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UM CONDUTOR DE HOMENS 87

cada família faz um sinal com o sangue daquela vítima que, seme
lhante ao ·carneiro de Abraão, resgata a vida dos filhos de Deus. Por
isso, hoje, na Assíria, para dar protecção ao hóspede, traça-se
a. sangue um sinal no seu manto e no pescoço a sua montada. Nasceu a
Páscoa, a festa da «passagem»; Israel comemorá-la-á todos os anos,
como recordação da noite em que o poder da morte «excedeu
a.s próprias marcas» e constrangeu a força brutal a deixar agir Deus.

Um prüblema de datas

O povo de Israel vai deixar o Egipto. Neste ponto a história


levanta bastantes probl emas . Terá o governo minucioso dos Faraós
conservado em seus arquivos algum vestígio da •esté!dia dos Israelitas
no Egipto e do seu Exodo ? Quem foi esse rei iníquo, ou, o que vem
a dar no mesmo, quanto tempo se demomram os descendentes de
José na terra de Gessen ?
Nenhum documento egípcio nos fala dos ,Israelitas. Temos mui tas
provas da presença de Semitas nómadas na região do Nilo; um baixo-
relevo mostra-nos um Africano beiçudo e um Asiático de nariz curvo
amarrados costas com costas ; o ceptro de Tutankamon repre senta,
justapostos, como as duas figuras duma carta de j ogar, um Negro e um
Semita, o duplo perigo da coroa. Mas factos destes conhecem-se desde
Abraão ; não desaparecem com o Exodo; e tra tar-se-á de descendentes
de José ?
As lendas começarão a formar-se, um dia, quando a tradição
bíblica se tornar conhecida em todo o Oriente. Maneton,
historiador egípcio, apresentará os Israelitas rnmo «leprosos» que
tendo sido relegados para junto dos lagos Amargos, se revoltaram
e fugiram por ocasião da derrota dos Hicsos, - explicação que
não passa dum modo de tomar ao pé da letra a expressão «lepra da
Asia» com que era mimoseado tudo que lembrasse os reis
pastores.
A descoberta, em El-Amarna, de «tabuinhas» em que se assi nal a
a presença no Egipto dum povo chamado os Habirú, forneceu uma
notícia interessante. Tratar-se-á dos Hebreus? Eram-no, sem dúvida.
O R.. P. de Vaux (1) , conclui que, por certo , eram Semitas

( ' ) Ver nota de pág. 32.


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nómadas pertencentes à grande vaga aramaica.. Mas este nome de


Habirú encontra-se um pouco por toda a parte, até na Ásia-Menor
hitita, e, se é indubitável que os Israelitas faziam parte desse con junto
étnico, não temos nenhuma razão para crer que todos os Habi rús
fossem descendentes de José. A descoberta de El-Amarna tem um
alcance muito limitado.
Numa estela, erguida pelo Faraó Menefetá, no séc. XIII, há no
entanto, vestígios da presença dos Israelitas, senão no Egipto, pelo
menos na Palestina do sul. O rei enumera as nações que venceu :
Canaã, Ascalão, Guezer, e termina: «Israel está destruído, já não tem
semente». É a primeira menção daquele nome, num texto extra
-bíblico. Ela confirma a existência da linhagem de Jacob. Mas,
para se lhe compreender o sentido exacto, seria preciso saber-se a
data do Exodo e, neste ponto, estamos no pleno campo das
hipóteses. Poder-se-á determinar ·essa data uma vez que se
estabeleça o número de anos que os Israelitas permaneceram no
Egipto ? A nossa Bíblia diz que viveram lá durante quatrocentos e
trinta anos, mas a feita no séc. III antes da nossa Era, em
Alexandria, inclui nesse número a época dos Patriarcas, reduzindo
a permanência a metade. Os outros meios de cálculo são
igualmente imprecisos: por exemplo, o de retroceder duma data
quase certa, no reinado de Salomão, totalizando as durações dos
tempos que o texto indica. Recentemente tomaram-se como base as
escavações de Jericó, primeira fortaleza tomada por Israel na
Palestina : ter-se-ão encon trado aí vestígios dessa destruição,
como se julga ter descoberto em Tróia os sinais do incêndio
ateado por Agamémenon ? O assunto
está em discussão.
Conforme se adapte uma ou outra da:s hipóteses mais correntes,
o Exodo situa-se à roda de 144º ou de 1225. E as perspectivas são muito
diferentes. Uma coisa é certa ; é que a partida de Moisés ocorreu
muitíssimo depois da expulsão dos Hicsos, no momento em que o
Egipto, sob os Faraós das XVIII e XIX dinastias, atingia o auge do
seu prestígio e poderio. Tentemos imaginar o desenrolar dos
acontecimentos, num e noutro caso..
Na primeira hipótese, trata-se da XVIII dinastia. Depois dos
Faraós da XVII expulsarem os Hicsos, os seus sucessores compreen
deram que, para evitar a repetição de semelhantes catástrofes, · era
preciso vencer a Ásia em sua própria casa. Em contacto com os reis.
pastores, o Egipto tinha aperfeiçoado os seus métodos militares,
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possuía divisões de carros; os seus soldados, em vez de


