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CANIVETE

Eu já era mais ou menos conhecido


entre os canalhas

João Rodrigues Pinto


CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Gênese da obra

A obra apresenta o drama de Tomás, filho de


Sebastião, um bandido perverso e sádico; e de Maria, uma
costureira humilde, temente a Deus e vítima constante da
violência doméstica. Além de Tomás, o casal tem duas
filhas adolescentes, Estela e Aparecida. Tomás tinha
apenas sete anos, quando o pai o inicia na escola do crime.
Recebeu o apelido de Canivete e a partir de então, vive
dividido entre duas personalidades: de um lado, Tomás,
menino honesto, amoroso e terno. De outro, Canivete, um
pivete destemido, astuto e ladrão.
Em Canivete tudo muda, passa, flui, sem
delimitações, contudo, é preciso reconhecer que João
Rodrigues Pinto, como Bauman, tem consciência da
modernidade líquida, não é pessimista, revela o que há no
contexto. Assim, não se surpreendam, compreendam e
aprendam com a santa Maria, não a outra, mas com esta
mulher de fé que o escritor criou, a mãe de Canivete, se
nos alerta: “A miséria não cede espaço para sentimentos”.
A obra revela o escritor e sua solidão ao reconhecer
a si mesmo como objeto de análise, é um ser humano que
prima pela sabedoria e criatividade. Tem imaginação.

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Trabalha a realidade como artesão. E que artesão! Concebe


personagens marcantes e originais: um pai e um filho, um
tempo contínuo, sem considerações sobre o essencialismo,
a crença nas imutabilidades das formas viventes. João
Rodrigues não faz ciência, mas é ciente de tudo, cria e
recria com experiência e imaginação o seu ser humano
que não faz, senão, declinar de seus sonhos e mergulhar
no nada ser, algo assim Sartriano. Rodrigues mostra suas
crias como cobaias, saem do campo para a grande cidade,
habita em laboratório, alvo de experiências do escritor. E,
no morro de feras, o laboratório naturalista, sem trabalho,
muita miséria, ser ladrão é o ofício. Ele, o escritor, não
aborda nada que causa isso. Só mostra o que é. É
inevitável esta interpretação. Não fala, mas revela com
propriedade tudo sobre o ser humano. Falar do
comportamento filosófico e social do ser humano, é
revelar fome e desespero, é fazer lembrar do egoísmo, do
consumismo que se tornou um elemento central na
sociedade “pós-moderna”, ou melhor, na “modernidade
líquida”. Muito além das satisfações, a fome, a
necessidade de consumir vorazmente, ferozmente passa a
ser um peso primordial nas relações sociais e familiares e
na construção da personalidade de seres como Canivete.
Ah, Rodrigues revela isso. O livro é mais psicológico.

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Canivete tem dupla personalidade: é Tomás o filho de


Maria, com fé e esperança em Deus; é Canivete, ladrão,
assaltante destemido, sem medo, à imagem e semelhança
do pai-bandido, aquele que garante poder e respeito.
Em Canivete, parece que Cícero tem razão:
Filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte.
João Cabral de Melo Neto também nos passou isso com
Morte e vida Severina. Também, em João Rodrigues, a
morte é uma possibilidade próxima à vida desde o
nascimento. Não há alegria na vida em comunidade.
Privilegiam-se as relações interpessoais e que podem ser
desfeitas com a mesma facilidade que são estabelecidas,
assim como mercadorias que podem ser descartadas,
como relacionamentos em redes. O noivado e o amor não
duram, o amor entre macho e fêmea não dura, as amantes
não duram, não interessa saber se há caso de exceção. O
que pode ser são respingos de vidas que fluem,
transbordam, vazam. O estado de liquidez, relacionado a
constante mudanças, a sabor de vento em contínua
violência tempestuosa.
O excesso da fome, o excesso da liberdade, o
excesso de normas, a discriminação, o isolamento, a ironia
do destino. Tantos crimes sem julgamentos e condenações
sem crimes. Na situação contingencial, não há sentimento,

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

nem culpa. De um lado e de outro, do muro que isola, há


crimes, há mentiras, há roubo, há morte e falsas mortes,
como há vidas severinas, angústias e desafios em
existências mal vividas.
Em Canivete, a crise acontece no tempo em que o
velho, o pai, já se foi. Um ramo da árvore de dois galhos,
um pai assassinado pelo filho que gerou e o novo, o filho
que segue sem definição, um objeto sensual e social, sem
conceito, senão o de ser Canivete, esforça-se para ser
Tomás, fraqueja, sem estudo, sem forma, sendo apenas
alguma coisa na involução, até ser o estável, um
sobrevivente, um procriador. Ser livre sim, pode ser
sempre, mas sem poder para transformar o mundo que
herdou. Há esperança, contudo, se o homem tiver fé na
ação? Ações que geram angústia, ansiedade, desemprego,
violência, terrorismo, no final, são superadas no livro?
Caracterizam a esperança, a figura da mãe e a do padre,
bem como as relações antes no domínio egoísta, são
substituídas por ações coletivas, filantrópicas, culminando
com sentimento de irmandade e amor filial. Mas até
quando? A fé, pode ser a salvação do mundo, mas quando
será essa salvação? Tudo fica em aberto. É para se pensar.
Tudo é processo, sem propósito de delimitar....

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

O livro de João Rodrigues é, via de regras, ousado e


interessante, modernista ambíguo, passa a moral sem
normas de moralidade, com interditos, onde não há
sentimento. Se não há sentimento na ação, não há razão, se
não há razão não há responsabilidades, não há
culpabilidade: e não há moral na literatura desse autor.
Rodrigues denuncia, revela um campo de possibilidades
do mal em desenvolvimento: tentativa de incesto, o sexo e
a violência animalesca, assassinatos, a cumplicidade entre
mãe e filho, a relação e o complexo de édipo, a ausência de
olhares firmes de um para outro, a traição. O projeto de
sobrevivência e progressividade, neste livro, se dilui e se
desfaz, se nadifica.
O livro provoca, Canivete está além das grades de
qualquer prisão. Continua amargo, mas seu tom não é
individual, as perguntas não ficam em aberto, ou no eco
do fatalismo. O herói-bandido pode reencontrar o sentido
da vida, não sem antes, passar pelas duras provações que
vão mudar o curso da sua história. E ela não mais será a
mesma, nem o olhar, guiado pela emoção que a obra
desperta em cada leitor.

Ivone Alves Rocha


Professora, escritora e crítica literária da
Academia Conquistense de Letras.

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Alguma vez você sentiu que o seu destino é tão grandioso,


tão maior que o dos outros homens, tão independente dos
teus atos que chega a assustar, ao mesmo tempo que te dá
uma intensa sensação de prazer? Alguma vez? E depois os
teus gestos se repetem e no seu cotidiano você passa a
acreditar nesse destino até o dia em que tudo fica
amargamente claro e você descobre que nada estava
escrito a não ser nas tuas próprias ilusões. Que o caminho
que parecia irreversível deu um nó com você lá dentro...
Alguma vez?
Chico Buarque e Ruy Guerra
Calabar: o Elogio da Traição – 2002

[7]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Pela alma de Fernando Ramos da Silva – o eterno Pixote.

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Aos meus filhos Henrique e Laisa, ternura que aquece a


minha inspiração.
À minha esposa Leila, pelo amor incondicional.

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Fazia frio e o frio que fazia, não era esse


que a carne nos conforta... cortava assim
como em carniçaria, o aço das facas
incisivas corta!
Augusto dos Anjos

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

PRÓLOGO

Eu me apresento: Tomás, mas pode me


chamar de Canivete

Algumas pessoas tentam desviar-se das teias de


recordações tenebrosas, mas se cansam e sofrem porque
não saem do lugar comum, permanecem fiéis às aranhas
que tecem os fios de histórias mal-acabadas, desprovidas
de qualquer horizonte, em capítulos de dor, que sangram
as mesmas feridas. Então, perdem o sono e secam a
esperança, deitadas em frias camas de desassossego.
Foi numa dessas camas, que Canivete buscou o
sono que se escondia na agonizante madrugada de
domingo. Fazia frio. O vento entrou sem pedir licença,
atravessou as grades, soprou sobre os presos, depois saiu,
depois voltou. Assim, a noite inteira. Os presos,
encolhidos debaixo dos cobertores, ressonavam
calmamente, mas Canivete não pregou o olho, atravessou
a madrugada com as vistas turvas, corpo trêmulo,
ardendo em febre e coração aos pulos.
“Estou morrendo”, pensou.
O delírio trouxe imagens confusas, alimentando a
sensação de que os dias se aproximavam do fim. Sentiu o
mundo girar sobre a cabeça, e no teto uma aranha se

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

transformava em duas, três ou mais. A lógica se perdia


nas visões que alimentavam os fantasmas da imaginação.
Canivete não sabia separar o mundo dos vivos e dos
mortos, estava no limite, embora mantivesse o impulso de
querer ir além das quatro paredes, sair do chão de piso
grosso, romper as grades, desaparecer na escuridão. Os
zumbidos que incomodavam os ouvidos, se
transformaram em insistentes vozes acusadoras que
atravessavam a penumbra, fazendo-o enxergar a cara da
morte.
“Agora ele dorme debaixo da terra fria que você
mandou jogar em cima dele!”
“Vá embora... vá embora...”
Morte.
Canivete escutou o apito forte do trem que corria
sobre os trilhos da imaginação, entremeando os acordes
da valsa dos esquecidos que seguiam viagem... Era o fim
que se aproximava.
Morte.
A alma, essa menina teimosa, fazia parte do ritual e
não se fez de rogada. Sussurrou aos ouvidos, que ele não
caberia nas estrofes daquele poema caricato, ridículo,
absurdo, irreal, hipócrita.
“Mãe o que é universo?”
O sofrimento o obrigou a mirar cenas difusas do
passado, engolidas por uma nuvem repleta de sombras e
espectros. Quando os vultos se dissiparam, ela caminhava

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

em sua direção. Não havia dúvidas, a menina morte se


aproximava em passos lentos, desafiando qualquer limite,
entre a linha tênue do tempo e o descompasso da vida. O
olhar inexpressivo penetrou a alma de Canivete,
averiguando, talvez, o melhor momento de arrebatá-lo
integralmente.
As sombras da noite passeavam sobre a morte,
desenhando asas delicadas de um arcanjo que recriava a
imagem celestial do espectro contínuo, transformando-se
na mais perfeita descrição do mistério: o enigma da vida e
a luz da morte. As sombras nebulosas o fizeram entender
que a vida não o pertencia, era uma concessão e a morte
sabia o momento de encerrar a curta existência. No olhar
certeiro da morte, estava tatuada a limitação humana.
“Deus não me quer mais, é isso! Eu fiz uma coisa
muito feia...”
Por mais que tentasse, não conseguia desviar os
olhos da estranha visão: uma menina magra, quase
esquelética, dona de longos cabelos, pele branca, lábios
azulados, parados, frios e mortos. Vestia roupas leves,
alvas como a neve, caminhava com delicadeza e graça,
como se não sentisse o chão que pisava. Ao mesmo tempo,
era absoluta, altiva, única. De vez em quando, levantava a
mão e acenava, um sinal que enfatizava a certeza da
missão em torno da sorte de Canivete.
“Estou chegando...”
“Não quero ir. Ainda não é minha hora”

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Não tenha pressa, estou chegando...”


“Ainda não é minha hora”
Canivete apertou os olhos, tentou evitar as
investidas da sedutora visão, relutava em busca de forças
e, mesmo correndo o risco de morte, tomou coragem e
abriu os olhos. Nada. Silêncio. Trevas. Não havia
ninguém. A menina morte não estava ali. Sentiu-se
aliviado, voltou a fechar os olhos, e uma mão quente
tocou-lhe a fronte e o pescoço. “Ela voltou”, pensou.
Tentou inclinar a cabeça, mas não teve forças. Escutou
uma voz familiar:
— Acorde Canivete, está tudo bem.
“Acorde Canivete! Temos um trabalho a fazer”
“Não papai, ele é só uma criança”
“Acorde Canivete! Temos um trabalho a fazer”
— Acorde.
Ele abriu os olhos, tentou responder, mas não
conseguiu. Diante de si, a imagem confusa de um homem
tomava forma, Canivete o reconheceu, era Dego, parceiro
de cela.
— Quieto mano. Você está queimando de febre. Eu
tenho um comprimido - disse o amigo.
— Água... – suplicou Canivete, voz arrastada,
ofegante.
Tomou o comprimido, respirou fundo, sentiu um
imenso vazio. As lágrimas desceram, sem que ele tivesse
forças para contê-las. No choro, a lembrança da mãe,

[ 14 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

quando alguém ficava doente, ela dizia que chorar era


bom: “faz a dor parecer menor”.
Dego trouxe outro cobertor.
— Você precisa de um médico. O dia está quase
chegando. Tente dormir.
“Você... precisa de... um médico...”
“Tente dormir...”
“Médico...”
Aos poucos a febre baixou, o frio desapareceu e
Canivete sentiu as vistas pesadas, dormiu profundamente.
O dia não tardou a clarear. Acordou com o falatório dos
companheiros. Eles estavam eufóricos, aquele dia era
especial no cárcere, receberiam a visita dos familiares.
Canivete esfregou os olhos, tentou espantar os
pedaços de sono e os restos da dor. Estava condenado a
viver. A mãe costumava dizer que durante o dia as coisas
ficam mais fáceis. Levantou-se a contragosto, precisava
reagir, tomar café e depois, um banho de sol. O amargo na
boca trouxe a lembrança do pai, que ao acordar de ressaca,
dizia que a língua tinha gosto de “cabo de guarda-chuva
velho”. A mãe coava um café bem forte, ele tomava e
ficava bom.
Agora Canivete estava livre do pesadelo, embora se
sentisse cansado, o corpo dolorido, e sem vontade de
conversar. Quando acordava assim, ficava no canto,
ruminando o silêncio e a solidão. Não gostava do dia de
visita, recordava-se de um passado que preferia esquecer.

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CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Ao contrário de Canivete, os detentos ficavam na


expectativa do dia de visita, um breve momento que os
ajudava a recuperar o sentido da vida e a voltar a sonhar.
A visita dos familiares era um lenitivo suave e repleto de
esperança.
— Não se cansa de pentear cara? Quer ficar todo
gostosão, pra alegrar a esposa...
— Fazer o quê, Zé Prego? Ela vem visitar o macho
dela e precisa sair satisfeita.
— Cara, tua mulher é muito gata, nem parece que
tem três filhos!
— Hoje eles não vêm. Tão no interior, na casa da
minha sogra.
— Então, hoje a coisa vai ficar mais quente!
— Caolho, fica na tua! Não tenho culpa se tua mulé
vazou!
— Aquela vagaba que me aguarde! Ela pensa que
eu vou ficar o resto da vida aqui. Sumiu no mundo com o
meu filho, mas eu acho a filha da puta até no inferno!
— E a minha filha que resolveu engravidar de um
mané? Eu vou ser avô daqui a cinco meses!
— O cara é rico?
— Não, mas vai assumir a responsa, tá no barraco
com ela! Parece boa gente e é limpo!
— Só quero saber se minha mãe trouxe o que pedi.
— Mano, tá arriscando, tem tira novato, começando
carreira, querendo mostrar serviço...

[ 16 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Canivete permaneceu em silêncio, não dava palpite,


nem sorria das conversas corriqueiras.
— Você nunca recebe visita Canivete? – perguntou
um deles.
— Não tenho ninguém lá fora – respondeu
rispidamente.
— Não recebe visitas, mas vive ganhando doces,
bolo, pão e outras gostosuras. Quem te espera lá fora?
O mistério o intrigava, mas ele não sabia responder.
A cena sempre se repetia no dia de visita, recebia uma
merenda apetitosa, delicadamente embrulhada em papel
alumínio. O gesto atiçava a curiosidade, mas ninguém
informava quem era o misterioso benfeitor e por que o
escolhera. Por outro lado, sentia-se grato, a gentileza de
um desconhecido o deixava reconfortado, alguém se
importava com ele, afinal.
— Está melhor? – perguntou Dego.
— Depois do remédio consegui dormir.
— Mano, você delirou a noite inteira, chamava teu
pai, tua mãe, falava de morte. Acho que a febre passou
dos quarenta, tremia o corpo todo. Teve uma hora que
você apagou, pensei que era teu fim.
— Só tive pesadelo...
— Isso é coisa da mente! Teu dia tá chegando...
Você vai deixar a gaiola no fim do ano, tem coisa mais
animadora? Reage mano. Não acha melhor falar com o
médico?

[ 17 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Não precisa...
— Então conversa com o padre, ele é teu chegado e
pode te ajudar. O nome disso é contagem regressiva,
cuidado para não morrer de ansiedade. Relaxa mano, em
breve, você cai fora, vai seguir tua vida.
Os parceiros de cela foram saindo. Canivete ficou a
pensar, talvez o Dego tivesse razão, a fase da contagem
regressiva o deixava impaciente, inseguro, febril e
delirante. Estava prestes a sair da prisão, sem saber para
onde ir e o que fazer da vida. Quanto mais se aproximava
a liberdade, mais crescia o medo de enfrentá-la. Como
seria a vida sem as grades? A espera era conflituosa e
repleta de sombras do seu passado.
“Faz tanto tempo... Por que os meus fantasmas não
desaparecem?”
“Você nunca recebe visitas?”
“Não há ninguém à minha espera, todos se foram”.
Sempre que pensava no passado, ficava à mercê da
angústia, completamente fragilizado.
Morte-vida.

[ 18 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Um

Deus está cansado de saber como é a vida


de cachorro que ele deu pra gente.

Canivete nasceu lá no morro, num barraco


esquecido, prestes a desabar. Abrigava os pais, duas irmãs
e ele, que estava chegando ao mundo, para completar a
família e aumentar a pobreza daquela gente.
Era quase meia-noite. O frio entrava pelas gretas da
janela, enquanto a chuva fina caía sobre o telhado de
zinco, em pingos que contavam o tempo de espera: ting,
ting, ting.
A mãe contorcia-se de dor, revirava-se sobre o
colchão, apertava os olhos, mordia o lábio inferior e
gotículas de suor escorriam sobre a face. Não chorou. Era
mulher calejada, conhecia as provações da vida, aprendeu
a lidar com as dores do parto, ainda mocinha, quando
embarrigou a primeira vez, depois a segunda, e agora,
esperava o terceiro.
Naquela madrugada chuvosa, podia contar com a
ajuda das filhas e dona Belarmina, a parteira, que acabava
de chegar. A boa senhora empurrou a porta e foi
entrando. Balançou o guarda-chuva, o deixou escorado na
parede, atrás do tamborete, em seguida, prendeu o cabelo

[ 19 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

numa popa, lavou as mãos, abriu a maleta, retirou um


vidrinho de óleo canforado e voltou-se para a mãe,
derramando algumas gotas sobre as mãos.
— Esfrega, comadre.
O ritual do nascedouro tinha cheiro das ervas e
flores do campo, a parteira molhou um chumaço de
algodão e foi passando sobre a fronte da mãe, enquanto
rezava uma dezena do terço, suplicando a intercessão da
senhora do bom parto. Lá fora a chuva persistia. As duas
filhas labutavam na cozinha, uma coava o café, a outra
fervia um tacho de água e separava as tiras do linho
branco, para estancar o sangue.
A mãe esboçou um sorriso de confiança, o
agradável aroma de cânfora, tomou conta do barraco e das
lembranças do tempo de criança, quando morava com a
família no interior do Pará, no meio da mata. Naquele
tempo, a mãe caprichava no preparo das ervas aromáticas
para as garrafadas e macerados da comunidade. A mãe
tinha sangue indígena, a bisavó era da tribo das Araras do
Pará, que ficava à margem esquerda do rio Iriri, lá nas
cachoeiras secas, e falava a língua Karib.
Num passado que ninguém data, a bisavó foi
apanhada no laço, no meio da mata, virou a mulher de um
branco galegado, de lábio leporino, morador de Santarém,
dessa mistura forçada e violenta, nasceu a avó de
Canivete. O tempo foi passando, a pobreza aumentou, os
avós maternos deixaram o Pará e se mudaram para o Sul

[ 20 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

da Bahia, em busca de novas terras. Ali, a mãe conheceu


Sebastião, moço sério e respeitador, acreditava que seria
feliz ao seu lado. Mas a vida foi mudando aos poucos, e
ela perdeu o jeito de sorrir. Canivete nunca a viu sorrindo
ou cantarolando alguma canção. Quando pensava nela,
enxergava o olhar cansado, vazio, distante e os lábios
cerrados. Cravou-se na memória, as marcas de expressão
que a mãe carregava no rosto, reveladoras dos sofríveis
anos de cansaço, desespero e medo.
Assim era Maria, a mãe de Canivete. No entanto,
atrás da aparente fragilidade, escondia-se uma mulher
forte, disposta a sofrer para poupar os filhos, tornando-se
o escudo e a proteção do barraco. O olhar de Maria era
meio apagado, como se quisesse chorar e não encontrasse
o caminho das lágrimas, mas era, também, um olhar
vigilante de mãe loba, protetora, atenta a qualquer ruído
que ameaçasse a cria.
“Nos anos de ausência e saudade, o triste olhar da
minha mãe, pousava sobre mim e nas horas caladas,
quando a coruja piava no escuro dos pesadelos e a
angústia apertava o coração aflito, eu chorava de saudade.
E então a imagem da candura materna acalentava e eu
voltava a dormir”.
— A água está no ponto.
— Chegou a hora, meninas, agora é comigo. Valei-
me mãe senhora do bom parto. Força comadre!
As meninas se retiraram para a sala.

[ 21 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Depois de muito esforço, Maria pariu e seu menino


enxergou a luz do mundo. Agora ela podia respirar em
paz, o milagre da vida se repetiu num cantinho esquecido,
lá no morro. Canivete nasceu Tomás, menino chorão,
magro, fraco e miúdo. Quase morto. Os pais eram
coroados com a miséria e cobertos com o manto trágico da
violência. Naquele barraco, materializou-se a realidade de
um garotinho que teve a sorte de sobreviver e poderia ser
motivo de festa, ou mais uma conta de dor, no rosário que
a mãe trazia enrolado no braço. O seu menino estava ali,
pronto para conhecer o mundo real, sem conforto ou
qualquer fantasia.
— É um menino! – anunciou Estela.
A mãe sentiu-se aliviada, tudo correu bem. Dona
Belarmina cumpriu a missão, primeiro cortou o cordão
umbilical, fez o curativo, deu o primeiro banho, tomou
um gole de café, com biscoito de tapioca, depois se
despediu. O bebê foi agasalhado e as três o
contemplavam, as meninas faziam festa em comentários.
— Vai se chamar Tomás! — sugeriu Estela.
— Agora temos um irmãozinho! — exultou Cida, a
mais nova.
Maria aconchegou o bebê nos braços, tentou sorrir,
mas a alma gritava aflição. Temia o futuro do filhinho ao
lado de um pai-bandido, conhecido no morro como
Bastião Pilantra, famoso pelas trapaças, bebedeira, assaltos

[ 22 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

e centenas de brigas. Ele não estava em casa, não gostava


de crianças, não queria a gravidez.
— Não beija o menino Cida. Ele pega sapinho e
deixa o rosto empipocado.
A onda de paz e alegria, não durou muito.
Sebastião abriu a porta de supetão, as meninas engoliram
o canto. Ninguém ousou abrir a boca. Ele era um homem
forte e corpulento, alto, meio calvo e bigodudo. As vastas
sobrancelhas acentuavam o olhar rancoroso e meio
perdido. Agia como o comandante que não admite ser
contrariado, tinha o poder de espalhar terror e desprezo,
por onde passava. Contudo, naquele dia, estava sóbrio.
À medida que o pai se aproximava, a mãe via
crescer a insegurança, a sensação de impotência e tristes
presságios. “Coração de mãe nunca se engana”, dizia a
avó e não era frase de efeito, Maria angustiou-se, o
coração conhecia as intenções e ameaças do esposo:
— Se nascer menina, posso deixar, mas se for
homem... – ameaçava.
O destino entregou Tomás em seus braços e ela não
sabia o que fazer... Agarrava-se a um fio de esperança,
implorando que o dedo de Deus tocasse o coração duro de
Sebastião. Conhecia bem o marido, ele fazia questão de
impor o domínio sobre a família. Naquela manhã, chegou
feito cão farejador, perscrutando o ambiente, revirando os
olhos inquisidores. Buscava uma explicação, mas ninguém
disse nada.

[ 23 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Sebastião rompeu o silêncio e fulminou a esposa


com o olhar acusativo:
— Já pariu?
A mãe baixou a cabeça. Furtivamente espiava por
baixo. A não-resposta foi o refúgio. Por anos dividiu a
cama com aquele homem e agora tinha certeza que ele não
passava de um estranho.
— Um macho! — disse, em tom de decepção.
Aproximou-se da cama. Não tocou no filho, espiou
de longe. A mãe permaneceu calada, sabia que o olhar do
esposo desenhava um drama que culminaria em tragédia.
No afã do desespero, buscou coragem, e a voz baixa,
compassada e trêmula, rompeu o mutismo:
— Não faça isso, pelo amor de Deus! – implorou.
Ele deu de ombros, como se ela não estivesse ali.
Não havia sensibilidade, era o dono daquela gente.
— Muito bem! — bradou — mais um que tenho de
sustentar!
— Eu... — balbuciou a mãe, sem encontrar as
palavras adequadas.
— Cala a boca! — gritou mais alto ainda — um
buguelo mirradinho e fraco, nem vai escapar. Até que não
seria nada, Deus está cansado de saber como é a vida de
cachorro que ele deu pra gente!
Tomou o pequeno nos braços fortes e peludos.
Voltou-se para as meninas:

[ 24 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Pare com a choradeira, aqui não é velório!


Levante Cida, vá procurar um caixote, Estela, ajeite os
panos!
A mãe sentiu calafrios, tentou reagir, buscava
qualquer sinal de compaixão, mas o marido estava
irredutível, queria livrar-se do filho de qualquer modo.
— Em nome de Jesus, não faça isso!
— Ora, quem é que manda aqui? Você só presta
para parir! E o resto? Quem cuida do resto?
— Você não pode fazer isso, é o primeiro menino
que nasce!
A mãe preferia morrer na mais trágica miséria a se
desfazer dos filhos, mas nada era capaz de abalar o
esposo, que permanecia firme e determinado. Em dado
momento, o pequeno começou a chorar, a mãe o estreitou
entre os braços, retirou o peito e o pranto cessou. O pai
vociferou:
— A coisa tá ficando feia. Tô correndo risco de ser
preso a qualquer momento e aí quero ver como esse
menino vai viver! Prefere ver o garoto morrer de fome?
— De fome ele não morre. Eu tenho bastante leite e
com fé em Deus eu...
O pai a interrompeu bruscamente, odiava ouvi-la
falar em Deus.
— Lá vem você com seu Deus misericordioso. Na
vida a gente tem que pensar em comer, em ganhar
dinheiro. Deus não enche a barriga de ninguém! Deixa de

[ 25 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

ser besta, mulher, Deus não passa de um consola-tolo e


você é uma tola!
— Não fale assim, você está pecando.
O pai soltou uma estrondosa gargalhada.
— Que Deus é esse, que vê a desgraça dos filhos e
não faz nada? Ora, não me venha com besteira! O seu
Deus não passa de uma mentira. Verdade é o diabo, que
só quer ver o mal e nunca promete nada. Ele existe!
A mãe fez o sinal da cruz. Nunca suportou o
sarcasmo com as coisas de Deus, sempre foi uma mulher
religiosa e a fé era sua camisa de força. Quando casou, não
pensava em riqueza, conhecia as dificuldades da lida.
Sonhava com um lar tranquilo e seguro, onde pudesse
viver e criar os filhos. Acalentava a esperança em cada
conta do rosário de Nossa Senhora, até que um dia
conseguiu abrir os olhos para a realidade e o sonho se
despedaçou. Ela bem que relutou, agarrou as continhas do
rosário, e mesmo rezando centenas de ave-marias, não
conseguiu trazer para o coração, a mocinha sonhadora do
Pará. Nada seria como antes. A mocinha atravessou o vale
de lágrimas e não teve jeito, agora era conhecida como
“mulher de bandido fracassado”.
Ironicamente, Sebastião nunca se sobressaiu, nem
mesmo no mundo do crime, tudo o que roubava,
desaparecia em minutos: dívidas com o jogo, bebida,
prostituição e farra. O único trunfo era a fama de mau, o

[ 26 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

maior legado. Sabia que era odiado por todos, adorava ser
apontado como o terror da vizinhança e algoz da família.
Parte do sustento do barraco vinha das costuras
que a mãe fazia e os doces que as irmãs vendiam, quando
o pai estava ausente – ele nunca permitiu que elas
trabalhassem fora. O que ganhavam era quase nada, mas
fruto de esforço e honestidade. A outra parte, vinha dos
roubos que o pai fazia.
Maria nunca aprovou a vida criminosa de
Sebastião, ele não estava disposto a mudar, nem pensava
na hipótese de tentar um trabalho honesto, seguia na
difícil vida fácil e a família tinha que comer do fruto
roubado, ou a morte pelo pão.
Sebastião nasceu no Sul da Bahia, numa família de
lavradores que sobrevivia catando cacau para os
fazendeiros de Itabuna e Ilhéus. Naquele tempo, a cultura
estava em seu melhor momento, quem tinha cacau,
mandava em tudo, representava o poder político e
econômico da região. Entretanto, o luxo e a fartura
estavam infinitamente distantes da realidade de Sebastião,
que labutava desde criança nas roças de cacau. Cresceu
com o sonho de conquistar um pedaço de terra, plantar
ruas de cacau no meio da mata e sustentar a família. Eram
sonhos distantes...
Um dia, na faixa dos 17 anos, conheceu a cabocla
Maria, que vivia uma situação parecida, e logo estavam
apaixonados. Começaram o namoro sem qualquer

[ 27 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

perspectiva, mas a ausência de possibilidades, aos poucos


o transformou num jovem revoltado e o sonho mudou.
Encasquetou que nunca seria feliz naquela pobreza,
jamais teria seu pedaço de chão, queria sumir do Sul da
Bahia, passou a odiar os fazendeiros e a vida sofrida. O
cacau transformou-se num pesadelo cruel e contraditório,
por causa dele, seu pai morreu pobre e esquecido,
mordido por uma cobra venenosa, no meio da mata,
enquanto trabalhava na colheita. Naquele dia, o patrão
estava na cidade, não tinha carro na fazenda e o pai não
resistiu, a perna inchou tanto, quase estourou. Morreu
como cachorro sem dono. Sebastião tornou-se o senhor da
casa, os irmãos mais novos, estavam sob a sua
responsabilidade, precisou adiar o casamento e sepultar,
definitivamente, o sonho de ser proprietário...
No interior do Pará, o drama da cabocla Maria, não
foi diferente. Na adolescência perdeu a mãe, teve que
assumir a casa e os três irmãos menores. O pai era o faz-
tudo, como se dizia lá no Norte, labutava com gado, curtia
couro, fazia cercas, plantava e colhia para diversos
patrões. Também sonhava com uma tira de terra para
criar os filhos, mas os olhos esbugalhados da pobreza,
espantavam os planos, deixando-o triste e desolado. Os
filhos sem estudo, sem comida e agora sem a mãe... Maria,
sua primogênita, era a esperança, a fé soprava aos ouvidos
do pai, que Deus guiaria a filha para cuidar da família
com zelo, amor e dedicação.

[ 28 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Um ano depois, o pai de Maria juntou o pouco que


guardava e resolveu mudar para o Sul da Bahia, trabalhar
com os primos na região de Itabuna. Os primos disseram
que os fazendeiros pagavam melhor nas roças de cacau. A
longa viagem em cima de caminhão pau-de-arara, foi
apenas o começo de mais uma arriscada história de
sofrimento.
Quando chegaram na nova terra, tiveram que
improvisar uma choça de palha, para protege-los do sol e
do mau tempo, dormiam amontoados. O pai vivia
mudando de fazenda, numa dessas andanças, Maria
conheceu Sebastião. Aquele jovem de traços fortes, olhar
misterioso, sempre sério, despertou sua atenção. Ele a
olhava timidamente, meio sem jeito e custou a tomar
qualquer iniciativa. Maria foi a primeira namorada.
A morena do Pará era desconfiada, tímida, sempre
quieta e muito religiosa. Gostava de rezar o terço,
trabalhar na roça e cuidar do rancho. Não queria pensar
em namoro, mas aos poucos, sentiu-se envolvida pelo
jovem Sebastião. Quase não tiveram tempo de se
conhecer, dois ou três encontros e estava marcado o
casamento. No fundo, um tentava se amparar no outro.
Assim que iniciaram a vida de casados, os desafios
começaram. A pobreza os rondava e a sobrevivência, cada
vez mais difícil. O pai adoeceu, sentia uma febre que não
queria passar, dores no corpo e palpitações no coração. Foi
levado para o hospital de Itabuna, não teve jeito.

[ 29 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Doença de chagas, disse o médico.


Pouco depois da morte do pai de Maria, outro
episódio marcou a vida do jovem casal. Um surto de
meningite atacou a região, os fazendeiros começaram a
reduzir o número de empregados. A doença era terrível,
um médico se apresentava uma vez, a cada quinze dias,
mas não resolvia. Os irmãos de Maria sobreviveram e
foram morar consigo no casebre. Mesmo com a
intervenção médica, morreram quinze crianças e sete
adultos na região cacaueira.
Um ano depois, Maria engravidou de Estela, a
família cresceu e a miséria também. Os irmãos estavam na
adolescência, um fazendeiro os levou para trabalhar em
outra fazenda, bem longe dali. Maria foi obrigada a
concordar, a miséria não podia ceder lugar ao sentimento,
mas à sobrevivência. Foi a última vez que ela viu os
irmãos, não sabia se estavam vivos ou mortos. O mesmo
destino teve a família de Sebastião. Os irmãos se
mudaram para outras fazendas e nunca mais deram sinal
de vida. A família estava reduzida ao casal e uma filha.
Ainda na fazenda, Maria voltou a engravidar.
Novamente uma menina, a pequena recebeu o nome de
Aparecida e foi alvo de sérias preocupações, nasceu
raquítica, antes do tempo, pesando dois quilos e meio.
Mas, contrariando a lei do destino, sobreviveu e tornou-se
uma garota bonita e saudável. Não fosse o testemunho da

[ 30 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

mãe, era impossível acreditar que a garota tivesse passado


perto do vale da morte.
Quatro anos mais tarde, Sebastião tomou a decisão
que volta e meia o encasquetava: partir para São Paulo,
procurar um meio de vida rentável. Não fez isso antes
porque a esposa não queria arriscar a sorte, tinha medo da
capital e das surpresas que encontrariam por lá. Maria
temia o pior, mas não viu outra alternativa, nem podia ser
diferente, em casa ou na roça, só enxergava o fantasma da
fome. Então buscou no medo a coragem, no pesadelo a
esperança, tinha apenas duas opções, tentar o
desconhecido ou morrer sufocada pela teimosia. Escolheu
a primeira, pois apareceu uma tal de vassoura de bruxa
que atacou as roças, deixou os cacaueiros desesperados e
espalhou prejuízo, desolação e desemprego na região.
Diversos proprietários demitiram os agregados, colocaram
as fazendas à venda, e as frentes de trabalho minguaram.
Sebastião foi obrigado a sair, tinha que buscar outro rumo,
o dinheiro que recebeu não pagava os anos de sofrimento,
mas era pegar ou ficar de mãos abanando... O casal juntou
as poucas coisas e partiu. A terra da garoa podia ser a
chance de viver com dignidade e, com um pouco de sorte,
talvez encontrasse a paz tão sonhada.
No começo as coisas correram bem em São Paulo.
Sebastião conseguiu emprego de servente de pedreiro,
ganhava pouco, mas dava para fazer a feira. Arranjou um
canto, lá no morro, e a família começou a viver com

[ 31 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

alguma esperança, mas a obra ficou pronta e ele ficou


desempregado e as preocupações voltaram. A paz
sonhada continuava distante. Aí foi aquilo: sem emprego
certo, o pai de Tomás começou a viver de bico, vendeu
picolé, engraxou sapato, catou lixo…
Certa vez, foi contratado como carregador de
cereais na estação ferroviária. O emprego parecia
definitivo, mas durou menos de dois meses. Sebastião foi
escorraçado, sem direito a nada, porque roubou um
caixote de batata inglesa. O vigia da estação o apanhou em
flagrante e nem quis ouvir qualquer explicação, o
entregou ao fiscal, não, sem antes, deixá-lo com o olho
roxo, completamente humilhado. Em sua mente, ressoava
a última conversa com e esposa:
— Bastião, a comida acabou.
— Vou dar um jeito...
— Como? Você só vai receber no final do mês!
— Já disse, dou um jeito! Vou trazer um caixote de
batata. O fiscal vai distribuir para a peãozada, ainda hoje!
— Batata? Bom, pelo menos dura bastante. A gente
cozinha com sal e dá para enganar a barriga... Estela está
com febre e vomitadeira...
— Foi aquele feijão velho, estava com gostinho
azedo!
— Só tem leite em pó que ganhei da merendeira da
escola. O pacote estava vencido...

