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Setenotas Esquerda Socialista Marcelo Badaró
Setenotas Esquerda Socialista Marcelo Badaró
SETE NOTAS
introdutórias como contribuição ao debate
da esquerda socialista no Brasil
CONSEQUÊNCIA
Querido Delio Sinto-me um pouco cansado e não posso escrever
muito. Mas me escreva sempre e de tudo que lhe interessa na
escola. Penso que você gosta de história, tal como eu gostava
quando tinha sua idade, porque se refere aos homens vivos, e
tudo o que se refere aos homens, ao maior número possível de
homens, a todos os homens do mundo enquanto se unem entre
si em sociedade, trabalham, lutam e melhoram a si mesmos –
tudo isto só pode lhe dar prazer, mais do que qualquer outra
coisa. Mas será que é assim mesmo?
Com Renata,
acreditando,
mesmo em tempos cheios de cacos de vidro
Copyright© Marcelo Badaró Mattos, 2017
Revisão de originais
Patrícia Mafra
Capa, projeto gráfico e diagramação
Pablo Henrique
Foto capa
Pablo Henrique
ISBN:978-85-69437-37-6
1. Socialismo. 2. Brasil. 3. Resistência. 4. Conjuntura
brasileira. 5. Movimentos sociais. 6. Brasil contemporâneo. I. Título.
Editora Consequência
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Centro - Rio de Janeiro - RJ
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Sumário
1ª Nota 13
O capitalismo no Brasil
2ª Nota 41
A burguesia no Brasil
3ª Nota 61
Estado e formas de dominação
4ª Nota 75
O sujeito histórico
5ª Nota 107
A organização política
6ª Nota 133
Movimento, mobilização e ação coletiva
7ª Nota 153
O programa
7
O sentido destas Notas
9
em curso entre a esquerda socialista brasileira, através muito
mais de um levantamento de questões inescapáveis do que
da apresentação de respostas definitivas. Seu formato é o de
sínteses, as mais objetivas possível, daí seu caráter introdutório.
Mesmo assim, recorri sempre que possível a fontes atualizadas
de informações e ao melhor do debate acadêmico comprometido
com a transformação social.
Por certo,para esse debate acadêmico e estas Notas não
partimos do zero, mas, sim, de umatradição estabelecida há mais
ou menos tempo entre nós, tendo por anteparo a longa trajetória
do debate socialista internacional, especialmente o ancorado nas
propostas do materialismo histórico. Assim, sempre que possível,
tentou-se aqui resgatar essa tradiçãoatravés de uma síntese que
buscou evitar a simplificação. Há pouco menos de uma década,
fiz uma primeira incursão em alguns desses debates, na qual
também me apoiei.1
É bom esclarecer que não escrevo a partir de uma
posição externa ou neutra em relação ao objeto da discussão.
Pelo contrário, sintetizo reflexões acumuladas na participação
em esforços coletivos de estudo, organização e intervenção à
esquerda. Por isso mesmo, eu e as linhas que se seguem somos
devedores de tudo o que aprendi nesses espaços. Como professor
universitário, participei e participo de uma série de iniciativas
coletivas de debate marxista, com destaque para o Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo
da Universidade Federal Fluminense (NIEP-Marx), além de
militar, desde os anos 1980, no movimento sindical docente.
No período mais recente, tenho me envolvido na construção e
10
consolidação do espaço de debate aberto pelo Blog Junho, frente
ampla e aberta de elaborações intelectuais socialistas. Não por
outra razão, o blog é uma plataforma a partir da qual as ideias
sistematizadas nestas Notas foram divulgadas, ainda que em
um formato mais condensado. No plano partidário fui um
militante do PT nos anos 1980, afastando-me do partido a partir
de 1994 e mantendo certa independência partidária até que,
após os debates, iniciados em 2003, com o Movimento por um
Novo Partido, envolvi-me na construção do Partido Socialismo
e Liberdade (PSOL), no qual assumi durante um curto espaço de
tempo tarefas de direção e ao qual continuo filiado. Hoje tomo
parte da construção da Nova Organização Socialista (NOS), que
desde 2015 se apresenta como uma contribuição ao processo
de reorganização da esquerda socialista no Brasil. Por isso
mesmo, o diálogo com os(as) camaradas da NOS – assim como
do Movimento por uma Alternativa Independente e Socialista
(Mais), em nossas discussões conjuntas – constitui o estímulo
fundamental para o esforço que desenvolvo nas próximas
páginas.
As Notas estão divididas em sete temas. A primeira visou
identificar as principais linhas do debate sobre a natureza do
capitalismo no Brasil. Indissociável dessa primeira discussão está
a segunda, referente ao caráter da classe dominante que atua no
país. Ao que se segue o debate sobre o Estado e as peculiaridades
das formas de dominação através dele exercitadas por essa classe
dominante. A quarta Nota apresenta a reflexão sobre o sujeito
potencial da transformação social revolucionária. Em seguida, são
apresentadas contribuições ao debate sobre três desafios centrais
que a esquerda socialista precisa enfrentar: o da organização, o
da mobilização/ação coletiva e o da elaboração programática. As
primeiras versões de cada Nota foram publicadas separadamente.
Procurou-se manter aqui um formato que permita a leitura
relativamente independente de cada uma delas.
11
Entre fevereiro e junho de 2017, período em que versões
preliminares destas Notas foram publicadas através do Blog Junho
e (em formato mais dilatado) dos sites da NOS e do Mais, contei
com a leitura, interlocução e revisão de diversos(as) camaradas.
Registro aqui meu agradecimento a Felipe Demier e a Marco
Pestana, que leram, discutiram e revisaram a maioria das Notas,
bem como a Alexandre de Oliveira Barbosa, que acompanhou
todo o processo. Alvaro Bianchi, Danielle Jardim, Marcelo
Carcanholo e Renata Vereza apoiaram-me com comentários
importantes em diversos pontos. Também foram estimulantes
as conversas sobre as primeiras Notas com Valério Arcary e
Henrique Canary.
12
1ª Nota
O capitalismo no Brasil
3 Sobre o salto industrializante dos anos 1930, ver Sonia Mendonça, Estado
e industrialização no Brasil: opções de desenvolvimento, Rio de Janeiro, Graal, 1985, p.
33 e ss. Séries históricas com os dados do PIB por setor econômico (entre outros)
desde os anos 1970 podem ser encontradas nas cartas de conjuntura do IPEA.
Para os dados até 2015, ver:<http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6620>,
último acesso em janeiro de 2017.
4 Tendo por base o índice de Gini, o Brasil ocupa a posição de número
130, entre 144 países. Disponível em <http://www.indexmundi.com/es/datos/
indicadores/SI.POV.GINI/rankings>, último acesso em janeiro de 2017. Se
o indicador utilizado for o IDH, estamos em 75º lugar, entre 188 países,
conforme<http://hdr.undp.org/sites/default/files/ranking.pdf>, último acesso em
janeiro de 2017.
14
capitalista em sua dimensão global. Tal questão de forma alguma
é suficiente para explicar o processo de acumulação de capital,
visto que seria necessário analisar outros elementos essenciais,
como a forma assumida pelas relações de produção no contexto
local, para ficarmos apenas em um exemplo. Entretanto, sempre
é necessário partir de algum lugar. E com o desenrolar da
argumentação, outras questões serão postas.
Um pouco de história
15
originários da terra, chamados pelos europeus de índios, em
função do genocídio colonizador, mas também da resistência à
escravização e da dispersão no território. Também não o poderia
ser por trabalhadores de origem portuguesa, pois mesmo que
houvesse disponibilidade desses braços em abundância, nada
os prenderia à plantation monocultora numa situação em que
abundavam terras desocupadas, que buscariam ocupar como
camponeses autônomos. A solução envolveu a importação de
força de trabalho escravizada do continente africano. Assim,
segundo as estimativas mais bem documentadas disponíveis,
mais de 5,8 milhões de homens e mulheres de diversas regiões
do continente africano foram aprisionados, vendidos como
mercadorias e embarcados à força para o Brasil entre os séculos
XVI e XIX – quase a metade dos cerca de 12,5 milhões de pessoas
trazidas nessas condições da África para as Américas.5 O conjunto
das relações sociais nos mais de trezentos anos que se seguiram
ao início do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizados
africanos foi em grande medida definido pela dominância da
escravidão.
Por isso, interpretações que destacam que o “sentido da
colonização” residiu no estabelecimento da grande propriedade
monocultora, destinada a garantir os lucros comerciais da
metrópole, explicam parte da história da economia colonial, mas
a prevalência das relações de produção baseadas na escravidão
gerou uma dinâmica social própria, um modo de produção
peculiar, escravista e colonial.6
5 De acordo com o banco de dados construído a partir dos registros de
viagem dos navios negreiros em um projeto de pesquisa internacional, cujos
resultados estão disponíveis em <http://www.slavevoyages.org/assessment/
estimates>, último acesso em janeiro de 2017.
6 O debate entre os que, como Fernando Novais, resgataram as teses
de Caio Prado Júnior sobre o sentido da colonização para destacar o caráter
subordinado da economia colonial no Antigo Sistema Colonial e aqueles que,
como Ciro F. S. Cardoso e Jacob Gorender, defenderam a centralidade das
relações sociais de produção para a o entendimento da sociedade que aqui
se constituiu, valorizando, portanto, a especificidade do modo de produção
escravista-colonial, constituiu a principal discussão da historiografia brasileira
16
Interpretações da História e programas de intervenção
em fins dos anos 1970 e início dos anos 1980. As principais obras desse debate
seriam: C. Prado Jr., A formação do Brasil contemporâneo, São Paulo, Cia. das Letras,
2011 (1. ed. 1942); F. Novais, Portugal e o Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial,
São Paulo, Hucitec, 1979; Ciro F. S. Cardoso, “O modo de produção escravista
colonial na América”, in Théo Santiago (org.), América colonial, Rio de Janeiro,
Pallas, 1975; e J. Gorender, O escravismo colonial, São Paulo, Perseu Abramo, 2011
(1. ed. 1978).
7 O Partido Comunista do Brasil foi fundado em 25 de março de 1922,
tendo como sigla PCB. A fim de se adequar à legislação nacional, em 1960 a or-
ganização alterou o nome para Partido Comunista Brasileiro. Em 1962, a antiga
denominação seria adotada por dissidentes com a sigla PCdoB.
8 Diferentes autores vinculados ao PCB expressaram em suas análises
essa tese dos resquícios feudais. Ela aparecerá por exemplo em Alberto Passos
Guimarães, Quatro séculos de latifúndio, Rio de Janeiro, Fulgor, 1963; e, de forma
mais complexa, pois dando mais peso à centralidade das relações de trabalho ba-
seadas na escravidão, em Nelson Werneck Sodré, Formação histórica do Brasil, São
Paulo, Brasiliense, 1962. Lembremos que Caio Prado Jr. também era filiado ao
PCB e desde os anos 1950 combatia tais interpretações nas discussões internas ao
partido e no debate público, como se pode ver em C. Prado Jr., A questão agrária
no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1964.
17
pela aliança do proletariado com uma suposta “burguesia
nacional” para derrotar o latifúndio e o imperialismo.
Assim, em 1958, o PCB definia que as principais
contradições vividas pela sociedade brasileira giravam em torno
da questão nacional e do pleno desenvolvimento do capitalismo:
18
também por intelectuais de diferentes trajetórias. Nos anos 1960,
uma das principais fontes de crítica e formulação alternativa não
surgiria dos gabinetes universitários, mas de uma organização
política marxista fundada em 1961, a Organização Revolucionária
Marxista – Política Operária (mais conhecida como Polop). Um
dos elementos centrais da crítica da Polop à leitura da realidade e
ao horizonte estratégico do PCB era a avaliação de que a economia
e a sociedade brasileira eram já completamente capitalistas e
que, portanto, a revolução ou seria socialista ou não ocorreria.
No entanto, a evolução e a dinâmica do capitalismo brasileiro
apresentavam características distintas em relação aos países que
primeiro se industrializaram. Tratava-se de um capitalismo que
se desenvolveu de forma dependente em relação à acumulação
de capital nas economias que chegaram ao capitalismo no século
XIX e se constituíram como potências imperialistas. Através de
uma análise da especificidade do capitalismo brasileiro (e latino-
americano), impulsionada por essas discussões desencadeadas
pela Polop, desenvolveu-se no país uma “teoria marxista da
dependência”, que influenciaria todo o debate das organizações
de esquerda após o golpe de 1964 e também uma geração de
intelectuais universitários, que utilizaram ou reinterpretaram a
ideia do capitalismo dependente, no Brasil e na América Latina.
Em seu documento programático mais conhecido, de 1967,
o “Programa socialista para o Brasil”, a Polop assim definia a
situação dependente do capitalismo brasileiro:
19
ao interesse maior de explorar a mais-valia
nacional. Daí que também as medidas anti-
imperialistas radicais só possam destruir as
bases do próprio regime no país. Quando
o imperialismo tomou conta das regiões
mais atrasadas do globo e as integrou no
mundo capitalista na qualidade de regiões
dependentes, ao mesmo tempo cortou
suas possibilidades de repetir o processo
de desenvolvimento trilhado pelas nações
capitalistas avançadas.11
20
mercadorias (trabalho morto) e aquele trabalho vivo do qual
se extraía a mais-valia (ou mais-valor, conforme preferem os
tradutores mais recentes). Correspondendo a mais-valia ao lucro
capitalista (apropriado concretamente de variadas formas, como
lucro industrial, comercial, juros, etc.), mesmo que massas de
lucro maiores possam ser geradas, sua proporção em relação ao
capital investido na produção, ou seja, a taxa de lucro, tende a
cair. Nas palavras de Marx:
12 Karl Marx, O Capital: crítica da economia política, Livro III, v.1, 2. ed.,
São Paulo, Nova Cultural, 1985-1986, p. 164. A obra, em suas muitas edições e
em vários idiomas, pode ser encontrada em diferentes sítios na internet. Uma
explicação sintética sobre a questão porém mais desenvolvida do que a que aqui
apresento pode ser encontrada em Gabriel Casoni, “A queda tendencial da taxa
de lucro e as crises do capitalismo”, 27 dez. 2016, disponível em<http://blog.es-
querdaonline.com/?p=7789>, último acesso em janeiro de 2017.
13 K. Marx, O Capital, Livro III, obra citada, p. 181.
21
listada por Marx é justamente a elevação do grau de exploração
do trabalho (elevação da taxa de mais-valia), que pode ser obtida
de diversas maneiras, em especial através da ampliação do uso
de máquinas e novas tecnologias e do alongamento da jornada e/
ou da intensidade do trabalho.14 A seguir, Marx acrescenta uma
outra possibilidade: “a compressão dos salários abaixo do seu
valor”, ou seja, o pagamento de salários inferiores ao mínimo
necessário para a manutenção e reprodução da força de trabalho.
Outra “causa contrariante” seria o comércio exterior. Nesse
ponto, Marx mostra que, se as trocas comerciais internacionais
estiveram na origem da acumulação capitalista, com o tempo,
elas se tornaram fundamentais para a reprodução ampliada do
capital, em consequência da necessidade constante de ampliação
de mercados consumidores dos bens industrializados. Demonstra
também que o lucro no comércio exterior pode ser maior, por
um lado, porque as empresas exportadoras conseguem vender
mercadorias com preços mais elevados que no mercado interno
(pela inexistência dessa produção ou pelo desenvolvimento
industrial mais atrasado dos países compradores); por
outro,porque as relações de produção são menos desenvolvidas
em países coloniais ou recém-saídos da situação colonial,
levando a uma maior taxa de mais-valia (e, portanto, de lucro)
dos capitais externos investidos no interior desses países. Nas
palavras de Marx:
22
Decerto a tendência à queda da taxa de lucro também se
manifestaria nessas economias incorporadas à lógica do capital
pelo comércio exterior, ampliando globalmente as contradições
do sistema. Com sua análise, Marx demonstrava como a
acumulação capitalista tendia a conectar parcelas cada vez mais
amplas do planeta, submetendo-as a um mesmo processo. Um
processo de desenvolvimento global, porém profundamente
desigual, pois as assimetrias entre os países que primeiro
desenvolveram o modo de produção capitalista e os demais,
arrastados por aqueles à submissão às leis da acumulação,
tendem a se perpetuar. Em outra passagem, acrescenta que a
23
trustes) passaram a controlar fatias muito grandes do mercado
consumidor das mercadorias que produziam, em escala nacional
e internacional. Além disso, essas grandes empresas e associações
entre empresas eram potencializadas pela combinação cada vez
mais inextricável entre o capital dos bancos e o das indústrias.
Por outro lado, o comércio exterior e a exportação de capitais
tiveram sua importância não apenas confirmada, mas também
potencializada, num período em que o “neocolonialismo” levou
à disputa – que assumiria um caráter genocida com as guerras
mundiais – entre as maiores economias capitalistas pelo controle
de territórios coloniais (ou mercados consumidores de países
independentes no âmbito político, mas dependentes no âmbito
econômico). Hilferding, Kautsky, Rosa Luxemburgo e Bukharin
foram alguns dos marxistas que se dedicaram a interpretar a
conjuntura de sua época a partir de uma categoria-chave que não
aparecia como tal em Marx: imperialismo.18 Entre os teóricos do
imperialismo, aquele cuja obra ganharia maior repercussão foi
Lenin.
Lenin buscaria em Hilferding a análise da associação entre
capital bancário e industrial, formando o que ambos definiram
como capital financeiro. Também na obra do mesmo economista
austríaco, Lenin buscou referências para tratar dos trustes como
“monopólios” e para discutir o imperialismo. De forma distinta
de Hilferding e de outros envolvidos no debate, porém, Lenin
entendia que o imperialismo não era apenas uma política
do capital para responder aos desafios daquela conjuntura
18 Um excelente resumo do debate sobre o imperialismo pode ser
encontrado em Hugo F. Corrêa, “O status da categoria imperialismo na
teoria marxista: notas preliminares a partir do debate clássico”. Trabalho
apresentado ao encontro Marx e o Marxismo em 2011, disponível nos Anais do
evento:<http://www.niepmarx.com.br/MM2015/anais2011.htm>, último acesso
em janeiro de 2017. Neste espaço não podemos reproduzir a relevante análise
crítica desenvolvida pelo autor acerca do uso de categorias como monopólio e
capitalismo monopolista por aquelas obras clássicas, mas vale o registro sobre
sua proposição de que em tal viés de análise acabava por ser privilegiada uma
oposição entre concorrência e monopólio, que não encontra correspondência na
discussão de Marx sobre a concentração e centralização de capitais.
24
instaurada com a grande crise, mas constituía-se mesmo como
uma nova – e superior – fase do capitalismo. A passagem mais
conhecida de seu estudo Imperialismo: fase superior do capitalismo
resumia em cinco características a fase imperialista, também
chamada por ele de “capitalismo monopolista”:
1) a concentração da produção e do
capital levada a um grau tão elevado de
desenvolvimento que criou os monopólios,
os quais desempenham um papel decisivo
na vida econômica; 2) a fusão do capital
bancário com o capital industrial e a
criação, baseada nesse “capital financeiro”
da oligarquia financeira; 3) a exportação
de capitais, diferentemente da exportação
de mercadorias, adquire uma importância
particularmente grande; 4) a formação de
associações internacionais monopolistas de
capitalistas, que partilham o mundo entre
si, e 5) o termo da partilha territorial do
mundo entre as potências capitalistas mais
importantes.
O imperialismo é, pois, o capitalismo na fase
de desenvolvimento em que ganhou corpo
a dominação dos monopólios e do capital
financeiro, adquiriu marcada importância a
exportação de capitais, começou a partilha
do mundo pelos trustes internacionais e
terminou a partilha de toda a terra entre os
países capitalistas mais importantes.19
26
De volta ao Brasil contemporâneo
27
momentos, Marini foi professor da UnB e exilou-se após sofrer
com as perseguições que se seguiram ao golpe de 1964, passando
a lecionar e militar no México e no Chile. Com seus estudos (assim
como os de Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra), desenha-se
o corpo central da chamada teoria marxista da dependência.23
Não havendo neste artigo espaço para avançar mais na
discussão do conjunto das contribuições apresentadas pelas
análises de Marini, fica o registro de duas de suas mais instigantes
sugestões. A primeira aponta que, premido pela dependência
em relação ao imperialismo, o capitalismo brasileiro só poderia
desenvolver-se extraindo uma quantidade suficientemente
elevada de mais-valor, de forma a garantir não só a reprodução
do capital internamente, mas também a remuneração do
capitalismo central, em uma espécie de compensação por suas
desvantagens relativas. Essa “transferência de valor”24 se realiza,
segundo Marini, através das “trocas desiguais” que caracterizam
o comércio externo (e as remessas de lucros das multinacionais,
pagamento de royalties por patentes, financiamentos externos
etc.) entre uma economia dependente, com menor composição
orgânica de capital, e as economias centrais imperialistas. Para
compensar essa apropriação externa é necessário, portanto,
perenizar formas de “compressão do salário abaixo de seu valor”,
próprias das economias dependentes, para além das formas
de ampliação “relativa” (sempre limitadas pela produtividade
28
inferior à dos países centrais) e “absoluta” do mais-valor. A
condição central para o desenvolvimento capitalista dependente
é, portanto, essa “superexploração” da força de trabalho. Neste
ponto nos concentraremos numa outra sugestão de Marini: a
crise capitalista atravessada pelo Brasil nos anos 1960 poderia
ser explicada pela lei de tendência à queda da taxa de lucros,
que originaria a busca de uma saída também pela expansão do
comércio externo – não apenas o de produtos primários, como
na primeira metade do século, mas também o de produtos
industrializados, descrito por Marx, como vimos, como uma das
“causas contrariantes” daquela tendência.
Ao buscar ampliar a pauta de exportações com produtos
industrializados – inclusive bens de consumo duráveis – e
ampliar os mercados e as fatias desses mercados conquistados
pela produção brasileira, a política econômica da ditadura iniciou
um processo que Marini iria apreender através da categoria
“subimperialismo”. O termo tentava dar conta do fato de que
tal expansão para mercados externos, embora pudesse gerar
tensões em alguns momentos, não significava de forma alguma
uma ruptura nos laços de dependência com o imperialismo
(sobretudo o estadunidense), até porque a maior parte das
indústrias instaladas no país com capacidade de atender a
esses novos mercados externos era de capital multinacional ou
associado. O termo aparece pela primeira vez em um artigo de
1965, mas reapareceria em vários outros escritos do autor nos
anos seguintes. Em uma das definições apresentadas por Marini:
29
a composicção organica média nacional do
capital, isto é, a relação existente entre meios
de producção e força de trabalho, dá lugar a
subcentros economicos (e políticos), dotados
de relativa autonomia, embora permaneçam
subordinados à dinâmica global imposta
pelos grandes centros.25
30
governo do Equador rompeu contratos com a empresa, a partir
de 2008, por considerá-los lesivos aos interesses nacionais, a
forma predatória em relação às economias mais frágeis dos
países vizinhos ficou evidente. Apenas 18% dos lucros com a
venda do petróleo equatoriano eram apropriados pelo Estado,
que concedera direito quase irrestrito de uso de suas riquezas
nacionais a empresas estrangeiras. A Petrobras não aceitou as
novas regras postas pelo governo e cancelou operações no país.
As negociações que se seguiram resultaram, em 2012, numa
indenização de 270 milhões de dólares à empresa brasileira.28Ao
longo do movimento privatizante recente, hipocritamente
denominado de “desinvestimento”, a Petrobras se desfez de
uma parcela dos ativos na América Latina. Pelo total arrecadado
com a venda dessas empresas e participações societárias – cerca
de 1,3 bilhão de dólares – podemos ter uma ideia do volume de
negócios no exterior da empresa.29
Na esteira dos escândalos de corrupção envolvendo
empreiteiras brasileiras, que atuam no exterior em ligação com a
Petrobras ou sozinhas, tomamos conhecimento, por exemplo, de
que a Odebrecht “de 2001 até este ano, (…) realizou ou mandou
fazer pagamentos que somam cerca de 439 milhões de dólares
em 11 países fora do Brasil, nove deles latino-americanos (…). A
partir desses pagamentos, a empreiteira obteve ganhos de mais
de 1,4 bilhão de dólares”.30
28 Ver a respeito a reportagem “Equador indenizará a Petrobrás com U$
217 milhões por final de contrato”, do portal G1, 30 abr. 2012, disponível em
<http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2012/04/equador-indenizara
-petrobrasx-com-us-217-milhoes-por-final-de-contrato.html>, último acesso em
janeiro de 2017.
29 Ver a esse respeito a matéria “Petrobrás vende US$ 1,3 bi em ativos
na América Latina”, publicada pelo Estado de São Paulo, disponível em: <http://
economia.estadao.com.br/noticias/geral,petrobras-vende-us-1-3-bi-em-ativos-
na-america-latina,10000048947?success=true,24/01/2017>, último acesso em
janeiro de 2017.
