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ISSN: 3007-0333

REVISTA
ACADEMIA
Órgãos da revista

Director
Paulo de Carvalho
Presidente da Academia Angolana de Letras

Editor deste número


António Fonseca

Conselho Científico
António Fonseca
António Quino
Artur Pestana “Pepetela”
Boaventura Cardoso
Fátima Viegas
Filipe Zau
Inocência Mata
João Melo
Jofre Rocha
José Octávio Van-Dúnem
Paulo de Carvalho
Víctor Kajibanga
Virgílio Coelho
Conselho Editorial

Abreu Paxe
Albino Carlos
Aníbal Simões
António Tomás
Armindo Ngunga
Bento Sitoe
Brazão Mazula
Carlos Cardoso
Carlos Lopes
Carlos M. Lopes
Carlos Serrano
Carmen Tindó Secco
Carmo Neto
Cláudio Furtado
Dagoberto Fonseca
David Capelenguela
Eugeniusz Rzewuski
Francisco Soares
Francisco Topa
Giorgio di Marchis
Irene Guerra Marques
José Carlos Venâncio
José Maurício Domingues
Laurindo Vieira
Luiekakio Afonso
Luís Kandjimbo
Maria da Conceição Neto
Mário César Lugarinho
Óscar Guimarães
Pires Laranjeira
Rita Chaves
Sónia Jorge
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Índice

9 - PALAVRA DO DIRECTOR
11 - NOTA DO EDITOR

ARTIGOS
Vária
15 - Colonialidade, a sombra do colonialismo: como reconstruir o futuro?
Luís Mascarenhas Gaivão

33 - Princípios políticos e tipo de democratização no mundo


Vicente Paulino

49 - Percepção da China e dos chineses em Angola


Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

73 - Les romances féminines et le jeu d’escarpolette dans le bassin méditerranéen:


Le “Hawfi” et le jeu rituel de “Djoghlila” à Tlemcen et son hawza
Mustapha Guenaou

ARTIGOS
TEMAS CENTRAIS:
EDUCAÇÃO
91 - Educação escolar, democracia e justiça social
Pedro Patacho

121 - Desafios do ensino primário público em Angola:


a perspectiva dos agentes educativos do Lobito ao Luena
Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

139 - Profissão docente: lugar de classe e condições para acção colectiva


Manuel Carlos Silva

TOPONÍMIA E IDENTIDADE NACIONAL


157 - Motivação sociocultural na criação de topónimos
O caso da comunidade changana
Bento Sitoe

169 - A escrita dos topónimos e a diversidade linguística em Moçambique


Armindo Ngunga

191 - Toponimia à Luz da História Recente de Angola


António Fonseca

DOSSIER
Encontro sobre Toponímia
e Identidade Nacional em Angola
201 - Em Busca da Independência Cultural
7
205 - Termos de Referência do Encontro sobre Toponímia e Identidade
Nacional em Angola
208 - Intervenção de abertura do Encontro sobre Toponímia
e Identidade Nacional em Angola, proferida pelo Presidente
da Academia Angolana de Letras, prof. Paulo de Carvalho

212 - Declaração da Academia Angolana de Letras Sobre Toponímia


e Identidade Nacional

NOTÍCIAS
217 - Distinções a académicos
No domínio da vida política e cultural
- Académico Filipe Zau nomeado Ministro da Cultura e Turismo
- Distinção ao académico Pepetela
- Prémio ao académico Boaventura Cardoso
Ao académico Boaventura Cardoso, Prémio DST Angola/Camões 2022
- Prémio ao académico Aníbal Simões
Ao académico Aníbal Simões, pelo Prémio Literário Sagrada Esperança
2022 – Edição Especial Centenário.

221 - Actividade desenvolvida pela AAL em 2022


Conversas à quinta-feira estimulam o conhecimento
Academia Presente no Centenário de Neto

225 - OBITUÁRIO

DOCUMENTOS
239 - Estatuto
245 - Manifesto
252 - Proclamação
258 - Declaração da Academia Angolana de Letras sobre o
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

NORMAS EDITORIAIS
261 - Normas Editoriais da Revista Academia

LIVROS
265 - Lexicografia Bilingue de Especialidade
e Dicionário Português-Kimbundu no Domínio da Saúde
Ana Pita Grós

267 - Elaka Lyetu – Um Contributo para o Resgate da Nossa Língua


Isidro Pahula Mukunda

269 - Léxico da Luta de Libertação Nacional


Mbeto Traça

270 – Os Bantu na Visão de Mafrano – Quase memórias


Maurício Francisco Caetano

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Palavra
do Director
A Academia Angolana de Letras (AAL) termina o ano de 2022 com o início de
implementação do seu projecto de criação de uma revista, que sirva de veículo de
difusão dos ideais da Academia, ao mesmo tempo que contribui seriamente para
a difusão das Letras Angolanas.
O projecto de criação desta revista data do mandato da primeira direcção des-
ta Academia (2016-2020), então liderada pelo escritor Boaventura Cardoso. O
projecto da revista não pôde ser então implementado, devido à insuficiência de
recursos financeiros, pelo que teve de ser adiado.
Somente agora, com uma nova direcção, foi possível dar corpo a esta ideia,
graças ao apoio financeiro que vem sendo prestado durante todo este ano, pelo
Ministério da Cultura e Turismo de Angola. Os nossos agradecimentos são, pois,
dirigidos ao Ministro da Cultura e Turismo, pela decisão de apoio a uma asso-
ciação de natureza cultural que (vá-se lá saber porquê) não está ainda registada
como entidade de utilidade pública.
A Academia Angolana de Letras é um órgão da sociedade civil angolana, que
tem a missão de colaborar com o Estado na concepção e execução de políticas
públicas, nas áreas da Literatura, do Livro, da Linguística e dos Estudos Sociais.
Neste quadro, a AAL produziu até ao momento duas declarações, sendo a pri-
meira a respeito do acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990 e a segunda,
acerca da toponímia e identidade nacional (já no actual mandato)1.
O primeiro livro a ser editado sob a chancela da Academia Angolana de Letras,
intitulado Letras sobre as línguas de Angola (organizado por Paulo de Carvalho
e António Quino), com 12 capítulos e a participação de 11 autores, tem data de
2022 e está neste momento no prelo. Tem o alto patrocínio do Gabinete do Vice-
-Presidente da República de Angola.
Em 2022, a Academia realizou duas mesas redondas (por ocasião do Dia Mundial
da Língua Portuguesa e por ocasião do Dia de África, comemorados respetivamente
a 5 e 25 de Maio), bem como ciclos de conferências pelo centenário do nascimento

1
Vejam-se as páginas 196 a 198, adiante.

9
de Agostinho Neto e pelo 47.º aniversário da proclamação da independência política
de Angola.
A covid provocou inesperadamente a alteração do programa de trabalho que
havíamos concebido para o presente mandato, devido à impossibilidade, durante
longo período de tempo, de reunião e de concentração de pessoas em recintos
fechados. Isso obrigou-nos a inovar, organizando um primeiro ciclo de 4 vídeo-
-conferências no final de 2020. A partir de Março de 2021, optámos por organizar
ciclos mensais, num total de 36 vídeo-conferências, com temática variada. Em
2022 mantivamos logo a partir de Janeiro, o ciclo das Conversas da Academia à
Quinta-feira, com um total de 51 vídeo-conferências com a participação de pes-
soas de vários países (com destaque para Angola, Argentina, Bélgica, Brasil, Ca-
nadá, Estados Unidos da América, Itália, Moçambique, Portugal e Suíça). Quanto
aos conferencistas, para além dos membros desta Academia, são investigadores,
escritores, artistas e docentes universitários de várias partes do mundo. Eis o re-
sumo estatístico das conferências internacionais realizadas até aqui, no quadro
das Conversas da Academia à Quinta-feira:

Conversas da Academia à Quinta--feira (2020-2022)


Vida e Estudos Estudos
Ano Linguística Cultura Total
obra literários sociais
2020 - 1 2 1 - 4
2021 21 2 1 10 2 36
2022 9 9 5 25 3 51
Total 30 12 8 36 5 91

A materialização do projecto de criação da revista Academia contitui, pois, o


culminar de um processo de afirmação da Academia Angolana de Letras, iniciado
em 2017 sob a presidência do académico Boaventura Cardoso e com continuida-
de com a eleição da actual direcção. Vamos prosseguir em 2023, de modo que
este mandato termine com a AAL amplamente conhecida, quer em Angola, quer
no estrangeiro.
O nosso desejo é que, para além do cumprimento daquilo que temos planifi-
cado e que depende de nós, o ano de 2023 traga consigo o reconhecimento da
Academia Angolana de Letras como associação de utilidade pública parceira do
Estado angolano, bem como a entrega de instalações condignas por parte do Es-
tado angolano.
Longa vida à revista Academia e que ela possa ajudar a colmatar o vazio que se
regista em Angola, no que a publicações de cariz cultural e científico diz respeito.
Luanda, Benfica, 28 de Dezembro de 2022.

Paulo de Carvalho
Presidente da Academia Angolana de Letras
Director da revista Academia

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Nota
do Editor

Prezado leitor;
Tem diante de si o nº 1 da Revista Academia, referente ao mês de Junho de
2023, na qual poderá encontrar, a par de artigos sobre os temas centrais deste
número que são designadamente “Educação” e “Toponímia”, uma variedade de
outros artigos. Do mesmo modo encontrará um dossier a propósito da realização
pela Academia Angolana de Letras, do “ Encontro sobre Toponímia e Identidade
Nacional”, a Secção Notícias, a Secção Obituário, a Secção Documentos atra-
vés da qual poderá conhecer o espírito com que foi criada a Academia Angolana
de Letras e conhecer a Declaração da mesma a propósito do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990. Encontrará igualmente a Secção Livros em que
através dos respectivos prefácios damos nota de quatro títulos relevantes nos
respectivos domínios e, finalmente, encontrará as “Normas Editoriais”. Espera-
mos, pois, que as matérias que ora publicamos contribuam para a circulação de
ideias e para o aumento do acervo bibliográfico de todos quantos se interessem
em alargar o seu conhecimento nos domínios tratados e ajudem a fazer luz sobre
dúvidas e equívocos diversos acerca de tais temas.
A Academia está aberta à contribuição de pesquisadores de âmbito nacio-
nal e internacional, pelo que a todos aqui fica o nosso convite no sentido de nos
enviarem para possível edição seus artigos, para o que deverão atender às nor-
mas sobre “Como encaminhar a colaboração” que se encontram sob o título”
Normas Editoriais.” Sem prejuízo para a publicação de artigos sobre outros
temas, para o número dois desta revista, elegemos como Tema Central as “
Línguas de Angola”. Fica aqui, pois, o convite para participação na Revista
Academia n.º 2, nos termos acima apresentados.
Finalmente, esperando que este número suscite nos leitores o interesse em
seguir-nos e que tenhamos podido atender à expectativa gerada com a criação
da Revista Academia, desejamos a todos uma boa leitura!

António Fonseca

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Artigos

Vária

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Luís Gaivão

Colonialidade, a sombra
do colonialismo:
como reconstruir
o futuro?

Resumo

O capitalismo e o colonialismo atuaram com base em lógicas eurocêntricas sobre


os povos e as geografias do Sul. Esse eurocentrismo, com origem no renascimento,
evoluiu, depois, para o iluminismo e para uma ideologia colonialista que preten-
diam levar ao mundo inteiro os benefícios do que era entendido como progresso e
modernidade. Mas este “progresso” não admitia pensamentos ou epistemologias
alternativas. Legitimado pela tecnologia e pela ciência ocidentais, o eurocentris-
mo impôs aos povos colonizados os ditames: exploração económica e humana,
eliminação étnica quando necessário, epistemicídio. Os povos periféricos, todos
do Sul, trataram de se defender deste ataque brutal, e, continuando sempre com
o pensamento na libertação, permaneceram numa “reserva” epistemológica,
adaptando-se conforme possível, até à descolonização. Dizia-se que os “selva-
gens ou primitivos” “estavam parados no tempo, não tinham história”. Mas não
era verdade, pois conseguiram a independência, tantas vezes com luta armada.
No entanto, nas novas cliques dirigentes permaneceu uma “colonialidade” de
pensamento, herdeira dos vícios coloniais, que vem impedindo o crescimento e a
reconstrução genuína. É, pois, tempo de “descolonizar” o pensamento, também
no Sul, e não deixar que continuem “outros” a ditar a teoria e a prática.
Palavras-chave: Eurocentrismo, modernidade, Sul, tempo e espaço heterogé-
neo, colonialidade, descolonialidade, ecologia de saberes
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Luís Mascarenhas Gaivão

1. O lado escondido da colonialidade destes, através da ação dos diversos


colonialismos das potências centrais.
Em The Darker Side of Western
As consequências devastadoras, no
Modernity [2011], Walter Migno-
âmbito sociológico-planetário, destas
lo perfura a crosta da racionalidade
formas eurocêntricas do pensamento
ocidental e revela-nos a colonialida-
“único e universal” conduziram-nos
de como a principal ferramenta da
ao mundo contemporâneo, onde “pa-
modernidade. O pensador argentino
rece” faltarem alternativas à globa-
da Duke University afirma que a mo-
lização hegemónica, sem respostas
dernidade ocidental é inseparável da
localizadas. Uma “política” de terra
lógica da colonialidade, ou mais cla-
queimada quanto ao pensamento al-
ramente, que a “civilização” nascida
ternativo, eis o que produziu a prática
com a modernidade se encontra su-
histórica do colonialismo.
brepticiamente fundada numa epis-
temologia economicista e universal Boaventura de Sousa Santos [2009]
que esconde a diferença. Também propõe na sua “teoria do pensamen-
refere que, na realidade, existem to abissal” a necessidade de uma
três tipos de crítica da modernida- “ecologia de saberes” que permita o
de: um primeiro é eurocêntrico em “regresso” (nunca será regresso tal e
si mesmo, pois se debruça sobre a qual) mas o conhecimento possível
própria história europeia (a psica- daquilo que foi obliterado pela “histó-
nálise, o marxismo, o pós-estrutu- ria” (sempre narrada e documentada
ralismo, a pós-modernidade) e dois pelos vencedores e onde se escon-
outros tipos de crítica que emergem dem as verdades inconvenientes ou
de histórias não-europeias, mas que criminosas), ou seja, o conhecimento,
têm tudo a ver com a modernidade do inquestionável valor sociológico e
e a chamada “civilização ocidental”, político, de milhares de culturas e prá-
(a desocidentalização, a ocidentose), ticas destruídas, esquecidas, afasta-
ou com a colonialidade (pós-colo- das, desprezadas, no Sul e do Sul.
nialidade, descolonialidade). Os três Com tal pensamento do Sul “se
tipos de crítica à modernidade são, procura dar consistência epistemoló-
nesta obra, analisados a partir do seu gica ao pensamento pluralista e pro-
ponto inicial, no século XVI-XVII, e positivo”, sendo a ecologia de saberes
são reportados os seus vários cami- quem conduzirá esse processo.” [San-
nhos de dispersão. tos 2009:52]
Outros autores sul-americanos, Contra o pensamento único do
Quijano [2009)], Maldonado-Torres racionalismo eurocêntrico que des-
[2008], Castro-Gómez [2005] ou afri- cambou do iluminismo para uma
canos, Akude [2007], Mbembe [2005], globalização neoliberal que encerra a
Muanamosi [2011], Mudimbe [2013], história numa mundividência fechada
entre tantos, abordam os temas rela- e sem retrocesso, afirma Boaventura
cionados com os processos que con- de Sousa Santos que:
duziram à universalização das teorias “a ecologia de saberes recorre ao
eurocêntricas, por meio dum conti- seu atributo pós-abissal mais carac-
nuado combate aos pensamentos terístico, a tradução intercultural.
considerados “periféricos” e condu- Embebidas em diferentes culturas
zindo até ao apagamento de muitos ocidentais e não-ocidentais, estas
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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

experiências não só usam linguagens través de las ciencias y las artes. Los
diferentes, mas também distintas ca- africanos, los asiáticos y los america-
tegorias, diferentes universos simbó- nos son razas moralmente inmaduras
licos e aspirações a uma vida melhor. porque su cultura revela una incapa-
[Santos 2009:52] cidad para realizar el ideal verdade-
Na realidade, há seis séculos que a ramente humano, que es superar el
modernidade iniciou o processo en- determinismo de la naturaleza para
viezado de se autojustificar como su- colocarse bajo el imperio de la ley mo-
perior e exemplar, para tal construin- ral. Sólamente la raza blanca euro-
do, a todos os níveis do pensamento e pea, por sus características internas
do conhecimento, um teatro da histó- y externas, es capaz de llevar a cabo
ria em que os que “sabem” pensar são este ideal moral de la humanidad. En
os mesmos que detém os recursos, su Physische Geographie, Kant es-
determinam o bem e o mal, classifi- tabelece claramente que “La huma-
cam as sociedades e as culturas, regu- nidad existe en su mayor perfección
lam a economia. (Volommenheit) en la raza blanca. Los
Deste pensamento racionalista hindues amarillos poseen una menos
“único”, saiu a receita: os povos e cul- cantidad de talento. Los negros son
turas orientais, africanos ou amerín- inferiores y en el fondo se encuentra
dios, não têm as mesmas capacida- una parte de los pueblos americanos”.
des dos eurocêntricos (e mesmo entre [Castro-Gomez 2005:41]
estes, os do Norte prevalecem sobre
os do Sul) e por esse motivo, há que Assim se construiu toda uma His-
ensiná-los, chamá-los à civilização, tória alicerçada na superioridade do
“desenvolvê-los”, acabando com as homem branco e no exercício do pro-
suas “inferioridades”, agora étnicas e selitismo desta racionalidade “univer-
raciais, como apontavam os maiores sal” pelos quatro cantos do planeta. A
faróis do pensamento eurocêntrico. era do colonialismo tinha, pois, como
Kant [1999] e Hegel [1995] pro- meta a “assimilação” do diferente
nunciaram-se e, com outros muitos para que deixasse de o ser, rumo à
pensadores europeus, possibilitaram globalização, ou, como bem escreve o
a fundamentação do racismo e do co- filósofo camaronês Achille Mbembe:
lonialismo. “…a essência da política de assimi-
lação é dessubstancializar a dife-
Uma citação do especialista no
rença, através de todos os meios,
estudo da dita “modernidade” e “co-
para uma categoria de indígenas
lonialidade”, o colombiano Santiago
cooptados para o espaço da mo-
Castro-Gómez, elabora, na perspeti-
va sul-americana, uma descrição re- dernidade, se fossem «converti-
sumida do que Kant entendia sobre as dos» e «cultos», ou seja, aptos para
raças “inferiores” e respetiva incapa- a cidadania e para usufruir dos di-
cidade moral de controlar a natureza: reitos cívicos.” [Mbembe 2014:154]
“(…) algunas razas no pueden ele-
varse a la autoconciencia y desarrolar Mas, nem sempre a assimilação foi
una voluntad de acción racional, mien- a primeira opção do colonizador.
tras que otras van educándose a sí mis-
mas (es decir, profesan moralmente) a
17
Luís Mascarenhas Gaivão

2. As duas modernidades igualmente entre alguns pensadores


Podemos, então, ler os “sucessos” iluministas e religiosos europeus que
que a história efabulou, o advento “viam” como aquela “modernidade”
duma primeira modernidade (séculos era imposta através de processos iní-
XV-XVII) ibérica, católica e exaltada, quos, como o da escravatura.
manipulando a própria consciência
com a ganância das riquezas alheias 3. A ferramenta “moderna” do
e com a discussão de saber se negros esclavagismo
e ameríndios teriam ou não teriam Utilizando o lado obscuro e escon-
alma, com isso pretendendo justifi- dido, o comércio atlântico, segundo
car uma economia esclavagista, bem o qual mais de catorze milhões de
como o apagamento cultural e episte- escravos [Alencastro 2012] foram re-
mológico dos colonizados. tirados de África (e Angola ocupa um
E vieram os “sucessos” duma se- lugar tristemente cimeiro neste do-
gunda modernidade, esta de inspi- mínio) é, apenas, uma das facetas do
ração calvinista-protestante e cen- esclavagismo.
tro-europeia (século XVIII-XX), que Iniciado pelos portugueses, no sé-
fundamentava o seu procedimento no culo XV, durante as primeiras nave-
Iluminismo da Revolução Francesa e gações na costa de África, eram feitas
na Revolução Industrial que pariu, de incursões violentas para captura de
facto, um colonialismo científico que pessoas, depois vendidas no outro
intensificava a visão de “objeto” relati- lado do Atlântico. Difícil e pouco ren-
va aos povos colonizados na América, tável a atividade foi, logo, substituída
na África, no Médio Oriente e mesmo pela preferência na transação comer-
na Índia e Indochina. cial do escravo, recebido pelo trafican-
O poeta inglês Rudyard Kipling re- te em troca de produtos que, ou pelo
sume esta atitude a que apelida de o prestígio social, ou pela utilidade mili-
“fardo do homem branco” [1898] e tar, induziam o líder africano a entre-
que consistiria em retirar do atraso gar, como único pagamento possível,
civilizacional e cultural os povos das naquele contexto, o escravo.
colónias. Escondia-se por trás dessa Convém assinalar que o comércio
ideologia colonialista, o massacre cul- de escravos era frequente e inquestio-
tural, étnico e moral e a exploração nado em África (e não vem ao caso o
económica dos recursos. comércio de escravos africanos levado
É deste lado escondido e escuro da a cabo pelos islâmicos-transarianos ou
modernidade que falava Mignolo e ao mundo do Oceano Índico), muito
antes da chegada dos portugueses, o
que privilegiava a “restrição mental”
que tinha a ver com formas culturais e
no juízo da razão eurocêntrica, sobre
políticas regionais que a sociologia e a
o seu comportamento abusivo nas re-
hermenêutica tem vindo a esclarecer.
lações com o colonizado. Não foi, no
entanto, isento por completo de cons- Cito o investigador angolano Matu-
ciência crítica, primeiro, naturalmen- mona Muanamosi:
te, entre os povos que sofriam uma im- …a África Negra desenvolvera
posição colonial e sempre exerceram igualmente a sua própria escravatu-
tentativas, muitas, de libertação, mas, ra interna. Neste horizonte, a África
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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

subsariana apresentou um dado: os à que se obteve no Novo Mundo.


escravos podiam ter funções mui- O escravo de origem africana no
to diversificadas: agricultores, sol- Novo Mundo representa assim uma
dados, remadores para as canoas, figura relativamente singular de
funcionários administrativos; po- negro, pela particularidade de ser
diam ser um meio de pagamento uma engrenagem essencial de um
e transacções políticas e, sobretu- processo de acumulação à escala
do, de engrandecimento do grupo. mundial.” [Mbembe 2014:90]
Tanto quanto a documentação e a
interpretação de raiz antropológica Esta utilização da ferramenta escra-
nos deixam perceber que as prin- va dentro dum processo capitalista e
cipais motivações da escravidão colonialista de acumulação do poder e
intra-africana estariam sobretudo riqueza ao mesmo tempo que traçava
relacionadas com o estatuto da ter- a ignomínia da escravatura “moderna”,
ra. Era aí também que se tinham introduziu a África no mercado global.
gerado formas culturais que pre- Ainda é Muanamosi que refere:
viam transferências desses direitos
“…seria lógico situar também a es-
a troco de bens e transferir os seus
direitos sobre uma pessoa para ou- cravatura na senda da modernidade,
tra linhagem. [Muanamosi 2008:7] cuja irrupção decisiva deu-se sobre-
tudo nos séulos XVII e XVIII com a
revolução industrial, que se prolon-
Como diz o ditado, “juntou-se a
gou até fora do Ocidente, alteran-
fome com a vontade de comer” e
o tráfico euro-colonial negreiro do do, profundamente, o universo e as
atlântico teve o suporte continental sociedades do Terceiro Mundo. Em
africano, numa relação de interesses África, isto começou com o contac-
comerciais e sociais demasiado intrin- to com outros povos e culturas. Por
cada para se classificar, apenas e ex- isso, o passado africano é um marco,
clusivamente, os europeus como res- um caminho para as mutações so-
ponsáveis pelo drama africano, “uma ciais no continente. Assim, a escra-
vez que os próprios africanos partici- vatura, na linha do colonialismo, sur-
param, noutros moldes, no mesmo ge como um campo marcado pela
processo.”[Muanamosi 2008:6] mudança social e pela aculturação,
configurando-se na modernidade.”
Mbembe, no mesmo sentido, refere:
[Muanamosi 2008:8]
“Este complexo atlântico não pro-
duziria o mesmo tipo de sociedades
nem de escravos que o complexo 4. Descolonizar a história,
islâmico-transariano, nem o que reconstruir a África
ligou África ao mundo do Índico. Vimos como um dos efeitos da
Se algo distingue os regimes de enorme sangria populacional levada
escravatura transatlântica das for- a cabo pelas várias vertentes esclava-
mas autóctoes de escravatura nas gistas e coloniais, e, no caso que nos
sociedades africanas pré-coloniais, assiste mais, de Angola, pelo tráfico
é precisamente o facto de estas negreiro, foi o ter promovido a entra-
nunca terem extraído dos seus ca- da desses territórios e dos seus povos,
tivos uma mais-valia comparável numa “modernidade” (desde a primei-
19
Luís Mascarenhas Gaivão

ra) que abarcava, agora, os três conti- cípios de governo e de constituições


nentes atlânticos. dos estados que vigoravam (menos
Chegada a época pós-colonial, e mal) na Europa (a democracia euro-
contra as expetativas, perduram, ain- peia respondia ao desenvolvimento
da e no entanto, os efeitos nefastos da civilizacional europeu, não aos outros
colonialidade de que falavam Mignolo espaços colonizados).
e Quijano, como se pode ler no congo- Retenhamos na memória que esses
lês Valentin-Yves Mudimbe: princípios de governo eram as con-
“Devido à estrutura colonizadora, quistas do iluminismo e das liberdades
emergiu um sistema dicotómico e da Revolução Francesa, dos direitos
com este surgiu um grande número humanos e do Estado-Nação.
de oposições paradigmáticas: tradi- O nigeriano John Emeka Akude ela-
cional versus moderno; oral versus bora a descrição de como foi efetuada
escrito e impresso; comunidades a passagem do modelo de governação
agrárias e consuetudinárias versus democrática europeia para os estados
civilização urbana e industrializada; africanos :
economias de subsistência versus
“El estado moderno africano fue im-
economias altamente produtivas.”
puesto a través de los procesos de
[Mudimbe 2013:18]
imperialismo y colonialismo - pro-
cesos que integraron a los Estados
Foi-se, assim, conduzindo África,
africanos de manera marginal en
no seu conjunto, para um capitalismo
la economia política internacional,
que, segundo Mudimbe, por nada ter
principalmente debido al interés de
a ver com as tradições propriamente
los Estados colonizadores en que és-
africanas, acabou por provocar toda
tos les suministraran matéria prima
a espécie de desastres sociológicos:
para la producción industrial y se
destruição das áreas tradicionais da
convertieran en mercados para sus
agricultura e artesanato, desintegra-
produtos. La descolonización exitosa
ção social, criação de proletariados ur-
implicó el traspaso del poder político
banos, esquecimento e abandono das
a una élite política que nació y creció
práticas culturais e religiosas, introdu-
en medio de prácticas, estruturas,
ção de medidas económicas, sociais e
valores e – invariablemente – intere-
legislativas incoerentes, enfim, a ba-
ses coloniales, excluía todo intento
nalização de todo o modo e estrutura
de modificar la posición marginal de
de vida sócio-cultural.
los Estados africanos en el sistema
Não se pode esquecer que escolas, político-económico internacional. En
igrejas e comunicação social difun- consecuencia, el desarrolo económi-
diam um projeto colonizador ao mes- co y la capacidad institucional y la
mo tempo incompreensível e contra- estabilidad del Estado se vieron de-
ditório com a tradição africana. bilitados ya que esta élite explotaba
Foi, uma vez mais, o pensamento fi- el poder estatal para compensar la
losófico, social e político eurocêntrico falta de una base de recursos mate-
que impingiu, num momento em que riales, lo cual, a su vez, era el resul-
deveria ter sido radical a descoloniza- tado del control de las empresas de
ção, a um continente epistemologi- los Estados colonizadores y otros Es-
camente diferente, os mesmos prin- tados extranjeros sobre las estrutu-
20
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

ras de mando de sus economias. Por do asiático ou a bestial liberdade


conseguiente, el desarrollo económi- sexual do africano, que não preci-
co basicamente pasó a un segundo sam de prova, não pudessem na
plano.” [Akude 2007:1] verdade ser provados jamais no
discurso.” [Bhabha 1998:105]
Trata-se, pois, da aplicação de uma
política neocolonialista, como ca- A leitura colonial estereotipada e
talogava o ganês Kwame Nkrumah preconceituosa relativamente ao colo-
[1965], e, na realidade, na enorme nizado, retira-lhe a raiz do ser e apre-
maioria dos estados africanos os mo- senta-o, então, como pertencente a
vimentos de libertação e os naciona- uma raça/etnia inferior, cuja caracterís-
listas convictos não desejavam um tal tica principal é a incapacidade de auto-
percurso, mas viram-se ultrapassados nomização, e, justificando, assim, a sua
pelas circunstâncias históricas. sujeição ao colono, o educador.
Estas consequências gravosas fa- Os africanos, os ameríndios e os
zem parte do espólio da história das povos dos territórios coloniais passa-
relações Europa-África, inerente aos ram a ser visualizados, fruto da infini-
diversos tipos de colonialismos ali ta imaginação colonial, como realida-
praticados. des inferiores, desvirtuadas quanto
ao ser e ao existir, descontextualiza-
Em resumo, o colonialismo preten- das, sem história. Fixadas no tempo
deu impor a visão única e exclusiva e no espaço.
duma “modernidade” que , afinal, era
E foram criados “falsos saberes”
cega e falsamente “iluminada”, “obs-
[Mbembe, 2014] com base em fábu-
cura”, pois a sua leitura do mundo e do
las sociológicas e culturais que me-
“outro”, estava viciada.
lhor disfarçavam o desprezo pelo co-
Foi o indiano Homi Bhabha [1998] lonizado e o orgulho “civilizacional”
quem explicou como o colonialismo do colonizador.
produzia e perpetuava as suas duas Mbembe interpreta a noção de ra-
principais armas, a “fixidez do olhar” e cismo de Franz Fanon, que apontava
o “estereótipo” colonial: em “Os Condenados da Terra” [1977] e
“A fixidez, como signo da diferen- “Pele Negra Máscaras Brancas” [1975]:
ça cultural/histórica/racial no dis- “…a par de estruturas coercivas que
curso do colonialismo, é um modo presidem à ordem do mundo colo-
de representação paradoxal: co- nial, o que constitui a raça é, antes de
nota rigidez e ordem imutável mais, uma certa força do olhar que
como também desordem, dege- acompanha um tipo de voz e, even-
neração e repetição demoníaca. tualmente, de toque. Se o olhar do
Do mesmo modo, o estereótipo, colono «me fulmina» e «me imobi-
que é a sua principal estratégia liza», e se a sua voz me «me petrifi-
discursiva, é uma forma de conhe- ca», é porque a minha vida não tem
cimento e identificação que va- o mesmo peso do que a sua, defen-
cila entre o que está sempre “no de ele. [in Os Condenados da Terra].
lugar”, já conhecido, e algo que Explicando aquilo a que chamava «a
deve ser ansiosamente repetido… experiência vivida pelo Negro», ele
como se a duplicidade essencial analisa como um certo modo de dis-
21
Luís Mascarenhas Gaivão

tribuição do olhar acaba por criar o quadro da antropologia moderna já


seu objeto, por fixá-lo e por destruí-lo encara o colonialismo como acultu-
ou, ainda, por restituí-lo ao mundo, ração ou mudança cultural, sendo
mas sob o signo da desfiguração ou, que o imperialismo, neste contex-
pelo menos, de um «outro eu», um to, deixa de ser encarado como
eu objecto, ou ainda um eu-à-parte. sistema ideológico, passando a ser
Determinado modo de olhar tem de considerado como uma realidade
facto o poder de bloquear a aparição empírica. [Muanamosi 2008:9]
do terceiro e a sua inclusão na esfera
do humano: «Desejava simplesmen- Exagerado? O que parece certo é que
te ser um homem entre os outros ho- se torna necessário um trabalho intelec-
mens». «E eis que me descubro um tual muito aprofundado por parte dos
objecto entre outros objectos.» [in africanos, afim de vencerem a carga
Pele Negra Máscaras Brancas] ideológica que ainda marca a história de
África, dum e doutro lado do colonialis-
(…) «Eu acreditava estar construin- mo, e lutarem pela reconstrução dum
do um eu», mas «o Branco teceu-o continente até aqui despojado de si pró-
através de mil pormenores, anedotas, prio, por uma violência colonial, pós-co-
relatos». [Mbembe 2014:191-192] lonial e moral sem limites.
À história narrada pelos vencedo- Mas o mais importante é desco-
res, carregada de ideologia, e no caso lonizar o pensamento e retirar-lhe a
colonial e da escravatura de forma carga de “colonialidade” que o acom-
tremenda, deve-se juntar o relato, até panha e de que vem enfermo desde
agora apagado, dos vencidos, tam- que a “modernidade eurocêntrica”
bém para que, do ponto de vista cien- impôs os seus ditames universais.
tífico, surja a verdade possível. Trabalho a ser, diariamente e pes-
A história, diz-se, dá muitas voltas e soalmente realizado, no Norte e no
o contributo pós-colonial da anterior- Sul, no Este e no Oeste.
mente citada “ecologia de saberes” Perseguir a a “modernidade autên-
[Santos, 2009] e da sociologia das au- tica”, já que todos nós, humanos, de-
sências [Santos, 2010], seguindo um sejamos ser modernos e não ter lados
processo hermenêutico de análise e obscuros.
interpretação de textos, contextos e
acontecimentos, desempenhará um 5. Tempos e espaços heterogéneos
papel importante para uma releitura, As disparidades de desenvolvimen-
menos carregada de condicionalismos to “civilizacional” entre o eurocentris-
ideológicos e já sem a cegueira colo- mo e os territórios colonizados tem,
nial e/ou pós-colonial, do passado e na história, relação intrínseca com os
das culturas da África. diferentes tempos e espaços em que
as diversas epistemologias se produzi-
Refere Muanamosi que: ram e produzem.
“as obras de carácter geral defor- No espaço da Europa, o contribu-
mam a História de África, que surge to filosófico renascentista que surgiu
como algo condicionado pela ideo- após o esgotamento do modelo so-
logia” e que, no presente, o novo cial medieval, trouxe um pensamento
22
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

novo que o francês René Descartes ricanos, africanos, oriundos de povos


(1596-1650) sintetiza no célebre “co- ex-colonizados, vêm refletindo sobre
gito, ergo sum”. o que se passou.
Aqui se criou a grande fissura com A naturalização das experiências
o passado que abriu o caminho à “mo- de colonialidade que resultaram das
dernidade”: o pensamento tornou-se práticas tão fervorosamente camu-
essencialmente racional, afastando-se fladas pela História e pensamento he-
duma matriz natural. Foi então que, gemónicos do capitalismo e do colo-
cito o equatoriano Aníbal Quijano: nialismo globais conduziram, pois, ao
apagamento de alternativas ao pen-
Foram-se configurando novas en-
samento eurocêntrico e moderno, ou
tidades societais da colonialida-
por outras palavras a um epistemicídio
de - índios, negros, azeitonados,
cultural também global que, contudo,
amarelos, brancos, mestiços, - e não foi completamente concluído.
as geoculturais do colonialismo,
Tais alternativas (ecologia de sa-
como América, África, Extremo
beres alternativos) continuaram, a
Oriente, Próximo Oriente (as duas
manifestar-se sob a forma de práticas
últimas, mais tarde, Ásia), Ociden-
culturais de resistência com que as ví-
te ou Europa (Europa Ocidental, timas do preconceito colonial almeja-
depois). E as relações intersubjec- vam defender e preservar os seus le-
tivas correspondentes, nas quais gados étnico-culturais.
se foram fundindo as experiências
Nélson Maldonado-Torres [2008]
do colonialismo e da colonialidade
chama de “esquecimento da colonia-
com as necessidades do capitalis- lidade” a atitude que a filosofia hege-
mo, foram-se configurando como mónica eurocêntrica e universalista e
um novo universo de relações de a teoria social contemporânea con-
dominação sob hegemonia euro- tinuam a manter relativamente a si
centrada. Esse específico universo próprias, quando confrontadas com
é o que será depois denominado os pensamentos alternativos.
como a modernidade. [Quijano E explica, com análise crítica, que
2009:73-74] a universalidade e a centralidade do
“ser” e do “conhecimento” implica-
O capitalismo encontrava no pen- das no pensamento europeu, têm
samento racional as suas regras de necesidade de uma topologia, de uma
ouro, como também afirma: “a me- demarcação do lugar. É devido a essa
dição, a externalização (ou objecti- mesma ausência da limitação do es-
vação) do cognoscível em relação ao paço eurocêntrico do conhecimento
conhecedor, para o controlo das re- que ele mesmo é interpretado como
lações dos indivíduos com a natureza que se revestindo do caráter universal,
e entre aquelas em relação a esta, em não admitindo outros tipos de conhe-
especial a propriedade dos recursos cimentos. O universal é um domínio
de produção.” [Quijano 2009:74] provido de espaço. Escreve Maldona-
Enquanto Mignolo fala da colonia- do-Torres:
lidade como sendo o lado escondido A ausência de reflexões sobre a
e obscuro da modernidade, Quijano e geopolítica e a espacialidade na pro-
uma plêiade de pensadores sul-ame- dução de conhecimento vai a par com
23
Luís Mascarenhas Gaivão

a falta de reflexão crítica quanto ao “modernidade”, reclamando a “lim-


empenhamento da filosofia e dos fi- peza de sangue”, a “brancura” e o
lósofos ocidentais com a Europa en- “pensamento ilustrado” como imagi-
quanto local epistémico privilegiado. nários justificativos do domínio sobre
Embora a introdução da espacia- as castas inferiores.
lidade como factor significativo na Pelo seu “neogranadismo” e espí-
compreensão da filosofia seja um rito ilustrado, posicionavam-se como
importante avanço para a disciplina, os detentores da verdade universal,
pode ser um passo limitado se promo- vanguarda intelectual e social:
ver a reafirmação de um novo sujeito
epistémico neutro, capaz por si só, de
(…) como observadores impar-
cartografar o mundo e estabelecer
ciales del mundo – lo que aqui he
associações entre pensamento e es-
denominado la “hybris del punto
paço. [Maldonado-Torres 2008:73]
cero” -, será para ellos el motivo
Este autor receia que os espaços perfecto para fortalecer su ima-
neutros (sem fronteiras nem delimi- ginario habitual de domínio so-
tações) e universais da conceção do bre las castas. Enunciado por los
pensamento europeu sejam fatores ilustrados de la Nueva Granada,
contributivos para a permanência de el discurso de la ciência será, des-
uma colonialidade, mais uma vez, in- pués de todo, un discurso colonial.
visível à sua própria introspeção, pro- [Castro-Gómez 2005:25]
vocando a cegueira sobre si-mesmo
e, portanto, sobre o “outro” também. O próprio Castro-Goméz também
E regista: manifesta a opinião de que, enquan-
É minha convicção que este tipo to a potência colonizadora (Espanha,
de crença na imparcialidade tende, no caso, mas serve, igualmente, para
em última análise, a reproduzir uma qualquer outra) se esforçava por
cegueira não a respeito do espaço en- justificar no iluminismo eurocêntri-
quanto tal, mas a respeito dos modos co um imperialismo que levaria a
não-europeus de pensar e da produ- “modernidade” aos colonizados, os
ção e reprodução da relação colonial/ “criollos” tomavam para si o mesmo
imperial, ou daquilo a que, na esteira iluminismo eurocêntrico como mo-
do sociólogo peruano Aníbal Quijano, delo para dirigirem as nações ame-
gostaria de designar por colonialida- ricanas que acabavam de aceder às
de. [Maldonado-Torres 2008:73] independências, durante a primeira
O também já mencionado Castro- metade do século XIX.
-Gómez refere que, no que respeita Resumindo, as classes dirigentes
à América Latina, este tipo de pen- crioulas, nas novas nações ame-
samento universal e atópico permi- ricanas, herdavam o mesmo “ilu-
tiu, ao que ele apelida de “criollos” minismo” racionalista como ferra-
(a classe dos “ilustrados”, naturais já menta intelectual para introduzir
miscegenados que aspiravam a ser a “modernidade” nas sociedades
os dirigentes sócio-políticos da Nova americanas, o que significa que
Granada, hoje México), autoprocla- prolongaram, muito tempo após as
marem-se como os construtores da independências, um racionalismo
24
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

adotado e adaptado que Castro-Gó- pertence à natureza, é um conceito


mez chama de “ponto zero” de abs- humano usado para organizar as re-
tração e não contém abertura para petições e transformações da Histó-
as “outras” formas de racionalidade ria e dessa noção foram reprimidas e
dos povos ameríndios locais, por ser afastadas conotações com as mudan-
“universal” e único. Daí os epistemi- ças cósmicas e da natureza. O tempo,
cídios terem continuado. aqui, serve para “contar”, mas não
No lado africano sucedeu um fe- para “experienciar”.
nómeno muito próximo, mas as in-
dependências dos estados, aqui, su- Concretamente, escreve:
cederam com uma ‘décalage’ de 150 It is a category belonging to culture,
anos relativamente à América, con- not to nature. In the second pha-
sequências da partilha continental da se of modernity (in the eighteenth
Conferência de Berlim (1895-6). century), it became one of the cen-
Este facto explicará a razão de os tral categories to distinguish culture
pensadores africanos poderem ter à from nature. (…) once we get to this
mão estes instrumentos e desenvol- double equation (nature vs. culture,
verem, mais apetrechados, os estu- modernity vs. tradition) we can re-
dos pós-coloniais nas suas geografias. cognize the complicity between cul-
Conceções de espaços e tempos di- ture, time, and modernity and the
ferentes e mentalidades igualmente dependent paradigm in wich nature,
diferentes onde os confrontos cultu- tradition, and coloniality have been
rais foram distintos, originaram dife- placed. [Mignolo 2011:151]
rentes histórias coloniais.
As noções de espaço e tempo eu- Como já vimos atrás, Mudimbe fa-
rocêntricas, abstratas e universais e zia interpretações muito próximas.
a fundamentação judaico-cristã do
Ficou mencionado, também, que
pensamento europeu, conduziram à
a noção eurocêntrica de espaço,
construção duma matriz de “moderni-
igualmente, não se apresentava
dade” eurocêntrica, abstrata e univer-
sal (embora com diferentes “marcas” coincidente com as noções de es-
histórico-culturais) que, no entanto, paço das geografias “outras”, fator
não se abriu a noções de espaço, tem- que conduziu, através do avanço
po e cosmogonia alternativas, como tecnológico e militar, ao domínio
eram as dos povos colonizados, na dos colonizados.
América e na África. A ideia geográfica dos espaços
Daí os colonialismos, diversos na continentais apenas surge quando a
sua tipologia, não terem, em lado “modernidade” desperta para os des-
algum, obtido o consentimento do conhecidos continentes, após os Des-
colonizado, invadido no seu habitat, cobrimentos: África subsariana, Amé-
roubado e menosprezado. rica, Austrália e Oceania. A ideia e os
Mignolo, na obra aqui vem sendo nomes dessas geografias são fruto
citada afirma que a noção de tempo daquilo que Mignolo chama a retórica
da ilustração não existe em si e não da modernidade. E explica:
25
Luís Mascarenhas Gaivão

Two basic concepts in the rhetoric of Para concluir esta reflexão:


modernity and the logic of coloniality: I am talking about different his-
space and time. Colonization of time tories, conditions, sensibilities,, and
and space are foundational for the epistemologies, since I do not be-
rhetoric of modernity: the Renaissance lieve in the universality of concepts
colonized time by inventing the Middle that have been useful to account
Ages and Antiquity, thus placing itself for a local history, even that local
at the unavoidable present of history history is the history of the point of
and setting the stage for Europe beco- origination of the idea of modernity
ming the center of space. Hegel con- and of the imperial routes of disper-
cluded this narrative by having a main sion. [ Mignolo 2011:22]
character, the Spirit traveling from
the East and landing in the presents of 6. O parêntesis colonial e a
Germany and Europe, the center of the reconstrução da África
world. [Mignolo 2011:20]
É da maior relevância empreender,
pois, os estudos pós-coloniais dentro
E descreve como a Europa desvia e desta perspetiva que venho apon-
subvaloriza outras conceções simila- tando, uma perspetiva que não deve
res de espaço e tempo, bem como os desconhecer, de modo nenhum, o
nomes que impõe aos outros centros contributo das ciências sociais euro-
do conhecimento e do mundo: Beijing cêntricas, mas deverá manter a dis-
o Império do Meio, Jerusalém, e mais tanciação que só um olhar clínico e
tarde, Meca e Medina para o Islão; uma experiência no terreno sociológi-
Cuzco para os Incas; e Tenochtitlan co permitirá legitimar.
para os Aztecas, etc.
No que diz respeito à África, a ten-
A universalidade eurocêntrica não dência de alguns investigadores e
reconheceu os outros universos cultu- pensadores africanos, pela falta de
rais e engoliu-os, esquecendo a verda- recursos materiais e enfeudamento,
deira pluriversalidade cultural, riqueza voluntário ou não, à racionalidade
da humanidade. exógena da “modernidade” eurocên-
Depois, volta-se, igualmente, para trica, tem vindo a recuar e vão-se pro-
a colonização do tempo. (Mignolo duzindo, cada vez em maior e melhor
2011:22): qualidade novos discursos, num exer-
The Western time. If the Renaissan- cício da crítica da colonialidade, atra-
ce invented the Middle Ages and Anti- vés dos quais são propostos os novos
quity, installing the logic of coloniality desafios para o desenvolvimento.
by colonizing its own past (and stored Em Jean-Marc Ela, filósofo camaro-
it as its own tradition), the Enligthten- nês da maior relevância, encontramos
ment (and the growing dominance of uma reflexão crítica da história colonial
the British) invented Greenwich, re- e da colonialidade subsequente, a par-
mapping the logic of coloniality and tir da qual são propostas as novas vias
colonizing space, with Greenwich at para “restituir a história às sociedades
the zero point of global time. [Migno- africanas e promover as ciências so-
lo 2011:22] ciais na África Negra” (Ela 2013).
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Partindo do princípio colonial de práticas matrimoniais, os sistemas


que as sociedades africanas, por se- de conhecimento e de representa-
rem mitológicas, não evoluíam, esta- ção que moldaram as sociedades
vam paradas no tempo (ao contrário ancestrais e sobrevivem às pertur-
das sociedades racionalizadas, eu- bações provocadas pelo Ocidente
rocêntricas), a análise crítica desco- na vida dos Africanos. Tudo acon-
lonial empreendida pelo pensador tece como se estes últimos organi-
camaronês desmonta o ciclo vicioso: zassem uma espécie de “retirada”
tendo sido agredidas por adventícios estratégica e de “resistência” pe-
estranhos e tecnologicamente mais rante o surgimento brutal de alguns
avançados, as sociedades mitológicas modelos estrangeiros.
(tradicionais, primitivas) reagiram, fe- (…) Nos meios escolarizados e nos
chando-se, como forma de defesa, en- centros urbanos, os critérios fun-
quanto não dispusessem das mesmas damentais de juízo e as referências
armas; porém, esta reação implica um culturais dos Antigos impregnam
movimento, uma mudança de atitu- os espíritos e inspiram as formas de
de, sinal de que, afinal, os seus “atores estar individuais e colectivas. Face
são múltiplos e variados”, e não se en- ao fracasso, à doença, à morte e à
contravam parados. infelicidade, reencontra-se sempre,
Jean-Marc Ela mostra, pois, o falso mais ou menos, o mesmo cenário
sentido do mito europeu relativo à au- africano, na selva como nos bairros
sência de história nos povos africanos, residenciais das grandes metrópo-
sempre colocados em situações que les, apesar do verniz de ocidentali-
exigiam as respostas possíveis. dade de que se cobre uma elite. [Ela
E chama a atenção o testemunho 2013: 20-21]
do sociólogo francês Georges Balan-
dier, a propósito das consequências Interessa ressaltar que a coloni-
positivas do processo de descoloniza- zação e o progresso técnico e social
ção: “De repente, as sociedades en- mexeram com as sociedades tradi-
tendidas como estáticas ou paradas cionais, reforçando aqui a solidarie-
na repetição abriram-se à mudança ou dade dos seus membros como for-
à revolução; elas reencontraram uma ma protetora perante as estruturas
história; elas deixaram de pertencer à sociais e políticas.
ordem da passividade e dos objectos” Com a descolonização, o continen-
[Balandier, 1955:33] te, recupera a liberdade de se poder,
Felizmente que a descolonização finalmente, pensar. Acontece, no en-
permitiu o reencontro com valores e tanto, que o momento coincide com
processos sociais que o “parêntesis uma avassaladora economia global
colonial” apagara, perseguira ou, sim- que abriu lugar ao ultra-liberalismo
plesmente, desconhecera: financeiro e a uma pós-modernidade
Numa época de efervescência, complexa.
muitos valores do passado cultural Jean-Marc Ela puxa, então dos seus
reencontram a sua frescura e inte- galões africanos, indicando qual de-
gram-se na vida da nossa actuali- verá ser o percurso do africano no en-
dade. Assim acontece com os siste- frentamento das questões que lhe são
mas e obrigações de parentesco, as colocadas no presente:
27
Luís Mascarenhas Gaivão

O africano deve recorrer à sua ca- BM, FMI) que planificam as “ajudas”
pacidade reflexiva e, através da cria- ao desenvolvimento com a trama dos
tividade endógena, partir para a reso- modelos ocidentais que tentam im-
lução das questões; não deve permitir pingir ou perpetuar, relegando para
que as soluções venham do exterior, a desconsideração as vozes locais e
como até ao presente. Os homens e as o contributo do conhecimento so-
mulheres africanos estão aptos a criar cial, económico e político local. “Em
e não a reproduzir modelos importa- África, o essencial para as sociedades
dos e devem ser descolonizadas as e as economias está onde os peritos
ciências humanas que vêm tratando a não imaginam.”[Ela 2013:91]
África, desconhecendo-a. Sociólogos,
historiadores, antropólogos devem
Resume a sua proposta africana:
prosseguir os estudos e trabalhos a
partir da terra africana e não do co- Tudo nos condena a renunciar aos
nhecimento alienígena. discursos encantatórios e às cris-
pações apaixonadas que ocupam
O acesso à verdadeira modernida-
ainda muitas vezes o centro dos
de, tão ansiada pelos africanos, não
debates académicos. É tempo, en-
poderá ser, nunca mais, o percurso
fim, de abordar as questões de fun-
idêntico ao que o eurocentrismo, o
do submetendo o ensino superior à
colonialismo, ou o neocolonialismo
prova de uma sociedade da qual é
até aqui percorreram, com o estafado
preciso compreender as estruturas
lado escondido da exploração.
e as lógicas, as atitudes e os com-
portamentos, os mitos, os sonhos
E reforça: e os fantasmas, as contradições e
A promoção das ciências sociais os conflitos, as explosões e as vio-
deve articular-se, preocupando- lências, os actores e as estratégias.
-se em enraizar a universidade no Precisamos de nos concentrar for-
seu meio-ambiente cultural. Des- temente no real e no imaginário, no
ta forma, ela poderá devolver aos oficial e no oficioso, no banal e no
jovens africanos a consciência da quotidiano. [Ela 2013:97]
sua identidade. A este respeito, os
historiadores, os antropólogos e os
sociólogos carregam pesadas res- 7. Conclusão
ponsabilidades nas universidades O eurocentrismo surgido do Renas-
herdadas do Ocidente. Aí, corre-se cimento europeu veio a construir du-
o risco de reproduzir o modelo de rante seis séculos toda uma paraferná-
uma cultura extrovertida que pena- lia argumentativa com que justificaria
liza os saberes indígenas. É neces- o colonialismo, e o imperialismo. Des-
sário resistir ao mito e à sedução do de logo, a racionalidade despida de
que é importado para considerar natureza foi auto-proclamada como a
antes os conhecimentos que se ela- racionalidade-rainha, com a desconsi-
boram a partir das terras africanas. deração e perseguição de outros tipos
[Ela 2013:90] de racionalidade mais ligados à natu-
reza ou ao cosmos (africanos, ame-
Fala, igualmente, dos muitos “pe- ríndios), e com o posicionamento, ao
ritos” (organizações mundiais, ong’s, centro, da Europa e do pensamento
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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

das luzes, este Continente “colonizou” Os colonialismos invadiram as geo-


o tempo, o espaço, a história e a geo- grafias periféricas e castigaram, du-
grafia. E criou o conceito de “raças”. rante seis intermináveis séculos, os
Foi então e aí que nasceram os con- seus povos. A escravatura, o episte-
ceitos de diversas temporalidades, micídio, a razia étnica, o esbulho, tudo
como os de “Idade Antiga”, Idade foi praticado com o suporte duma
Média”, “Modernidade”, ou “África”, tecnologia mais avançada. Os domi-
“América”, “Médio Oriente”, “Extre- nados, impedidos de reação de igual
mo-Oriente”. para igual, resguardaram-se fechan-
do-se num enquistamento étnico-cul-
Estes lugares mal conhecidos, eram
tural que era arma defensiva e adap-
habitados por gente considerada mui-
tável. Negavam, com essa atitude, a
to estranha (negros, índios, amare-
soberba eurocêntrica que os conside-
los,…), tão estranha, que se colocou
a questão de saber se teriam alma, se rava “a-históricos”.
seriam “humanos” e foram cataloga- Por isso, lutaram pela sua liber-
dos no tempo eurocêntrico, como pa- tação. Quando ela chegou, a des-
rados no tempo e sem história. colonização, não resolveu a longa e
Passou-se à escravatura atlânti- terrível influência deixada pelo co-
ca em larga escala, até que algumas lonialismo e permaneceu, na esfera
consciências mais críticas, no século do pensamento das novas nações,
XIX, impuseram um travão ao crimi- sobretudo das classes dirigentes,
noso tráfico. Esta escravatura, no uma “colonialidade” que perpetuava
entanto, praticada por europeus en- idênticos modelos coloniais e o capi-
controu na fonte, África, a parceria talismo continuou. Nas experiências
comercial dos locais. Diga-se, de pas- marxistas, teoricamente mais jus-
sagem, que a escravatura era usual e tas, a prática histórica foi, igualmen-
tradicional na África, na Europa, na te, eurocêntrica. Criada, também,
Ásia e passava a ser na América, de- na Europa, ela não estava preparada
vido à colonização. para ser aplicada nas periferias colo-
niais, que a rejeitaram.
Quando, no século XVII-XVIII o
iluminismo traz consigo as raízes do Após o “parêntesis colonial”, resta
individualismo da liberdade e do pro- aos povos ex-colonizados, concreta-
gresso, o homem europeu atinge um mente à África, rejeitar as soluções
patamar de auto-suficiência filosó- impostas do “exterior”, pois até aqui,
fica que mais reforça a “justeza” das elas nunca compreenderam ou nunca
suas opções coloniais, disfarçadas de quiseram compreender, as realidades
benevolente ação civilizadora peran- africanas tal como são, não como ima-
te as raças, os territórios, os povos e ginam que são.
as culturas “diferentes”. Tudo o que E os africanos já encetaram o seu
fosse diferente do que o europeu próprio caminho, que é o de refletir e
pensasse (e atenção que mesmo na não reproduzir as receitas e os conhe-
Europa, havia povos do Norte e po- cimentos alienígenas eurocêntricos.
vos do Sul, estes menos “capazes”) O acesso dos africanos à moderni-
era para rejeitar, para desconsiderar, dade passa pelo aprofundamento estu-
não tinha relevância. dioso das ciências sociais e outras, com
29
Luís Mascarenhas Gaivão

base nas realidades sócio-político-cul- Fondo de Cultura Económica


turais do Continente e não por fanta- HEGEL, George Wilhelm Friedrich
sias ou vontades exógenas que, ao lon-
1995: Filosofia da História, Brasília: UnB
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30
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

2009: “Colonialidade do Poder e Clas- the decolonization. It was said that the
sificação Social”, in Santos, Boaven- “savages or primitives” were “impris-
tura Sousa e Meneses, Maria Paula oned in time, they had no history.” But
Epistemologias do Sul, Coimbra: CES/ it was not true; they achieved the in-
Almedina, pp 73-117 dependence, often with armed strug-
gle. However, within the new leaders
SANTOS, Boaventura de Sousa remained a “coloniality” of thought
2009: “Para além do Pensamento heiress from colonial vices which is
Abissal: das linhas globais a uma eco- preventing the growth and genuine re-
logia de saberes” in Santos Boaven- construction. It is time to “decolonize”
tura Sousa e Meneses, Maria Paula the thought, even of the South, and
Epistemologias do Sul, Coimbra: CES/ not let the “others” continue to dictate
Almedina, pp 23-71 the theory and practice.
SANTOS, Boaventura de Sousa Keywords: Eurocentrism, moder-
2010: “Uma sociologia das ausên- nity, South, heterogeneous time and
cias e uma sociologia das emergên- space, coloniality, decoloniality, ecol-
cias”, in Santos, B. S. A Gramática ogy of knowledge
do Tempo, Porto: Edições Afronta-
mento, pp 87-125

Title: Coloniality, the shadow of Luís Gaivão


colonialism: how to rebuild the Sociólogo. Doutor em Sociologia
future? pela Universidade de Coimbra. Foi
Abstract Adido Cultural de Portugal em Luan-
da, Luxemburgo e Bruxelas. É inves-
Capitalism and colonialism were de- tigador, escritor e agente cultural.
veloped under Eurocentric logics upon As suas áreas de investigação são o
the people and the geographies of the pensamento do Sul, descolonização
South. Then it evolved to the Enlight- do pensamento, angolanidade, artes
enment and to the colonial ideology, plásticas angolanas e a obra literária
leading to the entire world the benefits de Manuel Rui. “É autor, entre outros,
of what was understood as progress dos livros Angola e o Atlântico. Colo-
and modernity. But this ‘progress’ nialismo, colonialidade e epistemo-
would not allow alternative thoughts logia descolonial (Lisboa, 2023), Ma-
or epistemologies. The Eurocentrism nuel Rui, obra, escritor, pensamento
imposed on the colonized people (Luanda, 2021), O Sul descolonial na
some dictates legitimized through the obra de Manuel Rui (Luanda, 2021),
western science and technology: eco- ANGOLA: Muxima, desenho e texto
nomic and human exploration, ethnic (Porto, 2015), Manuel Rui: Percur-
elimination when necessary, epistem- sos transculturais na obra do escritor
icide. Peripheral peoples, all from the (Luanda, 2012), Um Adido Cultural no
South, tried to defend from this brutal Luxemburgo. Episódios de uma diplo-
attack, and always aspiring to free- macia de prosápia (Lisboa, 2011), Es-
dom, remained as an epistemological tórias de Angola (Lisboa, 2007).
“reserve”, adapting as possible until E-mail: lgaivao@sapo.pt
* artigo inédito, redigido em 2016.
31
32
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Vicente Paulino

Princípios políticos e
tipo de democratização
no mundo1

Resumo

Neste artigo pretende-se abordar a questão de princípios políticos e tipo de de-


mocratização no mundo contemporâneo, e procurando perceber a forma como
as suas fronteiras políticas sejam definidas baseada na percepção “comunidade
política que se estabelece na condição social da política prática. Todavia, o mais
seguro de fazer “política prática” é, antes de mais, prevalecer as ideias nas teo-
rias para poder assegurar essencialismo e existencialismo de sentidos políticos
no enquadramento de uma racionalização zoológica de esquematização política.
Procurando sistematizar diferentes tipos de actividades políticas, de modo a po-
der assegurar a estabilidade democrática baseada no estado-nação para garan-
tir a democratização política no mundo político com a aplicação de um conceito
chamado pedagogia de democrática, e para tal, é necessário colocar a clinica de
governabilidade nos arredores políticos em prol da consolidação e da reapropria-
ção da democracia no mundo global.

Palavras-Chaves: Política, Democracia, Pedagogia democrática, Clínica de De-


mocracia Political Principles and Type of Democratization in the World

1
Uma parte deste texto foi apresentada por convite endereçado pelo Núcleo de Ativistas da FRETI-
LIN para falar de “Princípios políticos e a democracia” na Mini-Conferência que esse Núcleo pro-
moveu no espaço de World Vision [a frente do Ministério da Justiça], 14 de Fevereiro de 2016, Díli
– Timor-Leste.
33
Vicente Paulino

Apresentar a proposta de uma de- ca, centrada na matéria de facto e de


finição instrumental de princípios conhecimento e é elevada a cabo de
políticos e a democratização política empenhamento na “determinação do
é para determinar “o conceito de po- conceito geral de política” (Maquiavel
lítica e a especificação das suas fron- e Hegel) e na “investigação dos pressu-
teiras”[cf. Bobbio 2000]. Assim, na postos e condições de validade da ciên-
“Teoria Política” e “da Democracia”, cia política” [cf. Oppenheim 1961, Ayer
percebe-se de imediato o modo es- 1984, Miranda 1997].
pecífico de abordagem do campo po-
lítico que persegue um fim dominan- Natureza política e suas fronteiras
temente analítico, cognoscitivo e não Quando fala da natureza política,
prescritivo. Em vista disso, propõe significa está a falar de uma defini-
uma descrição analítica e interpreta- ção política cuja origem vem do gre-
tiva sobre a contextualização histórica go Πολιτικά – política. A sua concep-
das categorias fundamentais da políti- ção terminológica é desenvolvida,
ca em detrimento de reconstrução do pela primeira vez, por Aristóteles em
seu sentido. sua obra intitulada “política”. Aris-
Visa-se, por esta via, delimitar e tóteles define o homem como “Zoon
precisar o domínio da teoria política e Politikón”, Santo Agostinho designa
da democracia que, assim, se demar- “homo est naturaliterpoliticus, id est,
ca do paradigma dominante de filoso- socialis”. A noção de “societas” na gé-
fia política das últimas décadas e que nese de um conceito que só é nobre
é proposto por John Rawls na obra quando associado a “societas generis
Teoria da Justiça. Procura apresentar humani”. Tempo em que “societas” e
o mapeamento da natureza política e “social” passam a designar como “uma
suas fronteiras ou “das regiões que os condição humana fundamental”.
filósofos políticos consideraram como A política é, dizia Aristóteles, uma
“lugares de aquisição da primeira ex- ciência que tem natureza racional
periência” em pesquisa política. para a realização da felicidade huma-
Percebe-se que no mapeamento das na; e para tal, divide-se em ética (isto
filosofias políticas e retóricas democrá- é, a política preocupa-se com a felici-
ticas pode conhecer a caracterização dade individual do homem na pólis) e
de duas vertentes de análise política. na política propriamente dita (porque
Uma é normativa-prescritiva, centra- preocupa-se também com a felicida-
da nas questões de valor ou validade e de colectiva da pólis). Todavia, a po-
que é levada a cabo de empenhamen- lítica no entendimento de Aristóteles
to na “construção de um modelo ideal é investigar as formas de governo e
de Estado para validar a sua existência as instituições capazes de assegurar
enquanto dispositivo da “comunida- o bem-estar (numa acepção análoga,
de política” (Platão e Thomas More) e é a própria felicidade) do cidadão co-
perante da inquirição “do fundamento mum na cidade.
último do poder” (Hobbes e Rousseau); Vemos que toda cidade é uma es-
e uma outra é interpretativa-analíti- pécie de comunidade, e toda ela se
34
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

forma com vistas a algum bem [o O bem comum na cidade não é a


bem-comum] pois todas as acções simples colecção de bens privados,
de todos os homens são pratica- nem um bem característicos de um
das com vistas ao que lhes parece todo que … o reduz apenas a si, sa-
um bem; se todas as comunidades crificando as partes. É a vida boa
visam a isso, é evidente que a mais humana da população (multitude),
importante de todas elas e que in- de uma população de pessoas; é a
clui todas as outras tem mais que sua comunhão no bem viver; é, por
todas este objectivo e visa ao mais isso, comum ao todo e às partes,
importante de todos os bens; ela se sobre as quais ele se inclina e que
chama cidade e é a comunidade po- dele devem beneficiar; sob pena de
lítica [Aristóteles 1985: 1252a]. se deformar a si mesmo, implica e
exige o reconhecimento dos direi-
Os antigos gregos tiveram uma vi- tos fundamentais das pessoas … e
são global sobre todos os traços do
comporta em si mesmo, como valor
saber e enalteciam-no duma forma
principal, a adesão mais alta possí-
ortodoxa. O Isócrates foi um dos an-
vel (quer dizer, compatível com o
tigos sábios da Grécia que considerou
bem do todo) das pessoas às suas
Atenas como uma cidade mais civili-
vidas de pessoa e à sua liberdade
zada no mundo ocidental, o lugar da
de pleno desenvolvimento [Chelo
educação, da ciência, da política, da
2004: 184].
democracia e de filosofar. Todavia, o
mais seguro de fazer “política prática”
é, antes de mais, prevalecer as ideias Toda a acção política associa-se
nas teorias para poder assegurar “es- sempre ao poder, quer numa acepção
sencialismo e existencialismo de sen- prática, como exercício do poder, quer
tidos políticos”. teórica, onde o estudo da política tem
como objecto de estudo do poder.
Política é um ramo específico da
Além disso, toda a actividade política é
ética, porque o domínio político é
essencialmente ético. E isso não sig- realizada com a base do conhecimen-
nifica que a política diminui a moral to técnico, essencialmente humano e
individual na realização da actividade moral. Porque de facto, fazer política
política. Considera-se o domínio polí- é para promover o bem dos homens
tico faz parte da natureza ética, então, reunidos na sociedade, ou seja, o bem
todo o seu processo de consideração do todo social. É certo que uma boa
associa-se a uma fronteira aglutinada política é apostada na primeira condi-
por “um fim último” de uma determi- ção a justiça (isto é, tendo sempre em
nada ordem em torno do “bem co- conta com a diversidade de condições
mum” da pessoa e da sociedade na ci- históricas e variedade de costumes e
dade. Como adverte Jacques Maritain circunstâncias, deve tratar os homens
em La Personne et le Bien Commum como pessoas, reconhecendo em to-
[1947:200] e Les Droits de L’Homme et dos a mesma dignidade essencial e
la Loi Naturelle [1942: 624]. qualidade de proporção).
35
Vicente Paulino

