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FUNARI, R. S.; Gralha, J. . O Egito Antigo. In: Renata Lopes Biazotto Venturini. (Org.).
Antiguidade Oriental e Clássica: economia, sociedade e cultura. 1ed.Maringá: Eduem,
2010, v. 1, p. 13-36.

O Egito Antigo

Raquel dos Santos Funari1


Júlio Gralha2

Introdução

O Egito antigo fascina desde a própria antiguidade. O historiador grego Heródoto


de Halicarnasso (484-425 a.C.) testemunha esse encantamento (thoma, em grego): “no
que se refere ao Egito, falarei em detalhe, pois em nenhum outro lugar há tantas coisas
maravilhosas (pleista thomasia), nem, em todo mundo, há tantas obras de indescritível
grandeza” (Heródoto, Histórias, 2, 35). Hoje, em pleno século XXI, mais de oito milhões
de turistas estrangeiros visitam o país, quase todos atraídos pelos vestígios arqueológicos
do período faraônico. No Brasil, existem grupos de pesquisa sobre o Egito antigo,
formam-se pesquisadores nas universidades e o tema está sempre presente na mídia, o
que caracteriza uma presença egípcia muito variada e dispersa, como constata a
estudiosa gaúcha Margaret Bakos, líder de um grupo de pesquisa sobre o tema. Neste
capítulo, vamos apresentar a trajetória do Egito faraônico, suas principais características
culturais, políticas e sociais, assim como trataremos, ainda que de forma breve, da
presença do Egito em nossos dias.

Antes, convém deixar claro a perspectiva adotada por nós. Não se pode conhecer
o passado senão a partir de pontos de vista e pressupostos. Não se pode voltar ao
passado, tal como ele foi, e mesmo que isso fosse possível, não o poderíamos descrever
senão com nossos olhos. Por isso tudo, é bom explicitar nossa abordagem. Para nós,
para estudarmos o passado é necessário um exercício tanto de aproximação, quanto de

1
Pós-Doutoranda do Departamento de História, IFCH, Unicamp.
2
Professor Substituto do Departamento de História, IFCH, UERJ e vice-coordenador do Núcleo de Estudos
da Antiguidade - NEA.

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distanciamento. Por um lado, não se pode conhecer, como veremos, o Egito antigo sem
irmos às fontes, aos documentos. Precisamos, além disso, de uma dose de empatia, para
que tentemos entender como aquela civilização pôde construir obras tão magníficas,
assim como sobreviver por tantos milênios. Por outro lado, não podemos perder de vista
que os egípcios antigos eram diferentes de nós, tinham especificidades que apenas
podemos tentar entender. Como enfatiza o egiptólogo britânico Ian Shaw, a atração da
antiga cultura egípcia está na sua combinação de coisas exóticas e familiares. Por isso
mesmo, começamos nosso capítulo com as fontes e com a história do estudo do Egito
antigo, para, em seguida, aí sim, irmos à trajetória histórica, tal como a interpretamos.

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Mapa do Egito Antigo

A história do estudo do Egito faraônico e as fontes

O Egito faraônico era conhecido no Ocidente, até o final do século XVIII por duas
grandes categorias de fontes: a Bíblia e os textos de autores gregos e latinos. O texto
sagrado foi usado para o conhecimento do Egito, mas as informações relativas à vida
egípcia eram encaradas do ponto de vista religioso, como se relatassem fatos históricos,
como no caso do êxodo dos hebreus. Hoje, no século XXI, a maioria dos egiptólogos
considera que não há qualquer evidência da historicidades dessas referências bíblicas,
mas, por muito tempo, foram tomadas como indicações seguras. As fontes gregas e
latinas foram muito utilizadas, com destaque para Heródoto, que dedica todo um livro da
sua obra ao Egito, escrito por volta de 430 a.C., relatando a sucessão das dinastias
egípcias, desde o primeiro faraó. O historiador Diodoro da Sicília (90-21 a.C.) e o
geógrafo Estrabão (63 a.C.- 24 d.C.) descreveram também aspectos históricos,
geográficos e culturais. Todos esses autores viveram na fase final ou após o período
faraônico e suas informações provinham do contato que puderam ter com os próprios
egípcios de sua época. Além dessa limitação, como observadores externos da cultura
egípcia, não tinha acesso aos documentos egípcios antigos, nem compreendiam, de
maneira interna, as particularidades da cultura egípcia, ainda que, por contraste, nos
informem também aspectos muito interessantes, como sobre a mumificação.

A moderna pesquisa sobre o Egito tem início com o Iluminismo e as expedições


imperialistas ao Oriente Médio, em particular com a viagem do imperador francês
Napoleão (1769-1821) ao Egito, entre 1798 e 1801. A obra que inaugura essa moderna
egiptologia é a Descrição do Egito, cujos volumes saíram entre 1809 e 1829 e hoje
podem ser consultados na internet no original em francês (http://descegy.bibalex.org/). O
estudioso francês Champollion (1790-1832) foi responsável pela decifração da escrita
hieroglífica, o que permitiu, a partir de então, o acesso a informações de primeira mão,
produzidas, em grande parte, pela Arqueologia. Esta disciplina nascente, que estuda a
cultura material – edifícios, artefatos e vestígios biológicos, como as múmias – começou a
desencavar já a partir década de 1830. As escavações, com a preocupação em anotar os
artefatos encontrados, iniciaram-se no final do século XIX e no início do XX, com

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pioneiros como Flinders Petrie (1853-1942), um dos grandes inovadores na Arqueologia


mundial à época. No século XX, as descobertas arqueológicas multiplicaram-se, com uma
infinidade de achados, cada vez mais bem documentados e estudados. Nas últimas
décadas, multiplicaram-se as escavações de assentamentos, como cidades e aldeias, o
que tem fornecido dados sobre a vida quotidiana não apenas de faraós e sacerdotes,
como das pessoas comuns. As pesquisas sobre o Egito faraônico diversificaram-se,
ainda, quanto aos temas de investigação. Multiplicaram-se os trabalhos sobre temas
como as mulheres, as relações de gênero (homens, mulheres, outras sexualidades), a
religiosidade, as identidades, o corpo, para mencionar apenas alguns dos quais rataremos
mais adiante neste capítulo.