30 Joan Faus, “A propina da Odebrecht fora do Brasil: Venezuela,
Argentina, Peru e Angola”, El País - Brasil, 22 dez. 2016, disponível em <http://
brasil.elpais.com/brasil/2016/12/21/politica/1482360664_921109.html>, último
acesso em janeiro de 2017.
31
Segundo dados coligidos por Virgínia Fontes referentes ao
ano de 2008, a Odebrecht é uma das mais internacionalizadas
empresas brasileiras, com cerca de 70% de suas receitas
originárias da atuação externa. Casos como esse seriam
evidências da tese da autora de que o Brasil, embora de forma
subordinada, integra o grupo de países “capital-imperialistas”.31
Capital-imperialismo é o conceito empregado por Fontes para
explicar o desenho atual da economia capitalista em sua escala
global. Resgatando sua rica definição, que envolve também o
reconhecimento do “predomínio atual do capital-monetário, ou
da forma mais concentrada do capital” e a avaliação do perfil
“censitário-autocrático” dos regimes políticos democráticos na
atualidade:
32
bloquear essa historicidade expandida,
pelo encapsulamento nacional das massas
trabalhadoras, lança praticamente toda a
humanidade na socialização do processo
produtivo e/ou de circulação de mercadorias,
somando às desigualdades precedentes
novas modalidades.32
33
anos, apresentaram uma forte tendência à concentração nas
chamadas commodities. Segundo um estudo do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), “entre 2007 e 2010, a
participação das commodities primárias na pauta de exportações
brasileiras saltou dez pontos percentuais, de 41% para 51%,
depois de ter estacionado no patamar dos 40% nos anos 1990”.34
Há que se observar, porém, que, mesmo que a maior parte dessas
mercadorias – soja, petróleo bruto e minério de ferro, por exemplo
– representem matérias-primas para um processo industrial que
a elas agregará mais valor em outros espaços nacionais, sua
produção interna envolve hoje um patamar muito mais elevado
de valor agregado do que aquele representado pela cafeicultura
que dominou as exportações brasileiras durante quase todo o
século XIX e a primeira metade do século XX.
É também inegável que o setor industrial tem recuado na
composição da produção nacional. No entanto, não houve avanço
significativo da participação relativa do setor primário, tendo
ocorrido um crescimento, esse sim expressivo, do setor terciário.
Nos anos 1970, a agropecuária respondia por cerca de 10 a 12%
do PIB brasileiro, enquanto a indústria representava cerca de
40%, e os serviços, os outros 48 a 50%. Um recuo da participação
do setor primário se inicia no fim dos anos 1980, e a indústria
começa a perder espaço já nos anos 1990. Ao longo daquela
década, a participação do setor primário recua do patamar
de 8 para o de 5,5% do PIB, enquanto a indústria declina sua
participação dos quase 40 da década anterior para cerca de 27%,
e os serviços saltam dos 60 para os 67%. Tais patamares, atingidos
nos anos 1990, se mantêm quase inalterados nos anos 2000.35 É
necessário, no entanto, ter em conta que – não necessariamente
34 “Exportações: o avanço das commodities”, disponível
em<http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_
content&view=article&id=2513:catid=28&Itemid=23>, último acesso em janeiro
2017.
35 Dados conforme a série histórica do PIB pela ótica da oferta organi-
zada pelo IPEA. Ver<http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/6620>, último
acesso em janeiro de 2017.
34
pelas mesmas razões – o recuo da participação do setor industrial
na composição do PIB é uma tendência também nas principais
potências capitalistas, à exceção da China. Nos EUA, os dados
mais recentes indicam que a participação da agricultura é de
1,1%, a da indústria, 19,4% e os serviços respondem por 79,5%
do PIB.36
Quanto à maior participação do capital estrangeiro na
economia interna, não há qualquer dúvida. Segundo o censo do
Banco Central, em 2014 o investimento direto no país (IDP) de
capital estrangeiro somava 531,4 bilhões de dólares, equivalentes
a 25,6% do PIB. Em 1995, esse valor era de 41,7 bilhões de dólares,
correspondendo a 6,1% do PIB.37 Tomando como exemplo o
chamado “setor financeiro”, central para a configuração atual
das economias capitalistas, a expansão da presença do capital
estrangeiro nos anos 1990 foi muito expressiva. Segundo pesquisa
do IPEA, “entre 1994 e 2001, o número de bancos estrangeiros
em atividade no Brasil saltou de 38 para 72”.38
Um elemento agravante da dependência foi destacado por
Roberto Leher em vários de seus estudos: trata-se da reduzida
dimensão da inovação tecnológica gerada pelo capitalismo
brasileiro, mensurável, por exemplo, pelo número e proporção
de patentes registradas. Um processo agravado pelas políticas
adotadas desde os anos 1990, pois “com a privatização das
estatais, espaços de aprendizado foram desfeitos com o
fechamento dos departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento
das empresas públicas, situação que alcançou diversas áreas
38
Mesmo sem espaço para esgotar neste momento a
questão, cabe, por fim, colocar um problema para a análise da
conjuntura. Quando, a partir de 2014, teve início a articulação
entre setores dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que
deu início à ofensiva alegadamente “de combate à corrupção”,
para além da atribuição de responsabilidade quase exclusiva aos
representantes do PT por parte de investigadores, juízes e mídia,
é forçoso reconhecer que seus alvos preferenciais em relação ao
capital (Petrobras e empreiteiras) foram justamente os setores
avançados da expansão subimperialista em moldes renovados
da década anterior. É cedo para afirmar com precisão qual o peso
da ofensiva do imperialismo estadunidense na América Latina
sobre tais processos recentes, mas já há elementos suficientes
para afirmar que ela existe.
De qualquer forma, no imediato, se as contradições do
subimperialismo, em sua conformação a partir do capitalismo
dependente brasileiro, se tornam mais evidentes, ganha maior
centralidade uma das avaliações apresentadas por Sampaio
Jr. em sua crítica às ilusões induzidas pelos apologistas de um
suposto “neodesenvolvimentismo” lulista:
39
2ª Nota
A burguesia no Brasil
41
Esse dado não deve surpreender em uma análise marxista.
Marx explicou como a lógica da acumulação capitalista –
dada a tendência à modificação da “composição orgânica do
capital”, com crescimento do peso relativo do capital constante
(máquinas, equipamentos, matérias-primas) em relação ao
capital variável (força de trabalho) – levava a um processo de
concentração de capitais (com a tendência de “sobrevivência”
dos maiores sobre os menores). Numa escala mais avançada, os
detentores desses capitais concentrados, capazes de incrementar
a produtividade do trabalho e obter maiores porções de mais-
valor, seguiam incorporando fatias de mercado ou propriedade
de outras empresas, em um viés de centralização do capital. Em
um parágrafo de síntese, Marx explica:
42
O capital se revela cada vez mais como poder
social, cujo funcionário é o capitalista, e já
não está em nenhuma relação possível com
o que o trabalho de um indivíduo isolado
pode criar – mas como poder social alienado,
autonomizado, que, como coisa, e como
poder do capitalista mediante essa coisa,
confronta a sociedade.46
Um pouco de história
46 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro III, v.1, 2. ed., São
Paulo, Nova Cultural, 1985-1986, p.198.
47 K. Marx, O capital, Livro I, obra citada, especialmente o cap. 24 das
edições brasileiras, “A assim chamada acumulação primitiva”.
43
A classe dominante local até a abolição foi, por isso
mesmo, basicamente agrária e senhorial-escravista. Ou seja,
mesmo sob um modo de produção dominado pelas relações
escravo-senhor, no século XIX houve acumulação suficiente para
o surgimento das primeiras fábricas voltadas para o mercado
interno de gêneros não duráveis (alimentos processados,
tecidos grossos, velas e sabão, etc.) e dos primeiros capitalistas
ligados à indústria, embora seu papel nas relações sociais mais
amplas fosse absolutamente secundário. Ainda assim, a inserção
daquela economia agrária no circuito mundial capitalista
conferia características de empresariamento burguês – do ponto
de vista das redes de comércio, do financiamento da produção
e das dimensões dos serviços infraestruturais, sobretudo de
transportes – à agricultura de exportação escravista.
Essas características levaram diversos autores a
compreenderem a fração mais importante da classe senhorial
exportadora – os cafeicultores, em especial os de São Paulo –
como uma “burguesia cafeeira”,48 interessada em promover
a modernização capitalista brasileira, o que a levaria a apoiar
a abolição da escravidão e a fazer a opção pelo trabalho livre-
assalariado, importando braços do continente europeu. Jacob
Gorender foi dos autores que melhor argumentou em contrário
a essa caracterização, demonstrando o compromisso dos
cafeicultores paulistas com a escravidão até seus estertores, assim
como a dominância de relações de trabalho não propriamente
assalariadas no período posterior à abolição nas “plantagens”
escravistas.49
44
Ainda assim, as origens de uma burguesia industrial no
Brasil tiveram relação com a acumulação originária da agricultura
de exportação, principalmente em São Paulo, onde a indústria
nasceu na órbita do complexo cafeeiro. No entanto, os primeiros
burgueses industriais raramente surgiram entre os fazendeiros,
pois a circulação de capital acumulado pela cafeicultura para
outros setores da economia se fez sob a intermediação do sistema
bancário e do grande comércio. Mais direta foi a passagem de
grandes comerciantes, em particular importadores, à condição
de industriais, tanto em São Paulo – que se industrializou mais
tarde, porém com mais força, a partir dos anos 1910 – como
também no caso do Rio de Janeiro, onde a praça comercial local
foi capaz de gerar capital disponível para inversões industriais e
investidores dispostos a isso desde a segunda metade do século
XIX.50
Por qualquer de suas origens na acumulação originária
de base local –pela conexão indireta com o capital oriundo
da agricultura de exportação ou pelas inversões diretas de
empresários ligados ao comércio importador – e também pelo
investimento direto de capitais estrangeiros (pouco significativo
até meados do século XX, pois predominava o investimento
indireto, na forma de financiamentos internacionais ou o
investimento direto em setores como transportes e serviços
urbanos), as primeiras indústrias “nacionais” já nasceram
sob a marca do mercado mundial dominado pelas potências
imperialistas e, portanto, da dependência em relação aos centros
mais dinâmicos da economia capitalista (sobretudo a Inglaterra
e, após a I Grande Guerra, os Estados Unidos).
As peculiaridades da burguesia resultante de tal processo
de “acumulação originária” local em meio à acumulação
ampliada e mesmo ao imperialismo na escala internacional não
50 Além de J. Gorender, A burguesia brasileira, obra citada, ver também
a excelente síntese de Maria Bárbara Levy, “República S.A.: a economia que
derrubou o Império”, Ciência Hoje, n. 59, nov. 1989.
45
poderiam ser apreendidas por uma simples repetição do padrão
inglês ou Europeu ocidental. Por isso mesmo, não seria adequado
esperar dessa “nova” classe dominante capitalista a repetição dos
movimentos políticos revolucionários de ruptura com o “Antigo
Regime”, em modelo semelhante ao da Revolução Francesa. Nem
propriamente nacionais e muito menos democráticos poderiam
ser os projetos dessa burguesia local, incapaz e completamente
desinteressada, portanto, de cumprir um papel na “revolução
nacional democrática”, ou a etapa “democrático-burguesa” da
revolução, que os programas etapistas lhe imputavam.
Embora os interesses específicos da classe dominante
rural exportadora, dos grandes proprietários ligados ao mercado
interno, dos grandes comerciantes e dos primeiros industriais
variassem entre a complementaridade e a contradição direta,
o próprio desenho do capitalismo dependente levou a uma
burguesia industrial que nunca demonstrou propensão à ruptura
completa com os interesses e as formas de dominação da classe
dominante agrária de origem senhorial-escravista.
Comparando o padrão de dominação de classe sob
o domínio escravista com a dominação burguesa do Brasil
capitalista, Florestan Fernandes destacou o que chamou de
“padrão compósito e articulado de hegemonia burguesa”.51 Tal
padrão decorria da própria formação da burguesia, pois, no caso
brasileiro, a burguesia industrial teria se formado pela associação
com – e não pela contraposição à – a acumulação originada na
propriedade rural agroexportadora. Em paralelo, do ponto
de vista do capital internacional, cedo notou-se a tendência à
associação de capitais de uma burguesia típica do capitalismo
dependente. A forma compósita e heterogênea decorria de
imposições – a subalternidade relacionada à dependência, no
plano internacional –, mas também de opções, sobretudo pela
associação com a classe dominante rural (a “oligarquia”, na
46
linguagem do início do século XX). Sua razão principal seria a
necessidade, pressentida desde muito cedo, de contrapor-se à
pressão transformadora (real ou latente) da classe trabalhadora
em construção. Nas palavras de Florestan:
52 Ibidem, p. 218.
53 Também aqui nos parece acertada a crítica de J. Gorender, que interpreta
a abolição como uma “revolução social”, que resultou na superação do modo de
produção escravista colonial, na qual a ação dos trabalhadores escravizados, em
articulação com outros setores sociais, teve um papel significativo. Apoiando-se
em Gorender, Décio Saes vai mais longe, defendendo que os escravos em sua luta
foram a “força principal”, enquanto a classe média urbana foi a “força dirigente”
não apenas do abolicionismo, mas do próprio processo inicial de formação do
Estado burguês, entre 1888 e 1891, com a Abolição, a Proclamação da República e
a Assembleia Constituinte republicana. Não é preciso concordar com o conjunto
de sua tese para compartilhar da proposição de um papel ativo dos trabalhadores
escravizados, em aliança com outros setores sociais, na derrubada do escravismo.
Decio Saes, A formação do Estado burguês no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1985.
47
mais associações, ainda que conflituosas, do que sentimentos
nacionalistas) e o seu entrelaçamento com a classe dominante
rural não impediram a formação de uma classe dominante
senhora do aparato estatal necessário para seu projeto de classe:
48
alfandegária, cambial e fiscal e intervenção direta do Estado, quer
investindo diretamente em infraestrutura– em alguns casos, na
própria produção industrial –, quer controlando as pressões do
proletariado através das políticas trabalhista e sindical.56
A capacidade de organização como classe da burguesia
localizada no Brasil só faria aumentar nas décadas seguintes.
Assim como seus vínculos com o capital internacional. Com
o salto industrializante da segunda metade dos anos 1950,
fortemente ancorado na ampliação das facilidades para o
investimento direto de capital estrangeiro, acentuaram-se as
características “compósitas e heterogêneas” de uma burguesia
industrial cada vez mais associada ao imperialismo.
René Dreifuss mostrou como a fração burguesa industrial
do grande capital associado desenvolveu forte capacidade
organizativa, essencial para dirigir as demais frações da classe
dominante no processo que resultou no golpe de 1964.57 A
capacidade dirigente demonstrada pela burguesia industrial –
particularmente do grande capital nacional e associado – entre as
frações burguesas no processo político que levou à derrubada do
governo de João Goulart se fortalecerá por intermédio do governo
ditatorial instalado em 1964 que, apesar dos componentes
“bonapartistas-militares” de autonomia relativa do executivo,
levou adiante, desde seus primeiros anos, políticas econômicas
e sociais ditadas diretamente pelos representantes do grande
capital instalados em cargos de primeiro escalão.
49
Qual burguesia e que direção de classe hoje
50
O período final da ditadura, sob o forte impacto de uma
crise capitalista mundial –cujo reflexo interno foi mais forte na
década de 1980, em paralelo ao crescimento das lutas sindicais
e políticas da classe trabalhadora –, foi marcado por embates
entre frações da classe dominante, aos quais se seguiram uma
dada reorganização burguesa. Tal processo se percebe em dois
sentidos: tanto em termos da composição relativa das diversas
formas do capital em adequação às novas configurações do
capitalismo global surgidas a partir do final dos anos 1970 quanto
pela reordenação das políticas de classe da burguesia.
A ditadura criou as condições para a expansão de um
sistema bancário formado por grandes empresas financeiras de
porte nacional (em contraste com o perfil regionalizado antes
dominante) e consolidou ainda mais a centralização de capitais,
com privilégio ao capital estrangeiro (e o nacional a ele associado)
atuante no setor industrial de bens duráveis. Contudo, manteve
elevado o peso das empresas estatais na atividade econômica,
além de fortalecer empresas associadas às grandes iniciativas
estatais no setor de infraestrutura, como as empreiteiras.60
Estavam, assim, criadas as condições para que o
“entrelaçamento pornográfico” entre diferentes formas de
capitais também se manifestasse por aqui. Ele seria marcado,
entretanto, pelas peculiaridades do capitalismo dependente em
meio à crise iniciada nos anos 1970. Ao longo dos anos 1980, a
taxa de lucro, elemento que atinge mais diretamente o capital,
no Brasil atingiu um patamar abaixo da metade do alcançado
na primeira metade da década de 1970, vivendo seu “fundo
do poço” nos primeiros anos da década de 1990.61 O quadro
60 Em relação às empreiteiras, ver Pedro Campos, Estranhas catedrais: as
empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988, Niterói, Eduff, 2014.
61 Esteban Maito, em seus cálculos para as taxas de juros em escala
mundial, estima que, entre 1970-1974, a taxa média de lucro no Brasil foi de 42,8%,
caindo para 14,7% no período 1990-1994. E. Maito, “El capitalismo y su tendencia
al derrumbe”, En defensa del marxismo, n. 48, 2016, p. 166. Disponível em<https://
www.academia.edu/28636267/Maito_Esteban_Ezequiel_-_El_capitalismo_y_
su_tendencia_al_derrumbe_Revista_En_Defensa_del_Marxismo_N_48_2016_>,
51
de crise abre espaço para disputas entre frações e projetos
burgueses em torno de que respostas apresentar para a queda
da lucratividade e a estagnação econômica. Na década de 1980,
em especial no período do governo Sarney (1985-1989), essas
disputas se refletiram nas variações da política econômica (entre
a “ortodoxia” e a “heterodoxia” dos planos de contenção da
inflação) e numa certa polarização entre, por um lado, frações
industriais em busca de uma “nova” saída desenvolvimentista
e, por outro, os advogados dos “ajustes” neoliberais que já
imperavam mundo afora. Nada que abalasse, entretanto, a
unidade para garantir um processo de transição do regime
controlado pelo alto, contendo as lutas sociais que emergiram
em larga escala naquele contexto.62
Combinado a esse quadro local, e enfrentando uma
nova crise de dimensões globais, as “contratendências” (ou
“causas contrariantes”, na expressão de Marx) à tendência à
queda da taxa de lucro, especialmente as oriundas da maior
centralização e exportação de capitais, além da busca por taxas
de mais-valia superiores nos países periféricos, ditaram o ritmo
de uma investida mais vigorosa de todos os capitais privados,
em particular do capital estrangeiro, sobre o setor da economia
controlado pelas empresas do Estado. Tais práticas foram
complementadas pela reestruturação dos processos produtivos,
com a elevação das taxas de desemprego, criando, dessa forma,
melhores condições para um rebaixamento ainda maior do valor
da força de trabalho e para o avanço sobre os parcos direitos
conquistados pela classe trabalhadora. O impacto desse avanço
neoliberal sobre economias dependentes como a brasileira seria
ainda mais devastador no que diz respeito à classe trabalhadora.63
52
No Brasil, como na maior parte do globo, a reestruturação
produtiva e as políticas neoliberais tiveram por efeito uma
reversão momentânea no declínio da taxa de lucros, sendo por
isso mesmo ardentemente defendidas pela burguesia.64
Entendemos, assim, porque a reunificação das
representações burguesas, nos anos 1990, se dará sob o influxo
do projeto neoliberal. No caso do setor industrial, o estudo de
Alvaro Bianchi sobre a Fiesp mostra como as disputas internas
entre as diferentes frações e os distintos projetos de recomposição
da unidade do empresariado industrial face à crise dos anos 1980
foram resolvidas com a adesão – nunca isenta de contradições –
ao neoliberalismo. Em suas palavras:
53
Henrique Cardoso, do prestígio popular obtido pelo controle
da inflação – partia do ataque às parcas conquistas e à maior
capacidade de intervenção social demonstrada pela classe
trabalhadora na década de 1980. Contudo, apresentava também
opções definidas, como lembra Bianchi, para a equalização das
relações público-privado e nacional-estrangeiro na economia
brasileira. A abertura econômica e, principalmente, o programa
de privatizações – levado adiante a partir da vitória eleitoral de
Collor de Melo (1989) e muito aprofundado nas duas gestões de
FHC– são os pontos sem retorno dessa opção neoliberal.
Aloysio Biondi demonstrou o quão pornográfica (para
retomar a expressão de Fontes) foi a transferência de recursos
públicos para o capital privado, com todo um conjunto de
vantagens para o capital estrangeiro, representado por aquele
programa. E o fez usando apenas as informações públicas e
oficiais disponíveis66– escândalos abafados à época poderiam
somar detalhes ainda mais sórdidos ao processo. Todo tipo
de “favor” aos compradores foi concedido por um governo
que atuou absorvendo dívidas e encargos de aposentadorias,
elevando tarifas, despedindo em massa, aceitando títulos
desvalorizados comprados a prazo, concedendo financiamentos
a juros baixos aos interessados, mantendo-se como acionista
majoritário, mas abrindo mão da gestão, etc. etc. etc. Chamando
atenção para apenas um dos efeitos da reconfiguração econômica
resultante da opção neoliberal dos anos 1990, podemos retomar
de Biondi uma passagem sobre a desnacionalização de parcelas
ainda maiores do capital instalado no país:
54
700 milhões de dólares por ano para atingir
a faixa dos 7,8 bilhões de dólares em 1998.
Um salto de 1.000%, ou dez vezes maior. O
mesmo fenômeno ocorreu com o pagamento
de “assistência técnica” e “compra de
tecnologia” (manobra usada também para
remessa disfarçada de lucros às matrizes),
que saltou de 170 milhões de dólares para 1,7
bilhão de dólares, de 1993 para 1998.67
67 Ibidem, p. 26.
68 Dados sobre o financiamento empresarial das campanhas presiden-
55
Para entender essa aproximação entre Lula e a burguesia,
não basta perceber a mudança de posição de frações do
empresariado, mas também, e principalmente, as transformações
do PT ao longo dos anos 1990, cuja “moderação” (no sentido de
uma gestão adequada aos interesses de classe da burguesia)
estava provada por diversas administrações municipais e
estaduais do partido.69
Além disso, as direções sindicais ligadas ao PT, que
comandavam a Central Única dos Trabalhadores (CUT), vinham
também provando sua disposição para o “diálogo” – leia-se
colaboração de classes – havia uma década, desde pelo menos
as “câmaras setoriais” no governo Itamar Franco. Participando
da “gestão tripartite” de fundos como o FAT (Fundo de Amparo
ao Trabalhador) e o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço), dirigentes sindicais cutistas compartilharam discursos
e propostas com os empresários, ainda que pudessem obstar
alguns projetos mais radicais de (contra)reforma trabalhista.
Havia, porém, outro ponto de ligação entre as privatizações, a
burocracia sindical de origem petista e a burguesia que merece
ser lembrado: os fundos de pensão.
No processo de privatização de diversas empresas,
a participação dos fundos de pensão – em especial dos
trabalhadores de empresas estatais, como Previ (Banco do
Brasil), Petrus (Petrobras), Funcef (Caixa Econômica Federal) e
outros – foi decisiva para capitalizar consórcios compradores
liderados por empresas privadas do setor industrial e bancário.
Tais fundos, instituídos com o objetivo de complementar as
aposentadorias da previdência social pública dos trabalhadores
dessas empresas, transformaram-se em importantes alavancas
ciais no Brasil a partir de 1989 podem ser encontrados em Cyro Garcia, PT: de
oposição à sustentação da ordem, Rio de Janeiro, Achiamé, 2011, p. 107-110.
69 Sobre as transformações do PT, há uma bibliografia já ampla.
Destaco Eurelino Coelho, Uma esquerda para o capital, São Paulo, Xamã/Eduefes,
2012, e Mauro Iasi, Metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o
consentimento, São Paulo, Expressão Popular, 2006.
56
da acumulação capitalista, mantendo bilhões em carteiras de
ações da bolsa e de títulos da dívida pública. Desde os anos
1980, os sindicatos vinham lutando e conquistando espaço para
representantes dos trabalhadores nos conselhos gestores dos
fundos, sendo que muitos deles acabariam por ser oriundos
do sindicalismo cutista. Nos conselhos, participaram de forma
ativa da privataria, ganharam individualmente com isso (ao
serem indicados para conselhos de empresas privatizadas, por
exemplo) e, acima de tudo, assumiram como seu o programa do
capital. Nas palavras de Sara Granemann e José Miguel Saldanha:
57
“encolhida”, busca recuperar suas taxas de lucro destinando
recursos cada vez maiores ao “mercado de capitais”. Foi essa
burguesia que diversificou também sua representação política,
incorporando entre as suas opções a de um governo afinado
com seu programa geral, mas capaz de fazer avançar para um
patamar mais elevado a conciliação de classes.