Uma boa política deve ser assenta- Com a expressão ‘vita activa’, pre-
da na “amizade cívica” como motor tendo designar três actividades
do seu dinamismo vital, pois de facto, humanas fundamentais: labor, tra-
“a política baseia-se no facto da plu- balho e acção. (...) O labor é a activi-
ralidade dos homens” [Arendt 2002] dade que corresponde ao processo
e com ela pode organizar e regular a biológico do corpo humano (...). A
máquina de State Building que tem condição humana do labor é a pró-
base na Society Building. A amizade pria vida. O trabalho é a actividade
cívica e a concórdia política no teatro correspondente ao artificialismo da
político são caminhos para ancorar existência humana (...). O traba-
uma visão de futuro. Na verdade, o lho produz um mundo “artificial”
uso da expressão “amizade cívica” na de coisas, nitidamente diferente
política é para estabelecer uma visão de qualquer ambiente natural. A
de que o processo de realização das condição humana do trabalho é a
actividades relacionadas com a políti- mundanidade. A acção, única acti-
ca está a ser fundamentado nas “rela- vidade que se exerce directamente
ções amigáveis”. A amizade cívica na entre os homens sem a mediação
política conduz a sociedade ao rumo das coisas ou da matéria, corres-
de confiança, de liberdade e de soli- ponde à condição humana da plu-
dariedade em torno de seu posiciona- ralidade, ao facto de que homens,
mento ético-político e ideológico. e não o Homem, vivem na Terra e
habitam o mundo. Todos os aspec-
Fronteira política é o limite de um
tos da condição humana têm algu-
país ou território no extremo onde
ma relação com a política; mas esta
confina com outro, resultante de uma
pluralidade é especificamente ‘a’
lenta evolução histórica ou fixada por
condição ... de toda a vida política.
meio de choques ou de lutas armadas,
por tratados entre os países. Sendo as- Todas elas têm importância na vida
sim, há ou não na fronteira política uma quotidiana do homem, mas, só da Ac-
“liberdade política” [Arendt 2001]? Ou ção que se realiza a actividade sem a
algum sentido da política?” [Arendt mediação das coisas, pois ela é prerro-
2002], ou metafísica política de que gativa exclusiva do homem.
fala Aristóteles. Na verdade é que há Norbert Bobbio, por sua veze,
uma fronteira política na natureza ra- transborda as fronteiras da política
cional de realização das actividades em dois “sentidos de política”: a po-
políticas, onde se considere a política lítica como adjectivo qualitativo e
como centro de acção e de processa- forma de aquisição do saber. Relati-
mento de ideia, cuja orientação é mais vamente ao primeiro sentido, reflec-
para a valorização das três actividades te-se ao ‘tudo o que se refere à polis,
fundamentais dos ser humano como ao cidadão, a civil, público, social e
labor, trabalho e acção. Hanna Arendt sociável. Quanto ao segundo, fala so-
conjuga estas três actividade num só bre as ‘coisas políticas’ baseadas nas
sentido único chamado “vita activa”, pedagogias políticas, ou seja, trans-
que segunda ela [2007: 15]: posição de sentido similar, por exem-
36
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

plo à que se dá do adjectivo qualifica- mocracia. É neste domínio que as re-


tivo ‘física’ para ciência ‘física’. É uma flexões políticas vão ter cabimento na
transposição de sentidos qualitativos “ordem da sociedade”, aliás, em largo
do “iluminismo visionário político” sentido, possui uma vocação histórica
na demarcação das fronteiras políti- no fundo de uma conexão consciente
cas e microfísicas do poder [Foucault de representação e de sentimentos
1999], especificamente as fronteiras comuns que a natureza humana faz
ideológicas devem ser definidas no brotar nas suas realizações temporais.
mapeamento político, seja direita ou Neste caso, o estado no domínio polí-
esquerda [Bobbie 1995]. tico é apenas uma parte da sociedade
Max Weber [2001], na sua lógica de política cuja função específica “o de
pensar, considera a ciência e a política manter a lei, de promover a prosperi-
como duas vocações que os homens dade comum e a ordem pública e de
consideram como natureza racional administrar os assuntos públicos. O
para as suas realizações temporais estado é uma parte especializada nos
na vida quotidiana. Assim, a política é interesses do todo” [Maritain 1953:
uma vocação de profissionalização de 494, Chelo 2004: 191].
“fazer política” através das ideias im- A política é identificada com o ‘es-
plícitas que Weber [2001: 64-65] cha- tado’, é distinta das esferas contíguas
ma “viver para a política” e de “viver que constituem o ‘não-estado’ – es-
de política”. Isto é, daquele que vê na fera religiosa, sociedade civil e esfera
política uma permanente uma fonte económica. Isto significa que o “Es-
de rendas, que em certos casos, a so- tado é um todo”, porque o Estado foi
ciedade humana vive para fazer polí- estabelecido para o Homem [Maritain
tica e a política só se realizável com a 1953: 495 e 501, Chelo 2004:191]. É
existência da sociedade. É portanto, de facto, a racionalidade do estado
“os fins da política são tantos-quantas ocorre sempre mediante a constante
forem as metas a que um grupo orga- utilização de um modelo dicotómico,
nizado se propõe, segundo os tempos que contrapõe o Estado enquanto
e as circunstâncias” [Bobbio 2000: positivo à sociedade pré-estabeleci-
167, Bobbio 2002: 957]. Porém, um da. E, no interior desse modelo que
fim mínimo à política (enquanto poder podem-se distinguir – ainda que com
de força) é a manutenção da ordem um certo esquematismo – três varian-
pública e a defesa da integridade na- tes principais: o Estado como negação
cional. Essa finalidade é mínima para radica e, portanto, como eliminação e
a realização de todos os outros fins do inversão do estado de natureza, isto é,
poder político. Porém, é importante como renovação ou restauração ab imis
se atentar para o fato de que o poder com relação à fase do desenvolvimen-
político não pode ter como finalidade to humano anterior ao estado (modelo
o poder pelo poder, pois se assim fos- Hobbes-Rosseau); o Estado como con-
se perderia o sentido. servação-regulamentação da sociedade
A ideia política associa-se, sobretu- natural e, portanto, não há mais como
do, ao estado como referência da de- alternativa, porém, como verdadeira
37
Vicente Paulino

realização ou aperfeiçoamento em re- participativa [Bobbio 1987, Bonavides


lação à fase que o procede (modelo Lo- 2003]. Todavia, a tipologia clássica
cke-Kant); o Estado como conservação das formas do poder (paternal, des-
e superação da sociedade pré-estatal pótico e político) proposta por Aris-
(Hegel), no sentido de que o Estado é tóteles e Jhon Locke, e em termos de
um momento novo e não apenas um caracterização, é muito distinta com
aperfeiçoamento. Este último, trata-se a “tipologia moderna das formas do
de uma consideração diferentemente poder” (ideológico, económico e polí-
com o modelo de Locke-Kant e Hobbes- tico) proposta por Bobbio. Estas duas
-Rousseau [Bobbio 1994: 20]. tipologias distintas estão reunidas em
“conexão necessária”, que em Bobbio,
Diferentes tipos de chama “poder político” e “força po-
actividades políticas lítica” como núcleo essencial de uma
Sabe-se que na idade moderna, a concepção realista de política.
fronteira política passa a ser desig- A formulação de Milbrath [1965] do-
nada, sobretudo, pela esfera de ac- minada “modelo da centralidade” da
tividades que a designar sobretudo integração de cidadãos na realização
uma esfera de actividades que têm o das actividades políticas é, sem dúvida,
Estado como termo de referência. a própria aplicação do termo “partici-
Há dois tipos de actividades políticas: pação política”. Pode considerar a par-
primeiro, é reflectido a partir de uma ticipação activa dos cidadãos na políti-
acção que se inicia no Estado (sujeito ca como uma “actividade política”, que
activo de actos ‘eminentemente po- nas palavras de Norris [2007: 639]
líticos’ como o de comandar, legislar
erga omnes, exercer domínio exclusi- As actividades orientadas para o
vo sobre um dado território e ainda o cidadão, exemplificadas pela par-
de ‘extrair e distribuir recursos’ entre ticipação através do voto e pela
diferentes sectores); segundo, é re- filiação a partidos, obviamente
flectido a partir de uma acção que se continua sendo importante para a
procede em direcção ao Estado (ob- democracia, mas hoje representam
jectivo de actos também eles políti- uma conceitualização estreita de-
cos que partem da sociedade e visam mais do activismo, que exclui algu-
conquistar ou derrubar o poder polí- mas das metas mais comuns do en-
tico, ou então, mantê-lo, defendê-lo gajamento cívico, que se tornaram
ou ampliá-lo). convencionais e predominantes.
São processos do agir político para
a governação e o controlo do “estado, Neste contexto de participação
governo e sociedade”. Trata-se de um tem de se ter em conta também com
processo “agir político” na conscien- o binómio participação vs institucio-
cialização de diferentes tipos da ac- nalização. Nesse sentido, a actividade
tividade política que se prevalece ou Política é também considerada insti-
se aplique, geralmente, no modelo da tucional, e de um modo geral, divide-
democracia directa, representativa, -se em: a) comunicação (contacto com
38
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

políticos, contacto com os meios de Europeia, diversas federações in-


comunicação, participação em fóruns ternacionais e já se fala de “um go-
da Internet); b) participação directa verno mundial” como sendo uma
em acções (boicotes, participação em norma de unidade política viável;
demonstrações, participação em co-
c) o crescente global da sociedade
mícios); e c) suporte à projectos polí-
e isso pode proliferar as formas
ticos (por exemplo, abaixo-assinado,
doações de dinheiro) [Borba 2012]. de internacionalismo e de supra-
nacionalismo.
Estabilidade democrática
O processo de democratização po-
baseada no estado-nação
lítica em países em desenvolvimento
Ao longo da história, que abrange
(como Timor-Leste, Moçambique,
o tempo que o homem já tem vivido,
tem-se designado por políticos como Angola, Tailândia, Laos, Líbia, Tuní-
“tempo de sentir a vida” com a políti- sia) é concretizado só com a participa-
ca, e que na verdade, talvez não é. O ção política de todos os cidadãos, e tal
que resulta de, na teorização da esta- participação, é uma obrigação cívica
bilidade política, se ter acolhido a ideia que deve ser assumida com sentido
vaga sobre o tempo em que a socieda- de responsabilidade e de confiança. É
de politicamente organizada, não ha- nesse sentido que realça a importân-
vendo detença na explicitação do seu cia da relação entre meios e fins da
conteúdo. O sentido de “estabilidade estabilidade democrática de um de-
democrática” se prevalece quando a terminado Estado-nação, que circuns-
semântica política está conciliável in- tancialmente, confere à burocracia
timamente com a própria consolida-
num carácter racional. A estabilidade
ção de sentidos democrático na acção
democrática de um determinado Es-
do homem, que em todas as circuns-
tâncias, este “precisa da sociedade tado-nação consolida-se perante o
enquanto pessoa (per abundantiam) e uso da racionalidade técnica (eficiên-
enquanto indivíduo (per indigentiam). cia) e a sua ênfase fundamenta-se nos
Assim, o homem, enquanto pessoa, valores instrumentais da equidade e
deve servir livremente a comunidade e economia. Com este lógico de racio-
o bem comum, e enquanto indivíduo cínio pode juntar o carácter legal, que
é, por necessidade, forçado a servir permite a autoridade fosse exercida
o bem comum” [Chelo 2004: 188]. É por um sistema de regras e procedi-
possivelmente que, neste sentido, a mentos formais [Bilhim 2008].
estabilidade democrática baseada no
Estado-nação, confrontado com:
Democratização política no
a) o crescente internacionalismo (in-
mundo político
ternacionalização da economia e
incorporação das economias na- Considera-se a mobilização social
cionais na ‘economia global’); (que visa a transformações de atitu-
b) o surgimento de corpos suprana- des, valores e expectativas das pes-
cionais, tais como: a Sociedade soas, aumento das comunicações) e
das Nações, a Organização das desenvolvimento económico (cresci-
Nações Unidas (ONU); a União mento económico, actividade econó-
39
Vicente Paulino

mica e a produção de uma sociedade lativas nacionais legitimamente


consciente pela aplicação da ‘econo- reconhecidas;
mia humana’). Estes aspectos podem c) É possível democratizar a políti-
classificados como ponto de partida ca com a ideia “racionalidade de
para compreender o processo de de- reconhecimento” pela diferen-
mocratização política no “mapeamen- ciação das novas funções polí-
to político”. ticas e o desenvolvimento de
É necessário, em qualquer cir- estruturas especializadas para
cunstância que seja, democratizar o desempenho dessas funções;
a política para a consciencialização d) Só com o aumento da participa-
de “sentidos políticos” no quadro de ção de grupos sociais por toda a
legitimação dos princípios de gover- sociedade na política que pode
nabilidade. Considera também que democratizar a política no teatro
democratizar a política da socieda- político. Neste caso, a participa-
de é importante para construir um
ção organizada na política pode
“homem novo” com perfil sociável
aumentar o controlo das massas
e solidário, e por motivo deste, que
pelo governo, como nos Estados
cabe aos políticos (incluindo todo o
totalitários, ou pode aumentar o
cidadão) a fazer uma “acção mobili-
controlo do governo pelas pes-
zadora” no sentido de democratizar a
soas, como em alguns Estados
política no teatro político com seguin-
democráticos.
tes visões conceptuais:
a) É possível democratizar a polí- Contudo, só é possível democrati-
tica com a ideia “racionalização zar a política no seu todo, se os polí-
da autoridade”, isto é, só com ticos reconhecem e tomam atenção à
a racionalidade de ideias que existência da “soberania legal e sobe-
possa fazer substituição de um rania política” (soberania legal como
grande número de autoridades supremo autoridade legal e soberania
políticas tradicionais (como as
política como poder político incontes-
autoridades religiosas, familiares
tável) e “soberania interna e soberania
e étnicas) por uma única autori-
externa” (a primeira reflecte-se ao au-
dade nacional e secular;
to-governo, a segunda refere-se ao
b) Pode democratizar a política princípio basilar do direito internacio-
com o princípio político de acei- nal) nas suas andanças políticas.
tação da soberania externa do
Para democratizar a política é ne-
Estado-nação como parceira de
cessário considerar os critérios de ins-
desenvolvimento económico e
titucionalização política como:
cultural, e da soberania interna
de um governo nacional sobre os a) adaptabilidade – geracional e fun-
poderes regionais e locais. Signi- cional;
fica que a integração nacional e b) complexidade – quanto mais
a centralização ou acumulação complexa é uma organização,
do poder nas instituições legis- mais institucionalizada está;
40
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

c) autonomia – a autonomia das conhecida e experimentada) e a con-


instituições políticas é medida trovérsia prática na sua aplicação em
pela extensão dos seus interes- actividades políticas podem ser com-
ses e valores próprios, distintos preendidas a partir de sua substância
dos de outras instituições e for- jurídica e da racionalidade de sentidos
ças sociais; do termo. A concepção moderna da
d) coerência – quanto mais unida democracia surge, desde início, com
e coerente é uma organização, as revoluções burguesas no século
mais institucionalizada está. XVIII que derrubaram as monarquias
absolutas, o exemplo disso, foram a
Para democratizar a política não é Revolução Americana de 1776 e Re-
apenas considerar os critérios de ins- volução Francesa de 1789. Estes dois
titucionalização política, mas consi- grandes acontecimentos são consi-
derar também os comportamentos derados (quer na teoria política, quer
participativos dos cidadãos na política na teoria do direito e de outras áreas
de forma continuum com modalida- do saber) como primeira pedagogia
des de: expor a ideia de solicitações da democracia. Estas revoluções sur-
políticas; participar activa na votação gem para recuperar o princípio da ci-
(votar); participar nas discussões polí- dadania: os homens deixaram de ser
ticas; procura convencer alguém a vo- súbditos (subordinados a um rei) para
tar em determinado sentido; usar um se transformar em cidadãos livres. O
distintivo político; fazer contacto com princípio básico do funcionamento da
funcionários públicos; contribuir com democracia moderna é o direito dos
dinheiro a um partido ou candidato; cidadãos de participarem nos assuntos
assistir a um comício ou assembleia; políticos de interesse colectivo a partir
dedicar-se a uma campanha políti- de uma eleição livre e transparente. A
ca; ser membro activo de um partido principal função de eleição é escolher
político; participar de reuniões onde os representantes. Os representantes
se tomam decisões políticas; solicitar eleitos harmonizam poderes que lhes
contribuições em dinheiro para cau- são confiados pelos cidadãos para as-
sas políticas; candidatar-se a um cargo segurar os assuntos políticos da comu-
electivo; e ocupar cargos públicos [cf. nidade e do país.
Milbrath 1965: 18, Verba, Nie & Kim Partindo destes pressupostos, fa-
1978: 310-316, Barbagli & Maccelli la-se agora, as formas de democracia
1985: 53].Estas modalidades de parti- que são, de facto, a democracia direc-
cipação política são, de facto, pedago- ta e a democracia representativa. A
gias democráticas, e com elas podem primeira diz respeito a participação di-
democratizar a política na “universali- recta dos indivíduos ou grupos sociais
dade política”. na tomada de decisões – por outras
palavras, todos os cidadãos podem
Formas da democracia participar directamente no processo
A validade político-jurídica sobre a de tomada de decisões. As primeiras
democracia (intersubjectivamente re- democracias da antiguidade foram
41
Vicente Paulino

democracias directas, o exemplo mais como o caso de implementação do


marcante das primeiras democracias governo inclusão no VI Governo Cons-
directas é a de Atenas, nas quais o titucional de Timor-Leste. Trata-se
Povo se reunia nas praças e ali tomava de uma democracia consolidativa ou
decisões políticas; na segunda, o pro- democracia de consolidação do Esta-
cesso de escolha de um indivíduo ou de do-soberano. Porém, em 18 e 19 Maio
uma pessoa é feito através da votação. de 2020, a democracia consolidativa
Normalmente este tipo de democra- é violada pelos deputados dos par-
cia é aplicado no sistema de condução tidos políticos como FRETILIN, PLP
do Estado democrático, por exemplo, e KHUNTO com o acto de assalto do
eleição parlamentar ou eleição presi- poder no Parlamento Nacional.
dencial. Todos cidadãos são obrigados
a participar na política perante a esco- Pedagogia democrática
lha de seus representantes.
E nós estamos ainda no processo de
Ainda há outro tipo de democracia aprender como fazer democracia. E
no mundo político: democracia conso- a luta por ela passa pela luta contra
ciativa (consotiational) e democracia todo tipo de autoritarismo [Freire
despolitizada2, segundo o comporta- 2000: 136].
mento não competitivo das elites se
junte a uma cultura fragmentada ou A exigência de uma medição insti-
homogénea. Certo que a democracia tucional (sociopolítico) que vai, as ve-
consociativa tem seus maiores exem- zes, precipitando-estabilizando (mas
plos na Áustria, Suíça, Holanda e Bél- também constituído) a substância de
gica e foi chamada (tendo em vista exigência ou a essência de compro-
especialmente no caso de Suíça) de missos práticos que compões a ho-
concordante (concordant democracy, rizonte de validade da democracia.
Konkordanz demokratie) e definida De tal modo que, em cada momento
como tipo de democracia de enten- (e no contexto prático-cultural que
dimento entre líderes de subculturas a mediação institucional oferece), o
rivais para a formação de um Governo processo de consolidação de todo o
estável. Parece que este tipo de de- aparelho do Estado em conformidade
mocracia que foi aplicada por alguns com a Constituição e as leis em vigor
líderes políticos timorenses na “trans- é uma regra substancialmente “reco-
ferência do poder” à nova geração, nhecer-pressupor” o sentido do Esta-

2
Sabendo que não existem só estes tipos de democracia no mundo político, mas há outras designa-
ções que caracterizam os tipos da democracia. Com é óbvio, no caso concreto, de Gabriel Almond
distingue três tipos de Democracia [para além daquilo habitualmente conhecemos]: 1] Democracia
de alta autonomia dos subsistemas [praticada pela Inglaterra e Estados Unidos, que também no fundo
são países de democracia liberal representativa], é entendida por subsistemas os partidos, os sindica-
tos e os grupos de pressão, em geral; b] Democracia de autonomia limitada dos subsistemas [França
da III República, Itália depois da Segunda Guerra Mundial e Alemanha de Weimar]; c] Democracia
de baixa autonomia dos subsistemas [México]. http://www.portalconscienciapolitica.com.br/produc-
ts/tipos-de-democracia/ [acesso 11/2/2016].
42
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

do no seu todo. E isso só é aceitável pre a existência e a estrutura de uma


quando um indivíduo ou um estado organização na qual os sujeitos que
democratiza, antes de tudo, a sua in- governam têm realmente na base de
terioridade. Portanto, igualdade e liberdade de participa-
É inegável que historicamente ‘de- ção “ em todos os processos decisó-
mocracia’ teve dois significados rios que dizem respeito à vida quoti-
prevalecentes, ao menos na ori- diana (sejam vinculados ao poder do
gem, conforme se ponha em maior Estado ou a processos interactivos
evidência o conjunto das regras cuja quotidianos, ou seja, relacionados
observância é necessária para que com a governação da casa, adminis-
o poder político seja efectivamen- tração na escola, ao poder das che-
te distribuído entre a maior parte fias do bairro).
dos cidadãos, as assim chamadas Numa posição pedagógica, a de-
regras do jogo, ou o ideal em que mocracia é uma coisa de “libertadora”
um governo democrático deveria e dinâmica. Se assim, a democracia
se inspirar, que é o da igualdade. numa acepção pedagógica, está an-
À base dessa distinção costuma- corada no fundo da “educação cívica”
-se distinguir a democracia formal de natureza ética e moral (embora na
da substancial, ou, através de uma aplicabilidade está sempre no fundo
outra conhecida formulação, a de- ideológico comum, de natureza in-
mocracia como governo do povo da dividualista: é uma crença de que a
democracia e como governo para o salvação dos indivíduos engendraria a
povo [Bobbio 2000: 37-38]. salvação da sociedade). A pedagogia
democrática, nesse sentido, estima-
Os princípios da democracia as- -se que a compreensão dos indivíduos
sentam naquilo que Abrahan Lincoln à democracia é historicamente conso-
caracteriza “governo do povo, pelo lidada a partir de uma fórmula “edu-
povo, para o povo” e, posteriormen- cação política para todos” para asse-
te, o pedagogo brasileiro Paulo Frei- gurar o funcionamento do processo
re reequaciona a tal caracterização de democratização de uma coisa/algo
com a mesma expressão ontológica: no sistema interno e global do chama-
“um governo do povo e para o povo”. do Estado-nação.
Isto é, todo governo é auto-susten- A expressão “pedagogia democráti-
to e autogoverno (num exercício ca” lançada por Snyders [1975] é para
autónomo e livres) com igualdade traçar o perfil de uma “pedagogia de
de direitos e deveres, mas também esquerda”. Neste caso, ele adopta o
fraternos e solidários. Falar de auto- modelo de Lenin como referência, mas
-sustento e autogoverno não signifi- parece que há aqui uma incompatibi-
ca desacreditar na representativida- lidade entre leninismo (a teoria revo-
de, porque a participação directa em lucionária) e democracia. Portanto,
todas as questões políticas e sociais trata-se de uma ideia irrealizável quan-
no mundo em que vivemos é impen- do se fala na “pedagogia democráti-
sável, isto é, procura defender sem- ca”, mas realizável quando se trata o
43
Vicente Paulino

modelo de Lenin como “pedagogia mo da igualdade política é uma


progressiva” – significa que não pode sociedade livre de dominação” e
tratar de uma afirmação de que o par- “as pessoas distribuem bens às
tido possui a verdade, mas reconhece outras pessoas” de forma volun-
que o partido tem uma relação com tária no princípio de igualdade
o saber (incluindo neste termo, além como instrumento crucial das re-
do aspecto estreitamente intelectual, lações sociais.
as formas de acção). É para tecer esta b) Diálogo – promover uma comu-
nova relação, difícil de se adquirir, é nicação efectiva entre pessoas,
necessário a intervenção do Partido, sociedades e estados
que deve ser continuidade real (e sen- c) Cidadania – promover a partici-
tida como real) com a vida, os interes- pação activa no processo de de-
ses, as aspirações efectivas do sujei- mocratização de todos os dispo-
to e das massas [Snyders 1975: 169, sitivos que compõem o estado e
Brayner 1995: 44]. sociedade
A consolidação e a reapropriação d) Interculturalidade – democrati-
zar o espaço político e a discus-
da democracia no sistema global do
são Política com o conceito de
Estado-nação devem ser assentadas
interculturalidade
nos princípios de igualdade, diálogo,
e) Proximidade – encurtar as dis-
cidadania, interculturalidade, proxi-
tâncias para conhecer melhor a
midade e iniciativa.
participação dos cidadãos na po-
lítica com a criação da estrutura
a) Igualdade – reconhecer e garan- política e a realização das activi-
tir os mesmos direitos e oportu- dades que incentivam a partici-
nidades da sociedade, ou seja, pação de todo o cidadão
em termos de zoologia política, a f) Iniciativa – criação das actividades
distribuição do bem social é igual relacionadas com a política eman-
para todos, pois segundo Wlazer cipação dos cidadãos para a políti-
[1999: 15 e 23]: “o objectivo últi- ca de desenvolvimento do país.

Figura 1 – Forma de condução da pedagogia democrática

44
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

As sociedades democráticas estão A clínica da democracia é um es-


empenhadas nos valores da tolerân- paço onde se armazena todos ele-
cia, da cooperação e do compromisso. mentos que constituem a definição
As democracias reconhecem que che- da democracia e suas respectivas
gar a um consenso requer compro- considerações que valorizam a tal
misso e que isto nem sempre é reali- expressão em forma de “ocientali-
zável, porque dizia Mahatma Gandhi, dade ontológica”. A clínica da demo-
“a intolerância é em si uma forma de cracia é um espaço onde se armaze-
violência e um obstáculo ao desen- na todos elementos que constituem
volvimento do verdadeiro espírito a definição da democracia e suas
democrático”. Por outras palavras, a respectivas considerações que valo-
liberdade de expressão “construída rizam a tal expressão em forma de
sobre uma base de justiça, tolerância, “ocientalidade ontológica”.
dignidade e respeito – independente- Na clínica da democracia, o que
mente da etnia, religião, convicção está em conta é os valores como a
política ou classe social – permite às responsabilidade, solidariedade, li-
pessoas a estes direitos fundamen- berdade, igualdade, humildade, como
tais” [Silva 2013: 25]. princípios de respeito pela promoção
e garantia dos direitos de vida. Na
Dessa forma, uma sociedade é real-
democracia, a política tem de funda-
mente democrática não pode ser vis-
mentar-se no bem-comum, no plura-
ta a partir de um governo que se au-
lismo ideológico e pluripartido políti-
toproclama como democrático, pois
co, na tolerância e no reconhecimento
a democracia não é uma doação de do outro como princípio democrático
alguém, seja de um governante, de da fraternidade humana.
um partido político ou ainda de uma
Todas expressões ontológicas que
burocracia estatal, mas é um governo
compõem as características, atitudes,
do povo, que exige a sua participação
valores e princípios da democracia no
permanente em todos os processos
ciclo político, onde se define a demo-
decisórios da vida social.
cracia como um estado de espírito fi-
losófico na vida política humana que
Clínica da democracia está estabelecida no ideal da verda-
É necessário compreender a “clíni- de. Portanto, no ciclo político, “a de-
ca da democracia” a partir do conceito mocracia é uma organização racional
“governabilidade democrática”, pelo das liberdades fundada na lei” e com
qual tal conceito é visto como um pro- ela que “a humanidade entrou no ca-
cesso que procura garantir a capaci- minho que conduz à única realização
dade de um governo para impulsar as autêntica – a racionalização moral –
políticas que apostam no bem-estar da vida política” [Maritain 1953: 494,
da sociedade ou população, criando Chelo 2004: 194-195].
mecanismos que possibilitam a parti- As democracias são diversificadas
cipação de outros autores da socieda- e reflectem, sobretudo, a vida políti-
de civil na tomada de decisões. ca, social e cultural de cada país. As
45
Vicente Paulino

democracias baseiam-se em princí- mo para validar o seu “sentimento


pios fundamentais e não em práticas de legalidade” [Arendt 2004: 103] ao
uniformes. Significa que a democracia favor de autodeterminação pela liber-
é real quando ela está imanente ao dade e independência, como ocorreu
povo e ordenada ao bem comum das com a Revolução dos Cravos (surgiu
tal movimento foi para democratizar
pessoas que o constituem.
a política portuguesa) e no caso de Ti-
mor-Leste (é a acção política da FRE-
Epílogo TILIN na consolidação de ideias para
Sabe-se que na política é preciso conduzir o destino do povo de Timor
ter um bom político que compreende para conquistar a sua liberdade com
a situação real das pessoas e grupos o lema “kaer rasik kuda talin”). Trata-
sociais. Certo que um bom político -se de uma postura cuja recordação
deve fazer: revela que a acção política para con-
quistar a liberdade não é uma utopia,
a) política a partir de conhecimen- mas uma possibilidade sempre aber-
tos técnicos, pronto prestar ser- ta, embora no teatro político, as vezes
viço ao bem comum da socieda- funciona como uma “promessa da po-
de e tem conhecimento prévio lítica” [Arendt 2005].
sobre o campo de realização so- O homem político deve (em con-
cial e política do bem-estar; dições normais) ser economicamente
b) política a partir do conhecimento independente, relativamente as van-
tagens que a actividade política lhe
de valores humanos e morais em
proporciona. O homem político deve,
restrita ligação com o bem co-
além disso, ser “economicamente dis-
mum do todo social; ponível”, equivalente a afirmação a
c) política a partir de consideração dizer que ele não deve estar obriga-
feita “a sociedade humana como do a consagrar toda a sua capacidade
uma sociedade de pessoas; isto de trabalho e de pensamento, cons-
é, um bom político deve e pode tante e pessoalmente, à consecução
considerar a importância do da própria substância. Tais situações
“sentido político” de que toda a são, entretanto, claros esclarecimen-
to de que “só com a fortuna pessoal”
realização da actividade políti-
que pode “assegurar a independência
ca necessita da participação das
económica” [cf. Weber 2001: 65]. To-
pessoas; davia, o homem político profissional,
d) política a partir de valorização que vive ‘da’ política, pode ser um
dos dispositivos de estado em puro ‘beneficiário’ ou um ‘funcionário’
conformidade com a Constitui- remunerado [Weber 2001: 67].
ção e as leis em vigor.

O bom político é justamente um Referências bibliográficas


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pensar na possibilidade de realiza- 1984. Freedom and Morality and
ção do diálogo interno consigo mes- Other Essays
46
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

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47
Vicente Paulino

SNYDERS, Georges Vicente Paulino


1975: Pédagogie Progresiste, Paris: PUF Comunicólogo. Doutor em Estudos
de Literatura e Cultura//especialidade
VERBA, Verba., NIE, Norman H &
em Cultura e Comunicação pela Fa-
KIM, Jae-on
culdade de Letras da Universidade de
1978. Participation and Political Equa-
Lisboa. Professor Convidado da Uni-
lity. A Seven-Nation Comparison, New
versidade Nacional de Timor Lorosa’e,
York: Cambridge University Press
onde assume atualmente a fun;’ao de
WALZER, Michel Diretor do Centro de Estudos de Cul-
1999: As esferas da justice, Porto: tura e Artes da Universidade Nacio-
Afrontamento nal Timor Lorosa’e (CECA-UNTL). Em
2013 a 2020 foi Director da Unidade de
WEBER, Max Produção e Disseminação do Conhe-
2011: Ciência e política: duas voca- cimento do Programa de Pós-Gradua-
ções, São Paulo: Cultrix ção e Pesquisa da UNTL. Foi Professor
Convidado para o curso de mestrado
em Relações Internacionais da Univer-
Title: Political principles and type sidade da Paz (UNPAZ) em 2016-2017.
of democratization in the world Investigador colaborador de institui-
Abstract ções de investigações como o CEMRI
This article intends to approach da Universidade Aberta de Lisboa, o
the political principles and type of CLEPUL da Faculdade de Letras da
democratization in the contempo- Universidade de Lisboa e o IELT – Insti-
rary world, and seeks to understand tuto de Estudos de Literatura e de Tra-
how their political boundaries are dição da FCSH-NOVA de Libsoa, e CD-
defined based on the perception “po- T-LSC – Colégio Doutoral Tordesilhas
litical community” that is established - Linguagens, Sociedades e Culturas
in the social condition of political (PPGL-Universidade Presbiteriana Ma-
practice. However, the safest one to ckenzie). As suas áreas de investigação
make “practical politics” is, above all, são a cultura e comunicação, literatura
to prevail ideas in theories in order to e antropologia, história e educação. É
ensure essentialism and existential- autor e co-autor dos livros: Representa-
ism of political meanings within the ção Identitária em Timor-Leste: Culturas
framework of a zoological rationali- e os Media (Porto - Edições Afronta-
zation of political schematization. In mento, 2019), Tradições Orais de Timor-
order to systematize different types -Leste (Casa Apeoma - Belo Horizonte,
of political activities, in order to en- Díli, 2016), O que é sociologia? (Lisboa
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consolidation and reappropriation of sais? (Lisboa – Escolar Editora), Alma
democracy in the global world. Guerreira Timorense – Poesia (Díli,
2021), incluindo a publicação de vários
Key-words: Politics, democracy, artigos em capítulos de livro e revistas
Pedagogy of Democracy, Clinical of de arbitragem científica. E-mail: vicen-
Democracy. tepaulino123@gmail.com.
48
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

Percepção da China
e dos chineses em
Angola

Resumo
O artigo resulta de um estudo com 71 entrevistas semi-estruturadas realizadas
em Junho e Julho de 2013, nas cidades angolanas de Luanda, Benguela e Caxito,
com o objectivo de discutir a forma como os angolanos percebem hoje a China e
os chineses, e como isso exerce influência na percepção das futuras relações de
Angola com o país asiático.

Palavras-chave: Cooperação, expansão chinesa, neocolonização, reconstru-


ção de Angola

49
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

Introdução 70 entrevistas, distribuídas pelas três


O presente artigo é parte integran- cidades indicadas, com maior número
te de um mais amplo projecto res- de entrevistas em Luanda.
peitante à percepção da China e dos Tratando-se de um estudo explora-
chineses na Zâmbia e em Angola, que tório, com utilização do método quali-
inclui análise de conteúdo de jornais tativo e sem utilizar qualquer amostra
angolanos e zambianos e entrevistas representativa, não vamos aqui apre-
semi-aprofundadas realizadas nos sentar teses, com factores de dependên-
dois países1. cia e correlações estatísticas. Também
A ideia central do projecto dá con- não vamos aqui fazer análise estatística
ta que o sucesso (ainda que parcial) pura, seja porque estamos a trabalhar
da expansão chinesa em África está com um número pequeno de entrevista-
relacionado com uma sua percepção dos, seja porque não trabalhámos com
positiva neste continente. Mas esta qualquer amostra representativa. Po-
percepção vai lentamente modifican- demos realmente olhar para indicado-
do, em função de uma cada vez mais res estatísticos (e vamos fazê-lo, porém
massiva presença chinesa no continen- sempre com reticências), mas vamos
te africano e das diferenças culturais cingir-nos sobretudo a uma análise qua-
entre chineses e africanos. Estamos em litativa, que aponte ou não na direcção
crer que estas mudanças vão exercer indicada pelas hipóteses.
influência sobre as futuras relações da Pelas razões apresentadas, as hipó-
China com os países africanos. teses não vão ser testadas do ponto de
Foram feitas algumas dezenas de vista estatístico, mas vamos limitar-
entrevistas semi-estruturadas (de modo -nos a uma análise quali-quantitativa,
a permitir uma análise quali-quantitati- com menção a tendências, que neces-
va), tendo para o efeito sido escolhidas sitam depois de ser estatisticamente
três cidades de diferente dimensão, no- testadas num estudo quantitativo.
meadamente: uma cidade de pequena Vamos, pois, verificar aqui tendên-
dimensão (a escolha recaiu sobre Caxi- cias. É assim que deve ser entendida a
to, tendo em conta a sua proximidade comprovação ou não das hipóteses do
com Luanda), uma cidade de média estudo, que mencionamos a terminar.
dimensão (foi escolhida Benguela, por
ser um ponto central de confluência a
Presença chinesa em África
partir de outras localidades) e a capi-
tal cosmopolita com vários milhões de A crescente presença chinesa em
habitantes, Luanda. Em todas as cida- África é um facto que não pode ser
des escolhidas foi garantida à partida ignorado por quem está interessado
a residência e trabalho de cidadãos na China, em África ou em assuntos
chineses. Foi programado um total de internacionais. Na última década, os

1
O estudo foi financiado pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia da Faculdade de Ciên-
cias Sociais da Universidade Agostinho Neto (Luanda, Angola) e pelo Centro Nacional de Ciência
(Narodowe Centrum Nauki – Varsóvia, Polónia – projecto nº 4781/B/H03/2011/40).
50
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

chineses têm vindo a fazer um esfor- envolvimento chinês no Movimento


ço considerável no sentido de reforçar dos Países Não-Alinhados foi bas-
as suas relações com os países afri- tante útil. Por seu turno, a doutrina
canos. Têm organizado fóruns sino- chinesa que rege as suas relações in-
-africanos, altos funcionários chineses ternacionais (o chamado “Consenso
visitam África todos os anos e grande de Pequim” [Pang 2009]) actua no
quantidade de assistência financeira é sentido de convencer muitos dos go-
encaminhada a países africanos. vernos africanos a reforçar relações
No entanto, ouvem-se comentários com a China. O Fórum Sino-Africano
negativos a respeito das actividades também é um elemento que contribui
chinesas em África, especialmente para o sucesso global chinês. Simulta-
através dos meios de comunicação neamente, a ajuda financeira chinesa,
e da literatura ocidentais. Os líderes o seu envolvimento no desenvolvi-
chineses são acusados de apoiar al- mento de infra-estruturas e da capa-
guns regimes africanos (como os de Al cidade chinesa para iniciar e conduzir
Bashir no Sudão ou Mugabe no Zim- negócios num ambiente difícil como é
babué) e de fazer comércio antiético o africano são outros factores relevan-
de armas. Os chineses são frequente- tes a considerar.
mente considerados neocolonialistas
Acreditamos, entretanto, que um
que tentam explorar terras e recursos
dos elementos mais importantes para
africanos [p. ex., Taylor 2004]. No en-
o sucesso da expansão chinesa em
tanto, tanto os autores que tratam
África é o modelo de expansão criado
da expansão chinesa em África como
ainda no tempo da dinastia Han (sé-
uma ameaça potencial para a região
ou para a posição da Europa [p. ex., culo II a. C.). Ainda na época dos Han
Alden 2007: 105-114], quanto os que Ocidentais existia na China um mode-
percebem positivamente essa presen- lo de expansão política baseado não
ça chinesa [p. ex., Li 2008] concordam no poderio militar, mas na força da ac-
que, especialmente durante os últi- tividade económica e daquilo que hoje
mos 10-15 anos, a posição chinesa em designaríamos por engenharia social
África reforçou significativamente, de grande dimensão.
seja no domínio económico, seja na Esta maneira de pensar reflectiu-se
esfera política. já no primeiro sistema, que visava a
Portanto, devemos perguntar-nos: dependência económica e a cinização
como foi possível os chineses conse- dos grupos Xiongnu (hunos), conheci-
guirem ser tão bem sucedidos numa dos por heqin. Este sistema consistia
região onde a sua presença não tem principalmente no envio de valiosos
sido significativa2? presentes e na organização de ca-
Vários factores contribuíram para samentos, sobretudo entre os líde-
isso. Numa perspectiva política, o res Xiongnu e princesas chinesas [Yu

2
Segundo Alden 2007, a presença chinesa em África começou a fortalecer-se na década de 1950.
51
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

1967: 10]. O objectivo desta prática foi às elites políticas do país vassalo. É ex-
anexar e aculturar sobretudo as tribos tremamente interessante o facto de
Xiongnu vizinhas do império, alteran- (especialmente no início do relacio-
do o seu modo de vida. Desta forma, namento tributário) o valor da oferta
desapareceu uma ameaça directa so- imperial ser significativamente maior
bre as fronteiras do país, porque elas do que o tributo pago pelos vassalos.
passaram a ser habitadas por “bárba- Esta estratégia (que, à primeira vista,
ros domesticados”. parece irracional) tinha razões pro-
Mas este sistema acabou por não fundas, que geralmente conduzem ao
se revelar completamente eficaz. efeito desejado.
Primeiro, por sair caro ao império, Em primeiro lugar, temos de assu-
pois exija o constante transporte de mir que o sistema tributário tinha o
produtos e bens de luxo nos quais os objectivo de educar (dizia-se, civilizar)
“bárbaros” se tornaram viciados. Em os “bárbaros”, que se tornaram de-
segundo lugar, nalguns casos as rela- pendentes dos produtos e da cultura
ções daí resultantes provaram não ser chinesa. Portanto, era preciso prever
duradouras [Yu 1967: 36-39]. um certo número de bens que podiam
Os inconvenientes acabados de ser distribuídos no país vassalo.
mencionar foram em grande medida Em segundo lugar, devem men-
ultrapassados pelo sistema tributário cionar-se (especialmente no período
introduzido durante a dinastia Han. inicial do relacionamento) as demons-
Este sistema tributário foi uma ten- trações de generosidade por parte do
tativa bem sucedida de reforço das império chinês, que garantiam o bom
ligações entre o império chinês e os relacionamento com as elites dos gru-
futuros estados tributários. Isso per- pos vassalos – às quais se destinavam
mitiu que a China criasse uma espécie as ofertas imperiais. Os líderes bárba-
de tampão de segurança que protegia ros podiam, portanto, sentir a gene-
o império dos “bárbaros”. Na luta en- rosidade do império (que demonstra-
tre os “bárbaros” (muitas vezes com a va apreço pelos seus súbditos) e dar
mesma origem étnica), o império as- conta que tinha valido a pena aceitar
segurava uma posição geopolítica re- a proposta de submissão ao império.
lativamente estável e segura. Além disso, talvez o mais importante
O sistema tributário estava com- a longo prazo, passou a haver clara
posto por três elementos, a saber: dependência dos produtos chineses,
homenagem, reféns e tributo. Vamos passando (consciente ou inconscien-
referir dois deles (os reféns e o tribu- temente) as elites a ser o mais impor-
to), que são importantes para os ob- tante agente da cinização nos seus
jectivos deste trabalho. próprios países.
Um elemento-chave do sistema Em terceiro lugar, com a passa-
tributário é, sem dúvida, a relação gem do tempo e devido a essa cada
entre o tributo pago pelo estado vas- vez maior dependência dos produtos
salo e aquilo que o imperador atribui chineses, um número crescente de
52
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

comerciantes chineses deslocava-se lítica externa chinesa tinha priorida-


para os países vassalos. Desta forma des completamente diferentes. Foi
e com este olhar holístico para todo um período de política revolucionária
este processo, a oferta imperial pode activa, com apoio a movimentos co-
ser considerada como um tipo de in- munistas, principalmente nos cha-
vestimento a longo prazo, a ser pago mados países em desenvolvimento:
tanto do ponto de vista político, quan- sobretudo no Sudeste Asiático, em
to do ponto de vista económico. África e na América Latina. Este foi
Um importante complemento da também o período de participação
activa da China no Movimento dos
relação entre o tributo e a oferta im-
Países Não-Alinhados e no estabele-
perial era a forma como se faziam
cimento de boas relações com vários
reféns. O refém era quase sempre al-
países africanos, tais como a Zâmbia
guém pertencente à família real vas-
e a Tanzânia. O caso de Angola é bas-
sala, como por exemplo o herdeiro do
tante específico, devido às tentativas
trono. A razão óbvia e principal para
nem sempre bem sucedidas de en-
introdução da instituição dos reféns
volvimento militar neste país, o que
era a garantia de lealdade do vassa-
provocou diferentes formas de enca-
lo diante do senhor. É preciso adian-
rar as relações com a China por parte
tar, entretanto, que a permanência
da elite dirigente angolana.
do herdeiro do trono de um estado
Geralmente, no entanto, durante a
feudal dependente, por um longo pe-
liderança de Mao Tse Tung (que foi,
ríodo de tempo, em território chinês
sem dúvida, a altura em que a Chi-
tinha ainda um segundo (mas não
na construiu um verdadeiro marco
menos importante) significado: esse
nas relações contemporâneas com
herdeiro do trono instruía-se segun-
os países africanos) não se construí-
do a cultura chinesa, de modo que
ram relações entre a China e África
após o seu regresso à terra natal, tor-
através da utilização do modelo eco-
nava-se em grande medida agente
nómico tradicional de expansão; em
de cinização no seu próprio país [cf. vez disso, foi utilizado um modelo
Yu 1967]. Mas é preciso acrescentar mais do tipo ocidental, baseado em
que, em regra, os chineses não inter- actividade militar e ideológica [Alden
vinham nos assuntos internos dos es- 2007: 10]. É de ressaltar que, durante
tados tributários. o governo de Mao, com a China re-
Após a queda do império, a China lativamente pobre, envolveu relati-
afastou durante muito tempo essa vamente grandes somas monetárias
forma de expansão económica. Ao em assistência no continente afri-
tempo da República da China (1911- cano. Um dos mais espectaculares
1949), o Estado tinha de defender a exemplos dessa assistência, enquan-
sua integridade, mais do que expan- to gesto de amizade, foi sem dúvida
dir-se. Mas durante as primeiras dé- o Tan-Zam – a famosa linha de cami-
cadas da República Popular da China nho-de-ferro que retirou a Zâmbia
(até à morte de Mao Tse Tung), a po- do isolamento, ligando-a ao porto de
53
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

Dar es Salaam, na Tanzânia [Brauti- outro aspecto a considerar tem a ver


gam 2010: 31-41]3. com a necessidade que a China tem
Só a morte de Mao Tse Tung (ocor- de suporte nas organizações interna-
rida em 1976) e a subida ao poder de cionais, onde a representação africa-
Deng Xiaoping resultam numa sig- na reúne grande número de votos. É
nificativa mudança de estratégia da por tudo isso que se regista um signi-
China. Essa mudança começou com ficativo aumento do interesse da Chi-
a política de normalização, baseada na em países africanos, aparecendo
na normalização das relações na are- em segundo lugar a América Latina.
na internacional, ao contrário da tese Um último elemento a considerar na
anteriormente utilizada de expandir o análise tem a ver com uma crescente
ideal comunista através da revolução. procura chinesa por recursos naturais
Esta nova política possibilitou a nor- (com destaque para o petróleo) e a
malização das relações da República instabilidade do Oriente Médio, com
Popular da China com a maioria dos a primeira guerra no Iraque [cf. p. ex.
países do mundo e o desenvolvimento Rotberg 2008: 4].
do comércio com base no rápido cres- Na verdade, porém, desde o início
cimento do potencial de exportação da década de 2000 que ocorre a ace-
da China [Van Dijk 2009: 10]. leração do desenvolvimento das rela-
No caso do continente africano, ções no eixo Pequim–África, o que se
tudo indica que o primeiro passo que reflecte no estabelecimento do FO-
direccionou o interesse do gover- CAC (Fórum de Cooperação China-Á-
no chinês para o continente foram frica) e no acentuado incremento no
as consequências internacionais do comércio [ver Cunha 2012: 341-342].
massacre na Praça de Tiananmen, a O valor do comércio entre a China e os
4 de Junho de 1989, nomeadamente países da África Subsariana nos anos
a imposição de sérias sanções à China 2001-2007 aumentou de cerca de 10
por parte dos países ocidentais4 [cf. para cerca de 60 mil milhões de dóla-
Marchal 2008]. Desde o início das re- res [Foster & All 2009: 4].
formas da década de 1980 (até 1989), Ao mesmo tempo, tudo indica que
a política chinesa de exportação ba- a expansão moderna da China no con-
seava-se principalmente no comércio tinente africano esteja a ser imple-
com os Estados Unidos da América, mentada de uma forma que lembra
tendo a partir daí entendido a neces- os métodos tradicionais de expansão
sidade de diferenciação dos merca- (similar, nalguns aspectos, ao sistema
dos e dos parceiros económicos. Um tributário descrito acima).

3
A obra terminou em 1976, sendo considerada o “símbolo da boa vontade” chinesa. Trata-se de 1.860
quilómetros de carris, 18 túneis e 47 pontes, tendo requerido o engajamento directo de 50 mil chineses
[Michel & Beuret 2009: 90].
4
Em 2008 houve na China 128 mil protestos colectivos, envolvendo acima de 500 pessoas cada um.
Em 2011, esse número aumentou para 180 mil [cf. Caeiro 2013: 140].
54
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Primeiro, os chineses oferecem colonial e agora (devido ao seu suces-


vários pacotes de ajuda, tais como li- so económico contemporâneo) pode
nhas de crédito bonificadas ou investi- ser tratado como um “irmão mais ve-
mentos em infra-estruturas [cf. p. ex. lho”, cujo caminho deve ser seguido e
Alden 2007: 22-24]. Exemplos destes copiado em África [cf. Versi 2007].
podem ser a construção do estádio No entanto, durante os últimos
em Ndola ou do Hospital Provincial anos, a imagem da China em África
de Luanda. Depois, os chineses pro- não parece ser tão claramente posi-
curam manter excelentes relações tiva como no início da expansão chi-
com os líderes dos países africanos, nesa, em virtude de problemas de
seja através da manutenção de boas vária ordem que surgiram juntamente
relações bilaterais, seja organizando com a crescente presença chinesa. Os
reuniões e conferências, como as que conflitos interculturais, o medo de os
ocorreram no âmbito do FOCAC, em chineses estarem a ocupar empregos
Pequim, nos anos 2000, 2006 e 2012 que deveriam ser destinados a africa-
[Alden 2007: 27-32]. nos, o apoio chinês para regimes ca-
Deve-se acrescentar que, tal como ducos africanos, a destruição da terra
os chineses não interferiam antes nos e a exploração de recursos naturais
assuntos internos dos estados tribu- são os factores mais frequentemente
tários, também agora não interferem mencionados, que podem causar alte-
nos assuntos internos dos Estados rações na percepção que se possui da
com os quais se envolvem em trocas presença chinesa na região africana.
económicas. Dessa forma se justifica É assim que, embora no início da
que mantenham boas relações com expansão essa percepção tenha sido
líderes não reconhecidos pelo Ociden- bastante positiva, ao longo dos pró-
te, como por exemplo Robert Mugabe ximos anos a imagem da China e dos
(do Zimbabué) e Omar Al Bashir (do chineses pode mudar em sentido ne-
Sudão do Norte). gativo. Se isso acontecer, a expansão
Como se pode verificar, parece que chinesa em África pode não vir a ser
o sucesso da política chinesa contem- tão facilmente bem sucedida como
porânea em África se baseia, pelo me- é no presente. Esta presunção, con-
nos em parte, na imagem positiva que tudo, é apenas uma hipótese de tra-
a China criou neste continente. balho que precisa de ser explorada e
A imagem da China e dos chineses verificada. O estudo cujos resultados
em África é diferente e muito melhor aqui apresentamos visa esclarecer a
do que a percepção que existe do Oci- percepção que os angolanos possuem
dente e dos ocidentais (pelo menos no da China e dos chineses e o possível
início da expansão chinesa). A China resultado disso sobre as relações en-
pode ser genericamente percebida tre os dois países.
mais como um daqueles países que
também sofreram durante o período
55
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

Tabela 1 – Sexo dos entrevistados, por cidade

Sexo Benguela Caxito Luanda Total


Feminino 7 7 8 22
Masculino 13 14 22 49
Total 20 21 30 71

Metodologia e entrevistados Foram feitas 71 entrevistas, o que


O estudo que serviu de base ao corresponde a 101,4% do programa-
presente artigo é um estudo qualita- do. As tabelas 1 a 5 apresentam as ca-
tivo, com utilização da entrevista se- racterísticas dos entrevistados.
mi-aprofundada enquanto técnica de Tal como se pode aí comprovar,
investigação sociológica. os entrevistados estão diferenciados
segundo uma série de variáveis: 31%
Foram entrevistados cidadãos an-
são mulheres e 69% são homens, 63%
golanos residentes em três cidades de
têm idade abaixo dos 35 anos, 65%
Angola, nomeadamente uma cidade
têm instrução até ao nível médio e
metropolitana (Luanda), uma cidade
38% são estudantes, professores ou
de média dimensão (Benguela) e uma
técnicos. No que respeita aos rendi-
cidade de pequena dimensão (Caxito). mentos mensais declarados, 59% dos
As três cidades escolhidas são sedes entrevistados declaram valores até
de província, mas a primeira é simul- 100 mil kwanzas5. Já em relação à po-
taneamente a capital do país. sição social, 6% pertencem às elites,
Previu-se um total de 70 entrevis- 49% pertencem às camadas médias
tas, sendo 30 em Luanda e 20 em cada e 41% pertencem às camadas menos
uma das outras duas cidades. Foram favorecidas da hierarquia social.
programadas entrevistas a alunos do
5
ensino médio, estudantes universitá- À data do estudo, a um dólar americano equi-
rios, vendedores ambulantes, traba- valiam cerca de 100 kwanzas. Estando o valor
lhadores da construção civil, jornalis- real de câmbio entre 97 e 98 kwanzas por dó-
lar, a verdade é que se utiliza a referência de 100
tas, empresários e outros cidadãos, kwanzas por dólar americano. Portanto, 100 mil
em cada uma das cidades. kwanzas correspondiam então a 1.000 dólares
americanos.

Tabela 2 – Idade dos entrevistados, por cidade


Idade Benguela Caxito Luanda Total
Menos de 25 anos 8 5 6 19
25-34 anos 6 2 18 26
35-44 anos 3 7 2 12
45-54 anos 2 4 4 10
55 anos e mais 1 3 - 4
Total 20 21 30 71

56
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Tabela 3 – Grau de instrução dos entrevistados, por cidade


Grau de instrução Benguela Caxito Luanda Total
Até à 8ª classe 2 2 3 7
Ensino de base 2 9 8 19
Ensino médio 11 4 5 20
Ensino superior 5 6 13 24
Sem dados - - 1 1
Total 20 21 30 71

Tabela 4 – Ocupação dos entrevistados, por cidade


Ocupação Benguela Caxito Luanda Total
Serviços 6 9 6 21
Professor 4 1 7 12
Operário 3 4 5 12
Estudante 4 2 3 9
Jornalista/repórter 2 1 3 6
Chefia 1 1 2 4
Mercado informal - 2 2 4
Outros - 1 2 3
Total 20 21 30 71

Tabela 5 – Posição social dos entrevistados, por cidade


Camada social Benguela Caxito Luanda Total
Baixa 6 9 14 29
Média 13 10 12 35
Elite 1 1 2 4
Sem elementos - 1 2 3
Total 20 21 30 71

Perguntas de partida e hipóteses em que a expansão chinesa passa a


Passar de repente a haver tantos atingir também Angola, os angolanos
chineses em Angola deve ter provo- devem perguntar-se a respeito do fu-
cado reacções junto da sociedade, dos turo da cooperação e do futuro das
grupos sociais e dos angolanos. Mais relações entre chineses e angolanos e
ainda, porque a vinda em massa de chi- entre Angola e a China.
neses foi objecto de acordo que o go- Pelo que acaba de se expor, as per-
verno angolano firmou com o seu con- guntas de partida do nosso estudo fo-
génere chinês. E a partir do momento ram as seguintes:
57
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

• Até que ponto haver contactos quer amostra representativa dos habi-
frequentes com chineses condi- tantes das três cidades mencionadas
ciona a aceitação da sua presen- (como já foi referido acima), vamos
ça em Angola e da cooperação tratar de testar as hipóteses conside-
com a China? radas no estudo. Tendo em conta o
• Até que ponto existe a convicção método utilizado, obviamente que os
de possibilidade de neocoloniza- resultados que aqui vamos descrever
ção de Angola por parte da China? não serão definitivos, mas ilustram
somente a opinião dos entrevistados,
Tendo em conta tais perguntas de sendo um indicador da possível opi-
partida, formulámos as seguintes hi- nião dos habitantes das três cidades
póteses: envolvidas no estudo. Optámos por
• Hipótese 1: Quanto mais positi- apresentar adiante uma análise qua-
vamente se avaliam os contac- li-quantitativa, por reflectir melhor os
tos directos com chineses, mais objectivos do estudo e a metodologia
facilmente se aceita a presença utilizada.
chinesa em Angola.
• Hipótese 2: A opinião sobre a Vinda de chineses para Angola
continuidade da cooperação A presença chinesa em Angola sem-
com a China é directamente pro- pre foi diminuta e inexpressiva do pon-
porcional à avaliação acerca da to de vista político e demográfico. No
forma como se avalia essa mes- quadro da guerra colonial, a China pres-
ma cooperação até hoje. tou algum apoio aos movimentos de
• Hipótese 3: Os angolanos estão libertação [cf. Cunha 2012: 341], tendo
convencidos do sucesso da políti- após a proclamação da independência
ca expansionista chinesa em An- havido alguma cooperação, mas sem-
gola, que se consubstancia numa pre com o estigma da forte presença
ideia crescente de dependência da União Soviética (com quem a China
económica e neocolonização. Popular rivalizava).
• Hipótese 4 (hipótese adicional): A Após o término da guerra6, em
esperada contestação à presença 2002, o governo angolano sugeriu
chinesa no mercado informal an- a realização de uma conferência de
golano é independente da avalia- doadores, com o concurso de países
ção que se faz dos chineses e da ocidentais – que, assim, se dirimiriam
cooperação com a China. devido ao apoio que (na sua maioria)
deram à guerra civil. O objectivo era a
Apesar de se tratar de um estudo contribuição internacional para a re-
qualitativo, sem utilização de qual- construção de Angola, ainda que isso

6
Acerca da guerra civil angolana (1975-2002), ver por exemplo Messiant 1994, Anstee 1996 e 1997,
Correia 1996a e 1996b; Guimarães 1998, Kissinger 1999, Jorge 2000, Wright 2000 e 2001, Frynas &
Wood 2001, Carvalho 2002. Sobre as consequências económicas e sociais da guerra civil, vide Torres
1990 e 1999, Ferreira 1992, 1993 e 1999, Jorge 1997, Sousa 1998, Rocha 2000 e 2001, Hodges 2002,
Carvalho 2002 e 2008.
58
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

implicasse a posterior devolução do alternativa”. Já os entrevistados das


dinheiro gasto. Uma vez que tal apoio camadas menos favorecidas optam
não foi concedido pelos países oci- em maior grau por mencionar aspec-
dentais, o governo angolano recorreu tos concretos, tais como: “Necessida-
a outros países, tendo obtido resposta de de reconstrução do país”. Eis duas
positiva da China. opiniões a esse respeito:
Foi assim que a China começou a in- “Um país que esteve em guerra …
vestir fortemente em Angola, seja no pediu investimentos à Europa, aos
domínio da reconstrução de estradas Estados Unidos da América, como é
e pontes, seja para construção de in- o caso específico do plano Marshall
fraestruturas várias e, até, de bairros na Europa proposto pelos Estados
habitacionais. Não sendo conhecidos Unidos. … O governo encontrou
os termos contratuais, o que se pode uma variante, está a se aplicar este
dizer é que o governo chinês impôs a plano Marshall, só que é um plano
presença massiva de operários chine- chinês para Angola. O que se cons-
ses em Angola, que deveriam traba- truiu em tão pouco tempo, não
lhar ao lado de operários angolanos. seria possível se não fossem os chi-
O que pensam os angolanos da de- neses.” {homem, 56 anos, mestre,
cisão do governo angolano, de coope- professor, Benguela}
ração com a China, tendo em conta a “De positivo é o conjunto de obras
necessidade de aceitação da vinda em que emergiu. As infraestruturas es-
massa de chineses para Angola? tão aí, foram reabilitadas. O país
estava paralisado, voltou a andar.
A maioria dos entrevistados mos-
Criaram-se condições que podem
trou-se favorável à decisão do gover-
vir a dar lugar a outros desenvolvi-
no angolano, de cooperação com a
mentos e ao crescimento do país.”
China7. Portanto, há maioritariamente
{homem, 47 anos, licenciado, jorna-
acordo em relação à vinda de chineses
lista, Luanda}
para Angola. São sobretudo homens,
pessoas com idade acima dos 35 anos, Para além da construção e recons-
com instrução a partir do nível médio trução de infraestruturas, devem assi-
e residentes em meio urbano. nalar-se outros ganhos sociais com o
Quanto aos aspectos positivos des- incremento da cooperação com a Chi-
sa opção, prevalecem as opiniões re- na, tal como se pode comprovar pela
lativas à necessidade de reconstrução seguinte declaração:
de infraestruturas e à necessidade que “Um dos aspectos positivos, por
Angola tem de cooperar com países exemplo, é o facto de nós poder-
mais desenvolvidos. Os entrevistados mos coabitar com a medicina chi-
com maior grau de instrução apre- nesa, que … é muito conhecida. É
sentam opiniões mais elaboradas, uma grande mais-valia que nós te-
tais como: “Angola necessita de in- mos aqui em Angola.” {homem, 42
vestimento estrangeiro”; “Não havia anos, licenciado, professor, Caxito}

7
61% dos entrevistados que emitiram opinião sobre este assunto declararam aprovação à medida.
59
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

Mas há quem, mesmo achando po- da em massa de chineses em Angola).


sitiva a cooperação com a China, con- Por outras palavras, considera-se que
sidere haver lacunas a suprir, tal como o contrato firmado com o governo
se pode comprovar pelas seguintes chinês protege quase somente os in-
declarações: teresses chineses e, por outro lado,
“Esta obra tem de ser fiscalizada que não existe o devido controlo de
pelos proprietários. Porque se não qualidade às obras públicas feitas por
for fiscalizada vai acontecer o que chineses. A falta de controlo por parte
aconteceu, por exemplo, no Hos- do governo angolano foi mencionada
pital Geral de Luanda que, como em todas as cidades, mas com bastan-
outras obras, depois de 3 meses, 4 te maior insistência em Benguela8.
meses, as obras começam a rachar, Enquanto os entrevistados das clas-
começam a estragar. Acho que de ses médias se mostram mais preocu-
negativo é isso. Eles são rápidos a pados com os termos do acordo entre
fazerem os seus trabalhos, mas não os dois governos, os entrevistados das
fazem bem. Não é uma obra durá- camadas menos favorecidas referem
vel.” {mulher, 27 anos, licenciada, em maior grau a ausência de controlo
jornalista, Luanda} das obras e o facto de o governo ango-
“Tem-se visto que fundamental- lano não proteger os seus cidadãos no
mente a mão-de-obra chinesa uti- que respeita ao acesso ao emprego.
lizada não é mão-de-obra qualifi- Finalmente, vamos transcrever a
cada, quando provavelmente com opinião de um dirigente da oposição
esse volume de actividades que entrevistado, que referiu o desconhe-
têm surgido a nível da construção cimento dos termos contratuais e a
civil, poderia resolver muitos pro- necessidade de preocupação com os
blemas de desemprego da juventu- interesses do Estado angolano e dos
de. E nós temos quadros (quase de angolanos:
certeza não qualificados) chineses “O Estado angolano é obrigado a
que têm desenvolvido actividades estabelecer parcerias com todos os
que podiam ser desenvolvidas por países do mundo, onde a China não
angolanos,” {homem, 42 anos, li- poderia estar de fora quer seja pelo
cenciado, professor, Caxito} ponto de vista económico, tecnoló-
No que respeita aos aspectos nega- gico e de desenvolvimento. Fazer
tivos, destaque vai para a falta de fis- negócios com a China é salutar …
calização das obras feitas por emprei- porém, o segredo reside nos ter-
teiros chineses (de que resulta a sua mos dos acordos de cooperação. O
baixa qualidade) e para o facto de o Estado angolano deve ter o cuida-
contrato com a China não ter previsto do de salvaguardar acima de tudo
a protecção dos interesses dos ango- o interesse nacional, (prevendo-se)
lanos (seja em relação ao mercado de vantagens mútuas para ambos os
trabalho, seja no que respeita à entra- países envolvidos em qualquer pro-

8
Benguela (ao contrário de Caxito, por exemplo) é uma cidade onde se contesta amiúde a acção gover-
nativa – até mesmo as pessoas próximas ao governo o fazem com regularidade e isenção.
60
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

cesso de cooperação. (…) [Se o seu escola (colegas na faculdade), em hos-


partido governasse, teria tido uma pitais e em clínicas de medicina chinesa.
opção similar?] Sim, desde que se Pedimos a cada entrevistado que
considerasse de modo diferente os avaliasse genericamente os contactos
termos da cooperação, analisando- mantidos com chineses. Em 31% dos
-a em três níveis: político, econó- casos, não foi emitida qualquer opi-
mico e social.” {homem, 48 anos, nião. Quanto aos que emitiram opi-
licenciado, historiador, Luanda} nião, prevalecem nitidamente quantos
avaliam positivamente tais contactos
Contacto com chineses (49% dos casos), enquanto apenas 7%
A grande maioria dos entrevistados dos entrevistados apresenta opinião
(84%) já teve contacto com chineses. negativa. É em Benguela (cidade de
Quem declarou nunca ter contactado média dimensão) que se registam opi-
qualquer chinês são pessoas com bai- niões mais positivas, sendo em Caxito
xa instrução, baixo rendimento e das (cidade de pequena dimensão) que se
classes baixas. Por outro lado, quanto notam menos opiniões positivas.
mais pequena a cidade, menor é a fre-
De modo a levar mais longe a aná-
quência de contactos com chineses.
lise, pedimos aos entrevistados para
Tais contactos ocorrem fundamen- indicarem experiências positivas e
talmente nos seguintes locais: experiências negativas dos contactos
a) Estabelecimentos comerciais que mantêm com chineses. A tabela 6
(normalmente, propriedade de dá conta que predominam claramen-
chineses); te as avaliações positivas, devendo
b) Actividade ligada à construção assinalar-se que em 42% dos casos se
civil (chineses como empreiteiros mencionaram experiências positivas
ou como operários); e negativas. Tal como sucede com a
c) Nos próprios locais de trabalho opinião genérica de cada um, também
(com colegas chineses); ao nível das experiências, as avalia-
d) Na rua. ções são mais positivas em Benguela,
vindo a seguir Luanda; e são bastante
Com menor incidência, ocorrem con- mais negativas em Caxito, uma ci-
tactos no bairro (vizinhos chineses ou dade bastante mais pequena e pou-
chineses alugam espaço em casa), na co urbanizada.

Tabela 6 – Avaliação dos contactos com chineses


Avaliação Benguela Caxito Luanda Total
Positiva 18 16 27 61
Neutra 1 1 4 6
Negativa 6 13 15 34
Total (20) (21) (30) (71)

61
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

Dentre os mencionados aspectos trabalham como operários com chine-


positivos da relação com chineses, ses), são eles próprios ou outros des-
destacam-se o seu elevado sentido de sas mesmas camadas sociais que em
profissionalismo, o facto de pratica- maior grau têm conhecimento de tais
rem os melhores preços do mercado, episódios. Eis algumas declarações a
serem sociáveis e não serem agressi- este respeito:
vos. Quanto aos aspectos negativos “Faz muito angolano sofrer. Eu já vi
mais referidos, podemos mencionar mesmo na minha vida. O meu mari-
a dificuldade de comunicação resul- do trabalhou com os chineses, pas-
tante do desconhecimento da língua sou muito mal. Só para lhe pagar,
portuguesa, as más condições em que você imagina, por um salário de
trabalham (coisa que os angolanos não 45 dias, 15 mil kwanzas. 45 dias...”
aceitam), a falta de qualidade das suas {mulher, 30 anos, 4ª classe, vende-
obras e os baixos salários que praticam. dora ambulante, Luanda}
Mas quando se pede para os en- “Penso que são em alguns casos de-
trevistados indicarem aquilo que sumanos, porque tratam mal o na-
têm ouvido da relação com chineses cional na relação que têm de traba-
no dia-a-dia, por parte de familiares,
lho… São desumanos.” {mulher, 34
amigos e outros conhecidos, há cla-
anos, licenciada, jornalista, Luanda}
ra predominância de dois elementos
negativos, a saber: “Negativo é só isso de não assu-
mirem a responsabilidade das re-
a) Maltratam os angolanos (no local
feições dos trabalhadores (angola-
de trabalho)9;
nos)” {mulher, 58 anos, 10ª classe,
b) Hábitos diferentes conduzem comerciante, Caxito}
a comportamentos diferentes
dos nossos. Já os entrevistados das camadas
mais favorecidas referem em maior
Os entrevistados das camadas me- grau a diferença de culturas e de há-
nos favorecidas (com menor grau de bitos, ou elaboram mais a sua análise:
instrução, salários mais baixos e da
“Trazem hábitos que não são os
classe baixa), bem como os homens
nossos. E é complicado. Não de-
e pessoas jovens (idade abaixo dos 35
veria ser assim. É um número exa-
anos) optam por referenciar em maior
gerado (de chineses).”{homem, 38
grau os maus-tratos a angolanos.
anos, 12ª classe, técnico de cons-
Uma vez que tais maus-tratos ocor-
trução civil, Caxito}
rem fundamentalmente com pessoas
das camadas menos favorecidas (que “Eles têm os seus hábitos alimen-

9
“Há uma relação de exploração, digamos assim. Mas já noto que no caso dos angolanos que têm … maior
nível de escolaridade, que tenham maior conhecimento profissional, a relação acaba por ser… não chega a
ser de subordinação do angolano; mas acaba por ser uma relação de paridade, acaba por existir essa parida-
de. Só que infelizmente a maior parte dos angolanos que eu vejo que se relacionam com os chineses são os
que têm um menor nível de escolaridade.” {homem, 42 anos, licenciado, professor, Caxito}
62
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

tares também, não é a sua maneira transportando tractores ou materiais


de ser, de estar. Os angolanos tam- de construção.
bém têm a sua. Acho que um num Muitos de nós cruzamos com chi-
lado e outro do outro lado. E por neses conduzindo camiões pela fai-
aquilo que também há racismo da xa da esquerda e não se importando
parte deles. Tamos aqui, mas não com as regras do código de estrada.
nos misturamos.” {mulher, 55 anos, Há entrevistados que se perguntam
gerente, licenciada, Caxito} onde param as autoridades, que não
“Há também o facto de haver essa combatem tais atentados ao código
grande disponibilidade de mão- de estrada, fazendo parecer haver
-de-obra chinesa para os grandes alguma impunidade por parte dos
projectos, que tenho certeza que chineses na estrada. Eis algumas das
se fossem angolanos à frente, pro- mais significativas declarações sobre
vavelmente ainda hoje estaríamos esta matéria:
na metade. … O próprio processo “Negativo é o comportamento
de reconstrução nacional hoje só deles na condução. A condução
é real, as estradas que nós temos deles não é das melhores. Devem
que ligam o país de uma ponta á adaptar-se melhor ao nosso tipo de
outra hoje são reais, porque hou- condução, porque aquilo que eles
ve essa mão-de-obra chinesa que fazem aqui em Angola não é saudá-
foi disponibilizada e os recursos vel.” {homem, 46 anos, licenciado,
financeiros e materiais chineses.” professor, Caxito}
{homem, 42 anos, licenciado, pro-
“A semana passada, quando estava
fessor, Caxito}
a vir para aqui, no Caxito, dois chi-
neses estavam a ir de camião. Ele
Para além desses dois elementos estava a andar mal, estava a entrar
de contraste, são mencionados ainda numa faixa que não é dele.” {mu-
os seguintes aspectos10: lher, 21 anos, 9ª classe, vendedora
a) São pessoas fechadas; ambulante, Caxito}
b) Não se preocupam com a quali-
dade do serviço que prestam; “Em relação à condução, é horrível.
Não sei se na China eles conduzem
c) Não sabem conduzir11;
do lado direito ou esquerdo, mas…
d) Não se preocupam com a higiene. Nós falamos da condução chinesa,
porque acredito que a maior parte
Quase todos os dias se ouvem his- desses chineses que conduzem não
tórias de má condução por parte de têm carta de condução, não pas-
chineses, algumas das quais termi- saram pelas escolas de condução.”
nam de forma trágica. A maioria des- {mulher, 55 anos, gerente, licencia-
sas histórias diz respeito à condução da, Caxito}
de viaturas pesadas, muitas vezes

10
Para além destes, foram ainda mencionados os seguintes (por somente um ou dois entrevistados):
desarrumados, egoístas e mentirosos.
11
Esta menção foi mais significativa em Caxito, o que se justifica, visto que a cidade é atravessada por
uma estrada nacional, bastante utilizada por camiões conduzidos por chineses.
63
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

Vejamos, agora, até que ponto se “Verdade se diga, que qualquer um


considera haver amizade entre ango- precisa de ajuda. E quando eu posso
lanos e chineses. Pouco mais de meta- fazer 3, significa que com mais gen-
de dos inquiridos consideram haver tal te fazemos 6, 9 e por aí fora. Então
amizade, mas é significativo o facto a ideia não é má … Não vejo nada
de 40% acharem que não pode haver contra.” {homem, 39 anos, 12ª clas-
amizade entre as duas nacionalidades se, pedreiro, Benguela}
(em território angolano, entenda-se). “Acho que é positivo, independen-
São pessoas com formação académica temente das mazelas de algumas
superior que em maior grau apontam obras que foram criticadas. Mas
para a ausência de amizade, enquanto acho que é positivo.” {homem,
no extremo oposto estão estudantes, 47 anos, licenciado, economista,
com idade até aos 25 anos. Luanda}
São apontadas razões de natureza “A China mostrou-se aberta a coo-
cultural e o facto de os chineses se perar e a ajudar Angola numa situa-
isolarem, como causas da ausência ção em que o país estava absoluta-
de amizade entre angolanos e chine- mente necessitado.” {homem, 47
ses. Há quem considere também que anos, licenciado, jornalista, Luanda}
“a amizade surge apenas quando há
interesse”12, para além da menção ao Considera-se que o investimento
facto de os chineses serem tímidos ou chinês em Angola serve os desígnios
de terem a protecção de militares an- da reconstrução do país depois de
golanos. terminada a guerra civil de longa du-
E o que dizer a respeito do investi- ração, para além de se mencionarem
mento chinês em Angola? Será que os também a formação de quadros ango-
angolanos aceitam tal investimento lanos e o aparecimento de produtos
ou nem por isso? a preço mais baixo. Mas há aspectos
Os entrevistados não apenas acei- negativos a destacar, como sejam a
tam o facto de haver investimento má qualidade das obras devido à au-
chinês em Angola, como estão con- sência de fiscalização, a diminuição
vencidos da oportunidade de conti- da procura por empresas angolanas e
nuidade desse mesmo investimento. o desrespeito pela legislação laboral
É vivamente aplaudida pela maioria angolana13:
dos entrevistados a opção do governo “Não se respeita [a legislação labo-
angolano pelo investimento chinês, ral angolana], a começar pelo tem-
numa altura em que os países ociden- po de trabalho. Mesmo os contratos
tais se negaram apoiar Angola: não estão assinados. Nem verbais
nem escritos. Não há nenhum ter-
12
“Eu acho que é amizade estritamente com base nos interesses. Se há interesse económico, acho que
pode haver amizade deles com os angolanos” {homem, 33 anos, licenciado, professor, Luanda}; “Não
acredito que essa relação entre Angola e China seja uma relação de amizade; é uma relação puramente de
interesse” {homem, 42 anos, mestre, linguista, Caxito}; “Como eu disse, são pessoas muito fechadas e só
se interessam por nós, angolanos, pelos seus interesses” {homem, 26 anos, licenciado, sociólogo, Luanda}.
13
Segundo se diz, com a “conivência de militares” ou, mais propriamente, de pessoal da Casa Militar
do Presidente da República de Angola.
64
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

mo de contrato oficial, plasmado em maior grau a vinda em massa de


ou que se baseie na lei geral do tra- chineses para Angola e a cooperação
balho. As pessoas são recrutadas com a República da China. Portanto,
(passe o termo) de qualquer ma- a primeira grande conclusão a que
neira, são empregadas de qualquer chegamos dá conta de se comprovar
maneira também e são despedidas a primeira hipótese, apenas quando
de qualquer maneira. Não há ga- consideramos a aceitação da vinda
rantia de respeito pelos direitos dos em massa de chineses para Angola14.
trabalhadores.” {homem, 38 anos, Mas se há maioritariamente acordo
jornalista, licenciado, Luanda} em relação à decisão governamental
pela cooperação chinesa, o mesmo
Vejamos agora até que ponto haver não se pode dizer em relação à pre-
bons contactos com chineses determi- sença chinesa no mercado informal.
na uma maior aceitação da presença Se vinham inicialmente para Angola
chinesa em Angola. A hipótese 1, que operários chineses para trabalharem
está relacionada com este assunto, diz nas obras de construção civil, pas-
o seguinte: Quanto mais positivamen- sado pouco tempo começaram a vir
te se avaliam os contactos directos com também outras pessoas, que foram
chineses, mais facilmente se aceita a engrossando o comércio informal
presença chinesa em Angola. (incluindo o comércio de rua) e os pe-
Tal como foi dito no início, recorda- quenos negócios. Já se vêem chineses
mos que não vamos aqui fazer análise com banca montada em passeios e,
estatística pura, seja porque estamos mesmo, a zungar15.
a trabalhar com um número peque- A maioria dos entrevistados (70%)
no de entrevistados, seja porque não considera que o mercado informal de-
trabalhámos com qualquer amostra veria destinar-se somente a angola-
representativa. Podemos realmente nos. As seguintes opiniões descrevem
olhar para indicadores estatísticos, esse sentimento:
mas vamos cingir-nos sobretudo a “É mau, é muito mau. Eu acho isso
uma análise qualitativa, que aponte como um indicativo de que as coi-
ou não na direcção indicada pelas hi- sas fugiram do controlo.” {homem,
póteses (sem as podermos comprovar 26 anos, estudante do ensino supe-
taxativamente). rior, Luanda}
Apesar de, inicialmente, parecer “Já há chineses a mais em Angola. A
não haver qualquer relação entre uma entrada de chineses em Angola, não
avaliação positiva dos contactos com foi esse o propósito. O Estado ficou
chineses e a aceitação da sua presença desatento. Estamos a ver que eles
em Angola, uma análise mais aprofun- vão se expandir até em negócios que
dada permite constatar que os entre- deveriam ser do próprio angolano,
vistados que avaliam positivamente pequenos negócios. Então já não é
a sua relação com chineses aceitam

14
Mas é preciso referir que a aceitação da vinda em massa de chineses para Angola não implica que
não se assuma uma postura crítica em relação a não se ter garantido à partida o respeito pelos interes-
ses angolanos. Voltaremos a este assunto adiante.
15
Zunga – venda ambulante (termo proveniente da língua kimbundu).
65
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

bom.” {homem, 42 anos, licenciado, A hipótese 4 do nosso estudo (uma


funcionário público, Caxito} hipótese adicional) diz o seguinte: A
“Esses chineses são ilegais, porque esperada contestação à presença chi-
não acredito que um chinês sai da nesa no mercado informal angolano é
terra dele, pega nas imbambas, independente da avaliação que se faz
arranja passaporte, arranja uma dos chineses e da cooperação com a
passagem e vem para Angola. Eu China.
acredito que uma boa parte desses De facto, tudo indica que exista esta
chineses, o que está a ocorrer é que ausência de correlação no seio dos
eles vieram aqui sem um controlo.” habitantes adultos das três cidades17.
{homem, 38 anos, 12ª classe, técni- Quanto aos resultados obtidos junto
co de construção civil, Caxito} deste grupo de entrevistados, apon-
tam exactamente na direcção indica-
Esta opinião ocorre nas três cida- da na hipótese de pesquisa: a rejeição
des objecto de estudo. São os homens à presença chinesa no mercado infor-
quem em maior grau se opõe à pre- mal é independente da avaliação que
sença chinesa no comércio informal16. os entrevistados fazem dos chineses,
Para além disso, quanto mais baixa a da presença chinesa em Angola e da
posição social e quanto mais baixo o cooperação de Angola com a China.
declarado rendimento, maior é o grau Perguntámos ainda o que o gover-
de aceitação de chineses no comér- no deveria fazer com o comércio in-
cio informal em Angola. A conclusão formal dos chineses. A opinião mais
aponta para o facto de os angolanos comum aponta na direcção de lega-
das camadas menos favorecidas de- lização e de criação de espaços apro-
monstrarem maior sentimento de priados para venda:
solidariedade e de compreensão em “Para prática da venda ambulante,
relação à necessidade que os chineses as administrações locais têm pres-
mais pobres têm de sobreviver. sionado as pessoas a legalizarem-
Eis os aspectos negativos referidos -se e tratarem da sua sanidade,
pelos entrevistados, em relação à pre- etc.” {homem, 49 anos, 12ª classe,
sença chinesa no comércio informal: jornalista, Benguela}
a) Os chineses tiram emprego aos “Eu como governante faria o se-
angolanos; guinte: primeiro registava todos os
b) Há falta de controlo governa- chineses que praticam este tipo de
mental; trabalho, zungar na rua; e depois
de os ter controlados, talvez achar
c) Há chineses a mais em Angola;
uma maneira de legalizar a sua ac-
d) Têm também vindo para Angola tividade para tirar algum benefício
chineses sem qualificação; disso.” {homem, 36 anos, 12ª clas-
e) Presença chinesa na prostituição; se, técnico de obras, Benguela}
f) Angola é um país vulnerável.

