonhos?
Ben sentiu o sangue transformar-se em gelo e o coração acelerou-
se. Com a garganta apertada disse:
— Não sei do que está a falar. Não há nenhuma Ruth nos meus
sonhos.
— Quando um homem passa duas noites com um paciente a
delirar — disse Pascal -, é capaz de descobrir coisas sobre ele que
podem não ser discutidas abertamente. Você tem um segredo, Ben.
Quem é a Ruth... quem era a Ruth?
Ben deixou escapar um profundo suspiro. Ergueu de novo o frasco.
— Porque é que não me deixa ajudá-lo? — disse gentilmente
Pascal.
— Vá, partilhe o seu fardo comigo.
Após um longo silêncio Ben começou a falar calma, quase
mecanicamente. Os olhos fixavam o espaço enquanto passava as
imagens familiares e dolorosas pela milionésima vez na sua mente.
— Eu tinha dezasseis anos. Ela era minha irmã. Tinha apenas nove
anos. Éramos tão próximos... éramos almas gémeas. Ela foi a única
pessoa que alguma vez amei com todo o meu coração. — Ben
produziu um sorriso amargo. — Ela era como a luz do Sol, padre. Só
queria que a visse. Para mim, ela era a razão para acreditar num
Criador.
Isto pode ser uma surpresa para si, mas a certa altura eu estive
para me tornar um homem do clero.
Pascal ouvia atentamente.
— Continue, meu filho.
— Os meus pais levaram-nos para umas férias no Norte de África,
em Marrocos — prosseguiu Ben. — Ficámos num grande hotel. Um
dia os meus pais decidiram ir visitar um museu, e deixaram-nos no
hotel. Disseram-me para tomar conta da Ruth e para não sair das
instalações do hotel sob quaisquer circunstâncias.
Ben fez uma pausa para acender o seu último cigarro.
— No mesmo hotel encontrava-se uma família suíça. Tinham uma
filha cerca de um ano mais velha do que eu. O nome dela era
Martina. — Falando disto pela primeira vez em anos, conseguia
lembrar-se perfeitamente de tudo. Viu a face de Martina na sua
mente. — Ela era muito atraente. Eu gostava mesmo dela, e ela
convidou-me para sair. Queria visitar um souk sem os pais atrás. A
princípio eu disse que não, tinha de ficar no hotel e tomar conta da
minha irmã. Mas a Martina ia voltar para a Suíça no dia seguinte. E
disse-me que se eu fosse com ela ao souk, quando voltássemos ela
ia... enfim, eu fui tentado. Decidi que não haveria problema em levar
também a Ruth. Pensei que os meus pais nunca haveriam de saber.
— Continue — disse Pascal.
— Saímos do hotel. Vagueámos pelo mercado. Estava cheio de
gente, de bancas com produtos, de encantadores de serpentes, todas
essas estranhas vistas e músicas e cheiros.
Pascal anuiu.
— Eu estive na Argélia, durante a guerra, há muitos anos. Um
mundo estranho e exótico, para nós europeus.
— Foram bons momentos — disse Ben. — Eu gostava de estar com
a Martina, e ela estava sempre a dar-me a mão enquanto ia olhando
para as bancas. Mas eu conservei a Ruth vigiada de perto. Ela ficou
mesmo a meu lado. Depois a Martina viu um pequeno guarda-jóias
em prata de que gostou. Ela não tinha dinheiro suficiente, e eu disse
que lho oferecia. Virei as costas à Ruth enquanto contava o dinheiro.
Foi apenas por instantes. Comprei o presente para a Martina, e ela
abraçou-me. — Ben fez nova pausa. Tinha a garganta seca. Ia dar
outro gole do frasco.
Pascal deteve-lhe o braço, gentil mas firmemente.
— Deixemos de momento os amigos da onça fora disto.
Ben aquiesceu, engoliu com dificuldade.
— Não sei como poderá ter acontecido tão depressa. Só tirei os
olhos dela por alguns segundos. Mas depois ela tinha... desaparecido.
— Encolheu os ombros. — Desapareceu simplesmente, tal e qual.
Sentia o coração como uma enorme bolha pronta a rebentar.
Colocou a cabeça nas mãos, abanando-a lentamente de um lado para
o outro.
— Ela já não estava ali. Não a ouvi chamar. Não vi coisa nenhuma.
Estava tudo normal à minha volta. Era como se eu tivesse sonhado
tudo aquilo. Como se ela nunca tivesse existido.
— Ela não andava simplesmente a vaguear.
Ben retirou a cabeça das mãos e endireitou-se.
— Não — disse ele. — É um negócio lucrativo, e a gente que as leva
é constituída por profissionais experientes. Tudo o que podia ser
feito foi feito... polícia, consulado, meses de buscas. Não
encontrámos uma única pista.
A bolha rebentou. Tinha-a contido durante tanto tempo. Algo foi
penetrado no seu íntimo, uma sensação de ferida. Não chorara desde
esses dias, só nos seus sonhos.
— E foi tudo por minha culpa, porque lhe voltei as costas. Perdi-a.
— Desde então nunca mais amou ninguém — disse Pascal. Não era
uma pergunta.
— Eu não sei como amar — disse Ben, recompondo-se. — Não me
consigo recordar da última vez em que estive realmente feliz. Não sei
como é.
— Deus ama-o, Benedict.
— Deus é tão meu amigo como o uísque.
— Perdeu a fé.
— Naquela altura eu tentei conservar a fé. A princípio rezei todos
os dias para que ela fosse encontrada. Rezei para ser perdoado. Eu
sabia que Deus não me estava a ouvir, mas continuei a acreditar e
continuei a rezar.
— E a sua família?
— A minha mãe nunca me perdoou. Não podia nem ver-me. Não
lhe podia levar a mal. Depois ela caiu numa depressão profunda. Um
dia a porta do quarto dela estava trancada.
O meu pai e eu gritámos e batemos, mas ela não respondia.
Tomara uma dose maciça de comprimidos para dormir. Eu tinha
dezoito anos, estava a começar os meus estudos de teologia.
Pascal aquiesceu tristemente.
— E o seu pai?
— Depois de perdermos a Ruth ele foi-se abaixo, e a morte da
minha mãe tornou a coisa pior. A minha única consolação era que eu
pensava que ele me tinha perdoado.
— Ben suspirou. — Eu estava em casa de férias. Fui ao estúdio
dele. Nem sequer me lembro da razão. Penso que precisava de papel.
Ele não estava lá. Encontrei o diário dele.
— Leu-o?
— E descobri o que ele realmente pensava. A verdade era que ele
me odiava. Culpava-me por tudo, achava que eu não merecia viver
após o que fizera à família. Depois disso eu não podia voltar para a
universidade. Perdi o interesse por tudo. O meu pai morreu pouco
depois.
— O que fez então, meu filho?
— Não me lembro de grande coisa no primeiro ano. Fartei-me de
vagabundear pela Europa, tentei perder-me. Depois regressei a casa,
vendi-a. Mudei-me para a Irlanda com a Winnie, a nossa governanta.
Depois fui para a tropa. Não me consegui lembrar de mais nada para
fazer. Odiava-me a mim próprio. Estava cheio de raiva, e apliquei-a
até ao limite na recruta. Eu era o recruta mais disciplinado e
motivado que eles já tinham visto. Não faziam ideia do que estava
por detrás disso. Depois, com o tempo, tornei-me um muito bom
soldado. Eu tinha uma certa atitude. Uma certa dureza. Eu andava
passado, e eles fizeram uso disso. Acabei por fazer uma data de
coisas sobre as quais não gosto de falar.
Ben hesitou antes de prosseguir, e a sua mente encheu-se
brevemente de memórias, imagens, sons, cheiros. Abanou a cabeça
para as limpar.
— Por fim compreendi que o exército não era o que eu queria.
Odiava tudo aquilo que eles representavam. Vim para casa, tentei
reorganizar a minha vida. Passado algum tempo fui contactado para
encontrar um adolescente desaparecido. Era no Sul de Itália. Quando
tudo terminou e o miúdo se encontrou a salvo, compreendi que
descobrira o que queria fazer. — Olhou para Pascal. — Isso foi há
quatro anos.
— Você descobriu que ao devolver pessoas desaparecidas aos seus
entes queridos, estava a sarar a ferida provocada pela perda da Ruth.
Ben anuiu.
— Cada vez que trazia um para casa a salvo, isso impulsionava-me
para o trabalho seguinte. Era como um vício. Ainda é.
Pascal sorriu.
— Você passou por imenso sofrimento. Estou satisfeito por ter
confiado em mim o suficiente para falar disso, Benedict. A confiança
é uma grande curandeira. A confiança e o tempo.
— O tempo não me sarou — disse Ben. — A dor fica mais
adormecida, mas mais profunda.
— Você acredita que encontrar a cura para esta menina Ruth o vai
ajudar a expulsar o demónio da culpa.
— De outra forma não teria aceitado esta missão.
— Espero que tenha sucesso, Ben, pela menina e por si. Mas eu
penso que a verdadeira redenção, a verdadeira paz, deve vir do ser
mais profundo. Deve aprender a confiar, a abrir o seu coração, e a
descobrir o amor dentro de si próprio. Só então as suas feridas
poderão sarar.
— Faz parecer com que seja fácil — disse Ben.
Pascal sorriu.
— Você já começou o seu caminho ao confessar-me o seu segredo.
Não existe qualquer salvação em enterrar os seus sentimentos. Pode
doer ao extrair o veneno da ferida: em tais ocasiões ficamos cara a
cara com o demónio. Mas assim que o trouxer à superfície e o
libertar, pode encontrar a liberdade.
A cera da vela pingou na mão de Ben enquanto entrava
furtivamente na igreja de Saint-Jean. A porta nunca estava fechada,
nem mesmo às duas da manhã. Tinha as pernas ainda fracas e
trementes ao percorrer a álea. As sombras oscilavam em seu redor no
edifício vazio e silencioso. Caiu de joelhos em frente ao altar e a luz
da vela incidiu na reluzente estátua branca de Cristo lá em cima.
Ben inclinou a cabeça e rezou.

O rasto conduzia Luc Simon para sul. Era fácil de seguir — era um
rasto de balas e homens mortos.
Um agricultor de Le Puy, no Centro de França, relatara que ouvira
tiros e dois carros envolvidos numa perseguição em estradas rurais.
Quando a polícia descobrira o campo onde tivera lugar a batalha
encontrara três homens mortos, dois carros destruídos crivados de
balas, armas e cartuchos usados espalhados por todo o lado.
Nenhum dos carros se encontrava registado por alguém, e o BMW
fora dado como roubado uns dias antes em Lyon.
Mais interessante, no interior do outro carro, um Peugeot prateado
com matrícula de Paris, tinham encontrado impressões digitais que
correspondiam às de Roberta Ryder. Entre os muitos cartuchos
usados encontrados na erva havia dezoito de 9 mm que tinham vindo
da mesma pistola tipo Browning usada na limusina Mercedes e no
cenário da matança à beira-rio.
Ben Hope bem podia ter gravado o nome numa árvore.
Capítulo 36
Instituto Legrand, perto de Limoux, Sul de França
Três meses antes

— Oh, merda! Olha, Jules, ele fez aquilo outra vez!


A cela almofadada de Klaus Rheinfeld estava coberta de sangue.
Quando os dois enfermeiros psiquiátricos entraram na sala pequena
e cúbica, o seu ocupante desviou o olhar do seu trabalho manual
como uma criança apanhada em flagrante a fazer um disparate
qualquer. A sua face seca enrugou-se num sorriso, e eles viram que
ele tinha partido mais dois dentes. Rasgara o casaco do pijama e
usara os dentes partidos para reabrir o estranho padrão de feridas no
peito.
— Parece que é altura de aumentar novamente a tua dose —
articulou o enfermeiro encarregado enquanto Rheinfeld era
conduzido para fora da cela. — É melhor chamar o pessoal da
limpeza — disse para o seu assistente. — Levem-no para a clínica,
dêem-lhe uma injecção de diazepam e vistam-lhe roupas lavadas.
Certifiquem-se também de que lhe cortam as unhas mesmo rentes.
Ele tem uma visita que vem daqui a umas duas horas.
— Aquela mulher italiana outra vez?
As orelhas de Rheinfeld espetaram-se ao ouvir falar na sua visita.
— Anna! — cantou. — Anna... gosto da Anna. A Anna é minha
amiga. — Cuspiu para os enfermeiros. — Odeio vocês.
Duas horas depois, um muito mais subjugado Klaus Rheinfeld
sentava-se na segura sala de visitas do Instituto Legrand. Era a sala
que usavam para os pacientes de risco mais extremo que eram
autorizados a ter convidados do exterior de tempos a tempos mas
nos quais não se podia confiar para ficarem a sós com eles. Uma
mesa simples, duas cadeiras, aparafusadas ao chão, um enfermeiro
de cada lado e um terceiro a postos com uma seringa carregada, caso
fosse necessário. Através de um vidro espelhado na parede, o doutor
Legrand, director do instituto, observava.
Rheinfeld vestia um pijama novo e um roupão lavado que
substituíra os que enchera de sangue. O novo intervalo entre os
dentes fora limpo. A sua disposição melhorada devia-se em parte às
drogas psico-trópicas que lhe tinham administrado, e em parte ao
estranho efeito calmante que esta nova amiga e visitante regular,
Anna Manzini, tinha sobre ele. Enclavinhado nas mãos encontrava-
se a sua posse de eleição, o seu bloco-notas.
Anna Manzini foi introduzida por um enfermeiro, e a atmosfera
austera e estéril da sala de visitas ficou cheia com a sua airosa
presença e perfume. A face de Rheinfeld iluminou-se de felicidade
quando a viu.
— Olá, Klaus. — Anna sorriu e sentou-se na frente dele à mesa nua.
— E como é que estás hoje?
Os enfermeiros ficavam sempre pasmados com a forma como este
paciente normalmente difícil e agitado se acalmava com a atraente e
calorosa mulher italiana. Ela tinha um modo de estar, tão gentil e
calmo, nunca entrando em stresse ou colocando exigências. Durante
longos períodos ele não dizia uma única palavra, ficando apenas ali
sentado embalando-se suavemente na cadeira com os olhos meio
fechados em relaxamento e uma comprida e ossuda mão a repousar
no braço dela. A princípio, os enfermeiros tinham ficado
preocupados com este contacto físico, mas Anna pedira-lhes para o
permitirem e eles aceitaram que não havia qualquer perigo.
Quando falava mesmo, já que a maior parte do tempo Rheinfeld
prosseguia o murmúrio das mesmas coisas uma e outra vez — eram
frases em latim atamancado e números e letras ao acaso, contando os
dedos obsessivamente em movimentos desajeitados enquanto o
fazia.
Por vezes, com um pequeno e gentil incitar, Anna conseguia que
ele falasse mais coerentemente acerca dos seus interesses. Em voz
baixa ele falava sobre coisas que os enfermeiros nem poderiam
começar a perceber. Passado algum tempo o seu discurso voltava
frequentemente a um balbuciar ininteligível e depois morria de todo.
Anna sorriria então e deixá-lo-ia ficar ali em silêncio. Estes eram os
seus momentos mais pacíficos, e os enfermeiros consideravam-nos
uma parte útil do seu programa de tratamento.
Esta quinta visita não era diferente das outras. Rheinfeld sentou-se
serenamente agarrado à mão de Anna e ao bloco-notas, percorrendo
a mesma sequência de números na sua voz baixa e entrecortada,
falando na sua própria e estranha língua.
— N-6; E-4; 1-26; A-ll; E-15.
— O que nos estás a tentar dizer, Klaus? — perguntou
pacientemente Anna.
O doutor Legrand observava a cena de pé por detrás do vidro
espelhado com a face carrancuda. Consultou o relógio e depois
entrou na sala de visitas através de uma porta de ligação.
— Anna, que bom é vê-la — disse, radiante. Voltou-se para os
enfermeiros. — Acho que já chega por hoje. Não queremos cansar o
paciente.
Ao ver Legrand, Rheinfeld gritou e cobriu a cabeça com os seus
braços escanzelados. Caiu da cadeira, e quando Anna se erguia para
partir arrastou o seu corpo emaciado pelo chão e agarrou-se aos
tornozelos dela, protestando vivamente. Os enfermeiros afastaram-
no de Anna, e ela observou tristemente enquanto eles o levavam
manietado de regresso ao quarto.
— Porque é que ele tem tanto medo de ti, Edouard? — perguntou
ela a Legrand depois de se encontrarem cá fora no corredor.
— Não sei, Anna. — Legrand sorriu. — Não fazemos ideia do
passado do Klaus. A reacção dele à minha pessoa pode ser um
resíduo de algum acontecimento traumático.
É possível que inconscientemente eu o recorde de alguém que o
magoou... talvez um pai que o maltratava ou outro parente. É um
fenómeno bastante comum.
Anna abanou tristemente a cabeça.
— Estou a ver. Isso poderia ser uma explicação.
— Anna, eu estava a pensar... se estiveres livre esta noite, que tal
jantarmos? Conheço um pequeno restaurante de peixe na costa. O
robalo é de comer e chorar por mais. Podia apanhar-te por volta das
sete? — Legrand acariciou-lhe o braço.
Anna recuou ao toque dele.
— Por favor, Edouard. Eu disse-te que não estava pronta...
deixemos o jantar para outra altura.
— Desculpa — disse ele, retirando a mão. — Eu compreendo. Por
favor, perdoa-me.
Legrand observou da sua janela enquanto Anna saía do edifício e
entrava no seu Alfa Romeo. Era a terceira vez que ela lhe dava uma
tampa, pensou. Havia algum problema consigo? As outras mulheres
não reagiam desta forma. Ela parecia não querer que ele a tocasse.
Estava sempre a dar-lhe para trás, e no entanto não parecia ter
qualquer problema em deixar que o Rheinfeld lhe pegasse na mão
horas a fio.
Afastou-se da janela e pegou no telefone.
— Paulette, importa-se de verificar e dizer-me se o doutor
Delavigne tem para hoje atribuída a sessão de tratamento com um
dos pacientes?... Klaus Rheinfeld... Tem?
... Muito bem, importa-se de lhe ligar e dizer-lhe que eu o vou
substituir... Exactamente... Obrigado, Paulette.
Rheinfeld encontrava-se de novo na sua cela almofadada,
cantando para si mesmo de contentamento e pensando em Anna,
quando ouviu o tilintar de chaves lá fora no corredor e a porta se
abriu.
— Deixem-me a sós com ele — disse uma voz que reconheceu.
Rheinfeld acobardou-se, os olhos protuberantes de medo, enquanto
o doutor Legrand entrava na cela e fechava silenciosamente a porta
atrás de si.
Legrand aproximou-se, e Rheinfeld recuou o mais que pôde até ao
canto. O psiquiatra avolumou-se perante ele, sorrindo.
— Olá, Klaus — disse com uma voz suave.
Depois puxou o pé atrás e pontapeou Rheinfeld no estômago.
Rheinfeld dobrou-se de impotência e dor, arquejando com falta de
ar.
Legrand pontapeou-o uma e outra vez. Enquanto os impactos iam
chegando, Klaus Rheinfeld nada mais podia fazer do que chorar e
desejar estar morto.
Capítulo 37
Ao terceiro dia Ben sentiu-se suficientemente forte para descer as
escadas e sentar-se lá fora ao sol outonal do meio-dia. Viu Roberta à
distância, dando de comer às galinhas e fazendo questão em evitá-lo.
Sentiu-se mal, sabendo que a magoara. Deixou-se ficar sentado e
sorveu a infusão de ervas que Marie-Claire lhe preparara, e
prosseguiu a leitura do Diário de Fulcanelli.

19 de Setembro de 1926,
Começo a arrepender-me verdadeiramente da fé que coloquei em
Nicholas Daquin. É com um coração pesado que escrevo estas
palavras, sabendo agora o idiota que tenho sido. A minha única
consolação é que não lhe revelei a soma completa do conhecimento
ganho dos artefactos cátaros.
Os meus piores receios foram ontem confirmados. Contra todos
os meus princípios e para minha eterna vergonha, contratei um
investigador, um homem discreto e de confiança que dá pelo nome
de Corot, para seguir Nicholas e me relatar as suas movimentações.
Parece que o meu jovem aprendiz é há já algum tempo membro de
uma sociedade parisiense chamada os Observadores. Naturalmente
que eu conhecia a existência deste pequeno círculo de intelectuais,
filósofos e iniciados do conhecimento esotérico. Também conhecia o
que atraíra Nicholas para eles. O objectivo dos Observadores é o de
se afastar dos rigores da secreta tradição alquímica. Nas suas
reuniões mensais numa sala por cima da livraria Chacornac
discutem como os frutos do conhecimento alquímico poderão ser
integrados na ciência moderna e usados para beneficiar a
humanidade. Para um jovem como o Nicholas, eles só podem
representar o futuro, a fundação de uma nova era — e eu bem
compreendo quão dividido ele se deve sentir entre a visão
progressista de uma nova alquimia e o que ele percepciona como a
antiquada, guardada e desconfiada abordagem que eu represento.
Tal espírito e candura da juventude não são para desprezar. Mas
o que Corot me veio relatar deu-me grande causa de preocupação.
Através da sua associação com os bservadores, Nicholas fez uma
nova amizade. Sei pouco deste homem, salvo que o nome dele é
Rudolf, que é um estudante do oculto e que lhe chamam "O
Alexandrino" devido ao seu local de nascimento no Egipto.
Corot observou Nicholas com este Rudolf em diversas ocasiões,
vigiando-os enquanto se encontravam em cafés e tinham longas
discussões. Ontem seguiu-os até um restaurante dispendioso e foi-
lhe possível escutar parte da conversa deles quando se sentaram na
esplanada.
Rudolf atestou o meu jovem aprendiz com copo atrás de copo de
champanhe, e é claro que o estava a fazer para lhe soltar a língua.
"Mas é a verdade, sabes", dizia Rudolf enquanto Corot tomava
discretamente apontamentos numa mesa próxima. "Se Fulcanelli
realmente acreditasse no poder da sua sabedoria, não tentaria
reter uma das suas estrelas mais brilhantes." Aqui encheu o copo de
Nicholas até à borda.
"Não estou habituado a tal boa vida", ouviu Corot Nicholas dizer.
"Um dia, vais ter toda a boa vida que alguma vez poderás desejar",
disse Rudolf.
Nicholas franziu o sobrolho. "Não ando atrás de fama e glória.
Eu só quero usar os meus conhecimentos para ajudar as pessoas,
apenas isso. É isso que não consigo entender no mestre, porque é
que ele pensa que isso é uma coisa assim tão má."
"O teu altruísmo é louvável, Nicholas", disse Rudolf. "Talvez eu te
possa ajudar. Eu tenho alguns contactos influentes."
"A sério?", retorquiu Nicholas. "Embora isso significasse quebrar
o meu voto de secretismo. Sabes que penso frequentemente nisso —
mas ainda não me consigo decidir."
"Devias confiar nos teus sentimentos", disse Rudolf. "Que direito
tem o teu professor de te impedir de cumprires o teu destino?"
"O meu destino...", ecoou Nicholas.
Rudolf sorriu. "Os homens com um destino são uma rara e
admirável raça", disse ele. "Se eu estiver certo a teu respeito, isso
quer dizer que terei tido o privilégio de conhecer dois desses homens
durante a minha vida." Rudolf serviu o resto do champanhe. "Há
um homem que eu conheço, um visionário que partilha dos teus
ideais.
Eu falei-lhe de ti, Nicholas, e ele, como eu, acha que tu podias ter
um papel muito importante a criar um futuro maravilhoso para a
humanidade. Um dia vais conhecê-lo."
Nicholas esvaziou o seu copo de um trago e pousou-o na mesa.
Respirou fundo. "Muito bem", disse ele. "Já decidi. Vou partilhar o
que sei contigo. Quero fazer a diferença."
"Sinto-me honrado", retorquiu Rudolf, com um ligeiro inclinar da
cabeça.
Nicholas inclinou-se para a frente. "Se ao menos soubesses o
quanto ansiei por falar sobre isto com alguém. Há dois segredos
importantes, e ambos foram revelados por um antigo documento
codificado. O meu mestre descobriu-o no Sul, nas ruínas de um
velho castelo." "Então ele mostrou-te estes segredos?", perguntou
avidamente udolf.
"Mostrou-me um deles. Eu testemunhei o seu poder. É
verdadeiramente incrível. Eu tenho o conhecimento. Sei como o
usar, e posso mostrar-te."
"E o segundo segredo?"
"O seu potencial é ainda mais incrível", disse Nicholas. "Mas há
um problema. Fulcanelli recusa-se agora a ensinar-mo."
Rudolf colocou uma mão no ombro do jovem. "Tenho a certeza de
que com o tempo o vais aprender", disse com um sorriso. "Mas no
entretanto, porque é que não me contas mais acerca deste teu
fantástico conhecimento? Talvez devêssemos continuar esta
discussão no meu apartamento."

Ben pousou o Diário. Quem era este "Alexandrino"? O que lhe


contara Daquin? Quem era o "visionário" a quem Rudolf prometera
apresentá-lo?
Era provavelmente mais algum passado como Gaston Clément,
pensou. Folheou as páginas seguintes e descobriu que toda a última
secção do livro fora severamente danificada pelo apodrecimento. Era
difícil dizer quantas páginas faltavam. Esforçou-se por ler a última
entrada do Diário, a qual tinha em parte de ser adivinhada. Fora
escrita mesmo antes do misterioso desaparecimento de Fulcanelli.

23 de Dezembro de 1926,
Está tudo perdido. A minha adorada mulher Christina foi
assassinada. A traição de Daquin colocou o nosso precioso
conhecimento nas mãos do Alexandrino. Possa Deus perdoar-me
por ter permitido que isto acontecesse. Receio por muito mais do
que a minha própria vida. O mal que estes homens podem fazer é
inimaginável.
Os meus planos estão em curso. Vou partir imediatamente de
Paris com a Yvette, a minha querida filha que é tudo o que me resta
agora, e deixo tudo nas mãos do meu fiel Jacques Clément. Avisei o
Jacques que também ele deve tomar todas as precauções. Pela
minha parte, não regressarei.