Assim, é possível entendermos como a condução da política
econômica nos dois mandatos de Lula atravessou as variações
cíclicas da economia internacional tendo sempre em vista o
projeto mais amplo do capital. Afinal, as representações do grande
capital, em suas diferentes frações, compuseram o primeiro
escalão dos governos do PT. Como exemplificam os executivos da
banca Meireles no Banco Central nos anos Lula e Joaquim Levy
na Fazenda em 2015; ou as lideranças do agronegócio na pasta
da Agricultura, tendo à frente Roberto Rodrigues no primeiro
mandato de Lula e Kátia Abreu mais recentemente com Dilma
Roussef. Os exemplos poderiam se estender. Ainda, através de
conselhos, como o de Desenvolvimento Econômico e Social,
Lula chamou o conjunto das frações da grande burguesia para
participar diretamente da elaboração das políticas públicas.71
E assumiu como do governo as pautas desses setores: (contra)
reforma da previdência em 2003; medidas em direção à (contra)
reforma trabalhista nos anos seguintes; privilégio ao agronegócio
através de políticas fiscais e financiamentos (além do bloqueio da
reforma agrária); manutenção do ajuste fiscal em seus primeiros
anos de governo e da política de juros altos e superávit primário
elevadíssimo; isenções fiscais direcionadas, ampliação do
investimento estatal em infraestrutura (via PAC), assim como
financiamentos abundantes do BNDES, especialmente para
as “gigantes nacionais”, no auge da crise em 2008/2009, entre
tantas outras políticas discutidas e deliberadas a partir das
71 Sobre a composição e a atuação do CDES nos dois mandatos de Lula,
ver André Guiot, Dominação burguesa no Brasil: Estado e sociedade civil no Conselho
de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) entre 2003-2010, Tese de doutorado,
Niterói, UFF, 2015.
58
representações diretas da burguesia junto ao governo.
A mesma política econômica que garantiu uma travessia
relativamente tranquila pela crise em 2008/2009 não viabilizaria,
no entanto, a resistência aos desdobramentos da mesma
crise quando as condições internacionais se alteraram nos
anos seguintes. Essa é uma das razões que explicam porque a
alternativa petista perdeu espaço na agenda da grande burguesia,
o que resultou no afastamento do PT da presidência em 2016,
abrindo um período de crise política que ainda se mantém
quando estas linhas estão sendo escritas (primeiro semestre de
2017). No interior desse processo, é possível divisar claramente
o programa que unifica as diversas frações burguesas: nova
rodada de privatizações e apropriação do “fundo público”,
sobretudo através do corte de gastos sociais e ampliação do
mercado privado com subsídios em áreas de serviços essenciais
como saúde e educação; mais e mais profundas (contra)
reformas, retirando direitos dos trabalhadores e trabalhadoras,
particularmente na previdência social e na legislação trabalhista;
fim das tímidas barreiras existentes (ecológicas, trabalhistas,
dos direitos indígenas, entre outras) à expansão desregulada do
agronegócio etc. É cada vez mais difícil, entretanto, encontrar
a mesma unidade na definição de que forças e figuras políticas
podem implementar tal programa com maiores chances de êxito,
num quadro que pode ser percebido como o da crise política mais
aguda até aqui enfrentada pelo regime democrático implantado
após o fim da ditadura. A Nota seguinte avança um pouco mais
na discussão sobre o regime democrático “realmente existente”
no Brasil atual, após apresentar referências históricas e teóricas
sobre o caráter do Estado essenciais para tal discussão.
59
3ª Nota
Estado e formas de dominação
61
Em tal situação histórica, Florestan Fernandes
argumentaria, as mais leves demonstrações de manifestação
autônoma dos trabalhadores urbanos e/ou rurais seriam
tomadas como sérias ameaças ao padrão burguês de dominação
autocrática. Daí que tal dominação possua um caráter
permanentemente contrarrevolucionário. O golpe de 1964, tema
central para aquele livro, é explicado pelo sociólogo como uma
resposta “preventiva” da burguesia aos conflitos sociais do
período:
sociológica, 5. ed., São Paulo, Globo, 2005 (1. ed. 1975), p. 340.
73 Ibidem, p. 369.
62
propensão a salvar-se mediante a aceitação
de formas abertas e sistemáticas de ditadura
de classe.74
74 Ibidem. p.369..
75 Ibidem, p. 343.
76 Ibidem, p. 394. Grifo no original.
77 Ibidem p. 394-395.
63
Não cabe neste espaço recuperar a trajetória histórica
mais longa da “autocracia burguesa” no Brasil republicano
segundo a análise de Florestam Fernandes. Podemos, entretanto,
associá-la a outro campo de reflexões sobre o Estado e as formas
de dominação burguesa, que nos parece rico em iluminações
pertinentes para o entendimento da questão no Brasil. Carlos
Nelson Coutinho assinalou a associação entre a ideia de
contrarrevolução – prolongada e preventiva – de Fernandes e o
conceito de “revolução passiva” de Antonio Gramsci.78 De forma
muito sintética, revoluções passivas, na análise de Gramsci,
estão associadas a situações históricas em que as novas classes
dominantes levam adiante projetos de modernização capitalista
sem efetuar uma ruptura completa com os interesses dominantes
anteriores, pois rejeitam o recurso à mobilização das massas,
pelo temor da ação política das classes subalternas.79 Não
tendo tampouco espaço para recuperar o amplo debate sobre
a revolução passiva em Gramsci e seus intérpretes, podemos
resgatar um aspecto da questão. Tratando do reino de Piemonte
e de sua função no processo da unificação italiana, Gramsci nos
fala do Estado nas revoluções passivas, em seu “Caderno 15”:
64
orgânica”, expressão utilizada por Gramsci quase sempre de
forma combinada à “crise de hegemonia”:
65
Por isso mesmo, nas complexas sociedades capitalistas
do fim do século XIX e primeiras décadas do século XX, que
Gramsci denomina “Ocidentais”,83 entender o Estado e as
formas de dominação exige ir além do aparato de governo
– a “sociedade política” – e captar sua inter-relação com a
“sociedade civil”. Assim, o Estado, em seu sentido integral (ou
ampliado), é concebido, como Gramsci afirma no “Caderno 13”,
a partir da “dupla perspectiva”, teoricamente sintetizada nos
polos fundamentais: “da força e do consenso, da autoridade e da
hegemonia, da violência e da civilidade”.84
Voltando a um autor há pouco rapidamente mencionado,
Carlos Nelson Coutinho apresenta o quadro geral da
história brasileira, desde o Império até os anos 1970, como
dominantemente “Oriental”, pois, como resultado da trajetória
da revolução passiva entre nós, apesar de traços ocidentalizantes
visíveis desde a virada do século XIX, “não só a sociedade civil
brasileira era até pouco tempo ‘primitiva e gelatinosa’, mas
também (...) o Estado (...) foi sempre bastante forte”.85
Daí que o resultado da “modernização conservadora”
promovida pela ditadura militar, inscrevendo o Brasil na fase do
capitalismo monopolista, portaria a contradição de um avanço no
processo de ocidentalização pós-década de 1970, visto que a perda
das bases de consenso (um consenso passivo, conforme destaca
Coutinho) da ditadura criou o espaço para que “os aparelhos da
sociedade civil pude[ssem] de novo voltar à luz, hegemonizados
agora por um amplo arco de forças antiditatoriais, que ia da
66
esquerda socialista aos conservadores esclarecidos”.86
O pressuposto desse tipo de avaliação parece ser uma
associação imediata entre emergência da sociedade civil e
ampliação da organização das massas trabalhadoras, expressa,
por exemplo, na perspectiva de que ainda restaria um longo
caminho a percorrer em direção à socialização da política no
Brasil, “para construir um efetivo protagonismo das massas,
capaz de consolidar definitivamente a sociedade civil brasileira
como protagonista de nossa esfera pública”.87
Pode-se questionar tal análise por deixar à margem da
explicação a efetiva e bastante antiga organização dos interesses
das classes dominantes na sociedade civil brasileira, aspecto
abordado na Nota anterior. Nesse sentido, ainda que sob a
lógica geral de um processo de revolução passiva – ou seja, de
uma valorização da iniciativa estatal para operar as mudanças
preservando a ordem (e, portanto, reprimindo a organização e
mobilização das classes subalternas) –, as classes dominantes
investiram, e muito, em suas associações de classe, órgãos de
construção da chamada “opinião pública”, e na constituição
das bases para o consenso ativo no interior do bloco dominante,
assim como para o consenso dos subalternos. Um consenso
predominantemente passivo, mas em certos momentos com
algum grau de atividade, conferido pela incorporação de
lideranças e organizações da classe trabalhadora ao projeto do
capital. Desse ponto de vista, a sociedade civil brasileira estava
longe de ser “primitiva e gelatinosa”, pelo menos desde a
Primeira República.
Não parece ser frutífero, nesse sentido, buscar periodizar
o momento do fim da “revolução passiva”, ou da virada do
jogo em favor da “ocidentalização”, como se tais momentos
pudessem ser encadeados em um esquema de evolução linear. O
86 Ibidem, p. 217.
87 Ibidem.
67
próprio Gramsci nos lembra que suas observações teóricas não
deviam “ser concebidas como esquemas rígidos, mas apenas
como critérios práticos de interpretação histórica e política. Nas
análises concretas dos eventos reais, as formas históricas são
determinadas e quase ‘únicas’”.88
Discordamos, desse modo, da periodização de Coutinho,
pois havia elementos “ocidentalizantes” fortes na dominação de
classes muito antes de 1964, da mesma forma que expressivos
traços do processo de “revolução passiva” resistiram ao fim da
ditadura. No entanto, concordamos que “como critérios práticos
de interpretação histórica e política”, tais conceitos potencializam
interpretações mais complexas do Estado no Brasil. Por isso,
não há motivos para discordar dele em relação ao fato de que,
do ponto de vista da complexificação da sociedade civil, com a
multiplicação de partidos –“no sentido amplo e não formal” de
Gramsci, ou, como são mais comumente chamados, “aparelhos
privados de hegemonia” –, o Brasil, desde o final do século XX,
é plenamente “Ocidental”. Ao que corresponde uma relativa
estabilidade da democracia parlamentar após o período 1985-
1989, quando se concluiu a transição política. Caberia, então,
sustentar que a forma atual da dominação burguesa no Brasil
está solidamente alicerçada no consenso ativo das massas
subalternas? Indo além, isso significaria que o caráter coercitivo
das funções típicas do Estado em seu sentido restrito é secundário
para as estratégias de dominação burguesa hoje em nosso país?
Não há respostas simples para tais questões. De um lado,
vivemos uma dominação de classes caracterizada pelo máximo
investimento no consenso por parte do grande capital. Lúcia
Neves e Virgínia Fontes vêm insistindo em demonstrar como
se deu recentemente uma ampliação dos aparelhos privados de
hegemonia do grande capital – desde os tradicionais meios de
comunicação às novas ONGs (ou Organizações da Sociedade
68
Civil de Interesse Público) – que se empenham por difundir
uma “nova pedagogia da hegemonia”.89 Ou seja, os 2,7 milhões
de crianças e adolescentes atingidos pelos 4.700 projetos sociais
do Programa Criança Esperança, as 27 mil escolas cadastradas
no projeto Amigos da Escola e a maior parte dos 1,54 milhão de
trabalhadores empregados pelas mais de 275 mil ONGs existentes
no Brasil no início dos anos 2000, apenas para citarmos alguns
dos exemplos listados por Neves, são números que nos ajudam
a perceber o tamanho do aparato mobilizado para transmitir
aos subalternos os valores adequados à adaptação a uma ordem
produtiva capitalista baseada na ampliação da expropriação e na
intensificação da exploração da classe trabalhadora.90
Esse elemento se combina com a reatualização das
práticas filantrópicas, travestidas de “responsabilidade
social”, que incorporam intelectuais e militantes através dos
procedimentos de “empresariamento de projetos” como forma
de sobrevivência, rebaixando seus discursos “da crítica social à
denúncia da pobreza”.91 O resultado é a difusão dos valores da
“flexibilidade”, da “mobilidade” e da “adaptabilidade” como
os mais adequados ao indivíduo/trabalhador/empreendedor de
hoje – acompanhados, é claro, do esquecimento, quando não da
condenação, de qualquer tipo de defesa da mobilização coletiva
contestatória –, assim como a substituição das referências à classe
pelas múltiplas identidades. A classe pode ceder lugar também,
nesses discursos e propostas, à ideia do “pobre”, entendido como
objeto de assistência, seja através da responsabilidade social
privada ou das políticas públicas focalizadas, quando aquele
indivíduo “flexível” e “empreendedor” não encontra espaço no
mercado de trabalho.
Estaríamos, no entanto, profundamente enganados se
89 Lúcia Neves (org.), A nova pedagogia da hegemonia. Estratégias do capital
para educar o consenso, São Paulo, Xamã, 2005.
90 Ibidem, p. 102 e 122.
91 Virgínia Fontes, Reflexões im-pertinentes. História e capitalismo
contemporâneo, Rio de Janeiro, Bom Texto, 2005.
69
dessa análise tirássemos a conclusão de que o avanço do aparato
destinado ao estabelecimento do consenso a partir da sociedade
civil – ao mesmo tempo profundamente entrelaçado com a
sociedade política, na forma das “parcerias público-privadas”,
já tão visíveis nas áreas da educação, saúde e assistência social –
implica uma redução do peso da coerção que parte da sociedade
política. Vivemos uma realidade social na qual o extermínio
– em particular de jovens, negros, moradores de periferias e
favelas das grandes cidades brasileiras – é prática corrente,
justificada em nome das políticas ditas de “segurança pública”.
De forma análoga, os militantes e movimentos sociais que ousam
continuar lutando são cada vez mais tratados de forma policial-
penal, demonstrando que a margem de atuação para uma
oposição não consentida é cada vez menor, ainda que o sistema
eleitoral funcione, o parlamento não sofra intervenções, alguns
partidos se revezem nos governos e a democracia (burguesa) seja
festejada como conquista final. Todo esforço coercitivo, seja sobre
as frações mais precarizadas ou sobre as mais organizadas (em
certos momentos até sobre as organizações dos mais precários)
da classe trabalhadora é, por outro lado, transformado em tema
central do esforço de construção de consensos. Tratando dos
locais de moradia e sociabilidade de significativas parcelas da
classe trabalhadora, como as favelas e periferias, a partir do
combate à criminalidade, assim como dos movimentos sociais
como “ameaças à ordem”, os meios de comunicação de massa e
outros aparelhos visam criar consenso em torno da necessidade
de violência coercitiva.
Em suma, se alguém esperava uma “evolução” das
estratégias de dominação em que a ampliação das formas de
construção do consenso corresponderia a uma diminuição do
peso relativo dos mecanismos de coerção, suas expectativas
foram frustradas. Definitivamente não é a isso que assistimos
hoje. Máximo investimento nos aparelhos privados de
70
hegemonia e força máxima na máquina repressiva constituem
a combinação mais adequada para definir o grau de articulação
de coerção e consenso através do qual se constrói a dominação
capitalista numa sociedade ocidental periférica como a brasileira.
O desafio interpretativo maior reside, portanto, no esforço
de entender de que forma o regime democrático que sucedeu
a ditadura contempla, com novas características, o objetivo
“contrarrevolucionário preventivo e prolongado” da dominação
burguesa no Brasil.92
Tratando das formas atuais de dominação de classes e dos
regimes políticos por elas engendrados, Felipe Demier resgata
vários dos conceitos aqui apresentados, mas acrescenta uma
chave interpretativa a partir da qual a trajetória histórica da
“autocracia burguesa” no Brasil é explicada através do conceito
de “bonapartismo”.93 Para entender o regime político que emerge
ao fim da ditadura, quando finalmente o “longo bonapartismo”
brasileiro teria sido superado, Demier cunhou o conceito de
“democracia blindada”. Sua análise vai além do Brasil, tentando
abarcar, através de comparações, outras situações periféricas nas
quais a democracia burguesa se implantou já na fase histórica
em que o capital não pode e não quer ceder a nenhum tipo de
pressão por novos direitos da parte da classe trabalhadora.
Demier parte de uma leitura própria de Gramsci para definir os
regimes democráticos como portando um “caráter hegemônico
isto é, combinando de forma equilibrada elementos de consenso
e coerção”.94
92 Entre os autores que resgatam a discussão sobre a contrarrevolução
permanente e sobre a autocracia burguesa como referências explicativas
válidas para o entendimento do regime democrático no período recente, ver,
respectivamente, Renato Lemos, “Contrarrevolução e ditadura: ensaio sobre
o processo político brasileiro pós-1964”, Marx e o marxismo, v. 2, n. 2, p. 111-
138, 2014 e David Maciel, “Neoliberalismo e autocracia burguesa no Brasil”,
Cadernos Cemarx, n. 5, p. 195-210, 2009.
93 Felipe Demier, O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964), Rio de
Janeiro, Mauad, 2013.
94 F. Demier, “Democracias blindadas: formas de dominação político-
social e contrarreformas no tardo-capitalismo (Portugal e Brasil), Libertas, Juiz
71
As democracias blindadas, diferentemente dos modelos
keynesianos de regulação dos conflitos no pós-guerra, seriam
capazes de impedir “por meio de uma série de artifícios
econômicos, políticos e culturais, que as demandas populares de
cunho reformista possam adentrar a cena política institucional”.95
A questão social, nessas situações, recebe um novo tratamento,
centrado na “expansão de políticas sociais compensatórias,
carentes de universalidade”.96 Sua análise permite também pensar
como os governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores,
a partir de 2003, longe de se contraporem, teriam reforçado a
dinâmica própria da democracia blindada, somando ao quadro
consolidado nos anos 1990 o “‘transformismo’ das principais
representações, nos planos sindical e político, do movimento dos
trabalhadores organizados, a saber, a CUT e o PT”,97 que teriam
sido responsáveis pelo “apassivamento” dos conflitos e pela
construção de consensos mais sólidos em torno do regime.
As políticas sociais compensatórias e o transformismo
das direções, entretanto, se combinam a outras formas, menos
“consensuais” de garantia do controle da ordem. Demier
está atento, nesse sentido, ao sentido de classe da violência
institucional no contexto recente:
de Fora, v. 12, n. 2, 2012, p. 2. Essa discussão foi retomada pelo autor no segun-
do capítulo de seu livro mais recente: F. Demier, Depois do Golpe; a dialética da
democracia blindada brasileira. Rio de Janeiro,Mauad X, 2017.
95 F. Demier, “Democracias blindadas”, obra citada, p. 2.
96 Ibidem, p. 3.
97 Ibidem, p. 17.
98 Ibidem, p. 4.
72
Este não é o espaço para uma caracterização mais
aprofundada das mudanças no regime democrático do Estado
burguês brasileiro no período inaugurado pela posse de Lula da
Silva na presidência em 2003, ou mesmo dos desdobramentos do
golpe intestino ao governo que levou Temer a substituir Dilma em
2016.99 A referência ao trabalho de Demier e à “sua” democracia
blindada, combinada às caracterizações apresentadas nas demais
Notas, pode ser o bastante por agora.
Tratando do capital, da burguesia e do Estado, entretanto,
completamos apenas uma parte das reflexões que o conjunto
destas Notas se propõem a fazer. As Notas seguintes pretendem
se concentrar no outro lado da correlação de forças sociais: a
classe trabalhadora, suas organizações, movimentos e programa.
73
4ª Nota
O sujeito histórico
De volta a Marx
75
Por outro lado, ao contrário do que pensavam seus antigos
amigos da universidade, não seria a iluminação filosófica quem
iria resolver os problemas da humanidade. De pouco servia a
“arma da crítica” sem a “crítica das armas”. A resposta estava
em uma classe, que possuía “cadeias radicais”, com as quais
só poderia romper emancipando todas as outras esferas da
sociedade: “o proletariado”.100 Essa certeza será modulada, nas
décadas seguintes, por diferentes ênfases analíticas e avanços na
caracterização da classe trabalhadora como sujeito histórico do
processo de emancipação social.
No prefácio da segunda edição de O Capital, Marx explica
o vínculo de classe de sua crítica teórica, explicitando mais uma
vez sua perspectiva afirmativa sobre o potencial do proletariado
como sujeito da revolução socialista, pela qual lutava havia então
cerca de três décadas:
100 Karl Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, São Paulo, Boitempo,
2005, p. 155-156.
101 K. Marx, O Capital, v. 1, obra citada, p. 18.
acabaram marcados por “uma reconfiguração revolucionária de
toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta”.102
Exercer tal potencial revolucionário também não é uma
simples questão de “vontade” para a classe. Embora demande
um processo de conscientização, não se resolve também por
simples esclarecimento do sujeito coletivo, pois há obstáculos
à consciência social – ideologia, alienação e estranhamento são
conceitos que tentam explicá-los. E, para além da dimensão
subjetiva (no duplo sentido da expressão – da consciência
e da ação como sujeito –, que Marx definiu como práxis), a
classe trabalhadora comporta uma dimensão objetiva. São
proletários todos(as) aqueles(as) trabalhadores(as) “livres” –
“livres” dos meios de subsistência, expropriados dos meios de
produção necessários a essa subsistência – que por isso mesmo
são compelidos a buscar vender sua força de trabalho (única
mercadoria cuja propriedade lhes resta) para conseguir comprar
as mercadorias que necessitam para (sobre)viver. Assim, “os
homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de
livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem
as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram
transmitidas assim como se encontram”.103 Por outro lado, Marx
também lembra que a emergência da práxis transformadora só
é possível diante de determinadas condições objetivas, afinal, “a
humanidade só levanta os problemas que é capaz de resolver”.104
A classe trabalhadora é definida por Marx, de forma
bastante ampla, como o conjunto daquelas pessoas que vivem
da venda da sua força de trabalho através primordialmente do
assalariamento. Ao tratar da classe trabalhadora, mesmo em seus
77
textos de crítica da economia política, Marx nunca a restringiu
ao operariado industrial,105 nem através de uma associação
restritiva com os submetidos ao que ele chamou “subsunção
real” do trabalho ao capital, tampouco por uma definição que
delimitassea classe no “trabalho produtivo” (que, por sua vez,
também não foi definido como restrito aos trabalhadores fabris).
Todos esses conceitos demandam alguma explicação.
No chamado “Capítulo inédito” d’O Capital, Marx define
a subsunção formal e a subsunção real do trabalho ao capital,
associando a primeira forma à mais-valia absoluta e a segunda
à mais-valia relativa. Marx procura demonstrar que o processo
se inicia pela subsunção formal, a partir da subordinação direta
dos trabalhadores aos capitalistas, quando estes passam, na
condição de proprietários/possuidores dos meios de produção,
a controlar o tempo e as condições de trabalho daqueles, que
foram reduzidos à condição de proletários. O passo seguinte, da
subsunção real, apresenta-se como decorrência da acumulação
propiciada pela etapa anterior, e materializa-se pela “aplicação
da ciência e da maquinaria à produção imediata”.106
No mesmo texto, Marx apresenta a distinção entre trabalho
(e trabalhador) produtivo e improdutivo: “só é produtivo aquele
trabalho – e só é trabalhador produtivo aquele que emprega a
força de trabalho – que diretamente produza mais-valia; portanto,
só o trabalho que seja consumido diretamente no processo de
produção com vistas à valorização do capital”.107 Associando as
duas distinções, Marx vai afirmar que, com o desenvolvimento
105 É importante lembrar que os termos operário/classe operária, em
suas variações comuns às línguas neolatinas, não encontram equivalente em ale-
mão nem em inglês. Laborer seria o termo mais próximo em inglês, mas seu uso
é muito mais restrito. Traduzir o que Marx definiu como “classe trabalhadora”
(arbeiterklasse/working class) por “classe operária” gera sempre confusões
conceituais. Algumas das traduções que cito a seguir alimentam essa confusão.
Mantive os textos tal como aparecem nessas traduções, por respeito às normas
de citações.
106 K. Marx, O Capital, livro I, capítulo VI (capítulo inédito), São Paulo,
Ciências Humanas, 1978, p. 66.
107 Ibidem, p. 70.
78
da subsunção real, “não é o operário individual, mas uma
crescente capacidade de trabalho socialmente combinada que
se converte no agente real do processo de trabalho total”, não
fazendo sentido, pois, buscar o trabalhador produtivo apenas
entre os que desempenham as tarefas manuais diretas.108
Indo além, não é o conteúdo do trabalho desempenhado
nem o setor da economia em que se desempenha esse trabalho que
definirão o caráter produtivo do trabalho ou do trabalhador. Por
isso, Marx faz questão de exemplificar o trabalho produtivo com
figuras como a do artista, ou do professor, embora reconhecendo
que eram exemplos nos quais a subsunção ao capital ainda era
formal.