16
A opinião das mulheres a este respeito é mais neutra.
17
A análise de correlação não faz sentido neste estudo, uma vez que não trabalhámos com qualquer
amostra representativa.
66
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Mas há quem tenha referido ser Por outro lado, vimos que a maioria
preciso averiguar por que razão as dos nossos entrevistados considera legí-
pessoas zungam, apontando-se pois tima e concorda com a opção do gover-
para a necessidade de um sério estudo no angolano, de contratar o investimen-
sobre essa matéria. to chinês para reconstrução de Angola.
Dentre aqueles que se pronuncia- Os efeitos disso, aliás, estão à vista de
ram contra a presença chinesa no todos: estradas e pontes reconstruídas,
comércio informal em Angola, per- novas escolas, novos hospitais e novos
guntámos se o governo os deveria re- centros de saúde construídos por todo o
patriar. A esmagadora maioria (91%) país, vilas reconstruídas e novas cidades
é favorável ao seu repatriamento18. e novos bairros em construção, um pou-
co por todo o país.
Conclusão: Como é vista a O senão tem a ver com os termos
expansão chinesa em Angola desse acordo, que são desconheci-
dos do comum dos habitantes (e, se
A terminar, vejamos como é vista a
calhar, não deveriam ser desconhe-
presença chinesa em Angola (no pre-
cidos). Os entrevistados consideram
sente e no futuro), no quadro da prá-
que seria necessário garantir, à parti-
tica expansionista que referimos no
da, o controlo e a fiscalização cerrados
princípio.
sobre as obras feitas por empreiteiros
Os contactos com chineses são chineses. A debilidade dessa fiscaliza-
maioritariamente avaliados de forma ção conduziu, por exemplo, à declara-
positiva, seja no quadro de uma ava- ção de “impróprio para o fim destina-
liação global de cada um, seja no qua- do” em relação ao Hospital Provincial
dro das experiências que os entrevis- de Luanda19.
tados relataram. Num caso e noutro,
O que dizer, agora, em relação ao
as avaliações são mais positivas numa
futuro dessa cooperação? Haverá fu-
cidade de média dimensão (Bengue-
turo? Os angolanos consideram ser de
la), sendo bastante mais negativas em
manter a cooperação com a República
cidades de pequena dimensão, com
da China, ou acham que seria de aca-
presença chinesa (Caxito). Tudo indi-
bar com ela?
ca que as experiências negativas se-
jam mais difundidas e retidas durante Obviamente que as opiniões a este
mais tempo em comunidades de me- respeito estão diferenciadas. Mas
nor dimensão. Já numa capital cosmo- pode dizer-se que em cada dez en-
polita como Luanda, tal como era de trevistados, oito consideram ser de
prever, existe maior diferenciação de manter o investimento chinês em An-
opiniões do que em cidades de média gola. O sexo, o grupo etário e a posi-
e pequena dimensão. ção social parecem diferenciar clara-
mente esta opinião: são os jovens com

18
Alguns dos entrevistados falaram na necessidade e oportunidade de repatriamento, sem ter havido
necessidade de lhes perguntar a respeito.
19
“Isso foi evidenciado principalmente na construção do Hospital Geral de Luanda, que foi o caso
mais falado, mais badalado, de que nós temos cá os chineses de uma categoria muito baixa, muito
inferior aos próprios quadros angolanos, que já temos aqui formados.” {homem, 26 anos, estudante do
ensino superior, Luanda}
67
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

idade abaixo de 25 anos, as mulheres a) O desenvolvimento de Angola;


e os estudantes quem em maior grau b) A necessidade de acabarem as
considera ser de terminar com o inves- obras iniciadas;
timento chinês. Em contrapartida, os
c) A ausência de mão-de-obra qua-
entrevistados com idade acima dos 25
lificada em Angola;
anos, os homens e as elites são quem
mais considera ser de prosseguir com d) Não é possível, hoje, algum país
a cooperação chinesa, sendo porém deixar de cooperar com a China.
necessário rever os termos dessa coo-
peração, de modo que os angolanos Mas há quem considere que a coo-
deixem de ser prejudicados com a pre- peração de Angola com a China tem
sença massiva de mão-de-obra chine- os dias contados:
sa, que até começa já a ocupar espaço
no mercado informal angolano. Refe- “Essa nossa relação com os chine-
re-se também a necessidade de maior ses, eu vou-lhe dizer aí muito fria-
controlo e fiscalização sobre as obras mente que isso muito dificilmente…
chinesas, sendo até de rever os termos a relação com os chineses vai termi-
contratuais também nesse sentido. nar um dia, como terminou com os
As seguintes declarações compro- cubanos, com os soviéticos… É isso,
vam quanto acaba de ser dito: eu tenho muitas dúvidas de como
“Seria fundamental o investimen- não venha a terminar.” {homem, 38
to chinês aliado à formação do anos, 12ª classe, técnico de cons-
quadro nacional, que permitisse trução civil, Caxito}
a seu tempo ganharmos autono-
mia, e não estarmos num quadro Vejamos, pois, até que ponto se
onde teremos dependência to- comprova a nossa segunda hipótese: A
tal do investimento chinês. (…) opinião sobre a continuidade da coope-
Manter o investimento, manter a ração com a China é directamente pro-
cooperação, rever os termos da porcional à avaliação acerca da forma
cooperação, defendendo um qua- como se avalia essa mesma cooperação
dro onde o interesse nacional seja até hoje.
salvaguardado.” {homem, 48 anos, Comprova-se esta hipótese, uma
licenciado, historiador, Luanda} vez que (no seio dos entrevistados)
“O único problema que existe é, não existe relação entre a avaliação da
sei se a falha de fiscalização, se o tal presença chinesa e a possibilidade de
imediatismo, porque no meu ponto continuidade. Mas é preciso sublinhar
de vista acho que … a aposta foi cer- que se considera que a continuidade
ta porque são capazes de cumprir de cooperação deve necessariamente
prazos, mas também tenho certeza prever a revisão dos termos do acor-
que seriam capazes de cumprir os do, de modo a beneficiar em maior
prazos mesmo com uma fiscaliza- grau os angolanos (seja no acesso ao
ção rígida.” {homem, 36 anos, 12ª emprego, seja na limitação de movi-
classe, técnico de obras, Benguela} mentos no mercado por parte dos chi-
neses que vêm para Angola).
As razões evocadas para a continui- E o que dizer a respeito da prática
dade da cooperação são as seguintes: expansionista chinesa? Será que os
68
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

angolanos estão convencidos do su- “A China, digamos que tá abarro-


cesso da política expansionista chinesa tada, tem muito chinês na China,
em Angola, que se consubstancia numa de maneira que não precisam de
ideia crescente de dependência econó- carro para fazer engarrafamen-
mica e neocolonização (hipótese 3)? to. Então, é bem possível que eles
Não há dúvida em relação ao sucesso estão a pensar em colonização. É
da prática expansionista chinesa, mas bem possível que o próprio gover-
não se pode dizer o mesmo em relação à no chinês está a pensar nesta pos-
possibilidade de neocolonização de An- sibilidade de dispersar as pessoas
gola por parte da China. Somente 39% para emigrarem, muitas vezes sem
dos entrevistados consideram ser pos- currículo, sem qualidade nenhu-
sível tal neocolonização. É em Benguela ma.” {homem, 29 anos, estudante
que mais se considera essa possibilida- do ensino superior, Benguela}
de (seguindo-se Luanda), enquanto em Já quem está convencido de não ser
Caxito se considera que isso está fora de possível a neocolonização, considera
hipótese. Para além disso, são pessoas que o governo angolano controla a si-
com idade abaixo dos 35 anos e os estu- tuação, que os angolanos nunca permi-
dantes quem em maior grau considera a tiriam isso ou que os próprios chineses
hipótese de neocolonização. possam não estar interessados nisso:
As razões evocadas para a possibilida- “Tudo depende dos angolanos…
de de neocolonização são as seguintes: Esta presença não se revela a ní-
a) A vinda em massa de chineses; vel das instituições públicas, não.
Nós tivemos cooperação cubana,
b) Dependência económica da China;
que estava muito presente nas
c) Os chineses estão a ter filhos com
instituições com esta figura do
angolanas20;
assessor. Tivemos os soviéticos e
d) O caso angolano enquadra-se num temos ainda assessorias de vários
projecto mais amplo de expansão níveis, mas não se verifica isso a
chinesa em África. nível dos chineses. Portanto, utili-
za-se esse termo de neocoloniza-
Eis duas declarações que o demonstram: ção talvez baseado apenas no po-
“Acho que [a vinda em massa de chi- der económico que a China tem.”
neses] é mal. Tenho um tio que diz {homem, 52 anos, licenciado, ju-
que os chineses vão nos colonizar. rista, Benguela}
Sim, porque ele disse que estão a vir “Não julgo que [os chineses] se-
em muita quantidade, já encontra- jam um povo talhado para colo-
mos chineses em interior também.” nizar, ou neocolonizar no sentido
{mulher, 22 anos, 12ª classe, cabelei- que eu conheço. Agora, poderiam
reira, Benguela} estabelecer dependências e essas

20
Os entrevistados consideram em elevado grau não ser positivo os chineses fazerem filhos com
angolanas (o contrário quase não ocorre). São os homens e as pessoas das camadas sociais menos
favorecidas que em maior grau se opõem a essa possibilidade.
69
Paulo de Carvalho & Jarosław Jura

dependências poderiam talvez até CORREIA, Pedro de Pezarat


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Chinese in Angola
nicas (Luanda 2002 e Varsóvia 1990)
Abstract: e co-autor de Events over Endavours:
This paper is the result of a field stu- Image of the Chinese in Zambia and
dy conducted in summer 2013 in three Angola (Cracóvia, 2015). Foi agracia-
do com o Prémio Nacional de Cultura
Angolan cities: Luanda, Benguela and
e Artes de Angola, na modalidade de
Caxito. The objective is to discuss how
investigação em ciências sociais e hu-
Angolans perceive China and the Chi-
manas (2002).
nese today, and how this perception
E-mail: paulodecarvalho@sociolo-
may influence the future shape of Chi-
gist.com
na-Angola relations.
Key words: Cooperation, chinese
expantion, neocolonisation, Angolan Jarosław Jura
reconstruction Sociólogo, Doutor em Ciências Hu-
manas pela Universidade de Varsóvia
(Varsóvia, Polónia) e Mestre em So-
Paulo de Carvalho ciologia pela Universidade de Lodz. É
Sociólogo. Doutor em Sociologia Presidente do Instituto Sócioeconó-
pelo ISCTE–Instituto Universitário de mico de Perícia (ISEE, na sigla original
Lisboa (Lisboa, Portugal). Professor em polaco). As suas áreas de investi-
Catedrático na Universidade Agosti- gação são a Sociologia da Comunica-
nho Neto (UAN, em Luanda). Foi Rei- ção, a Antropologia Social, a ciência
tor da Universidade Katyavala Bwila cognitiva, a análise quantitativa de
(Benguela, Angola – 2009-2011), dados qualitativos, a China contem-
Director da Faculdade de Letras e porânea e as relações da China com
Ciências Sociais da Universidade África. Nos anos 2011-2014, dirigiu o
Agostinho Neto (Luanda, Angola – projecto intitulado “Imagem da China
2005-2006) e Vice-Presidente do Con- e dos Chineses e a interacção entre
selho da Universidade Pan-Africana Chineses e Africanos na Zâmbia e em
(Addis Abeba, Etiópia 2015-2017). É Angola”, financiado pelo Centro Na-
Deputado à Assembleia Nacional de cional de Ciência (Narodowe Centrum
Angola. Tem como principais áreas Nauki). É co-autor de Events over En-
de investigação: exclusão social, po- davours: Image of the Chinese in Zam-
breza, Sociologia Política, problemas bia and Angola (Cracóvia, 2015), em
sociais, normas de consumo, relações conjunto com Kaja Kałużyńska e Pau-
étnicas, delinquência e audiência de lo de Carvalho.
media. É autor, dentre outros, dos li- E-mail: jaroslaw.jura@gmail.com
72
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Mustapha Guenaou

Les romances
féminines et le jeu
d’escarpolette dans le
bassin méditerranéen
: Le “Hawfi” et le jeu
rituel de “Djoghlila” à
Tlemcen et son hawz

“« Le Hawfi ,romances
et poésie populaire d’expression féminine de Tlemcen ”
M.G.

Résumé
Cette contribution entre dans le cadre d’une série de publications relatives
au patrimoine culturel immatériel féminin de Tlemcen, ancienne capitale du
Maghreb central. Dans cet article, nous traitons le sujet de la poésie féminine,
communément appelée Hawfi.
Populaire, le hawfi présente des caractéristiques et des marqueurs socio
anthropologiques dont l’oralité chez les femmes. Ce patrimoine est transmis de
mère en fille, lors des rituels festifs familiaux et saisonniers, et surtout pendant
la célébration des fêtes populaires locales dont la tashwisha, réputée dans la
médina (intra muros) et le hawz (extra muros) du Tlemcenois.

73
Mustapha Guenaou

Mots-clés: Tlemcen, hawz, hawfi, caractéristiques dont sa constitution


patrimoine culturel immatériel, cris géologique, sa situation climatique,
rituels joviaux, femmes autres points stratégiques et détails
Plusieurs textes populaires qui, avantageux. Située à l’Ouest algérien,
typiquement tlemceniens, sont me- cette ancienne cité princière se veut
nacés de disparition dont la cause une aire culturelle dont sa population
revient à la non transmission de ce pa- ne cesse de contribuer, à travers
trimoine culturel, appelé patrimoine ses us et coutumes , en faveur de la
culturel immatériel. Il s’agit, donc, sauvegarde du patrimoine immatériel.
de ces beaux textes de Hawfi, des ro- Par son passé, nombreux sont les
mances féminines qui, généralement, poètes et les hommes de Lettres qui
sont des quatrains qui ressemblent se vantent de Tlemcen, carrefour des
aux « Quatrains d’amour des femmes cultures et des religions. D’ailleurs,
de Fez »(1). Alors, Tlemcen est très Tlemcen s’étend comme une fiancée
connue par son riche passé. Ancienne sur son lit nuptial, celui qui fait rêver
cité princière, elle fut, des décennies de nombreuses personnes dont les
durant, capitale du Maghreb central. panégyristes.
Ces textes de Hawfi seraient, Sa constitution sociale présente
jusqu’à preuve du contraire, ano- un brassage ethnique : des Hadars
nymes mais chantés par les femmes (2)et les Kouloughlis (3).Il faut noter,
de Tlemcen, uniquement. également, l’apport des Andalous
Ces compositions poétiques, ano- pour pouvoir rappeler la transmission
nymes et dans un parler local, appelé d’un capital social et culturel.
« El Ala », demeurent chantées, actuel- A cet effet, plusieurs métiers de
lement, par des chanteurs – interprètes l’art traditionnel ont trouvé place chez
femmes ; et elles conservent son cachet cette population cosmopolite, confir-
et sa particularité féminine, reconnus à mée par des historiens.
travers tout le territoire national. Ces
mêmes femmes chantaient, exclusive- Pour une définition du genre
ment, les sentiments dont l’amour et le « Hawfi »
bien aimé ; et ces textes sont des em- Devant un problème de définition,
preintes d’une spontanéité affirmée, nous avons puisé, lors de nos enquêtes
d’une fraîcheur confirmée. D’ailleurs, de terrain, quelques informations qui
elles lui confèrent un charme particu- puissent, sans nul doute, nous orien-
lier et exceptionnel. ter vers une meilleure présentation
Qu’est ce qu’est un hawfi ? Ses ca- de ce genre littéraire populaire d’une
ractéristiques ? Ses rites d’accompa- ville, alors connue sous l’appellation
gnement ? Ses portées ? de « Perle du Moghreb ».
Le Hawfi est un genre poétique, en-
Le Hawfi, un genre populaire de la tendu seulement à Tlemcen et dans
poésie d’une aire géo- culturelle son Hawz(4); mais il demeure très
Géographiquement, Tlemcen est une populaire dans les milieux féminins.
localité qui se distingue par quelques D’ailleurs, il ne fut jamais chanté dans

1
Cf El Fassi (M):Chants anciens des femmes de Fez.Paris, 1967
2
les citadins
3
les Ottomans issus de mères algériennes
4
Environs du chef lieu ,Tlemcen
74
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

les cafés – maures ni dans les soirées finition et les fonctions du hawfi dans
musicales de famille. Essentiellement le milieu féminin de Tlemcen, ville
populaire et féminin, il prit place dans princière de l’époque zianide :
la poésie vulgaire locale et ne fut ja- « Si tu chantes le hawfi , je
mais accompagné d’un instrument. chanterai avec toi
L’usage de la voix féminine est recom- « Et si tu lances des youyous,
mandé, voire exigé. En tant que créa- je te répondrai
tion et produit culturels anonymes,
« Tu es le basilic dans le vase,
il se présente avec un chant féminin
et moi la rosée qui t’arrose
exceptionnel, connu par son « rih »(5).
C’est une poésie de jardin et de sorties « Je t’arrose afin de te don-
champêtres, appelées « ziara » pour ner l’éclat de la menthe et la
les pèlerinages des marabouts (6) et verdure à tes rameaux
« zerda » pour les fêtes familiales hors « Et j’implorerai mon Dieu
maisons (7). pour te ramener chez toi. » (9)
Tlemcen est considérée comme
foyer, une terre de la promotion du Alors, que les femmes traitent, éga-
genre Hawfi. D’ailleurs, nombreux lement, les thèmes de la jalousie et
sont les écrivains qui rappellent que des co- épouses :
cette ancienne capitale zianide, un « J’ai chanté, sur la co –
centre de rayonnement culturel, épouse de mon mari, un hawfi
est la patrie d’origine du Hawfi. Ibn sans aucune conviction
Khaldoun, lui aussi, en parle dans sa « Je souhaite, ô co- épouse,
« Moqqadima » (Les Prolégomènes !). que tu sois découpée en ron-
Demeurant un chant tlemcenien, il delles pour un ragoût d’auber-
constitue les chansonnettes favorites gines
des jeunes filles, voire les femmes du
Tlemcenois. « Je souhaite, ô co- épouse,
que tu sois comme une frite dans
Lors de notre enquête de terrain, l’huile
nous avons rencontré des textes,
presque identiques, à Alger et Blida. « Je souhaite, ô co- épouse,
Il s’agit de la « Bouqala ».Une diffé- que tu sois jetée en prison
rence réside entre le « Hawfi » et la « Je souhaite, ô co- épouse,
« Bouqala » : le premier est chanté et que je te conduise, comme une
accompagnant le jeu de la balançoire aveugle. »
ou de l’escarpolette (lors des sorties
champêtres !) et le second est dit et Ce genre de poésie populaire de
accompagné d’un jeu de nœud (8). type féminin occupe une place impor-
Une similitude est à mettre en relief : tante dans la société de l’ancienne ca-
le « Hawfi » et la « Bouqala » sont les pitale du Maghreb Central:
propriétés exclusives des femmes.
« J’ai chanté, sous le soleil
A titre d’exemple, nous évoquons brûlant, les hawfi-s, qui ont fait
ces quelques textes qui assurent la dé-

5
Air du chant particulier
6
Uniquement les femmes et les enfants qui assistent, alors la présence masculine est réduite.
7
Dans les grands festins de familles, la présence masculine est recommandée.
8
Lors des veillées familiales à l’intérieur des maisons , elle est le jeu de divination.
9
Plus de six versions.
75
Mustapha Guenaou

tomber les feuilles du mûrier voir ! Et donc, je m’en vais. (12)


« Le raisin au treille, et les
poissons dans la rigole Et enfin, le hawfi occupe une place
Ceci concerne le fils de ma dans les coutumes religieuses des
mère, et la mort à celui qui veut Tlemceniens, donc des femmes éga-
mourir ! » (10) lement :
« ô Bonnes gens, c’est le jeudi
que partiront les pèlerins,
A travers quelques textes recueillis,
les us et coutumes sont décrits, avec « D’ici jusqu’à la tombe
tant de détails : du Prophète, avec les chants
« Relevez- vous pour aller du hawfi et l’Ascension du
dormir, assez de chanter le Prophète. »
hawfi !
« Laissez reposer les L’origine du Hawfi
membres fatigués, puisque Le vocable « Hawfi » tire son origine
demain vous allez vous lever du verbe « Hawwafa » qui avait donné
difficilement. » « ta’houâf ».
L’histoire locale fait remonter la ri-
Même dans les textes , les femmes chesse culturelle de Tlemcen à un pas-
prennent une place primordiale et se sé lointain. Ce genre poétique serait
comportent comme des hommes de- originaire de l’Andalousie. Sâadeddine
vant toutes les formes de responsabi- Bencheneb avait avancé une explication
lités qui leurs sont attribuées , sociale- qui serait, sans nul doute, la plus appro-
ment, voire culturellement. priée : « Ce n’est pas impossible…Entre
D’ailleurs, elles peuvent être pro- le hawfi (de Tlemcen), le muwâl d’Orient
priétaires de biens immobiliers et de et le (muwashshah) d’Espagne, le rappro-
grands et vastes jardins. A cet effet, chement établi par Ibn Khaldoun doit être
elles deviennent, par la coutume, la retenu, non seulement pour expliquer la
maîtresse de grands « Riath »s (11) : métrique du hawfi, mais aussi pour expli-
« Propriétaire de ce jardin ! quer l’origine de ce genre poétique. Il pa-
Ma haie est à côté de la tienne raît fort probable que (la bouqala ) d’Alger,
de Blida ou d’ailleurs est indépendant de
« Moi, j’ai pris le plus beau,
celui de Tlemcen. Ce genre est une forme
celui qui a inquiété ton cœur
altérée, popularisée du (muwachchâh)
« Propriétaire de ce jardin ! andalou. »(13)
Pourquoi es- tu fâchée
A cet effet, le Hawfi devient l’apa-
« Si c’est pour les fruits, moi, nage des Tlemceniennes , tout en
je suis rassasiée étant un héritage andalou et un legs
« Si c’est pour le hawfi, moi, poétique ancestral, chanté unique-
je suis fatiguée ment par les jeunes filles et les jeunes
« A cet effet, je te dis au re- femmes .

10
Plus de deux versions
11
Jardins immenses
12
Plus de trois versions
13
Bencheneb (S) : Chansons de l’escarpolette , in RA ,1945, pp90-2
76
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Les caractéristiques du Hawfi - L’anonymat du texte


Généralement, le Hawfi se présente Tous les textes sont anonymes
comme un texte poétique qui se ca- mais ce qui est important à signaler
ractérise par : c’est que les auteurs, malgré leur ano-
nymat, restent des Tlemceniennes à
- La popularité du genre
cause de leurs manières de composer
Mostefa Lacheraf veut , à travers les Hawfis et surtout l’usage du voca-
ses écrits, rappeler que « Les chan- bulaire local qui fait partie , essentiel-
sons de jardin et les poèmes allégo- lement, de leur culture ancestrale et
riques qui ont un charme étrange leur langue vernaculaire.
et sybillin, ne sont connus que des
- Le nombre réduit des vers
femmes, chantés (…)par elles seules
A travers le corpus, les textes ne
au cours des parties de balançoire
peuvent dépasser les sept vers. Géné-
(…). Cette poésie possède, par ailleurs,
ralement, ces textes des quatrains et
le même cachet, son lyrisme est à peu
des sizains.
près le même à Alger, à Blidah, à Tlem-
cen et à Fez. On y trouve comme une - La langue vernaculaire
survivance de l’inspiration florale et Dans les textes, nombreux sont
souvent bachique- oh ! très peu – qui les mots utilisés, en usage, principa-
fut longtemps l’apanage des poètes lement, dans le parler local, appelé
arabes d’Espagne et surtout des au- communément « El Ala ». Cet usage
teurs de « Zadjal ». Ce genre poé- facilite, essentiellement, la compré-
tique- le Zadjal- qui fut très ( bien ap- hension des vers, voire la transmission
précié et ) en honneur dans les classes linguistique et culturelle.
populaires d’Andalousie, était com- - La spécificité de l’usage
posé dans la langue vulgaire des cita- N’ayant jamais fait l’objet d’une
dins, un arabe mêlé de roman, et res- évocation quelconque dans les
pectait tant bien que mal la prosodie concerts de cafés maures de Tlemcen,
classique. Si la poésie populaire algé- le hawfi demeure un genre poétique
roise ou tlemcenienne d’expression exclusivement féminin.
féminine n’a plus qu’un vague rapport
de forme avec le zadjal hispano arabe, - Les saisons
en revanche, il existe entre elle et les Pour les sorties champêtres et les
« coplas (sic !)» andalouses modernes, pèlerinages populaires ou « ziara », les
jeunes filles et les femmes choisissent
une ressemblance frappante. »(14)
bien les endroits et les belles journées
des deux saisons, recommandées
- La citadinité du texte pour les divertissements et les dé-
Le texte hawfi , de création fémi- tentes à savoir les jours ensoleillés du
nine et anonyme, présente les ca- printemps et de l’été.
ractères d’identification des compo-
siteurs à travers la formulation du - Les lieux et les occasions de
vers et un vocabulaire , en usage à son usage
Tlemcen dont la population est cita- William Marcais est l’un des écri-
dine par sa composition sociale et ses vains qui aurait accordé une grande
critères culturels. importance à ce genre de la littérature

14
Mostefa Lacheraf : Chansons des jeunes filles arabes, Paris, pp9 et ss
77
Mustapha Guenaou

populaire. A cet effet, le hawfi « a une chaque fille dit son couplet en repre-
place d’honneur, dit- il, dans la par- nant le premier vers- refrain. Il y a donc
ties de plaisir dont, comme au temps une unité dans le thème aussi bien que
de Nausicaan, la lessive est encore dans le rythme de sorte qu’on a de vé-
aujourd’hui l’occasion pour les Tlemce- ritables strophes et anti- strophes, une
niennes. »(15) Il est chanté, seulement suite poétique et musicale comparable
par les jeunes filles et les « chabbats » aux séguedilles. » (20)
(16)dans les jardins, voire toute la Quant à Jean Despamet , il rapporte
campagne du Tlemcenois. que ce genre poétique est « un chant
- Le chant féminin avec un air ex- entonné par les femmes lorsqu’elles
ceptionnel se rendent en promenade aux cas-
Pour l’air musical, le Hawfi , écrit cades avoisinant des marabouts ain-
William Marcais , est « chanté dans si qu’aux sources proches des sanc-
un mouvement très lent accompagne tuaires. Au printemps, en été et en
le va et vient de l’escarpolette primi- automne, elle le chantent aussi lors-
tive »(17). Chanté, généralement par qu’elles se balancent sur l’escarpo-
les jeunes filles et les femmes (18), il lette : sa corde est de chanvre ; on
devient leur propriété exclusive. y fixe pour s’y asseoir une peau de
mouton (Haydoura !) garnie de laine
Le jeu rituel de « Djoghlila » ou un petit matelas. Les femmes sus-
Le jeu de la balançoire ou de l’es- pendent l’escarpolette après le déjeu-
carpolette est un divertissement et ner : l’une d’entre elle s’y installe et les
un rite d’accompagnement dans la vie deux autres la poussent de leurs mains
sociale et culturelles des Tlemcennie- pour lui donner l’élan. Toutes les trois
nes . Pour cela, William Marcais écrit: chantent le tah’ouaf et chaque fois
« Pendant l’été, le jeu de la balançoire, qu’elles ont terminés elles donnent
dit-il, est la grande distraction des libre court à leurs youyous. Chacune
femmes de Tlemcen. Cette balançoire des femmes monte, à tour de rôle
est fort simple : une corde attachée à la sur l’escarpolette. Il y a de nombreux
branche solide d’un figuier offre dans sa tah’ouafs. Les fillettes les apprennent
courbe un siège improvisé. » (19) dès leur enfance. »(21)
Puis, Saâdeddine Bencheneb lui Emile Dermenghem rappelle, lui
consacre un travail en vue de la pré- aussi, que : « le jeu de l’escarpolette
sentation suivante : « le hawfi pré- est accompagné de chansons alter-
sente des caractères propres ; c’est un nées, courts poèmes gracieusement
jeu poétique avec des alternances com- fantaisistes, par les petites filles : c’est
parables à celles des Bucoliques de Vir- le genre haoufi (tahouâf, tahouîf) qui
gile. En s’installant sur l’escarpolette, sert aussi devant les cascades. »(22)

15
Marcais (W) : Le dialecte arabe parlé à Tlemcen,Paris,pp 205 et ss
16
Les jeunes femmes
17
Marcais (W) : Le dialecte arabe parlé à Tlemcen,Paris,pp 205 et ss
18
Surtout les femmes ,nouvellement, mariées.
19
Marcais (W) : Le dialecte arabe parlé à Tlemcen,Paris,pp 205 et ss
20
Bencheneb(S) : les chansons d’escarpolette, in RA, 1945, pp90 et ss
21
Desparmet(J) : Coutumes , institutions, croyances des indigènes de l’Algérie,TI,pp230 et ss
22
Dermenghem(E) :Le culte des saints, p127
78
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Pour une meilleure compréhension, Les cris rituels joviaux,


nous avons choisi quelques textes du accompagnant le hawfi
hawfi qui décrivent l’ambiance qui ac- Ces cris de joie, communément ap-
compagne le jeu de l’escarpolette : pelés des « youyous », accompagnent,
« Ma fillette est sur l’escarpolette ; toujours, les parties de « Djoghlila »,
(et) son caftan est amarante ce jeu rituel d’escarpolette.
« Prévenez son cousin paternel ; Arabo- musulmanes, les femmes
afin qu’il se hâte et arrive très tôt expriment leurs joie et allégresse
« Pour donner cent sur cent (bi- par des « youyous », communément
joux en or) ; et les perles d’Alep appelés « tsaoualouil » (25). C’est un
« Pour donner cent sur cent (bi- nom commun masculin onomatopée,
joux en or) ; et une servante pour défini comme étant un «cri poussé
élever (ses enfants) » (23) par les femmes arabes à l’occasion de
certaines cérémonies.»
Une autre version met en relief la Ce cri, devenu une habitude chez
beauté de ces jeunes filles, montées la femme tlemcennienne, comme la
sur la corde de l’escarpolette : plupart des Algériennes. Son origine
« Ma fillette est sur l’escarpo- remonte à plusieurs siècles ; mais il fut
lette, (et) ses cheveux sont dé- distinctif puisqu’il diffère d’une femme
noués à une autre et d’une aire culturelle
« Et rappelez le cousin paternel à une autre. Ce changement a pour
afin qu’il fasse (vite) pour ouvrir source la manière d’exprimer la joie
le coffre chez la femme qui ne peut le dissocier
de sa propre culture.
« Pour donner cent sur cent (bi-
joux en or) ; et cent (pièces d’or) Le « youyou » est –il un hurlement
pour le Abrouq féminin ou des hululements, en prove-
nance des femmes qui, en possession
« Pour donner cent sur cent (bi- de bonnes cordes vocales. Il garde un
joux en or) ; et une servante qui nombre de secrets que chacun de nous
élève (ses enfants) . » ne pourra le définir ou l’expliquer. Il est
à noter, uniquement, que les femmes,
Alors, l’escarpolette est aussi un seules, peuvent détenir cette tech-
jeu féminin, comme le décrit cette nique vocale pour permettre de trans-
version : mettre ce cri de joie, accompagné de
« L’escarpolette, ô les jeunes quelques « khanats » ou « zouaqats »
femmes ; mon ami est parti que nous retrouvons dans la musique
pour étudier ancestrale : l’andalou ou la musique
« Habillé de son haïk de soie ; (et) arabo - musulmane.
monté sur sa mule alezane Ce phénomène s’explique par un
« Sa planchette est d’or ciselé ; et fait purement social et culturel. D’ail-
son encrier est de couleur argentée leurs, la « tsoualouila » tlemcenienne
« Que Le Créateur puisse l’assis- présente une particularité exception-
ter afin de (bien )apprendre la nelle qui se distingue par le son vocale
Sourate « El Baqara » (24) féminin et son cachet typique.

23
Plus de six versions
24
Le chapitre coranique de « La Génisse ».( plus de six versions)
25
Au singulier : tsaoulyouila
79
Mustapha Guenaou

En tant que moyen d’expression, est, avec observations, conforme à un


le « you you » diffuse, à travers sa rite et il est, également, régi ou réglé
portée socio- culturelle, un message, comme un rite.
bien défini dans la communication. De cette spécificité sociale et cultu-
Conservant sa nature et son origine relle, il engendre une coutume qui le
d’onomatopée, il assure une diffusion, régit pour devenir répétitif au niveau
purement vocale. Pour mieux cerner de sa pratique, reconnue comme so-
ce vocable, il reste propre aux femmes ciale et culturelle. Par cette manière
et fait partie des legs culturels, alors de régie, socialement et culturelle-
transmis d’une génération à une autre. ment, il devient un ensemble de cris
Devenu très familier dans la socié- courts en se succédant chronologi-
té arabo- musulmane et pour toutes quement dans un même temps ; puis,
les sociétés humaines du Maghreb, le il se répète après un temps très bref.
« youyou » s’affirme pour une identi- Dans la culture locale, il est rituali-
fication socio- culturelle. Considéré sé, donc réglé socialement et culturel-
comme cri désacralisé, il entre dans lement, voire codifié à la manière de
le domaine de la culture populaire rite qui se diffuse à travers cette ma-
que les ethnologue n’ont pu entamer nifestation.
des recherches pour pouvoir dévoiler
Une « tswalwila » est une succes-
les secrets de ce cri habituellement
sion de cris de courtes durées. Dans cet
et culturellement transmis de mère
ordre d’idée, il conserve les traits du
en fille. D’ailleurs, les hommes n’ont
ritualisme qui n’est qu’une chronolo-
jamais fait de tentatives dans ce do-
gie de cris courts et identiques comme
maine, purement féminin.
si c’étaient des rites qui sont poussés
En tant que cri, habituellement jusqu’au respect d’un formalisme de
transmis, il fait partie de ces phéno- type uni. Le « youyou » est rituellement
mènes traditionnels de la société hu- codifié pour l’accomplissement de
maine qui fait l’objet de notre travail cette action, purement culturelle dans
de recherche universitaire. Il n’a ja- une société humaine, occupant une
mais été un cri de joie dans le domaine grande place dans une aire géo- cultu-
de la religion musulmane. Pourra – t- il relle particulière : Tlemcen, ancienne
être considéré comme folklore d’une capitale du Maghreb Central.
aire géographique et culturelle ?
Le « youyou »est un cri rituel. Dans Le Hawfi parmi les autres genres du
chaque manifestation culturelle, la patrimoine immatériel local
femme, en général, exprime sa joie Dans la culture populaire de
par ce cri, appelé communément Tlemcen, nous relevons :
« Tswalwil ». Par la force des choses,
il devient un cri rituel, alors très ré- - « El M’hadjia » (26)
pandu au sein de la société humaine - « El Fekk » (27)
que nous étudions. Par cette notion - « El Mâani » (28)
de rituel, il faut entendre un cri qui

26
Les contes populaires
27
Les énigmes populaires
28
Les proverbes populaires
80
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

- « El Aâroubi » (29) - L’usage d’un dialogue entre deux


- « El Hawzi » (30) jeunes filles, en plein échange de
- « El Gharbi » (31) vers et de textes poétiques du
- « Es Samâa » (32) « hawfi » et lors du jeu de « Djo-
ghlila » (42).
- « El Moud’hikats » (33)
- « Et Tnèz » (34) A titre indicatif, nous avons relevé
ce qui suit :
- « Ez Zadjal » (35)
- « Es San’âa » (36) « Toc-toc !, Elles ont dit : « Qui est
là ? » ; On a répondu : « C’est la belle-
- « El M’dih » (37) mère qui vient d’arriver »
- « El Melhoun » (38)
« Que dois- je lui préparer pour
- « El Hawfi » (39) s’asseoir ? ; je lui mettrai des « tel-
- « El Mouachchah » (40) lis »(43) les uns sur les autres.
- etc. (41) « Et je lui mettrai sous sa tête ; un
oreiller de « diss » (plante sauvage !)
Le Hawfi et la communication « Que dois – je lui préparer à man-
Lors d’une sortie champêtre hors ger ? ; un bon plat de scarabées noirs .(44)
d’Ain El Houts, dans le hawz de Tlem- Et,
cen, nous avons assisté à plusieurs « Toc-toc !, Elles ont dit : « Qui est
parties d’escarpolette et fait quelques là ? » ; On a répondu : « C’est la mère
observations scientifiques relatives à : (45) qui vient d’arriver »
- l’usage des techniques de la com- « Que dois- je lui préparer pour
munication. s’asseoir ? ; je lui mettrai des
- L’usage des principes de la com- « matrahs »(46) les uns sur les autres
munication.

29
Un genre poético- musical
30
Un genre poético- musical
31
Un genre poético- musical
32
Un genre de chants religieux des zaouiate
33
Les blagues populaires
34
La satire populaire
35
Un genre poético- musical
36
Un genre poético- musical
37
Un genre de chant religieux
38
La poésie populaire chantée
39
La poésie populaire, exclusivement féminine
40
Un genre poético- musical
41
Cf. Saidi Mohammed, op. cit.
42
Le jeu de l’escarpolette
43
Le « Tellis » (plur. Tleliss », un genre de sac
44
Plus de deux versions
45
une culture : « mouima » peut désigner la mère ou la grand- mère. L’usage du diminutif pour la considération
sociale et culturelle
46
Un genre de matelas
81
Mustapha Guenaou

« Et je lui mettrai (sous sa tête) ; un - les souhaits,


oreiller de « diss » (47) - les vœux,
Que dois – je lui préparer à déjeu- - la jovialité,
ner ? ; un bon plat de « tadjine » (48) .(49) - la tristesse (à la suite du départ
du bien – aimé !),
Les portées du Hawfi
- les pèlerinages des lieux saints et
A travers le corpus, alors consti- sorties champêtres ( touiza, zia-
tué, nous avons relevé quelques re- ra, zerda, etc.),
marques d’ordre socio –anthropolo- - la richesse ( culture , patrimoine,
gique et linguistique. Plusieurs textes etc.),
décrivent le mode de vie local et les
- l’humilité,
comportements socio- culturels de
sa population. Des descriptions qui - la piété,
encouragent la recherche scientifique - la religiosité,
pour une interprétation, purement - les regards,
culturelle. - les jardins (cour de maison tradi-
tionnelle, riath, etc.),
Un grand nombre de thèmes est - la beauté (masculine et fémi-
recensé : nine) ,
- la maison traditionnelle, - l’ornement et les bijoux,
- le bien – aimé, l’invocation d’Al- - les fleurs,
lah (Le Tout Puissant !),
- l’amour et le désir,
- le culte des saints (Sidi Boume-
diène, Sidi Abdellah, Sidi Moham- - le don et l’échange ,
med Ben Ali, Lalla Setti, etc.), - la joie et la tristesse,
- le paganisme, - les bienveillances et les bien-
- le cousinage, séances,
- le salut, - les souvenirs,
- les sentiments, - les faveurs et les vertus de
- les lieux – dits et toponymes (le l’amour,
pont , les cascades , - le pouvoir et le devoir de l’amour,
- les sources, - les saisons,
- Ain El Hûts , - les accordailles et les épousailles
- Tlemcen, ( depuis le choix de l’époux),
- El Eubbad, etc.), - les forteresses,
- les intercessions, - les prières,
- les oiseaux (le pigeon voyageur, - les fêtes populaires et religieuses,
la tourterelle, etc.), la balançoire (50),
- les légendes (Roh El Ghrib !), - le charme,
- les implorations, - la solitude,

47
Une plante sauvage
48
Un plat traditionnel ( base :la sauce et la viande rôtie)
49
Plus de deux versions
50
La pièce maîtresse du hawfi
82
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

- les rappels, des romances féminines. Il s’agit des


- la vie des souverains, sorties champêtres en famille dans le
- les anthroponymes et les mé- Hawz, et plus particulièrement à Ain
tiers, etc. El Hûts et ses environs qui offrent, en-
core, un beau paysage, en cette saison
Ces morceaux rappellent plusieurs du printemps.
traditions tlemceniennes, menacées
de disparition de cette ville des arts A cet effet, « ces poèmes étaient
et de l’Histoire, Tlemcen, berceau du destinées, écrit Mohamed El Fassi, à
savoir et la culture populaire, sous ses être chantés dans les parties de plaisir
diverses formes. organisées par les familles dans les jar-
dins qui entourent la ville de (Tlemcen,
En entendant ces romances fémi- ancienne capitale zianide).Les jeunes
nines, les souvenirs d’enfance me re- filles montées sur des balançoires
viennent comme si c’était hier. Les s’adonnaient à leurs ébats et chacune
femmes animaient leurs moments de entonnait un (morceau du « Haw-
travail par une allégresse et une am- fi »)….. du répertoire commun qui se
biance due à ces chants, ces morceaux transmettait oralement de génération
du Hawfi, patrimoine transmis de à génération sans que l’on en connût
mère en filles. Il s’agit, donc, de l’ani- jamais le véritable auteur. » (51)
mation lors des « zerda » , « ziara »,
« touiza », etc. Il y avait, par ailleurs, certaines per-
sonnes qui, selon un témoignage, au-
Ces textes étaient, essentiellement, raient, eux-mêmes, composé quelques
destinés à être chantés lors des cam- morceaux ou quatrains hawfi.
pagnes de solidarité sociale : le lavage
de laine pour une future mariée, la A la fin de chaque texte du Haw-
préparation du couscous pour une fi , la fille , accompagnées des autres,
prochaine fête familiale ou patronale. femmes et fillettes, lançaient , en
Ils sont également chantés, pendant chœur des « twèwilatse » (52)comme
la « tsech-wicha », une fête socio reli- ce fut le cas à Fez ; « A la fin de chaque
gieuse pour les unes et socioculturelle Aroubi , ajoute l’auteur de - Chants an-
pour les autres, organisée seulement ciens des femmes de Fez- les jeunes
à « Ain El Hûts », le huitième jour de filles et les femmes présentes poussaient
la date anniversaire du Prophète Mo- en chœur des cris de joie : ces you – yous
hamed (QSSSL). Il fallait être présent que l’on entend résonner chaque fois que
pour ne pas rater cette ambiance et l’âme (feminine) exulte d’enthousiasme
pour croire, effectivement, ses yeux. et de bonheur. Si l’on songe que cet écla-
D’ailleurs, cette « tsech-wicha »était, tement de joie se produisait en général
annuellement, organisée près du au printemps, parmi les fleurs odorantes
mausolée de Sidi Mohamed Ben Ali, et multicolores, à l’ombre fraîche des
descendant des souleimanides, chorfa orangers, on aura une idée du charme
que revêtaient ces élans poétiques. »(53)
du Maghreb.
Nombreux sont les textes de ce pa-
Une autre occasion était offerte
trimoines qui, malgré la sauvegarde de
pour écouter ces beaux morceaux quelques morceaux par nos aînés, sont

51
El Fassi (M) : Chants anciens des femmes de Fez, Paris, avec lecture pp50 et ss
52
Les cris de joie ou you yous
53
El Fassi (M) : op.cit.
83
Mustapha Guenaou

considérés comme disparus. m’avait pris plus d’une décennie ; mais


Lors de mes recherches et mes ma satisfaction personnelle réside
contacts avec le milieu familial, j’ai pu, dans le fait d’avoir pris l’initiative d’al-
une décennie durant, recueillir, avec ler, à travers la recherche, à sauver un
l’accent tlemcenien , les quelques textes patrimoine, aujourd’hui en voie de dis-
que je présente , après les avoir tra- parition , et surtout profaner le milieu
duits de l’arabe dialectal de l’ancienne féminin. Nous encourageons toute
capitale des Abdelouadides , princes initiative qui touche le patrimoine
de Tlemcen. Il a fallu les recueillir de la culturel immatériel, la collecte, l’étude
bouche des femmes qui seraient les der- et l’analyse de tout corpus.
nières à posséder un riche répertoire ou Nous avons investi ce milieu in-
par enregistrement audio de certaines
terdit aux hommes pour déterminer
femmes, aujourd’hui décédées.
quelques axes, fondamentalement
Pour cela, je reprends les observa- reconnus, en faveur de l’investigation
tions de Mohamed el Fassi. « Ces Arou- scientifique pour pouvoir contribuer
bis , dit – il , que j’ai recueillis depuis une à une forme de sauvegarde de la mé-
trentaine d’année de la bouche même moire tlemcenienne , algérienne voire
des femmes qui les savaient encore
maghrébine. Il est tant à sauvegarder
sont presque complètement perdus au-
ce qui reste à sauver de la culture de
jourd’hui. Bien que composés et chantés
l’oubli ou de la culturocide.
exclusivement par les femmes, certains
d’entre eux donnent l’impression qu’ils Nous avons relevé les caractéris-
expriment les sentiments d’un amou- tiques de ce genre poétique , exclu-
reux pour sa belle (ou vice versa !) ; ceci sivement féminin, les diverses ver-
provient uniquement de la tradition sions de textes, son association avec
arabe qui parle de l’être aimé d’une fa- les rites dont celui de la « Djoghlila »,
çon absolue, en employant pour cela le ce jeu d’escarpolette , une forme de
masculin (ou le féminin !). Et c’est ain- divertissement et de détente en voie
si que beaucoup de grands poètes ont de disparition.
chanté l’amour qu’ils éprouvaient pour Le répertoire reste à enrichir par
leur bien – aimées en excluant l’emploi la contribution des chercheurs et
du féminin. Ici nous sommes en pré-
des profanes puisque ce genre est,
sence du phénomène opposé ; ce sont les
à ce jour, un chant de l’escarpolette
femmes qui parlent de leurs amours en
qui traite des thèmes d’ordre socio-
employant le féminin. »(54)
culturel et anthropologique et qui
Ces morceaux comptent, parfois, s’accompagne par des cris joviaux.
plus ou moins quatre vers ; mais, il faut La langue du texte hawfi est verna-
le remarquer qu’ils sont construits de
culaire, conservant le cachet et l’ac-
telle manière à ce qu’ils respectent la
cent tlemceniens, avec la théma-
métrique propre à ce genre de compo-
tique qui reflète, essentiellement,
sition poétique.
les particularités de l’aire géo- cultu-
relle telles que le vocabulaire, trans-
Conclusion
mis de mère en fille.
Cette contribution est une étude,
En tant que poésie populaire, ex-
basée sur le travail de terrain qui

54
ibidem
84
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

clusivement féminine et maghrébine, Bibliographie


le hawfi est une forme expressive En langue française
de sentiments qui perpétue , princi-
Bel (Alfred)
palement, les us et coutumes , les
La population musulmane de
manières et les formes d’expressions Tlemcen in REES n° 4-5 ,avril-mai
culturelles , voire les valeurs sociales, 1908, pp200-25 n° 9-10, septembre -
psychologiques, culturelles afin de octobre 1908,pp417-47 (textes réunis
présenter, avec beaucoup de détails, en un seul volume)
les valeurs morales, familiales, so-
ciales et culturelles. L’apport anthro- Belhalfaoui (Mohammed)
pologique est d’une grande impor- La poésie arabe maghrébine d’ex-
tance pour ce type de poésie, laissée pression populaire.(textes arabes et
traduction française) Paris, Maspé-
aux bons soins des femmes qui s’ex-
ro, 1973,206p - Benachenhou (Ab-
priment par le chant, les jeux et cris delhamid)
joviaux féminins.
Connaissance du Maghreb - Alger,
A travers ces sorties de divertisse- EPA, 1971,411p
ment et de détente, la femme devient Bencheikh (Jamel Eddine)
une pédagogue, celle qui enseigne « Hawfi » .in Encyclopédie de l’Is-
toutes les valeurs des tlemceniennes. lam - Paris-Leyde, Maisonneuve-Brill,
D’ailleurs, cette forme d’enseigne- 1966,TomeIII,pp298-300
ment se transmettait d’une généra- Bencheneb (Mohammed)
tion à une autre : c’est les principes de -Proverbes arabes d’Algérie et du Ma-
la transmission culturelle du legs an- ghreb - Paris, Leroux, 1904-7 trois tomes
cestral qui favorise, principalement, le -Mots turks et persans conservés
comportement et la manière de vivre dans le parler algérien - Alger, Car-
en harmonie dans le milieu féminin. bonnel,1922,88p
Ces principes perpétuent le savoir so- -« Muwashshah » in Encyclopé-
cial et culturel des ancêtres dont l’His- die de l’Islam Paris-Leyde, Maison-
toire le fait remonter à la civilisation neuve-Brill, 1936,TomeIII,pp849-51
arabo- musulmane de l’Andalousie. Bencheneb (Sâadeddine)
Le dialecte tlemcenien s’impose Chansons de l’escarpolette - in RA,
dans la langue vernaculaire locale : 1945,pp90-2
l’usage des mots d’origine arabe, per- Boudjedra (Rachid)
sane, turque, etc. La vie quotidienne en Algérie au-
Les méthodes d’investigation et les jourd’hui - Paris, Hachette, 255p
outils de collecte, de sauvegarde , de Chevalier (J.) et Gheerbrant (A)
transmission et d’analyse restent à Dictionnaire des symboles - Paris,
développer pour pouvoir approfondir R.Laffont, 1982, 1060p
l’étude de la corrélation qui peut exis- Dermenghem (Emile)
ter entre le texte anonyme du hawfi, Le Culte des saints dans l’Islam ma-
le folklore, la pratique culturelle et le ghrébin - Paris Gallimard,1954,351p
type d’organisation socio- culturelle Desparmet (J)
à Tlemcen. Cette contribution reste, Coutumes , institutions, croyances
humblement, une ébauche pour l’an- des indigènes de l’Algérie - Alger, Car-
thropologie tlemcenienne ou le projet bonnel, 1948, 326p (Tome I)
de la tlemcenologie. Djeghloul(Abdelkader)
85
Mustapha Guenaou

Eléments d’histoire culturelle algé- Sari (Djilali)


rienne - Alger, ENAL,1984,244p Tlemcen, la cité –patrimoine à sau-
El Fassi (Mohammed) vegarder - Alger, ANEP,2006,117p
Chants anciens des femmes de Fez Tahar (Ahmed)
- Paris, Seghers, 1967,119p La poésie populaire algérienne
(melhoun)
Hamidou (Abdelhamid) Alger,SNED,1975, XVp+ 420p
- «Aperçu sur la poésie vul- Yelles Chaouch Mourad
gaire de Tlemcen » in RA Le Hawfi.poésie féminine et tradi-
1936,pp1007-46 (TomeII) tion orale au Maqghreb
- «Devinettes populaires de Tlem- Alger, OPU, 1990,423p
cen » in RA 1936,pp357-72 (Tome Zerdoumi (Nafissa)
I) Enfants d’hier.
Ibn Khaldoun Paris,Maspéro,1970,303p
El Moqqadimma (Les Prolégo-
mènes) ,traduction de De Slane -Paris, En langue arabe
impImpériale,1863-8 (trois volumes) Abdelli (Wahiba Nesrine)
Ibn Meryem Echerrif El Mellity Eshî’r el ghina’i fi mantiqats Tilim-
El Bostan ou la jardin des biogra- sène : El Hawfi namoudèjen ,dja’m’ê
phies des saints et des savants de oua dirassa , mémoire de magister
Tlemcen . (traduction et annotation sous la direction du Pr Mohammed
de F. Provenzali) ( édition bilingue de
Saidi (Faculté de Lettre de l’université
l’imp Ibn Khaldoun de Tlemcen, 2003)
deTlemcen)
Janier (Emile)
- « Bibliographie des publications Chaouch (Hadj Mohammed Ben
qui ont été faites sur Tlemcen et sa Ramdan)
région » in RA , 1949, pp314-34 Baqats Essoussan fi tâarif bi hadi-
- « Supplément à la Bibliographie rats Tilimsène , âasimats daoula beni
des publications qui ont été faites sur Ziyane
Tlemcen et sa région » in RA , 1951, Alger, OPU,1995, 623p
pp400-13
Lachachi (Omar) Mohammed Saidi
Le passé prestigieux de Tlemcen El adab echâabi beyn ennadhariya
Tlemcen , Ibn Khaldoun, 2002,254p oua etsatbiq
Marcais (Wiliam) Alger,OPU,1998,127p
Le dialecte parlé à Tlemcen
Paris, Leroux, 1902,Vp+325p Entretiens
M’hamsadji(Kaddour) - Amaria Mehidi
Le jeu de la Boûqâla. (Une contri- - Dr. Hadj Amine Dali Youcef
bution à une meilleure connaissance - Fatima -Nabahatz Guenaou
de ce divertissement éducatif et po- - Fatima Zohra M’hidi
pulaire) - Alger,OPU,1989,236p - Hadj Abdellah Boutaleb
Nacib(Youcef) - Hadja Khira Bent Haj Ahmed
Eléments de la tradition orale - Mohammed Benahmed
Alger, OPU,1982,143p (1ère & 2° édi- - Salah Boukli
tion ) - Tima Benahmed

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Title: The feminine romances Título: Os romances femininos e


and the game of swing in the o jogo de swing na bacia do Me-
Mediterranean basin: the «Hawfi» diterrâneo: o «Hawfi» e o jogo
and the ritual game of «Djoghlila» ritual de «Djoghlila» em Tlemcen
in Tlemcen and his hawz e o seu hawz
Abstract Resumo
This contribution is part of a series
Esta contribuição faz parte de uma
of publications relating to the intan-
série de publicações relacionadas com
gible cultural heritage of Tlemcen, the
o património cultural imaterial de
former capital of the central Maghreb.
In this article, we discuss the subject Tlemcen, a antiga capital do Magreb
of female poetry, commonly known Central. Neste artigo, discutimos o as-
as Hawfi. sunto da poesia feminina, comumen-
te conhecida como Hawfi.
Popular, the hawfi has socio-an-
thropological characteristics and mar- Popular, o hawfi tem características
kers including orality in women. This e indicadores sócio-antropológicos
heritage is transmitted from mother próprios, incluindo a oralidade nas
to daughter, during festive family and mulheres. Este património é trans-
seasonal rituals, and especially during mitido de mãe para filha, durante os
the celebration of local popular festi- rituais familiares festivos e sazonais,
vals including tashwisha, known in the especialmente durante a celebração
medina (intra muros) and the hawz de festivais populares locais, incluin-
(extra muros) Tlemcenois. do a tashwisha, conhecida na medina
Keywords: Tlemcen, hawz, hawfi, (intra muros) e no hawz (extra muros)
intangible cultural heritage, jovial ri- tlemcinos.
tual cries, women. Palavras-chave: Tlemcen, hawz,
hawfi, herança cultural intangível, ri-
tuais joviais de choro, mulheres.

Mustapha Guenaou Histoire et mémoire d’un hold-up en Algé-


rie. L’attaque de la grande poste d’Oran:
Antropólogo social. Doutor em Antro- lundi 4 avril 1949. Documents et témoi-
pologia pela Universidade de Tlemcen, é gnages (Latvia, 2016), Pour la sauvegarde
Professor na Universidade AIB Mostaga- du Patrimoine culturel immatériel maghré-
nem (Argélia), investigador associado no bin. Les contes populaires, de Lalla Khira
Centre de Recherche en Anthropologie So- Bent El Hadj Ahmed, dans le hawz de Tlem-
ciale et Culturelle d’Oran (Argélia) e antigo cen (Saint Denis, 2015) e Témoins d’histoire
investigador no Centre National des Études et de mémoire. Pour la socio anthropologie
Historiques (Argélia). Foi membro da Socié- du patrimoine culturel immatériel festif:
té de Géographie et d’Archéologie d’Oran les rituels festifs à Tlemcen et ‘Ain El Hûts
(Argélia). As suas áreas de investigação são (Latvia, 2015). É co-autor de Documents
o património cultural imaterial, memória e pour servir l’histoire et la mémoire locales:
património histórico, sócio-antropologia l’exemple d’Ain El Hûts, blèd Esh Shorfa wa
das sociedades, antropologia empresarial El m-rab-tine (Saint Denis, 2016).
e antropologia da comunicação. É autor de
E-mail: guenaoum@yahoo.fr
87
Artigos
Temas Centrais

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Educação
Toponímia e Identidade Nacional

89
Artigos

Educação

90
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Pedro Patacho

Educação escolar,
democracia e
justiça social

Resumo
Os sistemas educativos nacionais constituem uma invenção ocidental recente
que desde os seus primórdios tem sido atravessada por tensões económicas, so-
ciais, culturais e políticas, imersas em dinâmicas de poder que são constitutivas
da realidade social. Argumentamos neste artigo que na contemporaneidade, o
resultado dessas tensões é um modelo nacional de educação escolar hegemóni-
co pejado de contradições. Começaremos por situar a emergência dos sistemas
educativos nacionais e caracterizar os seus fundamentos, para identificarmos de
seguida alguns dos paradoxos com que estes se viram confrontados durante o
seu desenvolvimento ao não proporcionarem, sobretudo a partir da segunda me-
tade do século XX (aquando da expansão da educação escolar), as promessas de
segurança e bem-estar em que se haviam fundado. A educação pública contem-
porânea é depois caracterizada como um espaço de diversidade que, quando ob-
servado à luz dos valores democráticos, se vê obrigado a repensar-se, já que nele
se encontram cristalizadas umas culturas escolares que se revelam inadequadas
para lidar com a diversidade e a desigualdade que caracterizam as sociedades ac-
tuais. Ao perspectivar-se a justiça social como concretização democrática, defen-
demos que a vida nas escolas não pode ser pensada e desenvolvida a não ser em
diálogo permanente com as famílias e as comunidades locais, envolvendo todos
os grupos sociais e instituições interessadas nas questões educativas e criando
condições para que todos sejam ouvidos, respeitados, e possam cooperar e par-
ticipar de forma livre e plena na vida das escolas e na educação de uma cidadania
comprometida com a prática da democracia.
Palavras-chave: sistema educativo, educação escolar, cultura escolar, educação
democrática, justiça social, justiça curricular, educação e democracia.
91
Pedro Patacho

1. Emergência e desenvolvimento ofício. As meninas aprendiam com


dos sistemas educativos as mulheres e os meninos com os ho-
nacionais mens. A experiência e a imersão so-
Numa obra apropriadamente in- cial constituíam as bases fundamen-
titulada Educação e Transformação tais da aprendizagem.
Social, Fernandéz Enguita descreve Refere Fernandéz Enguita que, nes-
uma época de mudança social inter- te tipo de sociedades pré-industriais,
geracional em que a tarefa de educar “a transmissão era essencialmente
surgia como algo pleno de sentido, oral, centrada num reduzido número
a “época dourada da instituição [es- de mitos, comportamentos e destre-
colar]” [2007: 30]. Porém, antes de o zas transmitidos mais ou menos de
fazer, o sociólogo aragonês faz refe- forma idêntica a cada nova geração”
[2007: 29]. Muito embora, por exem-
rência a um outro tempo em que as
plo, nas sociedades da Antiguidade,
principais instituições educativas não
alguns papéis sociais requeressem
eram as escolas, até então pratica- uma aprendizagem individualizada
mente inexistentes, mas sim as famí- (feiticeiros, escribas, funcionários,
lias e a comunidade de pertença mais magistrados, sacerdotes, etc.), trata-
imediata. As poucas escolas nessa al- va-se de grupos “minoritários e com
tura existentes encontravam-se sob a condições de vida muito distintas das
tutela da Igreja e eram sobretudo con- dos comuns... os restantes, até aos
troladas por determinadas ordens reli- alvores da industrialização, continua-
giosas que se dedicavam ao ensino, ou ram a viver processos de socialização
então por determinadas elites. Estas indiferenciados, ou seja, não segre-
eram, porém, pelo menos no mundo gados da participação na vida adulta”
[2007: 29].
ocidental, escolas muito diferentes
das que se viriam a consolidar na Mo- Significa isto que durante muito
tempo, na história da humanidade
dernidade, frequentemente domina-
não existiu nenhum espaço institucio-
das pelas questões teológicas e um
nalizado especificamente destinado à
privilégio reservado a muito poucos. aprendizagem nem nenhum agente
A economia de subsistência, es- educador individualizado. Os adultos
sencialmente assente no trabalho e os mais experientes no seio de uma
da terra e nos pequenos ofícios pri- qualquer comunidade, bem como as
vados, levados a cabo por artesãos, figuras em posição de autoridade,
ou nos pequenos comerciantes, bem constituíam todos eles os agentes
como uma estrutura social predomi- educadores. Este é, por exemplo, um
nantemente estática, dispensavam debate ainda vivo na África contem-
porânea. Os sistemas de conhecimen-
uma educação institucionalizada tal
to, os saberes, as práticas, os rituais e
como a conhecemos hoje. Com efei- os mitos tradicionais têm um grande
to, cada criança representava desde peso na socialização das crianças afri-
cedo mais dois braços para trabalhar canas, sobretudo em meios rurais.
e assim que a idade o permitia rapi- Os problemas de conciliação entre o
damente era inserida no trabalho do antigo e o moderno, ou seja, entre as
campo ou na aprendizagem de um instâncias educativas e os saberes tra-
92
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

dicionais e a escola moderna (imposta cessitavam de meios coercivos para


por uma racionalidade não africana), garantir a unidade cultural e a aquies-
constituem uma dificuldade [Houn- cência da população contida nas suas
tondji 2012]. fronteiras. Por outro lado, na nova
Os sistemas educativos modernos economia industrial, os processos de
são, de certa forma, uma invenção oci- proletarização colocavam desde logo
dental contemporânea da revolução o problema da guarda das crianças e,
industrial e da criação dos estados-na- não menos importante, da necessi-
ção. É evidente que, como nos lembra dade de mão-de-obra disciplinada e
Antonio Viñao [2007: 16], “a formação progressivamente mais qualificada.
de um sistema educativo não é algo A ideologia do progresso, base da
instantâneo. Pressupõe antecedentes mentalidade moderna e legitimadora
ou inícios... uma génese mais ou me- de uma nova ideia de sociedade, sur-
nos dilatada no tempo, conforme os ge a um tempo como fundamento da
países, e uma fase, igualmente dilata- “descoberta” da infância [Prout 2005]
da, de configuração e consolidação”. e de uma nova forma de educação que
Mas embora as suas origens recuem garantisse a inculcação geracional de
no tempo e a sua história seja comple- uma cultura tida como objectiva e uni-
xa, não há dúvida de que se trata de versal [Fernandez Enguita 2007].
uma invenção histórica que, por um Não devemos esquecer que não se
lado, acompanha o advento da revo- trata de “um processo anónimo e ine-
lução industrial e o processo de con- vitável, mas mais ou menos intencio-
solidação da burguesia liberal [Saviani nal, procurado” [Viñao 2007: 16]. Num
2008], e, por outro lado, constitui uma dos primeiros estudos sobre as ori-
das marcas distintivas do início da Mo- gens sociais dos sistemas educativos
dernidade, introduzindo uma instân- do mundo ocidental, primeiramente
cia educativa especializada: a escola publicado em 1979, Margaret Archer
moderna [Hilsdorf 2006]. [2014] demonstrou que a integração
Assim, “os séculos XVIII e XIX mar- da educação nos estados, através da
caram o tempo em que os estados criação dos sistemas educativos na-
nacionais começaram a construir os cionais que, embora diferenciados,
seus sistemas de educação de massas apresentam um conjunto alargado de
com o compromisso de abarcarem traços comuns, emergiu da interacção
toda a população infantil…” [Martins dos grupos sociais dominantes que,
2012: 10]. Algo que tem início primei- através de um conjunto de estraté-
ramente na Europa, em finais do sé- gias associadas ao controlo do poder
culo XVIII, e que depois, durante todo legislativo e à intensificação da lógica
o século XIX, embora com ritmos e liberal de mercado, impuseram a sua
características diferenciados, se vai própria definição de instrução.
estender um pouco por todo o mundo Essa definição criou aquilo que Ca-
enquanto modelo hegemónico, alta- nário [2005] caracteriza como uma sé-
mente institucionalizado, de educa- rie de novidades que em pouco tem-
ção nacional. po se tornaram nos traços distintivos
Por um lado, para prosperar en- dos sistemas educativos nacionais em
quanto ideia política, os estados-na- todo o mundo, designadamente, o
ção, filhos da razão iluminista, ne- aparecimento de uma instância edu-
93
Pedro Patacho

cativa especializada que separou o es- mais novas no mundo que as espera;
paço e o tempo do aprender e do fazer as instituições naturais, nomeada-
(a escola), a criação de uma nova rela- mente, a família e a comunidade ime-
ção social ao nível da classe (a relação diata, perdem grande parte das suas
pedagógica), o desenvolvimento de funções educativas. São assim neces-
uma nova forma de socialização desli- sárias novas instituições e agentes es-
gada das famílias e da comunidade (a pecíficos, designadamente, a escola e
escolarização). Deste ponto de vista, a docência” [2007: 31]. É uma época
prossegue o autor, uma nova forma, marcada pela confiança no futuro, por
uma nova organização e uma nova um ideal de progresso e de melhoria
instituição constituem os níveis do de- contínua dos níveis e das expectativas
bate que baliza a emergência dos mo- de vida, uma época em que a grande
dernos sistemas educativos nacionais. promessa reside na passagem de uma
Viñao [2007] sintetiza em seis pon- sociedade em que o estatuto social
tos os elementos básicos que caracte- dependia da herança familiar para
rizam o processo de configuração des- uma nova sociedade de cidadãos li-
tes sistemas educativos modernos: 1) vres e escolarizados em que a conquis-
a concepção da educação enquanto ta desse estatuto depende do esforço
assunto do interesse ou da competên- e da acção individual de cada um, no
cia dos poderes públicos; 2) a criação quadro de estruturas sociais marcadas
e transferência para instituições públi- por uma crescente mobilidade social.
cas das funções educativas até então Trata-se de uma nova ordem políti-
desempenhadas por instituições ecle- ca (substituição da Igreja e de outras
siásticas, societárias ou privadas; 3) a instâncias educadoras tradicionais,
criação de mecanismos de controlo e como a família e a comunidade, por
de inspecção sobre os estabelecimen- um estado educador que socializa to-
tos de ensino; 4) a configuração de dos os indivíduos nos valores1 e nos
uma administração central e periféri- saberes universais das sociedades
ca com funções de gestão, execução modernas), de uma nova ordem social
e inspecção; 5) a criação, introdução e (baseada na proletarização e na rela-
renovação, pelos poderes públicos, de ção salarial, na divisão e quantificação
quadros legais, de currículos e progra- dos tempos de lazer e de trabalho, na
mas, regulamentos diversos e modos transmissão de uma cultura suposta-
específicos de organização escolar. mente única e entendida como supor-
Entramos assim naquela que Fer- te da coesão nacional), e de uma nova
nandez Enguita designou de “época ordem económica (industrial, baseada
dourada da instituição” escolar [2007: na ética capitalista, na competição e
30]. Trata-se de uma época dinâmica na livre iniciativa, na hierarquia e na
de acelerada mudança social inter- segmentação da tarefas) para a con-
geracional em que as “gerações mais solidação das quais os novos siste-
antigas já não podem encaminhar as mas educativos nacionais e a ideia de