Então foi assim. De alguma forma, a traição de Daquin em relação


à confiança de Fulcanelli conduzira ao desastre. Parecia estar tudo
centrado neste misterioso Rudolf, o "Alexandrino." Assassinara ele a
mulher de Fulcanelli? Mais importante, para onde fora depois o
alquimista? Tivera tanta pressa em deixar Paris que até deixara para
trás o seu Diário.
— Que lindo dia temos hoje — disse uma voz familiar,
interrompendo o divagar de Ben. — Posso juntar-me a si?
— Olá, padre. — Ben fechou o Diário.
Pascal sentou-se a seu lado e encheu um copo de água de um jarro
de barro.
— Você está com melhor aspecto hoje, meu amigo.
— Obrigado, sinto-me melhor.
— Óptimo. — Pascal sorriu. — Ontem honrou-me deveras com a
sua confiança em mim, e ao contar-me o seu segredo... o qual,
naturalmente, nunca passará daqui. — Fez uma pausa. — Agora é a
minha vez, já que também eu tenho um pequeno segredo.
— Estou certo de que não poderei oferecer-lhe o género de apoio
que me deu — disse Ben.
— E no entanto eu acho que o meu segredo lhe vai interessar. Diz-
lhe respeito a si, de certa forma.
— Como?
— Você veio à minha procura, mas de facto o seu objectivo era
localizar o Klaus Rheinfeld? A Roberta disse-me.
— Sabe onde se encontra ele?
Pascal assentiu.
— Deixe-me começar pelo princípio. Se sabia como me encontrar,
já deve saber como é que me cruzei com o pobre farrapo.
— Estava num velho artigo de jornal.
— Ele parece ter perdido completamente o juízo — disse Pascal
tristemente. — Quando vi pela primeira vez os terríveis cortes que ele
fizera no corpo, pensei que devia ser obra do Diabo. — Pascal fez
automaticamente o sinal da cruz, tocando na fronte, peito e ombros.
— E você sabe provavelmente que eu tratei do homem doente, e
que ele foi depois levado e colocado num hospital psiquiátrico.
— Para onde é que o levaram?
— A paciência, Benedict, é uma grande virtude. Já lá vou. Deixe -
me continuar... Aquilo que você não sabe, aquilo que na verdade
nunca ninguém soube com excepção da minha pessoa e daquele
pobre lunático, foi a natureza do instrumento que Rheinfeld usou
para gravar aqueles cortes tremendos em si próprio... aqui está o
meu segredo.
Os olhos de Pascal apresentaram uma expressão distante enquanto
a sua memória funcionava.
— Foi uma noite terrível, a noite em que o Rheinfeld aqui chegou.
Uma tempestade selvagem e violenta. Quando o segui para o bosque,
ali mesmo — apontou — vi que ele tinha uma faca, uma adaga de um
género muito peculiar. De início pensei que ele me ia matar. Em vez
disso observei com horror enquanto o pobre rapaz virava a lâmina
contra si próprio. Ainda agora não consigo imaginar o estado da sua
mente. Em todo o caso, ele em breve desmaiou e eu transportei-o
para casa. Fizemos o que pudemos por ele naquela noite, embora ele
estivesse de razão perdida. Foi só depois de as autoridades o terem
vindo buscar na manhã seguinte que eu me lembrei da adaga, que
ficara caída no bosque. Voltei lá, e encontrei-a no meio das folhas.
Fez uma pausa.
— A adaga é, segundo me parece, de origem medieval, embora
perfeitamente preservada. É um crucifixo de construção inteligente,
com a lâmina oculta no interior. Tem muitas marcas e símbolos
estranhos. A lâmina também tem uma inscrição. Eu fiquei fascinado
e chocado ao saber que estes símbolos eram os mesmos que o
Rheinfeld gravara no corpo.
Ben compreendeu que esta devia ser a cruz de ouro que Clément
referira. A cruz de Fulcanelli.
— O que lhe aconteceu? — perguntou. — Entregou-a à polícia?
— Para minha vergonha, não — disse Pascal. — Não houve
qualquer investigação. Ninguém questionou que Rheinfeld tivesse
infligido aquelas feridas a si mesmo. A polícia mais não fez do que
tomar nota de alguns pormenores. Portanto eu fiquei com a adaga.
Receio ter uma fraqueza por velhos artefactos religiosos, e este tem
sido um dos melhores da minha colecção.
— Vai deixar-me vê-la?
— Mas claro. — Pascal sorriu. — Mas deixe-me continuar. Cerca de
cinco meses depois, tive uma invulgar e ilustre visita. Um bispo do
Vaticano, chamado Usberti, veio ver-me. Ele fez imensas perguntas
acerca do Rheinfeld, acerca da sua loucura, acerca de coisas que ele
me poderia ter dito, acerca das marcas no seu corpo. Mas o que ele
mais queria saber era se o Rheinfeld trazia alguma coisa com ele
quando o encontrei. Pelo que ele disse, embora não tenha feito
qualquer referência directa, julgo que estava interessado na adaga.
Possa o Senhor perdoar-me, mas eu não lhe disse nada. Era tão
bonita, e como uma criança estúpida e gananciosa eu desejei guardá-
la para mim próprio. Mas também senti algo que me assustou. Havia
qualquer coisa neste bispo que me enervou. Ele escondia-o bem, mas
eu soube que andava desesperadamente à procura de alguma coisa.
Ele teve também muita curiosidade em saber se o louco trazia alguns
papéis ou documentos.
Estava sempre a falar num manuscrito. Manuscrito... perguntou-
me isto uma e outra vez.
Ben sobressaltou-se.
— Ele disse mais alguma coisa a esse respeito?
— O bispo foi bastante vago. De facto eu pensei que ele pareceu
deliberadamente evasivo quando lhe perguntei sobre que género de
manuscrito procurava ele. Ele não quis dizer qual era o seu interesse
nesse manuscrito. Os modos dele pareceram-me estranhos.
— E o Rheinfeld trazia mesmo um manuscrito? — perguntou Ben,
tentando com dificuldade encobrir a sua crescente impaciência.
— Tinha — disse lentamente Pascal. — Realmente tinha. Mas...
receio dizer...
Ben contraiu-se ainda mais enquanto aguardava. Dois segundos
pareceram uma eternidade.
Pascal prosseguiu.
— Depois de o levarem e de eu ter voltado ao sítio onde caíra a
adaga, encontrei os restos encharcados do que pareciam ser folhas de
um velho pergaminho. Devem ter-lhe caído das roupas em farrapos.
Estavam embebidos na lama do sítio onde ele desmaiara. A chuva
quase os destruiu... a maior parte da tinta escorreu. Pude ver
algumas inscrições e desenhos ainda intactos, e pensando que o
manuscrito fosse precioso e que eu o pudesse devolver ao
proprietário tentei pegar-lhe. Mas desfez-se nas minhas mãos. Reuni
os bocados e trouxe-os para aqui. Mas era impossível salvá-los, e
portanto deitei-os fora.
O coração de Ben despenhou-se. Se os papéis de Rheinfeld
tivessem sido o manuscrito de Fulcanelli, estava tudo acabado.
— Mas eu não falei em nada disto ao bispo — continuou Pascal.
— Tive receio de o fazer, embora não tenha conseguido perceber
porque é que me senti assim. Algo me disse que seria errado contar-
lhe. — Abanou a cabeça. — Desde então, sei que não seria a última
vez que ouviria falar da história do Rheinfeld. Sempre senti que
viriam outros procurar-me, em busca dele.
— Onde se encontra o Rheinfeld agora? — perguntou Ben. — Ainda
gostaria de falar com ele.
Pascal suspirou.
— Receio que isso possa ser difícil.
— Porquê?
— Porque ele morreu. Possa ele descansar em paz.
— Morreu?
— Sim, morreu recentemente, há cerca de dois meses.
— Como é que sabe?
— Enquanto esteve doente eu telefonei para o Instituto Legrand, o
hospital psiquiátrico próximo de Limoux onde o Rheinfeld passou os
seus últimos anos. Mas era demasiado tarde. Eles disseram-me que o
pobre infeliz pusera termo à sua vida de uma maneira grotesca.
— Então é assim — murmurou Ben.
— Benedict, dei-lhe as más notícias — disse Pascal, tocando-lhe no
ombro. — Mas também tenho boas notícias para si. Eu disse às
pessoas do instituto quem eu era, e perguntei se era possível falar
com alguém que pudesse ter conhecido o Rheinfeld. Talvez alguém
que o tivesse ficado a conhecer bem durante o tempo que lá esteve.
Disseram-me que ninguém no Instituto Legrand conseguira
penetrar na concha do louco. Ele nunca permitiu que alguém se
aproximasse ou forjasse qualquer ligação com ele. O comportamento
dele era desconexo e até violento. Mas havia uma mulher, uma
estrangeira, que costumava visitá-lo ocasionalmente durante os
últimos meses. Por alguma razão, a presença dela acalmava o
Rheinfeld, e ela foi capaz de falar quase normalmente com ele. O
pessoal do hospital disse que eles falavam habitualmente acerca de
coisas que nenhum dos enfermeiros psiquiátricos conseguia
perceber. Interrogo-me, Benedict, sobre se esta mulher não terá
descoberto alguma informação que lhe poderia ser útil a si.
— Onde é que a posso encontrar? Soube o nome dela?
— Deixei o meu número e pedi-lhes para dizerem à senhora que o
padre Cambriel gostaria de falar com ela.
— Aposto que ela não vai telefonar — disse Ben sombriamente.
— A confiança é outra das virtudes que discutimos ontem,
Benedict, e uma virtude que você deve aprender a cultivar. De facto,
Anna Manzini... é o nome da senhora... telefonou esta manhã,
enquanto você e a Roberta estavam ainda a dormir. Ela arrendou
uma villa a alguns quilómetros daqui. Aguarda o seu contacto, e está
livre amanhã
à tarde se quiser ir visitá-la. Pode levar o meu carro.
Então ainda havia uma hipótese. Ben animou-se.
— Padre, você é um santo.
Pascal sorriu.
— Só um nadinha — disse ele. — Um santo não teria roubado um
crucifixo de ouro e mentido ao seu bispo.
Ben sorriu.
— Até os santos têm sido tentados pelo Diabo.
— É verdade, mas a ideia é resistir-lhe — retorquiu Pascal, rindo-
se.
— Sou um velho idiota. Agora... vou mostrar-lhe a adaga. Acha que
a Roberta também gostaria de a ver? — Franziu o sobrolho. — Não
lhe vai dizer que eu a roubei, pois não?
Ben riu-se.
— Não se preocupe, padre. O seu segredo está seguro comigo.
— É linda — exalou Roberta. A sua disposição era mais alegre
agora que Ben pedira desculpas pelas palavras agressivas. Ela sabia
que havia algo acerca daquela fotografia que lhe causara dor, que
tocara em algum nervo susceptível. Mas, de alguma forma, ele
parecia diferente desde a conversa com Pascal.
Ben voltou a adaga cruciforme nas suas mãos. Então este era um
dos preciosos artefactos que Fulcanelli tanto admirara. Mas o seu
significado estava para além da sua compreensão. Não havia nada no
Diário que fornecesse qualquer pista.
A cruz tinha cerca de quarenta e cinco centímetros de
comprimento. Quando a lâmina se encontrava embainhada no
interior do eixo central, parecia apenas um crucifixo de ouro
extraordinariamente bem ornamentado. Enrolada em torno da
bainha, como o antigo símbolo dos caduceus, estava uma serpente de
ouro com minúsculos rubis por olhos. A cabeça, que se encontrava
colocada no cimo da bainha no ponto onde se reunia à travessa
perpendicular, accionava uma mola. Se agarrássemos na parte
superior da cruz como num punho de uma espada e pressionássemos
a mola com o polegar, a cintilante lâmina de trinta centímetros podia
ser sacada. Era delgada e afiada, e tinham sido gravados estranhos
símbolos em finas linhas no aço.
Ben sopesou a arma. Ninguém iria esperar que um homem de
Deus sacasse subitamente de uma adaga oculta. Era uma ideia
diabolicamente cínica — ou talvez apenas uma ideia muito prática. A
adaga parecia caracterizar muito bem a religião medieval. No lado
vencedor encontrava-se o género de homem da Igreja que bem podia
apunha-lar-nos pelas costas. No outro lado estavam os sacerdotes
que tinham de estar sempre a vigiar as costas. Do que Ben já sabia
acerca da história das relações da Igreja com a alquimia, quem quer
que tivesse possuído esta cruz podia muito bem ter pertencido aos
últimos.
Pascal apontou para a lâmina.
— Esta é a marca que o Rheinfeld fizera no centro do peito. Parecia
que tinha sido aberta uma e outra vez, um enorme padrão de tecido
cicatrizado que se destacava da pele dele. — Pascal estremeceu.
O símbolo para o qual apontava era um padrão preciso de dois
círculos intersectados, um por cima do outro. Dentro do círculo
superior encontrava-se uma estrela de seis pontas, com cada uma
das pontas a tocar a circunferência. Os círculos intersectavam-se de
modo a que as duas estrelas ficassem interligadas. Delicadas linhas
entrecruzadas indicavam exactamente o centro da estranha forma
geométrica.
Ben olhou fixamente o desenho. Significaria alguma coisa? Tinha
obviamente significado algo para Klaus Rheinfeld.
— Alguma ideia, Roberta?
Roberta estudou cuidadosamente o desenho.
— Quem poderá dizer? O simbolismo alquímico é por vezes tão
críptico, que é praticamente impossível de identificar. É como se
estivessem a desafiar-te, a provocar com a escassa informação até
que saibas para onde ir e procurares mais pistas. Tinha tudo a ver
com protegerem os segredos deles. Eles eram fanáticos com a
segurança.
Ben grunhiu. Esperemos que estes "segredos" valham a pena
serem descobertos, pensou.
— Talvez esta Anna Manzini possa ser capaz de fazer mais luz
sobre este assunto — disse em voz alta. — Quem sabe, talvez o
Rheinfeld lhe tenha dito o que significam os símbolos.
— Se é que sabia.
— Tens alguma ideia melhor?
Ele teve de subir a colina que dominava Saint-Jean antes de
conseguir ter qualquer sinal no telemóvel para contactar Fairfax e
fazer-lhe um relatório dos progressos. Doía-lhe o flanco enquanto
olhava por cima do vale arborizado.
Duas águias volteavam e curvavam uma em redor da outra contra
o céu azul numa dança aérea de graciosa majestade. Ele observou-as
a seguir as correntes de ar quente, planando e deslizando na lateral
enquanto se chamavam mutuamente, e interrogou-se por breves
momentos como seria sentir aquele género de liberdade. Marcou o
número de Fairfax e protegeu o telefone do rugido atroador do vento.
Capítulo 38
Foi ao fim da tarde que levaram o carro do padre Pascal e
conduziram até Montségur, a cerca de uma hora de viagem. O velho
Renault tossia e chocalhava ao longo das sinuosas estradas rurais,
através de paisagens que alternavam entre passagens em montanhas
rochosas de cortar a respiração e luxuriantes vales vitícolas.
Mesmo antes da velha cidade de Montségur saíram da estrada
principal. No final de uma longa alameda, no alto de uma colina e
rodeada de árvores situava-se a villa de campo de Anna Manzini. Era
uma casa de bela aparência em pedra ocre com portadas nas janelas,
trepadeiras e uma galeria que percorria toda a fachada. O sítio era
como um oásis no meio de uma paisagem árida. Vasos de terracota
sobrepujados de flores. Árvores ornamentais cresciam em filas
ordenadas ao longo das paredes, e a água borbulhava alegremente
numa pequena fonte.
Anna saiu da casa para os receber. Trazia um vestido de seda e um
colar de coral que realçava a pele cor de mel. A Roberta pareceu a
clássica beldade italiana, tão fina e delicada como porcelana. No
meio do suor e do pó das terras remotas do Languedoc ela parecia ter
vindo de outro mundo.
Saíram do carro e Anna deu-lhes calorosamente as boas-vindas,
falando inglês com uma suave e aveludada pronúncia italiana.
— Sou a Anna. Estou muito satisfeita por os conhecer a ambos.
Senhor Hope, é a sua mulher?
— Não! — disseram em uníssono Ben e Roberta, relanceando o
olhar um pelo outro.
— Esta é a doutora Roberta Ryder. Ela está a trabalhar comigo -
disse Ben.
Anna deu a Roberta um inesperado beijo na face. O seu delicado
perfume era Chanel nº 5. Roberta apercebeu-se subitamente de que
a curta distância fedia provavelmente à cabra Arabelle — ela e Marie-
Claire tinham-na ordenhado nessa manhã. Mas se Anna notou
alguma coisa, foi demasiado educada para torcer o nariz. Exibiu um
sorriso perfeito e levou-os para dentro.
As frescas salas brancas da villa encontravam-se repletas do aroma
de flores frescas.
— O seu inglês é excelente — comentou Ben enquanto ela lhes
servia um cálice de xerez fino gelado. Ben bebeu-o de um trago, e
reparou no olhar abrasador que Roberta lhe lançou. — Não engulas
isso assim — sussurrou ela furiosamente.
— Desculpa — disse ele. — Mea culpa.
— Obrigada — disse Anna. — Eu sempre adorei a vossa língua.
Trabalhei três anos em Londres, no começo da minha carreira no
ensino.
— Riu-se com o seu riso musical. — Isso já foi há muito tempo.
Anna introduziu-os numa sala de estar arejada com janelas
francesas que se abriam para um terraço de pedra com o jardim e as
colinas mais além. Um par de canários cantava e piava numa grande
gaiola ornamental junto à janela.
Roberta reparou em alguns exemplares de livros de Anna numa
prateleira.
— Heréticos de Deus — Descobrindo os Verdadeiros Cátaros, pela
Professora Anna Manzini. Não fazia ideia de que vínhamos visitar
uma tal especialista.
— Oh, eu não sou uma verdadeira especialista — disse Anna. —
Apenas tenho um interesse por certos assuntos menos investigados.
— Tais como a alquimia? — perguntou Ben.
— Sim — disse Anna. — História medieval, catarismo, o esotérico,
alquimia. Foi assim que acabei por conhecer o pobre Klaus
Rheinfeld.
— Espero que não se importe que lhe façamos algumas perguntas -
disse Ben. — Estamos interessados no caso do Rheinfeld.
— Posso perguntar qual é o vosso interesse?
— Nós somos jornalistas — respondeu ele sem se atrapalhar. —
Estamos a fazer investigação para um artigo sobre os mistérios da
alquimia.
Anna fez-lhes um café italiano simples servido em minúsculas
chávenas chinesas, e contou-lhes das suas visitas ao Instituto
Legrand.
— Fiquei tão incomodada com o suicídio do Klaus. Mas devo dizer
que não foi uma surpresa total. Ele encontrava-se profundamente
perturbado.
— Estou admirado que lhe tenham sequer permitido o acesso a ele
-disse Ben.
— Normalmente não o teriam permitido — retorquiu Anna. — Mas
o director concedeu-me essas visitas para me ajudar na investigação
para o meu livro. Fui bem guardada, embora o pobre Klaus fosse
habitualmente calmo comigo. — Anna abanou a cabeça. — Pobre
homem, ele estava tão doente. Sabem das marcas que ele gravou na
sua própria carne?
— Viu-as?
— Uma vez, em que ele estava muito agitado e rasgou a camisa.
Havia um símbolo em particular com o qual ele se encontrava
obcecado. O doutor Legrand disse-me que ele o tinha desenhado pelo
quarto todo, em sangue e... outras coisas.
— Que símbolo era esse? — perguntou Ben.
— Dois círculos intersectando-se — disse Anna. — Cada um dos
círculos continha uma estrela, uma um hexagrama e a outra um
pentagrama, com as pontas a tocarem-se.
— Semelhante a estes? — Ben procurou no saco e retirou um
objecto embrulhado num pano. Pousou-o na mesa e puxou as
extremidades do pano para revelar a cintilante adaga cruciforme.
Desembainhou a lâmina e mostrou a inscrição a Anna. Os dois
círculos, tal como ela descrevera.
Anna assentiu, abrindo muito os olhos.
— Sim, exactamente o mesmo. Posso? — Ben entregou-lhe a adaga.
Ela fez deslizar cuidadosamente a lâmina de volta ao eixo e examinou
a cruz de todos os ângulos. -
É uma peça magnífica. E extremamente invulgar. Está a ver estas
marcas alquímicas no eixo central? — Anna olhou para Ben. — O que
sabe acerca da história desta peça?
— Muito pouco — disse Ben. — Somente que pode ter outrora
pertencido ao alquimista Fulcanelli, e pensamos que pode ser da
época medieval. Aparentemente o Rheinfeld roubou-a ao seu
proprietário em Paris, e trouxe-a consigo aqui para o Sul.
Anna anuiu.
— Não percebo nada de antiquária, mas por estas marcas
concordaria com a época. Talvez séculos X ou XI. Poderia ser
facilmente verificado. — Anna fez uma pausa.
— Interrogo-me sobre o porquê de o Klaus estar tão interessado
nela. Não apenas por causa do seu valor. Ele não tinha um cêntimo, e
podia tê-la vendido por imenso dinheiro. E no entanto conservou-a.
— Anna ergueu uma sobrancelha. — Como é que deram com isto?
Ben estivera pronto para esta. Prometera a Pascal que não
revelaria o seu segredo.
— O Rheinfeld deixou-a cair — disse. — Quando foi levado depois
de ter sido encontrado a vaguear. — Observou a reacção dela. Anna
pareceu aceitar a explicação. -
E o símbolo com os círculos gémeos na lâmina? — perguntou,
mudando de assunto. — Porque é que estava o Rheinfeld tão
interessado nele?
Anna agarrou no eixo central da cruz e desembainhou novamente
a lâmina com um tranquilo zing metálico.
— Não sei — disse ela. — Mas deve haver uma razão. Ele podia
estar demente, mas não era estúpido. Tinha áreas de conhecimento
que iam muito fundo. — Anna estudou pensativamente a lâmina. —
Importam-se que eu faça uma cópia deste símbolo? — Anna pousou a
adaga à sua frente e tirou uma folha de papel de desenho e um lápis
de ponta de grafite suave de uma gaveta. Estendendo a folha por
cima da lâmina copiou cuidadosamente as marcas por debaixo.
Roberta reparou nas mãos perfeitamente arranjadas de Anna. Olhou
de relance para as suas. Enfiou-as debaixo da mesa.
Anna estudou o trabalho acabado, parecendo satisfeita com este.
— Já está. — Depois franziu o sobrolho e olhou mais de perto.
— Não é bem igual ao que está no bloco-notas. Há uma ligeira
diferença. Será que...
Ben olhou-a penetrantemente.
— Bloco-notas?
— Peço desculpa, já o devia ter referido. Os médicos deram um
bloco-notas ao Klaus na esperança de que ele fizesse um registo dos
seus sonhos. Eles acreditavam que isso podia ajudar no tratamento, e
talvez pudesse ajudar a fazer luz sobre o que causara a sua condição
mental. Mas ele não registou os sonhos. Em vez disso encheu as
páginas com desenhos e símbolos, poesia estranha e números. Os
médicos não conseguiram detectar qualquer sentido, mas
permitiram que ele o guardasse já que parecia confortá-lo.
— O que aconteceu ao bloco-notas? — inquiriu Ben.
— Quando o Klaus morreu, o director do Instituto, Edouard
Legrand, ofereceu-mo. Ele pensou que eu poderia estar interessada
nele. O Klaus não tinha família, e em todo o caso não teria sido
grande herança. Tenho-o lá em cima.
— Podemos vê-lo? — inquiriu avidamente Roberta.
Anna sorriu.
— Claro. — Anna foi buscar o bloco-notas ao estúdio. Regressou
passado um minuto, enchendo novamente a sala com o seu fresco
perfume, segurando um pequeno saco de plástico. — Eu tenho-o aqui
porque está muito sujo e malcheiroso — disse ela, pousando
suavemente o saco em cima da mesa.
Ben tirou o bloco-notas do saco. Encontrava-se esfiapado e
amarrotado e parecia que fora ensopado umas cem vezes em sangue
e urina. Largava um acentuado odor almiscarado.
Folheou as páginas. A maior parte das páginas estava em branco,
tirando as primeiras trinta e poucas que se encontravam muito
manchadas com impressões digitais esborratadas e nódoas castanho-
avermelhadas de antigo sangue seco que tornavam difícil ler a
caligrafia em certos sítios.
Os pedaços que conseguia distinguir eram decerto a coisa mais
estranha que já vira. As páginas estavam cheias com trechos de
versos bizarros. Obscuros e aparentemente sem significado arranjos
de letras e números. Notas escrevinhadas em latim, inglês e francês.
Rheinfeld tinha obviamente sido um homem instruído, assim como
um artista competente. Aqui e ali encontravam-se desenhos, alguns
deles simples esboços e outros desenhados com extremo pormenor.
Pareciam a Ben o género de imagens alquímicas que vira em textos
antigos.
Uma das peganhentas e mais manuseadas páginas do bloco-notas
continha um desenho que lhe era familiar. Era o diagrama da lâmina
da adaga, as estrelas e os círculos gémeos intersectando-se, com o
qual Rheinfeld estivera tão obcecado.
Ben pegou na adaga e comparou-os.
— Tem razão — disse ele. — São ligeiramente diferentes.
A versão de Rheinfeld era idêntica com excepção de um pequeno
pormenor suplementar. Era difícil de distinguir, mas parecia um
minúsculo emblema heráldico de uma ave com as asas abertas e um
comprido bico. Encontrava-se posicionada precisamente no centro
do desenho dos círculos gémeos.
— É um corvo — disse Ben. — E penso que já o vi anteriormente.
— Era o símbolo que vira esculpido no átrio central da Catedral de
Notre Dame em Paris.
Mas porque alterara Rheinfeld o desenho que estava na lâmina?
— Há aqui alguma coisa que faça sentido para si? — perguntou a
Anna.
Ela encolheu os ombros.
— Nem por isso. Quem sabe o que lhe ia na mente?
— Posso dar uma olhada? — perguntou Roberta. Ben passou-lhe o
bloco-notas. — Meu Deus, que nojo — disse ela, virando as páginas
agoniada.
O coração de Ben estava a afundar-se novamente.
— O Rheinfeld chegou a dizer-lhe alguma coisa que se entendesse?
-perguntou a Anna, com esperanças de ser ainda capaz de aproveitar
algo com valor.
— Gostava de poder dizer que sim — retorquiu ela. — Quando o
doutor Legrand me falou nesta personagem estranha e intrigante eu
pensei que ela talvez me pudesse ajudar a obter inspiração para o
meu livro novo. Eu sofria de bloqueio de escritor. Ainda sofro —
acrescentou desalentadamente. — Mas à medida que o fui
conhecendo senti tanta pena dele. As minhas visitas eram mais para
conforto dele do que para minha própria inspiração. Não posso dizer
que tenha aprendido alguma coisa com ele. Só tenho este bloco-
notas. Oh, e há mais uma coisa...
— O quê? — perguntou Ben.
Anna corou.
— Eu fiz algo um pouco... qual é a palavra... maroto. Na minha
última visita ao instituto eu levei um pequeno aparelho que uso para
ditar as minhas ideias para os livros. Gravei a minha conversa com o
Klaus.
— Será que eu poderia ouvir isso?
— Não me parece que lhe possa ser de qualquer utilidade — disse
Anna. — Mas claro que a pode ouvir. — Anna procurou atrás de si e
pegou num gravador digital em miniatura.
Pousou-o no meio da mesa e carregou em play. Através do
minúsculo altifalante eles conseguiram ouvir a voz grave e
murmurante de Rheinfeld.
A voz provocou um arrepio que desceu pela espinha de Roberta.
— Ele falava sempre em alemão? — perguntou Ben.
— Só quando repetia estes números — disse Anna.
Ben escutou atentamente. O tom balbuciante de Rheinfeld
começava grave, como um mantra. "N-sechs; E-vier; I-sechs-und-
zwanzig..." Enquanto ia prosseguindo a sua voz elevava-se,
começando a soar frenética: "A-elsf E-funfzehn... N-sechs; E-vier..." e
a sequência repetia-se novamente enquanto Ben tomava nota no seu
bloco. Ouviram nna a dizer suavemente: "Klaus, acalma-te."
Rheinfeld deteve-se por instantes, e depois a sua voz começou de
novo: "Igne Natura Renovatur Integra-Igne Natura Renovatur
Integra-Igne Natura Renovatur Integra..." Klaus entoava a frase uma
e outra vez, cada vez mais rápido e mais alto até que a sua voz se
tornou um grito que distorceu o altifalante. A gravação acabou com
uma enxurrada de outras vozes.
Anna desligou a máquina com um olhar triste. Abanou a cabeça.
— Naquele momento tiveram de o sedar. Naquele dia ele
encontrava-se estranhamente agitado. Nada parecia acalmá-lo. Foi
mesmo antes de ele se ter matado.
— Isso foi assustador — disse Roberta. — Que frase latina era
aquela?
Ben já a vira no bloco-notas. Estava a olhar para o esboço de um
caldeirão, no qual borbulhava um misterioso líquido. Um alquimista
barbudo de avental vigiava-o.
As palavras em latim IGNE NATURA RENOVATUR INTEGRA
encontravam-se inscritas no caldeirão.
— O meu latim está enferrujado — disse ele. — Algo acerca de
fogo... natureza...
— "Pelo fogo a natureza é renovada no seu todo" — traduziu-lhe
Anna. — Um velho ditado alquímico, relacionado com os processos
que eles utilizavam para transformar a matéria de base. Ele tinha
uma fixação nessa frase, e quando a repetia contava também pelos
dedos, assim.
— Anna imitou os gestos nervosos e urgentes de Rheinfeld. — Não
faço ideia do porquê de ele fazer isso.
Roberta inclinou-se para ver o desenho no bloco-notas. O seu
cabelo passou por cima da mão de Ben quando ela se aproximou.
Roberta apontou para o desenho. Por debaixo do caldeirão, o
alquimista acendera uma grande fogueira. Por baixo das chamas
estava a sigla ANBO, claramente inscrita em letras grandes.
— Anbo... Que língua é esta? — perguntou ela.
— Nenhuma que eu conheça — disse Anna.
— Então a Anna só ficou com o bloco-notas e com a gravação? -
perguntou-lhe Ben.
— Sim. — Anna suspirou. — É tudo.
Então foi uma perda de tempo vir aqui, pensou ele amargamente.
Era a minha última hipótese.
Anna contemplava pensativamente o brilho da lâmina da adaga.
Estava a formar-se uma ideia na sua mente. Ela não podia ter a
certeza, mas...
O telefone tocou.
— Com licença — disse ela, e foi atender.
— Então o que achas, Ben? — inquiriu Roberta em voz baixa.
— Não me parece que isto nos esteja a levar a lado algum.
Conseguiam ouvir Anna ao telefone na sala ao lado, falando em voz
baixa. Anna soava um pouco perturbada.
— Edouard, eu pedi-te para não me ligares mais... não, não podes
cá vir esta noite. Tenho visitas... não, amanhã à noite também não.
— Nem eu — disse Roberta. — Merda. — Roberta suspirou e
levantou-se da cadeira, começando a caminhar sem objectivo pela
sala. Então algo lhe prendeu a atenção.
Anna terminou a chamada e regressou para se juntar a eles.
— Peço desculpa pela interrupção — disse Anna.
— Problemas? — inquiriu Ben.
Anna abanou a cabeça e sorriu.
— Nada de importante.
— Anna, o que é isto? — perguntou Roberta. Roberta examinava
um magnificente texto medieval numa moldura de vidro pendurado
na parede junto à lareira. O pergaminho gretado e acastanhado
exibia um antigo mapa do Languedoc, com antigas e dispersas
cidades e castelos. Junto às extremidades do mapa, tinham sido
altamente coloridos e ornamentados por um caligrafista dotado
blocos de texto em latim e francês medieval. — Se este é o
pergaminho original — disse ela -, deve valer uma pipa de massa.
Anna riu-se.
— O americano que mo deu também pensava que era inestimável.
Até ter descoberto que o pergaminho cátaro do século XIII pelo qual
pagara vinte mil dólares era uma falsificação.
— Uma falsificação?
— Não é mais antigo do que esta casa — disse Anna com uma
risada. — De cerca da década de 1890. Ele ficou tão lixado... é esta a
expressão correcta?... que mo deu de graça. Ele devia ter tido juízo.
Como diz, um artigo genuíno nessas condições teria de valer uma
pequena fortuna.
Roberta sorriu.
— Nós os ianques somos uns caídos por tudo o que tenha mais de
trezentos anos. — Roberta afastou-se do pergaminho emoldurado e
percorreu a alta e larga estante cheia de livros com o olhar, correndo
os olhos ao longo das centenas de livros da colecção de Anna. Havia
ali tanta coisa: história, arqueologia, arquitectura, arte, ciência.
— Um dia quando tiver tempo... — Roberta recordou-se de que
tinha um pequeno bloco-notas adesivo no seu saco, o qual ficara no
carro. — Dêem-me licença por um momento, sim? Quero anotar
alguns destes títulos.
— Roberta trotou para fora da sala.
Anna mudou-se para mais perto de Ben.
— Venha, gostaria de mostrar uma coisa — disse ela. Ben pôs-se de
pé, e Anna tomou-lhe o braço. A mão dela era quente na pele dele.
— O que me quer mostrar? — perguntou Ben.
Anna sorriu.
— Por aqui.
Saíram os dois pelas janelas francesas e desceram o extenso
jardim. Ao fundo, um caminho de pedra subia para campo aberto e
depois de terem subido um curto desnível en deu consigo a olhar
para um magnificente panorama ao pôr do Sol. Conseguia ver
quilómetros e quilómetros das montanhas do Languedoc, e por cima
de tudo isso o céu era uma paleta rica como uma catedral de
dourados cintilantes, vermelhos e azuis.
Anna apontou ao longo do vale e mostrou-lhe duas ruínas de
castelos distantes, serrilhados contornos negros empoleirados a
quilómetros de distância um do outro contra o céu dos altos picos
das montanhas.
— Fortalezas cátaras — disse ela, protegendo os olhos do sol-
poente. — Destruídas pela cruzada albigense no século XIII. Os
cátaros e os seus antepassados construíram castelos, igrejas,
mosteiros, por todo o Languedoc. Foram todos esmagados pelo
exército do papa.
— Fez uma pausa. — Vou dizer-lhe uma coisa, Ben. Alguns
historiadores especialistas têm acreditado que estes lugares possuem
um significado mais profundo.
Ben abanou a cabeça.
— Que género de significado mais profundo?
Anna sorriu.
— Ninguém sabe ao certo. Foi dito que algures no Languedoc jaz
um segredo antigo. Que as posições relativas dos fortes cátaros
fornecem a pista para o encontrar, e quem quer que consiga resolver
o enigma descobrirá grande sabedoria e poder. — O cabelo escuro de
Anna espraiava-se com a suave brisa do fim de tarde. Anna estava
bela. — Ben — disse ela, hesitante. — Você não me contou toda a
verdade. Eu acho que você anda à procura de alguma coisa. Tenho
razão? Uma coisa secreta.
Ben hesitou.
— Sim.
Os olhos amendoados de Anna cintilaram.
— Bem me parecia. E tem algo a ver com alquimia, com a lenda de
Fulcanelli?
Ben aquiesceu, e não pôde senão sorrir perante a perceptividade
afiada como uma navalha que Anna demonstrava.
— Eu andava em busca de um manuscrito — admitiu ele. — Penso
que o Klaus Rheinfeld tinha conhecimento dele, e eu estava com
esperanças de que ele me pudesse ajudar.
Mas parece que eu não tinha razão.
— Talvez eu o possa ajudar — disse ela suavemente. — Temos de
nos encontrar novamente. Acho que podíamos trabalhar nisto
juntos.
Ben nada disse por instantes.
— Eu gostaria disso — disse ele.
Roberta regressara do carro para encontrar a casa vazia. Ouviu as
vozes deles carregadas pelo vento, e olhou pelas janelas francesas.
Viu Ben a saltar o desnível na direcção do jardim. Roberta conseguia
ouvir o riso cristalino de Anna. A sua figura esbelta ficara em silhueta
contra o pôr do Sol. Ben ofereceu-lhe a mão. Seria a imaginação
dela? Eles pareciam estar a dar-se muito bem.
Do que estavas à espera? A Anna é uma brasa. Seria difícil para
qualquer homem resistir-lhe.
— Que raio de pensamentos são esses, Ryder — disse para si
própria. — Que te importa a ti, em todo o caso?
Mas depois compreendeu. Ela importava-se mesmo. Estava a
acontecer-lhe uma coisa terrível. Estava a apaixonar-se por Ben
Hope.
Capítulo 39
Ben encontrava-se com uma disposição sombria no dia seguinte
enquanto vagueava sem propósito pelas ruas poeirentas de Saint-
Jean. A sua busca tinha dado num beco sem saída.
Quando telefonara a Fairfax dois dias antes contivera-se de referir
que o manuscrito poderia ter sido destruído. Tivera esperanças de
que Anna Manzini pudesse ser capaz de dizer-lhe algo positivo. Essa
fora uma estúpida e falsa impressão para dar ao velho. Agora tudo
parecia negro, o tempo arrastava-se e ele não fazia ideia para onde se
virar a seguir.
Numa praça junto a uma envelhecida estátua memorial da
Primeira Guerra Mundial encontrava-se o bar da aldeia, um negócio
só com uma sala com uma minúscula esplanada onde velhos curtidos
pelos tempos se sentavam como répteis ao sol, ou jogavam pétanque
na praça vazia. Ben entrou, e a clientela — todos os três, a jogar às
cartas num canto escuro — virou-se para olhar o estrangeiro alto e
louro. Ele saudou-os taciturnamente, e foram-lhe devolvidas as
saudações com grunhidos. Ao balcão, o proprietário encontrava-se
sentado lendo o jornal. O lugar cheirava a cerveja morta e a fúmo.
Reparou num anúncio de pessoa desaparecida na parede.

VIU ESTE RAPAZ? MARC DUBOIS, 15 ANOS

Ben suspirou. Outro. Isto é que eu devia estar a fazer — a ajudar


miúdos como este. E não aqui a perder tempo.
Encostando-se ao bar, acendeu um cigarro e pediu para lhe
reabastecerem o frasco. Só havia ali um tipo de uísque, um fluido
particularmente asqueroso com a cor da urina de cavalo. Estava-se
nas tintas. Pediu uma dose dupla extra do mesmo e sentou-se num
banco alto ao balcão, olhando para o infinito e sorvendo o líquido
ardente.
Talvez seja altura de largar este fiasco, pensava. Este trabalho
nunca estivera bem para ele, desde o princípio. Devia ter-se mantido
objectivo. A sua primeira impressão estivera correcta. Fairfax, como
todas as pessoas desesperadas que querem salvar alguém que amam,
caíra vítima dos seus próprios desejos. Portanto havia uma boa
hipótese de o manuscrito de Fulcanelli estar perdido — e depois? Em
todo o caso era provavelmente uma treta. Não existia qualquer
grande segredo. Claro que não existia.
Era tudo uma fantasia, mitos e enigmas e pasto para sonhadores
crédulos.
Mas poderia ele dizer que Anna Manzini era uma sonhadora
crédula?
Quem sabe — talvez seja?
Fez o copo vazio deslizar ao longo do balcão, atirou algumas
moedas para cima da corroída superfície de madeira e pediu outro
duplo. Já acabara esse, e começara com outro, quando os três velhos
jogadores de cartas no canto olharam para trás ao som de passos em
corrida.
Roberta irrompeu por ali dentro, corada e excitada.
— Pensei que te encontrava aqui — disse ela. Estava sem fôlego,
como se tivesse vindo a correr desde o chalé de Pascal. — Ouve, Ben,
tive uma ideia.
Ben não estava com disposição para o entusiasmo dela.
— Conta-me isso noutra altura qualquer — articulou. — Estou a
pensar. — Ele estava... a pensar em pegar no telefone e dizer a
Fairfax que acabara tudo. Transferir-lhe-ia o dinheiro de volta,
desistia e voltava para casa para a sua praia.
— Ouve, isto é importante — insistiu ela. — Anda lá, vamos lá para
fora. Não, não acabes isso. Já tens ar de quem bebeu o suficiente.
Quero-te com a cabeça desanuviada.
— Vai-te embora, Roberta. Estou ocupado.
— Iá, ocupado a embebedares-te até ficares num estupor com essa
tripa furada.
— Tripa furada é o que te aconteceria se o bebesses — corrigiu-a
ele. Apontou para o copo. — Isto é fura-tripas — disse ele
enfaticamente.
— Seja como for — grunhiu ela impacientemente. — Olha só para
ti. E dizes que és um profissional?
Ben disparou-lhe um olhar feroz, bateu com o copo no balcão e
deslizou do banco.
— É melhor que isto seja realmente muito, muito bom — avisou-a
ao chegarem cá fora à luz do Sol do fim de tarde.
— Eu penso que é — disse ela, virando-se para o encarar com uma
expressão séria enquanto punha as ideias em ordem. — Muito bem,
escuta. E se o manuscrito que o Klaus heinfeld roubou não tivesse
sido destruído?
Ben abanou a cabeça, confuso.
— O que estás para aí a delirar? O Pascal viu-o aos bocados. Ficou
destruído com a tempestade.
— Certo. Agora, lembras-te do bloco-notas, o bloco-notas do
Rheinfeld?
— O que tem? — grunhiu ele. — Foi para isto que me arrastaste
aqui para fora?
— Bem, talvez seja mais importante do que pensámos.
Ben carregou o sobrolho.
— Estás a falar do quê?
— Limita-te a ouvir, está bem? A minha ideia é esta. E se o bloco-
notas fosse a mesma coisa que o manuscrito?
— Estás maluca? Como é que poderia ser? Deram-lho no hospital.
— Não estou a falar do bloco-notas em si mesmo, estúpido. Falo do
que lá está escrito. Talvez o Rheinfeld tenha copiado os segredos
para o bloco-notas.
— Oh, pois claro. No interior de um hospital de alta segurança,
depois de ter perdido o original? O que ele fez, incorporou a
informação? Vou voltar para dentro.
— Ben virou-se impacientemente para regressar para o bar.
— Por uma vez cala-te e ouve o que tenho para dizer! — gritou ela,
agarrando-lhe o braço. — Estou a tentar dizer-te uma coisa, seu
casmurro filho-da-mãe! Eu penso que o Rheinfeld podia ter-se
recordado de tudo e tê-lo escrito mais tarde no bloco-notas.
Ben olhou-a fixamente.
— Roberta, havia a porra de mais de trinta páginas de enigmas e
desenhos, formas geométricas, números ao acaso, excertos de latim e
francês e todo o género de baboseiras naquela coisa. Não é possível
recordar tudo isso em perfeito pormenor.
— Ele andou por aí com o manuscrito durante anos — protestou
ela. — Provavelmente a viver na rua, sem dinheiro. Era tudo o que ele
tinha. Tinha uma fixação nele.
— Ainda não estou a ver que alguém pudesse ter esse género de
memória. Em particular um tarado da alquimia passado dos carretos
— acrescentou ele.
— Ben, eu tive um ano de Neurobiologia em Yale. Concedo, é
invulgar... mas não é impossível. Chama-se memória eidética,
também conhecida por memória fotográfica.
Normalmente perde-se no fim da adolescência, mas algumas
pessoas conservam-na a vida inteira. O Rheinfeld tinha DOC, pelo
que pude perceber...
— DOC?
— Distúrbio Obsessivo Compulsivo — disse ela mais
pacientemente. — Ele tinha todos os sintomas, estava sempre a
repetir gestos e palavras sem nenhuma razão aparente... ou por
alguma razão que só ele entendia. Agora, é sabido que os neuróticos
compulsivos possuem fantásticos poderes de memória. Conseguem
armazenar enormes quantidades de pormenores que tu e eu nunca
seríamos capazes de recordar. Equações matemáticas difíceis,
imagens ao pormenor, enormes trechos de textos técnicos. Está tudo
registado cientificamente desde há quase um século.
Ben sentou-se num banco. A sua mente estava a limpar
velozmente o nevoeiro do uísque.
— Pensa nisso, Ben — prosseguiu ela, sentando-se junto a ele. —
Eles deram um bloco-notas ao Rheinfeld para ele escrever os seus
sonhos... é uma parte comum da psicoterapia.
Mas em vez disso, ele usou-o para preservar as memórias que
guardava no seu íntimo, conservou um registo escrito da informação
que roubara e depois perdera. Os psiquiatras não podiam saber de
maneira nenhuma o que ele estava a fazer, de onde vinha todo aquele
material. Provavelmente deram-lhe a importância devida aos
disparates de um lunático. Mas e se era mais do que isso?
— Mas ele era maluco. Como é que podemos confiar na mente de
um homem louco?
— Claro, ele era maluco — concordou ela. — Mas ele era sobretudo
obsessivo, e o que têm os obsessivos é que são loucos acerca dos
pormenores. Desde que o pormenor do que ele escreveu seja
suficientemente próximo do original, o que interessa não é a
maluquice dele mas que o bloco-notas possa conter uma réplica
perfeita, ou quase perfeita, dos documentos que o Jacques Clément
não queimou porque lhe tinham sido passados pelo Fulcanelli.
Ben ficou por instantes em silêncio.
— Tens a certeza disto?
— Naturalmente que não tenho a certeza. Mas continuo a pensar
que devíamos lá voltar e verificar isso. Vale a pena tentar, não vale?
— Roberta olhou para ele, perscrutando-o. — Então? O que dizes?
Capítulo 40
Anna não conseguia concentrar-se no trabalho. Ainda incapaz de
descortinar um enredo satisfatório para o seu romance histórico,
ficara reduzida ao esboço de um rascunho da introdução do autor.
Devia ter sido fácil — ela conhecia o assunto tão intimamente. Mas
não havia maneira de as palavras fluírem. Agora formara-se uma
nova distracção na sua mente para juntar ao bloqueio de escritor que
a vinha atormentando há tanto tempo. Cada vez que se tentava
concentrar na página à sua frente, passados uns minutos a sua mente
começava a vadiar e dava consigo a pensar em Ben Hope.
Algo a importunava. Algo enterrado no fundo da sua mente. O que
seria? Era algo distante, nublado, como uma palavra meio esquecida
pairando provocadora na ponta da língua mas que ela não conseguia
cristalizar em pensamento claro. Olhou de relance para o bloco-notas
de Rheinfeld, pousado junto ao seu cotovelo em cima da secretária,
com a cópia do símbolo da lâmina da adaga enfiada entre as suas
páginas. Talvez houvesse algo mais naquele bloco-notas do que ela
chegara a pensar. As marcas...
Reclinou-se na cadeira giratória, olhando fixamente pela janela. As
estrelas apareciam, começando a cintilar no céu azul a escurecer
acima da silhueta negra dos cumes das montanhas. O seu olhar
seguiu a sequência do Cinturão de Orion. Rígel era um sol distante, a
mais de 900 anos-luz de distância. As estrelas traziam a história viva
até si. A luz que agora via começara a sua viagem através do espaço
há quase 1000 anos; só o olhar para isso era viajar para trás no
tempo, comungar com o passado vivo. Que segredos sombrios,
terríveis e belos teriam testemunhado as estrelas sobre o Languedoc
medieval?
Anna suspirou e tentou regressar ao trabalho.

O castelo de Montségur no cume da montanha, Março de


1244.
Oito mil cruzados, pagos com ouro católico, cercaram um
indefeso bando de trezentos heréticos cátaros. Após oito meses de
assédio e bombardeamento os cátaros morriam à fome. Morreriam
todos menos quatro, queimados vivos pelos inquisidores depois do
assalto final aos baluartes. Antes do massacre, quatro sacerdotes
fugiram do castelo cercado transportando uma carga
desconhecida, e desapareceram. A sua história permanece um
mistério. Qual era a missão deles? Transportariam eles o efabulado
tesouro dos cátaros, tentando ocultar o seu segredo dos seus
perseguidores? Teria este tesouro existido realmente, e em caso
afirmativo, o que era? Estas questões permaneceram sem respostas
até aos nossos dias.