79
assalariamento e caíam – “desde a prostituta até o rei” –nas leis
que regem o preço do trabalho assalariado.110
Nessa mesma direção, é útil a recuperação que Alex
Callinicos faz de uma passagem de O Capital para defender que
em Marx o conceito de proletariado, ou classe trabalhadora, é
bastante amplo.111 A passagem é aquela em que Marx nota que
80
Trabalhadores do Brasil (e do mundo)
81
(greves, manifestações coletivas, etc.) estavam disponíveis,
via propagação de ideias e experiências, para os trabalhadores
brasileiros; e não apenas para os livres, pois também os
escravizados deles lançaram mão desde muito cedo.
Embora até 1888 o centro da luta de classes no Brasil
girasse em torno da busca pela emancipação dos escravizados
em seu embate contra uma classe dominante senhorial, o
processo de formação da classe trabalhadora já se encontrava em
marcha mesmo antes da abolição, e pode-se dizer que as lutas
abolicionistas foram a principal “escola” da primeira geração de
ativistas socialistas no Brasil, numa combinação até certo ponto
original.
Assim, compreendemos como uma classe trabalhadora
pouco numerosa (até os anos 1930 menos de 30% da força de
trabalho estava empregada nas cidades e o assalariamento no
campo era praticamente inexistente) em um país de economia
agroexportadora recém saído da escravidão, tenha, desde os
anos 1890, formado sindicatos, buscado construir organizações
partidárias, promovido congressos intersindicais formando
confederações de ambições nacionais e realizado centenas
de greves (algumas, como a de 1903 no Rio de Janeiro, com
características de greves gerais). A organização da classe
trabalhadora brasileira foi de tal monta que, quando da onda
internacional de mobilizações que se seguiu à Revolução Russa de
1917, na qual se inscreve e a qual amplifica, ela alcançará impacto
social e político significativo com ações como a greve geral de
São Paulo, em 1917, e a tentativa de insurreição anarquista no Rio
de Janeiro no ano seguinte. O ciclo de mobilizações do período
1917-1920 elevou de tal forma o nível da luta de classes entre
burgueses e proletários, que o Estado ampliou o investimento na
repressão, ao mesmo tempo em que iniciou a discussão sobre a
necessidade de uma “legislação social”.
A legislação social, que foi generalizada para a classe
82
trabalhadora urbana entre os anos 1930-45, combinando o
reconhecimento de direitos (conquistas das lutas, portanto)
com o esforço para controlar os sindicatos e o aperfeiçoamento
do aparato repressivo – concentrado nos braços policiais ditos
“de ordem política e social” –, seria a materialização do modelo
de gestão de conflitos daquela forma de Estado, embebida nas
características da “revolução passiva”, à qual nos referimos em
Nota anterior quando discutimos o caráter contrarrevolucionário
preventivo da dominação burguesa no país.
Este é o parâmetro para entendermos a permanência da
estrutura sindical corporativista e da ênfase repressiva sobre as
organizações e lutas dos trabalhadores no período de “ensaio
democrático”, entre 1945-1964, sua utilização de forma ainda
mais coercitiva durante a ditadura militar e a resistência em
desmontá-la completamente, mesmo com a “redemocratização”
constitucional de 1988. Também por esse caminho, podemos
compreender a importância tanto da luta da classe trabalhadora
para efetivar direitos que a legislação muitas vezes anuncia,
sem que na prática tenham sido aplicados pelos patrões, como
da busca da autonomia do movimento sindical mais combativo
frente aos controles estatais. Luta reatualizada, a partir dos anos
1990, com o reiterado esforço patronal – plenamente encampado
pelos governantes desde então – para retirar os parcos direitos
conquistados.
O resultado sensível dessa ofensiva mais recente do capital
foi uma tendência ao crescimento da precarização das relações
de trabalho, que vem atravessando desde a década de 1990
aos dias de hoje (apesar das variações ao longo desse período
quanto às taxas de desemprego, valores reais do salário mínimo
e índices de formalização do trabalho). Nisso, apesar de suas
especificidades, a classe trabalhadora brasileira acompanha uma
tendência global. Alguns poucos dados nos bastam por agora
para reforçar o argumento.
83
Em 1950, apenas 30% da população mundial habitava as
cidades. Em 2014, 54% do total de habitantes do mundo vivia nos
centros urbanos.115 Tal mudança, aceleradíssima para os padrões
históricos da vida humana na terra, indica uma intensificação
absurda do processo de proletarização nas últimas décadas.
No mundo como um todo, o percentual da força de trabalho
(entendida como os empregados, desempregados à procura de
emprego e aqueles que procuram emprego pela primeira vez;
e excluídos os trabalhadores não pagos, o trabalho familiar e os
estudantes) em relação ao total da população declinou de 52,1%
em 1990, para 50,2% em 2011. Nos países definidos pelo Banco
Mundial como de “baixo rendimento”, entretanto, o percentual
da força de trabalho na população é bem maior e, no mesmo
período, houve um crescimento de 68,5% para 68,7%.116
Dados do Banco Mundial indicam que o número de pessoas
empregadas no mundo cresceu no período recente. Eram 2,29
bilhões de postos de trabalho ocupados em 2000 e 3,11 bilhões
em 2013.117 Tal crescimento, porém, é insuficiente para absorver
todos os trabalhadores que chegam anualmente ao mercado de
trabalho em busca do primeiro emprego – 40 milhões por ano,
segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT)118 –além
daqueles que estão desempregados.
Segundo o Banco Mundial, em 2013, como vimos, mais
de 3 bilhões de pessoas eram empregadas, “mas a natureza de
seus empregos varia fortemente”. Destas, 1,65 bilhão recebiam
salários regulares, outros 1,5 bilhão trabalhavam na agricultura e
em pequenas empresas familiares. Além de cerca de 200 milhões
de desempregados, o relatório também aponta para o fato de
115 Dados consultados em <http://esa.un.org/unpd/wup/Highlights/
WUP2014-Highlights.pdf>, último acesso em junho de 2017.
116 Informações disponíveis em <http://datatopics.worldbank.org/jobs/
topic/employment>, último acesso em junho de 2017.
117 Ver <http://datatopics.worldbank.org/jobs/>, último acesso em julho
de 2017.
118 OIT, World employment and social outlook 2015: The changing nature of
jobs, Geneva, ILO, 2015, p. 13.
84
que aproximadamente 2 bilhões de pessoas (entre elas uma
parte desproporcional de jovens) não estão mais procurando
emprego.119
De acordo com um relatório da Organização Internacional
do Trabalho, o total de desempregados no mundo, estimado em
201 milhões de pessoas em 2014,120 era superior em 30 milhões
ao total no início da nova fase da crise capitalista em 2008. Mais
revelador é o dado de que cerca de 50% do emprego no mundo
é assalariado, mas em regiões como a África Subsaariana e o Sul
Asiático, esse percentual cai a 20%. Além disso, estimava-se em
menos de 45% o total de assalariados regulares, sendo quase 60%
contratados em empregos temporários ou de tempo parcial.121
Por um lado, o relatório afirma que “em resumo, o
modelo do emprego padrão [estável e de tempo integral] é cada
vez menos representativo do mundo do trabalho atual, pois
menos de um em cada quatro trabalhadores está empregado
em condições correspondentes a esse modelo”. Por outro lado,
no que concerne à “produtividade” do trabalho, o mesmo
documento constata uma “crescente divergência entre os ganhos
do trabalho e a produtividade, com a última crescendo mais
rápido que os salários na maior parte do mundo”.122 O que para
a OIT é uma surpresa, Marx já havia explicado há cem anos: é
parte da lógica do capital...
Voltando-nos para o Brasil, o país possui hoje mais de
200 milhões de habitantes.123 Dados do censo de 2010 indicam
que 84% da população brasileira reside nas cidades, contra 16%
119 Cf. <http://data.worldbank.org/topic/labor-and-social-protection>,
último acesso em junho de 2017.
120 Ver OIT, World employment..., obra citada, p. 13. Segundo o Banco
Mundial, a taxa de desemprego global em 2013 era de 6%. Ver <http://data.
worldbank.org/topic/social-protection-and-labor?view=chart>, último acesso em
junho de 2017.
121 OIT, World employment, obracitada, p. 13.
122 Ibidem.
123 Os dados quantitativos que não apresentarem outra referência
explícita são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e podem ser
acessados no sítio <www.ibge.gov.br>.
85
no campo. Esse quadro contrasta profundamente com o perfil
do país algumas décadas atrás. Num quadro geral, em 2007,
entre as 74,21 milhões de pessoas ocupadas nas cidades, 72,9%
eram empregadas, 20,4% por conta própria, 2,5% ocupadas não
remuneradas e 4% empregadoras.
O crescimento da participação percentual do emprego
com carteira assinada (considerado trabalho formal), que atingiu
mais de 60% dos empregados no início da década atual, foi
interrompido nos últimos anos. O mercado de trabalho perdeu
1,32 milhão de vagas com carteira assinada em 2016. Foi a
segunda pior queda em números absolutos da série histórica do
Ministério do Trabalho, perdendo apenas para 2015, quando o
saldo de empregos formais criados foi negativo em 1,53 milhão.124
Mesmo o chamado “mercado formal” não significa abrigo
contra a precariedade laboral. Calcula-se que os trabalhadores
terceirizados perfaziam 26,8% do mercado formal de trabalho,
totalizando 12,7 milhões de assalariados em 2013. Falamos
de contratados formalmente, porém através de empresas
prestadoras de serviços para as empresas nas quais efetivamente
trabalham, com salários menores e menor cobertura de direitos.
Diversos estudos demonstram que os terceirizados possuem
jornadas maiores, rendimentos mais baixos, estão sujeitos
a maior rotatividade no emprego e são as maiores vítimas de
acidentes de trabalho.125
Já quanto à renda, os dados do rendimento mensal médio
da população com mais de dez anos de idade ocupada indicam
que, em 2011, quase 30% recebia até um salário mínimo (8,29%
recebendo menos que meio salário mínimo), 37,29% recebiam
124 “País perdeu 1,32 milhão de empregos formais em 2016”, Folha de
S. Paulo, 20 jan. 2017, disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/
mercadoaberto/2017/01/1851625-pais-perdeu-132-milhao-de-empregos-formais-
em-2016.shtml>, último acesso em março de 2017.
125 Central Única dos Trabalhadores, “Terceirização e desenvolvimento:
uma conta que não fecha”, São Paulo, 2014. Disponível em: <https://cut.org.br/
acao/dossie-terceirizacao-e-desenvolvimento-uma-conta-que-nao-fecha-7974/>,
último acesso em março de 2017.
86
entre um e dois salários mínimos e 14,9% recebiam entre dois e
três salários mínimos, ou seja, 82% dos trabalhadores ocupados
recebiam até 3 salários mínimos, e menos de 3% recebiam mais
de 10 salários mínimos. Considerando-se que, para atender ao
que define a legislação, seria necessário um salário mínimo de R$
3.658,72, segundo os cálculos do Dieese para fevereiro de 2017,
mais de 80% da classe trabalhadora ocupada no Brasil recebe
menos do que o necessário para a reprodução minimamente
digna de sua existência.
Segundo estudo da OCDE, divulgado em 2013, quando os
efeitos recessivos da crise capitalista ainda não se faziam sentir
de forma tão aguda, o Brasil continua a apresentar a segunda
pior distribuição de renda quando comparado aos seus 34 países
membros (o Brasil, embora participe de fóruns da organização,
não é um país membro), à frente apenas do México. De acordo
com o estudo, o coeficiente Gini (que mede a desigualdade de
renda) era de 0,30 no Brasil em 2010, enquanto o do México, o
mais desigual, era de 0,34 (variando de 0 a 1, os valores mais
próximos de 0 indicam menor desigualdade). O país com melhor
distribuição de renda, segundo a mesma pesquisa, é o Japão,
com índice de 0,06. Não se pode esquecer que, no caso brasileiro,
os dados nacionais refletem uma média entre regiões muito
díspares.126
São alguns poucos dados recolhidos apenas para reforçar
a avaliação de que a lei de tendência apontada por Marx em
O Capital, segundo a qual “acumulação do capital é, portanto,
multiplicação do proletariado”, é confirmada globalmente pelo
crescimento da força de trabalho disponível para a exploração
capitalista, acelerada nas últimas décadas. Esse contingente de
mais de 3,1 bilhões de ocupados é complementado por mais de
200 milhões de desempregados, confirmando também a tese
126 Conforme <http://oglobo.globo.com/economia/brasil-tem-segunda-
pior-distribuicao-de-renda-em-ranking-da-ocde-7887116>, último acesso em
julho de 2013.
87
marxiana de que “toda a forma de movimento da indústria
moderna decorre, portanto, da constante transformação de
parte da população trabalhadora em braços desempregados ou
semiempregados”.127
A estranheza de analistas econômicos contemporâneos
diante desse avanço do trabalho precário por certo revela pouca
afinidade ou falta de conhecimento da análise marxiana, mas é
fruto também de uma visão eurocêntrica que tomou como padrão
de relações de trabalho aquilo que na verdade foi a exceção. A
“relação de emprego padrão” sob condições capitalistas foi uma
“anomalia histórica”, como define com propriedade Marcel
van der Linden em uma análise que coloca o quadro atual em
perspectiva histórica de longa duração.128 Uma “anomalia”
restrita, no tempo, ao período das três décadas que se seguiram
ao fim da Segunda Guerra e confinada, no espaço, a um grupo
de países que viveu o desenvolvimento capitalista avançado no
norte do globo.
Assim, estaremos mais próximos de entender a classe
trabalhadora contemporânea e, portanto, de atuar na direção
da concretização de sua potência como sujeito histórico
transformador se abandonarmos definições muito fechadas da
classe e compreendermos sua dimensão ampliada e heterogênea.
É o que faz Bryan Palmer quando apresenta uma caracterização
do proletariado que valoriza a expropriação/despossessão.
Palmer apresenta a expropriação – mais que a condição no
mercado de trabalho, a formalização e o setor econômico do
emprego, a renda, ou mesmo a relação salarial – como o elemento
constante de uma classe que foi desde sempre caracterizada pela
heterogeneidade e precariedade. Segundo ele:
88
Classe sempre incorporou diferenciação,
insegurança e precariedade. Assim como a
precariedade é historicamente inseparável da
formação da classe, existem, invariavelmente,
diferenciações que aparentemente separam
aqueles com acesso a empregos estáveis
e pagamentos seguros daqueles que
precisam se virar para conseguir trabalho
e acesso ao salário. Expropriação, então, é
uma experiência altamente heterogênea,
já que nenhum indivíduo pode se tornar
despossuído precisamente da mesma forma
que outro, ou viver esse processo de alienação
material exatamente como outro o faria.
Ainda assim, a despossessão em geral define
a proletarização. É a metafórica marca de
Caim estampada em todos os trabalhadores,
independentemente do nível de emprego,
frequência de pagamento, status, condição
de assalariado ou grau de ausência de
assalariamento.129
89
há percentuais maiores de mulheres em contratos temporários.130
No Brasil, a desigualdade de gênero no mercado de
trabalho é gritante. Segundo o censo de 2010, os homens recebiam
no país em média 42% mais que as mulheres. Aqueles pouco mais
de 60% de trabalhadores formais registrados no início dos anos
2010 eram o resultado de uma soma em que 24% eram mulheres
e 39%, homens.131
Não é apenas o gênero que diferencia parcelas da classe
trabalhadora. Desagregando os dados sobre rendimentos de
2010 a partir das classificações raciais do IBGE, os rendimentos
médios mensais dos brancos (1.538 reais, em valores da época)
e amarelos (1.574 reais) se aproximavam do dobro do valor
recebido pelos grupos de pretos (834 reais), pardos (845 reais) ou
indígenas (735 reais).132 Quando gênero e raça se sobrepõem, as
diferenças são ainda maiores:
90
Ter em conta a heterogeneidade da classe trabalhadora não
significa negar seu potencial como sujeito histórico; menosprezar
as desigualdades que a atravessam, porém, condenará os
socialistas ao fracasso em suas políticas para a ação unificada da
classe. Tal menosprezo tem sido a marca de muitas estratégias
equivocadas e, por isso mesmo, tem aberto espaço para que
lutas legítimas contra opressões sejam construídas em torno
de propostas políticas que, explicitamente ou não, abdicam da
perspectiva unitária.
Outros sujeitos?
91
para o predomínio de um divórcio entre a maioria das análises
sociais e as perspectivas de luta de marxistas e feministas.135
Reconhecer essa debilidade da perspectiva marxista e das
organizações socialistas não significa necessariamente negar seu
potencial para explicar a complexidade das relações entre classe
e gênero e intervir para transformá-las.
O primeiro elemento explicativo, nesse sentido, deve
partir da constatação de que as formas patriarcais de opressão
antecedem muito o capitalismo, mas sobreviveram à sua
emergência e combinaram-se às relações sociais capitalistas
de forma muito própria. Em modos de produção anteriores ao
capitalismo, especialmente nas relações de produção baseadas na
unidade familiar, voltadas prioritariamente para a subsistência,
a subordinação da mulher (e das crianças) ao poder patriarcal
organizava em grande medida o processo produtivo.136 A
acumulação primitiva de capital, um processo de expropriação
que marcou a separação dos agora proletários e proletárias
dos meios de produção necessários a suprir sua subsistência
lançando-os(as) ao mercado, consistiu, em grande medida, na
quebra dessas relações de produção organizadas pelo poder
patriarcal nas unidades familiares.
92
No entanto, o patriarcado sobreviveu, transformado e
incorporado pelo capitalismo. Essa permanência só pode ser
adequadamente explicada se formos capazes de ir além das
visões deterministas ou essencialistas. Não se trata, é certo,
de uma diferenciação essencial entre a natureza biológica de
homens e mulheres que explicaria a permanência das hierarquias
de gênero, pois, se as diferenças biológicas existem, as soluções
para elas foram distintas ao longo da história e continuam sendo
distintas conforme as posições sociais. Por outro lado, tanto
são deterministas as perspectivas que afirmam a sobrevivência
do patriarcado em função de suas características puramente
econômicas quanto aquelas que partem de suas supostas
características culturais imutáveis ou autônomas em relação ao
conjunto das relações sociais.
Cabe-nos explicar como a sobrevivência da ideologia
patriarcal, combinada à valorização do modelo familiar
monogâmico como norma, ganha materialidade em diferentes
modalidades de controle do comportamento feminino e no
estabelecimento de padrões heteronormativos pelos homens,
que vão da pressão psicológica às formas mais cruéis de violência
direta. Tudo isso cumpre um papel importante na legitimação e
organização das relações sociais capitalistas que subalternizam
duplamente o trabalho (e a posição social em geral) da mulher.
De um lado, porque se o capital em seu avanço destrói as relações
de produção baseadas na unidade familiar, o capitalismo não
dispensa a família – e aí estamos falando particularmente da
mulher, mas também das crianças e idosos (novamente com
destaque para as de sexo feminino) – como unidade primordial
na execução de uma série de formas de trabalho essenciais para
a reprodução da força de trabalho.
O trabalho reprodutivo – alimentação, limpeza, cuidado
com crianças e doentes etc. – executado pelas mulheres no
“lar” proletário (e também fora dele) rebaixa o custo da força
93
de trabalho em geral, permitindo ao capital remunerá-la com
um salário inferior ao que seria necessário à sua reprodução
caso todas essas condições essenciais à sobrevivência fossem
compradas no mercado. Assim, o trabalho reprodutivo é, na
medida em que não produz valor (no sentido do trabalho
produtivo, tal como a categoria é empregada por Marx),
trabalho improdutivo, e as trabalhadoras que o executam são,
ao menos no momento que o exercem (pois também podem ter
uma jornada como trabalhadoras assalariadas), quase sempre
não remuneradas.137 Por essa razão, uma parcela do movimento
feminista atuou politicamente para garantir uma remuneração ao
trabalho das “donas de casa” proletárias, reconhecendo-as como
parte da classe trabalhadora. A reivindicação, a princípio justa,
poderia resultar, porém, em uma consequência complicada: o
congelamento das funções de reprodução social no âmbito da
família como atribuições femininas, excluindo ou limitando a
participação das mulheres em outras esferas laborais, fora do
“lar”.138
Por outro lado, a ideologia patriarcal legitima também a
incorporação da mulher ao mercado de trabalho assalariado em
posições subalternas e/ou com remunerações mais baixas. Das
mulheres e crianças nas fábricas de tecidos nos primeiros tempos
da revolução industrial às trabalhadoras altamente qualificadas
em empreendimentos estratégicos para o capital na atualidade, o
trabalho feminino sempre foi discriminado e remunerado abaixo
do masculino. Se o reconhecimento da precariedade do trabalho
é reforçado pelas formas atuais de “desregulamentação”
neoliberal das relações laborais, é possível constatar que as
mulheres trabalhadoras eram maioria entre o conjunto de
precarizados mesmo na época em que as economias capitalistas
mais avançadas viveram a “anomalia histórica” do domínio (entre
137 O chamado “serviço doméstico”, assalariado, abre outro conjunto de
questões, que demandaria mais espaço para uma análise aprofundada.
138 C. Arruzza, Feminismo e marxismo, obra citada, p. 98-105.
94
os homens, brancos especialmente) do emprego regular com
garantias do Estado de bem-estar social.139 Poderíamos estender
essas considerações para jovens trabalhadores e trabalhadoras
(submetidos às estratégias do rebaixamento salarial via “estágio”
e “primeiro emprego” e outras formas de precarização aberta) e,
para falar de um setor sobre o qual o preconceito de gênero é
ainda mais acentuado, à população LGBT. Em todos esses casos,
a divisão no interior da classe trabalhadora, legitimada pela
ideologia patriarcal, é funcional como forma de rebaixar o custo
médio da força de trabalho.
Nosso desafio está em reconhecer que a opressão patriarcal
atravessa a classe trabalhadora e garante vantagens aos homens
trabalhadores em relação às mulheres, ao mesmo tempo em que
defendemos que a superação da opressão de gênero é impossível
sob a lógica do capital, que a integrou de forma complexa e não
linear à exploração do trabalho, sendo, portanto, indissociável da
emancipação da totalidade da classe trabalhadora. Nas palavras
de Cínzia Arruzza:
95
se a opressão de gênero atravessa as classes, as divisões de
classe atravessam as posições de gênero. As mulheres não
experimentam a opressão de gênero de forma homogênea,
embora estejam submetidas em seu conjunto ao poder opressivo
do patriarcado. Diferenças de classe, de estatuto civil, de etnia
e de raça geram distintas formas de subjetividade. Assim, mais
do que estabelecerem uma identidade “primária” que orienta
um sujeito coletivo homogêneo e autônomo, posições de gênero
interagem com as de classe e raça, atuando de forma complexa
na determinação das formas específicas – e hierarquizadas –
como as opressões são vividas subjetivamente.141
Diferentemente das opressões de gênero, cuja base no
patriarcado antecede o capitalismo, as opressões justificadas
ideologicamente por critérios raciais surgem com o capitalismo,
diretamente associadas à legitimação ideológica da escravidão
moderna, em especial a partir do momento em que o capitalismo
começa a atingir a etapa industrial e os movimentos abolicionistas,
em escala internacional, começam a pôr em xeque a continuidade
das instituições escravistas.142
Formas de preconceito (que atualmente definiríamos
como “preconceito étnico” ou racismo) em períodos anteriores
estavam associadas muito mais a fatores culturais e religiosos do
que a supostas características biológicas inatas, embora pudessem
envolver caracterizações negativas quanto ao aspecto físico dos
141 Essa é uma das interpretações e posicionamentos políticos possíveis
a partir do debate sobre a “interseccionalidade”, categoria apresentada por
Kinberlé Crenshaw como uma “conceituação metafórica” que busca “capturar
as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos
da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres,
raças, etnias, classes e outras”. K. Crenshaw, “Documento para o encontro de
especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”, Estudos
Feministas, ano 10, jan. 2002, p. 177.
142 Alex Callinicos, Race and class, London, Bookmarks, 1993, p. 23-30. Uma
tradução para o português, de Rui Polly, pode ser encontrada em <http://www.
iesc.ufrj.br/cursos/saudepopnegra/ALEX%20CALLINICOS_Capitalismo%20
e%20Racismo.pdf>, último acesso em março de 2017.