Napoleão no Egito,

A cronologia

Antes de iniciarmos nossa caminhada, convém apresentar o quadro cronológico


que adotamos neste capítulo. Os estudiosos divergem sobre a cronologia egípcia.
Adotaremos, neste capítulo, a proposta recente de Ian Shaw:

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Paleolítico 700.000-12.000 a.C.


Epipaleolítico 12.000-9000 a.C.
Neolítico 5300-4000 a.C.
Período pré-dinástico 4000-3200 a.C.
Dinastia 0 (Naqada III) 3.200-3000 a.C.
Período Faraônico 3000-332 a.C.
Proto-Dinástico (I e II dinastias) 3000-2686 a.C.
Antigo Reino 2686-2181 a.C.
Primeiro período intermediário 2181-2055 a.C.
Reino Médio 2055-1650 a.C.
Segundo período intermediário 1650-1550 a.C.
Novo Reino 1550-1069 a.C.
a
18 . dinastia 1550-1295 a.C.
Período ramessida 1295-1069 a.C.
Terceiro período intermediário 1069-664 a.C.
Período tardio 664-332 a.C.
Período Ptolomaico 332-31 a.C.

Período romano 30 a.C.- 311 d.C.


Período romano oriental ou bizantino 311-642 d.C.
Conquista muçulmana 642 d.C.

Neste capítulo, nossa atenção estará voltada para o Egito faraônico stricto sensu,
entre 3200 e 332 a.C., ainda que nos refiramos à continuidade em época helenística e
romana, na medida em que os governantes eram considerados, em parte, como faraós.

O surgimento do Egito faraônico

A civilização egípcia só pode ser compreendida em seu contexto geográfico,


entendido a partir das transformações ocorridas a partir do final da última glaciação, entre
10.000 e 9.500 a.C. Antes disso, todo o norte da África, com o que viria a ser o deserto do
Saara, era uma área fértil e ocupada pelo ser humano. O aquecimento global que viria a

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por fim às imensas geleiras acarretaria mudanças climáticas em todo o planeta e criaria o
grande deserto (as sahar al kubra, em árabe, quer dizer, precisamente, “o grande
deserto”). Com isso, as populações não tiveram como continuar no interior e foram para a
floresta equatorial, para o Mediterrâneo ou para o vale do Rio Nilo. Este foi o único rio que
conseguiu persistir, mesmo quando seus afluentes deixaram de fluir. Isto só foi possível
porque o Nilo nasce na África equatorial e suas águas não dependem dos afluentes, que
secaram e se transformaram em vales secos, chamados pelos árabes wadis (“rios”). O
Nilo é um rio, no meio de um deserto, cujas margens são fertilizadas por cheias anuais,
vindas da profundidade do continente africano. Os antigos não sabiam de onde vinham as
águas do rio, apenas testemunhavam esse fato admirável, para usarmos a expressão de
Heródoto, de que corria uma rio em meio a um imenso deserto. Por mais de mil
quilômetros, não havia outra fonte d’água, só o Nilo, do Mediterrâneo para o interior. Isso
devia impressionar os povos que ali viveram e marcou os egípcios, como veremos.

Quando surgiu o Egito faraônico? O mais antigo documento que pode ser
chamado de egípcio é a Paleta de Narmer, data de cerca de 3000 a.C. e conservada,
hoje, no Museu Egípcio do Cairo, publicada pelos escavadores em 1902. Trata-se de um
lasca de pedra de 63 cm de altura com um baixo-relevo em ambas as faces. De um lado,
estão dois leões de longos pescoços entrelaçados, segurados por dois homens barbados.
Eles representariam, segundo alguns, a unificação do Alto e do Baixo Egito, ou seja, da
parte Mediterrânica ou Delta do Nilo com o curso superior do rio Nilo, até a primeira
catarata. Acima, aparece um governante, Narmer, com a coroa vermelha, referente ao
Baixo Egito. O rei participa de uma procissão com seis pessoas, dentre os quais dois
ministros, em revista ao corpo de dez inimigos decapitados. Do outro lado da paleta, está
uma figura maior de Narmer, agora com a coroa branca do alto Egito, dominando um
cativo. Diante do faraó e sobre o cativo, aparece o deus falcão Hórus, que segura outro
cativo, com seis papiros que talvez representem seis mil prisioneiros. Na parte inferior,
estão dois homens nus, cativos ou inimigos abatidos.