Anna pousou a caneta. Pouco passava das nove, mas ela decidiu
que se iria deitar cedo. As suas melhores ideias chegavam
frequentemente quando se encontrava relaxada na cama. Ia tomar
um banho quente, servir-se de uma bebida e aconchegar-se com os
seus pensamentos. Talvez a manhã a visse com uma mente mais
desanuviada, e ela poderia ser capaz de ligar a Ben Hope e arranjar
maneira de o ver de novo.
Anna interrogou-se sobre o trilho que ele percorria, que
significância poderiam ter a cruz de ouro e este manuscrito
Fulcanelli. Estariam relacionados com a sua própria pesquisa acerca
do tesouro dos cátaros? Era sabido tão pouco sobre esse assunto que
a maior parte dos historiadores tinha praticamente desistido da
velha lenda.
Um sentimento curioso, que já não sentia há imenso tempo...
Sorriu para si própria. A excitação que sentia com a perspectiva não
se devia somente a curiosidade intelectual.
Anna mal podia esperar pelo próximo encontro com Ben.
Fechou a porta do estúdio e caminhou pelo corredor até ao quarto.
Foi até à casa de banho adjacente e abriu as torneiras da banheira,
depois despiu-se e enfiou um roupão de banho, apanhando o cabelo.
Olhou para a cara no espelho, mas este encontrava-se já embaciado
pelo vapor da água quente.
Ficou tensa. Teria aquilo sido um ruído lá em baixo? Fechou as
torneiras e espetou a cabeça, escutando. Talvez os canos. Voltou a
abrir as torneiras, estalando a língua de irritação com o seu próprio
nervosismo.
Mas mesmo quando estava a despir o roupão para entrar na
banheira, ouviu-o novamente.
Atou o cinto do roupão de banho enquanto atravessava
agitadamente o quarto e chegava ao patamar. Ficou ali à escuta, com
a cabeça inclinada de lado, com um franzir a carregar-lhe a
sobrancelha.
Nada. Mas ela tinha definitivamente ouvido alguma coisa. Ergueu
silenciosamente a estátua de bronze egípcia de Anúbis do seu
pedestal de madeira no patamar. Tomando o peso da efígie do deus
com cabeça de chacal e empunhando-a como um bastão, desceu as
escadas de pés descalços sem fazer barulho. A sua respiração
acelerava-se.
Os nós dos dedos estavam brancos de se agarrarem à estátua. O
átrio de entrada no andar térreo erguia-se ao seu encontro a cada
degrau. Se conseguisse chegar ao interruptor da luz...
Lá estava, aquele som outra vez.
— Quem é que está aí? — Anna queria que a sua voz soasse forte e
confiante, mas o que saiu foi um esganiçar tremelicante.
A forte pancada na porta fê-la saltar. Anna arfou, com o coração
aos saltos.
— Quem é?
— Anna? — disse uma voz de homem no exterior. — Sou eu, o
Edouard.
Os ombros de Anna afundaram-se com o alívio e o braço pendeu
flácido no flanco, ainda agarrado a Anúbis. Correu para a porta e
abriu-a, deixando-o entrar.
Edouard Legrand não estivera à espera de tão calorosa recepção,
depois de ela o rejeitar prontamente ao telefone diversas vezes. Ficou
agradavelmente surpreendido quando ela o apressou para o interior
do átrio de entrada.
— O que andas a fazer com essa coisa? — inquiriu ele com um
sorriso, acenando para a estátua na mão dela.
Anna olhou a estátua, sentindo-se subitamente uma idiota. Pousou
o Anúbis em cima de uma mesa.
— Assustei-me tanto agora mesmo — disse, colocando a palma da
mão sobre o ainda instável coração e fechando os olhos. — Ouvi
barulhos.
Ele riu-se.
— Oh, estas casas velhas estão cheias de barulhos estranhos. A
minha é o mesmo. Provavelmente ouviste um rato. É incrível o
barulho que um minúsculo rato pode fazer.
— Não, foi a ti que eu ouvi — disse ela. — Desculpa se te pareci
perturbada.
— Não tinha intenção de te alarmar, Anna. Não estavas a dormir,
espero? — acrescentou ele, reparando no roupão.
Anna sorriu, agora relaxando.
— Na verdade eu estava prestes a ir tomar banho. Talvez te possas
servir de uma bebida, e eu desço em cinco minutos.
— Por favor, fica à vontade, não te apresses por minha causa.
Bolas, ia ela a pensar ao entrar na casa de banho cheia de vapor.
Parecia encorajamento, a maneira como o apressara a entrar.
Depois queixa-te de passares sinais contraditórios.
Anna não podia dizer que não gostava realmente de Edouard
Legrand. Ele não era completamente falho de charme. Também não
era de todo pouco atraente. Mas nem num milhão de anos poderia
ela corresponder aos sentimentos que ele obviamente tinha por si.
Havia algo nele, algo que Anna não conseguia definir, que a fazia
sentir desconfortável nas proximidades dele. Teria de se livrar de
Edouard o mais gentilmente possível, mas rápida e firmemente antes
que ele começasse a ter ideias erradas.
Anna não conseguiu evitar uma pequena pontada de culpa. Pobre
Edouard.
No piso de baixo, Edouard passeava de um lado para o outro na
sala de estar, trabalhando nas frases que preparara. Então lembrou-
se do champanhe e das flores que deixara no carro, não tendo
querido ser demasiado atrevido à porta como um pretendente a fazer
uma serenata e a transbordar de expectativas. Mas quando ela o
deixara entrar sem protestos e obviamente ansiosa pela sua
companhia, era a altura para os fazer aparecer. Onde é que ficava a
cozinha? Talvez tivesse tempo para enfiar a garrafa no congelador
para a arrefecer enquanto ela tomava banho. Podiam passar juntos
uma noite tão perfeita. Quem é que sabia onde isto poderia levar?
Ansioso de excitação, voltou lá fora ao carro.
Anna saiu da banheira, secou-se com a toalha e enfiou umas calças
de jogging e uma blusa. A sinfonia de Mozart que tocava na
aparelhagem do seu quarto entrava no seu alegre segundo
andamento, e ela acompanhou-a trauteando. Quando desceu para o
andar inferior não tinha ainda resolvido como deveria lidar com o
seu visitante inesperado. Talvez o deixasse ficar algum tempo, tentar
levar a coisa na boa.
A porta da frente encontrava-se escancarada. Anna indignou-se.
Para onde fora ele? Dar um passeio no jardim, às escuras?
— Edouard? — chamou ela da porta de entrada.
Então viu-o. Estava debruçado na janela aberta do carro, com a
cabeça e os ombros no interior como se estivesse à procura de
alguma coisa.
— O que estás a fazer? — perguntou ela, meio a sorrir. Trotou pelos
degraus abaixo, aspirando o cálido aroma nocturno das flores.
Os joelhos dele encontravam-se dobrados e o corpo parecia
encostado à parte lateral do carro. Ele não se mexia.
— Edouard, estás bem? — Estaria bêbedo?
Anna estendeu a mão e abanou-lhe o ombro.
Os joelhos de Edouard cederam e o corpo caiu para trás. Estatelou-
se de costas nos seixos e jazeu ali fixando-a com os seus olhos sem
visão. Tinha a garganta aberta numa ferida que se estendia de orelha
a orelha, cortada até à espinha. O corpo estava encharcado em
sangue.
Anna gritou. Voltou-se e correu em direcção à casa. Bateu com a
porta atrás de si e pegou no telefone da entrada com uma mão a
tremer. Estava cortado.
Ouviu-o novamente — o som que ouvira antes. Desta vez era mais
claro, mais alto. Era o raspar metálico do aço contra o aço. Era
dentro de casa. Na sala de estar.
A lâmina de uma faca a arrastar-se lenta e deliberadamente pelas
grades da sua gaiola.
Anna correu para as escadas. O seu pé pisou algo macio, quente e
húmido. Olhou para baixo. Era um dos seus canários, jazendo
quebrado e ensanguentado no degrau.
As mãos voaram-lhe para a boca.
Através da porta meio aberta da sala de estar ouviu uma
gargalhada, a risada áspera e irritante de um homem que desfrutava
plenamente do seu pequeno jogo com ela.
Na mesa ao fundo das escadas, a estátua de Anúbis estava onde a
deixara. Anna apoderou-se novamente dela com uma mão tremente.
Podia ouvir os passos a vir na sua direcção. Precipitou-se de volta às
escadas. O seu telemóvel estava no quarto. Se conseguisse chegar lá e
fechar-se na casa de banho...
A cabeça foi-lhe puxada para trás e ela gritou de dor. O homem
que lhe surgiu por detrás era alto e musculado, com cabelo curto da
cor do aço e uma cara talhada em granito. Puxou-lhe novamente o
cabelo, rodou-a e socou-a com força na cara com uma mão enluvada.
Anna caiu para o chão, aos pontapés. Ele inclinou-se por cima dela.
Anna fustigou-o com o Anúbis e apanhou-o no malar com um som
cavo.
A cabeça de Franco Bozza saltou para o lado com o impacto. Levou
os dedos enluvados à face e estudou o sangue com um olhar
impassível. Depois sorriu. Muito bem, o jogo terminara. Agora
vamos a coisas sérias. Agarrou-lhe o pulso e torceu-o brutalmente.
Anna gritou de novo, e a estátua caiu-lhe da mão e saltitou pelas
escadas abaixo. Anna fugiu a gatinhar, e ele observou-a a afastar-se.
Ela encontrava-se quase no cimo da escadaria quando ele a agarrou
novamente. Bateu-lhe com a cabeça contra o corrimão e a visão de
Anna explodiu de luz branca. Abateu-se de costas, provando o seu
sangue.
Ele ajoelhou por cima dela, levando o seu tempo. Os olhos dele
estavam a brilhar quando enfiou uma mão no blusão e sacou a
lâmina da bainha com um suave silvo de aço contra a fibra sintética.
Os olhos dela abriram-se muito enquanto ele passava divertidamente
a lâmina da garganta dela até ao abdómen. A sua respiração chegava
em rápidos tremores. Ele manteve-lhe a cabeça para trás com um
punhado de cabelo agarrado.
— A informação atrás da qual andava o inglês — sussurrou ele.
— Dá-ma. E talvez te deixe viver. — Encostou-lhe calmamente a
faca à face.
Ela conseguiu arranjar maneira de falar. A sua voz soava
pequenina.
— Qual inglês?
Ela sentiu a frieza do aço, e depois gritou de agonia quando ele
pressionou a lâmina para o interior da sua carne. Ele afastou a faca,
olhando para o golpe de sete centímetros. O sangue corria-lhe pela
cara. Ela abanou a cabeça de lado a lado, debatendo-se contra o
aperto dele. Ele encostou-lhe a faca à garganta.
— Diz-me o que ele queria de ti — repetiu ele no seu tom grave e
agreste. — Ou corto-te em pedacinhos pequeninos.
A mente de Anna corria.
— Eu não lhe dei nada — insistiu ela, com o sangue a pingar-lhe
nos lábios.
Bozza sorriu.
— Diz-me a verdade.
— Estou a dizer — protestou ela. — Ele andava à procura de um
documento... um manuscrito antigo.
Bozza aquiesceu. Fora isto que lhe tinham dito.
— Onde é que está? — sussurrou.
Anna fez uma pausa, pensando com força. Ele apontou-lhe a faca
ao olho e olhou-a de forma inquisitiva.
— Por cima da lareira — choramingou ela. — N-na moldura.
Os frios olhos dele olharam por um momento para os dela, como
se estivessem a avaliar se ela estava a dizer a verdade. Com
movimentos deliberados ele limpou a lâmina à carpete e pousou a
faca no chão ao lado da cabeça dela. Depois puxou o punho atrás e
esmagou-o na cara dela. A cabeça de Anna pendeu para o lado.
Bozza deixou-a deitada nas escadas, embainhando a faca enquanto
descia para a sala de estar. Arrancou a moldura da parede, partiu o
vidro contra a esquina da prateleira da lareira e sacudiu os
fragmentos. Puxou o pergaminho medieval dos seus apoios, enrolou-
o num cilindro apertado e enfiou-o no profundo bolso interior do
blusão.
Então a Manzini não dera nada ao inglês. Usberti iria ficar
satisfeito consigo. Encontrara a mulher rápida e eficientemente, e
recuperara o que motivara o seu envio pelo seu chefe. Agora ia fazer
a mulher vir a si e desfrutar dela durante algum tempo. Adorava a
expressão nas caras delas quando compreendiam que afinal ele não
as ia deixar viver.
Aquele terror nos olhos delas, aquele delicioso momento quando
elas se encontravam tão impotentes em seu poder. Era ainda melhor
do que a lenta tortura e o clímax dos gritos que vinham depois.
Voltou ao átrio de entrada e os seus olhos estreitaram-se. A mulher
desaparecera.
Anna cambaleara até ao seu estúdio. Podia ouvir o som do vidro a
partir-se no piso de baixo enquanto ele destruía a moldura. O sangue
do corte na face corria-lhe garganta abaixo, a frente da blusa
encontrava-se peganhenta e quente. Tinha a cabeça a andar à roda
mas conseguiu concentrar-se na secretária. A mão esticada pingava
manchas de sangue nas suas notas de pesquisa. Os dedos fecharam-
se em redor do bloco-notas embrulhado no plástico. Agarrando-o
firmemente, meio cega com a dor e a náusea, cambaleou de regresso
ao corredor na direcção do quarto.
Do patamar inferior das escadas Bozza viu a porta do quarto a
fechar-se. Seguiu nessa direcção, subindo as escadas com o seu andar
fácil e não apressado. A medida que se ia aproximando da porta do
quarto estendeu a mão para a bolsa de plástico que trazia no cinto.
O quarto da mulher encontrava-se vazio. No lado mais distante do
quarto havia outra porta. Bozza experimentou o puxador. Estava
trancada pelo interior.
Fechada na casa de banho, Anna atirou-se em pânico ao telefone,
esborratando as suas impressões digitais sanguinolentas no plástico.
Com um vacilar nauseado lembrou-se de que não tinha saldo. Deixou
cair o telefone, com uma vertigem de horror. Sabia que este louco
não a ia deixar viva. Ia morrer horrivelmente. Conseguiria matar-se
antes que ele a apanhasse? A janela não era suficientemente alta.
Ficaria apenas com uma perna partida e ele não tardaria a apanhá-la
de novo.
A porta voou com um estalar da madeira em lascas. Bozza
percorreu a casa de banho e esbofeteou-a. A cabeça de Anna bateu
nos azulejos e ela caiu no chão, desmaiada.
A mão que passara à sua frente estava agarrada a algo. Abriu-lhe
os dedos ensanguentados, tirou-lho da mão e estudou-o.
— Estavas a tentar esconder isto, não estavas? — sussurrou ele
para o corpo inerte. — Brava rapariga. — Enfiou o bloco-notas
embrulhado no plástico dentro do bolso do blusão, depois despiu-o e
pendurou-o nas costas de uma cadeira. Por baixo usava um duplo
coldre de ombro, com uma pequena semiautomática e carregadores
suplentes no sovaco esquerdo e a faca embainhada no direito.
Desembainhando primeiro a faca e pousando-a na borda do
lavatório, abriu o fecho da bolsa e retirou o macacão bem dobrado.
Enfiou a ruidosa vestimenta de plástico por cima da cabeça e
ajustou-a cuidadosamente ao corpo como sempre fazia.
Depois pegou na faca que se encontrava na borda do lavatório com
um tinido de aço contra cerâmica, e caminhou lentamente até Anna
Manzini. Sacudiu o corpo com o pé. Ela gemeu, mexendo-se
dolorosamente. Os olhos meio abertos. Depois abriram-se de horror
quando ela o viu a pairar sobre si.
Ele sorriu. A faca cintilou, e o mesmo fizeram os olhos.
— Agora vai começar a dor — sussurrou ele.
Capítulo 41
Ben virou o Renault para o pátio de entrada de Anna, com os
pneus usados a escorregar na gravilha e os faróis a varrer a fachada
da villa.
— Olha, ela tem visitas — disse Roberta, reparando no Lexus GS
negro brilhante estacionado em frente da casa. — Eu disse-te que
devíamos ter telefonado primeiro.
É muita falta de educação, sabes, aparecer assim a pessoas como
estas.
Ben estava fora do carro, sem ouvir. Tinha notado algo caído no
chão, destacando-se da sombra do Lexus. Percebeu em choque que
era um braço. Um braço de um homem morto, com a mão
enclavinhada, sanguinolenta.
Ben correu à volta do carro, com cenários a passarem-lhe pela
mente. Agachou-se junto ao corpo e percorreu com o olhar a extensa
ferida na garganta do homem. Ben vira suficientes gargantas
cortadas na vida para reconhecer o trabalho de um profissional.
Tocou na pele; ainda restava alguma temperatura.
— O que é, Ben? — perguntou ela, surgindo por detrás dele. Ben
ergueu-se rapidamente e agarrou-a pelos ombros, desviando-a. — É
melhor não olhares. — Mas Roberta vira o corpo. Pressionou as mãos
contra a boca, tentando não vomitar.
— Fica junto a mim — sussurrou ele. Correu para a villa, saltando
os degraus. A porta da frente estava trancada. Ben correu para a
parte lateral da casa, com Roberta a segui-lo, e encontrou a janela
francesa aberta. Deslizou para o interior da casa, sacando da
Browning. Roberta apanhou-o, com a face cinzenta, e ele gesticulou
para ela ficar quieta e em silêncio.
Passou por cima do corpo torcido e quebrado de um canário nos
estertores da morte, com as penas amarelas manchadas de vermelho.
Uma estátua pequena estava caída no patamar inferior das escadas.
Conseguia ver luz lá em cima, música a tocar. A sua face endureceu.
Subiu os degraus três a três, accionando a patilha de segurança da
Browning.
O quarto de Anna estava vazio, mas a porta da casa de banho
encontrava-se entreaberta. Atirou-se lá para dentro, erguendo a
arma à altura de tiro, sem saber o que ia encontrar no interior.
Franco Bozza estivera a divertir-se. Passara os últimos cinco
minutos a cortar lentamente os botões da blusa dela, um de cada vez,
esbofeteando-a de volta à sua poça de sangue quando ela se debatia.
Um cintilante regato carmim corria pelo vale entre os seios dela. Ele
fez correr a parte romba da lâmina pela pele dela até ao estômago
tremente, enganchou a ponta do gume por debaixo do botão seguinte
e estava prestes a cortá-lo quando o súbito som de passos a correr o
sobressaltou para fora do transe.
Rodou velozmente, com saliva no queixo. Era um homem grande e
pesado mas as suas reacções eram rápidas. Agarrou a mulher pelo
cabelo e puxou-a até ela se levantar aos gritos, enquanto se erguia,
torcendo-lhe o corpo até ela ficar à sua frente quando a porta se
escancarou com um estrondo vibrante.
O horror de Ben perante a cena à sua frente abrandou-o um meio
segundo a mais. Os olhos de Anna encontraram os dele, grandes e
brancos numa máscara de sangue. O poderoso homem de cabelo
grisalho tinha o braço em redor da garganta dela, usando-a como
escudo.
O dedo de Ben estava no gatilho. Não podes disparar. A sua visão
oscilou, com o alvo incerto. Ben abrandou a pressão no gatilho.
O braço de Bozza moveu-se e a lâmina faiscou através do quarto
numa mancha a silvar. Ben baixou-se. O aço passou-lhe a três
centímetros da cara e embebeu-se na porta atrás de si com um
baque. A mão de Bozza cruzou o peito e atravessou a gola do seu
macacão de plástico, arrancando a pequena Beretta .380 do coldre.
Ben correu o risco e disparou um tiro, mas a sua bala transviou-se
por medo de atingir Anna. Quase no mesmo instante a pistola de
Bozza soou e Ben sentiu a bala a ricochetear no frasco que trazia no
bolso. Recuou um passo a cambalear, momentaneamente aturdido,
mas recuperou depressa e trouxe a Browning de volta à posição de
tiro enquanto a sua raiva explodia e a mira caía em cheio na testa de
Bozza. Agora apanhei-te.
Mas antes que Ben pudesse disparar, Bozza fez Anna voar através
do quarto na sua direcção como se fosse uma boneca de trapos. Ben
apanhou-a, salvando-a de embater com a face nos ensanguentados
mosaicos do chão. Perdeu o alvo.
O homem grande saltou para trás através da janela como um
mergulhador. Ouviram-se ferozes sons de rasgões e raspões quando
ele esgravatou pela frágil latada abaixo.
Caiu no chão, arranhado e sujo de lama. Soou um tiro e uma bala
passou-lhe junto ao ouvido, abrindo um rasgão no tronco de árvore
atrás de si.
Ben debruçou-se da janela e disparou novamente, cego na
escuridão. O atacante desaparecera. Por um segundo pensou em dar-
lhe caça, mas decidiu-se contra. Quando se voltou para Anna,
Roberta chegara e inclinava-se por cima do corpo imóvel.
— Oh, meu Deus.
Ben tomou-lhe o pulso.
— Está viva.
— Graças a Deus. Que... — A face de Roberta estava branca. — Isto
não é apenas uma coincidência, pois não, Ben? Isto tem alguma coisa
a ver connosco. Jesus, fomos nós que lhe trouxemos isto?
Ben não respondeu. Ajoelhou-se e examinou Anna em busca de
ferimentos. Tirando o feio corte na face, com as extremidades a secar
e incrustado de sangue acastanhado, não tinha mais nada.
Tirou o telefone do bolso e atirou-o a Roberta.
— Chama uma ambulância — disse. — Mas não a polícia, e limita-
te a dizer que houve um acidente. Não toques em nada.
Roberta assentiu e correu para o quarto ao lado.
Ben alcançou o varão cromado na parede da casa de banho e
puxou uma toalha branca de pêlo comprido. Levantou gentilmente a
cabeça de Anna, depois colocou a toalha por baixo a servir de
almofada.
Cobriu-lhe o corpo com um roupão de banho e uma outra toalha
para a conservar quente, e fechou a janela. Voltando a ajoelhar-se
junto dela, acariciou-lhe suavemente o cabelo. Estava espetado e
peganhento do sangue.
— Vais ficar bem, Anna — murmurou. — A ambulância não
demora. Ela mexeu-se, e os olhos abriram-se. Focaram-se
lentamente nele, e ela murmurou qualquer coisa.
— Shh, não tentes falar. — Ben sorriu, mas as suas mãos tremiam
de fúria e jurou silenciosamente que ia matar o homem que fizera
isto.
O atacante deixara cair a pistola quando se atirara contra a janela.
Ben fechou-lhe o cão e enfiou-a à cintura. Havia alguns cartuchos
vazios no chão. Apanhou-os e aconchegou-os no bolso. Conseguia
ouvir Roberta no quarto de dormir, falando urgentemente ao
telefone.
Foi quando reparou no blusão negro pendurado nas costas da
cadeira.
Capítulo 42
O hotel rural era visível da estrada por entre as árvores, inundado
de luz e convidativo na escuridão. Ben virou o Renault para fora da
estrada e desceu o longo e sinuoso caminho de acesso no meio dos
terrenos arborizados. Estacionaram à entrada, junto a alguns outros
carros e um autocarro de turismo.
— Traz o teu saco, vamos ficar aqui esta noite.
— Porquê um hotel, Ben?
— Porque dois estrangeiros num hotel é uma coisa normal, mas
dois estrangeiros a ficar com um pároco de aldeia dá que falar. Não
podemos voltar para casa do Pascal depois desta noite.
No interior, Ben aproximou-se do balcão da recepção e tocou à
campainha. Instantes depois apareceu a recepcionista vinda do
escritório.
— Tem quartos? — perguntou Ben.
— Não, monsieur, estamos cheios.
— Não há quartos nenhuns? Nem sequer estamos na época alta.
— Temos um grupo de turistas ingleses para o Tour Cátaro. Está
quase tudo ocupado.
— Quase?
— A única acomodação que resta é a nossa melhor suite. Mas é
normalmente... isto é... está reservada para...
— Ficamos com ela — disse Ben sem hesitação. — Devo pagar-lhe
já? — Ben meteu a mão no bolso. Tirou para fora o passaporte falso
em nome de Paul Harris e a carteira. Pousou o passaporte em cima
do balcão e mostrou-lhe o dinheiro. Havia o suficiente na carteira
para alugar o hotel inteiro durante um mês. A recepcionista abriu
desmesuradamente os olhos. — N... não há necessidade de pagar já
— gaguejou ela.
A recepcionista tocou uma campainha no balcão da recepção.
— Joseph! — chamou ela numa voz mais baixa do que seria de
supor, e um velhote seco num uniforme de paquete apareceu
instantaneamente a seu lado. — Leva a madame e o monsieur 'Arris à
suite lua-de-mel.
O velho Joseph levou-os escadas acima, abriu uma porta e
cambaleou para o interior do quarto carregando os sacos.
— Deixe-os aí na cama — disse-lhe Ben, e presenteou-o com uma
farta nota como gorjeta, a qual era só o que tinha de trocos.
Roberta olhou em redor da acomodação. A antecâmara, com um
sofá, cadeirões de braços e uma mesa de café abria-se para um
enorme espaço quadrado dominado por uma cama de dossel
adornada com um coração vermelho gigante. Numa grande mesa de
nogueira estavam flores, chocolates atados com fitas e estatuetas de
pequenas noivas de vestidos brancos e noivos com abas de grilo.
Ben sentou-se na cama e desfez-se dos sapatos, deixando-os onde
caíram no tapete com um Cupido. Que quarto mais absurdo, pensou.
Se não fosse por Roberta, estaria a dormir no carro, escondido
algures nalguma densa floresta. Despiu o blusão e o coldre e atirou-
os para cima da cama, depois deitou-se de costas, alongando os
músculos fatigados. Como reflexo meteu a mão no bolso e tirou o
frasco. Estava amolgado onde deflectira a bala uma hora antes. Se o
projéctil da .380 o tivesse atingido na perpendicular, tê-lo-ia
perfurado de um lado ao outro.
Olhou-o fixamente durante alguns segundos. Mais uma vida gasta,
pensou, deu um gole e pousou o frasco.
— A Anna vai ficar bem? — perguntou Roberta numa voz sumida.
Ben mordeu o lábio.
— Iá, acho que sim. Talvez precise de uns pontos e tratamento
para o choque. Eu ligo de manhã para descobrir em que hospital é
que ela está. — Pelo menos podia ficar descansado sabendo que ela
se encontrava em segurança. Assim que a ambulância lá tivesse
chegado, os polícias teriam sido alertados e ela teria protecção no
hospital.
— Como é que eles chegaram a ela, Ben? O que queriam dela?
— Eu próprio me tenho interrogado sobre isso — murmurou ele.
— E o homem morto no exterior da casa dela? Quem era ele?
Ben encolheu os ombros.
— Não sei. Talvez um amigo dela que esteve apenas no sítio errado
à hora errada.
Roberta suspirou de forma audível.
— Não consigo suportar pensar no assunto. Vou tomar um banho.
Ben sentou-se e pensou enquanto ouvia vagamente a água a
esparrinhar em segundo plano. Estava lixado consigo próprio. Fora
pura sorte que tivessem chegado a Anna a tempo. Ben vira imensas
mortes e sofrimento durante a sua vida, mas nem sequer queria
imaginar a forma como ela teria morrido se tivessem chegado cinco
minutos depois.
Há muito tempo, prometera a si mesmo que nunca mais permitiria
que os seus erros prejudicassem inocentes. Mas de alguma forma
estava a acontecer. Aquela gente estava a aproximar-se de novo, e os
riscos aumentavam demasiado.
Tomou uma decisão. No dia seguinte ia levar Roberta à cidade de
Montpellier e ia pô-la num voo para os Estados Unidos. E ia ficar no
aeroporto até ver o avião a deixar o solo com ela lá dentro. Já o devia
ter feito há dias.
Afundou a cabeça nas mãos, tentando afastar os persistentes
sentimentos de culpa. Por vezes parecia que por muito que tentasse
fazer o que era correcto, tudo o que fez durante a sua vida — cada
mudança, cada decisão — estava de alguma maneira condicionado
inexorável e magneticamente a regressar para o atormentar. Quanto
arrependimento e auto-recriminação podia um homem carregar?
Uma pancada na porta dispersou-lhe os pensamentos. Enquanto
caminhava para a antecâmara para averiguar, enfiou a Browning no
cinto, ao centro do fundo das costas.
Desfraldou a camisa para a cobrir.
— Quem é? — perguntou com suspeitas.
— A comida que pediu, monsieur 'Arris — chegou-lhe a voz
abafada de Joseph. — E o vosso champanhe.
— Eu não pedi champanhe nenhum. — Ben destrancou a porta,
com a mão a pairar perto de onde aninhara a pistola fria contra a
pele. Quando viu o velhote seco ali fora sozinho com o carrinho de
serviço, relaxou e abriu a porta.
— Monsieur, o champanhe faz parte — disse Joseph enquanto fazia
entrar o carrinho no quarto. — Vem com a suite.
— Obrigado, deixe-o ficar aí.
Com a grande gorjeta ainda aninhada no bolso, e a promessa de
mais, os passos do velhote pareceram mais vivos enquanto
empurrava o carrinho para o interior do quarto.
Havia charcuterie e uma selecção de queijos, baguette acabada de
fazer e champanhe no gelo. Ben deu mais algum dinheiro a Joseph,
conduziu-o até à porta e trancou-a a seguir.
O champanhe suavizou-lhes a disposição. Comeram em silêncio.
Em segundo plano a rádio dava um jazz suave. Quando a garrafa
ficou vazia era quase meia-noite. Ben agarrou numa almofada do
dossel e atirou-a para o sofá de cabedal perto da janela no extremo
oposto do quarto. Tirou alguns cobertores do roupeiro e ajeitou uma
cama de recurso para si próprio.
A rádio mudara para uma velha canção de Edith Piaf. Roberta
aproximou-se dele.
— Ben, queres dançar comigo?
— Dançar? — Ben olhou para ela. — Tu queres dançar?
— Por favor. Eu adoro esta canção. — Roberta tomou-lhe as mãos,
sorrindo incertamente, e podia senti-lo a ficar tenso.
— Eu não sei dançar — disse ele.
— Oh, pois, isso é o que dizem todos.
— Não, a sério, eu não sei dançar. Nunca dancei.
— Nunca?
— Nem uma vez sequer.
Pelos movimentos rígidos e estranhos ela podia ver que ele dizia a
verdade. Roberta olhou para ele.
— Tudo bem, eu ensino-te. Limita-te a pegar-me nas mãos e
relaxa. — Roberta aproximou-se suavemente dele e pousou-lhe uma
mão no ombro, tomando-lhe a mão com a outra.
— Põe a tua mão livre aqui na minha cintura — incitou-o ela. A
mão estava rígida. Roberta moveu-se com ele, e ele tentou
acompanhar os movimentos dela, arrastando os pés de chumbo atrás
dos dela.
— Estás a ver? Sente o ritmo.
— Está bem — disse ele hesitantemente.
A canção terminou e seguiu-se imediatamente outra: La Vie en
ose.
— Oh, esta também é boa. Muito bem, aqui vamos nós outra vez...
é isso... estás a gostar?
— Não sei... talvez.
— Acho que podias ser bom nisto, se conseguisses relaxar um
pouco mais. Ai, o meu pé.
— Desculpa. Eu avisei-te.
— Estás a pensar demasiado.
A partir de uma simples dança ele podia sentir um milhão de
emoções conflituosas. Era uma sensação tão estranha, e ele não
conseguia decidir se era ou não agradável.
Um mundo quente e convidativo parecia estar a acenar-lhe. Ele
queria abraçar o calor, deixá-lo mais uma vez entrar no seu coração
após tantos anos sozinho ao frio.
No entanto, assim que começou a sentir que lhe cedia, ficou tenso,
e uma barreira pareceu fechar-se algures dentro dele.
— Cheguei a pensar que tinhas apanhado o jeito.
Ben afastou-se. Era demasiado para si. Era como se o seu espaço
tivesse sido invadido, a sua zona de conforto penetrada depois de
anos só. Atirou um olhar de lado ao minibar.
Roberta interceptou-lhe o olhar.
— Não, Ben, por favor. — Ela pousou uma mão quente na dele.
Ele olhou para o relógio.
— Ei — riu-se ele nervosamente. — Já é tarde. Temos de nos
levantar cedo.
— Não pares. É bom — murmurou ela. — Vá lá, hoje tivemos um
péssimo dia. Ambos precisamos disto.
Dançaram um pouco mais. Ele sentiu o corpo dela a aproximar-se
do seu. Ele fez a sua mão percorrer-lhe o braço até ao ombro e
acariciou-o. O coração batia-lhe mais depressa. As cabeças
começaram a juntar-se.
A canção chegou ao fim, e a voz do apresentador da rádio
estragou-lhes o momento. Separaram-se, sentindo-se subitamente
conscientes de si próprios.
Durante alguns minutos houve silêncio entre eles. Ambos sabiam o
que estivera prestes a acontecer e ambos, de maneiras diferentes,
sentiam uma tristeza a descer sobre si.
Ben foi até à sua cama improvisada no sofá e, demasiado cansado
para se despir, deitou-se. Roberta subiu para a vasta cama nupcial e
ficou a olhar para a cobertura por cima.
— Nunca dormi numa cama destas — disse ela passado algum
tempo.
De novo silêncio enquanto se conservavam deitados em lados
opostos do quarto às escuras.
— Como é que está o sofá? — inquiriu ela.
— Bom.
— Confortável?
— Já dormi em sítios piores.
— Nesta cama cabem para aí umas seis pessoas.
— E então?
— Estava a pensar.
Ben levantou a cabeça da almofada e olhou para onde ela se
encontrava deitada no escuro.
— Estás a pedir-me para me enfiar na cama contigo?
— É... em cima da cama, então — gaguejou ela, embaraçada. —
Não era um engate, se é isso que estás a pensar. Estou apenas um
pouco nervosa. Dava-me jeito um pouco de companhia.
Ben hesitou por instantes. Depois levantou-se e puxou os
cobertores do sofá. Dirigiu-se para a cama às apalpadelas, às cegas
no quarto desconhecido. Instalou-se no outro lado da cama e deitou-
se junto a Roberta. Puxou os cobertores por cima do corpo.
Ficaram ali na escuridão, com espaço entre os dois. Roberta virou-
se para o lado dele, querendo tocar-lhe, sentindo-se estranha. Podia
ouvir a respiração dele a seu lado.
— Ben? — sussurrou ela.
— Iá?
Roberta hesitou antes de falar.
— Quem é a menina naquela fotografia?
Ben apoiou-se num cotovelo e olhou para ela. A face de Roberta
era uma mancha pálida ao luar.
Roberta desejou estender a mão e tocar-lhe, abraçá-lo.
— Vamos dormir — disse ele em voz baixa, voltando a deitar-se.
Por volta das duas, Ben despertou e deu com o braço esbelto de
Roberta estendido por cima do peito. Ela dormia. Ben deixou-se ali
ficar algum tempo, olhando fixamente para o leve reflexo do luar no
dossel da cama, sentindo o suave subir e descer do cálido corpo de
Roberta a dormir.
O toque do braço dela era uma curiosa sensação. Era
estranhamente electrizante, enervante e no entanto um profundo
conforto. Deixou-se relaxar com essa sensação, fechou os olhos e
adormeceu com um sorriso a formar-se aos cantos da boca.
Capítulo 43
Ben dormiu menos de uma hora antes de os seus pensamentos
sonhados o terem feito despertar com um sentimento de culpa, e
atirou as pernas para fora da cama. Levantou cuidadosamente do
peito o braço adormecido de Roberta e rolou para sair da cama.
Levantou-se, ergueu a Browning da mesa e agarrou no saco.
Tacteando o caminho ao luar foi até à antecâmara. Fechou
suavemente a porta atrás de si e ligou um candeeiro de mesa.
As regras do jogo tinham mudado. Subitamente tornara-se mais
claro que esta gente, quem quer que fossem, também andava atrás
do manuscrito. Tinha trabalho para fazer.
O simples blusão negro que trouxera da casa de Anna ainda se
encontrava no seu saco. Puxou-o para fora e passou novamente os
bolsos em revista. Tirando o bloco-notas de Rheinfeld e o
pergaminho forjado que o atacante arrancara à moldura, estavam
vazios. Não havia um vestígio de uma pista quanto à identidade do
seu proprietário.
Quem era ele? Um assassino contratado, talvez. Já se cruzara antes
com esta gente, mas nunca com um destes, nunca com um maníaco
doentio que torturava mulheres.
Interrogou-se sobre o pergaminho forjado. Porque o arrancara o
homem da parede de Anna? Tal como o proprietário precedente que
o passara a Anna, ele devia ter sido enganado pelo estilo antigo e
aparência da cuidadosa falsificação. Isso só podia querer dizer que
quem mais andava à procura do manuscrito não fazia melhor ideia
do que ele acerca do que exactamente era ou da sua aparência. Mas
era certamente importante para eles. Suficientemente importante
para matarem por ele.
Tirou o bloco-notas de Rheinfeld, retirou-o da cobertura plástica e
sentou-se com ele num sofá perto do candeeiro. Até agora, não tivera
uma boa oportunidade de o estudar de perto. Teria Roberta razão
acerca dele? Seria possível que Rheinfeld tivesse transcrito de
memória os segredos que roubara a Gaston Clément? Ben tinha
esperança que sim. Não havia mais nada por onde pegar.
Virou lentamente as páginas imundas, escrutinando o texto e os
desenhos. Muito daquilo parecia não fazer sentido. Espalhadas
aparentemente ao acaso ao longo das páginas, encontravam-se
combinações alternadas de letras e números. Algumas das
combinações eram extensas, outras curtas. Andou para trás e para a
frente e contou nove destas anotações. Lembravam-lhe um pouco as
diatribes de Rheinfeld na gravação do dictafone de Anna.

N 18 N 26 O 12 I 17 R 15 22 R 20 R 15
U 11 R 9 E 11 E 22 V 18 A 22 V 18 A
13 A 18 E 23 A 22 R 15 O

O que fazer com isto? Ao olhar de Ben pareciam um qualquer


género de código. Talvez uma fórmula alquímica. Nenhum deles
parecia relacionar-se com qualquer outra coisa em nenhuma das
páginas em que apareciam. Qualquer que fosse o significado que
tivessem, era impenetrável.
Ignorou-os e passou à frente. Deu com um esboço a tinta do que
aparentava ser uma fonte. A base estava marcada com estranhos
símbolos semelhantes aos do crucifixo de ouro. Por baixo do desenho
encontrava-se uma inscrição em latim.

Dum fluit e Christ benedicto Vulnere Sanguis,


Et dum Virgineum lac pai Virgo permit,
Lac fuit et Sanguis, Sanguis conjungitur et lac
Et sit Fons Vitae, Fons et Origo boni

Nos seus dias de estudante Ben tivera de lidar com imensos textos
religiosos antigos escritos em latim. Mas isso tinha sido há muito
tempo. Levou-lhe algum tempo a desenrascar-se com as palavras e
chegar a uma tradução. Lia-se: Enquanto o sangue flui da abençoada
chaga de Cristo e a santa Virgem aperta o seu virginal seio, o leite e o
sangue esguicham e misturam-se e tornam-se a fonte da vida e a
nascente do Bem-estar.
A fonte da vida... a nascente do bem-estar. Isto soava como
referência a algum elixir da longa vida. Mas eram tão vagas.
Continuou a ler denodadamente. Chegou a uma página com apenas
uma linha de texto, e por baixo dessa linha um símbolo circular. A
escrita era em francês, o texto encaracolado dificilmente visível por
entre manchas de sangue velho e as marcas dos dedos de Rheinfeld.
Mais uma vez traduziu.
Consideremos o símbolo do corvo, porque este oculta um ponto
importante da nossa ciência

No símbolo por debaixo, Ben reconheceu-o imediatamente. Voltou


atrás algumas páginas. Sim, era novamente o mesmo emblema do
corvo. Parecia aparecer uma e outra vez.
Portanto o texto dizia-lhe que o símbolo ocultava um ponto
importante. Mas qual?
Uma mancha de sangue cobria algo escrito por baixo da imagem
do corvo. Ben raspou cuidadosamente o sangue seco com a unha até
conseguir discerni-lo. A palavra escondida era DOMUS. Casa em
latim. Que fazer com aquilo — Casa do Corvo?
A única outra referência ao corvo que conseguia encontrar era uma
igualmente enigmática estrofe. Desta vez, estava escrita em inglês.

Estas paredes do templo não podem ser quebradas


Os exércitos de Satã por lá passam ignorantes
O corvo guarda aí um segredo não revelado
Conhecido apenas do fiel e justo que procura.

Ben nem sequer ia tentar entender aquela. Passando à frente,


chegou às três últimas páginas do bloco-notas. Eram idênticas
tirando os diferentes arranjos de letras aparentemente sem sentido,
um em cada página. Leu-os uma e outra vez. No cimo de cada uma
das três páginas encontravam-se as palavras crípticas "O Que
Procura Encontrará". A Ben parecia-lhe mais uma zombaria.
— O que procura ficará completamente perdido, digo eu —
murmurou ele.
Por baixo destas três inscrições, uma linha em latim dizia Cum
Luce Salutem. Com a luz vem a salvação.
Por baixo disso, cada página tinha um arranjo ainda mais perplexo
de texto desconcertante. A primeira das três páginas dizia:

A segunda página dizia:


E na terceira página o texto estava arranjado da forma seguinte:

As últimas três letras de cada arranjo, M.L.R, pareciam ser iniciais.


Seria o R de Rheinfeld? Mas o seu primeiro nome era Klaus. E o ML?
Não parecia fazer qualquer sentido.
E as palavras quebradas por cima do MLR? Ben recostou-se no
sofá. Sempre detestara puzzles. Fixou o espaço à sua frente. Uma
traça passou-lhe a voar pelo nariz e en observou-a a dirigir-se para o
candeeiro em cima da mesa a seu lado. A traça dardejou para aqui e
para ali e depois voou para o interior do abat-jour de tecido leve. Ben
conseguia vê-la a percorrer a parte de dentro do material,
transparente com a luz vinda da lâmpada.
Nesse momento percebeu. Com a luz vem a salvação.
Agarrou nas três páginas juntas, dobrando o resto do bloco-notas,
e ergueu-as à luz do candeeiro. A luz brilhou através do fino papel, e
subitamente as letras ao acaso tornaram-se palavras reconhecíveis.
Todos juntos, os três blocos de texto diziam agora:

FIN
L'EAU ROTIE
LE LAC D'SANG
M.L.R
THE END
THE ROASTED WATER
THE LAKE OF BLOOD
M.L.R

Talvez agora estejamos a chegar a qualquer lado, pensou ele.


Por outro lado, talvez não.
Muito bem, vamos lá partir isto aos bocadinhos. "O Fim" — o que
era aquilo, estaria apenas a dizer que era o fim do livro? Não estava a
ver que fosse outra coisa.
Mas pelo menos isso era mais do que aquilo que conseguia
perceber de água assada e lagos de sangue. Esfregou os olhos,
mordeu o lábio. Por instantes, a frustração deu lugar à fúria e Ben
teve de controlar um poderoso impulso para rasgar o bloco-notas em
pedacinhos. Engoliu em seco, tentou acalmar-se, fixou
taciturnamente as frases durante um longo minuto. Desafiou-as a
revelar-lhe qualquer género de significado.

FIN
L'EAU ROTIE
LE LAC D'SANG
M.L.R

Mas se realmente não quisessem dizer nada, para quê darem-se ao


trabalho de montar as frases daquela maneira em três páginas
consecutivas?
Tal como a maior parte dos linguistas autodidactas, o francês
falado de Ben era de longe mais fluente do que o seu domínio da
língua escrita. Tanto quanto podia avaliar, no entanto, a linha "o lago
de sangue" devia estar escrita em francês "LE LAC DE SANG". Em
vez disso tinha sido escrita como "LE LAC D'SANG", com uma letra
importante omissa. Seria apenas um erro? Não parecia ser. Parecia
ter sido deliberadamente feito daquela forma. Mas porquê?
Lutou para pensar claramente. Era quase como se... como se o
autor estivesse a brincar com a forma, com as letras... compensando
uma falta de letras? Mas porque é que ele haveria de fazer isso?
Um anagrama?
Ben pegou numa folha de papel do hotel que se encontrava em
cima da mesa e começou a escrever. Começou por eliminar uma letra
de cada vez fazendo um círculo em seu redor, tentando criar novas
palavras a partir das estranhas frases. Já tinha chegado a "L'UILE
ROTIE N'A MAL... " "o óleo assado não tem errado"... quando
compreendeu que aquilo era um beco sem saída e perdeu a
paciência.
Scrunch. Ben atirou furiosamente a bola de papel através do
quarto e começou de novo numa folha limpa.
Mais cinco tentativas, e Ben estava a começar a pensar que ia
acabar enterrado vivo em papel amarrotado. Mas agora aquilo
começava a parecer algo coerente.
Ao fim de mais quinze minutos tinha conseguido. Olhou para a
folha. As novas palavras não eram em francês, mas no italiano nativo
do verdadeiro autor.

IL GRANDE MAESTRO FULCANELLI.

O grande mestre Fulcanelli.


Era a sua assinatura. Ben respirou fundo. Parecia que isto era
mesmo o que ele procurara o tempo todo.
Só havia um pequeno problema. Mesmo que o que ali tinha fosse
uma transcrição palavra por palavra do misterioso manuscrito
Fulcanelli, ainda não tinha nada que valesse a pena levar a Fairfax.
Se o velho pensara que o manuscrito ia oferecer um género de receita
médica, ou uma simples receita caseira para fazer poções salva-vidas
com fáceis diagramas passo a passo, não poderia estar mais
enganado. Uma massa críptica de enigmas esotéricos e disparates
não iria nunca ajudar a pequena Ruth. Esta busca ainda não
terminara. Estava apenas a começar.
Já passava das 6 h 30 m. Meio tonto de fadiga, Ben recostou-se no
sofá e fechou os olhos a arder.
Capítulo 44
A brisa da noite restolhava nas copas das árvores acima dele.
Estava deitado sobre a anca, perfeitamente imóvel e invisível nos
arbustos, esperando e observando, tão silencioso e paciente como
qualquer das predadoras criaturas que viviam na escura floresta em
seu redor. A sua mente estava desligada da dor dos seus cortes e
hematomas, do arranhão na face e das palmas das mãos feridas
depois de ter deslizado pelos ramos da trepadeira abaixo. Já mal
sentia o que quer que fosse. Mas a raiva sentia-a como uma bolha de
aço fundido na garganta.
Não havia nada que Franco Bozza mais odiasse do que o fracasso,
do que ser despojado, em particular quando o sucesso parecera tão
garantido. O seu prémio fora-lhe tirado, e tinha sido impotente para
fazer algo a esse respeito. Perdera.
De momento.
Aguardou um pouco mais, com a respiração a abrandar enquanto a
sua fúria diminuía para uma raiva latente. Espetou a cabeça ao ouvir
a sirene à distância. O uivar da ambulância cresceu na estrada rural
deserta, e então passou a alta velocidade pelo esconderijo de Bozza,
tornando as árvores e os arbustos momentaneamente azuis com as
luzes giratórias.
Bozza observou a ambulância a aproximar-se da entrada da villa
mais à frente na estrada, abrandando para fazer a curva. Antes de lá
chegar, apareceram os faróis de um carro, vindos do lado oposto.
Segundos depois um velho Renault passou pela ambulância na
estrada apertada. Pareceu abrandar enquanto a ambulância virava
para o pátio da villa, depois ganhou velocidade e Bozza conseguia
ouvir o chocalhar do motor a aproximar-se. Quando este passou por
ele, já Bozza se movimentava por entre as árvores para chegar ao
Porsche escondido.
Apanhou o Renault fácil e rapidamente. Ao aproximar-se, esperou
por uma curva na estrada onde entroncava outra via. Desligou as
luzes. Se o condutor do Renault estivesse a prestar atenção, iria
parecer como se o carro lá atrás tivesse virado noutra direcção.
Agora estava totalmente concentrado, sentado no Porsche às
escuras e invisível, com apenas as diminutas luzes da traseira do
Renault a abrir-lhe o caminho por entre o sinuoso trajecto. Passados
alguns quilómetros a sua presa abrandou e virou para a entrada de
um pequeno hotel rural. Encostou o Porsche na berma da estrada,
saiu e meteu-se pelos terrenos do hotel.
Hope e a mulher americana não o viram ao entrarem no hotel, mas
ele encontrava-se apenas a cinquenta metros nas sombras. Estava
debaixo das árvores olhando para o edifício quando viu luzes a
acenderem-se. Janela do meio, primeiro andar.
O tempo passou. Por volta da meia-noite viu duas figuras à janela.
Estavam a dançar. A dançar. Depois desapareceram e as janelas
ficaram às escuras.
Bozza aguardou mais algum tempo, calculando metodicamente a
planta do hotel. Depois rodeou o edifício até descobrir uma entrada
numa cozinha que não se encontrava trancada. Caminhou ao longo
dos corredores silenciosos até chegar à porta que queria. A sua faca
de recurso estava enfiada no cinto.
Bozza estava a inserir a gazua na fechadura quando a faixa de luz
amarela apareceu por baixo da porta da suite lua-de-mel. Praguejou
em silêncio, retirou a gazua e afastou-se para o corredor às escuras.
Era demasiado perigoso confrontar Hope sem o elemento da
surpresa. Teria de aguardar mais tempo pelo momento adequado.
Mas este chegaria, este chegaria.
Capítulo 45
Ben despertou sobressaltado. Ouvia o som de passos e movimento
no quarto de cima. Vozes no corredor ali fora.
Olhou para o relógio e praguejou. Eram quase nove horas. Em seu
redor encontravam-se as notas e apontamentos que tomara durante
a noite. Lembrou-se subitamente.
Queria contar as novidades a Roberta.
Foi ao quarto e viu que a cama de dossel se encontrava vazia.
Chamou pelo nome dela à porta da casa de banho, e depois entrou ao
não haver resposta. Ela também não estava ali. Para onde diabo
fora?
Não gostou daquilo. Agarrou na pistola, enfiou-a fora de vista. Saiu
da suite e desceu para o piso térreo. Lá em baixo na sala de jantar, o
grupo de turistas britânicos comia o pequeno-almoço e falava em voz
alta. Não havia sinal de Roberta. Entrou no átrio deserto. Através de
uma porta, viu um grupo do pessoal do hotel reunido em círculo e
tagarelando em sussurros altos e urgentes.
Foi lá para fora. Talvez ela tivesse ido dar um passeio. Devia ter-
lhe dito. Porque é que não o acordara? Saiu pela entrada e atravessou
o parque de estacionamento.
O sol já estava quente, e Ben protegeu os olhos contra o reflexo na
gravilha branca. As pessoas andavam por ali. Chegava um carro
cheio de novos hóspedes, retirando a bagagem das traseiras de um
Renault Espace. Não havia qualquer vestígio dela.
Ao voltar para trás na direcção do hotel os seus pensamentos
prementes foram quebrados pela súbita estridência de uma sirene
atrás de si.
Rodou sobre os calcanhares. Dois carros da polícia atravessavam a
gravilha apressadamente, vomitando nuvens de pó. Pararam um de
cada lado de Ben. Cada carro tinha um condutor e dois passageiros.
As portas abriram-se, saltaram dois polícias de cada um dos carros e
começaram a andar. Vinham a olhar para Ben.
Ben voltou-se e afastou-se rapidamente deles.
— Monsieur? — Vinham os quatro atrás dele. Soou um rádio.
Ben andou mais depressa, ignorando-os.
— Monsieur, um momento — chamou mais alto o agente.
Ben deteve-se, com as costas viradas para eles, imóvel. Os polícias
alcançaram-no e rodearam-no. Um deles tinha a insígnia de
sargento. Era sólido e bem constituído, ombros quadrados, peito
grande, algures a meio dos cinquenta.
Tinha um ar confiante, como se conseguisse tomar conta de si
próprio. O mais novo era um puto no começo dos vinte. Tinha olhos
nervosos e um brilho de suor no sobrolho.
Uma mão na coronha da pistola.
Ben sabia que se eles fizessem qualquer tentativa contra ele, os
quatro estariam desarmados e no chão antes que conseguissem
disparar um único tiro. O sargento pesadão seria o primeiro a
marchar. Depois o puto nervoso. Este estaria suficientemente
assustado para disparar. Os números três e quatro não seriam um
problema. Mas os outros dois polícias nos carros encontravam-se
fora do alcance e teriam tempo para aprontar as pistolas. Isso era um
problema maior. Ben não queria ter de matar ninguém.
O sargento falou em primeiro lugar.
— Foi você o homem que chamou a polícia? — perguntou a Ben.
— Agente! Fui eu que vos chamei! — Um hóspede saía do hotel, um
homem baixo e gordo com cabelo grisalho.
— Peço perdão, senhor — disse o sargento a Ben.
— O que se passa? — perguntou Ben.
O tipo gordo juntou-se-lhes. Estava agitado, sem fôlego.
— Eu chamei-os — disse novamente. — Vi uma mulher a ser
sequestrada. — Apontou e contou os pormenores.
Ben ficou para trás, escutando com um alarme crescente.
— Foi mesmo ali — dizia o tipo gordo. As palavras saíram todas de
enxurrada. — Era um gajo grande. Acho que ele tinha uma arma...
levou-a para o carro... um Porsche preto... matrícula estrangeira,
talvez italiana... ela debatia-se. Uma mulher jovem, cabelo arruivado.
— Viu para que lado foi o carro? — perguntou o polícia.
-Virou à esquerda à saída... não, à direita... não, esquerda,
definitivamente à esquerda.
— Há quanto tempo foi isso?
O tipo gordo suspirou e olhou para o relógio.
— Vinte, vinte e cinco minutos.
O sargento falou para o rádio. Três dos polícias ficaram para
recolher depoimentos da testemunha e interrogar o pessoal. O
quarto voltou para o carro e este arrancou estrada fora.
— Eu vi-a chegar a noite passada, com o marido — dizia o homem
gordo. — Espere aí... já me lembro, era o homem que estava aqui
agora mesmo.
— O homem louro?
— Sim... Era ele, tenho a certeza.
— Para onde foi ele?
— Ele desapareceu há momentos.
— Alguém viu para onde foi ele?
Ouviu-se um grito.
— Sargento! — era o jovem maçarico. Vinha a agitar uma folha de
papel. O sargento abarbatou-a das mãos dele e os seus olhos
abriram-se muito. A fotografia tinha cerca de dez anos, cabelo à
recruta, aspecto militar. Mas foi o que estava escrito por debaixo que
mais lhe chamou a atenção.