96
povos alvo de discriminação.143 Também as justificativas das
modalidades de escravização anteriores ao período moderno
foram outras. Mesmo durante a fase da acumulação primitiva de
capital, a escravização – temporária ou por tempo indefinido – de
trabalhadores expropriados, “brancos” e nativos da Inglaterra,
estava prevista na legislação penal inglesa, como Marx resgatou
em O Capital.144
O conceito de raça, baseado em determinações biológicas
(e características fenotípicas) das populações humanas, está
completamente impregnado do esforço ideológico para
legitimar a instituição da escravidão moderna, que surgiu da
opção por uma colonização mercantil do “Novo Mundo”, por
povos europeus, a partir do século XVI. Diante da característica
de fronteira aberta dos territórios conquistados, das distintas
possibilidades de subjugação e exploração dos povos originários
e da indisponibilidade/incompatibilidade de trabalhadores
“livres” assalariados europeus para a produção mercantil nas
novas colônias, diferentes povos “colonizadores” se voltaram
para a escravização de populações africanas, traficadas através do
Atlântico por navios e empresários escravistas da Europa (e mais
tarde também das colônias e antigas colônias), para trabalharem
como propriedade de seus senhores – na maioria das vezes
até a morte – nas plantations e demais atividades econômicas
dos territórios coloniais americanos. Se o tráfico transatlântico
alimentou com a força de trabalho necessária o lucrativo
empreendimento colonial, o tráfico como empreendimento
globalizado (conectando três continentes) foi também uma das
principais formas de acumulação primitiva.145 Foi com base
143 Uma discussão muito interessante sobre a Idade Média e o racismo
contemporâneo aparece no dossiê “Race, racism and the Middle Ages”, do blog
The Public Medievalist, disponível em <http://www.publicmedievalist.com/race-
racism-middle-ages-toc/>, último acesso em março de 2017.
144 K. Marx, O Capital, Livro I, tomo 2, obra citada, por ex., p. 356.
145 Sobre o exemplo de como os lucros com o tráfico foram decisivos para
enriquecer Liverpool, ver K. Marx, O Capital, Livro I, tomo 2, obra citada, p. 378.
No último capítulo do Livro I, “Teoria moderna da colonização”, Marx explicita
97
nessa lógica de acumulação capitalista que, como vimos na
primeira destas Notas, mais de 12,5 milhões de seres humanos
foram arrancados de suas terras originárias e traficados como
mercadoria para as Américas, quase 6 milhões deles por navios
de bandeira portuguesa ou brasileira.146
Quando as lutas contra a escravidão – que sempre
existiram, especialmente entre os trabalhadores e trabalhadoras
escravizadas – adquiriram os contornos de um movimento
abolicionista transatlântico, ganharam relevo justificativas,
cada vez mais revestidas de discursos com tons cientificistas e
eurocêntricos abertamente racistas, para tentar naturalizar o
escravismo moderno como resultante da adaptabilidade e/ou
limitação da “raça” negra ao trabalho manual. Estendida aos
asiáticos – “raça” amarela – à medida que o (neo)colonialismo
europeu do século XIX avançava também sobre territórios
asiáticos, a ideologia racialista ganhou ainda o aporte do discurso
civilizatório. Dessa forma, apresentava a ação do “homem
branco” em extensas regiões dos continentes asiático e africano
como benéfica aos povos locais, por trazer a modernidade e
a civilização ocidental-capitalista para regiões e sociedades
atrasadas em decorrência da inferioridade natural/racial de suas
populações. Mais tarde, o racismo cientificista seria ampliado
– e combinado a “velhas” modalidades de preconceito – para
revestir discursos antissemitas e eugenistas, que embalaram as
ideologias nazi-fascistas do século XX.
O uso da expressão raça já aparecia em momentos
anteriores para (des)qualificar povos originários e africanos
na América colonial, mas a justificativa racialista se expande a
98
partir de fins do século XVIII e atravessa praticamente todo o
século XIX, em meio à longa luta contra escravocratas europeus
e americanos e o “odioso sistema” (como era chamado pelos
abolicionistas) da escravidão. Ainda assim, o racismo não pode
ser visto simplesmente como uma herança cultural escravista. A
ciência do século XX derrubou por completo qualquer pretensão
à cientificidade do argumento racialista da hierarquia entre
“raças”. No entanto, o racismo continuou e continua a orientar
formas opressivas de exercício do poder e a interpenetrar-se nas
relações de produção, criando hierarquias de funções, níveis
distintos de formalização do emprego e diferenças significativas
de valores salariais, da mesma forma que aquelas que traçam
linhas de gênero no mercado de trabalho.
Focando no caso brasileiro, se a origem do racismo pode
ser encontrada nos quase quatro séculos de escravidão, sua
presença e ressignificação após a abolição legal do trabalho
escravo atendeu a outros imperativos históricos. Diante da
imposição inglesa do fim do tráfico de escravos, efetivado em
1850, a classe senhorial brasileira viu-se envolvida no dilema
da substituição da força de trabalho nos espaços de ponta da
economia agroexportadora. Conforme discutimos em outras
Notas, essa classe dominante senhorial buscou, sempre que pôde,
adiar ao máximo o fim da escravidão e manter formas de trabalho
compulsório para além daquele momento. A intensificação da
luta de classes na segunda metade do século XIX, ou seja, a maior
mobilização dos negros, escravos e ex-escravos, com apoios
significativos dos trabalhadores ditos livres e setores médios
urbanos, foi a responsável última pela abolição de 1888, fato
que poderia ter sido postergado por muitos anos se dependesse
apenas da vontade senhorial.
É nesse contexto, de temor branco/senhorial pela
mobilização e luta dos dominados negros/escravos e seus
aliados, que devemos entender o sucesso da importação das
99
teorias cientificistas europeias que sustentavam (e, em parte
significativa do senso comum, ainda sustentam) o racismo
brasileiro. As críticas ao “racialismo” cientificista surgido no
pós-1930 foram muitas vezes mitigadas por uma negação
da existência do racismo, baseada na ideia (quase sempre
sustentada em comparações com o caso estadunidense) de que
a miscigenação entre nós seria a prova maior da existência de
uma sociedade com igualdade de oportunidades para todos,
restando explicar as desigualdades objetivamente existentes
como resultado de inaptidões individuais, ou de um “peso do
passado” escravista, cuja superação se daria progressivamente.
Nesse contexto, “raça negra” foi um termo apropriado
e utilizado para valorizar positivamente aqueles setores
caracterizados como genética ou culturalmente inferiores pelo
pensamento social brasileiro produzido até pelo menos os anos
1930 e, portanto, responsáveis pelo atraso civilizatório do país.
Da mesma forma, serviu, em seguida, para a contraposição ao
mito da “democracia racial”. Desse ponto de vista historicamente
localizado, falar em raça significa situar que esse foi o critério
central da discriminação, mas trata-se também de definir o
campo ao qual se agregou uma luta de resistência ao racismo
por parte dos negros no Brasil. Por isso é importante a proposta
de (re)elaboração sociológica do conceito de raça apresentada
por Antonio Sérgio Guimarães, para quem, por meio desse
conceito, que só se justifica pela existência do racismo, devemos,
ao mesmo tempo: “1- reconhecer o peso real e efetivo que tem
a ideia de raça na sociedade brasileira, em termos de legitimar
desigualdades de tratamento e oportunidades; 2- reafirmar o
caráter fictício de tal construção em termos físicos ou biológicos;
e 3- identificar o conteúdo racial das classes sociais brasileiras.”147
Além disso, nos cabe definir com clarezaa especificidade
147 Antonio Sérgio A. Guimarães, Classes, raças e democracia, São Paulo, Ed.
34, 2002, p. 56.
100
desse critério de identidade em função dos conflitos sociais e
estratégias de dominação localizados histórica e concretamente
na vida social, não caindo no relativismo da perspectiva da
cor como uma identidade étnica como outra qualquer. Tal
perspectiva conduz a visões que valorizam a “diversidade” em
abstrato e defendem como limite o “respeito à diferença”, o que
leva a não questionar a desigualdade ou gera mesmo a defesa
da “integração” pela via da elevação das condições de vida de
uma parcela das populações racialmente oprimidas, sem pôr em
questão as causalidades sociais mesmas da opressão.148
Por essas razões, é preciso, sim, valorizar as lutas
identitárias, necessárias para contrapor o peso sociopsicológico
da subalternização, e as lutas pelo reconhecimento de direitos
(como políticas afirmativas e reparações). Guardadas as devidas
especificidades e formas distintas de combinação interseccional,
essa luta pelo reconhecimento tem sido o principal canal de
expressão e organização, tanto do movimento negro quanto do
movimento de mulheres (e LGBTs), nas últimas décadas no Brasil.
Porém, queremos insistir aqui na necessidade, para as análises
marxistas e políticas socialistas, de buscar combinar a denúncia
da persistência e violência das opressões – reconhecendo o
protagonismo dos que vivenciam diretamente cada situação
opressiva particular (o “lugar de fala”, para usar uma expressão
contemporânea) – ao debate sobre as formas intrincadas como
cada uma delas se integra à totalidade das relações de dominação
capitalistas.
Desse modo, talvez sejamos mais efetivos em estabelecer
as mediações necessárias para, respeitando as especificidades
das formas de opressão e suas combinações interseccionais,
incluir com destaque as lutas por reconhecimento no interior
101
do programa pela emancipação humana em geral. Direitos
específicos e reconhecimentos identitários ganham conteúdos
mais amplos se pensados como reivindicações transitórias no
interior de uma proposta de universalização das garantias de
uma vida humana emancipada do jugo da alienação, exploração,
opressão e dominação articuladas pelo capital. Do contrário,
as lutas por reconhecimento balizadas apenas por fronteiras
identitárias correm o risco de levar a uma atomização dos sujeitos
em “pequenos nós”,149 impermeáveis às relações com outras
experiências de subalternidade. Por outro lado, tão perigosa
quanto a fragmentação completa das lutas inerente à primeira
possibilidade, é a perspectiva que elude as distintas experiências
em nome de uma unidade absoluta e abstrata do sujeito classe
trabalhadora. Uma unidade absoluta que não é possível em
nenhuma realidade histórica concreta.
Daí a importância de abordagens como a proposta pela
teoria feminista/marxista unitária, que percebe a elaboração de
Marx como “crítica de uma totalidade articulada e contraditória
de relações de exploração, dominação, e alienação”, para propor
a necessidade de integração na análise das dimensões produtiva
e reprodutiva do trabalho sob o capital. Dessa forma, pode ser
possível “interpretar as relações de poder baseadas no gênero ou
orientação sexual como momentos concretos daquela totalidade
articulada, complexa e contraditória que é o capitalismo
contemporâneo”, entendendo ainda que “a opressão de gênero e
a opressão racial não correspondem a dois sistemas autônomos
que possuem suas próprias causas particulares: eles passaram
a ser uma parte integral da sociedade capitalista através de um
102
longo processo histórico que dissolveu formas de vida social
precedentes”.150
Uma perspectiva desse tipo não chega a ser uma
novidade completa, ela pode ser encontrada em formulações
do início do século XX em pensadores socialistas mais atentos
à importância da questão racial para o entendimento do perfil
da classe trabalhadora, assim como para uma política socialista
capaz de unificar os grupos que o capitalismo integra de forma
fragmentada e hierarquizada às suas estratégias de dominação
e exploração. Foi o caso de José Carlos Mariátegui, que buscou
incluir “o problema das raças” como tema central ao debate
dos comunistas latino-americanos em fins dos anos 1920.
Percebendo tanto a funcionalidade do racismo para o modo
como a expansão capitalista incorporava relações de trabalho
baseadas na reatualização pelos latifúndios da exploração dos
aldeamentos indígenas quanto a centralidade da escravidão e
das formas específicas de exploração da população negra após a
abolição e, além disso, reconhecendo que o racismo atravessava o
próprio proletariado latino-americano, o revolucionário peruano
defendia:
O realismo de uma política revolucionária,
segura e precisa, na avaliação e utilização
dos fatos sobre os quais cabe atuar nesses
países em que a população indígena ou
negra tem proporções e papel importantes,
pode e deve converter o fator raça em um
fator revolucionário. É imprescindível dar
ao movimento do proletariado indígena ou
negro, agrícola ou industrial, um caráter
nítido de luta de classes.151
150 C. Arruzza, “Considerações sobre gênero”, obra citada, p. 56-57.
151 José Carlos Mariátegui, El problema de las razasen la América Latina (1929),
disponível em <https://www.marxists.org/espanol/mariateg/oc/ideologia_y_
politica/paginas/tesis%20ideologicas.htm#2>, último acesso em março de 2017.
Uma discussão sobre esse texto de Mariátegui é apresentada por Leandro
Galastri em“José Carlos Mariátegui e o problema das raças na América Latina, in
Paulo Alves de Lima Filho, Henrique Tahan Novaes e Rogério Fernandes Macedo
(org.), Movimentos sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo
crítico, Uberlândia, Navegando Publicações, 2017, p. 187-199.
103
Avaliar os avanços e impasses dos processos de lutas
sociais revolucionárias do passado contemporâneo pode inspirar
e ensinar. Em meio à comemoraçãodos 100 anos da Revolução
Russa, vale lembrar que, em seus primeiros anos, o governo
dos sovietes foi capaz de levar adiante políticas de igualdade
de gênero debatidas desde o fim do século XIX pelo feminismo
socialista da II Internacional, que podem ser consideradas
avançadas mesmo para os padrões de hoje. Avanço, como
tantos outros, revertido pela ofensiva contrarrevolucionária do
estalinismo.152
Voltando um pouco mais no tempo, quando a Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT, conhecida também como
I Internacional) foi fundada, em 1864, corria a guerra civil
nos Estados Unidos. A classe trabalhadora inglesa, embora
duramente atingida pelo desemprego decorrente da crise
da indústria de tecidos em função do bloqueio à exportação
de algodão das plantations escravistas do Sul Confederado,
posicionou-se decisivamente a favor do Norte no conflito,
sobretudo por compreender a necessidade de abolir a escravidão.
Assim, a Mensagem Inaugural da AIT, antes do famoso brado
“Proletários de todos os países, uni-vos!”, afirmava que uma
política externa antiescravista fazia “parte da luta geral pela
emancipação das classes operárias” e atribuía não à “sabedoria
das classes dominantes, mas [à] resistência heroica das classes
operárias de Inglaterra à sua loucura criminosa” a rejeição
europeia à “cruzada infame pela perpetuação e propagação da
escravatura do outro lado do Atlântico”.153
152 Ver a esse respeito C. Arruzza, Feminismo e marxismo, obra citada, p.40-
47. Ver também Wendy Goldman, Mulher, Estado e revolução, São Paulo, Boitempo,
2014. Boa síntese do debate das lideranças bolcheviques sobre a questão da
mulher é apresentada também por Danielle Jardim no artigo “Encontros e
desencontros entre marxismo e feminismo: uma análise da incorporação da luta
pela emancipação das mulheres entre os revolucionários russos a partir de Lênin,
Trotsky e Kollontai”, História e Luta de Classes, n. 20, p. 47-60, 2015.
153 Utilizamos aqui a tradução da Mensagem Inaugural publicada em
<https://www.marxists.org/portugues/marx/1864/10/27.htm>, último acesso em
104
Do outro lado do Atlântico, conforme Angela Davis
demonstrou magistralmente, o movimento feminista
estadunidense nascia do ventre da luta abolicionista, e algumas
dentre suas personagens mais destacadas demonstravam uma
consciência profunda “da indissociabilidade entre a luta pela
libertação negra e a luta pela libertação feminina”, evitando por
isso mesmo cair “na armadilha ideológica de insistir que um
combate era mais importante que o outro. Elas reconheciam o
caráter dialético da relação entre as duas causas”.154
Tratando da AIT, acabamos por adentar o terreno
das organizações da classe trabalhadora com um programa
revolucionário. Mencionando a Revolução Russa e o
abolicionismo, entramos no campo das grandes lutas sociais pela
revolução social.
Nesta Nota, procuramos tratar o proletariado como sujeito
histórico, ou seja, o potencial sujeito coletivo da transformação
socialista, tendo em conta a diversidade de sua composição e
das experiências às quais está submetido pelo jugo do capital. A
combinação entre, por um lado, o reconhecimento da necessidade
das transformações estruturais em direção ao socialismo
como condição para a superação das opressões e, por outro, a
percepção de que tal superação não será resultado automático
da revolução socialista acrescenta elementos decisivos ao
entendimento do sujeito histórico classe trabalhadora. Sendo
também ele atravessado pelas ideologias e práticas racistas,
machistas e homo(trans)fóbicas, o protagonismo para a reversão
dessas combinações opressivas será exercido – no interior da
classe e nas lutas sociais mais amplas – pelas parcelas da classe
que experimentam tais opressões na pele (em suas alianças com
os demais grupos sociais subalternos), no curso mesmo da luta
revolucionária de toda a classe. E, da mesma forma, continuará a
março de 2017.
154 Angela Davis, Mulheres, raça e classe, São Paulo, Boitempo, 2016 (1. ed.
1981), p. 56.
105
ser necessário combater as opressões após a vitória da revolução.
Entretanto, não é possível captar o sujeito histórico – aqui
visto como totalidade heterogênea – fora de sua intervenção
coletiva concreta na luta de classes, através de organizações
e movimentos próprios, que visam tanto responder às
especificidades das formas de alienação, opressão, dominação
e exploração impostas pelo capital quanto unificar as lutas em
torno do objetivo estratégico comum. Disso tratarão as próximas
Notas
106
5ª Nota
A organização política
107
Mas renasce sempre, mais forte, mais sólida, mais poderosa”.155
Partido era sinônimo, nesse caso, de uma atuação política
consciente da classe na defesa dos seus interesses. E os interesses
da classe são definidos não apenas em termos de reivindicações
imediatas, mas no sentido histórico mais amplo, da abolição da
exploração e da dominação. O partido comunista não era visto
como o único, nem pensado como uma organização de regras
muito definidas, mas como parte de um processo mais amplo
de formação da consciência de classe dos trabalhadores, com
sua organização em diversas correntes. Por isso, eles defendiam,
também no Manifesto, que: “A finalidade imediata dos comunistas
é a mesma de todos os demais partidos proletários: formação do
proletariado em classe, derrubamento do domínio da burguesia,
conquista do poder político pelo proletariado.”156
Marx e Engels tiveram, em diferentes momentos, a
oportunidade de viver experiências de organização política,
portanto de classe, dos trabalhadores. Do ponto de vista
organizativo, dois momentos podem ser destacados na trajetória
deles. O primeiro, o da construção da Associação Internacional
dos Trabalhadores (entre 1864 e 1874), quando, após o refluxo
que se seguiu à derrota dos movimentos revolucionários
da “primavera dos povos” de 1848, o movimento da classe
trabalhadora europeia começava a se reerguer. Naquele
contexto, o objetivo explícito daquela que ficou conhecida como
a I Internacional foi reunir organizações proletárias dos países
capitalistas “para proporcionar um meio central de comunicação
e cooperação” entre elas, visando “à mesma finalidade, isto é,
a proteção, o avanço e a completa emancipação das classes
trabalhadoras”.157
108
Tal reunião era vista então como um “partido político” de
novo tipo. Nos termos das “Normas gerais” da AIT: “Em sua luta
contra o poder reunido das classes possuidoras, o proletariado
só pode se apresentar como classe quando constitui a si mesmo
num partido político particular, o qual se confronta com todos
os partidos precedentes formados pelas classes possuidoras.” A
unificação da classe em partido seria essencial para “assegurar o
triunfo da revolução social e de seu fim último – a abolição das
classes”.158
A unidade, porém, não era um valor em abstrato. Em di-
versos registros, Marx e Engels demonstram como buscaram
fazer concessões às diferentes posições presentes na AIT para
garantir tal unidade, mas as concessões não ultrapassavam dois
limites principais. O primeiro e mais importante deles é que a
unidade partidária prevalecia até o limite em que se mantinha
compatível com o projeto de emancipação dos trabalhadores.
Nenhuma concessão aos que em nome da classe trabalhadora
acabavam por defender os interesses das classes dominantes.
O segundo limite, que seria decisivo para o fim da AIT, era de
que as forças participantes da Associação, apesar de livres para
propagandear suas próprias propostas, desde que não incompa-
tíveis com aquele princípio geral do compromisso com a eman-
cipação dos trabalhadores, não poderiam atuar de forma sectária
(no sentido de espírito de seita), intentando dobrar a linha geral
da Associação ao seu programa específico, mantido e nutrido de
forma não pública, pela atuação como partido dentro do partido
– o que, na interpretação de Marx e da maioria do conselho geral
da AIT, acabou por ser praticado pelos anarquistas liderados por
Bakunin, levando à crise que dissolveria a Internacional. Afinal,
a AIT fora fundada “para substituir as seitas socialistas ou se-
mi-socialistas por uma organização real da classe operária com
vistas à luta”.159
158 Ibidem.
159 Ariovaldo U. dos Santos, Marx, Engels e a luta de partido na Primeira
109
O segundo momento a ser destacado na trajetória de Marx
e Engels, relevante para esta discussão, é o da constituição do
Partido Social-Democrata dos Trabalhadores Alemães (SPD).
Neste caso, é possível identificar que Marx e Engels alinharam-se
claramente em defesa da construção da organização da classe em
partido no seu país natal. Mas desde o primeiro momento mos-
traram grandes diferenças em relação a uma série de elaborações
daquela organização. Particularmente as que diziam respeito ao
programa do partido, que não explicitava o centro da estratégia
socialista, qual seja, a “abolição das diferenças de classe”, através
da qual “desaparecem por si mesmas as desigualdades sociais e
políticas que delas emanam”.160
Nesse sentido, quero rapidamente resgatar aqui alguns
contributos de Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Gramsci,
membros de uma geração posterior de revolucionários, que
surgiu para a militância política já na esfera da II Internacional
(formada pelos partidos social-democratas e tendo o SPD à
frente). Esses quadros, ao longo das décadas de 1900 a 1920,
travaram debates internos aos partidos social-democratas e,
mais tarde, tiveram diante de si a difícil tarefa de apresentar
alternativas revolucionárias, num contexto em que não apenas o
programa, mas as práticas de uma parcela significativa da social-
democracia da II Internacional abandonaram completamente
a perspectiva marxiana da “abolição das diferenças de classe”,
passando a trabalhar não apenas no, mas pró sistema capitalista,
como o apoio ao processo armamentista que desembocou na I
Grande Guerra demonstrou.
No movimento socialista internacional, a partir de 1914,
Lenin e os bolcheviques foram os que mais radicalmente se
posicionaram pela impossibilidade de unidade com esses setores
110
que se transformaram em aliados e defensores do nacionalismo
burguês. Mas, antes, vale recuar um pouco no tempo. Ao
tratarmos de partido e mencionarmos Lenin, talvez a referência
mais usual seja a leitura de uma de suas obras mais conhecidas
– Que fazer?161 – e, a partir dela, a defesa de um suposto modelo
de funcionamento do partido revolucionário (disciplina férrea,
centralismo, vanguarda revolucionária profissional etc.). De fato,
tais elementos estão presentes naquela obra. A questão é pensar
em que sentido estes podem ser tomados de forma a-histórica
como modelos a serem seguidos sempre.
Para tanto, vale retomar Que fazer? em seu contexto.
Nos primeiros anos do século XX, a social-democracia russa
(nos termos da época, utilizados, como vimos, para definir as
organizações de inspiração marxista) estava em construção,
vivendo sob o jugo tirânico do regime do czar. No interior desse
processo de construção, debatiam-se diferentes perspectivas. Em
Que fazer?, Lenin pensa a atuação dos revolucionários naquele
contexto de repressão intensa e, no debate interno, investe contra
os chamados “economistas”, grupo que defendia que a ação dos
social-democratas deveria partir sempre da experiência imediata
de exploração da classe trabalhadora e orientar seus esforços
para lutar pelas demandas de natureza sindical – salariais, de
condições de vida e de trabalho – que emergiam dessas lutas,
decorrendo todo o resto diretamente delas.
Em relação aos objetivos da luta socialista, Lenin é
coerente com os ensinamentos de Marx e ataca os “economistas”
justamente pelos limites estratégicos de seu programa, que em
última análise não confrontava a ordem do capital. Segundo
ele, a social-democracia “subordina a luta pelas reformas,
como a parte ao todo, à luta revolucionária pela liberdade e o
socialismo”. Em outras palavras:
111
A social-democracia dirige a luta da classe
operária, não apenas para obter condições
vantajosas na venda da força de trabalho,
mas, também, pela abolição da ordem
social, que obriga os não possuidores a se
venderem aos ricos. A social-democracia
representa a classe operária em suas
relações não apenas com um determinado
grupo de empregadores, mas com todas as
classes da sociedade contemporânea, com
o Estado como força política organizada.
Consequentemente, portanto, os sociais-
democratas não podem limitar-se à luta
econômica, mas também, não podem admitir
que a organização das denúncias econômicas
constitua sua atividade mais definida.
