Muito se falou e se escreveu acerca do movimento que, como o de
outubro de 1930 e o de março de 1964, autodenominou-se “revolução”. A própria historiografia, ao analisar o movimento de 1932, contribuiu, da mesma forma que quando analisou os acontecimentos de 1930, para a consolidação desta denominação. Há ainda historiadores, como Jeziel De Paula[i] e o brasilianista Stanley Hilton[ii], que o definiram como guerra civil.
Discutir a possibilidade de considerar-se ou não o movimento armado ocorrido em 1932 no estado de São Paulo como uma guerra civil é tarefa que extrapola os objetivos deste pequeno texto. Contudo, uma coisa é certa: não se tratou de uma revolução. O que, aliás, muito bem percebeu Holien Bezerra[iii], a partir da análise feita por Jacob Gorender acerca dos acontecimentos de 1930: Conforme Bezerra,
(...) Jacob Gorender é um dos historiadores que se recusam a usar a expressão "revolução de 30", assim se justificando: "... porque não creio que tenha havido uma revolução, no sentido científico da palavra, isto é, uma transformação tão profunda que atingisse a base econômica da sociedade, varrendo relações de produção e instaurando novas relações de produção. Nem na esfera do Estado creio que tenha havido uma mudança tão radical quanto à derrubada de uma classe dominante antiga e a ascensão de uma nova classe revolucionária ao poder" [GORENDER, Jacob. Folhetim; Suplemento da Folha de São Paulo, São Paulo, n° 196, 19/10/1980, p. 11]. Certamente, e com maior razão, o mesmo seria dito da Revolução de 1932.
Admitindo-se que, tal qual em 1930, o movimento armado de 1932 não representou qualquer forma de revolução, é no plano da ideologia e da luta de classes que devemos buscar o seu sentido. A compreensão dos acontecimentos de 1932 deve levar em conta uma cisão, em virtude de propostas de poder conflitantes, no seio das classes dominantes e um recrudescimento das pressões e reivindicações por parte das classes dominadas, particularmente em São Paulo e, ainda, da crise econômica vivenciada nesse momento.
Analisando-se os acontecimentos por esta perspectiva torna-se compreensível a união dos antigos rivais (PD e PRP) na Frente Única Paulista e os posteriores ajustes nas esferas de poder iniciados já a partir de 1933.
O advento da Aliança Liberal, em 1930, representou a união momentânea de setores da classe dominante em vários estados, dentre os quais os integrantes do Partido Democrático de São Paulo, descontentes com a orientação política então vigente ao nível nacional e militares unidos em torno de um projeto de reformas que vinha sendo elaborado desde o inicio da década de vinte. Tomas Skidmore[iv] foi quem bem descreveu a composição da Aliança Liberal:
A divisão básica a ser efetuada é entre os partidários “revolucionários” e “não-revolucionários”, da mudança de poder. Se bem que, mesmo os revolucionários, como grupo, não tivessem programa algum definido, podem-se distinguir duas posições principais. Primeiro havia os constitucionalistas, que desejavam implantar os ideais liberais clássicos – eleições livres, governo constitucional e plenas liberdades civis. A posição constitucionalista liberal era mais forte no estado de São Paulo e encontrava seu apoio mais seguro na pequena, mas crescente classe média de poucas cidades maiores. [...] Em segundo lugar, havia os nacionalistas semi-autoritários, cujas preocupações principais eram a “regeneração nacional” e a modernização. Seus adeptos estavam querendo experimentar formas políticas não-democráticas, de molde a obter as modificações sociais e econômicas sobre as quais falavam de modo vago, porém, apaixonado. Os principais propositores dessa posição em 1930 eram os ‘tenentes’, que haviam ensaiado uma série de revoltas abortadas em 1922 e 1924 no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. [...] Os partidários “não-revolucionários” da ascensão de Vargas compunham-se em três grupos. [...] Em primeiro lugar, havia os militares superiores. Generais como Tasso Fragoso, que encabeçara a junta que passou o poder a Vargas, estavam ressentidos com o que consideravam medidas míopes e impopulares da elite política no poder. [...] Os plantadores de café também apoiavam a revolução. Se bem que o governo federal estivesse empenhado em programa de proteção ao café, o Presidente Washington Luís insistiu em manter para a moeda brasileira uma taxa fixa de câmbio, dando assim ao setor de exportação uma receita decrescente, à medida que caíam os preços do café no exterior. [...] Finalmente, havia muitos membros dissidentes da elite política estabelecida, ansiosos para usar um golpe em causa própria.