RECHERCHÉ
ARMÉ ET DANGEREUX
Capítulo 46
Dezasseis minutos depois, as unidades de resposta táctica da
polícia agrupavam-se no exterior do Hotel Royal. Separando-se em
grupos, agentes paramilitares vestidos de negro, fortemente armados
com pistolas-metralhadoras, caçadeiras de canos curtos e lançadores
de granadas de gás lacrimogéneo cercaram o edifício. Os confusos
hóspedes e pessoal foram agrupados, levados para o exterior e
colocados a uma distância segura nos terrenos em redor. Espalhou-
se palavra, e em breve toda a gente sabia do perigoso e armado
criminoso que a polícia procurava. Seria um terrorista? Um
psicopata? Todos tinham as suas próprias versões da história.
O rasto do homem foi em breve descoberto nas traseiras do hotel.
Por trás do parque de estacionamento do pessoal havia um campo
relvado não cortado que dava para as quintas vizinhas. Um agente da
polícia de olho vivo descobriu a pista onde a relva alta fora
espezinhada. Alguém correra recentemente por ali. Os pastores-
alemães da polícia apanharam-lhe imediatamente o cheiro.
Ladrando furiosamente e fazendo esticar as trelas conduziram os
seus tratadores através do campo enquanto agentes armados os
seguiam logo atrás. O rasto cortava através do campo até um
pequeno bosque. O fugitivo não podia ter ido longe.
Mas o rasto não levava a lado nenhum. Parava à beira do bosque.
Os agentes olharam para as árvores mas não havia sinal dele. Era
como se ele se tivesse evaporado.
Os perseguidores levaram alguns minutos a compreender que a
sua presa os enganara. Regressara pelo mesmo caminho para deixar
uma pista falsa.
Com os narizes no chão, os pastores-alemães conduziram-nos de
volta ao hotel. O cheiro levou-os para as traseiras, através de uma
entrada para as cozinhas. Os agentes sacaram das pistolas.
Juntaram-se-lhes mais alguns com caçadeiras.
Os cães pararam subitamente, desorientados, espirrando, levando
as patas aos focinhos. Alguém espalhara um frasco grande de
pimenta moída pelo chão.
Ao sinal, o esquadrão táctico, de capacetes e vestidos de negro,
varreu todos os quartos do hotel. Trocando sinais de mãos, cobrindo-
se uns aos outros com as armas, movimentaram-se eficientemente
do corredor para as escadas e subiram um andar de cada vez, um
quarto de cada vez, verificando todos os cantos possíveis em busca
do fugitivo.
Encontraram um homem na suite lua-de-mel, mas não o homem
que esperavam encontrar. Era um francês de cinquenta e dois anos
em roupa interior, preso a um dos pilares da cama com as suas
próprias algemas. Tinha a cara vermelha e os olhos protuberantes
quando os atiradores da polícia irromperam por ali adentro e lhe
apontaram as armas. Alguém lhe enfiara uma toalha de mãos do
hotel na boca. Chamava-se sargento Emile Dupont.
O uniforme da polícia táctica era um pouco largo para Ben, e as
calças eram alguns centímetros mais curtas. Mas ninguém notou
quando ele saiu confiantemente do hotel, gritando ordens severas a
alguns agentes juniores. Ninguém reparou no saco militar verde
alheio ao equipamento que ele transportava.
E ninguém reparou quando ele se encaminhou pelo meio da
multidão de hóspedes tagarelas, se enfiou num dos carros da polícia
estacionados na parte da frente do hotel e tranquilamente arrancou.
A testemunha dissera que o Porsche preto virara à esquerda. Mas
estivera hesitante. Ben virou à direita. Uma vez fora das vistas do
hotel meteu prego a fundo, relanceando o olhar pelo espelho
retrovisor para confirmar que passara despercebido. Chegavam
mensagens via rádio. Não podia ficar muito tempo com este carro.
Ela só cá viera abaixo para ver a pequena boutique à saída do átrio
do hotel. Ben dormia a sono solto por cima de um monte de notas e
papéis na antecâmara. Não quisera incomodá-lo. Assim como assim,
estaria de volta dentro de cinco minutos, finalmente com algo limpo
e fresco para vestir.
A boutique só abria às 8 h 45 m. Espreitou a montra, decidiu-se
por uma camisola da qual gostou do aspecto, e um par de calças de
ganga pretas. Alguns minutos para matar, e o ar da manhã estava
limpo e fresco. Passeou à frente do hotel, admirando algumas das
plantas, ainda a tentar não pensar no dia anterior.
Não reparara no homem que lhe surgira por detrás. A aproximação
foi silenciosa e rápida. Logo a seguir, uma mão enluvada de negro
cobria-lhe a boca e uma pontiaguda ponta de faca fazia-lhe pressão
na garganta.
— Começa a andar, puta — disse-lhe uma voz rouca e sussurrante
ao ouvido. A pronúncia era densamente estrangeira.
Do outro lado do parque de estacionamento, meio escondido por
detrás de um grande arbusto ornamental, encontrava-se um Porsche
preto com as portas abertas. O homem era grande e poderoso. Ela
não conseguia libertar-se do aperto dele no seu braço, ou gritar com
aquela mão forte a cobrir-lhe a face. Ele atirou-a para dentro do
carro e socou-a na cara, com força. Soube-lhe a sangue antes de
desmaiar.
Não havia maneira de dizer quanta estrada tinham percorrido
antes de ela voltar a si. A sua mente clareou rapidamente quando a
adrenalina se começou a espalhar no seu corpo. A seu lado no
apertado cock-pit do carro de desporto, a cara do seu raptor parecia
granito. Ele empunhou a lâmina contra o seu estômago, conduzindo
com uma mão. O Porsche corria pela estrada rural com 150 no
mostrador, paisagem campestre aberta e uma árvore ocasional a
aparecer de vez em quando.
Seria loucura fazer alguma coisa. Matava-nos aos dois. Ou então
ele enfia-me a faca.
Mas ela fê-lo na mesma.
O carro entrava numa série de apertadas curvas em S, abrandando
para os 85. Por um instante ele distraiu-se. Ela socou-o com toda a
sua força e apanhou-o no ouvido.
A faca saltitou no chão. Ele rugiu. O Porsche oscilou. Roberta
esticou-se no assento e agarrou-se ao volante, torcendo-o na sua
direcção. O carro atravessou-se loucamente para a direita, derrapou
na berma rochosa e bateu de lado numa árvore. Roberta foi
canhoneada contra a porta do passageiro, e a força do impacto atirou
o seu raptor para cima dela.
O pesado corpo tirou-lhe momentaneamente o ar.
O Porsche imobilizou-se numa nuvem de pó. No interior, ele
dominava-a com o próprio peso. Pegou na faca e pressionou a lâmina
contra o pescoço dela. Podia imaginar como, com apenas um pouco
mais de pressão, o fio da navalha de aço meticulosamente afiado
penetraria através das camadas de pele e principiaria a sua lenta e
deliberada viagem para o interior da carne, cada vez mais fundo
enquanto o sangue começava a correr. A princípio correria devagar.
Depois em jactos pulsantes enquanto ele a imobilizava e sentia o
corpo dela a debater-se contra o seu aperto.
Mas por entre a névoa vermelha da luxúria ele lembrou-se da
chamada telefónica para o arcebispo na noite anterior. "O inglês tem
o manuscrito", dissera a Usberti, sem revelar como o deixara
escorregar por entre os dedos.
"Quero-os vivos, Franco", ordenara-lhe a voz de Usberti. "Se não
consegues recuperar o manuscrito, teremos de pensar numa maneira
de forçar o Hope a entregá-lo."
Bozza adorava o seu trabalho para a Gladius Domini, mas a
política e a intriga não tinham qualquer interesse para ele. Olhou
iradamente para a forma de Roberta Ryder que se debatia debaixo
dele, prendendo-a ao assento do carro enquanto ela se contorcia e
lhe cuspia na cara. Era frustrante ser-lhe negado o prazer de a matar.
Pousou a faca, socou-a novamente e conduziu dali para fora.
O carro da polícia roubado atirava nuvens de pó para o ar
enquanto Ben o forçava aos limites pelas estradas desertas. Ben
começava a interrogar-se se deveria ter ido noutra direcção quando
chegou às curvas em S e viu as negras e recentes marcas de
derrapagem do lado direito, subindo a berma rochosa. No alto do
declive, uma velha árvore fora atingida, com a casca arrancada do
tronco e um ramo pendurado como um braço partido.
Parou o carro e agachou-se na berma da estrada. No chão e
incrustadas na casca arrancada da árvore, Ben descobriu lascas de
tinta preta.
Algo escuro e brilhante na berma da estrada lhe prendeu o olhar.
Remexeu-lhe com o dedo. Um pingo de óleo de motor, ainda quente
ao toque. A julgar pela largura, as marcas de derrapagem tinham
sido feitas por pneus desportivos largos e aderentes. Um carro de
competição preto, que ia com pressa a qualquer lado. Tinha de ser o
Porsche.
Encontrou mais óleo um pouco adiante na estrada, manchas e
pingos a intervalos regulares na direcção que trazia. O condutor
devia ter batido numa pedra e danificado o cárter. Porque é que o
carro batera? Qual seria a extensão dos danos? Talvez houvesse uma
possibilidade de o encontrar avariado mais à frente, se continuasse a
perder tanto óleo. Mas embora o carro da polícia fosse veloz e
potente, era altamente conspícuo e ele era um alvo parado se o
conservasse.
Ben seguiu o rasto de óleo durante mais alguns quilómetros,
mantendo uma orelha alerta para as mensagens intermitentes no
rádio da polícia. Conforme esperara, não passou muito tempo antes
que dessem pelo carro em falta e estavam a enviar outros para o
encontrar. Ia ter de trocar de veículo, e perder a oportunidade de
apanhar o Porsche danificado.
Num dos extremos de um sonolento aglomerado rural encontrava-
se uma oficina com uma bomba de gasolina e uma tabuleta que
ondulava e chiava com a brisa. Logo a seguir havia um caminho de
lama esburacado que se estendia para um dos lados. Virou o carro
para aí, suspirando de frustração. Seguiu o caminho ao longo de
cerca de meio quilómetro até este terminar num campo semeado de
pedras, pasto amarelado e arbustos arrancados. Despiu o uniforme
da polícia e mudou-se novamente para as suas próprias roupas,
limpou tudo em que tocara no interior do carro, depois atirou as
chaves para uma vala e começou a correr de volta na direcção da
oficina.
O mecânico olhou para cima quando o homem alto e louro entrou
na oficina pela abertura na grade metálica. Esfregou o queixo
cerdoso com dedos grosseiros e enegrecidos, afastou-se do chaço que
estava a arranjar e acendeu um cigarro. Sim, vira passar um Porsche
preto. Tinha sido há pouco menos de uma hora. Belo carro, uma
pena os danos. Parecia que tivera um acidente, com o guarda-lamas
traseiro todo metido dentro. Havia algo a raspar na roda, soava como
tal.
— Iá, matrícula italiana? O louco filho-da-mãe bateu no meu carro
-disse Ben. — Atirou-me para fora da estrada lá atrás. Tive de andar
uns bons quilómetros.
— Precisa de reboque? — O mecânico virou o queixo na direcção
do ferrugento camião de reboque estacionado lá fora.
Ben abanou a cabeça.
— Tenho um acordo especial com a companhia de seguros. Eu
ligo-lhes. Em todo o caso obrigado. — Enquanto falavam, Ben
percorreu o sítio com o olhar. Havia uma pequena área de exposição
anexa à oficina, vendendo principalmente carros usados e carrinhas.
O olhar prendeu-se-lhe em algo. — Mas digo-lhe uma coisa. Aquilo
está à venda?
Ben não andava de motocicleta há mais de dez anos. A última vez
que andara de mota fora numa antiga mota de estafeta militar que
vibrava como um martelo pneumático e vertia óleo e gasolina. A
elegante Triumph Daytona 900 triple que agora conduzia era uma
máquina de um género completamente diferente, brutalmente
potente e mais veloz que a maior parte das coisas de quatro rodas.
Seguiu a estrada, mantendo-se acutilantemente atento a mais
manchas de óleo. Se tivesse sorte, aqueles pequenos pingos redondos
seriam o rasto de migalhas que o poderiam levar para onde quer que
o Porsche tivesse ido.
Alguns quilómetros mais à frente, o coração afundou-se-lhe
quando o rasto de óleo subitamente se extinguiu. Andou mais cerca
de quilómetro e meio, observando o pavimento atentamente
enquanto reduzia o gás e a Triumph ronronava a passo. Nada.
Praguejou. Ou a fuga se tinha magicamente reparado a si própria, ou
então o condutor mudara de rumo algures. Estação de serviço, com
uma vítima de rapto no carro? Parecia improvável. Devia ter ligado
para um contacto local para ser rebocado. E agora desaparecera.
Ben parou a mota e ficou ali sentado a fixar a estrada deserta.
Perdera-a.
Capítulo 47
Ben estacionou a grande Triumph com o descanso lateral entre as
árvores que bordejavam Saint-Jean e enfiou o capacete completo no
punho da máquina. As ruas da aldeia estavam tão silenciosas e
desertas como sempre. Encontrou o padre Pascal em casa.
— Benedict, eu andava tão preocupado consigo. — Pascal agarrou-
o pelos ombros. — Mas... onde está a Roberta?
Ben explicou-lhe a situação e a face do padre foi caindo mais e
mais. Afundou-se desesperadamente num banco. Subitamente
parecia ter todos os seus setenta anos.
— Não posso ficar aqui muito tempo — disse Ben. — A polícia não
vai perder muito tempo a ligar o Renault no hotel a si. Há-de cá vir
para o interrogar a meu respeito.
Pascal levantou-se. Havia um intenso brilho nos seus olhos que
Ben ainda não vira. Tomou o braço de Ben.
— Venha comigo. Há um sítio melhor para falarmos.
No interior da igreja, Ben ajoelhou no confessionário. A cara de
Pascal encontrava-se meio visível através da janela de rede entre
ambos.
— Não se preocupe com a polícia, Benedict — disse Pascal. — Eu
não lhes direi nada. Mas o que vai fazer? Receio terrivelmente por
Roberta.
Ben tinha um ar sombrio.
— Não sei o que será melhor — disse ele. Não podia deixar uma
criança moribunda à espera. Cada minuto que adiasse seria tempo
perdido para ela. Podia continuar e terminar o seu trabalho... Mas
isso era assinar a sentença de morte de Roberta. Podia ir atrás dela,
mas se já estivesse morta ou não a conseguisse encontrar, arriscava
sacrificar a criança para nada. Suspirou. — Não posso salvar as duas.
Pascal ficou sentado em meditativo silêncio durante um ou dois
minutos.
— É uma escolha difícil que tem pela frente, Ben. Mas tem de
escolher. E uma vez tomada a decisão, não deve arrepender-se dela.
Já houve demasiado arrependimento na sua vida. Mesmo que a sua
escolha leve ao sofrimento, não deve olhar para trás. Deus saberá que
o seu coração estava puro.
— Padre, sabe o que é a Gladius Domini? — perguntou Ben.
Pascal pareceu ficar desconcertado.
— Em latim quer dizer "a espada de Deus". Uma expressão curiosa.
Porque é que pergunta?
— Nunca ouviu falar de um grupo, ou organização, com esse
nome?
— Nunca.
— Lembra-se do que me contou acerca de um bispo...
— Sssh. — Pascal interrompeu-o com um olhar urgente. — Está
aqui alguém — sussurrou.
O pároco caminhou ao longo da álea central e saudou os detectives
da polícia por debaixo da arcada à entrada.
— Padre Pascal Cambriel?
— Sim.
— Eu sou o inspector Luc Simon.
— Falemos lá fora — disse Pascal, afastando-os da igreja e
fechando a porta atrás de si.
Simon estava cansado. Acabara de ser trazido de Le Puy pelo
helicóptero da polícia. A pista aí não dera em nada, mas ele soubera
que Ben Hope em breve ressurgiria algures. Tivera razão. Mas o
porquê das pegadas de Hope o estarem a conduzir para esta pequena
e poeirenta aldeia no meio de nenhures ficava para além da sua
compreensão.
Doía-lhe a cabeça e sentia falta de café.
— Julgo que perdeu um carro — disse ele a Pascal. — Um Renault
14?
— Perdi? — Pascal pareceu surpreendido. — Que quer dizer com
perdi? Não pego nele há semanas, mas tanto quanto sei ainda se
encontra...
— O seu carro foi encontrado no Hotel Royal perto de Montségur.
— O que estava ele lá a fazer? — perguntou incredulamente Pascal.
— Era isso que eu pensava que o senhor me pudesse dizer —
retorquiu Simon com a suspeição na voz. — Padre, o seu carro
encontra-se implicado numa caça ao homem a um criminoso
extremamente perigoso.
Pascal abanou a cabeça de incredulidade.
— Isto é tudo muito chocante.
— Com quem é que estava a falar ali dentro? — exigiu saber Simon,
apontando para o interior da igreja. Começou a abrir a pesada porta
em arco.
Pascal bloqueou-lhe a passagem. O pároco parecia subitamente ter
o dobro do seu tamanho normal. Os olhos eram duros.
— Eu estava a ouvir uma confissão de um dos meus paroquianos -
rosnou. — E uma confissão é sagrada. Os meus paroquianos não são
criminosos. Não o deixarei profanar a casa de Deus.
— Estou-me nas tintas para de quem é a casa — retorquiu Simon.
— Então vai ter de usar a força contra mim — disse Pascal. — Não
o deixarei entrar até que volte com o devido mandado.
Simon olhou duramente para Pascal durante alguns segundos.
— Hei-de cá vir novamente — disse ele enquanto se virava e
afastava.
Simon deitava fumo quando regressou ao carro.
— Aquele velho filho-da-mãe sabe alguma coisa — disse para o
motorista. — Vamos embora.
Passavam pela praça da aldeia quando Simon ordenou ao
motorista que parasse. Saiu do carro e dirigiu-se vivamente para o
bar.
Pediu um café. Ao canto da sala, os três velhos jogadores de cartas
viraram-se para olhar para ele. Simon pousou a sua identificação de
polícia em cima do balcão.
O barman olhou-a desapaixonadamente de relance.
— Alguém viu recentemente estrangeiros na aldeia? — perguntou
Simon, dirigindo-se à sala. — Estou à procura de um homem e de
uma mulher, estrangeiros.
A polícia estava de volta mais depressa do que Pascal esperara.
Menos de cinco minutos depois, Simon encontrava-se a caminhar
pela álea, com os seus passos rápidos a ecoar na igreja vazia.
— Esqueceu-se de alguma coisa, inspector?
Simon sorriu friamente.
— Você é um excelente mentiroso — disse ele. — Para um pároco.
Agora, vai dizer-me a verdade, ou vai querer que o detenha por
obstruir o curso da justiça? Isto é uma investigação de homicídio.
-Eu...
— Não me tente aldrabar. Eu sei que o Ben Hope esteve aqui. Ele
ficou na sua casa. Porque é que o está a proteger?
Pascal suspirou. Sentou-se num banco, descansando a sua perna
doente.
— Se vier a saber-se que você albergou um criminoso — prosseguiu
Simon -, enterro-o tão fundo em merda que você nunca mais de lá
sai. Onde é que está o Hope, e para onde é que ele levou a doutora
Ryder? Eu sei que você sabe, portanto é melhor começar a falar. —
Simon sacou da arma e abriu de rompante as portas dos
compartimentos do confessionário.
— Ele não está aqui — disse Pascal, olhando furiosamente para o
revólver sacado. — Vou pedir-lhe que afaste essa arma, agente.
Lembre-se de onde se encontra.
— Na presença de um mentiroso e possivelmente cúmplice de um
crime — retorquiu Simon. — É onde estou. — Bateu a porta do último
compartimento do confessionário com um estrondo que ecoou pela
igreja. — Agora... sugiro que comece a falar.
Pascal olhou-o desafiador.
— Não lhe vou dizer nada. O que o Benedict Hope me confessou é
entre ele, eu próprio e Deus.
Simon troçou.
— Veremos o que tem o juiz a dizer acerca disso.
— Pode levar-me para a sua prisão se quiser — disse calmamente
Pascal. — Já estive em prisões piores, na guerra da Argélia. Mas não
falarei. Só lhe vou dizer uma coisa. O homem que perseguem é
inocente.
Não é um criminoso. Este homem só faz o bem. Poucos homens
que eu tenha conhecido serão tão heróicos e virtuosos.
Simon riu alto.
— Oh, a sério... realmente? Então talvez, padre, me queira contar
algo mais sobre este santo e as suas obras de caridade.
Capítulo 48
A Daytona levou-o depressa e para longe de Saint-Jean, cortando
por entre a paisagem agreste, debruçado sobre o tanque com o vento
a gritar-lhe em redor do capacete e a estrada a passar-lhe por
debaixo dos pés como um fecho de correr. A expressão de Ben era
fechada enquanto conduzia, pensando em qual deveria ser a sua
próxima acção. No fundo do coração sabia que só havia uma coisa
que poderia fazer, encontrar Roberta. Mas ela podia estar em
qualquer parte. Podia muito bem já estar morta.
Desacelerou à aproximação de uma curva, uma parede de rocha
arenosa de um lado da estrada e um mergulho a pique para a floresta
do outro. A motocicleta inclinou-se acentuadamente no interior da
curva, o joelho esticado quase a raspar na estrada. No vértice da
curva acelerou e a máquina endireitou-se enquanto desenvolvia
potentemente e o ruído do motor subiu para um uivo entre os seus
joelhos.
A luz do Sol cintilou em metal à distância. Ben praguejou por
detrás da viseira negra. Trezentos metros à frente, no fim de uma
comprida recta, uma operação de bloqueio inspeccionava veículos.
Por esta altura já devia ter sido mobilizado um exército de polícia em
todo o Languedoc. Homicídio na Villa Manzini, rapto, e um fugitivo a
monte. Teriam feito circular fotografias dele por todos os polícias da
região.
Ben abrandou. Quatro carros da polícia, polícias com pistolas-
metralhadoras apontadas para baixo, mas a postos. Tinham parado
uma carrinha Volvo. O condutor estava fora do carro, e verificavam-
lhe os papéis. Ben não tinha nenhuns, e assim que o fizessem tirar o
capacete estaria apanhado.
Ser apanhado não era tanto o problema. O problema era o género
de chatices que atrairia sobre si próprio se resistisse à detenção,
como sabia que seria forçado a fazer. Não queria ter de os magoar, e
dificilmente seria de bom grado que tivesse um milhar de polícias e
militares a virar do avesso o Sul de França para o encontrar quando
precisava de todos os minutos para encontrar Roberta e acabar o que
começara.
Travou e a mota fez alto na estrada a uns cem metros do bloqueio.
Durante um momento ficou ali a rodar o punho do acelerador. Se
tentasse passar o bloqueio eles poderiam disparar. Era demasiado
perigoso. Virou o guiador e fez a Triumph descrever uma apertada
curva em U. Abriu o acelerador a fundo e sentiu os braços a esticar e
a roda de trás a patinar e a oscilar com a brutal potência do motor.
Quando a mota alcançou alta velocidade e a estrada serpenteava
na direcção dele tão depressa como conseguia pensar e reagir, um
rápido relance no espelho retrovisor lateral disse-lhe que o tinham
visto e o estavam a seguir — faróis e azul intermitente, seguidos por
uma sirene. Abriu mais o punho do acelerador, atrevendo-se a
libertar um pouco mais da potência da Triumph. A passagem de alta
montanha mergulhou numa extensa sucessão de longas curvas e a
paisagem rochosa desapareceu de vista enquanto ele penetrava num
vale arborizado. O carro da polícia nos espelhos, já distante, estava a
encolher rapidamente para um minúsculo ponto.
Abriu-se uma recta à sua frente, levando-o ao cimo de uma extensa
lomba entre densas margens de floresta verde e dourada. Quando
passara já pelo bosque e a estrada subia de forma íngreme na
direcção da passagem de montanha seguinte, o carro da polícia
desaparecera.
Saiu da estrada no entroncamento seguinte, sabendo que viriam
mais carros à sua procura. Percorreu os caminhos sinuosos cada vez
mais elevados até que toda a extensão do vale do rio Aude ficou
disposta perante si como um modelo em miniatura. O caminho
sinuoso transformou-se numa pista lamacenta intransponível. Parou
a motocicleta junto a um precipício, apoiou-a no descanso e
desmontou, retirando o capacete e caminhando um pouco
rigidamente devido à sela.
Aqui e ali à distância conseguia distinguir as ruínas de antigos
fortes e castelos, manchas de agreste rocha cinzenta contra a floresta
e o céu. Caminhou até à beira do precipício, de modo a ter as
biqueiras sobre a borda. Olhou para baixo, uma queda de entontecer
com centenas de metros.
O que ia fazer?
Ficou ali durante o que pareceu uma eternidade, com o fresco
vento da montanha a assobiar-lhe em redor. Tirou o frasco. Ainda
estava meio cheio. Fechou os olhos e levou-o aos lábios.
Deteve-se. Tinha o telefone a tocar.
— Benedict Hope? — disse-lhe a voz metálica ao ouvido.
— Quem é você?
— Nós temos a Ryder. — A voz aguardou pela resposta, mas Ben
não ofereceu nenhuma.
O homem prosseguiu.
— Se quiser vê-la com vida novamente, vai escutar-me
atentamente e seguir as minhas instruções.
— O que vocês querem? — perguntou Ben.
— Queremo-lo a si, senhor Hope. A si, e ao manuscrito.
— O que o faz pensar que eu o tenho?
— Nós sabemos o que obteve da Manzini — prosseguiu a voz. — Irá
entregar-nos isso pessoalmente. Irá encontrar-se connosco esta noite
na Place du Peyrou em Montpellier.
Junto à estátua de Luís XIV. Onze horas. Irá sozinho. Estaremos a
vigiá-lo. Se virmos alguma polícia, vai ter a Ryder de volta um pedaço
de cada vez.
— Quero uma prova de vida — exigiu Ben. Enquanto escutava,
ouviu um som de restolhar quando o telefone foi passado a alguém.
A voz de Roberta estava subitamente no seu ouvido. Soava receosa.
— ... tu, Ben? Eu... — Depois a voz dela foi cortada abruptamente
quando o telefone lhe foi arrancado.
Ben pensava depressa. Ela estava viva, e eles não a matariam até
que tivessem o que queriam. Isso queria dizer que podia comprar
tempo.
— Preciso de quarenta e oito horas — disse.
Houve uma longa pausa.
— Porquê? — exigiu saber a voz.
— Porque eu já não tenho o manuscrito — mentiu Ben. — Está
escondido no hotel.
— Vai ter de lá ir recuperá-lo — disse a voz. — Tem vinte e quatro
horas, ou a mulher morre.
Vinte e quatro horas. Ben pensou no assunto por momentos. Fosse
qual fosse o plano que conseguisse formular para a tirar deste aperto,
ia precisar de mais do que isso para o pôr em andamento. Negociara
muitas vezes com raptores e sabia como funcionavam as cabeças
deles. Por vezes eram inflexíveis nas exigências e executavam a
vítima por dá cá aquela palha. Mas isso era principalmente quando
sabiam que não tinham grande coisa a ganhar, quando a negociação
estava a correr mal ou quando parecia que ninguém ia pagar. Se
estes tipos queriam assim tanto o manuscrito e pensassem que ele o
ia entregar, era uma carta que podia jogar com todo o peso que tinha.
Já conseguira que o tipo recuasse. Podia pressioná-lo um pouco
mais.
— Espere aí — disse calmamente. — Vamos lá a ser razoáveis.
Temos um problema. Graças a vocês, o hotel está neste preciso
momento pejado de polícias armados. Estou confiante em que posso
recuperar o manuscrito, mas vou precisar desse tempo extra.
Outra longa pausa, conversação abafada em fundo. Depois a voz
do homem regressou.
— Tem trinta e seis horas. Até às onze em ponto de amanhã à
noite.
— Lá estarei.
— É melhor que lá esteja, senhor Hope.
Capítulo 49
Quartel-general da polícia, Montpellier

A máquina automática engoliu as moedas de Luc Simon e ejectou


um líquido castanho ralo para um copo de plástico. O copo era tão
fino que ele mal podia pegar na maldita coisa sem fazer espirrar café
por todos os lados. Deu um gole enquanto regressava através do
corredor na direcção do gabinete de Cellier, e fez uma cara lixada.
Na parede do corredor encontrava-se outro daqueles cartazes de
pessoas desaparecidas que andava a ver por todo o lado, sobre o
adolescente que desaparecera uns dias antes. Até houvera um
espetado naquele bar manhoso da aldeia onde vivia o velho pároco.
Olhou para o relógio. Cellier estava agora atrasado mais de dez
minutos. Precisava de partilhar apontamentos com ele sobre o caso
de Ben Hope, e mostrar-lhe a nova informação que acabara de
receber da Interpol. Porque é que eram todos sempre tão lentos?
Enquanto andava para trás e para a frente, ia olhando para o cartaz.
Deu outro gole do copo de plástico e decidiu que não podia mesmo
beber aquela mixórdia. Enfiou a cabeça pela porta de vidro
martelado do gabinete de Cellier. A secretária ergueu o olhar do
teclado.
— Onde é que eu posso arranjar um café decente por estas bandas?
— inquiriu ele. — Alguém encheu a vossa máquina automática com
diarreia.
A secretária sorriu.
— Há um sítio bom mais à frente, senhor. Eu vou lá sempre.
— Obrigado. Quando o seu chefe chegar, se sempre vier, diga-lhe
que volto dentro de poucos minutos, está bem? Oh, onde é que posso
deitar fora esta merda?
— Dê-me cá isso, senhor — disse ela, rindo, e ele inclinou-se por
cima da secretária para lho passar. Estava um dossiê aberto na
secretária dela, com uma fotografia de Marc Dubois, o miúdo
desaparecido. Em cima do dossiê encontrava-se um pequeno saco de
plástico transparente com alguns artigos no interior.
— Muito bem, até já. O sítio do café é nesta ou naquela direcção? -
inquiriu ele, apontando para um lado e para outro da rua através da
janela.
— Naquela.
Simon estava a dirigir-se para a porta quando parou subitamente.
Virou-se de novo na direcção da secretária dela, e dobrou-se para
olhar de novo para o dossiê.
— De onde é que veio isto? — perguntou.
— O quê, senhor?
— Isto no saco. — Enfiou o dedo no saco até ao objecto que lhe
chamara a atenção. — Onde é que encontraram isto?
— Isso é tudo material do caso do desaparecido Dubois — disse ela.
— É apenas um bloco-notas e mais alguns pertences do rapaz.
— E esta coisa aqui? — apontou Simon.
Ela franziu o sobrolho.
— Penso que encontraram isso no quarto do rapaz. No entanto,
eles não acham que seja importante. Estou agora mesmo a bater os
apontamentos do caso. Porque é que pergunta?
Com demasiada pressa para fazer os três quarteirões a pé e voltar
do café, saltou para o carro não identificado que lhe fora posto à
disposição e arrancou. Saiu três minutos depois com um brioche e
um copo de algo que cheirava e se parecia muito mais com a coisa a
sério. Saltou de novo para o carro e sentou-se a sorver o café. Ah,
sim, muito melhor. O café ajudava-o a pôr os pensamentos em
ordem.
Estava tão perdido em pensamentos, que não reparou na figura a
aproximar-se do carro até Ben Hope estar a abrir a porta, entrar para
o seu lado e apontar-lhe uma pistola à cabeça.
— Eu fico com essa .38 — disse Ben. — Com cuidado.
Simon hesitou durante um segundo, depois suspirou e sacou
lentamente o revólver do coldre, conservando os dedos bem longe do
gatilho e entregando-o a Ben com o punho para a frente.
— Você tem uma lata, Hope.
— Vamos dar uma volta.
Saíram da cidade em silêncio, para noroeste na direcção do Bosque
de Valène e através de um percurso arborizado junto às margens do
rio Mosson. Após alguns quilómetros en apontou para uma abertura
nas árvores e disse:
— Encoste aqui. — O carro da polícia foi aos solavancos por uma
estrada de terra batida e chegou a uma sombria clareira na floresta.
Ben fez com que Simon se afastasse do carro de arma apontada até
onde as árvores se abriam para a margem do rio e a água azul e
cintilante se agitava e borbulhava contra as rochas.
— Vai dar-me um tiro — perguntou Simon -, major Hope?
— Andou a perguntar coisas sobre mim. — Ben sorriu. — Eu fazia
lá uma coisa dessas. Você e eu vamos ter uma pequena conversa
neste lindo sítio.
Simon interrogava-se sobre se Ben se aproximaria o suficiente
para lhe dar uma possibilidade de o desarmar. Não parecia provável.
Caminharam até ao rio. Ben gesticulou com a arma para que
Simon se sentasse numa rocha lisa. Ben sentou-se a uns dois metros
do detective.
— O que há para falar? — perguntou Simon.
— Para começar, podíamos falar sobre como você vai tirar os seus
cães de cima de mim.
Simon riu-se.
— E porque devo eu fazer isso?
— Porque eu não sou o seu assassino.
— Não? Parece que, onde quer que vá, ficam cadáveres na sua
esteira — disse Simon. — E raptar um agente da polícia de arma em
punho não é o comportamento de um homem inocente.
— Eu não me entregarei.
— Compreende que isso aponta para a sua culpa.
— Eu sei — retorquiu Ben. — Mas eu tenho um trabalho para fazer,
e não posso fazê-lo se a sua gente andar em cima de mim o tempo
todo.
— É isso que nós fazemos, Hope. Onde está a Roberta Ryder?
— Você já sabe isso. Foi raptada.
— Já estou a perder a conta às vezes que ela foi raptada —
retorquiu Simon.
— Esta foi apenas a primeira vez. Ela e eu temos trabalhado juntos.
— Em quê?
— Lamento, não lhe posso dizer isso.
— Parto do princípio de que me trouxe aqui para me dizer alguma
coisa?
— De facto. O termo Gladius Domini significa alguma coisa para
si?
Simon fez uma pausa.
— Sim, na verdade significa. Uma das suas vítimas tinha isso
tatuado.
— Ele não foi uma vítima minha. Foi um dos da sua própria gente
que o atingiu. Com uma bala que era dirigida à Roberta Ryder... ou a
mim.
— Em que porra é que você anda envolvido, Hope?
— Penso que eles são um culto cristão fundamentalista. Talvez um
pouco mais do que um culto. Estão bem organizados, bem
financiados e não estão a brincar. São eles que têm a Roberta.
— Porquê? Que haveriam eles de querer dela?
— Têm tentado matá-la, e a mim, durante a última semana. Não
tenho a certeza do porquê. Mas posso salvá-la.
— Isso é um assunto de polícia — protestou Simon.
— Não, este é o meu território. Eu sei o que acontece quando a
polícia se envolve em casos de rapto. Já o vi demasiadas vezes. A
vítima acaba normalmente num saco para cadáveres. Você tem de
recuar e deixar-me lidar com isto. Eu dou-lhe algo em troca.
— Você não está em posição de negociar comigo.
Ben sorriu.
— Eu é que tenho a arma na mão.
— O que o faz pensar que me vai escapar, major Hope?
— E o que o faz pensar que me vai escapar a mim, inspector
Simon? — retorquiu Ben. — Eu podia tê-lo matado. E posso chegar a
si sempre que quiser.
— Hum. Assassínio encoberto. É para isso que o treinam, não é?
— Não estou a ameaçá-lo. Quero que nos ajudemos um ao outro.
Simon ergueu as sobrancelhas.
— O que eu tenho a ganhar com isso?
— Dar-lhe-ei os seus assassinos de polícias. A gente que matou o
Michel Zardi, e que também tentaram matar a Roberta Ryder...
quando você pensava que ela era apenas doida.
Simon olhou para os pés, sentindo-se desconfortável com a
lembrança.
— Isso é só para começar — prosseguiu Ben. — Acho que vai ficar
surpreendido com o desenvolvimento disto.
— Muito bem, e então o que você quer?
— Há algo que preciso que você faça. — Ben atirou-lhe um cartão
com o número de telefone que obtivera do homem careca debaixo da
ponte.
— O que é isto? — perguntou Simon, lendo-o e parecendo
perplexo.
— Limite-se a ouvir. Ponha a sua gente mais eficiente em Paris a
ligar para este homem. Ele dá pelo nome de "Saul". Os seus tipos
devem fingir que são o Michel Zardi.
— Mas o Zardi está morto.
Ben anuiu.
— Sim, mas o Saul pensa que ele está vivo. E provavelmente pensa
que de algum modo o Zardi está a trabalhar comigo. Não se preocupe
com os pormenores. Diga ao Saul que o Ben Hope fugiu para Paris, e
que você o traiu e tem-no em seu poder. Diga que ele pode ficar com
o Hope por um preço. Faça um preço elevado. Combine um
encontro.
Simon mordeu o lábio, tentando encaixar as peças na sua mente.
— Faça com que os seus homens ponham o Saul sob custódia -
continuou Ben. — Pressionem-no a fundo. Digam-lhe que a polícia
sabe tudo acerca da Gladius Domini, que o homem careca o vendeu
antes de morrer, e que será melhor que ele vos diga tudo.
— Perdi-me — murmurou Simon, franzindo o sobrolho.
— Vai perceber, se fizer como eu digo. Mas tem de andar depressa.
Simon esteve alguns minutos em silêncio, remoendo sobre o que
en lhe dissera. Ben relaxou um pouco a arma, deixando-a pousada no
colo. Apanhou um seixo e atirou-o para o rio com um esparrinhar de
água.
— Então, conte-me mais acerca de você e da Roberta Ryder —
disse Simon. — Andam juntos, como se costuma dizer?
— ... não — respondeu Ben depois de uma pausa.
— Os homens como nós são más notícias para as mulheres — disse
Simon melancolicamente, imitando Ben e atirando outra pedra.
Observaram-na a descrever um arco contra a luz do Sol e cair na
água, originando ondulação. — Nós somos lobos solitários.
Queremos amá-las, mas só as magoamos. E portanto elas vão-se
embora...
— Fala por experiência?
Simon olhou para ele, sorriu tristemente.
— Ela disse que a vida comigo era como a morte. Só consigo
pensar ou falar sobre morte. é o meu trabalho, a única coisa que sei
fazer.
— Fá-la bastante bem — disse Ben.
— Bastante bem — concedeu Simon. — Mas não o suficiente. Como
foi rápido a fazer notar, você é que tem a arma.
Ben atirou-lhe a .38 de volta.
— Sinal de boa-fé.
Simon pareceu surpreendido, e enfiou a arma no coldre. Ben
ofereceu-lhe um cigarro, e ficaram ali sentados a fumar em silêncio
enquanto fixavam a água que passava e ouviam os pássaros. Depois
Simon virou-se para Ben.
— Muito bem. Supondo que eu alinho nisto consigo. Há mais uma
coisa que eu quero que você faça em troca.
— O quê?
— Quero que dê uma ajuda a encontrar um adolescente
desaparecido. É isso que você faz, não é?
— Tem andado mesmo a fazer o seu trabalho de casa.
— Disse-me o seu amigo padre. A princípio não acreditei nele,
portanto confirmei-o com a Interpol. Você por acaso não saberá
alguma coisa sobre o caso do rapto de ulián Sanchez? A polícia
espanhola ainda se interroga acerca do misterioso salvador que fez
um trabalho tão... rigoroso.
Ben encolheu os ombros.
— Oficiosamente, pode ser que eu saiba alguma coisa acerca disso.
Mas não o posso ajudar com este. Não há tempo. Tenho de encontrar
a Roberta.
— E se eu lhe disser que penso que este caso de pessoa
desaparecida está relacionado?
Ben olhou penetrantemente para Simon.
— Que diabo está a querer dizer?
Simon sorriu.
— Foi encontrado um medalhão de ouro no quarto do rapaz. Você
reconheceria o símbolo, tenho a certeza. Uma espada com uma
bandeira e as palavras Gladius Domini lá inscritas?
Capítulo 50
Montpellier

— Mais perguntas? Porque é que vocês não andam à procura do


meu filho, em vez de passarem aqui o tempo todo?
Natalie Dubois fez entrar Ben para a simples e modesta casa e
conduziu-o para uma sala de estar. Era uma mulher pequena e loura
a meio dos trinta, pálida e com ar tenso, com grandes círculos negros
por baixo dos olhos.
— Não vai demorar muito — prometeu-lhe ele. — Preciso apenas
de alguns pormenores.
— Eu já disse tudo aos outros agentes — retorquiu ela. — Ele já
desapareceu há dias... O que mais precisa você de saber?
— Madame, eu sou um especialista. Por favor, se cooperar comigo
acredito que temos muito melhores possibilidades de encontrar
rapidamente o Marc. Posso sentar-me?
— Ben empunhou o bloco-notas e uma caneta.
— Eu só sei que algo horrível lhe aconteceu. Sinto-o. Acho que
nunca mais o voltarei a ver. — A face de madame Dubois estava
exausta e apoquentada. Soluçou silenciosamente para um lenço.
— Portanto, a última vez que o viu, ele ia a arrancar na motorizada
dele. Ele não disse para onde ia?
— Claro que não, eu já o teria dito — retorquiu ela
impacientemente.
— Talvez me pudesse escrever o número de matrícula da
motorizada. Ele já alguma vez fez uma coisa destas? Desaparecer por
uns dias, ir para um lado qualquer?
— Nunca. Chegou tarde a casa algumas vezes, mas nada como isto.
— E os amigos? Há alguém com quem ele pudesse ter ido, ou ter
ido ver... um concerto de música, talvez, ou uma festa algures?
Ela abanou a cabeça, fungando.
— O Marc não é um rapaz desse género. É tímido, introvertido.
Gosta de ler e escrever histórias. Ele tem amigos, mas não
desaparece com eles.
— Ele ainda anda na escola?
— Não, ele deixou a escola no princípio do ano. Trabalha com o
meu cunhado Richard, como aprendiz de electricista.
— O pai do Marc vive consigo? — Ben reparara que ela não trazia
aliança.
— O pai do Marc saiu daqui há quatro anos — disse ela friamente.
— Desde então nunca mais o vimos.
Ben anotou no bloco: Pai envolvido no sequestro?
Ela deu uma gargalhada amarga.
— Se está a pensar que é o pai dele que o tem, está enganado.
Aquele homem não está minimamente interessado em ninguém a
não ser em si próprio.
— Lamento — disse ele. — O Marc é religioso? Ele alguma vez falou
sobre juntar-se a uma organização cristã, algo desse género?
— Não. Está a perguntar-me isso por causa daquela coisa que
encontraram no quarto dele?
— O medalhão.
— Não sei de onde é que aquilo veio, nunca o tinha visto antes. Os
chuis... quero dizer, os outros agentes... acham que ele o roubou. Mas
o meu Marc não é ladrão.
— Madame Dubois ergueu-se defensivamente na cadeira.
— Não, eu também não acho que ele seja um ladrão. Ouça, acha
que é possível eu falar com o tio do Marc, o Richard?
— Ele não vive muito longe, mesmo ao fim da rua. Mas ele não lhe
poderá dizer nada que eu não pudesse dizer.
— Mesmo assim gostava de me encontrar com ele. Ele estará em
casa agora?
Quando Ben se ia erguer para sair, ela agarrou-lhe no pulso e
olhou-o nos olhos.
— Monsieur, vai encontrar o meu menino?
Ben deu-lhe uma pancadinha na mão.
— Vou tentar.
— O puto não foi raptado, por amor de Deus. Fugiu para aí algures,
provavelmente arranjou uma namorada. Ou um namorado. Quem é
que sabe, nos dias de hoje? — Richard ofereceu uma cerveja a Ben.
— É o primeiro chui que conheço que aceita uma bebida em
serviço.
— Riu-se enquanto Ben abria a lata e se instalava numa cadeira à
mesa da cozinha.
— Eu sou o que se poderia chamar de consultor externo — disse
Ben. — Porque é que tem tanta certeza de que ele apenas fugiu?
— Olhe, aqui só para nós, ele saiu ao pai, o meu irmão Thierry. Um
completo falhado. O tipo nunca conseguiu segurar um emprego em
toda a sua vida, dentro e fora da cadeia por todos os tipos de crimes
menores. O puto vai pelo mesmo caminho, vejo eu, e a mãe dele não
consegue ver. Pensa que o sol lhe nasce das nalgas. Cá eu, abomino o
dia em que a deixei convencer-me a aceitar o filhinho-da-mãe. Ele é
um desperdício total de tempo e dinheiro, e se eu não o despedir
muito em breve ele vai provavelmente fritar-se num fio ligado e vão
atribuir-me a culpa...
— Compreendo, mas mesmo assim eu tenho de tratar isto como
suspeito até prova em contrário. Você é tio dele, e ele não tem pai.
Ele fez-lhe alguma vez confidências, talvez tivesse falado em
qualquer coisa fora do vulgar?
— Está a reinar? Com o Marc é tudo fora do vulgar. Sempre com a
cabeça nas nuvens.
— Como por exemplo?
Richard fez um gesto de exasperação.
— É só escolher a porra que se quiser. O puto vive num mundo de
sonho... Se fosse a acreditar em metade do que ele diz, ficava a
pensar. .. sei lá... que o Drácula era meu vizinho e que os alienígenas
é que mandam no mundo. — Sorveu a cerveja e afastou a lata
deixando um bigode de espuma no lábio superior. Limpou-o com a
manga.
— Como no trabalho que fizemos mesmo antes de ele fugir...
— Ou desaparecer.
— Iá. Como queira. — Richard contou a Ben sobre a cave. — E
depois ele não parava de falar nisso. Convencido de que era algo
esquisito.
Ben inclinou-se para a frente na cadeira, pousando a lata de
cerveja e empunhando o bloco-notas.
— Foi numa residência particular?
— Não, é uma espécie de palácio para esses tipos das igrejas.
— Richard sorriu. — Sabe, um centro para cristãos qualquer coisa
ou assim. Como uma escola. Boa gente, amigáveis, decentes.
Pagaram em dinheiro, já agora.
— Tem por aí a morada?
— Iá, com certeza. — Richard foi à entrada da casa e regressou
folheando uma espessa agenda de negócios. — Aqui está. Centro para
a Educação Cristã, a cerca de quinze quilómetros daqui, lá no meio
do campo. Mas está a perder o seu tempo se pensa que aquela poia
de merda abandonada por Deus lá foi. — Richard suspirou. — Olhe,
talvez eu esteja a ser duro com o puto. Se lhe aconteceu alguma coisa,
lamento e vou engolir as minhas palavras. Mas não acredito nisso.
Em três ou quatro dias, ele vai ficar sem o dinheiro que aliviou da
carteira da Natalie, e vem para casa com uma ressaca e o rabo entre
as pernas. E é nisto que vocês gastam o dinheiro dos nossos
impostos, em vez de apanhar bandidos?

