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História das mulheres: da suplementação à

complementação

Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora, somos nós que vamos dizer
o que somos.

(Lygia Fagundes Telles, in As meninas)

A reivindicação das mulheres por uma voz própria vem tomando vulto
desde a década de 1960, com o movimento feminista. Desde aquela
época, as mulheres lutam para dizer quem são, do que são capazes e
o que desejam.

Escrever a história dessas mulheres num mundo por tanto tempo


dominado pelos homens demanda, no mínimo, um grande fôlego.
Fôlego para fazer da pena um exercício crítico-descritivo até certo
ponto doloroso, pois todo aquele que fala da mulher muitas vezes
precisa fazer referências à vivência subjugada a preceitos masculinos,
à voz abafada, à fragilidade física. Segundo Joan Scott, a força crítica
que caracteriza a história das mulheres está na "lógica da
suplementação" (1). E em que consiste tal lógica? Suplementar, como
sabemos, significa:
1. Fornecer suplemento para; acrescer alguma coisa a (...) 2. Servir de suplemento ou
aditamento a (...) 3. Suprir ou compensar a deficiência de. (2)

Vejamos, ainda, o substantivo suplemento:


1. O que serve para suprir; suprimento. 2. O que se dá a mais (...) Parte que se adiciona a um
todo para ampliá-lo, esclarecê-lo e aperfeiçoá-lo. (...) 5. Aditamento, acréscimo. (3)

De acordo com as definições citadas, a contribuição histórica das


mulheres aconteceria como algo a mais, um apêndice cuja falta não
seria de fato percebida, não significaria uma perda. Sobre essa
situação as feministas, organizadas em movimento a partir da década
de 1960, passaram a se debruçar, inaugurando pesquisas que
buscavam os motivos dos problemas. Devido à falta de tradição
teórica formalizada, os escritos acerca das mulheres foram
considerados, pela história oficial, como acientíficos. Era necessário,
portanto, imprimir cientificidade aos estudos que se iniciavam.
Ganhando força, as feministas conseguiram afirmar seu ponto de vista
e "obrigaram" o olhar dominante a se voltar para os problemas das
mulheres. Inclusive, de acordo com Joan Scott, "Durante os anos
1960, também as faculdades, as escolas de graduação e as
fundações começaram a estimular as mulheres a obterem PhDs,
oferecendo bolsas de estudo e um considerável apoio financeiro. (4).
Assim, a partir daquela década as mulheres passaram a exercer uma
escrita que se insere no científico proporcionado pelo ambiente
acadêmico. Daquele momento em diante, tomou impulso a
investigação sobre temas próprios da mulher: nas décadas de 1970 e
1980, os estudos estreitamente relacionados às mulheres
ganharam status acadêmico. Era, portanto, necessário inserir a
história das mulheres no panorama mundial. Mas sob quais
parâmetros históricos?

Nas décadas de 1970 e 1980, "a reação contra o paradigma


tradicional tornou-se mundial" (5), configurando um movimento de
revisão da história oficial denominado "nova história". Também
chamado movimento da "história-vista-de-baixo", esta visão
emergente "reflete uma nova determinação para considerar mais
seriamente as opiniões das pessoas comuns sobre seu próprio
passado do que costumavam fazer os historiadores profissionais" (6).
Nessas décadas onde as minorias (negros, hippies, homossexuais e
outras) decidiram mostrar-se com mais vigor, as mulheres aderiram à
luta e começou, então, a ser escrita a história das mulheres sob o
enfoque da nova história. Essa adesão das mulheres justifica-se
plenamente: sempre tratadas sob o prisma de um menos cultural,
intelectual e até físico, elas passaram a constituir, sob o olhar
masculino, uma minoria. E contribui para a formação dessa minoria o
ponto de vista de Freud, que considera a mulher "an imperfect man"
(7). Esta visão, baseada em parâmetros masculinos, nega a
identidade da mulher e atribui a ela o status minoritário da carência.

A perspectiva da nova história mostrou-se adequada para a


abordagem dos problemas das minorias. Embora de início houvesse,
por parte dos historiadores novos, uma tendência a homogeneizar a
situação das pessoas comuns, seu enfoque apontava a existência
dessas pessoas e reclamava soluções para os problemas por elas
vividos. Vista sob este novo enfoque, a situação das mulheres levou a
um outro tipo de escrita, que considerava suas diferenças - vistas
como inferioridades pela história tradicional. Ganhando um outro tipo
de olhar, através das novas propostas históricas, o feminismo
substituiu o grito de protesto do primeiro momento pela preocupação
mais detalhista com as questões específicas das mulheres. Nas
décadas de 1970 e 1980 já não cabia apenas apontar contrastes entre
mulheres e homens, mas buscar soluções para os conflitos surgidos
desses contrastes.