1
É necessário notar que muito embora a laicidade seja uma das ideias que sustentam a emergência
dos modernos estados-nação fundados na razão, a maior ou menor intervenção da Igreja nos assuntos
públicos do estado de direito vai depender muito das dinâmicas internas de cada país e afectará em
maior ou menor grau o desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais.
94
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

escola moderna desempenham um Definiram os requisitos da formação


papel absolutamente fundamental, para a docência, as normas de acesso à
enquanto mecanismo equalizador das profissão, as práticas de contratação,
oportunidades de vida e regulador da as condições de trabalho, as tabelas
conflitualidade social [Canário 2005]. salariais e os mecanismos de progres-
O funcionamento do sistema de- são na carreira docente [Viñao 2007].
penderá de um corpo alargado de Inicia-se, como diria Nóvoa [1991], o
funcionários sobre o controlo dos po- tempo áureo da profissão docente, um
deres públicos. Trata-se da necessi- tempo em que o professor goza de um
dade de formar um corpo profissional estatuto social reconhecido e elevado.
bem preparado que assegure a tarefa Contudo, num sistema educativo que
da educação nacional. É o tempo da Hunter, tal como refere Viñao [2007:
profissionalização docente. Porém, 19], designa com muita propriedade
como nos alerta Viñao [2007: 19], esta de um “híbrido burocrático-pastoral”.
acontece sem que isso tenha implica- A emergência dos sistemas edu-
do necessariamente “uma mudança cativos nacionais, no contexto dos
fundamental no conjunto de normas movimentos políticos, económicos e
e valores” do corpo de professores sociais de mudança que temos vindo
anteriormente sob a tutela directa a descrever, é acompanhada do sur-
ou indirecta da Igreja. Muito embora gimento e consolidação de umas cer-
a contratação desta nova classe de tas culturas escolares [Viñao, 2007].
funcionários aconteça com base em Dito de outro modo, estas não cons-
concursos públicos cuja finalidade é tituem exactamente um resultado
seleccionar os melhores e não neces- dos sistemas educativos, mas antes
sariamente os mais “crentes”, isto uma consequência das mesmas for-
não significa que a influência cultural ças sócio-históricas que os molda-
religiosa desapareça e que ela não vá ram. Vinão [2007] analisou a forma
estar presente nas culturas escolares como o conceito de culturas escola-
de, de certa forma, assumirão tra- res tem sido utilizado para constatar
ços pastorais. De facto, como refere que, entre outras coisas, o conceito
Fernandéz Enguita, a profissão de se refere a algo institucionalizado
“professor representa algo de distin- (que apenas se aprende pela vivên-
to, novo e necessário, quer no campo cia da experiência escolar) e relati-
colectivo, político... como no campo vamente autónomo em relação aos
privado imediato... [mas] a docência é currículos e programas.
percebida quase em termos de apos- Sendo certo que o carácter rela-
tulado: professor-missionário, pro- tivamente autónomo das culturas
fissão-vocação, escolas-templos do escolares lhes permitiu não repro-
saber, missões pedagógicas, a nobre duzir exactamente o que às institui-
tarefa de ensinar, a ilustração como ções escolares surgia imposto a par-
evangelização, etc.” [Fernandéz-En- tir daquelas forças constitutivas dos
guita 2007: 32]. sistemas educativos e das próprias
Foram os poderes públicos que es- culturas escolares (mediante a elabo-
tabeleceram o quadro normativo da ração produtos culturais específicos)
profissão docente no seio dos moder- [Viñao 2007], a verdade é que elas se
nos sistemas educativos nacionais. formaram e sedimentaram, tanto no
95
Pedro Patacho

que toca às práticas, como no que diz E se a determinada altura tudo mu-
respeito aos saberes, sob a influência dasse de forma muito mais acelerada
ideológica de uma narrativa de pro- do que até então? Entre outros inves-
gresso associada a uma determinada tigadores, Castells [2007] mostrou
visão do futuro e da sociedade e numa que a partir do final dos anos sessen-
base cultural muito influenciada pelos ta do passado século XX e em poucas
valores religiosos. Apoiaram-se numa décadas teve lugar uma verdadeira
série de “paradigmas teleológicos” revolução mundial, no sentido em
[Gimeno Sacristán 2001: 12-13] que que se modificaram totalmente as
deram sentido à actuação dos profes- relações de produção, as relações de
sores e das professoras. Deste ponto poder e as relações de experiência no
de vista, mais do que um currículo ex- seio das sociedades capitalistas con-
plícito, a escola moderna promoveu temporâneas. O resultado, do seu
um currículo oculto [Torres Santomé ponto de vista, foi um novo mundo:
1998] que por via das culturas escola- uma nova sociedade (em rede), uma
res operou ideologicamente na con- nova economia (informacional, glo-
formação de uma determinada ordem balizada e interdependente) e uma
social, económica e política. nova cultura (que Castells designou
Durante o século XIX e toda a pri- de virtualidade real).
meira metade do século XX, os sis- Uma mudança intrageracional tão
temas educativos nacionais e as rápida, generalizada e intensa exige
suas unidades orgânicas, as escolas, que uma mesma geração se adapte
claramente concebidas à imagem e de forma repentina a um mundo até
semelhança do modo de produção aí inexistente e em muitos aspectos
industrial nas modernas sociedades totalmente diferente do anterior [Fer-
capitalistas, foram sofrendo um pro- nandéz Enguita 2007]. É precisamente
cesso de naturalização [Canário 2005] neste momento que se agudiza uma
assente no mito “da neutralidade e ideia de crise dos sistemas educativos
objectividade do sistema e, por conse- nacionais, muito embora esta não seja
guinte, da escolarização” [Torres San-
propriamente nova. Com efeito, Nó-
tomé 1998: 14]. Perante a continuada
voa [2002] adverte para o facto de que
afirmação deste mito, fortemente
os discursos recorrentes sobre a crise
aliado a um outro segundo o qual as
da escola atravessaram praticamente
instituições escolares que temos são
todo o pensamento sobre a educação
as únicas possíveis e as mais adequa-
das para fazer face às necessidades escolar desde os finais do século XIX.
dos tempos em que vivemos, tornou- Sabemos bem como os diferentes
-se fácil perder de vista que as escolas sectores sociais e grupos de poder
e a escolarização, tal como as conce- mais conservadores foram usando a
bemos hoje, constituem na verdade ideia de crise para criar uma espécie
uma construção social e histórica no de pânico moral e assim legitimarem
seio de dinâmicas ideológicas e de po- a introdução de modificações nos sis-
der [Torres Santomé 1998], o resulta- temas educativos sem contudo modi-
do de inúmeras tensões que vieram a ficarem a sua forma e organização es-
desembocar numa realidade cultural trutural [Apple 2004, 2010; Paraskeva
que podia, com efeito, ter sido outra 2007; Torres Santomé 1998, 2001].
[Viñao 2007]. Esta é, de resto, uma prova conclu-
96
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

dente das vitórias que foram sendo em classes, trabalham com os mes-
alcançadas nos sistemas educativos a mos materiais, realizam as mesmas
partir das lutas políticas da Esquerda e actividades e ao mesmo tempo, sobre
do activismo de sectores sociais mais os mesmos conteúdos curriculares,
progressistas, empenhados na cons- sendo avaliados das mesmas manei-
trução de uma educação escolar mais ras. Paraskeva convida-nos a pensar
democrática e respeitadora das cultu- as escolas e o currículo para além do
ras das classes sociais mais populares tradicional espartilho dos objectivos,
[cf. Paraskeva & Au 2010]. das competências, das actividades
A ideia de crise à qual nos refería- programadas de forma abstracta, dos
mos resulta da cada vez mais visível horários, das disciplinas, da avaliação
desadequação das escolas, da sua e dos manuais escolares.
organização e do trabalho escolar ao
advento de algo inteiramente novo.
2. A educação pública
Desde há algumas décadas a esta par-
contemporânea
te que a educação escolar parece viver
em sobressalto permanente, suce- A partir de meados do século XX
dendo-se reformas atrás de reformas e particularmente após a década de
com as quais se tenta enfrentar um sessenta, os sistemas educativos na-
problema que na verdade é estrutural, cionais viram-se invadidos por uma
pois que resulta do facto dos sistemas permanente necessidade de reforma,
educativos se manterem praticamen- que não tem parado de aumentar
te inalterados, no que diz respeito à desde então. Muito embora essa ne-
sua forma e funcionamento, desde a cessidade tenha sido sentida de ma-
sua fundação. O desajustamento tem neira diferente em cada país e tenha
sido cada vez mais nítido, colocando originado medidas também diversifi-
frequentemente como réus da crise cadas, que foram implementadas com
não apenas as escolas públicas, mas ritmos igualmente distintos, podemos
também a classe docente.
assinalar alguns aspectos que global-
Tornou-se evidente que precisamos mente estiveram na sua origem. Des-
de novos equipamentos, para nos ser- tacamos aqui quatro desses aspectos:
virmos aqui da feliz expressão de Bru-
no Latour, quando afirma que “não há a) As lutas protagonizadas por
maior crime intelectual do que enfren- diversos grupos sociais contra
tar um desafio do presente com equi- a injustiça e a discriminação
pamentos do passado”, frase citada e pelos valores democráticos,
por João Paraskeva [2010: 83] quando conduziram à entrada na educa-
este defende a imperiosa necessidade ção escolar de grupos até então
de uma nova educação e de uma nova menos presentes ou totalmente
teoria curricular que se liberte do ausentes dos sistemas educati-
dogma fundador da escola moder- vos, como sejam as mulheres,
na segundo o qual parece impossível as pessoas com deficiência, as
pensar a escolarização sem ser com populações negras, as minorias
funcionamento em método simultâ- étnicas, largos segmentos das
neo, onde os alunos de um mesmo ní- classes mais pobres e outros
vel, com a mesma idade, organizados grupos sem poder.
97
Pedro Patacho

b) Sobretudo a partir dos anos ses- a) Desde logo o problema da nar-


senta do século XX, deu-se um rativa de progresso chocar, a
fenómeno de explosão escolar, determinada altura, com o pró-
vendo-se concretizado o acesso prio sentimento de crise e de
às escolas de um público cada inadequação, bem como com a
vez maior, mas também cada dificuldade, sentida por largas
vez mais diversificado, com dife- camadas sociais, em vislumbrar
rentes origens sociais, diferentes as promessas de mobilidade so-
culturas, diferentes interesses e cial ascendente e de bem-estar
expectativas de vida, o que colo- anteriormente anunciadas.
ca problemas a uma escola pro- b) Em segundo lugar, o facto da ex-
jectada para padronizar e não pansão da escola moderna, en-
para lidar com a diversidade. quanto modelo hegemónico de
c) Como resultado da expansão da educação, coincidir temporalmen-
escolarização, a classe docente, te com o desenvolvimento de uma
cuja formação se tem mantido crítica permanente e sistemática,
praticamente inalterada há qua- que lhe é dirigida a partir de vá-
se um século [Fernandéz Enguita rios campos do conhecimento.
2007], vê-se progressivamente Um vasto conjunto de trabalhos
confrontada com famílias de ori- desenvolvidos em áreas tão diver-
gens cada vez mais diversas. sas como a própria Educação, a
d) De uma forma global têm lugar ou Sociologia, a Filosofia, a Linguís-
aceleram-se, na segunda metade tica, as Neurociências, os Estudos
do século XX, um grande conjunto Culturais, entre outros, foram não
de transformações, ou, para utili- apenas produzindo críticas aos
zar o termo de Torres Santomé modelos de escolarização institu-
[2011], revoluções, que põem em cionalizados pela escola moderna,
relevo a inadequação das institui- como contribuindo para recusar
ções escolares e das intervenções concebê-los como a única forma
educativas levadas a cabo no seu possível de educação.
seio para fazer face a essas revo- c) Em terceiro lugar, o crescimen-
luções e preparar adequadamen- to exponencial das taxas de es-
te cidadãos e cidadãs capazes de colarização das populações não
participar democraticamente nas significou necessariamente a
sociedades contemporâneas. diminuição ou o desaparecimen-
to dos problemas sociais; muito
À permanente necessidade de refor- pelo contrário, à medida que nos
ma dos sistemas educativos nacionais aproximámos do final do século
e da escola moderna também não são XX, os problemas sociais inten-
alheios uma série de paradoxos que, sificaram-se, nomeadamente a
de igual forma, se tornaram sobretudo pobreza, a desigualdade, os pro-
visíveis a partir da segunda metade do blemas ambientais, guerras loca-
século XX. Rui Canário [2005] identifi- lizadas, entre outros.
cou aqueles que entendeu constituí- d) Em quarto lugar, muito embora
rem os principais desses paradoxos e tenha sido atribuído à escola um
que a seguir descrevemos: papel central na construção de
98
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

uma cidadania democrática, a mo dos espaços públicos de socializa-


verdade é que à medida que se ção de todas as crianças e jovens em
intensificaram as transforma- idade escolar.
ções sociais que caracterizaram Em que outro local é possível en-
este meio século, se assistiu ao contrar, durante um período de tem-
crescimento do individualismo e po tão prolongado, crianças e jovens
a um retrocesso dos movimen- de todas as origens sociais, de dife-
tos sociais e das diversas formas rentes culturas, com diferentes esti-
de participação democrática, o los e ritmos de aprendizagem, com
que se tornou bem visível nas distintos saberes e experiências, com
modernas sociedades capitalis- diferentes limitações e incapacidades
tas escolarizadas. motoras e cognitivas, com diferentes
e) Por fim, o acesso aos sistemas tipos de inteligência, com gostos, in-
educativos, cuja massificação se teresses e aspirações tão diversifica-
verificou em meados do século dos? Em que outro local seria possível
XX, não dá mostras de abrandar, envolver toda esta diversidade em
não obstante as críticas de inade- trabalho colaborativo, em projectos e
quação das instituições escolares desafios comuns, aprendendo a con-
às rápidas transformações so- viver e a trabalhar conjuntamente de
ciais e um certo efeito de banali- forma respeitadora e solidária, desde
zação e desvalorização da qualifi- os primeiros anos de vida e até prati-
cação académica; pelo contrário, camente à idade adulta?
cada vez mais públicos acedem à É precisamente aqui que reside
escola e por períodos de tempo todo potencial da instituição escolar
cada vez mais prolongados. quando perspectivada como institui-
ção democrática. Numa entrevista
Dois traços essenciais ressaltam conduzida por Donaldo Macedo so-
dos dois conjuntos de pontos que bre a urgente necessidade de cons-
acabamos de referir: diversidade e truir formas de educação escolar au-
inadequação. A escola pública con- tenticamente democráticas, Noam
temporânea é hoje um espaço de Chomsky [2011] considerou que sem-
ampla diversidade a todos o níveis. pre existiram e continuam a existir al-
Diversidade de contextos, diversida- ternativas reais e palpáveis às actuais
de de alunos e alunas, diversidade de instituições escolares. Aliás, como
famílias, diversidade de professores e Torres Santomé [2007] deixou sim-
professoras, etc... A diversidade social bolicamente escrito na introdução a
e cultural atravessa a instituição esco- uma colectânea de artigos da revista
lar e constitui simultaneamente um Currículo sem Fronteiras, há milhares
problema e uma das suas maiores for- de alternativas.
ças e potencialidades para a educação Para Chomsky [2011], se queremos
democrática. De facto, se é certo que afirmar que vivemos numa demo-
os centros escolares estão organiza- cracia e que defendemos os valores
dos e funcionam de formas que visam democráticos, então, toda a organi-
sobretudo padronizar, em vez de lidar zação e funcionamento das escolas
com a diversidade, a verdade é que a têm de ser baseados nesses valores.
escola pública permanece como o últi- Isso significa aceitar toda a diversidade
99
Pedro Patacho

que estas contêm como algo natural e de escolas democráticas próprias de


proporcionar às crianças e aos jovens sociedades democráticas.
“oportunidades de terem a experiência Algo que é bastante difícil de conse-
democrática na prática... [em vez de] guir. A própria classe docente encon-
as doutrinar com lugares-comuns so- tra-se frequentemente condiciona-
bre democracia” [44], como é lamenta- da na sua actuação nas escolas e nas
velmente mais frequente. Prossegue o aulas. O seu trabalho é largamente
autor que “a verdadeira aprendizagem influenciado por um conjunto de polí-
ocorre quando os estudantes são con- ticas educativas e curriculares que são
vidados a descobrir por eles próprios a definidas sem nenhum debate demo-
natureza da democracia e o seu funcio- crático e consenso e cuja implementa-
namento... [algo] que as escolas não ção é cuidadosamente verificada atra-
fazem muito bem” [45]. vés de determinados dispositivos de
A educação escolar como vivência regulação e controlo. É imprescindível
democrática constitui o grande de- para a classe docente prestar atenção
safio que é colocado às instituições a estas políticas educativas, aos qua-
educativas2. As escolas não têm feito dros normativos (leis, diplomas, regu-
e não fazem isso muito bem porque lamentos, etc.), às decisões que são
estão organizadas e funcionam de tomadas sobre os currículos, as disci-
formas inadequadas que frequente- plinas, os conteúdos curriculares, etc.,
mente minam os princípios democrá- e denunciar a forma pouco democrá-
ticos que afirmam promover [Macedo tica como são definidas e impostas,
& Zinn 2007]. Repensar tanto as for- afectando as suas vidas profissionais e
mas de organização e funcionamento, a vida das famílias e das comunidades
como as intervenções educativas que com que trabalham.
são levadas a cabo nas escolas pela As políticas educativas deveriam
classe docente, tendo por base os va- possibilitar, incentivar, e, inclusiva-
lores de uma educação democrática, mente, obrigar ao desenvolvimento
constitui um repto para a construção de estruturas de gestão e de participa-

2
Embora, na verdade, já o saibamos há muito tempo. Basta lembrar os movimentos educacionais
progressistas do início do século XX e, apenas para citar um exemplo, o importante pensamento de
John Dewey, quando afirmou que “a democracia não será democracia enquanto a principal preocupa-
ção da educação não for a libertação de aptidões individuais em termos artísticos, intelectuais e em
termos de companheirismo humano (...). O hábito de classificar e de comparar em função de aspectos
quantitativos tem sido (...) o obstáculo intelectual impedindo que isto aconteça.” [2009: 12]. Para
Dewey, a educação escolar tinha que ser um modo de vida democrático e não um mero meio de pre-
paração para a vida nas sociedades democráticas, como também veio a afirmar Kilpatrick [2006], seu
aluno de doutoramento em Chicago, a quem é atribuída a introdução da ideia do trabalho de projecto
nas escolas, com o seu artigo fundador publicado em Setembro de 1918 no Teachers College Record.
Na perspectiva destes e de muitos outros autores seus contemporâneos, a educação escolar não podia
ser algo imposto às crianças e aos jovens, mas, muito pelo contrário, corresponder ao desabrochar das
capacidades de cada um, a uma contínua construção e reconstrução de experiências. A sua visão da
educação assentava essencialmente na importância da prática e no valor fundamental da experiência
democrática, enfatizando a imperiosa necessidade de a escola ser uma expansão, completa e livre, das
experiências de vida de cada criança e de cada jovem, através da edificação de condições para que os
alunos e as alunas participassem activamente na construção do meio e da cultura, o que se traduzia na
capacidade de cada um ser constantemente capaz de expandir a sua cultura.
100
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

ção democráticas nas escolas, em que • Tergiversação (estratégia didác-


os professores e as professoras, alu- tica que consiste em: selecionar
nos e alunas, famílias e outras institui- apenas textos que se inserem
ções socioculturais da comunidade in- nos discursos dominantes e que
teressadas nas questões da educação legitimam as desigualdades e
pudessem tomar decisões fundamen- as injustiças, ignorando outras
tadas sobre aquelas questões. Várias abordagens que permitam sub-
experiências têm mostrado que esse meter esses discursos a uma
não só é um caminho possível nos sis- análise crítica; demonizar grupos
temas educativos nacionais contem- sociais sem poder através de es-
porâneos, como é o mais adequado tratégias destinadas a naturali-
para uma educação democrática que zar a sua condição injusta; adop-
faça face às exigências colocadas pela tar uma postura “nim... nim” que
sociedade sobre a escola contemporâ- corresponde a evitar um posicio-
nea [Bean & Apple 2000]. namento claro).
Perante a imposição daquelas po- • Piscologização (constitui uma
líticas, um dos maiores problemas e das formas mais sofisticadas de
obstáculos que as escolas enfrentam Tergiversação e que passa pela
para trilhar este caminho são preci- individualização dos problemas
samente um vasto conjunto de inter- de desigualdade e injustiça so-
cial, culpando o próprio indiví-
venções curriculares inadequadas nas
duo pelas interacções e pelos
quais a classe docente pode cair e que
comportamentos que realiza e
Torres Santomé [2010, 2011] tem des-
associando-os às idiossincra-
crito de forma exaustiva:
sias da personalidade e ao seu
• Segregação (agrupamento de psiquismo).
alunos e dos conteúdos curricu-
• Paternalismo e Pseudotolerância
lares por sexo, etnia, classe so-
(promover análises caridosas ba-
cial, capacidades, promovendo
seadas na assunção tácita, em-
a perpetuação de uma educação
bora não revelada, de uma visão
segregadora).
hierárquica de superioridade de
• Exclusão (silenciamento de uma cultura ou grupo sobre os
culturas, nunca presentes demais; estratégias de tipo Bene-
nos materiais curriculares, nas tton que domesticam as análises
bibliotecas escolares e nos recur- ao despolitizarem os problemas,
sos educativos em geral). as desigualdades e as injustiças).
• Desconexão (opções metodo- • Infantilização (intervenções edu-
lógicas baseadas no “dia de...”, cativas baseadas numa perspec-
que promovem a naturalização tiva de Walt Disneyzação que
do silenciamento e da injustiça, consiste na tentativa de preser-
bem como na disciplinarização e var as crianças do conhecimento
compartimentação do conheci- da existência de desigualdades
mento, o que dificulta uma com- e injustiças, mantendo-as numa
preensão holística da realidade espécie de redoma sem qualquer
e da interdependência das suas acesso a conteúdos que lhes per-
múltiplas dimensões). mitam identificar, compreender
101
Pedro Patacho

e discutir esses problemas; abor- de políticas educativas em que as pró-


dagem folclorizada e superficial prias instituições escolares e a classe
das diferentes realidades cultu- docente são co-responsáveis e que
rais através de intervenções edu- constituem obstáculos adicionais à
cativas designadas por currículo plena concretização de uma educação
de turistas). autenticamente democrática e anti-
• Como realidade alheia e estranha -discriminação. Esses obstáculos são
(silenciamento diário de situa- os seguintes:
ções quotidianas que correspon-
dem a problemas de discrimi- • A obstinação dos professores e
nação, desigualdade e injustiça, das professoras em terminar os
mas que são percepcionados programas obrigatórios defini-
como difíceis de resolver e com- dos pela administração escolar e
plexos, muito embora ligados ao o excessivo apoio no manual es-
quotidiano e ao contexto social colar como único recurso educa-
imediato da instituição escolar; tivo que procuram completar até
apresentação de outras realida- à última página.
des, outros países, cidades bair- • O uso de manuais escolares dos
ros, ignorando os aspectos co- quais estão ausentes temas con-
muns que essas realidades têm troversos e ausência de outras
com as vidas dos alunos e alunas fontes que representem as dife-
e com a sociedade em que vi- rentes visões em conflito perante
vem: a condição social e econó- um determinado problema.
mica dos outros, inclusivamente
• O receio de abordar nas aulas te-
dos outros povos, é apresentada
mas socialmente controversos.
de uma forma que faz crer que
não somos colectivamente co- • A ausência de uma cultura e de
-responsáveis por essa condi- uma tradição, tanto nas aulas
ção; oculta-se os aspectos que como na própria instituição esco-
temos em comum, o que liga lar, de discussão e de debate.
diferentes realidades). • A falta de formação da classe
• Presentismo – Sem história (pro- docente para tratar de temas
mover um trabalho curricular complexos.
que contempla o mundo, mas • A tradição escolar disciplinar
ignora a sua evolução história e que compartimenta o saber e
social, ou seja, as raízes sócio- impossibilita a integração de ex-
-histórias dos arranjos sociais periências, a integração social e
em presença). a integração do conhecimento
enquanto perspectiva de desen-
Para além destas intervenções cur- volvimento curricular.
riculares inadequadas que podem fa- • A existência de políticas de ava-
cilmente decorrer daquelas políticas liação externa baseadas em exa-
educativas e curriculares impostas mes e indicadores que provocam
sem nenhum debate democrático, o um efeito de afunilamento do
autor prossegue considerando outro trabalho escolar para os conteú-
tipo de inadequações que decorrem dos que saem no exame.
102
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

• Pobreza dos recursos informati- zê-lo de forma isolada, tanto no


vos utilizados com as crianças e que diz respeito à planificação do
os jovens e a subjugação às polí- seu trabalho como no que diz res-
ticas do manual escolar. peito ao seu desenvolvimento. A
• Falta de familiaridade de uma descoordenação tanto pode ser
boa parte da classe docente vertical – entre os vários níveis de
com este tipo de elementos de ensino – como horizontal – entre
conteúdo. os espaços curriculares de um
mesmo nível de ensino ou curso
no qual se encontram implicados
A partir de uma perspectiva da
diversos profissionais).
escola como organização que pode
aprender e modificar-se com a finali- • Burocratização da mudança (A
dade de ajustar-se às exigências que tendência dos sistemas educa-
lhe são colocadas, também Santos tivos e da escolas para imple-
Guerra [2002] salientou a necessida- mentar mudanças – impostas ou
de de as instituições escolares alte- autónomas – por meio de trami-
tações burocráticas de carácter
rarem a sua natureza e os fundamen-
padronizado e excessivamente
tos da sua organização, a fim de que
regulamentado).
criarem as condições para poderem
transformar-se. Essa possibilidade • Supervisão receosa (Os serviços
de transformação da organização de supervisão e avaliação exter-
escolar encontra, contudo, na pers- na das escolas tendem a assumir
pectiva do autor, uma série de im- uma postura normativa – pois é
portantes dificuldades que, acres- nessa base que têm de prestar
centaríamos nós, mais não são do contas aos poderes públicos e
que inadequações organizacionais é nessa base que o seu próprio
trabalho é julgado – que se tra-
para fazer face às exigências com
duz numa atitude pouco recep-
que se vê confrontada. Essas inade-
tiva a inovações).
quações são as seguintes:
• Direcção gerencialista (Tendên-
• Práticas profissionais rotineiras
cia para sobrevalorizar o papel
(Os profissionais que traba-
da direcção unipessoal das ins-
lham nas escolas encontram-se
tituições escolares, concentran-
frequentemente acomodados do-se amplos poderes na figura
a uma rotina profissional. Essa de um director, o que pode ter
rotina tem uma dupla dimen- duas consequências pernicio-
são, pessoal e organizacional. sas: a diminuição da autonomia
Esta última tem também ele- e da capacidade de decisão dos
mentos pessoais, já que as or- profissionais, quando o director
ganizações são feitas por pes- e a sua equipa assumem um pa-
soas, mas ambas têm um peso pel impositivo e excessivamente
muito forte na estruturação do apegado aos quadros normativos
quotidiano escolar). e às prescrições curriculares; o
• Descoordenação entre os profis- acentuar da descoordenação e o
sionais (Os profissionais que tra- desenvolvimento de um trabalho
balham nas escolas tendem a fa- de pouca qualidade, quando o
103
Pedro Patacho

director e a sua equipa não cum- escolas e da classe docente. Isto


prem as suas funções de coor- desvia a atenção, tanto dos sindi-
denação que lhes cabem, não catos como dos professores e das
promovem propostas e projectos professoras, do principal com-
colaborativos e deixam que cada promisso de ambos: a melhoria
docente faça o que quiser, sem contínua da qualidade de um ser-
nenhuma coordenação). viço prestado aos cidadãos e às
• Excessiva centralização (Manuten- cidadãs. Por outro lado, contribui
ção de uma administração central para o desprestigio social tanto
forte que regula milimetricamen- das próprias estruturas sindicais
te o trabalho escolar, converten- como da classe docente).
do as escolas e os profissionais em • Fechamento (Atitude de clausura
meros executores de prescrições que é possível tanto a um nível
definidas externamente). pessoal, como institucional e ain-
• Massificação (A quantidade e a da estratégico. Ao nível pessoal
diversidade de alunos e alunas significa uma cristalização de
com os quais é necessário tra- saberes e práticas, um encapsu-
balhar constituem desafios que lamento que rejeita a crítica, a
se tonam mais complicados de discussão, a reflexão e a inves-
superar em instituições escolares tigação sobre a própria prática
excessivamente grandes que se profissional. Ao nível institucio-
tornam num obstáculo adicional nal significa a cristalização de
ao desenvolvimento de um tra- formas de funcionamento que
balho educativo de qualidade). impedem as instituições esco-
• Desmotivação dos professores (A lares de se abrir ao exterior, de
falta de atenção às diversas di- se integrarem na comunidade
mensões da profissionalidade do- imediata da qual fazem parte,
cente e a manutenção de estrutu- de colher os seus contributos e
ras e formas de organização não de incorporá-los no trabalho es-
sujeitas a debate democrático e colar. Ao nível estratégico signi-
a consenso aumentam as possi- fica a cristalização estrutural das
bilidade de ter um corpo docente instituições escolares devido ao
desmotivado que não se entrega funcionamento tendencialmente
verdadeiramente à profissão). centralizado dos sistemas edu-
• A acção sindical (As estruturas cativos nacionais que, ainda que
sindicais são importantes para decretem uma suposta auto-
reivindicar mudanças e despo- nomia da escolas, as concebem
letar debate e negociações, mas como peça de uma engrenagem
têm uma forte tendência para cuidadosamente vigiada a partir
manter uma actuação corpora- do centro regulador. Nos últimos
tivista unicamente preocupada tempos, este fechamento tem
com as condições salariais e la- vindo também a ser potenciado
borais, descuidando solidarieda- pela emergência das agências
des sociais, educativas e políti- nacionais de avaliação).
cas, e opondo-se a todo o tipo de As escolas contemporâneas são as-
prestação de contas por parte das
104
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

sim, por um lado, espaços sociais de processos de mudança que indicam


uma ampla e intensa diversidade a to- precisamente o contrário. O mundo
dos os níveis, mas, por outro lado, ins- de hoje é felizmente muito diferente
tituições que estão organizadas e fun- da sociedade mecanicista e pré-deter-
cionam de formas inadequadas a essa minada que Aldous Huxley descreveu
diversidade. Neste contexto, alcançar na sua conhecida obra O Admirável
formas de organização e práticas edu- Mundo Novo.
cativas democráticas, que tenham em Apesar de todas as contradições
atenção todo o mundo de diversidade e paradoxos com que as sociedades
que é frequentemente ignorado pelas contemporâneas se debatem, este é
escolas é uma tarefa complexa. Mais também o tempo em que os micro-
complexa se torna quando a vida das -actores sociais têm cada vez mais
escolas e o quotidiano profissional relevância para o curso dos aconteci-
dos professores e das professoras sur- mentos. As pessoas, ligadas em rede
ge regulado por quadros normativos e disponíveis para a acção sociopolí-
plasmados em documentos oficiais tica, têm realmente o poder de fazer
produzidos pela administração cen- funcionar, mas também de mudar ou
tral sem debate público democrático até de sabotar as macro-organizações
e frequentemente ao serviço de de- [Rosenau 2010]. Os estudos do quoti-
terminados interesses e/ou grupos diano [Certeu 1994; Oliveira & Sgar-
sociais. Superar as injustiças sociais bi 2008] têm-nos mostrado a forma
que se reproduzem nas escolas e, como as pessoas actuam no seu quoti-
mais ainda, desenvolver a partir das diano, nos vários espaços e tempos da
instituições escolares uma acção edu- sua existência, como fazem as coisas
cativa transformadora que, por via da e como as fazem com os outros, nas
participação democrática, contribua circunstâncias relacionais incoeren-
para alterar as condições inadequadas tes e muitas vezes contraditórias em
que originam e mantêm a injustiça e a que se movem todos os dias das suas
discriminação, parece, na maior parte vidas, num contexto de dominação
das vezes, quase impossível. que pode ser habilmente combatido.
Contudo, não nos devemos esque- É precisamente no espaço das incoe-
cer que essa ideia de quase impossi- rências e contradições que se jogam
bilidade é na verdade um produto da as possibilidades de mudança. Dito
hegemonia ideológica conservadora e de outra forma, é nessas contradições
neoliberal que constantemente quer que se abre o espaço de resistência
fazer crer a toda a sociedade que é im- contra-hegemónica e de construção
possível que os cidadãos, as cidadãs e da justiça social pela participação de-
as comunidades, ou até mesmo os es- mocrática.
tados, consigam introduzir mudanças Embora possa não parecer à pri-
significativas nos sistemas educativos meira vista, dado o razoável imobilis-
e nas escolas como resultado da parti- mo dos currículos e das culturas esco-
cipação política em processos colecti- lares, a cultura é precisamente uma
vos de tomada de decisões, tanto ao das coisas que mais se vê afectada
nível macro como ao nível micro. Mas pelos processos de mudança global
a verdade é que temos testemunhado que vimos testemunhando [Gimeno
o desenvolvimento de importantes Sacristán 2001]. Os processos de
105
Pedro Patacho

hibridação cultural e a multiplicidade esta ideia emergiu primeiramente


de referentes obrigam-nos a pensar como algo orgânico dos grupos so-
as intervenções educativas quotidia- ciais dominantes [Gramsci 1991], um
nas nas escolas não como terrenos de produto da emergência do capita-
transmissão cultura, mas como espa- lismo, um ideal abstracto imposto a
ços primordiais de desenvolvimento partir de cima no processo de conso-
da pessoa como ser produtor de cultu- lidação dos estados-nação e do libe-
ra, desviando a atenção dos produtos ralismo burguês [Zajda, Majhanovi-
culturais recebidos e impostos e adop- ch & Rust 2006].
tando como princípio a redefinição de O conceito de justiça social tem
prioridades a favor da criação cultural sido articulado por diversas teorias
anónima e quotidiana, segundo a von- que lhe têm atribuído significados
tade de cada pessoa [Certeu 1994]. nem sempre coincidentes. Diversos
autores têm utilizado o conceito de
3. A justiça social como justiça social ou para denunciar di-
concretização democrática ferentes problemas que consideram
Habitualmente, todos os partidos expressões de injustiça social ou para
políticos têm entre as suas prioridades descartar outros, que entendem per-
o combate às injustiças sociais. Mas o feitamente legítimos no contexto das
sentido das suas intervenções difere, sociedades democráticas. O longo
assim diferem também as políticas debate travado entre Nancy Fraser e
públicas e as propostas programáticas Axel Honneth [2006] sobre as ques-
para fazer face às desigualdades so- tões de redistribuição de recursos e/
ciais concebidas como injustiças que, ou de reconhecimento cultural, bem
entretanto, estão à vista de todos. O como sobre as formas de garantir a
problema parece residir no seguinte: justiça social, põe em relevo tanto
a diferença é e sempre foi constitutiva a diversidade de interpretações do
da sociedade, mas nem todas as dife- conceito como as divergências de po-
renças sociais são igualmente percep- sições no que toca a concretizá-lo nas
cionadas por todos como desigual- sociedade contemporâneas.
dades sociais. Desta forma, quando Ao contemplar o panorama con-
definimos desigualdades sociais como temporâneo em termos de análise
“diferenças que consideramos injus- das desigualdades sociais e das situa-
tas” [Therborn 2006: 4], não estamos ções de injustiça, Costa [2012] notou
realmente todos a falar da mesma coi- a coexistência de duas grandes linhas
sa, sejam elas “desigualdades vitais”, discursivas, ainda que mesmo en-
“desigualdades existenciais” ou “desi- tre estas não predomine o consenso,
gualdades de recursos”. mas, bem pelo contrário, abordagens
Além disso, é importante com- diversificadas. Por um lado existem
preender que no contexto da emer- aqueles que denunciam a forma inad-
gência dos modernos estados-nação, missível como a desigualdade no que
a ideia de igualdade social definiu-se diz respeito a determinadas catego-
como um objectivo para o qual todos rias (género, idade, raça, etnia, na-
os indivíduos e instituições foram de cionalidade, origem social, etc.) con-
certa forma forçados a convergir por diciona os arranjos sociais, ao limitar
meio de estratégias coercivas. Assim, a capacidade de acção e as possibili-
106
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

dades de participação plena na socie- significados originais e apoiados pelo


dade de determinados grupos, o que mesmo eleitorado [Bauman 2011].
configura situações de injustiça para a Certo é que nas últimas décadas o
correcção das quais se podem inven- conceito de justiça social invadiu di-
tariar soluções de redistribuição de re- versos campos dos quais até aí tinha
cursos e/ou reconhecimento cultural, permanecido razoavelmente separa-
nem sempre consensuais [cf. Fraser & do. Um destes campos é precisamen-
Honneth 2006]. te o da educação [Connell 1997]. Tem
Por outro lado, não faltam aque- surgido uma grande quantidade de
les que conceptualizam essas mes- artigos, de livros, de encontros cientí-
mas categorias como “naturalmente” ficos e outro tipo de actividades, que
constitutivas de todas as sociedades, prestam uma atenção crescente às
pelo que preferem salientar um outro relações da educação com a temáti-
tipo de categorias (a inteligência, o es- ca da justiça social. A Educação para
forço, os conhecimentos e capacida- a Justiça Social parece ter-se converti-
des aprendidos na educação formal, do numa categoria omnipresente nos
a acção individual, etc.) para rejeitar a grandes encontros científicos no âm-
necessidade de intervenções correcti- bito da educação.
vas na sociedade, quer de natureza re- A utilização frequente da prepo-
distributiva, quer de reconhecimento sição “para” na ligação da educação
cultural, argumentando que são preci- com a justiça social suscita-nos des-
samente estas últimas categorias que de logo a reflexão. Imediatamente
se encarregam de promover arranjos somos forçados a interrogar se aqui-
sociais eficientes e justos em socieda- lo que queremos é ensinar às crian-
des nas quais já existe efectiva igual- ças e aos jovens uns certos princípios
dade de oportunidades. de justiça social e mostrar-lhes que
É preciso entendermos bem de que a injustiça existe, o que não implica
falamos exactamente quando utiliza- necessariamente a existência de um
mos termos como liberdade, igual- quotidiano escolar socialmente justo;
dade e democracia, já que estas duas ou se, além disso, pretendemos tam-
linhas discursivas têm coexistido nos bém construir uma educação que seja,
debates sobre os sistemas educativos ela própria, por via da participação de-
nacionais praticamente deste os seus mocrática das várias pessoas e grupos
primórdios [Paraskeva 2005, 2007]. implicados, uma experiência quotidia-
Não devemos ignorar que uma das na caracterizada pela justiça social.
razões pelas quais a ideologia é tão Que ideia de justiça poderia servir um
poderosa é devido à sua natureza insi- propósito deste tipo?
diosa [Macedo 2012] que se manifesta Uma teoria de justiça frequente-
na conformação de um senso-comum mente invocada, dada a sua relevân-
hegemónico que de há umas décadas cia ao longo do século XX, é a de John
para cá se vem forjando num comple- Rawls [2013]. Rawls insere-se numa
xo e bizarro processo de desarticula- longa linhagem de pensadores con-
ção e (re)articulação de conceitos até tratualistas que entendem a justiça
há muito pouco tempo tidos como in- como liberdade e equidade e cujo tra-
questionáveis, mas que agora surgem balho se inscreve na fundamentação
completamente despojados dos seus do liberalismo político. Do seu ponto
107
Pedro Patacho

de vista, todas as pessoas nascem li- derá igualmente prolongar-se por


vres e iguais perante a lei, de modo um período de cerca de vinte anos.
que os princípios da justiça impedem A meio da vida, muitas pessoas são
que, seja de que forma for, a liberda- forçadas a enfrentar períodos de de-
de de alguns possa ser sacrificada em pendência extrema, quer por razões
favor de um bem maior partilhado por de ordem mental, quer por razões
outros. Rawls define um conjunto de de ordem física, mas que em todos
princípios reguladores que acredita os casos as obrigam a depender da
poderem ser universalmente aplica- prestação de cuidados por parte de
dos a todos os indivíduos e estruturas outros, dia a dia, se não mesmo hora
sociais para garantir a justiça social. a hora. Por fim, mas com uma im-
Martha Nussbaum [2014] é uma portância que é essencial, existem
das autoras que mais incisivamente cidadãos que nunca chegam a estar
tem criticado a teoria de Rawls. Do em posse das características men-
seu ponto de vista, a teoria liberal do tais e/ou físicas que lhes permitam
contrato social é um ponto de partida ser independentes. Estes estados de
equivocado para construir uma teoria dependência assimétrica são carac-
de justiça social capaz de lidar com a terísticos do isomorfismo das crian-
diversidade do mundo contemporâ- ças e dos velhos.”
neo, já que induz à definição de um
conjunto de princípios pré-determina- Mas a autora identifica ainda ou-
dos e de bens essenciais, supostamen- tros problemas na teoria de justiça de
te universais, que se focam quase que Rawls que têm profundas implicações
exclusivamente na criação de condi- para a concretização da democracia.
ções para a acumulação de riqueza. Na teoria do contrato social, tal como
Outro problema que a autora iden- aceite por Rawls, ambas as partes têm
tifica na teoria de Rawls é o facto da plena consciência das suas necessida-
tradição contratualista conceber a des materiais e das regras de funcio-
sociedade como um contrato destina- namento da sociedade. Essas partes
do à vantagem mútua em que ambas são definidas como tratando-se de
as partes são livres, independentes e adultos contraentes na plena posse
iguais. Ora, como demonstra Nuss- das suas faculdades físicas e mentais,
baum [2014: 60-61]: aproximadamente iguais em termos
“A vida, como é evidente, não é as- das suas necessidades e capazes de
sim. As pessoas reais inicialmente desenvolver um nível de interacção
começam por ser crianças indefesas social que lhes permita estabelecer
que se mantêm num estado de de- contratos, o que constitui a essência
pendência extrema e assimétrica, do conceito de vantagem mútua grato
quer física quer mental, durante as à perspectiva contratualista.
duas primeiras décadas de vida. No A armadilha desta ideia é que ao
outro extremo da vida, aqueles que conceber as pessoas desta maneira
tenham a sorte suficiente de chegar Rawls exclui uma boa parte delas (as
à velhice, terão grandes possibilida- que se encontram em situação de
des de virem a viver outra fase de dependência) e nega-lhes a possibi-
dependência extrema, quer física, lidade de fazerem escolhas políticas
quer mental, quer ambas, que po- e de participarem democraticamen-
108
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

te na sociedade, uma vez que o seu que as mesmas devem ser objecto
conceito de cooperação social se de políticas públicas.
apoia na ideia de reciprocidade entre Nussbaum [2014: 41] explicita en-
aproximadamente iguais, o que deixa tão uma lista de dez “capacidades
de fora todos aqueles que se encon- humanas centrais” não definitivas e
tram em situações de dependência. em permanente construção que con-
Do ponto de vista de Nussbaum, esta sidera relevantes tanto enquanto ins-
questão não apenas merece ser discu- trumento de comparação da qualida-
tida como deve levar a reconhecer a de de vida entre diversas sociedades,
inadequação da teoria de John Rawls como enquanto base para a formula-
para definir um conjunto de princípios ção dos princípios políticos subjacen-
que garantam a justiça social nas so- tes ao desenvolvimento de políticas
ciedades contemporâneas. públicas. Essas dez capacidades po-
Martha Nussbaum iniciou a par- dem ser entendidas como objectivos
tir da década de oitenta uma longa gerais a alcançar, tendencialmente
e intensa colaboração com Amartya programáticos, no plano político, pelo
Sen, cuja influência foi determinan- que devem ser especificados pela so-
te nas suas próprias ideias sobre a ciedade por meio de mecanismos de
justiça social. À medida que foi tra- participação democrática.
balhando com Sen, Nussbaum foi Do seu ponto de vista, toda a so-
dando uma crescente atenção às ciedade que não garanta o desenvol-
implicações dessas ideias sobre jus- vimento desses objectivos (capaci-
tiça social para a análise das políti- dades) pelos seus cidadãos e cidadãs
cas públicas. Isso levou-a a afirmar correrá o risco de não poder ser con-
que a dignidade humana é o valor siderada uma sociedade justa, uma
fundamental que uma teoria de jus- vez que todas as capacidades apre-
tiça contemporânea tem necessaria- sentadas pela autora devem à par-
mente de levar em linha de conta. tida ser consideradas fundamentais
Nesta perspectiva, justiça e direitos para o desenvolvimento integral de
humanos têm de caminhar juntos. toda e qualquer pessoa. Ao basear-
Inspirada em Sen [2012] – que -se nos direitos humanos interpre-
apresenta uma abordagem inova- tados como capacidades centrais a
dora baseada na expansão das ca- desenvolver por todas as pessoas,
pacidades humanas como condi- os princípios de justiça social que
ção básica de liberdade e de justiça Nussbaum [2014: 42-44] caracteriza
– Nussbaum substitui a expressão como inacabados e em permanente
direitos humanos pelo termo capa- construção, distinguem-se por se-
cidades e defende a existência de rem intensamente inclusivos:
um conjunto central de capacida- 1. Vida (Este princípio envolve to-
des inerentes ao desenvolvimento dos os aspectos relacionados
harmonioso dos seres humanos. com a capacidade de viver uma
Considerando que é o preenchimen- vida de duração normal, não
to destas capacidades que permite morrer prematuramente ou ter
aos indivíduos usufruir de uma vida expectativas de vida tão curtas
plena e participar democraticamen- que não valha a pena viver).
te na sociedade, a autora considera
109
Pedro Patacho

2. Saúde física (Este princípio refe- com as ausências, sentir uma


re-se não apenas à capacidade ampla variedade de emoções
de poder desfrutar de uma boa que caracterizam a experiência
saúde – inclusivamente repro- humana positiva, não estar sujei-
dutiva – como às condições físi- to à deterioração emocional por
cas e materiais que a garantam, via da ansiedade e do medo).
entre elas, dispor de uma boa 6. Razão prática (Este princípio sig-
alimentação e de uma habitua- nifica a capacidade de construir
ção apropriada). uma concepção do bem-comum
3. Integridade física (Este princípio e ter condições de reflexão críti-
refere-se à capacidade de uma ca sobre o planeamento da pró-
pessoa poder deslocar-se para pria vida).
qualquer lugar em segurança, 7. Associação (Este princípio envol-
tendo protecção contra qual- ve a capacidade de viver com e
quer tipo de violência, inclusiva- para os outros, sentir preocupa-
mente a violência doméstica e ção para com eles e empenhar-se
o assédio sexual, bem como ter em diferentes formas de interac-
total capacidade de decisão nos ção social com o outro diferen-
domínios da satisfação sexual e te. Implica também imaginar as
da reprodução). condições em que vivem outras
4. Sentidos, imaginação e pensa- pessoas em contextos próximos
mento (Este princípio significa ou distantes que não fazem parte
poder imaginar, pensar e argu- das suas relações. Implica ainda
mentar, capacidades a desen- liberdade de associação política).
volver por meio de uma educa- 8. Outras espécies (Este princípio
ção adequada que não se limite significa ter a capacidade de estar
a ensinar a ler, a interpretar e a em contacto com o mundo natu-
escrever, a ensinar ciências e ma- ral e de desenvolver uma preocu-
temática, mas que estimule a pação genuína para com o meio
imaginação e o pensamento, ambiente e a sua preservação).
aplicado ambos em experiências 9. Brincar (Este princípio envolve a
reais e na realização de escolhas capacidade de poder rir, divertir-
autónomas nos mais variados -se, recrear-se).
domínios culturais e sociais da 10. Domínio sobre o próprio ambiente
vida humana. Significa ainda (Este princípio significa, do pon-
aplicar o pensamento a áreas sal- to de vista político, a capacidade
vaguardadas pela liberdade de de participar nos processos de
expressão, como são a expressão tomada de decisão que condi-
artística, a música, a religião, etc. cionam a sua própria vida, e do
e desfrutar de experiências e vi- ponto de vista material, o direito
vências agradáveis, evitando a à propriedade, a possibilidade de
dor que não é benéfica). possuir bens, móveis e imóveis,
5. Emoções (Este princípio envol- em igualdade de circunstâncias
ve a capacidade de estabelecer que os demais membros da socie-
relações afectivas com as coisas dade, bem como o direito à pro-
e com as pessoas, amar e sofrer cura de trabalho, em igualdade
110
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

de circunstâncias com os demais Essa é, contudo, uma construção


e exercendo a capacidade da ra- necessariamente complexa e doloro-
zão prática associada ao trabalho, samente lenta, mas porque a própria
criando igualmente uma relação sociedade é complexa e porque os
de reconhecimento mútuo com processos de mudança nas institui-
outros trabalhadores). ções são lentos, dada a sua história
secular. É importante não nos esque-
Se considerarmos estes princípios cermos de que existem exemplos de
de justiça como essenciais para uma escolas que conseguiram aproveitar
vida digna nas sociedades contempo- com sucesso esses espaços de possi-
râneas, imediatamente somos força- bilidade para edificarem uma educa-
dos a colocar a seguinte questão: até ção escolar autenticamente democrá-
que ponto as nossas escolas, enquanto tica [Bean & Apple 2000; Bean 2007].
espaços supostamente democráticos Modificar a organização escolar e as
de socialização, promovem discussões intervenções educativas numa pers-
abertas e participadas sobre este tipo pectiva de participação democrática
de capacidades e as suas implicações é algo bastante difícil, mas algo que
para os conteúdos curriculares e para é possível. Como revelaram Bean e
Apple [2000: 9], quando reflectiram
as práticas educativas? Afinal, em to-
acerca das histórias de várias escolas
dos os documentos oficiais dos go-
que, com sucesso, conseguiram im-
vernos relacionados com os sistemas
plementar práticas educacionais de-
educativos a preparação de cidadãos
mocráticas e críticas,
e cidadãs educados nos valores demo-
cráticos surge habitualmente entre as “a criação de um ambiente transfor-
mais importantes finalidades. mador... simultaneamente rigoroso
e académica e socialmente crítico...
4. Educação escolar e [dispensa] uma literatura em edu-
justiça social cação [que] se encontra esgotada
de sufocantes quadros românticos,
Como já referimos anteriormen- de vitórias fáceis na luta pela refor-
te, a diversidade é um dos traços ma nas escolas. Na verdade, não há
distintivos das instituições escolares vitórias fáceis. Cada espaço impli-
contemporâneas. E se por um lado cou riscos, conquistas burocráticas
a diversidade se constituiu como um e transformações ideológicas. Con-
problema numa escola projectada tudo, perante tais tensões e desa-
para padronizar e não para reconhe- fios, estas escolas deram indícios
cer e trabalhar com a diferença, por de que, mesmo numa época do-
outro lado, as respostas entretanto minada tanto por um movimento
avançadas durante as últimas déca- que regressa às ideologias conser-
das para tentar governar a diversi- vadoras em educação quanto por
dade no seio das escolas, ainda que graves problemas fiscais, é possível
tímidas, foram abrindo alguns espa- construir e defender as políticas e
ços de possibilidade para construir di- práticas educacionais críticas nas
nâmicas de trabalho mais inclusivas e escolas, por forma a beneficiar os
respeitadoras da diferença [Gimeno estudantes, os professores e as co-
Sacristán 2008]. munidades locais.”
111
Pedro Patacho

Lembremo-nos de que as escolas apoiar-se em diferentes formas


seguem sendo, como já referimos, o de trabalhar. Este aspecto colo-
último grande espaço público de so- ca simultaneamente problemas
cialização das crianças e dos jovens organizacionais (tempos e espa-
de todas as origens e condições. Deve ços escolares estandardizados) e
ser, por isso, um espaço de construção problemas relativos à formação
quotidiana da democracia. Gimeno da classe docente.
Sacristán [2008], ao reflectir em torno • Outro tem que ver com a neces-
dos desafios colocados às instituições sidade de prevenir a alienação.
escolares pela diversidade que as in- Os professores e as professores
vadiu e que as tornou locais comple- têm de trabalhar realmente com
xos a todos os níveis, sugere-nos pen- todos os alunos e alunas que che-
sar numa estratégia de actuação que gam às escolas e não estruturar
tenha em conta vários aspectos: a sua actividade tendo em conta
• Um desses aspectos implica de- um ideal de aluno. Em vez de su-
bater e alcançar consensos sobre jeitarem as crianças e os jovens
aquilo que, na educação escolar, a uma constante produção de si
deve ser comum a todos, liber- próprios (nunca se percebe bem
tando espaço para a diversifica- em direcção a quê; por isso as
ção. Isto não é fácil porque signi- crianças e os jovens se questio-
fica consensualizar o que é que, nam frequentemente para que
embora possa parecer importan- serve realmente o que fazem
te e valioso para determinadas na escola), mas não segundo si
pessoas e grupos sociais, não próprios e para si próprios (o que
tem necessariamente de fazer significaria encontrar um sentido
parte de um currículo comum. profundo na vivência escolar), os
Este tipo de debate deve ter lu- educadores e as educadoras de-
gar ao nível macro, nos processos vem centrar-se na construção da
de tomada de decisão sobre polí- autonomia dos alunos e das alu-
tica educativa e curricular, mas nas, alimentando os seus inte-
igualmente ao nível institucional, resses, abrindo-lhes caminhos e
naquilo que é a programação das proporcionando-lhes os recursos
escolas, a construção dos seus adequados. Isso implica uma dis-
projectos educativos e planos de tribuição diversificada da aten-
actividades, bem como, ainda, ção da escola e dos professores e
naquilo que cada professor e pro- professoras aos alunos e alunas,
fessora faz a cada momento. em função das suas necessidades
• Outro aspecto tem que ver com a e das suas possibilidades promo-
simples constatação de que não vendo, por um lado, formas de
há nada mais desigual do que trabalho independente e, por ou-
tratar igualmente os desiguais. tro lado, climas de cooperação.
As pessoas têm tipos de inteli- • Um aspecto-chave está relacio-
gência e estilos de aprendizagem nado com a omnipresença do
muito diversificados. De forma manual escolar enquanto recurso
que uma escola e uma pedago- educativo praticamente único.
gia para a diversidade tem de A diversificação da organização
112
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

escolar e do trabalho da classe Thomas Popkewitz [2008: 109] co-


docente corre de mão dada com locou uma questão pertinente: “pode
a diversificação dos recursos a escola por si só garantir a edificação
educativos. Há que buscá-los e de sociedades mais justas?” É uma
há que criá-los, em vez de aguar- questão desafiadora. O autor conside-
dar serenamente que apareçam. ra que as instituições escolares vivem
• Por fim, o aspecto que o autor numa tensão quotidiana: por um lado,
considera mais ambicioso e com- têm a esperança de poder fazê-lo e,
plicado é a necessidade de rom- por outro lado, têm um receio perma-
per com os quadros organizativos
nente da diversidade que as invade
prevalecentes que promovem o
com o acesso à escola de uma quan-
trabalho individualizado em ter-
mos disciplinares (especializa- tidade crescente de franjas populacio-
ção) e as práticas classificatórias. nais tidas como “perigosas”. Ao con-
trário das estratégias que referimos
Estes são desafios complicados por- acima, as respostas que têm surgido
que, entre outras coisas, dada a sua têm sido sobretudo maneiras de man-
longa tradição, as organizações esco- ter as formas de funcionamento, bem
lares tendem “a actuar como sistemas como os currículos únicos e obrigató-
naturais”, quando a necessidade que rios, pelo que o trabalho escolar conti-
se coloca é que actuem como “siste- nua a dedicar-se à “fabricação” de um
mas abertos” que se distingam pela determinado modelo idealizado de
“variabilidade e pela permeabilidade aluno. Daí resulta, refere Popkewitz,
das suas fronteiras [Fernandéz Engui- uma exclusão paradoxalmente produ-
ta, 2007: 119-132]. Mas sendo compli- zida por estratégias que visam incluir.
cados, necessitam de ser enfrentados É por isso que quando perspectiva-
porque a escola é um bem público no mos a escola pública enquanto insti-
seio de sociedades democráticas que tuição democrática, observamos no
a encarregam de uma tarefa essencial conceito de justiça social uma força
e que corresponde à educação da ci- capaz de introduzir transformações
dadania democrática. importantes na organização escolar
Isto não se pode fazer sem partici- e nas práticas educativas. Claro que,
pação, sem debate e sem compromis- como asseverou Connell [1997], isto
sos alargados entre todas as pessoas pode parecer à primeira vista menos
e grupos interessados nas questões da evidente para todos aqueles que têm
educação pública. Evitar o necessário um bom emprego e uma vida con-
debate corresponde desde logo à pri- fortável. Não devemos esquecer que
vatização de algo que nos pertence habitualmente essas pessoas tiveram
a todos, tornando-o refém de alguns uma experiência escolar razoavel-
grupos de poder interessados em con- mente bem sucedida que beneficiou
dicionar aquilo que devem ser e fazer de uma maior proximidade dos seus
as escolas, ou dos interesses corpora- padrões de valor cultural com aqueles
tivos da própria classe docente [Fer- que as escolas tentam inculcar em to-
nandéz Enguita 2008]. dos os alunos e alunas.
113
Pedro Patacho

Giroux [1992] mostrou como para Como acertadamente nos lem-


muitas crianças e jovens de classes po- bram Donaldo Macedo e Howard Zinn
pulares e de outros grupos culturalmente [2007: 54] no seu estimulante diálogo
subordinados, o cruzamento de frontei- sobre como as escolas fabricam o en-
ras entre as suas culturas e a cultura es- gano das massas, há duas maneiras de
colar constitui na verdade um processo sabermos uma coisa: “sabermos uma
de opressão e de violência simbólica fre- coisa superficialmente, ou sabermos
quentemente marcado pelo insucesso. uma coisa que nos dá um murro no es-
Estas crianças e jovens enfrentam uma tômago. E pode dar-nos um murro no
cultura escolar que choca violentamente estômago mesmo que não sejamos ví-
com a sua cultura familiar e popular. Não timas” de discriminação, segregação
é de estranhar que sejam esses normal- e afins. Infelizmente, em resultado
mente os alunos e as alunas que cons- de um largo conjunto de intervenções
troem um forte sentido de aversão a uma educativas inadequadas que frequen-
escola que simplesmente não os com- temente caracterizam as culturas es-
preende, para além de ensaiar medidas colares [Torres Santomé 2011], existe
compensatórias que são, em si mesmas, um fosso entre a realidade tal como
ignorantes das complexas problemáticas ela é, e a representação da realidade
socioculturais que ocultam o seu insuces- que é apresentada às crianças e aos jo-
so (ou melhor, a sua dificuldade de aces- vens e que é analisada na maior parte
so) e o seu desinteresse. do trabalho que se faz nas escolas.
Este é um dos maiores problemas Desta forma, não apenas porque a
que a escola pública contemporânea educação escolar não atende verda-
enfrenta e que tem contribuído para deiramente às necessidades de todas
a estigmatização de determinados as crianças e jovens, mas também
grupos sociais que constantemente porque não apresenta uma represen-
são catalogados pelo sistema como tação correcta da realidade social, cul-
inferiores e incapazes. Isso tornou-se tural, política e económica em que vi-
ainda mais evidente com a recente vemos nas nossas sociedades, a escola
intensificação das políticas e agências é, mais vezes do que as que gostaría-
de avaliação das escolas e dos alunos mos, uma escola desinteressante, au-
e alunas. Mas relacionado com este toritária e ignorante, onde se alastram
problema há um outro não menos injustiças sociais e educativas, uma
importante. O razoável imobilismo e escola normalizadora e amestradora
a estandardização tanto dos currícu- que aparece como uma rotunda desi-
los, como dos recursos educativos e lusão quando perspectivada como ins-
das práticas educativas, impede que tituição democrática [Patacho, 2011].
seja proporcionada às crianças e aos Se pensarmos nisto, e pensarmos ao
jovens uma visão clara das diferen- mesmo tempo nas escolas como um
ças e contradições que caracterizam bem-público que deve ser construído
as sociedades contemporâneas, em democraticamente de forma parti-
particular da divisão de classes e a da cipada, e adicionarmos a estas duas
diversidade cultural. preocupações uma outra que tem que
114
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

ver com a adequação da organização cutir assuntos que são para si signifi-
escolar e das intervenções educativas cativos relativamente à educação e às
às necessidades de um mundo diversi- escolas e que apresentem argumentos
ficado em acelerada mudança no seio para justificar as suas preferências e
do qual a educação escolar continua a sugestões. Provavelmente, dada a sua
ser considerada como absolutamente responsabilidade histórica, caberá às
essencial, um repositório das espe- escolas e aos professores e professo-
ranças da sociedade na preparação ras dar o primeiro passo, de forma que
de uma cidadania educada, então, a Maxine Greene define os educadores
relação entre a educação escolar e a como activistas sociais que devem es-
justiça social emerge imediatamente. tar comprometidos com a justiça nas
Há experiências poderosas como a da suas comunidades e nas suas institui-
“Escola da Ponte” [Canário 2004] que ções escolares. É preciso que todas as
nos mostram que há outros tipos de vozes sejam ouvidas e que tudo seja
escola que é possível construir de for- submetido a debate de forma a pro-
ma democrática para promover uma duzirem-se compromissos alargados
educação verdadeiramente empode- no respeito pelas regras democráti-
radora e desalienante. cas. É desta forma que a justiça social
Torna-se difícil rejeitar ou invocar pode emergir nos contextos escolares
que não faz sentido uma perspec- como concretização da participação
tiva educativa deste tipo, centrada democrática.
na justiça social como concretiza- É importante lembrar que os con-
ção democrática, porque as pessoas teúdos curriculares são em larga me-
não querem mais autoritarismos. A dida o núcleo organizador de todo o
história do século XX encarregou-se trabalho escolar, das vidas dos profes-
de nos mostrar que esse não é o ca- sores e professoras e dos seus alunos
minho. De forma que o conceito de e alunas. Daí que falar de educação e
justiça social parece particularmente justiça social signifique falar de “jus-
bem posicionado para lidar democra- tiça curricular” [Connell 1997]. Este
ticamente com a diversidade que ca- conceito foi enormemente expandido
racteriza as escolas contemporâneas por Torres Santomé que, para além
e promover a sua transformação, das propostas de outros autores [Gi-
tanto no que diz respeito às suas for- meno Sacristán, 2001], produziu uma
mas de organização e funcionamento interpretação que pode constituir ao
como no que toca às intervenções e mesmo tempo um referencial para
práticas educativas. a análise das escolas e das interven-
Deste ponto de vista, como salien- ções educativas que nelas têm lugar, e
tou Maxine Greene [1998], a inte- uma base de trabalho para o desenho
racção é a chave. De maneira que é de inovações educativas adequadas.
necessário encontrar formas de fun- Como define na sua última obra [Tor-
cionamento que permitam que todas res Santomé, 2011: 11],
as pessoas de uma dada comunidade “A justiça curricular é o resultado de
de juntem voluntariamente para dis- analisar o currículo que se desenha,
115
Pedro Patacho

se põe em acção, se avalia e se in- quadradas por um modelo cívico de


vestiga tendo em consideração até relação com as famílias e outras insti-
que ponto tudo o que se decide e se tuições da comunidade. Na perspec-
faz nas aulas é respeitador e respon- tiva do autor, a ligação ao exterior e
de às necessidades e urgências de o debate democrático são centrais no
todos os grupos sociais; os ajuda a trabalho para a justiça curricular. Pro-
observar-se, analisar-se, compreen- por, debater e implementar projectos
de-se e julgar-se enquanto pessoas desta natureza é essencial para cons-
éticas, solidárias, colaborativas e truir uma cidadania democrática.
co-responsáveis por um projecto de
intervenção sociopolítica mais am- 5. A concluir: por um modelo
plo destinado a construir um mundo cívico de escolarização
mais humano, justo e democrático.” Um dos aspectos que distingue a
educação pública da educação fami-
Nesta obra (La justicia curricular, el liar é o ideal democrático que funda-
caballo de Troya de la cultura escolar), menta a primeira [Carvalho 2009].
Torres Santomé desenvolve uma me- Mas como temos vindo a salientar, o
táfora maravilhosa para descrever os cumprimento deste ideal depende da
problemas e os desafios ante os quais adopção de formas de organização
estamos colocados quando queremos e de funcionamento das escolas que
promover escolas democráticas. Tal sejam mais justas e das quais a par-
como o cavalo de Tróia oculto no qual ticipação democrática, a solidarie-
os gregos conseguiram entrar numa dade e a inclusão sejam os vectores
cidade em que todas as evidências estruturantes. Isto implica conceber
mostravam ser impossível penetrar, as escolas como comunidades cívicas
a justiça curricular tem o potencial de caracterizadas por relações de con-
penetrar nas culturas escolares resis- fiança que são construídas pela parti-
tentes à mudança para produzir uma cipação democrática de todos os im-
autêntica educação democrática para plicados nas instituições educativas
sociedades democráticas. [Bolívar 2006].
Para isso, argumenta o autor, é É neste quadro que faz sentido a
necessário que as escolas funcionem reivindicação de um modelo cívico
baseadas num modelo cívico de rela- de escolarização, na medida em que
ção com as famílias e a comunidade exercer a cidadania significa exercer o
imediata na qual se encontram inseri- direito de participar na vida das insti-
das. Isso implica estabelecer relações tuições públicas. Num modelo cívico
com outras instâncias educadoras e de escolarização, o pessoal escolar e
mobilizar uma ampla variedade de as famílias, bem como outras institui-
recursos do exterior. A sua propos- ções da comunidade implicadas nas
ta é a de instituições escolares ca- questões educativas, as decisões e as
racterizadas pela flexibilidade que responsabilidades são partilhadas, a
consigam ligar actividades escolares actuação acontece de forma colabo-
com actividades extra-escolares, en- rativa e os vários actores sociais as-
116
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

sumem colectivamente um projecto BAUMAN, Zygmunt


educativo no qual todos os implicados 2011: “Prefácio”, in A Democracia Im-
se possam sentir representados. posta. Diálogos com Noam Chomsky
A construção de uma comunidade e Paulo Freire, D. Macedo (Ed.), Man-
gualde: Edições Pedago, pp.7-12
cívica desta natureza, implica formas
de organização e de gestão escolar BEAN, James
baseadas na participação democráti- 2007: Integração Curricular: A Concep-
ca nas inúmeras questões que são es- ção do Núcleo da Educação Democráti-
truturantes da vida das escolas. Para ca, Lisboa: Didáctica Editora
isso têm de existir espaços públicos
BEAN, James & Michael APPLE
[Giroux 2009] plenamente participa-
2000: Escolas Democráticas, Porto:
dos nos quais possam ser debatidos
Porto Editora
e discutidos diversos assuntos que
se revestem de interesse para os do- BOLÍVAR, Antonio
centes e para as famílias por estarem 2006: “Familia y escuela: dos mundos
umbilicalmente ligados aos proble- llamados a trabajar en común”, Revis-
mas que se colocam no momento de ta de Educación, nº 339, pp.119-146
decidir que modelo educativo privi-
CANÁRIO, Rui
legiar. Se tanto as famílias como a
2004: Escola da Ponte, Porto: Profedições
classe docente e outras instituições
da comunidade estão em princípio 2005: O que é a Escola? Um “olhar”
interessados em proporcionar uma sociológico, Porto: Porto Editora
boa educação às crianças e aos jo-
CARVALHO, Maria E. P.
vens cujo cuidado partilham, então
2009: Rethinking Family-School Re-
as suas ideias têm de ser debatidas,
lations. A Critique of Parental Invol-
têm de ser gerados compromissos e
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têm de ser concebidos projectos co- Routledge
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Pedro Patacho

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organized in permanent dialogue with
VICH & Val RUST
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2006: “Education and Social Justice:
involving all social groups and institu-
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Global Culture”, in Education and So-
and creating conditions for everyone
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to be heard, respected, and to coope-
Majhanovich, Val Rust e Elvira Martin
rate and participate freely and fully in
Sabina, Dordrecht: Springer, pp.1-12
school education of citizens commit-
ted to the practice of democracy.
Title: School Education, Keywords: educational systems,
Democracy and Social Justice school education, school culture, de-
mocratic education, social justice,
Abstract curricular justice, education and de-
mocracy.
National education systems are a
recent Western invention. Since its in-
ception has been crossed by economic,
Pedro Patacho
social, cultural and political tensions,
Doutor em Educação pela Univer-
immersed in power dynamics that are
sidade da Corunha (Espanha). É Pro-
constitutive of social reality. We argue
fessor Adjunto no Instituto Superior
in this article that nowadays, the result
de Ciências Educativas (Odivelas,
of these tensions is a hegemonic na-
Portugal) e investigador no Centro
tional model of education fraught with
de Investigação do Instituto Supe-
contradictions. We begin by situate
rior de Ciências Educativas (CI-ISCE
the emergence of national education
– Odivelas, Portugal) e no Centro de
systems and to characterize its foun-
Recursos Pedagógicos da Faculdade
dations. Then we identify some of the
de Ciências Sociais da Universidade
paradoxes with which they were faced
Agostinho Neto (CEREPE – Luanda,
during its development not providing,
Angola). As suas principais áreas de
especially from the second half of the
investigação são o campo da inves-
twentieth century, the security promi-
tigação etnográfica em Educação e
ses and welfare. Contemporary public
das políticas educativas e curricula-
education is then characterized as a
res, em particular: educação e justiça
space of diversity forced to be rethou-
social; participação democrática nas
ght, specially when viewed in the light
escolas; educação e activismo social;
of democratic values, an d because the-
análise de políticas educativas.
re are some crystallized school cultures
that already proved to be inadequate E-mail: ppatacho@yahoo.com
120
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

Desafios do ensino primário


público em Angola:
a perspectiva dos agentes
educativos do
Lobito ao Luena

Resumo
O presente estudo de caso comparativo pretende identificar os principais de-
safios ao nível do ensino primário público nas províncias angolanas de Benguela,
Huambo, Bié e Moxico, outrora unidas pelo Caminho-de-Ferro de Benguela, mas
cuja destruição durante a guerra civil poderá ter causado disparidades geográfi-
cas. Considerando os efeitos da longa guerra civil e as medidas introduzidas pela
recente reforma educativa, o estudo procura avaliar se os desafios ao nível do
acesso às escolas e qualidade do ensino são os mesmos ou se tendem a ser mais
acentuados ao longo do Corredor do Lobito, consoante aumenta o afastamento
aos centros de decisão económica e política, localizados no litoral do país. Atra-
vés da visita a várias escolas do ensino primário em cada uma das províncias e
da realização de entrevistas a diferentes intervenientes do sistema educativo,
o estudo conclui que, embora possam existir importantes assimetrias regionais
em vários indicadores de educação, as escolas das quatro províncias apresentam
muitos dos mesmos desafios e que comprometem a qualidade do ensino primá-
rio no seu todo.