[ 32 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Vou trazer as batatas ainda hoje! Se Deus


quiser...
Sebastião acreditava piamente que a sorte nunca
sorriu para ele. Depois do primeiro roubo, a sensação de
morte-vida não deu sossego, sentiu-se abandonado por
Deus, atirado a um mundo ingrato e egoísta. Não
conseguiu outro emprego, nunca tinha dinheiro para
pagar o aluguel e foi despejado. As meninas tiveram que
deixar a escola, o barraco, os sonhos. Sem qualquer
alternativa, a família foi morar na rua. Maria recorreu à
vizinha, que ficou comovida e a indicou para fazer faxina
na casa de dona Laura, viúva aposentada, natural do
sertão do Piauí, conhecida pela eterna disposição de
ajudar os mais necessitados que enfrentavam a cidade
grande pela primeira vez. Dona Laura conhecia aquela
procissão, também foi retirante. No começo foi difícil, a
morte súbita do esposo foi a parte mais dolorosa. Seu Raul
estava terminando o jantar, quando a bala perdida achou
o coração. O pobre pendeu a cabeça sobre o prato de
comida, diante da esposa. Dois anos depois, o único filho
foi assassinado, quando voltava do trabalho na
construção, era servente de pedreiro, tinha 21 anos.
Quando ele viu a troca de tiros entre a polícia e os
traficantes, tentou se esconder atrás de uma caçamba de
entulho. Não adiantou. Um policial o confundiu com um
traficante e o imobilizou, ajoelhando em seu pescoço. O
rapaz ficou aflito, gaguejou, tentou explicar que não era

[ 33 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

do tráfico, trabalhava na construção civil, mas não


adiantou. Ninguém acreditou nele.
— Não consigo respirar – disse o jovem negro, num
fio de voz.
O jovem morreu. A polícia se desculpou pelo
equívoco:
— Negro é tudo igual. O policial estava cumprindo
a missão.
No país da impunidade, a pobre viúva chorou um
vale de lágrimas. Seu filho era honesto. Fazia o primeiro
ano do curso de Engenharia Elétrica. A viúva entrou em
desespero, estava só, impotente.
Certo dia, avistou uma mulher negra, grávida,
carregando outro pequeno nos braços. Trazia um
embornal dependurado ao pescoço. Estava com fome, em
farrapos e não sabia o que fazer. A viúva a acolheu,
ofereceu um banho, deu comida, carinho e alguns vestidos
em bom estado. Depois, levou a jovem mãe para a
assistente social. A grávida estava nos dias de parir. Foi
ajudando a cuidar das feridas dos injustiçados que dona
Laura se tornou o anjo bom da comunidade.
— Sofrimento é tudo igual. Racismo é tudo igual.
Mas o amor ao próximo é diferente – costumava dizer.
Foi a bandeira de luta que ela carregou, guiando-se
pelas batidas do coração valente.
Dona Laura entrou na história de Maria, quase por
acaso ou, como diria a mãe de Tomás, pela “providência

[ 34 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

divina”. Ao ouvi-la, a viúva se compadeceu, a história de


Maria, era a de milhares de brasileiros que são obrigados a
deixar a terra natal, em busca de melhores dias. Além de
pagar pelas faxinas, dona Laura foi mais que uma mãe,
cedeu uma parte do terreno ao lado do bueiro.
— Pode fazer seu barraco Maria, o terreno era do
meu filho, mas ele foi escorraçado da vida e ninguém vai
tirar você de lá.
Foi lá, no morro, que Sebastião improvisou o
primeiro barraco, cobriu com material de refugo, pedaços
de telha de amianto, folha de zinco, estuque e madeira. No
fundo, uma privada de fossa seca, coberta por um pedaço
de lona. A única coisa de valor que tinham, era uma velha
máquina de costura. Maria virou a costureira da
vizinhança: um remendo aqui, um botão acolá, um retalho
ali...
Foi assim que Sebastião resolveu se dedicar ao
novo “ofício”. Na bandidagem, ninguém o mandaria
embora. E mesmo se não quisesse, teria que criar uma
saída urgente, pois naqueles dias, dona Laura, a boa viúva
morreu enquanto dormia, infarto fulminante. Maria
chorou a morte do anjo bom, adoeceu, ficou de cama e as
meninas começaram a passar fome.
Hoje, Canivete admite que nada justifica o crime,
mas acredita que o pai se transformou num fora da lei por
necessidade, não tinha muitas opções:

[ 35 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Meu pai foi criando gosto pela bandidagem,


abandonando toda e qualquer possibilidade de viver
honestamente. Foi preso inúmeras vezes, mas nunca se
remediou e nem se tornou um grande bandido. Ganhava e
perdia na mesma proporção, arrastando nossa família
para um buraco cada vez mais profundo”.
Sebastião virou outro homem: dormia em
prostíbulos, bebia, e de modo violento, descontava as
frustrações na família, sobretudo na esposa. Para ele, amor
era coisa do passado, a família só dava despesa, Deus não
prestava e a sociedade era a própria violência: cada um
por si, matar ou morrer:
“A vida da minha mãe virou uma tristeza
constante, ela não conhecia a felicidade, até perdeu o jeito
de sorrir, vivia sobressaltada e o medo do futuro enchia
seus dias de angústia.”
Esperar o quê da vida? Uma coisa ela tinha certeza:
não podia sucumbir, os filhos e a oração a mantinham
firme. Não se permitiu perder a fé e Jesus ainda era seu
maior consolo.
“Depois que virou bandido experiente, meu pai
deixou de lado a família, nunca se incomodou com a
nossa sobrevivência, gastava o dinheiro sujo e o que
sobrava era o mínimo. A miséria continuava a mesma.”
— Esta caixa serve? – perguntou Cida.
— Cadê os panos velhos?
— Aqui – respondeu Estela.

[ 36 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Sebastião forrou o fundo do caixote com os retalhos


e deitou o menino, como se fosse uma mercadoria
qualquer. Era um homem frio, jamais deixou que a
emoção o dominasse, agia sem titubear e não se
incomodou com os pedidos de Maria ou as lágrimas das
irmãs do bebê. Não se deu conta que aquele garotinho
jogado no caixote, era seu filho, sua carne, seu sangue.
— Ele ainda será muito feliz!
Cobriu o bebê com uma coberta de algodão, depois,
segurou o caixote debaixo do braço e dirigiu-se à porta.
Maria apertou os olhos e novas lágrimas lavaram seu
rosto.
— Volto logo – disse.
Dirigiu-se à rua, em passos apressados. Maria deu
vazão ao desespero, afogando a dor no travesseiro. Estela
saiu em prantos e Cida tentava consolar a mãe.
Enquanto isso, ele caminhava pelas ruas, sem
rumo. Assobiava qualquer coisa e o assobio perdeu-se
dentro da noite. O silêncio voltou a dominá-lo. Era noite
escura, soprava um vento frio. A cidade era um único
sono.
Escolheu uma rua tranquila, sem o risco de ser
flagrado por alguém. Parou diante de uma linda casa.
Colocou o caixote em cima do capacho, acionou a
campainha diversas vezes e desapareceu no primeiro
beco. Nesse momento, em meio às sombras das árvores,
apareceu a irmã mais velha. Estela seguiu o pai e assim

[ 37 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

que ele se afastou, ela correu até o caixote, levantou a


coberta e viu que o irmãozinho estava bem, ficou aliviada.
A janelinha, acima da porta, se abriu e uma mulher
mostrou os olhos.
— O que deseja menina?
— Nada, não senhora! Foi um moleque que tocou e
saiu correndo... – respondeu a jovem, completamente
insegura.
— E você? O que leva na caixa?
Estela afastou-se rapidamente, torcia para que o
bebê não chorasse.
— É roupa usada, estou pedindo roupas –
empalideceu. Sabia que não era uma resposta convincente.
— Pedindo roupas a esta hora? Hum... Essa história
não está bem contada. Quer saber de uma coisa?
Desaparece daqui menina, suma, antes que eu chame a
polícia. Roupa velha, sei... Suma daqui! – gritou.
Estela saiu em disparada, o caixote balançava e o
pequeno Tomás desatou a chorar.
O pai chegou em casa, julgou que a missão estava
cumprida. Maria não tinha forças para derramar lágrimas,
contemplava o vazio com o olhar apagado e distante.
Pensava no bebê indefeso, no meio da madrugada.
— Como a gente ia sustentar mais uma boca?
— Como sustentamos os outros. A gente sempre
encontra um jeito. O pobrezinho nem bem acabou de
nascer e agora está no relento, Deus sabe onde...

[ 38 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Eu botei o menino na frente de uma casa de


bacana. Ele vai ter um futuro melhor que o nosso!
A porta se abriu e Estela entrou ofegante. Estava
nervosa, mas determinada. Aproximou-se do pai, sem
temer o olhar de reprovação.
— Pode me bater! Eu vi quando o senhor colocou o
bebê na porta da casa. É o primeiro menino que nasce e
não me arrependi do que fiz!
Todos ficaram em silêncio. Maria sentiu-se aliviada,
o filho estava são e salvo, mas doeu-lhe saber, que o
esposo castigaria a filha por tamanho atrevimento.
Estela manteve-se resoluta, não se deixou
intimidar. Retirou o irmão do caixote e o entregou à mãe.
Sebastião continuou em silêncio.
— Pode me bater, mas não tire o nosso irmãozinho!
O ato de bravura da filha, o deixou desprovido de
qualquer ação, meio perdido, sem forças para reagir. Não
levantou um dedo contra Estela. Refeito da surpresa,
Sebastião rompeu o silêncio:
— Espero que ninguém se arrependa mais tarde.

[ 39 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Dois

O terror tomou conta da minha alma,


um terror em forma de pai.

As irmãs eram amigas adoráveis, carinhosas e


protetoras de Tomás. Estela, a mais velha, tinha bom
coração e pavio curto, vivia alerta. Não era de levar
desaforo, a cisma que herdou da mãe, a deixava
desconfiada de todos que se aproximavam com segundas
intenções. Sempre foi uma garota de fibra, não se deixava
abater diante dos desafios que a vida oferecia. Vendia
doces, costurava e fazia faxina na vizinhança. Nos
momentos de folga, gostava de ler poesia e ouvir músicas,
era uma romântica sonhadora.
Os traços indígenas estavam presentes nos olhos
repuxados, na pele cor de jambo e nos longos cabelos de
Aparecida, a outra irmã. Era uma índia graciosa, de saúde
frágil, mas repleta de disposição. Queria trabalhar, ganhar
salário, comprar as coisas, organizar o guarda-roupa, ser
independente.
“Quando meu pai não estava por perto, a gente
inventava dezenas de aventuras e esquecia dos
problemas, a família era feliz. Quando ele chegava, a
alegria sumia como fumaça e voltava o medo, a revolta, a
dor. De novo o olhar apagado da minha mãe escancarava

[ 40 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

tristeza e dor. A certeza de uma vida amarga que ela não


desejou para nenhum de nós. Voltava o pesadelo das
minhas irmãs com as mesmas inquietações: seriam felizes
algum dia? Teriam família, filhos, esposo? E quanto a
mim? O que poderia esperar de uma realidade cruel e sem
possibilidade de ruptura?”.
O barraco era de madeira, a cozinha de alvenaria e
a cobertura dividida, uma parte de telha de amianto e a
outra de zinco. Nas noites de frio, o vento entrava pelas
frestas da madeira e as cobertas ficavam geladas. Quando
chovia, apareciam dezenas de goteiras por todo canto, até
em cima da cama. Era um corre-corre danado e ninguém
dormia. Lá no morro, o risco de desabamento era
corriqueiro. Se a chuva vinha acompanhada de raios e
trovões, a família era obrigada a apreciar um espetáculo
com requintes de terror.
Sebastião nunca estava em casa nesses momentos.
Era Maria, que, nas noites de tempestade, levantava
alarmada, segurava Tomás pela mão e acordava as
meninas, aos gritos:
— Vamos sair agora, o barraco vai cair!
Os quatro saiam e ficavam debaixo da chuva,
esperando o barraco cair. Quando a chuva passava,
voltavam encolhidos, tremendo de frio, completamente
encharcados, e o velho barraco continuava de pé. Maria
acalmava os filhos:
— Vou fazer um café...

[ 41 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Cida era a que mais sofria com o tempo frio, a


bronquite arruinava, deixando-a ofegante e com uma
chiadeira danada.
— Tire essa roupa molhada, se enrole na coberta e
enxugue a cabeça... Estela, prepare um chá de erva-doce
com limão e melaço e dê para sua irmã.
“Ainda posso sentir o gosto daquele café
fresquinho, enquanto nos aquecíamos, encolhidos no
banco de madeira, perto do fogão de lenha. Juntinhos,
ficávamos em paz e, aos poucos, o medo da chuva forte,
dissipava. A presença do meu pai era pior que qualquer
tempestade”.
No canto, perto da porta, ficava a velha geladeira.
Certa vez, Sebastião entrou bêbado, como de costume,
bateu a porta da geladeira com tanta força, que ela ficou
aleijada. Nunca mais foi a mesma, só ficava fechada,
quando Maria encostava o cepo de madeira.
Adiante, ao lado do armário, tinha dois fogões, um
a gás que só vivia entupido e outro, à lenha, perto da
porta dos fundos.
A única sala era o canto mais espaçoso. Havia uma
pequena mesa de madeira, quatro cadeiras e no canto, um
sofá amplo, saindo as molas. A mãe jogava dois
travesseiros nos buracos e ele ficava novo. Uma vez, o pai
roubou uma televisão e a sala passou a ser o canto
preferido. Os três irmãos se jogavam no sofá e entravam
no mundo das novelas. O velho sofá foi a cama de Tomás

[ 42 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

por algum tempo, pois no barraco tinha apenas um


quarto, dividido em dois, por uma cortina florida.
Quando Tomás era pequeno dormia com as meninas,
depois, passou a dormir no sofá.
No minúsculo quintal, a sombra da goiabeira era o
lugar predileto dos três irmãos. Ali, passavam a maior
parte do tempo, brincando e cantando no alto da
goiabeira:

Eu morava na areia, sereia


Mudei para o sertão, sereia
Aprendi a namorar, sereia
Com um aperto de mão, oh! Sereia!

A mãe sentava-se no batente da porta dos fundos,


para picar verduras, enquanto apreciava as brincadeiras
dos filhos.

Deixei meu lenço branco, sereia


Na porta do cemitério, sereia
Se não for para casar, sereia
Namorar também não quero, oh! Sereia!

Na rua de cima, perto da feirinha, havia uma boca


de fumo, disfarçada de casa noturna. O lugar, frequentado
por gente de toda laia, era ponto estratégico para a
bandidagem, venda de drogas e prostituição. O

[ 43 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

proprietário era um tal Toninho troca-troca, ex-


presidiário, velho conhecido do morro. A falta de higiene
não incomodava os frequentadores, estavam acostumados
com o balcão sujo, repleto de moscas que saboreavam os
restos de comida e bebida. Nas paredes, tinha destaque
uma exposição de calendários de mulheres nuas. Os
quartos ficavam nos fundos do bar, onde as prostitutas
recebiam todo tipo de cliente, Sebastião era um deles,
enfrentava qualquer briga por uma noitada ao lado das
preferidas.
Era difícil o dia em que o bar não apresentava um
festival de porradas e centenas de discussões. O bar ficava
completamente destruído, mas no dia seguinte, tudo
voltava a funcionar normalmente.
Depois que as filhas entraram na adolescência, o
pai tornou-se um grande ciumento, implicava com
qualquer um que se aproximasse. Carlos, o moço que
entregava pão, gostava de Estela e os dois começaram a
namorar às escondidas. O jovem estava disposto a levar a
sério, mas a garota preferia manter segredo, temia a
reação do pai.
“Quando papai aprontava alguma pilantragem,
sumia, não dava notícias, e só depois que as coisas
esfriavam, voltava, com a cara mais limpa do mundo, e
dinheiro no bolso. Na sua ausência, a gente ficava em paz,
mas quando ele voltava, a insegurança tomava conta do
barraco”.

[ 44 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Certo dia, uma surpresa, o namorado de Estela


apareceu no morro sem avisar, fincou os pés na frente do
barraco e insistiu:
— Estela, eu preciso falar com você!
— Carlos, você está louco! Se o meu pai te
encontrar, ele te mata...
— Vou conversar com ele sobre o namoro, ele vai
entender.
— Nem pense nisso, todo mundo tem medo do
papai. Vá embora, enquanto é tempo, ele vai chegar a
qualquer momento.
— Se ele implicar, a gente cai fora, para sempre!
— Ora, não podemos sair pelo mundo assim...
— Vamos sumir deste inferno, só assim seremos
felizes!
— Acha que eu teria coragem de deixar a minha
mãe nas mãos dele? A Cida é incapaz de qualquer coisa e
o que seria de Tomás? Não é fácil, meu amor.
— Pense em você, na gente! Vamos construir nossa
família e com o tempo a gente vem buscar a sua mãe e
seus irmãos.
— Se fugirmos, meu pai vai atrás e mata a gente!
Ele é perigoso, vá embora, depois a gente se encontra em
outro lugar, aqui é arriscado!
— Não, eu não irei embora!
Sem titubear ele a abraçou, beijando-a nos lábios.
Estela se soltou, coração aos pulos, do outro lado da rua,

[ 45 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

os vizinhos espiavam. Cida se aproximou, estava


preocupada.
— Estela, o papai vai chegar a qualquer momento!
Vá embora Carlos, se ele pegar os dois, nem quero ver!
Estela se desesperou, implorava para o rapaz ir
embora, mas ele não se movia. A pobre não sabia o que
fazer, temia o pior.
— Pelo amor de Deus, vá embora!
Na descida do morro a figura de Sebastião tomava
corpo. O Carlos não se moveu, estava disposto a enfrentá-
lo.
— O papai está chegando! - alertou Cida.
— Vá embora, ainda está em tempo - suplicou
Estela.
O pai se aproximou meio trôpego, estava
embriagado, mas consciente. Cida afastou-se, arrastando
Tomás pela mão. As pessoas continuavam apreciando a
cena.
Sebastião agarrou o rapaz pelo braço e começou a
berrar perguntas. Cida tremia, não sabia o que fazer,
assistia de longe. Estela chorava.
— O que está querendo com a minha filha seu
bosta? - gritou.
— Eu quero namorar sério com a Estela -
respondeu firmemente.
— Será que ouvi bem ou estou sonhando? -
perguntou, fechando um olho e arregalando o outro.

[ 46 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Eu gosto da sua filha, seu Bastião, queria que o


senhor soubesse do nosso namoro.
Sebastião não o deixou continuar, desfechou um
soco no rosto, o pobre caiu inerte, em seguida entrou no
barraco, arrastando a filha pelo braço. Estela chorava,
completamente humilhada. O Carlos foi socorrido pelas
pessoas e desde então, nunca mais se ouviu falar dele. O
primeiro amor da irmã de Tomás, primeiro e último.
Sebastião continuava furioso, sacudiu a filha com
força, enquanto protestava, aos berros:
— Sua cachorra - gritou histérico - você quer virar
uma puta? Não vê que os caras só querem saber de
sacanagem?
Desferiu uma forte bofetada no rosto da garota.
Imediatamente um filete de sangue desceu do nariz, mas
ele não se importou. Ninguém a socorreu, a mãe não se
encontrava em casa, tinha ido à igreja. O pai batia sem
piedade.
— Filha minha não vira puta, nem que eu morra!
Isso eu não vou deixar! Você ainda vai me desobedecer?
O pranto não a deixou responder. Novo bofetão.
— Responda!
— Não... - respondeu em lágrimas.
Nesse momento Maria entrou em casa e, num
lampejo, entrou na briga em defesa da filha.
— Santo Deus, pare com isso Bastião!

[ 47 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Ele se voltou feito cão feroz e encarou a nova


vítima. Empurrou a esposa contra a parede da frente. As
continhas do terço se esparramaram pelo chão.
— A culpa é sua! Em vez de ficar aqui, tomando
conta da casa, fica socada na maldita igreja! Sabe o que eu
vi? A sua filha de papo com um moleque, bem aqui, na
frente do barraco. Se não tivesse saído, nada disso teria
acontecido!
Sem esperar qualquer resposta, deixou as duas
jogadas no chão e dirigiu-se ao quarto. Pouco depois,
roncava, como se nada tivesse acontecido. A pancadaria
fazia parte da rotina daquele homem. Estela continuou
chorando, a mãe tentava acalmá-la.
— Oh! Mamãe... não foi nada disso...
A mãe a abraçou, não sabia o que fazer para
acalentar a filha. Falar o que numa situação como aquela?
— Acredito em você minha filha. Mas não podemos
contrariar o seu pai. Ele é muito nervoso.
— Foi o Carlos, pedi que ele fosse embora e ele
disse que ia pedir permissão para namorar. Pobre Carlos!
Ganhou um soco tão violento que desmaiou, eu fui a
culpada!
— Não chore. Você não fez nada errado. É o seu
pai, você precisa perdoá-lo!
— Nunca o perdoarei! Eu não aguento mais...
Estela tentou afastar o choro que a voz trêmula
denunciava:

[ 48 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Nunca serei como as moças da minha idade.


Nenhum rapaz vai se interessar por mim, pois temem o
meu pai. Eu e a Cida vamos morrer solteiras.
— Filha, não diga isso, seu pai pode escutar...
Por um momento ela parou de chorar, limpou os
olhos e encarou a mãe. Baixou a voz e afirmou seriamente:
— Eu sei muito bem porque ele faz isso!
— Filha... – advertiu, receosa de qualquer
comentário.
— Ciúme, puro ciúme!
— Todo pai tem ciúme dos filhos. Vamos parar com
essa conversa, pelo amor de Deus, chega, por hoje!
— Ele não tem ciúme como todo pai. Ele tem ciúme
de macho! A senhora sabe disso, Cida também e um dia o
Tomás vai saber! Mas, em mim ele não trisca o dedo e
nem na Cida. É por isso que ele tem raiva de mim, tem
ciúme, tem desejo... – voltou a chorar.
— Estela, não diga mais nada... - suplicou Maria.
— Ele é um porco nojento, filho do demônio! –
gritou.
Maria respirou fundo, não sabia o que dizer. Não
podia negar a realidade, mas devia escondê-la o tempo
que fosse preciso. Sempre notou o olhar malicioso do
esposo sobre as filhas, especialmente quando elas se
tornaram mocinhas. Temia o pior, por isso montou vigília,
não deixava as meninas sozinhas, quando o pai estava em

[ 49 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

casa. Tinha especial atenção com a mais nova, a


fragilidade a deixava vulnerável.
— Ele já buliu com uma de vocês? - perguntou.
Cida baixou a cabeça e começou a chorar.
— Em mim ele nunca tocou, mas a Cida... – revelou
Estela.
— Estela, não fale nada... – pediu Cida.
— A mãe precisa saber e eu vou contar. Não vou
esconder nada, de agora em diante. Na semana passada
ele alisou os peitos dela. Ele é um bicho maldito, mãe, e só
quer a nossa desgraça.
Cida saiu envergonhada. Foi chorar no escuro do
quarto. Nem queria se lembrar daquilo. Foi num dia
comum da semana, estava só no barraco. A mãe tinha
saído com Tomás e Estela estava na casa da vizinha. O
danado se aproveitou e entrou sem fazer barulho. Cida
lavava a louça. Ele se aproximou, bebeu água, mesmo sem
um pingo de sede, depois começou a alisar o cabelo da
filha mais nova.
— Eu preciso lavar a louça... – disse, num fio de
voz, gelada de pavor.
— A louça espera... Eu tenho reparado que você
está ficando muito linda!
— Quer tomar café? Passei agora mesmo... - a voz
saiu arrastada, as pernas tremiam.
Ele perdeu a calma e começou a abraçá-la.
— Tem medo de mim? Sou teu pai...

[ 50 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Numa fração de segundo abraçou a garota, cheirou


seu pescoço e como um cão faminto começou a lamber o
ombro. Não satisfeito, enfiou a mão sobre a blusa,
rasgando o decote e apertou os seios. Cida não resistiu,
começou a tremer e a chorar. Pálida como uma vela, teve
que se sentar para não cair. Vomitou ali mesmo. Sebastião
ficou assustado e saiu apressado, antes, tratou de ameaçá-
la:
— Hoje passa... E não fale nada, senão...
Quando a mãe retornou, Cida mentiu dizendo que
a comida tinha feito mal e que estava com febre e
vomitadeira. Depois chamou Estela e contou a verdade.
— Cida, ele só fez isso?
Estela estava revoltada.
— Só. Eu não quero ficar sozinha com ele... Ele vai
voltar Estela, me ajude pelo amor de Deus...
— Pode deixar minha irmã. Confie em mim e a
gente se vigia o tempo todo. Ainda bem que Tomás
nasceu homem! Desgraçado, agora sei por que ele queria
jogar o menino fora! Tomás será o nosso escudo. Ele vai
nos ajudar...
— Tenho medo...
— Não chore minha irmã, eu vou te proteger. A
mamãe não deve saber de nada...
Aquele testemunho dramático deixou a mãe
arrasada. Ela desconfiava, agora tinha certeza, não sabia o

[ 51 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

que fazer. A violência do esposo afastava toda e qualquer


possibilidade de resolução.
— Eu... eu só não desapareço de uma vez, porque
não tenho coragem de deixar a senhora, a Cida e o Tomás
nas mãos dele! Se não fosse isso, eu já teria sumido...
— Estela, não diga estas coisas. Vá lavar seu rosto,
o nariz ainda está sangrando...
A mãe suspirou resignada, sabia que Estela tinha
razão. As filhas estavam mocinhas e não podiam agir
como garotas normais. O pai ciumento era capaz de fazer
uma besteira qualquer. A ideia da separação passou pela
cabeça uma série de vezes, mas sentia-se impotente,
diante do temperamento do esposo. Tinha certeza que ele
a mataria se ela o largasse.
“Jesus, tenha misericórdia da minha família” –
suplicava, dia e noite.
“Mamãe transferiu para nós todo o amor que já não
sentia por meu pai. Os filhos eram a barreira entre ela e o
suicídio. O amor que sentia por nós era maior. Temia o
nosso destino sem a sua presença, por isso, escolheu a
vida”.

[ 52 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Três

Mãe... o que é universo?

Tomás foi crescendo naquele mundo marginal,


amado pela mãe, ignorado pelo pai. Não tinha amigos,
não tinha voz. Era um menino calado, tristonho e tímido.
Um dia, o pai o apelidou de Canivete e seu nome caiu no
esquecimento. Tomás se transformou numa sombra difusa
de Canivete e este, não podia fraquejar. Teria que seguir à
risca as vontades e os caprichos do pai-bandido.
Sebastião sempre desprezou o filho, tratava-o com
rispidez e uma mórbida sensação de prazer o invadia
quando o castigava. Gostava de vê-lo sofrendo e
derramando lágrimas de pavor, embora esse
comportamento estranho possa ser entendido como um
meio de afastar qualquer possibilidade de afeto que
tornasse o filho um perdedor, pedante, fraco. O pai
alimentava uma lógica indecente, obscura, porém
explicável. Cultivava o ódio e a revolta do filho, como
uma construção estratégica de um homem forte, audaz,
poderoso, daqueles que não são vencidos pelo
sentimentalismo ou apelos religiosos. Canivete seria o
vencedor que Sebastião nunca foi. Seria temido e
respeitado, mesmo que isso custasse-lhe a vida. Todavia,
atrás do discurso de ódio, intolerância e insensatez,

[ 53 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

escondia-se um pobre execrado, que fugia do olhar do


filho, talvez porque naquele olhar estivesse escrito a letra
do destino, onde o fatalismo era apenas uma construção,
uma possibilidade.
No mundo da sobrevivência, sorte e azar são
elementos que estão num mesmo plano, para além das
vaidades humanas. O pai temia que o filho se fortalecesse
e antecipasse, através do olhar, disfarçado de insegurança
infantil, a imensa onda de revolta que o tornaria um
verme asqueroso, propenso a ser esmagado a qualquer
momento. Por isso, Sebastião não gostava de olhar para o
filho, os olhos do garoto estampavam a sua estúpida
derrota. O filho de olhar estranho, intrépido, ameaçador,
não era bem-vindo e ele precisava contê-lo através da
força do desamor. O garoto não seria o seu fim.
Por muito tempo Tomás cultivou o medo como o
principal sentimento por Sebastião. A incômoda presença
do pai, o deixava inseguro e o coração em rebuliço.
Quando era noite, antes de dormir, suplicava a Deus que
levasse o pai e ele nunca encontrasse o caminho de volta...
Sonho tolo de um menino cheio de dor e ressentimento.
No outro dia, quando abria os olhos para a vida, o pai
estava lá, forte, dominador. O mundo-cão estava
exatamente o mesmo. Deus não ia perder tempo para
ouvir a súplica de um garoto esquecido, que tremia
quando a voz do pai tomava corpo. O coração disparava e
o medo invadia sua pobre alma.

[ 54 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Tomás passou a maior parte da infância sem ter


amigos, sua convivência era com a mãe e as irmãs.
Quando ele saia do barraco, os outros meninos o
hostilizavam, não queriam se misturar com o filho de
Bastião Pilantra. Tomás não reagia, baixava a cabeça como
um manso cordeiro, impotente diante das provocações.
“Eu nunca fui para a escola, tudo o que aprendi foi
com as minhas irmãs. Elas conseguiram estudar, sabiam
ler e escrever, depois, quando passaram para o ensino
médio, meu pai as proibiu. Agiu por ciúme, não suportou
a ideia de ver as meninas ao lado de outros garotos, longe
do seu território. Comigo, nem foi ciúme, foi descaso
mesmo. As minhas irmãs me alfabetizaram em casa, nos
raros momentos de paz e harmonia. Com elas, aprendi a
ler as coisas do mundo. Desde pequeno gostava de
desenhar e rabiscar. Guardava no coração a vontade de ir
para a escola, conviver com outras crianças, mas isso
nunca foi possível”.
— Assim?
— Lindo, meu amor! Você é o garoto mais
inteligente do mundo.
— Tela, quando eu vou poder ir para uma escola de
verdade?
— Ora, meu bem, não está gostando da sua
professorinha aqui?
— Gosto, mas eu queria conhecer a escola que o
Flavinho estuda. Lá tem um monte de alunos...

[ 55 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Um dia você irá para a escola...


— Papai não deixa... – disse, em voz baixa, quase
sussurrando.
Estela o abraçou com força.
— Você está chorando.
Ela limpou os olhos rapidamente.
— Estou com as vistas ardendo. Não fique triste, eu
ainda vou fazer a sua matrícula na escola do Flavinho.
Ainda é cedo...
O Flavinho era filho da vizinha que trabalhava na
casa de um médico da zona sul. Todos os dias, ele saia
com a mãe para a escola. Os cabelos bem penteados, o
uniforme limpinho e uma mochila nas costas. A mãe o
levava até o ônibus escolar. No final da tarde, ela ia
esperá-lo no ponto e o trazia para casa. Tomás ficava
observando. Queria que a mãe fizesse o mesmo e o levasse
ao mundo de gritos, sorrisos, correria e movimento. Uma
aventura colorida, saborosa, vibrante que ele nunca faria
parte, só lhe restava o sonho de conhecer uma escola de
verdade...
— Quando eu crescer, vou tirar todo mundo daqui.
Vamos morar numa casa bonita, com um quintal deste
tamanho! - abria os braços, fazendo a demonstração - vai
ter um quarto para você, outro para mamãe e outro para
Cida.

[ 56 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Que ótimo! Olhe que eu vou te cobrar, viu? - ela


sorriu e Tomás teve certeza que aquele também era o
sonho da irmã.
— Bom, agora fique aí estudando, tenho que
comprar farinha de trigo, vou fazer aquele pão que você
adora. A mamãe e a Cida foram à feira, logo estarão de
volta. Eu não demoro.
“Estela saiu e eu desenhava tranquilamente. O
vento entrou pela janela, trazendo uma refrescante
sensação de paz e aconchego. Porém, mal a brisa
atravessou a curva da varanda, escutei os passos que
vinham da rua. Ele estava de volta. Estremeci. A paz que
eu sonhava bateu asas e voou pela janela do barraco. A
sombra de papai passou pela porta e aproximou-se de
mim. Senti calafrios. Ele parou em minha frente, seus
olhos encontraram os desenhos e eu não sabia como
reagir”.
— O que está fazendo?
Perguntou, e num gesto inusitado, ergueu o garoto,
sentando-o sobre as pernas.
— Desenhando - respondeu num sopro.
Sem conseguir manter a calma, o garoto começou a
tremer e fazia cara de choro. Por mais que o pai tentasse
ser agradável, segurando-o entre os braços, e roçando o
vasto bigode na sua face, sentia-se amedrontado.

[ 57 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Você vai ser um grande homem, vai ter respeito.


Agora você é magro como um caniço, mas será forte como
um touro.
Ele se calou, queria ver a reação. Tomás sentiu
medo, e começou a escorregar, tentando descer. Sebastião
o sacudiu e o garoto perdeu o equilíbrio, quase caiu. O pai
soltou uma gargalhada estridente.
— Está com medo de mim? Sou teu pai moleque! -
gritou.
Tomás não aguentou segurar, abriu o berreiro,
atiçando a ira do pai. Fora de si, Sebastião sacudiu o filho,
tentando estacar o choro, e o terror tomou conta do
garoto, o coração batia loucamente e o pai se divertia com
a cena. Tomás tentou se libertar, mas o pai se enfureceu,
arregalou os olhos e tapou-lhe a boca, sufocando seu
pranto.
— Grita agora que eu quero ver! Vamos, grita!
A mãe e as irmãs entraram correndo, tentavam
libertar o garoto. O pai não se importou, fazia absoluta
questão de ignorá-las e Tomás, quase sem fôlego, tentava
livrar-se da mão enorme que o sufocava.
— Larga o menino, Bastião! – gritou a mãe.
Sem pensar na reação violenta do esposo, Maria
saiu do estado de passividade, perdeu o medo, agarrou o
braço do agressor, tentando libertar o filho à força. O
esposo a encarou enraivecido, soltou o filho e se atracou à
nova presa.

[ 58 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Tomás se encolheu no canto da sala, a mãe


apanhava nas costas, no rosto, nas pernas... Estela tentava
separá-los, Cida puxou Tomás pela mão e juntos foram
para o quintal. Momentos depois, ele largou as duas e saiu
porta afora, rosnando feito um tigre enjaulado. Elas
ficaram sentadas no chão, chorando a dor, a revolta e o
desespero.
Tomás continuava em prantos, mantinha o rosto
escondido entre os braços e tremia o corpo inteiro, não
sabia o que se passava e nem os motivos, mas aprendeu,
ainda na infância, a sentir ódio daquele homem que
causava tanto sofrimento à família:
“Ele nunca foi um pai, mas um monstro perverso e
sádico que judiava de mim, da mãe e das minhas irmãs”.
Depois que o pai saiu, Cida e Tomás retornaram à
sala. Maria chorava, o rosto, repleto de hematomas,
sangrava em alguns pontos. Estela limpava os ferimentos.
Foi a primeira vez que Tomás a viu chorando, achou que a
mãe estava morrendo.
— Mamãe...
Tomás estava em prantos. Maria tentou tranquiliza-
lo, limpou as lágrimas e segurou a mão do filho.
— Não foi nada, meu filho... Estela, põe a comida
de Tomás, vou tomar um banho.
Levantou-se meio desajeitada, tentando esconder a
dor que sentia no corpo e no coração. Ajeitou os cabelos
em gestos rápidos, até prendê-los no costumeiro rabo de

[ 59 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

cavalo. Saiu cambaleante, coração apertado e o corpo


trêmulo de humilhação. Suspirou e apertou o terço na
mão, buscando fortalecer a fé. Não era fácil conviver todos
os dias ao lado de um homem como aquele.
Evitou dirigir o olhar para os filhos.
— Não foi nada...
“Jesus não abandone a minha família” – supliciou
em pensamento e, pela primeira vez, sentiu a distância de
Deus e as pontadas impiedosas da dor do desamparo,
tentavam corroer sua fé. Não sabia o que fazer.
O sol foi baixando aos poucos. O tempo começou a
mudar lá no morro, o sopro de um vento frio, trouxe os
primeiros sinais de chuva. Maria e os filhos foram para a
cozinha, na panela, o dicomer estava pronto. Naquele dia
comeram batata, arroz, feijão e ovo frito. No barraco a
carne era uma novidade, uma vez por semana. Quando as
provisões minguavam, ceavam batata no almoço e às
vezes iam para a cama com a barriga roncando.
Depois do almoço, Tomás foi brincar na terra, no
fundo do quintal. Em dado momento, escutou soluços,
atrás do banheiro. A mãe chorava debaixo da goiabeira,
ocultava dos filhos a dor que consumia a sua alma. Tomás
ficou parado a contemplar a mãe. Não se conteve, correu e
a abraçou pelas costas. Ela se virou, afagando-o entre os
braços.
— Tomás... meu Tomás...

[ 60 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

A mãe o fez deitar a cabeça no colo macio e os


dedos magros afagavam os finos cabelos do menino.
Tomás fechava os olhos, gostava daqueles afagos, sentia-
se reconfortado. Incomodava-o, desde a mais tenra idade,
os maus-tratos e a rejeição de um pai agressivo, que não
permitia qualquer migalha de paz na família que habitava
o pobre barraco.
— Por que papai vive te machucando?
Ela o olhou surpreendida.
— A vida oferece coisas boas e ruins. Os meus
filhos foram as coisas mais belas. As coisas boas.
— E papai?
— O que é que tem seu pai?
— Ele não é a coisa boa. Ele é a coisa ruim!
Tomás não conseguiu disfarçar a lágrima que
descia. A mãe tentou disfarçar a tristeza que se desenhava
no semblante, e na voz carregada de amargura.
— Nós ainda seremos felizes...
— Todos nós? Até papai?
— Sim...
— Você gosta dele?
Maria ergueu os olhos para o céu, buscando uma
resposta sensata. Não queria mentir, nem romper com a
inocência que se aflorava no fundo do quintal.
— Devemos gostar de todas as pessoas, até aquelas
que não fazem parte do nosso universo.
— Mãe, o que é universo?

