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DE ABREU)
As teses da ruptura ou da continuidade podem ter sua razão de ser quando especificamos
os aspectos da vida social aos quais elas se aplicam e, mesmo assim, devemos deixar clara
a própria noção de ruptura com que estamos analisando o processo histórico. A alternativa
ruptura versus continuidade talvez seja um tanto ilusória, já que os movimentos político-
sociais, mesmo os mais radicais, têm também elementos que foram gerados na velha
ordem e a idéia de um corte radical com o passado pode não ser a melhor representação
do processo histórico. A história não se processa pela emergência abrupta de eventos, mas
alguns deles podem lhe imprimir um determinado curso, nem sempre previsto em seus
antecedentes. Entre o determinismo, onde os acontecimentos são vistos como produto de
uma necessidade inquestionável, e o voluntarismo, que vê a vontade e a ação humanas
como elementos fundamentais do processo histórico, cabe relativizar, ou seja,
compreender as complexas relações entre traços estruturais, dados conjunturais e a opção
de determinados atores sociais.
Muitas vezes a crítica aos que chamam o movimento de 1930 de revolução se centra não
no debate em torno do conceito de revolução, mas na aplicação do termo a este episódio
da vida política brasileira. A ruptura e conseqüente abertura para um novo tempo são
muitas vezes identificadas com outros eventos, como, por exemplo, a Abolição da
Escravatura, que não é chamada de revolução. Para outros, ao contrário, a verdadeira
revolução ainda não ocorreu na história do Brasil. Outro aspecto que é constantemente
relembrado pelos críticos consiste na observação de que a história brasileira está sendo
escrita e transmitida segundo o ponto de vista dos “vencedores”. Este tipo de crítica pouco
acrescenta, exatamente por 1930 ter sido um movimento vitorioso. Os movimentos que
são vitoriosos tendem a construir representações que confirmam o ímpeto revolucionário,
destruidor das velhas estruturas. E, como a história também se constrói com as imagens
que os homens fazem de seus atos, interesses e paixões, torna-se extremamente difícil se
contrapor a representações vitoriosas.
O movimento de 1930 tem sido objeto, desde sua época até hoje, de diferentes versões.
Essas interpretações sobre a revolução podem ser tomadas como marcos significativos da
história do pensamento político brasileiro, na medida em que foram produzidas e
informadas pelas preocupações contemporâneas a elas. Como não é o passado que nos
instrui sobre a perspectiva do presente, mas, ao contrário, é o presente que nos fornece
uma interpretação do passado, são as perguntas e os impasses de cada momento que nos
fazem indagar sobre as experiências históricas e recuperar ou descartar fatos e
personagens.
A política da Primeira República tinha seu jogo marcado pelo peso das oligarquias
estaduais. E foi com este modelo que os autores analisaram o movimento de 1930. Os
estados, ou seja, as oligarquias que os representavam, as figuras que compunham a
direção dos partidos republicanos estaduais, foram os principais objetos das versões da
época.
O estado de São Paulo era apresentado como portador do direito à hegemonia política,
que lhe era conferido por seu alto grau de civilização. Uma questão central no pós-1930
foi, aliás, a de considerar ou não a revolução como uma guerra movida contra os paulistas.
A marginalização do Partido Democrático, membro da frente liberal, e a interventoria do
tenente João Alberto Lins de Barros em São Paulo eram apresentadas como indicadores
desta tentativa de enfraquecer a política paulista no cenário nacional.
A oligarquia estadual mineira aparecia cindida entre oposicionistas, defensores da
Aliança Liberal e da revolução, e governistas. De um lado, estavam Antônio Carlos e
Artur Bernardes garantindo a participação de Minas Gerais no deflagrar da revolução. De
outro, falava-se na cisão dentro do Partido Republicano Mineiro, ocorrida com a
formação da Concentração Conservadora, que defendia a candidatura Júlio Prestes.
Todas essas interpretações foram produzidas por homens engajados na prática política,
comprometidos com ações favoráveis ou contrárias às oligarquias. Um outro grupo de
analistas era o dos intelectuais autoritários, entre os quais se incluía Oliveira Viana que
vinha escrevendo e divulgando propostas totalmente distintas das que estavam presentes
na campanha da Aliança Liberal. Assim como outros intelectuais autoritários, já se
mostrava descrente da possibilidade de encontrar soluções para os problemas nacionais
dentro dos parâmetros do liberalismo. O espírito idealista — baseado no democratismo
francês, no liberalismo inglês e no federalismo norte-americano — estava, segundo ele,
em desacordo com as condições mentais e estruturais do nosso povo. Sua crítica ao
idealismo da Constituição de 1891, sua recusa em considerar o voto como problema
político fundamental justificam seu alheamento frente ao movimento das oposições
reunidas na Aliança Liberal e na Revolução de 1930. Somente mais tarde, e à medida que
o governo se afastou de um ideário liberal, foi que Oliveira Viana passou a valorizar a
revolução.
Enquanto os liberais da Aliança e de fora dela propunham uma reforma política onde a
representação, o sistema de voto e as eleições ocupavam lugar central, os intelectuais
autoritários pensavam em novas alternativas para o Estado (centralização) e para a
representação (representação profissional, corporativismo). Foi no pós-1930, quando se
ampliou a esfera de atuação do poder público sobre a sociedade, que se abriu espaço para
a atuação desses intelectuais que criticavam o liberalismo do velho regime. Eles tomaram
a si a tarefa de elaborar uma doutrina para a nova ordem e voltaram ao movimento de
1930 interpretando-o sob nova perspectiva.