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Imagem
Estela de Narmer

Seria a paleta de Narmer a certidão de nascimento do Egito faraônico? Talvez seja


demais dizer isso, pois os processos históricos são de longo prazo. Desde o fim da
glaciação, o Nilo atraiu populações africanas que se assentaram e acabaram por produzir
um reino no vale do Nilo. A paleta de Narmer pode representar, com plausibilidade, uma
de três hipóteses, ao menos:

1. A narrativa de uma vitória militar do Alto Egito sobre o Baixo, que produziu a
unificação;
2. Um ritual real comemorativo sem base muito efetiva na realidade histórica;
3. Uma cerimônia de rememoração de uma vitória efetiva anterior do alto sobre o
baixo Egito;

A primeira e a terceira hipóteses partem do pressuposto de uma unificação de sul


a norte, enquanto a segunda baseia-se no pressuposto que as narrativas nem sempre
têm relação com os acontecimentos. Isso pode parecer estranho, mas não é, se

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pensarmos que as saias dos escoceses foram inventadas modernamente, assim como os
bandeirantes foram criados em pleno século XX. A narrativa da vitória do Alto sobre o
Baixo Egito pode, portanto, ser uma historieta a posteriori. Não importa. Na paleta de
Narmer temos, pela primeira vez, um relato com as características egípcias: as coroas do
alto e do baixo Egito, o uso de hieróglifos primitivos, um esquema iconográfico que se
repetiria nos milênios seguintes. Lá estava Hórus (que não é o Hórus filho de Isis e
Osíris), um dos deuses egípcios principais, ligado à realeza e ao céu. Surgia o Egito
faraônico.

O processo de formação do Egito faraônico foi longo, durante o quarto milênio a.C.
Cidades pré-dinásticas proliferaram de Buto, no Delta, até Qustul e Sayala, na Núbia, ao
sul. Alguns dessas cidades evoluíram para centros maiores, intercaladas por cidades e
aldeias. O desenvolvimento de cada uma dependeu de sua posição em relação a
matérias-primas e rotas de comércio. O sistema de anotação escrita, já antes dos
hieróglifos, era usado na maioria das cidades, o que demonstra que comerciavam entre
si. Esse sistema de escrita correspondia àquele usado, à mesma época na Mesopotâmia
(atual Iraque), assim como motivos decorativos mesopotâmicos foram comuns tanto no
Alto como no Baixo Egito. Entre 3500 e 3200 a.C. as cidades se desenvolviam, assim
como o sistema de escrita, a cosmologia e a construção monumental, com a unificação
consolidada por volta de 3200 a.C., como propõe a egiptóloga Alicia I. Meza. Descobertas
arqueológicas recentes mostram que, já em 3500 a.C., usava-se a escrita hieroglífica e
que havia um sistema administrativo, arquitetura monumental e um sistema complexo de
trocas econômicas.

O antigo reino e primeiro período intermediário

As primeiras duas dinastias (3000-2686 a.C.) não são muito bem documentadas,
ao menos diante da abundância das dinastias seguintes (III a VI, 2686-2181 a.C.). Os
túmulos reais caracterizaram o período, a partir da Pirâmide de Degraus atribuída a
Imhotepe, o primeiro arquiteto e construtor dessas sepulturas monumentais. Sua pirâmide
em Sacará para o faraó Djoser (c. 2640 a.C.). Seguem-se as construções de mastabas
(sepulcros particulares no formato trapezoidal) e das pirâmides de Quéops, Quéfren e
Miquerinos, faraós da IV Dinastia (2613-2494 aC.). Tais monumentos eram completados

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por estátuas, relevos, mobiliário, vasos, em símbolo da potência centralizada ao seu


auge, com o Faraó como Deus vivo e todo-poderoso. Na morte, o rei brilha, com toda sua
potência, poder tão bem simbolizado pelas pirâmides enormes. Isto muda com as
dinastias seguintes (V e VI 2494-2181 a.C.), com o crescente predomínio do culto solar ao
deus Rá, em Heliópolis, ao norte. Os templos passaram a ter maior dimensão, como o
impressionante templo solar de Nevesere, em Abu Gurab, em Heliópolis. Pouco a pouco,
o poder das autoridades locais aumentou, como testemunha o gradual aumento e número
de mastabas particulares, com a indicação, na VI dinastia (2345-2181 a.C.), da
fragmentação do poder. As dinastias seguintes (VII-XI 2181-2055 a.C.) foram
caracterizadas como primeiro período intermediário e testemunhou a fragmentação
política, com líderes em disputa, assim como pela entrada de líbios, semitas.

Pirâmides do antigo reino

A divisão dava-se, grosso modo, entre os Baixo e Médio Egito, sob controle de
governantes de Heracliópolis, perto do oásis Faium, e os tebanos, no Alto Egito. Ao
norte, começava um processo de retomada do Delta e de revalorização da cidade de
Mênfis e restabelecendo os contatos com a cidade de Biblos, no atual Líbano. Floresceu
em Heracliópolis a literatura mais filosófica e voltada para a ética, como o clássico Diálogo
do desesperado com sua alma, que descreve o drama interior de um homem desiludido,
incapaz de compreender sua época e suas próprias idéias contraditórias. Por isso, pensa
em suicidar-se e sua alma acaba por duvidar da eficácia dos ritos funerários e o

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aconselha a fugir dessa falta de esperança e a entregar-se à farra. Outra grande obra, em
pleno período intermediário, foi as Instruções ao filho Mericara, que afirmam que Deus
deu as plantas e os animais aos seres humanos. Apresenta-se, neste caso, a noção de
um Deus pessoal, à diferença das múltiplas manifestações divinas que sempre
dominaram a religiosidade egípcia. Algumas passagens demonstram bem esta ética
pessoal: “se conduza bem, quanto estiver vivo. Acalme os aflitos, não oprima a viúva, não
arranque ninguém de seu pai, não mate, não bata ou prenda ninguém. Assim, a terra
estará em ordem. A vingança é apanágio apenas de Deus”.