[ 61 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Universo é o mundo... as coisas, as cidades, o sol,


o mar, o mundo todo.
— Mãe...
— Pode falar querido...
O garoto não se conteve, as lágrimas voltaram a
escorrer e ele desabafou:
— Eu não gosto dele... Ele machuca você e as
meninas... Ele não é bom, não gosta da gente. Eu queria
que ele fosse embora e não voltasse! Aí só ficaria eu, você
e as meninas...
Ela o estreitou entre os braços, tentava amenizar a
dor que começava a crescer no coração da sua criança.
— Deus não gosta que a gente fale essas coisas, é
pecado. Tem que ser assim, até quando Deus permitir.
— E Deus não gosta da gente?
— Gosta sim.
— Ele não quer o nosso bem?
— Quer.
— Então ele quer que a gente fique sem o papai...
Às vezes Maria não sabia como mudar o modo
como o filho enxergava as coisas.
— Você é só uma criança, tem muito tempo pela
frente e vai ser feliz, com fé em Deus, você e as meninas...
— Mamãe, por que a gente não tem amigos?
O filho voltou a surpreendê-la, nunca esteve numa
escola, mas sabia de muitas coisas. Maria o contemplou

[ 62 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

por um momento, perguntando-se de onde vinha tanta


esperteza.
— Um dia você vai saber de tudo e ninguém vai
contar, vai descobrir sozinho.
De repente ela ficou séria. Levantou-se, suspirou
fundo, e estendeu a mão ao filho.
— Vamos entrar. Está esfriando. Parece que vai
chover forte.
— Quando chove forte, eu peço à Nossa Senhora
que não deixe o nosso barraco cair.
— Reza como ensinei?
— Toda noite.

[ 63 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Quatro

Eu tenho a impressão que no seu


egoísmo meu pai conseguiu chorar. Um
choro sem lágrimas, mas era um choro.

O tempo foi passando. Tomás estava com sete anos,


era natal, lembrava-se bem daquele dia, quando se
debruçara sobre a mesa para fazer desenhos. Enquanto
isso, a mãe aprontava a ceia de natal, uma sopa de
macarrão com legumes, carcaça de frango e pães de sal.
Antes de reunir os filhos, separou o prato de Sebastião,
colocando-o sobre o fogão para não esfriar. A luz do
barraco foi cortada outra vez, as contas venceram. Maria
vivia prevenida, ajeitou o velho lampião a querosene. Na
rádio Aparecida, a voz emocionada do padre Vitor Coelho
de Almeida, fazia de “Os ponteiros apontam para o
infinito” um programa imperdível.
Lá no morro, Maria e seus filhos celebravam o
nascimento de Jesus. Não tinha Papai Noel, presentes ou
parabéns a você, era apenas o 25 de dezembro, natal dos
pobres, famintos, abandonados, analfabetos, miseráveis,
esperançosos...
Entretanto, no centro comercial da cidade, o natal
era um espetáculo de luzes coloridas, repleto de
ornamentos, centenas de lojas com o bom velhinho na

[ 64 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

frente, enfeites de todos os tipos, árvores coloridas,


músicas e centenas de pessoas carregando braçadas de
presentes para os amigos e familiares. Era o natal do
comércio, do lucro e da fartura.
Naquela noite, ao reunir os filhos ao redor da mesa,
Maria sentiu o sopro da tristeza entrar no coração e tomar-
lhe o fôlego, quase não conseguiu fazer a sopa descer.
Engoliu apressadamente, enquanto tentava sossegar a
alma:
“Meu Deus, não deixa eu perder a esperança.”
Respirou fundo, precisava ser forte, suportar as
provações e seguir com os filhos. Aproveitou que
Sebastião estava ausente e os convidou para rezar, depois
foram comer. Era uma ceia simples, sem novidade, mas os
quatro molhavam o pão na sopa e comiam como se fosse o
mais delicioso banquete.
— Devagar Tomás. A sopa está muito quente, vá
soprando aos poucos.
Na véspera, Tomás foi ao centro com a mãe e ficou
maravilhado com tanta beleza, cheiro de comida, doces,
fartura. Na frente de uma das lojas, havia um homem
sentado, vestido de Papai Noel, uma figura que encantava
as crianças. Maria o deixou na calçada, enquanto foi
visitar a Igreja que ficava ao lado da praça.
— Já volto, não se afaste da calçada.

[ 65 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Tomás observou que o Papai Noel era atencioso


com as pessoas que passavam por ali, no seu colo havia
duas crianças que comiam chocolates.
Aproximou-se, dividido entre a timidez e a
esperança, com um pouco de sorte, quem sabe ganharia
algum agrado. Ao vê-lo, o homem não disfarçou a
rejeição, rompeu qualquer possibilidade de encantamento,
ao se dirigir ao garoto:
— Quer alguma coisa?
Tomás ficou em silêncio. O homem insistiu:
— Perdeu a língua?
Insistiu, sem qualquer paciência para o diálogo com
um mero garoto tímido, pobre e faminto.
— Queria um bombom...
O pedido saiu forçado, quase inaudível. O homem
sorriu, respondeu em seguida:
— Você precisa de uma tonelada de bombons e eu
não posso dar essa quantidade. Leve um pirulito e vá
embora, o doce só vai aumentar a fome.
Tomás ficou em silêncio, não recebeu o pirulito.
Aprendeu cedo o sentido e a dor da humilhação. O
homem insistiu:
— Garoto, preciso trabalhar, pegue o pirulito e caia
fora. Ah! Não quer? Problema seu.
Tomás afastou-se em silêncio, fazia força para não
chorar. Andou alguns metros, de vez em quando olhava
para trás. O papai Noel continuou distribuindo simpatia

[ 66 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

para os clientes endinheirados. Em dado momento, outro


garoto se aproximou com a mãe, uma senhora de traços
finos e delicados. O “bom velhinho” fez questão de
recepcionar o recém-chegado, ricamente vestido.
— Feliz natal meu filho, leve um saquinho de
bombons, presente do bom velhinho!
O menino avistou Tomás a poucos metros, sentado
na borda do canteiro, ao lado da calçada. Recebeu os
doces, mas os olhos verdes, brilhantes como esmeraldas,
acentuados pelos cílios escuros, não se desviaram de
Tomás. Ao notar a aproximação do garoto, Tomás retraiu-
se, não queria ser humilhado. O menino estendeu a
sacolinha de doces. Tomás baixou os olhos, permaneceu
em silêncio, dividido entre a vontade de chorar e a alegria
de aceitar a esmola.
— Eu tenho muitos doces, em casa, estes são para
você.
O garoto tinha voz suave, pareceu sincero, deveria
ter uns oito anos. Tomás piscou os olhos e lágrimas
desceram. O garoto pousou o braço em seu ombro, tentou
consolá-lo.
— Eu sei que é pouco, quase nada. Mas a vida não
acabou, ainda é tempo de muitas coisas.
Ele não escondeu a emoção que sentia, falava de
um jeito diferente, certinho, compassado. As palavras
penetravam o coração de Tomás, como um acalanto

[ 67 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

suave. O menino continuou a falar de um jeito que ele


nunca ouviu:
— Agora feche os olhos e repita comigo: “Senhor,
põe em mim um coração novo. Quero ser feliz, Senhor.
Ajuda-me a descobrir minha meta.”
Tomás fechou os olhos, repetindo a oração e o
menino colocou em suas mãos a sacola de doces. Naquele
momento, uma voz rompeu a magia, sua mãe o acenava,
do outro lado da rua. Tomás fez sinal que aguardasse,
porém, ao voltar-se, um susto: onde estava o menino da
voz suave? Olhou de todos os lados, nenhum sinal,
apenas o Papai Noel com uma criança ao colo.
Não sabia o que pensar. O coração estava aos pulos,
o corpo arrepiado. Seria mais uma de suas fantasias? Não
sabia como explicar, estava com uma sacolinha de
bombons na mão.
“Naquele dia, vivi a experiência mais linda da
minha infância, mesmo sem entender o que aconteceu.”
— Quem deu esses doces? – indagou a mãe.
— O Papai Noel. Vou levar para as meninas, elas
vão adorar.
Quando estavam terminando a sopa, Sebastião
entrou com um monte de pacotes debaixo dos braços.
Parecia mais humano e pela primeira vez tratou a todos
sem a costumeira animosidade.
— Trouxe presente pra todo mundo – disse, meio
desajeitado. Era outro homem.

[ 68 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Tomás não estava sonhando, o pai não exalava


cheiro de cachaça, até passou a mão sobre a sua cabeça e
ensaiou um sorriso tímido para as meninas. Todos ficaram
surpresos, desprovidos de qualquer reação. Naquele dia,
Tomás pode experimentar a rara sensação de ter um pai
de verdade. Um pai que nunca se manifestou, talvez
porque vivesse sufocado pelas feridas do destino e, para
se manter protegido, preferia assumir-se como um homem
rude, violento e distante. Um pai que nasceu no
sofrimento, não teve infância e, muito jovem, se viu
transformado num sem-terra, depois, num sem teto e,
finalmente, um sem nada.
A vida do pai sempre transitou entre o acerto e o
fracasso e, ironicamente, mesmo no mundo do
banditismo, não alcançou sucesso. Não era querido por
ninguém, os filhos nunca enxergaram o pai, mas um
estranho opressor que morava na mesma casa. Sebastião
sentia necessidade de ascender-se como chefe, encontrou
na família, o único lugar que mantinha domínio, território
demarcado e ele, senhor absoluto.
“Esse foi seu pior defeito, ao nos perseguir, perdeu
a oportunidade de se redimir, ser um pai, amigo, parceiro.
Mas ele não queria isso”.
A briga de Sebastião com o mundo e o criador, não
o permitiu enxergar em Maria, a esposa fiel e dedicada.
Não enxergou a pureza e o amor filial, abdicou do caráter

[ 69 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

e da condição de pai, tornando-se o macho cruel,


inescrupuloso e sedutor, algoz das próprias filhas.
“Gosto de pensar que tudo podia ser diferente.
Meu pai não nasceu bandido, não herdou essa marca, até
o dia que a dureza da lida, mudou o rumo da sua história.
Ainda jovem, sentiu na carne as feridas da pobreza e do
abandono, perdeu os pais, teve que criar os irmãos e viu a
cara da fome entrar e sair do casebre. Meu pai viu crescer
o orgulho ferido que o cegava aos poucos, alimentando o
ódio de uma situação que ele queria se ver livre, mas não
sabia como. Para ele, o mundo estava errado e o culpado
era Deus”.
A ingenuidade e o individualismo, não o
permitiram entender que as estruturas sociais não são
armações divinas, mas humanas. Não se deu conta que o
sistema produz as diferenças. O pai não teve infância,
sonhava conquistar um pedaço de terra, plantar cacau no
meio da mata, viver na terra natal. Mas não foi assim, o
sonho se distanciava da realidade de um latifúndio, que
enriquecia meia dúzia de fazendeiros, à custa da
exploração dos trabalhadores.
Naquele natal, Sebastião voltou a ser, por alguns
momentos, o mesmo jovem sonhador, não era o algoz,
mas um pai que entrou em casa com os braços carregados
de presentes, de olhos brilhantes, vivos, esperançosos.
“Recebemos os pacotes, o entusiasmo afastou a
cisma, papai ficou espiando a gente em silêncio e por

[ 70 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

alguns momentos, nos esquecemos que ele estava ali,


escorado no canto da parede, como se assistisse a um
espetáculo. Cida ganhou um vidro de perfume, Estela um
delicado relógio de pulso e eu fiquei encantado com o
caminhão de brinquedo. Mamãe ganhou uma blusa de lã,
não disse nada, não havia o que dizer, preferiu fingir que
papai era um trabalhador honesto, dedicado à família, que
celebrava o natal da esperança. Ela viu a nossa euforia,
não quis destruir aquele momento de rara paz e
tranquilidade, mesmo sabendo que todos os presentes
foram roubados”.
O pai andou até o fogão, pegou o prato de sopa e o
pão de sal. Comeu em silêncio. Naquela noite, Tomás
estava feliz, brincou com o carrinho até a hora de deitar,
dormiu agarrado ao brinquedo, como se o mesmo fosse o
maior tesouro. E era. Lembrou-se do menino da cidade: “a
vida não acabou. Ainda é tempo de muitas coisas...”.

[ 71 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Cinco

Senti uma dor terrível, mas não


derramei lágrima alguma. A revolta doía
mais!

Os meses continuavam a passar, cumprindo a


missão de relógio eterno. Tomás estava com oito anos.
Certo dia, o pai foi acordá-lo.
— Acorde Canivete.
Ele abriu os olhos cheios de sono e ao se dar conta
da presença paterna, voltou a sentir palpitações, o pavor
estava de volta. O pai estava calmo e aos poucos o filho se
aquietou, sentou-se no beiral da cama e, para seu espanto,
Sebastião segurou suas mãos e sussurrou:
— Hoje você vai me ajudar a fazer um trabalho.
As meninas se aproximaram, ainda era cedo, estava
escuro. Sebastião falava do tal trabalho com entusiasmo.
— Você é esperto Canivete. Não vai despertar
suspeita. Vamos! Hoje você vai aprender o ofício, será o
meu braço direito!
— Por favor, papai, não leve o Tomás!
As meninas ficaram alarmadas.
— Ainda é cedo. Espera ele crescer um pouco mais,
ele só tem oito anos.

[ 72 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Calem a boca! Vocês não sabem nada do


negócio.
— Ele não está acostumado e pode ser apanhado
pela polícia!
“Desconfiei que não era coisa boa, estava
assustado, as meninas tentavam fazer papai mudar de
ideia, mas ele estava decidido”.
— Não se metam, hoje ele começa as primeiras
aulas, é tempo de Canivete aprender a roubar!
Tomás estremeceu, a desconfiança se confirmou. O
pai bandido queria transformá-lo num ladrão à sua
imagem e semelhança.
“É tempo de Canivete aprender a roubar”.
“Eu sabia que o meu pai não era honesto, mas criei
dentro de mim, uma espécie de parede que impedia que
eu enxergasse a cara da realidade. Foi o modo que
encontrei para fingir que o meu pai não era tão
desprezível. Eu até gostava dessa parede, tinha medo do
choque, ao ter que me deparar com a outra face da vida”.
Porém, quando a parede caiu, a realidade veio à
tona e de modo súbito, selvagem, terrível e inescapável. O
desamor escorria como água suja de um esgoto infinito,
que descia do morro, arrastando os sonhos puros do
garoto e fatalmente, ele seria contaminado. A mãe sempre
temeu aquele momento, suplicava a Deus que o filho não
tivesse que passar pelo vale da morte e não voltasse.
Tentou fazer o esposo desistir, mas ele estava disposto a

[ 73 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

levar adiante o intento, ela não podia fazer nada. O pai


queria o filho na escola do crime.
“Cida fez um café às pressas, Estela lambuzou o
pão com manteiga e eu comi, sem a menor vontade, nem
senti o gosto do café preto. Engoli de qualquer jeito, e
logo, estávamos a caminho, tomamos o ônibus que descia
para o centro. Papai estava animado, como se estivesse
indo para uma grande festa, não via a hora de iniciar os
tais ensinamentos. Descemos ao lado da praça principal”.
O coração do garoto batia fortemente, as horas
passavam e a cidade se movimentava, era um novo dia,
outras preocupações, outros assaltos... O pai não se
cansava de explicar como ele deveria agir. Tomás nunca se
esqueceu desse primeiro dia:
“Eu o ouvia atentamente, coração apertado, cheio
de medo”.
— Atrás daquela lanchonete tem uma viela, bem
ali, olha - apontou - está vendo?
— Estou - respondeu num fio de voz.
— Eu te espero lá, você fica aqui. Daqui a pouco,
algumas senhoras idosas, cheias da bufunfa, vão passar
por aqui. Elas adoram passear pela manhã. A pessoa idosa
é presa fácil. É só avançar e zás, arranque a bolsa e venha
correndo. Tem que ser rápido e não tenha medo. As
velhotas não sabem reagir. Entendeu? No começo é assim
mesmo, depois que ficar treinado, você pode assaltar
qualquer um. Primeiro tem que praticar com as velhinhas.

[ 74 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Estendeu o olhar para as pessoas que atravessavam


a praça, até localizar a primeira vítima.
— Olha só Canivete, lá vem uma velhota. Vá em
frente e faça como ensinei!
Uma senhora caminhava em sua direção. O pai foi
para o local combinado e Tomás tinha que obedecê-lo,
embora estivesse nervoso, inseguro e com muito medo.
Quanto mais a senhora se aproximava, mais ele tremia,
não sabia como agir. A idosa tinha os cabelos grisalhos,
amarrados, numa popa, semelhante às simpáticas vovós
dos contos de fada, uma cena que o marcou para sempre:
“Naquele momento, senti uma enorme vontade de
abraçá-la e desabafar tudo o que estava preso dentro de
mim. A senhora trazia uma bolsa na mão direita. Voltei o
rosto na direção do beco e avistei o meu pai. Ele acenava,
de longe, inquieto, tentando encorajar-me. Tomei fôlego e
avancei para a senhora, mas na hora exata, faltou
coragem, então a cumprimentei, meio sem graça”.
— Bom dia...
— Bom dia, garotinho. Lindo dia, não?
“Fiz que sim com a cabeça e voltei a olhar o beco. O
meu pai gesticulava de modo impaciente. Decidi cumprir
a missão, arranquei a bolsa da senhora de supetão. Ela
começou a gritar assustada:
— Socorro polícia, socorro! Alguém me ajude!
Assustado, larguei a bolsa e saí em disparada,
entrei na viela onde o meu pai se encontrava. Corremos

[ 75 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

juntos, até nos escondermos atrás dos muros de um


estacionamento. O perigo havia passado. Ficamos a sós.
Então ele me encarou furioso. A dor foi horrível, papai
desfechou-me um violento soco no lado esquerdo do
rosto, que cortou o lábio superior. Cuspi um dente. O
sangue veio imediato e com ele a minha revolta. Como
odiei aquele homem.
— Seu babaca estúpido! Por que não trouxe a bolsa,
porra?
Ele me sacudia raivosamente. Não disse nada. Senti
uma dor terrível, mas não derramei lágrima nenhuma. A
revolta doía mais. O sangue continuou a correr entre os
dentes. Naquele dia, senti na pele e no coração, o
significado do desamor. Odiei o meu pai com todas as
minhas forças.
— Eu não ensinei tudo? Por que não trouxe a bolsa?
Ficou com medo da velha? Só por que ela gritou?
Outro tabefe no rosto. Continuei silencioso”.
— Todas gritam, ouviu bem? É só o que elas sabem
fazem quando são atacadas! Agora, de pé! Quero ver se
aprendeu de verdade. De pé!
Canivete levantou-se prontamente. Respirou fundo,
buscou no mais íntimo do ser, todo desprezo e revolta que
sentia pelo pai, só assim conseguiu alimentar a coragem.
Teria que cumprir a missão, nada podia dar errado
daquela vez. Não tardou, avistou outra senhora. Ela
caminhava com dificuldade, como se tivesse medo de cair.

[ 76 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Quando ele se aproximou, evitou o sentimento de


compaixão que começou a crescer dentro de si, mas a
imagem violenta do pai o fez engolir a cisma, não havia
outra alternativa. Não podia fraquejar, arrancou a bolsa
da vitima. Ela mal teve tempo de reagir e ele foi ao
encontro do pai.
“Fiz tudo conforme o papai queria. Ele ficou
radiante, a bolsa da pobre mulher, estava recheada. Senti
uma imensa dor de cabeça, a boca estava inchada e meio
dormente. O sangue diminuiu, mas ainda corria de
fininho por entre os dentes. Meus pés estavam doloridos e
eu me sentia terrivelmente cansado, mas não reclamei,
não podia contrariar o meu dono.
— Agora sim! Muito bem Canivete!
Passava do meio-dia, o sol continuava forte. Senti
fome, mas não disse nada. Meu dono podia se enfurecer e
machucar-me outra vez. Era melhor sufocar a dor e a fome
no meu silêncio covarde”.
Eles andaram alguns quarteirões, depois pegaram o
ônibus e voltaram para o morro. No caminho, entraram
no bar do Toninho troca-troca e Sebastião exibiu o filho,
como um troféu. Contava com grande dose de exagero as
proezas da escola do crime. O filho permaneceu em
silêncio, tentando engolir a vontade de chorar o seu
drama.
— É isso aí, Canivete! - gritavam em coro.
— Vamos beber na sua intenção!

[ 77 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

O pai estendeu o copo de cachaça com limão e


ordenou:
— Mostre que você é filho de homem!
“Engoli fazendo careta. Foi a primeira vez que
provei cachaça. Eles sorriram da minha repugnância.
Mesmo assim, engoli a dose inteira. Quase vomitei ao
sentir o gosto do álcool. O meu pai agia como se eu fosse
um adulto, mas eu não passava de uma criança de oito
anos”.
O trágico espetáculo parecia não ter fim. Seu pai
falava, sorria, cuspia, depois, meio embriagado, ordenou
que uma das mulheres mostrasse a calcinha. A torcida
vibrou com mais uma piada de Bastião Pilantra. A jovem
ergueu a saia, virou-se, exibindo a bunda, rebolava entre
aplausos, beliscões e risos.
— Canivete, esta é a Fatinha. Ela é toda sua. É o seu
grande prêmio!
— Bastião, menos, cara, é uma criança! - reclamou o
Toninho, percebendo a ausência de limites do pai.
Sebastião replicou:
— Que criança nada! Ele é muito macho, puxou o
pai. Ei, Canivete, arranca a calcinha dela!
Não era comédia, mas todos sorriam. Sempre
achavam motivo para zombar da desgraça humana. Eram
vítimas também, nada mais possuíam. O mundo cão
tirou-lhes tudo, até mesmo a sensibilidade de reconhecer o
próximo como ser humano.

[ 78 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Maria de Fátima ou Fatinha, também era um


farrapo que ajudava a cobrir a fantasia do palhaço. Pobre
Fatinha, teria ela, uma alma? Claro que sim. Moça pura,
aos 13 anos deixou o interior do Ceará e, como tantos, foi
tentar a sorte na cidade grande, mas foi engolida pelo
dragão e saiu na fumaça. A partir de então, procurou
respirar de todas as formas. Perdeu a mãe, por falta de
assistência médica no hospital. A lavadeira não foi
atendida a tempo e a família não tinha dinheiro. A criança,
atravessada no ventre da mãe, também morreu. Teve que
sair aos pedaços. O pai, pobre diabo, enlouqueceu. As
cinco filhas se dispersaram. Estariam todas vivas? Fatinha
estava, encarou a prostituição, a bebida, a violência e
exibia seu corpo usado e sofrido para o resto do mundo.
“Eu estava meio tonto, o mundo girou em volta, o
corpo amoleceu e meus olhos fecharam. Tudo escureceu...
Papai me trouxe para casa, nem sei como. Minha cabeça
latejava de dor. O álcool fazia arder os ferimentos da boca.
Eu estava com uma moleza no corpo inteiro. Aos poucos
recobrei a consciência e pude ver a figura embaçada da
minha mãe. Meu pai tentou me colocar de pé. Caí com
força. Mamãe soltou um grito, percebeu que eu estava
embriagado”.
— Tomás...
Correu e estreitou o filho entre os braços. Era uma
mulher forte. Virou-se para Sebastião com desprezo.
— Você deu pinga ao menino?

[ 79 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Naquele dia ela esqueceu da submissão, do medo e


pela primeira vez o enfrentou. Olhava-o no fundo dos
olhos, à espera da resposta.
— Dei sim. Ele é macho, não é Canivete?
— Sou...
“Respondi sem entusiasmo, nem sabia o que dizia.
Só queria dormir. As meninas entraram neste momento”.
— O menino tem apenas oito anos. Isso não se faz!
Sebastião não se importou com os queixumes da
esposa. Foi para o quarto, jogou-se na cama e começou a
roncar. Tomás foi levado para a cama, a mãe o alimentou
de amor e ele sentiu-se protegido com aquele calor
humano, verdadeiro, vivo.
“Choramos juntos”.
As meninas ficaram horrorizadas com o ocorrido.
Já era noite. Tomás não queria comer, estava sonolento.
Fechou os olhos e penetrou num profundo sono. As três
ficaram velando por ele.
“Passei a noite em paz. No dia seguinte, a cabeça
voltou a doer. Lembrei de tudo, como numa tela de
cinema e voltei a chorar. Senti que a tristeza penetrava a
alma. Mamãe dormiu no nosso quarto, na cama de Estela.
Acho que não encontrou coragem para encarar o meu pai.
As três tentavam me consolar em vão. Nada era capaz de
diminuir a dor que eu sentia, meu desabafo não era outro,
senão chorar. Mamãe e as meninas choravam comigo.

[ 80 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Contei-lhes tudo. O primeiro assalto, o soco na boca, a


cachaça no boteco, tudo.
— Quebrou o dente do canto, mas eu não chorei e
fiz o que pude para aguentar a dor.
Mamãe sofria comigo. Eu não omiti nada, falei até
da prostituta que foi dada como prêmio”.
— Ela foi tirando a roupa e todo mundo riu. Tudo
ficou escuro e aí eu não vi nada mais. Quando acordei,
estava aqui...
As três cobriram o rosto. A mãe franziu o cenho,
ficou séria e segurou firmemente as mãos do filho caçula,
encarando-o:
— Tomás, preste atenção: seu pai quer te
transformar num bandido chamado Canivete. Você não é
Canivete. Não aceite ser Canivete. Você sempre será
Tomás, um garoto honesto, do bem, temente a Deus,
obediente. Não se deixe levar pelas facilidades do crime,
sua vida precisa ser diferente. Não perca a confiança em
Deus e não se esqueça de fazer as orações que ensinei. Seu
pai nunca poderá tirar a pureza do teu coração. Jesus vai
te proteger e um dia você sairá vencedor. Enquanto eu
tiver vida e saúde, não deixarei nenhum de vocês
desamparados.
“Foi a primeira vez que ela falou daquele jeito. Hoje
tenho a certeza de que ela sabia que o caminho da minha
felicidade não seria fácil, mas tortuoso, repleto de
provações, renuncia, perdas. Mamãe tinha certeza que os

[ 81 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

rumos da minha história teriam que ser encarados e


transformados por mim, desde que eu estivesse disposto a
seguir o caminho do bem. Pobre mamãe... tinha a dolorosa
certeza que seu filho querido estava assumindo outra
identidade, transformando-se, aos poucos, num jovem
bandido conhecido por Canivete”.
Cida e Estela se levantaram e foram aprontar o café.
O pai entrou em seguida. Estava sério e carrancudo.
Lançou o olhar para o filho, sem qualquer vestígio de
compaixão. Tomás levantou-se, esperava as ordens, como
um cão adestrado diante do dono.
— Tome seu café e venha comigo, temos trabalho
pela frente!
— Bastião, não leve o Tomás. Ele está com dor de
cabeça...
— Bobagem! Ele é macho e dor de cabeça é doença
de rico!
Em seguida voltou-se para o filho:
— Agora que você já aprendeu como se faz, não
podemos perder tempo.
— Bastião, o menino não está bem...
Ele alterou o tom de voz, enfatizando sua ordem:
— Eu já disse que não quero perder tempo! Vamos
Canivete!
O garoto ficou em pé imediatamente.
— Bastião, não dê bebida para o Tomás.

[ 82 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Filho meu tem que aprender a ser homem desde


pequeno!
“Caminhei silenciosamente em direção à cozinha,
tomei o café e depois saímos. Começava ali, o capítulo
decisivo da minha história: o mundo do crime. Eu estava
sendo preparado para assumir um lugar que jamais
desejei, que foi se tornando perigosamente normal.
Quando a repetição dos atos alcança a normalidade e
retira do bandido o sentimento de culpa, apaga, aos
poucos, qualquer sinal de dor na consciência”.
E assim a história de Tomás percorreu uma estrada
perigosa, onde o sentido de humanização se perdia aos
poucos. Aprendeu que, no mundo do crime, a frieza, o
individualismo, a desconfiança e a indiferença, são
elementos indispensáveis que atuam no mais radical
conceito de sobrevivência.
“Comigo, as coisas foram acontecendo aos poucos
e, quando me dei conta, Canivete cresceu dentro de mim,
se fortalecia, planejava as ações e comandava a minha
vida. Tomás perdia espaço e Canivete ganhava as ruas e
ignorava os conselhos da minha mãe. A vida fácil de
Canivete, afastava os sonhos, a poesia e a ternura de
Tomás. Eu estava me perdendo de mim mesmo, numa
luta árdua, solitária e sem direção. Não sabia e nem queria
pensar como seria o fim daquela história.”

[ 83 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Seis

A verdade é que eu queria morrer


também, apesar de morrer de medo de
morrer.

...

Tomás passou a viver outra fase da vida. Já não era


o menino de outrora, mas um pivete perigoso chamado
Canivete.
“No início, havia dentro de mim uma revolta surda,
era meu lado Tomás que ainda vivia: um garoto bom que
sonhava fugir daquela vida desgraçada. E por falar em
fugir, já tive boas oportunidades, mas, acabava desistindo,
o amor a mamãe e às minhas irmãs, era mais forte, eu não
as abandonaria.”
Os meses foram passando, Canivete estava com
nove anos, era um mestre em furtos. Tinha notável
habilidade para bater carteiras, tomar bolsas de mulheres,
roubar em lojas, supermercados, feiras. Nunca foi
capturado. O pai se orgulhava, vivia espalhando para o
mundo que o filho era o cara mais esperto da área, graças
a ele.
“Meu pai nunca teve qualquer crise de consciência,
fez de mim um pivete sem escrúpulos, como um fantoche

[ 84 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

enrolado em velhos jornais, deixado no centro da cidade,


com uma ordem, expressa no olhar e tatuada no coração:
Canivete, faça o que te ensinei”.
E Canivete aprendeu as lições. Era astuto, ardiloso,
habituado à nova vida. Encarava a missão como qualquer
outro trabalho. Enquanto isso, lá no morro, a mãe
continuava ferida e desolada. Não suportava ver o filho se
perdendo nos caminhos tortuosos do crime, embora
continuasse firme na esperança de ver o menino Tomás
recuperado, honesto, trabalhador e que a tirasse daquele
lugar. Mas ela sabia que não era tão simples. O seu Tomás
arrastava-se no cascalho da vida errada, como uma
serpente que cruza o deserto em busca de abrigo e
sobrevivência.
“Quantas vezes eu a vi chorando o meu destino e
quando estávamos a sós, ainda buscava resgatar-me,
enchendo-me de bons conselhos, mas Canivete se
manteve cego e surdo para a as coisas do bem”.
— Meu filho, você não é bandido. Não acabe com a
sua vida desse jeito.
— Eu não queria que fosse assim... - comecei a
apresentar a justificativa de sempre, ao que ela
interrompeu rispidamente.
— Não use desculpas, você não precisa fazer o que
o seu pai pede. Eu não estou te reconhecendo, fica o dia
inteiro nas ruas, chega de madrugada e com o bolso cheio.
Está seguindo o exemplo do seu pai. Você fez a escolha e

[ 85 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

tomou gosto pela vida desgraçada e eu estou morrendo de


vergonha.
— Ora, mamãe, se eu não obedecer, ele desconta
em você e nas meninas. Foi assim a vida inteira, você
apanhando, ele batendo. Não pense que as coisas seriam
diferentes. Cida e Estela estão aí, sem qualquer esperança
de futuro e eu? O que será de mim?
— Pobreza não é defeito. Se quiser ajudar, faça
como tantos garotos da sua idade: vá lavar carros,
engraxar sapato, vender cocada, consertar bicicleta. É
pouco, mas é trabalho honesto, engrandecedor. Roubar é
um caminho fácil, mas pode ser o seu fim... Não gostaria
de ver o meu filho atrás das grades, apanhando da polícia
ou morto num terreno baldio, com a boca cheia de
formigas.
“Fiquei em silêncio. A verdade cortante que saia da
sua boca, deixava-me sem qualquer argumento. Senti as
lágrimas, mas contive o choro, Canivete não podia deixar
Tomás chorar. Ele estava ali, presente, e era capaz de
passar por cima de tudo, até do meu amor materno”.
— Chega de papo, a vida é dura mãe. Tô vazando!
— Onde você vai?
— Melhor não dizer.
“Jesus, não desista do meu filho.”
“E era assim, sempre que ela tentava conversar, eu
dava um jeito de fugir. Não queria enxergar a verdade,
preferia a ilusão. Mas a minha mãe nunca desistiu de

[ 86 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

mim, nunca deixou de me amar e acreditava na minha


recuperação. Sabia que não era inteiramente por minha
culpa, já que Tomás se transformava em Canivete, por
ordem do pai, por medo. Cumpria uma triste missão,
independente da sua vontade”.
Os dias foram passando sem maiores novidades,
mas havia um novo capítulo reservado para ampliar o
drama de Tomás, deixando marcas definitivas no curso da
sua história. Foi numa manhã tranquila e ele estava a fim
de curtir a família. Os três estavam tranquilos, viviam por
alguns momentos a sensação de paz. Sem a presença
desconfortável do pai, o verdadeiro Tomás estava de
volta, Canivete era uma sombra distante.
“Não tinha gás, aquele dia, o almoço custava a sair.
O jeito foi usar o velho fogão, mas a lenha estava
molhada, devido a chuva da noite anterior. Mamãe
soprava o fogo e ele se apagava, sem vontade de vida. A
fumaça entrava nos olhos, deixando-a irritada”.
— É quase hora do almoço e esse fogo não quer
pegar!
— Daqui a pouco ele acende, deixa eu tentar.
Tomás foi até o fogão e começou a soprar. Uma
pequena chama se firmou.
— Você tem um sopro de ouro...
Não pode continuar. A porta se abriu
violentamente. Sebastião entrou, estava embriagado e
berrando palavrões de todo tipo.

[ 87 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Eu tô com fome, porra!


A comida ainda não estava pronta. Foi a gota que
faltava. Ele chutou a panela de arroz e em seguida agarrou
Maria pelo braço e, sem qualquer motivo começou a
espancá-la.
“Eu nunca tinha visto tamanha violência. Um bolo
se formou em minha garganta. Assistia ao espancamento,
incapaz de reagir. Ele não parava de bater, Mamãe
começou a gritar, procurava se soltar, arranhando-o
completamente. Ele se enfureceu ainda mais. As meninas
tentavam separá-los e mamãe continuava a gritar”.
— Me larga, você está repreendido Satanás.
“O meu pai estava mais forte, como se realmente
estivesse possuído pelo demônio. Nada era capaz de fazê-
lo largar a mamãe. Continuavam atracados e ele despejava
palavrões. Os olhos esbugalhados eram a certeza de que
ali não estava um ser humano. Mamãe lutava contra um
monstro, alguém precisava salvá-la das suas garras”.
— Pare papai! – gritou Cida.
— Ele vai matar a mamãe! – alertou Estela.
“De repente fui despertado do meu estado de
passividade. Canivete tomou a dianteira. Um ódio intenso
veio à tona, o sangue ferveu, não podia deixar aquele
homem matar a nossa mãe. Avancei para a janela, peguei
a trava que servia para cerrá-la. Ele estava de costas. Uma
cólera terrível apoderou-se de mim. As meninas tentaram
impedir, mas eu as empurrei para o lado, decidido. Os

[ 88 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

gritos não me detiveram. Era tarde demais. Desferi um


golpe certeiro na cabeça do meu pai.
— Miserável! Você não vai matar a minha mãe!
O silêncio. Os soluços. O pavor. Meu pai estava
desacordado no chão em meio ao arroz derramado, ainda
cru. Minhas mãos ainda seguravam a trava com força e o
meu coração queria saltar fora. A realidade: papai estava
morto! Ele estava morto. Morto”.
A mãe cessou o pranto e, ainda ofegante, ficou de
pé. Apertou o filho com força e determinação contra o
peito. Precisava enche-lo de energia, o garoto matara o pai
para salvá-la. Agora estava livre das suas garras. Era o fim
de um homem que nunca deixou a felicidade entrar em
seu lar. Um fim trágico, desgraçadamente inesquecível.
“Por um momento, o silêncio nos dominou. Depois,
as minhas mãos foram se afrouxando, e a trava caiu no
chão, num baque surdo. Tomás estava de volta. Aí então,
eu chorei. Chorei como nunca. As meninas também.
Mamãe ainda sangrava o nariz, mas era a mais forte. O
meu pai estava estendido no chão e eu não suportava
aquele quadro horripilante, pintado com a mais mórbida
perfeição. Corri para o quarto, joguei-me na cama e chorei
desesperado. Mamãe entrou em seguida. Não queria que
eu ficasse só num momento tão delicado. O estômago
revirava, senti uma incontrolável vontade de vomitar,
parecia que todo meu aparelho digestivo ia saltar fora. As
lágrimas não paravam”.

[ 89 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Não fique assim, meu filho.


Maria alisava seus cabelos, a voz terna tentava
acalmar o drama do filho.
— Você não queria, mas aconteceu. Ele encontrará
um bom descanso.
Ela nunca pode imaginar como aquelas palavras o
machucavam.
— Eu...
Gaguejou, voz trêmula, engasgado. Buscou o olhar
da mãe e disse, tomado de emoção:
— Eu quis mamãe. Ele morreu, agora seremos
felizes! Ele não vai bater na senhora e nem nas meninas.
Ele vai ser enterrado! Nós estamos livres...
Tomás estava diante de um pesadelo concreto.
Sentia uma mistura de amargura, desespero, delírio... Os
conceitos se misturavam, não sabia o que pensar. Estava
confuso. A cabeça parecia que ia estourar.
— Eu matei papai... - voltou a chorar.
“Mamãe chorou comigo. Apertou-me com mais
força. As lágrimas não se cansavam de fazer o seu
percurso sobre a minha face. Ela tentava oferecer consolo,
de todas as formas, mas nem mesmo a imensa ternura
conseguiu aplacar o meu desespero”.
— Meu Tomás, não fique assim...
Na outra cama, as meninas choravam o seu drama.
“A partir daquele dia, constatei que alguma coisa
morrera dentro de mim. Era como se a vida tivesse

[ 90 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

perdido o sentido. Eu queria morrer também, apesar de


morrer de medo de morrer! Não era remorso, senti uma
mistura de tristeza e vazio”.
No morro era assim: tiros, bala perdida, fome e
tráfico de drogas. Isso sem falar na constante onda de
assaltos e pelotão da morte. A luta pela sobrevivência
naquela zona de conflito era intensa. Uma morte a mais
ou a menos, não era novidade. Por isso, vale dizer, que
todo mundo encarou com naturalidade a morte de
Sebastião. A única a saber de tudo foi a dona Belarmina, a
melhor amiga da minha mãe.
— Teve o que mereceu - disse a parteira, sem
qualquer vestígio de remorso.
Dona Belarmina ajudou em tudo, primeiro vestiu as
mãos com sacolas de plástico, em seguida trocou a posição
do corpo, deixando-o de barriga para cima, com a cabeça
perto da quina do fogão; depois jogou um balde de água
no chão e limpou a trava da janela com um pano úmido.
Por último, espalhou a versão de um acidente doméstico,
disse que Sebastião chegara bêbado, brigando com todo
mundo. Escorregou na água de sabão e bateu a cabeça na
quina do fogão. Ninguém se deu ao trabalho de averiguar
as verdadeiras circunstâncias da morte, muito menos a
polícia. O povo amedrontado da comunidade recebeu a
notícia com alívio. Os vizinhos comemoraram, sabiam que
Sebastião era violento, dentro e fora de casa. O povo torcia
para que ele sumisse da comunidade. E assim foi.