combaterem nus, estavam mais bem armados, dispondo de dardos
e espadas, e, por vezes, de peitorais acolchoados. Tutemés I, cerca
de 1530, invadiu a Síria, atingiu o Eufrates, e, estupefacto por
encontrar um rio que corria num sentido contrário ao do Nilo,
gravou numa estela: «Vi a água, mudada de direcção, descer
subindo». Após um período de pausa, as expedições recomeçaram
no reinado de Tutemés III, con quistador magnífico. Durante vinte
anos, de 1500 a 1480 aproxima damente, este homem - cuja
fisionomia, no Museu do Cairo, respira inteligência e coragem, -
guerreou vitoriosamente. A Palestina e a Síria tornaram-se
protectorados seus; pagaram-lhe tributo Chipre e as ilhas grega:s .
No templo de Amon, em Carnac, a lista das suas façanhas ocupa
cem metros quadrados. Depois dele, sobreveio o declínio. Seu filho
Amenófis II, é medíocre; e cinquenta anos depois, Amenófis IV, o
faraó revolucionário, alterou toda a política egípcia, inventou uma
espécie de universalismo pacifista e deixou enfraquecer
terrivelmente o poderio do seu reino.
A gois f!lr.aós : aquele que perseguiu Israel e o
do Exodo. O primeiro seria, po!s�- . Tutemés III, que adoptou uma
política de -carácter nacionalista. No tempo de s eu filho, o grotesco
Amenófis II, Moisés teria feito partir Israel, entre cerca de 1450
e 1420. Nesta hipótese, poder-se-ia até identificar a «filha do Faraó».
Após a morte de Tut.emés I, o poder passou a ser exercido por uma
regente, que suplantou o seu semi-irmão e mar1do, o insignificante
Tutemés II. Essa mulher forte chamava-se Hatshepsu; fez-se repre
sentar nos monumentos ostentando pschent real e barba postiça ; foi
ela quem construiu o templo de Deir-el-Baari, o «sublime dos
sublimes», em cujas cblunas brilha a pureza dórica; foi ela ainda
quem mandou à «terra de Punt» (a Eritreia, a Somália) u ma expe
dição para de lá trazer perfumes. Será essa princesa a rapariga
caridosa que o pequeno Israelita abandonado ? Flávio Josef o,
historiador judeu, conta que Moisés, na sua mocidade, teria coman
dado um exército egípcio, numa guerra na Núbia.. Neste caso o
episódio tornar-se-ia cl aro: Hatshepsu salvou Moisés, educou-o e
confiou-lhe postos importantes. Falecida essa princesa, seu genro
Tutemés III, que a detestava (foi este rei quem fez desaparecer, à
martelada, o nome dela, dos monumentos) , expulsou o antigo favo
rito e perseguiu os Hebreus.
Esta hipótese sedutora tem, no entanto, contra ela vários argu-
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mentos. Em primeiro lugar, para que reduzir o tempo da perma nência


de Israel no Egipto ? O povo orgulhoso teria, porventura, exagerado o
período em que se confessava ter estado em escravidão ? E, por outro
lado, se o Exodo se realizou cerca de 1440, os Hebreus estavam na
Palestina no séc. xm ; como se compreende que a Bíblia não apresente
vestígios dos acontecimentos dramáticos que lá se desenrolaram,
durante a XIX dinastia? (1) .
Depois da crise política e religiosa desencadeada por Amenó fis
IV, Akenaton (2) - o revoltado, o piedoso ímpio, - um faraó,
discretamente apagado volta a meter tudo na ordem: referimo-nos a
Tutankamon, cujos tesouros funerários, descobertos em 1922 , lhe
celebrizaram o nome. Segue-se-lhe uma nova dinastia que retoma a
ofensiva na Síria. Nesse plano inclinado que é o Egipto, Seti I rea
liza numerosas expedições até ao Taurus. Foi seu filho o faraó Rame
sés II. É curiosa a sorte deste rei, indubitàvelmente notável, não,
porém, ao ponto de merecer tornar-se o único faraó de quem a huma
nidade sabe o nome. Não há quem não tenha visto, em fotografia,
a sua múmia, de cujo velho rosto o embalsamento não apagou a
expressão de energia e lucidez. Um dos seus obeliscos ornamenta a
Praça da Concórdia. Alto, elegante, cheio de força, esse homem