Desse modo, as mulheres passaram a exercer com mais consciência


os seus papéis. Aliás, um dos primeiros questionamentos feitos em
busca de sua identidade foi este: quais os papéis da mulher?
Existiriam funções que realmente só as mulheres poderiam exercer
(dona de casa, por exemplo)? O fato mesmo de expor questões deste
tipo mostrava que uma nova mentalidade estava se formando. Assim,
houve uma maior expressão da mulher nos diversos âmbitos (cultural,
político, econômico etc.), proporcionando a abertura de novos espaços
e de um novo exercício da cidadania. Será que, a partir dessas
considerações, a "lógica da suplementação" citada por Joan Scott não
poderia, hoje, ser substituída por uma "lógica da complementação"?
complemento. 1. Aquilo que complementa ou completa. 2. Ato ou efeito de complementar;
acabamento, remate, completação, complemento. (...) Gram. Palavra ou expressão que
completa o sentido de outra. (8)

Se complementar é completar, tornar íntegro, coeso, não há dúvida de


que a história das mulheres complementa a "história dos homens", ou
seja, a história oficial, que ganha, deste modo, detalhamento em
muitos pontos. Seria simples admitirmos esta hipótese como
verdadeira; bastaria que fosse aceita. Mas ela seria aceita? Vejamos:
para os homens, não seria agradável admitir que uma história forjada
há séculos sob o ponto de vista do forte deva algo à fraqueza que nem
sequer fora mencionada. Como dar algum crédito a vozes que só
agora conseguem ser ouvidas e que não têm o timbre da tradição?
Como admitir que essas vozes em algum momento contribuíram para
a formação de uma história que não julgou importante apontar suas
especificidades e buscar, para estas, soluções adequadas? É
realmente difícil supor que o ponto de vista tradicionalmente
dominante aceite essas considerações.

E pelas mulheres, a hipótese da complementação seria aceita? Esta


questão só pode ser pensada a partir de outras duas: 1) faria sentido
reivindicar a aceitação como contribuinte numa história que sempre foi
alheia? 2) não seria melhor produzir uma história própria?
Comecemos pela segunda questão. Vimos que, a partir da década de
1960, com o movimento feminista, começou a se formar uma história
das mulheres, pois naquele momento era necessário dar um "grito de
guerra" a fim de chamar a atenção para os problemas das mulheres.
Com o passar do tempo, porém, o grito foi se transformando numa fala
mais branda que procurava tematizar as especificidades das
mulheres, pondo em relevo os estudos sobre o gênero em detrimento
daqueles que abordavam aspectos políticos, como diz Joan Scott:
Finalmente (...) o desvio para o gênero na década de 1980 foi um rompimento definitivo com a
política e propiciou a este campo conseguir o seu próprio espaço, pois gênero é um termo
aparentemente neutro, desprovido de propósito ideológico imediato. A emergência da história
das mulheres como um campo de estudo envolve, nesta interpretação, uma evolução do
feminismo para as mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política para a história
especializada e daí para a análise (9).

Com o desenvolvimento dos estudos de gênero, surge a história das


mulheres como disciplina formalizada, e elas começam a tornar oficial
as vozes que só se expressavam num coro anônimo. Produzir uma
história própria significa assumir a identidade, objetivo tão visado.
Parece difícil, então, que as mulheres queiram apenas complementar
uma história já iniciada. Por outro lado, produzir uma outra história
implica a afirmação de uma exclusão: exclusão da história oficial. Se,
por um lado, é bom ser sujeito de uma história própria, por outro isso
significa estar realmente de fora da outra história que, oficialmente,
seria da humanidade e não do homem.

Como, então, responder à primeira questão? Se a história das


mulheres tiver o propósito de, em vez de criar uma realidade
nova, modificar a realidade existente, a história dita oficial deixa de
ser alheia e dos homens. A história das mulheres, como disciplina,
complementaria a história que se quer tradicional e levaria para o
centro as vozes que sempre estiveram à margem. Esta própria história
não seria, então, a complementação da história como um todo?

Se entendermos a formação da história das mulheres, no momento,


como sua única forma de afirmação e reconhecimento como sujeito,
chegaremos à conclusão de que, no futuro, essa história constituirá
um capítulo da história universal - estabelecendo-se, enfim,
como complemento. E, finalmente, as mulheres não apenas terão
dito de voz própria o que são, como também o que podem vir a ser. E
já estão sendo.

Referências

1. SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter. p. 94.


2. Dicionário Aurélio.

3. Ibid.

4. SCOTT, p. 68.

5. BURKE, Peter. Abertura: A nova história, seu passado e seu futuro.


p. 16.

6. Ibid.

7. CIXOUS, p. 93.

8. Dicionário Aurélio.

9. SCOTT, p. 64-65.

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