Palavras-chave: Ensino primário, qualidade do ensino, professores, refor-


ma educativa.
121
Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

Introdução corpo docente, quer ainda do acesso


Desde que a guerra civil em An- dos alunos à Escola. Contudo, o seu
gola terminou com a assinatura do impacto foi diferenciado em alguma
Memorando para a Paz, em Abril de medida quando comparamos as pro-
2002, o país tem sido alvo de acções víncias ou centros urbanos relativa-
substanciais em diversas áreas, par- mente às áreas rurais. Assim sendo, é
ticularmente nas infraestruturas e pertinente efectuar um estudo entre
nas províncias. Apesar disso, Angola diferentes províncias do litoral (Ben-
é hoje um país marcado por fortes guela), centro (Huambo e Bié) e Leste
contrastes e disparidades regionais, (Moxico) do país, no que concerne à
tanto mais acentuados quanto maior qualidade do ensino primário.
a distância aos centros de decisão A escolha das quatro províncias
económica e política, que se situam em estudo deve-se também ao facto
sobretudo no litoral, isto é, em Luan- de terem estado unidas pelo Cami-
da e em Benguela. A forma como a nho-de-Ferro de Benguela (CFB), no
guerra civil afectou o país foi bastan- chamado Corredor do Lobito, cuja
te díspar, quer em termos de inten- destruição durante a guerra deverá
sidade, quer em termos regionais, e (poderá) ter condicionado o desen-
essa diferenciação espacial do im- volvimento do ensino primário nessas
pacto da guerra estendeu-se igual- regiões de forma assimétrica e trazido
mente ao sistema de ensino, nomea- distintos desafios. Mesmo depois da
damente ao ensino primário. Mas é recente reabilitação dessa importan-
evidente a necessidade de recursos te linha ferroviária, não é crível que a
humanos capazes de fazer erguer o recuperação do atraso neste nível de
país, o que exige um sistema formal ensino tenha sido atingido.
de educação que funcione com nor- O interesse pela investigação deste
malidade e estabilidade, isto é, que tema tem a ver com a possibilidade
as condições ligadas à existência de de, conhecida a realidade, poder en-
escolas, vias de acesso às mesmas trar pelo domínio normativo da políti-
e um corpo docente preparado ga- ca pública que é a educação no ensino
rantam a inclusão dos alunos e a sua primário, e por se constatar a existên-
qualidade. Por outro lado, e enca- cia de uma escassez de estudos nesta
rando este sector numa perspectiva área em Angola. Contemplar não ape-
de longo-prazo, o edifício formativo nas o panorama nacional, do ponto de
implica que o ensino primário deva vista estatístico, muitas vezes desfa-
ser uma aposta consistente que pre- sado da realidade, mas considerar as
parará as futuras gerações a estarem especificidades regionais através de
capazes de absorverem os ensina- dados qualitativos ricos em pormeno-
mentos mais aprofundados e espe- res descritivos, é uma proposta deste
cializados que os níveis secundário e artigo. Ao dar a conhecer os principais
terciário transmitirão. desafios do ensino primário público
A guerra civil em Angola foi um fac- nas províncias do Corredor do Lobito,
tor marcante no dia-a-dia dos seus ci- na perspectiva de diferentes agentes
dadãos. O ensino foi fortemente afec- envolvidos no sistema educativo, é
tado quer do lado das infraestruturas possível contribuir para o preenchi-
físicas, quer da disponibilidade do mento de uma lacuna importante no
122
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

conhecimento científico: a reflexão cos e teóricos em vez de critérios pro-


crítica e qualitativa da reforma edu- babilísticos, buscando-se não a unifor-
cativa no âmbito do ensino primá- midade mas as variações máximas”
rio em Angola através de um olhar [Bravo & Eisman 1998: 254]. A grande
transversal do país do litoral ao Leste, vantagem de uma amostra intencio-
com vista à melhoria da qualidade da nal reside no facto de exigir menos re-
educação no país. Finalmente, o en- cursos, justificada pelas condições no
foque incidirá sobre a escola pública país e os apoios disponíveis; por outro
que assegura mais de 90% do ensino lado, esta técnica de amostragem li-
primário no país e seguramente mais mita a generalização dos resultados
ainda, quando se centra a análise nas do estudo [Lodico et al. 2006]. Nunca
quatro províncias em estudo. Assim, é demais lembrar que o paradigma in-
o objectivo deste artigo (estudo de terpretativo em que se insere um es-
caso) consiste em identificar os princi- tudo de caso não tem por objectivo a
pais desafios presentes nas escolas do verificação da prova com vista à gene-
ensino primário público das províncias ralização, mas sim a análise e a desco-
angolanas de Benguela, Huambo, Bié berta de singularidades num contexto
e Moxico, utilizando entrevistas direc- específico, pelo que os resultados des-
tas aos diversos stakeholders envolvi- ta investigação dizem respeito apenas
dos (professores, directores de esco- aos casos de estudo, não tendo sido
las, alunos, técnicos na administração extrapoladas conclusões ao nível na-
pública e encarregados de educação). cional mas apenas pistas para investi-
A hipótese subjacente consiste em gações futuras.
considerar que os contragimentos Uma vez que a problemática desta
no acesso e na qualidade do ensino investigação incide sobre os desafios
primário público deverão aumentar do ensino primário público nas pro-
ao longo das províncias atravessadas víncias do Corredor do Lobito, as es-
pelo CFB, quando nos afastamos do colas foram o objecto central da pes-
litoral urbano de Benguela e caminha- quisa qualitativa, já que reuniam em
mos para o interior Leste, mais rural e si os principais intervenientes no sub-
mais afectado pela guerra civil (suces- sistema educativo primário que cons-
sivamente Huambo, Bié e Moxico). tituíram a amostra. Em cada provín-
cia, a não-aleatoriedade da amostra
Educação em Angola: Problema, de participantes foi conseguida atra-
método e considerações teóricas vés da visita a escolas urbanas e da
Neste artigo são apresentados da- periferia, referenciadas por contac-
dos primários recolhidos no trabalho tos locais e pelas respectivas Direc-
de campo que decorreu durante o mês ções Provinciais de Educação (DPE).
de Novembro de 20131. A constituição Foram visitadas, sobretudo, escolas
da amostra foi sempre intencional, públicas por serem as mais represen-
“baseando-se em critérios pragmáti- tativas do ensino primário nacional,

1
O trabalho de campo levou um dos co-autores, Frederico Cavazzini, a deslocar-se às quatro men-
cionadas províncias e que serviu posteriormente para fundamentar a sua Tese de Doutoramento, O
acesso e a qualidade do ensino primário em Angola (2002-2012): estudo de caso das províncias de
Benguela, Huambo, Bié e Moxico.
123
Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

nomeadamente nas províncias de es- amostra com a mesma dimensão.


tudo, embora também tenham sido Assim, o processo de amostragem
visitadas algumas escolas privadas e ficou concluído quando se começou
comparticipadas. a constatar uma certa saturação da
Ao contrário das amostras proba- amostra, isto é, que se estava a che-
bilísticas presentes nos estudos de gar ao ponto a partir do qual os dados
carácter quantitativo, nesta investi- já não acrescentavam nada de novo à
gação o processo de amostragem foi investigação.
dinâmico e sequencial, começando na Os dados qualitativos foram ob-
província de Benguela e terminando tidos a partir de quarenta e sete en-
na província do Moxico e a amostra foi trevistas semiestruturadas realizadas
sendo ajustada à medida que surgiam a vários agentes do sistema educati-
novas pistas de estudo e mediante as vo em vinte e seis escolas primárias
condições encontradas no terreno. e algumas instituições académicas,
A acessibilidade foi um factor tido religiosas e do governo provincial. A
em conta no processo de identifica- participação no Fórum Provincial de
ção e visita às escolas que, sendo li- Educação Para Todos no Huambo
mitativo, não foi de exclusão. Procu- (FP-EPT) permitiu um contacto adi-
rou-se ter uma noção da realidade do cional com vários professores da pro-
ensino primário, não só em contexto víncia. Durante o processo de investi-
urbano, mas também periférico e gação, procurou-se sempre “proteger
rural. Deste modo, as escolas que se a identidade dos investigados”, bem
encontravam localizadas em zonas como “assegurar a confidencialidade
afastadas do centro urbano obriga- da informação que fornecem” [Lima
ram a recorrer, frequentemente, ao 2006: 145] para que esta (a informa-
uso dos meios de transporte tradi- ção recolhida) não pudesse “causar-
cionais no contexto angolano (ku- -lhes qualquer tipo de transtorno ou
papatas e candongueiros). Contudo, prejuízo” [Bogdan & Biklen 1994: 77].
em alguns casos, poderá ter havido Como os participantes, na sua maio-
enviesamento das escolas visitadas ria, não se sentiram confortáveis com
por parte das DPE das províncias de a gravação da conversa, as entrevistas
estudo, às quais foi solicitada colabo- foram anotadas e, de forma a prote-
ração na identificação das escolas. ger a confidencialidade das respostas
As condições de acessibilidade e a e impossibilitar a identificação dos es-
acumulação repetitiva dos mesmos tabelecimentos escolares, atribuiu-se
dados explicam por que razão a di- a cada escola um código alfanuméri-
mensão da amostra em cada província co que combina o nome da província
é diferente: se em Benguela e Huam- com o número concedido à escola: por
bo houve maior facilidade no acesso exemplo B1 (Benguela), H1 (Huambo),
às escolas, já no Bié e no Moxico esse Bi1 (Bié) e M1 (Moxico).
acesso foi mais difícil. Parte da infor- O objecto central da investigação
mação recolhida em torno dos princi- implicou uma reflexão sobre o concei-
pais desafios do ensino primário não to de qualidade da educação. Trata-se
variava muito daquela que foi obtida de um conceito difícil de definir e, por
nas províncias anteriores, pelo que isso, difícil de medir. A OCDE começou
não houve necessidade de obter uma por observar que o conceito de quali-
124
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

dade era frequentemente reduzido ao ma no seu todo. Contudo, o acesso


nível dos resultados cognitivos [Mitter deve ser mais do que a matrícula e é
& Schäfer 1991: 44]. Alguns autores importante garantir que as crianças
sugerem que os resultados atingidos não se limitam a frequentar o ensino
pelos alunos, a taxa de repetição e a primário, mas que o completam. Po-
taxa de promoção são os principais rém, se houver acesso universal sem
indicadores de qualidade [Wolff et al. qualidade significa que apenas está
1994: 17], enquanto outros preferem a ser oferecida escolaridade e não a
associar a qualidade da educação à aprendizagem que inclua a aquisição
qualidade da escola [Gannicott & de conhecimentos, aptidões e valores
Throsby 1992: 225] e, dada a relação para a vida. E se houver qualidade sem
entre educação e desenvolvimento, acesso universal significa que o ensino
considerar que o acto educativo deve é positivo, mas está disponível apenas
ser visto “como investimento para o para alguns.
desenvolvimento” [Zau 2009: 465]. Em suma, se a estratégia educa-
Bergmann [1996: 586], por seu turno, tiva não for acompanhada por um
entende que a definição de qualidade enfoque na qualidade, mais esco-
deve ter em consideração a natureza laridade não irá traduzir-se em me-
sistémica do sistema educativo, ou lhores resultados de aprendizagem
seja, os diferentes componentes da individuais e, consequentemente,
função de produção (recursos, proces- não irá ter impacto no crescimento
sos e resultados) e que a qualidade da económico [Kenny 2010; Hanushek &
educação depende da qualidade des- Wößmann 2007, 2010].
ses componentes.
Apesar das diferentes percepções, Reforma educativa em Angola: que
parece ser consensual que uma edu- implicações?
cação primária de qualidade pode ser Com o aproximar do fim de uma
entendida como o processo através longa guerra civil que, mais que des-
do qual professores qualificados utili- truir, foi uma guerra para matar [Car-
zam as técnicas e os recursos pedagó- valho 2002: 25], o sistema educativo
gicos adequados para ensinar os con- angolano caracterizava-se por um
teúdos curriculares, de forma eficaz e corpo docente reduzido e pouco qua-
inclusiva, a crianças saudáveis, bem lificado, fraca cobertura, taxas de re-
nutridas e aptas a participar e apren- provação superiores a 35% e taxas
der, num ambiente escolar seguro e de abandono escolar acima de 30%
que permita o desenvolvimento pleno [Governo de Angola 2001a: 71]. Foi
da personalidade e da cidadania [UNI- neste contexto que foi aprovado um
CEF 2000: 4]. novo Estatuto Orgânico para o Minis-
O nível de acesso e de eficiência tério da Educação [Governo de Ango-
interna do sistema (taxas de apro- la 2000] e promulgada a nova Lei de
vação, reprovação e abandono) são, Bases do Sistema Educativo (LBSE)
também, considerados parte inte- [Governo de Angola 2001b]. A LBSE
grante da qualidade do ensino, já que definiu os princípios orientadores da
a análise da qualidade dos recursos segunda reforma educativa que co-
e dos processos educativos permite meçou a ser preparada em 2002 e foi
compreender a qualidade do siste- sendo implementada gradualmente
125
Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

entre 2004 e 2011, visando expandir a sos materiais e humanos no processo


rede escolar, melhorar a qualidade do de reconstrução nacional e de difundir
ensino e reforçar a eficácia e equidade o uso das línguas nacionais no ensino
do sistema de educação [Governo de [Governo de Angola 2001a: 44-46].
Angola 2010: 5]. Actualmente, o sistema educati-
A segunda reforma educativa era vo está estruturado em três níveis
vista como uma oportunidade para de educação: primário, secundário e
a consolidação da paz, crescimento superior. O ensino primário, em par-
económico e desenvolvimento hu- ticular, compreende agora um perío-
mano em Angola, mas dada a sua do obrigatório de seis anos (da 1.ª à
natureza abrangente e a falta de re- 6.ª classe), em vez dos quatro anos
cursos financeiros para realizar todas de escolaridade obrigatória do siste-
as actividades necessárias à transição ma de ensino anterior, e oferece um
para o novo sistema educativo, foi subsistema de ensino geral que inclui
aprovado um Plano de Implementa- a educação regular (para crianças a
ção Progressivo [Governo de Angola partir dos 6 anos) e o subsistema de
2005a] já que, segundo o Ministério educação de adultos, composto pela
da Educação, “quanto mais rápido se alfabetização e pós-alfabetização (a
pretende avançar, mais recursos fi- partir dos 15 anos).
nanceiros são necessários” [Governo No plano curricular, a LBSE de-
de Angola 2009: 10]. termina no Artigo 18.º que o ensino
Para assegurar o direito à educação primário tem como objectivo “de-
previsto na LBSE, foi adoptada a Es- senvolver e aperfeiçoar o domínio da
tratégia Integrada para a Melhoria do comunicação e da expressão”, “aper-
Sistema de Educação [Governo de An- feiçoar hábitos e atitudes tendentes à
gola 2001a] que estabeleceu três fases socialização”, “proporcionar conheci-
de actuação sobre o ensino em Ango- mentos e capacidades de desenvolvi-
la, entre 2001 e 2015: a Fase de Emer- mento das faculdades mentais”, “esti-
gência (2001-2002), com vista a ali- mular o espírito estético com vista ao
viar, de forma rápida, as necessidades desenvolvimento da criação artística”
mais imediatas, nomeadamente atra- e “garantir a prática sistemática de
vés da construção e apetrechamento educação física e de actividades gim-
de novas escolas, fornecimento de nodesportivas para o aperfeiçoamen-
materiais escolares e recrutamento to das habilidades psicomotoras” [Go-
de professores; a Fase de Aplicação verno de Angola 2001b].
dos Fundamentos do Novo Sistema A persecução destes objectivos de-
(2002-2006) e que se prendia com a verá permitir que os alunos, à saída da
adopção da LBSE em função dos de- 6.ª classe, tenham desenvolvido um
safios nacionais e das necessidades conjunto de conhecimentos e capaci-
educativas das populações de cada dades a nível do saber (comunicação
uma das províncias; e a Fase de Con- e expressão oral e escrita, capacidade
solidação e Alargamento do Sistema de estudo, memorização e raciocínio,
Educativo (2006-2015), com o objec- familiaridade com o meio natural e so-
tivo de atingir uma taxa real de esco- cial circundante, entre outros), a nível
larização nacional de 100% em 2015, do saber-fazer (aplicação das capaci-
de promover a valorização dos recur- dades adquiridas a novas situações) e
126
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

a nível do ser (cumprimento de regras de alunos mais velhos, matriculados


e normas de conduta e respeito pela no ensino primário devido à entrada
realidade cultural angolana, pelo meio tardia ou à elevada taxa de reprova-
ambiente, pela saúde e pela higiene) ção, e que bloqueiam a entrada das
[Governo de Angola 2003: 8-9]. crianças em idade oficial e impedem
No novo sistema de educação, os o cumprimento do objectivo de aces-
programas de ensino passam a ser so universal ao ensino obrigatório,
uniformes para todas as disciplinas ainda que isso signifique que possam
nos diferentes subsistemas e, em teo- chegar à 6.ª classe alunos com sérias
ria, existe cobertura total de manuais dificuldades ao nível da escrita, lei-
escolares no ensino obrigatório, sen- tura e compreensão. Mais ainda, a
do distribuídos gratuitamente pelo política de redução de turmas para
governo. O português continua a ser a 35 alunos não é compatível com ele-
língua de ensino, mas algumas línguas vadas taxas de repetição, o que tam-
nacionais começaram a ser introdu- bém explica a opção pelas classes de
zidas a título experimental no ensino transição automática.
primário e nos magistérios primários.
Naturalmente, estas medidas po-
O anterior modelo de avaliação dem comprometer a qualidade do pro-
pautava-se pela avaliação sumativa cesso de ensino e aprendizagem, ainda
e por um excesso de provas que, no que o acesso universal seja alcançado.
entender do Ministério da Educação, Como estratégia preventiva, o Ministé-
tornava a experiência das crianças na
rio da Educação apostou na já referida
escola primária num processo de in-
redução da dimensão das turmas e na
teriorização de “sucessivos fracassos
adopção do regime de monodocência
que os convencerão de que não são
da 1.ª à 6.ª classe, entendendo que a
capazes de serem bem-sucedidos no
aposta na avaliação contínua, em tur-
futuro” [Governo de Angola 2003: 10-
11]. As novas concepções para a ava- mas de menor dimensão, permitirá um
liação das aprendizagens primam pela melhor e mais individualizado acom-
avaliação processual, com uma redu- panhamento dos alunos, sempre pelo
ção do número de provas realizadas, e mesmo professor.
introduzem classes de transição auto- Ver-se-á mais à frente se, de facto,
mática no ensino primário, que passa a qualidade do processo de ensino e
a estar estruturado em três ciclos de aprendizagem foi salvaguardada, no-
aprendizagem (de dois anos cada) meadamente se professores e alunos
onde a classe inicial de cada ciclo é de recebem os materiais didácticos ne-
transição automática e a classe termi- cessários, se as turmas cumprem os
nal de cada ciclo é de transição condi- requisitos numéricos recomendados,
cionada aos resultados. se os professores do ensino primário
Na realidade, a opção educativa estão preparados para leccionar mais
da introdução de classes de transição dois anos (5.ª classe e 6.ª classe) em
não se deve apenas à preocupação do regime de monodocência e como to-
governo em evitar “traumas” de fra- das estas inovações se reflectem hoje
casso escolar logo a partir do ensino na qualidade do ensino primário das
primário, mas também à necessida- províncias de estudo, na opinião dos
de de fazer fluir o elevado número vários agentes do sistema educativo.
127
Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

Estará a qualidade do ensino primá- matrícula e que tendem a ocorrer com


rio assegurada ou haverá ainda um mais frequência quanto mais tardia é
longo caminho a percorrer? a entrada na escola:
Com a aprovação da LBSE em “Muitos encarregados [de educação]
2001, assistiu-se a uma forte expan- falsificam dados e dizem que os filhos
são da capacidade de admissão de têm 8 anos, mas nós vemos que são
novos alunos no ensino primário grandes.” [Director da escola H2]
através da construção/reabilitação
de várias escolas e do recrutamento Por outro lado, a reprovação de
em massa de professores, embora classe nem sempre atinge os alunos
não na mesma proporção por todo o mais fracos, mas sim os mais vulne-
território angolano. ráveis, afectando a sua auto-estima,
Ainda assim, uma grande percenta- motivação e perspectivas de maior
gem de crianças continua fora do en- escolarização, pois a reprovação é,
sino primário devido à entrada tardia, frequentemente, encarada como um
sinal de incapacidade para os estudos.
ao abandono precoce da escola ou
Nas províncias do Corredor do Lobito,
ao não cumprimento dos requisitos
a reprovação não foi considerada um
necessários para a realização da ma-
constrangimento do sistema e as de-
trícula. A respeito deste tema, obtive-
sistências são encaradas como trans-
ram-se as seguintes observações:
ferências para outras escolas:
“Nesta escola todas as crianças têm
“Aqui e nas escolas situadas no cen-
que ter documento de identificação
tro, [o abandono] é baixo. O que
para fazer a matrícula. Os pais das acontece mais são transferências
crianças que não têm cédula assu- de uma escola para outra quando os
mem o compromisso de que vão re- pais mudam de residência.” [Direc-
gularizar a situação durante o ano tor da escola B1]
escolar. Na verdade, a cédula é gra-
“O abandono escolar é baixo, mas
tuita por isso só mesmo por desleixo
dos 1037 alunos matriculados este
dos pais é que uma criança não se
ano, houve cerca de 200 desistên-
matricula.” [Professor da escola B1]
cias. Essas desistências devem-se
“Apesar de o bilhete de identidade e sobretudo à mudança da área de
certidão de nascimento serem docu- residência ou mudança para uma es-
mentos obrigatórios, há pais descui- cola que ofereça merenda escolar.”
dados ou crianças que só vivem com [Director da escola H7]
tios e não foram registadas. Mas
acabamos por ser tolerantes pois as Apesar dos entrevistados estarem
filas para obter esses documentos satisfeitos com as taxas de aprovei-
são muito grandes e muitos pais aca- tamento no ensino primário, sabe-se
bam por desistir.” [Subdirector da que, em parte, tal facto resulta da
escola B10] introdução de classes de promoção
automática. Uma vez que o desper-
No Huambo, por exemplo, alguns dício ocorrido nessas classes se deve
agentes educativos chamaram a aten- somente às desistências dos alunos,
ção para o problema da falsificação combater o abandono escolar conti-
dos documentos exigidos no acto da nua a ser um desafio relevante e que
128
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

não deve ser ignorado. A razão pela mento da única casa de banho para os
qual persiste esta ineficiência do sis- mais de 1000 alunos matriculados.
tema prende-se com o facto de as fa- No Bié e Moxico, o abastecimento
mílias suportarem vários custos com de água e a falta de iluminação foram
a colocação dos seus filhos na escola, constrangimentos identificados na
apesar de o ensino primário ser, ofi- maioria das escolas visitadas, além da
cialmente, gratuito. Além do unifor- falta de áreas para a prática de educa-
me escolar e, em alguns casos, livros ção física ou de bibliotecas. Em com-
e material escolar básico, as famílias paração com Benguela e Huambo, as
são muitas vezes chamadas a contri- escolas mais recentes ou reabilitadas
buir informalmente para custear pe- das duas províncias mais a Leste do
quenas reparações, materiais escola- Corredor do Lobito apresentavam
res ou despesas correntes da escola, piores condições para um ambiente
como limpeza e segurança. de aprendizagem seguro e de qualida-
A aprendizagem pode ocorrer em de. De facto, o “boom” da rede escolar
qualquer lugar, mas os melhores re- tem criado oportunidades para a dis-
sultados tendem a verificar-se em torção à custa da baixa qualidade das
ambientes adequados, não só para os construções e de um aproveitamento
alunos, mas também para os profes- dos recursos públicos para enriqueci-
sores, ou seja, em escolas bem equi- mento de elites locais:
padas, com uma infra-estrutura ade- “Há muitas escolas novas já a cair e
quada e segura, e localizadas próximo isso tem que ver com o empreiteiro,
das comunidades. que recebe cerca de dois terços do
Nas quatro províncias de estudo valor do projecto. A escola é construí-
foram encontradas escolas em bom e da com base na terça parte do valor
em mau estado de conservação, sendo cabimentado, mas, por atrasos, mau
que à medida que se avançava para planeamento ou falta de qualifica-
o Leste, as carências, quer a nível da ção da mão de obra, fica inacabada.
construção, quer a nível do mobiliário E para acabar há duas hipóteses: são
escolar, eram cada vez mais visíveis. feitos pequenos ‘remendos’ ou então
Todas os entrevistados das escolas é a própria escola a terminar a obra.
visitadas em Benguela confirmaram a Muitas destas empresas de constru-
existência de água e luz (com excep- ção pertencem a pessoas ligadas ao
ção da escola primária B6), ou de sani- governo local, portanto o que acon-
tários (com excepção da escola primá- tece é que não há responsabilização
ria B7 e B10). pois as entidades fiscalizadoras são
No Huambo, o director da escola H1 também as que executam os projec-
referiu que existia um gerador eléctri- tos.” [Sacerdotes]
co, mas que falhava frequentemente,
e que havia necessidade de adquirir As entrevistas realizadas nas esco-
uma electrobomba para retirar a água las primárias das quatro províncias su-
em condições. Na escola H4 existia gerem que são as escolas localizadas
um tanque e uma cacimba onde a em meios menos desenvolvidos que
água era guardada, ao contrário da es- enfrentam as maiores dificuldades de
cola H7 que não tinha qualquer forma funcionamento e onde existe maior
de acesso a água, levando ao encerra- desinteresse dos encarregados de
129
Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

educação, pois a escassez de recursos todas as escolas nem nas províncias


financeiros, tendencialmente maior da mesma maneira.” [Docente da
nos meios rurais ou da periferia urba- Universidade B1]
na, impossibilita a recolha de contri- “Tivemos merenda escolar até 2009.
butos essenciais para a realização de A DPE diz que são muitas as escolas
pequenas melhorias na infra-estrutu- a precisar e que a prioridade são as
ra e na aquisição dos materiais esco- escolas da aldeia por isso agora não
lares em falta. temos. Desde então, fizemos uma
A merenda escolar é outro impor- campanha de sensibilização aos pais
tante indicador da qualidade do am- para prepararem um lanche, seja um
biente de aprendizagem, existindo sumo ou bolachas.” [Director da es-
consenso internacional de que o seu cola H2]
papel é, também, transversal a outras “Já tivemos [merenda escolar], mas
áreas, nomeadamente como incen- depois usaram a desculpa que sen-
tivo à procura escolar, na redução da do esta uma escola no centro, os
taxa de repetição e na qualidade das encarregados de educação podem
aprendizagens (crianças bem alimen- fornecer o lanche,” [Subdirector da
tadas tendem a ter maior atenção nas escola H3]
aulas e a alcançar melhores resulta- “A introdução da merenda escolar
dos). O programa da merenda esco- este ano [pela ONG People in Need]
lar assume especial importância no vai fazer com que muitos alunos da
contexto de pobreza e insegurança comunidade e arredores procurem
alimentar que afecta grande parte do a nossa escola. A merenda é feita à
país, em especial nos meios rurais. base de produtos locais, como o fun-
je, ao contrário da merenda do Es-
As entrevistas sugerem que existe
tado que é composta por um sumo e
uma prioridade na implementação da
bolachas, e não alimenta tão bem os
merenda escolar nas províncias mais alunos como uma refeição quente.”
afastadas do litoral e, dentro destas, [Director da escola Bi1]
nos municípios rurais, sobretudo no
“Aqui a merenda escolar é assegura-
Moxico. Porém, muitas escolas elegí-
da pelo governo em conjunto com or-
veis ainda não têm implementado este
ganismos privados. Recebemos leite,
programa e na maioria daquelas onde
açúcar, arroz, funje, mas como não
ele funciona, deve-se à acção de orga-
temos cantina, improvisamos.” [Di-
nizações não-governamentais (ONG): rector da escola M2]
“Temos merenda escolar através de
uma ONG que fornece papas aos A dimensão das turmas e o número
alunos e, com isso, temos trazido de alunos por professor são outras va-
mais crianças para a escola.” [Direc- riáveis consideradas na avaliação do
tor da escola B4] ambiente de aprendizagem, embora
“As escolas que oferecem merenda não exista ainda consenso quanto à
escolar têm um nível de assiduida- relação entre estas variáveis e o nível
de muito maior porque as crianças de desempenho escolar. A este res-
vão lá comer. O problema é que o peito, eis as principais observações
programa não está a funcionar em pelos entrevistados:
130
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

“O bairro está a crescer e por isso “Sempre falta algum material, mas
temos tido turmas maiores, algu- vamos conseguindo resolver. Nos
mas com 45 alunos. Também te- municípios mais longe os problemas
mos falta de salas de aula e, por são maiores e os pedidos demoram
isso, algumas funcionam lá fora, mais tempo a ser atendidos.” [Direc-
debaixo das árvores.” [Professor tor da escola Bi2]
da escola B3] “Temos mais problemas com os mate-
“Tínhamos turmas ao relento, mas riais escolares. O giz não pega, o qua-
depois das obras, a DPE disse que dro está velho, faltam cadernos. Por
tínhamos que acabar com isso, que isso, reunimos com os pais e pedimos
não ficava bem para a escola. Isso 100 kwanzas de 3 em 3 meses. Os pais
fez com que tivéssemos que aumen- têm colaborado bem, entendem a si-
tar a dimensão das turmas para 40 e tuação e costumam vir às reuniões de
50 alunos. Apenas quatro turmas da pais.” [Director da escola M1]
iniciação continuam a funcionar ao
ar livre.” [Subdirector da escola H3] Em várias escolas visitadas, foi
“Como as turmas são muito grandes, destacado o facto de, agora, os ma-
nuais escolares serem entregues a
as aulas são mais uma ‘brincadeira’
tempo do início do ano lectivo e em
porque é difícil para o professor man-
quantidade suficiente. Porém, ainda
ter a atenção dos alunos.” [Director
existem escolas que se vêem obriga-
da escola Bi1]
das a distribuir o mesmo livro por vá-
“Tem havido muita construção, mas rios alunos, ou a esperar que os pais
é preciso abrir mais salas de aula. Te- os adquiram no mercado informal.
mos turmas com 50, 60 crianças, e O “negócio dos manuais escolares”
ainda muitas escolas com classes ao é uma realidade transversal ao país
ar livre.” [Director da escola Bi2] e consiste no desvio e comercializa-
ção de livros escolares nos mercados
A disponibilidade de meios para o de rua, a preços especulativos, com
processo de ensino-aprendizagem é vista a satisfazer a procura de livros
fundamental num ensino de qualida- gratuitos que não chegam às esco-
de. De uma forma geral, os agentes las. Apesar da objecção do governo
educativos reconheceram que os ma- em relação a estas práticas, conside-
teriais essenciais nem sempre são dis- radas ilegais (visto que a sua distri-
tribuídos em quantidade suficiente, buição deveria ser gratuita a todos
embora a situação actual esteja bas- os alunos do ensino primário), a co-
tante melhor que no passado recente. mercialização destes materiais existe
Problemas de comunicação com as re- e continua a ser a forma encontrada
partições de educação locais ou fraco por alguns pais para ultrapassar a fal-
planeamento das necessidades para o ta de livros:
ano lectivo seguinte levam a roturas “Apenas na 6.ª classe faltam alguns
de stock, que acabam por ser colma- materiais. Os pais recorrem ao mer-
tadas com recurso a contribuições dos cado, mas, às vezes, nem lá.” [Sub-
encarregados de educação: director da escola B10]
131
Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

“Faltam manuais na 4.ª, 5.ª e 6.ª res têm medo que sejam apagados
classe, mas, pelo menos, o mercado os anos de experiência que já fize-
[informal] não falha!” [Director da ram.” [Director da escola M2]
escola M2]
Os salários são um aspecto impor-
Por último, procurou-se aferir o tante, mas não o único, da motivação
nível de satisfação dos professores. dos professores. Outro elemento re-
As entrevistas realizadas nas qua- levante é o processo de distribuição
tro províncias de estudo revelaram pelas escolas e a existência de incen-
algum descontentamento da classe tivos para aqueles que são colocados
docente, não só com o valor dos sa- em áreas mais remotas. Com base nos
lários, mas com a demora do proces- testemunhos recolhidos, a colocação
so de reconversão dos salários para de professores em escolas dos meios
aqueles que, entretanto, investiram rurais e da periferia urbana continua a
na sua qualificação. Em contrapar- ser um grande desafio:
tida, grande parte dos professores “Ainda faltam professores para as
mostrou-se satisfeito com a celeri-
zonas mais afastadas do centro. Deve-
dade do pagamento dado que até re-
ria ser dado um subsídio de deslocação
centemente os salários eram, muitas
ou outros incentivos, senão ninguém
vezes, pagos com atraso:
vai querer ir para lá. Benguela e Lobito
“Não estou nada satisfeito com o
continuam a ser uma espécie de viveiro
meu salário! Por causa da burocra-
de onde são enviados quadros para o
cia, recebo um vencimento abaixo
interior da província.” [Director da es-
do que deveria estar a receber por-
que sou técnico superior, mas recebo cola B1]
como técnico médio.” [Professor da “Nas escolas mais afastadas, muitas
escola B1] vezes é fechada uma sala de aula para
“Todos os dias 22 de cada mês os sa- criar quarto para os professores.” [Sub-
lários são pagos. Antigamente não director da escola H4]
era assim, mas agora mudou.” [Di- “É preciso aplicar o subsídio de peri-
rector da escola B4] feria e residência a professores de fora
“Alguns [professores] estão a receber para combater a falta de docentes nas
abaixo do seu escalão e não puderam áreas onde mais são precisos.” [FP-EPT
ainda ser promovidos porque há quo- no Huambo]
tas. O problema é que esse aumen- O uso das línguas nacionais, previs-
to de professores qualificados criou to na nova reforma educativa, ainda
pressão a nível do orçamento e existe só está presente num conjunto reduzi-
alguma dificuldade em fazer corres- do de escolas, mas, com base nas en-
ponder logo essa subida de categoria trevistas realizadas, parece constituir
do professor ao salário.” [Director da mais um obstáculo para professores e
escola H1] alunos do que um factor de inclusão e
“Temos muitos professores estudan- preservação das culturas autóctones.
tes, alguns que já acabaram o ensino Por um lado, existem professores
médio e ainda recebem abaixo da ca- que não estão preparados para ensi-
tegoria. Têm que concorrer de novo, nar na língua falada na região ou não
mas é demorado e muitos professo- possuem materiais de ensino nesse
132
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

idioma. Por outro lado, existem mui- to a tantos alunos por mais dois anos.”
tos pais que se recusam a ensinar aos (Director da escola Bi2)
filhos línguas que consideram não “As maiores dificuldades são no Por-
serem vantajosas para o seu futuro, tuguês e Matemática e, em parte, por
preferindo que estes dominem desde culpa dos professores que não estão
cedo a língua oficialmente utilizada suficientemente capacitados, especial-
pela administração pública, confor- mente com o alargamento da mono-
me se pode verificar nos testemu-
docência. É importante organizar mais
nhos recolhidos:
seminários de capacitação para os pro-
“Agora estamos na fase de ex- fessores, sobretudo nessas áreas.” [Di-
perimentação para ver os resulta- rector da escola M2]
dos, não só para o professor, mas
Por último, procurou-se conhecer
também para a criança. Aqui, o
as principais dificuldades sentidas na
pai e a mãe falam português e não
sala de aula, à luz dos métodos de
têm tempo para ensinar a língua
ensino utilizados e da introdução de
nacional, mas a língua portuguesa
classes de promoção automática. Os
a criança aprende com eles. No in-
testemunhos prestados revelam sé-
terior é diferente, a criança não fala
português, fala língua nacional e o rios desafios à qualidade do ensino
professor tem que fazer o inverso. nas quatro províncias de estudo, so-
Agora o professor que vem da cida- bretudo na Língua Portuguesa e na
de e não fala língua nacional, vai Matemática, conforme pode ser cons-
dar-se mal porque a criança não fala tatado em seguida:
português.” [Director da escola B4] “Os alunos têm mais dificuldades na
“Os manuais feitos em língua na- Matemática e Língua Portuguesa. Nas
cional estão mal feitos e têm pouca classes de transição automática nós
‘leitura’, isto é, contos e histórias.” falamos com os encarregados e se no-
[Sacerdotes do Moxico] tamos que a criança não aprende, ela
reprova.” [Director da escola B4]
Uma das principais medidas da “As crianças não são estimuladas a
nova reforma educativa foi o alarga- pensar, é tudo decorado, até as coisas
mento da monodocência de 4 para 6 mais simples, coisas que já fizeram, es-
anos. Contudo, do lado dos professo- quecem-se de como se faz, e uma pes-
res, esta nova modalidade constitui soa tem que explicar e repetir tudo outra
um desafio, pois se muitos não pos- vez. E isso remete para o ensino básico,
suem as qualificações exigidas para o que foi todo à base de cópias e ditados.”
ensino das quatro primeiras classes, [Membro de ONG da escola B8]
as dificuldades são maiores nas duas “Temos pais que são mais acessíveis
classes seguintes: e aceitam que o educando repita a clas-
“A adaptação dos professores à mo- se, mas outros preferem que ele passe
nodocência no ensino primário foi feita de classe, mesmo que vá encontrar difi-
de improviso. Isso criou e ainda cria cons- culdades mais à frente.” [Chefe de Se-
trangimentos.” [Director da escola B1] cretaria da escola H6]
“Os professores não estão capacita- “Há alunos que chegam mal pre-
dos para dar um bom acompanhamen- parados de outras escolas e para os
133
Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

quais a transição automática pode Apesar de terem sido visitadas es-


ser prejudicial mais tarde.” [Director colas em bom e mau estado de con-
da escola Bi1] servação nas quatro províncias de
“As promoções automáticas são estudo, verificou-se que, do Lobito ao
obrigatórias, mas nem sempre cumpri- Luena, os desafios ao nível da constru-
mos. Preferimos conversar com os pais ção, do mobiliário escolar e do forne-
e tentar que o menino repita [a classe] cimento de água e electricidade, eram
pois a transição deve ser digna. Os pró- tendencialmente mais expressivos.
prios meninos sentem que não estão O maior afastamento em relação aos
preparados, mas há pais que não acei- centros de decisão económica e po-
tam e pedem transferência para outra lítica, situados no litoral do país, e a
escola.” [Director da escola M3] própria geografia da guerra civil, mais
intensa e arrasadora nas províncias do
Huambo e Bié, eram os pressupostos
Conclusões assumidos nesta investigação. No en-
A partir dos dados obtidos nas en- tanto, o aproveitamento dos recursos
trevistas realizadas aos agentes edu- públicos destinados à construção e
cativos do Lobito (Benguela) ao Luena reabilitação de escolas por parte de
(Moxico), verifica-se que, do ponto algumas elites locais, com prejuízo da
de vista qualitativo, não obstante as qualidade da rede escolar, foi também
eventuais diferenças em termos de apontado por alguns entrevistados
indicadores estatísticos, são mais como possível causa para esse agrava-
evidentes os pontos de convergên- mento, sobretudo nas províncias mais
cia entre as quatro províncias que os a Leste, que só recentemente viram a
elementos que as afastam no que diz sua oferta escolar expandir-se de for-
respeito aos desafios existentes no ma mais significativa.
ensino primário. De igual modo, também é nas pro-
De um modo geral, o acesso não víncias mais a Leste do Corredor do
é ainda universal e é condicionado Lobito que parece existir maior cober-
por factores como a entrada tardia tura do programa da merenda escolar.
no sistema, a falta de salas de aula, a Apesar de reconhecidos os constran-
carência económica das famílias, ou gimentos financeiros do Ministério da
tão simplesmente a ausência de docu- Educação em assegurar a distribuição
mentação. da merenda em todas as escolas pri-
A reprovação não é considerada márias (o programa custa anualmente
um constrangimento do sistema, sen- 50 milhões de dólares americanos),
do as desistências assumidas como não devem ser as famílias a substituir-
transferências para outras escolas, e -se ao Estado e ao seu dever social em
não como abandono escolar. No en- assegurar o exercício do direito uni-
tanto, o desperdício ocorrido nas clas- versal à educação, tendo em conta o
ses de promoção automática deve-se, contexto de vulnerabilidade socioeco-
sobretudo, às desistências dos alunos, nómica que existe nas províncias es-
pelo que ignorar as origens culturais e tudadas. Reconhecendo-se o impacto
económicas deste flagelo é sustentar positivo que este programa produz na
esta ineficiência. captação de alunos e no aproveita-
134
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

mento escolar, conclui-se que os ele- da neste artigo, a qualidade do ensino


vados desafios ao nível do acesso nas primário ainda não está assegurada
províncias do Bié e Moxico, segundo nas quatro províncias do Corredor do
apontam os dados oficiais, se devem Lobito, em parte porque o enfoque tem
ainda à insuficiência de escolas para a sido, sobretudo, ao nível do acesso. No
procura existente. entanto, alguns dos aspectos positivos
Não é, por isso, surpreendente que que foram referidos mostram também
vários agentes educativos tenham que o caminho a percorrer não é, ne-
apontado como constrangimento a cessariamente, longo, desde que o Es-
elevada dimensão das turmas, fre- tado se comprometa a assegurar uma
quentemente superior ao recomen- oferta educativa de qualidade, através
dado pelo Ministério da Educação, e o de um corpo docente mais qualificado
recurso a anexos improvisados, varan- (e motivado), e da construção de esco-
das ou árvores para colmatar a falta las funcionais junto das comunidades,
de salas de aula. No entanto, a dispo- com capacidade de atrair crianças para
nibilidade de meios para o processo o processo de aprendizagem através
de ensino-aprendizagem, entre eles de incentivos eficazes como o progra-
os materiais e manuais escolares, pa- ma de merenda escolar. É no reconhe-
rece ser um desafio superado em qua- cimento do direito ao ensino, inscrito
se todas as escolas visitadas, embora na Constituição de Angola como um
exista ainda margem para melhora- direito ao alcance de todos, e da re-
mento, nomeadamente no que diz lação inequívoca entre educação e
respeito à desigualdade causada pelo desenvolvimento que assentam os
desvio e comercialização de manuais principais argumentos da necessida-
de distribuição gratuita. de de se considerar como prioritária a
A insatisfação dos professores com Educação, enquanto política pública,
o valor dos salários e a demora no visando a igualdade e a melhoria con-
processo de reajuste dos mesmos às tínua da qualidade.
qualificações obtidas, é transversal às
quatro províncias de estudo. Contudo,
também é reconhecido o esforço do Referências bibliográficas
governo em assegurar que os salários
sejam, agora, pagos atempadamente. BERGMANN, Herbert
Em relação às medidas introduzidas 1996: “Quality of education and the
pela reforma educativa, conclui-se demand for education: Evidence from
developing countries”, International
que o uso das línguas nacionais pare-
Review of Education, vol. 42 (6), pp.
ce constituir mais um obstáculo para
581-604
professores e alunos que um factor de
preservação cultural. O alargamento BOGDAN, Robert & Sari BIKLEN
da monodocência foi considerado de- 1994: Investigação Qualitativa em
masiado rápido e trouxe sérios desa- Educação. Uma introdução à teoria e
fios a uma massa crítica de docentes aos métodos, Porto: Porto Editora
pouco qualificados. BRAVO, Maria Pilar & Leonor EISMAN
Com base na informação recolhida, 1998: Investigación Educativa, 3.ª edi-
e em resposta à problemática analisa- ção, Sevilha: Ediciones Alfar
135
Frederico Cavazzini & Manuel Ennes Ferreira

CARVALHO, Paulo de HANUSHEK, Eric & Ludger


2002: Angola. Quanto tempo falta WÖßMANN
para amanhã? Reflexões sobre as 2007: Education Quality and Econo-
crises política, económica e social, Oei- mic Growth, Washington, DC: Banco
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2010: “The Economics of Internatio-
GANNICOTT, Ken & Charles David nal Differences in Educational Achie-
THROSBY vement”, IZA Discussion Paper 4925,
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mic Development: Ten Propositions
and an Application to the South Pa- KENNY, Charles
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Progressivo do Novo Sistema de
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2000: Defining Quality in Education,
6, I Série, de 14 de Janeiro, Luanda:
Nova Iorque: UNICEF
Imprensa Nacional
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Avaliação das Aprendizagens para o FELBEIN & Jorge VALENZUELA
Ensino Primário, Luanda: INIDE 1994: Mejoramiento de la calidad de la
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tação do Novo Sistema de Educação. y el Caribe. Hacia el siglo XXI, Washin-
Reforma Educativa do Ensino Primário gton, DC: Banco Mundial
e Secundário, Luanda: INIDE
2010: Relatório da fase de experimen- ZAU, Filipe
tação do Ensino Primário e do 1º Ciclo 2009: Educação em Angola. Novos
do Ensino Secundário, Luanda: Minis- trilhos para o desenvolvimento, Luan-
tério da Educação da: Movilivros
136
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Title: Challenges of public jectos na área da educação, ciência


primary education in Angola: e tecnologia em Angola, Senegal,
educational providers’ outlook Burundi, Ruanda e Quénia para or-
from Lobito to Luena ganizações como o Banco Mundial
Abstract e a Global Knowledge Initiative. As
suas áreas de interesse são a econo-
This comparative case study aims mia da educação, cooperação inter-
to analyze the main challenges re-
nacional e o combate à corrupção.
garding public primary education in
Co-autor de A regional exploration
the Angolan provinces of Benguela,
Huambo, Bié and Moxico. The de- of pathways toward harmonization
struction of the Benguela Railway of math & science curriculum in the
during the civil war, that once con- East African Community (Washing-
nected these provinces, could have ton DC, 2011) e Fighting corruption
caused geographical disparities in the with strategy (New York, 2016).
provision of education. Considering E-mail: fcavazzini@.pt
the effects of the long civil war and
the measures implemented by the
recent education reform, the study
strives to assess if the challenges in Manuel Ennes Ferreira
terms of access to schools and quality Economista. Doutor em Econo-
of education are the same or tend to
mia pelo ISEG. É Professor do De-
aggravate along the Lobito Corridor,
partamento de Economia do ISEG/
as the distance to the gravity centres
of economic and political decision lo- UL. FoiVisiting Sénior Member (St.
cated in the country’s coast increas- Peter’s College, Oxford University)
es. Upon the visit to several primary e Visiting Professor (King’s College
schools in each province and the con- London (Camoes Institute). Foi Di-
duction of interviews to different play- rector Académico do CEIC da Uni-
ers in the education system, the study versidade Católica de Angola Tem
concludes that, while there might be sido consul¬tor de organizações in-
important regional disparities in sev- ternacionais em projectos em Áfri-
eral education indicators, schools in ca.Tem 6 livros publicados, capítu-
all four provinces share many similar los em diversas obras e artigos em
challenges which compromise the várias revistas académicas como
overall quality of primary education.
African Affairs, Defence and Pea-
Key words: Education reform, pri- ce Economics, European Journal of
mary education, quality of education,
Development Research, The Econo-
teachers.
mics of Peace and Security Journal,
Scientometrics, Physica A, Politique
Africaine, Lusotopie, Studia Africa-
Frederico Cavazzini
na, Análise Social, etc. Integra diver-
Gestor na Universidade NOVA sos conselhos editoriais de revistas
de Lisboa. Doutor em Estudos de
académicas.
Desenvolvimento pelo ISEG. Tem
experiência como consultor em pro- E-mail: mfereira@iseg.ulisboa.pt
137
138
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Manuel Carlos Silva

Profissão docente:
lugar de classe e
condições para acção
colectiva

Resumo
Neste texto o autor, considerando os desencantos da profissão docente em
Portugal (mal-estar, desgaste, não reconhecimento estatutário), faz uma breve
retrospectiva histórica da profissão (desde o contexto corporativo-eclesiástico
até ao contexto moderno sob tutela patronal privada ou estatal) e reflecte so-
bre o lugar dos professores/as, sua condição de classe, condições de vida e suas
auto e heterorepresentações. Seguidamente discute as várias abordagens sobre
o conceito de profissão, desde a (estrutural)funcionalista, passando pela interac-
cionista-simbólica, até à marxista, dissecando também o conceito de identidade
colectiva nas várias dimensões: cultural-normativa, económica, social e política.
A identidade dos professores/as é entendida de modo histórico e dinâmico, numa
perspectiva objectiva e subjectiva com suas trajectórias e experiências, afeições
e mundividências. Por fim, são analisadas as precondições da acção colectiva dos
professores/as perante os detentores do poder.
Palavras-chave: professores/as, profissão, condição de classe, identidade,
acção colectiva.
139
Manuel Carlos Silva

Introdução como no presente, ainda que em con-


Quando me solicitaram a fazer uma textos altamente problemáticos?
reflexão sobre “a profissão docente: Não será tarefa fácil, pois, antes de
encontros e (des)encantos”, coloquei- mais, importa percebermos um pou-
-me a questão de saber como devia co da história desta profissão, o seu
equacionar não só os desafios como lugar no quadro geral das profissões
os desencantos que se vão apoderan- e a análise atual da condição de clas-
do de bastantes docentes. Estes ter- se dos professores, suas condições
mos são sintomáticos dalgum estado de vida, suas autorepresentações e
de crise sobre a identidade profissio- heterorepresentações, o que tem em
nal dos professores, o que obviamen- parte sido feito pelos cientistas so-
te não significa que tal crise de iden- ciais ocupados com a Educação, entre
tidade é um fenómeno atribuível aos os quais se situam sociólogos, psicó-
próprios, remetendo certamente não logos, antropólogos e historiadores.2
só nem tanto para factores internos à Ainda que não especialista na área da
classe como sobretudo a constrangi- Educação, permitam-me, enquanto
mentos exógenos nacionais e interna- sociólogo ocupado nos temas das desi-
cionais, nomeadamente europeus. gualdades sociais (de classe, de género
Quer os próprios professores/as, e étnico-raciais), que, após breves con-
quer os intervenientes no processo siderações sobre origens e percursos
educativo vão tomando consciência históricos da profissão docente, me
da relativa desvalorização da profis- centre justamente na problematiza-
são docente em termos sociais e eco- ção do lugar do professor em termos
nómicos, a qual deixa perpassar um de condição de classe e de vida, desde
certo mal-estar, desgaste e desencan- a vertente objectiva, passando pelo
to que atinge hoje vários profissionais estatuto social, até às autorepresenta-
da docência. Não obstante existirem ções sociais dos professores sem deixar
estudos de relevo por parte de so- de imbricar nesta questão as heterore-
ciólogos da educação a respeito dos presentações da profissão por parte
professores1, esta questão mantém- das diversas instâncias institucionais,
-se atual e viva. Como compreender sociais e pelas outras classes, grupos
e explicar esta relativa desvalorização ou ocupações profissionais. Esta ques-
do estatuto social dos professores/as, tão torna-se hoje tanto mais relevante
se tivermos como ponto de referência, quanto nos dias de hoje e sobretudo
em termos estatutários, a relevância e no passado recente a classe docente
o prestígio social conectados com a ter sido alvo de uma relativa desvalori-
profissão docente, não só no passado, zação social e menor reconhecimento

1
Cf, entre outros Resende [2003] e A.N. Almeida e M. M Vieira [2006].
2
Dado não ser um sociólogo especializado no âmbito da Educação, antes de concorrer a uma vaga
no ensino superior, fui durante três anos professor do ensino secundário, nomeadamente nos antigos
liceus de Santarém e do D. Pedro V em Lisboa - trajecto de que me orgulho e de que tenho as melhores
recordações pelo espírito de convivência e partilha com colegas e alunos/as. Desde então e sobretudo
como sindicalista, sociólogo e docente no ensino superior, tenho seguido alguns dos debates nesta
área, colaborando com o Instituto de Educação da Universidade do Minho durante várias edições de
Mestrado em Sociologia da Educação através da docência de disciplinas como Teorias Sociológicas,
Desigualdades e Exclusões Sociais.
140
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

social na escala das profissões, por um mais socialmente conceituadas como


lado, e, por outro, objecto de ataque a de médico ou jurista, a que se vieram
contínuo, recorrente e quase sistemá- associar outras como a de professor
tico por parte do poder político nos ora em regime autónomo e liberal, ora
últimos anos, atingindo docentes dos em base assalariada, mas enquanto
vários sectores de ensino e suas orga- profissão igualmente qualificada.
nizações sindicais nomeadamente a Se recuarmos ainda mais no tem-
mais reivindicativa como é o caso da po, vemos que o conceito de profis-
Federação Nacional de Professores são remonta à distinção originária da
(FENPROF). Idade Média, em que as profissões e
O tema da identidade dos docen- as artes ou ofícios assentavam numa
tes é, deveras, sugestivo e convoca organização específica que era a cor-
um certo número de questões que poração desde o século XI e, de modo
poderíamos enunciar do seguinte já institucionalizado, desde o século
modo: até que ponto a identidade XV. Nesta época o trabalho, tal como
colectiva dos professores é algo que o referem vários historiadores como
lhes é dado a partir da condição so- Le Goff [1981], era uma arte enqua-
cial objectiva de trabalhadores qua- drável nalguma das corporações que
lificados mas assalariados ou ela é se foram criando e instituindo, abran-
resultante duma construção social gendo as artes liberais, as artes me-
dos professores/as, enquanto prota- cânicas, os artesãos de diversa índole
gonistas no processo educativo? e os intelectuais, ficando fora destas
Neste ensaio procurarei, após uma categorias os trabalhadores braçais
retrospectiva da evolução da condi- dependentes, entre os quais os cria-
ção de uma atividade em contexto dos, os servos, os jornaleiros. Em tais
corporativo e enquadrada sob tutela corporações era feito, à semelhança
eclesiástica para uma profissão em da ordenação dos clérigos, ainda que
termos modernos em contexto liberal esta última num patamar ‘vocacional’
ou sob tutela estatal, fazer uma re- mais transcendental e místico, um ju-
flexão sobre a condição presente e a ramento simbólico de “profissão de
emergência ou não duma consciência fé” no quadro da corporação, dando
política de classe, nomeadamente no assim acesso ao exercício da profissão
contexto português. e à pertença à comunidade corporati-
va em termos de fidelidade, dignidade
1.A profissão docente: da e compromisso público, aliás em con-
profissão de fé corporativa a sonância com posteriores decretos
uma classe profissional régios, tal como o de Henrique III em
O conceito de profissão é tributário 1585 na Inglaterra, como refere Sewell
duma longa tradição que remete des- [in Dubar 1997:124].
de os seus primórdios para as ideias Cedo, porém, no quadro das profis-
de “ocupação”, enquanto emprego sões como artes se foram distinguindo
no sentido administrativo, até ao de as profissões liberais e intelectuais das
“profissão” em termos de um tirocínio artes ou profissões mecânicas ou ofí-
de aprendizagem, inicialmente aplicá- cios e, a partir daí, para a dicotomia en-
vel a determinadas profissões liberais tre trabalho intelectual e manual, uma
141
Manuel Carlos Silva

distinção aliás já presente em socie- incluindo os professores, estavam re-


dades esclavagistas, despóticas, de ligados, discricionariamente expos-
castas e outras anteriores à moderni- tos a mecenas e/ou condicionados
dade, mas que viria a acentuar-se no por diversos poderes, em particular
fim da idade média. Foi neste âmbi- os eclesiásticos até às profundas
to que se foram criando, a partir de transformações económicas, sociais
certas corporações, determinados e políticas das revoluções americana
estamentos e/ou associações pro- e francesa dos finais do século XVIII,
fissionais que se destacavam real e alimentadas pelos filósofos sociais
simbolicamente pelo sentimento de iluministas, nomeadamente Rou-
pertença quanto à origem, à partilha sseau [1995]. Estes vieram pôr em
de valores e crenças comuns, ao co- causa a legitimação teocrática ou a
nhecimento de línguas mortas como naturalização dos poderes instituí-
o grego ou o latim, a determinados dos, constituindo também uma refe-
estilos de vida e grau de estima ou rência fundamental para a laicização
prestígio social com tendência à dis- e secularização dos processos educa-
tintividade e até à monopolização tivos e, por consequência, influentes
de recursos nomeadamente educa- na progressiva perda de poder das
cionais ou intelectuais. Esta caracte- instituições do Antigo Regime, em
rização foi posteriormente teorizada particular das eclesiásticas.
por vários sociólogos clássicos des- Gradualmente, sobretudo a partir
de Veblen [1972] sobre a classe ocio- do século XIX e sobretudo XX, os pro-
sa versus classes de trabalho manual fissionais da educação passam a traba-
e Tonnies [1953] com a sua distin- lhar sob a tutela estatal, o que à época
ção entre comunidade e sociedade, representou um avanço notável na
passando por Durkheim [1977]entre medida em que deixou de existir uma
solidariedade mecânica e solida- dependência personalizada e ideolo-
riedade orgânica, até Weber [1978] gicamente condicionada sob formas
na sua distinção entre socialização aparentemente paternalistas, real-
profissional em contexto de comu- mente arbitrárias e não raro teocrá-
nidade e socialização em contexto ticas e autocráticas, passando a estar
associativo moderno, sendo de rele- enquadrados sob a tutela do Estado,
var este autor, como mostrarei mais formalmente laico e liberal. Porém,
adiante, na busca de articular o seu como em diversos processos históri-
importante contributo com a abor- cos recorrentes de fechamento social,
dagem marxista. o novo patrão-Estado vai, por sua vez,
Não só num passado mais longín- procurar condicionar a criatividade e
quo da Idade Média e do Antigo Re- a autonomia das escolas e dos seus
gime como ainda em períodos e dé- agentes educativos, assumindo como
cadas dum passado mais recente até generosidades o que foram, em gran-
ao século XIX e mesmo com marcas de parte, conquistas socio-educativas
no século XX e resquícios na atualida- a partir da própria revolução francesa
de, artistas e intelectuais criadores, e seus teóricos fundadores iluminis-
142
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

tas, tornando-se possível uma cres- de Pio XI. Durkheim [1977/1893,1962]


cente laicização e secularização da diagnosticava a crise conflitual do seu
educação e do ensino [cf. Reis 2003].3 tempo entre capital e trabalho como
uma “questão moral” para a qual po-
2. Abordagens teóricas sobre as deriam contribuir para a superar as
profissões: o caso dos professores chamadas associações profissionais
corporativas, já não tanto na imita-
Para além da génese e do desenvol-
ção ou concepção das corporações
vimento do conceito e práticas das di-
medievais, mas em corporações de
versas profissões, importa desde logo
novo tipo que implicariam a concer-
ter presente que a respeito do con-
tação e harmonização de interesses
ceito e da interpretação do lugar das
profissões não há consenso ou unani- dos diversos grupos, nomeadamente
midade, pelo que se impõe proceder patronais e sindicais. Porém, importa
a uma breve exposição das diversas ressalvar que o sindicalismo, na óptica
abordagens sobre as profissões. durkheimiana, não se assemelhava ao
conceito de sindicato, enquanto en-
tidade reivindicativa e propositiva de
2.1 O modelo estruturo-funcional
inspiração socialista ou marxista, cor-
Durkheim [1977], como um dos so- rentes rejeitadas e fortemente ataca-
ciólogos fundadores da sociologia, das por Durkheim [1977].
deu grande relevo às associações pro-
fissionais como corpos intermédios Ainda no seguimento de Durkheim
entre os indivíduos e o Estado e como mas incorporando outras contribui-
modos e instrumentos de disciplinar ções, Parsons [1953, 1988/1951], teóri-
e moralizar a vida social, de modo a co e ideólogo glorificador da sociedade
que o progresso económico não per- moderna capitalista, reforça, entre ou-
turbasse a coesão e harmonia social tras variáveis-padrão, a dicotomia en-
e evitasse a desorganização social, a tre a assunção do lugar, do estatuto e
anomia e, no limite, o suicídio. Sendo do ofício por via hereditária inscrita nas
este sociólogo clássico um reforma- relações de sangue, de parentesco ou
dor ligeiramente crítico do liberalismo compadrio inerente ou adscritivo a de-
utilitarista e individualista, mas forte- terminada comunidade ou sociedade
mente conservador, o seu objectivo tradicional (ascription) e a aquisição ou
educacional, pedagógico e, em última conquista do lugar social ou da profis-
instância, ideológico era o de travar são pela via do mérito próprio alcança-
a conflitualidade reinante em pleno do pela própria iniciativa ou escolha in-
século XIX, coincidindo as suas pers- dividual (achievement) em contexto das
pectivas teórico-políticas com a dou- sociedades modernas. Estas, sendo su-
trina social da Igreja veiculada pelas ficientemente democráticas e abertas,
encíclicas papais de Leão XIII “Rerum nomeadamente pela via educacional
Novarum” e “Quadragesimo Anno” e pelo mérito próprio, oferecem igual-

3
Com efeito, apesar do caráter ainda metafísico e mítico do “bom selvagem” na natureza e da tese
da igualdade abstracta por nascimento, a posição de Rousseau em prol da igualdade dos homens re-
presentou um enorme avanço no pensamento ocidental em relação à divinização e/ou à naturalização
das desigualdades sociais e dos poderes durante as idades antiga e medieval [cf. Silva 2009:34 ss].
143
Manuel Carlos Silva

dade de oportunidades, seleccionam nidade com determinada identidade e


os melhores conforme as suas capaci- interesses específicos, enquanto ordem
dades, em que a mobilidade social é o ou associação. O objectivo do profis-
seu traço dominante, tese igualmente sional seria ir ao encontro das necessi-
defendida por Davis e Moore [1976], dades dos seus clientes, cuja satisfação
Dahrendorf [1959] e Bell [1977]. reverteria na procura reiterada desses
Voltando ao conceito de profissão, profissionais – uma prática corrente nas
foi ainda Parsons [1939, 1988/1951] chamadas profissões liberais.
que, numa linha estruturo-funcionalis-
ta, o elaborou tendo como paradigma 2.2 A perspectiva interaccionista
a profissão dos médicos,4 tema mais simbólica
tarde explorado igualmente por Jack- A visão parsoniana viria a ser reba-
son [1970] e Heilbron [1986] respecti- tida por uma corrente, originária dos
vamente em torno das profissões de próprios Estados Unidos, corporizada
juristas e engenheiros. O conceito de em autores como Hughes [1958] na sua
profissão veio restringindo-se, enquan- obra Men and their work para quem a
to conjunto de pessoas que exercem relação profissional-cliente deverá ser
determinada actividade legalmente entendida a partir da divisão social do
reconhecida, aplicando certas técnicas trabalho, assente na distinção entre o
a partir de determinada formação cien- detentor do saber sagrado ou outro e o
tífica qualificada e especializada. Estes leigo, entre o formado e o não formado.
tipos de profissionais, tendo, em regra, Esta relação ou transacção implica, por
uma ordem ou associação profissional um lado, um juízo de valor e, por ou-
pautadas por determinada cultura, có- tro, a capacidade de delegar noutros as
digo de conduta, ética e deontologia tarefas consideradas inferiores, reser-
profissionais (por exemplo, valor do vando para si as mais nobres ou dignas
sigilo profissional), exercem a activida- com base num diploma e num manda-
de em termos tendencialmente mono- to, o que comporta uma hierarquização
polísticos, excluindo outros na base de institucional de categorias e funções.
determinados critérios nomeadamen- Estas contudo não são fixas nem fixa-
te do alegado mérito. das duma vez por todas nem atribuídas
Em qualquer destes grupos profissio- aprioristicamente pelo sistema social,
nais destacar-se-iam, na óptica estrutu- como advogava a visão estruturalista,
ro-funcionalista, o saber especializado, mas podem comportar uma certa ne-
a orientação por uma ideia de missão, gociação entre os diversos actores em
desapego ou serviço despido de interes- presença e a construção duma carreira
ses, a manutenção de um certo prestí- por parte dos respectivos profissionais,
gio e poder e a formação duma comu- cujos elementos identitários têm por

4
Em Portugal, entre os autores/as que de modo mais aprofundado analisaram as diversas profissões
não só a nível teórico como com base em investigações empíricas, importa referir, para além dum
trabalho de síntese sobre profissões por Carapinheiro e Rodrigues [1998], o estudo pioneiro de Graça
Carapinheiro [1993] sobre os médicos em contexto hospitalar, sendo de destacar a tensão entre a au-
toridade administrativa e a autoridade carismática presente nos médicos; os trabalhos de Maria Lurdes
Rodrigues [1999] e de Ana Paula Marques [2006] sobre os engenheiros; o de Noémia Lopes sobre os
enfermeiros; o de Carlos Gonçalves [1998] sobre os economistas; o de José Manuel Resende [2003]
sobre os professores; o de Miguel Chaves e João Sedas Nunes [2011] sobre os advogados.
144
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

base determinados tipos de competên- ser 1972, Poulantzas 1975], segundo


cias e tarefas, estatutos e correlativos as quais as profissões devem ser ana-
papéis assumidos ou negociados, a an- lisadas à luz do lugar ocupado no pro-
tecipação da carreira e a imagem efecti- cesso de produção e nas relações de
vamente auto e heteroconstruída. produção e, como tal, analisadas e in-
Contrariamente aos estruturo- tegradas nalgumas das classes sociais
-funcionalistas que entendem que as presentes na sociedade. Nesta óptica,
profissões respondem a necessidades
existiriam no modo de produção capi-
do sistema e são por este atribuídas
a certos agentes ou categorias, para talista duas grandes classes – a classe
os interaccionistas a profissão é algo burguesa e a classe trabalhadora – cada
que se constrói a partir de processos uma das quais conheceria fracções de
de socialização profissional na base de classe: agrícola, industrial, comercial
uma carreira e duma visão do mundo e financeira. É, porém, o próprio Marx
definida pelos seus próprios mem- [1975] que, para além destas duas gran-
bros, podendo surgir neste âmbito des classes do modo de produção capi-
processos de selecção, diferenciação, talista, assume que, em determinada
hierarquização, quando não mesmo
sociedade ou formação social concreta,
de discriminação (por exemplo, em
relação a homosexuais, negros/as, mi- existem outras classes intermédias en-
norias étnicas, religiosas). tre o trabalho e o capital (por exemplo,
Para grande parte dos autores inte- camponeses, pequenos comerciantes),
raccionistas a identidade profissional os quais viriam a ser conceptualizados
é socialmente construída, ou seja, é por Althusser [1972] e sobretudo Pou-
o conjunto de actores sociais que no lantzas [1975] como pequena burgue-
percurso individual e coletivo enraí- sia tradicional na medida em que não
zam o seu sentimento de pertença são assalariados e possuem alguns
e consciência de grupo, ou seja, só meios de produção. Porém, para estes
quando a acção colectiva dos acto- mesmos autores, perante a emergên-
res se torna manifesta, teremos uma
identidade colectiva. cia de outras camadas qualificadas tais
como engenheiros, médicos e profes-
Este processo de profissionaliza-
ção (verberuflichtung) representava sores, por deterem algumas condições
também para Weber (1978) uma ca- mais favoráveis na sociedade e/ou des-
racterística distintiva da modernida- tacadas na gestão e na supervisão das
de e da civilização moderna e, a partir unidades de produção, elas viriam a ser
desta óptica, houve por parte de di- consideradas nova pequena burguesia.
versos quadrantes teóricos a neces- Para os marxistas a regra não seria
sidade de distinguir os ‘ofícios’ das a mobilidade social mas a da repro-
‘profissões’ atribuindo a estas uma
dução das classes sociais, acusando
superioridade estatutária.
os defensores de tese da mobilidade
social de difundir uma forma de alie-
2.3 Variações da abordagem nação político-ideológica favorável
marxista: da ortodoxia à à burguesia, na medida em que cria
heterodoxa síntese marxista- expectativas irrealistas e irrealizáveis
-weberiana para a esmagadora maioria dos mem-
Num pólo oposto situam-se concep- bros das classes assalariadas ou desti-
ções marxistas estruturalistas [Althus- tuídas de recursos.
145
Manuel Carlos Silva

Outros autores, neo-marxistas e/ dendo ser considerados trabalhadores


ou críticos do marxismo tradicional pertencentes às classes trabalhadoras
[Bourdieu 1980, Almeida 1986, Estan- qualificadas ou a uma nova pequena
que e Mendes 1997, Bader e Benschop burguesia de supervisão e controlo ao
1988, Benschop 1993, Silva 2012], serviço do capital e extraindo daí ren-
bem como outros pós-marxistas e/ou das ou proveitos para além da remu-
neoweberianos como Giddens [1975], neração do seu trabalho.
Goldthorpe e Marshall [1992], aceitan-
do grosso modo a tese da reprodução 3. Professores e identidade
social, admitem contudo, sobretudo colectiva
em sociedades modernas ou em tran- As tradições sociológicas estrutu-
sição para a modernidade, um maior ralistas sobre a identidade colectiva
ou menor grau de mobilidade social duma profissão e/ou classe social ora
não só no sentido descendente – o tendem a limitá-la à esfera norma-
que é aliás reafirmado pelos marxistas tiva, valorativa e cultural e amiúde
em relação a processos de proletariza- idealista – é o caso dos estruturo-fun-
ção e, até mais ou menos visível, pelo cionalistas e antropólogos culturalis-
menos, a longo prazo em diversos tas – ora caem no erro contrário – é o
contextos históricos – mas também caso de um certo marxismo ortodoxo
em sentido ascendente. Por isso, es- ou materialismo vulgar, que tende a
tes autores assumem que, para além analisar a identidade colectiva duma
das classes principais no seio do modo classe ou profissão básica ou até ex-
de produção capitalista, há determi- clusivamente a partir dos aspectos
nadas profissões integrando camadas económicos, materiais.
ou classes sociais que, atendendo ao Ora as identidades profissionais
desenvolvimento do capitalismo, ora como a dos docentes não são natu-
vão conhecendo alguma subalterniza- ralmente dadas à partida do ponto de
ção, degradação e proletarização, ora vista económico nem se mantêm es-
vão sendo cooptadas para funções de táticas como um dado objectivo pres-
controlo e supervisão nos processos suposto, intocável. Elas enraízam-se
produtivos sobre os demais trabalha- em hábitos colectivos, em experiên-
dores em favor do capital. cias e práticas partilhadas e devem
Conjugando critérios de classifica- ser analisadas, tendo como pano de
ção marxista e weberiano – posição fundo os processos de concorrência
em relação à propriedade e/ou meios e luta em torno de recursos e recom-
de produção, lugar na dimensão orga- pensas consideradas raras ou valiosas.
nizativo-política e (ab)uso de creden- Por isso, a identidade colectiva dos
ciais escolares [cf. Benschop 1993, professores, como doutras classes
Wright 2005, Carapinheiro 1993, Sil- profissionais aliás, nunca pode ser au-
va 2009] – há determinadas classes tomaticamente pressuposta à partida
ou camadas sociais qualificadas, cuja em termos ditos objectivos e, por isso,
posição dependerá do seu lugar pe- não é por acaso que, no seio duma
rante o processo produtivo de modo mesma classe profissional como a
directo ou indirecto, contribuindo ou dos professores, a identidade é vivida,
não para a criação de mais valia, po- percebida e entendida de modo dife-
146
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

renciado, conforme não só a classe de interacionistas, respetivamente como


origem deste ou daquele professor/a, Barth [1969] e Goffman [1974], por
mas também os hábitos e estilos de delimitação perante outros agentes,
vida adquiridos, incluindo as posturas classes ou categorias sociais e, em
físicas e as predisposições psico-so- particular, face aos detentores de
ciais e, em particular, os percursos, as determinados meios de poder eco-
trajectórias e experiências da activida- nómico ou político. E, no caso dos
de profissional. professores verificam-se, a par das
incontornáveis comparações com
Do mesmo modo não podem
outros grupos profissionais, proces-
ser menosprezadas na construção
sos de identificação não tanto com o
da identidade profissional dos pro-
próprio grupo de pertença mas com
fessores a dimensão não só norma- outros grupos de referência avaliados
tiva como a componente histórica, ou valorizados como detendo alega-
ou seja, o conjunto de experiências damente um maior capital de repu-
e orientações, incluindo também a tação, prestígio ou estatuto social.
própria vertente afectiva. E, por isso, Na minha perspectiva, a crise social
o colectivo dos professores/as só que perpassa bastantes professores/
construirá a sua identidade, relevan- as prender-se-á com a subjectivação
do a componente afectiva, quer em dum estatuto socialmente deteriora-
termos interactivos no quotidiano da do – comparativamente a outros tem-
escola, quer em termos mais estraté- pos e contextos – e sincronicamente
gicos e colectivos. Nesta perspecti- face a outras classes profissionais e,
va, a própria identidade individual de mais ainda, em particular, em relação
cada um como membro dum colectivo ao poder político-administrativo que
profissional não é estrita e exclusiva- amiúde não valoriza a prestação pro-
mente um assunto privado, pois ela fissional dos professores.
forma-se em determinados contextos Há, por assim dizer, uma discrepân-
específicos não só geográficos como cia entre as primeiras expectativas e
sociais, económicos e políticos. Por sonhos de um professor/a no seu iní-
isso, contrariamente a diversos psicó- cio de carreira, na sua idade da ino-
logos que tendem a distinguir entre cência ou ‘virgindade’ profissional e o
identidade pessoal e identidade social duro confronto, simultâneo ou subse-
[Tajfel 1983], a identidade individual quente, com uma realidade mais resi-
é sempre uma identidade social em liente que o envolve. Por outras pala-
termos sincrónicos [Jenkins 1996], vras, há amiúde um desajustamento
na medida em que cada um/a de nós entre o modelo ou concepção ideal
exerce uma multiplicidade de papéis do papel de educador/professor a que
desde os parentais aos profissionais, corresponderia determinado estatuto
educacionais e outros em função do e correlativa imagem duma socializa-
género, da idade, podendo estes pa- ção antecipada duma carreira digna e
péis ser coincidentes ou divergentes. nobre e uma realidade que comporta
E, por sua vez, tal como a identidade desgaste, desencanto, não raro frus-
individual, a construção da identidade tração, sobretudo quando os objec-
colectiva faz-se, tal como advogam tivos não são alcançados e o próprio
diversos autores transaccionalistas e educador/professor se vê não raro
147
Manuel Carlos Silva

confrontado com problemas sociais É o sentimento das definições ne-


ou perturbações de ordem psicológica gativas por parte doutros e, em parti-
e mesmo física. Ora uma tal situação cular, do Estado que coloca problemas
pode levar a uma de duas atitudes: ou de autodefinição aos próprios profes-
desistir e deixar correr rotineiramente sores/as, ao seu lugar na escola e na
o quotidiano, mesmo que tal obrigue sociedade com repercussões sobre sua
à simulação, ou lutar em contracor- autoimagem, bem como da imagem
rente de modo a alterar o statu quo. dos outros sobre os professores/as.
Estes posicionamentos diferencia- Ora, numa relação de forças desigual
dos mostram-nos que o colectivo de certamente que as imagens ou defini-
professores, como de outros aliás, não ções negativas sobre os professores/
forma propriamente uma comunidade as vêm ao de cima e daí a necessidade
com interesses, valores e mundivisões de contrariar tais heterodefinições
partilhadas, o que se prende, como já negativas e estereótipos tais como as
foi dito, com diversos factores desde a ideia preconcebidas sobre os profes-
origem de classe, passando pelo habi- sores/as como uma classe com baixa
tus adquirido e trajectória de vida até prestação ou desempenho rotineiro,
às estratégias e aos posicionamentos falta de pontualidade e dedicação po-
político-ideológicos, uns mais orien- livalente à escola, alegadamente com
tados individualisticamente, outras longos períodos de férias.
mais colectivamente. Face a estes preconceitos e, even-
Em todo o caso, a identidade dos tualmente, a casos, ainda que mino-
professores/as não pode surgir sem ritários, de comportamentos menos
ter em conta os diversos tipos de edificantes por parte dalguns pro-
identidades individuais e grupais e, fessores – um fenómeno também
por isso, uma das grandes tarefas presente noutras profissões –, torna-
dum sindicato de professores/as é sa- se necessário um posicionamento as-
ber unir no diverso, respeitando as es- sertivo de revalorização da carreira e
pecificidades de cada sector e, dentro uma identidade colectiva enraizada
destes, a diversidade por sexo, idade, na própria classe dos professores. Mas
crenças, normas e valores, e tendo afinal como podermos definir os pro-
como referentes um conjunto de ele- fessores em termos de classe?
mentos comuns não só em termos ob- Muitos são aqueles que veem o co-
jectivos, mas também em termos de lectivo dos professores/as como um
práticas e vivências. grupo ou conjunto de categorias per-
A este respeito há uma questão cen- tencentes às classes médias, cujo lu-
tral: como é que os professores/as se gar seria resultante do próprio mérito.
autodefinem e como são definidos pe- Outros, porém, e até do ponto de vista
los outros grupos, classes, encarrega- dalgum marxismo ortodoxo e fecha-
dos de educação, pela sociedade e, em do, veem os professores/as como o
particular, pelo Estado? Como é que os conjunto de camadas pertencentes à
professores/as se autoavaliam e como pequena burguesia, enquanto outros,
são avaliados socialmente pelos ou- ainda no campo marxista, tendem a
tros? Eis uma grande questão que, não classificar os professores como gru-
obstante os contributos já acumulados, po qualificado e parte integrante das
justificaria um estudo aprofundado. classes trabalhadoras.
148
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