(' ) Quadro das XVIII e XIX dinastias dos Faraós :


XV!II - Akmés 1 5 80- 1 5 60 (todas estas datas são
a p roximativas)
I . AmenóR's 1 5 60-1 5 3 0
Tutemés I l 5 30- 1 500
Tutemés II
Hatshe ps u
Tute m é s III

1
Amenófis II .
< ; •XH 4 ;
Tutemés IV .
0 14 5 0 -
Amenófis III . ·

14 4 0
Amenófis IV .
1440-14!0
Tutankamon .
1410- 13 75
Horemeb .
1375 - 13 60 (o faraó revolucionário Akenaton).
XIX - Ramesés
13 60-135 0
I
Seti I . 1 3 5 0- 1315

Ramesés II 13 15-1 3 1 4

Menetetá . 1 3 1 4-12 90

Amenósis 12 90-12 25

Sipta 12 25- 1215

Seti II
.� 121 5-1 205 (seguido duma anarquia).

(') Ver, adiante, o parágrafo imediato.


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conheceu, durante sessenta ·e cinco anos de reinado, tudo o que o poder


e a vida podem conceder.
Numa circunstância dramática, Ramesés II salvou o Egipto.
Deu-se o facto 110 princípio do seu governo, em Cadés, junto do Orante
(1) : contava ele vinte e cinco anos de idade. O perigo pro vinha dos
Hititas, que, como vimos, já davam sinais de si, seis ou sete séculos
antes. Ainda não há muito, o termo «hitita» era um desses nomes
bíblicos sobre que se bordam conjecturas.. Quem seria
«o filho de Heth» ? Quem seria esse Hitita ou Heteense a quem
Abraão comprou a caverna de Macpela? Os Gregos só conheciam
desse povo uma lenda, a das Amazonas. Há cem anos, aí por 183
5, o Francês Carlos Texier descobriu perto da aldeia de Boghaz-
Keuí, na T:.ir quia, cem quilómetros ao sul de Sinope, umas ruínas
consideráveis;
ninguém lhes ligou importância. Em 189 3 , Chantre e Boissier, na
mesma região, exumaram algumas «tabuinhas» cuneiformes, e
afir maram que se tratava duma língua desconhecida. Por fim, em
1906, o Dr. Winckler, Alemão, encontrou, inesperadamente, uma
verdadeira mina de documentos: 2. 500 «tabuinhas». Em 191 5, o
professor checo
Hrozny principiou a lê-las e publicou uma gramática. E então os
Hititas começaram a surgir da História. Actualmente, reconhece-
se que eles foram um elemento essencial desse mundo antiqufssimo
da Ásia-Menor, carregado de civilização, no qual os Gregos
vieram a mergulhar as suas raízes .
Os Hititas talvez sej am de origem ariana. Sem dúvida, foram
da Europa para a Á sia, pelo Egeu. Nos seus monumentos são fre
quentemente representados com nariz recto que prolonga a testa, como
os Helenos. A língua que falavam tinha certo parentesco com o
grego arcaico, levando a crer que ambas procederiam dum fundo
comum. O seu sistema político, estabelecido sobre a hierarquia de
«pequenos reis» dominados por «um grande rei», faz lembrar
estranhamente o dos gregos homéricos, aquando da expedição de
Tróia, comandada pelo «Rei dos Reis». Vantajosamente situados
no coração da Ásia
-Menor, fiscalizando as estradas desde o Mediterrâneo até ao Cres
cente fértil, possuidores de ricas minas de ferro, o que lhes assegu
rava um grande poder de armamento, - subjugaram os povos
vizinhos, a quem domesticaram. Do séc. XIX ao séc.. XVII , tiveram
( ) Ver o Mapa, pág. 17.
'
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um período de poderio e de esplendor imperialista. O seu «grande