Todo evento histórico que se pretende apresentar como revolucionário precisa acentuar
seus aspectos de novidade, assim como apontar e valorizar sua criação. O momento de
fundação aparece como elemento crucial na formulação de um pensamento que possa
garantir legitimidade à nova ordem social. Isto apareceu em 1937 de forma incontestável.
Os doutrinadores e ideólogos do Estado Novo produziram uma reinterpretação do
movimento de 1930. Para eles “30 só se completou em 37”. O 3 de outubro e o 10 de
novembro (a Revolução de 1930 e o golpe de 1937) passaram a ser apresentados como se
tivessem ocorrido em uma simultaneidade temporal imediata. O desenrolar da luta entre
as oligarquias e os “tenentes”, a Revolução Constitucionalista de 1932, a Constituinte de
1934, a presença da Ação Integralista Brasileira (AIB) e da Aliança Nacional Libertadora
(ANL) apareciam minimizados diante de uma relação direta estabelecida entre a
Revolução de 1930 e o Estado Novo.
O DESENVOLVIMENTISMO E A REVOLUÇÃO
Estas vertentes foram construídas tomando por base modelos “dualistas”, ou seja,
modelos em que a sociedade brasileira era caracterizada como dividida em dois setores:
o pré-capitalista e o capitalista. Independentemente das nuanças e do grau de sofisticação
das análises, elas marcaram uma época na produção intelectual do país, onde a influência
do pensamento da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) foi marcante.
Essas análises foram o ponto de partida para novos trabalhos de pesquisa voltados para o
conhecimento dos eventos e do comportamento concreto dos grupos sociais. Muitas das
premissas até então aceitas foram submetidas à revisão pela investigação de fontes
históricas (jornais, revistas, arquivos). Seriam os “tenentes” efetivamente representantes
das demandas das classes médias urbanas ou o movimento tenentista poderia ser melhor
explicado se relacionado a cisões dentro da corporação militar? No caso das
interpretações que viam 1930 como uma revolução burguesa no sentido de feita pela
burguesia, novas informações históricas levaram à revisão das premissas aceitas. Como
explicar, por exemplo, a presença de inúmeros industriais, entre eles Roberto Simonsen,
um dos mais importantes ideólogos da industrialização como caminho para a
independência nacional, nas fileiras do Partido Republicano Paulista, considerado
representante das oligarquias agrárias ? Como explicar a participação da burguesia
industrial paulista no movimento de 1932, interpretado como a luta pelo retorno à situação
pré-1930, caracterizada pelo controle das elites agrárias ?
Confrontando o caso brasileiro com outras situações históricas, estas obras atribuem ao
movimento de 1930 um importante papel na modernização da sociedade brasileira, e o
consideram uma revolução, embora de tipo específico, uma ruptura que rompeu apenas
com parte do passado, uma modernização que conservou e valorizou aspectos da velha
ordem. Uma questão subjacente a estas análises é a de entender como ocorreu a passagem
de uma sociedade considerada “atrasada”, “agrária”, para uma sociedade “moderna”,
“industrial”. Imbricado nesta questão se encontra o debate em torno do próprio
significado de sociedade moderna. A noção de uma sociedade industrial nos moldes
anglo-americanos e a emergência ou reafirmação de um Estado burocrático-autoritário
estão, ambas, contidas na categoria de sociedade moderna.
Não só a utilização de fontes até então desconhecidas tem permitido a revisão das
interpretações anteriores, mas novas preocupações teóricas têm permitido a discussão de
diferentes problemas. As teorias não fornecem as respostas para a pesquisa histórica, elas
oferecem sim a possibilidade de novas perguntas.
Um ponto parece ter obtido o consenso da maioria dos estudiosos que participaram dos
seminários, por ocasião dos 50 anos da revolução: o de ter 1930 representado a procura
de um novo equilíbrio das classes dominantes regionais, em conseqüência da quebra da
coesão das antigas oligarquias e do remanejamento dos quadros políticos da Primeira
República. Outra questão que mereceu atenção destacada se refere à análise do
desdobramento da revolução. Foi revista a suposição de que 1937, ou seja, o Estado Novo,
estivesse necessariamente contido no movimento revolucionário de 1930.
O debate travado foi amparado por inúmeros trabalhos onde predomina o esforço em
analisar os diferentes momentos do período que se seguiu à revolução. O espaço de tempo
decorrido entre 1930 e 1937 não foi percebido como um bloco unitário, monolítico, da
história do Brasil, mas sim como um período de experimentação de novas formas de
organização nacional em que se acentuou o conflito entre o poder dos estados e o poder
central, ou seja, entre o regionalismo e a centralização.
Apenas uma perspectiva do debate certamente se alterou. Se, em 1930, era proposta e
aceita pela maioria dos autores a necessidade indiscutível de centralização do poder nas
mãos do Estado, para que através de sua ação se transformasse a economia e a sociedade,
a questão hoje é como a sociedade pode vir a controlar este Estado já plenamente
construído e implantado na vida brasileira.