Roberta não sabia quanto tempo passara ali deitada, naquele catre
duro e estreito. A mente aclarou-se-lhe lentamente enquanto
pestanejava e tentava lembrar-se de onde estava. As memórias
assustadoras regressaram. Um tipo grande e forte a arrastá-la para
fora de um carro. Fora dominada. Injectada com algo, aos gritos.
Depois devia ter desmaiado.
A cabeça latejava-lhe e a boca sabia-lhe mal. Encontrava-se numa
cave mal iluminada, fria e sem janelas. A sala era comprida e larga,
mas a cela em que fora trancada era minúscula e apertada. Em três
dos lados estava rodeada por barras de aço. A parede por detrás era
de pedra fria. Uma única lâmpada pendia de um feixe de fios a meio
da adega, com a sua luz amarela pálida a ser fracamente reflectida
pelos grossos pilares de pedra.
Numa outra cela a alguns metros, um rapaz adolescente jazia
comatoso no chão de cimento. Parecia estar fortemente sedado, ou
morto. Roberta tentou chamá-lo. Ele não se mexeu.
O guarda era um homem com ar enfezado de cerca de trinta anos.
Tinha olhos bulbosos e inquietos e uma barba amarela emaranhada.
Uma pistola-metralhadora pendia-lhe de uma correia em redor do
pescoço. Estava sempre a andar nervosamente de um lado para o
outro. Roberta observou-o, medindo a cave pelo número dos passos.
De vez em quando ele disparava-lhe um olhar, os olhos
protuberantes a varrê-la de alto a baixo.
Passado algum tempo o homem enfezado foi substituído por um
homem bem constituído com a cabeça rapada, mais velho, mais
confiante. Trouxe-lhe uma caneca de café ralo e um pouco de feijão
com arroz num prato de lata. Depois disso ignorou-a.
O adolescente na cela ao lado veio a si. Apoiou-se meio grogue nas
mãos e nos joelhos, e voltou-se para olhar para Roberta com olhos
injectados de sangue.
— Eu sou a Roberta — sussurrou ela por entre as grades. — Como é
que te chamas?
O rapaz estava demasiado alheado para responder. Limitou-se a
olhá-la fixamente. Mas o guarda bem constituído não queria
obviamente que eles falassem um com o outro.
Tirou uma seringa de uma maleta, agarrou no braço do rapaz
através das grades da cela e deu-lhe uma injecção. Passado um
minuto o miúdo estava de novo caído redondo no chão.
— Que porra é que lhe está a dar? — silvou Roberta para o guarda.
— Cala o bico, puta, ou também levas. — Depois voltou a ignorá-la.
Pareceram passar horas e horas até o guarda bem constituído
finalmente trocar novamente de lugar com o homem enfezado de
barba. Pouco depois este voltou a observá-la, fez-lhe um sorriso
hesitante e ela correspondeu.
— Ei, dava para me arranjares um copo de água? — pediu-lhe
Roberta. Ele hesitou, depois foi até uma mesa onde os guardas
tinham um jarro e alguns copos poeirentos.
Depois de Roberta beber a água, ele pareceu querer ficar por perto
da jaula dela. Roberta sorriu de novo.
— Como é que te chamas?
— A-André — respondeu ele nervosamente.
— André, chega aqui. Preciso da tua ajuda.
O guarda enfezado espreitou por cima do ombro, embora não
estivesse mais ninguém por ali.
— O que queres? — articulou ele com suspeição.
— Perdi um brinco — disse ela. Até aí era verdade. Devia ter caído
algures entre ali e o hotel. Roberta apontou para as sombras no chão.
— Caiu aí, desse lado. Não consigo alcançá-lo por entre as grades.
— Vai-te foder, encontra-o tu. — Ele virou-se com um olhar azedo.
— Por favor? É antigo, ouro de vinte e quatro quilates. Vale muito
dinheiro.
Aquilo despertou-lhe o interesse. Ele hesitou, depois fez deslizar a
pistola-metralhadora para trás das costas e aproximou-se dela. Pôs-
se de joelhos, procurando no pó.
— Para que lado está?
Roberta agachou-se encarando-o através das grades.
— Por aí mesmo, acho eu... talvez um pouco para cá... iá, para aí...
— Não consigo vê-lo. — Ele tacteava com os dedos, com uma
expressão de ávida concentração na face. Ele aproximou-se dela e
Roberta apanhou o aroma de suor rançoso misturado com
desodorizante barato, um cheiro do tipo feijões cozidos frios. Roberta
esperou até que a cabeça dele estivesse quase a tocar nas grades da
jaula. Roberta passou as mãos de cada um dos lados, com o coração a
começar a acelerar enquanto pensava no que ia fazer. A atenção dele
fixava-se no chão. Roberta respirou fundo e depois avançou.
Com um movimento súbito, agarrou-lhe a barba com ambas as
mãos. Ele atirou a cabeça para trás com um grito abafado, mas
Roberta aguentou o esticão. Usou os joelhos de encontro às grades
para se apoiar. Puxou com toda a força e a ossuda fronte dele
embateu contra a jaula de aço. Ele gritou de dor e agarrou-lhe os
pulsos. Puxando-lhe mais a barba, Roberta atirou-se violentamente
para trás e fez-lhe embater a cabeça nas grades uma segunda vez. Ele
caiu para o chão, atordoado mas ainda a debater-se.
Roberta enterrou os dedos no cabelo oleoso, reunindo e agarrando
firmemente um punhado dele, e com a brutalidade impensada que
vem com o desespero bateu-lhe com a cabeça repetidamente no chão
de cimento até que ele parou de gritar e de se debater. Ficou inerte
com sangue a escorrer do nariz partido.
Roberta largou-o e caiu para o interior da jaula, respirando com
dificuldade e limpando o suor dos olhos. Viu a argola com as chaves
no cinto dele e rastejou para a frente no meio do pó. Esticou o braço
para as chaves. Estavam no limite do alcance dos seus dedos
esticados e Roberta soltou-as, tacteando desajeitadamente com
receio de que alguém entrasse e a apanhasse. Enquanto
experimentava as diferentes chaves da argola relanceava
nervosamente o olhar pela porta de aço no cimo dos degraus.
A quarta chave que experimentou abriu a fechadura. Empurrou
com força a porta de aço para tirar do caminho o corpo inerte,
apanhou do chão a pistola-metralhadora caída e passou a correia em
redor do pescoço.
— Ei, acorda. — Bateu nas grades da jaula do adolescente, mas este
não respondia. Pensou em abrir-lhe a cela e carregá-lo cá para fora...
mas ele seria demasiado pesado para ela. Se conseguisse sair dali
sozinha, regressaria mais tarde com a polícia.
Roberta correu através da cave para os degraus de pedra. Mesmo
quando ia a chegar ao terceiro degrau, a porta de aço abriu-se lá em
cima, e Roberta ficou paralisada.
O homem alto de negro apareceu na soleira da porta acima dela.
Os olhos encontraram-se.
Roberta conhecia este tipo. O seu raptor. Sem hesitação apontou a
SMG à cabeça dele e apertou o gatilho.
Mas ele limitou-se a descer os degraus, sorrindo largamente para
Roberta. Roberta apertou mais o gatilho, mas este encontrava-se
perro ou coisa do género — a arma não funcionava. Mais três
guardas passaram pela porta, todos a apontar-lhe armas
semelhantes.
E todos se tinham lembrado de engatilhar as deles.
Bozza arrancou-lhe a arma. Apanhou o punho que ela lhe atirou, e
torceu-lhe o braço bem alto atrás das costas. Uma pontada de dor.
Mais uns milímetros e ele parti-lo-ia.
Fê-la marchar até à cela e atirou-a lá para dentro. A porta
gradeada fechou-se atrás dela com um som metálico.
Bozza estava cheio de desejo de cortar aquela mulher, lenta e
deliberadamente. Sacou da faca e raspou a lâmina nas grades de aço.
— Quando o teu amigo Hope se entregar a nós — sussurrou
naquela voz rouca e estrangulada -, vamos todos divertir-nos.
Roberta cuspiu-lhe na cara, e ele limpou-se com uma gargalhada
agreste.
Depois Roberta observou enquanto Bozza cortava o pescoço ao
guarda enfezado e o sangrava a guinchar como um porco para o
esgoto no meio da cave.
Capítulo 51
Os longos verões quentes de França, um fácil ritmo de vida, boa
comida e vinho eram qualidades que atraíam um grande número de
britânicos reformados a deixar para trás a decadente ilha do império
e a instalar-se no continente europeu. Mas nem todos os expatriados
eram os rotineiros antigos solicitadores, académicos ou empresários.
Tinham passado anos desde que o velho amigo dos tempos da
tropa Jack deixara a encharcada cidade de Blackpool e encontrara
uma simpática casa de praia perto de Marselha.
Jack encontrava-se agora semi-retirado, mas ainda tinha alguns
clientes. O seu negócio era o da vigilância electrónica... e umas
quantas coisas relacionadas à parte.
A Triumph Daytona disparou pela estrada da costa francesa fora
como um míssil. Era uma viagem de duas horas até Marselha. Ben
almejou fazê-la em uma.
Cinco horas depois estava de regresso com uma grande bolsa de
viagem amarrada ao assento de trás.
A larga estrada alcatroada cortou por entre relvados luxuriantes
até à cintilante fachada de vidro e pedra branca do moderno edifício
aninhado nas árvores. Num dos altos pilares de pedra junto ao
portão encontrava-se uma brilhante placa metálica com uma cruz e a
inscrição CENTRO PARA A EDUCAÇÃO CRISTÃ. Estacionados no
exterior do edifício estavam filas de carros. De onde Ben se
encontrava junto ao portão, podia localizar as discretas câmaras de
segurança que giravam e inspeccionavam os terrenos no meio da
folhagem. Os portões de ferro forjado encontravam-se fechados.
Havia outra câmara na parede, com uma campainha para os
visitantes.
O miúdo teria subido a parede para entrar, o que significava que a
sua motorizada devia estar algures no exterior dos terrenos. Ben
estacionou a Triumph uns metros mais à frente na estrada, e andou
para um lado e para o outro a espreitar por debaixo dos arbustos e
árvores. Onde a berma de erva selvagem se encontrava com o
alcatrão no lado oposto da estrada, Ben encontrou um rasto ligeiro
de pneu na terra. A berma subia levemente até um maciço de
arbustos espinhosos e às árvores mais além.
Ben seguiu a erva pisada e descobriu parte de uma pegada na
terra. Pelo meio da verdura distinguiu algo de um amarelo brilhante.
Ergueu um ramo cheio de folhas e encontrou a traseira da Yamaha
de 50cc a sair dos arbustos. A matrícula fixada no guarda-lamas
traseiro era a mesma que Natalie Dubois lhe dera.
Ben caminhou silenciosamente de regresso à Daytona. Já fizera o
seu plano. Desamarrou a bolsa de viagem do assento traseiro e pou-
sou-a cuidadosamente na erva. Abriu os painéis laterais da
motocicleta e retirou o fato-macaco azul e o equipamento eléctrico.
A recepcionista estava prestes a fazer a sua pausa para o café
quando o electricista entrou no luxuoso átrio do Centro para a
Educação Cristã e se dirigiu à sua secretária. O electricista vestia
fato-macaco de trabalho e um boné, transportando uma bolsa e uma
pequena caixa de ferramentas.
— Pensei que o trabalho de electricidade já tinha terminado —
disse ela. Ela reparou que ele tinha uns olhos azuis bonitos.
— Só cá vim para fazer a inspecção, mademoiselle — respondeu o
electricista. — Não vai demorar muito. Eu só preciso de verificar
algumas coisas, tomar algumas notas.
Saúde e segurança, essa burocracia toda... regulamentos dos
edifícios, sabe como é.
Ele exibiu-lhe um cartão laminado, o qual ela supôs que fosse o
correcto embora ele não lhe tivesse dado bem o tempo para o ler.
— O que leva aí? — perguntou ela, fazendo um aceno de cabeça
para a bolsa.
— Oh, apenas uns rolos de cabo e consumíveis. Um multímetro,
brocas e bobinas, as ferramentas do ofício. Quer dar uma vista de
olhos?
Deixou cair o saco em cima da secretária e abriu-o parcialmente
para mostrar fios coloridos no interior.
Ela sorriu.
— Não, está tudo bem, eu acredito na sua palavra. Até logo.
Capítulo 52
Place du Peyrou, Montpellier

A carrinha sem marcas estacionou na praça faltava um minuto


para as onze. Conforme combinado, Ben aguardava junto à estátua
de Luís XIV. As portas traseiras abriram-se de rompante e saíram
quatro homens grandes. Ben ergueu os braços em rendição enquanto
o rodeavam. Foi-lhe enfiada uma pistola nas costas e foi revistado.
Encontrava-se desarmado. Atiraram-no à bruta para dentro da
carrinha, e fizeram-no sentar-se num banco duro entre dois dos seus
captores. As janelas traseiras estavam pintadas, e um separador de
madeira selava a cabina da caixa e escondia qualquer vista do mundo
exterior. A carrinha arrancou e o barulhento motor diesel reverberou
na concha de metal.
— Suponho que ninguém se vai dar ao trabalho de me dizer para
onde vamos? — perguntou ele, apoiando os pés no arco da roda à sua
frente para evitar escorregar pelo banco fora. Não estava à espera de
resposta. Enquanto viajavam sentados em silêncio, quatro frios pares
de olhos, uma Glock de 9 mm, uma KelTech calibre .40 e duas
pistolas metralhadoras Skorpion estavam permanentemente
assestados nele.
A viagem barulhenta e agitada durou cerca de meia hora. A julgar
pela maneira como a carrinha abanava de um lado para o outro,
deviam ter deixado as estradas principais e avançado pelo meio do
campo. Fora isso que esperara. Finalmente a carrinha abrandou para
um arrastar, virou acentuadamente à direita, e esmagou gravilha.
Depois cimento. Um solavanco, e a descer uma rampa inclinada.
Depois parou e abriram-se as portas traseiras.
Mais homens armados. Uma lanterna incidiu na cara de Ben.
Foram proferidas ordens em tom agressivo e ele foi arrastado para
fora da carrinha e aterrou pesadamente no chão. Encontravam-se
num parque de estacionamento subterrâneo.
Com armas apontadas às costas, foi levado e empurrado para subir
um curto lanço de degraus de pedra. Entraram no edifício às escuras,
passaram por corredores mal iluminados. A luz de uma lanterna
dardejava por detrás dele. No fim de um estreito corredor
encontrava-se uma porta baixa. Um dos guardas, o barbudo com a
Skorpion, fez tilintar chaves e abriu cadeados. A pesada porta abriu-
se e à luz da lanterna Ben viu que era de ferro, cravejado, blindado.
Um lanço de degraus de pedra conduzia mais abaixo a uma cave.
As vozes dos seus guardas a ecoar disseram-lhe que era um espaço
grande. A luz da lanterna reflectiu-se em pilares de pedra. E em algo
mais, um cintilar de barras de aço. No extremo mais distante da sala
pensou ver uma cara a espreitar, pestanejando com as luzes
brilhantes.
Era Roberta.
Antes que conseguisse chamá-la, foi empurrado através de outra
porta. Uma tranca de ferro abriu-se. Uma porta chiou e ele foi
empurrado para o interior de uma cela.
A porta bateu atrás dele e a tranca enterrou-se no chão.
Explorou o local na escuridão. Encontrava-se sozinho na cela. As
paredes eram sólidas, provavelmente duplas. Sem janelas. Sentou-se
numa cama dura e aguardou. A
única luz era o ligeiro brilho verde do seu relógio.
Passados uns vinte minutos, por volta da meia-noite, vieram
buscá-lo, e foi conduzido através da cavernosa sala com armas
apontadas.
, — Ben? — Era a voz de Roberta, esganiçada de medo, chamando-
o de longe. Foi silenciada por uma palavra agreste proferida por um
guarda próximo da jaula dela.
Para cima através de corredores mal iluminados. Um lanço de
escadas. Mais luz quando se aproximaram do primeiro andar do
edifício. Através de uma passagem, e Ben pestanejou no súbito brilho
de paredes pintadas de branco e fortes néones. Guiaram-no para
outro lanço de degraus, ao longo de um corredor e por uma porta
para o interior de um escritório.
No extremo oposto do escritório, um homem grande de fato com
ar grave ergueu-se por detrás de uma secretária com um tampo de
vidro. Ben foi empurrado nas costas pelo cano de uma metralhadora,
atirando-o para o meio da sala.
— É um prazer conhecê-lo finalmente, bispo Usberti.
A face larga e bronzeada de Usberti desfez-se num sorriso. Falava
com uma forte pronúncia italiana.
— Estou impressionado. Mas agora é arcebispo. — Gesticulou para
Ben se sentar numa das cadeiras de cabedal junto à secretária, abriu
um armário e retirou dois balões de brande e uma garrafa de Rémy
Martin. — É servido de uma bebida?
— Tão civilizado da sua parte, arcebispo.
— Não gostaria que pensasse que tratamos mal os nossos
convidados — retorquiu graciosamente Usberti enquanto servia a
ambos uma generosa medida e despedia os guardas com um gesto
autoritário da mão livre. Os seus olhos encontraram os de Ben
enquanto observava os guardas a sair da sala. — Espero que possa
confiar em si para não tentar nenhum dos seus truques enquanto
falamos em privado — disse ele, entregando o balão a Ben. — Por
favor lembre-se de que está uma arma apontada à cabeça da doutora
Ryder neste preciso momento.
Ben não mostrou qualquer lampejo de resposta.
— Parabéns pela sua promoção — disse ao invés. — Vejo que
deixou o traje em casa.
— Devia ser eu a dar-lhe os parabéns — retorquiu Usberti. — Você
tem o manuscrito Fulcanelli, não é verdade?
— Tenho, sim senhor — disse Ben. Fez rodar o conhaque no balão.
— Agora porque é que não deixa a doutora Ryder ir em liberdade?
Usberti riu-se, um ribombar profundo.
— Ir em liberdade? O meu plano era mandar matá-la assim que
tivesse o manuscrito.
— Você mata-a, eu mato-o — disse tranquilamente Ben.
— Eu disse que o meu plano era mandar matá-la — retorquiu
Usberti. — Mudei de ideias em relação a esse assunto. — Fez rodar o
balão no tampo da secretária, observando curiosamente Ben. —
Também decidi não o mandar matar, senhor Hope. Sujeito a certas
condições, devo acrescentar.
— Isso é muito magnânimo.
— De todo. Um homem como você pode ser-me útil. — Usberti
sorriu friamente. — Embora confesse que levei algum tempo a vê-lo.
A princípio observei com raiva à medida que, um a um, você ia
derrotando os meus homens e todas as minhas tentativas para me
livrar de si e da doutora Ryder. Provou ser difícil de matar. Tão
difícil, que comecei a pensar que tal homem é demasiado valioso
para não o transformar numa vantagem minha. Quero que venha
trabalhar para mim.
— Quer dizer trabalhar para a Gladius Domini?
Usberti assentiu.
— Tenho grandes planos para a Gladius Domini. Você pode fazer
parte desses planos. Farei de si um homem rico. Venha comigo,
senhor Hope. Vamos dar um passeio.
Ben seguiu-o para fora do escritório e para o corredor. Os guardas
armados flanqueavam a porta, e caminharam alguns passos atrás
deles, com as armas apontadas a en. Pararam junto a um elevador.
Usberti carregou no botão e de algures abaixo deles subiu um
sussurrar de hidráulicos.
— Diga-me, Usberti. O que tem isto tudo a ver com o manuscrito
Fulcanelli? Porque é que está tão interessado nele? — As portas do
elevador abriram-se com um ranger e entraram, com os guardas
ainda na retaguarda.
— Oh, eu interesso-me pela alquimia há muitos, muitos anos -
respondeu Usberti. Esticou um dedo rombo e carregou no botão para
o piso térreo.
— Porquê? — perguntou Ben. — Para a reprimir porque era
heresia?
Usberti riu-se para si próprio.
— É isso que pensa? Pelo contrário, desejo fazer uso dela.
O elevador parou suavemente e saíram. Ben olhou em redor.
Encontravam-se num grande e brilhantemente iluminado
laboratório científico onde operavam cerca de quinze técnicos que se
ocupavam atarefadamente de equipamento científico, escrevendo
mapas e sentados 292

À frente de terminais de computador, todos vestindo batas brancas


de laboratório e ostentando as mesmas expressões sérias.
— Bem-vindo às instalações para investigação alquímica da
Gladius Domini — disse Usberti, com um gesto largo. — Como vê, é
um pouco mais sofisticado do que o estabelecimento da doutora
Ryder. As minhas equipas de cientistas trabalham por turnos, vinte e
quatro horas sobre vinte e quatro. — Tomou o cotovelo de Ben e
conduziu-o em volta do laboratório. As bocas das metralhadoras
encontravam-se ainda cuidadosamente apontadas para Ben.
— Deixe-me falar-lhe um pouco sobre alquimia, senhor Hope -
continuou Usberti. — Suponho que nunca deve ter ouvido falar de
uma organização chamada os Observadores?
— Na verdade já ouvi.
Usberti ergueu as sobrancelhas.
— Está notavelmente bem informado, senhor Hope. Nesse caso
saberá que os Observadores eram um grupo de elite em Paris,
formado depois da Primeira Guerra Mundial.
Um dos seus membros era um tal Nicholas Daquin.
— O aprendiz de Fulcanelli.
— Efectivamente. Então, como talvez saiba, este jovem brilhante
soube que o seu professor descobrira algo de enorme importância.
— Usberti fez uma pausa. — Havia um outro membro dos
Observadores que estava interessado na descoberta de Fulcanelli —
prosseguiu ele.
— O seu nome era Rudolf Hess.
Capítulo 53
Nesse momento, o homem conhecido por certas pessoas apenas
por Saul estacionou o seu Mazda descapotável de dois lugares no
exterior de um velho armazém vazio nos arredores de Paris. A noite
estava fresca. As estrelas cintilavam por cima das luzes da cidade.
Verificou as horas e esticou as pernas, aguardando.
A mala que transportava na mão encontrava-se repleta de notas
ascendendo a um quarto de milhão de dólares dos Estados Unidos, a
soma que o homem que telefonara exigira em troca do que alegava
possuir: o inglês Ben Hope, capturado, amarrado e amordaçado.
Usberti ficaria satisfeito quando descobrisse o que Saul lhe
conseguira arranjar.
Naturalmente, o dinheiro era contrafeito, obtido de um dos
subagentes de Saul na Gladius Domini. Em todo o caso o dinheiro
era somente uma diversão. Embora fosse falso, Saul não tinha
qualquer intenção de o entregar a quem quer que fosse. Num coldre
oculto por baixo do blusão encontrava-se uma compacta automática
.45. Tencionava fazer uso dela assim que recolhesse a mercadoria.
Ou se por acaso acontecesse que não havia nenhuma.
Saul não conseguira ainda perceber este negócio com Michel
Zardi. Eles pareciam ter subestimado o indivíduo. Primeiro
conseguira evitar ser assassinado, depois tinha de alguma forma
contribuído para atrair alguns dos melhores homens de Saul para as
suas mortes, e agora alegava estar em poder do inglês Ben Hope?
Nunca teria imaginado que um pequeno totó como Zardi tivesse
tantos tomates e talento.
Mas se isto era um truque qualquer, desta vez não escaparia. E no
caso de Zardi ter amigos consigo, Saul já resolvera o assunto. Um
sniper armado com uma carabina arker-Hale calibre 7.62 mm com
mira de visão nocturna fora posicionado no telhado do armazém
imediatamente após ter recebido a chamada.
Passaram um ou dois minutos, e depois Saul ouviu o som de um
motor. Observou os faróis a deslocarem-se através da zona industrial
e a aproximarem-se do armazém.
A carrinha Nissan ferrugenta estacionou ao lado do seu Mazda. O
condutor não era Michel Zardi. Era um homem pequeno e gordo de
bigode e boina. Talvez fosse um dos compinchas de Zardi, pensou
Saul.
— É você o Saul? — perguntou o homem, saindo da carrinha.
— Onde é que está o Hope?
O homem resmungou.
— Tem o dinheiro? — Ao assentir de Saul o homem dirigiu-se para
as traseiras da carrinha. Saul sorriu para si próprio enquanto
imaginava o seu atirador a observar este idiota rechonchudo na mira.
O homem abriu as portas traseiras da Nissan, e Saul aproximou-
se. Deitado no duro chão de madeira do interior encontrava-se um
corpo. Amarrado e amordaçado.
E fixando Saul num horrorizado reconhecimento. Não era Ben
Hope.
Era o seu sniper.
Antes que Saul conseguisse reagir, o tenente Rigault encostara-lhe
a arma à têmpora e agentes armados saíam aos magotes do edifício.
Os feixes vermelhos das miras laser que flutuavam na nuca e nas
costas do blusão de Saul pertenciam a atiradores de elite da polícia,
dedos treinados em gatilhos leves.
Rigault atirou Saul para o chão da carrinha junto ao sniper da
Gladius Domini e algemou-lhe as mãos atrás das costas enquanto lhe
lia os direitos. Enquanto Saul era conduzido para uma carrinha da
polícia, Rigault ligou a Simon.
— O peixe engoliu o isco — disse ele.
Capítulo 54
O elevador subiu suavemente. As armas apontavam ainda direitas
à cabeça de Ben enquanto Usberti o conduzia de volta ao escritório.
Ben seguiu o arcebispo para o interior, com os guardas a tomarem as
suas posições no exterior da porta. Usberti fez-lhe sinal para se
sentar, e serviu-lhe outra bebida.
— Só ouvi falar até hoje de um único Rudolf Hess — disse Ben.
— O nazi.
Usberti aquiesceu, sorrindo.
— O durante muito tempo acólito e Führer adjunto de Adolf Hitler.
Durante toda a sua vida, Hess teve um forte interesse no esotérico, o
que pode ter sido inspirado pelos seus anos de juventude a crescer
em Alexandria, no Egipto. Durante a sua adolescência a família
regressou à Europa. Hess continuou com os seus interesses, e nos
anos vinte obteve importantes segredos alquímicos do estudante de
Fulcanelli Nicholas Daquin. Naturalmente que por essa altura Hess
estava também profundamente envolvido na ascensão do Partido
Nacional-Socialista. Sabendo da sua importância, passou
imediatamente o seu novo conhecimento ao seu chefe e mentor,
Adolf Hitler.
A cabeça de Ben andava à volta. O Alexandrino — Rudolf, o
misterioso amigo de Daquin — poderia ter sido realmente o
arquinazi Hess?
Usberti prosseguiu, agradado com a reacção de Ben.
— Muito antes da guerra, o partido nazi estava interessadíssimo no
potencial da alquimia para os ajudar a construir o Terceiro Reich.
A Companhia 164 tinha instalações secretas para investigação e
tinha o objectivo de investigar a transmutação alquímica da matéria
alterando a sua frequência de vibração.
— Mas como é que a alquimia pode ter ajudado o Terceiro Reich?
Usberti sorriu. Abriu uma gaveta, e algo cintilou nas suas mãos.
Pousou o pesado objecto à frente de Ben em cima da secretária.
— Senhor Hope, dou-lhe o conhecimento secreto de Fulcanelli, tal
como revelado ao seu estudante Nicholas Daquin.
A barra de ouro brilhou de modo sombrio à luz do candeeiro. Num
dos lados encontrava-se o selo de uma pequena águia imperial sobre
uma suástica.
— Está a gozar.
— De todo, senhor Hope. O objectivo primário da Companhia 164
era a criação e a manufactura de ouro alquímico.
— A partir de metais base?
— Óxido de ferro e quartzo, principalmente — retorquiu Usberti.
— Estes eram altamente processados de acordo com métodos
rigorosos que Daquin confidenciara a Hess. Veja, foi graças ao nosso
involuntário amigo Fulcanelli que os nazis foram capazes de obter
este incrível conhecimento.
— E foram bem-sucedidos? — perguntou Ben, estreitando
cepticamente os olhos.
— A prova está à sua frente. — Usberti sorriu. — Documentos nazis
suprimidos dizem que membros do partido assistiram ao fabrico de
ouro alquímico na fábrica da Companhia 164 nos arredores de
Berlim em 1928. A fábrica foi destruída durante a Segunda Guerra
Mundial, sob o pretexto da destruição de instalações industriais.
Quanto ouro foram capazes de produzir durante esses anos, ninguém
sabe ao certo. Mas eu acredito que foi realmente uma quantidade
muito considerável.
— Está a sugerir que os nazis foram financiados por ouro
alquímico.
— Não, senhor Hope, estou a afirmá-lo como facto. — Pousou a
mão na barra de ouro. — Os milhões destas recuperadas pelos
Aliados no fim da guerra... e há ainda muitas mais para serem
descobertas... não vieram dos dentes de ouro e jóias fundidas tiradas
aos judeus nos campos de concentração, como nos dizem os livros de
história.
Mesmo seis milhões de prisioneiros judeus não poderiam ter
fornecido tanto ouro. A história toda foi fabricada pelos governos
aliados para ocultar o facto de que Hitler estava realmente a produzir
ouro alquímico. Recearam que, se a verdade fosse revelada, isso
ameaçaria desestabilizar toda a economia global.
Ben riu-se.
— Já ouvi algumas teorias da conspiração completamente loucas,
mas esta é de longe a melhor.
— Ria-se tudo o que quiser, senhor Hope. Não vai demorar muito
até podermos criar ouro alquímico. Riqueza ilimitada. Pense nisso.
— Você não parece ter falta de fundos tal como as coisas estão. A
sua operação deve custar-lhe uma pipa de massa.
— Ficaria surpreendido com alguns dos nossos investidores -
retorquiu Usberti. — Vêm de todas as denominações, do mundo
inteiro. Incluem várias das empresas mais poderosas do mundo. Mas
os meus planos requerem um imenso financiamento.
— Tal como os planos de Hitler?
Usberti encolheu os ombros.
— Hitler tinha o seu grande desígnio, eu tenho o meu.
Houve silêncio durante um minuto enquanto Ben ponderava a
enormidade do que Usberti lhe estava a dizer.
— Portanto compreende agora porque é que eu quero o manuscrito
Fulcanelli — prosseguiu o arcebispo, andando para um lado e para o
outro junto à janela escura. -
Graças à destruição da fábrica de ouro nazi, faltam-nos alguns
pormenores que necessitamos para completar o processo. Acredito
que o manuscrito contém a chave. E este não era o único segredo de
alquimia que Fulcanelli possuía. — Fez uma pausa, olhando
duramente para Ben, depois continuou. — Mas quando o velho idiota
descobriu que o segredo de fazer ouro caíra nas mãos de Hess e dos
seus colegas, entrou em pânico. Desapareceu. E levou com ele o
segundo grande segredo, o qual nunca chegou a passar ao seu
estudante Daquin e o qual eu acredito que será revelado com o seu
manuscrito.
— Continue.
— Está a ver, senhor Hope, as duas coisas que mais necessito para
desenvolver a Gladius Domini são riqueza, e tempo. Tenho cinquenta
nove anos. Não viverei para sempre. Não desejo ver todo o meu duro
trabalho a passar para as mãos de um sucessor que pode arruinar
tudo. Quero ficar no controlo durante pelo menos mais cinquenta
anos, ou até mais, para ver atingidos os meus objectivos.
Ben ergueu o balão enquanto Usberti servia outro brande.
— E portanto anda à procura do elixir da longa vida?
Usberti assentiu.
— Para fazer uso dele para mim próprio, assim como para proteger
o seu segredo. Quando os meus espiões me disseram o quão próxima
estava a doutora Ryder de o descobrir, decidi mandar matá-la.
— Um pouco extremo, considerando que ela não tinha todas as
respostas. Ela estava apenas no começo da investigação.
— Verdadeiro. Mas ela andava a gabar-se disso a quem quer que a
escutasse.
— Não podia simplesmente tê-la empregado a trabalhar para si?
Novamente aquele sorriso frio.
— Todos os meus cientistas são membros da Gladius Domini.
Acreditam fervorosamente na nossa causa. A doutora Ryder é uma
individualista... o comportamento dela mostra claramente isso. É
ambiciosa, e cheia de ressentimentos contra os seus colegas
cientistas. Ela quer provar-lhes que estão errados tanto como quer
desenvolver a sua descoberta. Ela nunca teria trabalhado para mim.
— Porquê conservá-la viva agora?
— De momento ela está viva — disse Usberti. — Mas se ela vai ficar
viva muito mais tempo depende inteiramente de si, senhor Hope.
— De mim?
— De facto. — Usberti assentiu gravemente. — Eu referi
anteriormente que quero que trabalhe para mim. Já considerou a
minha oferta?
— O senhor não disse o que queria que eu fizesse para si.
— Eu estou a construir um exército. Os exércitos precisam de
soldados, homens como você. As minhas fontes informaram-me
acerca do seu impressionante currículo. -
Usberti fez uma pausa. — Eu quero que você seja o comandante
militar da Gladius Domini.
Ben riu alto.
— Terá riqueza, poder, mulheres, luxo, tudo o que quiser — disse
Usberti sinceramente.
— Pensava que você só recrutava crentes, e não individualistas.
— Quando encontro um homem com talentos excepcionais, abro
uma excepção.
— Sinto-me lisonjeado. Mas e se eu recusar a sua oferta?
Usberti encolheu os ombros.
— A Roberta Ryder morre. E você também, naturalmente.
— Isso é que é um negócio — disse Ben, sorrindo. — Mas diga-me.
Porque é que um arcebispo católico quereria montar um exército
privado? Você já está no topo de uma organização poderosa. Porque
é que não se limita a fazer as coisas à maneira ortodoxa? Com a sua
ambição poderia um dia tornar-se papa. Terá todo o poder que
quiser para fazer reformas, do interior.
Agora foi a vez de Usberti rir bem alto.
— Reformas? — cuspiu com desprezo. — Pensa que estou
interessado na igreja deles? O que é um papa? Uma mera marioneta
que é levada para a rua para agradar às multidões.
Uma figura de proa decadente, como a vossa rainha inglesa. Não,
isso não é para mim. Eu quero muito mais poder do que isso.
— Tudo em nome de Deus? A sua organização não me parece
muito pia. Espionagem, lavagem ao cérebro, homicídio, rapto...
Usberti interrompeu-o com uma risada.
— Sabe pouco sobre a história da Igreja, senhor Hope. A Igreja
sempre fez estas coisas. De facto, o problema é que parou de as fazer.
Aquela parcela de velhos flácidos em Roma deixou que tudo se
tornasse fraco. A fé do Ocidente está a falhar. As pessoas foram
abandonadas. São como soldados sem um chefe. Como uma criança
órfã.
— E você quer ser a mãe deles, não é isso?
Usberti olhou-o fixamente.
— Eles têm de ter um chefe forte, uma mão que os guie. De outro
modo, o que têm eles? Ciência? Emporcalhada. Corrupta. Somente
interessada nos lucros, clonagem humana, em colonizar outros
planetas porque estão a destruir este. Tecnologia? Brinquedos para
os tentar. Jogos de computador. Televisão que deixa os media
controlar-lhes S mentes. Precisam de um chefe. Eu sou esse chefe.
Dar-lhes-ei algo em que acreditar e por que lutar.
Ben franziu o sobrolho.
— Lutar? Contra quem?
— Vivemos em tempos instáveis — retorquiu Usberti. — Enquanto
a fé do mundo cristão falha, um novo poder está a ascender. As
forças negras no Médio Oriente. — O arcebispo trouxe o punho até à
secretária. Tinha fogo nos olhos. — O inimigo que a Igreja esmagou
há séculos está a reunir as suas forças. Nós somos fracos, eles são
fortes. Eles têm fé, nós só temos medo. Desta vez eles vencerão. Já
está a acontecer. O Ocidente não faz ideia do que está a enfrentar.
Porquê? Porque nos esquecemos do que significa acreditar em algo.
Somente a Gladius Domini pode evitar que esta podridão destrua
todo o tecido do nosso mundo ocidental.
— E você acha que uma organização fundamentalista de trazer por
casa como a Espada de Deus pode mudar o mundo?
Usberti corou.
— Esta organização de trazer por casa, como lhe chama, é uma
força em crescimento. A Gladius Domini não se encontra restringida
a alguns agentes em França. O que viu da nossa força é como uma
gota de água no oceano. Somos uma agência internacional. Temos
agentes por toda a Europa, América, Ásia. Temos amigos nas mais
altas instâncias da política e das forças armadas. Na China, o poder
económico a crescer mais rapidamente no mundo, dois milhões de
novos recrutas estão todos os anos a juntar-se ao movimento
fundamentalista cristão. Você não faz ideia do que está a acontecer,
senhor Hope. Daqui a alguns anos teremos um exército de devotos
totalmente equipado que vai fazer o Terceiro Reich parecer os
escuteiros.
— E depois? Um ataque independente contra os islâmicos?
Usberti sorriu.
— Se formos incapazes de exercer influência suficiente nos
fazedores da política externa dos Estados Unidos, então sim. Tal
como outrora a Igreja enviou os seus exércitos para esmagar as
perniciosas forças de Saladino e de outros reis muçulmanos,
lançaremos uma nova era de guerra santa.
Ben pensou por instantes.
— Se bem o compreendo — disse lentamente está a falar acerca de
começar a Terceira Guerra Mundial. Provocar uma jihad entre uma
nova cristandade e as forças unidas do mundo islâmico só vai causar
a destruição de todos, Usberti.
O italiano fez um gesto de indiferença.
— Se for a vontade de Deus, então que o sangue corra. Neca eos
omnes. Deus suos agnoscet.
— Matem-nos a todos. Deus reconhecerá os seus — traduziu Ben.
— Falou como um verdadeiro tirano assassino, arcebispo.
— Chega de conversa — silvou Usberti. — Dê-me o manuscrito.
— Não o tenho — retorquiu calmamente Ben. — Acha que o trazia
para aqui, com essa facilidade toda? Vamos lá, Usberti, tinha
obrigação de saber mais.
As faces de Usberti escureceram para um furioso púrpura.
— Onde é que está? — exigiu. — Não se ponha com jogos comigo,
estou a avisá-lo.
Ben consultou o relógio.
— Neste preciso momento encontra-se nas mãos de um associado
meu. Eu disse-lhe que ligava por volta da uma e meia. Se ele não
tiver notícias minhas, vai assumir que algo me aconteceu e queima-o.
Usberti olhou de relance para o relógio na sua secretária.
— O tempo está a acabar, arcebispo. Se o manuscrito arder, você
perderá tudo.
— E você perderá a vida.
— Verdadeiro. Mas a minha morte vale menos para si do que a sua
própria imortalidade.
Usberti arrancou o telefone de cima da secretária.
— Use-o — ordenou. — Ou ouvirá os gritos da Ryder antes de
morrer. O Inquisidor é um homem que sabe como prolongar uma
agonia.
Ben também sabia fazer isso. Aguardou por um longo momento,
deixando Usberti sentir cada segundo.
— Rápido — disse o arcebispo. A sua face bronzeada estava a
tornar-se branca enquanto segurava no telefone.
Ben encolheu finalmente os ombros. Pegou no telefone.
— Muito bem. E terá a minha resposta à sua oferta.
Marcou um número nas minúsculas teclas prateadas. O número
apareceu no ecrã. Chamar?, perguntou o telefone.
O dedo de Ben pairou sobre o último botão da sequência. Havia
uma expressão interrogativa na face de Usberti.
— E a minha resposta é esta — disse Ben.
Usberti olhou-o fixamente com súbito horror enquanto
compreendia que algo se passara de muito, muito errado.
Capítulo 55
Ben não tirou os olhos de Usberti enquanto carregava no botão e
ouvia os acelerados toques da sequência de marcação rápida.
Seis receptores remotos espalhados pelo edifício da Gladius
Domini responderam instantaneamente ao sinal telefónico. Estavam
ligados a seis detonadores eléctricos instantâneos em miniatura, os
quais por sua vez activaram electronicamente as suas seis
embalagens do tamanho de um punho de explosivo plástico PBX.
Menos de meio segundo depois, a maciça explosão combinada
abanou o edifício. A alvenaria rompeu-se em pedaços, as paredes
desmoronaram-se para o exterior. O fogo irrompeu no parque de
estacionamento subterrâneo, transformando cada veículo num
dispositivo incendiário autónomo. A luxuosa área de recepção foi
desfeita em pedaços enquanto uma enorme bola de fogo se formava e
derramava pelos corredores como um mar de líquido abrasador. Os
homens cambaleavam aos gritos, em chamas. No primeiro piso,
todas as janelas explodiram numa nuvem de estilhaços voadores
quando a explosão destruiu o laboratório, transformando o
equipamento científico e os computadores num mar de destroços.
No seu escritório mais acima, Usberti encontrava-se num transe
de terror enquanto o chão debaixo dos seus pés abanava com a
explosão ensurdecedora. A onda de choque retirou o ar da sala. Ben
pôs-se de pé e correu para o italiano em pânico. Mas então os
guardas irromperam na sala vindos do corredor fumegante,
transportando as suas pistolas-metralhadoras. Ben agarrou numas
das cadeiras de aço tubular e matou o mais próximo com um impulso
que levou uma perna através do céu-da-boca até ao cérebro.
A sua Skorpion ressaltou no chão. Uma rajada do segundo guarda
estilhaçou o tampo de vidro da secretária de Usberti. Ben rolou e
atirou o braço à pistola-metralhadora caída. Disparou, abrindo
buracos de 9 mm na parede e no corpo do guarda. O homem
sucumbiu, de cara contorcida.
Usberti desaparecera. Por detrás de uma cortina, uma porta de
emergência em vidro ainda se encontrava em movimento. Passadas
pesadas chegaram-lhe da escada em aço no exterior.
Ben afastou-se. O que interessava era Roberta. Correu para o
corredor e dirigiu-se para o elevador, introduzindo um segundo
número no telefone pelo caminho. Enquanto o elevador descia para a
cave, Ben saltou e prendeu as mãos em redor da moldura de aço do
alçapão no meio do tecto. Ficou ali pendurado por momentos, depois
abriu a tampa do alçapão. O pequeno saco de recurso que lá deixara
ainda lá estava. Deixou-se cair para o chão, abrindo o saco enquanto
o elevador estremecia e parava.
Saiu e carregou no botão de chamada do telefone. No outro
extremo do edifício uma pequena carga de PBX destruiu o fusível
principal. O edifício ficou todo às escuras.
Ben tirou a Browning do saco, engatilhou-a e ligou o projector
LED instalado por baixo do cano. Dirigiu-se para a cave, fazendo
deslocar a luz para um lado e para o outro nos corredores às escuras.
Acontecera tudo exactamente como Ben Hope dissera que
aconteceria. As explosões simultâneas terminaram num instante.
Subitamente ouviram uma explosão mais pequena, não mais que um
baque abafado, e o edifício ficou às escuras. Apenas o cintilar
alaranjado das chamas podia ser visto dos terrenos abaixo.
Ao sinal de Simon, as unidades tácticas da polícia emergiram da
cobertura dos terrenos arborizados e assaltaram o edifício. Nas suas
vestes negras de assalto, capuzes e protecções oculares, as unidades
armadas percorreram o caos. Uns poucos homens dispersos
dispararam às cegas contra eles no meio do pânico. Os atiradores da
polícia foram muito mais rápidos, muito mais frios e muito mais
precisos. Só dispararam contra os que constituíam uma ameaça
imediata. Aqueles que tentaram fugir ou depunham as armas eram
rapidamente deitados no chão com os pulsos e tornozelos presos e
carabinas automáticas MP-5 apontadas à nuca. Lá em baixo, no
laboratório científico, os técnicos que rastejavam aturdidos,
enegrecidos e sangrando por entre os destroços fumegantes eram
postos de pé e feitos sair sob a ameaça das armas. A polícia tinha
todo o edifício seguro em menos de cinco minutos.
Usberti pensava que o seu coração ia ceder. As explosões
abanaram o edifício e ele ouvia gritos e o soar de fogo de armas
ligeiras no interior enquanto corria ao longo da parede. Com o peito
a arfar, a respiração ofegante, cambaleou pelos terrenos. Encostou-se
a uma árvore, dobrou-se em dois com falta de ar, tremendo de
choque e de raiva.
Ben Hope puxara-lhe o tapete de debaixo dos pés. Apesar de toda a
sua apreciação das capacidades do homem, e apesar de toda a sua
astúcia, conseguira subestimá-lo desastrosamente. Ainda não
conseguira compreender o que diabo acabara de acontecer.
— Você aí — disse uma voz. — Ponha as mãos atrás da cabeça.
— Usberti rolou os olhos para cima e viu dois homens de
uniformes negros apontando-lhe as armas a alguns metros na
escuridão. Ouviu-se o sopro de um rádio. Lentamente, afastou-se da
árvore e ergueu os braços. Ser apanhado, desta maneira...
Um dos homens procurou o par de algemas na parte de trás do
cinto.
Mas então os dois agentes foram erguidos do chão como homens
de palha. Voaram um contra o outro e as cabeças embateram uma na
outra com um baque surdo e cavo. Caíram para o chão sem fazer
barulho.
A face de Usberti abriu-se num largo sorriso quando reconheceu a
figura alta que dominava os corpos caídos.
— Franco! Graças a Deus!
Bozza sacou da faca e rápida e eficientemente cortou as gargantas
aos dois homens. Apanhou um dos rádios deles e uma MP-5 caída.
Com um olhar por cima do ombro tomou calmamente o seu
arcebispo pelo braço e guiou-o para a escuridão através das árvores.
Era meio quilómetro pela mata até à estrada. Bozza ajudou sberti a
descer o barranco arborizado até ao alcatrão. Viu à distância as luzes
de um carro que se aproximava. Largando o braço de Usberti, Bozza
avançou e plantou-se no meio da estrada, banhado pela luz dos faróis
do carro que se aproximava. Quando chegou mais perto, apontou a
MP-5 ao pára-brisas. O carro chiou até se deter diagonalmente na
estrada.
Havia um jovem casal no interior do carro. Bozza abriu de
rompante a porta do condutor e arrastou o homem para fora pelos
cabelos. Atirou-o desamparado para a berma da estrada e disparou-
lhe casualmente uma rajada para o peito. O homem enrolou-se
ensanguentado no meio das folhas.
Dentro do carro, a rapariga gritava histericamente. Bozza puxou o
corpo dela para o exterior através da janela aberta, olhou-a friamente
na cara e partiu-lhe o pescoço com um único movimento de torção. O
Inquisidor arrastou-lhes os corpos para a vala e cobriu-os com
pedaços de folhagem.
— Bom trabalho, Franco — disse Usberti. — Leva-me daqui para
fora.
Bozza ajudou-o a entrar para o banco traseiro e depois
arrancaram, dirigindo-se para o aeródromo.
O último artigo que Ben arrumara no saco naquela tarde fora uma
pequena carga com o formato próprio para perfurar blindagens.
Pressionou os bolbos interligados de explosivo plástico contra a
porta de aço da cave, enfiou os dois eléctrodos e retirou rapidamente
pelo corredor antes de pressionar o botão do telefone com o polegar.
A detonação percussiva rasgou o ar, e quando o fumo clareou a
porta parecia que levara uma dentada de uma boca gigante que lhe
retirara um pedaço de forma perfeitamente oval. As extremidades
em redor do buraco brilhavam de um vermelho desmaiado. Ben
entrou na cave cheia de fumo, com a arma à frente.
O único guarda na cave devia ter estado junto à porta quando a
carga deflagrara. Ben fez incidir a luz da pistola sobre ele.
Encontrava-se deitado de costas, com sangue a escorrer-lhe dos
ouvidos e das narinas. Um estilhaço triangular saía-lhe protuberante
cerca de vinte centímetros do peito. Ben agarrou na argola das
chaves que se encontrava no cinto e correu pelos degraus para a
enorme sala cheia de fumo. Chamou pelo nome dela.
— Ben! — gritou Roberta, reconhecendo a voz dele apesar do
apitar agudo nos ouvidos desencadeado pela súbita explosão. — Está
aqui um rapaz. — Roberta apontou para a cela ao lado. Ben fez
incidir a luz e viu a figura caída e drogada de Marc. Abriu ambas as
jaulas. — Anda, vamos embora — disse ele calmamente, evitando
gentilmente o abraço dela. Inclinou-se e ergueu para cima do ombro
o rapaz que começava a agitar-se.
Os intrigados agentes encontraram Marc Dubois deitado no banco
traseiro de um dos carros da polícia dez minutos depois.
— De onde diabo veio ele? — perguntou um deles.
— Não faço ideia — disse o colega. Passou algum tempo até
compreenderem que era o miúdo dos cartazes de pessoa
desaparecida.
Simon observava, profundamente satisfeito, enquanto os seus
homens traziam mais de trinta pessoas a tossir, cuspindo e
enegrecidos pelo fumo do edifício danificado.
Tinham sido recuperados seis corpos até ao momento, e armas e
munições suficientes para estabelecer acusações criminais e de
terrorismo sérias contra a organização no seu todo.
Velocidade, Agressividade, Surpresa. Ouvira dizer que esse era o
lema não oficial de um certo regimento do exército britânico. Sorriu
e abanou a cabeça.
Capítulo 56
Roberta oscilava entre a alegria selvagem e o tremer de exaustão
enquanto Ben a conduzia para longe na escuridão. Com um braço em
redor da cintura dela guiou-a através das matas sombrias. De
regresso à estreita vereda no exterior do cordão policial onde
escondera o carro alugado. Ben foi evasivo e silencioso, ignorando as
perguntas que ela lhe disparava.
Chegaram ao carro. Ben virou-se abruptamente ao som do
restolhar de folhagem atrás deles. Mas era apenas uma coruja,
incomodada pela passagem deles.
Ben manteve-se nas estradas secundárias, e ficaram em silêncio
durante algum tempo enquanto ele conduzia. Roberta fechou os
olhos. Os pormenores do encarceramento começavam já a parecer
difusos e distantes na sua mente.
Após dois quilómetros a corta-mato por péssimas veredas rurais
chegaram a uma estrada estreita.
— Para onde é que vamos? — perguntou ela.
— Aluguei um sítio.
Passaram por algumas pequenas aldeias e vinte minutos depois
chegaram a um chalé de campo aconchegado por detrás de um
amontoado de árvores e com o seu próprio caminho de acesso. Ben
conduziu Roberta pelo caminho, abriu a porta e acendeu a luz. O
chalé era austero e funcional, mas seguro.
Roberta desabou sobre um velho cadeirão, encostando a cabeça
para trás e fechando os olhos. Ben veio entregar-lhe um copo de
vinho tinto. Ela bebeu-o rapidamente, e sentiu o imediato efeito
relaxante do vinho. Roberta observou-o enquanto ele empilhava
pedaços de madeira e troncos e acendia o fogo na lareira de pedra
com chaminé.
Ben estava estranhamente silencioso, distante.
— Está tudo bem contigo, Ben? Qual é o problema?
Ben não disse nada, ajoelhando-se à frente da lareira de costas
voltadas, acirrando as chamas com um atiçador.
— Porque é que não falas comigo?
Ben deixou cair o atiçador de ferro com um estrondo, pôs-se de pé
e voltou-se para a encarar.
— A que diabo estavas tu a brincar? — exigiu furiosamente ele.
— Que queres dizer?
— Fazes alguma ideia de como fiquei preocupado? Pensei que
tinhas morrido. O que te possuiu para ires vagabundear daquela
maneira?
— Eu...
— De todas as coisas estúpidas e idiotas...
Roberta ergueu-se. O lábio tremia-lhe e as mãos também.
Ben amoleceu quando viu a cara dela.
— Olha, não chores. Peço descul...
Ben não chegou a terminar a frase. O punho dela voou em direcção
ao maxilar dele. Ben viu luzes, e cambaleou dois passos para trás.
— Não me fales dessa maneira, Ben Hope!
Ficaram a encarar-se mutuamente. Ben esfregou o queixo. Então
ela rodeou-o com os braços e enterrou a cara no ombro dele. Roberta
sentiu-o a ficar tenso e recuou, olhando-o com incerteza e lágrimas
quentes nos olhos.
Mas depois a tensão quebrou-se e algo nasceu poderosamente
dentro dele. Queria-o agora, aquele calor que por tanto tempo
rejeitara. Queria mergulhar nele como um mergulhador numa
quente lagoa oceânica, e nunca mais de lá sair. Enquanto olhava para
os tristes olhos dela, húmidos, pestanejantes e perscrutadores, soube
que a amava mais do que alguma vez pensara.
Dirigiu-se a ela, agarrou-lhe os braços e puxou-a para si. Ficaram
num abraço apertado, acariciando-se, arquejando, passando os
dedos pelos cabelos um do outro.
— Eu fiquei com tanto medo — murmurou ele. — Pensei que te
tinha perdido. — Fez os dedos chegarem à face dela e limpou-lhe as
lágrimas das faces sorridentes. Os lábios juntaram-se e ele beijou-a,
longamente e com desejo, como nunca beijara ninguém na vida.
Roberta foi despertada na manhã seguinte por um galispo-coroado
à distância. As pestanas abriram-se a pouco e pouco e passados
alguns segundos recordou-se de onde estava. A luz do Sol entrava
pela janela do quarto. Um pequeno sorriso espalhou-se-lhe pelos
lábios quando a memória da noite anterior lhe veio à cabeça. Não
fora um sonho. Quando ela lhe dissera o quanto o amava, ele dissera
que sentia o mesmo. Ele fora tão carinhoso com ela, um lado
completamente novo nele a abrir-se à medida que a paixão crescera.
Rolou de costas e espreguiçou o corpo debaixo dos lençóis,
luxuriante no algodão grosso. Afastando o cabelo desgrenhado dos
olhos, esticou um braço para lhe tocar.
A mão sentiu uma almofada vazia. Ele devia ter ido lá abaixo.
Durante algum tempo nadou naquele nebuloso e irrequieto lugar
entre o sono e o despertar. O horror do rapto e encarceramento
parecia uma memória distante, como se pertencesse a uma vida
diferente, ou um pesadelo meio esquecido de há muito tempo.
Interrogou-se sobre como seria viver na Irlanda, junto ao mar.
Nunca vivera junto ao mar...
Agora mais desperta, interrogou-se sobre o que estaria ele a fazer.
Não lhe cheirava a café, e não ouvia outros sons que não fossem o
cantar das aves nas árvores lá fora. Rodou as pernas para fora da
cama, e caminhou nua pelo quarto para reunir o rasto de roupas
despidas que deixara desde o cimo das escadas até à cama. Mais
memórias frescas, e sorriu novamente consigo própria.
Ele não estava no piso térreo a fazer o pequeno-almoço. Procurou
pelo pequeno chalé, chamando-o pelo nome. Onde é que ele estava?
Foi quando viu que o carro e as coisas dele tinham desaparecido
que começou a preocupar-se. Encontrou o bilhete dele na mesa da
cozinha, e soube o que lá estava escrito ainda antes de o desdobrar e
ler.
As lágrimas reuniram-se nos seus olhos e espalharam-se-lhe pela
face. Sentou-se à mesa da cozinha, afundou a cabeça nos braços e
chorou durante muito tempo.
Capítulo 57
Palavas-les-Flots, Sul de França, três dias depois