O crescente poder dos chefes locais levou, também, à difusão das práticas
mortuárias. Ao poder ultra-centralizado no faraó, segue-se a apropriação, por parte das
elites locais, de modo que as antigas tradições, voltadas apenas para o rei, foram
adaptadas para uso pelos privados. Difundiram-se, na mesma direção, os escritos
particulares e os hieróglifos cursivos, nos próprios sarcófagos.

Ao norte de Abidos, cidade santa do deus Osíris, o predomínio estava com os


tebanos, cujos governantes se apresentavam como faraós. Mentuhotepe I Nebehepetre
(2055-2012) conseguiu reunificar o Alto e o Baixo Egito, a partir de Tebas e com forte
influência de elementos núbios. Seu próprio nome revela tanto sua base em Tebas e seu
domínio de todo o território, pois significa “o deus tebano Mentu está satisfeito” e
“unificador das duas terras”. Iniciava-se um novo período de unidade, mas os poderes
locais passaram a ser, de alguma forma acomodados.

O médio reino

O novo período iniciou-se com o grande reinado de Mentuhotepe I, mas apenas a


partir da XII Dinastia (1985-1795) a estabilidade política foi se firmando e o poder dos
nobres locais foi controlado. Embora o poder viesse do Alto Egito, houve maior atenção à
parte norte do reino, como quando o governo mudou-se para el-Líxete, perto de Mênfis,
durante o período da XII Dinastia. Os faraós dessa dinastia cuidaram da construção de
canais nas cercanias da nova capital, com grande desenvolvimento agrícola do Faium.
Outras cidades do norte foram objeto de atenção, com Heliópolis, onde foram construídos
obeliscos. Tebas não foi deixada de lado e o culto ao deus local Amon foi fortalecido.

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Particular atenção foi dada ao domínio do sul profundo, da Alta Núbia ao Sudão, com a
construção de fortes e feitorias até acima da terceira catarata, bem ao sul.

Foi nesse período que o culto ao deus Osíris expandiu-se e tornou-se mais
universal. Nos séculos anteriores, Osíris tinha posição secundária no panteão egípcio,
com uma divindade agrícola ligada ao rio Nilo e ao cultivo do cereal. Como protetor do
nono nomo (divisão administrativa egípcia), Osíris começou a absorver outras divindades
funerárias, como Socáris de Mênfis e Quentamentiou de Abidos. Osíris passou a ser o
principal deus funerário, ligado à imortalidade da alma. Seu reino está nas necrópoles, de
onde preside o destino dos humanos, soluciona o problema da morte e prepara o defunto
para a ressurreição. Com a assistência de quarenta e dois juízes divinos, ele preside o
julgamento das almas, enquanto Anúbis se encarrega de pesá-las. Osíris teria sido a
primeira múmia, “para sempre belo”, um dos seus epítetos.

Osíris e Ísis

Além da ascensão social das classes governantes, difunde-se o costume de


estelas votivas, o que testemunha uma mais difundida prosperidade. A literatura também
se torna mais popular, com o desenvolvimento da ficção, como no caso da novela História
de Sinuhe, uma narrativa de apelo universal que retrata a trajetória do que poderíamos
chamar de um filho pródigo. Sinuhe, um funcionário real, vê-se envolvido em uma intriga
de palácio e foge para o Líbano, onde passa por diversas aventuras, até retornar ao Egito

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e ser reabilitado: “rejuvenesci muitos anos, pude fazer a barba, tive meus cabelos
penteados. Minha pobreza ficou no estrangeiro, minhas roupas velhas voltaram para os
andarilhos do deserto e me vesti com bom linho, fui ungido com azeite fino, voltei a dormir
em cama”. Final feliz, para um romance que, até hoje, nos traz deleite.

O Segundo Período Intermediário e o Novo Reino

Costuma-se designar como Segundo Período Intermediário (1650-1550) o século


que testemunhou a divisão do reino em três, com três dinastias contemporâneas:

XV Dinastia (hicsos) 1650-1550


XVI Dinastia (hicsos menores) 1650-1550
XVII Dinastia (Tebas) 1650-1550

No Delta reinavam os reis asiáticos, denominados hicsos ou “reis pastores”, como


dizem as fontes posteriores. Esses povos, vindos do oriente, parecem originar-se de
grupos semitas, embora tenham adotado títulos, costumes e demais aparatos egípcios.
Exerciam influência no Sinai e na Palestina e dominavam, de forma indireta, os
governantes egípcios ao sul. Em Tebas seguia uma dinastia egípcia com controle sobre o
Alto Egito, mas com uma política de submissão, maior ou menor, aos hicsos. Ainda mais
ao sul, a Núbia e o Sudão estavam sob domínio de um governante autônomo em Cuxe,
mas também submetido aos hicsos. Esses povos orientais introduziram uma série de
novidades, como novos métodos de fiação, com o uso do tear vertical, novos
instrumentos musicais (lira, alaúde, oboé, pandeiro), novas espécies de bovinos e
cavalos, a azeitona e a romã. A generalização do uso do bronze, tanto em armas, como
em objetos de uso quotidiano, também foi o resultado do domínio hicso. As escavações
da cidade capital dos hicsos, Avaris (atual Tell el Daba), forneceram muitas informações
preciosas, como a descoberta de pinturas murais no estilo usado em Cnossos, na ilha de
Creta, assim como evidências do contato desses povos com o Oriente, na forma dos mais
antigos documentos cuneiformes encontrados no Egito. Essas pesquisas arqueológicas,
levadas adiante pelos austríacos, começaram na década de 1960 e têm produzido novas
descobertas a cada ano.