[ 91 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

No outro dia, à tarde, foi realizado o enterro.


Pouquíssimas pessoas apareceram, a maioria por
curiosidade e satisfação de ver a terra cair na cara do
homem mais detestável da favela.
— Acabou o reino do filho da puta do Bastião
Pilantra! - diziam, saboreando as palavras.
— Ele vai comer terra fria, feder como carniça,
depois vai se acabar nas profundas do inferno!
— Vai comer o pão que o diabo amassou.
— Ele vai pagar todo o mal que semeou.
E o cortejo fúnebre, sem esperança ou lamento, teve
o seu fim. O pai foi enterrado. A vida seguiu seu curso, lá
no morro.

[ 92 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Sete

Toda sua ternura me provocou um nó na


garganta e as lágrimas retomaram seu
caminho.

Lá no morro, a vida prosseguia sem novidades, sem


graça, sem qualquer horizonte... A sensação de vazio era
alimentada pela tristeza, silêncio e o medo de enfrentar a
vida. No semblante de cada um, se desenhava a mesma
pergunta: o que seria da família? Apesar de suas ações
desonestas, o pai os sustentava e iam vivendo. Mas, e
agora?
Passaram-se oito dias. Certa noite, enquanto
tentava dormir, Tomás ficou pensando o que devia fazer.
Nadava num mar de pensamento e melancolia.
“Canivete, a vida continua, agora você é o homem
da casa. Tem que levar adiante o desejo do seu pai. Era
isso que ele esperava de você. Agora você pode satisfazer
a sua vontade”.
Os pensamentos se confundiam. Os olhos pesavam,
sentiu sono. Batia no telhado uma chuva fina. Tomás
ajeitou o cobertor, encolheu-se e dormiu profundamente.
Mas um sonho feio invadiu o repouso, e o deixou à mercê
do desespero.

[ 93 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Eu estava no meio de uma tempestade. Os trovões


estouravam a todo o momento e os relâmpagos riscavam
o céu escuro. Senti o corpo inteiramente encharcado,
enquanto os pés se atolavam numa lama viscosa,
dificultando os passos. O lugar era deserto e não tinha
qualquer abrigo. De repente, avistei uma velha casa
abandonada, ao lado da estrada. Tomei coragem,
atravessei a tempestade e caminhei em sua direção. A
porta estava entreaberta, como se aguardasse a minha
chegada. Entrei. O interior era sombrio, o telhado repleto
de goteiras e o frio intenso. O vento uivava pelas janelas
esburacadas. Na penumbra, tive a desagradável sensação
de que dezenas de olhos me espionavam. Entre os
sussurros desconexos, ouvi o choro inconsolável de uma
criança. Uma voz suave, feminina, tentava acalentar o
bebê, mas ele soluçava, como se sentisse uma dor muito
grande. O pior, veio em seguida: o clarão de um
relâmpago aumentou a visibilidade do interior da casa e
enxerguei o horror: um senhor estendido no chão,
rodeado de arroz, feijão, sangue... Era o meu pai. Ele
estava naquela casa e, ao seu lado, dezenas de pessoas, as
quais não via o rosto, mas podia ouvir o que eles diziam.
Conversavam em voz baixa, como se fosse um perigoso
segredo e sempre apontavam em minha direção. Aos
poucos as vozes cresciam, transformando-se em gritos
apavorantes. O choro da criança aumentou. Eu apertava

[ 94 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

os ouvidos, mas não conseguia abafar as insistentes


acusações daquelas pessoas:
— Você matou seu pai, você matou seu pai, você
matou seu pai!
— Não! Eu não queria...
— Você tirou a vida do seu pai!
— Vá embora... vá embora...
— Você é o culpado, você é o culpado, você é o
culpado.
— Não! Não!
Estive a ponto de enlouquecer. Continuei
apertando os ouvidos, mas as acusações aumentavam:
— Você matou seu pai! Você matou seu pai! Você
matou seu pai!
O eco era ensurdecedor. O choro convulsivo da
criança me torturava. Rolei na cama desesperado. Tive a
nítida sensação que corriam lágrimas de sangue sobre a
minha face. Sim, o remorso veio. E como ele é terrível.
Como ele insiste em nos perseguir sem trégua”.
A mãe e as meninas acordaram com os gritos de
Tomás, levantaram apressadas e tentaram acalmá-lo. Ele
estava quente e tremia de frio.
— Não fique assim, meu filho...
As palavras e o aconchego familiar, produziam um
efeito contraditório sobre Tomás. Por um lado, o deixava
calmo, por outro, aumentava a tristeza e a dor solitária se
agigantava dentro de si.

[ 95 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Você precisa se conformar, não foi sua culpa –


dizia Estela.
“Como podia me conformar? Eu o matei... Ele era
um homem cheio de defeitos, violento, desalmado, mas
era o meu pai e o que fiz não tinha conserto. Aquilo foi
demais para a cabeça de uma criança”.
Pouco depois, Cida trouxe a caneca. O cheiro do
chá impregnou o quarto e Tomás sentiu o estômago
revirar.
— Tome o chá, meu filho, vai fazer bem, você vai
ver.
— Não, mamãe, se beber, eu vomito.
— Você não comeu nada, está pálido e fraco. Vou
preparar um delicioso mingau de fubá, daquele jeito que
você gosta, viu?
Maria tentava ajuda-lo a enfrentar a realidade,
esforçava-se para que Tomás não se entregasse à crescente
culpa que o corroía por dentro.
“Olhei para a minha mãe e sua enorme compaixão
materna tocou meu coração e eu voltei a chorar. Tomás
gritava dentro de mim:
— Mãe, eu vou para o inferno! Deus não me quer
mais.”
A mãe deixou escapar duas grossas lágrimas e
estreitou o filho entre os braços, como aquele bebê
indefeso que Sebastião queria abandonar. Choraram
juntos.

[ 96 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Não é assim, Tomás... Deus é nosso Pai, Ele


entende o que você fez. Vamos esquecer tudo, você ainda
é criança para pensar estas coisas.
“Não mamãe, todos nós sabíamos que ali não havia
uma criança inocente, mas um jovem atormentado, sem
saber o que fazer ou que rumo tomar. Não podia esquecer,
a cena voltava a todo momento: papai batendo em mamãe
e eu o atacando por trás com a travanca. Era a minha
verdade, papai estendido, morto, perto do fogão, cujo
fogo não queria se firmar. Uma cena que marcou
definitivamente a minha existência”.
E a vida seguia lá no morro. As provisões se
acabaram e Canivete decidiu roubar. Levantou-se mais
cedo e foi para as ruas movimentadas. Não demorou,
avistou a primeira vítima, uma jovem, que caminhava
com a bolsa pendurada no ombro.
— Ei, moça! Passe a bolsa, vamos!
— Ora, que atrevimento, eu... – calou-se ao
perceber a lâmina pontiaguda do canivete, perto do
pescoço. Entregou a bolsa apressadamente. Fazia cara de
choro.
— Por favor, não me faça mal...
Pegou a bolsa e saiu correndo. Ela gritou por
socorro e Canivete desapareceu como fumaça.
Os dias passavam e ele crescia na difícil vida fácil,
tornando-se um pivete perigoso. No barraco, a vida corria
calma, sem a presença de Sebastião. Cida começou a lavar

[ 97 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

roupa para os vizinhos, ganhava pouco, mas ajudava;


Estela vendia doces e bolos nas ruas e a mãe cuidava do
barraco e ao mesmo tempo, costurava para a vizinhança.
“No começo, vivi como Tomás, o bom menino,
ajudava em casa, vendia picolé, engraxava sapatos, lavava
carros, mas dentro de mim, o conflito de personalidade se
intensificava, tornando-me um ser dividido. Canivete era
meu lado forte, decisivo, valente, revoltado, um pivete
ambicioso que queria mais, sempre mais. Sua ambição não
tinha limites, por isso escolheu o jeito de ganhar dinheiro
fácil. Era o que ele sabia fazer com perfeição.
Fui criando uma rede de mentiras cada vez que
aparecia com dinheiro, aparelhos eletrônicos ou roupas
diferentes. Enganava a mim mesmo, pois a minha mãe se
quedava num silêncio sofrido, no íntimo, sabia que eu
estava refazendo o caminho do meu pai. Uma triste
herança em nome da sobrevivência. Depois que papai se
foi, as coisas ficaram mais difíceis. Se a gente já era pobre
em sua presença, sem ele, era mais complicado.
Eu estava familiarizado com a vida de pivete.
Roubava de tudo: feira, supermercado, batia carteira e
assim por diante. Fiz amizade com outros pivetes da
minha laia, consegui uma arma, tornei-me o líder e tinha
extrema habilidade de colocar em ação os assaltos. Estava
bem diferente do garotinho fracote e medroso. Meu único
nome era Canivete, uma lembrança viva do meu pai, que
me batizou de moleque de rua.

[ 98 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

No entanto, mantive o respeito à vida. Nunca


maltratei qualquer vítima, ameaçava para manter domínio
e garantir o roubo. Também não entrei nessa de drogas.
Usei craque uma vez, não gostei, passei mal e saí fora, mas
conhecia todo mundo, cada um na sua, ficava no meu
canto, na minha.
— Canivete, vamos para o centro?
— Hoje não!
— Por que não, Canivete?
— Não tou a fim. É isso aí!
— Cê tá sinistro Canivete?
— Hoje eu quero ficar só!
— Sem você não tem graça!
— Eu já disse que não vou, porra! - gritei.
Eles saíram. Entrei e fui para o quarto. Não tinha
ninguém no barraco. Uma tristeza sem tamanho me feriu
profundamente... Tomás voltou. Então eu chorei em voz
baixa”.
Em casa, a mãe e as irmãs ainda o chamavam de
Tomás. Para elas, ele nunca era Canivete, mas o garoto
bondoso e sensível que elas tanto amavam. O remorso já
não o perseguia com frequência e ele procurava de todas
as formas não pensar, só queria fugir daquele labirinto
esquisito, de vozes estranhas e gritos medonhos, que o
deixava aflito.

[ 99 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Oito

Para a minha dor não havia remédio que


curasse...

Dois meses mais tarde, numa certa noite, aconteceu


algo inesperado, lá no morro. Os três acordaram
apavorados, a porta do barraco foi aberta
estrondosamente. A mãe e os filhos se levantaram e foram
averiguar, e se depararam com três homens armados,
decididos a atacá-los. Ficaram sem entender e
aterrorizados.
— Muito bem! Queremos as joias e a grana! - gritou
o primeiro. Era um homem musculoso, olhos azuis e uma
feia cicatriz na testa. Tinha uma tatuagem no ombro
direito: um pirata de sorriso maldoso e braços cruzados.
— Que joias? Que grana? – perguntaram ao mesmo
tempo.
Os três não sabiam do que eles falavam. O homem
da cicatriz agarrou a mãe, ameaçando-a:
— Aqui, coroa! Não estamos brincando! Queremos
o dinheiro e as joias que o traidor safado do Bastião
escondeu da gente. Vamos, diga onde está!

[ 100 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Encostou o revólver na cabeça da mãe. Tomás e as


irmãs ficaram sob a mira dos dois homens.
— Eu... eu não sei! – a mãe tentava libertar-se do
pirata.
— Bastião nunca falou dos seus negócios. Ele nunca
deu dinheiro, só alguns trocados. Não confiava em
ninguém! Pelo amor de Deus, vão embora e nos deixem
em paz. Não sabemos de nada...
O pirata arregalou os enormes olhos, franzindo a
cicatriz. Sacudiu a mamãe com mais força ainda.
— Você está mentindo coroa! Eu não estou
brincando! Somos capazes de mandar sua laia pro inferno!
Bado, você fica aqui e atire se qualquer um reagir. Vem
comigo Miro, vamos revirar esse barraco, a muamba tem
que aparecer!
O barraco foi completamente revirado, e a família à
mercê dos bandidos. O tal Bado que os vigiava, era alto,
barriga saliente e bigodudo. Miro, o terceiro bandido, um
homem fortíssimo, olhos repuxados, cabelos
avermelhados, tinha, à altura do músculo do braço direito,
a tatuagem de um dragão, soltando a típica labareda.
Aparentava ser o mais velho do grupo. Quando falava,
exibia um dente de ouro.
Depois de procurar pelo barraco inteiro, os dois
retornaram à sala. Tomás foi arrastado e amarrado com
uma corda que estava pendurada no telhado. Servia para
estender as roupas lavadas. Eles achavam que a mãe e os

[ 101 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

filhos sabiam da dívida, ameaçavam e praguejavam o


tempo inteiro.
— As filhas de Bastião... – comentou o pirata, cheio
de segundas intenções - dizem que o velho Bastião morria
de ciúmes dessas morenas!
— Diga logo onde estão as joias e o dinheiro! Anda,
morena gostosa! - gritou o ruivo. Estela esperneava, não
era presa fácil, brigaria até o fim.
— Eu não sei de nada seu porco! Me solta
desgraçado! - gritava.
Eles sorriam, divertindo-se com a cena. Era uma
verdadeira tortura.
— Vai dizer ou não, velha? - insistiu o pirata. A
mãe suplicou:
— Eu já disse que não há dinheiro! Vão embora,
por favor!
— Ora, agora é que não vamos. Quer saber de uma
coisa cambada? Vamos comer as mentirosas! - anunciou o
pirata.
“Ah! Como eu queria que alguém viesse em nosso
socorro, mas ninguém apareceu. Mamãe apelou para a
compaixão, mas os três bandidos estavam dispostos a
levar adiante a desgraceira. Não queriam perder o
trabalho, já que não encontraram as malditas joias e a
grana, tinham três mulheres ao alcance, daí... Mamãe não
sabia o que fazer, tentava, inutilmente, convencer os três

[ 102 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

homens a desistirem. Cida era a mais desesperada,


desatou a chorar e eu comecei a ameaçar os bandidos”.
— Não toque nelas, seus canalhas! Eu ainda mato
vocês!
Eles zombavam das ameaças de Canivete:
— Olhe quem fala! Estou morrendo de medo... - a
gargalhada foi geral.
— Amarrem a boca do moleque e vamos pro
quarto. Se não disser onde está o dinheiro, vamos brincar
até enjoar! Eu ando precisando de algumas pinceladas!
— Por tudo de mais sagrado, não façam isso! Não
sabemos de nada! Eu me entrego a vocês no lugar das
meninas, mas não façam nada com as minhas filhas!
— Não, mamãe, não peça isso! - gritava Cida.
— Queremos as três! – disse o pirata.
“Apertei os olhos. Não me contive, esperneei em
vão. As lágrimas banhavam a face, era inútil, eu estava
amarrado e amordaçado. Cada um se agarrou à respectiva
presa. Fechei os olhos, elas relutavam e os miseráveis as
empurravam decididos. Do meu canto, escutava os gritos
das três e as risadas dos canalhas. Elas se esforçavam,
lutando contra os bandidos e eu não podia fazer nada,
nem mesmo tapar os ouvidos. Tentei libertar-me das
cordas, mas era inútil qualquer esforço.”
— Pare com isso, pelo amor de Deus! - pedia a mãe
em desespero.

[ 103 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“O morro inteiro dormia. Duvidei da existência de


Deus. Por que não me ajudava a ficar livre das cordas?
Mesmo se morresse tentaria impedir aquela barbaridade.
Estava vivendo um pesadelo infernal: ouvia gemidos de
prazer, entre palavras obscenas. As lágrimas escorriam
sem trégua. Senti que uma revolta amarga, imensa, veio à
tona, abalou todo o meu ser, a minha alma, os meus
sentimentos, a minha estrutura. O coração disparou, senti
o mundo girar, perdi os sentidos. Nem sei quanto tempo
fiquei desacordado. Quando voltei ao mundo real, dei
conta do silêncio. Não ouvi os soluços abafados da mamãe
e das meninas, nem o sorriso dos bandidos. Tudo estava
quieto. Senti o frio percorrer todo o corpo, como uma
lâmina gelada de terror. Os três homens não estavam no
barraco, mas a imagem deles nunca saiu da mente, eu
jamais poderia esquecê-los.
Fiquei ali amordaçado e amarrado, na mais
profunda aflição misturada ao frio que arrepiava a
espinha. Virei-me de todos os lados, tentando me libertar.
Quando tudo parecia perdido, senti uma folga na corda
que prendia a mão direita. Com jeito forcei o polegar e aos
poucos fiquei livre das cordas. As marcas vermelhas
ficaram desenhadas no corpo. Arranquei o pano que
amordaçava e gritei desesperado:
— Mamãe, eles se foram!
As palavras se perderam no silêncio. Não havia
resposta. Corri até o quarto e meu Deus, o que vi? As três

[ 104 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

estavam parcialmente nuas e sem vida! Gritei com todas


as forças, mas o grito ficou entalado na garganta. O
mundo tinha acabado de desabar sobre a minha cabeça.
Mamãe ganhou um tiro na testa. Certamente eles
usaram silenciadores ou foi no momento que desmaiei.
Retirei o pano que cobria sua boca, em busca de qualquer
sinal de vida. Estela ganhou um tiro no peito, as poucas
roupas que a cobriam, estavam em farrapos. A poucos
metros, a doce Cidinha, estendida, os olhos semiabertos...
Por que meu Deus! Por quê? Não tínhamos
conhecimento de dinheiro ou joias. Eles não usaram e
abusaram? Por que mataram? Chorei desesperado...
— Não... Não...
Abracei a mamãe, a minha melhor amiga, uma
mulher pela qual fui capaz de cometer um crime. Agora
ela dizia adeus de uma forma estúpida e cruel”.
Um leve respiro, um sopro de vida. Tomás voltou-
se, era Cida que apesar do tiro no peito, ainda vivia.
Tomás se aproximou, retirou a mordaça, ela o olhou
amorosamente e ainda conseguiu deixar num fio de voz,
seu recado de despedida:
— To... Tomás... você precisa... viver.
Sorriu ternamente. Com as mãos tremulas, Tomás
acariciou sua face. Mas se havia alguma esperança de
salvar a irmã, dissipou-se como fumaça, ela também se foi.
As três mulheres da sua vida estavam mortas.

[ 105 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Com voz embargada de emoção, proferi o maior


juramento da minha vida, reunindo todas as forças:
— Sim, eu vou viver, minha irmã! Só vou sossegar
o dia que completar a minha vingança! Eu juro que ainda
vou encontrar os três e eles vão pagar por essa
desgraceira!
A cabeça girava. Estava tonto. Voltei a vomitar
violentamente”.
Lá no morro ninguém ouviu seu pedido de socorro.
Todo mundo estava acostumado com escândalos,
violência, batidas policiais que nem ligavam. Sobretudo,
quando se tratava de gente ligada a Bastião Pilantra.
“Então foi isso, meu pai, até depois de morto não
parou de nos perseguir. Todas elas morreram, papai.
Restou Tomás, o seu Canivete.
Em passos trôpegos dirigi-me à sala. Comecei a
gritar desesperado. Naquele momento não sabia fazer
outra coisa. Depois da morte de papai, mamãe havia
conseguido algumas amigas que moravam ali perto. Elas
escutaram meus gritos apavorantes e entraram correndo.
Era de manhã e o novo dia anunciava a dor que eu ia
carregar para sempre”.
— Meu Deus! O que houve aqui filho?
Perguntou dona Belarmina, a fiel amiga de Maria.
Ele abraçou Tomás, notou que ele estava quente e pálido
como uma vela...
— Onde está a sua mãe?

[ 106 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— No... no quarto... - respondeu em prantos.


Elas entraram e se horrorizaram diante daquela
tragédia.
— Santo Deus! O que foi que houve aqui, Tomás?
“Pouco a pouco, o barraco foi se enchendo. Muitos
eram solidários, outros tinham curiosidade, queriam
presenciar os frutos de mais uma tragédia desse mundo
podre. Todos ouviam a minha história, choravam e
lamentavam. Era tudo o que podiam fazer. Ofereceram
calmantes, conselhos, orações... Tudo em vão. Eu queria
sumir daquele lugar e dos olhos piedosos daquela gente
que não parava de comentar meu drama:
— Que pena!
— Nunca vi coisa igual!
— Pobre criança...
— Sem pai, sem mãe, sem irmãos, sem ninguém!
— O que será dele sozinho no mundo?
Dona Belarmina conseguiu me convencer e eu
tomei alguns calmantes. Uma moleza tomou conta de
mim, fui levado para a cama, dormi profundamente...
Acordei banhado de suor. O barraco estava repleto
de gente que eu conhecia, gente que eu nunca vi. Senti
novos enjoos, vomitei mais uma vez. A cabeça doía, o
corpo não queria obedecer. Fechei os olhos, voltei a
dormir. Quando acordei, passava do meio-dia. Levantei-
me, peguei a velha mochila, onde guardava o revolver, o
canivete, vesti o capote e fui à sala, desta vez não chorei,

[ 107 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

aguentei firme. Uma estranha paz conduziu os meus


passos. As mulheres deram o banho e ajeitaram os corpos
nas camas. As três estavam serenas, como se dormissem.
As pessoas ainda comentavam o triste espetáculo. Dei um
beijo de adeus em cada uma. Eu não podia e nem queria
suportar tudo aquilo. Caminhei em direção ao quintal. Os
curiosos seguiam os meus passos, com o mesmo olhar da
compaixão.
Quando dona Belarmina percebeu as minhas
intenções, foi atrás de mim, chamou-me ao lado do
barraco e conversamos em voz baixa.
— Aonde você vai, Tomás?
— Dona Belarmina, cuide de tudo. Eu não aguento
ficar aqui...
Ela me abraçou com o carinho de uma mãe zelosa.
Senti as lágrimas e apertei a cabeça rente ao seu peito.
— Filho... Sabe mesmo o que vai fazer?
— A senhora foi a única amiga de mamãe. Por
favor, cuide de tudo. Está doendo muito, dona Belarmina,
não posso ficar. Faça isso por mim.
— Meu filho, não vá embora, fique comigo. Eu
cuido de você!
Ela chorava mais do que eu.
— Não posso. A senhora tem um bom coração e
boa vontade. Eu agradeço, dona Belarmina, mas não
posso aceitar!
— Mas não vá agora. Você está muito abatido...

[ 108 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Não, se eu ficar é pior...


— Eu... vou orar por você! Pode deixar, cuido de
tudo!
— Ajeite minhas coisas, outro dia eu volto para
apanhar.
— Cuidarei de tudo Tomás.
— Adeus dona Belarmina. Não me esquecerei da
senhora! - ela me abraçou em prantos.
— Você está bem? Não quer tomar algum remédio?
— Não, não quero remédio... Adeus!
Remédio? Para a minha dor não havia remédio que
curasse”.

[ 109 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Nove

De repente um estalo: a certeza de que


estava só, abandonado e infeliz.

Tomás desceu o morro e saiu andando pelas ruas


da cidade. Destino era coisa que ele desconhecia, o vazio
era maior que o viaduto, as praças e os arranha-céus. Não
conseguia pensar em nada, caminhava em silêncio, olhar
perdido, boca seca e sem vontade de viver. O sol escondia
seu brilho, era quase noite. Então ele sentiu o corpo
cansado, avistou um jardim e, sentou-se na grama, atrás
do assento de granito, escorou as costas, em seguida,
deitou-se. A mente desenhou a imagem fiel dos três
facínoras que acabaram com a sua família. Ele estava
disposto a cumprir o juramento e se vingaria, nem que
fosse a última coisa da vida. Sentiu fome, os pensamentos
se confundiam e ele ouvia vozes de um passado triste,
ainda recente.
“Canivete, levante-se, temos um trabalho a fazer”!
“Mamãe... eu vou pro inferno, não é? Deus não me
quer mais”.
“Tomás... não fique assim, meu pequeno”.
“Papai, Tomás é apenas uma criança”.

[ 110 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“É muito cedo papai, espera ele crescer um pouco


mais”.
“Tomás... você precisa viver”.
“Mãe, por que nós não temos amigos?”.
“Meu Tomás, você não pode ficar assim, tome, beba
este chazinho”.
“Não mamãe, se eu beber eu vomito”.
“Você ainda vai ser muito feliz meu pequeno”.
“Você é um anjo, Tomás”.
“Mãe, o que é universo?”
Os risos das irmãs, a ternura da mãe e a voz do pai
foram desaparecendo, tudo se fez silêncio. Sacudido pelos
ombros, Tomás abriu os olhos, voltou bruscamente à
realidade. Era um guarda.
— Levante-se moleque! É proibido deitar na grama!
“De repente um estalo: a certeza de que estava só,
abandonado e infeliz... Levantei cambaleante, andei mais
um pouco, até avistar, no final do quarteirão, uma casa
abandonada, semidestruída, entrei no único cômodo
coberto e me encolhi no canto, feito um cãozinho doente.
Estava escuro, senti um frio imenso, continuava com
febre. A cabeça doía e eu delirava no meu sofrimento. Já
não sentia forças para chorar, meu pranto era seco,
áspero...”
— Onde está você mamãe? Não ouço sua voz e
nem vejo as meninas. Por que vocês foram embora? O que
será de mim?

[ 111 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

As perguntas de Tomás não tinham respostas, se


perdiam no ar. Agarrou-se a si mesmo, em busca de calor.
Dormiu finalmente.
“Naquela noite, tive um sonho que ainda carrego
na memória. Eu era pequeno e meu pai estava sentado,
pensativo, os olhos fixos num ponto qualquer. Em dado
momento, entrou minha mãe, trazia um bolo confeitado e
o colocou sobre a mesa. Eu e as meninas cantamos os
parabéns, era aniversário de papai. Ele sorriu, cortou o
bolo e desapareceu. O sonho mudava a direção e lá estava
o meu pai me segurando as meninas brincavam de
pedrinhas debaixo da goiabeira minha mãe escolhia feijão,
sentada na soleira da porta do barraco... Era o quadro de
uma família feliz. Quando acordei, estranhei tudo, estava
deitado no chão de uma casa abandonada. Então, aos
poucos, abri os olhos da realidade e deixei escapar um
suspiro cansado e triste. Mas aquele sonho conseguiu
trazer alguma paz de espírito. Senti fome, não tinha o que
comer. O estômago reclamava em grandes roncos”.
— Tomás, Canivete precisa trabalhar. Caso
contrário, morrerá você e ele! Você não pode morrer,
lembre-se! – disse.
Tomás levantou-se decidido, jogou a mochila nas
costas e atravessou a rua. Adiante, entrou numa feira
popular, caminhou como quem não quer nada, avistou
uma banca de doces e outras guloseimas. Num raio de
segundo, estendeu a mão e pegou dois pacotes de

[ 112 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

biscoitos. Saiu em disparada. O homem o perseguiu, aos


berros, mas o garoto sumiu no meio do povo e ele o
perdeu de vista. Pouco depois, retornou à velha casa,
entre os escombros, ali seria o novo lar. Era um ambiente,
escuro e sujo, mas ele se sentia seguro. Decidiu não voltar
ao morro, queria esquecer o barraco e todas as tristezas
escondidas nas frestas do telhado. Evitou qualquer
contato com a comunidade e conhecidos, riscaria da vida
a parte mais dramática da sua história.
“Todos os dias, ao acordar, procurava um jeito de
me virar. A sorte estava do meu lado, raramente voltava
de mãos vazias. Um dia, conheci Dudu e Tecão, dois
garotos que se tornaram bons amigos. Eles eram mais
experientes do que eu. Dudu tinha treze anos, cabelos
encaracolados e olhos castanhos claros. O Tecão, tinha
doze anos, era magro e sorridente, porém, carregava no
olhar, uma tristeza comovente. Aprendi muita coisa com
os novos parceiros, eram verdadeiros mestres. A principal
lição: enxergar a vida como um contrato de risco e de
sorte. Uma aventura incerta, momentânea. Estávamos
vivos por uma mera questão de sorte. Apenas isso. Era
assim o nosso mundo: sem qualquer foco de esperança,
um dia atrás do outro, enquanto o corpo resistisse, por
isso a droga, por isso a fuga, por isso o fim. Em nosso
mundo, tinha de tudo um pouco: revolta, crack e roubo.
Eu experimentei de tudo e simplesmente não gostei. Não
virei traficante e nunca quis saber de drogas, mas aprendi

[ 113 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

a fumar e o cigarro era o parceiro de todas as horas. Fui


me destacando, apesar de ser o mais jovem do grupo,
sempre bolava planos inteligentes. Tudo o que a gente
roubava, era repartido. A lealdade e o companheirismo
nunca nos abandonaram. Ninguém ganhava mais. A
divisão era feita em partes iguais, mas, nem sempre as
coisas andavam boas para o nosso lado. Se a gente não
roubasse, morreria de fome. Nenhum de nós tinha família.
Nenhum de nós tinha governo ou qualquer espécie de
proteção. O mundo da rua era a nossa casa”.
Os meses foram passando. Depois de muito tempo
Canivete voltou a sorrir com os seus irmãos - era assim
que eles se consideravam. Os três tinham algo em comum:
o ódio pelo mundo.
Certo dia, os três garotos estavam em casa, sem ter
muito o que fazer. Lá fora a chuva caía torrencialmente.
Eles mastigavam biscoitos, enquanto conversavam
assuntos banais, novas ações e planos futuros, sem muito
interesse, depois, aos poucos, quase sem perceber,
mudaram os rumos da prosa e começaram a falar dos
dramas vividos. Tecão foi o primeiro, sempre que chovia,
ele ficava triste, lembrava-se da mãe e do passado recente.
Ele sorriu, ao iniciar seu relato:
— Eu sou filho da puta!
Todos sorriram, mas ele ficou sério e prosseguiu:
— Sério cara, nunca soube o que é família, a minha
mãe era puta, nasci na zona. A minha mãe era dona de

[ 114 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

uma das casas, mas eu nunca aceitei aquele tipo de vida.


Cresci revoltado, e assim que me entendi por gente, fui
tomando nojo da minha mãe e das putas que moravam
conosco. Hoje, eu entendo que a mamãe fazia aquilo para
não morrermos de fome. Naquele tempo, eu sentia raiva
daquelas mulheres, fugi de casa aos sete anos e nunca
mais ouvi falar da minha mãe. Ela nunca me procurou,
sua vida era melhor sem filho revoltado. Se tivesse
nascido mulher ou viado, talvez ela aceitasse, teria nova
funcionária. Mas nasci homem. Os amigos tiravam onda
da minha cara e eu não podia fazer nada, era tudo
verdade. Não me arrependo de ter fugido. Foi melhor
para mim e para a minha mãe...
Tecão tentou resistir, mas não segurou as lágrimas.
Era a primeira vez que tocava no assunto. Canivete e
Dudu ouviam em silêncio, a chuva não parava e as
goteiras apareciam por todo lado. Um rato saiu do
entulho e entrou meio desconfiado, procurava comida.
Dudu atirou um biscoito em sua direção, o pequeno
roedor fugiu assustado, depois retornou, cheirou e levou
embora o seu bocado. Vivia de migalhas, no lixo dos
escombros, como os três amigos. Tecão suspirou, e
prosseguiu:
— Minha mãe era linda, ruiva de longos cabelos
avermelhados, a mais jovem da zona, a mais disputada
pelos clientes. Eu gostava de vê-la sorrindo, fazia duas
covinhas nas bochechas, deixando-a ainda mais bela. Mas

[ 115 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

ela nunca me deu carinho, não perguntava se eu dormia


bem ou se sentia alguma dor, nunca me chamou de filho e
nem sabia quem era meu pai. Para ela, eu não era a coisa
mais importante. Muitas vezes, eu vi os homens com a
minha mãe. No começo, não sabia das coisas e nem
conseguia entender, era muito pequeno. Quando eu via
aqueles homens saindo do quarto, abotoando as calças ou
ainda pelados, ficava intrigado e sabia que não era coisa
boa. Chorava às escondidas... No outro dia, perguntava e
ela me batia na boca, puxava as orelhas e me colocava de
castigo, ordenando: “nunca mais fique espiando, seu
moleque”. Aquilo não era vida. Saí de casa, diante dos
olhos de todo mundo e ela nem se importou, não fez o
mínimo gesto para me deter. Passei fome e frio, pedia
esmola e ficava nas ruas olhando as vitrinas repletas de
doces diversos. Escutava centenas de: “fora daqui seu
pivete”; “vá trabalhar, vender jornal, engraxar sapatos”;
“some daqui”... Até procurei emprego, mas não tive
sucesso. Alegavam que eu era menor, não tinha
documentos, era moleque de rua, favelado, não inspirava
confiança. Daí, já viu, se ninguém queria estender a mão,
comecei a roubar. Se a lei era cada um por si, eu fazia a
minha parte. Que se foda o resto! Um ano depois, conheci
o Dudu e passamos a conviver unidos, no mesmo ofício!
Enquanto Tecão narrava a sua triste história,
Canivete refletia:

[ 116 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Tragédia não é apenas aquela que aconteceu


comigo. São tantas... Cada um tem uma mágoa, uma
história triste, uma lágrima pra chorar”.
— Comigo foi parecido - começou Dudu – não
conheci o meu pai, ele morreu de câncer e deixou mamãe
com uma menina de oito anos e eu na barriga. Mamãe
sofreu para criar a gente, era muito pobre, doente e sofria
do coração. Quando completei quatro anos, ela morreu,
não me lembro como era o rosto dela, não ficou nenhum
retrato. Fiquei morando com a minha irmã Lenira.
Quando ela fez 15 anos, se encantou pelo namorado, um
malandro folgado, chamado Julião. Ele pediu para morar
no barraco e a coitada ficou feliz, achou que o cara ia
ajudar nas despesas. Julião era mais velho que ela,
separado da primeira mulher, metido com o tráfico e me
detestava. O inferno estava só começando. A minha irmã
passou a sofrer nas mãos do seu “grande amor”,
apanhava todo dia e eu também. Numa certa manhã, ela
apareceu morta, banhada de sangue. Cortou as veias com
uma navalha. Fiquei desesperado. Desde então, nunca
mais ouvi falar em Julião. Comecei a perambular pelas
ruas, sem saber o que fazer. O jeito era roubar. Virei pivete
de verdade e não me arrependo. Já chorei de fome, sabe o
que é isso, Canivete? Comi coisas apodrecidas no meio do
lixo. Passei um tempo morando na rua, ao lado de quatro
parceiros. Ficamos juntos algum tempo, mas eles foram
presos e levados para o Juizado. Nunca mais ouvi falar

[ 117 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

deles. Depois encontrei o Tecão, e estamos juntos até hoje


e para completar o trio, temos você, Canivete.
Eles se calaram. Esperavam que Canivete contasse
seu drama.
— Eu... não quero falar. Não faz nem um ano que
perdi toda minha família. Mas um dia acertarei contas
com aqueles miseráveis e vai ser do meu jeito. Eles nem
sonham que eu existo... Canivete está bem vivo e tem sede
de vingança!
As lágrimas desceram. Os companheiros ficaram
em silêncio. Conheciam todas as cores e o cheiro
nauseante da revolta que pulsava o coração de cada um.

[ 118 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Dez

Pois eu me apresento: sou o menino Jesus!

“Era o dia 24 de dezembro. Véspera de outro natal.


O primeiro longe da minha família. Lembrei-me da sopa
com pão, os presentes, mamãe, Cida, Estela, papai. Tudo
estava tão longe! Uma tristeza invadiu minha alma. A
cidade estava novamente enfeitada, cada loja exibia seu
Papai Noel. Apesar de tudo, não chorei, fiquei em silêncio.
Tecão e Dudu se preparavam para ir à rua. Eu preferi não
acompanhá-los. Fazia muito frio. Fiquei pensando sobre
aquela data tão especial para os cristãos. Para mim, era
uma passagem triste, sem encanto ou esperança. Qual a
felicidade em passar uma noite de natal completamente
só? Como dormir em paz, se a paz nunca foi motivo de
vida para mim? Ora, como dormir em paz se os três
facínoras estavam livres, impunes, vagando por aí? Eles
violentaram as minhas irmãs e a minha mãe, esfregando
nelas seus corpos nojentos e ainda não satisfeitos, tiraram-
lhes a vida, por diversão e crueldade. Naquele dia, eles
mataram os sonhos de um garoto do bem, que só queria
ser feliz e ser amado. Mas eu estava ali. Eles não
conseguiram matar o pesadelo que respondia pelo nome

[ 119 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

de Canivete, o porta-voz da vingança e representação de


toda revolta que eu senti”.
E Deus menino nascia outra vez.
— Você não quer ir Canivete? - indagou Dudu.
— Não.
— Não me diga que está bonzinho hoje, só porque é
natal... - ironizou Tecão.
— Não é por isso... Quer saber? É isso mesmo. Não
tô a fim de girar, quero passar o natal de boa...
— Qual é velho? Sai dessa, mano!
— Eu não vou! – gritou Canivete. As lágrimas
desceram sem que ele pudesse impedir - É o primeiro
natal que passo sem a minha família.
— Ora Canivete, para com essa choradeira, tá
ficando frouxo?
— Vá se foder Dudu! Por que não devo chorar? Só
porque tenho um cacete? Que porra de papo é esse? Olha
só, eu sou assim, não vou mudar. E tem uma coisa: hoje eu
sou Tomás e ninguém vai tomar seu lugar.
Tomás estava de volta, chorava desesperado. Eles
se calaram diante do sofrimento do amigo.
— Não fique assim, Canivete!
— Não sou Canivete. Meu nome é Tomás.
Eles não entenderam nada, mas respeitaram a sua
dor.
— Vamos Dudu, ele precisa ficar sozinho.

