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Cleber de Lelis Teixeira

122.483
Vespertino

AS PAIXÕES DO PODER: Sêneca aos olhos de um povo noveleiro.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Pensar a obra de Sêneca sem levar tanto em conta seu contexto histórico e a preocupação de
encontrar vestígios do que acontecia em sua vida antes e durante a produção de Fedra se
mostra um desafio necessário. Necessário pois ainda há muito que não sabemos a respeito da
vida de nossos vizinhos, quanto mais a de alguém cujo tempoespaço se distancie tanto do
nosso. Talvez justamente por conta dessa suspensão causada pelo distanciamento a obra do
grande estóico se mostre tão relevante e necessária aqui e agora. Ao menos é o que sinto.

Evidentemente, o filósofo, teatrólogo e retor (profissões que até parecem contrapostas)


tivera enorme atenção justamente devida à sua influência na construção do que chamamos
ocidente. Quando Sêneca se apropria do mito de Fedra, assim como acontece com qualquer
outro mito que seja recontado, o tragediógrafo se vale de um tempo e lugar distantes do seu
próprio e nos convém observar que por isso ele possa tomar certa liberdade para ensinar lições
que atravessem sua era e nos sejam muito valiosas. Suas referências, notoriamente, não são as
mesmas que as nossas, portanto a leitura sensata evita o anacronismo, só que, ainda assim, os
temas tratados pelo autor teimam em se repetir ao longo das narrativas, sejam elas bem
ficcionalizadas por contadores treinados ou apenas repetidas por meio de um aplicativo.

Assim como na nossa era, o texto de Sêneca é recheado de maus exemplos e seus
protagonistas sucumbem um após outro por se permitirem levar pelo fúror, ou seja, pelas
paixões, em especial pelo ódio, neste caso o ódio que está relacionado diretamente ao amor.
Essa permissividade, observada no próprio texto “Quem se embriaga com riquezas e se
enfraquece / na intemperança, quer sempre novos prazeres” [vv. 211,212], acomete com muito
mais facilidade a alma que se conforta rodeada de poderes, mas também põe à prova até
mesmo a serva a quem o autor confere os melhores argumentos, sejam a favor do que ensina
ou não.
A tragédia da rainha abandonada que se apaixona pelo enteado, do enteado que a odeia
assim como a todas as mulheres, da ama que intermedeia o contato dos dois e do rei que, cego
de ódio, causa a morte do próprio filho remonta diversas tradições anteriores sem copiar
nenhuma. Diferente de Teseu que, já ciente da própria desgraça, tenta remontar o corpo do
filho esquartejado sem sucesso, Sêneca reúne em sua composição Homero, Eurípedes, Ovídio,
possivelmente Sófocles e provavelmente muito mais em um só corpus que de tão
organicamente suturado vive para nos ensinar o que acontece quando ignoramos a razão.

E ENTÃO, O QUE ACONTECE?

Nos vemos igualmente transtornados, enlouquecidos e, finalmente, transmutados em


monstros capazes das perversidades mais atrozes. Perversidades essas que não deixam de ser
voluntárias pois saber-se em chamas como Fedra:

[ vv. 651-655]

Um ardor, uma paixão


consome meu coração insano. Oculto
nas minhas entranhas, um fogo em fúria ferve
no íntimo do meu ser, me circula nas veias,
como chamas que escorrem em altos lambris.

ainda é ter controle da própria visão e poder jogar-se abaixo da cachoeira mais próxima para
aplacar, mesmo que momentaneamente, essa brasa.

Neste Sêneca, como bem notado por Florence Dupont [1995] e explicado por Zelia
Almeida [1999], a transformação da pessoa em monstro ocorre em um processo gradual ao
longo da peça:
Para a autora, “a tragédia romana promete ao público romano o espetáculo de uma
metamorfose de um homem em monstro” (Dupont, 1995, p. 55). Essa metamorfose
é produzida pelo furor determinado por um excesso de sofrimento (dolor); o furor
leva ao nefas, o crime hediondo, extraordinário, inexpiável, a profanação em seu
grau mais alto. [ALMEIDA, 1999, p. 131].
Vale notar, embora, que, apesar de Fedra, Hipólito e Teseu passarem por tal processo,
a ama, personagem cujo poder na peça é mínimo ao ponto de não ser capaz de demover a sua
aluna das intenções libidinosas que a consomem e também não ser capaz de seduzir Hipólito
em favor da mesma aluna inflamada, também sofre as consequências dos erros de seus
senhores sem que se torne do mesmo material monstruoso que eles. A ama é também culpada
por se permitir levar pelo afeto que sente por Fedra e tornar-se cúmplice da rainha em sua
empreitada, por isso também sofre, mas o fúror observado nos três poderosos não é o mesmo
que move a tutora.

Enquanto Fedra abre mão de sua humanidade, entenda-se sua razão ou sua
responsabilidade sobre os próprios atos, quando imputa a um deus os seus sentimentos, e
Hipólito segue um movimento parecido no ataque desvairado a tudo o que seja feminino,
chegando a lanhar a imagem de Fedra ao ponto de ela tornar-se um monstro a partir do que o
enteado cospe em sua direção, e Teseu que repete a mesma transformação só que agora tendo
Hipólito como alvo, a ama não ataca ou amaldiçoa nenhum deles.

Olhos mais ingênuos observariam que a ama, assim como o próprio Sêneca, pôde
aconselhar poderosos com toda a autoridade que é conferida à razão de um tutor e com toda a
habilidade de quem cresceu em meio à arte da persuasão, mas, como o cordeiro que jamais
poderia convencer o lobo a não devorá-lo, nem Sêneca nem a ama puderam mudar o curso da
tragédia. Este tipo de observação, embora até válida, limita a potencialidade do texto
senequiano a um mero relato quando o que o autor faz, não só informa, mas dirige e,
inegavelmente, sublima por meio do engenho que observamos na escolha minuciosa do
metro, das palavras, das figuras, dos fonemas e de muitos outros detalhes que não caberiam
no limite proposto deste trabalho.