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A retomada da centralização deu-se, uma vez mais, de sul a norte, a partir da XVIII
dinastia (1550-1295 a.C.), com a tomada de Avaris por Amósis, por volta de 1550. O
poder tebano manifestou-se, nesse processo de unificação, pela imposição do culto a
Amon, seu deus tutelar em Tebas, em contraposição ao patrono dos hicsos, o deus Set.
Terras, servos, pastos e gado são postos à disposição dos templos de Amon.
Multiplicaram-se os monumentos oficiais em que se apresentam o faraó com sua esposa,
mãe ou mesmo avó. As rainhas passaram a ter prerrogativas de co-regência, algo pouco
comum no mundo antigo. Ahmes-Nefertari (cerca de 1540 a.C.) recebeu o título de
“segundo profeta do deus Amon”. Os matrimônios consangüíneos na família real
generalizaram-se, com o casamento entre irmãos, meio-irmãos ou outros parentes, de
modo a garantir a pureza do sangue real. Tutmés I (1524-1518) inaugurou, na margem
esquerda de Tebas, a Ocidente, uma nova forma de inumação real, ao escavar a primeira
tumba no que viria a se tornar o Vale dos Reis. Instalou, também, na atual Deir el
Medineh uma aldeia de construtores dos hipogeus reais, chamados de “servidores do
lugar de Maat”, deus que julga os mortos. Restaurou o comércio com Punte, a sudeste,
assim como as relações diplomáticas com Chipre, e demais localidades do Médio Oriente,
como a Anatólia (Turquia) e a Mesopotâmia (Iraque).

Mênfis voltou a ser valorizada com uma residência do faraó Tutmés I. A ascensão
ao trono da rainha Hatexepsute (1508-1458 a.C.) demonstrou o poder das mulheres
egípcias. Ela adotava todos os títulos faraônicos, com o uso das terminações no feminino.
Isto não é pouco, se considerarmos que, em português, quase não se usam alguns
termos de poder no feminino, como “presidenta” ou “apóstola”. Hatexepsute foi uma das
cinco mulheres que reinaram no Egito e gerações de egiptólogos ficaram fascinados pela
rainha, descrita como “pacifista”, por uns, mas como masculinizada, por outros. Os
monarcas sucessivos adotam uma agressiva política de expansão militar, resultado da
formação de um exército profissional, tanto em direção ao sul, como na Palestina e até
mesmo na Síria. Estabeleceram-se guarnições egípcias, mas a estratégia principal
consistia na aliança dos egípcios com os régulos locais. A administração do reino estava
nas mãos do faraó, que indicava os chefes militares, civis e sacerdotais. Os sacerdotes do
culto de Amon eram os mais fortes aliados do poder real. Uma intensa política de
construções também se consolida, com tumbas reais, templos e capelas, o gigantismo na
arquitetura, como em Lúxor.

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O reinado de Amenófis IV (1352-1336 a.C.) marcou a introdução de um tipo de


culto a um deus único, Aton e pode ser considerado um dos períodos mais discutidos da
história egípcia. Amenófis IV introduziu, logo no início do seu reinado, o culto ao disco
solar (aton), uma divindade mais abstrata do que a maioria dos deuses egípcios com
formas de animais. Construiu monumentos religiosos a Aton em diversos lugares e fundou
uma nova capital real, Aquetaton (“horizonte de aton), hoje Tell el Amarna. A história de
Aquenaton é conhecida mais pela Arqueologia moderna do que pelos documentos
antigos, pois seus sucessores restauraram o culto a Amon e aos outros deuses e
retiraram as referências a forma singular de monoteísmo introduzido pelo faraó (para boa
parte dos egiptólogos não seria um monoteísmo, mas algo bem próximo). Sua esposa
Nefertiti foi imortalizada por um busto seu, de rara beleza, conservado hoje em Berlim. O
culto a Aton levou à confiscação de bens dos sacerdotes de Amon e os seguidores de
Aton parecem ter sido recrutado entre as classes ascendentes. Templos importantes de
Aton foram estabelecidos em Mênfis e Heliópolis, com santuários de norte a sul do Egito.
Com a morte do faraó, subiu ao trono Tutancatón (depois, Tutancamón), que logo
restaurou os cultos tradicionais.

Akenaten

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Nefertiti
As duas dinastias seguintes (XIX e XX, 1295-1069 a.C.) ficaram conhecidas como
período ramessida. Ramses I foi o primeiro monarca da dinastia. Ele era oriundo de
família humilde do noroeste do Delta e seu nome mostra que o principal deus passava a
ser Rá (Sol). Como Ramses I reinou apenas um ano ao que tudo indica, seu filho, o faraó
Sethi I, ficou responsável por legitimar esta dinastia que não possuía de uma linhagem