[ 120 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Saíram. Fiquei só. A saudade, cheia de dor,


invadiu o meu peito. Senti a falta da mamãe, das meninas
e até do papai. Recordei-me das vozes daquele natal tão
significativo na minha vida:
— Senhor Deus. Hoje é o seu aniversário. Você
nasceu mais uma vez.
— Devagar Tomás, a sopa está muito quente.
Sopre aos poucos.
— A cidade está uma beleza lá no centro. Está cheio
de Papai Noel nas lojas!
De repente um estalo: lembrei-me do menino bem
vestido, que me ofereceu os bombons e depois
desapareceu. Quem era aquele menino? Será que foi só
invenção da minha cabeça? Levantei-me. Resolvi ir à
cidade. Um pressentimento atravessou a alma, talvez eu
pudesse reencontrar o garoto, mas era noite, a loja não
estaria aberta. Porém, alguma coisa me impulsionava a ir.
Pouco depois, estava no centro, em frente à loja do
último natal. Fiquei desapontado, tudo fechado, nem sinal
do menino. Por que insistia naquela ideia fixa? Era só um
garoto comum, o resto fazia parte da fértil imaginação.
— Você adora sonhar de olhos abertos, não é
Tomás? - disse para mim mesmo.
Ouvi passos, voltei o rosto. Um susto. Era o garoto.
Trajava um lindo casaco de lã, de cor marrom. Ele sorria,
intensificando o brilho dos olhos verdes.
— Como vai? - perguntou.

[ 121 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Eu... - fiquei meio engasgado, sem saber o que


dizer.
— Leve os bombons, em casa têm muitos doces.
Feliz natal!
— Obrigado...
— Agora, repita comigo: Senhor, põe em mim um
coração novo. Quero ser feliz, Senhor. Ajuda-me a
descobrir minha meta.
— Quem é você?
— Você já me conhece. Sei que você me conhece...
— Não o conheço. Você é um mistério...
— Eu me apresento: sou o Menino Jesus!
Uma leveza me carregou para muito longe. Eu era
uma nuvem. Sorria feliz. Aos poucos, tudo foi
desaparecendo: eu, o menino, a cidade, tudo”.
Tomás acordou sobressaltado, corpo arrepiado,
esfregou os olhos diversas vezes: “foi tudo um sonho”.
Tentou voltar a dormir, mas o sonho não saía da mente,
deixando-o à mercê da emoção, coração acelerado e uma
inevitável vontade de viver. Sentia-se preso entre o sonho
e a realidade.
As horas foram passando. A noite feliz se acabava
nos primeiros sinais da madrugada. Tomás jamais revelou
aquele sonho maravilhoso, considerava-o uma espécie de
tesouro que só ele conhecia. Sentiu as pálpebras pesadas,
voltou a dormir em paz.

[ 122 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Três dias depois Dudu e Tecão retornaram.


Estavam com a aparência horrível.
— Vocês sumiram...
— Tamo aqui, porra! – respondeu Dudu. A voz
pastosa e o olhar perdido de quem não prega o olho. Os
dois estavam entupidos de crack.
Depois que eles começaram a usar o crack, não
queriam saber de mais nada. Estavam magros,
maltrapilhos, dormiam mal e tinham alucinações. Quando
ficavam sem a droga, tornavam-se violentos, sem
paciência, não queriam saber de conselhos. A comida
ficava em terceiro plano. Às vezes, desapareciam,
voltavam dias depois, sujos, desfigurados e sem vontade
de conversar...
Canivete não sabia como ajudá-los, sentia-se
culpado, pois estava numa situação mais ou menos
confortável, por conta de sua resistência ao crack, embora
não largasse o cigarro.
Os dias foram passando e eles continuavam
perdidos. No início, parecia que tinham o controle da
situação, mas, aos poucos, notava-se que não era assim.
Canivete ainda se lembrava das primeiras investidas e do
modo como eles foram se aperfeiçoando.
“Dudu e Tecão se tornaram adeptos do crack e eu
sofria em silencio. Não era idiota, embora não utilizasse as
malditas pedrinhas, sabia dos efeitos e como aquilo podia
terminar. Naquele tempo, o crack era pouco conhecido.

[ 123 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Nem sei como os meus amigos começaram, mas foram


eles que me apresentaram as pedras. Na primeira vez,
fiquei impressionado com os detalhes e os cuidados que
eles tinham com a droga. O ritual era bastante organizado:
eles juntavam certa quantidade de pó de cocaína, a mesma
quantidade de bicarbonato de sódio e água. Em seguida,
usavam uma colher para servir de forma para os
ingredientes, como se fosse um punhado de farofa. Na
sequência, eles pegavam um isqueiro e aqueciam debaixo
da colher, até a fervura, aí, era só colocar um pouco de
água fria para fazer o choque térmico. Ficava uma massa
uniforme, coberta com um pano, para secar. Pronto, as
pedras estavam prontas para o consumo.
Eu tinha curiosidade, experimentei, mas não gostei,
passei mal e desisti. Sorte? Destino? Não sei, o fato é que
nunca mais quis saber daquilo. Pegava o cigarro, ficava na
minha e nunca me incomodei com eles. Muitas vezes, os
deixava a sós, sabia como os efeitos do crack eram
terríveis. A pedra os dominava de forma possessiva, a
língua travava, os olhos dilatavam e a fisionomia mudava
completamente, ficavam irreconhecíveis.
A triste história dos meus amigos não estava
completa, faltava o fundo do poço, como o capítulo
arrebatador. Enquanto isso, os dois roubavam cada vez,
precisavam alimentar o vício. Não havia esperança,
sonhos ou a remota possibilidade de liberdade e foi assim
que eles caíram no fundo do poço e eu não sabia como

[ 124 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

resgatá-los. No coração a triste certeza: meus amigos


diziam adeus...”

[ 125 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Onze

Sem muita coragem ela levantou o rosto.


Não havia dúvida: eu estava diante de
uma mulher admirável.

Três anos se passaram. O dinheiro acabava com


uma rapidez tremenda e a ambição de Canivete crescia.
Passou a agir sozinho, atirando-se no submundo
marginal, tornou-se experiente, fomentava a astúcia em
armar planos perfeitos e na maioria das vezes, infalíveis.
Tudo corria bem, até o dia que Dudu e Tecão foram
presos e levados ao juizado. O fim anunciado de uma
amizade verdadeira. Canivete nunca mais ouviu falar dos
amigos, estava sozinho outra vez. A solidão era a fiel
companheira, embora estivesse habituado ao sofrimento,
sentiu a falta dos amigos e teve que reaprender a suportar
os atropelos da vida.
O tempo continuou a passar. Canivete completara
quinze anos, voz grossa, espinhas no rosto, puberdade...
Os desejos e as fantasias sexuais vinham a todo o
momento. A barba rala tomava corpo e ele se orgulhava
da nova cara, sentindo-se homem feito.
“A sede de vingança não me deixava sossegado,
volta e meia, pensava nos três facínoras e a revolta

[ 126 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

acelerava o coração. Se Tecão e Dudu estivessem comigo,


talvez eu mudasse de ideia. Quando a gente vivia junto,
pouco lembrava daqueles vermes. Mas, ao ficar sozinho, a
revolta voltava, agigantava dentro de mim, e só passaria
no dia que eu os encontrasse”.
— Quer tirar uma comigo? - ele.
— Tem grana? - ela.
— Sim. Vamos?
— Quantos anos você tem?
— Dezoito, por que?
— O juizado. Você tem cara de menino. Não está
mentindo?
— Não, como é, vamos ou não, porra? - mostrei o
dinheiro.
— Meu nome é Bete. Não quer beber nada? Ainda é
cedo...
— Uma pinga com limão.
— Lucy, duas cruas com limão pra gente!
Lucy era um rapaz que morava na zona. Um cara
muito divertido, amigo e protetor de Bete.
— Aqui está querida - disse o rapaz, sem desviar os
olhos de Canivete.
— Obrigada Lucy.
— Quem é o bofe? – perguntou, com ar de malícia.
— Ainda não sei. Qual o seu nome?
— Canivete!

[ 127 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Uau! Que nome cortante... e essas espinhas! -


acariciou o rosto de Canivete, que afastou-se irritado.
— Ei porra, não transo com viado.
Lucy não se intimidou. Sorriu da súbita valentia.
— Ai... Como ele é valente! Ele quer me bater,
pode?
— Lucy, deixe a gente a sós, o cara não gosta de
brincadeira!
— Duvido se ele não gosta de uma sacanagem de
vez em quando. Olha só, gato selvagem, comigo é fácil
chegar ao paraíso e você jamais esquecerá.
— Eu disse que não gosto de homem! Saia daqui ou
te rasgo o fato! – ameaçou, mostrando a faca. A badalada
Lucy soltou gritinhos histéricos, fingindo estar apavorada.
Ficaram a sós.
— Vamos para o quarto, Canivete. Já vi que você
quer ir ao ponto final!
Uma cama mal arrumada os aguardava. O
aposento era apertado, sem ventilação e um tanto escuro.
Na parede, um quadro do Sagrado Coração de Jesus. Não
havia qualquer emoção ou expectativa para aquela
mulher. Vender alguns momentos de prazer, foi o meio
que encontrou para sobreviver. Nada mais.
Sem qualquer cerimônia, ela começou a despi-lo,
examinando os detalhes do seu corpo. A princípio,
Canivete sentiu-se um tanto apreensivo e até tentou
esconder as partes íntimas com as mãos. Bete não era

[ 128 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

boba, do alto da sua experiência, notou que ali estava um


adolescente vivendo a primeira relação. Não se fez de
rogada, daria uma aula de prazer ao jovem, tratando-o
com carinho e respeito, sabia como era especial o
momento.
— Tem razão, Canivete. Você não é criança coisa
nenhuma!
Foi um momento de descoberta do prazer, embora
ele não soubesse como agir, ficou em silêncio, olhos
trancados, numa sensação de intensa paz. Viu que aquilo
era bom, estava vivendo uma emoção diferente, jamais
experimentada. Bete era encantadora e com pitadas de
ternura, o deixou à vontade. Agora, era sua vez de tomar
a iniciativa, beijando-a e tocando seu corpo, de modo
desajeitado, mas delicado, o que a deixou surpresa e feliz.
Não era comum ser tratada com tanto respeito na sua
profissão. Ao lado daquele jovem aprendiz do sexo, Bete
voltou a sentir-se uma mulher verdadeiramente
valorizada.
“Era bom demais. Não parei. Movimentava-me
constantemente, com força, como se quisesse entrar
naquele lugar tão atrativo. Fiquei exausto. Ela acariciava
meus cabelos. Por alguns segundos, uma moleza tomou
conta de todo meu ser.”
— Gostou? - perguntou ela.
— Quero mais! - voltando energia, fiz tudo outra
vez”.

[ 129 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Bete era uma jovem de apenas dezoito anos. Uma


bela morena de lábios salientes, pernas grossas e seios
fartos, distribuídos em decotes sensuais que acentuavam o
seu charme. O rosto conservava os traços infantis de
menina do interior.
Bete não conhecia muita coisa do passado. Quando
contava apenas um dia de nascida, foi achada num monte
de lixo, quase morta e rodeada de formigas. Nunca soube
se tinha pai, mãe ou irmãos. Uma pobre menina
abandonada no meio do lixo, apenas isso. Um casal de
pescadores se compadeceu da criança que gritava de
fome, e a levou para casa. Deu-lhe banho, comida e
carinho. A menina passou uma parte da vida ao lado da
nova família, um lar pobre, de gente simples e sem muitas
perspectivas. A menina cresceu e viveu feliz, por um
tempo, tinha no coração, a certeza do amor e da proteção
dos pais adotivos. Até que um dia, o desejo cruel do
pescador, foi maior que o sentimento paternal. De modo
animalesco, ele foi se aproximando, até conseguir romper
definitivamente a ternura da menina, que o chamava de
padrinho. Tinha onze anos quando foi estuprada.
Tudo começou com o excesso de ciúmes que o pai
adotivo nutria pela garota. Bete era vigiada a todo o
momento e o comportamento do padrasto jamais levantou
suspeita, era homem caridoso, evangélico e cheio de boas
intenções. O casal não tinha filhas, apenas dois garotos,
ainda pequenos. Assim que a garota completou oito anos,

[ 130 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

o homem começou a portar-se de modo estranho. Vivia


alisando seus cabelos, elogiava a sua beleza e sempre que
podia, trazia um doce ou qualquer presentinho para a
garota.
A menina crescia bonita e inteligente. Depois que
completou nove anos, o ciúme do pescador tornou-se
visível. Enchia a menina de conselhos. A esposa não
desconfiava, tinha convicção que o pescador era pai zeloso
e vigilante. Acreditava que a pequena era como filha
legítima, e via com bons olhos, o exagerado carinho do
esposo para com a garota.
— Zequinha disse que você está meio calada... –
comentou a madrasta.
— Dor de cabeça, madrinha Celina – explicou a
menina, coração aos pulos, cheia de medo.
— De uns dias pra cá, vive queixando de dor de
cabeça, nos cantos, triste...
— Nada não, madrinha.
No fundo a menina desconfiava das intenções do
padrasto. Ficava sem jeito, quando ficavam a sós. Toda
vez que a mulher saía, o homem dava um jeito de
infernizar a vida da menina.
— Não abriu o presente, você sempre gostou de
chocolate – disse o padrasto.
— Padrinho, não precisa trazer doce... – desculpou-
se a garota.
— Desprezando o presente do padrinho?

[ 131 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Não...
— Só precisa ficar boazinha... – alisou-lhe o rosto –
hoje é seu aniversário de onze anos... Minha menina está
virando mocinha, peitinho crescendo...
A menina gelou. Chegou o momento que mais
temia. Zequinha pescador não escondia o forte desejo que
sentia pela bela morena que habitava seu rancho. Não
mediu sacrifícios ou embaraços, naquele triste domingo,
quando estavam a sós. A esposa e os meninos tinham ido
à Igreja.
— Não me faça mal padrinho, pelo amor de Deus...
– suplicou a garota.
A menina esperneava, gritando, mas ele não teve
piedade, e como um animal feroz, rasgou sua pureza.
Uma criança de onze anos... A prova cruel de tudo: o
pênis coberto de sangue. A menina gritava de dor e, como
se não bastasse a humilhação, teve que ouvir a sentença
do algoz:
— Agora será assim... Sempre que eu quiser, você
fica comigo. Sou teu macho de hoje em diante.
Em prantos a menina perdeu o medo e enfrentou o
padrasto pela primeira (e última) vez.
— Vou contar tudo para a madrinha Celina.
— Acha que ela vai acreditar no marido ou numa
morta-fome que a gente deu abrigo? Fale e verá a
resposta...

[ 132 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Realmente ela contou tudo e a reação da madrinha


foi a sua decepção:
— Vagabunda... eu sempre notei seu jeito falso,
vivia abrindo as pernas e pedindo presente pro
Zequinha... Fez tudo de caso pensado, não é moleca?
Zequinha é homem de bem, respeitador e temente a Deus.
Você é erva ruim, do mundo e tem que desaparecer!
— Não fale assim, madrinha, não tive culpa!
A mulher começou a gritar mais desaforos:
— Suma daqui vagabunda e nunca mais apareça!
Leve apenas a roupa do corpo!
E assim, Bete, ainda menina, bonita, atraente e
indefesa, encontrou na prostituição a mais adequada fonte
de sobrevivência. Aos 13 anos já conhecia o mundo
marginal das ruas e os prostíbulos da cidade. O passado
foi riscado da sua vida, tornou-se uma mulher sem
qualquer expectativa. Nada mais fazia sentido. Não mais
tinha sonhos ou vontade de sorrir. Tentou o suicídio
algumas vezes, não teve coragem. Sobreviveu. Cresceu.
Não era mais a menina ingênua e sonhadora, tornou-se,
precocemente, uma mulher machucada pela vida.
“Passei a ser um assíduo frequentador da sua casa,
Bete era a minha preferida. Ela sentia tanta afeição por
mim, que nunca cobrava pelos momentos de prazer. Sabia
como saciar a minha fome de sexo e era a cúmplice
perfeita das minhas fantasias. Eu virei o seu homem. Um

[ 133 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

dia, ela decidiu confessar seu amor. Chamou-me para


uma conversa franca.
— Canivete, sou uma puta. Todo mundo sabe, mas
tenho coração. Eu já não sei viver sem você. Uma puta
nunca deve dizer isso, mas é verdade. Só penso em você e
não quero deitar com mais ninguém. Sinto nojo dos outros
homens, eles não são como você... – atrapalhou-se na
emoção e começou a chorar.
Eu a ouvi em silêncio. Ela prosseguiu, tentando
engolir o choro:
— Eu tô ligada em você, é isso. Vamos combinar
uma coisa, não vem mais aqui. Tem um monte de casa, aí
na zona, um monte de garotas, sabe? Não quero que você
apareça mais aqui... só vai atiçar meu amor!
Depois ela ficou em silêncio. Esperava uma
resposta. Toquei de leve nos seus cabelos e ela voltou a
chorar.
— Não quero a sua compaixão! – disse, enquanto
afastava a minha mão.
— Olhe para mim...
Sem muita coragem, ela levantou o rosto. Não
havia dúvida, eu estava diante de uma mulher admirável.
— Você não gostaria de viver comigo? - perguntei.
Ela fechou os olhos, emocionada.
— É o meu maior sonho Canivete!
— Mas eu não tenho casa.

[ 134 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Deixa comigo. A Lucy tem um barraco legal,


aqui perto. Ela voltou para o Recife e deixou a casa para
mim. Não é grande coisa, mas é arrumadinha, tem quarto,
cozinha, sala e banheiro... O que você acha?
— Eu topo.
No fundo eu queria morar num lugar seguro, viver
com alguém que cuidasse de mim e dormisse comigo.
Bete era a mulher mais disputada da zona, a mais bonita,
a mais gostosa... Por que não? Eu não tinha nada a perder.
Aceitei, impondo uma condição:
— Não quero saber de filhos!
— Tudo bem, eu também não quero.
— Então, hoje mesmo a gente se muda para casa da
Lucy.
Ela se atirou no meu pescoço, sorrindo como uma
criança.
— Oh! Canivete! Nem estou acreditando! O meu
sonho está se realizando...
E assim, com apenas quinze anos, tornei-me o
marido de Bete. Estava começando mais um capítulo da
minha história”.

[ 135 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Doze

Eu estava diante do meu passado.

E as primaveras passavam como nuvens sem


encanto... Canivete estava com 18 anos, morava com Bete
e sentia certa paz de espírito. Bete era uma mulher
amorosa, fiel, preocupada e cheia de cuidados, deixou a
prostituição e se transformou em mulher de bandido.
“Eu já era mais ou menos conhecido e respeitado
entre os canalhas. Apesar de morarmos juntos por três
anos, nunca falei do meu passado. Bete sempre quis
conhecer a minha história, eu mudava de assunto,
mantinha meus segredos, não queria falar do meu
passado. Ela não insistia, estava ao meu lado, o resto não
tinha tanto valor”.
Bete era uma mulher submissa e tinha consciência
disso, fazia questão de fazer de tudo para que o jovem
esposo se sentisse bem, alegre, realizado, satisfeito. A
insegurança era evidente, tinha medo de perder Canivete,
por isso o apoiava sem reservas. Amava-o sem medidas,
de modo desesperador, sufocante, era capaz de qualquer
sacrifício, desde que ele nunca se afastasse dela.
“Certo dia, conheci dois caras num barzinho mal
frequentado. Fiquei sabendo que eles procuravam mais

[ 136 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

um comparsa. Eram bandidos experientes e eu me


aproximei, disposto a realizar grandes assaltos e crescer
de vez no mundo do crime. Quando entrei, eles estavam
sentados, tomando cerveja e petiscando alguns peixes
fritos. Aproximei um tanto inseguro, ainda não os
conhecia. Quando eles se apresentaram, fiquei petrificado.
Eram eles.
— Sente e beba com a gente. Meu nome é Bado e
este é o Miro.
Senti o coração em rebuliço e gostas quentes de
suor brotaram em minha fronte. Uma estranha moleza
tomou conta de mim, achei que ia desmaiar. Empalideci e
quando vi que ia cair, apoiei as mãos na parte superior da
cadeira. Não podia cair, não diante deles. Todo aquele que
cai é humilhado, isso eu não podia admitir. Eu ouvi
nitidamente, o destino pregou uma estranha peça,
colocando-me diante dos caras que arrasaram a minha
vida, destruindo, de uma só vez, toda a minha família.
Sempre sonhei com aquele encontro e ali estavam eles,
sorrindo, felizes, como se nada tivesse acontecido. Por um
momento, perdi a fala, um turbilhão de lembranças veio à
memória e se resumiam num garotinho desesperado,
abandonado à própria sorte, na madrugada mais triste da
sua vida.
Eram eles, não restava dúvida, faltava apenas o
pirata e pronto, completaria o quadro da destruição. Senti

[ 137 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

o mesmo gosto de sangue, quando o meu pai acertou


minha cara, ao ensinar-me roubar.
O Bado continuava o mesmo, apenas alguns fios de
cabelos brancos a mais, ainda conservava o detestável
bigode. Como eu poderia esquecer? Naquele tempo,
quando o vi pela primeira vez, tive a impressão de que o
conhecia e agora sentia a mesma sensação. O Miro se
mantinha forte, cabeça raspada e, sobre o músculo direito,
a inconfundível tatuagem do dragão em chamas. Era
como se o tempo não tivesse passado. Quando sorria, o
dente de ouro chamava a atenção. Eu estava diante do
meu passado.
Depois de recobrada a surpresa, senti o ódio subir à
mente, como um relâmpago. Pude enxergar mamãe e as
minhas irmãs, estendidas, nuas e mortas. A destruição de
uma família, que não fez nada para merecer tanta
violência. Agora os assassinos estavam sentados em
minha frente, repletos de vida e disposição.
Senti vontade de vomitar, tentei me controlar,
ainda era cedo, precisava ganhar tempo, usar de cautela,
embora a sede de vingança tivesse a ponto de explodir.
Teria que agir com sabedoria e cautela, buscar dentro de
mim, a arte do fingimento e disfarçar as minhas reais
intenções”.
— Ei! O que há gente boa? - perguntou um deles.
— Nada, um leve mal-estar...

[ 138 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Canivete continuou fingindo, nada podia dar


errado, os dois eram perigosos e experientes. Apresentou-
se, dizendo que queria fazer parte do grupo, mas temia
ser reconhecido, um risco que precisava correr para
atingir seu intento. A seu favor contava o fato de naquela
ocasião, era só um garoto fracote. Os dois homens fizeram
uma série de perguntas sobre as habilidades de Canivete,
até aceitarem a sua participação, caso ele tivesse êxito na
próxima ação do grupo.
— Você é um garotão esperto e não tem cara
suspeita, mas ainda está verde. Seguinte, moleque, se fizer
a coisa certa, ficará com a gente, estamos precisando de
mais um. Temos um belo assalto pela frente. Mas se for
mal... aí o negócio complica. Não aceitamos erros ou
pedido de desculpa de amador. Tem que acertar e pronto.
Entendido?
— Tamo junto, de boa!
“Como não aceitar? Era a chance que eu tinha de
me vingar daqueles vermes. Um plano se desenhava em
minha mente, primeiro eu lucraria com os assaltos e
depois de passar a mão na grana, cairia fora, não sem
antes enviar os dois para o inferno. Eu não perderia a
oportunidade por nada deste mundo. A conversa
prosseguia, até comentaram, sobre o terceiro bandido”.
— O Pirata foi preso, faz um bom tempo que a
gente não se encontra, mas ele se safa logo, conhece as
manobras da prisão, tem contatos...

[ 139 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

A relação com os bandidos aguçava a sede de


vingança. Canivete aguardava o momento certo para agir,
o plano estava arquitetado, fazia tempo. Aos poucos foi
criando laços, pretendia conhecer as estratégias e modos
de agir dos bandidos. A parceria foi exitosa, ao lado da
dupla, realizou assaltos importantes, conquistando a
confiança, passara no teste, estava pronto para participar
do maior assalto planejado pelo bando.
Finalmente foi realizado o assalto ao banco de uma
cidade do interior. A ação contava com a enorme
experiência dos bandidos. Tudo estava preparado: o carro,
o esconderijo, as máscaras. A operação deu certo e um dos
funcionários do banco, era comparsa da dupla e primo do
Bado.
“Primeiro ele forneceu os códigos das máquinas,
onde o dinheiro ficava. O bancário indicou o dia e a hora
que o assalto deveria ser realizado e como eles deveriam
atuar. Eu fiquei ao lado do Bado, o Miro foi designado
para dirigir o carro, que ficara de prontidão na saída da
cidade, atrás dos muros de um cemitério abandonado.
Dali seguiríamos para a estrada principal, sentido norte,
em direção ao esconderijo.
Eu estava nervoso, nada podia dar errado. Eram
nove horas. Estávamos encapuzados e armados. Tinha
poucas pessoas no banco. Fizemos todos se deitarem no
chão. Enquanto eu vigiava as pessoas, o Bado rendeu o
funcionário comparsa e abriu os caixas, pegando a grana.

[ 140 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

O funcionário rendido foi levado como refém em seu


próprio carro. Ele nos conduziu até a saída da cidade,
atrás do cemitério. O cara fingiu desespero e obedeceu
prontamente. No interior do carro, abaixo da poltrona, a
parte do comparsa, uma sacola de dinheiro. Não houve
qualquer suspeita. O veículo foi abandonado atrás do
cemitério e o bancário ficou amordaçado e amarrado, à
espera de socorro. Foi tudo muito rápido, o Miro
aproximou-se, entramos no outro carro e saímos em
disparada. A estrada deserta e a pacata cidade desprovida
de segurança, facilitaram a operação. Os bandidos eram
especialistas em assaltos a agências do interior, raramente
um golpe era malsucedido. Não houve falhas.
Momentos depois, saímos da pista e seguimos por
uma estrada secundária, até chegarmos numa fazenda
isolada, cercada de matas. Havia uma casa preparada para
a operação. Tinha armas, comida e cães de guarda. Ficava
distante da estrada principal, atrás das montanhas, numa
região de difícil acesso. Repartimos o dinheiro e ficamos
fora de circulação por um tempo. Os jornais só falavam do
grande roubo à mão armada. O nosso carro estava
preparado para qualquer eventualidade. Eu e os dois
bandidos ficamos no esconderijo. Faltava pouco e eu
aguardava ansiosamente uma chance de executar a minha
vingança. Até que ela surgiu. Era o momento. Não podia
esperar mais.

[ 141 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Depois de uma noite regada a cerveja e churrasco, o


Bado e o Miro dormiram profundamente e eu apenas
fingia. Quando eles começaram a roncar, levantei
furtivamente e comecei a agir como uma sombra.
Primeiro, apanhei as armas de cada um. A princípio um
medo gigantesco tomou conta de mim. E se um deles
acordasse? Mas os miseráveis dormiam profundamente.
Engoli a cisma, respirei fundo, acionei o gatilho e,
munido de revolta, dei um chute no rosto de cada um,
acordando-os violentamente. Meu sangue fervia. Era tudo
ou nada. O momento havia chegado e eu não podia
recuar. Eles acordaram assustados.
— Que porra é essa? Ficou louco? Largue esta
arma! – gritou o Bado.
— Cala a boca seus vermes! - gritei colérico – isso
não é brincadeira, estou falando sério!
— Eu não estou entendendo nada... – argumentou o
careca, meio desconfiado.
— Quieto seu porco! Vou refrescar a memória de
vocês, contando uma pequena história. Vocês se lembram
de Bastião Pilantra?
— Bastião Pilantra? Claro que lembro daquele
traidor! Até hoje não vi a cor do dinheiro e das joias que
ele nos roubou! O que Bastião tem a ver com isso? Ele já
morreu, faz tempo!

[ 142 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Depois que Bastião morreu, vocês foram à casa


dele, arrancar da família o dinheiro e as joias, não é
verdade?
— Sim, eu já tinha até esquecido!
Aquela frase aumentou o meu ódio. Tomei fôlego e
prossegui:
— Como a mulher e os filhos não soubessem de
nada, vocês amarraram o menino e levaram as três para o
quarto. Depois de usar e abusar, não se contentaram, não
é mesmo?
— Era uma fortuna em jogo, Bastião sujou com a
gente. Nós sempre dividimos tudo e ele nos passou a
perna. Ficou com a maior parte das joias e da grana. Só
depois da morte daquele miserável, descobrimos e
tentamos nos vingar. Estávamos dispostos a tudo mesmo!
Fomos ao barraco dispostos a recuperar o que era nosso.
Mas foi tudo inútil. Até hoje, não sei onde foi parar aquele
tesouro... Vem cá, por que tudo isso, garotão? Como é que
você sabe desta história? Você conheceu o Bastião?
— Cala a boca, filho da puta! Vocês já falaram
demais e parem de me chamar de garotão! Vocês estão
pensando que eu estou brincando, não é mesmo? Pois
bem, eu falo sério! Sempre sonhei encontrar com vocês,
frente a frente!
— Por quê?
— Vocês violentaram e mataram as três, sem
qualquer compaixão, não é verdade?

[ 143 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Foi ordem do Pirata. Ele estava furioso e sempre


chefiou o bando. Como você sabe de tanta coisa? Quem é
você afinal?
— Eu sou o filho de Bastião Pilantra! – disse
pausadamente, saboreando cada palavra.
Eles empalideceram com a revelação. Meu coração
batia forte, repleto de rancor e mágoa:
— Eu sou o menino que vocês amarraram na sala.
O filho da mulher que vocês mataram. As mocinhas eram
as minhas irmãs. Aquela era a minha família, eu sou a
vingança! Eu prometi vingança! Chegou o momento!
— Eu... - gaguejou o Bado.
— Não precisa ficar nervoso, eu... - o Miro não
sabia o que dizer.
O desespero dos dois era um aperitivo saboroso.
— Sabe o que vai acontecer? Eu vou matar os dois,
e depois, vou ficar com toda a grana. Tem mais: vou atirar
sem piedade e o meu revólver também tem silenciador.
Vocês vão apodrecer aqui, no meio do mato!
Apertei o gatilho e disparei uma dezena de vezes.
Os dois tombaram sem vida. O sangue escorria sem
trégua, contemplei os corpos imundos por um momento...
— Mamãe, Cida e Estela, vocês estão vingadas.
Imediatamente voltou a incontrolável vontade de
vomitar. Tinha que sair dali. Segurei enquanto pude, mas
não suportei. Vomitei terrivelmente. Aos poucos fui me
acalmando. Peguei todo o dinheiro, as armas e tudo o que

[ 144 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

me pertencia. Aqueles corpos nojentos ofuscavam a minha


visão.
No passado chorei bastante, quando vi com meus
olhos inocentes a tragédia lá de casa, mas ninguém
derramaria qualquer lágrima por aqueles porcos”.
— Ainda falta mais um! O pirata... Mas ele não me
escapa!

[ 145 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Treze

Amor era coisa que eu não conhecia.


Mas eu estimava aquela mulher que
lutava ao meu lado em toda e qualquer
circunstância.

Canivete abriu a porta aos poucos. Bete assistia à


televisão. Quando ela o avistou, vibrou como uma criança,
ficou radiante com o seu retorno.
— Canivete, quanto tempo! Que bom que você
voltou!
— Como tem passado?
— Agora tudo está bem, estava morta de saudades!
— Estou aqui agora, isso é que importa...
— Não preguei o olho! Eu te esperava todo santo
dia, morria de medo e preocupação. Cheguei a pensar que
os tiras tivessem te apanhado ou te fuzilado!
— Foi tudo perfeito. Agora temos grana e fartura!
Mas ainda precisamos ter cuidado. Ficaremos separados
algum tempo, até as coisas esfriarem!
“Bete era incrivelmente ciumenta, mas eu não
sentia nada mais profundo, senão uma enorme
consideração. Amor era coisa que eu não conhecia. Eu
gostava da Bete, ela sempre lutou ao meu lado, em toda e

[ 146 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

qualquer circunstância. Era mulher de guerra e muito


amor para dar. Ela sabia que eu não a amava, porém,
estava feliz mesmo assim, bastava que eu estivesse ao seu
lado, dormindo e repartindo o feijão. Naquela fase eu me
considerava bem de vida. Mudamos para uma casa maior,
mobiliada e aconchegante, comprei um carro e uma moto.
Pensava num jeito de ir embora para outro estado, assim
que a vingança se completasse, queria uma vida normal.
Bete não estava nos meus planos, eu pretendia deixá-la, na
primeira oportunidade”.
Canivete estava com 23 anos, ainda vivia o eterno
conflito entre as duas personalidades: por um lado, era o
sonhador Tomás, menino puro que tentava penosamente
sobreviver, que sonhava com um lugar chamado
felicidade, formado por uma família completa, um lar
decente, filhos e uma esposa, a quem amasse de verdade.
Tomás era forte, e por mais que Canivete tentasse, jamais
conseguiu destruí-lo completamente. Então, para não
perder o rumo da vida, os dois travavam uma intensa
luta.
“Eu entrava em desespero, perdia o sono e sentia
horríveis dores de cabeça... Às vezes, entre as sombras da
noite, o menino Tomás me sorria ternamente, mas a
sensação de paz se rompia bruscamente, sempre que o
anjo revoltado e vingativo, chamado Canivete, aparecia.
Ele era dominante e não queria, de modo algum, oferecer
qualquer chance a Tomás, o anjo da paz.”

[ 147 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Vai sair?
— Por quê? Tenho que dá satisfações? Ora, vá pro
inferno!
— Não precisa se zangar, só fiz uma pergunta,
simples curiosidade.
Canivete nunca foi de muitas amizades, mas era
conhecido e respeitado. Na verdade, depois que virou
bandido, mudou alguns hábitos, evitava multidões, tinha
vida reclusa e nunca foi ligado ao tráfico, embora
conhecesse todo mundo. Era cada um na sua.
“Eu nunca fui ambicioso, mesmo sendo um
bandido respeitável, não era rico e nem pensava nisso. A
simplicidade falava mais alto. Só partia para um novo
plano, quando a grana estava no fim. Mas, em casa, nunca
faltou comida e conforto. A Bete costumava dizer que eu
vivia jogando dinheiro fora, tinha que economizar. No
fundo ela queria que eu arranjasse um emprego e largasse,
de uma vez por todas, a vida de bandido. Temia por mim,
sabia que no meu mundo, a lei da sobrevivência era bem
clara: matar ou morrer”.
— Canivete, temos uma casa boa, um carro, você é
jovem, inteligente, pode arrumar emprego, vamos sair
dessa e viver uma vida decente.
— Ainda não Bete...
— O que está escondendo de mim? Por que não se
abre?
— Um dia você saberá de tudo, não agora.

[ 148 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Eu não podia descuidar, a vingança não estava


completa, precisava reunir forças para não voltar atrás. Os
conselhos de Bete incomodavam, atingiam o meu coração,
por isso, evitava o assunto e pensava sair de casa, deixar a
Bete e viver outra vida longe daquele lugar. Enquanto isso
não acontecia, tratava de buscar um novo plano. E ele
aconteceu por mero acaso. Conheci um cara que me deu
todas as dicas, o endereço da casa, a ausência do dono –
um empresário que vivia viajando. Era só aguardar o
momento. O cara era casado, não tinha filhos. Estudei o
plano durante vários meses, a casa ficava vazia a maior
parte do tempo e o sistema de segurança contava apenas
com a cerca elétrica, fora isso, a casa ficava sem proteção
alguma.
Comecei a montar vigília, até que numa certa noite,
um fato curioso chamou minha atenção. Era quase meia-
noite, o casal voltava para casa, quando o luxuoso carro
estacionou a poucos metros da casa. Fiquei observando de
longe. O casal discutia no interior do automóvel, uma
bolsa foi atirada pela janela, de repente a mulher desceu e
o carro saiu em sentido oposto. A mulher estava tão aflita
que não encontrava a bolsa. Subitamente o homem cruzou
a terceira travessa e retornou, desceu o vidro e disse aos
gritos:
— Você tem uma semana para arrumar os trapos e
cair fora. Quando voltar, não quero encontrá-la em minha
casa, entendeu?