Devemos empreender ativamente a educação
política da classe operária, trabalhar para
desenvolver sua consciência política.162
162 Ibidem.
112
exatamente: que só pode aceder à sua mais
alta expressão, aquela minoria da classe
operária disposta a (e capaz de prosseguir)
uma atividade política permanente mesmo
nos períodos de recuo do movimento de
massa, mesmo nas fases de “reprivatização”
da maioria dos trabalhadores, mesmo nas
fases de ascenso da influência da ideologia
burguesa e pequeno-burguesa no seio da
classe operária. Eis o fundamento materialista
da necessidade do partido de vanguarda,
proclamado por Lenin.163
113
clandestina e do enfrentamento com os “economistas”, algo que
foi superado nos debates internos da social-democracia russa e
pela própria Revolução de 1905. Lenin continuou a reivindicar
a importância da defesa feita em Que fazer? da organização de
revolucionários profissionais, contestando seus críticos que
apontavam o exagero da formulação, mas situou claramente
que o acerto da proposta do grupo reunido em torno do jornal
Iskra naqueles primeiros anos do século XX só poderia ser
compreendido porque foram capazes de criar uma organização
mais ampla, o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores
Russos, tal como ele passa a existir, a partir de 1905, com vida
pública e participação nas eleições, após as alterações no regime
político impostas pela revolução. É interessante notar que,
apenas cinco anos após a publicação do livro, Lenin trate de seu
contexto como algo do “passado distante” da história da social-
democracia russa. Comentando a crítica dos mencheviques (a
nova “direita” do partido após a derrota dos “economistas”) a
Que fazer?, Lenin afirma:
114
ampliação da organização partidária. No texto significativamente
intitulado “Novas tarefas e novas forças” (1905), irá defender que
tais tarefas seriam: “alargamento da agitação a novas camadas
dos pobres da cidade e do campo, criação de uma organização
mais ampla, flexível e sólida, preparação da insurreição e
armamento do povo, acordo com a democracia revolucionária
com estes objectivos”.166
Citando Que fazer? e explicando o que havia mudado
desde então, Lenin explica que a revolução tornava possível
a uma maioria da classe trabalhadora o acesso a elementos de
fundamentação política socialista antes restritos à vanguarda
partidária. Assim, com o alargamento do movimento social,
as tarefas anteriores, que concentravam nas mãos dos
revolucionários tanto a luta econômica quanto o trabalho
educativo da classe para as lutas políticas futuras, haviam se
concentrado de outra forma:
168 Ibidem.
169 V. I. Lenin, O Partido Socialista e o revolucionarismo sem cunho partidário,
(2 de dezembro de 1905), conforme <https://www.marxists.org/portugues/
lenin/1905/12/02.htm>, último acesso em maio de 2017.
116
Seu horizonte estratégico é o da transformação social radical.
A firmeza do horizonte estratégico é a principal segurança em
relação às variadas táticas de atuação, através das “formas legais
e ilegais, parlamentares e extraparlamentares de luta”.170 O
partido de Lenin, portanto, poderia e deveria exercitar uma “arte
imprescindível na revolução: a flexibilidade, o saber mudar de
tática com rapidez e decisão, partindo das mudanças operadas
nas condições objetivas e elegendo outro caminho para nossos
fins”.171
Ao invés de uma receita formal de partido capaz de levar
à revolução, os escritos de Lenin indicam a importância, para os
socialistas, da capacidade de adaptação da forma organizativa
ao desafio revolucionário conforme as “particularidades
concretas que esta luta adquire e deve adquirir inevitavelmente
em cada país, conforme os traços originais de sua economia, de
sua política, de sua cultura, de sua composição nacional (...), da
diversidade de religiões, etc., etc.”.172
Assim, cabe tomar em conta, mesmo que muito
rapidamente, outras formulações da geração de socialistas
do início do século XX, que se confrontou com a conjuntura
revolucionária aberta em 1917 de forma ativa, buscando atuar
pela revolução também em outros espaços nacionais.
Para a discussão que nos interessa aqui, cabe resgatar
da contribuição de Rosa Luxemburgo seu firme apego à defesa
do papel consciente da classe trabalhadora na construção do
socialismo e dos instrumentos político-partidários necessários
a essa construção. A máxima de Marx e Engels de que “a
emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe
trabalhadora” foi repetida por ela em diversos textos e acabou
inscrita no Programa do Partido Comunista Alemão, quando
170 V. I. Lenin, La enfermedad infantil del ‘izquierdismo’ em el comunismo
& Com motivo del IV aniversario de la Revolucion de Octubre, in V. I. Lenin, Obras
escogidas, Moscou, Progresso, [s.d.], p. 549.
171 Ibidem, p. 677.
172 Ibidem, p. 595.
117
se afirmava que a transformação do Estado e a mudança dos
fundamentos econômicos e sociais não poderiam “ser decretadas
por nenhuma autoridade, comissão ou parlamento: só a própria
massa popular pode empreendê-las e realizá-las”.173
Após a publicação de Que fazer?,Rosa Luxemburgo será
uma das críticas à concepção de Lenin (e mais ainda de Kautsky)
sobre o papel protagonista do partido na formação da consciência
de classe dos trabalhadores, defendendo um desenvolvimento
mais direto da consciência política da classe a partir da própria
experiência de exploração e luta. No entanto, a então militante
do Partido Social-Democrata Alemão nunca negou a necessidade
da organização partidária para a luta revolucionária da classe.
Depois de 1914, passou mesmo a questionar a possibilidade
de superação direta, desde as lutas imediatas, das disputas
ideológicas que atravessavam um proletariado sensível ao
apelo chauvinista das burguesias nacionais a caminho da
guerra. Após Outubro, sua reflexão caminha para uma posição
ainda mais próxima à de Lenin. No famoso texto “O que quer
a Liga Espartaquista?”, a defesa do protagonismo da ação da
classe trabalhadora na revolução socialista, que não poderia
ser feita por decreto ou de cima para baixo, está presente, mas
combinada a um entendimento do partido como “o arauto, o
acicate e a consciência da revolução”.174 O documento afirmava
que a tomada do poder só seria possível por vontade consciente
do proletariado alemão, mas definia um papel pedagógico e
dirigente para a organização:
118
A Liga Espártaco é apenas a parte mais
consequente do proletariado que, a cada
momento, indica às grandes massas da classe
obreira as suas tarefas históricas e que a cada
estágio particular da revolução defende o
fim último socialista, igual que nas questões
nacionais defende os interesses da revolução
mundial.175
119
Seria exagerado enxergar no potencial burocratismo
criticado por Rosa a explicação para o fato de que, um ano depois
desse alerta, no processo revolucionário de 1905, o proletariado
russo ultrapassaria a vanguarda bolchevique em radicalidade
(e o faria novamente nos primeiros movimentos da revolução
de 1917). As preocupações de Rosa Luxemburgo, entretanto,
mostraram-se tanto pertinentes na crítica ao oportunismo
reformista de boa parte dos dirigentes social-democratas do
início do século XX quanto proféticas em relação à nova forma
assumida pelo partido criado por Lenin quando da ascensão de
Stalin ao seu comando em meados dos anos 1920.
Registre-se que, logo a seguir, Trotsky – que seria
reconhecido como o grande crítico da burocracia já bem mais
tarde – também se apercebeu do risco da burocratização,
discutindo o contexto da revolução de 1905. Segundo ele,
colocando a questão em termos de uma “inércia interna” aos
partidos social-democratas com consequências conservadoras:
120
proletários pode, num dado momento, travar
o proletariado na luta direta pelo poder.177
121
da sociedade capitalista, com a permissão dos burgueses, até
superar os limites desta sociedade e esvaziá-la gradualmente do
seu conteúdo”.178
Nos Cadernos do cárcere, Gramsci desenvolverá melhor
suas definições sobre o partido. Nesses escritos, o partido
aparece como um resultado do processo de conscientização da
classe: “um elemento complexo de sociedade no qual já tenha
tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida
e afirmada parcialmente na ação. (...) a primeira célula na qual
se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar
universais e totais.”179
As propostas leninistas de combinar a ação parlamentar
e extraparlamentar (incluindo as formas clandestinas e ilegais,
do ponto de vista do Estado burguês), de atuar em várias frentes
para inserir-se na massa de trabalhadores, de flexibilizar as táticas
conforme as mudanças de rumo nas conjunturas, mas mantendo
o horizonte revolucionário de forma intransigente, todas são
resgatadas por Gramsci. Isso porque, em meio às díades que
caracterizam seu pensamento, o revolucionário italiano percebia
que ao partido cabia atuar sempre em dupla perspectiva, já que
dúplice é a natureza do Estado (sociedade civil e sociedade
política) em seu sentido integral ou ampliado, nas sociedades do
capitalismo contemporâneo.180
Esse pode ser o caminho para a superação de uma rigidez
dicotômica entre partido de massas e partido de vanguarda, ou
a divisão entre uma postura que credita ao partido a capacidade
de trazer de fora a consciência aos trabalhadores e aquela que
credita aos trabalhadores uma consciência espontânea. Se o
partido surgia no processo de formação da consciência de classe
e, portanto, não a precedia, tal processo não estaria concluído pela
178 Antonio Gramsci, Escritos políticos, v. 2, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2004, p. 276, 277, 285 e 345.
179 Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, v. 3, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2000, p. 16.
180 Ibidem, p. 33. Ver a esse respeito a terceira Nota deste livro.
122
formação do partido. Afinal, a tarefa do partido para Gramsci
era também a de promover o avanço da consciência de classe
em direção a uma consciência política revolucionária, ou, dito
nos termos que adota nos Cadernos, “uma reforma intelectual e
moral, isto é, à questão (...) de uma concepção de mundo”. Por
isso, segundo ele: “Esses dois pontos fundamentais – formação
de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual o moderno
Príncipe é ao mesmo tempo o organizador e a expressão ativa
e atuante, e reforma intelectual e moral – deveriam constituir a
estrutura do trabalho.”181
Contudo, Gramsci também nos fornece critérios analíticos
para que entendamos porque um partido surgido com um ho-
rizonte de classe e socialista pode dar origem, em sua trajetória
posterior, a posições políticas que contrariam tal origem. Escal-
dado pela trajetória do Partido Socialista Italiano (PSI), que nos
anos 1920 era por ele declarado como braço partidário esquerdo
da burguesia, Gramsci avaliava que o “transformismo” dos so-
cialistas italianos decorria de um distanciamento entre uma di-
reção partidária dotada de uma leitura determinista da história e
as bases da classe trabalhadora. Tal distanciamento seria acentu-
ado pela presença de uma burocracia de dirigentes partidários e
sindicais que, mais interessada em preservar suas posições, não
se ruborizava em trocar políticas programáticas por posiciona-
mentos pragmáticos. Resgatando a processualidade de tal situa-
ção, Gramsci afirmava que:
123
desenvolvimentos dos partidos, é necessário
distinguir: o grupo social, a massa partidária,
a burocracia e o estado-maior do partido.182
Nossos desafios
124
intelectual e moral” da classe trabalhadora? Como evitar a “força
conservadora mais perigosa”, que pode emergir no interior
mesmo da organização, a burocracia?
Uma primeira constatação se faz necessária. Após décadas
de experiência negativa com o burocratismo de matriz estalinista
e o oportunismo eleitoral social-democrata, a segunda metade
do século XX e estas primeiras décadas do século XXI assistiram
a muitas e diferentes tentativas de superação dos limites dessas
formas organizativas. Podemos aprender bastante com elas,
desde que reconheçamos que até aqui também não foram
bem-sucedidas do ponto de vista da necessidade histórica de
superação do capitalismo.
Assim, quanto ao funcionamento da organização
partidária, muito do debate contemporâneo passa pela crítica ao
excesso de centralização dos partidos inspirados na leitura mais
tradicional de Que fazer?. Rejeitar o risco burocratizante de uma
direção que, por meio de decisões impostas via disciplina férrea,
domina a massa partidária, entretanto, não necessariamente
significa romper com a ideia do centralismo democrático. As
demandas por maior democracia interna, debate aberto de ideias
e maior horizontalidade dos processos decisórios podem ser
melhor respondidas justamente por uma organização estruturada
desde a base – em núcleos, coletivos, setores, plenárias, células,
etc. Dessa forma, torna-se mais factível que as definições das
instâncias coletivas da organização (congressos, encontros, etc.),
sustentadas por essa democracia de base, centralizem a ação dos
dirigentes, parlamentares e/ou figuras públicas. Para que isso
funcione, é necessário que nenhum limite – a não ser o do acordo
geral com os princípios programáticos e organizativos vigentes
e, justamente, o do respeito às decisões coletivas definidas ao fim
de cada processo de discussão – seja colocado ao debate interno
de propostas nas instâncias de base e entre elas e os vários níveis
da direção partidária. É ainda preciso avançar muito no debate
125
sobre como superar os desafios práticos para garantir que o
exercício da democracia direta no interior da organização não
seja limitado pela necessária representação das bases nos órgãos
de direção coletiva. Ou seja, recoloca-se sempre a questão de
como os representantes podem representar adequadamente os
que os escolhem, sem substituí-los.
Uma organização desse tipo exige um grau de empenho
com seu funcionamento por parte de seus integrantes que,
embora nunca possa ser absolutamente homogêneo, os
qualifica como militantes. Organizados em instâncias de base,
contribuindo para a autossustentação partidária e assumindo
tarefas no interior da organização e nas frentes de luta social nas
quais esta intervém, os militantes não devem ser vistos como
uma “vanguarda externa” à classe trabalhadora, e sim como
uma parcela desta, que, por sua ação educadora e organizadora,
busca atrair parcelas cada vez maiores para a organização e as
lutas revolucionárias.
Ao relacionarmos militância com tarefas e frentes de
luta, podemos cair no risco do “militantismo”, definido por
Alvaro Bianchi como “o fetichismo da ação, a crença de que a
atividade permanente e direta conduzirá inevitavelmente a uma
vitória decisiva”.184 O partido tem que ser o espaço da crítica
permanente da realidade, da elaboração consciente de estratégias
de enfrentamento, do programa capaz de aglutinar forças na luta
pela transformação socialista. Qualquer concepção organizativa
que enxergue uma hierarquia de militantes na qual o trabalho
intelectual esteja confinado à vanguarda dirigente, enquanto
as tarefas militantes são atribuídas aos militantes/tarefeiros,
está fadada a gerar burocratização. A saída para esse risco,
entretanto, não está na simples proclamação da igualdade formal
de todas e todos os militantes/dirigentes, mas, sim, no trabalho
126
ininterrupto de formação política do conjunto da militância,
garantindo que, independentemente dos diferentes níveis de
escolaridade e das distintas experiências de lutas adquiridas
por cada um(a), a participação real nas análises e definições
políticas da organização seja viável através da socialização da
teoria marxista, da história das lutas sociais e das elaborações
socialistas de ontem e de hoje. É a formação política permanente
que garantirá progressivamente a possibilidade de renovação
dos quadros dirigentes, evitando o monopólio da direção por
um grupo restrito de “iluminados”.
Uma formação política que deve se estender a outros
domínios. Como “primeira célula na qual se sintetizam germes
de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais”,
o partido deve ser também uma primeira célula de sociabilidade
libertária, no sentido do esforço incessante para combater e buscar
superar, através da educação militante, os limites impostos
pelos preconceitos e formas de opressão que atravessam a
sociedade, aí incluído o proletariado, da qual sua parcela mais
ativa e consciente está longe de ser imune. Se é essencial romper,
no interior do partido, com a hierarquização estabelecida pela
separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, que só
faz sentido do ponto de vista da dominação burguesa, romper
com todas as formas de hierarquização derivadas da opressão
de gênero, do racismo, da homofobia, da transfobia etc. é tão
importante quanto. Da mesma forma que a democracia interna
se constrói com regras de organização desde a base e com uma
formação política que quebre as hierarquias de saber no interior
do partido, sua materialização no combate às opressões depende,
além de esforços de formação, também de regras acordadas, por
exemplo, garantindo proporcionalidade e representatividade de
gênero, racial e LGBT nas instâncias organizativas, da base ao
topo da organização.
Em quais frentes tal partido atuará através de seus
127
militantes? Tudo, por certo, depende dos limites quantitativos
e qualitativos da organização. Porém, se o Estado burguês
contemporâneo possui uma característica ampliada, envolvendo
organizações da sociedade política cuja direção é dada desde
a organização dos interesses e projetos de classe na sociedade
civil, os partidos socialistas também devem buscar uma atuação
“integral”.185 Atuação direcionada não apenas para a disputa
institucional da sociedade política – no caso das democracias
representativas, para o ciclo eleitoral-parlamentar –, mas
intensamente comprometida com a ação em um conjunto de
espaços, experiências e lutas da classe trabalhadora. Ao partido,
reconhecendo que, como tal, está inserido (é parte) desse
Estado (no seu sentido ampliado), cabe perceber a amplitude
da construção do poder de classe da burguesia e trabalhar para
superar a dominação burguesa em todas as frentes nas quais ela
é exercida.
Esse esforço para organizar a classe a partir de todos os
seus espaços de trabalho e sociabilidade é o principal antídoto
para o oportunismo e o burocratismo que podem decorrer de
uma atuação direcionada apenas à luta parlamentar. Contudo,
exige organizações amplas – e/ou instrumentos mais gerais,
criados por iniciativa delas ou não –nas quais as organizações
políticas possam se inserir, buscando mobilizar as diversas
frações da classe trabalhadora de forma a contribuir para uma
direção das lutas na perspectiva socialista.
Há alguns exemplos na história brasileira que podem
ser elucidativos do potencial, assim como dos limites, das
organizações socialistas nessa direção. Imediatamente após a
anistia política e a volta à legalidade em 1945, o PCB viveu um
período de intenso e rápido crescimento. Eleitoralmente, isso se
185 Esse é um dos elementos, entre os vários que aqui tomamos em conta,
das interessantes proposições de José Maria Antentas, <Imaginação estratégica
e partido>,disponível em <http://blogjunho.com.br/imaginacao-estrategica-e-
partido/>, último acesso em maio de 2017.
128
refletiu em uma votação que alcançou cerca de 10% nas eleições
presidenciais, com um candidato desconhecido e poucas semanas
de campanha, além da eleição de 14 deputados e um senador
(Luís Carlos Prestes) para a Assembleia Nacional Constituinte.
O relativo sucesso eleitoral do PCB naquele momento era,
entretanto, apenas parte do avanço comunista. Organizando, a
partir de comitês de fábrica ou comissões de empresa, operários e
operárias fabris, assim como trabalhadores(as) de outros setores,
a militância comunista conseguia furar o bloqueio das direções
sindicais pelegas e dirigir greves, assim como orientar a formação
de organismos intersindicais (como o Movimento de Unificação
dos Trabalhadores – MUT).186 Nos bairros operários, periferias
e favelas, organizaram lutas por direitos à moradia e aos usos
da cidade, por exemplo, assim como movimento de mulheres.
Utilizaram-se para isso de instrumentos organizativos que iam
além do partido e suas células, reunindo todos e todas que
assumissem uma postura mais mobilizada; na maior parte das
vezes, esses instrumentos eram chamados de Comitês Populares/
Democráticos.187 Como “parte” da classe, organizando-a, o
partido era bem-sucedido não apenas em inserir-se nas lutas
sociais, mas também estava presente – o que talvez fosse uma
das razões de seu sucesso – nas manifestações mais cotidianas
de organização para fins culturais e sociabilidade lúdica, como
as escolas de samba e os times de futebol.188
186 Uma síntese sobre essa atuação sindical aparece no 4º capítulo de M.
B. Mattos, Trabalhadores e sindicatos no Brasil, obra citada.
187 Sobre os Comitês Populares Democráticos, ver Marcos C. O. Pinheiro,
O PCB e os Comitês Populares Democráticos na cidade do Rio de Janeiro (1945-1947),
dissertação de mestrado em História, Rio de Janeiro, UFRJ, 2007. No médio
prazo, as bases lançadas por esse trabalho dos comunistas nas favelas cariocas
continuariam a gerar frutos em organizações comunitárias. Ver a esse respeito
Marco Pestana, A união dos trabalhadores favelados e a luta contra o controle negociado
das favelas cariocas (1954-1964), Niterói, Eduff, 2016.
188 Sobre a influência pecebista em escolas de samba cariocas, ver Valéria
Lima Guimarães, O PCB cai no samba: os comunistas e a cultura popular (1945-1955),
Rio de Janeiro,Aperj, 2009. Sobre os comunistas e os clubes de futebol de várzea,
ver o interessante caso da cidade de Nova Friburgo, localizada no interior do
estado do Rio de Janeiro, estudado por Victor Emrich, Greves e futebol na formação
129
O avanço do PCB nos anos 1945-47 foi rápido, entretanto,
será derrubado ainda mais rapidamente pela ação repressiva
do governo Dutra após a decretação da ilegalidade do partido.
Se a resposta repressiva da classe dominante ao crescimento
da influência comunista foi a principal responsável pelas
dificuldades do partido no período seguinte, não se pode
eximi-lo de sua fatia de responsabilidade. Partindo de uma
leitura equivocada da realidade brasileira, apresentou-se como
vanguarda na defesa de uma aliança do proletariado com a
burguesia e suas representações políticas em nome de uma
etapa democrática da revolução, ao passo que a burguesia estava
distante de interessar-se por tal aliança e apresentava uma
leitura ainda mais instrumental e limitada, contrarrevolucionária
mesmo, do regime democrático.
Nos anos 1980, também o Partido dos Trabalhadores
foi relativamente bem-sucedido em termos de crescimento de
sua participação institucional via processos eleitorais, como
também em estar presente com destaque em praticamente todas
as formas de organização que então surgiram, quer no espaço
sindical (com a CUT), nas lutas pela terra (com o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST), assim como em
muitas outras frentes de luta nas cidades e no campo. Na última
Nota, os limites programáticos do projeto petista dos anos 1980
serão discutidos. Aqui vale registrar que, assim como o PCB no
pós-guerra, o PT contou com instrumentos organizativos que
envolviam muitos(as) mais que suas fileiras militantes, como
organizações de base nos locais de trabalho, moradia, lazer,
etc. No entanto, enquanto os Comitês Populares/Democráticos
impulsionados pelo PCB foram em grande medida espaços
criados por iniciativa do partido, o PT partiu quase sempre de
uma rede já construída e bastante capilarizada de Comunidades
130
Eclesiais de Base (CEB) e outras formas organizativas
impulsionadas pelos setores progressistas da Igreja Católica. A
virada conservadora do Vaticano, a partir dos anos 1980, com o
combate à Teologia da Libertação e seus frutos, fez recuar muito
tal rede organizativa. Todavia, muito em função da estratégia
petista de priorização da via institucional, não prosperou em seu
lugar um conjunto de organizações de fundo laico e objetivos de
classe transformadores. Pelo contrário, especialmente nas favelas
e periferias das grandes cidades, as igrejas neopentecostais, em
suas variadas denominações, encontraram no vácuo das antigas
CEB um caminho amplo para fazerem avançar seu projeto
político e econômico-social, baseado na maior parte dos casos
em uma modalidade ideológica conformada à ordem do capital
de “teologia da prosperidade”.Tal projeto avança por ser, muitas
vezes, a única alternativa de mobilização de solidariedade e lógica
de comunidade à disposição das parcelas mais precarizadas e
pauperizadas da classe.
A partir da experiência recente,a capacidade de construir
redes de solidariedade e restaurar laços de pertencimento ao
coletivo baseados em critérios de classe deve ser reconhecida,
portanto, como um dos mais importantes caminhos das
organizações de esquerda socialistas para cumprirem seus
objetivos de organizar uma nova “vontade coletiva”, partindo
de uma “reforma intelectual e moral” lastreada numa alternativa
emancipadora.
São muitos aspectos a considerar do ponto de vista da
organização partidária, entre eles os desafios que a ela cabem
ao analisar a realidade e propor um programa para a revolução,
agrupando forças através da educação e organização contínua
de parcelas mais amplas da classe trabalhadora. O desafio, em
suma, de mobilizar e pôr em movimento a força da classe –tema
que pretendemos desenvolver na próxima Nota.