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real. Era preciso estabelecer uma ligação forte com os diversos segmentos sacerdotais e
divindades (Ra de Heliópolis, Ptah de Menfis, Amon de Tebas, entre outros), além de
campanhas militares o que foi conseguido. Entretanto, o grande monarca foi Ramsés II
(1279-1212 a.C.) seu filho que estabeleceu a capital em Pi-Ramsés, no Delta. Enfrentou
os hititas e, após mais de vinte anos de lutas, foi firmado um tratado de paz, enquanto a
Palestina ficava sob controle egípcio. Alguns autores consideram que os 62 anos de
reinado de Ramsés II assinalaram o ápice do poderio e da cultura egípcia. Estabeleceram
um período longo de paz e permitiu que Ramses II fosse cultuando, em vida pelas
pessoas comuns como um grande deus. A partir da XX Dinastia (1186-1069) iniciou-se
um processo de encolhimento do império, com o exército passando a recrutar
mercenários e com a perda das possessões asiáticas e com rebeliões no Médio Egito, ao
final do período. A redação do Livro dos Mortos assinalou a passagem para
preocupações mais espirituais, que não dependiam do poder militar.

O terceiro período intermediário e a época tardia

Sucederam-se dinastias paralelas e divisões, com o governo de líbios (945-715


a.C,) e de núbios (747-656 a.C.), até a restauração da unidade pelo faraó núbio Shabaka,
ao final do século VIII a.C. O domínio etíope estendeu-se até o Delta, tendo fomentado a
restauração de templos egípcios, mas logo os assírios viriam a dominar o vale do Nilo
(657-653 a.C.), com apoio de parte dos egípcios insatisfeitos com o domínio núbio.
Perturbações na Assíria permitiram que o faraó egípcio Psamético I, da XXVI Dinastia
(664-525 a.C.), expulsasse os assírios e restabelecesse um reino, a partir de Saís, no
Delta, inaugurando o que ficou conhecido como Renascimento Saíta. Para fazer frente
aos líbios que haviam dominado o trono no norte, empregou soldados mercenários
gregos: jônios, cários e lídios. Os governantes saítas investiram no comércio, com a
fundação de feitorias em Milésios, Dafne e Náucratis. Como dependiam dos gregos que
trouxeram ao Nilo, a dinastia nem sempre encontrou apoio entre os nativos egípcios, o
que facilitou o domínio persa (525-404 a.C.). As últimas dinastias de faraós egípcios
(XXVIII-XXX, 404-343 a.C.) foram seguidas de novo domínio persa (343-332 a.C.). Em
seguida, foi estabelecido um reino egípcio com governantes macedônicos, da família dos
ptolomeus (332-30 a.C.), cujos reis eram considerados como faraós, embora houvesse
uma divisão entre a administração grega e as seculares instituições egípcias. A última
rainha macedônica, Cleópatra VII Philopator, pode ser considerada a última governante

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egípcia apresentada como um faraó, ainda que os imperadores romanos (30 a.C.-311
d.C.) também tenham se representado dessa forma. Uma característica importante da
história egípcia desde o início do primeiro milênio a.C. foi a existência de um substrato
egípcio poderoso, em termos culturais, com o domínio político de povos estrangeiros que
se dirigiram ao vale do rio Nilo. Pode afirmar-se que até o triunfo do cristianismo, no
século IV d.C., a religiosidade, língua e costumes milenares egípcios continuaram
dominantes. A vida camponesa foi ainda mais persistente, com lembra Ciro Flamarion
Santana Cardoso: “a verdade, porém, é que a existência das comunidades e sua ligação
com o controle da irrigação persistiram no Egito tanto quanto o sistema de irrigação por
tanques ou bacias, ou seja, até o século XIX depois de Cristo”.

A escrita egípcia

A escrita hieroglífica constitui um dos aspectos mais intricados dessa civilização.


Apenas no século XIX foi possível decifrá-la, graças a uma inscrição em três línguas, a
Pedra da Roseta, por obra e arte do estudioso francês, François Champollion (1790-
1832). Não sabemos quando a escrita hieroglífica deixou de ser usada, mas isso deve ter
ocorrido na Antiguidade tardia, a partir do século IV d.C. ou, mais provavelmente, com a
conquista muçulmana (640 d.C.). A língua egípcia foi decifrada a partir do copta, idioma
usado, ainda hoje, na Igreja cristã egípcia. Sua decifração, em 1822 por Champollion, foi
seguida do conhecimento de outra escrita egípcia, o demótico, em 1829, por Thomas
Young. A língua egípcia é africana e, segundo alguns lingüistas, teria origem na parte
meridional do deserto do Saara e ao norte da floresta tropical, bem no centro do
continente. O idioma tem parentesco com outras línguas originárias da África, como o
hebraico e o árabe.

Das três formas básicas da língua egípcia a hieroglífica é a mais antiga podendo
ser atestada por volta de 3500 a.C. A forma cursiva da escrita hieroglífica é o hierático
que também é bem antiga e usada com freqüência em papiros. Tal forma parece ter
desaparecido ou seu uso foi reduzido consideravelmente por volta de 650 a.C. Nesse
momento, temos o aparecimento do demótico durante o reinado do faraó Psamético I da
26a dinastia (conhecida como dinastia Saita – cidade de Sais no Norte do Egito).Tal
forma é cursiva e mais recente e parece estar mais próxima da língua falada na época

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pelos egípcios. Tal língua/escrita possui como predecessora a língua egípcia tardia (a
hieroglífica com mais signos e a hierática) e como sucessora a língua copta que possui
caracteres gregos e elementos do demótico conforme James H. Jonhson, do The
Oriental Institute – University of Chicago. O Copta ainda é utilizada no Egito e foi de
importância para se ter uma certa idéia de como se pronunciar as palavras nos textos
hieroglíficos uma vez que a escrita egípcia não possuiu vogais. Apesar da existência do
Hierático e do Demótico a escrita hieroglífica continuou sendo usada nas estelas, papiros,
tumbas e templos. Ao que parece o conhecimento sobre a escrita egípcia desaparece
após a invasão do Templo de Filae, por cristãos por volta do V século da era cristã.
Foram necessários treze séculos para que as “pedras” voltassem a “falar”. O grande
desafio moderno tem sido traduzir esses textos. Como lembra a egiptóloga britânica
Penélope Wilson, “a habilidade na tradução dos textos egípcios antigos consiste em
encontrar um ponto de equilíbrio, de modo que o ritmo e estrutura das frases possa ser
em parte mantida, sem que se perda a compreensão imediata”.