Essa era, pois, a situação da coalizão que tomou o poder em 1930. Conforme a definição de alguns autores, tratava-se de um “amálgama de interesses conflitantes”. E foi assim, em meio a essa situação que o Partido Democrático de São Paulo viu frustrada as suas pretensões de poder. Ao invés de Francisco Morato, líder do PD, o capitão João Alberto Lins de Barros, elemento desconhecido nos meios paulistas e integrante da ala tenentista, é quem foi nomeado para a interventoria paulista.
Se esse era o quadro político em São Paulo após outubro de 1930, com o PRP varrido do poder e o PD tendo suas pretensões frustradas, é preciso agora analisar o quadro econômico e social. Edgar Carone[v] descreve como caótica a situação econômica encontrada por Getúlio Vargas. Segundo esse autor, a crise não abrangia apenas os produtos que vivenciavam crises permanentes, como por exemplo, o açúcar, o cacau e a borracha. A partir de 1930 o café, principal produto brasileiro, foi duramente atingido pela crise. A queda dos preços, a baixa dos salários agrícolas e o conseqüente desemprego rural eram uma realidade.
O estado de São Paulo e o de Minas Gerais nada podiam fazer. Seus cofres estavam vazios e as possibilidades de obtenção de empréstimos eram inexistentes. Os estoques acumulavam-se cada vez mais e a única solução vislumbrada era o auxílio do governo federal. Em fins de 1930, após ser bastante pressionado, o interventor João Alberto reuniu-se com o ministro da fazenda, José Maria Whitaker, do Partido Democrático, que ainda integrava a Aliança Liberal, e Getúlio Vargas. Visando amparar os cafeicultores, Vargas decidiu comprar o estoque disponível.
Se, no plano econômico, a situação podia ser descrita como caótica, seus desdobramentos faziam-se sentir também no plano social. A partir de 1931 começam a ser registradas inúmeras greves em São Paulo e no Distrito Federal. O auge das agitações operárias, contudo, foi registrado em inícios de 1932, ano em que a crise econômica apresentou-se mais grave.
Segundo Carone[vi] em maio de 1932 houve uma intensificação do movimento grevista, culminando com a eclosão de uma greve geral. No dia 11 desse mês, Mais de 100.000 operários têxteis entraram em greve. Comitês de greve foram formados e fábricas foram invadidas. O movimento atingiu a cidade de São Paulo e o interior. A reação da polícia foi violenta, fechando sindicatos e proibindo manifestações. Os operários, contudo, resistiram.
Em inícios de junho as reivindicações começaram a ser atendidas e a vitória operaria foi maciça, apesar do grande número de demissões, das perseguições de trabalhadores e da prisão de vários líderes sindicais. A eclosão do movimento constitucionalista em julho e decretação do estado de sítio passaram a limitar toda a ação reivindicatória do operariado.
Finalmente, há que se considerar ainda as atitudes do interventor João Alberto em face ao movimento operário. Atitudes essas que contribuíram para aumentar ainda mais a animosidade da classe dominante paulista.
Em novembro de 1930, por meio de um decreto, João Alberto pôs, no âmbito do estado de São Paulo, o Partido Comunista na legalidade. Após essa medida, o interventor passou ainda a apresentar propostas como, por exemplo, a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, o que alarmou ainda mais a já descontente classe dominante paulista, contribuindo assim para a ruptura definitiva, conforme descreve Stanley Hilton[vii]:
O secretariado imediatamente o fez sentir seus receios, exigindo, em troca de sua colaboração, solicitada por João Alberto, um série de medidas que visavam garantir o caráter civil da administração estadual e municipal e pôr em xeque a mobilização das classes operárias. Tais exigências reforçavam o papel do chefe de polícia, o que refletia claramente a preocupação com o radicalismo. João Alberto aceitou as condições, divulgadas em nota coletiva – e, então uma semana depois chamou o Dr. Vicente Rao ao palácio, após criticar severamente a sua atuação na chefia da polícia, pediu sua demissão, o que provocou a de todos os membros do secretariado, que durou assim, 40 dias. Estava aberta a brecha entre os líderes políticos paulistas e a nova ordem.