-rei» que a si próprio se inti tulava «meu sol», havia subjugado
toda a Asia-Menor e fizera expedições até à Babilónia. Depois
sobreviera um período de retraimento, simultâ:neo ao da
dominação dos Hicsos no Egipto, e que teve, certamente, causa
igual à que motivara o declí nio dos Faraós. Restabelecidos no seu
poderio, os reis do «Hati» voltaram no séc. XIV às suas ambições
de conquista. Um deles, Supi luliuma, uma espécie de Luís XIV
hitita, aproveitando a crise em que o místico Akenaton estava a
lançar o Egipto, estabeleceu o seu
domínio sobre todo o norte da Síria. De 1360 a 1260, a capital da
Asia-Menor, Hatus (a actual Boghaz-Keuí) , fora o verdadeiro cen tro
político do Oriente, o lugar em que as potências urdiam as suas mais
importantes combinações . Entre este povo j ovem, ·em plena
expansão, e o antigo reino faraónim, o conflito era fatal.
Explodiu, mal Ramesés II subiu ao trono. O velho rei hitita,
Muatal, com 3. 500 carros, armou uma cilada ao jovem faraó pre
sunçoso. Cortado em dois o exército egípcio, diante de Cadés,
Ramesés esteve a ponto de ser morto. A sua bravura pessoal e o
amor da pilhagem característico dos Hititas, permitiram-lhe mudar
a sorte das armas. A situação ficou indecisa, o que era melhor que
um desas tre.. A paz foi assinada, celebrando-se um minucioso
tratado na língua diplomática do tempo : a babilónica. Ramesés
casou até com uma princesa hitita, e, pensando na posteridade,
fez�se representar como vencedor, num formoso carro puxado
pelas suas duas éguas favo ritas, «Alegria da deusa» e «Glória de
Tebas».
É inverosímil que, se de tai:s acontecimentos os Hebreus
tivessem sido testemunhas oculares, a Bíblia não dissesse palavra
a tal res peito. Por isso, numa outra hipótese, muito S•edutora, o
Faraó per seguidor de Israel seria Ramesés II. Isto condiz
perfeitamente com o que sabemos dos seus métodos; do seu desejo
de expulsar do Egipto toda a influência asiática ; sobretudo, das
e,

suas edificações . Porque Ramesés II foi um maníaco da


construção, um contramestre apaixo nado. Não contente com
edificar, apoderou-se dos monumentos dos antepassados e pôs
neles o seu próprio nome; para andar mais depressa muitas vezes
mandou executar falsas aparências, - como pinturas que
imitam a escultura, escavados que parecem altos
-relevos. Mas Carnac e Lucsor estão cheios dessas obras gigan tescas.
Em plena Núbia, em Abul-Simbel existe ainda hoje a sua gigantesca
recordação. E a fim de vigiar a fronteira do istmo, fez
UM CONDUTOR DE HOMENS 93

construir no Delta, para o lado oeste, uma nova capital, uma cidade
sumptuosa, para o que mandou ir mão-de-obra de toda a parte. Essa
«cidade de Ramesés» é verosimilmente aquela em que a Bíblia diz terem
trabalhado os Israelitas ; os tijolos da escravidão foram utili zados nessas
obras desmedidas.
Nesta hipótese, deixa de se poder identificar a «filha do Faraó» ;
mas em vez de a vermos personificada na imperiosa Hatshepsu, não
será preferível imaginá-la como uma dessas encantadoras figu ras que a
XIX dinastia nos deixou, uma rapariga bem penteada, de sorriso
discreto, e apertando contra o peito uma flor de lótus ?
O Fanié>_ dg Exo clo seria Menefetá, trigésimo filho de Rarpesés II ;
_ _

chegado tarde ao poder (o pai vivera tanto tempo !) teve


grandes dificuldades na Palestina ·e na Síria, foi obrigado a comba tê-
las com várias expedições e, por fim, regressou à terra africana que
se encontrava ameaçada pelos povos do Mar. Compreender-se-ia que
Moisés aproveitasse essa fraqueza. Por tal razão, a data mais
geralmente aceite para o Exodo situa-se à volta de 1 2 2 5 (1) .