A origem da escrita é ignorada. Alguns autores consideram que ela seria


autóctone, outros que derivaria da escrita cuneiforme da Mesopotâmia, da Suméria (IV e
III milênios a.C.). Arqueólogos alemães com pesquisas em Abidos, no Alto Egito,
propuseram, na década de 1990, que os hieróglifos já estavam em uso por volta de 3500
a.C., tanto com ideogramas, como com fonogramas. Os hieróglifos compreendiam
ideogramas e sinais fonéticos. Os ideogramas são símbolos usados como representações
diretas de algo, como “céu” e “homem”. Os fonemas representam o som ou parte de uma
palavra pronunciada. Por isso, assim como no caso da escrita chinesa, escrever era, ao
mesmo tempo, uma representação artística. Possuía, ainda, um caráter religioso, sagrado
mesmo, pois a maioria dos egípcios considerava as palavras como tendo um poder físico
real, como se fosse mágica. Por este motivo eles chamavam sua escrita de Medju-Netjer,
ou seja “Palavra dos deuses”, o que de certa forma foi mantido pelos gregos, milhares de
anos depois, que chamaram-na “escrita sagrada” (este o sentido de “hieróglifo”).

Desde o início dos estudos egiptológicos, a partir da década de 1820, surgiram


discussões sobre a divergência entre os dados provenientes dos textos e as informações
fornecidas pela Arqueologia, na forma de edifícios, pinturas, vasos cerâmicos e uma

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infinidade de objetos. O egiptólogo australiano David O’Connor - arqueólogo e professor


em Yale - refletia sobre tais questões, de maneira muito apropriada:

“Os dois tipos de evidência – textos e cultura material – são complementares. O


registro arqueológico contém informação histórica apenas indiretamente refletida no
registro textual e vice-versa. A interpretação de cada um deles é, com freqüência,
corrigida e ampliada pela referência à outra”.

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Pedra da Roseta

Uma civilização africana

Por longa tradição, o estudo do Egito, desde o início do século XIX, esteve ligado à
expansão imperialista ocidental. Por isso, muitas vezes passou despercebido que a
civilização egípcia desenvolveu-se na África e que seu povo falava uma língua africana.
Ainda no início do século XX o pioneiro da Arqueologia do Egito Antigo, Flinders Petrie
(1853-1942) - um britânico racista e conservador - não admitia que a civilização egípcia
fosse autôctone, mas falava em uma invasão de uma raça superior vinda da...Europa!
Isto começou a mudar com o movimento de descolonização, a partir do final da Segunda
Guerra Mundial (1939-1945) e, mais particularmente, com os movimentos pelos direitos
civis e contra o racismo. O estudioso senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986), um dos
grandes intelectuais africanos anti-colonialistas, explicitou que os “egípcios eram negros”,
o que continua sendo um debate no meio acadêmico. Ainda que os egípcios, assim como
outros povos da Antiguidade, não se definissem por critérios de cor da pele e, portanto,
nunca se tenham chamados de negros, não cabe dúvida que sua população era, em sua
maioria, africana, mas não necessariamente negra e houve sempre, como vimos neste
capítulo, a entrada de povos da África subsaariana no vale do Nilo. No final do século XX,
o estudioso Martin Bernal (1937-) publicou o livro A Atena Negra e argumentou pela
importância das tradições e costumes africanos para as civilizações mediterrâneas
posteriores, como a grega e a romana, por intermédio do Egito faraônico. O
reconhecimento do caráter africano da civilização egípcia é tanto maior no contexto
brasileiro, tendo em vista que parte da nossa população possui ancestralidade africana e
que a cultura brasileira deve muito à herança afro.

Mulheres, relações de gênero e sexualidade

Outro tema que resulta das transformações sociais das últimas décadas refere-se
ao papel da mulher e da sexualidade. Os movimentos pelos direitos das mulheres vêm
desde o século XIX, com a busca do direito de voto – no Brasil, só obtido na década de

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1930 – e com o reconhecimento das prerrogativas femininas quanto ao seu corpo. Tudo
isso levou, nas últimas décadas, à história das mulheres, das relações entre os gêneros e
da sexualidade. Isto não poderia deixar de afetar a egiptologia. Multiplicaram-se as
egiptólogas e novas descobertas foram feitas. Já no antigo reino, as mulheres ocupavam
alguns cargos administrativos e muitas mulheres da família real tiveram proeminência.
Mais do que isso, como propugna a egiptóloga Lynn Meskell (1967-), “a sexualidade
feminina, não sua fertilidade (gravidez), está representada nas cenas tumulares e as
qualidades sexuais das mulheres eram um atributo buscado na vida pós-morte, tanto
quanto servidores e comida”. Também outras sexualidades têm sido estudadas, tendo em
vista que homens castrados ou eunucos constituíam uma categoria social, assim como
temas antes pouco mencionados, como a infância. Todos esses estudos têm renovado o
campo dos estudos do Egito Antigo. O papel da mulher é significativo na perpetuação da
linhagem e isto pode ser verificado no que consideraríamos como sobrenome. De um
modo geral, as assinaturas nas tumbas dão ênfase à mãe, como se fosse algo como:
“fulano filho da senhora da casa fulana”. Além disso, o divorcio era algo instituído e no
Egito greco-romano os contratos definem claramente as clausulas e penalidades.