O Outono estava agora a instalar-se. A estação alta chegava ao fim


no complexo turístico à beira-mar, e os únicos turistas ainda ao
banho eram britânicos e alemães.
Ben sentou-se na praia e olhou para o horizonte azul. Estava a
pensar em Roberta. Por esta altura ela devia estar a regressar para a
segurança de casa.
Saíra cedo depois daquela noite de amor. Não devias ter deixado
que aquilo acontecesse, pensou. Não era justo para ela. Sentia-se mal
por ter admitido os seus sentimentos por ela, enquanto planeava
escapar-se de madrugada quando ela dormia.
De madrugada sentara-se à mesa da cozinha e escrevera para ela.
Não era grande coisa como carta e desejou ter dito mais, mas isso só
teria feito com que a sua partida fosse mais dolorosa para ambos.
Além do bilhete, deixara-lhe dinheiro suficiente para que ela
chegasse segura e rapidamente à América. Agarrara nas suas coisas e
estava prestes a sair porta fora.
Mas não podia simplesmente afastar-se. Queria vê-la uma última
vez, e subiu de novo as escadas rangentes em bicos dos pés, tendo
cuidado para não a acordar. Ficou ali por momentos, observando-a a
dormir a sono solto. O corpo dela subia e descia lentamente debaixo
do lençol, o cabelo espalhado na almofada. Com muito carinho,
afastou-lhe um caracol do olho. Sorrira ternamente com o ar de
completo relaxamento infantil na face adormecida. Quisera imenso
tomá-la nos braços, beijá-la, brincar com ela, levar-lhe o pequeno-
almoço à cama. Ficarem juntos, viverem felizes.
Mas nada disso era possível. Era como um sonho que pairava fora
de alcance. O seu destino ficava noutra direcção. Recordou-se do que
dissera Luc Simon. Os homens como nós são lobos solitários.
Queremos amar as nossas mulheres, mas só conseguimos magoá-las.
Soprara-lhe um último beijo, e depois forçara-se a partir.
E agora tinha de voltar a mente para a sua busca. Fairfax estava à
sua espera. Ruth estava à sua espera.
Regressou a pé à pensão junto à praia. No quarto, sentou-se na
cama, pegou no telefone e marcou um número.
— Então estou oficialmente safo?
Simon riu-se.
— Oficialmente nunca deixou de estar, Ben. Eu só o queria cá para
interrogatório.
— Teve uma maneira engraçada de o mostrar, Luc.
— Mas a resposta oficiosa é sim, é livre de partir — disse Simon.
— Você cumpriu a sua parte do acordo, e eu vou cumprir a minha.
O Marc Dubois está de volta à família dele. A Gladius Domini está a
ser investigada e metade da gente deles está sob prisão preventiva
por homicídio, rapto e muitas outras acusações. Portanto estou
disposto a esquecer certos assuntos no que lhe diz respeito a si, se é
que me faço entender.
— Faz-se entender. Obrigado, Luc.
— Não me agradeça, só não me arranje é mais chatices. Faça-me
feliz e diga-me que vai partir hoje de França.
— Em breve, em breve — assegurou-lhe Ben.
— A sério, Ben. Desfrute do que resta do tempo, vá ao cinema, veja
as vistas. Seja um turista para variar. Se ouvir dizer que você
aprontou alguma, vou cair-lhe em cima como uma tonelada de
tijolos, meu amigo.
Simon pousou o telefone, sorrindo para si próprio. Apesar de tudo,
não podia evitar sentir um certo apreço por Ben Hope.
A porta do gabinete abriu-se atrás dele, e Simon virou-se para ver
um detective de cabelo louro a ficar careca a entrar.
— Como está, sargento Moran.
— Bom dia, senhor. Peço desculpa, não sabia que ainda aqui
estava.
— Ia mesmo a sair — disse Simon, olhando para o relógio. —
Queria alguma coisa, sargento?
— Só queria um dossiê, senhor. — Moran foi até ao armário dos
arquivos e abriu uma gaveta, percorrendo os separadores com o
polegar.
— Bem, sendo assim, vou-me embora. — Simon pegou na sua
pasta, deu a Moran uma amigável palmada no ombro e dirigiu-se
para a recepção.
Moran observou-o a desaparecer corredor fora. Fechou a gaveta,
encostou silenciosamente a porta e pegou no telefone. Marcou um
número. Uma voz feminina atendeu da recepção.
— Pode dizer-me qual foi a última chamada feita para este
telefone? — perguntou. Anotou o número. Depois desligou. Marcou o
número que anotara.
Atendeu uma mulher com uma voz diferente.
— Desculpe, devo ter-me enganado no número — disse após uma
pausa, e desligou.
Ligou uma terceira vez. Desta vez a voz que atendeu era um
sussurro rouco.
— É o Moran — disse o detective. — Tenho aquela informação para
si. O alvo está no Albergue Marina em Palavas-les-Flots.

Sentado à secretária na pensão, Ben sorveu o café, esfregou os


olhos, e começou a passar as suas notas a pente fino.
— Certo, Hope — articulou para si próprio. — Vamos a isto. O que
temos até ao momento?
A resposta inevitável era: não tinha grande coisa. Alguns
fragmentos de informação dispersa, uma enorme quantidade de
perguntas sem resposta, e estava sem pistas.
Simplesmente não sabia o suficiente. Estava esgotado por falta de
sono, mentalmente exausto por intermináveis dias de correria,
planeamento, e de tentar equilibrar todos os elementos da equação
na sua cabeça. E agora, sempre que tentava concentrar-se, só
conseguia ver a cara de Roberta à sua frente. O cabelo dela, os olhos.
A forma como se movia. A maneira como se ria, a maneira como
chorava. Não conseguia afastá-la do pensamento, não conseguia
preencher o vazio que sentia agora que ela já ali não estava.
Encontrava-se de novo quase sem cigarros. Pegou no frasco e
abanou-o. Ainda restava alguma coisa. Começou a desenroscar a
tampa. Não. Pousou o frasco por abrir na mesa e empurrou-o para
longe.
Estava ainda incomodado por aqueles grupos de números e letras
alternados aparentemente ao acaso e sem significado que apareciam
em nove das páginas do bloco-notas.
Agarrando de má vontade numa caneta, procurou no bloco-notas e
escreveu os estranhos números e letras pela ordem em que
apareciam.

I. N 18
II. U 11 R
III. 9 E 11 E
IV. 22 V 18 A 22 V 18 A
V. 22 R 15 O
VI. 22 R
VII. 13 A 18 E 23 A
VIII.20 R 15
IX. N 26 O 12 I 17 R 15

Escritos com caligrafia normal, ainda se pareciam mais com um


código do que no bloco-notas. O que significavam? Ben sabia o
suficiente acerca de criptografia para saber que um código destes
requeria uma chave para o abrir.
A chave mais frequentemente usada por espiões e agentes de
informações era uma linha escolhida ao acaso num livro. As
primeiras vinte e seis letras da linha eram feitas corresponder às
letras do alfabeto, ou a números, ou a ambos. Estas podiam correr
normalmente ou inversamente à linha da chave, dando diferentes
variantes no código e vomitando leituras completamente diferentes.
Sabendo qual o livro, qual a página e qual a linha a usar, era um
simples caso de decifrar a mensagem codificada.
Mas não sabendo, era completamente impossível de quebrar. E
Ben não tinha maneira de saber. Fulcanelli podia ter escolhido
absolutamente qualquer coisa, de qualquer livro ou texto, como linha
chave para estas sequências. Podia ter usado qualquer das línguas
que sabia, francês, italiano, inglês, latim, ou uma tradução de ou para
qualquer delas.
Ficou ali sentado algum tempo, a calcular desesperadamente as
possibilidades. A proverbial agulha num palheiro era um desafio fácil
por comparação. Levou a mente para trás e recordou-se subitamente
da gravação que Anna passara da sua sessão com Klaus Rheinfeld.
Rheinfeld murmurara sequências similares de números e letras
alternados. Ben escrevera-as.
Procurou nos bolsos e encontrou o pequeno bloco. Rheinfeld
repetira a mesma sequência de letras e números uma e outra vez. N-
6; E-4; 1-26; A-11; E-15. Mas estas não apareciam em lado nenhum
no bloco-notas. Queria isso dizer que Rheinfeld estivera a praticar o
código para si próprio? Ben recordou-se de Anna ter descrito como
ele contava obsessivamente pelos dedos enquanto repetia os
números. Também contara pelos dedos enquanto repetia aquela
outra frase... como é que era? Algo em latim, uma espécie de ditado
alquímico. Ben fechou os olhos cansados, tentando lembrar-se.
A frase encontrava-se algures no bloco-notas de Rheinfeld.
Folheou as páginas imundas e encontrou o desenho a tinta do
alquimista a vigiar o seu preparado borbulhante.
Lá estava inscrita no caldeirão. IGNE NATURA RENOVATUR
INTEGRA. Pelo fogo é a natureza totalmente renovada.
Se Rheinfeld contava pelos dedos enquanto cantava a frase...
queria isso dizer... Ben contou as letras da frase latina. Vinte e seis.
Vinte e seis letras do alfabeto.
Seria esta a linha chave do código?
Escreveu a frase num pedaço de papel. Por cima e por baixo das
palavras fez correr as letras do alfabeto e os números de 1 a 26.
Parecia demasiado simples, mas tentou de qualquer maneira.
Descobriu rapidamente que embora os números no código só
pudessem ser atribuídos a uma letra, devido às letras repetidas na
frase, as letras codificadas podiam ter uma variedade de significados.
Usando esta chave, Ben descodificou as primeiras duas palavras da
mensagem oculta, N 18 / U 11 R:

As letras horizontais deviam ter sido capazes de formar alguma


palavra reconhecível, esboçada nas colunas verticais de alternativas
fornecidas pelo código. Mas não fazia sentido. Tenta de novo, era
demasiado óbvio em todo o caso. Inverteu os números de 1 a 26 de
modo a que corressem inversamente contra a linha chave, e
descodificou de novo as duas primeiras palavras.
Agora parecia que percebera mal aquilo tudo. A linha chave era
provavelmente algo completamente diferente.
— Jesus, eu odeio puzzles — murmurou para si próprio. Mordendo
a caneta, voltou a olhar para o bloco-notas em busca de inspiração. O
olhar assentou na imagem do alquimista com o caldeirão. Por baixo
do caldeirão estava a fogueira. Por baixo da fogueira encontrava-se a
inscrição ANBO.
Então ocorreu-lhe. Claro, estúpido. ANBO era a forma codificada
de IGNE, fogo em latim. Se ANBO era IGNE, então isso queria dizer
que o alfabeto fora alinhado contra letras alternantes da linha chave.
Quando chegava ao fim começava simplesmente de novo no
princípio, preenchendo as lacunas.

26 25 24 23 22 21 20 19 18 17 16 15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

IGNENATURARENOVATURINTEGRA

ANBOCPDQERFSGTHUIVJWKXLYMZ

Comparada com os números a correr em sentido inverso desde 1-


26, isto dava uma chave completamente diferente com que trabalhar.
— Muito bem — murmurou -, aqui vamos nós, mais uma vez.
— N 18U 11 R, dizia o código. Baseado na nova chave, o N podia ser
o B ou o C ou o G ou o K; o 18 só podia ser o E. Avançando para a
segunda palavra, o U podia ser o Q ou o V; o 11 só podia ser o U; e o
R podia ser qualquer um entre o E, F, J ou M.
Olhou fixamente para o que escrevera, começando a sentir-se um
pouco cego com tantos caracteres. Mas então o coração deu-lhe um
pulo. Espera aí. Compunha-se uma forma. Com as letras disponíveis
conseguia formar duas palavras distintas. CE QUE. O QUE. Escreveu
a chave de modo mais nítido.
E agora a mensagem oculta começava a revelar-se rapidamente
enquanto ele usava a chave para abrir o código, escolhendo as
palavras a partir das letras disponíveis.

i. N 18: CE
ii. U 11 R QUE
iii. 9 E 11 E VOUS
iv. 22 V 18 A 22 V 18 A CHERCHEZ
v. 22 R 15 O CEST
vi. 22 R LE
vii. 13 A 18 E 23 A TRESOR
viii. 20 R 15 DES
ix. N 26 O 12 I 17 R 15 CATHARES

AQUILO QUE PROCURA É O TESOURO DOS CÁTAROS

A excitação da descoberta forneceu a Ben um novo surto de


energia. Folheou as páginas do bloco-notas, procurando mais
mensagens que pudessem lançar outra luz sobre o que descobrira.
No fundo da página onde encontrara a palavra codificada TRESOR
havia um bloco de mais três palavras encriptadas.

22E 18T 22 E 18I 26 T12 U20 A18


22E 18T 22E 18 I-26-T12 U20 A18. O padrão parecia agora
familiar — mas quando aplicou a chave para abrir a mensagem, o
coração afundou-se-lhe.

Não havia maneira de tirar sentido daquilo. COEICSEW A


IHVDRE?
Está bem, velho filho-da-mãe, não me dás a volta tão facilmente.
Começando a compreender as partidas traquinas que Fulcanelli
parecia gostar de pregar, inverteu a chave, correndo agora os
números para a frente ao longo da linha da chave e o alfabeto
alternado do fim para o princípio. Isto revelou uma leitura muito
diferente.

Correndo ao longo da linha e eliminando as letras estranhas das


colunas verticais, Ben foi subitamente capaz de formar palavras
inteligíveis em francês.

CHERCHEZ A...
PROCURA EM...

Apenas lhe escapara a última palavra. Poderia ser qualquer uma de


entre RHEDIE, WHEDIE, WHEDAE, RHEDAE, ou um determinado
número de alternativas esquisitas tais como CHJKE, a qual não fazia
obviamente qualquer sentido.
Coçou a cabeça. Procura em... a julgar pelo contexto, a misteriosa
terceira palavra tinha de ser um nome de um lugar: procura em
algures. Consultou as possíveis alternativas no mapa, mas não
conseguiu encontrar nenhumas. Recordando-se subitamente que
havia uma selecção de guias locais à venda no átrio do piso de baixo
da pensão, correu escadas abaixo, comprou um à dona, o qual cobria
toda a região do Languedoc, e voltou a correr para o quarto já a
folhear o índex. Mas também ali não existia nenhum dos nomes.
— Foda-se! — Atirou o livro pelo quarto. Este abriu-se no ar com
um bater de páginas, bateu na parede e ressaltou para cima de um
vaso de flores na prateleira da lareira. O vaso tombou e partiu-se. —
Foda-se! — gritou mais alto.
Então ocorreu-lhe uma ideia que fez com que a fúria
desaparecesse, instantaneamente esquecida. E os códigos que
Rheinfeld repetira para si próprio na gravação? Dar-lhe-iam esses
uma resposta? Abriu novamente o bloco e trabalhou nas cinco letras.
Quase se riu quando viu o resultado.

KLAUS

Então Rheinfeld descobrira o código, o pobre filho-da-mãe. Ben


interrogou-se se o alemão fora levado à loucura pela frustração de
não saber o resto. Estava a começar a compreender exactamente
como o homem se sentira.
Enquanto limpava a água entornada e apanhava as flores partidas
e os pedaços de porcelana, praguejando em silêncio, algo mais lhe
ocorreu subitamente. Que idiota — claro. Largou tudo e correu a
vasculhar o saco. No interior encontrou o mapa medieval falsificado,
exibindo o antigo Languedoc, que estivera pendurado na parede de
Anna. Desenrolou o manuscrito ornamentado com desenhos e
estendeu-o em cima da mesa.
Quando encontrou o lugar, verificou a sua localização no mapa
moderno. Não havia qualquer dúvida. O nome antigo para a aldeia
medieval de Rennes-le-Château, a pouco mais de vinte quilómetros
de St-Jean, era Rhédae. Bateu com o punho na mesa. CHERCHEZ A
RHEDAE tinha subitamente um novo e muito real significado:
PROCURA EM RENNES-LE-CHÂTEAU.
E, de acordo com o guia, Rennes-le-Château era o sítio que a lenda
associava mais fortemente ao tesouro perdido dos cátaros.
Capítulo 58
Enquanto conduzia através da agreste paisagem rural ao longo da
Dl 18 na direcção de Rennes-le-Château, Ben pensava no que lera
sobre o lugar no seu novo guia. Era um nome que ele recordava
vagamente de um qualquer documentário meio visto na televisão,
mas não percebera que o outrora adormecido aglomerado medieval
era agora uma das mais sensacionais atracções turísticas do Sul de
França. O guia dizia: "Um importante centro para os que procuram
tesouros sagrados e fenómenos mágicos.
Quer se acredite ou não no oculto, ideias cabalísticas, OVNI ou
círculos de colheitas, não há como negar o estranho mistério de
Rennes-le-Château."
O enigma de Rennes-le-Château assentava na história de um
homem chamado Bérenger Saunière. Fora o humilde pároco da
aldeia que, durante uma renovação da velha igreja em 1891, do qual
se dissera ter descoberto quatro pergaminhos selados no interior de
tubos de madeira. Os pergaminhos foram datados entre 1244 e a
década de 1780, e, assim rezava a história, tinham conduzido o padre
Saunière à descoberta de um grande segredo.
Ninguém sabia o que descobrira Saunière, mas imediatamente
após a sua descoberta o pároco tinha aparentemente sido
transformado de um indigente para milionário do dia para a noite.
De onde viera o dinheiro permanecia um mistério. Algumas fontes
diziam que ele descobrira o fabuloso tesouro dos cátaros — uma
fortuna em ouro que os heréticos tinham escondido dos seus
opressores no século XIII.
Outros alegavam que o tesouro não era dinheiro ou ouro, mas um
grande segredo, uma espécie de conhecimento antigo, que a Igreja
subornara Saunière para manter em silêncio.
Não surpreendentemente, os rumores do tesouro e a obscuridade
dos factos haviam-se combinado para provocar um alvoroço histérico
de interesse quando a história chegara aos media no princípio dos
anos 80. Despertara um culto febril por tudo o que tivesse a ver com
o mistério de Rennes-le-Château. Místicos, hippies e caçadores de
tesouros juntavam-se em bandos todos os Verões. A indústria
turística do Languedoc tornara-se louca pelos cátaros desde então.
Ben saiu da estrada principal em Couiza e o carro seguiu um
tortuoso caminho de montanha. Após quatro quilómetros de
cenários crescentemente selvagens chegou à pequena aldeia de
Rennes-le-Château.
A igreja ficava alguns metros recuada da rua por detrás de um
portão de ferro. Ao lado havia um centro de turismo, o qual marcava
um estranho contraste com a antiga aldeia medieval a desmoronar-
se. Havia uma visita em curso, uma multidão de viajantes a disparar
máquinas fotográficas seguindo um guia. Ben juntou-se-lhes, e pelo
zunzum das conversas percebeu que eram britânicos.
— E agora, senhoras e cavalheiros — disse monotonamente o
lânguido guia turístico -, se quiserem vir todos nesta direcção,
entraremos na dita e misteriosa igreja.
Ora bem, como todas as igrejas medievais o edifício está orientado
este-oeste e a planta tem a forma de uma cruz. O altar é...
Ben seguiu o grupo que se filtrava através da estreita porta e se
aglomerou no interior, olhando para a florida decoração em redor.
Imediatamente a seguir à entrada encontrava-se uma vívida estátua
de um demónio cornudo a fixá-los. Por cima dele estavam quatro
anjos, olhando através da igreja na direcção do altar.
O guia dirigiu-se à figura demoníaca. A sua voz ecoou pela igreja.
— Acredita-se que aqui este amigo assustador represente o
demónio Asmodeus, guardador de segredos e de... tesouros
escondidos. — Isto pareceu deliciar a multidão mas Ben já estava a
ver que não o ia esclarecer a ele. Separou-se do grupo e voltou para a
luz do Sol, pontapeando uma pedra para o meio da rua poeirenta em
frustração.
Rennes-le-Château encontrava-se alcandorada numa colina
rochosa com vista para uma vasta paisagem panorâmica. No extremo
oeste da aldeia o terreno caía numa vertente escarpada. Ben ficou à
beira do precipício e olhou para as montanhas e vales, protegendo o
isqueiro do vento enquanto acendia um cigarro. Suspirou.
Interrogou-se sobre onde estaria agora Roberta. Tinham passado
anos desde que se sentira tão dolorosamente só.
Aqui e ali à distância conseguia ver um número significativo de
velhas torres e edifícios em ruínas, assim como algumas antigas
aldeias de pedra ocre. Muito ao longe por baixo dele no árido vale
encontrava-se a aldeia que o mapa lhe dizia ser Esperaza. Sorriu com
o nome. Hope. O olhar seguiu o horizonte até umas ruínas distantes,
as quais o mapa identificava como sendo Coustaussa.
Uma memória agitou-o. Fora um cenário exactamente como este.
Tinham estado no alto da colina perto da villa dela, olhando os vales.
Ben recordou-se do que ela lhe dissera. Num lugar especial, as
posições relativas de sítios antigos forneciam a pista para um segredo
que traria grande sabedoria e poder àquele que resolvesse o mistério.
— O que estavas a tentar dizer-me, Anna? — articulou ele
enquanto olhava para o horizonte. Fulcanelli. Os cátaros. Tesouros
perdidos. Estava tudo relacionado, tinha de estar. Teria o alquimista
descoberto o manuscrito antigo e a cruz algures por aqui? Seria por
isso que Usberti escolhera esta parte de França para quartel-general
da sua Gladius Domini?
Vagueou pela aldeia durante algum tempo, arrastando os pés. Não
muito longe da igreja encontrou um pequeno café de turistas que
vendia postais e recordações. O sítio estava quase vazio, e o café
cheirava bem. Sentou-se numa mesa no canto mais afastado e ficou a
sorver o café enquanto tentava pôr os pensamentos em ordem. Que
diabo era tudo isto? Tirou o bloco-notas de Rheinfeld da cobertura
de plástico e abriu-o. O seu olhar pousou uma vez mais naquela
estranha estrofe.

Estas paredes do templo não podem ser quebradas


Os exércitos de Satã por lá passam ignorantes
O corvo guarda aí um segredo não revelado
Conhecido apenas do fiel e justo que procura

Talvez fosse o pensar louco de um cérebro estafado e privado de


sono, ou talvez fosse um raio de claridade a penetrar o nevoeiro dos
enigmas alquímicos. Mas uma ideia súbita atingiu-o como um raio.
Voltou atrás no bloco-notas até encontrar o desenho dos círculos
gémeos da lâmina da adaga. Tal como se lembrava, o que distinguia a
versão do diagrama no bloco-notas da inscrição na lâmina era o
símbolo do corvo que assinalava o centro. Se Rheinfeld copiara isto
de modo preciso do original, isso significava que Fulcanelli tinha
acrescentado intencionalmente o novo motivo. Tinha de ser
significante — mas como?
O corvo guarda aí um segredo não revelado.
Olhou de novo para a outra página, onde o mesmo símbolo do
corvo aparecia juntamente com a palavra DOMUS. A Casa do Corvo.
Ficou a ponderar. Uma hipótese: se a Casa do Corvo — deixando
de momento de parte o que realmente seria — se encontrava no
centro da forma geométrica dos círculos gémeos, seria possível que a
forma dos círculos gémeos representasse um lugar real? Um lugar,
como insinuara Anna, assinalado por linhas sobrepostas à paisagem
física e usando lugares antigos como pontos de referência?
Parecia uma loucura, mas à sua maneira fazia o mais perfeito
sentido.
Voltou à estrofe. Estas paredes do templo não podem ser
quebradas.
Que tipo de paredes do templo é que não podiam ser quebradas?
Não as de pedra, isso era certo, a julgar pelo número de velhas ruínas
para aqueles lados. Os exércitos de cruzados tinham sido
impiedosamente exaustivos na destruição dos fortes e das igrejas dos
seus inimigos heréticos.
Mas então foi atingido por outra ideia. E se as paredes do templo
nunca tivessem sido de todo construídas em pedra — nunca fora
intenção que o fossem? E se fossem as linhas de uma planta
geométrica invisível que se estendia ao longo da terra, conhecidas
apenas do fiel e justo que se encontrava dentro do segredo? Os
exércitos invasores nem sequer teriam sabido que tal templo lá se
encontrava. Porque as suas paredes eram invisíveis. Era um templo
virtual.
Com efeito, era um mapa. Fosse o que fosse a Casa do Corvo,
encontrava-se no centro da planta e parecia ser um marcador para
algo. Talvez algo que pudesse arranjar uma data de chatices. Um
tesouro alquímico secreto? Usberti estava obcecado em descobri-lo.
Os nazis tinham-no perseguido. Talvez aqueles que tinham lançado o
holocausto contra os cátaros também o tivessem procurado.
A mente de Ben corria agora. Sacou o mapa de estradas do saco,
desdobrou o quadrado de papel e estendeu-o em cima da mesa de
plástico. O dedo aterrou em Rennes-le-Château.
Este era o lugar para o qual Fulcanelli o guiara. Era aqui que a
procura iria começar, no próprio núcleo da região cátara e no âmago
do mistério do seu tesouro perdido.
Usando a extremidade do menu laminado da mesa do café como
régua, Ben começou a traçar no mapa linhas hesitantes a lápis. Em
breve começou a reparar em padrões emergentes.
St. Sermin — Antugnac — La Pique — Bugarach.
Couiza — Le Bezu.
Esperaza — Rennes-les-Bains
E pelo menos mais uma dúzia. Eram linhas a direito que ligavam
perfeitamente as igrejas, aldeias e ruínas de castelos vizinhos
directamente através do lugar onde se encontrava sentado, o coração
de Ren-nes-le-Château. Esta bizarra descoberta pareceu confirmar
que estava a procurar no sítio certo. Mais linhas, e em breve Ben
construía uma extensa grelha que se estendia desconcertantemente
ao longo de toda a área.
Os clientes do café entraram e saíram, e Ben não reparou neles. O
café arrefeceu junto ao cotovelo. Ben estava hipnotizado pelo
vertiginoso labirinto de complexidade controlada que começava a
revelar-se por baixo do seu lápis. Passada a primeira hora, tinha
estabelecido um círculo perfeito cuja circunferência ligava quatro
igrejas antigas da área, Les Sauzils, St. Ferriol, Granès e Coustaussa.
Para seu espanto, as linhas projectadas geraram uma estrela de seis
pontas cujos pontos encaixavam perfeitamente no interior do círculo
e tocavam exactamente nas duas primeiras igrejas. O primeiro
círculo centrava-se precisamente em Esperaza, a aldeia no vale por
baixo de Rennes-le-Châ-teau.
Após mais outra hora o pessoal do café começava a interrogar-se
sobre quanto tempo aquele estranho cliente ia ficar ali sentado a
escrever no seu mapa. Ben não deu por eles. Agora foi gerado um
segundo círculo, e ele traçou-o com mão firme. Centrou-se num
lugar chamado Lavaldieu — Vale de Deus. Os círculos eram idênticos
em tamanho e dispunham-se diagonalmente NO-SE (Noroeste-
Sudeste) ao longo do mapa. Ben traçou mais linhas e abanou a
cabeça de espanto enquanto o complexo símbolo alquímico se
revelava a si próprio.
O hexagrama no círculo de Esperaza tinha um dos seus pontos
mais a sul em Les Sauzils e o outro em St. Ferriol. O pentagrama no
círculo de Lavaldieu tinha os seus dois pontos mais a ocidente em
Granès e Coustaussa. Uma linha perfeitamente a direito ligando
Peyrolles a Blanchefort e daí a Lavaldieu fornecia o ponto mais a sul
do pentagrama onde este tocava no círculo de Lavaldieu. Por último,
uma outra linha perfeitamente a direito ligando Lavaldieu ao centro
com o mais distante castelo de Arques, dava a posição para o ponto
mais a este da estrela.
Recostou-se e contemplou o mapa densamente traçado e anotado.
Mal conseguia acreditar no que via. Os círculos-estrela gémeos
estavam completos. O diagrama era perfeito na sua geometria — o
templo virtual, ali mesmo num mapa de estradas barato adquirido
numa estação de serviço.
Qualquer que fosse a civilização que criara o fenómeno, muito,
muito antes de Fulcanelli ter tropeçado nele, devia ter sido
incrivelmente competente em observação, geometria e matemática.
A logística de simplesmente estender esta elaborada rede ao longo de
uma paisagem agreste e montanhosa causava perplexidade
suficiente, quanto mais o extremo trabalho a que se deram para
deliberadamente construir igrejas e aglomerados inteiros nas
localizações exactas traçadas por uma circunferência invisível ou pela
intersecção de duas linhas imaginárias. E tudo isto apenas para
conseguir uma localização oculta para uma qualquer peça críptica de
conhecimento? Que conhecimento valeria esse tipo de incómodo?
Talvez ele o descobrisse. Caminhava pelas pegadas históricas de
Fulcanelli. Agora tudo o que tinha a fazer era descobrir o ponto
central, e isso devia dar-lhe a localização exacta do que quer que
fosse que o alquimista descobrira. Desenhou as duas linhas extra que
cortavam diagonal e simetricamente através do motivo num X
alongado, marcando o centro preciso.
— O X marca o lugar — murmurou. O ponto central era próximo
de Rennes-le-Château. Não podiam ser muito mais do que uns dois
quilómetros, aproximadamente na direcção noroeste.
Mas o que estaria à sua espera quando lá chegasse? Só havia uma
maneira de descobrir. Agora estava a aproximar-se.
Capítulo 59
Ben arrancou a corta-mato. Começando a partir do extremo
ocidental da aldeia, descobriu uma rota sinuosa colina abaixo. Com
pedras e terra solta a deslizar-lhe sob os pés correu por ali abaixo.
Por vezes, o chão extremamente seco cedia por baixo dele e
escorregava alguns metros, lutando para manter o equilíbrio.
Quando chegou à linha de árvores cem metros mais abaixo, o terreno
era mais firme e os ramos ofereciam uma pega para descer o resto da
vertente. As árvores eram escassas a princípio, mas à medida que o
terreno se nivelava transformaram-se numa densa floresta.
Ben escolheu um caminho verdejante por entre as densamente
agrupadas coníferas, carvalhos e faias. Os pássaros cantavam nas
árvores acima dele e os raios leitosos do sol de Outono piscavam por
entre a folhagem verde e dourada. Pela primeira vez em dias quase
foi capaz de limpar a mente de pensamentos preocupantes. Embora
sentisse imenso a sua falta, era um alívio saber que Roberta se
encontrava em segurança e fora dali. O que quer que acontecesse, ela
ficaria bem.
Para lá do vale arborizado o terreno começou a subir de novo. A
um quilómetro dali através de um planalto rochoso, uma escarpa
subia dramaticamente até uma crista elevada. Ben viu que a sua rota
o ia levar direito ao cume. Caminhou firmemente por entre as
rochas, ignorando os arbustos espinhosos que se lhe prendiam aos
tornozelos.
A abrupta crista pareceu mais próxima.
Longe dali, Franco Bozza observava a minúscula figura da sua
presa através de binóculos potentes. Seguira Ben Hope todo o
caminho desde Palavas, mantendo-se cuidadosamente fora da vista.
Observara-o a descer a colina de escantilhão, afastando-se de
Rennes-le-Château e cortando a direito pelo meio do campo. Ele
sabia obviamente para onde se dirigia. O que quer que fosse que o
inglês procurava, ele também o encontraria. Desta vez, não ia deixar
que ele escapasse.
Bozza descrevera um semicírculo em redor do flanco de Ben. Um
caminho de cabras por entre um pequeno bosque protegera-o da
vista. Conservando-se agachado através do terreno crescentemente
rochoso, parando de vez em quando para verificar o progresso da
pequena figura à distância, descobrira um caminho em redor e
encontrava-se agora bem por cima de Ben, perto do cume da escarpa.
Por detrás dele, onde o terreno inclinado se nivelava bem abaixo
num vale verde, encontrava-se uma casa à distância.
A face rochosa elevava-se até uma plataforma, como um planalto
pouco profundo. E depois subia novamente até ao cume. Para a
direita, a face da colina mergulhava dramaticamente cerca de 300
metros para um vale profundo densamente arborizado. Ben começou
a longa subida. Cerca de meia hora depois alcançou o primeiro nível,
com cerca de dez metros de largura. Uma prateleira saliente de rocha
cinzenta sobrepunha-se à face do penhasco para criar uma caverna
pouco funda. Ben parou e descansou alguns minutos, piscando os
olhos para a vertente que tinha ainda de trepar.
Acima dele, Bozza rastejou um pouco mais ao longo do grande
rochedo. A partir deste ponto vantajoso tinha uma visão do inglês
através dos binóculos. O rochedo largo e plano encontrava-se
pendurado por cima da borda de um plano bastante inclinado.
Sentia-o suficientemente estável por baixo do seu peso, e era
suficientemente seguro ter ficado onde estava durante mil anos. Mas
Bozza era um homem pesado e quanto mais se deslocava para a
borda, mais tensão provocava no equilíbrio do rochedo.
Quando deu por que o rochedo começava a deslizar, já era
demasiado tarde para fazer alguma coisa.
Bozza cavalgou o rochedo em queda de barriga durante os
primeiros metros. Este mergulhou por cima da borda do penhasco e
esmagou-se desfazendo-se num conjunto de calhaus mais pequenos
que caíram a rodopiar. Bozza foi atirado para baixo e foi rolando aos
trambolhões nos trinta metros seguintes. Bozza esgatanhou
freneticamente por algo a que se agarrar mas estava tudo a deslizar
com ele. O desmoronamento ganhou velocidade, transportando para
baixo uma fatia da encosta.
De onde se encontrava e olhando para o que lhe restava para subir,
Ben via o pó levantado por umas cem rochas aos trambolhões. O
sangue congelou-se-lhe. Vinham direitas a ele. Mergulhou por baixo
da saliência mesmo quando as rochas rodopiantes chegavam à
plataforma. As rochas martelaram a área em redor e levaram a maior
parte do terreno para baixo. Ben protegeu a cara da terra solta e do
pó que caía numa cortina asfixiante. Subitamente o terreno cedia-lhe
debaixo dos pés. Estendeu os braços em desespero e agarrou-se à
borda da saliência acima dele. Ficou pendurado, rezando para que
ela não se soltasse e o esmagasse. Uma grande pedra irregular
ressaltou do penhasco e atingiu-o no ombro, fazendo-o soltar-se da
rocha suspensa. Ben deslizou e rolou bastantes metros pela vertente
abaixo, com calhaus e terra solta a voar por todo o lado. Uma
pontada branca de dor percorreu-o quando o seu corpo embateu
numa raiz de árvore protuberante. De algum modo conseguiu
agarrar-se à raiz enquanto o desmoronamento o massacrava de
passagem. A raiz aguentou. A violência do deslizamento diminuiu, e
depois este terminou.
O ar estava espesso com o pó. Ben cuspiu e tossiu, com a boca e a
garganta cheias dele. Conseguiu apoiar os pés de forma segura, e
deixou o peso deslocar-se lentamente para os pés, testando a frágil
vertente. Deu uma palmada de agradecimento à raiz e pôs-se a
caminho cautelosamente, subindo a escarpa em busca de terreno
firme.
Bozza acabara por parar, aturdido e ensanguentado, no meio das
rochas. Tinha as pontas dos dedos em carne viva de ter esgravatado
em busca de algo a que se agarrar.
Ergueu-se do chão ainda abalado e olhou em redor para os
destroços do deslizamento de terras. Deslizara e caíra de uma grande
distância. Mais um par de metros e teria mergulhado mesmo por
cima da borda da escarpa para uma queda livre direito ao vale
arborizado por debaixo.
Ouviu um ruído e girou para ver Ben Hope de pé a dez metros de
distância.
Bozza não tinha tempo para alcançar a arma. A mira de Ben
desceu a direito e deliberadamente para o peito do homem e a
Browning ladrou duas vezes numa sucessão rápida.
Os disparos secos martelaram o silêncio do ar da montanha. O
corpo de Bozza foi atirado para trás como uma boneca abanada.
Ficou a vacilar por momentos na borda do precipício, com os braços
estendidos enquanto lutava por manter o equilíbrio. Ben olhou-o
friamente e depois disparou de novo. Bozza agarrou-se ao peito, e
com um último olhar louco de ódio desapareceu por cima da borda.
Passou outra hora antes que Ben descobrisse maneira de descer
para o vale pontuado de árvores para lá da colina. Sentou-se num
tronco caído coberto de musgo e recuperou o fôlego. Ter-lhe-ia dado
jeito um par de umas decentes botas militares. Os seus sapatos leves
encontravam-se praticamente destruídos. No interior tinha os pés
dolorosamente em carne viva.
Não pode ser este o lugar, pensou para si próprio, olhando através
do vale. E no entanto, de acordo com o mapa e com a bússola, tinha
de ser. Não havia mais nada em lado nenhum, apenas mais da
mesma paisagem selvagem.
Ben estava a olhar para uma casa branca que se aninhava nas
árvores a umas centenas de metros de distância no outro lado do
vale. Estava aconchegada perto do sopé de uma montanha alta e
dominante. Suspirou. Não tinha tido maneira de saber o que iria
encontrar — talvez uma ruína, até um círculo de pedras ou coisa do
género.
Mas esta villa moderna e bem conservada era a última coisa de que
estivera à espera de encontrar no sítio da "Casa do Corvo".
Era de uma arquitectura radical, tipo caixa, com o telhado plano e
muito distinta das costumeiras casas de pedra do Languedoc rural.
Parecia que fora construída nos últimos anos. No entanto parecia
confundir-se com os arredores naturalmente selvagens com uma
facilidade quase mágica, como se já lá estivesse há séculos.
Aproximou-se do portão murado e encontrava-se a admirar a casa
quando uma voz o chamou.
— Olá? Está aí alguém? — Uma mulher caminhava na direcção
dele através de um jardim bonito e bem tratado. Era alta, magra, de
porte direito, talvez a meio ou no fim dos cinquenta. Mas as
principais coisas em que Ben reparou foram os óculos escuros e a
bengala branca que ela usava para sondar o caminho à sua frente.
Ela desceu cuidadosamente pelo caminho até ao portão. Sorriu,
olhando para algures por cima do ombro de Ben.
— Estava mesmo a admirar a sua bonita casa — disse Ben para a
mulher cega.
O sorriso dela alargou-se.
— Ah, então interessa-se por arquitectura?
— Interesso-me, sim — retorquiu Ben. — Mas também me
perguntava se a poderia incomodar por um copo de água? Acabei de
passar a montanha e tenho imensa sede... importa-se?
— Naturalmente que não. Deve entrar — disse a mulher, e virou-se
na direcção da casa. — Venha comigo... atenção ao trinco do portão,
está perro.
Ben seguiu a mulher cega pelo caminho de pedra até à villa. Ela
conduziu-o através de um grande átrio para uma cozinha moderna, e
tacteou o caminho até ao frigorífico.
Retirou uma garrafa de água mineral.
— Tem copos no armário. Por favor, sirva-se. — Ela sentou-se à
mesa com Ben, com uma expressão benigna na face enquanto o
ouvia a beber dois copos altos de água.
— É muita gentileza sua — disse ele. — Vim a pé desde Rennes-le-
Château. Andava à procura da Casa do Corvo.
— Encontrou-a — disse simplesmente ela, encolhendo os ombros.
— Esta é a Casa do Corvo.
— Esta? — Mas não podia ser. Esta casa era moderna. Como é que
podia aparecer num manuscrito alquímico com oitenta anos? —
Talvez eu esteja no lugar errado — disse ele. — A casa que eu
procurava é antiga. — Ocorreu-lhe uma ideia. — Esta casa foi
construída no lugar de um edifício mais antigo?
Ela riu-se.
— Não, esta é a casa original. É muito mais antiga do que parece.
Foi construída em 1925. O nome vem do arquitecto.
— Quem foi o arquitecto?
— O seu verdadeiro nome era Charles Jeanneret, mas era mais
conhecido por Le Corbusier. A alcunha dele era Corbu.
— Casa do Corvo — repetiu Ben, aquiescendo. Corbu... do francês
corbeau significando corvo. Portanto apesar da aparência
ultramoderna, quase futurista, o lugar datava mais ou menos do
período do manuscrito de Fulcanelli.
— Porque é que andava à procura da casa? — perguntou ela com
curiosidade.
Ben recuou instintivamente para o seu bem testado argumento.
— Eu andei a fazer algumas pesquisas históricas. A casa é referida
em alguns documentos antigos, e como me encontrava na zona
pensei em vir visitá-la.
— Gostava de dar uma volta pela casa? — perguntou ela. — Os
meus olhos falharam-me há alguns anos, mas na minha mente
consigo vê-la tão claramente como sempre.
Ela mostrou-lhe a casa quarto a quarto, batendo com a bengala e
referindo esta ou aquela característica. Na sala de estar principal
encontrava-se uma alta e elaboradamente esculpida lareira em
carvalho. O estilo ornamentado da lareira estava totalmente em
contraste com o design austero, de linhas rectas, quase ascético do
resto da casa. Ben olhou-a fixamente. Não foi a sua excelência de
construção e beleza que lhe chamaram a atenção, por
impressionantes que fossem. Ele olhava fixamente para o baixo-
relevo sobre a prateleira, o qual dominava toda a lareira.
Era um corvo esculpido num emblema circular, tal como o do
manuscrito de Fulcanelli e o da Catedral de Notre Dame. Percorreu o
baixo-relevo com o olhar, as penas tipo lâmina, garras curvas e o bico
cruel. O olho era um cintilante vidro vermelho-rubi inserido na
respectiva cavidade que parecia estar a devolver-lhe o olhar.
— Isto também é original? — perguntou ele. — A lareira, quero
dizer -acrescentou ele, lembrando-se de que ela era cega.
— Oh, sim. Foi esculpida pelo Corbu em pessoa. De facto ele
começou a carreira a estudar baixos-relevos e joalharia antes de se
tornar arquitecto.
Por baixo do corvo, estavam gravadas as palavras latinas HIC
DOMUS em caracteres góticos de ouro.
— Hic... aqui — traduziu Ben em silêncio. — Aqui a casa... esta é a
casa... Esta é a Casa do Corvo...
Mas onde é que isto ia dar? Porque é que Fulcanelli pusera a casa
no mapa? Tinha de haver uma razão. Deve haver algo aqui. O quê?
Enquanto rebuscava a mente à procura de alguma relação, olhou
em redor para a sala. O olhar pousou-se-lhe numa pintura
pendurada na parede em frente. Mostrava um homem de idade no
que parecia ser um traje medieval. Numa das mãos o homem
empunhava uma grande chave. Na outra segurava um escudo
circular, ou talvez um prato, que se encontrava estranhamente em
branco como se o artista nunca tivesse acabado o quadro. O homem
de idade sorria misteriosamente.
— Não chegou a dizer-me o seu nome, monsieur — disse a mulher
cega.
Ele disse-lhe.
— É inglês? Foi um prazer conhecê-lo, Ben. O meu nome é Anto-
nia. — Fez uma pausa. — Receio ter de lhe pedir para que saia agora.
Vou visitar o meu filho a Nice durante uns dias. O táxi deve estar a
chegar.
— Obrigado pela excursão. — Ben mordeu o lábio, tentando
esconder a frustração na voz.
Antonia sorriu-lhe.
— Estou satisfeita por ter encontrado a casa. E espero que
encontre o que procura, Ben.
Capítulo 60
Ben sentou-se entre as árvores que davam para o vale com a casa
de Le Corbusier por baixo dele, e tentou pôr os pensamentos em
ordem. A noite caía depressa, e levantava-se vento. Estava próximo e
era peganhento. Ben podia ver as nuvens negras a correr para lá das
copas das árvores. Vinha aí uma tempestade.
O último comentário de Antonia pareceu-lhe um pouco estranho,
um pouco deslocado. Espero que encontre o que procura. Ele
dissera-lhe que andava à procura da casa, e fora tudo. No que a ela
dizia respeito, ele já encontrara o que procurava. E procurar parecia
demasiado forte, uma palavra demasiado evocativa para alguém que
estava apenas a visitar uma casa antiga que descobrira num mapa.
Talvez estivesse a tirar demasiadas ilações. Ou seria que a mulher
cega sabia algo que não dava a entender? Teria a casa algo que se
relacionasse com ele? Se não tinha, era o fim. Não havia para onde ir
a partir daqui.
Havia um rumor de trovões à distância. Estendeu a mão e sentiu
uma grande e pesada gota de chuva a cair-lhe na palma. Em breve
outra se lhe juntou, e depois outra.
A chuva fustigava-o quando apareceram as luzes de um carro,
torneando lentamente a estrada particular até à casa. As luzes
apagaram-se nas janelas. Antonia saiu, e o motorista ajudou-a a
chegar ao táxi debaixo de um guarda-chuva. Ben observava por
debaixo da copa a pingar de um velho carvalho enquanto o carro
arrancava.
Quando as luzes traseiras se tinham transformado em alfinetes
vermelhos na escuridão que caía, virou o colarinho para cima e
atravessou o vale.
Moveu-se em silêncio e cautelosamente em redor do exterior da
casa. A chuva caía em cascata dos algerozes, abrindo canteiros na
lama. Deu-se um repentino faiscar de um relâmpago, e o trovão soou
furiosamente por cima dele um segundo depois. Ben limpou a água
dos olhos.
A escuridão caíra enquanto as nuvens negras de tempestade
rolavam. Ben usou a lanterna LED da pistola para encontrar o
caminho em redor da parede exterior da casa até chegar à porta das
traseiras. A fechadura era simples e fácil de abrir, e em menos de um
minuto encontrava-se no interior da casa. O estreito feixe de luz da
lanterna levou-o de quarto para quarto, formando longas sombras. A
tempestade encontrava-se agora mesmo por cima e a crescer em
intensidade. Deu-se outro faiscar, dois segundos de um relâmpago
intermitente, e a descarga do trovão que se seguiu instantaneamente
abalou a casa.
Recordando-se das voltas que dera, descobriu rapidamente a sala
com a lareira ornamentada. Fez incidir a luz no corvo esculpido, o
qual parecia ainda mais vivo nas sombras do que parecera à luz do
dia. A conta do seu olho vermelho cintilava com o feixe de luz.
Recuou, a pensar. O que procurava? Não sabia, realmente. O
símbolo do corvo conduzira-o até aqui, e o seu instinto dizia-lhe que
o devia continuar a seguir. Olhou fixamente a lareira, com a mente a
trabalhar furiosamente enquanto a chuva batia contra as janelas.
Ocorreu-lhe algo. Voltou lá para fora, para a chuvada, e viu que tinha
razão.
Do interior da casa, a lareira parecia estar instalada na parede
exterior — no entanto enquanto estava no jardim, limpando a chuva
dos olhos e varrendo a linha do telhado com o feixe da lanterna, viu
que a chaminé se erguia do telhado a cerca de três metros do limite
da empena. Reparara que a janela na parede adjacente à lareira
ficava a cerca de um metro do canto, mas olhando cá de fora ficava a
cerca de quatro metros do fim da casa.
Enquanto se apressava a regressar ao interior, a pingar e a tremer,
compreendeu que, a não ser que fosse algum capricho do design
ultra-moderno, significava que havia uma cavidade oculta por detrás
da lareira. Um espaço isolante? Demasiado grande, certamente.
Tinha de ter uns três metros de profundidade. Talvez fosse um
corredor, ou mesmo um armário, que podia ter acesso a partir de
qualquer outra sala.
Mas onde é que se situava a entrada? Tentou todas as portas, mas
nada levava na direcção correcta. O quarto por cima era um quarto
de dormir com o soalho sólido e nenhuma maneira de descer. Não
havia qualquer cave por debaixo da casa, de onde se pudesse aceder à
sala oculta por uma escada ou alçapão. Regressou à sala de estar e
escrutinou novamente a lareira. Se havia uma maneira de passar,
tinha de ser por aqui.
Ligou as luzes e foi dando pancadas na parede, escutando o som.
Em redor da lareira, a parede era sólida. Ao deslocar-se para a
esquerda da lareira, as pancadas revelaram uma nota diferente.
Outro metro para a esquerda e a parede soava bastante oca. Não
havia rachas ou juntas em lado nenhum, nada que pudesse ser uma
passagem oculta. Tentou deslocar os painéis de madeira nas paredes,
na esperança de que um deles pudesse revelar algo. Nada.
Estendeu o braço e passou-o à volta pelo interior da lareira,
tacteando a chaminé fuliginosa. Talvez houvesse uma alavanca ou
algum mecanismo que abrisse uma passagem.
Não havia. Limpou o pó negro da fuligem que se lhe agarrara às
mãos.
— Deve haver algo — murmurou. Percorreu toda a lareira com as
mãos, pelas laterais, com as pontas dos dedos a percorrer as
intricadas esculturas, tentando encontrar algo que pudesse
pressionar, ou que desse de si ou rodasse. Parecia escusado. A chuva
atingiu as janelas a estalejar como chamas.
Afastou-se da lareira, pensando desesperadamente. Não havia
nada que pudesse usar. Ele ia passar por aquela parede, e se não
havia uma porta já feita ia fazer uma para si próprio. Que se foda.
Descobriu um machado num alpendre para ferramentas lá fora,
enterrado num bloco de madeira rodeado por uma pilha de troncos
abertos ao meio. Agarrou no comprido cabo do machado e arrancou-
o do bloco. De regresso ao interior da casa, ergueu o machado por
cima do ombro e fez pontaria à zona oca da parede. Se a sua
estimativa estivesse correcta, conseguiria abrir um buraco para o
outro lado.
E se eu estiver errado, ainda assim? Baixou o machado,
subitamente cheio de dúvidas. Disparou um olhar culpado de relance
para o corvo, e o cintilante olho vermelho deste pareceu
corresponder-lhe em acordo.
Olhou pensativamente para a face impassível do corvo. A ave era
tão real que ele quase esperou que voasse para si. Pousou o machado
e percorreu com a mão as linhas suaves da asa e pescoço, até ao olho
vermelho vidrado. Subitamente tomado por uma ideia louca,
carregou no olho, com força.
Nada aconteceu. Ben supôs que isso teria sido demasiado óbvio.
Pegou de novo no projector LED da pistola e fez incidir a luz em
redor dos contornos da escultura, examinando-a
pormenorizadamente. Passou o feixe pelo olho do corvo e um súbito
brilho de luz potentemente reflectida encandeou-o. Parecia haver um
complexo sistema de minúsculos espelhos no interior do olho que
concentravam o feixe do projector e o devolviam para ele.
Ocorreu-lhe outra ideia. Foi até ao interruptor de parede e desli-
gou-o, mergulhando a sala de novo na escuridão. Fez novamente a
luz incidir no olho do corvo, conservando-se um pouco para o lado
para evitar ser encandeado.
A luz reflectida do olho do corvo atingiu a parede em frente e
produziu uma mancha vermelha circular, com cerca de sete ou oito
centímetros de diâmetro, no quadro em que reparara nessa tarde.
Incidia exactamente no estranho escudo redondo branco que o
homem idoso segurava no quadro.
Ben manteve a luz no olho. Deslocou-se para mais perto do quadro
e viu com espanto que o ponto vermelho continha o motivo das
estrelas-círculos gémeas da lâmina da adaga e do bloco-notas.
Ben lembrou-se de que Antonia dissera que o arquitecto fora
joalheiro nos seus primeiros tempos. Seu filho-da-mãe espertalhão.
Era um trabalho quase inacreditavelmente intricado o ter gravado no
espelho reflector uma minúscula e no entanto perfeita réplica do
desenho geométrico. Mas o que significava?
Tirou o quadro da parede e o coração saltou-lhe. Havia um cofre
oculto por detrás. Voltou a ligar as luzes e correu para voltar a
examiná-lo mais de perto. O que poderia estar lá dentro?
O cofre era do mesmo período da casa, com a porta de aço
adornada com desenhos a esmalte em estilo arte nova. A meio da
porta encontrava-se uma fechadura rotativa saliente com dois
invulgares marcadores concêntricos, um com números e o outro com
letras do alfabeto.
— Oh, Cristo, por favor... mais códigos não! — gemeu ele. Tirou o
bloco-notas do saco. Dobrada no meio das páginas encontrava-se a
folha na qual escrevera as chaves para decifrar o código. A
combinação para abrir o cofre talvez fosse algo que estivesse no
bloco-notas. Mas o quê? Folheou o livro. Podia ser qualquer coisa.
Sentou-se com o bloco-notas nos joelhos, tentando calcular
algumas possibilidades e transformando rapidamente as versões
codificadas em combinações de letras e números.
Primeiro tentou "Casa do Corvo" em francês. Era um tiro no
escuro, mas estava desesperado.
LA MAISON DU CORBEAU