131
6ª Nota
Movimento, mobilização e ação coletiva
133
a expressão sumária para variadas formas e manifestações
de enfrentamento populares ao desenvolvimento capitalista
em curso. Ele incluía, sem tornar-se equivalente, inúmeros
movimentos de trabalhadores.”189
Nessa perspectiva de encarar o “movimento como
um todo”, longe de identificá-lo com uma organização ou
ação específica, Barker defende que deva ser percebido como
uma “rede”. O que o leva a encarar a heterogeneidade dos
movimentos, bem como suas oscilações. Daí que, “assim como
uma renda, redes de movimentos podem ter múltiplos padrões;
elas consistem em diversos agrupamentos, organizações,
indivíduos e assim por diante, entrelaçados de maneira variada
em relações de cooperação e (algumas vezes) antagonismo”.190
Tendo em vista tais elementos diversos (e em alguns
momentos conflitantes), o movimento social seria marcado por
pressões contraditórias. Só a partir do balanço da correlação de
forças entre “ciclos de protesto” (elevação do número de ações
coletivas e grupos envolvidos em um determinado período
de tempo) e “ciclos de contenção” (resultantes de respostas
contrária a essas mobilizações), poderíamos definir o potencial
de confrontação social contido em tais processos. Tendo em vista
que o termo “ciclo” pode ser associado a algum padrão cíclico
regular no intervalo de tempo ou nas suas dimensões, o que não
é absolutamente o caso em se tratando do movimento social,
Barker opta por definir tais oscilações como “ondas”. A imagem
procura captar justamente o sentido de movimento inerente a
tais formas de protesto coletivo:
134
a de uma linha suave de desenvolvimento da
oposição. Em vez disso, elas consistem em
sequências complexas de avanços e recuos,
saltos e momentos de paralisia aparente,
expansões e contrações, picos e derrocadas.191
135
Sindicatos e outros movimentos da classe trabalhadora
136
governo), tentando conferir ao Estado (burguês) a aparência de
um órgão neutro, que arbitra os conflitos com imparcialidade. Se
eventuais conquistas parciais podem ser conseguidas por essas
vias, que por isso mesmo não podem ser abandonadas pelas
organizações sindicais, seu sentido mais amplo é o de canalizar
as demandas dos trabalhadores para espaços institucionais de
amortecimento do conflito de classe. Isso pode ser ainda pior
quando o Estado regula o próprio funcionamento dos sindicatos,
como ocorre no caso brasileiro – em que ainda vigora o modelo
do sindicato único (originado na legislação da ditadura varguista
dos anos 1930), com o registro atribuído pelo Ministério do
Trabalho. Acrescente-se aí o acesso a recursos gerenciados pelo
Estado – o imposto sindical, as verbas de fundos (FGTS e FAT, por
exemplo), no caso brasileiro; a gestão de fundos previdenciários
em outras situações nacionais – para garantir um significativo
grau de atrelamento das representações dos trabalhadores a esse
mesmo Estado.
Transformados em gestores de aparatos sindicais mais
afeitos aos caminhos institucionais de negociação do que
à mobilização direta das bases para a luta coletiva, muitos
dirigentes sindicais encontram vantagens materiais e políticas
em permanecerem à frente desses aparelhos, deslocando-se
gradativamente das suas origens sociais e de suas bandeiras
políticas originais. Ao tomar a autopreservação à frente do
aparelho como prioridade número um de sua atuação, a direção
sindical burocratiza-se, ainda que seu discurso político possa ser
aqui e ali mais radicalizado.
Não há antídoto totalmente seguro para essa tendência
à institucionalização dos sindicatos e burocratização de suas
direções, mas o caminho para evitar que tal tendência se realize
por completo passa, necessariamente, pelo programa de lutas
a ser defendido e praticado pelas entidades sindicais. A velha
fórmula da combinação entre “defesa dos interesses imediatos
137
e históricos” da classe é sempre atual, ou seja, o sindicato existe
para lutar desde o local de trabalho pelas questões relacionadas
à segurança e condições de trabalho assim como pelas pautas
salariais, mas deve fazê-lo buscando sempre alertar as bases
para os limites da luta no interior do capitalismo. A integração
entre o maior conjunto possível de sindicatos em centrais
sindicais com horizonte socialista e a capacidade de articular
lutas intercategoriais na direção das mobilizações do conjunto
da classe é, portanto, essencial.
Um exemplo da história do sindicalismo brasileiro pode
ser interessante para ilustrar como a capacidade dos sindicatos
em mobilizar para as demandas de natureza política mais
ampla depende de sua eficácia na luta pelas reivindicações
mais imediatas. Nos anos que antecederam o golpe de 1964,
apesar dos limites impostos pela legislação sindical, registrou-
se um expressivo crescimento das lutas organizadas da classe
trabalhadora, com aumento do número de greves, em meio a
um processo de reorganização que daria origem, em 1962, ao
Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Uma das categorias
mais ativas naquele período era a dos ferroviários. Na região à
volta do Rio de Janeiro, o sindicato dos ferroviários da Leopoldina
era o “campeão” de greves e mobilizações. Foi dos primeiros a
parar quando da renúncia de Jânio Quadros e, com a constituição
da “cadeia da legalidade” para garantir a posse do vice eleito
João Goulart; participou das greves nacionais de trabalhadores
em transportes e das greves gerais, incluindo a que se tentou
fazer quando do golpe de 1964. Fez, também, muitas greves
com demandas específicas da categoria ferroviária, mobilizando
pela melhoria das condições de trabalho, por reajustes salariais,
contra atrasos nos pagamentos etc. O principal dirigente
ferroviário da Leopoldina, Batistinha, militante do PCB, chegou
a ser eleito deputado federal em 1962 pelo estado do Rio de
Janeiro. Batistinha explicou assim, em uma entrevista, as razões
138
da representatividade daquela direção sindical e sua capacidade
em mobilizar suas bases para a luta naquele período:
139
categoria já aposentadas e até mesmo as parcelas desempregadas
de determinado grupo profissional. Deveriam se esforçar,
também, para unificar as lutas de quem possui contrato com as
grandes empresas de um determinado setor e as trabalhadoras
e trabalhadores que “prestam serviços” como terceirizados
naquele mesmo setor. Mesmo assim, como vimos, cerca de
metade da força de trabalho é empregada informalmente no
Brasil, não tendo as organizações sindicais muitas chances de
representá-las.
Gosto de um exemplo extremo, mas que ajuda a visualizar
o tamanho do problema. Trabalhadores sindicalizados realizam
muitas manifestações de rua no Brasil. Em cada uma delas,
encontraremos sempre trabalhadores informais com seus
isopores sobre rodas a vender refrigerantes, água mineral e
cerveja (lembremos que entre os seis bilionários brasileiros que
detêm riqueza equivalente à dos 50% mais pobres da população,
três são sócios da maior cervejaria do mundo). Podem simpatizar
com os manifestantes (ou não), mas não estão ali para protestar.
O que dizer, então, dos que passam por toda a manifestação
recolhendo do chão ou pedindo aos manifestantes as latas de
alumínio que embalavam as bebidas consumidas? Não custa
lembrar que o Brasil é, há mais de uma década, campeão
mundial de reciclagem de alumínio, negócio que movimenta
quase um bilhão de reais por ano. Essa “liderança mundial” em
reciclagem não é garantida pelo espírito ecológico da população,
mas pela miséria dos milhões de catadores e catadoras anônimos
que, embora sejam o primeiro estágio de uma cadeia produtiva
bilionária, na enorme maioria dos casos não possuem qualquer
vínculo empregatício ou direitos trabalhistas.195
140
No entanto, embora seja muito difícil que os sindicatos
os representem adequadamente, tanto vendedores de bebidas
quanto catadores de latinhas fazem parte da classe trabalhadora.
Apesar de não estarem concentrados em empresas, fazendo das
ruas seu local de trabalho, estão concentrados nos territórios
de moradia e sociabilidade dos setores mais precarizados e
pauperizados da classe trabalhadora, especialmente nas favelas
e periferias das grandes cidades, onde por certo também reside
parte do setor formalizado da classe (e trânsitos entre relações
formais/informais acontecem com muita frequência).196 Nesses
territórios, porém, também é possível organizar e mobilizar para
lutas coletivas.
Não é fortuito que, após junho de 2013, tenha ocorrido
um crescimento do número de greves no país,197 mas tenham
sido impulsionados também movimentos sociais da classe
trabalhadora não sindicais, com destaque para a luta pela
moradia, tendo à frente especialmente o MTST (Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto). Com todas as suas contradições,
incluindo a disputa das ruas pela direita a partir de certo
momento, as “jornadas de junho” apresentaram uma pauta
do conjunto da classe trabalhadora – o transporte urbano,
a resistência contra a violência policial, a reivindicação de
mais verbas pra saúde e educação – que unificava interesses
imediatos tanto dos setores formais quanto informais, tornando
visível a sensação de que a alardeada “inclusão” pelo consumo
e pela assistência focalizada, naqueles (até então) dez anos de
141
governos liderados pelo PT, não poderia calar indefinidamente a
reivindicação por direitos sociais universais. Não havia naquele
contexto, entretanto, organização ou conjunto de organizações
da classe que pudessem unificar aquelas demandas dispersas
das ruas em um programa e centralizar a luta em direção a sua
efetivação.
Não cabem ilusões sobre uma suposta “autonomia” maior
dos movimentos sociais, ou um perfil mais “de base”, que lhes
tornariam menos propensos aos males da institucionalização e
burocratização que atingem os sindicatos. Basta lembrar que, ao
longo dos anos de governos liderados pelo PT, a incorporação de
movimentos sociais à ordem, com muitos destes transformados
mesmo em correia de transmissão do governo, foi generalizada.
Também nesse caso, perder de vista as articulações necessárias
entre as demandas específicas dos setores representados por
cada movimento e os objetivos antissistêmicos da classe como
um todo é um risco sempre presente.
Tendo em vista as características da classe trabalhadora,
que impõem a necessidade de organização não apenas nos locais
de trabalho, mas também nos territórios sociais em que a força
de trabalho se reproduz (moradia, alimentação, lazer etc.), a
integração em entidades, mesmo as centrais, exclusivamente
sindicais tende a ser insuficiente para articular lutas imediatas
e históricas do “conjunto da classe”. Daí a importância da
proposta original da CSP-Conlutas – Central Sindical e Popular,
de organizar não apenas sindicatos, mas também os diversos
movimentos sociais que atuam em lutas relacionadas ao conjunto
da experiência de vida coletiva da classe trabalhadora. Realizar
a proposta é muito mais difícil que apresentá-la, como temos
observado na construção da CSP. O passo inicial, entretanto, foi
dado e nos cabe avançar nessa direção.
142
Mobilização
143
a campanha das “Diretas Já!”e as quatro greves gerais do
período, para ficar nos exemplos mais importantes, unificaram
uma parcela muito significativa da classe trabalhadora a setores
sociais mais amplos, numa articulação em rede que teve à frente
o movimento sindical, porém aliado a um conjunto significativo
de outros movimentos sociais. Vários fatores podem explicar o
porquê desse tipo de mobilização. De um lado, o contexto de
luta pelo fim de uma ditadura que já durava duas décadas, o
que alargava as margens para alianças sociais mais amplas em
torno da reivindicação de retorno à democracia. Por outro lado,
é indubitável que a direção política maior das lutas da classe
trabalhadora naquele período, representada pelo PT e por
seus militantes na CUT e em outros movimentos, possuía uma
intervenção marcada pelo compromisso de classe explícito e por
práticas combativas, que desapareceram progressivamente nas
décadas seguintes, conforme o partido se institucionalizava e se
burocratizava. Mas, se voltarmos nossa atenção para o “trabalho
de base”, cabe marcar outra diferença significativa entre os
momentos históricos, já mencionada na Nota anterior, mas para
a qual pretendemos conferir maior atenção aqui.
Desde os anos 1970, e ao longo de toda a década de 1980,
formaram-se movimentos sociais – no plano sindical, com as
oposições sindicais estruturadas em organizações por local de
trabalho, ou no plano dos movimentos por moradia, transporte,
saúde, educação, reforma agrária etc. – que se apoiaram em
instituições e numa “matriz discursiva” que valorizava a decisão
coletiva e a organização pela base.198 A estrutura e as fontes
principais dessa matriz foram fornecidas pelas Comunidades
Eclesiais de Base, estimuladas pelos setores progressistas da
Igreja Católica (afinados com a Teologia da Libertação). Nessa
198 A ideia de que os movimentos sociais da época compartilhavam
três “matrizes discursivas”, a saber, a das CEBs, a das esquerdas dispersas
pela repressão ditatorial e a do “novo sindicalismo”, é desenvolvida por Eder
Sader, Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos
trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
144
época, porém, o avanço reacionário na alta cúpula da Igreja,
desde o Vaticano, quebrou a espinha dorsal daquele trabalho
de base, numa época (a partir dos anos 1990) em que também
já começavam a ser vergadas a combatividade do PT e dos
sindicatos ligados à CUT.
A quebra das CEB e dos movimentos por elas
impulsionados serviu para afastar a Igreja Católica não só das
parcelas mais organizadas, mas também das mais precarizadas
da classe trabalhadora. Se nas lutas de trabalhadores rurais a
Comissão Pastoral da Terra continuou e continua representando
um instrumento a serviço da resistência, nas favelas e periferias
das grandes cidades o encolhimento do catolicismo progressista
abriu espaço para a ascensão pentecostal/neopentecostal.
Conforme dados do IBGE, sistematizados por Ricardo Mariano,
“os evangélicos perfaziam apenas 2,6% da população brasileira
na década de 1940. Avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960,
5,2% em 1970, 6,6% em 1980, 9% em 1991 e 15,4% em 2000”.199
O crescimento continuaria na década seguinte. Como cresceram
também os “sem religião” e os adeptos de “outras religiões”,
pode-se concluir que o avanço evangélico deu-se principalmente
sobre um recuo do percentual de fiéis católicos, pois “entre 1980 e
2010, os católicos declinaram de 89,2% para 64,6% da população,
queda de 24,6 pontos percentuais, os evangélicos saltaram de
6,6% para 22,2%, acréscimo de 15,6 pontos”.200 Seu crescimento
percentual, somente entre 2000 e 2010, foi cinco vezes maior
que o da população brasileira como um todo. Do ponto de
145
vista do perfil social, no caso das denominações pentecostais/
neopentecostais, “permanecem avançando, sobretudo, na base
da pirâmide social: 63,7% dos pentecostais acima de 10 anos
ganham até um salário mínimo, 28% recebem entre um e três
salários e 42,3% dos acima de 15 anos têm apenas o ensino
fundamental incompleto”.201
As diferentes denominações evangélicas (aqui incluídas as
protestantes históricas, pentecostais e neopentecostais) possuem
distintas concepções religiosas e políticas; heterogeneidade que,
por óbvio, é ainda mais visível quando pensamos nas dezenas
de milhões de fiéis dessas religiões.202 Ainda que consideremos
essa heterogeneidade, há entre as denominações pentecostais/
neopentecostais o predomínio de uma concepção teológico-
política conhecida como “teologia da prosperidade”, que
sustenta uma ideologia de adaptação à ordem por meio da ideia
de esforço individual e alicerça uma expansão empresarial das
igrejas em diversos setores econômicos, particularmente no
das comunicações. O que está acoplado a um projeto político
orientado para a ocupação de espaços no aparelho de Estado
por parte de lideranças religiosas com posturas conservadoras
em relação aos costumes e, na maior parte das vezes, posições
146
alinhadas ao neoliberalismo no debate político-econômico.203
Assim, é possível avaliar que a “matriz discursiva”, de origem
religiosa, que orienta expressivas parcelas dos setores mais
pauperizados da classe trabalhadora atualmente é muito distinta
daquela que dominava o mesmo cenário nos anos 1980.
Interessa-nos pensar o que permitiu a essas estruturas,
que poderíamos definir como empresarial/religiosas,
avançarem sua influência sobre contingentes significativos
das parcelas mais precarizadas da classe trabalhadora urbana
brasileira. Entre as razões, com certeza figuram: uma estrutura
organizativa tentacular, que se irradia pelos territórios
urbanos mais empobrecidos a partir do estímulo gerencial
ao “empreendedorismo” dos pastores mas com cadeias de
comando centralizadas (no caso das grandes denominações, que
predominam); o investimento e a eficácia de seus instrumentos
de comunicação de massa (não à toa investem fortemente em
radiodifusão e telecomunicações); a força simbólica de suas formas
rituais, que incorporam elementos tanto do catolicismo popular
quanto das religiões de matriz afro-brasileira (embora, no mais
das vezes, as combatam abertamente); e uma capacidade de criar
– através da prestação de serviços e do espírito de pertencimento
ao grupo – solidariedade comunitária em territórios marcados
pela violência e pela ausência de perspectiva de futuro para a
maior parte de seus habitantes.
Esta última característica não pode passar despercebida
para a esquerda socialista. Se o projeto de transformação social
que defendemos depende da capacidade de organização e
mobilização para a luta do conjunto mais amplo possível da
classe trabalhadora – setores urbanos e rurais, formalizados
ou precarizados, sem distinção de sexo/gênero, geração, raça
ou origem étnica – a capacidade de criar alternativas reais de
203 Ver a esse respeito Sydnei Melo, “Os evangélicos na política
brasileira”, in Blog Junho, 16 nov. 2016, disponível em <http://blogjunho.com.br/
os-evangelicos-na-politica-brasileira/>, último acesso em junho de 2017.
147
solidariedade comunitária, especialmente entre os setores mais
precarizados da classe, é essencial. Alternativas embaladas
por “matrizes discursivas” opostas tanto ao conservadorismo
inerente às formulações teológico-políticas “da prosperidade”
quanto ao assistencialismo focalizado estatal. Que organizem
e mobilizem pelos direitos sociais universais, mas apresentem
desde o início demonstrações materiais e simbólicas de que a
solidariedade de classe é possível.
Tornou-se quase um lugar-comum – muitas vezes,
inclusive, com uma conotação de crítica direta à esquerda
socialista por parte de setores comprometidos com o projeto
petista – a afirmação de que as organizações socialistas não fazem
trabalho de base e não falam aos setores mais pauperizados do
proletariado, que enfrentam a dramática realidade da violência
institucionalizada e da precariedade estrutural nas favelas e
periferias dos grandes centros. Como em todo lugar-comum, há
um fundo de verdade bastante óbvio no caso dessa afirmação.
A origem desse afastamento, contudo, está relacionada ao giro
das direções políticas construídas nos anos 1980, ligadas em
sua maioria ao PT, que se voltaram prioritariamente para a
luta institucional. Ao mesmo tempo em que os instrumentos de
organização de base e luta combativa disseminados pelas CEB
foram desconstruídos, a esquerda organizada, quer nos sindicatos,
quer nos partidos que mantiveram um horizonte socialista,
perdeu muitos dos vínculos com os movimentos desses setores
da classe. Contribuiu para isso a política deliberada do Estado
de, através da ação violenta de seu aparato policial-repressivo,
conter o potencial disruptivo desses territórios, cercando-os e
guetificando-os – algumas vezes literalmente, como atestam os
“muros ecológicos” e os “isolamentos acústicos” construídos
em favelas carentes de esgoto sanitário e outras obras públicas
de maior impacto social. Também teve seu peso a questão da
mudança nos paradigmas teológico/políticos já comentada.
148
O desafio de recompor tais vínculos envolve capacidade de
comunicação e mediações.
O primeiro passo para recompô-los pode ser reconhecer
que, apesar do isolamento que o Estado procura impor, existem
hoje movimentos importantes de contestação à ordem no
interior dos territórios de moradia e sociabilidade das parcelas
mais precarizadas da classe, embora muitas vezes desconectados
das organizações da esquerda socialista (mas nem sempre). É
com esses movimentos que as organizações deveriam procurar
travar maiores relações, sempre respeitando sua autonomia.
A que movimentos me refiro? Há desde a luta pela moradia,
já mencionada, até os movimentos contra a violência policial,
passando por uma multiplicidade de outras formas de
organização e defesa dos interesses dessa parcela da população,
entre as quais destaco duas, pelo seu poder de comunicação:
refiro-me aos coletivos culturais (como os ligados ao movimento
hip-hop, em seus aspectos de música, poesia, dança, pintura
mural, grafite etc.) e aos meios de comunicação comunitários.
No primeiro caso, dos coletivos culturais, a dimensão de
crítica à ordem do capital é destacada através de uma linguagem
e de um conteúdo que dialogam diretamente com os referenciais
da parcela mais jovem da população, criando ainda alternativas
de sobrevivência em empreendimentos coletivos voltados
para a produção e difusão cultural, quase sempre espremidos
entre a repressão policial e a pequena chance de incorporação
pelo mainstream da indústria cultural. No caso da comunicação
popular/comunitária, também vale destacar a linguagem que
dialoga mais diretamente com a realidade desses contingentes da
classe, combinada ao esforço em falar do conjunto da experiência
de vida – trabalho precário, moradia na favela e periferia,
demandas relativas a direitos sociais, violência policial, cultura
e lazer – desses setores, furando o cerco da mídia empresarial,
a qual não os menciona, a não ser para fortalecer a associação
149
entre crime e favelas/periferias, que busca justificar a violência
policial.204
Essa militância já existente dos coletivos culturais e
de comunicação comunitária pode constituir uma ponte, ou
mediação, necessária à reconstrução de laços mais orgânicos
entre as organizações de esquerda e os movimentos da classe nos
seus territórios mais precarizados. Outro caminho inescapável, e
de certa forma já mencionado aqui quando do comentário sobre
a CSP-Conlutas, é o da construção de pontes mais sólidas entre o
movimento sindical e outros movimentos sociais. A construção
da Frente Povo Sem Medo, por iniciativa do MTST, é um passo
nessa direção, embora seu caráter conjuntural –trata-se de uma
frente de lutas contra o governo Temer e suas políticas de ataque
aos direitos da classe trabalhadora – e a atuação dúbia das
organizações dirigidas pelo projeto “Lula 2018!” em seu interior
trabalhem contra a possibilidade de que possa gerar algo mais
sólido no futuro. Sintomaticamente, a iniciativa política, ao
contrário do que ocorria nos anos 1980, partiu de um movimento
social não sindical, que é a principal força dirigente da frente. Os
sindicatos, porém, ainda possuem maior estrutura e muito mais
recursos para apoiar redes de movimentos. Para isso, precisam
compartilhar sua estrutura com movimentos representativos
dos setores mais precarizados. Uma central que reúna sindicatos
e outros movimentos sociais da classe deve ter sempre esse
objetivo em mente, mas cada sindicato pode fazer isso em sua
área de atuação ou na região em que se insere.
Um exemplo significativo, com o qual pretendo concluir,
é o da comunicação. Todo o trabalho ao qual a esquerda
tradicionalmente se referiu como “agitação e propaganda”
depende de uma articulação orgânica com representações dos
204 Sobre o movimento hip-hop a literatura é já grande. Ver, por exemplo,
Janaina Rocha, Mirella Domenich e Patrícia Casseano, Hip hop: a periferia grita,
São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2001. A respeito da comunicação popular,
ver Cláudia Santiago, Experiências em comunicação popular no Rio de Janeiro ontem e
hoje: uma história de resistência nas favelas cariocas, Rio de Janeiro, NPC, 2016.
150
setores mais amplos da classe trabalhadora, mas também da
produção de informação alternativa à da mídia empresarial. Se
a dimensão das grandes corporações de mídia/telecomunicações
é inalcançável hoje para as organizações da classe trabalhadora,
é preciso reconhecer que dispomos de recursos para fazer muito
mais do que fazemos. Cada departamento de comunicação
sindical possui um conjunto de pautas econômico-corporativas
de sua categoria profissional –datas-base, negociações cotidianas
etc. –, do qual tem que dar conta, sem dúvida. Porém, se, além
dessas questões, reservássemos espaço para outras pautas e
disponibilizássemos tempo e especialistas para buscar articular
uma rede mais ampla de comunicação entre entidades sindicais
e outros movimentos, com certeza disporíamos de recursos
e profissionais qualificados para produzirmos muito mais e
melhor informação, análise com conteúdo formativo e material
para mobilização.205 Nesse caso, se os sindicatos possuem
mais estrutura, os movimentos culturais e de comunicação
comunitária possuem muito a ensinar sobre a adequação da
linguagem, contribuindo para que deixemos de falar o dialeto
da militância e consigamos dialogar com os 99% que queremos
ver mobilizados.
151
7ª Nota
O programa
153
parte da Nota trata de programas que orientaram a esquerda
brasileira ao longo do século XX, para que no terceiro momento
possamos apontar alguns parâmetros relevantes para o debate
programático que nos cabe fazer hoje.
154
Quarenta anos depois, a Revolução de 1905 na Rússia
levantou outra questão. Como propor o socialismo em uma
realidade nacional na qual o desenvolvimento de relações de
trabalho assalariadas (e, portanto, do proletariado) e a existência
de uma acumulação tipicamente capitalista conviviam com
formas ainda muito próximas à servidão (abolida meio século
antes) nas relações de trabalho rurais, dominadas pelo latifúndio,
sob um regime político de tirania monárquica tradicionalmente
associada ao “Antigo Regime” e à dominação de classe
aristocrática?
Na social-democracia russa daquele momento
(lembremos que o termo identificava todos os partidos de
referência marxista na Europa), predominava a visão de que o
processo revolucionário de 1905 constituía-se numa “revolução
burguesa”, pois ainda não estavam dadas as condições para a
revolução socialista. Entretanto, essa avaliação comum não
gerava propostas táticas e programáticas convergentes entre as
duas tendências políticas que, desde 1903, dividiam o partido
(mencheviques e bolcheviques).208
Abordando as propostas dos dois grupos naquele contexto,
Lenin entendeu que a discussão programática decorrente da
208 O Partido Operário Social-Democrata Russo foi lançado em 1898, na
tentativa de unir os marxistas russos e diferenciá-los dos populistas narodiniks.