A religiosidade

Talvez o aspecto cujo interesse foi mais persistente tenha sido a religiosidade dos
antigos egípcios. Já os antigos gregos admiravam-se com os deuses, sacerdotes, mitos e
rituais egípcios e essa sensação perpassou as percepções posteriores de romanos e dos
modernos ocidentais. Movimentos como o espiritismo e sociedades secretas como a
maçonaria, os rosacruzes e a OTO, sobretudo, com Aleister Crowley inspiraram-se no
Egito Antigo e, em pleno século XXI, há intenso interesse por aquela religiosidade. Os
egípcios não distinguiam, de maneira clara, o mundo natural e sobrenatural, na medida
em que divindades e humanos interagiam no plano social e físico. A fertilidade ocupava
um lugar de destaque tantos nos relatos míticos, como nas representações e festivais.
Algumas divindades representavam o falo, clara referência à reprodução, assim como
Osíris era o deus da ressurreição. Osíris, deus dos mortos e da vida pós-morte, é uma
das mais antigas divindades egípcias, tendo surgido ligado à fertilidade, à agricultura e à
inundação anual do rio Nilo. Foi associado à ressurreição e à vida eterna. Já mumificado,
fecunda sua esposa, a deusa Ísis, que gera Hórus. A mumificação dos mortos associou-
se a Osíris e à sua promessa de vida eterna.

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Os egípcios, no geral, acreditavam na vida eterna que poderia ser garantida pela
piedade para com os deuses, pela preservação do corpo por meio da mumificação e pela
manutenção de um enxoval funerário. Acreditavam em aspectos vitais que mantinham a
vida, na forma de manifestações da alma, sob os nomes de ka, ba e akh, essenciais para
a sobrevivência humana tanto antes como depois da morte. As mais antigas múmias
descobertas pela Arqueologia recuam a 3600 a.C., em Hieracómpolis, com os corpos de
três mulheres preservados. Outros arqueólogos recuam a mumificação para muito antes,
entre 4500 e 4100 a.C., em Badari e Mostageda. Como quer que seja, dois aspectos
chamam a atenção: a preocupação tão antiga com a mumificação e a proeminência
feminina. Nessa ânsia pela vida eterna, a divindade Maat representa a verdade ou a
harmonia que a alma deve afrontar após a morte.

Outro aspecto refere-se à associação da religiosidade com o poder. A autoridade


real sempre esteve fundada na legitimidade sobrenatural, numa associação do
governante com o mundo das forças cósmicas. O próprio faraó podia ser considerado um
deus ou possuir atributos divinos. A legitimidade do poder estava ligada à ligação dos
governantes com o sobrenatural e esse aspecto da religiosidade egípcia persistiu e, de
alguma forma, transmutou-se, primeiro, no Cristianismo e, depois, no Islamismo que se
instauraram no Egito.

O estudo do Egito Antigo no Brasil

O Egito Antigo fascina os brasileiros desde o século XIX. No Império, D. Pedro I


trouxe para o Museu Nacional objetos arqueológicos do Egito, inclusive uma múmia, um
dos grandes tesouros do acervo até os dias de hoje. A maçonaria contribuiu para essa
popularidade, assim como o positivismo e, a partir do século XX, a indústria cultural, com
filmes, livros e outros produtos de alto apelo. O Egito antigo esteve presente nos livros
didáticos de História desde cedo, como uma civilização originária da tradição ocidental. A
partir da década de 1970, iniciaram-se os estudos universitários especializados e, pouco a
pouco, começaram a surgir mestrados e doutoramentos dedicados ao Egito Antigo e a
suas releituras. Discutiram-se temas econômicos - como o modo-de-produção asiático -
assim como a legitimidade do poder, as relações de gênero e os usos do passado. O

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Egito antigo, tão popular, tornou-se objeto tanto de estudos científicos e acadêmicos,
como de reflexões sobre as apropriações e usos contemporâneos.

Conclusão: a atualidade do Egito faraônico

É impressionante como o Egito continua a fascinar, mais de cinco mil anos depois
dos primeiros faraós. Esse fascínio demonstra a imensa riqueza cultural daquela
civilização e, ao mesmo tempo, indica como podemos usar essa extraordinária
experiência humana para aprimorar o conhecimento da nossa própria sociedade, em
pleno século XXI. Questões como a sexualidade, a espiritualidade e as dimensões étnicas
relacionam aquela civilização tão antiga e misteriosa à nossa realidade do século XXI. O
Egito continua fonte de inspiração e reflexão.

Agradecimentos

Agradecemos a Margareth Marchiori Bakos, Ciro Flamarion Santa Cardoso,


André Leonardo Chevitarese, Gabriele Cornelli e Lynn Meskell. Mencionamos,
ainda, o apoio institucional do Departamento de História da Unicamp. A
responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores.

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