[ 149 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Ela respondeu à altura, tinha a voz trêmula, cheia


de ódio:
— Maldito! Você vai pagar caro, eu juro que vai!
O homem saiu em disparada. Enquanto isso a
mulher chorava, sentada na calçada. Tomei coragem e
aproximei-me.
— Precisa de ajuda?
Ela nem levantou a cabeça. Engoliu o choro, depois
respondeu, olhando para o sinal.
— Preciso. Aceita matar aquele bruto?
A mulher voltou a chorar.
— Maldito! Miserável! Ele vai pagar por tudo!
Só então levantou a cabeça.
— Se for bandido, seja bem-vindo. Se for um cara
bonzinho, caia fora! Estou uma merda! Vai, cai fora!
— Brigou com seu esposo?
— O que acha? Ajude-me a procurar a bolsa, o
desgraçado atirou-a no meio da rua.
Encontrei a bolsa. Senti compaixão da belíssima
mulher, desprezada, abandonada, humilhada.
— Não chore... Venha comigo, eu te levo para casa.
— Nem o conheço, mas aceito... Quem sabe seja
uma excelente oportunidade de me vingar daquele
canalha!
A casa era linda. Um grande jardim tomava-lhe a
frente. Ficava situada num bairro residencial de classe
média-alta. Ela acendeu a luz e eu pude ver nas paredes

[ 150 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

da sala principal, uma série de quadros valiosos. Fiquei


boquiaberto. Nunca vi coisas tão esquisitas e tão lindas.
— Agora pode ir – disse.
— Tem certeza que está bem?
Ela não respondeu. Voltou a chorar.
— Está uma droga! Uma droga, me abrace forte
estranho, bem forte!
Timidamente a estreitei entre os braços. Estava
envolvido com a situação que esqueci do assalto
planejado. Era uma linda morena de corpo escultural,
lábios carnudos, olhos castanhos e longos cabelos
ondulados. Por um momento, voltei a ser o Tomás e me
quedei a admirar aquela mulher repleta de beleza e
sensualidade. Senti o impulso de estreitá-la em meus
braços e beijá-la inteiramente, mas foi apenas um
pensamento. Canivete voltou com força e impaciência.
— Ah! Se ele pensa que estou derrotada... Estou
usando a casa dele, traindo aquele porco asqueroso com
um estranho. Um cara que eu nem sei de onde veio ou o
que pretende...
— Louca... – disse sem conseguir soltá-la.
— Aproveite meu querido, eu preciso ser amada,
desejada...
Tomei coragem, afastei-me abruptamente. Ela riu
divertida. Saquei a arma de modo desajeitado. Nem sabia
como agir naquela situação. Meu coração continuava aos
pulos.

[ 151 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Acontece que eu não sou um simples


desconhecido. Se eu disser que sou um bandido e planejei
esse assalto?
Ela não se intimidou, era uma mulher estranha e
deliciosamente imprevisível. Atirou-se na poltrona e em
seguida me dirigiu a palavra. Sua voz era de enlouquecer
qualquer vivente: rouca, suave e carregada de emoção.
Tinha uma doçura toda especial.
— Muito bem, disse ela, decidida, leve tudo que
você quiser.
Fez um breve silêncio. O sorriso morreu nos lábios
e novas lágrimas brotaram, prosseguiu:
— Mas eu te peço uma coisa: mate-me! Sou covarde
e não tenho coragem para o suicídio, vamos, atire!
— Você quer mesmo morrer?
Por um momento, fiquei mais preocupado com ela
do que com todo o resto. Não conseguia imaginá-la morta.
Isso eu não podia permitir.
— A vida não tem nenhuma graça para mim!
Meus olhos não se desviavam dela.
— Mas... Por quê?
— Não me faça perguntas idiotas e aperte logo o
gatilho. Você não é o bandido? Então? O que está
esperando? Não se preocupe, não tem ninguém em casa.
Vamos! Você não tem nada a perder! Pelo contrário, vai
ganhar dinheiro com isso! Por favor, atire.
Fiquei completamente sem ação.

[ 152 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Atire logo, eu não quero viver!


Como se estivesse em estado hipnótico, Canivete
deixou o revólver soltar-se sobre o tapete e num impulso
louco, aproximou-se, abraçando-a, perdeu o medo e alisou
seus cabelos, como se consolasse uma criança indefesa. Ela
sentiu um fogo acender-se, engoliu os soluços, o olhou
surpresa, depois, aos poucos, foi se acalmando. Estendeu
a mão e caminharam em direção ao quarto. Esqueceram-
se de tudo, ele não era mais o bandido e nem ela a vítima.
“Tive a sensação que estava aprisionado pela
armadilha do destino. Uma sensação única, magnífica.
Ficamos ali, no meio do quarto, abraçados como se nos
bastássemos. Fugíamos da realidade, do mundo, do óbvio.
Os seus lábios grossos eram convidativos e nos beijamos
ardentemente. Ela apertou-me forte, como se eu fosse a
sua tábua de salvação. No silêncio daquele quarto, as
palavras eram substituídas por sussurros românticos.
Rolamos na cama agarrados. Eu desfrutava outro lado da
vida e pela primeira vez me senti inteiro, normal,
realizado, feliz. Seu corpo arrepiava-se de prazer,
motivando-me a prosseguir com as carícias, até o prazer
tomar conta de nós. Ficamos ali, inertes, num só corpo,
contemplando o espaço”.
— Que loucura! – disse ela, abrindo um meio
sorriso – não posso acreditar que tudo isso aconteceu.
— Quem é você? – perguntou ele.

[ 153 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Ela parou de sorrir, ficou séria. Ajeitou o cabelo,


levantou a cabeça, encarando-o:
— Meu nome é Jane Albuquerque. Você não
sonhou meu bandido, você aconteceu. Se não tivesse aqui,
talvez eu morresse de verdade! Mas você apareceu para
mostrar quanto vale a pena viver!
— Jane... lindo nome! Isso é loucura... estou aqui
para te assaltar e olha o que aconteceu!
— E você, bandido? Qual o seu nome?
— Eu me chamo Tomás, mas todos me conhecem
por Canivete!
Ela sorriu, divertida.
— Canivete? Que esquisito... Por que Canivete?
— Quando criança era magrelo feito um caniço, um
fracote. Meu pai me apelidou e quase ninguém sabe meu
verdadeiro nome.
— Seu pai não devia ter feito isso. Tomás é um
nome tão bonito!
— Engraçado, eu nem sonhava que você existia e
agora estamos juntos como se fôssemos velhos
conhecidos.
— Tudo depende do momento, você presenciou
aquela briga. Não foi a primeira vez que ele me tratou
como um lixo. Já fui espancada e expulsa do carro,
centenas de vezes. Depois ele vinha todo manso, pedia
perdão e a gente voltava a viver bem, até o próximo

[ 154 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

pileque. Hoje foi diferente, ele confessou que tem outra e


não quer saber de mim, expulsou-me de sua vida...
— Ele não sabe o que está perdendo...
— Sabe sim. Ele pode tudo, é poderoso, tem todas
as mulheres que deseja. Eu sou mais uma na vida daquele
monstro, ele sim, é o verdadeiro bandido e não você. Eu
estava numa pior, detesto a solidão e, de repente, surge
você, arma na mão, inesperado, lindo, sensual, selvagem!
Você realizou meu maior capricho: amei um
desconhecido, sem culpa, sem perguntas, sem planos, só
amei. Eu realmente queria morrer, não pense que te
seduzi para livrar-me do assalto ou de algum crime.
Estava desesperada, mas quando você me tomou nos
braços, senti um alívio feliz...
— Não está arrependida? Esqueceu-se que sou um
bandido?
— E daí? Sou casada com um e dos grandes! De
uma coisa você pode ter certeza, não costumo arrepender-
me daquilo que faço. Se tivesse que fazer tudo outra vez,
faria com prazer. Gostei de você, é diferente, o tipo de
homem que sempre desejei. Foi um momento
inesquecível, completo, acredite!
Voltamos a nos beijar e ela voltou a sorrir.
- Quer saber de uma coisa? Estamos perdendo
tempo, vamos tomar um banho de espuma, você vai
adorar!

[ 155 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Entramos na banheira, a água jorrava, fazendo


nuvens de espuma. Ficamos brincando como duas
crianças. Em seguida nos vestimos e fomos para a sala. Ela
ofereceu bebida. Estava vivendo um sonho e não queria
acordar. Ela deitou-se na poltrona com a cabeça sobre as
minhas pernas. Segurava o copo de bebida.
No fundo, eu sabia que tudo aquilo era só mais
uma aventura de uma riquinha excêntrica. Mas eu levei a
sério, acreditava na fantasia, nas vaidades e
deslumbramentos de um mundo que nunca foi meu.
Compreendi que tudo aquilo era bom e não podia abrir
mão daquela mulher.
— Não sou uma caprichosa, um dia conto tudo.
Depois, você pode julgar da maneira que bem entender! -
disse ela.
— Eu não passei de uma aventura meio louca, é
isso?
— Não... Eu ainda te quero.
— Não faz sentido, meu mundo é outro. Sou de
outro ramo, sabe como é?
— Alto lá, meu bandido, não sou uma mocinha
ingênua. Você não me conhece. Sou a mulher rejeitada de
um senhor que partiu para Fortaleza, após a última
discussão. Aquele bandido estava indo para o aeroporto,
atravessou o sinal e quase provocou um acidente...
Olhei o relógio. O dia estava aparecendo.
— Queria ficar, mas não posso.

[ 156 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Estarei aqui até o sábado. Depois vou cair fora


deste inferno. Prometa-me que voltará. Tenho um plano
perfeito e você vai me ajudar. Te espero, vou deixar a
chave, venha a qualquer hora da noite.
Recebi a chave. Era um bom sinal.
— Agora eu preciso ir – levantei decidido. Mas eu
volto.
E outra vez nos beijamos. Recuperei o equilíbrio e
as forças retornaram. Ao lado daquela mulher, eu me
surpreendia gentil, carinhoso. Voltava a ser o Tomás puro
e sonhador, pronto a ouvir, compreender e ajudar a quem
precisasse”.
Pouco depois ele estava na rua. As horas voavam, o
dia começou a se apresentar. Ainda podia sentir o sabor
dos beijos, o cheiro do perfume, seu corpo... nada saía da
mente.
“E se for só uma aventura? É isso! Eu servi para
afugentar a sua solidão. Nada mais... Pobre Tomás, você
está amando e isso não é bom! Você não passa de um frio
assassino, nada mais. Você não tem o direito de por as
suas mãos sujas de sangue, numa mulher como a Jane.
Você sonha demais seu palhaço. Bandido não pode e nem
deve sonhar. Você achou que ainda era o puro Tomás,
mas não é. Tomás já era, você é Canivete. Aqueles que
morreram, não voltarão à vida e ainda falta mais um, o
último! Aí, sua missão estará cumprida.”

[ 157 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Pouco depois, Canivete estava em casa. Bete o


aguardava chispando de ciúmes.
— Onde você andou Canivete? Quer me matar de
preocupação?
— Vai começar? Não se meta em minha vida!
— Nossa vida, você quer dizer, não é? Você está
cheirando perfume de mulher e é perfume caro! Escute
aqui: sou tudo, menos idiota! Você não brinca comigo
Canivete. Você não sabe do que sou capaz!
— Ora, cale a boca Bete, não tenho medo das suas
ameaças!
— Eu exijo respeito! Eu sou a sua mulher!
— Minha mulher? Que piada! Você não passava de
uma puta que vivia dando o rabo pra todo mundo. Deu
sorte, eu fui com a tua cara e passamos a viver juntos! Isso
não apaga seu passado, você tem a minha companhia,
casa e comida. Não lhe basta? Você deveria agradecer por
eu ter tirado você daquele mundinho podre. E agora
chega de bate-boca!
A humilhação feriu sua alma. As lágrimas
escorreram. Canivete nunca falara daquele modo, Bete foi
a única mulher que o aceitou, sem pedir nada em troca.
Ela o amava e sabia que a indiferença era o indício da
despedida. Em prantos ela respondeu:
— Olhe aqui, eu fui tudo isso que você jogou na
cara! Mas aprendi a te respeitar, jamais voltei a deitar com
outro homem, depois que te conheci. Se estamos juntos,

[ 158 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

foi porque você convidou. Aceitei, porque sou louca por


você, mas nunca te obriguei a nada. Nem a você e nem a
homem nenhum. Eu não sou uma cachorrinha sem dono.
Há sete anos estamos juntos e sempre fiz tudo por você.
Sempre desejei ter um filho e por sua causa, nunca me
atrevi a engravidar...
Ele a ouvia em silêncio.
— Eu sei que você não gosta de mim, que me tem
apenas como a empregada fiel e mulher de transa. Você
nunca me tratou com carinho, vive me agredindo sem
motivo, pisa, humilha e eu sempre me calei. Será que você
nunca parou para pensar que eu tenho um coração? Eu te
amo Canivete e você nunca se importa comigo!
Ela chorava copiosamente, mas Canivete
permanecia frio e distante. No fundo, achava divertido o
seu sofrimento, não queria aquela mulher.
— Está arrependida? Pegue os molambos e vá
embora, para mim, tanto faz!
Numa fração de segundo, Bete lembrou-se do
passado, quando era só uma criança e foi expulsa de casa
pela madrinha:
“Você vai sair desta casa e levará só a roupa do
corpo, sua vagabunda”.
A atitude de Canivete a fez sentir a dor da rejeição,
deixando-a impotente e perdida. Não teria forças para
viver sem Canivete. Uma enorme angústia saltava-lhe dos
olhos suplicantes.

[ 159 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Você não devia falar assim comigo... - disse em


voz baixa, entremeada de soluços.
Canivete sentiu o coração amolecer. Fora longe
demais, Bete não merecia tanto desprezo.
— Foi mal Bete, você provocou...
Ela limpou os olhos.
— Canivete, vamos esquecer tudo?
Ela o abraçou emocionada, suportava toda e
qualquer humilhação, exceto a ideia de um dia perder o
seu homem.
— Melhor assim... - respondeu num sopro.
“Nos beijamos, era um beijo sem gosto especial.
Havia uma nítida diferença entre a mulher de Canivete e a
de Tomás. Porém, a minha realidade era Bete. Juntos
constituíamos um fragmento do universo marginal em
que vivíamos. Jane não passava de um sonho impossível.”
— Vamos pra cama...
— É assim que eu gosto Bete...
Tudo aquilo soava como uma encenação. Até
mesmo na relação a dois, Jane estava presente. A mente
martelava o nome da misteriosa mulher que conhecera,
por simples acaso, e que se transformou no grande amor
da sua vida. Não conseguia parar de pensar em Jane,
estava sem ânimo até para roubar. Bebia, tentando
esquecê-la, mas era tudo em vão. Seu rosto não fugia da
mente, a voz quente e sensual, ecoava nos ouvidos, sem

[ 160 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

trégua. Não queria admitir, mas estava apaixonado pela


misteriosa Jane.
— Ei, Canivete! Estou falando com você!
Era Bete que o despertava para o seu mundo. O
verdadeiro, sem ternura, sem encanto, seu mundo cru.
— O que você tem Canivete?
— Vai começar outra vez? Eu não estou aqui? O
que você quer mais?
Bete queria o seu amor, sabia que era inútil pedir
tal coisa. Então se calava e tentava afastar a angustia
provocada pelo medo de perde-lo.

[ 161 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Catorze

Ainda havia uma chance de sermos felizes

Às vezes o destino era engraçado... Certo dia, numa


conversa corriqueira, Bete mencionou alguma coisa sobre
o Pirata, o terceiro bandido que chefiou o bando que
destruiu a família de Canivete. Ele queria resolver aquilo e
a sua vingança estaria cumprida. Estava cansado da vida
bandida, no íntimo queria Jane e pretendia revê-la, nem
que fosse a última coisa. Não conseguia arrancá-la do
pensamento.
— Dizem que o Pirata é barra pesada e não tem
medo de nada - explicou Bete com ar de preocupação.
Temia por Canivete.
— E nem eu, Bete!
— Canivete, que raio de negócio você tem com o
Pirata? Eu não sabia que você o conhecia.
— Ele precisa acertar umas continhas comigo. Só
isso!
— Que continhas?
— Coisa nossa...
Bete não sabia de nada. Ela jamais suspeitou do seu
drama, nem da história do passado.
— Onde você viu o cara?

[ 162 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Dizem que ele estava preso, mas acabou


fugindo. Os tiras nunca conseguem segurá-lo de verdade.
O cara é peixe grande, dono de uma boca e é muito
respeitado. Dizem que ele frequenta o bar do Luizão, ao
lado da ponte, na zona leste.
— Sei onde fica, preciso encontrá-lo de qualquer
jeito! Tem uma coisa importante que preciso fazer!
— Tome cuidado, Canivete. O Pirata não é flor que
se cheire, só anda armado e é muito desconfiado. Dizem
que ele mata por diversão, só para treinar a pontaria! O
cara é o demônio, em pessoa, e tem o corpo fechado!
Adora uma briga! É muito perverso...
— Não se preocupe, saberei como amansar a fera!
— Deixa eu ir com você?
— Não... fique e cuide de tudo.
“Uma angústia me pegou de surpresa. Olhei para
Bete, como se fosse a primeira e a última vez. Eu tinha um
carinho especial por ela, embora a tratasse duramente.
Senti vontade de abraça-la, beijei os seus lábios. Ela ficou
emocionada, notou que eu estava diferente”.
— Bete, eu quero voltar. Se alguma coisa acontecer,
cuide de tudo. Você me ajudou esse tempo todo. Valeu a
pena te conhecer quando eu ainda era um garoto. Eu
gosto muito de você!
— Canivete, você fala de um jeito! Sinto um
arrepio, aqui dentro, parece que você está dizendo adeus!

[ 163 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Por que não conta a verdade? Sei que você tem uma
história, gostaria de saber, talvez eu possa ajudar...
— Não Bete, ninguém pode ajudar, ninguém! Um
dia você saberá de tudo, prometo... Agora eu preciso ir!
— Canivete... não vá!
— É muito importante...
— E se você não voltar?
— Tome, esta é a chave da maleta. Guardei todo o
dinheiro que juntamos. A outra parte está no banco. A
casa agora é sua. Se eu não voltar, faça o que você achar
melhor!
— Canivete, pelo amor de Deus, você está me
dizendo adeus?
— Se tudo correr bem, volto ainda hoje, prometo.
Torça por mim.
— Seja lá o que for, eu vou torcer para que dê certo.
Estou do seu lado, sempre!
— Eu voltarei...
— Claro que voltará, com fé em Deus!
— Vai de carro ou moto?
— Carro. A moto fica com você.
“Deixei atrás de mim, um pedaço da minha vida.
Da porta, Bete acompanhou-me com os olhos. Senti algo
esquisito, como se estivesse indo para uma guerra
inevitável. Minha vingança estava chegando ao fim. Vozes
e imagens de um passado distante, chegavam à mente e

[ 164 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

eu revivia a infância tumultuada, com todos os detalhes,


como numa tela de cinema...
“Mãe, o que é universo?”
“Universo é o mundo, as cidades, as coisas, tudo
que nos cerca em geral”
“Não fique assim meu pequeno, tome, beba este
chazinho...”
“Não mãe, se eu beber, eu vomito...”
“Mãezinha, por que não temos amigos?”
“Tomás... meu Tomás...”
“Eu queria estudar na escola do Flavinho...”
“Você não gosta da sua professorinha aqui?”
“Mamãe... mamãe...”
“Não foi nada Tomás. Tela, coloque a comidinha do
Tomás...”
“Tomás... você precisa viver...”
“Tomás... meu Tomás...”
“Mãe... mãe...”
“Meu pequeno... meu pequeno... meu pequeno...”
E aos poucos, tudo se perdia no eco. Doces
lembranças do passado, ao lado da família. As lágrimas
escorriam, chorei como se ainda fosse o pequeno Tomás.
Minha vida foi destruída por culpa de três assassinos. Se
eles não tivessem cometido a barbárie, tudo seria melhor.
A minha família se foi, e isso não podia ficar sem punição,
a justiça se completaria.

[ 165 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

O final da vingança estava prestes a chegar e eu


precisava encontrar o pirata demoníaco e mandá-lo de
volta para o inferno. Agora eu não podia recuar. Não era o
momento ideal de se pensar em consciência.
Vasculhei a cidade inteira e não o encontrei. Fui
informado que ele estava no mesmo bar, ao lado da ponte.
Respirei fundo, a missão estava chegando ao fim. Mal
entrei no bar, deparei com o miserável tomando cerveja ao
lado de uma mulher. Estava o mesmo, a camiseta regata
deixava à mostra a tatuagem que deu origem ao seu
apelido: o pirata de braços cruzados e sorriso mau. O
bandido sorria e contava as proezas à mulher, enquanto
alisava suas pernas roliças.
— Ora, se não é o famoso Canivete! - anunciou
Luizão, o dono do bar. Era um antigo conhecido. Encostei
os cotovelos no balcão e pedi uma dose caprichada de
cachaça, sem desviar os olhos da mesa do Pirata.
— Quem é aquele cara, Luizão?
— Você não conhece? É o Pirata. O cara é poderoso,
veja você que ele fugiu da gaiola e anda por aí,
despreocupado, não tem medo de nada.
— O cara é barra pesada pelo jeito...
— Se é! O cara é o próprio terror e é muito
inteligente! Dizem que ele tem parte com o diabo. Eu acho
que não passa de lorota. No fundo o Pirata é gente boa,
basta saber lidar com ele. Se quiser eu posso te apresentar
a ele.

[ 166 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Pode ser...
Aproximei da mesa do Pirata. Ele ficou sério, me
olhou de cima a baixo. Disfarcei o ódio que me dominava
e exibi um sorriso forçado.
— Quem é o cara Luizão? - perguntou desconfiado.
Meu coração disparou.
— Este é Canivete, cabra arretado, ele queria te
conhecer, Pirata. É do ramo.
— Se Luizão tá dizendo, acredito. Sente aqui e
festeja com a gente! Esta é Marina, minha preferida.
A batalha estava quase ganha. Sentei-me à sua
frente, respirei fundo, tinha que ser forte e fingir com
perfeição. Estava diante de um bandido perigoso, uma
lenda do crime, respeitado até pelos tiras. Não podia
falhar.
— Sente aí, Canivete. Quem paga tudo sou eu!
Ele estava com os dois braços em cima da mesa, era
um momento único. Antes que ele enchesse o copo, saquei
a arma e o ameacei:
— Nem tudo, você pode pagar demônio!
Na rapidez de um relâmpago, apontei o revólver
em sua direção. Meu dedo fervilhava no gatilho. Chegou o
momento. Apanhado de surpresa o bandido espantou-se.
— Ei, o que há meu camarada? - sorriu mostrando
os dentes, sem entender o que se passava.

[ 167 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Não se lembra de mim, seu verme? Eu nunca me


esqueci de você, canalha! Sempre sonhei com este dia!
Sempre!
O bandido franziu o cenho. Não era homem
covarde. Procurou estender a prosa.
— Não lembro de ter comido você, porra! Nunca
gostei de viado! O que você quer, palhaço?
Ele estava sério. A mulher escorregou-se dos seus
braços e acabou conseguindo levantar-se da mesa. Tremia
como vara verde.
— Miserável! Eu sou o filho de Bastião Pilantra e
prometi vingança! Você destruiu a minha família. Você e
seu bando mataram a minha mãe e minhas irmãs, sem
qualquer motivo, ninguém sabia das joias e da grana! Jurei
vingança e agora chegou seu fim! Os seus dois parceiros já
dei conta, mandei pro inferno! Só falta você e aí, o
trabalho fica completo.
Por um momento, o Pirata ficou pensativo. Seu
olhar frio e calculista era o mesmo, não havia qualquer
sinal de medo ou surpresa. Para ele, matar ou morrer era
uma questão de oportunidade.
— Esqueça essa frescura de passado! A vida é crua
meu irmão, podemos entrar em acordo e quem sabe você
acabe lucrando...
Percebi que o Pirata tentava ser astuto, procurava
me distrair, e pegar o revólver que estava à cintura. O

[ 168 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

dono do bar ficou surpreso e sem entender, a mulher do


bandido manteve-se paralisada e eu, de arma em punho.
— Não quero acordo com um lixo como você!
Mesmo sabendo que não tinha escapatória, o
bandido não se deu por vencido, provocou ainda mais.
— Quer saber, viadinho? Vá tomar no cu! Não
tenho medo! Quer atirar? Atire e reze para acertar, porque
se eu sair dessa com vida, acabo com tua raça, assim como
acabei com tua mãe, e olhe que a coroa era gostosa. As
meninas, então! Que noite! Ah! Bons tempos aqueles... – e
sorria, saboreando o escárnio.
— Atire viado! Atire!
Disparei sem titubear.
— Vá pro inferno de uma vez por todas, pirata filho
da puta!
Apertei o gatilho mais três vezes. O pirata estava no
chão. Seus olhos abertos encaravam o vazio e a boca
ensaiava um sorriso maléfico. Meu coração estava aos
pulos, numa frenética emoção. Contemplei aquele
cadáver, o último.
— Pronto mamãe, Cida e Estela, descansem em
paz!
Entrei no carro. As pernas tremiam, apertei o pé no
acelerador e caí fora. Estava tudo acabado. Minha cabeça
estourava de dor. Dirigi sem qualquer destino, como se
tivesse perdido a noção de tudo que me cercava, apenas
queria seguir adiante, sem rumo. Não consegui ordenar os

[ 169 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

pensamentos, notei que atrás, vinha um motociclista.


Fiquei tenso, seria algum comparsa do Pirata? Apertei o
pé no acelerador e consegui despistá-lo. Saí da BR e parei
num terreno baldio, atrás de um velho galpão. Respirei
fundo e tentei acalmar o coração. O sorriso demoníaco do
Pirata não me deixava em paz.
“Se eu sair dessa com vida eu acabo com tua raça,
assim como acabei com tua mãe e olhe que a coroa era
gostosa...”
Comecei a chorar desesperado. Brotou uma terrível
sensação de incompletude, como se a vida, de repente,
tivesse perdido o sentido. Aquilo produziu um vazio
enorme, que sufocava o peito e eu senti o vento das asas
do pássaro da morte. A alma estava numa tristeza
profunda e, quanto mais chorava, mais tinha vontade de
desaparecer.
Dediquei minha vida ao crime, de corpo e alma,
por uma vingança concreta, que excitava a imaginação,
levando-me a procurá-la, sem trégua... Mas quando ela se
cumpriu, o sentimento que ficou foi de uma imensa
angústia, como se nada tivesse importância, nem mesmo a
vontade de viver. Entendi, tarde demais, que a vingança
não tem o poder de trazer de volta aqueles que já se
foram, nem alivia a dor que sentimos. Então, por que a
vingança?
Fechei os olhos e encarei o nada. Não conseguia
pensar, nem sei quanto tempo fiquei assim. De repente

[ 170 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

um rosto de mulher veio à mente. Era Jane, lembrei-me


que era sexta-feira e ela deixaria a casa no sábado.
Tínhamos pouco tempo. Como num passe de mágica, a
minha alma se aqueceu de amor e as forças retornaram.
Voltei à estrada e novamente a estranha sensação
de que alguém me seguia. Bom, talvez fosse apenas
imaginação. Se realmente fosse o pessoal do Pirata, teria
acabado comigo, ali mesmo, no terreno baldio. Aumentei
a velocidade, queria chegar depressa e atirar-me nos
braços de Jane. Não me dei conta que, na verdade, alguém
me seguia o tempo inteiro.
Estacionei o carro ao lado da calçada. Era
madrugada. Nem senti o frio rigoroso, caminhei
desafiando o tempo, o destino, o desconhecido... A bela
casa surgiu em minha frente. Passei a mão no bolso e não
encontrei as chaves... “Droga, esqueci em casa”. Acionei o
interfone e por um momento fiquei cismado, e se o esposo
tivesse retornado? A cisma dissipou-se, quando uma voz
rouca e sonolenta atendeu.
— Sou eu... – disse.
— Eu sei, bandido... – respondeu num sussurro.
Entrei. Ela vestia uma finíssima camisola. Sorriu.
Uma ternura imensa tomou conta de mim. Fiquei
contemplando-a por um momento, depois, não me
contive, cobrindo-a de beijos. Ela abriu os olhos e disse
quase num sussurro.
— Você é um bandido caprichoso! – sorriu.

[ 171 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Ela apanhou duas taças e uma garrafa de vinho,


serviu-me e em seguida fomos para o quarto.
— Senti sua falta. Temia que o meu bandido
misterioso não mais voltasse...
— Estou aqui.
Mais uma vez nos entregamos de corpo e alma, ali
mesmo na confortável poltrona. Voltei a me sentir o
verdadeiro Tomás e no meu coração ficou a certeza de que
Canivete tinha sumido para sempre. Tomás voltou para
ficar, ninguém mais o amordaçaria e nem o prenderia, as
algemas estavam abertas. Tomás estava livre e Canivete
não seria seu condutor.
“Tomás... você precisa viver”!
O meu amor era sincero, por isso achei que estava
na hora de colocar as cartas na mesa. Eu não esconderia
nada, embora tivesse medo de perdê-la de uma vez por
todas... Jane era uma mulher normal, bem resolvida e eu
nada mais que um bandido, um assassino. Mas ela teria
que saber. Não era justo enganá-la. Sim, contaria tudo,
mesmo se depois ela me dispensasse para sempre. Seria a
minha cartada decisiva. Nos vestimos.
— Nasci numa família bem-sucedida. Sou filha
única e papai era dono de uma empresa que entrou em
falência. Vivemos uma onda de empréstimos, gastos
exorbitantes... tudo para salvar o patrimônio. O meu pai
sempre foi temperamental, brigou com a diretoria, os
negócios se desmoronaram e o controle fugiu das mãos.

[ 172 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Tudo estava por um fio, até que o meu pai conheceu o


Adriano de Albuquerque, um agiota, empresário
influente, ligado a alguns dos principais esquemas de
lavagem de dinheiro e tráfico de drogas. Meu pai viu a
salvação neste homem. O resto da história é simples: o
cara se interessou por mim, embora nunca tivesse dado a
menor chance. Relutei contra a ideia de um casamento por
interesse, mas era a única chance de salvar o patrimônio.
Casei-me com um homem rico e muito egoísta. Para o
meu pai, Adriano foi a tábua de salvação, empregou um
grande capital na empresa, tornou-se sócio de papai e
tudo foi se equilibrando. A situação voltou à quase
normalidade, Adriano tornou-se o sócio majoritário, e
papai, um sócio de segundo escalão. Não sei se você
compreende, mas o mundo dos negócios é cheio de
patifaria. A disputa pelo poder e as denúncias de lavagem
de dinheiro e ligação com o tráfico, tornaram o Adriano
um homem cada vez mais egoísta e mesquinho. Vive
cercado de seguranças, não fica no Brasil e seus negócios
são geridos à distância. Casei-me com um homem que
sempre teve consciência do meu desprezo, da minha falta
de amor, da minha revolta e assim mesmo, me faz
acreditar que ele é o meu dono e senhor absoluto,
entende? Adriano se vinga de todas as formas: possui
diversas amantes e vivemos como dois inimigos. Eu
sempre quis a separação, mas ele ameaça destruir o meu
pai no mundo dos negócios. Como vê, ele tem tudo nas

[ 173 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

mãos. Estamos juntos há cinco anos e nunca fui realmente


feliz. Mas felizmente, quando tudo parecia perdido,
surgiu você...
Ela me abraçou forte.
— De uma coisa eu tenho certeza, preciso de você
ao meu lado. Quero sumir da vida daquele verme para
sempre. Eu tenho um plano perfeito, e se fizer tudo como
eu planejei, seremos o casal mais feliz do mundo e cheio
da grana. A Europa nos espera! Você vai embora comigo!
— Você não pode fazer isso, as coisas não são tão
simples assim - disse.
Quando tentei abraçá-la, ela se esquivou.
— Você é um egoísta, covarde e mentiroso! Prove
seu amor, entre no meu plano e tenho certeza que você
não se arrependerá!
— Jane, parece que você se esquece quem sou eu.
Nossos caminhos não podem se cruzar...
— Mas se cruzaram e nós não temos culpa!
— Antes eu tenho que contar a minha verdadeira
história!
— Seja qual for a sua história eu te quero mesmo
assim...
— Meu pai se transformou num ladrão para
sustentar a família...
E assim fui narrando todos os fatos marcantes da
minha tumultuada vida.

[ 174 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Tive que matar o meu pai para proteger minha


mãe... Só Deus sabe quanto isso me custou. O remorso me
acompanha até hoje.
— Ora Tomás, não foi por sua culpa. Você apenas
defendeu a sua mãe. Ela teria morrido se você não
tomasse a defesa.
— Alguns dias depois, nosso barraco foi invadido
por três bandidos que procuravam dinheiro e joias que o
meu pai escondeu, sabe Deus onde.
A emoção voltou a tomar conta de mim. Mordi os
lábios tentando me conter. A cena devastadora voltava à
mente em detalhes. A Jane também chorava. Tomei
fôlego, prossegui.
— Não diga nada mais. Que situação! Quanta
maldade!
— Eu preciso falar, é bom botar para fora esse peso
que me atormenta. Jurei que vingaria dos bandidos e foi o
que fiz. Acabei de matar o terceiro e mais perigoso, agora
mesmo. O famoso Pirata. Matei o miserável e vim direto
para a sua casa. A polícia deve estar à minha procura, mas
não importo, estou vingado. Eu só queria encontrá-la,
mesmo que fosse a última vez e dizer que embora seja um
adeus, eu te amarei sempre. Você foi o meu primeiro
amor. Posso ser preso a qualquer momento e talvez vá
apodrecer na cadeia. Não me importo. Quero estar em paz
com a verdade. Esse é o meu compromisso.

[ 175 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Encerrei a narrativa e Jane ficou em silêncio.


Imaginei que ela não entenderia o que fiz, mas ela se
atirou nos meus braços e choramos juntos. Era o fim de
um amor sem começo.
— É isso, sou um assassino que matou três homens
e o próprio pai. Um monstro e não se pode confiar num
monstro horrendo, mesmo quando esse monstro tenta
mostrar as razões e as raízes de sua monstruosidade.
— Tomás... - ela tentava me acalmar.
— Eu não sou um monstro! – gritei chorando - Não
sou um monstro!
Ela estava emocionada, abraçou-me com mais
força. Depois enxugou as lágrimas, respirou fundo e me
examinou longamente. Seu silêncio foi quebrado e ela
disse o que eu não esperava ouvir.
— Olha só, tenho um negócio para te propor,
depois explico. Quero ir embora com você para nunca
mais voltar. O passado morreu e está enterrado. Vamos
fugir para um país distante. Eu sei como conseguir a
grana, a gente se manda e seremos felizes, bem longe do
Brasil. Vamos passar a limpo a nossa vida, e começar de
novo, num lugar tranquilo, longe de tudo.
Ficamos em silêncio, abraçados, numa emoção
incontida. Havia uma chance de sermos felizes, de
recomeçarmos a viver, longe das marcas do passado e da
triste sensação de derrota. Como não arriscar na
felicidade? Porém, algo nos interrompeu, a porta abriu-se

[ 176 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

abruptamente e, para meu espanto, Bete entrou ofegante,


como se tivesse percorrido uma pista de corrida. Estava
pálida e os olhos inchados de tanto chorar. Atirou o
capacete em cima da poltrona, respirou fundo. Manteve os
olhos fixos em mim, enquanto enfiava a mão na bolsa. Era
o que temia, sacou a arma. Tentei avançar em sua direção,
queria acalmá-la, temia que ela atirasse, mas quando dei o
primeiro passo, ela acionou o gatilho. Jane quedou-se num
silêncio, paralisada de terror”.
— Bete... o que faz aqui?
“O motociclista que me seguia era ela...”
— Eu te segui o tempo inteiro. Abri a porta com as
chaves que você esqueceu em casa. O resto foi fácil,
traidor!
Bete estava revoltada, humilhada e derrotada. A
voz entrecortada de soluços convulsivos, não a impediu
de expor sua revolta.
— Quando você se despediu, fiquei aflita, algo
grave ia acontecer, não podia deixá-lo sozinho. Ainda bem
que você deixou a moto em casa. Eu... estava quase certa
de que você morreria, por isso fui atrás. Quando você
matou o Pirata, eu estava escondida, no fundo do bar.
Você fugiu e eu o segui, vi quando saiu da pista e entrou
no terreno baldio, acompanhei de longe. Quando você
entrou nesta casa, fiz o mesmo, estava disposta a descobrir
a verdade.
Seu tom era de dor e decepção.

[ 177 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Ouvi uma parte da história do seu passado. Uma


história comovente que sempre escondeu de todo mundo.
Mas você mentiu para a bonequinha cheirosa. Não contou
tudo, não contou para a piranha que tem uma mulher?
Não contou que a mulher se chama Bete? Não, isso você
não podia contar, teve medo de perdê-la. Sem problema,
eu conto!
Virou-se para Jane que tremia apavorada:
— Sou a verdadeira mulher de Canivete e estamos
juntos há muito tempo, tá sabendo? Não pense que ele é
um homem livre! Canivete é meu, cadela! Somente meu!
Apontou a arma em direção a Jane.
— Não, Bete!
Ela atirou assim mesmo. Jane tombou sobre o
tapete.
— Jane! Fale comigo, pelo amor de Deus!
Canivete tentou reanimá-la de todas as formas. Ela
balbuciou algumas palavras.
— Foi... melhor assim... - fechou os olhos, estava
viva, mas sangrava muito.
— Vou levá-la ao hospital!
— Não... precisa, estraguei a sua vida mais uma
vez, me perdoe Tomás!
Foram as últimas palavras.
“Chorei desesperado e, por um momento, esqueci
de Bete, que chorava no canto, ao lado da porta. Jane era
mais uma pessoa amada que partia da minha vida. A

[ 178 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

tragédia era a marca da minha realidade, o meu lema


eterno”.
— Queria roubar o meu homem, não é cadela?
Roube agora, que eu quero ver! - continuava de arma em
punho, soluçava sem trégua.
— Maldita!
Ele a encarou com ódio, mas ela não teve medo,
estava decidida a ir até o fim.
— Nem tudo se acabou, meu querido. Eu também
sonhei muito na vida e virei puta. Antes eu queria ser uma
médica, imagine, nunca fui à escola e sonhava virar gente
grande! Pois é, somos da mesma lama, e agora não te
quero mais, estou estraçalhada, por dentro e por fora, e a
culpa é sua! Eu sempre me dediquei a você, se doía a
cabeça, se gostou do café, se a comida não estava salgada,
lavava, passava, tudo. Fui a sua escrava durante sete anos
e você ia embora com essa perua, sem se importar com
nada! Eu não te quero mais! Nunca tocará num fio de
cabelo meu, eu também vou partir e levarei comigo o
nosso filho!
Mordeu os lábios. Não queria revelar aquele
detalhe, mas era tarde demais.
— Estou grávida! - gritou em pranto - o meu filho
irá comigo, você não gosta de crianças e nunca quis ter um
filho!
— Bete...