No quadro desta questão creio ser colectiva enquanto tal, teremos de ter
relevante fazer uma breve digressão em conta, aliás na esteira de Bader
analítica sobre o conceito de classe [1991], entre outras, as seguintes con-
segundo as várias abordagens, pro- dições principais:
curando, após uma breve revisitação 1- relativa homogeneidade da con-
de tais teorias, estabelecer os parâ- dição de vida objectiva no seio da
metros duma visão sintética e supera- classe dos professores/as e cor-
dora dalgumas dicotomias. Tendo em relativas diferenças ou contradi-
conta as teorias correntes e a neces- ções perante outras classes e/ou
sidade de fazer uma articulação dos grupos sociais presentes numa
legados marxista e weberiano sobre determinada sociedade;
o conceito de classe aplicado aos pro- 2- relativa homogeneidade de há-
fessores/as e assumindo que objecti- bitos, estilos de vida e culturas
vamente os professores constituem idênticas ou aproximadas (costu-
uma fracção qualificada das classes mes, rituais, símbolos) que, uma
trabalhadores – não entrando agora vez incorporadas e interiorizadas
em linha de conta com outro tipo de pelos indivíduos, se tornam tam-
relações senão a de assalariados do bém objectiváveis ou traduzíveis
patrão-Estado ou de um patrão pri- no quotidiano da escola, ainda
vado – emerge logo a questão cen- que nem sempre conscientes,
tral: então por que é que nem sem- podendo mesmo ser inconscien-
pre os professores/as atuam como tes ou preconscientes;
um colectivo unido, solidário, exceto 3- carácter de organização e lide-
eventualmente em situações-limite rança, capazes de dar corpo, por
ou em conjunturas de flagrante ata- via formal ou informal, a deter-
que a direitos adquiridos? Em que minadas reivindicações, pelo
medida os professores/as detêm ou que a existência de um sindicato
não uma identidade colectiva que os autónomo e agregador, reivindi-
induza a ter e assumir uma autoima- cativo e propositivo, é uma con-
gem positiva, de modo que tal au- dição indispensável da formação
toimagem positiva seja reflexo da sua e do desenvolvimento da identi-
condição e perpasse e extravase para dade colectiva, tendo por objec-
a sociedade? Ou senão a têm, como tivo formar um grupo com força
se explica então a desvalorização ou e impacto sociais.
uma menor valorização em relação
a outros grupos profissionais seme- Se estas condições ou prerequisitos
lhantes em termos de qualificações? não estiverem presentes, tal pode dar
Quais as condições ou prerequisitos lugar a processos de fragmentação
para a emergência e a solidificação ou mesmo de erosão da identidade
da identidade colectiva dos profes- colectiva, o que se pode repercutir in-
sores/as, ou seja, como se forma e dividualmente em processos de desa-
constrói a unidade no respeito pela feição e desgaste, desânimo e desen-
diversidade? canto. Convém certamente distinguir
Para definir a identidade colectiva o olhar individual de cada membro da
da classe dos docentes e avaliar as ba- classe e a própria classe dos professo-
ses de emergência da sua identidade res/as. No entanto, quando se multi-
149
Manuel Carlos Silva

plicam as desafeições e os desencan- história e não só quando se obtém


tos individuais, a identidade colectiva vitórias como também quando se
sofre, mas é também certo que é nes- aprende com as derrotas ou recuos.
tes momentos que a organização no- Mas, como referido, não basta deter
meadamente sindical pode reassumir uma condição de vida objectiva idên-
a esperança para os membros da clas- tica ou semelhante; a identidade e,
se que, de outro modo, sentir-se-iam em particular, a consciência de classe
atomisticamente frustrados e/ou pro- não surge natural ou espontaneamen-
fissionalmente não realizados. Man- te; ela implica, por um lado, um lon-
tém-se, porém, a seguinte questão: go trabalho de persuasão e discussão
será que o desenvolvimento capitalis- entre os pares e a demarcação-dis-
mo atual, ao conhecer uma crescente tinção ou inclusão-exclusão face a
diferenciação de funções e hierar- outros agentes e, por outro, proces-
quização de categorias profissionais, sos de negociação e combate com as
comporta consigo trajectos de mobi- instâncias do poder, cujas estratégias
lidade social ascendente? Salvo casos tendem, em regra, a estabelecer uni-
excepcionais, de modo nenhum. lateral e heteronimamente as normas
Contrariamente à ideia preconce- e invadir o espaço socio-profissional
bida de que tal diferenciação compor- dos professores/as e, não raro, incitar
taria um elevado grau de mobilidade à divisão e ao enfraquecimento do
social, não estamos a assistir a uma seu colectivo sindical.
diferenciação e heterogeneização da No entanto, para que haja identi-
condição de classe dos professores/ dade colectiva terá de haver um mí-
as. O que diversos estudos constatam nimo de consciência e autoconsciên-
é uma heterogeneidade das origens cia colectiva expressa em costumes e
de classe dos professores/as de hoje, história comuns, solidariedades, pa-
por um lado e, por outro, um diferen- drões culturais, emoções e afetos e,
ciado leque de hábitos e estilos de por fim mas não menos importante,
vida no seio da classe dos professores/ organização e liderança. Tal implica
as, tal como aliás noutras fracções das não só a não discriminação na base da
classes trabalhadoras. idade, da etnia, do sexo, como, pela
Deixando de lado explicações não positiva, a confiança, o sentimento de
só biogenéticas, como inclusive psi- partilha e pertença em base solidária
cológicas nomeadamente psicanalíti- e, por outro, um processo de identifi-
cas e culturalistas sobre a identidade, cação com a liderança e, mesmo, em
considero, seguindo de perto aqui Ba- termos personalizados, com os líde-
der [1991], que a identidade colectiva, res ou determinados protagonistas.
neste caso dos professores/as, emer- Tal se traduz em determinados sím-
ge e desenvolve-se em situações de bolos de prestígio da profissão e/ou
luta e conflito em torno de recursos e se exprime em determinadas acções
recompensas dados como raros. de protesto, manifestações, greves,
É justamente o conflito não só en- seja em tempos de resistência, seja
tre grupos como, neste caso, dos pro- em tempos de acção afirmativa ou
fessores/as versus Estado ou patrão mesmo de utopia realista.
privado que a identidade profissional A reflexão sobre a escola e a sua in-
é susceptível de desenvolver-se e fazer terrelação e interdependência com a
150
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

comunidade envolvente são imperati- competências estão a formar força


vos e propostas que os professores/as de trabalho, cujo sobretrabalho e
e suas organizações sindicais poderão respectivas mais valias revertem em
subscrever não só para a melhoria do favor da acumulação de capital. Po-
seu estatuto socio-profissional como rém, há que ter em atenção que, a
para a transformação socio-educativa, par dalgumas homogeneidades en-
de modo a combater formas de quanto classe qualificada e assalaria-
exclusão e afirmar a cidadania. Só da, subsistem por razões de origem
deste modo a escola poderá contri- social, trajectórias, hábitos e estilos
buir para que não seja uma instância de vida, elementos de heterogenei-
de reprodução de desigualdades so- dade. Se, por um lado, os traços de
ciais; pelo contrário, os professores/ diferenciação e heterogeneidade
as, na medida das suas competências podem constituir um elemento de
e energias, poderão, pelo seu posi- enfraquecimento da classe, eles não
cionamento cívico, cultural e profis- podem nem devem ser assumidos
sional, abrir brechas e constituir para como obstáculos intransponíveis à
os alunos/as referências estimulantes criação e desenvolvimento duma es-
que minorem ou diminuam essas de- tratégia global e comum de classe,
sigualdades socio-educativas, des- desde que o sindicato seja capaz de
cubram as capacidades latentes dos aceitar e integrar a pluralidade e di-
alunos/as e possibilitem uma maior versidade de expressões e dimensões
democratização e, eventualmente, das novas exigências societais. Mais
alguma mobilidade social ascendente ainda, tendo como pano de fundo os
dos alunos/as com mais handicaps ou parâmetros de um Estado gerador
dificuldades. de crescentes processos de depen-
dência dos professores/as perante
Considerações finais estratégias de gestão controlada que
retiram autonomia e democraticida-
O movimento sindical, nomea-
de às escolas e aos próprios professo-
damente o dos professores/as em
res, vão sendo criadas condições de
Portugal, tem constituído a principal
novos impulsos para um movimento
alavanca dos direitos e das melho-
sindical mais proativo e propositivo,
rias estatutárias, remuneratórias e nomeadamente o dos professores/
outras. Contrariamente à estafada as. Há, portanto, que relevar não tan-
ideia de os professores/as serem en- to o que separa os diversos sectores
quadrados/as na (nova) pequena bur- e categorias mas mais preservar e
guesia, segundo um certo marxismo desenvolver o que une os profes-
ortodoxo fossilizado, ou incluídos no sores, assim como aliás saber fazer
grande saco das classes médias em pontes não só com os alunos/as e
consonância com a teoria da estra- encarregados/as de educação e suas
tificação de raiz estruturo-funcional, associações, como sobretudo com
torna-se hoje cada vez mais eviden- outras classes assalariadas em situa-
te que os professores/as constituem ção semelhante ou mesmo em posi-
uma fracção qualificada das classes ção social e organizativa mais débil.
trabalhadoras, também indireta ou, Em suma, ao sindicalismo impõe-se
mais ajustadamente, directamente hoje com mais acuidade uma nova
produtivas na medida em que as suas função que permita justamente não
151
Manuel Carlos Silva

só credibilizar-se junto da classe e da CARAPINHEIRO, Graça


sociedade mas de obrigar os poderes 1993: Saberes e poderes no Hospital,
centrais e locais no sentido de respei- Porto: Afrontamento.
tarem as autonomias e as competên-
cias profissionais e de garantirem os CARAPINHEIRO, Graça e Maria Lur-
recursos e as condições de uma esco- des RODRIGUES
la mais democrática, multicultural e 1998: “Profissões: protagonismos e
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action com destaque para o Centro de Es-
tudos Avançados Multidisciplinares
Abstract (CEAM) da Universidade de Brasília.
Teachers Profession: class place Foi Director de Centro de Investiga-
and conditions for collective action ção (2004-2014) e Presidente da As-
sociação Portuguesa de Sociologia
In this text, the author, considering
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profession in Portugal (malaise, wear, mio Sedas Nunes pela obra Resistir
statutory non-recognition), makes a e adaptar-se (Afrontamento, 1998),
brief historical retrospective of the coordenou vários projetos de investi-
profession (from the corporate-eccle- gação, tendo publicado, em (co)auto-
siastical context to the modern con- ria, inúmeros livros, capítulos de livros
text under private or state employer) e artigos em revistas (inter)nacionais
and reflects on the place of teachers, sobre o rural-urbano, desenvolvimen-
their class condition, living conditions to e desigualdades sociais (de classe,
and their auto and heterorepresenta- étnico-raciais e de género).
tionss. Then he discusses the various E-mail: mcsilva2008@gmail.com
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Artigos

Toponímia e Identidade
Nacional

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156
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Bento Sitoe

Motivação sociocultural
na criação de topónimos
O caso da comunidade changana

Resumo
A toponímia está intrinsecamente ligada aos eventos de movimento. Estes
acontecem em algum lugar que deve ser nomeado. Segundo Schaefer [1996:1],
“Essencialmente, o argumento é que a estruturação linguística de eventos de
movimento fornece um conjunto de esquemas útil para a codificação linguística
de mais domínios do que apenas o de movimento.”
Neste trabalho de pesquisa de índole linguística e sociolinguística, recorrendo
a práticas da comunidade changana, iremos estudar a expressão linguística do
topónimo e a influência que os habitantes de uma determinada região têm sobre
a forma linguística que designa um lugar e sobre a própria utilização dessa forma.
Por outro lado, o contacto com o “outro” cria uma dupla ou mesmo tripla de-
signação de um mesmo lugar. Então, neste estudo, na esteira da etnotoponímia,
iremos ver até que ponto a toponímia tradicional da comunidade changana tem
sido modificada sob o impacto de muitas mudanças significantes sobre a sua or-
ganização social e cultural.
Palavras-chave: toponímia, Changana, linguística, sociolinguística, etnotoponímia.
157
Bento Sitoe

1. Introdução O interesse da etnotoponímia


O presente artigo retoma e actua- tem-se centrado em um número de
liza, sem contudo o esgotar, o tema questões inter-relacionadas que ultra-
da comunicação que apresentei no passam de longe a mera designação
13º Congresso Internacional da Socie- e grafia de topónimos. Isto porque,
dade de Nomes da África Austral em segundo Timbane [2022:145] “A atri-
Maputo, em Setembro de 2004, so- buição de nomes de lugares sempre
bre a problemática da designação de foi polêmica nas sociedades africanas,
lugares, com o título “Motivação so- porque o nome não é apenas algo que
ciocultural na criação de topónimos e identifica um lugar, pois carrega tra-
sua influência sobre a morfossintaxe: ços culturais, uma identidade e iden-
o caso do Changana”. Não se trata de tifica origens históricas de um povo.”
um estudo acabado pois a toponímia Neste estudo de índole linguísti-
é uma área de pesquisa recente no ca e sociolinguística iremos recorrer
Moçambique independente. Tal como a práticas da comunidade changana
Herbert [1995:1] lamenta a escassez para tentarmos estudar a expressão
de estudos sobre as práticas de atri- linguística designativa de lugares es-
buição de nomes próprios de pessoas, pecíficos do território ocupado por
também, salvo raríssimas excepções, esta comunidade e estudar a própria
a toponímia não tem recebido a devi- utilização dessa forma linguística. Por
da atenção por parte dos linguistas e, outro lado, o contacto com “o outro”
particularmente, dos sociolinguistas. coloca-nos diante de dupla ou mesmo
Derivam deste facto as limitações do tripla designação de um mesmo lugar.
presente estudo. Neste exercício, na esteira de Herbert
A toponímia está intrinsecamente [1995] no seu trabalho sobre antro-
ligada a eventos de movimento, que ponímia, iremos ver até que ponto a
constituem um domínio importante toponímia tradicional da comunidade
da actividade humana. Movemo-nos changana tem sido modificada sob o
e fazemos as coisas moverem-se. impacto de muitas mudanças signifi-
Quem parte, parte para um lugar. cativas na sua organização social e na
Quem chega, chega a um lugar. sua cultura e como esta comunidade
Quem passa, passa por algum lugar e tem reagido a estas mudanças.
mesmo quem fica, fica em algum lu- Neste estudo, em muito material
gar. Este lugar tem que ser nomeado. ilustrativo são reutilizados dados
É um ponto de referência ao evento fornecidos em Sitoe [1991 e 2001],
chamado movimento. dados de um inquérito administrado
Nos estudos recentes de semânti- a informantes changanas, para além
ca lexical, a expressão de movimen- de dados vindos da minha introspec-
to e de lugar tem ocupado lugar de ção, como parte da comunidade em
destaque. Citando Schaefer [1996:1], estudo e morador de um dos bairros
“Essencialmente, o argumento é que de Maputo.
a estruturação linguística de eventos O presente artigo consiste em 5
de movimento fornece um conjunto secções, nomeadamente a secção 1,
de esquemas útil para a codificação que é a introdução; a secção 2, que
linguística de mais domínios do que fornece uma breve informação sobre
apenas o de movimento.” a língua changana; a secção 3, que
158
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

apresenta os mecanismos linguísticos pela adição do sufixo locativo -ini. Adi-


usados na criação do topónimo; a sec- cionalmente, o nome assim locativiza-
ção 4, que procura descrever os pro- do pode receber as vogais eufónicas a-
cessos da acomodação linguística de ou e-, que são constituintes nominais
empréstimos toponímicos; a secção 5, opcionais. Quando o sufixo locativo -ini
que aborda a motivação sociocultural é agregado ao nome, ocorrem muitas
na criação, adopção e uso do topóni- mudanças de som, tais como a fusão
mo e a secção 6, reservada às conside- da vogal final do radical nominal com a
rações finais. primeira vogal do sufixo, a labialização,
a fricatização de algumas consoantes
2. Sobre a língua changana da última sílaba do radical nominal,
O Changana (Xichangana) é uma etc. Eis alguns exemplos:
das três línguas bantu, mutuamente
inteligíveis, que constituem o grupo (01)
Tsonga (Xitsonga). As outras duas a. mátí ‘água’ > ámátíni ‘na água’
são o Ronga (Xirhonga) e o Tshwa b. ndlevé ‘orelha’ > ándlevéni ‘na orelha’
(Citshwa)1. O Changana é uma língua c. tandzá ‘ovo’ > átandzéni ‘no ovo’
transfronteiriça, maioritariamente fa-
d. ndzilo ‘fogo’ > ándzílwéni ‘no fogo’
lada em Moçambique e na África do
Sul. Neste país, é uma das línguas ofi- e. nomo ‘boca’ > ánón’wíni ‘na boca’
ciais com a designação de Tsonga. Há f. nambu ‘rio’ > ánámbzéni ‘no rio’
falantes nativos de Changana também
no Reino de Eswatini e no Zimbabwe. No acervo lexical do Changana
Neste país, é uma das línguas oficiais, existem nomes inerentemente locati-
com a designação de Shangani. As mi- vos. Trata-se de um certo número de
nhas estimativas com base nos censos nomes comuns que, segundo Sitoe
populacionais destes quatro países [2001:9], apesar de não exibirem o
apontam para quatro milhões o nú- sufixo locativo -ini, são inerentemen-
mero de falantes de Changana nesta te locativos no sentido de que desig-
região da África austral. nam lugares. Este grupo de nomes
inclui palavras como as apresentadas
3. Mecanismos linguísticos da em (02). Muitos empréstimos que
criação de topónimos designam lugares, tais como os apre-
Lexicalmente, uma determinada sentados em (03), também integram
língua serve-se de certos operadores este grupo.
morfológicos para a criação de expres-
sões que designam lugares onde os (02)
eventos e as coisas se situam. Nesta a. nkangálá ‘lugar isolado e desprote-
secção, iremos descrever os mecanis- gido, ao ar livre’
mos de locativização, começando pelo b. káyá ‘casa, lar, pátria’
processo da locativização nominal.
c. mpfungwé ‘o lugar mais fundo da
Em Changana, os nomes locativos casa, oposto à entrada’
podem ser derivados de nomes comuns

1
Entre parênteses figuram as formas que os falantes nativos empregam para designarem a sua língua.
159
Bento Sitoe

(03) (06)
a. bazárá ‘mercado’ a. ká Bila ‘no, ao, do Bila’; ‘em/a/da/
b. jelé ‘prisão’ casa do Bila’
b. ká makwérhú ‘no, ao, do meu ir-
Sintáctica e semanticamente, os mão’; ‘em/a/da/ casa do meu irmão’
nomes inerentemente locativos com-
portam-se como os nomes locativiza-
(07)
dos. Isto pode ser observado em (04).
a. Ká Bila ahingérindzélí nchúmú.
(04) ‘Nada podemos esperar do Bila.’
a. Makamela máyé mánánga. ‘Os ca- b. Kú ní nkhúvu ká makwérhú. ‘Há fes-
melos foram para o deserto.’ ta em casa de meu irmão.’
b. Bila áhúmílé jelé. ‘O Bila saiu da ca-
A observação dos dados até aqui
deia.’
fornecidos e de outros por mim re-
c. Márta amúka ákaya. ‘A Marta volta colhidos mostra claramente que a
para casa.’ criação e o uso de topónimos são o
resultado de um exercício complexo.
Um subgrupo especial de locati- Os locativos derivados de nomes co-
vos inerentes é formado por nomes e muns ocorrem com o morfema locati-
demonstrativos nos quais os prefixos vo -ini precedidos ou não da partícula
das três classes locativas das línguas opcional á- e os derivados de nomes
bantu ainda sobrevivem em forma de próprios de pessoas ocorrem com a
vestígio. Estes locativos são também partícula ká.
designados de locativos lexicalizados.
A formação de topónimos segue qual-
Eis alguns exemplos, extraídos de [Si-
quer das estratégias acima descritas,
toe 2001:9]:
como iremos observar mais adiante.
(05)
a. Classe 16 (ha): henhlá ‘topo, cimo’, 4. Os processos da acomodação
hánsí ‘chão, parte mais baixa’, hála ‘lá’ linguística de empréstimos
toponímicos
b. Classe 17 (ku): kule ‘longe’, kusúhí
‘perto’, kwíni ‘onde’ Duas línguas em convivência intro-
duzem elementos uma na outra, fe-
c. Classe 18 (mu): ndzhákú ‘parte pos-
cundando-se por assim dizer, mutua-
terior’, lomu ‘aqui, cá’
mente. O contacto com o Português
coloca a comunidade changana diante
E, por fim, a morfologia locativa in-
clui a locativização de antropónimos: de dupla ou mesmo tripla designação
Os nomes próprios de pessoas, ou de um mesmo lugar pela adopção de
seja, os antropónimos, e alguns ter- empréstimos lexicais toponímicos.
mos de parentesco são locativizados Nesta secção, irei servir-me de da-
com o emprego do elemento locativo dos colhidos de Sitoe [1991:108-111]
ka, que é a partícula possessiva das para falar muito brevemente dos pro-
três classes locativas, nomeadamente cessos envolvidos na acomodação lin-
16 (ha), 17 (ku) e 18 (mu). guística de empréstimos toponímicos.
160
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

a) Integração fonológica correspondente (11b). Se o nome não


está em nenhum destes dois casos, a
Não havendo ditongos em Changa- regra geral é de ser incluído nas clas-
na, os vindos do Português são desfei- ses ri-ma, tendo-se em consideração
tos pela eliminação de uma das vogais que muitas palavras nesta classe não
ou pela inserção de uma semivogal. exibem o prefixo nominal (11c).

(08) (11)
Beira > Béra a. chefe > xéfe / váxéfe; bispo > bíxopo
Marromeu > Maroméwu / vábíxopo
São Tomé > Sántuméya Tanzânia > b. escola > xikólwe / svikólwe;
Tanzaníya aeroporto > ropórtu / maropórtu
c. praia > paráyá / maparáyá; bazar >
A nasalização de vogais é fenómeno bazárá / mabazárá
raro em Changana. Nos empréstimos,
estas vogais perdem a sua nasalidade. Uma vez integrado na língua, o
empréstimo está sujeito às mesmas
(09) regras de locativização já descritas.
(Bairro do) Jardim > Xjaradí Assim:
(Aldeia da) Barragem > Baráxjí
(12)
O Changana não possui grupos a. ká xéfe / ká váxéfe ‘ao chefe / aos
consonânticos. A tê-los, representam chefes’
uma única consoante complexa. Por
ká bíxopo / ká vábíxopo ‘ao bispo / aos
isso, as palavras portuguesas com tais
bispos’
grupos são geralmente integradas
intercalando-se uma vogal de apoio b. áxikólwéni / ásvikólwéni ‘na escola /
entre as consoantes, em obediência à nas escolas’;
estrutura silábica changana que é CV. áropórtu / ámaropórtu ‘no aeroporto /
nos aeroportos’
(10) c. áparáyá / ámaparáyá ‘na praia / nas
Drenagem >Derenáxje Pretória > Pitórí praias’;
b) Integração morfológica ábazárá / ámabazárá ‘no bazar / nos
bazares’
Os nomes, antes de receberem as
partículas locativas descritas na sec- 5. Motivação sociocultural na
ção 3, entram numa das classes no- criação, adopção e uso do
minais, obedecendo geralmente às topónimo
seguintes regras: O interesse etnográfico em toponí-
Se o nome se refere a pessoas, in- mia tem-se centrado em um número
clui-se nas classes mu-va (11a). Se o de questões inter-relacionadas e que
nome começa por um fonema seme- quase sempre estão impregnadas
lhante ao de um prefixo nominal (de- de aspectos socioculturais: Quando
pois da acomodação fonológica acima surge o topónimo? Como é escolhi-
descrita) inclui-se na classe nominal do esse nome? Quem dá o nome a
161
Bento Sitoe

um lugar? Quem legitima e divulga o a uma vasta região suburbana de Ma-


nome do lugar? puto afectada por uma grande cratera
Nas secções precedentes descreve- (xikhelé) aberta pelas águas pluviais e
mos os mecanismos da criação e de que vai aumentando de tamanho ano
acomodação linguística dos topóni- após ano. Note-se que estes topóni-
mos. Nesta secção vamos ver que fac- mos têm como base nomes comuns
tores socioculturais influenciam a cria- que recebem o locativo -ini.
ção, a acomodação e o emprego de É facto curioso os falantes de Chan-
um e não de outro(s) dos topónimos gana utilizarem o topónimo em (13b)
disponíveis no acervo lexical ao dispor nesta forma. Estar-se-á perante o
da comunidade linguística changana. caso de os falantes terem dissociado
Um aspecto não menos importante o topónimo do seu significado primá-
deste estudo é a influência sociocultu- rio ximphámaníni ‘na pequena figueira
ral sobre a criação e o uso do topónimo brava’, derivado de mpháma ‘figueira
pois a escolha de qualquer daqueles brava’? Note-se que os dois lugares
mecanismos linguísticos depende da apresentados em (13a,b) ostentam
percepção que se tiver da etimologia estas designações por, inicialmente,
de um topónimo específico, de acordo terem tido como pontos de referência
aquelas árvores, respectivamente.
com as características peculiares do
lugar, de algo notável ou de eventos Passemos agora para topónimos
importantes situados no lugar, bem derivados de antropónimos:
como de antropónimos geralmente
associados a líderes locais. (14)
a. Bilá áya KáTembe. ‘O Bila vai a
Vejamos os seguintes exemplos: Catembe.’
b. Bilá áya KáN´wámatibzana. ‘O Bila
(13) vai a Matibejana.’
a. Podíná ámúka áXinkajwáníni. ‘A c. Bilá áya (á)Patrísi Lumúmba. ‘O Bila
Podina volta para Xincajuanine.’ vai a Patrice Lumumba.’(bairro)
b. Podíná ámúka áXiphámaníni. ‘A d. Bilá áya (á)Joní. ‘O Bila vai a
Podina volta para Xipamanine.’ Joanesburgo.’
c. Podíná ámúka áXinyémbáníni. ‘A
Podina volta para Xinhembanine.’ Os topónimos em (14a,b) são de-
d. Podíná ámúka áXikheléni. ‘A Podina rivados de nomes próprios nativos.
volta para Xiquelene.’ Trata-se de nomes dos chefes ou au-
toridades locais Tembe e N’wámatíb-
O topónimo em (13a) é derivado zana e, por isso, os topónimos deles
de xinkajwáná ‘cajueiro pequeno’, em derivados seleccionam a partícula ká,
Ronga, o de (13b) deriva de ximpháma- grafada com inicial maiúscula, visto
na ‘figueira brava pequena’. O topóni- integrar um nome próprio de lugar.
mo em (13c) refere-se a um bairro da Os topónimos de origem estran-
cidade de Maputo onde as pessoas do geira em (14c,d), mesmo que derivem
Xinyembana ‘língua, uso e costumes de antropónimos como em (14a,b),
dos naturais de Inhambane’ se fixaram são considerados inerentemente lo-
há muitos anos e o de (13d) refere-se cativos. Nesta qualidade, não levam
162
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

morfologia locativa e tomam apenas Os topónimos KáMátsolo (15a) e Ma-


a vogal eufónica á-, um constituinte tóla (15b) designam o mesmo bairro.
nominal opcional. O primeiro corresponde à designação
Note-se que a ortografia dos em- local, nativa, deste bairro e deriva do
préstimos conforma-se ao sistema nome de uma autoridade local Matso-
ortográfico do Changana que por lo, cujo sentido primário é ‘joelhos’. O
sinal reflecte o sistema fonológico segundo topónimo é um empréstimo
da língua. [cf NELIMO 1989, Sitoe & vindo do aportuguesamento do antro-
Ngunga (eds). 2000, Sitoe et al 2003] pónimo Matsolo, daqui a diferença na
Todos os exemplos fornecidos neste sua morfologia locativa. O topónimo
estudo atestam este facto. Contudo, em (15c) é derivado de uma alcunha
amostras recolhidas junto de falantes changana, N’wámavéle ‘a do peito
bilingues, para quem o sistema fono- opulento’, daí ocorrer com a partícula
lógico do Português já não constitui ká como em (14a, 15a). Nampula em
fenómeno “estranho”, revelam que, (15d) é o nome aportuguesado de uma
nesta camada social, alguns emprésti- das províncias do norte de Moçambi-
mos conservam a sua pronúncia origi- que, derivado de uma alcunha macua,
nal, como nos exemplos em (14c) e em Wámphula, ‘o narigudo’. Por designar
(16b), mais abaixo. Esta tendência do uma região geograficamente distante
uso do empréstimo na sua pronúncia do território dos changanas, este to-
original pode também ser resultado pónimo não exibe morfologia locativa.
da relação diglóssica entre o Changa- Por fim, apresentamos três expres-
na e o Português, onde a tendência sões toponímicas em (16) que desig-
será a de privilegiar o termo da língua nam o mesmo bairro:
de prestígio como forma de projecção
social. Mas não é de descartar a hi- (16)
pótese de que, pelo processo natural a. Mufána átsutsúmé KáN’wáyeyé. ‘O
de mudança linguística por contacto, rapaz correu no Alto-Maé.’
o Changana esteja a assimilar traços
fonológicos do Português vindos jun- b. Mufána átsutsúmé áAlto-Maé. ‘O
tamente com os empréstimos. rapaz correu no Alto-Maé.’
Passemos para mais um exemplo c. Mufána átsutsúmé áTumayélá. ‘O
da motivação sociocultural no uso de rapaz correu no Alto-Maé.’
determinados topónimos em detri-
mento de outros: De acordo com a etimologia popu-
lar, o nome original nativo do bairro
(15) (16a) foi transformado na expressão
aportuguesada apresentada em (16b).
a. Xibómba xísuké KáMátsolo. ‘O ma-
Esta, por seu turno, tendo perdido no
chibombo saiu da Matola.’
tempo a sua etimologia e, por conse-
b. Xibómba xísuké áMatóla. ‘O machi- quência, ter sido tomada como em-
bombo saiu da Matola.’ préstimo, foi adaptada para a forma
c. Xibómba xísuké KáN´wámavéle. ‘O observada em (16c) por acomodação
machibombo saiu de Uamavele.’ morfo-fonológica, para que soasse
d. Xibómba xísuké áNampúla. ‘O ma- mais changana. Mas como este úl-
chibombo saiu de Nampula.’ timo não tem outro significado em
163
Bento Sitoe

Changana senão o de designação de dores como se chamava aquela pra-


lugar, ou talvez por estar ainda a soar ça adjacente ao mercado ali existen-
como expressão estrangeira, não to- te. Os que respondiam em Changa-
mou a partícula locativa ká nem o sufi- na disseram tratar-se de Xikheléni. A
xo locativo -ini. quase totalidade dos que responde-
Não devemos fechar esta secção ram em Português disse tratar-se da
sem sublinhar que os ocupantes de Praça do Xiquelene. Apenas um refe-
uma determinada região desempe- riu-se à Praça dos Combatentes (tal-
nham um importante papel na esco- vez porque estivesse perto da placa
lha do topónimo designativo da sua de mármore com o nome da praça
região. A título de exemplo, observe- gravado a preto...)! Este pequeno in-
mos adicionalmente estes dados: quérito parece ter chegado a respos-
tas que remetiam mais a Xiquelene
(17) que a Praça dos Combatentes, ou ao
a. áHúléni ‘Bairro do Hulene’ (região uso alternado dos dois topónimos de
arenosa dos subúrbios de Maputo) acordo com a língua utilizada.
b. áXinkanyánini ‘(Paragem do) O Conselho Municipal da Cidade
Xicanhanine’ (Paragem de autocarros de Maputo desenvolveu um projecto
com um pequeno canhoeiro) que visava harmonizar a designação
c. áGólófu ‘Golfe’ (região com um dos sete distritos da sua jurisdição,
recinto onde se pratica o golfe, em respeitando a tradição local. Como
Maputo) resultado deste louvável esforço,
os distritos deixaram de ser desig-
A forma áHúléni deriva de hula ‘de- nados por algarismos passando a
serto’; áXinkanyánini de xinkanyána ser oficialmente conhecidos por:
‘pequeno canhoeiro’ e esta, por sua KaMpfumu, Nlhamankulu, KaMa-
vez de nkanyí ‘canhoeiro’. A forma xakeni, KaMavota, KaMubukwana,
áGólófu vem do vocábulo portu- KaTembe e KaNyaka. Infelizmente,
guês golfe. A etimologia dos exem- este esforço não se estendeu até aos
plos em (17), e de muitos topónimos nomes dos bairros que constituem
deste género, revela que geralmen- estes distritos e, assim, continuam
te são as próprias populações que com os seus nomes (ora nativos ora
criam e fazem circular os nomes aportuguesados). Para complicar
com os quais designam os lugares à mais a situação, há bairros que são
sua volta. As instituições do poder designados pelo mesmo nome usa-
estabelecido têm criado e divulga- do para designar o respectivo distri-
do topónimos oficiais e oficiosos que to mas exibindo formas ora nativas
por vezes são ignorados ou pouco ora aportuguesadas, como se pode
usados pelos “donos” dos lugares observar em (18). Para o cidadão co-
nomeados, a favor dos topónimos de mum, que tenha que preencher, por
cunhagem local. exemplo, um formulário oficial, fica
Vivo perto de Xiquelene (Xikhelé- difícil saber quando usar distinta-
ni), a Praça dos Combatentes, e fui mente as duas formas para diferen-
perguntar (ora em Changana, ora ciar a designação do bairro do seu
em Português) a mais de dez vende- respectivo distrito.
164
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

(18) Belo (nome de um português, antigo


a. Distrito de Nhlamankulu / Bairros ministro das colónias) ao que hoje é
de Chamanculo A, B, C e D Xai-Xai, a cidade capital da província
de Gaza. Isto reforça a ideia de que o
b. Distrito de KaMaxakeni / Bairro de
assunto discutido neste artigo ultra-
Maxaquene
passa de longe a questão pontual da
c. Distrito de KaMavota / Bairro das ortografia dos nomes de lugares, pois
Mahotas envolve a sua própria designação den-
tro do contexto sociocultural!
Esta situação se estende um pou-
co por todo o país. Tomemos a título
5. Considerações finais
exemplificativo a situação similar ob-
servada na província de Gaza, onde Neste artigo recorri a práticas da
um dos seus distritos ora é grafado comunidade changana para tentar
Mandlakazi, ora Manjacaze ou mes- estudar a expressão linguística do
mo Manjakaze, outro ora Chibuto, ora topónimo. Os dados discutidos con-
Ximbhutsu e outro ainda ora Chócue, firmam que a comunidade changa-
ora Chókwè! na prefere os topónimos localmente
Os nomes de lugares estão muitas criados embora também faça uso al-
vezes associados à história de grandes ternado dos topónimos localmente es-
personalidades e líderes desses luga- tabelecidos e dos oficialmente criados.
res e à história dos próprios lugares. Esta prática tem trazido problemas
Se na língua local se altera a pronún- de falta de consistência na utilização
cia e consequentemente a ortografia dos topónimos nas duas línguas em
desses topónimos, a história do lugar contacto, nomeadamente o Changa-
é decepada, com prejuízo para as fu- na e o Português, sobretudo em con-
turas gerações. Quem, por exemplo, textos formais. A situação torna-se
escreve Matibejana em Changana em mais preocupante quando se trata da
vez de N’wáMatíbzana terá perdido a designação de lugares em textos nor-
oportunidade de falar de parte da his- mativos oficiais.
tória do seu povo. Quem diz Infulene, As instituições do poder estabeleci-
quando fala em Changana, terá per- do têm criado e divulgado topónimos
dido a oportunidade de explicar que que algumas vezes são ignorados ou
mfuleni é locativização de mfula que pouco usados pelos “donos” dos luga-
significa rio! res nomeados. Então, que atitude de-
Língua é cultura. Os nomes de luga- ver-se-á ter em relação a qualquer dos
res, incluindo os ainda aportuguesa- topónimos co-existentes?
dos, devem ser apreendidos juntamen- Esta pesquisa leva-nos a presumir
te com aquilo que encerram da realida- que no processo do estabelecimento
de, da história e da cultura da região. de topónimos de uma determinada
Por exemplo, já se chamou The Lagoa região, não se deve ignorar os facto-
Bay ao que em Português se chamava res históricos nem a dinâmica social
Baía das Lagoas e em Ronga e Chan- vigente.
gana Daragubi e mais tarde Lourenço O processo de instituição de to-
Marques ou KaMpfumu ao que hoje é a pónimos passa pelo respeito pelos
cidade de Maputo. Já se chamou João habitantes da região. Trabalho de
165
Bento Sitoe

campo é bem diferente de trabalho de 1996: “Toward a Motion Typology


gabinete. Uma consulta prévia às po- for African Languages”, (Paper
pulações, às autoridades locais, a per- presented at the call 26, University
sonalidades de prestígio na região, irá of Leiden)
certamente indicar a melhor solução
dos problemas aqui apontados. A pri- SITOE, Bento
meira palavra deverá ser dos “donos” 1991: “Empréstimos lexicais do
das regiões a serem formalmente de- Português no Tsonga”, Revista
signadas. Ocorre-me aqui parafrasear Internacional de Língua Portuguesa,
Timbane [2022:137] para fazer notar 5/6, Lisboa: Associação das
que o pesquisador em etnotoponímia Universidades de Língua Portuguesa.
não pode forçar nem impor nomes de pp. 106-113
lugares na língua que as pessoas fa- 2001: Verbs of Motion in Changana,
lam. Ele tem a tarefa de analisar, estu- Leiden: CNWS - Leiden University
dar e mostrar as evidências recolhidas (Tese de Doutoramento)
sobre os topónimos.
Sitoe, Bento & Ngunga, Armindo
Um esforço conjunto do Instituto
(eds)
de Nomes Geográficos de Moçam-
2000: Relatório do II Seminário sobre a
bique (INGEMO) com as instituições
padronização da ortografia de línguas
superiores de pesquisa bem como as
moçambicanas, Maputo: Nelimo
autoridades municipais e locais pode
– Centro de Estudos de Línguas
ajudar a equacionar os problemas aqui
Moçambicanas - UEM
descritos e procurar-lhe uma fórmula
afectiva e psicologicamente mais pró- Sitoe, Bento, F. Chimbutana, X.E.
xima dos habitantes dos lugares de- Mabaso, P.H. Nkuna, N.E. Nxumalo e
signados e alicerçada no bom senso. M. C. Hlungwani
Assim, os sectores da educação, da in- 2003: A unified standard orthography
formação, do turismo e outros estarão for Xitsonga / Xichangana (South
munidos de uma toponímia política e Africa and Mozambique), Cape Town:
socioculturalmente livre dos “ruídos” The Center for Avanced Studies of
aqui descritos. African Society (CASAS). (Monograph
Series No 32)
Referências Timbane, Alexandre
Herbert, R.K. 2022: “A etnotoponímia dos nomes
1995: “The sociolinguistics of dos distritos das províncias de Gaza e
personal name: two South African Maputo : uma análise da identidade
case studies”, SAJAL 15(1), pp. 1-8
ecolinguística”, In: Nhampoca, Ezra
NELIMO Alberto Chambal & Ponso, Letícia
1989: I Seminário sobre a Cao (Orgs.), Pesquisa e ensino em
Padronização da Ortografia de Línguas línguas moçambicanas - Um tributo
Moçambicanas, Maputo: INDE- a Bento Sitoe, Maputo: Gala-Gala
NELIMO/UEM Schaefer, Ronald P. Edições, pp. 130-155
166
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Title: Sociocultural motivation Bento Sitoe


in the creation of toponyms The Bento Sitoe nasceu em Maputo, a
case of the Changana community 18 de Maio de 1947. Em 2001, obteve
o grau de Doutoramento em Linguís-
Abstract
tica Africana, pela Universidade de
Toponymy is intrinsically linked to Leiden, na Holanda.
movement events. These happen in É docente e investigador jubilado na
a given place that should be named. Universidade Eduardo Mondlane, na
According to Schaefer [1996:1], “Es- Faculdade de Letras e Ciências Sociais,
sentially, the argument is that the lin- Departamento de Linguística e Lite-
guistic structuring of motion events ratura, Secção de Linguística. As suas
áreas de interesse são: Linguística Des-
provides a set of schemas useful to the
critiva das Línguas Bantu; Lexicografia;
linguistic encoding of domains other
Teologia; Tradução e Literatura.
than motion.”
É autor de livros dos quais se desta-
In this research work of linguistic cam, Dicionário Changana-Português,
and sociolinguistic nature, using the Dicionário Português-Changana, Dicio-
practices of the Changana communi- nário Ronga-Português, Dicionário Es-
ty, we will study the linguistic expres- colar Inglês-Português (os dois últimos
sion of the toponym and the influence em co-autoria) e Verbs of motion in
that the inhabitants of a given region Changana. Bento Sitoe é ainda autor
have on the linguistic form that desig- de três novelas em Changana: Zabe-
nate a place and on the way that com- la, Musongi e Thandavantu, e de
munity uses that form. peças teatrais na mesma língua. Em
2019, traduziu a Constituição da Re-
On the other hand, the contact with
pública de Moçambique, de Português
the other leads to a double or even tri- para Changana.
ple designation of a single location. So
É membro fundador da Sociedade
in this study, in the wake of ethnoto-
Bíblica de Moçambique, da Academia
ponymy, we will see to what extent de Ciências de Moçambique e da Asso-
the traditional toponymy of the Chan- ciação dos Escritores Moçambicanos.
gana community has been modified Dos prémios, louvores e distinções
under the impact of many significant se destaca o prémio “Excelência no
changes on its social and cultural or- Ensino Superior (Docência e Investi-
ganization. gação)” pela Gala dos 50 anos de En-
sino Superior em Moçambique (2012).
Key words: toponym, Changana,
E:mail: bsithoye@gmail.com
linguistics, sociolinguistics, ethnoto-
ponymy

167
168
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Armindo Ngunga

A escrita dos topónimos


e a diversidade
linguística em
Moçambique
Resumo
O presente trabalho pretende discutir a escrita dos topónimos (do gregos
τόπος, «lugar», e νομα, «nome», significando, portanto, «nome de lugar») e
a diversidade linguística de Moçambique. O pressuposto do presente estudo é de
que um país multilingue e multicultural como Moçambique deve ser um espaço
para cada língua se manifestar e se ver reflectida na geografia e na soberania do
país em prol da consolidação da história colectiva comum dentro das fronteiras.
O presente trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto que se propõe a
discutir, mas contribuir para uma reflexão aberta e franca sobre estes dois assun-
tos, geralmente tabus, no dia-a-dia dos cidadãos, toponímia e diversidade linguís-
tica num país em que já se ensaiou, infelizmente, sem sucesso. uma glotofagia para
consolidar a hegemonia da língua portuguesa em nome da unidade nacional.
Em termos de organização, depois da introdução, o estudo apresenta a situa-
ção linguística de Moçambique, descrevendo a sua complexidade e focalizando
no espaço político e social da língua portuguesa no país. Em seis secções, o tex-
to discute a diversidade linguística de Moçambique contemporâneo e faz uma
abordagem diacrónica da toponímia que inicia antes da chegada dos estrangei-
ros até ao presente. O texto apresenta também alguns conceitos básicos em bre-
ves definições. A seguir, apresenta a diversidade linguística de Moçambique com
enfoque para a situação da língua portuguesa, seguido de um breve historial da
toponímia em Moçambique. Depois, aponta alguns desafios para o Instituto Na-
cional de Nomes Geográficos de Moçambique (INGEMO) e, finalmente, apresen-
ta algumas conclusões das discussões desenvolvidas ao longo do texto.
Palavras-chave: toponímia; topónimo; linguística.
169
Armindo Ngunga

1. Introdução çambique, com vista a contribuir para


O ser humano distingue-se dos uma reflexão aberta e franca sobre es-
outros animais por causa, principal- tes dois assuntos, geralmente tabus,
mente, de ter a língua como meio de no dia-à-dia dos cidadãos.
comunicação através da qual troca Como é de se imaginar, trata-se de
mensagens com os seres semelhan- um tema cujo tratamento não pode ter
tes, exprime os seus sentimentos, as a pretensão de se esgotar no espaço
suas ideias, a sua visão do mundo e da como o que se nos oferece. A presen-
vida, nomeia os outros seres, os rios, te comunicação vai-se desenvolver na
as montanhas, os lagos, os relevos, prossecução dos seguintes objectivos:
as vias de acesso, os oceanos, enfim,
a) Discutir a situação linguística de
as estrela do céu e todos os seres do
Moçambique;
universo. Enquanto a Linguística es-
tuda o fenómeno da linguagem, em b) Propor uma reflexão sobre a si-
geral, e a língua, em particular, a ono- tuação actual da toponímia em
mástica (do grego νομαστική, ato de Moçambique e os desafios que
nomear, dar nome) é uma parte da lin- ainda se colocam;
guística com ligações com a história, c) Relacionar a toponímia moçam-
política, antropologia, arqueologia bicana com a diversidade linguís-
e a geografia, que estuda os nomes tica de Moçambique;
próprios de todos os géneros, das
d) Discutir aspectos da história dos
suas origens e dos processos de de-
nomes geográficos de Moçambi-
nominação…”1. Nessa capacidade,
que;
ela conhece várias divisões definidas
de acordo com a classe específica dos e) Argumentar a favor da adopção da
nomes a estudar, entre os quais se ortografia padronizada das línguas
podem apontar as seguintes: moçambicanas na escrita dos no-
Antroponímia, nomes de seres humanos; mes geográficos moçambicanos.
Coronímia, nomes de subdivisões ad-
ministrativas e de estradas; Para se alcançar os objectivos aci-
Hidronímia, nomes de rios e outros ma, o texto está organizado em 5
cursos de água; secções. Depois da (1) Introdução, o
Limnonímia, nomes de lagos; texto apresenta (2) Alguns conceitos
Oronímia, nomes dos montes e outros básicos sob a forma de breves defi-
relevos; nições. A seguir, apresenta (3) A di-
Talassonímia, nomes de mares e versidade linguística de Moçambique
oceanos; com enfoque para a situação da língua
Toponímia, nomes próprios de lugares. portuguesa, seguido de um (4) Breve
historial sobre a toponímia em Mo-
O presente texto discute os topóni- çambique. Depois, aponta (5) Alguns
mos, a escrita destes e a sua relação desafios para o Instituto Nacional de
com a diversidade linguística em Mo- Nomes Geográficos de Moçambique

1
Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lingu%C3%ADstica. Acessado a 28/06/2016.
170
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

e, finalmente, apresenta algumas (6) Número 50, de 23 de Julho de 2014].


Conclusões das discussões desenvol- Línguas moçambicanas – línguas
vidas ao longo do texto. bantu faladas em Moçambique como
línguas maternas de habitantes de
2. Alguns conceitos básicos pelo menos uma localidade inteira.
Diferente da situação linguística Linguística – o estudo científico da
de Moçambique que tem sido objec- Linguagem.
to de estudos e trabalhos relativa-
Nomes – também chamados subs-
mente numerosos [Cabral 1975; Car-
tantivos em muitos livros de gramáti-
doso 2005; Firmino 2000; Gonçalves
ca tradicional, são palavras variáveis
e Chimbutane 2015; Katupha 1988;
que se usam para designar diversas
Liphola 1995, 2009; 1999; Ngun-
realidades entre concretas e abstrac-
ga 1987, 2008, 2009, 2011, 2012a,
tas, objectos, seres, pessoas, lugares.
2012b, Veloso 1996, Yai 1983, só
para mencionar alguns] e bem co- Nomes geográficos – aqueles que
nhecidos pelo público moçambica- se usam para designar lugares ou es-
no, os estudos sobre a Toponímia paços na superfície terrestre. Muitas
moçambicana são muito escassos vezes, para efeitos do presente traba-
[Mangueze 2009; Ngunga 2012; Ra- lho, esta expressão poderá ser usada
fael 2014a, b, 2015a, b]. Para salva- no sentido de toponímia tal como foi
guardar a eventualidade de alguns definida anteriormente.
leitores deste artigo não estarem
familiarizados com esta matéria, 3. Diversidade linguística de
achou-se por bem antecipar a ex- Moçambique
plicação de alguma metalinguagem Como é sobejamente sabido, Mo-
cujo uso é incontornável em estudos çambique é um país multilingue e
desta natureza. Para quem esta si- multicultural. Nele, a língua portugue-
tuação não se aplique, convida-se a sa, língua oficial, coexiste com pouco
revisitar alguns conceitos aqui abor- mais de vinte línguas do grupo bantu.
dados porque, mesmo sendo conhe- O conceito de diversidade linguística
cidos, podem não ser exactamente de Moçambique resulta do facto de
no sentido em que aqui são usados. este espaço geográfico que também
Acidente geográfico – “superfí- é espaço linguístico, ser partilhado por
cie da terra ou água, que contraste diversas línguas com predominância
com a área contígua ou circunvizinha, de línguas do grupo bantu. Os nomes
nomeadamente, rios, montes, mon- das línguas deste grupo são homóni-
tanhas, lagos, lagoas, penínsulas e mos dos nomes dos grupos étnicos
baías.” [Boletim da república, I Série, que as têm como línguas maternas e
Número 50, de 23 de Julho de 2014]. delas se servem na sua comunicação
Avenida – “via pública, urbana, de diária. Por isso é que, nestas línguas,
dimensões maiores às de uma rua, em “o prefixo que indica nome de língua
geral, composta de várias faixas de ro- é o mesmo que indica maneira de ser
dagem.” [Boletim da república, I Série, do povo que a fala, o comportamento,
171
Armindo Ngunga

os hábitos, a cultura” [Ngunga 2009:3]. ro 6 da tabela e o número 13, e a quase


O mais difícil entre os moçambicanos, coincidência entre estes números e os
independentemente do tipo e nível números 8 e 14. Isto sugere que apesar
de formação, tem sido, ao longo dos de haver casos de 8 (número 9 na tabela),
tempos, responder a uma pergunta tão 13 (números 5 e 13 na tabela), 15 (número
1 na tabela), 16 (número 3 na tabela) e 19
simples como “quantas línguas são fa-
(número 10 na tabela), parece ser razoá-
ladas no país? A tabela 1 ilustra a falta
vel considerar-se que em Moçambique
de consenso na resposta esta questão: existam pelo menos 20 línguas. Aliás,

Tabela 1: Línguas moçambicanas: Várias fontes, vários números.


No Fonte Ano No de línguas
1 Cabral 1975 15
2 Cardoso 2005 25
3 Conselho Coordenador do Recenseamento 1983 16
4 Firmino 2000 24
5 Katupha 1988 13
6 INE 2010 21
7 Liphola 2009 41
8 Lopes 1999 20
9 Marinis 1981 8
10 Matsinhe 2005 19
11 NELIMO 1989 20
12 Ngunga 1987 33
13 Ngunga 1992 21
14 Yai 1983 13
Fonte: Ngunga [2011], in Journal of Multilingual Discourse.

A tabela 1 mostra a diversidade de coincidência ou não, um cálculo da mé-


respostas que a pergunta feita acima foi dia do número de línguas com base nos
tendo ao longo dos tempos. Observe- números da Tabela 1 resulta em 20,64.
-se que em alguns casos até os mesmos Isto é, o número vinte seria provavel-
autores respondem à mesma questão mente a referência mais próxima desta
de formas diferentes em ocasiões dife- realidade linguística ainda desconhecida.
rentes. Tais são os casos dos dados dos Portanto, não é nada demais. Os linguis-
recenseamentos de 1980 [Comissão Na- tas chamam a isto riqueza, uma vez que,
cional do Plano, 3 na tabela] e de 2007 havendo vontade de fazer acontecer as
[INE 2010, 6 na tabela] e Ngunga [1987, coisas, esta complexidade não propicia
12 na tabela, e 1992, 13 na tabela] o que nenhum tipo de desordem social. Pelo
se pode justificar com a eventualidade de contrário, esta diversidade ensina a viver
recurso a diferentes metodologias. Facto e crescer num convívio harmonioso, res-
curioso é a coincidência entre o núme- peitando as diferenças.
172
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Em Moçambique, há mais de trinta sabendo ler uma língua, uma pessoa


anos que os linguistas fazem esforço, possa ler as outras, permitem concluir
visando a padronização da ortografia que uma ortografia padronizada das
de línguas moçambicanas, o seu de- línguas moçambicanas também pode
senvolvimento e a promoção do seu contribuir para a unidade nacional.
uso. Os resultados desses esforços são A Tabela 1 foi peneirada no censo
sobejamente conhecidos. Os esforços de 2007, cujos dados foram publica-
realizados no sentido de padronização dos pelo INE [2010] e com base nos
da ortografia das várias línguas, que quais Ngunga e Bavo [2011] produzi-
conduziram à proposta de um conjunto ram a tabela que se segue:
de regras e símbolos que permitem que
Tabela 2: Línguas faladas pela população de 5 ou mais anos de idade
No Línguas Falantes % Províncias onde são faladas
C. Delgado, Nampula, Niassa, So-
1 Makhuwa 4,097,788 26.1
fala, Zambézia
2 Portuguese 1,693,024 10.8 All provinces
Gaza, Maputo, Maputo Cidade,
3 Changana 1,660,319 10.5
Inhambane, Niassa
4 Sena 1,218,337 7.8 Manica, Sofala, Tete, Zambézia
5 Lomwe 1,136,073 7.2 Nampula, Niassa, Zambézia
6 Nyanja 903,857 5.8 Niassa, Tete, Zambézia
7 Chuwabu 716,169 4.8 Nampula, Sofala, Zambézia
8 Ndau 702,464 4.5 Manica, Sofala
9 Tshwa 693,386 4.4 Gaza, Inhambane, Maputo, Sofala
10 Nyungwe 457,292 2.9 Manica, Tete
11 Yaawo 341,796 2.2 Cabo Delgado, Niassa
Gaza, Inhambane, Maputo, Maputo
12 Copi 303,740 1.9
City
13 Makonde 268,910 1.7 Cabo Delgado
14 Tewe 259,790 1.7 Manica
Gaza, Maputo, Maputo City, In-
15 Rhonga 235,829 1.5
hambane
Gaza, Inhambane, Maputo, Maputo
16 Tonga 227,256 1.5
Cidade
17 Manyika 133,961 0.9 Manica
18 Cibalke 112,852 0.7 Manica
19 Mwani 77,915 0.5 Cabo Delgado
20 Koti 60,771 0.4 Nampula
21 Shona 35,878 0.2 Tete
22 Swahili 15,255 0.1 Cabo Delgado
Other MTs 310,259 2.0 Todas as províncias
Sign Languages1 7,503 0.05 Todas as províncias
Total 15,670,4242 100.0 Todas as províncias
Fonte: Ngunga e Bavo [2011].
173
Armindo Ngunga

Como se viu acima, esta lista só cipal substrato linguístico de Moçambi-


vale por ter sido obtida de um docu- que, que o “Estado valoriza (…) como
mento oficial de línguas tidas como património cultural e educacional e
maternas de um número significa- promove o seu desenvolvimento e uti-
tivo de moçambicanos. Ela deve ser lização crescente como línguas veicula-
aceite e tida como meio de trabalho a res da nossa identidade” (Artigo 9). Ao
quem este assunto interesse, sem en- abrigo do artigo 9, foram introduzidas
trar na polémica que a Tabela 1 suge- 19 línguas moçambicanas no Sistema
re devido a divergências de pontos de Nacional da Educação, um processo
vista sobre aspectos teórico-metodo- que tem conhecido hesitações e cep-
lógicos que se resumem nos concei- ticismo da parte dos profissionais e
tos de língua vs. dialecto. gestores do sistema da educação no
país. Em parte, esta hesitação e este
3.1. Situação da língua portuguesa cepticismo parece dever-se ao facto
em Moçambique de a língua portuguesa ser a única lín-
De acordo com a Constituição da gua da administração, de prestígio, da
República “Na República de Moçam- justiça e, durante muito tempo, única
bique, a língua portuguesa é a língua língua da educação formal em todo o
oficial” (Artigo 10). Todavia, reconhece sistema de Educação sendo, por isso,
Moçambique como um país multilin- a língua de acesso ao emprego, a me-
gue e, por conseguinte, multicultural lhores condições de vida, portanto,
porque, apesar de Português ser a úni- à promoção social. Ou seja, a língua
ca língua oficial, a comunicação entre portuguesa é língua de exclusão social
mais de 80% dos cidadãos deste país é
em Moçambique sem o conhecimento
feita em línguas do grupo bantu, atra-
da qual não se consegue emprego de-
vés das quais expressam a sua relação
cente e condigno.
com a sua terra e com os seus antepas-
sados, expressam a sua cultura, a sua Veja-se na Tabela 3, a seguir, o ver-
moçambicanidade. São estas várias dadeiro lugar da língua portuguesa
línguas que, juntas, constituem o prin- como língua materna em Moçambique.

Tabela 3: Falantes da língua portuguesa como língua materna por província.


Província População total No de Falantes %
1 Maputo Cidade 959,474 412,162 43.0
2 Maputo Província 1,025,871 283,665 27.7
3 Sofala 1,338,709 177,655 13.3
4 Zambézia 3,021,246 277,906 9.2
5 Nampula 3,183,399 277,223 8.7
6 Niassa 904,784 61,223 6.8
7 Manica 1,131,269 64,057 5.7
8 Inhambane 1,058,135 57,782 5.4
9 Gaza 1,024,911 49,231 4.8
10 Cabo Delgado 1,306,724 44,914 3.4
11 Tete 1,415,977 44,988 3.3
Fonte: INE [2010]. www.ine.gov.mz

174
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

A tabela acima mostra a distribui- mente os nomes, ela precisa desses


ção, no país, de número de falantes de nomes que designam o seu objecto
português como língua materna entre de estudo, o lugar onde os eventos
os cidadãos de cinco anos ou mais de históricos têm lugar. É claro que os
idade à data do censo de 2007, numa nomes não fazem os lugares, mas
população de pouco mais de 15 mi- dão uma referência indispensável a
lhões de pessoas. Vale acrescentar quem se interesse por estas ciências,
que a maioria destes falantes de Por- e outras como a astronomia, a an-
tuguês como língua materna fala al- tropologia, a arqueologia, a política,
guma língua moçambicana por ser etc., nenhuma das quais tem de es-
língua de seus pais ou seus avós. tudar a toponímia, domínio de uma
área especializada de linguística.
4. Breve historial da toponímia em Como se pode notar, é incomensu-
Moçambique rável a importância do estudo da ori-
A toponímia serve para marcar, gem e evolução dessas palavras que
definir e identificar o lugar, não só se usam para designar lugares.
como território, mas sobretudo como Em Moçambique, a história da to-
espaço onde nos podemos localizar ponímia é igual à história do que antes
em caso de necessidade, incluindo eram regiões habitadas por comunida-
o endereçamento, pois “Quer para des e nações sem as fronteiras actuais
a entrega de correspondências quer do país que conhecemos. Nuns casos
para a localização de moradas para sabemos o que efectivamente acon-
quaisquer outros fins (p. ex. bom- teceu. Noutros casos, aproximamos
beiros e ambulâncias), é condição factos para adivinharmos o que acon-
indispensável ter designações topo- teceu e, noutros ainda, especulamos
nímicas de referência estruturada, ou inventamos. Os casos mais recen-
de acordo com uma lógica simples tes, porque a atribuição de topónimos
de entender, tanto quanto possível é um processo dinâmico e constante,
uniforme e estável no tempo” [s/a, são bem conhecidos por nós porque,
s/d:1]. Se a História é a ciência que es- como mortais, alguns queremos ver o
tuda os acontecimentos do passado, nosso antropónimo transformado em
incluindo as razões por que eles tive- topónimo como forma de nos vermos
ram lugar, e a Geografia a ciência que imortalizados mesmo que não tenha-
estuda a terra ou o espaço terrestre mos feito bastante para isso. Às ve-
onde os acontecimentos históricos (e zes até podemos fazer alguma coisa,
outros) têm lugar, pode-se imaginar como todos fazemos, e termos o azar
o que seriam estas ciências e outras de o que fizemos não entrar nos parâ-
sem a toponímia! Talvez pudessem metros reconhecidos pela sociedade
existir, mas não se pode imaginar como os aceitáveis para se imortalizar
sem palavras para designar os nomes o seu autor.
dos lugares onde os eventos aconte- Como se sabe, quando chegaram a
cem. Portanto, embora a Geografia esta parte da África, os portugueses en-
não precise de estudar especifica- contraram uma realidade; encontraram
175
Armindo Ngunga

céu, mar, pessoas e terra com todos 2. Makoloje -> Miranda (Vila Miranda)
os acidentes geográficos hoje por to- Nsimbwa -> Mocimboa da Praia
dos conhecidos. A terra, os territórios (Vila de Mocímboa da Praia)
e seus conteúdos tinham seus nomes
Angoci -> António Enes (Cidade
de acordo com as línguas das pessoas
de António Enes)
que ali se encontravam (e ainda se en-
contram, mesmo que mortas!), como Ulongwe -> Gago Coutinho (Vila
testemunham hoje alguns exemplos Coutinho)
que se seguem: Guruwe -> Junqueiro (Vila Jun-
queiro)
1. Mukwampa (Cuamba) Katandika -> Gouveia (Vila Gouveia)
Makoloje (Macaloge) Gorongosa -> Paiva de Andrada
Nsimbwa (Mocimboa) (Vila Paiva de Andrada)
Angoci (Angoche) Matsitsi -> Maxixe (hoje Cidade
Ulongwe (Ulongue) de Matshitshi)
Guruwe (Guruè) Cokwe -> Trigo de Morais (Vila
Katandika (Catandica) Trigo de Morais, hoje cidade de
Chokwe)
Gorongozi (Gorongosa)
Matshitshi (Maxixe) Muzrakweni -> Luísa (Vila Luísa,
hoje vila de Marracuene)
Cokwe (Chókwè)
Kampfumu -> Lourenço Marques
Muzrakweni (Marracuene)
(Cidade de Lourenço Marques)
Mpfumu (Fumo )
Compulsando a literatura sobre
Em (1) apresentamos endóni- a matéria, conclui-se que depois das
mos2 de alguns distritos (um de cada guerras, os estrangeiros tomaram
província) de Moçambique achados para si as terras e, consequentemen-
aleatoriamente, usando a ortografia te, alteraram os nomes destas recor-
padronizada das línguas moçambica- rendo a várias estratégias com desta-
nas, cujos exónimos3 estão apresen- que para as seguintes:
tados entre parêntesis para facilitar
a leitura a quem esteja familiarizado i) Atribuição de topónimos trans-
com exclusivamente com a ortografia plantados - “designativo geográ-
oficial que é da língua portuguesa. En- fico que existe como tal em um
contrando estas terras designadas da determinado espaço e que passa
forma como aqui estão representadas a integrar a nomenclatura de ou-
por escrito, os portugueses fizeram tra região qualquer, trazido pelo
guerra aos donos e tomaram-nas para povo que emigrou ou influencia-
si e, depois, para dar a conquista como do pelo mero mimetismo” [Dick,
facto consumado, alteraram os to- s/d: 83] dá-se o nome de topóni-
pónimos, o que resultou no seguinte: mo transplantado. Nesta noção

2
Endónimos = topónimos escritos na grafia da língua fonte [Rafael 2015];
3
Exónimos = topónimos escritos na grafia da língua estrangeira [Rafael 2015].
176
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

está implícito o sentido de ‘des- 4. New Hampshire (‘Nova


locamento’ ou ‘mudança’, o sen- Hampshire’) > Hampshire
tido de colonização “apagando” (Reino Unido)
ou atirando para o esquecimento New York (‘Nova Iorque’) >
o nome original. Levy Cardoso York (Reino Unido)
[1961] considera esses nomes New England (‘Nova Inglater-
transplantados como legítimas ra’) > England (Reino Unido)
segundas vias dos topónimos”
New Orleans (‘Nova Orleães’)
originais (das terras de onde são
> Orleans (França)
oriundos!).
New Mexico (‘Novo Méxi-
É assim que vemos na história da co’) > Mexico (México)
toponímia de Moçambique topóni-
mos tais como: Nos exemplos acima, a palavra
“New” significa “nova” ou “novo”.
3. Nova Viseu (Ntelela) Portanto, segunda via do topónimo
Nova Olivença (Lupilichi) original algures fora dos Estados Uni-
Nova Santarém (Mikava) dos. Este fenómeno dá corpo à afir-
mação de Backheuser [1952:187] de
Nova Freixo (Cuamba)
acordo com a qual “Em qualquer país
Nova Coimbra (Namatumba) de emigração, os topónimos deslo-
Nova Madeira (Matama) cam-se, portanto, acompanham as le-
vas dos povoadores, o que caracteriza
De uma observação atenta dos da- a tão comentada “saudade” da terra
dos acima, saltam à vista dois elemen- natal, ou simplesmente, do elemento
tos comuns. Por um lado, todos os no- humano que emigrou, configurando,
mes da lista existem em Portugal. Por neste caso, um típico exemplo de “mi-
outro lado, cada um deles é precedido metismo toponímico”.
do adjectivo “nova”, fenómeno bem
descrito por Dick [s/d], que afirma ii) A superposição toponímica
que “Como técnica de denominação [Dick, s/d] ou superposição lin-
note-se que o nome estrangeiro, fora guística [Levy Cardoso, 1961]
do seu território, geralmente recebe o – hoje um pouco difícil de se
acréscimo dos adjectivos novo/nova, encontrar como exemplo em
para com isso caracterizar a sua im- Moçambique, mas da nossa pes-
plantação em outro local”. Aliás, este quisa encontrámos um nome
não é caso exclusivo de Moçambique, em que era clara a superposição
aconteceu em muitas partes do mun- toponímica. Uma fase inicial de
do onde ocorreu algum processo de eliminação do topónimo original,
colonização, sendo o mais famoso o porque com o tempo a tendência
de Estados Unidos onde encontramos é de ignorar a última parte do to-
muitos nomes transplantados do Rei- pónimo, a original, a local.
no Unido e de outras partes do mun-
do, ostentando os adjectivos novo/ 5. Vila Nova de Montalegre, Vala-
nova, tais como: dim, Chiconono
177
Armindo Ngunga

Na verdade, no dia-a-dia, ninguém Os exemplos em (6) mostram que


tem tempo para dizer que vai para um nem sempre os topónimos coloniais
local tão distante quanto o seu nome é resultam de transplantação de topóni-
longo! Por isso, nos bilhetes de identi- mos existentes na terra de origem
dade dos últimos colonizados de Chi- nem de superposição toponímica no
conono, só vinha Vila Nova de Mon- sentido como em (5). Há muitos casos
talegre, Valadim. Sendo Montalegre, em que a superposição toponímica
nome de uma pacata Vila no norte se manifesta sob a forma de comple-
de Portugal, e Valadim, nome de um mentaridade linguística. Os colonia-
sargento (Sargento Flores) português listas podiam atribuir um nome a uma
(postumamente promovido a tenente) terra. Enquanto estes usavam o novo
morto em combate quando, chefiando nome, os locais continuavam a usar o
uma secção de soldados portugueses, nome local. Isto, como afirma Ngun-
tentava assaltar e ocupar as terras de ga [2010], demonstra que os locais
Mataka, no longínquo ano de 1912.
não assumiam os nomes estrangeiros
Mas também há muitos casos em como seus, sobretudo quando falas-
que não se trata de transplantação ou sem as suas línguas, portanto, não se
de superposição toponímica, mas de identificando com eles, como ilustra a
atribuição de um novo topónimo a um tabela que se segue:
lugar, sobretudo quando se trata de
homenagear heróis do povo imigran-
te, como se pode ilustrar a seguir:

6. Augusto Cardoso (Metangula)


(José Augusto) Cabral (Lichinga)
Lourenço Marques (Maputo)
João Belo (Xai-Xai)
Moçambique (Ilha de Moçambique)
(Rainha) Amélia (Pemba)
(Príncipe da) Beira (Beira)
Trigo de Morais (Chókwè)

Tabela 4: Exemplos de superposição toponímica em Moçambique colonial.


Língua A B Significado
Makhuwa koorowa o-Ilya te Mu- koorowa o-Nihi- ‘vou à Ilha de Mo-
sampiki pi çambique’
Nyanja Ndinkupita kuAugusto Ndinkupita kuN- ‘vou a Augusto
Cardoso tengula Cardoso’
Zronga niya ka Lourenço Mar- niya kaMpfumu ‘vou a Lourenço
ques Marques’
Yaawo nguja ku-Vila Cabral nguja Kwiiciinga ‘vou a Vila Cabral’

178
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

A Tabela 4 sugere que, tal como produziriam, sim, a primeira frase da


se afirma em Ngunga [2012], falan- coluna B, porque os nomes geográfi-
do nas suas línguas em Moçambique, cos são parte da identidade colecti-
os nyanjas de Metangula, zrongas de va de um povo, uma identidade que
Marracuene e yaawos de Chiconono tem de ser preservada até às últimas
nunca diriam o que vem na coluna A. consequências. Nos casos acima e em
Mesmo quando o lugar de destino de outros idênticos, os portugueses nun-
quem se desloca a partir de um de- ca usaram os nomes locais e os locais
terminado ponto tivesse um nome nunca usaram os nomes portugueses
aparentemente inofensivo como o de quando falassem as línguas locais. Isto
Ilha de Moçambique, os makhuwas era verdade também quando os locais
de Memba dificilmente produziriam falassem a língua portuguesa como se
a primeira frase da coluna A. Todos pode ver a seguir:

Tabela 5: Exemplos de superposição toponímica em Moçambique colonial.


Língua A B
?vou a Nihipi vou à Ilha de Moçambique
?vou a Ntengula vou a Augusto Cardoso
Português
?vou a Mpfumu vou a Lourenço Marques
?vou a Kwiiciinga vou a Vila Cabral

Conquistada a Independência a 25 vocabulário toponímico de muitos


de Junho de 1975, tendo-se imposto daqueles topónimos que antes rejei-
a reposição dos topónimos originais, tava, aqueles que só podiam funcio-
libertou-se também a língua portu- nar nas línguas locais, como se pode
guesa que já aceita a presença no seu ver a seguir:

Tabela 6: Exemplos de superposição toponímica.