A influência e€ípcia

Uma permanência de muitos séculos em terras do Nilo nãG


podia deixar de ;exercer nos Israelitas profunda influência. E, de
facto, o Egipto é incessantemente lembrado em toda a Bíblia : na
maioria das vezes, porém, para o cobrir de opróbrios. «A protecção
dos Faraós é uma vergonha», dirá o Profeta Isaías (xxx, 3 ), o qual
apresenta também os Egípcios como insensatos», «interrogadores de
nigromantes, de ídolos e de encantadores», trémulos diante do Deus
de Israel (x1x, 1, 2 5 ). Os resulta:dos da influência dessa gente per
tencem ao número daqueles que o povo eleito terá de combater em si
próprio.
O próprio Moisés possui uma faceta inteiramente egípcia, e que
é a mais obscura da sua personalidade: a dos dons ultra-normais, em
que insiste a Sagra:da Escritura. Aquela «sabedoria do Egipto» que
ele possuía, era talvez a ciência isotérica muito considerada nas

( ) O R. P. de Vaux (ver, antes, a nota de pág. 3 5 ) admite, para a ocupa ção de


'

Canaã, a última parte do séc. XIII, o que coloca o :Êxodo na segunda metade
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margens do Nilo : o m ágico tinha aí o nome de rekh khetu,


«aquele que conhece as coisas». Vemos Moisés diante
do Faraó, a um torneio de sortilégios com os feiticeiros do país;
nos Contos Populares do Egipto, recolhidos por Maspero, os
mágicos têm o poder de realizar prodígios como os de dividir ao
meio as águas dum rio ; cortar a cabeça a um homem e tornar a
colá-la; dar vida a um pequeno crocodilo de cera; tornarem-se
invisíveis . . . A recordação destas proezas sobreviverá na tradição
grega, na fábula do Proteu das formas inumeráveis, de que fala
Homero.
No entanto, há uma grande diferença entre a taumaturgia de
Moisés e a magia do Egipto : a primeira não era empregada para
constranger a Deus. Os «sábios» do Nilo procuravam, mediante os
seus processos secretos, compelir a divindade: o próprio pecador,
merecedor de condenação, escaparia ao castigo desde que soubesse
certas fórmulas : contradição e imoralidade duma religião tão elevada
quanto a outros aspectos. Moisés, profeta de Deus, só usou dos
seus poderes para o servir e realizar a missão de que fora
encarregado. Evidentemente foi no Egipto que os .Israelitas
encontraram a sugestão da sua casta sacerdotal. O sacerdócio
constituía, no tempo dos Faraós, uma verdadeira potência, que,
algumas vezes, o foi con tra os próprios Faraós. Agrupados em
colégios riquíssimos, politi camente muito activos (em particular
os de Amon), os sacerdotes eram os defensores ferozes da tradição
nacional. Os Levitas virão a desempenhar - levando-a ao excesso
- essa mesma função nos des tinos de Israel. Moisés pertencia à
tribo de Levi, que será por ele consagrada ao serviço divino.
Talvez essa tribo tivesse conservado mais puro o culto do Deus
único, e por isso tenha servido de núcleo
de cristalização para o povo de Israel .
Porque não há dúvida alguma de que, tanto no caso do Exodo
como no da emigração de Ur, as causas mais profundas desses
movi mentos foram razões de fé.. O Egipto era uma terra saturada
de teologia, um país profundamente religioso ; em demasia até ! O
poli teísmo revestia ali as formas mais singulares; um panteão -
pare cido com uma colecção zoológica, - abrigava a fauna das
divin
dades: o falcão Horus, o ganso Geb, o crocodilo Sebeque, o touro
Apis, e o hipopótamo, e o abutre, e a víbora, e ainda todos os deuses
meio-homens meio-animais, corpo de mulher e cabeça de vaca, cabeça
de leão e rosto humano. Por sobre toda essa mitologia, a imagem
de Osírís, deus generoso e justo, parecia infinitamente mais pura.
UJH CONDUTOR DE HOMENS 95

O facto religioso ocupava no Egipto um lugar considerável.


Os únicos monumentos que se construíam para longa duração eram
os templos, e não os palácios ou os túmulos. Um século antes de
Moisés, produzira-se um acontecimento deveras singular : certo Faraó,
Amenófis IV, a figura mais misteriosa entre as de todas as dinas
tias, tentara realizar uma revolução em nome de religião. Os seus
retratos apres.entam-nos um tipo de «fim de raça» : crânio enorme;
pescoço magro, que parece ter dificuldade em aguentar o peso
demasiado da cabeça; e no rosto alongado, uns olhos algo
oblíquos; todo ele parece crepitar duma paixão estranha. Sua
mulher, Nefer titi, que se lhe assemelha, tem o encanto duma flor
da decadência. Não obstante, esse frágil casal tentou a revolução
mais audaciosa da história do Egipto. Para se desembaraçar do
poderio dos padres, Amenófis IV destruiu-lhes o deus ;-eliminou
Amon. Proclamou outro deus, Aton; ele próprio trocou o nome
(que lembrava o adversário) , pelo de Ak enaton, «o favorito de
Aton»; Tebas foi abandonada como capital, 'e o Faraó
revolucionário fez construir, mais adiante, uma nova cidade, «o
horizonte de Atom>, essa El-Amarna, onde foi encontrada a
-

colecção completa dos arquivos diplomáticos do mesmo rei.