[ 179 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Eu ouvia as palavras daquela mulher machucada


pela vida. Por alguns segundos, esqueci do corpo inerte de
Jane, a poucos metros da cama. Tentei aproximar de Bete,
mas ela não permitiu, ameaçou com a arma:
— Não se aproxime! Eu tenho coragem de atirar em
você! Não chegue perto de mim! Adeus Canivete, saiba
que ninguém te amou nesse mundo mais do que eu!
Bete estava fora de si. Quando vi que ela ia cometer
uma loucura, avancei em sua direção, tentei arrancar a
arma, mas ela relutava e num raio de segundo o disparo: o
tiro acabou acertando seu ombro. Ela caiu, sangrando,
mas viva. Estava ofegante.
— Traidor! Me deixa morrer!
— Sua louca! - tomei a arma e gritei revoltado - por
que você não me contou tudo? Nosso filho... não, não
posso acreditar...
— Eu... eu... – ficou pálida, tentou falar alguma
coisa, mas acabou desmaiando.
Estava diante das duas mulheres mais importantes
da minha vida. Bete, uma tábua de proteção, uma parede
de apoio, um sim a todo o momento. A outra, Jane, meu
primeiro amor, a suave ternura que deu novo rumo à
minha tumultuada vida. No centro daquela dor, dois
espectadores, Tomás ao lado de Jane e Canivete ao lado de
sua adorável Bete... Percebi que Canivete se despedia
também, e como num passe de mágica, ele foi sumindo

[ 180 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

numa espécie de cortina de fumaça. Em seu lugar


permaneceu a esperança: o verdadeiro Tomás”.
Os carros da polícia apitavam de todos os lados e
Canivete não fez o mínimo gesto para fugir. Permaneceu
no mesmo estado de passividade, alheio a tudo e a todos.
Os homens fardados entraram e o algemaram. Dois
homens examinaram as mulheres. Disseram em seguida:
— Hospital, urgente! Temos que levá-las!
“Foi a última vez que vi as duas mulheres da minha
vida”.

[ 181 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Quinze

Aprendi a saborear as palavras, a ler a


existência e a rever a cultura da
resistência.

“Passaram cinco anos desde aquele dia. Estou preso


e para passar o tempo, escrevo coisas que me povoam a
mente. Coisas de um passado distante, mas que
permanece vivo na memória. A minha batalha ainda é
árdua, luto para que Canivete desapareça e Tomás
recupere seu lugar definitivamente. Um duelo existencial
que carrego dentro, desde o maldito dia que o meu pai me
matriculou na escola do crime...
Não sou alegre nem triste, às vezes, sou feliz do
meu jeito, se é que se pode chamar de felicidade a prisão,
as grades, a comida sem gosto, o pão velho com café
requentado, o cheiro de urina e as conversas corriqueiras
entre os companheiros de cela. De certo modo, a
monotonia, o cotidiano, a prisão, contribuíram para o meu
reconforto. Aprendi a ter consciência que eu quero ser
Tomás, talvez por isso, o desespero não tenha tomado
conta inteiramente da minha vida. Observo as aranhas,
faço orações e escrevo algumas memórias no caderno que
ganhei do pessoal da Pastoral Carcerária. Não posso dizer

[ 182 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

que estou sofrendo aqui, foi exatamente neste lugar


chamado prisão, que aprendi o significado da palavra
liberdade”.
Canivete estava vivendo o seu último ano naquele
lugar e, ironicamente, foi o período de maiores novidades.
Até então, vivia o trivial, a mesmice, as conversas
corriqueiras, os planos de fuga e assim por diante... Mas,
nesse último ano, alguns fatos entraram como novos
capítulos da sua atribulada história de vida.
Tudo começou com o movimento religioso. Na
prisão, o assunto era um só, o trabalho pastoral da Igreja.
Era um grupo de pessoas comprometidas com a
evangelização nos presídios. Realizavam palestras, teatro
popular, celebrações e dinâmicas de entrosamento entre
os presos.
“Um colega nos contou que isso tinha virado moda.
Toda semana tinha representantes religiosos. Alguns
estavam interessados apenas no crescimento da igreja,
para estes, o espaço da prisão era a estratégia perfeita:
pregavam a salvação das almas que se achavam
perdidas”.
Tinha preso que ficava fascinado, virava pregador e
lia a Bíblia noite e dia; outros, simplesmente fingiam que
estavam tocados pela fé e por aí vai. Entretanto, havia
trabalhos interessantes, um deles era desenvolvido pela
Paróquia Nossa Senhora das Dores, localizada na
periferia. Era um grupo de oito pessoas, assessorados pelo

[ 183 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

jovem padre Thiago, um líder religioso que se tornou


popular na prisão, por conta do seu carisma cativante. Era
o assessor espiritual da Pastoral carcerária da paróquia e
modo como desenvolvia as atividades no presídio,
prendia a atenção de todos. Aos poucos ele foi
conseguindo adeptos, tinha seguidores por toda parte.
Falava de um Jesus vivo, próximo dos encarcerados,
propenso a abrir os braços e a compartilhar as dores da
reclusão.
“A minha relação com o pessoal da Pastoral não foi
algo instantâneo. Eu costumava observar as amigas
aranhas, enquanto aguardava meu último ano ali. A pena
estava quase no fim, o que deixava antecipadamente
preocupado, não sabia o que me esperava, nem como seria
a vida, depois que saísse da prisão”.
Na cadeia, muitos presos vão perdendo o
referencial e quando estão próximos da liberdade, passam
a viver o dilema do depois, pois sabem que não há
ninguém para recebê-los. Há o mundo desconhecido e o
ex-detento não sabe como penetrar nesse espaço. Ali, o
medo do recomeço, era o fantasma que os sondava o
tempo inteiro. Alguns presos entravam em depressão e se
matavam alguns dias, após a saída do cárcere. Outros,
desenvolviam transtornos mentais, e muitos, infelizmente,
voltavam à vida do crime. A saudade do tempo de
reclusão, era um sentimento contraditório, mas explicável.
A prisão e todas as suas adversidades, era o lugar onde

[ 184 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

todo mundo se conhecia, os assuntos, o medo, a revolta e


o sofrimento eram coletivos.
Quando o preso deixa a prisão, penetra num
mundo estranho. Ao sair, a primeira sensação que
experimento tem gosto amargo, como se tivesse entrado
num lugar, onde as pessoas falavam outra língua, vestiam
outras roupas, comiam outras comidas, olhavam com
desdém... O ex-detento sente uma profunda angústia,
pois, dentro de si, habita a sombra delatora do medo,
como se as pessoas soubessem tudo a seu respeito: o que
fazia, o que pensava e, a cada gesto, a cada olhar, a
advertência: “eu sei quem é você”. E assim, aqueles
olhares ressentidos, continuam a expulsar os presos da
cidade, encarcerando-os na sarjeta, e ali, o antigo mundo
do crime, os acolhe de braços abertos.
“A primeira vez que conversei com o padre Thiago,
foi por mero acaso. Ele estava passando, quando um dos
presos o abordou com evidente malícia:
— Padre você é lindo! É um desperdício ficar
sozinho...
Ele sorriu e respondeu sem qualquer
constrangimento:
— Nunca fico sozinho. Jesus está comigo.
— Jesus tem sorte... – provocou o preso.
O padre ficou sério por alguns segundos, depois
tocou o ombro do rapaz e disse:

[ 185 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— A vida não se acaba aqui, você também não está


sozinho. Jesus te ama, incondicionalmente, nunca se
esqueça disso.
O rapaz se calou, encarou o padre, como se fosse a
primeira vez. Em seguida, a lágrima desceu e ele,
apressadamente, limpou os olhos e se afastou, enfiando-se
no meio dos outros. Ninguém entendeu, mas, daquele dia
em diante, o preso não voltou a assediá-lo.
Eu assistia a tudo, sentado na soleira do pátio,
enquanto fingia que lia o folheto da pastoral. Ele se
aproximou. Fiquei um tanto sem graça. Sempre fui do tipo
calado, criei uma redoma e só permitia que as aranhas
entrassem ali.
— Gosta de ler? – perguntou, agachando-se ao meu
lado.
— Um pouco...
— Notei que você é de pouca conversa...
— É o meu jeito, estou em pecado?
Indaguei de modo sarcástico, olhando-o
furtivamente. Em seguida, pendi a cabeça e voltei os olhos
para o informativo.
— Não gosta de conversar?
— Não tenho o que conversar.
— Podemos tentar...
Levantei-me bruscamente. Ele permaneceu
sentado.
— Só mais uma coisa: qual o seu nome?

[ 186 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Pensei em dizer meu verdadeiro nome, mas num


impulso respondi:
— Canivete.
— Não gosto muito de apelidos.
— Por quê? – indaguei e, quase sem perceber, voltei
a sentar no mesmo lugar.
— Penso que os apelidos ajudam a perder a nossa
identidade...
Fiquei pensando no meu apelido, “Canivete”, a
marca de batismo que o meu pai deixou como herança. O
garoto que crescia magro feito um caniço, como uma
lâmina afiada, um canivete amolado... Enquanto Tomás
era esquecido, Canivete crescia, tomava corpo, ganhava as
ruas.
O padre continuou:
— Uma vez, ainda garoto, li um texto interessante
na escola, extraído da obra de Érico Veríssimo, intitulado
“As aventuras de Tibicuera”.
Fez um breve silêncio, acho que buscava alguma
chance de fomentar o diálogo.
— Tibicuera? – indaguei curioso.
Era a deixa para a sequência, que agora tinha a
minha atenção.
— Sim, era o nome do indiozinho. Significa
cemitério na língua tupi. O apelido pegou, e o índio ficou
assim conhecido.
— Por que Tibicuera?

[ 187 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Porque ele nasceu raquítico, um anjo da morte,


mas sobreviveu. Ainda trago na memória a narrativa.
Quer ouvir?
— O senhor é quem sabe...
No fundo eu estava repleto de curiosidade. Ele
começou a narrar de forma emocionante. Eu me senti
novamente com oito anos, quando descansava a cabeça no
colo da minha mãe, enquanto ela contava as mais lindas
histórias...
O padre Thiago conseguiu prender a minha
atenção e eu escutava a comovente história do índio
Tibicuera, que nasceu na tribo Tupinambá. O indiozinho
nasceu raquítico, quase morto. O pai decidiu sacrificá-lo,
jogando-o no mar. Porém, não teve coragem de cometer o
ato. Voltou para a tribo chorando e entregou o bebê à
mãe-índia.
Fiquei tocado de emoção, como se fosse a minha
história, Tibicuera era o meu retrato, a minha família
estava naquela narrativa. Apertei os olhos, tentei evitar,
mas as lágrimas brotaram naturalmente. Envergonhado,
baixei a cabeça, o padre, num gesto amigo apertou a
minha mão, deixando-me à vontade.
— Preciso ir. Outro dia a gente volta a conversar –
levantou-se - até logo.
— Padre... – perdi o receio e o encarei, mas não
sabia o que dizer.
Ele sorriu e disse:

[ 188 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— É uma história emocionante. Uma lição sobre o


valor da vida, da essência da vida. O resto não tem tanta
importância...
— O que aconteceu com o Tibicuera?
— O que acha que aconteceu? Tibicuera cresceu,
ficou forte, bonito e se tornou um grande guerreiro.
O padre bateu de leve no meu ombro, dizendo:
— Como vê, meu caro, as evidências não querem
dizer muita coisa.
Desta vez o encarei sem qualquer receio. Ele
acabara de ganhar a minha confiança.
— Padre...
— Sim?
— Meu nome é Tomás.
— Muito prazer Tomás. Eu voltarei e lembre-se:
Jesus te ama.
E saiu. Foi o começo de uma grande amizade. O
padre Thiago sempre dava um jeito de conversar comigo.
Nas suas visitas, deixava um livro, um jornal, uma oração.
Eu já sabia que ele vinha e ficava feliz, tinha alguém lá
fora. Naquele jovem eu conseguia ver a minha família, os
meus amigos, as minhas referências”.
Na cela, os companheiros notavam a transformação
de Canivete, estava mais falante, sorridente e aos poucos
deixava de lado o mau humor. As costumeiras crises de
dor de cabeça sumiram como fumaça e ele voltou a sentir
o cheiro bom da vida.

[ 189 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Canivete está todo prosa, só falta seis meses... –


comentavam.
— O cara mudou da água pro vinho!
— Fica pensando que lá fora é o paraíso!
— Ainda vai comer o pão que o diabo amassou.
“Eles não sabiam de nada. A mudança, não era por
conta da proximidade da saída da prisão. Na verdade, eu
nem pensava nisso. Estava diferente por outro motivo, a
pastoral tinha mexido comigo, de uma forma especial. O
padre Thiago ajudou a abrir a janela da minha vida e eu
passei a olhar o mundo com outros olhos. Me sentia leve e
cheio de sonhos, eu era Tomás de corpo e alma, Canivete
era só uma parte do passado que, se não podia morrer,
pelo menos não mantinha qualquer poder sobre as minhas
ações”.
O primeiro livro que Canivete ganhou foi o
Pequeno Príncipe, de Antony Saint-Exupéry, presente do
padre Thiago:
— O pequeno príncipe é uma história de
ressignificação da vida. O príncipe é você Tomás, leia com
carinho e reflita: ainda é tempo de muitas coisas.
Canivete leu e chorou. Depois tornou a ler e já não
chorava, aprendeu a saborear as palavras, a ler a
existência e a rever a cultura da resistência. O medo e o
pessimismo foram banidos do seu coração, o grito de
tristeza seria apenas o eco do aprendizado da dor.

[ 190 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— A lição da dor é única, concreta e eficaz. Há


tantos oprimidos e tantos caminhos – dissera-lhe o padre.
“Foi preciso uma dose forte de confiança, para que
eu abrisse o livro da minha vida para o padre Thiago. Ele
se emocionou. Choramos juntos. Experimentava a minha
dor e procurava, através da oração e do seu comovente
amor cristão, oferecer o lenitivo que eu tanto buscava. O
seu ombro amigo era a personificação de Jesus, um Jesus
que a minha mãe ensinou a amar e que Canivete ignorava.
Um Jesus que se tornou a minha tábua de salvação, o meu
porto seguro”.
Certo dia, o padre Thiago o deixou surpreso com
uma proposta:
— Quando você sair deste lugar, pretendo
acompanhá-lo na sua reinserção social, e penso que você
terá um papel importante na nossa equipe pastoral.
Precisamos de pessoas como você, sensíveis aos
problemas sociais e dispostos a buscar possíveis saídas,
através da organização. Queremos a sua participação no
processo de formação pastoral. Se você aceitar, é claro.
Canivete ficou em silêncio, o padre continuou:
— Nada é por acaso, Tomás. Tenho a sensação que
o conheço de algum lugar e penso que um dia, esse
mistério será revelado. Sinto que você é uma ovelha que
não pode mais se desgarrar.

[ 191 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Canivete tomou coragem e afirmou que também


tinha a sensação que o conhecia, embora não se recordasse
o lugar. O padre o fitou seriamente, afirmando:
— Jesus tem planos e você está presente neles. O
problema é que você sempre buscou a solução de modo
individual, trágico, vingativo... Primeiro, você precisa
alcançar a cura interior, perdoar a si mesmo, limpar as
feridas, lavar a alma de modo lento, mas completo...
depois deve buscar a comunhão.
— O que é cura interior?
— Tenho um amigo, o padre Léo, que descreveu o
sentido da cura interior, como o processo de libertação do
ressentimento, rejeição, autopiedade, depressão, culpa,
medo, tristeza, ódio, complexo de inferioridade e
autocondenação.
“Padre Thiago explicou que as pessoas têm medo
da repressão e da discriminação, lutam para salvar as
aparências. Disse que a primeira gota que precisamos
deixar cair em nosso coração é a gota da sinceridade e da
verdade”.
— Tomás, precisamos admitir as nossas fraquezas,
reconhecer que somos dependentes de nós mesmos, de
pessoas, de nosso passado e de nossos traumas.
— Pelo jeito, é muito difícil alcançar a cura interior
– comentei.
O padre explicou:

[ 192 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— A primeira coisa a fazer é ter a coragem de


tomar nossa vida nas mãos, sem medo e sem condenação.
Percebemos sinais de necessidade de cura, quando nos
descobrimos inseguros, diante da vida.
Canivete lembrou-se da angústia que carregou no
peito, durante anos a fio, das constantes dores de cabeça,
as lágrimas, os pesadelos, o sentimento de culpa, o eterno
conflito entre o bem e o mal, o certo e o errado. Aquela
conversa, de certo modo, o ajudou a voltar-se para seu
interior, sem o olhar da condenação ou da absolvição, mas
de esperança e recomeço.
— Aprenda uma coisa Tomás, a sua luta deve ser a
de resgatar pessoas que, como você, acham que não há
qualquer saída e vivem apenas o lado obscuro da vida.
Você precisa enfrentar a realidade sem máscara, sem
medo, acreditando na esperança. Não tenha medo da sua
imagem, nem se jogue no precipício, acredite em você.
Você tentou reconstruir sua vida após a tragédia, porém
escolheu o caminho errado. Lembra-se da última coisa que
ouviu da sua irmã, antes de morrer?
— Nunca esquecerei, Cida olhou para mim e falou:
“Tomás, você precisa viver”.
— Embora ela não tivesse tempo de explicar, é
possível entender que sua irmã não queria te ver
envolvido com a violência, mas que vivesse com
dignidade, livre e voltado para as coisas boas da vida. Sua
mãe e suas irmãs queriam que você estudasse, encontrasse

[ 193 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

um trabalho honesto, nunca se infiltrasse no mundo do


crime. Cida pediu vida, você preferiu a vingança, a morte.
Cida pediu felicidade, você preferiu a dor, a tristeza. Mas,
Deus não o abandonou, isso é o mais importante. O
recado da sua irmã, ainda é válido, afinal, você
sobreviveu, é jovem, pode recomeçar, e desta vez,
tomando um novo rumo, sem individualismo, cercado de
pessoas que acreditam em você. Recomece Tomás e
acredite no amor, esse amor incondicional, pois ainda é
tempo de semear novos campos.
“E foi construindo momentos mesclados de
conhecimento, esperança e ternura que eu fui me
transformando noutro homem”.

[ 194 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Dezesseis

Ela se despediu e eu rasguei a velha


carta. Chorei mais uma vez.

No dia da visita uma surpresa. A mulher deveria


ter uns 68 anos, estava firme e forte. O rosto moreno, o
olhar caridoso e o sorriso amigo, não deixavam dúvidas.
Trazia nas mãos uma velha bíblia. Canivete nem acreditou
quando soube que tinha visita, mas ela estava ali, na sua
frente, olhos molhados, voz trêmula de emoção. Ele ficou
em silêncio, sem saber como proceder. Ela sorriu da sua
desconfiança e resolveu provoca-lo:
— Lembra-se de mim Tomás?
Aquela voz... O mesmo tom de afetividade atrás de
cada palavra.
— Dona Belarmina...
“Ela me abraçou em prantos, tocou meus cabelos,
meu rosto, cobriu-me de beijos. Por um momento tive a
sensação de que aquela boa senhora era a minha mãe, que
veio de longe, visitar o filho perdido”.
— Tomás... você está vivo!
— Graças a Deus! – respondeu sorrindo, limpando
as lágrimas.

[ 195 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Procurei você todo esse tempo e ninguém sabia


de nada. Disseram que tinha fugido do país, que tinha
morrido, numa luta com os assassinos da sua família. Não
acreditei e continuei à sua procura. Até que tive a ideia de
conversar com o pessoal da Pastoral Carcerária. Então o
padre Thiago me falou de você.
“Ele. Mais uma vez ele abriu as minhas janelas.
Afinal quem era o padre Thiago? Por que eu sempre tinha
a sensação de que o conhecia?”
Dona Belarmina continuava falando
animadamente, trazia notícia de tudo e de todos.
— Ele falou que você sair em cinco meses. Que
bom, meu filho! Agora você toma juízo e fica sossegado.
Chega de sofrimento e morte. Vamos sorrir um pouco...
Abriu a bíblia, atrás da parte superior da capa, bem
escondido, havia uma folha de caderno, em várias
dobrinhas, quase imperceptível. Quando os policiais
examinaram o interior da bíblia, não notaram qualquer
estranheza na capa, a boa senhora era só uma serva de
Deus, visitando os necessitados. Quando ficaram a sós, ela
usou a unha para abrir o beiral da capa e retirou a folha.
— O que é isso?
— Eu achei na sua casa. Depois que você se foi,
fiquei zelando do barraco. Limpo todo dia, as coisas estão
no mesmo lugar. Eu sempre achei que um dia você ia
voltar. Agora que está prestes a sair da prisão, penso que
fiz a coisa certa. Você tem casa e carinho, pode acreditar

[ 196 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

meu filho. Um dia, enquanto fazia a limpeza, ao arrastar o


velho sofá, vi a ponta desse papel. Com jeito, puxei lá do
fundo. Tinha essa carta no envelope e um saquinho de
couro, escondido na parte de trás, ao lado das molas.
Guardei o saquinho e trouxe a carta sem o envelope.
Fiquei com medo de criar problemas para você, então
escondi a carta na capa da Bíblia. Se a polícia descobrisse,
nem sei o que seria de mim. Olha, meu filho, quando você
sair, me procure, a encomenda está segura e é sua.
— Do que está falando?
— Tomás, eu sei de tudo. Precisei ler esse papel,
pensei que você tivesse morrido. Chorei muito. Leia
rápido, depois rasgue, é mais seguro.
“Entregou-me a folha, fiquei receoso, sem coragem
de ler. Temia que meu passado estivesse de volta,
justamente agora, quando eu me preparava para enfrentar
o mundo. Mas eu tinha que vencer todos os medos, só
assim, poderia ser feliz de novo. Abri a carta e comecei a
ler, era uma mensagem curta, escrita às pressas, como se o
autor corresse perigo:
“Maria, se acontecer alguma coisa comigo, pegue a
sacola e fuja para bem longe. O nosso sonho de ficar bem
de vida já chegou e nós merecemos isso. Cuide bem de
Canivete e das meninas. Eu não presto e só vou atrapalhar
a vida de todos vocês”.
“Assinado: Sebastião de Jesus”.

[ 197 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

E abaixo da folha, no canto: “Escrito por Antônio


Silva”.
“A carta foi escrita por Toninho troca-troca, esposo
da Ângela, aquela que tinha um caso com o meu pai.
Nunca pensei que ele se prestasse a uma tarefa assim.
Sabia da carta, sabia do conteúdo e nunca falou nada”.
— Ele tinha medo do Pirata... – explicou dona
Belarmina - Não sabia o que tinha na sacola, seu pai não
era bobo, era analfabeto, por isso pediu ao Toninho que
escrevesse a carta. O Toninho era um homem de
confiança, preferiu o silêncio. Morreu fiel a seu pai.
— Morreu?
— Sim, tiroteio no morro. Ele estava passando. Bala
perdida. Foi no começo do ano atrasado, uma coisa triste...
— O que tem na sacolinha de couro?
Ela olhou os lados, certificando-se de que ninguém
os ouvia, depois sussurrou:
— Uma fortuna em joias e alguns maços de
dinheiro.
“Fiquei indignado. Amassei a carta com raiva. Se a
minha mãe soubesse de tudo, não haveria tragédia. Minha
família estaria viva... Por que o meu pai foi tão sórdido,
meu Deus?”
— Ele não podia ter feito isso...
— Tomás, ele não imaginava que seria descoberto,
morreu antes, lembra?

[ 198 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Canivete engoliu o choro e ficou em silêncio. Era


como se ela quisesse dizer: “como você queria que ele
resolvesse algo, se você o matou?”
— Tem razão... – disse um tanto desapontado.
— Pelo que ele afirmou na carta, ia deixar você, as
meninas e a comadre numa situação boa. Ele sabia que
mais cedo ou mais tarde, seria descoberto pelos
bandidos...
— De qualquer forma é sujeira, não quero nada,
não vou me sujar nunca mais!
— Escute meu conselho, Tomás, vou aguardar a
sua saída. A gente conversa e pensa com calma. Não tome
qualquer decisão sem pensar. Agora preciso ir, fique em
paz e não se preocupe, você está cercado de bons amigos.
“Ela se despediu e eu rasguei a velha carta. Chorei
mais uma vez”.

[ 199 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Dezessete

A emoção quebrou a dureza do meu


coração. Choramos juntos.

Ironicamente, no percurso dos últimos meses que


antecedia a saída da prisão, Canivete passou a viver sérias
provações. A primeira foi a entrada da Pastoral na sua
vida, depois a amizade com o padre Thiago e o reencontro
com a dona Belarmina...
“Meu Deus, eu tinha medo de não aguentar tantas
emoções. Depois, com mais calma, pude compreender que
a minha história ainda não tinha terminado. Nas minhas
orações eu pedia discernimento, e uma frase de efeito, dita
pelo padre Thiago, martelava os meus ouvidos, de modo
insistente, tornando as coisas mais claras e reconfortantes:
“Nada acontece por acaso”. Havia naquela frase um misto
de fatalismo, conformismo e a certeza de que cada dia tem
que ser bem vivido, mesmo quando as coisas não correm
do jeito que a gente espera. No íntimo, a certeza de que
outras descobertas viriam, me deixava ansioso, à espera
de boas novas.
Alguns colegas estavam preocupados com o meu
comportamento. Diziam que eu teria que caminhar mais
devagar, para não tropeçar na decepção. Eu tentava, mas a
ansiedade não permitia. Lia com atenção os livros que o

[ 200 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

padre trazia, devorava as notícias dos jornais e buscava


com os olhos, a mente e o coração as novidades. Quando o
pessoal da pastoral chegava, me preenchia naqueles
encontros, palestras, pregações, descobria um novo
mundo”.
Faltava um mês para a liberdade de Canivete.
Naquele dia, teria pregação do padre Thiago, o tema foi
“O perdão e o recomeço”. Fazia um calor intenso, o evento
foi realizado no pátio, ao pôr-do-sol, as atenções estavam
voltadas para o padre e ele estava particularmente
inspirado. Iniciou a fala apresentando alguns exemplos,
que mostravam como Jesus definiu seu projeto de vida e
salvação. Os detentos ouviam atentamente:
— Jesus assume, diante da humanidade física e
moralmente ferida, a função do bom samaritano: socorre,
cura as feridas, pede acolhida. Fez isso com os pecadores
que perdoou e chamou para perto; fez isso com os doentes
que a sociedade da época, considerava impuros; com
pecadores públicos e publicanos que se tornaram capazes
de entrar no céu antes de muitos que se julgavam
virtuosos, mas não tinham compaixão. Teve pena do
povo, porque as pessoas estavam desorientadas como
ovelhas sem pastor. O perdão gratuito é a resposta de
Deus diante da violência. Deus restituiu a plenitude de
direito à pessoa que fez o mal, mesmo sendo culpada.
Tomou um copo d’água, em seguida prosseguiu:

[ 201 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— E por falar em compaixão, vou contar um


episódio que marcou a minha vida e guardo em meu
coração. Era véspera de natal. Eu deveria ter uns oito anos
e a minha mãe tinha acabado de se separar do meu pai. Eu
era filho único, senti intensamente a crise conjugal,
sempre fui muito apegado ao meu pai. Aquele seria o
natal mais solitário da minha vida, eu estava muito triste,
chorava sozinho no quarto e não queria comer. A minha
mãe tentava reanimar-me de todas as maneiras,
finalmente ela teve a ideia de fazermos as compras de
natal. Visitamos diversas lojas. Numa delas, talvez a mais
rica de todas, havia um rapaz caracterizado de Papai
Noel, cujo papel era fazer gentilezas aos clientes, oferecer
doces e brindes às crianças que estavam acompanhadas e,
desse modo, ganhar a simpatia da clientela. Notei que a
poucos metros da loja, havia um garotinho pobre. Ele
ficava observando o entra e sai das pessoas com as
compras de natal, os presentes, os doces, os sonhos... O
papai Noel, fazia questão de ignorar aquele garoto, mas
quando aproximei, ele ofereceu doces e lembranças do
natal. Recebi o saquinho de doces e não pensei duas vezes,
passei ao garoto. A princípio, ele relutou em aceitar e eu
comecei a falar de esperança e do amor de Jesus. Foi a
primeira vez que falei de Deus para as pessoas. Naquele
tempo, eu não era ligado à Igreja, apenas frequentava a
missa aos domingos. Mas, naquele dia, senti algo

[ 202 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

diferente, uma espécie de chama que estimulava a falar de


Deus para aquele garoto. Uma criança como eu...
O padre Thiago fez uma pausa, a voz trêmula,
denunciava o choro, mas prosseguiu:
– A oração foi brotando do meu coração e eu não
controlava. Pedi que ele orasse comigo e juntos rogamos a
Deus: “Senhor, põe em mim um coração novo. Quero ser
feliz, Senhor. Ajuda-me a descobrir minha meta”. Nunca
esqueci aquela súplica sincera que Deus colocou no meu
coração e eu mal sabia o significado. Mas sabia que aquilo
era bom. Amados, quando recordo aquele momento,
alimento a certeza da presença do Espírito Santo em
minha vida e na vida daquele garoto desconhecido.
“À medida que ele falava, um frio foi se
apoderando de mim, senti que o chão desaparecia debaixo
dos meus pés. Aquela comovente revelação foi a maior
surpresa da minha vida. Então o garoto rico era ele?
Nunca saberei descrever o tamanho da alegria.
— Você está bem Canivete? Está pálido como uma
vela!
O padre não percebeu o pequeno tumulto que se
formou ao meu redor e continuou com o testemunho,
esforçando-se para conter a emoção. O momento que
vivera no passado, tinha significado especial.
— Enquanto a gente orava, o mais lindo aconteceu,
o garoto começou a chorar e eu também. Desabafamos as
nossas dores e nos abraçamos, de um modo intenso,

[ 203 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

seguro, confortante. Ele recebeu o saquinho e não


desgrudou os olhos do presente. Afastei-me de fininho,
sem que ele notasse, nem sei por que fiz aquilo, talvez por
conta do nervosismo, impulso ou estava escrito no livro
do destino que seria assim. Nunca mais o vi, não sei o
nome, onde mora, se está vivo ou se morreu. Mas seu
olhar de gratidão, ainda me acompanha e tenho certeza,
que se estiver vivo, ele guarda esse momento no fundo do
coração.
Um grito interrompeu a palestra do padre:
— Canivete está passando mal!
— Desmaiou.
“Quando acordei não entendi o que se passava. A
cabeça doía e no teto a minha aranha estava vigilante.
Aranha, teia, inseto, vida, morte, eu. Tudo estava confuso,
voltei a dormir”.
Canivete não estava só. A pequena aranha assistia a
sua agonia. Era uma aranha diferente, castanho-amarelada
com marcas esbatidas, listas amarelas e pretas. A cabeça
pontuda e as patas alongadas, como tentáculos
estratégicos, emprestavam-lhe um ar de imponência,
tornando-a especial. Era mais do que uma simples
sedentária, na verdade, pouco se assemelhava às aranhas
que costumam ocupar os beirais das casas, varandas e
matas. Aquela não estava ali, apenas para caçar, queria
algo mais, embora o veneno fosse pouco potente, tinha a
habilidade de montar longas teias, perfeitamente

[ 204 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

simétricas, transformando-as em armadilhas pegajosas.


Era uma aranha doméstica, na fase adulta, dava para
notar o abdômen castanho-acinzentado, meio pálido, com
pelos curtos.
Interessante o mundo das aranhas: fazem e refazem
seus fios todos os dias, armam a teia e a utilizam várias
vezes, remendando-a, até que tenham de construir outra.
Produzem lindos fios de seda, por meio de uma estrutura
abdominal, composta de glândulas e fiandeiras. A teia é a
estratégia de sobrevivência das aranhas.
“Eu nunca estudei sobre aranhas, tudo o que sei, é
fruto da curiosidade de quem não tem o que fazer.
Quando eu era pequeno, lembro-me que a Estela tinha um
livro de ciências, de capa dura, forrado com plástico
colorido e a gente costumava brincar de escola. A vida das
aranhas era a parte que eu mais gostava. Cada espécie
descrita, tinha fotografia e eu vivia doido para comparar
as aranhas do livro, com as que eu encontrava no quintal
lá no morro. Era um verdadeiro passatempo, se tivesse
condição, certamente seria um biólogo, estudioso das
aranhas, especialista no assunto. Porém, quis o destino
que eu sequer encerrasse o primário e o sonho acadêmico
se transformasse em teias de desgosto, frustração e
violência. Paciência, a vida tem dessas coisas. Mesmo
assim, nunca me afastei das aranhas, elas estavam em toda
parte, sempre me fazendo companhia e desde pequeno,
gostava de observar a labuta desses bichinhos inteligentes.

[ 205 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

E lá estava ela, quietinha, no centro de uma teia que


se estendia ao alto, no canto superior que dividia as
paredes frias. Aquele bicho solitário era a única
testemunha da minha insônia, a imagem estagnada,
inabalável de uma teia de histórias e conflitos da minha
atribulada vida. Uma teia com uma aranha ao centro e
pronto: estava presente o quadro que eu tinha que
apreciar, muito além da vontade, do cansaço, da dor de
cabeça, da febre, das pálpebras pesadas, do sono e dos
detalhes repetitivos da minha agonia.
Mesmo de olhos fechados, eu a contemplava e nada
era capaz de ofuscar a imagem perfeita: a teia e a aranha
enfatizando minha impotência diante de algo
aparentemente insignificante. Me senti preso outra vez,
entre o passado e o presente, ambos recriando uma
realidade que se agigantava ao meu redor, forçado a
apreciar a mesma rede, cujos fios foram minuciosamente
trabalhados para prender os insetos dos quais se alimenta
a aranha artesã. Naquele momento, eu era o seu inseto
maior, preso na armadilha e prestes a ser devorado sem
qualquer cerimônia.
Certamente, era uma aranha fria, insensível,
calculista e repleta de paciência, guardando meu sono
conflituoso ou talvez tirando a maior onda da minha cara.
Às vezes eu tinha a estranha sensação de que aquele bicho
me espiava furtivamente, como se zombasse de mim,

[ 206 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

apresentando uma espécie de sorriso maléfico, vingativo,


exposto através dos pequenos olhos negros.
Quando eu era criança, apanhava um graveto,
cutucava a aranha-caranguejeira e ela se encolhia, mãos e
pés se enroscavam e se transformava num gozado novelo
peludo. Nunca tive medo, mas a minha mãe reclamava:
— Tomás, se o pelo venenoso desse bicho cair no
olho vai te cegar.
Era tanta ameaça que eu abandonava a danada e ia
inventar outra novidade. Quando alguém lá de casa
aparecia com herpes no cantinho da boca, mamãe
apresentava uma explicação pouco convincente:
— Isso é boqueira, vai ver foi a aranha que passou e
deixou o seu rastro!
Lá em casa tudo era culpa da aranha:
– Bicho metido a besta que invade a casa e se
espalha no telhado e na parede! – reclamava a mamãe.
As queixas não adiantavam, a aranha voltava,
renascia, sei lá como, e demarcava seu território. Vivíamos
debaixo do mesmo teto, por determinado tempo. Até a
minha mãe fazer a faxina. Aí a coisa era dramática, ela
começava espiando cada detalhe do telhado, buscando
moradores intrusos. Pobre aranha! A construção de fios
perfeitos estava perdida. A teia que o bichinho
cuidadosamente tecia foi destruída em segundos. A
vassoura que a mamãe usava, transformou o lar da artesã,
num monte de fios entrelaçados. Porém, antes de se dar

[ 207 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

por vencida, a aranha escapava em disparada, e quando


encontrava a saída pela porta dos fundos, prestes a
alcançar a liberdade, lá estava o delicado pezinho da
minha irmã mais nova, pronto para esmagar a pobre em
mil pedaços. Era o fim da história da aranha, os humanos
venciam outra vez.
Agora estava diante de uma aranha diferente: forte,
livre, maior e, certamente, mais sensata do que eu - um
simples imbecil que gasta horas a fio a pensar na vida
desse bichinho. Pobre de mim, querendo ser mais que
gente! Efeito homem-aranha? Quanta piração, meu Deus!
Eu só queria uma coisa: dormir e não permanecer
condenado a observar uma estúpida aranha pendurada no
teto.
Aos poucos, as coisas voltaram ao normal.
Passaram-se quinze dias, dentro de mim, o dilema: contar
ao padre que o garoto era eu? E se ele não acreditasse? Eu
não queria dar a impressão de estar forjando uma
oportunidade de promover-me, usando a consideração do
padre e garantir todo apoio, quando deixasse a prisão.
Isso não, era melhor deixar as coisas como estavam. Foi
um momento inesquecível do passado, talvez o mais
bonito e o segredo o tornaria especialmente mágico.
— Fiquei sabendo que você esteve doente... – disse
o padre.
— Um mal-estar súbito, já passou, estou bem...