Rodou os marcadores para aqui e para ali, fazendo entrar a


complexa sequência. E/4, 1/26, R/2, 1/26... Levou um ou dois
minutos a marcar a frase completa. Recostou-se e aguardou que
acontecesse alguma coisa.
Nada aconteceu. Suspirou impacientemente e tentou outra
combinação. O tesouro cátaro.

LE TRESOR DES CATHARES

Também não dava. Isto podia levar o resto da vida. Relanceou o


olhar pelo machado pousado no chão e interrogou-se brevemente se
não devia limitar-se a arrancar a maldita coisa da parede e tentar
aceder-lhe por trás. Sorriu para si próprio enquanto se recordava do
que um sargento-chefe grisalho de Glasgow lhe dissera uma vez:
"Em caso de dúvida, rapaz — recorre à violência." Talvez não fosse
uma máxima má, nas circunstâncias certas.
Então o seu olhar caiu no quadro que tirara da parede, e
interrompeu-se para o olhar mais de perto.
Que idiota que eu sou. A chave!
A grande chave prateada que o homem idoso segurava tinha algo
escrito em letras minúsculas. Caiu de joelhos para ler.

LE CHERCHEUR TROUVERA

O que procura encontrará. Ben agarrou na caneta e escreveu


febrilmente a frase em código.
E/4, R/18; N/22, V/12, R/18, A/17, N/22, V/12,
R/18, A/11, A/17;
O/13, A/17, E/23, A/11, U/9, R/18, A/17, I/26
O coração martelava-lhe enquanto marcava o último número. Bem
nas profundezas do mecanismo do cofre ouviu um estalido metálico.
Depois fez-se silêncio. Agarrou na pega da porta do cofre e puxou-a.
Esta manteve-se firme. Praguejou. A combinação devia ser a errada,
senão algo se avariara no mecanismo do cofre depois de todos estes
anos. A porta estava bem fechada.
Um som por detrás sobressaltou-o, e rodopiou enquanto a mão
procurava a Browning.
A lareira estava a abrir-se. Um suave chuveiro de poeira caía da
chaminé enquanto os painéis incrustados de fuligem se abriam
lentamente para revelar um espaço mesmo à justa para se poder
passar.
Encontrou-se numa sala estreita, com uns seis metros de largura e
três de profundidade. Numa das extremidades encontrava-se uma
grande mesa antiga em carvalho, coberta por uma fina camada de pó.
Em cima da mesa estava pousado uma pesada taça de metal, como
um enorme copo de vinho com cravos de ferro em redor da borda.
Jazendo na taça, olhando fixamente para cima com olhos vazios,
encontrava-se uma caveira humana. De ambos os lados deste
macabro ornamento repousavam dois castiçais em ferro, com
sessenta centímetros de altura e grandes bases circulares e cada um
deles exibindo uma grossa vela de igreja.
O projector estava a ficar sem energia; Ben procurou o isqueiro no
bolso e acendeu as velas. Pegou num dos pesados castiçais, e a luz
tremeluzente espalhou sombras através da sala. A caveira
desdentada olhou-o de soslaio. Em redor das paredes encontravam-
se prateleiras poeirentas com livros alinhados. Pegou num deles e
soprou-lhe o pó e as teias de aranha de cima.
Segurando a vela de perto leu o antigo escrito dourado na capa de
couro — Necronomicom. O Livro dos Mortos. Voltou a arrumá-lo e
pegou noutro livro encadernado a couro. De Occulta Philosophia.
Segredos da Filosofia Oculta.
Parecia que se encontrava no estúdio particular de alguém, há
muito abandonado. Recolocou cuidadosamente o livro na prateleira
poeirenta e varreu o espaço em redor com o pesado castiçal. As
paredes da sala estavam pintadas com murais exibindo processos
alquímicos. Caminhou até perto e estudou um que mostrava uma
mão a emergir de uma nuvem. A Mão de Deus? A partir da mão,
pingava água para um estranho vaso que era suportado por pequenas
ninfas aladas. De uma abertura no fundo do vaso fluía uma
substância etérea e nebulosa cheia de símbolos alquímicos e a
indicação Elixir Vitae.
Ben afastou-se e ergueu a vela para iluminar os outros cantos da
sala. Por cima da entrada que usara, uma cara olhava-o de cima para
baixo. Era um retrato a óleo numa grande moldura dourada. A cara
pertencia a um homem pesadamente constituído com uma barba
grisalha e uma densa melena de cabelo prateado. Espreitando por
debaixo das espessas sobrancelhas grisalhas, os olhos pareciam
brilhar com um senso de humor que contrastava com a expressão
austera. Uma placa em ouro por baixo do retrato dizia em austeras
letras góticas:

FULCANELLI

— Então finalmente nos encontramos — murmurou Ben. Afastou-


se do retrato e caminhou em redor das extremidades da sala,
olhando para o chão. As lajes de pedra estavam parcialmente
cobertas por um velho tapete poeirento. Para lá do tapete Ben via as
partes exteriores de um padrão de mosaicos no chão. Ajoelhou e
pousou o castiçal com um som metálico. Nuvens de pó flutuaram à
luz tremeluzente. Levantou a ponta do tapete, e uma aranha grande
fugiu e desapareceu nas sombras. Enrolou o tapete num comprido
tubo e encostou-o à parede. Soprou o pó, revelando os coloridos
mosaicos de pedra inseridos nas lajes. Depois de um ou dois minutos
de escovar e soprar recuou para ver melhor.
O padrão tinha cerca de quatro metros e meio de comprimento e
ocupava toda a largura do estúdio. Aqui estavam elas outra vez, as
estrelas-círculos gémeas. No exacto centro do padrão encontrava-se
uma laje circular com um anel de ferro embutido no chão. Agarrou
no anel com ambas as mãos e puxou com força. Ouviu-se o som do ar
frio a escapar vindo de baixo.
Fez incidir a luz da lanterna para dentro do buraco. O diminuto
feixe iluminou uma escada em espiral escavada na rocha, descendo
para o negrume.
Capítulo 61
A longa espiral descendente em pedra levou-o para o interior em
rocha maciça. Enquanto penetrava cada vez mais fundo no túnel
vertical, o som da tempestade lá fora desvaneceu-se até ao nada.
Passado algum tempo, a escadaria chegou ao fim e encontrou-se
com uma passagem nivelada que serpenteava para a escuridão. Só
havia uma direcção a seguir, e o único som era o das suas passadas a
ecoar e o pingar de água. As suaves paredes arredondadas do túnel
eram suficientemente altas para Ben poder caminhar erguido. Devia
ter levado séculos a escavar isto nesta montanha. Um túnel rústico
teria servido à mesma, no entanto quem criara isto estivera
interessado em muito mais do que utilitarismo.
Andavam em busca da perfeição. Mas porquê? Onde é que ia dar o
túnel? Continuou a andar.
Sem aviso, o túnel serpenteou em redor de uma curva apertada e
por instantes Ben pensou que chegara a um beco sem saída. Mas
depois sentiu algo a agitar o ar. Uma brisa fresca, vinda de cima.
Ergueu a lanterna. Havia uma passagem para a esquerda, mais
degraus conduzindo para cima. Subiu e continuou a subir. Parecia-
lhe que estava a subir muito mais do que descera. Isso só podia
querer dizer uma coisa — que se encontrava agora a subir acima do
nível do terreno. Recordou-se do penhasco junto à casa, e
compreendeu que devia estar no interior da montanha. Muito no
interior, rodeado por todos os lados por milhares de toneladas de
rocha maciça.
A luz do projector estava a ficar mais fraca. Quando se desvaneceu
para um amarelo e depois para nada, enfiou-o no bolso e usou o
isqueiro Zippo para ver por onde ia. Estava a ficar mais frio, e o
vento assobiava-lhe em redor embora as paredes da passagem
fossem sólidas e apertadas. Os dedos queimavam-lhe à medida que o
metal do isqueiro aquecia, e Ben ficou preocupado não fosse o
líquido inflamável do interior incendiar-se se o isqueiro aquecesse de
mais. Subitamente o pé falhou um degrau na escuridão, e Ben
escorregou e quase caiu. Fez uma pausa por instantes, com o coração
a martelar. Deixou o isqueiro escaldante arrefecer durante algum
tempo, depois reacendeu-o e continuou a subir.
A escadaria terminou em breve e Ben deu consigo numa câmara.
Vacilou em cima dos pés. Erguendo o isqueiro, pestanejou de
estupefacção. A câmara parecia estender-se para longe e largamente
para todos os lados. Chegou a um pilar de pedra que parecia ter
nascido do chão, até lá acima às arcadas abobadadas do tecto a cerca
de dois metros acima da sua cabeça. O pilar fora laboriosamente
alisado e escavado, coberto de intricados desenhos exibindo cenas
religiosas e ícones. A pouca distância encontrava-se outro pilar
semelhante, e depois outro.
Deslocou a chama do isqueiro em redor. Filas de crucifixos de ouro
cintilavam com a luz tremeluzente. Um altar enorme ergueu-se na
sua frente, esculpido na rocha maciça e densamente adornado a
ouro.
Encontrava-se numa igreja. Uma igreja gótica medieval escavada
no interior da montanha.
Ben acendeu as velas do altar. Havia imensas, todas suportadas
por castiçais de ouro maciço. Uma vela de cada vez, a igreja foi-se
enchendo gradualmente com uma luz ambarina. Ben ficou
estupefacto com as dimensões do espaço escavado. A riqueza era
chocante.
Então viu as arcas de pedra alinhadas contra as paredes. Havia
dúzias delas, à altura dos joelhos e com um metro quadrado.
Aproximou-se. Estavam cheias até às bordas com ouro. Enfiou as
mãos numa delas, os dedos a passar através de moedas e pepitas de
ouro maciço, anéis e amuletos. Havia ouro suficiente na igreja para
fazer de quem o encontrasse o homem mais rico do mundo.
Transportando um pesado castiçal para ver por onde andava, foi
até ao enorme altar. Esculpidos em pedra macia, dois leões brancos
convergindo para uma única cabeça suportavam uma bacia circular
em pedra que tinha cerca de dois metros e meio de diâmetro. A luz
da vela cintilou na água escura do interior. Em redor da borda lisa,
esculpidas em letras fluidas, encontravam-se as palavras:

Omttis qui bibit hanc aquam, Si fidem addit, Salvus erit


Aquele que desta água beber encontrará a salvação, se acreditar

Aos pés de uma estátua angélica encontrava-se um pedestal de


ouro, e sobre ele repousava um comprido tubo de couro. No interior
encontrou um pergaminho. Desdobrou delicadamente o documento
gretado e arcaico no chão e ajoelhou para o estudar. Era obviamente
medieval, embora fabulosamente bem preservado. Os escritos eram
numa estranha forma de latim que ele não compreendia, misturados
com o que pareciam ser hieróglifos egípcios.
Pestanejou enquanto a verdade lhe ocorria. Então seria este o
lendário manuscrito de que toda a gente andava à procura? Era
agora claro que os papéis que Rheinfeld roubara de Clément, a cópia
que fizera no bloco-notas, nunca haviam sido mais do que as notas
do próprio Fulcanelli. Eram o registo que o alquimista fizera das
pistas que o tinham conduzido à descoberta do manuscrito
propriamente dito. As mesmas pistas que iriam guiar o homem que
se lhe seguiria na busca.
Agora, confrontado por fim com o documento, Ben compreendeu o
poder daquele misterioso documento e o terrível peso que tinha
sobre tanta gente. Não havia maneira de dizer quanto sangue fora
derramado à sua conta através das épocas, tanto para o proteger
como para o adquirir. Tinha o poder de inspirar o mal. Teria também
o poder de fazer o bem?
Algo mais caíra para fora do tubo de couro. Era uma folha de papel
dobrada. Ben abriu-a. Era uma carta, e ele já anteriormente vira
aquela caligrafia.

Para aquele que procura:


Meu Caro Amigo,
Se chegou tão longe que esteja a ler estas palavras, eu aplaudo-o.
Este segredo, que se esquivou aos grandes e aos sábios desde a
madrugada da civilização, encontra-se agora nas suas bravas e
resolutas mãos.
A mim resta-me somente passar este aviso: Quando o sucesso por
fim coroou este longo labutar, o homem Sábio não deve ser tentado
pelas vaidades do mundo. Ele deve permanecer fiel e humilde, e
para sempre ter presente o destino daqueles que foram seduzidos
pelos poderes do mal.
Na Ciência, na Bondade, o Iniciado deve ainda e sempre
CONSERVAR SILÊNCIO.

Fulcanelli
Ben olhou para a bacia de pedra aos pés do altar. O elixir vitae
estava ali mesmo à sua frente. A sua busca terminara. Não havia
tempo a perder.
Pôs-se de pé num salto, olhando em redor à procura de algum
recipiente que pudesse usar para levar o elixir a Ruth. Lembrou-se
do seu frasco, e sem pensar duas vezes desenroscou a tampa e verteu
o uísque, salpicando o chão de pedra. O coração martelava-lhe
enquanto mergulhava o frasco na água e o enchia. Acreditaria ele?
Poderia esta substância especial curar realmente?
Gotas do precioso líquido transbordaram da boca do frasco cheio
ao retirá-lo da bacia de pedra. A sua curiosidade dominava-o. Levou
o frasco aos lábios.
O mau gosto quase o fez vomitar. Cuspiu e engasgou-se, limpando
a boca com nojo. Segurando a vela mais próxima, deitou mais água
de volta à bacia. Estava cheia de sedimentos esverdeados.
Ben caiu de joelhos, de cabeça pendida. Acabara. Encontrava-se no
fim da estrada. Falhara.
A súbita explosão no interior da câmara foi como uma faca nos
tímpanos. Um dos leões brancos de pedra abriu-se ao meio e desfez-
se. A bacia estalou e partiu-se em duas. A água estagnada espalhou-
se pela base do altar e expeliu lodo viscoso e esverdeado para o chão.
Saltou a pés juntos em pânico. Antes que pudesse ter a Browning
fora do coldre encontrou-se a olhar fixamente ao longo do cano de
uma pesada Colt automática que avançava para ele vinda das
sombras.
— Surpreendido por me ver, inglês? — arranhou Franco Bozza no
seu rouco sussurro enquanto aparecia à luz tremeluzente. Tinha a
cara selvagem, ensanguentada, uma máscara de ódio puro. — Larga a
arma.
Por debaixo do seu colete à prova de bala a parte superior do
tronco de Bozza ainda lhe doía fortemente do brutal impacto das três
balas de 9 mm. A comprida queda aos trambolhões penhasco abaixo
fora interrompida por uma árvore. Os ramos tinham-lhe ferido a
carne e quase o empalavam. O sangue escorria-lhe de cem cortes e a
face direita fora rasgada da boca à orelha. Mas mal sentira a dor
enquanto subia à pressa o penhasco e atravessava o cume no meio da
violenta tempestade. A sua mente estivera concentrada apenas numa
coisa — o que ia fazer quando voltasse a apanhar Ben Hope. Coisas
que nem sequer as suas mais detestadas vítimas tinham
experienciado.
E agora tinha-o.
Ben olhou-o fixamente durante um segundo, depois deslocou a
mão por cima do peito e fez sair a Browning do coldre. Deixou-a cair
no chão e pontapeou-a para longe, sem nunca tirar os olhos de
Bozza.
— E a Beretta — disse Bozza. — Aquela que me tiraste.
Ben tivera esperanças de que ele se tivesse esquecido daquela.
Sacou lentamente a .380 da cintura e atirou-a.
Os lábios pálidos e finos de Bozza contorceram-se num sorriso
retorcido.
— Óptimo — sussurrou. — E agora aqui estamos nós juntos e
finalmente sós.
— É um grande prazer.
— O prazer será todo meu, asseguro-te — coaxou Bozza. — E
quando estiveres morto eu vou descobrir a tua amiguinha Ryder e
vou divertir-me com ela.
Ben abanou a cabeça.
— Nunca a conseguirás encontrar.
— Ah não? — disse Bozza, com o que era quase uma gargalhada na
voz. Uma mão enluvada de negro foi ao bolso e acenou com a agenda
vermelha de Roberta. — Depois disto vou de férias. — Sorriu. — Para
os Estados Unidos da América.
Uma onda de horror nauseante percorreu Ben quando viu a
agenda. Dissera-lhe para a destruir. Devia estar na mala dela quando
Bozza a raptara.
— Ela vai ser a última a morrer — continuou Bozza, sorrindo para
si próprio. Ben via que ele desfrutava de cada palavra. — Primeiro,
ela vai ver a família a ser lentamente cortada em pedaços à sua
frente. Depois, antes de a matar, vou mostrar-lhe o pequeno troféu
que lhe vou levar. A tua cabeça. E finalmente, voltarei as minhas
atenções para a doutora Ryder. Pois forte é o Senhor que a julgou. —
Bozza sorriu sadicamente e baixou a Colt, apontando ao joelho
esquerdo de Ben. O dedo pressionou o gatilho. Primeiro ia estoirar-
lhe uma rótula, depois a outra. Depois um braço, depois o outro.
Então, quando a sua vítima jazesse indefesa no chão, saía a faca.
Ben fora treinado anos antes nas técnicas de desarmar a curta
distância um homem hostil armado. Era tudo uma questão de
distância, embora fosse uma manobra desesperada as mais das
vezes. Se o oponente estivesse suficientemente próximo era-se
relativamente menos louco em tentar desarmá-lo. Se estivesse
apenas um passo longe de mais, era praticamente impossível mover-
se suficientemente depressa. Só era preciso uma contracção do dedo
e estávamos mortos.
Enquanto Bozza falava, Ben estivera a avaliar a distância entre os
dois. Estava mesmo no limite entre extremo alto risco e loucura
suicida. Sabia que tinha apenas uma ligeira vantagem de reflexo,
meio segundo no máximo. Era uma loucura, mas só tinha uma vida
— havia que lutar por ela.
Levou um décimo de segundo a tomar a decisão. Encontrava-se
prestes a voar para Bozza quando o disparo de uma arma rasgou o ar.
A cara escabrosa de Bozza congelou numa expressão de surpresa,
com a boca a abrir-se num "O" silencioso enquanto deixava cair a
arma com um estrondo e esgravatava desesperadamente na ferida de
saída a espirrar-lhe sangue na garganta.
A figura nas sombras ergueu novamente a pistola e disparou um
segundo ensurdecedor tiro que ribombou pela câmara. O alto da
cabeça de Bozza explodiu num espalhar de sangue e miolos. Durante
um momento ficou ali como se pendurado do espaço, os olhos
procurando Ben enquanto a luz se apagava neles.
Depois caiu abruptamente para o chão. O seu corpo produziu
alguns espasmos, arqueando-se e retorcendo-se, enquanto a vida o
abandonava, e depois ficou inerte.
Ben fixava incredulamente a figura na escuridão, uma aparição
quase fantasmagórica, que avançava lentamente na sua direcção por
entre as sombras dos pilares. Era uma mulher. No escuro, Ben não
conseguia distinguir a cara dela.
— És tu, Roberta?
Mas à medida que a mulher se aproximava da luz, Ben viu que não
era. A antiquada pistola Mauser C96 ainda se encontrava apontada
ao cadáver de Bozza, com um fino fio de fumo a sair encaracolado do
cano comprido e afunilado. A precaução não era necessária. Desta
vez, Franco Bozza não se levantaria de novo.
A luz dourada da vela banhava a face da mulher à medida que esta
se aproximava. Reconheceu-a com um choque. Era a mulher cega.
E já não era cega. Os óculos escuros tinham desaparecido e ela
olhava-o a direito com uma intensidade de falcão. Um pequeno e
enigmático sorriso curvava-lhe os cantos da boca.
— Quem é você? — perguntou Ben, estupefacto.
Ela ficou em silêncio. Ben olhou para baixo e viu que ela lhe
apontava a Mauser directamente ao coração.
Capítulo 62
— Coloque as mãos na cabeça e ponha-se de joelhos — ordenou
ela. Ben viu pela expressão do olhar e pelo inflexível cano da arma
que ela falava a sério. Ela estava demasiado longe para arriscar fosse
o que fosse. Obedeceu. Ela ergueu uma lanterna brilhante e fez
incidir o foco na cara dele.
— Você disse-me que estava interessado em casas antigas — disse
ela enquanto ele ajoelhava indefeso, pestanejando com a forte luz
branca. — Mas parece que também estava interessado noutras coisas.
— Não estou aqui para a roubar — disse ele firmemente.
— Força a entrada na minha casa, traz uma arma, entra
furtivamente na minha capela privada, e no entanto está a dizer-me
que não se encontra aqui para me roubar?
— Dirigiu o feixe da lanterna para o corpo de Bozza. — Quem é ele?
Um seu amigo?
— Parece-lhe que sim?
Ela encolheu os ombros.
— Os ladrões podem discutir. O que está ali dentro? — Apontou a
luz para o saco de Ben, o qual ficara junto ao altar. — Esvazie-o aí no
chão. Mova-se devagar para que eu lhe possa ver as mãos.
Ben virou cuidadosamente o saco de pernas para o ar e ela dirigiu
a lanterna para ver o conteúdo que se espalhava no chão de pedra. O
foco de luz branca pousou no bloco-notas de Rheinfeld e no Diário de
Fulcanelli.
— Atire-me esses dois para cá — ordenou ela, enfiando a lanterna
debaixo do braço. Ben pegou nos objectos e atirou-lhos. Mantendo a
arma apontada a Ben, folheou-os, meneando pensativamente a
cabeça para si própria. Depois de uma pausa pousou-os gentilmente
no chão e baixou a arma para o flanco. — Peço desculpa — disse num
tom mais suave. — Mas tinha de ter a certeza.
— Quem é você? — repetiu ele.
— O meu nome é Antonia Branzanti — disse ela. — Sou neta do
Fulcanelli. — Ela cortou-lhe a resposta com um gesto. — Podemos
falar depois. Primeiro temos de nos livrar deste lixo. — Apontou para
o cadáver de Bozza, onde a poça de sangue se misturava com a
viscosa água verde estagnada do altar quebrado.
Iluminando o caminho à sua frente, Antonia conduziu-o por entre
as colunas até uma passagem onde uma enorme rocha circular, como
uma pedra de mó de um metro e oitenta, e parou na extremidade
junto à parede.
— Esta passagem leva à encosta da montanha. Abra-a.
Grunhindo com o esforço, Ben rolou a pedra para trás através de
um sulco cortado no chão de pedra. Enquanto girava para trás sobre
si mesma com uma chiadeira, o ar frio da noite penetrou
rapidamente na câmara. A rocha cobria a entrada de um túnel curto,
com cerca de cinco metros de fundo, e através da boca da caverna
Ben via um semicírculo irregular de céu nocturno. A tempestade
acabara, e a lua cheia brilhava sobre a paisagem rochosa. Por baixo
deles era uma queda estonteante para uma profunda ravina.
— Nunca o encontrarão ali em baixo — disse Antonia, apontando
para baixo. Ben regressou para onde jazia o corpo de Bozza. Agarrou
o pesado cadáver por debaixo dos braços e arrastou-o para o buraco,
deixando um rasto de sangue aguado no chão de pedra. Deitou o
corpo no ventoso túnel, e rolou-o com o pé até este ultrapassar a
borda. Observou-o a tombar pelo íngreme penhasco, uma forma
negra aos trambolhões contra a rocha iluminada pelo luar, e a
desaparecer na escura ravina arborizada centenas de metros abaixo.
— Agora vamos — disse Antonia.
A derrota pesava duramente sobre Ben enquanto a seguia pelo
túnel até à casa. Portanto o elixir acabara por não ter qualquer valor.
Afinal era apenas uma lenda. Agora teria de regressar para Fairfax
de mãos vazias, olhar o velho nos olhos e dizer-lhe que a criança teria
de morrer.
Chegaram à casa. Ela fechou a lareira atrás deles e levou-o para a
cozinha, onde Ben lavou algum do sangue das mãos e da cara.
— Agora vou-me embora — disse ele sombriamente, pousando a
toalha.
— Não há nada que me queira perguntar?
Ben suspirou.
— Para quê? Acabou.
— Você é o homem que o meu avô disse que viria cá um dia. Seguiu
o caminho oculto. Encontrou o tesouro.
— Não vim cá pelo ouro — retorquiu ele, com as lágrimas a
queimarem-lhe os olhos. — Não tem a ver com isso.
— O ouro não é o único tesouro — disse ela, erguendo a cabeça
com um sorriso curioso. Foi até a um armário. Numa prateleira do
interior encontravam-se garrafas de azeite e vinagre, jarros de ervas
secas e preparados, pimenta e especiarias. Ela separou-os e lá de trás
retirou uma pequena e simples caixa de louça que trouxe com
cuidado e pousou na mesa. Levantou a tampa. No interior da caixa
encontrava-se uma pequena garrafa de vidro. Ela agitou levemente a
garrafa e o líquido claro no interior apanhou a luz e cintilou. Antonia
virou-se para Ben. — É isto que procurava?
Ben estendeu a mão.
— É o...?
— Cuidado. É a única amostra que o meu avô preparou.
Ben caiu numa cadeira, sentindo-se subitamente tão esgotado e
gasto como estava aliviado. Antonia sentou-se à sua frente, pousou
as mãos na mesa e olhou amigavelmente para ele.
— Agora já quer ficar mais um pouco e ouvir a minha história?
Falaram. Ben contou-lhe a sua missão e os acontecimentos que o
tinham conduzido à Casa do Corvo. Depois foi a vez de ele escutar
enquanto ela continuava a história contada no Diário de Fulcanelli.
— Depois de o Daquin ter traído a confiança do meu avô, as coisas
aconteceram depressa. Os nazis assaltaram a casa e viraram o
laboratório do avesso para encontrar os segredos. A minha avó
surpreendeu-os, e eles mataram-na. — Antonia suspirou. — Depois
disso, o meu avô fugiu de Paris e veio para aqui com a minha mãe.
— O que aconteceu ao Daquin?
— Aquele rapaz causou tantos estragos. — Antonia abanou
tristemente a cabeça. — Suponho que ele pensava que estava a agir
correctamente. Mas quando começou a ver o género de pessoas a
quem entregara os ensinamentos do meu avô, não conseguiu viver
consigo mesmo. Tal como Judas, pôs uma corda em redor do
pescoço.
— Qual era a ligação entre Fulcanelli e o arquitecto? — perguntou
Ben. — A Casa do Corvo?
— O Corbu e o meu avô tinham um laço especial entre eles —
explicou ela. — Eram ambos descendentes directos dos cátaros.
Quando o Fulcanelli descobriu os artefactos perdidos dos cátaros,
isso levou-o a localizar o lugar do templo escondido onde os tesouros
tinham sido guardados. A casa foi construída no ano seguinte ao da
sua descoberta, para prestar homenagem ao templo e para guardar
os tesouros no seu interior. Quem iria adivinhar que uma casa como
esta marcava a entrada de um santuário sagrado?
— O Fulcanelli viveu aqui consigo e com a sua mãe?
— A minha mãe foi enviada para a Suíça para estudar. O meu avô
permaneceu aqui até 1930, quando a minha mãe regressou com o
marido. Por essa altura, o meu avô sabia que os seus inimigos lhe
haviam perdido o rasto. A minha mãe tomou então a seu cargo o
papel de guardiã da casa e do seu segredo. O Fulcanelli foi-se
embora. Desapareceu.
— Antonia sorriu melancolicamente. — Por isso é que nunca o
cheguei a conhecer. Ele era uma alma inquieta, que acreditava que
havia sempre algo mais a aprender.
Penso que ele pode ter ido para o Egipto, para explorar o lugar do
nascimento da alquimia.
— Ele já devia ser idoso por essa altura.
— Ia a meio dos oitenta, mas as pessoas tomavam-no por um
homem nos sessenta. O retrato que viu foi pintado pouco antes de ele
partir. Alguns anos depois, em 1940, nasci eu.
Ben ergueu as sobrancelhas. Ela parecia muito mais nova que a
idade que tinha.
Antonia reparou na expressão dele e produziu um sorriso
enigmático.
— Quando fiquei suficientemente crescida tornei-me a guardiã da
casa — prosseguiu ela. — A minha mãe mudou-se para Nice. Ela está
agora no final dos noventa, e continua em forma. — Fez uma pausa.
— Quanto ao meu avô, nunca mais tivemos notícias dele. Penso
que teve sempre receio de que os seus inimigos o pudessem apanhar,
e foi por isso que nunca nos contactou ou revelou a identidade a
quem quer que fosse.
— Então não sabe quando morreu ele?
Outro pequeno sorriso misterioso ergueu-lhe os cantos da boca.
— Porque é que tem tanta certeza de que ele morreu? Talvez ele
ainda ande por aí, algures.
— Acredita que o elixir da vida o conservaria vivo estes anos todos?
— A ciência moderna não tem todas as respostas, Ben. Eles ainda
só compreendem uma minúscula fracção do universo. — Antonia
fixou-o com o seu olhar penetrante. -
Você correu tantos riscos para encontrar o elixir. Não acredita no
seu poder?
Ben hesitou.
— Não sei. Eu quero acreditar. Talvez precise de acreditar. — Ben
tirou do saco o Diário de Fulcanelli, o bloco-notas de Rheinfeld e o
desenho da lâmina da adaga e pousou-os em cima da mesa. — Seja
como for, estas coisas são agora suas. Este é o seu lugar por direito.
— Suspirou. — E então, o que acontece agora?
Antonia franziu o sobrolho.
— Que quer dizer?
— Posso levar o elixir comigo? A guardiã deixa o que busca levar a
garrafa? Ou está o próximo projéctil dessa Mauser reservado para
mim?
Os olhos dela piscaram de regozijo e Ben via a semelhança familiar
com o retrato de Fulcanelli. Ela pousou a mão na antiga e elegante
pistola à sua frente.
— Era a arma do meu avô. Ele deixou-a à minha mãe, para o caso
de os nossos inimigos alguma vez nos encontrarem aqui. Mas não é
para si, Ben. O meu avô acreditava que um dia um verdadeiro
iniciado decifraria as pistas que ele deixara, e viria descobrir o
segredo. Alguém puro de coração que respeitaria o seu poder, nunca
abusando dele ou publicitando-o.
— É um grande risco a correr comigo — disse ele. — Como é que
pode ter a certeza de que eu sou assim tão puro de coração?
Antonia olhou ternamente para Ben.
— Você só pensa na criança. Consigo ver isso nos seus olhos.