Alterou todos os hábitos do Egipto; os bens de Amon foram
secularizados, e o nome desse deus foi martelado nos monu
mentos. A própria arte se transformou sob influências estrangeiras,
s em dúvida cretenses ; o hieratismo tradicional, substituiu-o Ake
naton por um realismo maravilhoso.
Esta revolução religiosa não perturbaria por muito tempo o curso
dos destinos egípcios. O próprio genro de Akenaton, Tutankamon,
voltou aos deuses tradicionais; duas dinastia:s depois, os padres de
Amon suplantarão os Faraós e serão reis. Mas a tentativa a que aca
bamos de nos referir mostra até que ponto imperava no Egipto a
realidade religiosa. Se não é indiscutível que Akenaton se tenha
elevado à noção do deus, ele concebeu Aton como uma divindade
suprema, à qual todas as outras estavam submetidas., E falava do seu
deus num tom de tanto amor que, quem quer que possua alguma
compreensão do misticismo, não pode ficar indiferente (1) .

( ' ) Ver : A. Veigail, Le Pharaon Akhenaton et son époque, trad. franc. por
H. Wild, Paris, 1936; ]. D. S. Pendlebury, Les Fouilles de Tell et Amarna (id . e Daniel
-Rops. Quêtes de Dieu, Paris, 1945, e Des' images de grandeur, Paris, 1949.
96 O POVO BÍBLICO

Nesse clima saturado de religiosidade, é natural que, mesmo


conservando-se à parte, Israel haja sofrido influências. Algumas foram
puramente exteriores; da mesma forma que certos ritos tinham sido
copiados da Mesopotâmia e de Canaã, encontram-se na religião moisaica
certos elementos de aspecto egípcio. A Arca da aliança deverá muito,
sem dúvida, às barcas sagradas de Amon que os padres do Egipto
transportavam com grande pompa. Os Querubins foram, talvez, a
princípio, homens com asas de falcão imitadas do culto de Horus (depois,
tomarão um ar assírio) . Os ornamentos de culto dos levitas, as vestes
talares e os peitorais, são de origem egípcia. Tais
factos têm pouca importância; tudo dependerá do destino der que se
-
aos ritos.
Exerceu-se uma influência mais profunda, da qual alguns resul
tados foram benéficos. Houve quem chamasse a atenção para a seme
lhança dos Mandamentos de Moisés, com o Livro dos Mortos: se a
antiga moral do Egipto ajudou Israel a tomar consciência da lei,
isso redundará em honra daquela moral. Também há correspondên cia
entre o Salmo crv da Bíblia e o hino de Akenaton ao s eu deus ; tanto
um como o outro, são o louvor místico do Criador ; nada nos diz,
porém, qual tenha sido o sentido em que a influência se exerceu, e se
o Faraó revolucionário não conheceria os temas do pensamento
israelita. Mas às influências nobres e elevadas juntam-se outras
que o são menos. A idolatria, pura e simples, contaminou,
certamente,
o povo de Israel durante a sua longa estadia em terra idólatra.
A pureza da missão não podia ser mantida sem a recusa de todos
os sincretismos e de todos os compromissos. O país onde se encon
travam instalados os Israelitas era, justamente, uma dessas regiões
de passagem onde se misturam as ideias e as raças ; na sua capital
do delta, Ramesés II tinha erguido templos a toda a espécie de divin
dades - por exemplo, a Astarteia, deusa da Ásia. Partir, regressar
ao deserto, era fugir dessas tentações idólatras. Moisés, energica
mente, constrangerá a sair o povo que Deus lhe confiou.

Á partida para v deserlv

Moisés tem a grandeza sem encanto dos autênticos condutores


de homens, a grandeza daquelas figuras que, no coração dum povo,
imprimem um selo indelével. Com ele parte, diz a Bíblia (Ex., XII, 38) ,

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