[ 208 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Eu estava sem graça, a frieza foi uma estratégia


para proteger-me.
— Disseram que foi durante o meu testemunho...
Havia um tom enigmático em sua fala. Será que ele
desconfiava?
— Fui ouvindo o senhor e aos poucos senti as vistas
embaralharem, ficou tudo confuso, depois não vi nada
mais...
— Não se lembra da minha história?
Comecei a ficar receoso: por que ele insistia? Tentei
evitar qualquer ênfase que o levasse a desconfiar:
— Pouca coisa... falava do seu encontro com um
garoto no natal, acho que foi isso.
— Aquele encontro foi decisivo para despertar a
minha vocação. Depois daquele encontro, tornei-me
estudioso, sorridente e atencioso. Os meus pais ficaram
preocupados, achavam que eu estava fazendo tipo, coisa
de menino revoltado com a separação. Comecei a ir à
Igreja com maior frequência, fazia parte do grupo de
coroinhas e todo natal eu voltava à loja, tinha esperança
de rever o garoto, mas ele nunca estava por lá.
— Pode ser que o tenha visto e não reconheceu. São
tantos garotos famintos espalhados pela cidade, além
disso, pobre é tudo igual, tem a mesma cara, os mesmos
olhos pidões, os mesmos farrapos.

[ 209 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Não é bem assim, ele deixou mais do que uma


simples imagem, deixou a sua energia. Se o encontrasse,
mesmo tendo passado tanto tempo, o reconheceria.
Num ímpeto quase revelei a verdade. Mordi os
lábios, não deixaria a emoção tomar conta da razão. Disse-
lhe com firmeza:
— As pessoas mudam, o garoto pode ter virado
bandido, pode ter sido assassinado, pode estar preso...
— Ou talvez tenha se dado bem na vida, casado,
empregado, com mulher e filhos...
— Por que deseja reencontrá-lo?
— Na verdade, não pensava mais nisso. Acontece
que tive um sonho curioso e trouxe de volta o garoto.
Sonhei que estava viajando numa estrada de chão. Era
uma estrada longa, o sol intenso atrapalhava a visão. Em
dado momento, avistei um rancho coberto de sapê,
paredes de barro socado com varas. Uma visível pobreza.
Parei o carro e entrei. Não havia ninguém. Ouvi um
barulho estranho, vindo do único quarto. Era um menino
amarrado na cama, cercado de aranhas. Algumas estavam
penduradas no teto e centenas circulavam sobre o corpo
do menino. Ele tinha as mãos amarradas na parte superior
da cama e não podia espantar os insetos. Quando ele viu
que era eu, começou a sorrir e da boca saíam novas
aranhas. Depois, tudo mudou, não havia qualquer aranha,
só o menino deitado, dormindo feito um anjo. Quando me
aproximei, ele acordou, abriu um lindo sorriso e disse:

[ 210 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“você ainda não sabe, mas estou muito perto de você”.


Acordei, banhado de suor e desde então, voltei a pensar
no garoto.
Ficamos em silêncio. Resolvi romper com qualquer
forma de esperança:
— Parece mais um pesadelo. Quer um conselho
padre Thiago? Esqueça essa história, viva a sua vida. Não
é isso que sempre diz? O passado é apenas uma história
que já aconteceu. Feia ou bonita, fez sua parte, o presente
é mais importante.
— Mas é preciso conhecer o passado para
compreender o presente.
— Por que está me dizendo essas coisas?
— Não sei, talvez porque você é uma pessoa de
confiança...
— Desculpe, padre, eu queria ficar a sós, a cabeça
voltou a doer.
— Tudo bem. Voltamos a nos falar outro dia.
Ele sabia de tudo. Não havia como escapar.
— Padre...
— Pois não.
Estendi-lhe a mão. A oração saltou dos meus lábios.
Ele sorria e chorava ao mesmo tempo. Oramos juntos
como naquele dia:
— Senhor, põe em mim um coração novo. Quero
ser feliz, Senhor. Ajuda-me a descobrir minha meta.
Disse, num fio de voz:

[ 211 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Aquele garoto era eu!


Ele sorriu com bondade e novas lágrimas brotaram
dos seus olhos.
— Eu sei.
— Como tinha certeza?
— O sonho foi a revelação que eu precisava. Você
sempre falou da predileção pelas aranhas. Quando
acordei, disse para mim mesmo, “é ele, o Tomás é o garoto
que eu conheci”. Foi uma grande descoberta, a mais
gratificante da minha vida. E pensando bem, você não
mudou tanto assim. Ainda carrega certa aflição no olhar e
a mesma ternura no sorriso. Que bom que não foi um
sonho. Você existe de verdade...
A emoção quebrou a dureza do meu coração.
Lembrava-me de todos os detalhes:
— Quando levantei os olhos e não mais o vi, tive
uma sensação esquisita. Voltei para casa com a minha mãe
e nas mãos o saquinho de doces. Escondi essa história de
todos e até de mim, queria acreditar que era mais uma das
minhas invenções, eu sempre fui muito criativo. Aquele
foi o único natal feliz da minha vida. Depois dele, vivi o
desespero, a dor e a revolta...
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Depois
ele me estendeu a mão, dizendo:
— Estou muito feliz com o fim desse mistério.
— E agora?
— Como assim?

[ 212 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Você queria saber a verdade, agora sabe. O que


pensa fazer?
— Sabe por que eu queria saber a verdade?
— Não faço ideia...
— Eu tinha uma dívida com aquele garoto. Depois
daquele encontro, minha vida mudou e você foi
responsável por isso.
— Padre, não diga isso, eu não passava de um
garoto maltrapilho, que vivia espiando comida de rico.
Você teve compaixão, deu uma migalha da sua comida e
depois sumiu no mundo.
— Foi mais do que um simples encontro. Sempre
que eu tinha dúvidas, a sua imagem aparecia e eu tinha a
sensação que deveria abraçar a minha causa, em defesa
dos oprimidos. É óbvio que tem o dedo de Deus nessa
história, mas a minha fé foi alimentada pela imagem do
descaso, da negligência social, do medo, da fome, da
violência e tudo isso estava estampado no seu rosto.
Depois que me ordenei sacerdote, optei pelos trabalhos
pastorais e mais uma vez, fiquei pensando: a Pastoral
Carcerária é um desafio e sem perceber, veio a lembrança
do nosso encontro.
— Na sua cabeça eu teria crescido e virado
bandido, estaria atrás das grades ou talvez, morto, com a
boca cheia de formigas...
— Não, embora este, seja o destino de centenas de
crianças como aquele garoto. Você sabe melhor do que

[ 213 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

ninguém. Você é aquele garoto! A minha opção pela


Pastoral Carcerária teve outro elemento motivador. Um
colega relatou que o padre Luiz Roberto Teixeira Di
Lascio costumava visitar algumas prisões. Certa vez,
enquanto visitava um preso do Pavilhão 9 da Casa de
Detenção do Carandiru, viu uma cena inesquecível. A
entrada de uma senhora de 60 anos, simples, cabelos
grisalhos, rugas no rosto, andar calmo, meio curvada,
semblante sereno, carregando uma sacola. A senhora
dirigiu-se até o banco onde estava sentado um jovem de
uns 24 anos. Ele a acolheu com carinho e ela o acolheu
com gestos de amor materno. O padre ficou admirado
como aquela mãe demonstrava acolhimento, alegria,
amor, como seu olhar para o rapaz era terno e como ele se
sentia reconfortado. No abraço que eles trocaram para se
despedir, Deus estava presente. Um outro preso que era
visitado pelo padre, percebeu a sua admiração diante
daquela cena, e disse: "Sabe, padre Luis Roberto, aquela
senhora não é a mãe dele, mas a mãe do rapaz a quem ele
matou. Ela prometeu, no dia do enterro, que o perdoava.
Como sinal desse perdão, ela o acompanharia com amor e
assistência, enquanto ele estivesse na prisão".
Fez uma pausa. Bateu de leve no meu ombro.
— É claro que eu tinha esperança de um dia poder
reencontrá-lo e fazer como aquela boa senhora: apresentar
a esperança, o perdão e o amor de Deus. Não fugirei,
como o fiz naquele dia, serei uma presença concreta,

[ 214 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

verdadeira e leal. Quem sabe, se eu não tivesse fugido


daquele jeito, as coisas seriam diferentes. Perdoe-me
Tomás.
— O senhor era só uma criança. Não deve se
culpar... E depois, acredite, aprendi tantas coisas com o
senhor. Aprendi a ver o lado bom da vida e a acreditar na
esperança. A pastoral ajudou-me a ser um novo homem e
o senhor é parte fundamental nessa transformação.
— Sabe Tomás, eu acredito na Pastoral. Ela
representa, de maneira admirável, a imagem de Jesus que
vem salvar e morrer, sem nada receber. É a presença da
Igreja nos cárceres, repetindo continuamente a indagação:
o que Jesus faria ou diria nessas situações? Como trataria
essas pessoas?
— Um trabalho admirável.
Fez uma pausa, consultou o relógio. Preparou-se
para sair, mas eu tinha algo a dizer:
— Uma vez sonhei que a gente tinha se
reencontrado. Foi depois que perdi minha família, um
sonho lindo. Nos encontramos na mesma calçada e
quando perguntei seu nome, o garoto abriu um sorriso e
respondeu: eu sou o menino Jesus.
Ele apertou os olhos, tentando reter a lágrima. Não
disse nada, despediu-se com um sorriso”.

[ 215 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Dezoito

Eu sou o homem aranha

Era a véspera da despedida da prisão. Canivete


passou a noite em claro, mil pensamentos tomavam conta
da sua mente. Pensava, especialmente, nos amigos presos
que ainda ficariam por algum tempo.
Canivete aprendeu que o tempo de reclusão,
permitiu que ele entendesse o sentido de empatia. Não
pensava na culpa daquelas pessoas, o que fizeram, o
tamanho do crime... A reclusão cria e recria outros valores,
outros conceitos.
“Será que só fizemos o mal à sociedade ou fomos,
também, vítimas das suas armadilhas? Não sei. O que sei
é que deixo amigos que eu conheci daquele jeito e daquele
jeito permanecem. Quem sou eu para julgá-los? Eu sou
parte dos capítulos da história de todos eles. Eu sou um
pouco daquela história e mesmo que passe um, dois ou
mil anos, carregarei a marca daquela cela, daquelas
grades, daquele povo, daquelas aranhas.
Quanto a mim, uma certeza: não estaria sozinho.
Dona Belarmina cumpriu a promessa, passou a me visitar
diversas vezes, sempre com o mesmo sorriso, a mesma
ternura e o eterno olhar de compaixão. Na véspera trouxe
novas roupas, cheirosas, dobradas e engomadas com o
capricho de toda mãe ansiosa”.

[ 216 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Quero você bonito lá fora e nada que lembre esse


lugar - disse enquanto me entregava a sacola.
— Não precisa se incomodar.
— Amanhã bem cedo, depois que sairmos daqui
você vai se encontrar com o padre e mais duas pessoas.
— Mais surpresas?
— Desculpe-me, Tomás, eu não devia ter
comentado. Oh! Língua danada!
— Agora eu quero saber.
— Paciência, disse em tom de brincadeira, amanhã
será outro dia. Agora preciso ir, o padre ainda quer falar
com você.
— A senhora e o padre, querem me matar do
coração? Como suportar tanto suspense, segredos e
medos?
— Até amanhã, querido!
Pouco depois, Canivete estava diante do padre.
— Não gosto muito do jeito como as coisas estão
acontecendo... Dona Belarmina disse que amanhã duas
pessoas estarão à minha espera. Quem são elas?
Ele ficou sério.
— Ela não devia ter mencionado, era nosso
principal segredo.
— Não acha que está brincando demais com a
minha vida?
— Tomás, nada que estamos fazendo vai te
prejudicar, tenho certeza que ficará feliz quando

[ 217 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

encontrar-se com as pessoas. Tenha paciência, meu amigo,


você esperou cinco anos, um dia a mais, não fará
diferença.
— Pelo visto, minha vida está em suas mãos.
O padre alterou o tom da voz, visivelmente
ofendido:
— Tomás, sabe por que meus pais se separaram?
Papai descobriu que a minha mãe o traia com o melhor
amigo. Ficou desesperado e nos abandonou. Depois,
reconsiderou o fato, a minha mãe se arrependeu, disse que
o amava e que a nossa família era a coisa mais importante.
Dois anos depois, voltaram a se desentender. Mamãe
pediu a separação e o meu pai entrou em depressão. Uma
tarde, quando voltava do colégio, encontrei o meu pai
morto. Ao seu lado várias caixas de tranquilizantes. Quase
fiquei louco, mas a mão de Deus me amparou e eu
sobrevivi.
Ele ficou em silêncio por alguns instantes, depois,
encarou Tomás:
— Você não é o único que tem uma tragédia para
contar, não é o único que sofre. Naquele momento, eu
também não tinha ninguém. Minha mãe ficou com tanto
remorso, que até hoje não se recuperou. Já esteve em
diversas clínicas e mesmo assim, vive tendo crises de
depressão. A morte do meu pai não foi o único episódio
triste, ainda existe o calvário da minha mãe.
— Eu sinto muito.

[ 218 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Ah! Como eu gostaria de ouvir alguém dizendo,


que tudo o que passei, foi um sonho mal, que meu pai não
se matou, que a mamãe está bem, que ainda somos uma
família feliz. Por isso, Tomás, tudo que eu faço por você,
faço por mim. Digo o que eu gostaria de ouvir, dou aquilo
que gostaria de receber. Busco minha paz na paz do meu
irmão que sofre e isso não é para me promover, não sou
nenhum santo, não espero nenhum prêmio. Sou uma
pessoa que acredita que qualquer ser humano tem direito
ao perdão e pode recomeçar. Como a fênix, nos
transformamos em cinzas para, em seguida nos
reintegrarmos, nos ressignificarmos. Eis aí, a nossa
transfiguração. Mas se você faz tanta questão, contarei
tudo.
— Não, por favor, eu sou um idiota, agi como um
egoísta. A dona Belarmina não teve culpa de nada.
Perdoe-me, meu bom amigo!
— Eu o entendo, o segredo gera ansiedade, mas eu
não gostaria de quebrar a minha palavra. Não se
preocupe, será algo maravilhoso, tenho certeza.
“Pensei que seria mais uma noite em brancas
nuvens, mas dormi bem. Acordei com uma paz de espírito
muito grande. A despedida não foi fácil. Eles estavam
tristes e calados. Gostavam de mim, nunca me fizeram
mal, sempre me defenderam, foram meus irmãos, pais,
amigos. Na prisão vivemos uma parte das nossas vidas,
não havia máscaras, hipocrisia ou falso moralismo. Não

[ 219 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

éramos felizes, é certo, mas aprendíamos a suportar o


isolamento e a juntar pedaços de um quebra-cabeça
chamado reclusão”.
Porém, apesar de todas as provações e
humilhações, Canivete nunca pensou que sentiria saudade
daquele lugar. Entretanto, naquele dia, experimentou uma
emoção diferente, conflituosa, como se parte dele não
quisesse sair nunca mais daquela prisão.
— Valeu... – disse Bado.
Bateu de leve no seu ombro e se afastou. Os outros
fizeram o mesmo. Não havia palavras, mas o silêncio dizia
tudo. Foi uma despedida dolorosa e todos choraram.
“Eu estava deixando meus irmãos e uma parte da
minha vida. Eles ficaram atrás das grades e eu não podia
fazer nada. Segurei fortemente a alça da bolsa e fui
caminhando pelos corredores, sem olhar para trás. Na sala
da recepção, dona Belarmina me aguardava.
— Meu filho... – ela estava emocionada.
— E a surpresa?
— O padre nos aguarda.
Saímos. O padre estava ao lado do carro, à sombra
de um belo jequitibá. Segurava um pacote.
— Tomás, bem-vindo à liberdade.
Eu continuava sem ânimo. Uma sensação de vazio
tomou conta de mim.
— Eu... não sei o que dizer.
— Padre, o Tomás perguntou sobre a surpresa.

[ 220 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Sei... tome, abra esse pacote.


Recebi o embrulho.
— Não vai abrir? – indagou dona Belarmina.
Abri o pacote e deparei-me com um cheiroso bolo
de coco.
— Esse é meu bolo preferido...
— Eu sei – disse o padre, calmamente.
— A última vez que comi um bolo assim, foi
quando morava com... – parei emocionado.
O passado voltava a tocar na memória. Senti o
cheiro bom do café torrado e a fumaça dançante que subia
da caneca.
— Você se lembrou da Bete, não é verdade? –
perguntou o padre.
— Sim, ela fazia esse bolo, toda vez que eu estava
triste e saudoso. A minha mãe também gostava de bolo de
coco.
Estava tão envolvido por aquela nostálgica saudade
que esqueci de perguntar o principal.
— Quem trouxe o bolo?
— De vez em quando, nos dias de visita, você
costumava receber bolo, pão, canjica, e assim por diante,
não é verdade? – perguntou dona Belarmina.
— É verdade, todos ficavam intrigados com os
presentes e eu não sabia quem levava. No começo, fiquei
cismado, tinha medo de comer, depois acostumei.
Conhecem essa pessoa?

[ 221 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Eles se entreolharam, como se estivessem


certificando se contariam tudo. O padre não se fez de
rogado. Abriu o jogo.
— Você vai se encontrar com duas pessoas muito
importantes. Elas estão na minha casa e esperam por você.
Não posso dizer nada mais, foi o meu compromisso.
— Só uma dúvida: eu conheço as duas pessoas?
— Uma você ainda não conhece, a outra faz parte
da sua história.
— Vamos? – apressou-se dona Belarmina.
Entramos no carro do padre e fomos. Eu estava tão
nervoso com o suspense, que nem reparei na cidade, nas
casas, nos prédios, nos carros. Nem tive tempo de espiar
os primeiros sinais da liberdade, estava em busca de mais
uma peça do quebra-cabeça que o destino fizera da minha
vida. No interior do carro, o silêncio nos dominava. Dona
Belarmina preferiu sentar-se ao meu lado, no banco
traseiro. De vez em quando ela alisava a minha cabeça.
Seu afago, repleto de amor, era o sinal para que eu tivesse
paciência.
Foi a viagem mais longa da minha vida e eu sofri
revirando a mente, em busca da lista de nomes do
passado. Almejava possíveis pistas que ajudassem a
explicar aqueles mistérios. Inútil, não havia ninguém.
De repente, começou a bater no vidro uma fina
neblina. O padre sorriu.
— Tempos quentes, disse ele.

[ 222 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Indiferente a tudo, eu não via a hora de chegarmos.


Nem a chuva foi capaz de afastar a ansiedade. Parecia que
não ia chegar nunca, mas chegamos. O carro entrou numa
simpática rua, ao lado da subida do morro. A casa
paroquial ficava em frente à pracinha e as bonitas árvores
faziam a beleza campestre do bairro. Era só levantar os
olhos para perceber o morro como o cartão postal da
periferia, ilustrando uma realidade que eu conhecia. Mas,
quando os olhos baixavam, estávamos diante de uma
pacata cidade do interior, cujo centro era a pracinha, onde
as crianças brincavam e os adultos jogavam dominó.
Tinha banca de jornal, um coreto e, mais acima, na parte
central, a Igreja de Nossa Senhora da Glória. Adiante, a
simpática rua do mercado, lugar da feira, da fartura e da
gostosura.
— Chegamos, disse o padre.
— Um momento, eu queria dizer uma coisa antes
de entrar na sua casa, padre. Dona Belarmina, a senhora
precisa ouvir a minha decisão.
Eles me olharam desconfiados.
— A morte de mamãe e minhas irmãs foi a maior
tragédia da minha vida. E tudo aconteceu porque meu pai
traiu os comparsas e escondeu as joias e o dinheiro que o
bando roubou.
O padre não pareceu surpreso com a revelação.

[ 223 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Eu sei Tomás, dona Belarmina contou tudo,


estava aflita e não sabia o que fazer. Eu disse que a você
caberia qualquer decisão.
— Aquilo não me pertence, padre, tem o cheiro do
sangue e da morte do meu povo. Se não for possível
devolver aos verdadeiros donos, quero doar para as obras
da sua paróquia.
O padre olhou para dona Belarmina e os dois me
abraçaram com força. Estavam sem palavras, repletos de
admiração pelo meu gesto.
— Não esperava outra coisa de você, meu filho.
— Será feito como você espera, Tomás. Estou muito
feliz com a sua atitude, realmente só uma pessoa de
excelente caráter e princípios éticos, para tomar tal
decisão. Está abrindo mão de uma fortuna, em defesa da
sua honestidade.
As palavras do padre Thiago sovam como a
redenção que eu precisava para tocar a vida. Suspirei
aliviado, mas a aflição continuou. Quem seriam as duas
pessoas? Como se lesse o meu pensamento, o padre
tranquilizou-me:
— Aguarde na sala de fora. Eles estão na cozinha.
“Eles, quem?” – pensei ansioso.
— Não é melhor voltarmos, padre?
A pergunta saiu sem pensar. Um rápido temor
tomou conta de mim, não estava convicto se queria

[ 224 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

descobrir novas coisas sobre o passado. Dona Belarmina


segurou a minha mão e entramos juntos.
— Sua mão está fria.
— E a garganta seca, estou com sede - disse.
— Espere aqui, vou buscar água.
Os dois adentraram a casa, Canivete sentou-se no
largo banco de madeira, cercado de fofas almofadas. A
sala era acolhedora e tudo ali carregava aspectos
pastorais. Canivete estava inquieto, se levantou e começou
a andar pelo aposento, parando diante dos quadros sobre
a fome em Angola, Moçambique, Congo... Mães
esqueléticas com filhos pendurados ao colo, crianças
raquíticas, famintas. Ao lado de cada fotografia havia
mensagens de fé e ação concreta, à luz do Evangelho. Por
todo lado, a presença da cultura e da mística da
transformação. Situações dramáticas do Brasil e do
mundo, e a presença Cristã como alento, como fermento.
Havia também uma estante repleta de livros e
revistas. Na mesa que ficava ao fundo, dois livros que
chamaram a sua atenção: “Memórias do Cárcere”, de
Graciliano Ramos, “Cartas da prisão” e “Batismo de
Sangue”, do Frei Betto. Sob o vidro que cobria a mesa,
dezenas de fotos, poemas e mensagens de personalidades,
como D. Pedro Casaldáliga, D. Hélder Câmara, Chico
Mendes, Leonardo Boff, entre outros. Ao centro, na parte
superior da mesa, um porta-retrato com a foto do padre
Thiago, ainda criança, abraçado aos pais.

[ 225 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Fiquei pensando na sua origem: família rica,


cercado de luxo, conforto e agora, atuando no subúrbio,
desenvolvendo um excelente trabalho de promoção social,
em defesa dos menos favorecidos... O mais interessante
era a sua animação em poder ajudar as pessoas, em
acreditar na esperança, e na luta pelo recomeço. Ele
ajudou a reunir os pedaços da minha história, sem pedir
nada em troca. Um ser humano admirável. Que bom que
somos amigos.
Ouvi barulho de passos. Tentei me recompor,
ajeitei o corpo, mas quando me virei um susto: ela.
— Meu Deus!
Ela não disse nada. Apenas chorava. Esfregava as
mãos nervosamente e não conseguia me encarar. Os
cabelos estavam mais curtos, mas o jeito de menina era o
mesmo. Fiquei completamente desprovido de qualquer
ação, como se estivesse assistindo a um filme de suspense.
Porém, a cena era real e quando senti que a fraqueza ia me
dominar, o padre Thiago entrou sem pedir licença e
amparou-me. Sentou-me novamente no banco. Dona
Belarmina trouxe um copo com água. Os dois se retiraram
e eu fiquei diante da mais surpreendente visão.
— Bete... - disse meio engasgado.
— Canivete...
Bete estava viva, meu Deus! Ela estava viva todo
esse tempo. Agora entendia tudo, o bolo, os salgados, o
pão. Ela sempre esteve presente, mas não queria aparecer.

[ 226 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Você... – não sabia o que dizer, não havia o que


dizer.
— Perdão, Canivete, não tive outra opção.
Fiquei em silêncio. Tomei água e a garganta
continuava seca, o coração ainda aos pulos, era tudo
muito irreal. Sonho? Ela se aproximou, tentou tocar meus
cabelos. Levantei decidido, não deixaria a emoção
expulsar a razão. Aquela mulher matou a Jane, ajudou a
destruir a esperança de uma vida decente.
— Você precisa me escutar, pelo amor de Deus... –
suplicou emocionada.
— Você sobreviveu... – senti a voz trêmula - Muito
bem e eu com isso? Não quero recomeçar a vida ao seu
lado. Não posso esquecer o que você fez!
— Não diga isso...
— Você planejou tudo, deixou que eu acreditasse
na sua morte. Por quê? Que vantagem tirou com essa
farsa? Por que fazia questão de levar comida, se não
queria me ver? Não consigo entender tanta loucura!
— Se você ouvir, vai entender...
Explodi em revolta.
— Vocês estão brincando comigo! Como o padre e a
dona Belarmina te descobriram? Por que insistem em
trazer o passado de volta? Eu busco a liberdade, e o
presente que recebo é a opressão. Nesse caso, prefiro a
prisão e a lógica da reclusão. Se assim não for possível,
prefiro a morte. Essa aventura chamada vida, não passa

[ 227 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

de mais um dos meus devaneios. Prefiro a cela, a conversa


com as aranhas e os meus diários. Não quero mudança,
não assim.
O padre retornou. Ouviu o desabafo e cheio de
compreensão tentou conter a minha revolta:
— Tomás, procure ouvir a Bete, depois faça o que
achar melhor. A dona Belarmina arrumou a sua antiga
casa, ficou uma beleza. Se você não quiser ficar conosco,
tudo bem, venda o barraco, vá embora, sinta-se à vontade.
Mas só tome qualquer decisão, depois que escutar o que a
Bete quer dizer.
— Prefiro sumir de uma vez por todas! – respondi
aos gritos.
O padre reagiu de forma enérgica, como se
estivesse passando um sermão numa criança traquina:
— Muito bem, vá! A porta está aberta, não
pretendo prendê-lo aqui. Se não quiser ouvir, o direito é
seu. Saiba que está jogando a vida na lata de lixo outra
vez. Você é maduro o suficiente, tudo o que viveu na
prisão, o que aprendeu, experimentou, perdeu, ganhou,
são elementos importantes, mas só farão sentido se forem
incorporados à sua realidade, caso contrário, são apenas
fragmentos dispersos. Os dois sintam-se à vontade,
conversem tudo o que precisa ser dito, depois me
procurem.
Ele não esperou qualquer resposta. Deixou a sala,
fechando a porta lentamente. Ficamos a sós mais uma vez.

[ 228 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Sentei novamente. Bete permaneceu de pé. Suspirava e


engolia o resto do choro.
— O que está esperando? – indaguei sem olhar para
ela.
— Você queria me deixar. Eu queria matá-la sim.
Você ia embora com aquela fingida.
Mais uma vez perdi a paciência.
— Não ouse falar da Jane, não tem esse direito! Ela
está morta, você a matou! Não existe explicação e eu
jamais a perdoarei.
Ela perdeu a insegurança. Levantou o tom da voz e
disse com clareza:
— A sua querida Jane não morreu. Ela está bem
viva, continua rica, feliz, despreocupada!
— O que está dizendo?
— A verdade. E se você não quer acreditar, o
problema é seu. Aquela fingida estava desmaiada, o tiro
atingiu um lado da costela, de raspão. Eu só fui saber
depois que vi a reportagem pela televisão.
— Mentira! Você matou a Jane, não adianta querer
remediar o crime.
— Pelo amor de Deus, escute o que vou dizer: ela
não se chama Jane, o nome dela é Beatriz Rameschini,
nunca foi casada, era amante do traficante, não tinha
direito a nada. A relação estava em crise, porque o cara
estava querendo trocá-la por outra. A verdade é que você
foi vítima de uma grande armação. Ela estava triste,

[ 229 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

queria morrer, sabia que a vida de rainha estava chegando


ao fim. O suicídio seria uma arma eficaz para criar um
escândalo e atrair a polícia até o marido. Mas não teve
coragem, assim, deixou o caminho livre para o primeiro
que aparecesse. Você entrou, ela o seduziu, gostou da
aventura, estava diante do parceiro ideal: um comparsa
que poderia ajudá-la a se vingar do cara. Você ia ajudá-la
a roubar uma parte da fortuna e depois ela o deixaria a
ver navios. Pense bem, Canivete: as coisas estavam fáceis
demais. Você entra, tem a chave da mansão, não encontra
qualquer dificuldade, a vítima está sempre só e ela
simplesmente se deixa envolver, sem medo, como se você
fosse um príncipe encantado. Uma açucarada história de
amor que não convence a ninguém, mas você acreditou e
entrou de cabeça numa fantasia. Por ironia do destino, eu
estava presente e ela não contava com a polícia. Quando
os policiais invadiram a casa, fomos levadas para o
hospital. Assim que recebi alta, ninguém soube dizer o seu
paradeiro. Achei que ela tinha morrido. Seis meses depois,
a manchete que decorei de tanto ler: “traficante procurado
pela polícia é encontrado morto no seu iate, no litoral do
Ceará.”
— Não acredito! – gritei - você é uma maldita
doente, deveria ter morrido de verdade!
Ela sorriu tristemente.
— Você ainda vai me pedir perdão.
— Como sabe de tudo isso?

[ 230 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

Ela abriu a bolsa, retirou uma página de jornal e


enquanto entregava, afirmou:
— Sabia que ia duvidar, eu trouxe isso. O traficante
não se chamava Adriano Albuquerque, o nome
verdadeiro dele é Décio Lakota. Outra coisa, meu caro: ele
não estava no exterior. Descansava tranquilamente no
litoral cearense. Leia e tire suas conclusões”.
Canivete abriu a página e seus olhos foram
devorando cada palavra:
“Um dos maiores traficantes de São Paulo, Décio
Lakota, 56, é encontrado morto às 15h45 no luxuoso Iate
Lagunas que lhe servia de residência, no litoral do Ceará.
O corpo da vítima foi alvejado com seis tiros. As suspeitas
recaem sobre a carioca Beatriz Rameschini, 25, que
segundo informações, vinha arquitetando a morte do
amante ao lado do comparsa, o ex-policial Erivelton
Gamide, 31. Beatriz foi alvo de escândalo há seis meses
quando foi atingida por um tiro de Tomás de Jesus, vulgo
Canivete, assaltante que invadiu a mansão de Lakota. A
mulher do bandido, Elisabete Ferreira, 23, em fase de
separação conjugal, seguiu o esposo e acabou sendo
atingida por um tiro, ao lado do ombro direito. As
mulheres foram socorridas a tempo, não houve óbito. O
bandido foi preso em flagrante, com a arma do crime na
mão. Depois do escândalo, Beatriz desapareceu. Mas após
a morte do amante, seu nome voltou a circular e um fato
curioso chamou a atenção da polícia: Erivelton Gamide, o

[ 231 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

suposto comparsa de Beatriz, era um dos policiais que a


socorreu no duvidoso episódio de cinco anos atrás. Mais:
os dois foram vistos no aeroporto, um dia após o crime.
Estima-se a fortuna do traficante na ordem de 11 milhões
de reais, sem levar em conta os imóveis espalhados por
vários estados brasileiros. Enquanto isso, Beatriz e seu
novo amante, estão curtindo férias milionárias em algum
lugar do mundo”.
Abaixo, a foto de Jane. Não havia dúvida. Então
Canivete respirou, seu mundo estava desabando sobre a
cabeça. Bebeu outro copo d’água. Bete voltou a falar, não
havia qualquer agressividade na sua voz. Sentia-se
comovida diante da decepção desenhada no semblante de
Canivete.
— Como vê, Canivete, a verdade veio à tona. Eu
sinto muito, mas ela te usou o tempo todo. No início fiquei
magoada, mas nunca te abandonei, nem mesmo quando
esteve preso. Não queria aparecer, preferi o silêncio, você
nunca acreditaria em mim. Cada vez que eu levava um
pão, um bolo ou biscoitos, eu pensava: “meu amor, nunca
deixarei de te amar”... No fundo, eu estava com o orgulho
ferido. Naquele triste episódio eu queria morrer, mas não
deu certo. Queria morrer mesmo estando grávida...
“Grávida. Sim, naquele dia, Bete afirmou que
estava esperando um filho meu. Meu Deus, se ela estava
ali, viva, o meu filho...

[ 232 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Pelo amor de Deus, não me esconda, eu preciso


saber...
Ela sorria e chorava ao mesmo tempo. Era o
anúncio de uma notícia fantástica. Abraçou-me com força,
choramos juntos. A confirmação estava naquele abraço.
Meu filho, eu tinha um filho!
— Eu o criei com todo o meu amor! Ele é muito
parecido com você. Tem o mesmo temperamento e não vê
a hora de conhecer o pai que eu tanto falo!
— Meu Deus! Meu Deus! Eu tenho um filho.
Chorei. Um profundo choro de felicidade. Meu
coração estava em festa.
— Bete, perdoe-me, por tudo, perdoe-me!
— Meu amor... nunca mais iremos nos separar.
Você também precisa me perdoar. Foi preso em meu
lugar. Eu podia ter procurado a polícia, dizer que fui eu
que atirei naquela mulher, porém, quando acordei no
hospital, soube que o bebê estava bem. Agradeci a Deus, e
a você por ter impedido a nossa morte. Compreendi que
eu precisava continuar livre para cuidar do nosso filho e
esperar seu retorno. Não quis me envolver com nenhum
outro homem, trabalho numa fábrica de calçados, vivo do
meu salário. Incentivada pelo padre Thiago, faço parte da
comunidade e atuo na pastoral da criança. Voltei a
estudar, vendi a nossa casa e comprei outra neste bairro.
A minha vida é para o nosso filho.
— Como é o nome dele?

[ 233 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Mateus, sempre gostei desse nome. Ele está com


cinco anos. Um menino esperto.
— Quando irei conhecê-lo?
— Agora mesmo. Ele está aqui.
Então era ele a outra pessoa. Claro, o meu filho era
a maior surpresa que eu poderia ter. Fiquei em silêncio.
Carinhosamente ela passou as mãos sobre os meus
cabelos. Senti as lágrimas, mas eram de alegria, de
esperança, de ressignificação da vida.
— O que direi a ele?
— Primeiro diga que o ama. Que você é o pai dele,
que não irá abandoná-lo. Ele está no quintal, brincando
debaixo do pé de goiaba. Agora vá, seu filho te espera.
— Bete, antes eu queria te pedir uma coisa: nunca
mais me chame de Canivete. De hoje em diante esse nome
está proibido. Eu sou Tomás, esposo de Bete e pai do
Mateus. Um novo homem, uma nova família. Promete?
— Tomás... Meu Tomás!”
Na cozinha dona Belarmina aprontava o café. O
cheiro de bolos fritos era apetitoso. O padre Thiago estava
ao telefone. Bete indicou o quintal e Tomás seguiu, o
coração em rebuliço. Ao lado da lavanderia, ficava o pé de
goiaba em cuja sombra o garoto brincava. Os finos cabelos
caiam sobre a face e atrapalhavam a visão. Tomás
aproximou-se lentamente, temia que ele se afastasse,
corresse e pedisse socorro.

[ 234 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

“Dobrei o joelho e a minha sombra o cobriu. Ele se


virou e abriu um sorriso. Mostrou uma aranha de plástico,
pendurada por um barbante”.
— Tem medo? – perguntou.
A sua voz era a de um anjo e as suas palavras,
acordes da mais doce canção.
— Não, quando eu era criança como você, gostava
de brincar com as aranhas – respondi.
Tomás sentiu uma enorme necessidade de abraçá-
lo, beijá-lo e levantá-lo no colo, mostrando ao mundo, que
ele tinha um filho. Mas se conteve, não sabia o que dizer,
como proceder...
— Eu gosto do homem-aranha. Olhe a minha
camiseta!
A camiseta azul estampava o herói e a famigerada
teia.
— Que linda! Mateus... você sabe quem sou eu?
— A mamãe disse que hoje eu ia conhecer o meu
pai... é você?
A ternura daquela criança o fez perder o tolo receio,
porém, permaneceu parado, sem ação, diante de um
garoto que agia com naturalidade, sem maiores surpresas,
como se o pai nunca tivesse se afastado.
“Quando ele firmou os olhos em mim, eu entendi o
tamanho do meu amor e sem que ele abrisse a boca,
escutei sua voz afinada:
— E então, não vai me abraçar?

[ 235 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

— Meu filho... – comecei a chorar, envolvendo-o


em meus braços.
— Não chore...- suas mãozinhas tentavam limpar as
minhas lágrimas.
— Meu filho querido! Nunca mais vamos nos
separar!
Ele ria gostosamente enquanto o erguia no colo,
fazendo seus cabelos tocarem os galhos da goiabeira”.
Estava coberto de razão o poeta que costumava
dizer que “a ternura é a essência do amor”. Na história de
Tomás/Canivete a ternura está presente, tem lugar de
destaque, mesmo nos momentos em que ele se achava o
pior dos seres humanos, o perdedor, o fracassado, o
isolado. Ela entrava de modo sutil, como aranhas que
tecem as teias do destino; como a ternura da morte que se
aproxima, mas não chega, não é seu tempo; como as
guloseimas que a Bete enviava sem pedir nada em troca;
como as visitas de dona Belarmina, uma senhora que
nunca desistiu de procura-lo, de modo carinhoso,
maternal, como uma mãe zelosa; como o seu amigo, o
padre Thiago, que ainda na infância, o ajudou a descobrir
o significado da ternura; como a presença forte,
consoladora e fiel de Jesus, tornando-o uma pessoa
melhor, mais centrada na vida, na fé e na esperança de
que a sua história pede novos capítulos.
“Eu estava com o meu filho nos braços, no colo,
montado no pescoço, brincando debaixo das árvores... A

[ 236 ]
CANIVETE, por João Rodrigues Pinto

minha vida recebia uma nova pintura, com pitadas de


ternura, de afeto, de recomeço.
Coloquei meu filho no chão, mas ele,
teimosamente, puxou a borda da minha calça, queria mais
atenção. Abaixei-me, ficamos da mesma altura. Então ele
tocou o dedo indicador na minha face e começou a
deslizá-lo lentamente, começando pela testa, olhos, nariz,
boca... fez um desenho imaginário. Em seguida, retirou o
dedinho, me olhou nos olhos e perguntou:
— Papai, o que é universo?”

FIM

[ 237 ]

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