Roma

Uma procissão de carros da polícia não identificados seguia o seu


caminho por entre os generosos jardins da villa renascentista e
estacionaram num ordeiro semicírculo no pátio junto à base das
grandes colunas brancas.
Da sua janela, lá bem no alto na magnificente cúpula, o arcebispo
Massimiliano Usberti observava-os a sair dos carros, a passar pelos
seus criados e a subir os degraus para a casa. As caras eram severas e
oficiais. Estivera à espera deles.
Graças a um homem, Benedict Hope, a Gladius Domini fora
duramente atingida. Apesar do seu fervente ódio, Usberti tinha de
admirar o homem. Não acreditara que pudesse ser tão facilmente
ultrapassado, mas de alguma forma Hope fizera-o. Tinham levado a
melhor sobre Usberti, e ele estava impressionado.
O ataque fora rápido e decisivo. Primeiro a detenção simultânea do
seu principal agente francês Saul e o desastre em Montpellier. Depois
a altamente coordenada Interpol varrera a sua gente através da
Europa. Muitos dos seus agentes estavam sob interrogatório. Alguns,
como Fabrizio Severini, tinham passado à clandestinidade. Outros
haviam cedido sob os interrogatórios da polícia. Como uma fila de
pedras de dominó em queda, como um rasto de pólvora a arder de
informação, a investigação conduzira com alarmante velocidade ao
topo, direita a ele.
Ouvia vozes nas escadas que levavam à cúpula. Estariam ali a
qualquer momento. Provavelmente pensavam que o tinham
apanhado.
Idiotas. Não faziam ideia de com quem é que estavam a lidar. Um
homem como Massimiliano Usberti, com os contactos e a influência
que eles nem sequer conseguiriam imaginar, não ia cair facilmente.
Encontraria uma saída desta confusão, e depois regressaria e tomaria
a sua vingança.
A porta abriu-se de rompante do outro lado da sala, e Usberti
voltou-se calmamente da janela para os receber.
Capítulo 63
Ben ligara a Fairfax para dizer que a missão fora completada e que
ia regressar. Tinha algumas horas antes de o jacto particular o
recolher no aeroporto perto de ontpellier.
O padre Pascal cuidava da sua pequena vinha quando ouviu o
portão chiar e olhou para ver Ben a vir na sua direcção com um largo
sorriso. O pároco abraçou-o calorosamente.
— Benedict, eu sabia que viria ver-me outra vez.
— Não tenho muito tempo, padre. Só queria agradecer-lhe
novamente a sua ajuda.
Os olhos de Pascal alargaram-se de preocupação.
— E a Roberta? Está...
— De volta aos Estados Unidos da América e em segurança.
O pároco deixou escapar um suspiro.
— Graças a Deus que ela está bem — exalou. — E então, o seu
trabalho aqui está feito?
— Está, vou regressar esta tarde.
— Bem, então é o adeus, meu caro amigo. Cuide de si, Benedict.
Que o Senhor esteja consigo e o proteja. Vou sentir a sua falta... oh,
que parvoíce, quase me esquecia.
Tenho uma mensagem para si.
Ben sentia-se consciente de si próprio enquanto a enfermeira o
introduzia no quarto particular. A guarda policial fora levantada após
a sua chamada para Luc Simon nessa manhã.
Anna encontrava-se sentada na cama, lendo um livro. Por trás
dela, a luz do Sol entrava pela janela. Anna estava rodeada por vasos
de rosas amarelas, brancas e vermelhas que enchiam o quarto com
um perfume doce. Ela olhou para cima quando Ben entrou, e a cara
abriu-se-lhe num sorriso. A face direita encontrava-se coberta com
uma grande ligadura de gaze.
— É bom vê-la de novo — disse ele. Ben tinha esperanças de que
ela não notasse o nervosismo na sua voz.
— Acordei hoje de manhã e dei com todas estas bonitas flores.
Muito obrigada.
— Era o mínimo que podia fazer — disse ele. Ben olhou
desconfortavelmente para as nódoas negras sarapintadas em volta do
olho e fronte. — Anna, lamento imenso o que lhe aconteceu. E o seu
amigo...
Ela pousou-lhe a mão no braço, e ele baixou a cabeça.
— Não foi por sua culpa, Ben — disse ela suavemente. — Se não
tivesse aparecido, ele ia assassinar-me. Você salvou-me a vida.
— Se servir de consolação, aquele homem está agora morto.
Ela não respondeu.
— Quais são os seus planos, Anna?
Ela suspirou.
— Acho que já vi o suficiente de França. É tempo de voltar para
Florença. Talvez consiga o meu antigo emprego na universidade de
volta. — Anna deu uma risada. -
E talvez um dia... quem sabe?... eu acabe o meu livro.
— Vou ficar à espera — disse ele. Ben consultou o relógio. — Tenho
de ir. Está um avião à minha espera.
— Vai regressar a casa? Chegou a encontrar a coisa que procurava?
— Não sei o que encontrei.
Ela estendeu a mão e agarrou a dele.
— Era um mapa, não era? — exalou. — O diagrama? Ocorreu-me,
enquanto estava aqui deitada. Fui tão estúpida em não ter pensado
nisso...
Ben sentou-se na borda da cama e apertou-lhe a mão.
— Sim, era um mapa — disse ele. — Mas siga o meu conselho e
esqueça tudo o que sabe acerca deste assunto. Atrai as pessoas
erradas.
Anna sorriu.
— Eu reparei.
Ficaram sentados juntos e em silêncio na quietude do quarto cheio
de flores durante mais algum tempo, e então ela olhou-o
interrogativamente com os olhos amendoados.
— Costuma ir a Itália, Ben?
— De tempos a tempos.
Gentil e insistentemente, ela puxou-lhe a mão para si, e ele
inclinou-se. Anna endireitou-se na cama e pousou os lábios na face
dele. Eram quentes e suaves, e o toque dela permaneceu durante
alguns segundos.
— Se alguma vez for dar a Florença — murmurou-lhe ela ao ouvido
-, deve ligar-me.
Capítulo 64
Três horas depois, Ben encontrava-se sentado no banco traseiro do
Bentley Arnage pela segunda vez a caminho da residência Fairfax. O
crepúsculo caía enquanto percorriam as veredas cobertas de folhas
por entre filas de faias e plátanos dourados, e passaram através dos
portões da propriedade de Fairfax. O Bentley passou pelos pequenos
chalés de tijolo vermelho que Ben recordava da sua primeira visita.
Um pouco mais à frente na estrada particular, o carro começou a
puxar para a direita e Ben sentia um leve solavanco no eixo dianteiro.
O motorista praguejou silenciosamente para si próprio, parou o carro
e saiu para ver o que se passava. Enfiou de novo a cabeça pela porta
aberta.
— Peço desculpa, senhor. Um furo.
Ben saiu enquanto o motorista ia buscar as ferramentas à traseira
do carro e soltava o pneu sobresselente.
— Precisa de ajuda? — perguntou.
— Não, senhor, leva apenas alguns minutos — disse o motorista.
Quando começou a tirar os parafusos à roda, a porta de um dos
chalés mais próximos abriu-se e um homem idoso de boné veio a
sorrir pela berma.
— Deve ter apanhado um prego ou assim — disse ele, tirando um
cachimbo da boca. Voltou-se para Ben. — Quer entrar por instantes
enquanto o Jim muda o pneu? As noites agora ficam frescas.
— Obrigado, mas acho que vou fumar um cigarro e olhar para os
cavalos.
O homem idoso caminhou com ele na direcção das cavalariças.
— Gosta de cavalos, não é, senhor? — estendeu a mão. — Herbie
Greenwood, chefe dos estábulos para o senhor Fairfax.
— Prazer em conhecê-lo, Herbie. — Ben encostou-se à vedação das
cavalariças e acendeu um cigarro.
Herbie mordiscou na boquilha do seu cachimbo enquanto dois
cavalos, um alazão e um baio escuro, chegavam a trotar através da
superfície revolvida. Fizeram a curva num arco paralelo em direcção
à vedação, abrandaram e aproximaram-se do homem, abanando as
cabeças e soprando pelas narinas. Herbie fez-lhes festas enquanto
eles lhe tocavam afectuosamente com o focinho.
— Está a ver este aqui? — apontou para o baio. — Três vezes
vencedor do Derby, Black Prince. Agora anda na erva, tal como eu
em breve. Não andas, rapaz? — Acariciou o pescoço do cavalo
enquanto este lhe cheirava o ombro.
— É uma beleza — disse Ben, correndo o olhar pelos músculos
vibrantes do cavalo. Estendeu a palma da mão e o Black Prince
encostou o nariz suave e aveludado.
— Vinte e sete anos e ainda galopa por aí como um jovem potro —
riu-se Herbie. — Lembro-me do dia em que ele nasceu. Eles acharam
que ele não se ia safar, mas ele tem-se safado bem, o velhote.
Na cavalariça ao lado, Ben via um pequeno pónei cinzento
pastando satisfeito num pedaço de relva, e isso fê-lo pensar na
fotografia da pequena Ruth que Fairfax lhe mostrara.
— Pergunto-me se a Ruth voltará a poder montar? — pensou em
voz alta.
Alguns minutos depois, o Bentley derrapou na gravilha até parar
em frente à mansão, e Ben foi recebido por um assistente nos
degraus.
— O senhor Fairfax vai recebê-lo na biblioteca dentro de meia
hora, senhor. Estou aqui para o levar aos seus aposentos. —
Caminharam pelo átrio em mármore, com as passadas a ecoar no
tecto alto. O assistente conduziu-o escadaria acima até ao andar
superior da ala oeste. Depois de se refrescar, Ben desceu meia hora
depois e foi introduzido nas galerias da biblioteca.
Fairfax atravessou apressadamente a sala, estendendo a mão.
— Senhor Hope, este é para mim um momento maravilhoso.
— Como está a Ruth?
— Não podia ter vindo em melhor altura — retorquiu Fairfax.
— O estado dela tem vindo a declinar regularmente, desde que
falámos pela última vez. Tem o manuscrito? — Estendeu a mão, na
expectativa.
— O manuscrito Fulcanelli não lhe serve para nada, senhor Fairfax
— disse Ben.
Uma onda de fúria correu através da face avermelhada de Fairfax.
— O quê?
Ben sorriu, e procurou no interior do blusão.
— Em vez disso trouxe-lhe isto. — Tirou algo e deu-o a Fairfax.
Fairfax olhou fixamente para o frasco amolgado na sua mão.
— Pu-lo aí para estar mais seguro — explicou Ben.
A compreensão espalhou-se na face de Fairfax.
— O elixir?
— Preparado pelo próprio Fulcanelli. A coisa a sério, senhor
Fairfax. É disto que andava à procura, presumo eu?
Havia lágrimas nos olhos de Fairfax enquanto pegava no precioso
objecto.
— Não consigo agradecer-lhe o suficiente por isto. Vou levá-lo
imediatamente aos aposentos da Ruth. A minha filha Caroline está a
tomar conta dela noite e dia. -
Fez uma pausa triste. — E depois, senhor Hope, confio que se junte
a mim para o jantar?
— Então passou algumas dificuldades com isto — dizia Fairfax. Os
dois encontravam-se sentados à comprida e lustrosa mesa de
nogueira na sala de jantar de Fairfax. Fairfax sentava-se à cabeceira
da mesa, e por detrás dele uma fagulha estalou na lareira. Num dos
lados da lareira erguia-se um cavaleiro alto de armadura,
empunhando uma espada cintilante.
— Eu sabia que iria ser uma tarefa difícil — continuou Fairfax.
— Mas você mais do que cumpriu as minhas expectativas. Ergo-lhe
o meu copo, senhor Hope. — O velho tinha um ar triunfante. — Você
não faz ideia do que fez por mim.
— Pela Ruth — disse Ben, erguendo o copo.
— Pela Ruth.
Ben observou-o.
— Não chegou a dizer-me: como é que foi que ouviu falar do
Fulcanelli, antes de mais?
— A busca do elixir tem sido uma preocupação minha desde há
muito — retorquiu Fairfax. — Sou um estudante do esotérico já há
muitos anos. Li todos os livros sobre o assunto, tentei seguir todas as
pistas. Mas as minhas investigações não me levaram a lado nenhum.
Já quase desistira da esperança quando um encontro casual com um
velho livreiro em Praga me conduziu à descoberta do nome
Fulcanelli. Acabei por compreender que este misterioso mestre
alquimista era um dos poucos homens que descobrira o segredo do
elixir vitae.
Ben escutava, saboreando o vinho.
Fairfax prosseguiu.
— A princípio pensei que o segredo do Fulcanelli seria
razoavelmente simples de descobrir. Mas provou ser muito mais
difícil do que eu antecipara. Os homens que contratei para o trazer
ou fugiram com o meu dinheiro, ou acabaram mortos. Tornou-se
claro para mim que havia forças perigosas determinadas em
dissuadir-me da minha busca. Compreendi que os investigadores
privados ou os pesquisadores não tinham qualquer utilidade para
mim. Eu precisava de um homem com muito maiores capacidades.
Depois os meus investigadores conduziram-me a si, senhor Hope,
e eu soube que tinha encontrado o melhor homem para o serviço.
Ben sorriu.
— Lisonjeia-me.
Os pratos das entradas foram levados e os criados trouxeram uma
panóplia de antigos pratos de prata. A tampa do prato principal foi
levantada para revelar uma cintilante peça de rosbife. O criado-chefe
trinchou fatias delicadas com uma comprida faca de trinchar. Foi
servido mais vinho.
— Não seja modesto, Benedict... Posso chamar-lhe Benedict? -
Fairfax fez uma pausa, mastigando um pedaço de bife tenro. — Para
voltar ao que eu estava a dizer, eu examinei a sua história de vida
com meticuloso pormenor. Quanto mais coisas descobria sobre si,
mais compreendia que você era o ideal para os meus propósitos. As
suas actividades no Médio Oriente. Operações especiais
antiterroristas no Afeganistão. A sua reputação de fria eficiência e
inflexível aplicação em tarefas que seriam consideravelmente duras
de mais para a maior parte dos homens. Mais tarde, a sua completa
dedicação ao seu novo papel de salvar crianças perdidas ou raptadas,
e a impiedosa punição dos homens maus que maltratavam os
inocentes. Um homem incorruptível, com abastança independente.
Você não tentaria roubar-me, e não seria dissuadido pelos perigos da
missão. Você era definitivamente o homem de que eu necessitava. Se
tivesse recusado a minha oferta, haveria pouco que eu pudesse fazer
para que mudasse de ideias.
— Você sabe porque é que eu aceitei o trabalho — disse Ben. — Foi
apenas por causa da sua neta Ruth. — Fez uma pausa. — Mas gostava
que me tivesse dito mais acerca do factor risco. Essa informação
talvez pudesse ter evitado muitos problemas, se eu estivesse na sua
posse.
— Eu tinha fé nas suas capacidades. — Fairfax sorriu. — Também
achei que, se lhe contasse a verdade toda, você me rejeitaria a oferta.
Era importante para mim encontrar uma forma de o persuadir.
— A verdade toda? Persuadir-me? Onde é que quer chegar,
Fairfax?
— Deixe-me explicar — retorquiu Fairfax, recostando-se na
cadeira.
— Um homem na minha posição cedo aprende na carreira que os
homens podem ser... digamos... influenciados. Todos os homens têm
uma fraqueza, Benedict. Todos temos alguma coisa nas nossas vidas,
no nosso passado. Um esqueleto no roupeiro, um segredo. Assim que
se sabe quais são esses segredos, podem ser explorados. Um homem
com um passado vergonhoso ou um vício oculto é fácil de dobrar à
nossa vontade. Um homem que cometeu um crime é ainda mais fácil
de influenciar. Mas você, Benedict... você era diferente. — Fairfax
serviu-se a si próprio de mais vinho. — Não consegui encontrar nada
no seu currículo que pudesse usar para o persuadir a aceitar a minha
oferta, caso recusasse a princípio. Fiquei infeliz com essa situação.
— Fairfax sorriu friamente. — Mas depois os meus investigadores
encontraram um pormenor interessante da sua vida. Reconheci
imediatamente a sua importância.
— Continue.
— Você é um homem muito motivado, Benedict — continuou
Fairfax. — E eu sei porquê. Vim a compreender o que o motiva no
seu trabalho... é também a razão pela qual bebe. Você está dominado
por demónios de culpa. Eu sabia que você nunca recusaria ajudar-me
na minha busca se pensasse que estava a salvar a Ruth. Porque a
Ruth é muito querida do seu coração, não é?
Ben franziu o sobrolho.
— Se pensasse que estava a salvar a Ruth?
Fairfax terminou o copo e serviu outro, com uma expressão de
divertimento a cruzar-lhe a cara.
— Benedict — disse pensativamente. — É um nome com fortes
conotações religiosas. Parto do princípio de que a sua família era
devotamente cristã?
Ben ficou em silêncio.
— Eu pensei apenas... para uns pais darem aos seus dois filhos os
nomes de Benedict e Ruth. Uma escolha biblicamente orientada, não
me diria? Ruth Hope... um nome tristemente irónico. Porque não
havia esperança(1) para ela, pois não, Benedict?
— Como é que descobriu isso da minha irmã? Não faz parte do
meu currículo profissional.
— Oh, quando se tem dinheiro, consegue-se saber tudo, meu caro e
jovem amigo. Eu achei que era interessante que tivesse escolhido o
trabalho que escolheu, Benedict — prosseguiu Fairfax. — Não um
detective, não um homem que procura informações ou propriedade
roubada... mas um homem que procura pessoas perdidas,
particularmente crianças perdidas. É óbvio que aquilo que você
verdadeiramente procurava era expiar a sua culpa por ter perdido a
sua irmã. Você nunca recuperou do facto de que a sua negligência lhe
causou a morte... e talvez sofrimento que foi pior do que a morte. Os
traficantes de escravos não são conhecidos pelos seus modos
benevolentes.
Violação, tortura, quem sabe o que lhe podem ter feito?
— Você tem andado atarefado, não tem, Fairfax?
Fairfax sorriu.
— Eu ando sempre atarefado. Eu compreendi que você nunca
recusaria uma missão para salvar a pobre e doente criança com o
mesmo nome e a mesma idade da sua irmã perdida.
E tinha razão. Foi a história da minha neta que o persuadiu a
ajudar-me.
— Interessante escolha de palavras, Fairfax. História?

(1) Em inglês, hope. (N. da T.)

Fairfax deu uma risada.


— Como queira colocar a questão. Uma montagem. Uma fraude, se
quiser que eu seja completamente honesto. Não existe qualquer
Ruth. Nenhuma menina moribunda. E, receio-o, nenhuma redenção
para si, Benedict.
Fairfax pôs-se de pé e dirigiu-se a um aparador. Levantou a tampa
de um grande guarda-jóias e retirou um pequeno cálice de ouro.
— Não, não há qualquer rapariga a morrer — repetiu. — Apenas
um velho que persegue uma coisa acima de todas as outras. — Olhou
fascinadamente para o cálice de forma sonhadora. — Você não faz
ideia do que se sente, Benedict, quando se aproxima o fim de uma
vida como a minha. Alcancei tantas coisas grandiosas e criei tanta
riqueza e poder. Não conseguia suportar a ideia de deixar o meu
império nas mãos de homens menores... homens que o
desbaratariam e destruiriam. Teria ido para a sepultura como um
homem muito infeliz e frustrado. Ergueu o cálice como se estivesse a
propor um brinde. — Mas agora acabaram as minhas preocupações,
graças a si. Tornar-me-ei o homem mais rico e poderoso da história,
com todo o tempo do mundo para realizar as minhas ambições.
A porta abriu-se e Alexander Villiers entrou na sala. Fairfax
relanceou um olhar de cumplicidade pelo seu assistente enquanto
este se aproximava. Os lábios de Villiers abriram-se num largo
sorriso enquanto sacava de um revólver Taurus .357 de cano curto do
bolso e o apontava a Ben.
Fairfax riu. Levou o cálice aos lábios.
— Gostava de poder beber à sua saúde, Benedict. Mas receio que
seja o fim da linha para si. Villiers, mata-o.
Capítulo 65
Villiers apontou o revólver à cabeça de Ben. Fairfax fechou os
olhos e bebeu gananciosamente do cálice de ouro.
— Antes de me matar, há uma coisa que deverá saber — disse Ben.
— O que acabou de beber não é o elixir da vida. É água da torneira
da sua própria casa de banho.
Fairfax baixou o cálice. Um fio de água correu-lhe para o queixo. A
expressão de arrebatamento na face esvaziou-se.
— O que disse? — perguntou lentamente.
— Você ouviu-me — disse Ben. — Devo admitir que me enganou
bem. Tem razão a meu respeito: eu fui cego às suas mentiras. Era
brilhante, Fairfax. E quase que funcionava.
Se não tivesse sido o pneu furado e o ter conhecido o seu capataz
dos estábulos, você estaria aí com o verdadeiro elixir.
— Está a falar do quê? — exigiu saber Fairfax numa voz
estrangulada.
Villiers baixara a arma. A sua face contorcia-se em pensamentos.
— O Herbie Greenwood já trabalha há trinta e cinco anos na sua
propriedade — prosseguiu Ben. — Mas nunca ouviu falar de
nenhuma Ruth. Você nem sequer teve filhos, airfax, quanto mais
netos. A sua mulher morreu sem dar à luz. Nunca houve aqui
nenhuma menina.
— O que você fez ao elixir verdadeiro? — gritou Fairfax. Atirou o
cálice de ouro ao chão. Este caiu com um baque surdo e rolou pelo
chão.
Ben meteu a mão no bolso e retirou a pequena garrafa de vidro que
Antonia Branzanti lhe dera.
— Aqui está ele — disse. E antes que o conseguissem impedir,
deslocou a mão para trás e atirou a garrafa para a lareira. Esta
partiu-se em mil pedaços contra a grelha de ferro, e as chamas
ergueram-se por instantes enquanto o conservante a álcool da
mistura ardia.
— Como é que se vai safar desta, Fairfax? — perguntou Ben,
olhando-o nos olhos.
Fairfax voltou-se, pálido, para Villiers.
— Leve-o e prenda-o — ordenou com a voz gelada, mal contendo a
fúria. — Por Deus, Hope, você vai falar.
Villiers hesitou.
— Villiers, ouviu o que eu disse? — trovejou Fairfax, com a face a
passar de branca a vermelha.
Então Villiers ergueu novamente o revólver. Virou-se para o seu
patrão e apontou-lhe a arma.
— Villiers, o que está a fazer? Endoideceu? — Fairfax recuou,
acobardando-se.
— Ele não endoideceu, Fairfax — disse Ben. — Ele é um espião.
Trabalha para a Gladius Domini. Não é, Villiers? É você a toupeira.
Você tem relatado todos os movimentos que eu fiz ao seu patrão
Usberti.
Fairfax recuara até à lareira, com as chamas a rugir e a estalar por
detrás. Os olhos suplicavam, e tinha as calças molhadas de urina.
— Pago-lhe o que quiser — lamuriou. — O que quiser. Vá lá,
Villiers, vamos trabalhar juntos. Não dispare.
— Eu já não trabalho para si, Fairfax — escarneceu Villiers. — Eu
trabalho para Deus. — Villiers premiu o gatilho. O ladrar alto da .357
Magnum afogou o grito de airfax. O velho agarrou-se à roupa
enquanto uma mancha vermelho-escura começava a espalhar-se
rapidamente através da camisa branca. Cambaleou, agarrou-se a
uma cortina e fê-la cair.
Villiers atingiu-o de novo. A cabeça de Fairfax saltou para trás,
com um pequeno buraco redondo entre os olhos. O sangue salpicou a
parede. Os joelhos cederam e ele deslizou sem vida para o chão,
ainda agarrado à cortina. A cortina caiu com ele, uma das
extremidades no fogo. As chamas encaracoladas foram-na comendo
gananciosamente.
Antes que Ben conseguisse saltar a mesa de jantar, Villiers rodara
e apontava-lhe a arma do outro lado da sala.
— Pare aí mesmo.
Ben rodeou a mesa e dirigiu-se resolutamente na direcção de
Villiers, observando as suas reacções. Ben via que o homem estava
nervoso, suando e respirando mais fundo e mais depressa do que o
habitual. Provavelmente nunca matara ninguém anteriormente, e
encontrava-se sozinho numa situação complicada. Não previra esta
reviravolta dos acontecimentos, e a sua organização estava desfeita
aos bocados sem qualquer apoio para lhe oferecer. Mas um homem
nervoso podia ser tão mortal como um confiante.
Talvez mais ainda.
Villiers ficou tenso e apontou a arma à cara de Ben.
— Mantenha-se afastado — silvou. — Eu disparo.
— Força, mate-me — disse Ben calmamente. Continuou a andar.
— Mas nesse caso é melhor começar a fugir. Porque quando o seu
chefe sair da prisão vai à sua procura e vai mandar torturá-lo de
maneiras que você nem imagina por lhe ter feito perder o seu
prémio. Mate-me, e mais valia que se matasse a si próprio.
As chamas tinham alastrado da cortina para o tapete. As calças de
Fairfax ardiam. Um cheiro peganhento a fumo e carne queimada
encheu a sala. O fogo subiu por um dos lados do sofá, ganhando
rapidamente o controlo dos estofos, lambendo e estalando.
Villiers recuara para perto das chamas a alastrar. A mão que
empunhava a arma tremia.
— Só há um problema — prosseguiu Ben. Podia sentir a raiva a
crescer no seu íntimo como uma luz fria e branca. Olhou duramente
para Villiers enquanto avançava resolutamente na sua direcção. —
Você não consegue levar-me vivo, sozinho não. Vai ter de puxar esse
gatilho, porque se não o fizer eu próprio o mato, neste preciso
momento. De qualquer das formas, você é um homem morto.
Villiers comprimiu o dedo no gatilho, com o suor a escorrer-lhe
pela face. O cão do revólver deslocou-se para trás. Ben conseguia ver
o projéctil reforçado de ponta oca na câmara a rodar para a posição
de disparo, pronto para alinhar com a culatra quando o cão viesse
abaixo para accionar o fulminante e provocar a ignição do cartucho
que lhe abriria um buraco no crânio.
Mas por esta altura tinha Villiers mesmo onde o queria, próximo e
incapaz de recuar mais. Desferiu uma repentina pancada em corte
que apanhou o pulso do homem. Villiers gritou de dor e o .357 voou
para o fogo. Ben acompanhou o golpe com um pontapé no estômago
que enviou Villiers aos trambolhões contra a armadura. A armadura
tombou com um estrondo de placas de aço, e a espada caiu com um
baque. Villiers esgravatou desesperadamente em busca da espada
caída e esgrimiu-a contra Ben, a pesada lâmina a assobiar pelo ar.
Ben baixou-se e o violento bote da lâmina embateu num armário
antigo, entornando decantadores de cristal com brande e uísque. Um
lago de fogo rugiu e espalhou-se pelo chão.
Villiers veio novamente direito a Ben, esgrimindo a espada de um
lado para o outro. Ben recuou, mas o pé assentou-lhe no cálice de
ouro que Fairfax atirara ao chão.
O cálice rolou, e Ben escorregou e caiu, batendo com a cabeça no
pé da mesa de jantar.
A espada desceu de novo, silvando na sua direcção. Atordoado pela
queda, Ben desviou-se para o lado mesmo a tempo e a lâmina
despenhou-se na mesa ao lado. Pratos e talheres caíram ao chão em
redor de Ben. Algo lhe cintilou ao canto do olho e tentou alcançá-lo
com os dedos em garra.
O fumo negro engrossava enquanto o incêndio se espalhava pela
sala, agora incontrolável enquanto tudo no seu caminho se
incendiava. O corpo de Fairfax ardia da cabeça aos pés, as suas
roupas pouco mais do que farrapos de carbono encaracolados, com a
carne a assar no interior.
A figura de Villiers contrastava com as chamas enquanto erguia a
pesada espada para o golpe final. O fogo cintilava na lâmina. Os
olhos de Villiers estavam cheios com algo de triunfo animal.
Ben contorceu-se para se colocar meio de pé. O braço descreveu
um arco. Algo se atravessou como uma mancha indistinta através do
fumo entre os dois.
Villiers deteve-se. Os dedos afrouxaram o aperto na espada. A
pesada lâmina caiu com estrondo para o chão. Villiers vacilou, um
passo atrás, depois outro. Os olhos reviraram-se-lhe para cima e
depois o corpo caiu para trás no meio das chamas. Oito centímetros
de aço e o cabo de ébano da faca de trinchar saíam-lhe do meio da
fronte.
Ben pôs-se em pé, cambaleante. À sua volta, a sala estava
completamente em chamas. Sentia a pele a enrugar-se com o calor.
Agarrou numa cadeira da mesa de jantar e atirou-a contra uma das
janelas altas. O painel de vidro com dois metros e meio estilhaçou-se.
O ar precipitou-se para a sala e o fogo transformou-se num inferno.
Ben viu uma passagem entre as chamas e atirou-se a ela com toda
a sua resolução. Lançou-se através do buraco aberto na janela e
sentiu um pedaço de vidro a cortar-lhe o braço. Caiu na relva e rolou
para se pôr de pé.
Meio cego do fumo e agarrado ao braço a sangrar, afastou-se a
cambalear da casa e atravessou o jardim na direcção dos hectares do
parque. Encostou-se a uma árvore, tossindo e cuspindo.
As chamas derramavam-se das janelas da residência Fairfax e uma
enorme coluna de fumo erguia-se para o céu como uma torre negra.
Observou durante alguns minutos enquanto o incêndio abrasador
devastava toda a casa. Depois, quando as sirenes distantes soaram
mais próximas, virou-se e desapareceu no meio das árvores.
Capítulo 66
Otava, Dezembro de 2007

O avião aterrou no pequeno aeroporto de Otava com um chiar de


pneus. Algum tempo depois, Ben saiu para o ar frio e seco. Um floco
de neve passou por ele enquanto entrava para um táxi à espera. A
versão de Sinatra de I'll Be Home for Christmas tocava na rádio, e
uma corrente prateada de pechisbeque pendia do espelho retrovisor.
— Para onde, companheiro? — perguntou o motorista, rodando a
cabeça para olhar para Ben.
— Campus da Universidade de Carleton — disse Ben.
— 'tá cá para o Natal? — perguntou o motorista enquanto o carro
deslizava suavemente pela larga estrada circular da cidade, ladeada
de neve.
— Estou só de passagem.
O auditório de conferências no bloco de ciências de Carleton
encontrava-se cheio quando Ben chegou. Encontrou um lugar na fila
de trás do anfiteatro do auditório, perto da saída principal. Ben e os
trezentos e tal estudantes tinham vindo para ouvir uma conferência
dada pelos doutores D. Wright e R. Kaminski. O tema era Efeitos dos
Campos Electromagnéticos Fracos na Respiração das Células.
Havia um murmúrio baixo de conversação no auditório. Os
estudantes tinham blocos e canetas a postos para tomar notas. No
centro do auditório havia um pequeno palco com um estrado e duas
cadeiras, uns quantos tripés para microfones, um projector de slides
e um ecrã. Os conferencistas ainda não tinham aparecido no palco.
Ben não tinha o menor interesse no tema da conferência. Mas
tinha um interesse na doutora R. Kaminski.
O auditório ficou em silêncio e houve uma discreta salva de palmas
quando os dois conferencistas, um homem e uma mulher, entraram
no palco. Tomaram as suas posições de cada um dos lados do
estrado. Apresentaram-se à audiência, com as vozes a sair pelo
sistema de amplificação, e a conferência começou.
Roberta estava agora loura, com o cabelo apanhado num rabo-de-
cavalo. Tinha todo o ar da cientista séria, tal como tivera quando a
conhecera. Ben estava satisfeito por ela ter dado ouvidos ao seu
conselho e mudado de nome. Levara algum tempo a encontrá-la —
isso era bom sinal.
Em redor de Ben, os atentos estudantes encontravam-se
profundamente concentrados e a tomar notas. Ben afundou-se um
pouco no assento, tentando ser o mais discreto possível. Não
compreendia as palavras que ela ia dizendo, mas o tom da voz dela
através dos altifalantes, o quente e suave som da respiração dela,
pareciam tão próximos que ele quase a podia sentir a tocá-lo.
Não foi senão naquele momento que ele compreendeu totalmente
o quanto desejara vê-la de novo, e como ia sentir duramente a sua
falta.
Ben soubera, mesmo enquanto se preparava para viajar para o
Canadá, que esta ia ser a última vez que a via. Não planeou ficar
muito tempo. Só queria confirmar que ela se encontrava bem e em
segurança, e dizer adeus em privado. Antes de vir para a conferência,
deixara um envelope para ela na recepção central. No interior do
envelope estava a agenda vermelha, e uma breve nota a fazer-lhe
saber que ele regressara de França de boa saúde.
Observou o co-conferencista Dan Wright. Ben via pela linguagem
corporal do homem — a maneira como parecia querer ficar perto
dela no palco, a maneira como assentia e sorria quando ela estava a
falar, a maneira como os olhos a seguiam quando ela se
movimentava entre o estrado da conferência e o ecrã — que ele
gostava dela. Talvez gostasse muito dela. Ele parecia um tipo
decente, pensou Ben. O género que Roberta realmente merecia.
Estável, fiável, um cientista como ela, um homem de família que
daria um bom marido, e um bom pai um dia.
Ben suspirou. Fizera o que planeara fazer, cumprira o objectivo da
viagem. Agora estava à espera da sua deixa para partir. Assim que ela
voltasse as costas durante alguns segundos, ele partiria.
Não era fácil. Pensara um milhão de vezes neste momento durante
os últimos dias. Mas agora, estando na presença dela com o som da
voz dela a assoberbá-lo através do sistema de amplificação, parecia-
lhe impensável que estivesse prestes a sair dali, apanhar o próximo
avião de regresso a casa e nunca mais a ver.
Mas será que isto tem de ser assim?, pensou. E se não se fosse
embora? E se ficasse? Poderiam fazer uma tentativa, ter uma vida
juntos? Tinha mesmo de acabar desta maneira?
Sim, esta é a melhor maneira. Pensa nela. Se a amas, tens de te
afastar.
— ... e o efeito biológico deste formato de onda electromagnética
pode ser ilustrado por este diagrama — dizia Roberta. Com um
sorriso para o doutor Wright pegou num ponteiro laser que se
encontrava no estrado da conferência e virou-se para apontar o feixe
vermelho à imagem que aparecera no grande ecrã por detrás dela.
As costas de Roberta estiveram voltadas durante alguns segundos.
É agora, pensou Ben. Respirou fundo, tomou a decisão, arrancou-se
ao assento e percorreu rapidamente o trajecto na direcção da coxia
central.
Mesmo quando ia a começar a subir a coxia, uma rapariga de
cabelo ruivo na fila de trás ergueu a mão para fazer uma pergunta.
— Doutora Kaminski?
Roberta girou nos calcanhares.
— Sim? — disse ela, examinando a audiência para descobrir uma
mão erguida.
— Gostaria de saber se me poderia por favor explicar a ligação
entre níveis crescentes de endorfinas e os ciclos alternados das
células T dos linfócitos?
Ben desapareceu através da porta e dirigiu-se à saída. O frio
atingiu-o quando chegou ao exterior.
— Doutora Kaminski...? — repetiu perplexamente a rapariga ruiva.
Mas a doutora Kaminski não ouvira a pergunta. Olhava fixamente
para a saída onde acabara de ver alguém a sair.
— P... Peço desculpa — múrmurou de forma distraída para o
microfone, e colocou a mão em cima dele com um baque que
sobressaltou os altifalantes do sistema de amplificação. — Dan,
podes tomar conta disto — sussurrou ela urgentemente para um
aturdido doutor Wright.
Então, enquanto o auditório de conferências irrompia num
frenético zunzum de conversas e confusão, Roberta saltou do palco e
correu pela coxia central. Os estudantes contorceram-se nos assentos
e espetaram os pescoços para a observar enquanto ela passava a
correr. No palco, a boca de Dan Wright ficara pendurada.
Ben apressou-se a descer os degraus do edifício com a fachada em
vidro e afastou-se vivamente através do campus universitário coberto
de neve com o coração pesado.
Flocos de neve à deriva caíam em espiral em seu redor vindos do
céu cinzento como aço. Puxou o colarinho do casaco para cima.
Através de um intervalo nos edifícios atarracados que formavam um
quadrado largo em redor dos limites do campus, Ben via a estrada à
distância, e o parque de estacionamento da universidade com a zona
de táxis. Estavam alguns táxis na fila de espera, com os tejadilhos e
janelas polvilhados de neve.
Exalou um profundo suspiro e caminhou nessa direcção. Um avião
rugiu por cima de forma ensurdecedora, levantando voo do
aeroporto vizinho. Estaria lá em dez minutos, matando o tempo
antes de o seu voo o levar dali para fora.
Roberta irrompeu através das portas duplas para a neve que caía, e
olhou ao longo do campus do alto dos degraus. Os olhos pousaram-
lhe numa figura à distância, e ela soube instantaneamente que era
ele. Ben encontrava-se quase na zona de táxis. O motorista estava
fora do carro, abrindo-lhe a porta de trás. Roberta sabia que se ele
entrasse naquele carro, nunca mais o veria.
Gritou o nome dele, mas a sua voz foi afogada pelo súbito trovejar
de um 747 a voar baixo sobre Carleton, com a folha de ácer vermelha
do símbolo da Air Canada na cauda.
Ele não a ouvira.
Roberta correu, escorregando na neve com os seus sapatos de
interior. Sentiu o vento gelado a secar-lhe as lágrimas quentes na
face. Gritou de novo o nome dele, e à distância a minúscula figura
ficou tensa e parou.
— Ben! Não vás! Ouviu-a gritar Ben, muito lá atrás, e fechou os
olhos. Havia uma nota de algo como desespero, quase um grito de
dor, na voz dela que fez com que a garganta se lhe apertasse. Virou-
se lentamente para a ver correr na sua direcção através da praça
deserta, com os braços abertos, as suas pegadas a desenhar uma
linha ondulante na neve atrás dela.
— O senhor sempre vem? — perguntou o motorista de táxi.
Ben não respondeu. Tinha a mão pousada na porta do carro.
Suspirou e bateu com a porta.
— Parece que vou ficar mais algum tempo.
O motorista de táxi sorriu, seguindo o olhar de Ben.
— Parece que sim, senhor.
Com um dilúvio de emoções, Ben virou-se e caminhou na direcção
da figura que se aproximava. O passo acelerou para trote e depois
para corrida. Ben tinha lágrimas nos olhos enquanto chamava pelo
nome dela.
Juntaram-se na extremidade da praça, e ela voou para os braços
dele.
Ele fê-la rodar e rodar.
Havia flocos de neve no cabelo dela.

FIM
Nota do autor
As referências a alquimia, ciência alquímica e história neste livro
são baseadas em factos. O misterioso Fulcanelli é uma figura da vida
real, que se acredita ter sido um dos maiores alquimistas de todos os
tempos e o guardião de conhecimentos importantes. Ao longo dos
anos várias teorias têm especulado quanto à sua identidade real, mas
isto permanece tão misterioso hoje como sempre foi. O enigma de
Fulcanelli tem cativado a imaginação de artistas tão diversos como o
mestre italiano do filme de terror Dario Argento — o qual incluiu
uma personagem alquimista baseada em Fulcanelli no seu filme
Inferno de 1980 — e Frank Zappa, que escreveu uma canção
intitulada But Who Was Fulcanelli? Mais recentemente, uma
personagem que poderia ser ou não ser Fulcanelli apareceu na série
de televisão da BBC Sea of Souls.
A comunidade científica dos últimos três séculos tem recusado
levar a sério qualquer dos ensinamentos da alquimia. No entanto,
isto pode estar a mudar. Em 2004, uma colecção de papéis sobre
investigação alquímica de Isaac Newton, o pai da física clássica, foi
redescoberta após ter estado perdida durante oitenta anos. Cientistas
do Imperial College de Londres, acreditam que o trabalho alquímico
de Newton pode ter inspirado algumas das suas posteriores
descobertas pioneiras na física e cosmologia.
A medida que a ciência moderna continua a fazer recuar as
fronteiras da ignorância humana, está a tornar-se crescentemente
claro que os antigos alquimistas podem ter realmente sido, nas
palavras da doutora Roberta Ryder, os físicos quânticos originais.
Os pormenores históricos dos actos de genocídio cometidos pela
Igreja Católica e pela Inquisição são precisos e, quando muito,
eufemísticos. A cruzada albigense do século XIII é indubitavelmente
um dos mais negros capítulos na história da Igreja Católica, um
período de brutal derramamento de sangue e crueldade que alastrou
por todo o Sul de França e cujo objectivo foi o de ostensivamente
exterminar o pacífico e largamente disseminado movimento cristão
conhecido por catarismo sob as expressas ordens do papa Inocêncio
III. Os verdadeiros motivos do papa podem, naturalmente, ter tido
menos a ver com zelo religioso do que com a aquisição de terras e,
em particular, o famigerado tesouro perdido dos cátaros. Como
escreve a historiadora Anna Manzini em O Segredo do Alquimista,
até aos dias de hoje ninguém sabe que tesouro guardavam os cátaros
ou, já agora, o que lhe poderá ter sucedido.
Charles Édouard Jeanneret, mais conhecido pela fama por Le
Corbusier ou simplesmente Corbu, foi um dos mais inventivos e
pioneiros arquitectos do século XX. Tendo a "Casa do Corvo" e o seu
tesouro escondido sido criados para os objectivos do livro, é não
obstante um facto que Le Corbusier foi tido como um dos últimos
descendentes dos cátaros. Toda a sua vida fascinado pela filosofia
esotérica, fez uso activo nos seus projectos de arquitectura do
fenómeno geométrico conhecido através da história por "Divina
Proporção" e pelos matemáticos por Phi. Este fascinante princípio da
natureza, e que alguns cientistas acreditam governar a estrutura de
todas as coisas, era também precioso para os alquimistas da
Antiguidade. A morte por afogamento de Le Corbusier em 1963 está
de algum modo envolta em mistério.
Os incríveis desenhos geométricos esculpidos na paisagem em
redor de Rennes-le-Château no Sul de França existem realmente, e
podem ser traçados num mapa para criar o mesmo bizarro desenho
dos círculos e estrelas gémeos encontrado neste livro. Ninguém sabe
quem o criou, ou quando. Este livro especula com base no incrível
fenómeno real para sugerir que poderá ter sido usado como
marcador secreto para assinalar a localização de um tesouro
escondido. Até aos dias de hoje, Rennes-le-Château permanece um
importante centro para os caçadores de tesouros.
Rudolf Hess, o infame nazi e adjunto de Adolf Hitler, foi realmente
membro da secreta e esotérica sociedade conhecida por Os
Observadores (Les Veilleurs), a qual se costumava congregar na Paris
dos anos 20 — exactamente na mesma época em que se diz lá ter
vivido o próprio Fulcanelli. Nascido em Alexandria, Hess era de facto
fascinado pelo oculto, e pela alquimia. Isto pode ter sido em parte
responsável pelo interesse do próprio Adolf Hitler pelo assunto, e
pela possibilidade histórica de os nazis estarem realmente a fazer
experiências com formas de criar ouro alquímico para financiar o
esforço de guerra e o Reich dos mil anos que planeavam estabelecer.
A Gladius Domini é fictícia. No entanto, os últimos quinze anos
assistiram a um levantamento à escala global de organizações
religiosas fundamentalistas militantes, primariamente cristãs,
pregando a intolerância e dogmas de linha dura. O palco mundial
está preparado para uma nova era de guerras santas que poderão
eclipsar de longe o horror das cruzadas medievais.
Espero que tenham gostado tanto de ler O Segredo do Alquimista
como eu gostei de pesquisar e de o escrever. Ben Hope voltará.
Scott Mariani
Sobre o Autor
SCOTT MARIANI cresceu em St. Andrews, Escócia. Estudou
Línguas Modernas em Oxford e começou a trabalhar como tradutor,
depois como músico profissional, instrutor de tiro de pistola e
jornalista freelancer antes de se tornar escritor a tempo inteiro. Após
ter passado vários anos em Itália e em França, Scott descobriu o seu
porto de abrigo isolado para escrever nas zonas remotas do Gales
Ocidental, uma casa de campo de 1830 completa com bosques para
passeios campestres e uma passagem secreta. Quando não está a
escrever, Scott desfruta de jazz, filmes, motocicletas clássicas e
astronomia.
Para descobrir mais acerca de Scott Mariani visite:
www.scottmariani.com

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