Como bem evidenciou Holien Bezerra[viii], o estudo da ideologia da classe dominante e da gênese dessa ideologia possibilita desvendar os mecanismos pelos quais a dominação é conseguida. Ao mesmo tempo, permite colocar em evidência as contradições das classes sociais em um determinado período e local.
Os dados e fatos acima expostos tem por objetivo propiciar uma reflexão mais aquilatada acerca das verdadeiras motivações do movimento de 1932. Motivações, essas, camufladas sob o discurso vago do constitucionalismo e da “volta ao regime da lei e da ordem”. Jeziel De Paula[ix] afirmou que
A guerra civil de 1932 não foi uma contra-revolução de 1930. Ao contrário, pela força das armas visava o cumprimento do programa da Aliança Liberal, levado ao extremo do maior movimento armado já ocorrido em território brasileiro.
Se, por óbvio, pode-se concordar que o movimento de 1932 não representou uma contra-revolução de 1930, até porque, como mostrou Gorender, não houve qualquer tipo de revolução, por outro lado, dada a composição da Aliança Liberal, poder-se-ia indagar: Qual programa?
Em 1932 falou-se de constituição e de legalidade. Caberia também perguntar: Que forma de constituição e que tipo de legalidade? É interessante notar que os integrantes do Partido Democrático, enquanto nutriam esperanças de poder, não teceram qualquer tipo de crítica ao centralismo de Vargas e à ausência de uma constituição, questões essas apresentadas posteriormente como motivadoras da luta.
Através de um discurso homogeneizador e generalizante, a classe dominante paulista procurou associar os seus ideais a toda sociedade. Através da construção de um passado mítico, veiculou-se um sentimento ufanista, onde o bandeirante foi apresentado como o construtor da nacionalidade. Reforçou- se assim a idéia do papel desempenhado por São Paulo na condução do destino nacional. Paralelamente, a imagem de poder e riqueza de São Paulo era apresentada como motivo de inveja dos demais estados.
A propaganda teve assim um papel fundamental, constituindo-se também em arma de guerra. À mulher foi atribuído uma função especial. O papel desempenhado pelo VISTA A SAIA na arregimentação de “voluntários” foi fundamental, chegando a exercer verdadeira pressão moral sobre os homens.
Tem-se assim, portanto, o discurso ideológico como instrumento de
dominação, possibilitando o apelo à “laboriosa população de São Paulo” e a “todo o povo sem distinção de classes”. Dessa forma, ao mesmo tempo em que o discurso ideológico prestava-se à arregimentação, cumpria o seu papel camuflando os conflitos e as aspirações das demais classes sociais.
Notas:
[i] De Paula, Jeziel. 1932 – Imagens construindo a História. São Paulo. Ed. Unicamp/Ed. Unimep, 1998.
[ii] Hilton, Stanley. A guerra civil brasileira: a história da revolução constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1982.
[iii] Bezerra, Holien G. Artimanhas da dominação: São Paulo – 1932. Tese de Doutoramento. FFLCH- USP. São Paulo, 1981. p. 93.
[iv] Skidmore, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. 10a Edição. Pp. 29-31.
[v] Carone, Edgar. A república nova: 1930-1937. São Paulo, Difel, 1976. 2ª Edição. Pp. 26 e 27.
[vi] Idem. Pp. 111-114.
[vii] Op. Cit. p. 27.
[viii] Op. Cit.
[ix] Entrevista concedida ao jornal Diário de Taubaté, Suplemento Cultura. Taubaté, 09 de julho de 1999.