Língua A B
?vou a Nihipi vou à Ilha de Moçambique
vou a Metangula vou a Augusto Cardoso
Português
vou a kaMpfumu vou a Lourenço Marques
vou a Lichinga vou a Vila Cabral

Na coluna A da Tabela 6, temos Por isso, neste caso, a superposição


um caso particular de Nihipiti, nome continua, o que sugere que os mo-
da Ilha de Moçambique, que não foi çambicanos continuam a reconhecer
reposto com a independência, em- a origem externa deste topónimo e
bora tenha origem não endógena. reivindicam o topónimo original para
179
Armindo Ngunga

designar este local. Por isso é que sabem que foi este nome de que
quando falam a língua portuguesa o colonialismo se apropriou como
usam um topónimo e quando falam a se tivesse sido trazido de Portugal,
língua makhuwa usam outro topóni- com ele aportuguesou aquelas ter-
mo, embora se refiram ao mesmo ras de caniço e seus habitantes nas
elemento extralinguístico. margens do Zambeze. Algo idêntico
Isto é normal mesmo que os dois no- acontece com Quelimane. Falando
mes não fossem necessariamente co- em Chuwabu, sua língua materna,
loniais, desde que um deles fosse usado os nativos da região onde se situa a
na língua dos colonos, como aconteceu capital da província da Zambézia ja-
e acontece com a cidade de Tete que, mais usariam a palavra “Quelimane”
sentada sobre o jazigo de carvão, con- para se referir à sua cidade capital.
templa o Zambeze, e também com a A produção de uma frase como a
cidade de Quelimane que se debruça interrogada em (7.b) seria uma au-
nas margens do rio dos Bons Sinais todenúncia de que o locutor é um
contemplando a Ilha de Inyasunje. Ve- estrangeiro que apenas aprendeu a
jam-se os seguintes exemplos: língua dos chuwabus para quem a
sua cidade é tão chuwabu como é
7. a) Ine ndidamuwona uyu chuwabu o seu povo e a sua língua.
kuNyungwe ‘eu viu-o em Tete’ Por isso dizem, a partir de qual-
?Ine ndidamuwona uyu kuTete quer que seja o ponto de partida,
‘eu viu-o em Tete’ Miyo dhinzowa oChuwabu ‘eu vou a
b) Miyo dhinzowa oChuwabu ‘eu Chuabo (Quelimane)’. Refira-se que,
vou a Quelimane’ segundo fontes orais diversas (por
exemplo, Paula Viagem, Maria Cila,
?Miyo dhinzowa oKalimani ‘eu
vou a Quelimane’ em comunicação pessoal), a pala-
vra ‘Quelimane’ é uma corruptela da
Os exemplos em (7a) sugerem palavra kalimani ‘cultivem’, resumo
que, quando usa a sua língua, o fa- de uma história longa do encontro
lante de Nyungwe recorre ao nome dos portugueses com as populações
da pequena ilha (Kanyungwe), que locais habitantes de Chuwabu. Tal
já pode não fazer parte da geogra- como acontece com a palavra tete
fia local, situada no rio Zambeze (de nyungwe) ‘caniço’, a palavra
defronte da cidade, para se referir kalimani (de Chuwabu e aportugue-
ao nome da cidade que oficialmen- sada para “quelimane”) ‘cultivem’
te (em Português) se chama Tete. não é portuguesa. Mas o seu uso
Como se sabe, o topónimo Tete já foi como topónimo encerra algum sig-
escrito milhares de vezes em docu- nificado colonial que os chuwabus
mentos coloniais e foi pronunciado nunca aceitaram como nome da sua
por muitos colonos. Portanto, nes- terra. Por isso, porque a forma mais
te caso, não obstante o facto de o profunda e íntima de expressar a sua
nome Tete (‘caniço’ na língua nyun- identidade, o seu “Ubuntu” (carácter
gwe) não ser colonial, os nyungwes humano) é a sua língua (Chuwabu), a
180
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

rejeição de uso da palavra Quelima- que resultou no sacrifício (através da


ne como topónimo da sua terra foi a elisão ou alteração do ponto e ou do
forma constante da sua resistência à modo de articulação) de alguns sons
colonização. para se poderem acomodar no siste-
ma de sons da língua portuguesa.
iii) Alteração da estrutura dos no-
mes locais - Segundo Nascen- 9. /mbowa+(i)ni/ -> mbowani ->
tes [1960:104], “nomes locais Boane
alterados na sua estrutura para /Ncayincayi/ -> Ncayincayi ->
uma ‘denominação composta’ Xai-Xai
em que o topónimo local era
anteposto por um nome portu- Os exemplos acima mostram que
guês”. Vimos exemplos destes alguns sons destes topónimos fo-
casos em nomes tais como: ram alterados e, em alguns casos,
essa alteração foi tão profunda que
8. Santo António de Unango o falante nativo da língua de que o
Santa Teresinha de Menino topónimo é originário até pode ter
Jesus de Mepanhira dificuldades de descobrir o seu real
São José de Lhanguene significado ou a forma original da
São Martinho de Bilene palavra de que provém. Para ser
mais concreto, o exemplo em (9) é
Nos exemplos em (8), mostra-se uma corruptela da palavra deriva-
como os santos europeus foram aqui da de mbowa ‘folhas de abóbora’
trazidos e antepostos aos topónimos mais -(i)ni, sufixo locativo ‘onde’ ou
originais. Nestes casos, o processo de ‘aonde’, que significa ‘local de (ou
descolonização foi simples. Nos ca- onde abundam) folhas de abóbo-
sos em que tal aconteceu, só foi uma ra’. É provável que mbowani fosse
questão de eliminar o referido mate- uma região de terras aráveis dadas
rial para se ficar com o nome originá- a uma farta produção agrícola de
rio. Uma leitura atenta da toponímia que resultava grandes quantidades
moçambicana ainda pode revelar a de plantas de abóboras. O /i/ final
existência de alguns destes nomes. da língua local é substituído por /e/
na fonologia portuguesa que tolera
iv) Adaptação fonológica dos no- pouco a presença de /i/ em posição
mes locais à fonética da língua final de palavra. A seguir nota-se a
portuguesa. elisão de /w/ que constitui o ataque
Muitos topónimos moçambi- da segunda sílaba para favorecer o
canos não foram vítimas nem da surgimento de um ditongo como é,
transplantação, nem da superposi- também é preferência da fonologia
ção toponímica e nem sofreram a da língua portuguesa quando há se-
alteração na sua estrutura, tal como quência de vogais. Finalmente, tam-
referido acima. Mas foram vítimas bém se verifica, a elisão da nasal /m/
da fonologia da língua portuguesa, o que precede o /b/ na língua local, o
181
Armindo Ngunga

que é normal, pois na fonologia da Vila Paiva de Andrada (Gorongosa)


língua portuguesa não existe pré- Vila Vidigueira (algures em
-nasalização de consoantes em po- Massinga)
sição inicial de sílaba, mas vogais Vila João Belo (Xai-Xai)
nasais, o que faz com que sempre Vila Luisa (Marracuene)
que uma palavra de uma língua com
Salazar (Matola)
uma pré-nasalização se enquadre

na língua portuguesa, esta trata de
simplificar, desfazendo a pré-nasa-
Esta mudança toponímica massiva
lização recorrendo a várias estraté-
tinha como mote o “desaportugue-
gias, incluindo a inserção de vogais
samento” do território que, uma vez
ou mesmo sílabas para evitar que a
liberto, se impunha também homena-
nasal que precede uma consoante
gear as figuras marcantes da epopeia
ocorra em posição inicial de sílaba,
libertadora através de seus líderes, e
o que também é testemunhado pelo
também alguns eventos e datas mar-
exemplo em (9) que originalmente é
cantes que deram corpo ao processo
Ncayincayi.
de libertação. Foi assim que, para dar
Importa reiterar aqui a importân- forma ao processo iniciado em 1975
cia do estudo de nomes geográficos durante a viagem triunfal do Rovuma
não só para compreendermos a histó- ao Maputo de Samora Machel, Pre-
ria em termos de estudo do passado, sidente da Frente de Libertação de
mas também como fonte para a com- Moçambique (FRELIMO), então futu-
preensão de fenómenos contemporâ- ro Presidente da República (que seria
neos sobre o patriotismo, a cidadania, Popular) de Moçambique, se aprovou
a auto-estima, a unidade nacional, a o Decreto-Lei no 14/76 de 15 de Abril,
auto-superação, o espírito de luta por “o quadro legal para a alteração da
uma causa. Por causa disso, vamos Toponímia”. Portanto, os topónimos
trazer aqui alguns momentos de eufo- cuja alteração tinha sido declarada em
ria com o advento da independência, comícios populares pelo Presidente
um fenómeno que consistiu na repo- da Frelimo ganharam a sua existência
sição da justiça histórica, através da legal e outros começaram a ser alte-
recuperação de topónimos locais que rados. É assim que surgem as aldeias,
durante décadas não eram usados em ruas, escolas, pontes, etc., com nomes
situações ou documentos oficiais. Tais desses heróis, desses eventos, dessas
são os casos como os seguintes: datas, como se ilustra a seguir:

10.Porto Amélia (Pemba) 11.Aldeia Acordos de Lusaka


Vila Cabral (Lichinga) Aldeia II Congresso
Vila Junqueiro (Gurué) Vila Eduardo Mondlane
Vila Coutinho (Ulongwe) Ilha Josina Machel
Vila Gouveia (Catandica) Avenida Samora Machel
Vila Pery (Chimoio) Aldeia 3 de Fevereiro
182
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Avenida 25 de Setembro solidariedade internacionais que os


Bairro 25 de Junho moçambicanos receberam de todos
Aldeia 7 de Abril os quadrantes do mundo progres-
Rua Marcelino dos Santos sista na sua luta pela conquista da
liberdade e independência nacional.
Mas a homenagem não se circuns- Mas isso foi durante a luta armada de
creveu apenas aos heróis nacionais libertação nacional, o que foi muito
(directos), ela foi estendida também importante. Conquistada a indepen-
às personalidades de vários quadran- dência, impõe-se desencadear outro
tes do mundo que, de formas diferen- movimento, o de reconhecimento
tes, iluminaram os heróis nacionais, da história nacional que não se cir-
encorajaram-nos moral e material- cunscreve apenas à luta de libertação
mente a lutar, apoiaram a luta do nacional. Agora, a par do importante
povo moçambicano, porque se iden- movimento de resgate da história re-
tificaram com a justeza da luta dos cente através de “desaportuguesa-
moçambicanos ou, tal como estes, mento” da toponímia, importa agre-
lutaram pela mesma causa contra o gar os condimentos importantes da
mesmo inimigo que os moçambica- moçambicanidade, o reconhecimen-
nos: a opressão colonial e o imperia- to da cultura moçambicana para co-
lismo. Deste grupo, são testemunhos ser o tecido social nacional.
os topónimos tais como: Aqui, é de referir com tristeza e
preocupação que, infelizmente, há
12.Avenida Julius Nyerere muita indecisão que caracteriza o
Avenida Kenneth Kaunda processo de fixação gráfica dos to-
Bairro Luís Cabral pónimos das línguas moçambicanas,
Aldeia Agostinho Neto a base incontornável da nossa mo-
Bairro George Dimitrov çambicanidade. Vezes sem conta,
Avenida Vladmir Lenine sacrificam-se os topónimos origi-
nariamente moçambicanos para os
Avenida Ho Chi Minh
acomodar à fonética e fonologia da
Avenida Olof Palme
língua portuguesa como se eles não
Avenida Karl Marx tivessem identidade própria, a iden-
Avenida Kwame Nkrumah tidade dos moçambicanos que falam
Avenida Kim Il Sung as línguas na qual eles foram inventa-
Rua de Nachingwea dos. Se os topónimos são “elementos
Rua de Kongwa de identificação, orientação, comuni-
cação e localização de objectos geo-
Como se vê, a toponímia é uma gráficos” [Decreto-Lei 1/2014, de 22
importante fonte histórica através de Maio] que revoga o Decreto-Lei
da qual é possível encontrar respos- 14/76, de 15 de Abril, é importante
tas a questões que podem requerer que se cuide de os representar grafi-
explicação informada. Os exemplos camente de forma correcta para que
em (11) testemunham o apoio e a eles cumpram esses múltiplos papéis,
183
Armindo Ngunga

tal como prescreve o número 1 do ar- bertar e precisa desesperadamente


tigo 7 da Lei 1/14, de 22 de Maio. Por- de completar o processo que levou
tanto, seria legítimo que os topóni- muitos dos seus filhos a optar pela
mos moçambicanos fossem escritos luta armada. Precisa de desplantar al-
com recurso a ortografia padronizada guns nomes, desfazer a superposição
de línguas moçambicanas. toponímica eliminando o supérfluo
para deixar o nome original tal como
sempre existiu, repor a estrutura dos
5. Alguns desafios do INGEMO
nomes, desadaptar os nomes à fono-
no trabalho sobre a toponímia
logia da língua portuguesa, produzir
moçambicana
material de leitura sobre a toponímia
Chegados aqui, é mister lembrar dos vários lugares de Moçambique,
que em 2012 afirmámos que tinha sido preparar brochuras sobre os nomes
providencial a criação do do Instituto geográficos dos vários lugares para
de Nomes Geográficos de Moçambi- disponibilizar aos visitantes que se
que (IGEMO) pelo Governo através façam aos distritos, cidades, vilas e
do decreto 83/2009 de 29 de Dezem- localidades fazem parte, entre outros,
bro, uma instituição com a missão de dos desafios do INGEMO. O INGEMO
cuidar do assunto da toponímia no tem de buscar parcerias contactando
contexto da diversidade etnolinguís- instituições congéneres para troca de
tica moçambicana para se recolocar a experiências sobre a gestão de assun-
história de Moçambique em cada pal- tos que fazem parte do seu objecto de
mo do nosso território. Esta medida trabalho.
visou também responder à decisão da Um estudo sobre a escrita de to-
I Conferência Internacional do Grupo pónimos de Moçambique e proposta
de Peritos das Nações Unidas realiza- à luz da ortografia padronizada das
da em Genebra, em 1967, que reco- línguas moçambicanas seria um im-
mendou que os países deveriam criar portante presente para o povo mo-
instituições responsáveis pela padro- çambicano que há mais de quarenta
nização de nomes geográficos [Ngun- anos vê a sua história a ser escrita
ga 2012]. Todavia, apesar da sua reco- devagarinho mesmo nos casos em
nhecida importância, esta medida por que se impõe urgência sob o risco de
si só não responde aos desafios que a as gerações vindouras se perderem
questão da toponímia coloca aos mo- completamente no emaranhado do
çambicanos a avaliar pelas discussões tempo. Aliás, uma discussão sobre
apaixonadas que ela suscita quando topónimos num país antes coloniza-
se cria espaço para o efeito. É preciso do não fica completa se não se revi-
que em paralelo com a sua existência, sitar os antropónimos, uma vez que
esta instituição se beneficie de ape- muitos topónimos são oriundos de
trechamento em recursos humanos e antropónimos. E como foi dito, se o
materiais para ser capaz de fazer va- nome veio com a colonização como
ler a sua missão de regatar a história forma de demonstração de força,
de todo um país que lutou para se li- de conquista e de dominação, como
184
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

marco ou bandeira da presença co- moçambicanos para os seus feitos


lonial, ele se deveria apagar quando serem reconhecidos e seus antro-
se apagou a presença que o impôs. pónimos imortalizados através da
Se há vestígios do colonialismo que sua transformação em topónimos.
podem ser toleráveis, como a língua A história local também deverá ser
que é um objecto colectivo, o país reconhecida como algo importante
precisa de se desfazer dos topóni- na vida das comunidades que diaria-
mos que homenageiam os heróis mente produzem os seus heróis nas
da colonização. Passada a euforia suas várias dimensões. Vamos to-
da independência, está-se em mo- dos construir a nossa história! Como
mento de reconstrução da pátria, qualquer povo, os moçambicanos,
incluindo a (re)construção da histó- precisam de construir um Moçambi-
ria e da cultura, da identidade mo- que forte alicerçado no passado e de
çambicana. Seria aconselhável que olhos postos no futuro.
os topónimos das novas unidades Resumindo, a toponímia moçambi-
administrativas, das avenidas, do cana tem de ser lugar de paz e de esta-
novo património edificado, não mais bilidade, o que só será possível se tiver
transportassem a pesada carga polí- paralelismo com a diversidade linguís-
tico-partidária, mas fossem nomes tica que é inegável em Moçambique ci-
que exaltassem os valores de unida- mentada pela ortografia padronizada
de nacional, da paz, da reconciliação das línguas moçambicanas.
nacional e harmonia social, nomes
que reflectissem, enfim, a unidade 6. Conclusões
e a diversidade dos moçambicanos Aqui fica uma proposta de estudo
e, sobretudo, o compromisso colec- de um período de mais de cem anos
tivo de os moçambicanos viverem da história de Moçambique que co-
eternamente juntos como a histó- meça com a ocupação efectiva (1895),
ria os destinou. Portanto, a história passando pelas lutas de resistência
de Moçambique ganharia, tal como (antes de 1962), luta armada de li-
todo o povo moçambicano, se os bertação nacional (1964-1974), pas-
próximos topónimos não fossem sando pela independência nacional
conotados com visões sectárias di- (1975) até aos dias de hoje. Fica aqui
visionistas susceptíveis de mudar demonstrado que os nomes em ge-
com alternância politica como tem ral, e os nomes geográficos, em par-
acontecido com alguns municípios ticular, podem ser fontes históricas. E
do país, mas que fossem topónimos uma vez que, no caso em apreço, ao
para durar a eternidade por reflec- longo deste período de pouco mais
tirem as aspirações de todo o povo de cem anos o povo moçambicano
moçambicano. É lógico que o país nunca desistiu de lutar pela sua digni-
continuará a produzir heróis nas vá- dade, pela sua história, pelo seu lugar
rias frentes de política, arte, acade- na história universal como povo, cujo
mia, defesa, produção. Esses heróis principal distintivo é a diversidade, a
deverão ser heróis colectivos dos multiculturalidade, o multilinguismo,
185
Armindo Ngunga

afigura-se mais do que importante Moçambique: Informações oficiais,


deixar aqui um apelo premente. A comerciais, geográficas e históricas.
geração de hoje não tem o direito de 51ª edição, Lourenço Marques (s/
ser egoísta, pensando que seja a últi- editora)
ma geração de moçambicanos. A ge-
CABRAL, António
ração de hoje tem a obrigação de ser
1975: Empréstimos Linguísticos nas
solidária com as gerações vindouras a
línguas Moçambicanas. Empresa
quem se deve deixar como legado um
Moderna. Lourenço Marques.
país com uma identidade, com um
nome escrito nas línguas que fazem o CARDOSO, Armando Levy
conjunto deste mosaico cultural. Há 1961: “Toponímia brasílica”, R. de
uma Lei (n.º 1/2014, de 22 de Maio) Janeiro: Biblioteca do Exército Edit.,
que orienta como os topónimos de- pp. 132-133.
vem ser atribuídos aos vários lugares,
há uma ortografia padronizada que CARDOSO, Pedro
orienta como as línguas moçambica- 2005: Atlas da Lusofonia –
nas devem ser escritas. É indispen- Moçambique. Lisboa: Instituto
sável que se estude a lei, que se siga Português da Conjuntura Estratégica
a lei na apresentação de qualquer e Editora Prefácio
proposta de topónimo, que se siga a
CASTELLS, Manuel
ortografia padronizada para se escre-
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a space for each language to express
no 1/2014, de 22 de Maio, que regula
itself and be reflected in the geog-
a plicação de princípios, critérios,
raphy and history of the country in
competências e procedimentos
order to contribute to the consolida-
para a atribuição e alteração de
tion of the common collective histo-
topónimos”, Boletim da República, I
ry that justifies the sharing of space
Série, Número 50, de 23 de Julho de
within borders.
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In terms of organization, after the
YAI, Olabiyi Babalola
introduction, the study presents the
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Promotion of National Languages. linguistic situation of Mozambique,
UNESCO. presenting a description of its com-
189
Armindo Ngunga

plexity and focusing on the political Linguística Teórica e de Linguística


and social space of the Portuguese Descritiva das Línguas Bantu nos ní-
language in the country. In six sec- veis de graduação e pós-graduação,
tions, the text discusses the contem- tendo particular interesse em Gramá-
porary linguistic diversity of Mozam- tica (Fonologia, Morfologia e Sinta-
bique and a diachronic study of the xe) e Lexicografia das Línguas Bantu,
toponymy from the period before bem como em planificação linguística
the arrival of the foreigners to the e política linguística, principalmente
present. The text also presents some no que tange à padronização da or-
basic concepts in the form of brief tografia das línguas moçambicanas e
definitions. It presents the linguistic uso destas na educação.
diversity of Mozambique with a focus
Publicou e editou vários trabalhos
on the situation of the Portuguese
de investigação entre livros e artigos
language, followed by a brief histo-
quer de Linguística Teórica, quer de
ry of the toponymy in Mozambique.
Linguística Descritiva. Publicou tam-
Then, it points out some challeng-
bém livros de leitura de ensino pri-
es for the National Institute of Geo-
mário em línguas moçambicanas, na
graphical Names of Mozambique (IN-
sua qualidade de activista e defensor
GEMO) and, finally, presents some
do ensino nas línguas que as crianças
conclusions of the discussions devel-
falam no meio familiar.
oped throughout the text.
É membro da Academia Africana
Keywords: Mozambique;
de Línguas e da Academia de Ciências
toponymy; Place name; linguistics.
de Moçambique, da Associação Lin-
guística das Universidades da SADC
de que foi Secretário-Geral (1998-
Armindo Ngunga
2001) e Presidente (2007-2019). Na
Linguista, Doutorado em Lin- sua passagem pela política, foi Vice-
guística em 1997 pela Universidade -Ministro da Educação e Desenvolvi-
de Califórnia em Berkeley, Estados mento Humano (2015-2020) e Secre-
Unidos da América. É Professor Ca- tário de Estado na Província de Cabo
tedrático em Linguística Africana
Delgado (2020-2021). Actualmente,
no Departamento de Linguística e
é Presidente da Comissão Executiva
Literatura da Faculdade de Letras
da Agência do Desenvolvimento in-
e Ciências Sociais da Universidade
tegrado do Norte (ADIN).
Eduardo Mondlane. Nesta Universi-
dade, foi Director da Faculdade de Em reconhecimento da sua vasta
Letras (1999-2003), da Faculdade produção científica, a Universidade
de Letras e Ciências Sociais (2003- Eduardo Mondlane distinguiu-o com
2007) e do Centro de Estudos Afri- o Prémio de Excelência em Investiga-
canos (2007-2015). Como académi- ção do 1º Grau, em 2014.
co, trabalha em várias disciplinas de E-mail: armindo.ngunga@gmail.com
190
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

António Fonseca

Toponimia à Luz
da História Recente
de Angola

Resumo
O presente trabalho pretende trazer à discussão as contradições que se verificam
na actual toponímia angolana e o papel que a mesma pode ter na consolidação
da paz e da harmonia social, bem como a forma como são grafados os topónimos
originários das línguas nacionais. Por outro lado, pretende continuar a discussão
sobre quais são efectivamente as línguas nacionais angolanas.
Palavras-chave: toponímia; indígenas; Moçamedes; línguas nacionais.

191
António Fonseca

Toponimia à luz da história ou por tradição, ou porque os nomes


recente de angola e que lhes foram dados pouco ou nada
consequentemente à luz da dizem aos munícipes, ou porque tais
reconciliação nacional... nomes não estão ou foram suficiente-
mente espelhados nas placas indica-
Trata-se, de um tema que pela sua tivas e não existe grande informação
natureza, não é de fácil consenso sobre os patronos de tais ruas.
quanto aos seus aspectos práticos, Quanto à questão da Toponímia
quer pela forma como cada um olha e Identidade Nacional, são dois as-
para os principais protagonistas e fac- pectos que andam muito ligados, ou
tos da história recente de Angola, quer seja, a toponímia influencia a própria
pelo facto de haver uma forte corrente identidade nacional, pois atribuir um
de apologistas quanto à manutenção nome a uma rua, a um estabelecimen-
das estátuas coloniais e, consequente- to público, a um lugar, a um municí-
mente a manutenção dos topónimos pio, grafá-lo de uma certa forma, ou
dos espaços em que tais estátuas es- erguer um monumento, mais do que
tiveram instaladas até à sua remoção, reconhecer ou exaltar um facto, cons-
quer ainda pelo facto de se constatar titui uma forma de “entrar” na mente
um desequilíbrio acentuado quando das pessoas e influenciar o imaginá-
se fala dos soberanos angolanos dos rio da sociedade. Talvez isto permita
distintos espaços socioculturais. Posto compreender que entre nós, tal como
isto, importa dizer que o pós-indepen- já referimos, as estátuas do período
dência, se por um lado trouxe a remo- colonial tenham sido retiradas e, de
ção das estátuas coloniais, por outro um modo geral, a toponímia substituí-
lado trouxe um acelerado rebaptizar da. Porém, nem sempre tal processo
de ruas, avenidas, praças e largos, que foi coroado de êxito, pelo que houve
entretanto não foi conclusivo, pois, avanços e recuos. Damos como exem-
alguns nomes antigos associados à plo o nome da cidade do Sumbe que
ocupação colonial permaneceram no pós-indepêndencia foi baptizada
tal como é o caso da rua Massano de com o nome de NgunzaKapolo e de-
Amorim, à Chicala, Massano de Amo- pois viu esse nome ser alterado por se
rim que afinal foi quem em agosto de ter revelado que Ngunza, afinal, fora
1902 foi enviado ao comando da colu- um traidor.
na militar, designada por Coluna Mi- Para a questão que aqui nos reú-
litar do Norte, que saiu de Benguela ne, importa lembrar que, no nosso
com o objectivo de reprimir a revolta caso, nos termos do Artigo 23º, da
dos ovimbundos, principalmente na fi- Lei nº14/17, de 7 de Agosto, os docu-
gura do Reino Bailundo, durante a Se- mentos em arquivos, referentes à vida
gunda Guerra Luso-Ovimbundo. Após pessoal, só se tornam disponíveis para
vários combates, conseguiu a vitória o público a partir de pelo menos 50
sobre as tropas ovimbundas de Mutu- anos após a morte daqueles a que di-
-ya-Kevela, sendo por isso condecora- zem respeito e, por tal, alguns nomes
do com o grau de oficial da Ordem da e factos hoje exaltados como heróis
Torre e Espada por proposta de Cabral e heróicos entre nós, poderiam vir a
Moncada, ao tempo governador-geral revelar-se indignos desse reconheci-
de Angola. mento. Cremos portanto que deve-
Entretanto, outros topónimos co- remos ser ponderados e prudentes
loniais, mesmo alterados, persistem, nesta matéria de revisão da toponí-
192
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

mia como contributo à reconciliação as acções se encaminhem nessa di-


nacional, consagrando unicamente recção, quer quanto à adopção dos
na toponímia aqueles nomes e factos nomes, quer quanto à forma de os
que colham consenso, evitando assim grafar, pois, a forma de grafar consti-
conflitos e perturbações sociais. tui um elemento identitário particular
Um outro aspecto que nos salta à e carrega consigo uma carga semân-
vista, é que na comunicação social, tica com a qual nos identificamos ou
com exagerada frequência ouvimos não. Por tal razão, impõe-se ultrapas-
enfatizar o nome que as cidades tive- sar o dilema da grafia das palavras
ram no tempo colonial. Qual o propó- que emigram das nossas línguas, das
sito de dizer “ antiga cidade de Carmo- línguas indígenas para o português,
na, Salazar, Pereira d’Eça ou Henrique como através do Decreto Nº 77, de 9
de Carvalho? Qual o propósito de no de Dezembro de 1921, as consagrou
Huambo termos a estátua de Norton o Alto Comissário e Governador de
de Matos no mesmo patamar que a Angola José Mendes Ribeiro Norton
de Agostinho Neto? Porventura não de Matos, quando estabeleceu o que,
se sabe qual foi o papel de Carmona,
passo a citar:
Salazar, Pereira d’Eça ou Henrique de
Carvalho na ocupação portuguesa?
Porventura não se conhece o prejuízo Artº 2º - Não é permitido ensinar
cultural provocado por Norton de Ma- nas escolas das missões línguas
tos? – são questões para reflexão. indígenas.
Artº 3º - O uso da língua indígena
Voltando à questão da toponimia só é permitido em linguagem
à luz da história recente de angola falada na catequese e, como
e, consequentemente, à luz da auxiliar, no período do ensino
reconciliação nacional, processo elementar da língua portuguesa.
que se reitera quando celebramos & 1º - É vedado na catequese das
o centenario de agostinho neto sob missões, nas suas escolas e em
o lema “ angolanos de mãos dadas qualquer relação com os indígenas,
para o futuro”…1 o emprego das línguas indígenas
ou de outra linguagem que não
Como já referimos, atribuir um seja a portuguesa (...)
nome a uma rua, a um estabeleci-
mento público, a um lugar, a um mu-
A questão que amiúde se coloca é
nicípio, grafá-lo de uma certa forma,
ou erguer um monumento, mais do a de se não deveriam ser mantidos os
que reconhecer ou exaltar um fac- antigos nomes de localidades, de ruas
to, constitui uma forma de entrar na e de avenidas e mesmo se as estátuas
mente das pessoas e influenciar o do período colonial não deveriam vol-
imaginário da sociedade. Por tal fac- tar a ocupar o seu antigo lugar. As opi-
to, se estamos convencidos que “a niões dividem-se e verificamos que
paz se deverá converter na principal se vai impondo uma certa tendência
força identitária dos angolanos”1 , de fazer ressurgir tais nomes. Ora,
impõe-se que ao nível da toponímia, todos sabemos, que a toponímia, os

1
Dos Santos, José Eduardo - discurso sobre o estado da nação 2017, Luanda.
193
António Fonseca

nomes de ruas e lugares, não são da- do Namibe, importa dizer que o Ba-
dos por mero acaso. São dados para rão de Moçamedes, em cuja honra foi
exaltar um feito ou uma figura. Por no tempo colonial dado o seu nome
esta ordem de razão, os heróis e fei- àquela cidade, foi uma das principais
tos heróicos do colonizador, não são figuras do tráfico de escravos em An-
os heróis nem os feitos heróicos do gola. Senão vejamos:
colonizado. Por outro lado, a toponí- a) Barão de Mossâmedes (ou ba-
mia visa cimentar valores e caucionar rão de Moçâmedes) foi um tí-
uma identidade. Por esta ordem de tulo de juro e herdade criado
razão, de igual modo, a perspectiva por carta régia de 13 de Agos-
do colonizado, não pode ser a pers- to de 1779 da rainha D. Maria I a
pectiva do colonizador. favor de José de Almeida e Vas-
No pós independência a alteração concelos, um militar e governa-
dos nomes foi vista como “ uma forma dor-geral de Angola.
de marcar a vitória pela independên- A propósito de Moçamedes,
cia e como afirmação da identidade pode ler-se no artigo Namibe,
africana dos angolanos independentes Cecil Rhodes, descolonização e o
há muito oprimida institucionalmente Barão de Moçâmedes, publicado
pelo colonialismo; este era também na página ANGONOMICS
um dos objectivos de movimentos b) “O nome Moçâmedes é uma
como “Vamos Descobrir Angola” do homenagem ao antigo gover-
qual participaram figuras proeminen- nador-geral de Angola José de
tes da nossa literatura e, de um modo Almeida e Vasconcelos Soveral
geral, dos grandes poetas da geração e Carvalho, o Barão de Moçâ-
da Mensagem. medes (ou Mossâmedes). Quan-
Perguntamo-nos, pois, se faria sen- do ordenou a exploração de ter-
tido voltar a chamar Cidade de Salazar ras à sul de Benguela em 1785, o
à Cidade de Ndalatando, ou se faria Barão despachou o tenente-co-
sentido voltar a chamar Cidade de Car- ronel Luís Cândido Cordeiro Pi-
mona à Cidade do Uíge? Cremos que nheiro Furtado e o sargento-mor
não, pois estaríamos a homenagear Gregório José Mendes e quando
aqueles que tanto dano causaram ao chegou à Angra do Negro – o
nosso povo e que nem na sua respec- nome pelo qual os portugueses
tiva pátria merecem tal homenagem. conheciam a zona do porto do
Já agora, pergunto-me por que ra- Namibe por ser um local de em-
zão a Cidade do Namibe voltou a ser barcação de escravos – rebapti-
chamada de Cidade de Moçamedes. zou o local como Porto de Mo-
Será que se quis homenagear o tráfico çâmedes em homenagem a José
negreiro, ou a reposição de tal nome de Almeida e Vasconcelos.
terá sido apenas fruto da ignorância?
Como dizia o escritor Pepetela, cha- José de Almeida e Vasconcelos an-
mar Moçamedes ao Namibe, equiva- tes de cumprir a missão em Angola
le a chamar Salazar a Ndalatando ou foi um capitão-mor de sucesso na ca-
Carmona ao Uige. 3 pitania de Goiás no Brasil, para onde
Para quem queira ouvir e portan- foi enviado pelo Marquês de Pom-
to reflectir sobre a manutenção do bal, chegou a Angola em 1784 e tinha
nome de Moçamedes para a cidade entre as suas prioridades retomar o
194
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

controlo metropolitano do comércio alguns eixos de acção que, em nosso


de escravos e das receitas aduaneiras entender, passariam pelo seguinte:
inerentes ao comércio de pessoas que 1. Arrolamento de topónimos liga-
estava a ser dominado por comercian- dos aos conflitos iniciados no pe-
tes baseados no Brasil. ríodo do Governo de Transição
Durante o governo de José de Al- decorrente do Acordo de Alvor
meida e Vasconcelos, o Barão de Mo- e que na nossa opinião não têm
çamedes, entre 1784 e 1790, o tráfico espaço no processo de reconci-
de escravos atingiu níveis recorde na liação nacional, devendo haver
colónia de Angola, como escreveu Jo- a coragem de mudá-los. Damos
seph Calder Miller. Assim, retomar o como exemplo em Luanda a “
nome de Moçâmedes éefectivamente Avenida dos Massacres”. Esta
homenagear um servidor diligente do avenida chamou-se Avenida do
colonialismo sendo amplamente con- Brasil, país cuja relação histórica
siderado como um servidor público com Angola não precisa de ser
de qualidade pelos serviços prestados argumentada e que, afinal, foi o
para o império português; a causa que primeiro a reconhecer a indepen-
serviu jogou em muitos aspectos con- dência de Angola em cujo Estado
tra a causa dos povos de Angola. hoje todos vivemos e em cujas
Com o regresso ao nome colonial, instituições todos participamos.
Moçâmedes, passa-se a homenagear 2. Arrolamento de topónimos que
uma pessoa ligada à administração desqualificam alguns soberanos
colonial em pleno período de vigência em face de outros e, do mesmo
do comércio transatlântico de escra- modo e com a mesma dignidade,
vos, a principal actividade comercial e exaltar os soberanos das distintas
principal fonte de receitas para admi- regiões socioculturais. Temos por
nistração colonial em Angola.”2 2 exemplo em Luanda a rua Soba
Pelas questões apresentadas aci- Mandume. MandumeNdemu-
ma, fica a ideia que a decisão de pas- fayo entretanto é reconhecido
sar o nome da cidade do Namibe para como Rei e na Namíbia dá nome
Moçâmedes foi baseada em infor- a uma Avenida. Por que razão en-
mação frágil uma vez que representa tão chamar rainha a MwenexiN-
efectivamente uma homenagem a um jingaMbande, ou rei a MwenexiN-
homem cujas acções, por iniciativa golaKiluanjikya Samba e chamar
própria ou por inerência das funções soba a MandumeNdemufayo?
que desempenhava, o desqualificam 3. Do mesmo modo, apurar que
para qualquer tipo de homenagem to- títulos nobiliárquicos usar para
ponímica na Angola de hoje. Portanto, os soberanos. Dom? Ou seria
parece-nos ser esta uma questão para de usar os títulos tradicionais
reanalizar..... como MWENWXI, MWENE,
Nesta problemática da paz e recon- OSSAMA, NTINU, ETC.? Neste
ciliação através da toponímia, haveria caso haveria que avaliar e corri-
pois que revisitar a história e enunciar gir o que se encontra nas fontes
escritas. Dou como exemplo,

2
Rhodes, Ceci - Namibe, descolonização e o Barão de Moçâmedes, ANGONOMICS
195
António Fonseca

no caso do Kongo as designa- fossem originárias do latim. Por


ções Ntotela ou Ntotila e Mani. outro lado, considerar que, mais
Serão estes os títulos correc- do que simples letras, o k, W e Y
tos? Estamos convencidos que transportam uma carga histórica
não. Para nós seriam NTINU, e cultural e há muito foram con-
no caso do rei que teria como sagradas na literatura, desde Cor-
epíteto a designação NTOTE- deiro da Matta a Luandino Vieira e
LA, o Unificador e os NFUMU, à generalidade dos escritores an-
nas suas diversas hierarquias. golanos, o que constitui um claro
MANI parece-nos corresponder sinal de roptura com a literatura
a um erro, decorrente da ina- colonial e a imposição de uma for-
dequada interpretação e grafia ma angolana de escrever e grafar
em português. Por outro lado, na
da expressão “ mwa Ne” ( no es-
história recente, dizer por exem-
paço territorial e com as gentes
plo KK faz imediatamente evocar
de Ne ( fulano de tal). Aqui fica o papel histórico de Angola nas
um desafio para os historiado- mudanças na África Austral, dife-
res… pois são erros que se vão rentemente de dizer unicamente
reproduzindo através dos ma- Cuando Cubango ou CC.
nuais escolares… Impõe-se não
nos contentarmos com as fontes A este propósito importa dizer que
escritas, mas recorrer às ciências a forma actual com que na toponímia
auxiliares como a linguística… se grafa os nomes originários das lín-
guas nacionais, foi uma decisão que
4. Arrolar e avaliar a importância deve ser revertida. Entretanto, a nossa
histórica e cultural dos actuais to- moeda escreve-se com K, porém o K
pónimos e decidir pela sua manu- foi banido do nome das províncias que
tenção ou mudança. passaram a ser escritos com C. Não é
5. -Arrolar os nomes próprios das uma contradição?
nossas cidades e municípios e Na verdade, nem escritores, nem
porventura retornar a eles, o que académicos, nem o Instituto das Lín-
de resto, é prática das popula- guas Nacionais, nem a sociedade se
ções. Damos como exemplos o reconhece nessas mudanças de grafia.
nome Vié, tranformado em Bié, Haveria que revisitar e alterar o diplo-
o nome Vunongue ( nome do mí- ma… A verdade é que, apesar do diplo-
tico herói fundador entre os Van- ma em questão, em Angola nunca se
ganguela) e ora chamado Me- falará ou se escreverá como em Portu-
nongue e ainda como exemplo gal, por força da pressão que as línguas
o nome original Saulimbo, trans- nacionais exercem sobre o português.
formado em Saurimo. São nomes Importa entretanto lembrar que o alfa-
que entretanto estão na língua e beto da língua portuguesa já incorpora
na história e no imaginário das o k, o y, e o w que, para nós, não são
comunidades e por conseguinte simples letras do alfabeto… elas carre-
com elas identificados. gam para nós uma história, uma cultu-
6. Adoptar como princípio que a ra e um imaginário. Aliás, tal como as
toponímia de origem nas línguas palavras de origem latina e grega con-
nacionais deve ser escrita res- servam no português os seus radicais,
peitando os princípios e alfabeto o mesmo deve acontecer com as pala-
dessas línguas, pelo que seria de vras com origem nas línguas nacionais
repor os k, W e Y. Nunca deve- que deverão respeitar a sua origem e a
riam, pois, ser escritas como se forma como são grafadas…
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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

7 - Arrolar nomes e factos da histó- Deveria dizer-se NE NLAZA e o seu tí-


ria antiga e da história recente, tulo enquanto rei seria NTINU. Impor-
do associativismo, da cultura, das ta lembrar que o NTINU NE NLAZA, D.
artes, da religião e do desporto António I acabou morto e decapitado
que possam ter dignidade para em combate na batalha de Ambwila.
nome de uma rua, uma avenida, A sua cabeça foi transportada para
um bairro e por aí adiante.
Luanda, onde seria emparedada na
8 - Arrolamento dos nacionalistas
mortos nas cadeias coloniais. então recentemente erguida Igreja da
Nazaré. A Batalha de Ambwila em que
9 - Arrolar o nome das grandes figu-
o rei António I morreu em combate,
ras da história de Angola.
cremos que é também uma referência
10 - Arrolar os factos mais relevan- a reter, pois ela marca talvez o iniciou
tes da história militar e os factos
da efectiva ocupação do Congo.
mais relevantes dessa história
militar que permitiram salva- Da história recente, assinalamos as
guardar a integridade territorial datas de 4 de Janeiro e o Movimen-
ou que tiveram impacto decisivo to de Maria, na Baixa de Kassanje, o
nas mudanças na África Austral, 4 de Fevereiro e seus protagonistas,
particularmente na Namíbia e na obviamente, e o 15 de Março, data do
África do Sul. início da insurreição que isolou o nor-
11 - Como nota final, devo dizer que te de Angola do resto do território e
é nossa convicção que muitos ho- que é assinalado como data da “ ex-
mens e mulheres, independen- tensão da luta armada e que obrigou
temente da sua simplicidade e Salazar a enviar as tropas “ para An-
do movimento de libertação que gola e em força”.
integraram na luta contra o colo-
nialismo ficaram na memória de Finalmente, da guerrilha, a par de
muitos de nós e muitos factos, muitos outros, refiro o mítico Pedro
independentemente de quem os AFAMADO que ao lado de outros ir-
protagonizou, não poderão ser mão kambuta constituiu um terror para
minimizados na história e deverão a tropa colonial e cujas façanhas ali-
ser exaltados através da toponí- mentaram o nosso imaginário até 1974.
mia, mais cedo ou mais tarde.

Para terminarmos, e não escon- Referências bibliográficas


dermos a cabeça como a avestruz, da 1) Coelho, Virgílio – Línguas
história antiga ocorrem-nos os nomes Nacionais, Onomástica e
do primeiro embaixador angolano Identidade Nacional – AAL -
junto do Papa, de seu nome cristão D. Luanda
António Manuel, e de seu nome ver-
náculo Ne Nvunda que viveu entre 2) Dos Santos, José Eduardo -
1587 e 1608 e ficou conhecido como Discurso sobre o estado da nação
“O Negrita”. 2016, Luanda.
Ocorre-nos o nome de Cazuangon- 3) De Matos, José Mendes Ribeiro
go, o mítico Herói dos Dembos e, na Norton - Decreto Nº 77, de 9 de
mesma linha de pensamento o nome Dezembro de 1921
de Dom António I, do Kongo, em nos- 4) Petetela, TEXTUALIDADES –
sa opinião erradamente consagrado Conversa com os Leitores – MAAN,
nas fontes escritas como Manimulaza. Luanda, 2019
197
António Fonseca

5) Rhodes, Cecil - Namibe,


descolonização e o Barão
de Moçâmedes, ANGONOMICS

Abstract
This work aims to bring to the dis-
cussion the contradictions that occur
in the current Angolan toponymy and
the role it can have in the consolidation
of peace and social harmony, as well as
the way in which the toponyms origi-
nating from the national languages are
spelled. On the other hand, it intends
to continue the discussion on what An-
golan national languages are actually.

Antonio Fonseca
É Membro Fundador da Academia
Angolana de Letras, de que foi o seu
primeiro Secretário-Geral, membro
da União dos Escritores Angolanos
e co-fundador da Brigada Jovem de
Literatura.
Publicou Raízes (1982), Sobre os
Kikongos de Angola (1985), Poemas
de Raiz e Voz (1985), Crónica dum
Tempo de Silêncio (1988), Contribui-
ção ao Estudo da Literatura Oral An-
golana (1996), Histórias e Memórias
Desancoradas (2006), Contos de An-
tologia (2008), Contos da Nossa Terra
(2010) e Primo Narciso e Outras Estó-
rias (2011). Figura em diversas antolo-
gias, algumas das quais traduzidas.
Iniciou actividade jornalística em
1976 na Emissora Católica de Angola,
ingressando posteriormente na Rádio
Nacional de Angola onde, desde 1978,
realiza e apresenta o programa AN-
TOLOGIA, dedicado à recolha, estudo
e divulgação da tradição oral.

198
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Dossier

Encontro sobre Toponímia


e Identidade Nacional em
Angola

199
200
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Em Busca da
Independência
Cultural

A Academia Angolana de Letras rea- com a moderação do académico Al-


lizou, no dia 28 de Outubro de 2022, no bino Carlos. Teve como oradores os
Centro de Imprensa Aníbal de Melo, um académicos Virgílio Coelho e António
encontro sobre toponímia e identidade Fonseca, que falaram nomeadamen-
nacional em Angola, com o objectivo te sobre Línguas Nacionais, Onomás-
de proporcionar subsídios que visam tica e Identidade Nacional em Angola
uma ampla dinamização do proces- e Toponímia à luz da história recente
so toponímico à escala nacional e, por de Angola. Sob moderação do aca-
via disso, instar o Governo a apreciar a démico Albino Carlos, o encontro foi
questão da pauta toponímica nacional presenciado por antropólogos, críticos
em homenagem e respeito à história e literários, escritores, historiadores,
à memória colectiva do povo angolano. linguistas, sociólogos, demógrafos e
A mesa redonda que produziu no geógrafos, dentre outros profissionais
final uma Declaração, iniciou-se com das Ciências Sociais e representantes
a divulgação da intervenção do aca- de instituições governamentais.
démico Paulo de Carvalho, que po- Na sua intervenção de abertura do
dem ser encontrados neste número Encontro, o Presidente da Academia
da Academia, teve a coordenação do Angolana de Letras, Paulo de Carva-
académico António Quino e contou lho, descreveu a toponímia como um
201
Dossier - Em Busca da Independência Cultural

assunto bastante sério, que está rela- à dimensão de postulados públicos do


cionado com a Identidade ou com as Pai-fundador da Pátria Angolana e pa-
várias Identidades colectivas no âmbi- trono da Academia, Dr. António Agos-
to de um dado espaço geográfico. tinho Neto, quando no seu discurso de
“A Toponímia trata as relações do proclamação da Independência Nacio-
ser humano com o espaço e até com nal clarificou que é necessário “promo-
a terra, as migrações e elementos de ver e difundir uma educação livre, en-
aculturação presentes ao longo de sé- raizada na cultura do Povo angolano”.
culos de trocas culturais, bem como
elementos de poder, da literatura, das Colete de forças do MAT
artes e da ciência”, escreveu. Na sua abordagem intitulada Lín-
No seu texto, lido na ocasião por guas Nacionais, Onomástica e Iden-
António Quino, Secretário-Geral da tidade Nacional, Virgílio Coelho co-
AAL, Paulo de Carvalho, Presidente da meçou por definir a toponímia como
AAL, questionou sobre se já teremos a ciência que estuda os lugares e os
atingido a independência cultural, rei- sítios, cujo estudo pode revelar factos
terando que os topónimos reflectem a que se ligam ao passado e dar assim
memória colectiva. informações sobre a história, a religião
“Por exemplo, haverá razão para e a civilização dos primeiros ocupantes
apagar da memória o histórico KK, desses lugares.
apenas porque no português de Portu- “A questão da toponímia em Angola
gal não existe a letra K? Onde andam mereceu do Ministério da Administra-
os elementos da memória colectiva ção do Território (MAT) um momento
associados à língua portuguesa escrita de reflexão que culminou com a publi-
em Angola? Vamos simplesmente dei- cação em Diário da República de uma
Lei sobre o assunto. O trabalho foi efec-
tá-los fora, apagá-los da memória? No
tuado por funcionários desse departa-
caso angolano, temos de assumir uma
mento governamental que, no entan-
certa demissão do Estado na definição
to, não eram especialistas em áreas
dos topónimos, ao ponto de termos
como a Linguística, a História, a Antro-
bairros com designação atribuída pe-
pologia, a Sociologia ou a Geografia,
los cidadãos, ruas e avenidas sem de-
e, segundo se sabe, foi efectuado em
signação e outras artérias ainda com
total ignorância e contradição com a
designação colonial, transcorridos que
actividade já realizada pelo Instituto
são 47 anos desde a proclamação da
de Línguas Nacionais (ILN), uma insti-
independência política”. tuição que se apresenta no quadro da
A actividade, inserida no Plano de administração do país, como ideal para
Acção da Academia Angolana de Le- resolver as questões e problemas aqui
tras (AAL) para o ano de 2022, visou levantados. (…).Não tendo merecido o
contribuir para uma tomada de posi- apoio de especialistas e académicos, e
ção acerca da Toponímia e Identidade em geral das comunidades linguísticas
Nacional em Angola,um assunto que de todo o país, o conteúdo dessa legis-
a instituição julga não ter merecido o lação constitui hoje um verdadeiro co-
tratamento e substantiva valorização lete de forças”, referiu o académico.
202
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Justificando a sua afirmação, Virgí- para os protagonistas e factos da histó-


lio Coelho disse que o referido colete ria recente de Angola, quer pelo facto
de forças parece partir mais da incom- de haver uma forte corrente de apolo-
preensão sobre as Línguas Nacionais gistas quanto à manutenção das está-
do que do verdadeiro significado de tuas coloniais e, consequentemente a
cada topónimo. manutenção dos topónimos dos espa-
“Sem se ter em conta as questões ços em que tais estátuas estiveram ins-
fundamentais relativas à conceptua- taladas até à sua remoção, quer ainda
lização e à experiência dos povos que pelo facto de se constatar um dese-
constituem a nata do país, não se pode quilíbrio acentuado quando se fala dos
esperar um ordenamento correcto e soberanos angolanos dos distintos es-
ajustado seja da nomenclatura geo- paços socioculturais, recuando embora
gráfica local, seja dos nomes comuni- um bocado no tempo, quer pelo facto
tários e locais guardados pela língua de a grande parte dos nossos investi-
de cada grupo e comunidade, nem, gadores se contentar com as fontes
muito menos, dos nomes estranhos escritas coloniais, muitas delas eivadas
trazidos pelos colonizadores portu- de erros decorrentes do pouco conhe-
gueses. Ignorando ou desconhecendo cimento das nossas línguas por parte
os arcanes dos antepassados do país dos cronistas de então e, sobretudo,
independente, os nomes destes últi-
dos aspectos mais profundos das cul-
mos passaram a representar para a
turas que as mesmas veiculam”, disse.
administração independente do país
António Fonseca lembrou na altura
valores que nem sempre representam
que atribuir um nome a uma rua, a um
mais valias sobre a realidade e a histó-
ria milenar das referidas comunidades estabelecimento público, a um lugar,
socioculturais do país”, acrescentou. a um município, grafá-lo de uma cer-
ta forma, ou erguer um monumento,
mais do que reconhecer ou exaltar um
Topónimos celebram tráfico facto, constitui uma forma de entrar
negreiro na mente das pessoas e influenciar o
Na sua intervenção, António Fon- imaginário da sociedade.
seca destacou a necessidade de um
posicionamento mais em consonância “(…) alguns nomes antigos asso-
com a nossa história, por um lado, e a ciados à ocupação colonial perma-
entrar no território das línguas nacio- neceram, tal como é o caso da rua
nais e das culturas matriciais angola- Massano de Amorim, à Chicala, (…).
nas diante das teses lusotropicalistas Já agora, pergunto-me por que ra-
que parecem querer ressurgir. zão a Cidade do Namibe voltou a ser
Falando sobre Toponímia à luz da his- chamada de Cidade de Moçâme-
tória recente de Angola e consequente- des. Será que se quis homenagear
mente à luz da reconciliação nacional, o tráfico negreiro, ou a reposição de
António Fonseca disse: tal nome terá sido apenas fruto da
“Trata-se, pois, de um tema que pela ignorância? Como dizia o escritor
sua natureza, não é de fácil consen- Pepetela, chamar Moçâmedes ao
so quanto aos seus aspectos práticos, Namibe, equivale a chamar Salazar
quer pela forma como cada um olha a Ndalatando ou Carmona ao Uíge”.
203
Dossier - Em Busca da Independência Cultural

Declaração da Academia valoriza a importância da preservação


O encontro, bastante vivo, permitiu da diversidade sócio-cultural e linguís-
a produção duma declaração da Aca- tica e das tradições, valores culturais e
demia sobre Toponímia e Identidade sistemas de pensamento de cada re-
Nacional em Angola. Num dos seus gião de Angola, como fundamento da
pontos, os académicos reafirmam a unidade nacional e do progresso políti-
sua predisposição de defesa intransi- co, económico, social e cultural.
gente da Identidade Nacional e a va- Também se lê na Declaração a re-
lorização dos sistemas de pensamento comendação de imediata aprovação,
que norteiam as distintas comunida- pela Assembleia Nacional, do Esta-
des sócio-culturais e linguísticas ango- tuto das Línguas Nacionais, confe-
lanas como baluarte dos imperativos rindo-lhes igual dignidade constitu-
nacionais, mormente a independência cional da que é revestida à Língua
e a unidade nacional, bem como a con- Portuguesa como património histó-
solidação do Estado democrático de rico-cultural e património cultural
direito e uma sociedade justa. imaterial vivo, bem como promover
No seu documento, a AAL perspec- o seu desenvolvimento e valoriza-
tiva que a toponímia seja um activo ção, ampliando o seu campo comuni-
essencial na permanente construção cacional, mormente a sua harmoni-
da identidade nacional, enquanto tra- zação com os instrumentos jurídicos
ço distinto que sintetiza um conjunto internacionais que propõem a desig-
de marcos, sejam eles físicos, emo- nação Línguas Nacionais.
cionais e comportamentais, os quais Neste dossier, o leitor poderá en-
fazem o indivíduo se tornar parte inte- contrar informação documental a pro-
grante de um todo nacional. Por isso, pósito do encontro.

204
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Termos de Referência do Encontro sobre Toponímia e Identidade


Nacional em Angola

1. Justificação
A presente actividade insere-se no âmbito do Plano de Acção da Academia An-
golana de Letras (AAL) para o ano de 2022 e visa contribuir para uma tomada de
posição acerca da Toponímia e Identidade Nacional em Angola, um assunto que,
julgamos, não tem merecido o tratamento e não recebe uma substantiva valorização
à dimensão de postulados públicos do Pai-fundador da Pátria Angolana e patrono
da nossa instituição, Dr. António Agostinho Neto, quando no discurso de procla-
mação da Independência Nacional clarificou que é necessário “promover e difundir
uma educação livre, enraizada na cultura do Povo angolano”.
António Agostinho Neto, nos seus discursos políticos, ensaios e poemas imprimiu o
desejo de angolanizar Angola através da projecção de idiossincrasias ligadas à cultura
do angolano; gentes e suas ambiências que culturalmente simbolizam esta rica Angola.
Assim, e por ser um pilar importante da AAL, pretende-se proporcionar subsídios
que visem uma ampla dinamização do processo toponímico à escala nacional, salva-
guardando sempre a escrita dos nomes de pessoas e de lugares, nas línguas originais
(tal como se faz quando se usam nomes em línguas estrangeiras em textos escritos
em português, sempre que não haja nome correspondente na língua portuguesa).
Nessa perspectiva, a toponímia será um activo essencial na permanente cons-
trução da identidade nacional, enquanto traço distinto que sintetiza um conjunto
de marcos, sejam eles físicos, emocionais e comportamentais, os quais fazem o
indivíduo se tornar parte integrante de um todo nacional.

2. Objectivos do encontro
Com a realização do presente Encontro, a Academia Angolana de Letras preten-
de alcançar os seguintes objectivos:
a) Promover discussão púbica sobre Toponímia e identidade nacional em
Angola, como pressuposto bastante da valorização do eu-angolano;
b) Posicionar a Academia Angolana de Letras (AAL), enquanto integrante
privilegiado da sociedade civil, sobre Toponímia e identidade nacional
em Angola;
c) Evidenciar aspectos linguísticos, antropológicos e sociológicos que po-
dem contribuir para o entendimento da matriz toponímica de Angola;
d) Estimular a compreensão do papel da toponímia na construção da per-
manente identidade nacional;

3. Participantes e temas
O Encontro contará com a participação dos membros fundadores e efectivos da
Academia Angolana de Letras.
Serão enviados convites a entidades singulares e colectivas, que poderão va-
lorizar e enriquecer a discussão, além de se abrir a possibilidade da participação
pública de cidadãos interessados.
205
Dossier - Termos de Referência do Encontro sobre Toponímia e Identidade Nacional em Angola

Prevê-se a apresentação de duas comunicações, por dois membros da AAL. São eles:

a) Virgílio Coelho – membro fundador da AAL


Tema: Línguas Nacionais, Onomástica e Identidade Nacional em Angola
b) António Fonseca – membro fundador da AAL
Tema: Toponímia à luz da história recente de Angola.

3. Metodologia

O académico Albino Carlos, membro efectivo da AAL, dirigirá o encontro,


administrando toda a sequência das duas comunicações e debates, mantendo a dis-
cussão dentro dos padrões definidos nos Termos de Referência.
O Encontro estará dividido em dois momentos, nomeadamente:

1º Momento (duas horas)


No espaço máximo de 2 horas, após o acto de abertura formal, seguir-se-ão as
apresentações dos temas. A plateia, constituída por público diversificado, entre con-
vidados e interessados no assunto, terá direito a palavra para enriquecer o debate
que se pretende público, franco, académico e construtivo.
Cada uma das prelecções terá a duração de 30 minutos, privilegiando-se o de-
bate de ideias com duração de até 50 minutos, com perguntas e respostas por parte
dos prelectores.

2º Momento (quarenta minutos)


O segundo momento, apenas com a participação de académicos, diz respeito à
produção, discussão e aprovação da “Declaração da AAL a respeito da Toponí-
mia e Identidade Nacional em Angola”.
Portanto, depois de um intervalo de 15 minutos a seguir ao 1º Momento, suce-
de-se a discussão e aprovação da Declaração.
A produção (redacção) da “Declaração da AAL sobre Toponímia e Identida-
de Nacional em Angola” será coordenada pelo académico Virgílio Coelho que, em
equipa, colherá opiniões de outros académicos (não necessariamente pertencentes
ao Conselho Científico da AAL).
Após o término e aprovação interna da “Declaração da AAL sobre Toponímia
e Identidade Nacional em Angola”, será feita a apresentação pública do referido
documento no mesmo dia.

5. Local, data e duração


O Encontro decorrerá na sala de Conferências do Centro de Imprensa Aníbal de
Melo (CIAM), na cidade de Luanda, no dia 28 de Outubro de 2022.
Prevê-se o início dos trabalhos às 09 horas e o termo às 12 horas, estando reser-
vadas no máximo:

206
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

1º Momento
• 30 minutos para cada uma das apresentações;
• 50 minutos para discussões e recolha de contribuições.

2º Momento
• 30 minutos para apresentação e discussão do draft da Declaração da AAL
• 10 minutos para a aprovação Declaração da AAL

6. Anúncio da Declaração da AAL


O anúncio da “Declaração da AAL sobre Toponímia e Identidade Nacional
em Angola” acontecerá em conferência de Imprensa no dia 28 de Outubro de
2018, às 12H30.

Luanda, 03 de Outubro de 2022

207
Dossier

INTERVENÇÃO DE ABERTURA DO ENCONTRO SOBRE TOPONÍMIA


E IDENTIDADE NACIONAL, PROFERIDA PELO PRESIDENTE DA
ACADEMIA ANGOLANA DE LETRAS, Prof. PAULO DE CARVALHO
– Luanda, 28.Outubro.2022 –

Caras e caros Académicos,


Distintos convidados,
É com enorme prazer que vos saudamos no Encontro sobre Toponímia e
Identidade Cultural em Angola, que a Academia Angolana de Letras organiza, no
âmbito do seu programa de acção para o presente mandato.
Muito obrigado pela presença de cada uma e cada um.
Pretendo também, desde já, agradecer à direcção do Centro de Imprensa Aníbal
de Melo, pelo patrocínio a este evento. Muito obrigado.
Dirijo uma palavra especial de apreço ao Secretário-geral da Academia, António
Quino, ao Coordenador deste encontro, Albino Carlos, e aos oradores, os confrades
António Fonseca e Virgílio Coelho.
Cada um deles empenhou-se arduamente na preparação deste encontro, que au-
guramos seja profícuo.

Minhas Senhoras e meus Senhores,


Reunimo-nos aqui, hoje, para abordar questões relacionadas com a Identidade
nacional e a Toponímia.
Trata-se de duas matérias bastante gratas a esta Academia
A Identidade social inclui uma série de aspectos que caracterizam um grupo
social, uma comunidade, uma região ou um espaço geográfico mais amplo.
Quando nos referimos à Identidade nacional, estamos a considerar uma série
de elementos relacionados com o sentimento de pertença a um espaço nacional e,
consequentemente, aos elementos históricos, culturais e sociológicos que lhe estão
associados.
Não me vou deter demasiado no conceito de Identidade nacional, pois isso exi-
giria a destrinça em relação ao conceito de Pátria. Por outro lado, teria de me referir
aos conceitos de comunidade sóciocultural (que muitos designam erradamente por
grupo étnico). Vou apenas acrescentar que um espaço nacional pode incluir no seu
seio várias pátrias, bem como várias comunidades sócio-culturais.
Já referi o facto de a Identidade nacional estar relacionada com a História dos
espaços e das comunidades que neles habitam, o que nos obriga a recorrer ao passa-
do. É que toda a consciência actual se fundamenta em elementos do passado (mais
distante ou mais recente).
Podemos agora acrescentar que a Identidade nacional está também relacionada
com a memória colectiva, com os usos e os costumes de cada espaço ou comuni-
dade – que são alguns dos elementos que determinam a formação da identidade de
um povo.

208
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

No que respeita aos espaços, para além do espaço nacional, temos de considerar
a divisão administrativa (que, no caso angolano, inclui províncias, municípios, co-
munas, distritos urbanos e bairros).
Depois, dentro dos bairros, temos ruas, avenidas, alamedas, praças, largos, rue-
las e becos.
O bairro e a rua são considerados lugares nossos, uma espécie de pátrias privadas
de cada um ou mesmo de grupos de pessoas. São verdadeiros factores de identidade
colectiva, que podem até provocar rivalidades com outros bairros e outras ruas.

Caros Académicos,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
A Toponímia é um assunto bastante sério, que está relacionado com a Identidade
ou com as várias Identidades colectivas no âmbito de um dado espaço geográfico.
A Toponímia trata as relações do ser humano com o espaço e até com a terra,
as migrações e elementos de aculturação presentes ao longo de séculos de trocas
culturais, bem como elementos de poder, da literatura, das artes e da ciência.
Por isso, considerámos útil convidar para este encontro, além de antropólogos,
críticos literários, escritores, historiadores, linguistas e sociólogos, também demó-
grafos e geógrafos, dentre outros profissionais das Ciências Sociais.
Os topónimos reflectem a memória colectiva e é sobre isso que devemos aqui
reflectir. Por exemplo, haverá razão para apagar da memória o histórico KK (Kuan-
do-Kubango), apenas porque no português de Portugal não existe a letra K? Onde
andam os elementos da memória colectiva associados à língua portuguesa escrita
em Angola? Vamos simplesmente deitá-los fora, apagá-los da memória?
No caso angolano, temos de assumir uma certa demissão do Estado na definição
dos topónimos, ao ponto de termos bairros com designação atribuída pelos cida-
dãos, ruas e avenidas sem designação e outras artérias ainda com designação colo-
nial, transcorridos que são 47 anos desde a proclamação da independência política.
Isto para não referir já a ausência de numeração das habitações...
Surge, pois, a seguinte pergunta: sabemos que estamos longe de atingir a inde-
pendência económíca. Mas será que já atingimos a independência cultural?
Num país africano (sublinho o facto de ser africano e não europeu!) onde os
seus adolescentes não podem frequentar a escola com penteados afro, será possível
falarmos em independência cultural? Num país onde o acesso ao ensino se faz na
língua materna, apenas quando esta é a língua portuguesa, será possível falarmos
em independência cultural?
Num país onde as crianças são obrigadas a estudar em períodos bastante quen-
tes, como sejam os meses de Janeiro a Março, com todas as consequências nega-
tivas que daí advêm para o processo de aprendizagem, será possível falarmos em
independência cultural?
São dúvidas que aqui apresento, para reflexão durante este encontro de mem-
bros da Academia Angolana de Letras e outras pessoas da sociedade e ligadas à
investigação científica.

209
Dossier

Caros Académicos,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Apresentadas as questões nestes termos, declaro aberto o Encontro sobre To-
ponímia e Identidade Nacional, que reúne académicos e especialistas de diferentes
áreas do saber, esperando que no final seja produzida uma declaração na qual a
Academia Angolana de Letras (enquanto parceira do Estado angolano) assume a
sua posição sobre estes dois assuntos da actualidade nacional.

Votos de bom trabalho.


Muito obrigado.

Nota: Por razão de saúde, o Presidente da Academia Angolana de Letras, Paulo de Car-
valho, não pôde estar presente no Encontro, tendo esta sua intervenção sido lida pelo
Secretário-Geral da AAL, António Quino.

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

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Declaração da Academia Angolana de Letras Sobre Toponímia e Identidade Nacional

DECLARAÇÃO DA ACADEMIA ANGOLANA DE LETRAS SOBRE


TOPONÍMIA E IDENTIDADE NACIONAL

A Academia Angolana de Letras (AAL), reunida na cidade de Luanda, no Cen-


tro de Imprensa Aníbal de Melo, no dia 28 de Outubro de 2022:
Considerando a relevância do conceito de Identidade Nacional no que concerne
ao sentimento de pertença e à consciência de partilha de memórias e valores histó-
ricos comuns;
Tendo em consideração que as Línguas Nacionais representam um dos mais
poderosos esteios da Identidade Nacional e da estabilidade política, económica,
social e cultural;
Atendendo à importância da preservação da diversidade sócio-cultural e linguís-
tica e das tradições, valores culturais e sistemas de pensamento de cada região de
Angola, como fundamento da unidade nacional e do progresso político, económico,
social e cultural;
Partindo do pressuposto de que a toponímia colonial é parte integrante do pro-
cesso político de instauração da colonização portuguesa, sendo que a afirmação da

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

soberania e identidade nacional angolana estão associadas ao processo de ruptura


com diversas memórias e símbolos marcadamente coloniais;
Dado que ainda hoje se constata que os nomes de ruas de principais bairros e
centros urbanos do país são de personagens lusas ou baseados em símbolos colo-
niais;
Ademais, regista-se que números significativos de cidadãos angolanos estão à
margem das lógicas subjacentes ao exercício de homenagear e nomear, assim como
se constata um desequilíbrio acentuado entre os soberanos dos distintos espaços só-
cioculturais e linguísticos, sem esquecer a problemática dos títulos nobiliárquicos
que os notabiliza;
Considerando o teor da Declaração da Academia Angolana de Letras a respeito
do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, redigida no dia 9 de Outubro
de 2018;

A Academia Angolana de Letras (AAL) declara:


1. Reafirmar a predisposição de defesa intransigente da Identidade Nacional e
a valorização dos sistemas de pensamento que norteiam as distintas comu-
nidades sócio-culturais e linguísticas angolanas como baluarte dos impera-
tivos nacionais, mormente a independência e a unidade nacional, bem como
a consolidação do Estado democrático de direito e uma sociedade justa;
2. Recomendar a imediata aprovação pela Assembleia Nacional, do Estatuto
das Línguas Nacionais, conferindo-lhes igual dignidade constitucional da
que é revestida à Língua Portuguesa como património histórico-cultural e
património cultural imaterial vivo, bem como promover o seu desenvolvi-
mento e valorização, ampliando o seu campo comunicacional, mormente
a sua harmonização com os instrumentos jurídicos internacionais que pro-
põem a designação Línguas Nacionais;
3. Manifestar a sua indignação pelo estado em que se encontra o processo de
implementação das Línguas Nacionais no sistema de educação e ensino,
bem como a sua ampla utilização e divulgação em todos os sectores da vida
nacional, recomendando a sua materialização conforme as directivas e deli-
berações dos mais diversos organismos do Estado Angolano;
4. Estimular a materialização de uma política de Toponímia consensual e aberta
aos desafios do presente e do futuro, que valorize a diversidade cultural, o
diálogo entre as culturas e promova a reconciliação e unidade nacional; uma
política de Toponímia fundada no conhecimento científico e que congregue
todas as comunidades sócio-culturais e linguísticas e instituições políticas,
dignificando e glorificando a História e a memória colectiva de Angola;
5. Aconselhar o resgate das origens dos nomes próprios das figuras, das cida-
des, dos municípios e dos factos e sítios históricos, assim como a forma cor-
recta quer de adopção, quer de escrita, cuidando que seja feita em rigorosa
conformidade com as normas da ortografia aplicada às Línguas Nacionais;

213
Declaração da Academia Angolana de Letras Sobre Toponímia e Identidade Nacional

6. Apoiar as iniciativas toponímicas espontâneas promovidas por movimentos


cívicos de cidadãos e das comunidades, bem como os actos administrativos
oficiais, que valorizem a importância dos espaços públicos, como largos,
praças, centros históricos, avenidas e ruas no imaginário colectivo e sen-
sibilidade dos cidadãos, sendo certo de que o exercício de homenagear e
nomear deve traduzir visões de Angola e do mundo, compartilhadas pela
sociedade angolana, tendo sempre em consideração elementos sócio-cul-
turais e linguísticos, sócio-históricos e culturais, assim como aspectos geo-
gráficos e económicos;
7. Defender o direito à memória histórica e partilhada à todos os protagonistas
angolanos e acontecimentos históricos, propondo o inventário das designa-
ções toponímicas ligadas aos conflitos políticos desde a era colonial até à
instauração da paz definitiva, em 4 de Abril de 2002;
8. Recomendar o arrolamento de nomes e eventos mais relevantes da história
antiga e recente de Angola, incluindo elementos do teatro da guerra, do
associativismo, da cultura, das artes, da ciência, da religião, do desporto e
demais figuras grandiosas da história, merecedoras de dignidade para no-
mes de ruas, avenidas, becos, praças, largos, bairros e outros elementos da
divisão administrativa;
9. Recensear e avaliar a importância histórica e cultural dos actuais topóni-
mos, equacionando igualmente o levantamento de signos toponímicos, que
desqualifiquem alguns soberanos em detrimento de outros, enaltecendo to-
dos os soberanos das distintas regiões sócio-culturais e linguísticas, com
igual dignidade e honra;
10. Recomendar ao Estado e ao Governo que a cidade de Moçâmedes, bem
como outros objectivos económicos e sociais relacionados a esse nome vol-
tem a chamar-se Namibe, em virtude do barão de Moçâmedes estar vincu-
lado ao tráfico de escravos;
11. Recomendar a não inclusão na pauta toponímica nacional de nomes e mo-
tivos ligados ao tráfico de escravos, ao fascismo e a todos os actos que
desonrem a história e a memória colectiva do povo angolano;
12. Retomar e dinamizar o programa de divulgação e valorização das figuras
históricas angolanas, como forma de imortalizar na memória colectiva os
seus feitos, quer em prol da resistência à ocupação colonial portuguesa,
quer durante a luta armada de libertação nacional.

Luanda, 28 de Outubro de 2022.


A Academia Angolana de Letras (AAL)

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Notícias

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216
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Distinções
a académicos
De forma indelével, o ano 2022 marcou e prestigiou a Cultura e as Letras An-
golanas e a vida da Academia Angolana de Letras. Com efeito, um conjunto de
factos de grande relevância, quer no plano nacional, quer no plano internacional
e que mereceram notas de felicitações aos respectivos membros da AAL neles
envolvidos, assim o demonstram.

No domínio da vida política e cultural


Académico Filipe Zau nomeado Ministro da Cultura e Turismo

Neste domínio, toma relevo a nomeação


pelo Presidente da República, João Manuel
Gonçalves Lourenço, do académico Filipe Sil-
vino de Pina Zau, para o cargo de Ministro da
Cultura e Turismo, de acordo com a orgânica
do Executivo que emergiu das eleições gerais
realizadas em Angola, em Agosto de 2022.
Filipe Zau é Vice-Presidente da Academia Angolana de Letras, antigo Membro
do Conselho da República e antigo Ministro da Cultura, Turismo e Ambiente, ten-
do já exercido os cargos de Adido Cultural na Embaixada de Angola em Portugal
(1990/96), Conselheiro para os Assuntos de Educação, Cultura e Desporto na Co-
munidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e Consultor do PNUD para
elaboração do Relatório de Angola, além de já ter sido Vice-reitor e Reitor da Uni-
versidade Independente de Angola (UNIA – 2010/2021) e, nessa condição, pre-
sidente da Associação das Instituições de Ensino Superior Privadas Angolanas
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Notícias - Distinções a académicos

(AIESPA); é Embaixador de Boa Vontade da CPLP, nomeado pela XIII Conferência


de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portu-
guesa, o que expressa reconhecimento que pela sua longa trajectória ao serviço
da Educação, pela sua dedicação à promoção da língua portuguesa e coloca An-
gola em lugar de destaque ao nível da CPLP.
Filipe Zau é autor das obras “Angola: Trilhos para o Desenvolvimento”, “Marítimos
africanos e um clube com história” e “Do acto educativo ao exercício de cidadania”,
investigador, professor, compositor, músico, letrista, de referência nacional e inter-
nacional, mereceu já uma série de prémios e distinções, dentre os quais o Prémio da
Crítica do TOP dos Mais Queridos da Rádio Nacional de Angola (RNA) 2021.
Vice-Presidente da Academia Angolana de Letras no presente mandato, Filipe
Zau notabilizou-se neste âmbito pela coordenação das “Conversas da Academia
à Quinta-feira”, um ciclo de conferências via ZOOM que envolve intelectuais de
diversas partes do mundo no debate sobre temas actuais da vida nacional, com a
participação de escritores, investigadores e outros profissionais. No espaço dos
últimos doze meses, foram realizadas 32 conferências no âmbito das “Conversas
da Academia à Quinta-feira.