Como já mencionado anteriormente, Sêneca usa dos maus exemplos, mas faz isso com
tão primorosa escrita, que pode-se ver e ouvir os cascos dos cavalos que destroçaram Hipólito
nas oclusivas do coro que descreve a cena.
[vv. 1272-1277]
Coro:
Retalhados, ó pai, recompõe estes membros
dispersos; dá a cada qual o seu lugar:
aqui, a valorosa mão direita; a esquerda,
que domina os freios, ficará ali;
também reconheço sinais do flanco esquerdo.
Quanto ainda falta encontrar para o pranto!
1

O esforço é em exemplificar como se faz uma tragédia, que exemplifica o que não
deve ser feito. Nesse caso, Sêneca, para além das capacidades da ama, cumpre as funções
pedagógico-retóricas propostas por Horácio e, por escrever e recitar sua obra com tanto
empenho, o autor a faz ecoar através dos milênios até aqui.

Apesar das diferenças observadas, nem Sêneca nem a sua ama são absolvidos de sua
parcela de culpa. Mas será possível que haja alguma absolvição em Fedra? Ana Filipa Isidoro
da Silva nos dirá que sim em seu AMOR MORBUS EM PHAEDRA: O MITO E A
DOUTRINA ESTÓICA DOS AFFECTUS [2015] ela nos oferece alguma ponderação. A
autora sugere que Fedra, ao suicidar-se com a mesma espada que ora Hipólito usara para
ameaçá-la, ora a rainha usara para acusá-lo, retoma sua agência e se liberta não só da paixão
que a domina, mas também do marido que faz o mesmo. 2

Novamente os olhos ingênuos irão observar que, não só na doutrina estóica, como
também na cultura latina, o suicídio era bem menos tabu do que é considerado no contexto
brasileiro atual; ainda observará que Roma mantinha um estoque de cicuta para os cidadãos
que, em dia com suas obrigações, decidissem terminar a própria vida; e ainda notará que o
próprio Sêneca cometeu um suicídio não menos dramático que o de seu ídolo, Sócrates. Mas
dessa vez daremos alguma razão à essa ingenuidade, pois, uma vez que a doutrina difundida
por Sêneca buscava imputar ao indivíduo total controle sobre seu corpo, não é uma inferência
forçada pensar que nem mesmo à morte era dado o controle sobre a vida do humano, mesmo
que do humano em demasia como foi sua Fedra.

E AGORA?

Agora, que o barraco desabou sobre Hipólito, Fedra e Teseu, além da ama que também
se deu mal, nós podemos tentar aprender com o que a peça nos mostra de pior. Sêneca teve
um enorme esforço, assim como qualquer professor relevante que já tenha ensinado alguma

1
[grifos nossos, observação feita pela professora Bianca Morganti em sala a respeito do texto
original.]
2
[2015, p. 104]
coisa para nos mostrar que temos escolha, que não importa o quão horrível seja a realidade à
nossa volta, que ainda assim a escolha é nossa.

Evidentemente, este protagonismo dado ao indivíduo que Sêneca idealiza, se choca


com a realidade das condições a que somos impostos. Ter acesso ao texto desse estóico, por
exemplo, já é de um enorme privilégio e é de um privilégio ainda maior ter acesso às chaves
de interpretação que lhe são necessárias, mas esse conhecimento imputa a quem o detenha a
responsabilidade de fazer bom uso dele sem muletas. Em outras palavras, uma vez que a
humanidade seja dotada de ratio, como o estóico propõe, cabe a cada humano usar a
capacidade que lhe define como tal de forma que não sucumba às investidas das paixões que o
fatum nos proponha. Uma vez que nos deixemos levar, não apenas traímos nossa espécie
como também transformamo-nos em monstros do qual o próprio veneno não somos imunes e
o bebemos em goladas fartas quando pensamos estar inoculando com ele os que odiamos.

De volta ao texto, fica evidente que os acontecimentos extra-textuais, como a


conjuntura sócio-política de Roma na época em que ele foi produzido, podem ter influenciado
a sua produção, mas se fosse só isso, a relação feita com textos mais antigos e também com
contextos mais recentes, no nosso caso, seria bem mais difícil. A opacidade inerente ao mito o
permite flutuar sobre as linhas do tempo e ensinar velhas lições a novos alunos.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Zélia Cardoso de. O tratamento das paixões nas tragédias de Sêneca. LETRAS
CLÁSSICAS. n. 3, p. 129-145, 1999. pp. 129-145.
E MATIAS, Mariana Montalvão Horta Costa. Fedra de Séneca: que pode a razão perante o
triunfo das paixões? In: Hipólito e Fedra nos caminhos de um mito. Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2012. Acesso em: 07/10/2020. Disponível em:
<https://digitalis.uc.pt/handle/10316.2/30107>.
SÊNECA. Fedra. In: Eurípedes Sêneca Racine - Hipólito e Fedra: três tragédias. Tradução
de Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Editora Iluminuras, 2007; pp. 207-352.
SILVA, Ana Filipa Isidoro da. Amor Morbus Em Phaedra: O Mito e a Doutrina Estóica dos
Affectus. In: Revisitar Mitos | Myths Revisited. Papelmunde, SMG, Lda. – V. N. Famalicão.
1.ª edição: Fevereiro de 2015. pp. 99-104.

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