Sob a intensa repressão do regime czarista, a maior parte de seus fundadores
foi presa e/ou acabou no exílio. Nesses primeiros anos, nos quais a própria
existência da organização em face da repressão encontrava-se ameaçada, o
principal debate interno opunha as propostas de Lenin e do grupo reunido em
torno do jornal Iskra, publicado no exílio, às do grupo que, no livro Que fazer?
(1902), é definido por ele como os “economistas”. Vencido esse debate pelo
grupo do Iskra, em 1903, teria lugar o segundo congresso do partido, que teria
a função de torná-lo uma força real. Realizado no exílio (iniciou-se em Bruxelas,
mas só pôde ser concluído em Londres), o congresso acabou opondo o grupo
que apoiava integralmente as teses de Lenin aos que se opuseram parcialmente
a elas, sob a liderança de Martov (também ativo no Iskra), chamados, a partir
de então, respectivamente de bolcheviques e mencheviques. A divisão seguiria
marcando a trajetória da organização, com momentos de atuação unificada e
outros de atuação em separado, sendo que a partir de 1912 já agiam como duas
organizações autônomas, o que ficará mais evidente com os acontecimentos
revolucionários de 1917. Entre as várias histórias do partido, destaque para a de
Pierre Broué: O Partido Bolchevique, São Paulo, Sundermann, 2014.
155
avaliação de que o caráter da revolução era burguês não deveria
levar o proletariado a acomodar-se aos limites impostos pelo
horizonte político dos setores dominantes da burguesia russa. Pelo
contrário, deveriam organizar-se de forma autônoma e mobilizar
outras classes, notadamente o campesinato rural e a pequena
burguesia urbana, em direção a um programa que, ainda que
tivesse sido realizado pela burguesia em outras regiões (como o
fim da monarquia e a adoção da forma republicano-parlamentar
de governo, a reforma agrária, as garantias democráticas e outras
tarefas “nacionais”), não era a “opção natural” burguesa naquele
contexto. Segundo Lenin, dadas as condições históricas de
desenvolvimento do capitalismo na Rússia e a importância das
lutas do proletariado,
156
grande medida, suas posições de doze anos antes, tanto em
concordar com a avaliação de que se vivia uma etapa burguesa
da revolução, quanto na discordância quanto ao protagonismo
de classe do proletariado no processo. Lenin, entretanto,
apresentaria uma posição nova no interior do bolchevismo.
Nas conhecidas Teses de abril, após retornar do exílio, defendeu
a estratégia da tomada do poder pelo proletariado russo e
pela parcela do campesinato a ele aliado, conferindo um papel
central aos conselhos de trabalhadores, camponeses e soldados,
originalmente desenvolvidos pelo proletariado russo em 1905
e agora renascidos: os sovietes. Lenin assumia ali – contra a
avaliação da maioria de seus correligionários – a perspectiva de
que já estaria em curso, no processo revolucionário iniciado em
fevereiro, uma transição entre a “primeira etapa da revolução, que
deu o poder à burguesia (…), para a sua segunda etapa, que deve
colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres
do campesinato”.211 Por isso mesmo, o programa consequente
com essa avaliação era aquele que apontava para a tomada do
poder pelos sovietes, mediada pelas propostas concretas de
pôr fim à participação da Rússia na guerra imperialista, fazer a
reforma agrária e resgatar a maioria da população da miséria.
A proposta de Lenin aproximava-se, assim, em abril de
1917, de uma leitura já apresentada por Trotsky, ainda quando
do balanço do processo revolucionário de 1905. Em Balanço
e perspectivas (1906), Trotsky era categórico: “É possível que
os operários conquistem o poder num país economicamente
atrasado antes de o conquistarem num país avançado.”212 Sua
afirmação assentava-se em uma recusa ao discurso dominante
na social-democracia de então, de que o desenvolvimento das
forças produtivas capitalistas teria que avançar ainda muito mais
213 Ibidem.
158
utopismo pensar que o proletariado, depois
de ter ascendido à dominação política através
do mecanismo interno de uma revolução
burguesa, possa, ainda que o deseje, limitar a
sua missão a criar as condições democráticas
e republicanas da dominação social da
burguesia.
Mesmo que seja temporária, a dominação
política do proletariado enfraquecerá num
grau extremo a resistência do capital, que
tem constantemente necessidade do apoio
do Estado, e fará impulsionar num surto
gigantesco a luta econômica do proletariado.
(...)
Estas consequências sociais e econômicas,
inevitáveis na ditadura do proletariado,
manifestar-se-ão muito cedo, muito antes de
estar terminada a democratização do sistema
político. Cai a barreira entre o programa
mínimo e o programa máximo logo que o
proletariado toma o poder.214
159
sobre a necessidade da ruptura revolucionária. Nas palavras de
Trotsky, o papel das organizações revolucionárias seria apoiar o
processo de conscientização das massas proletárias apresentando
160
essa caracterização e estratégia, tanto nos debates programáticos
internos ao PCB (com posições como a de Caio Prado Jr., por
exemplo) quanto nas elaborações de organizações de esquerda
que apresentaram uma leitura distinta da realidade brasileira, o
que inclui as organizações trotskistas criadas na década de 1930,
assim como novas organizações emergentes nos anos 1960, antes
e depois do golpe de 1964, como no caso da Polop.
Do acúmulo crítico em relação à estratégia da “revolução
por etapas” e do programa centrado na etapa democrático-
burguesa, surgia uma caracterização do Brasil como economia
plenamente capitalista, embora marcada pela dependência em
relação às economias capitalistas do centro imperialista. Nessas
formulações, entendia-se que a forma desigual e combinada
(conforme a elaboração de Trotsky) de desenvolvimento do
capitalismo, responsável pelo caráter dependente do capitalismo
periférico, não gerava uma contradição entre o capital instalado
na periferia dependente e o capital imperialista que fosse capaz
de levar a burguesia periférica a disposições revolucionárias.
Pelo contrário, a especificidade da revolução burguesa na
periferia dependente era justamente sua realização pelo caminho
que Lenin definiu ao referir-se às vantagens para a burguesia de
“apoiar-se nalguns dos restos do passado contra o proletariado”.
Imprensadas pela urgência da luta contra a ditadura e ao
fim esmagadas pela repressão, as organizações originadas nos
anos 1960 debateram as referências das propostas programáticas
pecebistas e as de seus críticos, mas não puderam avançar o
suficiente na elaboração de um programa socialista capaz de
orientar grandes mobilizações da classe trabalhadora naquele
contexto. No entanto, as discussões da esquerda revolucionária
atuante na resistência à ditadura tiveram peso na elaboração de
um programa que surgirá como síntese das lutas dos anos 1980
e orientará a ação do principal partido da classe trabalhadora a
partir de então, o Partido dos Trabalhadores (PT).
161
Embora não esteja completamente expresso em um único
documento, o acúmulo programático e estratégico que veio a ser
conhecido como Programa Democrático-Popular (PDP), do PT,
teve sua primeira elaboração mais acabada apresentada em 1987,
nas resoluções políticas do V Encontro Nacional.216
Nessa elaboração programática, o PT herdou dos debates
das décadas anteriores o reconhecimento de que a economia
brasileira já era plenamente capitalista, não cabendo, portanto,
uma etapa democrático-burguesa da revolução, tampouco
uma aliança de classes com a burguesia. Apontando para uma
estratégia socialista, o programa apresentava como frente
de classes adequada para levar adiante as transformações
necessárias uma aliança entre os trabalhadores do campo e da
cidade, dando ênfase ao envolvimento também da pequena
burguesia – definida como “pequenos e microempresários
urbanos e rurais”, que teriam “profundas contradições com o
capital”.217 Não estava descartada, entretanto, a possibilidade
de, em face das “contradições momentâneas entre os diversos
setores da burguesia”, realizar-se uma “aliança politica, tática ou
pontual, com alguns desses setores”. Daí decorreriam as balizas
para as alianças partidárias possíveis naquele contexto, que não
envolveriam, a princípio, partidos burgueses.
O PDP, naquelas suas formulações originárias, apresentava
uma série de propostas que bem poderiam ser entendidas como
“reivindicações transitórias”, na fórmula de Trotsky, e assim o
foram por algumas correntes internas do partido. Todavia, mesmo
quando caminhava nessa direção, o documento fundacional do
PDP sempre carregava no tom da crítica aos discursos mais
radicais (dos setores internos ao partido que enfatizavam a via
revolucionária) com o objetivo de apresentar como equivocada a
oposição entre reforma e revolução, explicando que:
216 Partido dos Trabalhadores, “V Encontro Nacional (Resoluções
políticas)”, 1987, conforme <https://fpabramo.org.br/csbh/encontros-nacionais-
do-pt-resolucoes/>, último acesso em junho de 2017.
217 Ibidem.
162
A luta por reformas só se torna um erro
quando ela acaba em si mesma. No entanto,
quando ela serve para a educação das massas,
através da própria experiência de luta,
quando ela serve para demonstrar às grandes
massas do povo que a consolidação, mesmo
das reformas conquistadas, só é possível
quando os trabalhadores estabelecem seu
próprio poder, então ela serve à luta pelas
transformações sociais e deve ser combinada
com esta.218
218 Ibidem.
219 Ao apresentar o “conteúdo político” das campanhas para eleições
municipais de 1988, as resoluções de 1987 defendiam, por exemplo: “luta por
um programa municipal com medidas de democratização política, conquistas
economico-sociais e avanços em políticas públicas, que desdobrem o Programa
Alternativo de Governo, respondendo à realidade de cada lugar”. Nenhuma
menção à impossibilidade de realizar tal programa plenamente sem combiná-lo
com a “luta pelas transformações sociais”, como tratava a própria resolução em
outra passagem. Ibidem.
163
imprecisão no uso da categoria “hegemonia”, entendia-se que
a dominação de classes burguesa estava alicerçada desde a
sociedade civil, através das organizações da classe dominante
que organizavam e difundiam suas propostas de classe visando
sua implementação pela sociedade política, ou Estado.
Quando passava às táticas, entretanto, o PDP expressava
uma concepção de Estado muito mais próxima daquela visível no
pensamento liberal de oposição à ditadura, tributário das teorias
do autoritarismo. Nesse momento, a elaboração programática
do PT aceitava a ideia de que as lutas pela redemocratização
vinham da sociedade civil, por vezes denominada como “a
sociedade brasileira”, contra “o” Estado (ditatorial inicialmente,
da “Nova República” ainda sob tutela militar, em seguida). Não
à toa, é no interior do item referente à “Tática” que se apresentam
sinteticamente os objetivos do Programa Democrático-Popular
como sendo
221 Ibidem.
165
o partido percebeu a crise dos regimes do Leste Europeu e a
subsequente restauração capitalista naquelas nações.
No seu primeiro congresso, em 1991, o PT retomou
o debate estratégico e aprofundou sua afirmação como um
partido socialista através da dupla negação: “o socialismo
petista” era definido como “nem socialismo real, nem social
democracia”. A afirmação, pela positiva, de tal projeto socialista
petista, entretanto, era substituída nos textos congressuais pela
expressão “disputa de hegemonia” – reduzida, na prática, a uma
ampliação dos espaços ocupados na institucionalidade. Esta
seria a via não para a efetivação de um governo de classe, dos
trabalhadores, mas para a ampliação da cidadania, lida como
aprofundamento da democracia, que acabava por converter-se
em objetivo estratégico através de um jogo de palavras: “para
o PT, socialismo é sinônimo de radicalização da democracia”.222
Na década que se seguiu ao primeiro congresso, essas
concepções se combinaram a uma ação institucional – nos
legislativos, prefeituras e governos estaduais – através da qual o
partido definiu um “modo petista de governar”. Nos anos 1980,
a ideia de uma forma alternativa de governar esteve associada
a bandeiras como a da “inversão de prioridades”. Nos anos
1990, porém, cada vez mais terá o significado de “governar para
todos”. Embora a expressão “democrático-popular” continuasse
presente, ela cada vez menos se associava a um programa
estratégico e cada vez mais expressava o que se pretendia como
programa de governo, como nas resoluções do VIII Encontro
Nacional, em 1993. Nelas, a palavra socialismo continuava
presente, mas o que se discutia de fato era o avanço em direção à
“verdadeira democracia substantiva”. A relação antes afirmada
166
entre reformas e revolução parecia cada vez mais distante, pois
agora já não se falava em contradições entre as reformas e a
ordem capitalista/dominação burguesa, mas em uma ampliação
dos limites (dentro) da ordem: “porque lutamos por reformas e
por democratização no Estado e na sociedade, acreditamos que
o sucesso dessa luta depende da ação popular e do governo no
sentido de tensionar e esgarçar os limites da ordem existente”.223
As alianças eleitorais com partidos antes rejeitados como
burgueses e a aproximação efetiva com as representações e
proposições empresariais no exercício dos mandatos confirmam
uma alteração de rota. Por isso, quando em 2002 o PT chegou
ao governo federal, o fez através de uma aliança eleitoral e
social com setores da (grande) burguesia, o que contrariava
frontalmente o PDP de 1987. Embora fossem negadas pelo PDP,
tais alianças não podem ser tomadas fora de sua relação com as
caracterizações (a ênfase cada vez maior na impossibilidade da
revolução socialista “naquela” correlação de forças, empurrando
as formulações programáticas cada vez mais para o interior dos
limites da ordem democrático-burguesa) inerentes à estratégia
formuladas pelo próprio PDP. É por aí que podemos entender
melhor o salto do PT, mais evidente quando chega ao governo
federal com Lula (embora já em curso na década anterior).
Passando das difusas definições socialistas das elaborações de
1987/1991 para a referência cada vez mais explícita na “terceira
via” da “nova” social-democracia europeia dos anos 1990, o
partido empenhava-se em mostrar-se capaz de administrar
o capitalismo com o receituário neoliberal. Isso sem que seus
governos tivessem, nem de perto, passado pelas experiências do
reformismo social-democrático clássico.
167
No governo federal, o PT completaria, portanto, um
percurso que começara a traçar bem antes. Na formulação de
Eurelino Coelho, autor de uma das mais completas análises do
transformismo do PT, as direções petistas
224 Eurelino Coelho, Uma esquerda para o capital, São Paulo, Xamã/Eduefes,
2012, p. 329.
225 Ibidem, p. 357.
168
burguês. Avaliar as correlações de força, inclusive reconhecendo
seus momentos desfavoráveis para a classe trabalhadora, é uma
obrigação nessa nova elaboração, porém, tal avaliação não pode
jamais servir como justificativa para secundarizar os objetivos
estratégicos socialistas.
169
de classe”, não a redistribuição da renda e/ou da riqueza. Também
como Marx entendemos que essa abolição – “a emancipação
da classe trabalhadora” – só poderá ser obra da própria classe
trabalhadora. O que só se realizará no plano internacional, pois o
capitalismo se articula mundialmente.
Mas, se entendemos que a classe é um sujeito histórico não
homogêneo, no qual também se refletem as formas de opressão
sexual/de gênero e racial que atravessam a sociedade capitalista,
a “emancipação social” que buscamos não se restringe à abolição do
assalariamento e da lógica estranhada do trabalho abstrato, mas envolve
também a superação de todas as formas de opressão.
Tendo em vista toda a longa história do debate da esquerda
socialista, mas mirando em especial na experiência recente do PT,
será preciso explicar programaticamente que ganhar eleições no
interior da democracia burguesa não é sinônimo de conquista do Estado
(tampouco de hegemonia dos trabalhadores). A conquista do
poder pelos trabalhadores, já explicava Lenin, só poderá se dar
pela via revolucionária, porque significará uma destruição do
Estado burguês e a constituição de um Estado dos trabalhadores,
cujo sentido não é apenas o de inverter o polo da dominação de
classes, mas acabar com qualquer forma de dominação, o que
implica no progressivo definhamento desse novo Estado, em
direção à abolição de qualquer forma de Estado.226
Por certo tais afirmações de princípios não nos bastam,
pois será preciso sistematizar a “ponte” entre as reivindicações
imediatas e esses princípios estratégicos, o que também envolve
partir dos acúmulos de movimentos e lutas concretas. Em
relação às “reivindicações transitórias”, no entanto, todas as
formulações precisam ser dinâmicas e, também elas, transitórias.
O que nos cabe, a cada momento, é compreender a dinâmica da
luta de classes de forma a construir as “pontes” adequadas. É
226 V. I. Lenin, O Estado e a revolução (1918), conforme <https://www.
marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm>, último
acesso em junho de 2017.
170
nesse sentido que apresentamos a seguir algumas considerações
sobre a conjuntura, pensada em suas diferentes temporalidades,
e as pautas que ela sugere.
171
jornada de trabalho sem redução de salários. Podemos, além
disso, nos apresentar de forma diferenciada e avançar pautas
mais ofensivas, apenas se a essa defesa incondicional dos
direitos trabalhistas acrescentarmos a denúncia sobre o caráter
de atrelamento do movimento sindical ao Estado representado
pelo imposto (contribuição) sindical e reivindicarmos o fim
dessa estrutura sindical.
No mesmo sentido, o combate a mais uma proposta de
(contra)reforma da previdência, dessa vez talvez a mais cruel –
complementando as que foram empreendidas por FHC e Lula
–, deve vir acompanhado de um esclarecimento sobre a farsa do
alegado “déficit previdenciário” e sobre o sentido da seguridade
social como mecanismo de solidariedade entre os trabalhadores
e trabalhadoras de diferentes gerações que não pode ser
sequestrado pelo capital. O que implica defender a reversão das
(contra)reformas já implantadas desde a década de 1990.
A situação em curso no Brasil impõe ainda a discussão de
dois temas centrais da pauta política já colocada pela realidade.
O primeiro é o da corrupção. Entendendo-a como fenômeno
inerente ao capitalismo, é preciso esclarecer que só conhecendo
e combatendo as suas causas sistêmicas poderemos apresentar
soluções de fato. Assim, todas as táticas que estabeleçam relações
com a atuação do sistema policial judiciário deste Estado
capitalista/burguês sob o qual vivemos devem ser vistas com
muito cuidado, e devemos rejeitar qualquer tipo de atrelamento
das reivindicações dos socialistas à dinâmica intrínseca da
institucionalidade burguesa, evitando a tentação de centrar
esforços no reforço à máquina criminal/penal.
Mesmo que a “justiça” necessite, de quando em vez,
para parecer realmente “justa”, sacrificar momentaneamente
representantes das classes dominantes, sabemos o quanto
reforçar a ilusão na solução policial/judiciária acaba sempre por
voltar-se contra nós, pois o aparelho funciona basicamente para
172
criminalizar as parcelas mais precarizadas e as mais organizadas
da classe. Nesse sentido, pouco adianta a prisão de um corrupto/
corruptor se as empresas capitalistas que se utilizam da
corrupção como mecanismo de apropriação do fundo público,
ou como “vantagem comparativa” para estabelecer monopólios,
substituem seus gerentes por outros e os encarcerados
continuam a enriquecer com os lucros e dividendos que mesmo
na prisão recebem. Caminhamos em sentido inverso, isto é, o de
evidenciar o sentido de fundo da corrupção, quando apontamos
para a centralidade da expropriação de todas as empresas de
corruptores e a reversão de todas as privatizações negociadas
através desse cambalacho institucionalizado pela corrupção
generalizada nas relações entre o Estado burguês e as empresas
capitalistas.
O que nos leva ao segundo tema central imposto
pela conjuntura: a natureza do Estado e as demandas
democratizantes. Não nos basta propor reestatização das
empresas privatizadas, por exemplo, se isso significar apenas a
defesa de sua transferência para a responsabilidade de gestores
(representantes dos interesses burgueses) como os que estão à
frente do Estado brasileiro hoje. Bandeiras de expropriação e
reestatização devem estar associadas a outras que proponham
o controle dessas empresas por conselhos de trabalhadores,
usuários e consumidores na direção de gestões coletivizadas.
No mesmo sentido, as propostas democratizantes em
relação ao regime político vigente não podem se encerrar no
âmbito das eleições. O regime democrático, conforme discutimos
na Nota relativa ao Estado, se mostra cada vez mais impermeável
às demandas dos grupos sociais subalternos, retirando direitos
duramente conquistados e criminalizando os movimentos que se
levantam em sua defesa. A redução do Estado social tem seu par
correspondente no aprofundamento do Estado policial/penal.
Porém, o aprofundamento da coerção se faz acompanhar de
173
um forte componente mistificador através do esforço dos meios
de comunicação – monopolizados pelas grandes empresas do
setor e afinados com as organizações de classe dos dominantes –
para apresentar os ataques à classe trabalhadora como medidas
inevitáveis diante da crise e minar a solidariedade e consciência
de classe por meio da propaganda das individualidades – da
empregabilidade, empreendedorismo e meritocracia. O regime
democrático é hoje uma máscara podre para a autocracia
burguesa e nos cabe desvelá-la através da defesa de uma
democracia substantiva, que envolve eleições, mas também
propostas de mudança na estrutura do Estado burguês que
exponham suas contradições, acompanhadas de medidas que
avancem na direção de formas paralelas de exercício direto do
poder pela maioria trabalhadora da população, inclusive no que
diz respeito à superação das barreiras impostas pelo capital ao
controle realmente democrático da atividade econômica.
Lembrando, mais uma vez, que reivindicações
democráticas hoje devem sempre incluir a resposta a todo o
ataque reacionário perpetrado nos últimos tempos através das
medidas de governo e da tolerância institucionalizada contra as
parcas conquistas a muito custo arrancadas pelos movimentos
de mulheres, LGBT, negros, indígenas etc. A “agenda positiva”,
nesse caso, tem que passar pela garantia dos direitos reprodutivos
das mulheres, garantia de igualdade salarial do ponto de vista
racial e de gênero, socialização do trabalho reprodutivo, cotas
como política transitória em direção à universalização do direito
de acesso ao ensino, educação inclusiva e antidiscriminatória,
entre muitas outras propostas.
174
b) O programa e a conjuntura aberta por Junho
175
gatilho para sua massificação. E quem melhor conhece e mais
experimenta a revolta contra a violência policial que os setores
mais precarizados da classe, confinados às periferias e favelas
das metrópoles, onde, contrariamente ao senso comum, há forte
presença do Estado, mas quase exclusivamente em sua face
policial (e militar) repressiva?
Além disso, em meio aos protestos, o caráter de classe da
cobertura da grande imprensa se revelou de forma escancarada,
a ponto de, por alguns instantes, um questionamento aos
monopólios empresariais de comunicação ter sido colocado
pelos manifestantes: “A verdade é dura: a Rede Globo apoiou a
ditadura!”
De certa forma, o programa dos setores da classe
dominante brasileira que hoje dão sustentação ao governo Temer
é o “anti-Junho”. Considerada toda a heterogeneidade, Junho
foi, principalmente, a afirmação da insuficiência da “inclusão”
– via crédito para o consumo, reajuste a conta-gotas do salário
mínimo e políticas focalizadas – propalada pelos governos do
PT como a sua grande conquista, apontando para a necessidade
de políticas sociais universais. Por isso mesmo, a resposta da
classe dominante veio com a agenda conservadora. Uma agenda
encampada primeiro por Dilma – que se esforçou para pôr fim
a Junho via repressão (em associação com os governadores) e
iniciou a nova onda de retirada de direitos logo após receber das
urnas um segundo mandato em fins de 2014 – mas que ganhou, a
partir do golpe que a derrubou e do governo Temer, outro ritmo
e profundidade.
Considerando que um programa tem que partir das
reivindicações mais sensíveis da classe trabalhadora em um
determinado momento histórico, nosso programa de hoje tem
que combinar as respostas aos desafios imediatos postos pela
retirada de direitos por Temer com a pauta mais progressiva de
Junho. Sem maiores aprofundamentos, isso significa apontar
176
propostas objetivas para a questão do transporte público (catraca
livre); em defesa da saúde e educação públicas, gratuitas e de
qualidade como direitos universais; pelo fim das polícias
militares, da guerra às drogas e do encarceramento em massa,
com uma política de segurança regulada pelos interesses da
maioria da população; e pelo controle social dos meios de
comunicação de massa.
Nem uma linha do programa que temos de produzir será
irrealizável do ponto de vista das condições objetivas postas
pelas capacidades econômicas e sociais do mundo em que
vivemos hoje. Nenhuma de suas propostas, entretanto, poderá
ser implantada sem desafiar não apenas os governantes e suas
pautas, mas o próprio caráter de classe do Estado e a dinâmica
da dominação social mais ampla determinada pela lógica do
capital. Se formos capazes de formulá-lo, em conjunto com
as forças vivas da luta social do presente, e, além disso, de
mobilizar amplos setoresda classe trabalhadora para sua defesa,
teremos dado o salto qualitativo necessário para superar de vez
o “ciclo petista” e iniciar uma nova fase de confrontações sociais
orientadas por um programa efetivamente socialista.
177
Formato: 14x21cm
Mancha 10x17
Tipologia: Palatino LinoType e Palanquin
Papel: off-set 75 g/m2 (miolo)
1º edição 2017