Distinção ao académico Pepetela

O académico, escritor e do-


cente angolano foi distinguido
em Maio de 2021, com o título
de Doutor Honoris Causa atri-
buído por unanimidade e acla-
mação, pelo Conselho Univer-
sitário da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. A Sessão So-
lene de outorga de tal título ao
escritor angolano Artur Carlos
Maurício Pestana dos Santos
“Pepetela”, membro fundador da Academia Angolana de Letras e Presidente da
Mesa da Assembleia Geral da mesma, realizou-se no dia 25.10.2022, tendo a ins-
tituição académica outorgante, na sua fundamentação, referido que Pepetela, na
sua obra, destaca a história contemporânea da Angola, fazendo uma literatura que
problematiza o social, delineando visões históricas e sociológicas de extrema im-
portância para quem pretende ou está a estudar a cultura e a estrutura angolana,
destacando também a carreira do escritor e professor cuja obra joga luz sobre a
História contemporânea de Angola e sobre os problemas de cariz socio-económi-
co que o povo angolano enfrenta. Ainda de acordo com a Universidade conceden-
te do título Doutor Honoris Causa a Pepetela, o conjunto da sua obra interroga as
demandas de seu tempo e lugar, expondo as grandes questões sociais e políticas,
bem como as relações entre os grupos e as ideologias em confronto.
Pepetela é um dos escritores angolanos mais estudados em Angola e no
mundo, com reconhecimento nacional e internacional, com a conquista de di-
versos prémios literários: em Angola, com destaque para o Prémio Nacional de

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Literatura (1981) e o Prémio Nacional de Cultura e Artes (2002); em Portugal,


com o Prémio Camões (1997); e no Brasil, com o Prémio Especial dos Críticos
Literários de São Paulo (1993); também é laureado com o Prémio Internacional
da Associação de Escritores Galegos (2007) e o Prince Claus da Holanda (1993),
atribuídos a pessoas e a organizações pelas suas notáveis realizações nos cam-
pos da Cultura, do Desenvolvimento Social, da Literatura e das Letras.

A atribuição do título Doutor Honoris Causa a Pepetela é uma porta


que se abre à valorização, cada vez maior, da Intelectualidade
angolana.

Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos “Pepetela” é autor de mais de 25 livros,
de que se destacam As aventuras de Ngunga (1973), Muana Puó (1978), Mayombe
(1980), O cão e os caluandas (1985), O desejo de Kianda (1995), Yaka (1985), Lueji,
o nascimento de um império (1989), A geração da utopia (1992), A gloriosa família
(1997) e Sua Excelência de corpo presente (2018).

Prémio ao académico Boaventura Cardoso


Ao escritor Boaventura Cardoso, Prémio DST Angola/Camões 2022.

O académico Boaventura Car-


doso venceu a III Edição do Pré-
mio de Literatura DST ANGOLA/
CAMÕES, com a obra Margens e
Travessias.
Manifestando orgulho pela
qualidade e inteligência demons-
trados pelo autor, o júri presidido
pela confreira Irene Guerra Mar-
ques refere que o escritor Boa-
ventura Cardoso se mantém fiel
“aos mesmos métodos que fizeram dele um dos melhores prosadores da História
da Literatura Angolana, com uma disciplina férrea, um profundo conhecimento
da realidade, uma observação lúcida e inteligente de tudo quanto se vai passando
à sua volta e constrói um romance que se constitui fundamental para quem quei-
ra conhecer a Angola do último meio século” .
O seu percurso e obra elevam o prestígio da Academia Angolana de Letras, da
qual Boaventura Cardoso é membro fundador e seu primeiro Presidente, cientes
de que nos pilares do desenvolvimento da Literatura e da Cultura nacionais, estão
os seus tijolos conservados em livros e saberes – lê-se na nota de felicitações que
lhe foi endereçada e publicada pela AAL.

219
Notícias - Distinções a académicos

Ao académico Aníbal Simões, Prémio Literário Sagrada Esperança


2022 – Edição Especial Centenário.

O académico Aníbal Simões venceu a Edição Es-


pecial Centenário do Prémio Literário Sagrada Es-
perança 2022, realizada no âmbito da celebração
do Centenário de Agostinho Neto.
O escritor e psicólogo Aníbal Simões viu assim
premiada mais uma obra sua, desta vez, “Memó-
rias de uma kuwale”. Trata-se de um romance, que
denota riqueza no labor estético e na elaboração
da dimensão sócio-cultural das comunidades an-
golanas. De acordo com o júri do prémio, trata-se
de um “trabalho de ficção que recusa o carácter es-
tático oral e os rituais ancestrais, tolerando uma vi-
são dinâmica das chamadas comunidades rurais” .
Aníbal Simões é Membro Fundador da Academia Angolana de Letras.

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Actividade
desenvolvida pela
AAL em 2022

CONVERSAS À QUINTA-FEIRA
ESTIMULAM O CONHECIMENTO

Já conquistou o seu espaço entre da América, França, Itália, Moçambi-


os cultores do conhecimento as con- que ePortugal estão na lista dos que
ferências Zoom da Academia Angola- mais presenças marcam na troca de
na de Letras denominada Conversas conhecimento.
da Academia à Quinta-feira, projecto Mais de 50 conferências foram rea-
iniciado em 2021 que traz a debate lizadas via Zoom durante o ano 2022,
assuntos diversos, com destaque para ficando registadas considerações e
os de interesse sócio-cultural e acadé- contribuições importantes para a me-
mico-científico. lhoria do cenário social angolano. No
Entre letristas, ambientalistas, es- ano de 2022, no âmbito das Conversas
critores, investigadores, músicos, aca- da Academia à Quinta-feira, a AAL
démicos, estudantes, cruzam países e realizou 48 conferências e uma mesa
continentes para abordar e ouvir as- redonda com 3 conferências, num to-
suntos da actualidade. Angola, Arábia tal de 51 conferências.
Saudita, Argentina, Brasil, Cabo-Ver- Para saudar o 47.º aniversário da
de, Canadá, Espanha, Estados Unidos proclamação da Independência Na-
221
Notícias - Actividade desenvolvida pela AAL em 2022

cional, foi discutido em conferência o tória cultural, “porque vieram reforçar


tema Línguas de Angola e desenvolvi- um processo de inovação da lingua-
mento. O vice-presidente da Academia gem para aquilo que é hoje o português
Angolana de Letras, Filipe Zau, realçou brasileiro”, destacou.
que cada sociedade deve criar e impor O escritor angolano Ondjaki, no dia
o modelo de educação que pretende e 17 de Fevereiro, recordava em confe-
melhor se coaduna com as suas pers- rência o elevado grau de ausência de
pectivas de desenvolvimento, e des- políticas e incentivo à leitura, ao livro
de que estejam em consonância com e à literatura no País. Por reconhecer
o seu horizonte sociolinguístico. Essa que em Angola existe um público curio-
sua nota introdutória foi enriquecida so, interessado e mais jovem, embora
ao asseverar que “da nossa própria com menos poder económico, referiu
elite cultural, económica e política, te- que é preciso fazer-se algo, “porque o
mos algum receio e complexo à volta investimento na cultura, na educação e
da introdução das línguas africanas de no desporto é uma aposta do presente
Angola no sistema de ensino. É preciso para o futuro”, disse.
perceber-se que o ensino das línguas Revelando que, em média, 500
nacionais nas escolas não prejudicará novos autores publicam anualmente
a língua portuguesa. O que enriquece em Angola, o lobitanga João Ricardo,
Angola são as várias culturas com to- licenciado em Fotografia e Cultura Vi-
das as suas línguas”, disse o académico sual, falou em Democratizar a divulga-
Filipe Zau. ção do conhecimento para a melhoria
Por seu turno, o poeta angolano do exercício de cidadania na área da
Conceição Cristóvão realçava no dia cultura e do acesso a informação de e
23 de Junho do ano findo a necessi- sobre Angola.
dade de se incentivar a leitura, e que Para si, a valorização de Angola,
a política do livro promova a baixa do mostrando várias das suas facetas
preço do livro. “É importante não pro- pouco conhecidas e que não são bem
mover a mediocridade e apoiar a me- promovidas, ajudam a combater os
ritocracia”, lançou como desafio para preconceitos propalados na diáspora
toda a sociedade. sobre o país.
O escritor e poeta brasileiro Kaio No dia 7 de Julho, o académico
Carmona, ao tratar do percurso das re- madrileno Frigdiano Álvaro Durántez,
lações literárias entre Angola e Brasil, assessor da Casa do Rei de Espanha,
recordou que Angola também partici- El-Rey Dom Felipe VI, falava sobre a
pou na reconstrução do cânone literá- Articulação do espaço de países de lín-
rio brasileiro. guas portuguesa e espanhola e a acção
Essa sua afirmação, feita na confe- de Angola, relevando que devemos
rência do dia 25 de Agosto, o também trabalhar a favor daquilo que nos une
professor na Universidade Agostinho e contra os aspectos que restringem a
Neto e no Centro Cultural Brasil-Ango- consolidação da cooperação bilateral.
la do Instituto Guimarães Rosa (CCBA) Na ocasião, o também director de
do Instituto Guimarães Rosa, susten- Relações Internacionais da Fundação
tou que Angola levou os brasileiros a Universitária Ibero-Americana (FUNI-
recuperar autores negros ou mulheres BER) enfatizou a posição de Angola
pobres deixados para trás na nossa his- na articulação de um Espaço Multina-
222
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

cional de países de língua espanhola e positivos ou de mortes entre os seus


portuguesa de todos os continentes, cidadãos, sublinhando que quanto
que “representam mais de 850 milhões menos desenvolvido for o país maior
de pessoas, o primeiro bloco linguístico dificuldade teria para contornar esses
do mundo, que acolhe a décima parte efeitos negativos no seu tecido econó-
da população mundial”. mico e social.
Numa outra conferência bastante
concorrida, a ambientalista Eufrazina
Paiva, dissertando sobre a Crise ener-
gética mundial versus equilíbrio am- ACADEMIA PRESENTE NO
biental, lembrou que os Estados devem CENTENÁRIO DE NETO
investir cada vez mais na implementa- Em parceria com as Edições No-
ção da utilização de energia limpa, que vembro, proprietária do Jornal de An-
não causam poluição pela emissão de gola, a Academia Angolana de Letras
substâncias nocivas ao ambiente, para editou um caderno especial na edição
contrariar uma prática, pois “conti- do diário do dia 28 de Novembro de
nuam a fazer uso das energias prove- 2022, como parte integrante da edi-
nientes da combustão de combustíveis ção Nº 16914 do Jornal de Angola.
fósseis e energia atómica, provocando
Com esse gesto, a AAL juntava-
muitos danos ao ambiente e muitos
-se às celebrações do Centenário de
acidentes causados por estes combus-
tíveis”, asseverou no dia 20 de Outubro Agostinho Neto, reunindo no cader-
de 2022. no depoimentos, textos de opinião,
apontamentos, breves ensaios e um
O demografo Luiekakio Afonso,
que falou no dia 13 de Outubro de 2022 poema, todos eles sobre ou em home-
sobre os Desafios e oportunidades da nagem a António Agostinho Neto.
actual dinâmica demográfica angola- Na ocasião, foram convidadas 50
na, destacou a premência do investi- pessoas para participarem com textos
mento em políticas que visam atenuar (depoimentos, textos de opinião, bre-
o índice de pobreza da população e re- ves ensaios ou poesia) no caderno. Res-
duzir as taxas de dependência externa ponderam positivamente 19 pessoas,
por meio do reforço de investimentos das quais 8 membros da Academia
na educação, saúde, formação de qua- Angolana de Letras, 10 investigadores
lidade e empregos sustentáveis. e 1 poeta, entre angolanos, brasileiros,
O professor universitário e investi- cabo-verdiano e portugueses.
gador angolano Jonuel Gonçalves tam- Assim, o leitor pôde deliciar-se
bém deixou o seu selo nas conversas com textos dos académicos António
da Academia, ao abordar no dia 02 de Fonseca, António Quino, Filipe Zau,
Setembro de 2022 sobre Implicações Fragata de Morais, Lopito Feijóo,
económicas e sociais da covid-19 em Paulo de Carvalho, Pires Laranjeira e
África e na América Latina. Roberto de Almeida, além da contri-
Na sua abordagem, Jonuel Gonçal- buição de Irene Neto (filha de Agos-
ves chamou a atenção para o impacto tinho Neto), do poeta cabo-verdiano
global da Covid-19 nas economias na- Corsino Fortes (in memoriam) e dos
cionais, mesmo para países com índi- investigadores e críticos literários
ces reduzidos e controlados de casos
223
Notícias - Actividade desenvolvida pela AAL em 2022

Abreu Paxe, Carmen Tindó Secco, duma coroa de flores no seu sarcófa-
Francisco Topa, Frederico Mussunda, go, seguindo-se uma visita guiada ao
João Papelo, Joaquim Martinho, José Mausoléu.
Bembo Manuel, Justo Muangunga e Numa cerimónia, que teve à testa
Manuel Muanza. o presidente da AAL, Paulo de Car-
De recordar que António Agostinho valho, os académicos depositaram
Neto (1922-1979), o Primeiro Presiden- rosas de porcelana no túmulo do
te da República de Angola, é o Patrono poeta Agostinho Neto, como símbo-
da Academia Angolana de Letras – as- lo de respeito e reconhecimento do
sociação privada sem fins lucrativos, de seu empenho em prol do firmamento
carácter cultural e científico, que tem duma massa intelectual na Angola in-
por finalidade o estudo e a investiga- dependente.
ção da Literatura Angolana, da Linguís- Na ocasião, Paulo de Carvalho
tica e das disciplinas ligadas às Ciências referiu que, iniciado com o patro-
Sociais, proclamada em Luanda, no dia no da AAL, os actos simbólicos de
15 de Setembro de 2016. homenagem a homens de letras vai
prosseguir, com destaque para os
angolanos que inscreveram os seus
ACADÉMICOS “VISITAM” respectivos nomes nos anais da his-
PATRONO tória de Angola.
Os membros da Academia Angola- Presentes ao acto, estiveram os
na de Letras (AAL) renderam, na ma- académicos Pepetela, Paulo de Carva-
nhã de 22.12, uma singela homena- lho, Filipe Zau, Jofre Rocha, Boaven-
gem ao Dr. António Agostinho Neto, tura Cardoso, Victor Kajibanga, Albi-
Primeiro Presidente de Angola e pa- no Carlos, Fragata de Morais, Carmo
trono da instituição, com a deposição Neto e António Quino.

224
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Obituário

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226
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

CARLOS PIMENTEL (1944 – 2016)

Carlos Frota Tendinha de Pimentel Teixeira,mem-


bro fundador da União dos Escritores Angolanos e
da Academia Angolana de Letras, nasceu no Namibe
(Moçâmedes), a 24 de Setembro de 1944 e faleceu
em 2016. O facto de ser originário do Sul de Angola
não o impediu de comungar a experiência da chama-
da “geração de 50” que, como sabemos, teve a cida-
de de Luanda por berço.
Tijolo a tijolo, o primeiro livro do escritor, foi agra-
ciado com menção honrosa do Prémio Noma, de 1982, um prémio instituído por
uma editora japonesa para dignificar anualmente a obra, ensaística ou literária,
de um autor africano.Carlos Pimentel, escritor angolano, é reconhecido como
poeta e contista e revelou-nos um interessante perfil literário que curiosamente
inicia numa sala de aulas.
Mas do autor sobressaem outras facetas sendo relevante a de cronista do Jornal
de Angola, com a conhecida coluna “Pimenta na língua”. Carlos Pimentel deixou
um legado literário enraizado no arquitexto angolano da cultura nacional, onde se
destacam as obras Tijolo a tijolo (1981) e Pano Barato (1989).

CHÓ DO GURI (1959 – 2017)

Maria de Fátima de Morais, mais conhecida pelo


pseudónimo Chó do Guri, membro da União dos Es-
critores Angolanos, nasceu na Quibala, província do
Kwanza Sul, a 24 de Janeiro de 1959 e faleceu em 2017.
Residia no Bairro Operário, em Luanda quando ti-
nha dois anos de idade, e os quatro anos, foi interna-
da pela sua mãe nas madres da Igreja de São Domin-
gos, porque estava sem condições financeiras para
a alimentar. Chó do Guri interessou-se pela poesia
desde jovem e publicou o seu primeiro poema em 1988, no jornal Mural da As-
sociação de Estudantes Angolanos em Portugal. Chó do Guri concluiu os estudos
primários e secundários em Luanda, cursou ciências farmacêuticas na Faculdade
de Farmácia da Universidade de Lisboa, e graduou-se em acção social pela Uni-
versidade Aberta de Lisboa, em Portugal.
O seu primeiro livro, Vivências, foi publicado em 1996. A sua obra Chiquito da
Camuxiba foi publicada em 2006, e venceu o Prémio de Literatura Africana, atri-
buído pelo Instituto Marquês de Valle Flôr. A escritora deixa um legado consti-
tuído pelas obras “Vivências”(1996), “Bairro Operário, Minhas História” (1998),
”Morfeu”(2000), “ A filha do Alemão” (2007) ” Chiquito da Camuxiba e Pulas,
Bumbas, Companhia Ilimitada e muita Cuca”, (2016).
227
Obituário

A sua obra, A Filha do Alemão, intitulada inicialmente A Filha do Pecado, foi


publicada em 2007, após ser concluída em quase vinte anos. Em 2009, A Filha do
Alemão foi traduzida para a língua alemã pelo Instituto Goethe. A obra também
foi apresentada no programa da abertura do Centro Cultural Alemão em Luanda.
Diversas antologias de poemas de Chó do Guri foram publicadas em Angola e no
Brasil. Também foi colunista do jornal Folha 8.
A obra A Filha do Alemão constitui-se como um grande subsídio para o estudo
da história recente de Angola, que permite compreender de forma mais clara as
novas classes sociais de Angola e conhecer a alma e a história recente do país.

ANTERO DE ABREU (1927- 2017 )

Antero Alberto de Abreu, membro fundador da


União dos Escritores Angolanos de que foi Vice-Pre-
sidente e da Academia Angolana de Letras, nasceu na
cidade de Luanda, Angola, em 22 de Fevereiro de 1927
e faleceu a 15 de Março de 2017. Fez os seus estudos
primários e secundários em Luanda, tendo concluído
o liceu nessa cidade. Partiu em seguida para Portugal
para estudar direito, primeiro em Coimbra e poste-
riormente em Lisboa, onde terminou o curso.
Enquanto estudante em Lisboa foi dirigente da Casa dos Estudantes do Impé-
rio – CEI.
Após a sua formação regressou ao país e exerceu advocacia em Luanda tendo
sido, durante o tempo colonial um profuso activista no incremento associativo e
cultural de Luanda, destacando-se particularmente a sua actividade no Departa-
mento Cultural da Associação dos Naturais de Angola – ANANGOLA.
Publicou os seus primeiros poemas no Meridiano, Boletim da Casa dos Estu-
dantes do Império em Coimbra. Possui poemas e contos publicados em diversas
revistas e páginas literárias, nomeadamente: Mensagem (CEI), Via Latina, Men-
sagem (ANANGOLA), Cultura (II), ABC, A Província de Angola, Itinerário, Vértice,
e outras mais.
Possui igualmente textos publicados em antologias, nomeadamente: Antolo-
gia Poética Angolana (1950), Poetas Angolanos (1959), Antologia Poética Angola
(1963), Mákua, III (1963), No Reino de Caliban. Antologia Panorâmica da Poesia
Africana de Expressão Portuguesa.

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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

FREDERICO NINGI (1959 – 2018)

Frederico Ningi, membro da União de Escritores


Angolanos (UEA), membro da União Nacional dos
Artistas Plásticos (UNAP) e da International Writers
and Artists Association (IWAA), nasceu a 17 de Feve-
reiro de 1959, em Benguela e faleceu em 2018. Poe-
ta, jornalista, fotógrafo e artista plástico, Frederico
Ningi concluíu os estudos liceais na sua cidade natal,
Benguela e matriculou-se, na cidade de Lobito, no
Instituto Médio de Educação. Mais tarde, passou a vi-
ver em Luanda onde, dando continuidade à formação na área do Desporto, se ma-
triculou no Instituto Médio de Educação Física. Contudo, a paixão pelo jornalismo
levou-o a frequentar o Curso Médio de Jornalismo no Instituto Karl Marx - Maka-
renko, cuja área de formação lhe abriu as portas para o cargo de assistente de co-
municação e imagem da Sonangol Aeronáutica. Com uma atividade diversificada,
colaborou, não só como jornalista, mas também como fotógrafo e mesmo como
artista plástico, na página cultural do Jornal de Angola e nos programas lúdico/
culturais da Televisão Popular de Angola (TPA), aqui aliás como redactor principal
nesta área. Poeta da geração de 80, geração das incertezas, a sua poesia, fruto de
um postura iconoclasta, é caracterizada por um permanente jogo de letras e de
palavras desestruturadoras da norma do português, de que são exemplo, o uso de
maiúsculas em determinados pontos das palavras e a presença de vocábulos das
línguas nacionais. Através desta poesia, assim como de toda a sua actividade ar-
tística, Frederico Ningi entra em roptura com as estéticas tradicionais e através de
um “eu lírico” “melancolérico”, assume a melancolia não como forma de se evadir
da realidade quotidiana que o envolve mas sim como forma de se indignar contra
ela. Artista plástico reconhecido, o seu nome integra o “Catálogo Internacional de
Artistas Contemporâneos Africanos”, publicado em França. São seus os seguintes
livros: Os Címbalos dos Mudos (1994) - poesia; e Infindos nas Ondas (1998).

ANTÓNIO PANGUILA (1963 – 2018)


António Francisco Panguila, nasceu em Luanda,
aos 25 de julho de 1963 e faleceu em 2018. Membro
da União dos Escritores Angolanos, poeta, era licen-
ciado em Ciências de Educação, na especialidade de
História, pelo ISCED-UAN, Universidade Agostinho
Neto, tendo apresentado a tese intitulada “Impac-
to Histórico-Literário do Ohandanji, 1984/1994”. Foi
durante algum tempo professor do ensino secundá-
rio. Posteriormente foi funcionário bancário. Na dé-
cada de 80 pertenceu ao grupo literário OHANDAN-
JI, além de ter sido membro da Brigada Jovem de Literatura de Luanda.

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Obituário

Foi vencedor, em 1996, da primeira edição do Prémio Literário de Poesia Cidade


de Luanda, por ocasião das comemorações do 420.º aniversário da capital de Angola.
Os seus textos estão publicados em jornais e revistas nacionais e estrangeiras,
nomeadamente, na Revista Novembro, Jornal de Angola, Suplemento “Domingo”
, de Maputo,Moçambique, e Revista Cassendo, da Associação Angola-Portugal.
Fez parte do coletivo literário “ohandanji”, formado pelo grupo de jovens poe-
tas revelados pelo suplemento cultural do Jornal de Angola, e na gazeta Lavra e
Oficina da UEA e que, mais tarde, publicaram uma coleção policopiada intitulada
“Katetebula/Semi-breve”. António Panguile, deixa um legado literário constituí-
do pelas obras “Vento do Prato” (1993), “Amor Mendigo” (1997), “Agostinho Neto:
Libertador e Homem de Cultura” (2003) e “Corpo Molhado de Prazer” (2011). Está
representado, entre outras, nas coletâneas “No Caminho Doloroso das Coisas -
Antologia de Jovens Poetas Africanos” e “Sinais de Aurora”.
É um poeta que exibe o domínio de alguns recursos peculiares, destacando-se
a recorrência da repetição e da aliteração. Os seus textos trazem a marca caracte-
rística da brevidade e são de um modo geral curtos, do ponto de vista estrutural.

JAKA JAMBA (1949-2018)

Político, diplomata e homem de cultura, membro


fundador da Academia Angolana de Letras, Alme-
rindo Jaka Jamba nasceu na Missão Evangélica do
Dondi, Katchiungo, Huambo, no dia 21 de Março de
1949 e faleceu em 2018. Iniciou os seus estudos na
Escola Primária de Cachilengue, Katchiungo, e com-
pletou-os num colégio privado do Chunguar, Bié. Co-
meçou os estudos secundários no Colégio Teresiano
de Nossa Senhora de Fátima na então Bela Vista,
actualKatchiungo (Província do Huambo); prosseguiu-os no Instituto Currie da
Missão Evangélica do Dondi; e terminou-os no Liceu Nacional Norton de Matos
(Huambo). Após os estudos secundários, seguiu para Portugal a fim de prosse-
guir a sua formação académica. Em Portugal, fez a sua licenciatura em Filosofia
e a agregação em Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras da Universidade
Clássica de Lisboa. Para fugir ao ambiente de repressão protagonizado pelo en-
tão regime colonial fascista de Portugal, refugiou-se na Suíça.Fez a pós-gradua-
ção em Filosofia e um Certificado do Curso de Língua e Civilização Francesas na
Faculdade de Letras da Universidade de Genebra (Suíça).Obteve o diploma do
Programa Internacional Avançado sobre Resolução de Conflitos na Universidade
de Uppsala (Suécia). Fez mestrado do 3º Ciclo de Estudos Diplomáticos Superio-
res pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Paris (França).
Jaka Jamba foi professor na Escola Técnica do Seixal e no Liceu Nacional de
Oeiras, em Portugal, professor de filosofia na Faculdade de Ciências Sociais e na
Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto (UAN) e no Instituto Su-
perior de Ciências Sociais e Relações Internacionais (CIS), de Luanda onde era
Coordenador do Curso de Sociologia e Coordenador do Curso de Relações Inter-
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nacionais, Direito e Ciência Política. Nessa Instituição, foi também Assessor da


Direcção Geral para a Área de Avaliação, Normalização e Controle Institucional.
Entre 1997 e 2005, Jaka Jamba desempenhou uma das vice-presidências da As-
sembleia Nacional de Angola e de 2005 a 2008, foi Embaixador Delegado Perma-
nente da República de Angola junto à UNESCO.
Antes de sua morte, actuava como professor da Universidade Agostinho Neto
e como deputado na Assembleia Nacional, pertencente à 6ª Comissão do Parla-
mento angolano, que responde pelos assuntos da Saúde, Educação, Ensino Su-
perior, Ciência e Tecnologia.

BETO VAN-DÚNEM (1935 – 2020)


Carlos Alberto Pereira dos Santos Van-Dúnem,
Beto Van-Dúnem, membro fundador da União dos
Escritores Angolanos e da Academia Angolana de
Letras, nasceu em Luanda a 28 de Junho de 1935 e
faleceu em 2020. Foi um nacionalista convicto que
começou a trabalhar na clandestinidade ainda antes
do início da Luta de Libertação Nacional. Foi um dos
integrantes do histórico “Processo dos 50”, referen-
te aos nacionalistas presos no conjunto de três pro-
cessos políticos iniciados a 29 de Março de 1959 e terminado a 24 de Agosto do
mesmo ano. Foi Ministro do Comércio entre 1978 e 1981 e deputado à Assembleia
Nacional. A sua morte representou um prejuízo na preservação da história e da
memória colectiva ligada à luta que conduziu ao nascimento de Angola enquanto
pais livre e soberano. Publicou 22 poemas para o 29 de Março (2000).

ANTÓNIO GONÇALVES (1960-2020)


Poeta e escritor angolano, António Domingos
Gonçalves, membro da União dos Escritores Ango-
lanos de que foi Secretário-Geral de 1994 a 2001,
membro da Brigada Jovem de Literatura (BJL) em
1980, nasceu a 10 de agosto de 1960, em Luanda e
faleceu em 2020. Tendo concluído um curso pré-uni-
versitário da área das ciências físicas, matriculou-se
na Faculdade de Ciências e de Engenharia da Uni-
versidade Agostinho Neto, o que lhe abriu as por-
tas da docência. Foi adido cultural na Embaixada de Angola em Cuba. António
Gonçalves começou a escrever em 1973, tendo concluído o seu primeiro livro de
prosa em 1978, intitulado Cenas que o Musseke conhece (inédita).Escreveu ain-
da: Gemido de Pedra (1994); Versos Libertinos (1995); Adobe Vermelho da Terra
(1996) , Buscando o Homem: Antologia Poética (2000), Transparências, As Vozes
do Caminho, El Sétimo Camino e Umbral de Transmutações (2009) (edição bilin-
gue: Português e Espanhol). Poeta conceituado, o seu nome figura em diversas
231
Obituário

antologias poéticas. A poética de António Gonçalves, poeta da “Geração de 80”,


faz “jus” à denominação de “Geração das Incertezas”, este grupo de jovens escri-
tores que começaram a publicar os seus textos a partir de 1980, perpassados por
uma temática dominada pela incerteza face ao futuro, projectada através de um
“eu lírico” insatisfeito e desiludido.

ARLINDO BARBEITOS (1940 – 2021)


Arlindo do Carmo Pires Barbeitos, membro fun-
dador da União dos Escritores Angolanos e membro
fundador da Academia Angolana de Letras, consi-
derado como integrante da geração dos anos 1970,
com colaboração dispersa em vários jornais e revis-
tas angolanas, portuguesas e outras, nasceu em Ca-
tete, Ícolo e Bengo, em 1940 e faleceu 2021.
Passou a sua infância entre Catete e o Dondo, fez
os estudos primários e secundários em Luanda. Em
1961, foi obrigado a fugir do país devido à perseguição política. Fez faculdade na
Europa, onde cursou Antropologia e Sociologia na Universidade de Frankfurt, na
Alemanha. Depois de dez anos emigrado na Europa, regressou em 1971 a Angola
integrado na Luta de Libertação Nacional. Em 1973, de volta à Europa, dedicou-se
a um doutoramento em Etnologia na Alemanha, enquanto desempenhava fun-
ções de assistente no Instituto de Etnologia da Universidade de Berlim Ocidental.
Em 1975, após a independência, Arlindo Barbeitos regressou ao país, onde veio a
ser professor universitário.
A sua poesia tem reminiscências da poética tradicional africana, de tradição
oral, e das poesias chinesa e japonesa. Usou a poesia como instrumento de liber-
tação, pela densidade do verso e a força da palavra. Os seus motivos maiores de
inspiração são a experiência do exílio, a situação colonial e a luta pela independên-
cia. É autor de várias obras, dentre as quais Angola Angolê Angolema; Nzoji (So-
nho); O Rio, Estórias de Regresso; Fiapos de Sonho; Na Leveza do Luar Crescente;
Sociedade, Estado, Sociedade Civil, Cidadão e Identidade em Angola e Angola -
Portugal / representações de si e de outrem ou o jogo equívoco das identidades.

ROSÁRIA DA SILVA (1959- 2022)


Rosária da Silva, membro da União dos Escritores
Angolanos, nasceu em 4 de abril de 1959 no Golun-
go Alto, na província do Cuanza Norte, e faleceu em
2022. Romancista, cronista, poetisa e declamadora,
professora de profissão, licenciou-se em Linguística
(português), pelo Instituto Superior de Ciências de
Educação (ISCED), em Luanda e fez Mestrado na
mesma área no ISCE de Odivelas.
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Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Foi colaboradora do Suplemento “Vida e Cultura” do Jornal de Angola nos


anos 1980/ 90 e do jornal “Kilamba”, no Lobito, destacando-se ainda na pu-
blicação de poemas e artigos na página “Cultura e Mulher”.
Em 1984, ingressou nas fileiras da Brigada Juvenil de Literatura “Manuel Van-
-Dúnem”, no Lobito e, como cantora, compositora, ingressou na União dos Artis-
tas e Compositores de Angola (UNAC), em 1988.
Rosária da Silva dedicou-se à literatura dramática, tendo escrito as peças tea-
trais “A falta de casas”, “Conflitos” e “Ilusão”, as duas últimas levadas ao palco
pelo Grupo teatral do Centro Cultural “Rei Mandume”, no Lobito.
Em Fevereiro de 1999, publicou o seu primeiro romance, intitulado “Totonya”,
que recebera menção honrosa no “Prémio Literário António Jacinto” (1996), tor-
nando-se, nessa altura, na primeira romancista da historiografia da literatura fei-
ta na Angola independente.
Foi directora provincial da Comunicação Social na província do Cuanza-Norte e
editora executiva do mensário regional “Kilombo – Kwanza-Norte Actualidade”.

ANTÓNIO FERNANDES DA COSTA (1942-2022)


Membro Fundador da Academia Angolana de Le-
tras, faleceu a 2 de Março de 2022, na Clínica Sagra-
da Esperança, em Luanda, vítima de doença, aos 79
anos de idade. O Prof. Dr. António Fernandes da Cos-
ta, linguista, Professor Catedrático e ilustre mestre
de várias gerações, iniciou a sua carreira docente em
Malanje, sua terra natal, tendo desempenhado a fun-
ção de Reitor do Liceu daquela localidade, nos anos
1974/75. Fundador da Faculdade de Letras da Univer-
sidade Católica de Angola, foi seu Decano entre 2003 e 2017, tendo sido nomeado
em 2020 director da Cátedra de Língua Portuguesa, uma unidade orgânica voca-
cionada ao estudo e divulgação da língua portuguesa. Destacado intelectual an-
golano, António Fernandes da Costa destacou-se na sua rica carreira de docente
e investigador pela paixão na partilha do saber, deixando vasta obra de consulta
obrigatória, particularmente sobre a normatividade da língua portuguesa.

DARIO DE MELO (1935-2022)


Nascido a 2 de Dezembro de 1935 em Benguela,
faleceu a 5 de Junho de 2022, na sua cidade natal,
vítima de doença, aos 85 anos, o poeta, romancis-
ta, contista e jornalista Dario de Melo, homem de
cultura que se desdobrou em muitos papéis desde
a cultura ao jornalismo entre outros. Homem das
letras e um dos impulsionadores da literatura infan-
til angolana e do Jardim do Livro Infantil, Dario de
Melo foi editor no Instituto Nacional do Livro e do
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Obituário

Disco, professor, inspector escolar, radialista, jornalista, funcionário do Minis-


tério da Informação, tendo exercido de 1992 a 1994 a função de Presidente da
Mesa da Assembleia-Geral da UEA.
Dario de Melo tem as suas impressões digitais no movimento da literatura
e canção infantil nos primeiros anos da independència. Na literatura infantil,
dos seua mais de 18 títulos publicados, destacam-se Estórias do Leão Velho
(1985), Vou Contar (1988), Aqui, mas do Outro Lado (2000) e As Sete Vidas de
um Gato(2002), com o qual obteve o prémio PALOP 98 de Língua Portuguesa de
Literatura Infantil.
Enquanto jornalista, trabalhou na rádio, foi director da Voz do Bié, em 1972, da
Tveja (Revista de Televisão Pública de Angola), em 1983, do Jornal de Angola e
do Correio da Semana (que fundou juntamente com Manuel Dionísio), em 1991,
e do Jornal Jango, em 1992. Também publicou diversos artigos na imprensa. Da-
rio de Melo integrou o pequeno leque de escritores angolanos que se dedicaram
à literatura infantil, nascida nos primeiros anos da independência, sendo assim
considerado um dos pais da literatura infantil angolana. O escritor Dario de Melo
foi homenageado pela Academia Angolana de Letras, com uma conferência que
o próprio proferiu sobre a sua vida e obra, no dia 1 de Julho de 2021.

OCTAVIANO CORREIA (1940-2022)

Faleceu a 6 de Outubro, de 2022, em Luanda, víti-


ma de doença, aos 82 anos de idade.
Octaviano Correia, mui digno cultor da palavra,
nasceu aos 25 de Fevereiro de 1940, no Lubango,
cidade onde começou a sua rica carreira radiofónica
pelo Rádio Clube da Huíla, fazendo programas para
crianças e estendendo-se depois para a Rádio Nacio-
nal de Angola. Aqui, a partir de 1976, formou repór-
teres e artistas piôs e destacou-se como realizador
dos programas “Rádio Piô”, “Onda da Manhã” e da rubrica literária semanal “Boa
Noite – Boa Leitura”.
Membro fundador da União dos Escritores Angolanos (1975), da Associação
dos Escritores da Madeira (1989) e da Academia Angolana de Letras (2016), Oc-
taviano Correia foi jornalista profissional desde 1976, Secretário para as Activida-
des Culturais da União dos Escritores Angolanos e editor da Gazeta Lavra & Ofi-
cina. Para além de ter exercido o cargo de Director do Instituto Nacional do Livro
e do Disco, Octaviano Correia editou centenas de obras literárias de membros
da União dos Escritores Angolanos e publicou mais de uma dezena de livros. Foi
Vice-Presidente da Mesa da Assembleia-geral da Academia Angolana de Letras.

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Normas Editoriais

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Normas Editoriais da Revista Academia

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Os textos a publicar na revista devem incluir o seguinte:
a) Título (na língua do texto, em português e em inglês);
b) Nome, local de trabalho e e-mail do(s) autor(es)1;
c) Resumo (na língua utilizada no texto, em português e em inglês), com até
1.000 caracteres incluindo espaços;
d) Palavras-chave, na língua do texto, em português e inglês (até 6 palavras);
e) Texto do artigo (segundo as presentes normas editoriais);
f) Nota bio-bibliográfica do(s) autor(es)2.

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pretende enquadrá-los, sendo encaminhados em formato digital para o Editor
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abaixo, sob o risco de não serem aceites pelo Editor.
A partir do momento em que o Editor comprove estarem respeitadas as nor-
mas de redacção, o texto é encaminhado para dois investigadores (anónimos
para o autor e para os próprios), que se pronunciam individualmente sobre a per-
tinência e secção de publicação do texto. O pronunciamento inclui a avaliação
quantitativa do artigo, numa escala de 0 a 100 pontos. Esta decisão é tomada em
impresso próprio e expressa de forma escrita junto do Editor. Compete ao Editor
da revista tomar a decisão final, com base nas avaliações dos referees. A decisão é
comunicada ao(s) autor(es) pelo Editor, com a devida fundamentação, sem men-
ção aos nomes dos referees.
Um texto apresentado para publicação pode ser revisto pelo(s) autor(es) ape-
nas uma vez, caso a opinião dos referees e do Editor assim aconselhe.

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em língua portuguesa. Podem ser aceites textos em língua espanhola, francesa
ou inglesa. No que respeita ao noticiário, podem também ser utilizadas línguas
nacionais angolanas.
Admite-se a publicação de textos inéditos e a tradução de textos publicados

1
Havendo mais de um autor, deve mencionar-se em primeiro lugar o autor principal.
2
Incluir relação com a Academia Angolana de Letras, profissão, maior grau académico concluído,
universidade onde o concluiu, categoria ocupacional, local de trabalho, áreas de investigação, princi-
pais livros de que é autor(a) ou co-autor(a).
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Normas Editoriais

noutras línguas.
Cada texto pode ter até quatro autores, ordenados segundo o critério que es-
tes considerem ser de utilizar. Em relação ao autor ou ao primeiro de vários auto-
res, deve ser mencionado o correio electrónico.
Cada artigo ou notícia a ser submetido deve ser redigido a 1,5 espaço, em letra
Times New Roman tamanho 12. Já o título deve estar em caracteres negritados,
tamanho 16. Os artigos devem estar preferencialmente divididos em secções ou
itens, com títulos negritados em tamanho 14. Devem evitar-se sub-itens.
As notas de rodapé devem estar indicadas na própria página, em caracteres
tamanho 10.

Referências bibliográficas no texto

A revista Academia adopta as normas editoriais da Revista Angolana de


Sociologia.
As referências bibliográficas devem preferencialmente ser indicadas no texto,
da seguinte forma:
[Weber 1946]
[Weber 1946: 184]
[Weber 1946: 182-189]
[Weber 1946: 184, 187-188]
[apud Weber 1946: 185-186, 189-193]
[Weber 1946, Castel 2000]
[cf. Weber 1946: 183-184, Castel 2000: 24-28]
Sendo citado o nome do autor no texto, eis como devem ser apresentadas as
referências bibliográficas:
“De acordo com Weber [1946: 182-189], …”
“De acordo com Max Weber [1946: 182-189], …”
Para as referências de mais de um autor, eis alguns exemplos com recomen-
dações:
[Born & Lionti 1996]
[Born & Lionti 1996: 14-35]
[Vala et al. 1999]
[Vala et al. 1999: 49-67]

Lista bibliográfica

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A lista bibliográfica deve estar indicada no final do artigo ou da notícia, de


acordo com as indicações apresentadas nos exemplos a seguir (um autor, dois ou
mais autores; livros, artigos em livro, revistas; draft, comunicação).
WEBER, Max
1983: Fundamentos da Sociologia, Porto: Rés
1946: “Class, Status and Party”, in: H.H. Gerth & C. W. Mills (orgs.) From
Max Weber: Essays in Sociology, Nova Iorque: Oxford University Press, pp.
180-195
BORN, Michel & Anne-Marie LIONTI
1996: Familles pauvres et intervention en Réseau, Paris: L’Harmattan
VALA, Jorge; Rodrigo BRITO & Dinis LOPES
1999: Expressões dos racismos em Portugal, Lisboa: Instituto de Ciên-
cias Sociais da Universidade de Lisboa
CASTEL, Robert
2000: “A Precaridade: transformações históricas e tratamento social”,
in: M. Soulet (org.) Da Não-Integração. Tentativas de definição teórica de
um problema social contemporâneo, Coimbra: Quarteto Editora, pp. 21-38
DAVIS, Kingsley & MOORE, Wilbert
1945: “Some Principles of Stratification”, American Sociological Review,
vol. 10 (2), pp. 242-249
CEITA, Camilo
1999: O papel da mulher na sociedade angolana, Luanda (draft)
2001: “Caracterização da Pobreza em Angola. Perfil da pobreza 2000,
Dados preliminares”, comunicação apresentada ao Seminário sobre Polí-
ticas Sociais, Luanda
Luanda, 1 de Novembro de 2022.

263
Livros

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bém chamado, sob outras perspecti-


vas - que não vamos discutir aqui de
paciente ou de cliente).
Nesta perspectiva, é meritória a
obra que a Doutora Ana Pita Grós vem
compartilhar, motivada pela “falta de
comunicação entre os pacientes que
falam a língua Kimbundu e os médi-
cos que falam a língua Portuguesa”
(mas interessando igualmente ao
enfermeiro em meio rural e ainda ao
promotor e ao “ADECO”), tendo in-
vestigado a caracterização sociolín-
guístíca prevalecente na Província do
Bengo focalizando-se na lexicografia
bilingue (isto é, como equiparar pa-
lavras, expressões e metáforas que
têm a ver com saúde - e doença - en-
tre a língua nacional Kimbundu e Por-
tuguês, a língua oficial, que judicio-
samente designa “O Português em
PREFÁCIO Angola”), para terminar propondo
um modelo de e-dicionário que possa
facilitar a comunicação nessa “língua
“Mulundu ni mulundu kalisange,
especializada” que pode ser ao mes-
muthu ni muthu alisanga”.
mo tempo uma língua segunda.
A comunicação é inerente à vida,
mais do que muitas vezes imagina- É recomendação mundial que os
mos. Desde o funcionamento de cada povos - por diversas razões - promo-
célula e de cada organismo, passando vam, divulguem e preservem as suas
pela interacção entre pessoas, até ao línguas e, especificamente na região
funcionamento das organizações e à Africana, os Países são desafiados ao
vida em sociedade.zudo depende da desenvolvimento de terminologias
(boa) comunicação. Daí que os erros científicas nas suas próprias línguas,
de comunicação tenham frequente- permitindo a evolução de “línguas de
mente efeitos indesejados e mesmo especialidade” que facilitem a apren-
lesivos ou fatais, a todos esses níveis. dizagem e a comunicação no mundo
Começando pela língua e pela(s) moderno, sem pôr em causa a histó-
linguagem(ens), é obrigatório ga- ria e a identidade cultural de cada um.
rantir o sucesso da comunicação en- Aliás, a defesa das línguas Africanas de
tre pessoas, por maioria de razão Angola, coexistindo com o Português,
quando está em jogo a vida, o bem não é diferente da luta dos luso-falan-
-estar e a tranquilidade como ocor- tes para a preservação da sua língua
re na interacção entre o profissional e interesses inclusivamente corpori-
de saúde e o doente ou mero utente zada na criação da Comunidade dos
do serviço de saúde (às vezes tam- Países de Língua Portuguesa - CPLP)
265
Livros

no mundo globalizado dominado pela obra, é caracterizada a situação so-


língua Inglesa (e, onde se afirma cada ciolinguística de Angola (e do Bengo,
vez mais o Mandarim, para não falar em particular), a língua Kimbundu, as
de outras línguas de grande expansão, metáforas em saúde (existentes em
bem conhecidas). Por tuguês e também em Kimbundu),
No caso das línguas Kimbundu e as “línguas de especialidade” (particu-
Português, que há muito convivem e larizando na saúde) destacando a sua
interagem nas mesmas geografias, terminologia, lexicologia e lexicogra-
têm havido “empréstimos lexícais” fia, os princípios teóricos da lexico-
nos dois sentidos, dos quais a autora grafia bilingue e, last but not Least,
destaca os “kimbundismos” com con- as bases e modelo para a elaboração
sequências (e imprecisões) na fala e na do almejado dicionário (Capítulo VII,
escrita, e nós nos permitimos mencio- que os interessados poderão ler em
nar os numerosos “portuguesísmos” primeiro lugar como forma de “abrir o
que o Kimbundu vem incorporando, apetite” e melhor enquadrar os capí-
principalmente no Português falado tulos anteriores).
em meio urbano. Entre as recomendações (que a
Nesse quadro complexo e dinâmi- obra inclui no VIII Capítulo intitulado
co, a autora propôs-se o estudo lexi- Con clusões) inclui-se a proposta de
cal da língua Kimbundu e a organiza- que, citamos “Os concursos de ad-
ção de um corpus bilingue Português/ missão a cargos públicos para profes-
Kimbun du (designado CORSAÚDE), sores, enfermeiros, funcionários pú-
visando a produção de um dicionário blicos a nível local e municipal, e para
interactivo no domínio da Saúde e dos administradores a nível de comunas
seus Cuidados Primários, focalizado e de municípios, principalmente nas
na terminologia da Anatomia e da Fi- zonas rurais, devem prever, entre
siologia Humanas (mas que não pode os requisitos exigidos, o domínio de
ignorar a Higiene, as Ciências Sociais e pelo menos uma das línguas Nacio-
as Ciências Humanas). Esse “E-Dicio- nais locais”.
nário de Língua de Especialidade em Essa ideia recorda-nos que no pro-
Saúde” recorrerá às novas tecnologias jecto de reforma do curso de Medici-
de informação e comunicação (nTIC), na (Faculdade de Medicina da UAN,
para disponíbilizar um site na Internet 2009), havíamos debatido que os mé-
que permitirá a pesquisa e a consul- dicos, para além da proficiência em
ta on-Line, inclusivamente durante o Português e em Inglês (neste último
processo assistencial, através dos dis- caso por necessidade de aprendiza-
positivos mais apropriados. gem e actualização permanentes,
Alicerçado numa sólida revisão bi- produção cíennnca e comunicação
bliográfica que suporta um estudo no mundo globalizado - ou glocaliza-
empírico (envolvendo médicos, enfer- do, como preferem alguns), deveriam
meiros, promotores de saúde e doen- também saber comunicar na língua
tes) a autora recolheu e identificou prevalente na sua região de exercício
termos médicos “até agora nunca ou duradouro ou permanente.
mal dicionarizados”. A nossa geografia humana, no en-
Ao longo de sete capítulos, devida- tanto, coloca nos ° desafio acresci-
mente apresentados na Introdução da do de lidarmos no Bengo, como em
266
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

Luanda e noutras Províncias, com a


coexistência de diversas línguas Na-
cionais que foram migrando parale-
lamente aos movi mentos populacio-
nais exacerbados nas últimas cinco
décadas. Por outro lado, a formação
linguística pressupõe uma programa-
ção, organização e recursos que de-
vem ser mobilizados.
Mas essas são outras questões ou
desafios ... que a própria autora im-
plicitamente reconhece ao afirmar
que “O nosso estudo não foi exaus-
tivo, porque constitui uma primeira
abordagem”.
Felicitamos a Doutora Ana Pita Grós
pela obra que nos deixa e pelo seu en-
corajamento para que outros possam
continuar c diversificar a “Protecção e
Valorização das Línguas Nacionais An- PREFÁCIO
golanas de Origem Africana” de que
esta obra foi mais um marco, promo- Saudações cordiais, caros leitores!
vendo a nossa identidade, a Cultura
É com grande honra que vou prefaciar
1 acional (ou as Culturas Nacionais) e
esta rica obra. Trata-se de um trabalho
uma boa comunicação em Saúde, tão
cujo autor é o jovem jornalista Isidro
importante para o desenvolvimento
Pahula Mukunda, a quem agradeço
humano que aspiramos em Angola.
por me ter preferido prefaciá-la.
Estamos certos que os leitores vão
A obra em suas mãos é muito inte-
apreciar este te.xto tão qualificado,
ressante e actuante, porque contém
relevante e agradável e não deixarão
de “cobrar”, com muita expectativa, elementos que auxiliam, não somente
o pro metido E Dicionário Kirnbundu os falantes de Olunkumbi, mas para
Português da Saúde. todos os interessados, pois o autor,
por um lado, quer alertar o uso des-
Saudamos esta gestação da Ani-
necessário de estrangeirismos, pois,
nhas, a cumplicidade dos leitores e
estes podem levar a língua ao criolis-
o au gurado apoio de todos quarãos
mo ou ao seu desaparecimento; por
queiram proteger esta iniciativa e pro-
outro, ajudar a suprir a grande neces-
jectos congéneres.
sidade sentida hoje no seio do povo
Ovankumbi, bem como, na comuni-
BEM HAJAM! cação do publico em geral com este
MÁRIO FRESTA povo, de modo particular os acadé-
micos, alfabetizadores, professores,
enfermeiros, agentes de pastoral,
missionários, as ONG’s dentre outros
sectores, porque ela em boa parte
267
Livros

das suas páginas apresenta exemplos frequentes e considerações finais.


claros sobre elementos gramaticais Kovanongo, aniti omumati Isidro
em Olunkumbi e Português. (...). Pahula Mukunda, waongaonkan-
o autor desta obra participou du- deka aila onwe aíkevela opo iwake
rante os anos 2014 a 2019 no estudo e nokuhawata, ou seja, aos entendidos
tradução das Sagradas Escrituras em na matéria, eis aqui o grande trabalho,
Olunkumbi, desenvolvido pela Socie- que permite debates, cujos resultados
dade Bíblica de Angola, daí o incenti- serão apresentados à comunidade
vo deste trabalho em linhas articula- científica mokonda «Utomba ukwa-
das, que oferece ao público leitor um tako»!
contributo para correcção de algumas Parabéns ao autor, por ter oferecido
anomalias, que se têm constatado, aos leitores, um trabalho que facilita o
colaborando assim no resgate do pa- conhecimento das regras gramaticais
trimónio de todos nós. A mesma re- da nossa Língua.
presenta o esforço para divulgar junto
dos nossos jovens, homens e mulhe- Aos amantes do saber, bem haja!
res do amanhã, o espírito de valori- Ondjiva, Abril de 2021
zação e o cuidado para com as nossas
Com as bênçãos e amizade,
línguas, porque a língua além de ser
Mateus Mutindi Salornão
veículo de comunicação e de concep-
tualização, ela é por excelência um
factor de distinção étnica e símbolo de
identidade cultural. Elaka Lyctu é a ex-
pressão que intitula esta obra, signifi-
cando em Português “Nossa Língua”,
para dizer que esta Língua é de todos
nós. Não somente Ovankumbi, mas
todos os angolanos, africanos e os de
outras partes do mundo, desde que
queiram aprendê-la. A obra apresenta
a seguinte estrutura:
O capítulo I dedica-se à alfabetiza-
ção empregando a nova ortografia,
resultante do esforço conjunto de uni-
ficação da escrita de línguas angola-
nas de origem bantu; o capítulo Il traz
subsídios gramaticais em Olunkurnbi
e Português; o capítulo III fala sobre
a tradução de expressões idiomáticas
e nomes prórios; o capítulo IV apre-
senta noções básicas de conjugação
de verbos em Olunkumbi; o capitulo
V trata de números e cálculos; o capí-
tulo VI trata da medição do tempo em
Olunkumbi; o capítulo VII trata do vo-
cabulário c tradução de palavras mais
268
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

como refere neste seu trabalho, mui-


tos, de entre nós, já vão sendo poucos
os que ainda guardam, no recôndito das
suas lembranças, o que a idade longeva
lhes permite transcrever com a habilida-
de necessária e historicamente credível.
Infelizmente, é o que temos verifi-
cado nas entrevistas radiofónícas ou
televisívas a alguns dos camaradas
“históricos”, ficando-se com a impres-
são de que muitas das suas lembran-
ças se confundem com outras ou são
mesmo inventadas. Mas, pese embo-
ra as falhas de memória, essas entre-
vistas têm sido interessantes e úteis,
servindo, apesar disso e por isso,
como eventuais “tijolos” para a histo-
riografia da luta.
Para este Léxico, Mbeto Traça fez
muita investigação como podemos
ver na lista bibliográfica que publica
PREFÂCIO no fim do livro. E diz que não tem a
pretensão de ser historiador: talvez
DEPOIS DE DO EPLA ÀS FAPLA: não o seja, segundo os cânones. No
APONTAMENTOS PARA A HIS- entanto, com este livro ele fez investi-
T6RIA DAS FORÇAS ARMADAS DE gação, historiou, escreveu pedaços da
ANGOLA, Mbeto Traça achou ne- nossa história e da de outros por nes-
cessário um léxico, um dicionário sas lutas de libertação nacional terem
que contivesse tudo, ou pelo menos participado de uma forma ou de outra.
o maior número de acontecimentos, Mas, para os ainda sobrevivos dessa
factos e autores dírectos, indirectos que foi a heróica gesta da luta contra
ou casuais que viveram e combate- o poder colonial, este oportuno léxico
ram contra a ocupação colonial por- que Mbeto nos proporciona vem avi-
tuguesa no contexto envolvente de var-nos, a mim de certeza, memórias
confrontação ideológica mundial e o no que se refere aos camaradas com
seu corolárío, a “guerra”. quem, naqueles tempos, vivemos e
Para escrever o Léxico da Luta de convivemos e que já os tínhamos in me-
Libertação Nacional, Mbeto recorreu moriam, alguns até já esquecidos. Este
às memórias, escritas ou verbais, de desenrolar exaustivo de nomes de re-
muitos dos camaradas do seu partido, gisto civil e de “guerra” dos combaten-
o MPLA, como também de outros par- tes, de factos históricos mundiais mais
tidos angolanos “rivais” e dos partidos marcantes, suas causas, seus principais
e movimentos que lutaram, um pouco protagonistas, sua cronologia, colo-
por todo o mundo, pela e para as res- cam-nos no que foi o panorama geo-
pectivas e diversas independências. E gráfico, político e ideológico do nosso
tempo aquando do nosso engajamento
269
Livros

nessa maravilhosa aventura que foi a


luta armada e clandestina para nos li-
bertarmos do jugo colonial.
No seu texto e no Léxico, Mbeto Tra-
ça lembra-nos que não foi só o Exérci-
to português que enfrentámos: outros
protagonistas fizeram parte do nosso
“IN” (inimigo): a PIDE/DGS; o efectivo
angolano de recrutamento local, tais
como os famigerados TE (Tropas Espe-
ciais), GE (Grupos Especiais), os Flechas
(composta por kamussequeles - hote-
tontes), os “Fiéis” e os “Leais”; todos
chegaram a ser 57% do efectivo que
nos combatia. E isso por a “metrópole”
ter começado a exaurir-se no que dizia
à capacidade humana e financeira para
fazer face à guerra colonial, guerra essa
que os guerrilheiros sabiam “ser longa
e alongada”, mas com a certeza de que
viriam a ganhá-la, o que veio a aconte-
cer volvidos que foram 14 anos de luta
árdua, de sacrifício, de abnegação, de
PREFÁCIO
comprometimento e de altos e baixos
que os guerrilheiros, seus comandan-
tes e dirigentes levaram às tréguas na
chana do Lunyameje e à chegada triun-
fal, apoteótica, de Agostinho Neto ao
aeroporto de Luanda, e à independên-
ZACARIAS KAMWENHO
cia, no dia 11 de Novembro de 1975.
(Arcebispo Emérito do Lubango)
Bem hajas, Mbeto, meu camara-
da e companheiro de luta, por mais
este teu árduo trabalho de investi- O SÁBIO E O BAÚ
gação historiográfica que, como evi-
dencias, deve e vai ser, seguramente, «Todo o doutor da Lei
incorporado a outras memórias que instruído acerca do reino
emirjam de muitos dos que ainda é semelhante a um pai de família,
vamos estando por cá e aqui. que tira coisas novas e velhas
do seu baú.» (cf. Mt 13:52)
Luanda, 18 de Fevereiro de0 2020
Mário Afonso d’Alrneida “Kasesa”

270
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

A FAMÍLIA DE MAURÍCIO FRAN- (Carta Apostólica Africae Terrarum,


CISCO CAETANO «Mafrano» em- 1967)
preendeu uma nobre tarefa que é a
de recolher os textos dispersos por Esta afirmação é retomada quase ipsis
jornais e arquivos privados e públicos verbis pelo Decreto Ad Gentes (AG)1 do
deste homem que, na minha óptica, Concílio Vaticano Il, decreto que aguar-
foi um angolano íntegro, nacionalista dávamos com ansiedade que trouxes-
transparente, investigador da nossa se a tão desejada lufada de ar fresco ao
cultura e escritor linear sobre assuntos processo de Evangelização, já que, diria
da antropologia cultural. o mesmo Pontífice: «uma Evangelização
Não se trata de uma operação nos- que não atinja a cultura de um povo, é
tálgica, mas de uma aportação ne- uma decoração superfícíal2.
cessária ao tecido cultural nacional Na qualidade de um mais-velho que
que, afinal, interessa a todos nós que lidou com «Mafrano», exprimo aqui o
deveríamos colaborar na preservação meu júbilo por este primeiro volume
dos valores veiculados pelas diversas e os subsequentes sobre o perfil de
subculturas do nosso país. «Mafrano- e os seus escritos antropoló-
Pessoalmente, saudei a iniciativa, gicos. Gostaria também de dizer à famí-
e, agradeço a oportunidade de fazê-lo lia, «Bem-haja», por esta iniciativa que a
publicamente, pois, como dizia o filó- todos nos permitirá experimentar aque-
sofo Terêncio, «tudo o que é humano la alegria da mulher descrita no Evan-
me pertence»; no caso, tudo o que é gelho de S. Lucas ao reunir as amigas e
formulado sobre o génio Kimbundu os amigos para dizer-lhes: «alegrai-vos
faz parte de mim que sou Umbundo. comigo porque encontrei a dracma que
tinha perdido.» (d. Lc 15:8-9).
II
III
O Papa Paulo VI - hoje, S. Paulo VI Vou resumir em quatro pontos o meu
- denominado, «O Papa de África», singelo e profundo reco-
numa das suas mensagens ao conti- nhecimento a Maurício Francisco
nente africano, disse: Caetano:
MAURÍCIO E O CONCÍLIO
«Muitas tradições e ritos anterior- VATICANO II
mente considerados como estranhos
e rudimentares, aparecem hoje ao O Papa João XXIll- hoje, S. João XXIII,
etnólogo como partes integrantes
designado «O Papa Bom» - anunciou a
de sistemas sociais particulares que
merecem ser estudados e que se im- convocação do concílio que se chama-
põem ao respeito». ria VATICANO II (1958-1965).

1
«( ... ) as igrejas jovens, enraizadas em Cristo e construídas sobre o fundamento dos Apóstolos,
recebem, por um maravilhoso intercâmbio, todas as riquezas das nações que foram dadas a Cristo
em heranças. Recebem dos costumes e das tradições dos seus povos, da sabedoria e da doutrina,
das artes e das disciplinas, tudo aquilo que pode contribuir para confessar a glória do Criador,
ilustrar a graça do Salvador, e ordenar, como convém, a vida cristã (9).» (cf. Decreto Ad Gentes,
1965, n.º 22).
2
«(...) importa evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de
maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem (...)».
(cf. Exortação Apostólica: Evangelii Nuntiandi, 1975, n.º 20).
271
Livros

O mundo católico exultou3, Os familiares através do jornal, O Aposto-


objectivos do concílio aos poucos lado, ou dos encontros promovidos
se foram delineando e aclarando. A pela Igreja Católica na Capital, ou nos
Constituição, Sacrossatum Concilium distritos (hoje províncias).
(SC), os retomará no seu proémío. En- Durante este período de prepara-
quanto o vulgo retém e espera que o ção do concílio, da sua celebração e
concílio venha de facto sacudir o pó do seu após os únicos recursos válidos
que se apegou à igreja-instituição ao de informação segura chegavam até
longo de cinco séculos (do Concílio de nós através da imprensa francófona.
Trento ao século XX) e que se abram Dado que nos seminários de Ango-
as janelas para entrar o ar fresco. «O la o francês era a língua estrangeira
vento forte do Espírito que varra o bo- que dominava depois do português,
lor secular», dizia João XXIII. Tratava- isto valeu-nos de muito, a Maurício
-se do maior acontecimento do sécu- e a todos nós, para podermos acom-
lo. Os intelectuais foram chamados a panhar o maior evento do século que
colaborar directa ou indirectamente e foi esse Concílio Vaticano II. A boa vi-
todos os fiéis chamados à oração e ao zinhança com os dois Congos, mesmo
jejum. Maurício Caetano é fiel, é inte- às escondidas, colmatou o défice da
lectual: Ora e Colabora. Metrópole. O Congo-Leopoldville, já
Nesta altura somos ainda portugue- possuía uma pujante Universidade Ca-
ses. A Metrópole ditava timidamente tólica orientada pelos jesuítas belgas,
os atalhos da preparação. Angola en- a Lovanium.
frenta a Guerra Colonial. O poder polí-
tico reforça o controlo às colónias, so-
bretudo depois da Independência do MAURÍCIO, O CONCILIADOR
Congo-Leopoldville, actual República
do Congo, em 30 de Junho de 1960. Jamais esquecerei esta característi-
Oprimir, Reprimir, Suprimir seriam os ca do nosso «Mafrano» num momen-
verbos que impenderiam sobre os to como este em que evocamos a sua
intelectuais, crentes ou não crentes, memória.
católicos ou protestantes. Todavia, diz Cheguei a Luanda em 1974 como
S. Paulo, «a Palavra de Deus não pode Bispo auxiliar. Tinha os meus 40 anos
ser acorrentada». (2 Tm 2:9) de idade feitos. Sonhador e tímido,
O laicado católico de então (alguns) confiante e inseguro, nas grandes as-
mostrou-se à altura do seu «credo», sembleias procurava os rostos de co-
sobretudo na Capital onde encontra- nhecidos que nem sempre encontrava,
mos referências sonoras como Mau- um desses rostos seria de «Mafrano»,
rício Caetano, Mendes da Conceição, porque já nos algures dos encontros
António Burity da Silva (sénior), no- provinciais, sua família, como outras
mes que para nós, que vivíamos no tantas, a do Espírito Santo Vieira ou
Planalto Central, se tornaram também mesmo a do Bispo Emilio de Carvalho,

3
«o sagrado Concílio propõe-se fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades
do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de
todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja»
(cf, Constituiçêo Conciliar, 1963, proérnio).
272
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

me recebiam em suas casas e muito gumentos da tradição, pela história


me ajudaram a remar contra os que do MPLA, sem esquecer os argumen-
questionavam a nomeação de um bis- tos bíblicos, e terminou com duas ou
po vindo do Planalto Central (Umbun- três perguntas que fecharam a boca
do) para a cidade capital (Kimbundu). ao dito grupo «revolucionário». Alí-
Maurício Caetano, porém, teve vio para os mais velhos que não ti-
uma oportunidade especial para de- nham coragem de contrariar os jovens
monstrar o seu carisma conciliador. e incorrer em serem chamados de
Foi na minha primeira visita pastoral a reacionários, obscurantistas, etc.
Golungo Alto em 1975, antes da pro-
clamação da Independência. Lá nos Ao silêncio que se seguiu à exposi-
encontrámos, diria, providencialmen- ção deste leigo comprometido com
te: ele ao serviço do Estado no campo o país e com o seu «Credo» mais não
das finanças, eu ao serviço da pasto- tive que dizer senão agradecer a quan-
ral. Nos habituais cumprimentos pro- tos vieram ao Encontro com o novo
tocolares senti-me aliviado quando Pastor, e dar-lhes a bênção final.
lhe apertei a mão, como aos demais.
Depois do jantar apareceu na resi- MAURÍCIO, ESCRIBA CRISTÃO
dência paroquial. Trazia uma palavra
oportuna e confidenciou-me o seguinte: Incentivado pelo Concílio Vaticano
lI, «Mafrano» leu e pôs em prática a
«Amanhã, no encontro com as forças Constituição Gaudium et Spes (GS),
vivas da paróquia sobretudo lá onde diz: «Cresce cada
o senhor Bispo não se perturbe quan- vez mais o número dos homens e mu-
do alguém pedir lheres, de qualquer grupo ou nação,
‘um ponto de ordem’ no momento de que têm consciência de serem os ar-
esclarecimentos e
tífices e autores da cultura da própria
respostas. Trata-se de um grupo de
comunidade.» (Constituição Gaudium
‘jovens
revolucionários’ que lhe vão pedir et Spes, 1965, n.º 55).
licença para um «Mafrano» disse «presente!». Ele
ponto de concertação paroquial, próprio não nos deixou um livro, mas
isto, para não dizer, o que deixou disperso pelos jornais e
. julgamento popular do pároco4 arquivos constitui um acervo que ora
Quando o jovem acabar se publica em quatro volumes, estan-
de falar também eu pedirei o meu do nós, neste momento, a apresentar
‘ponto de ordem “ o primeiro deles.
para não ser o Sr. Bispo a responder» Aluno distinto do Seminário de
Dito e feito. Ao usar da palavra com Luanda, onde cursou Filosofia e Teo-
a autoridade que lhe era reconheci- logia, os colegas e mestres apelida-
da pelos catequistas mais velhos, e
ram-no de «rato de biblioteca». Confi-
pelos próprios jovens que bem o co-
denciou-me uma vez que, para ele, as
nheciam, «Mafrano», puxou pelos ar-
férias grandes eram a continuação da

4
Pároco; Pe. Andrino, espiritano, português.
273
Livros

formação. «A biblioteca continuava minhou connosco até a «Separação


na escuta dos ‘mais-velhos’, e estes, dos Cônjuges» por divórcio ou morte.
sentiam-se também gratificados e Provocou o diálogo: aceitou as crí-
confiavam-me sem receio os seus ar- ticas como um sábio, esclareceu as
canos», disse. dúvidas e preconceitos dos ouvintes
como um mestre e educador. Vimo-lo
tomar notas de pareceres diferentes
MAURÍCIO, ARTÍFICE DA NOSSA do seu, e, quanto mais confessava as
CULTURA suas limitações mais conquistava a
admiração de todos. Estávamos pe-
Em semanas de estudo ou em con- rante um artífice da nossa cultura.
ferências específicas sobre a antropo-
O padre César Viana (natural da
logia cultural, Maurício Caetano tinha
Kibala), jovem e dinâmico membro
que estar presente. O Pe. Raul Assua,
do Secretariado da Pastoral, toman-
dos padres bascos, autor do livro, A do a palavra de agradecimento te-
Cultura Baniu, admirava o «Mafrano» ceu rasgados e merecidos elogios ao
e com ele gostava de discutir os as- palestrante.
suntos da lavra de ambos.
«Mafrano», igual a si mesmo, res-
Era interessante ouvi-los, sobretu- pondeu-lhe com um provérbio co-
do quando a discussão aquecia: um mum em muitas subculturas africanas
porque leu isto em tal ou qual autor que, traduzido, diz mais ou menos o
africano, o outro porque também leu seguinte:
o mesmo autor e constatou, in loco, o «Nós, os mais velhos, os estudiosos,
fenómeno em questão. No fim saía- preparamos para vós, jovens, rústicas
mos todos a ganhar. sandálias para caminhardes rumo à
Constatei isso em 1977. Convidei o terra onde encontrareis tudo, inclusi-
Maurício para orientar o tema de es- ve sapatos; a estes calçai-os, mas sem
tudo da nossa Assembleia Diocesana perder de vista as sandálias».
da Pastoral. O tema foi: O Matrimónio
Tradicional e Suas Implicações no Ma-
CONCLUSÃO
trimónio Canónico.
Recebemos uma magistral e interes- Concluo, feliz, por ter dado este
sante exposição durante um dia inteiro testemunho a respeito de alguém cuja
para, na manhã seguinte, tirarmos con- memória eu próprio desejaria que fos-
clusões e recomendações a exercitar se eterna.
ao longo do nosso ano pastoral.
- Eterna como a palavra munthu,
«Mafrano» revelou-se um mestre, mu- (pessoa) + -nihu (existente),
um escriba que, como diz S. Mateus, que um dia apareceu na história
tirou do seu baú coisas velhas e novas e deixou (e vai deixando) rastos,
iluminando-as com a luz do Evange- tal como um rio que não muda de
lho. Partindo do «Alambamento» ca- nome, mas suas águas correm para
274
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras - N.º 1 - Junho 2023

o mar (kalunga5) dando vida de ge- Caetano as palavras com que o Papa
ração em geração; Francisco termina a sua Exortação
- Eterna, por estas «sandálias» Apostólica, Cristo Vive, dirigida aos jo-
que ora a família «Mafrano» re- vens e a todo o povo de Deus:
colhe. Estavam esquecidas nos
recantos da nossa casa (Angola), «A Igreja precisa do vosso ímpeto,
mas falam ainda do antropólogo e das vossas intuições, da vossa fé.
do seu tempo; Nós temos necessidade de vós.
- Eterna, pelo contributo dado na E quando chegardes aonde nós ainda
implementação das grandes linhas não chegámos,
do Concílio Vaticano II e outros do- tende paciência de esperar por nós,»
cumentos pós-conciliares” como a (Exortação Apostólica Pós-Sinodal
Evangeli Nuntiandi (1975), em arti- Christus Vivit, 2019, n.” 299)
gos e conferências.
Lubango, aos 4 de Março de 2020
Pois bem, amigos: na cidade global
sabemos que há vencedores, venci-
dos e sobreviventes. Corno Maurício
Caetano, porém saberemos dizer:
Presente! A reconstrução nacional
passa pela reconstrução da identi-
dade de cada um (a tomada de cons-
ciência do munihu), no nosso caso
dentro da Lusofonia.
Na história da Igreja Católica em
Angola houve homens que acredita-
ram nesse munthu. A nível religioso
lembraria o nome de Ernesto Lecom-
te, sacerdote espiritano, francês, o
padre que se fazendo «negro com os
negros», como aconselhava o funda-
dor da sua congregação, conseguiu
traduzir para algumas de nossas lín-
guas o catecismo de S. Pio X que nos
guiou até ao actual catecismo da Igre-
ja Católica.
Por tudo isto, e tendo presentes
os estudos sociais e antropológicos
que vão surgindo um pouco por toda
a Angola, ponho na boca de Maurício

5
Kalunga, em urnbundu: Mar, Morte (Sheo/). Em gaagueía: Deus.
275
Ficha Técnica

Título
Academia - Revista da Academia Angolana de Letras
E-mail: revista.academia.aal@gmail.com

Director
Paulo de Carvalho

Editor deste número


António Fonseca

Redacção
António Fonseca
António Quino

Paginação
Damásio Agostinho

Propriedade
Academia Angolana de Letras – Rua Higino Aires nº 1 - Luanda

ISSN: 3007-0333

276
ISSN: 3007-0333

278

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