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Conselho Editorial

Avelino da Rosa Oliveira (UFPel)


Betina Schuler (UCS)
Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel)
Dóris Helena de Souza (SMED/POA)
Eduardo Pellejero (UFRN)
Gláucia Maria Figueiredo Silva (UNIPAMPA)
Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação)
Luciano Bedin da Costa (UFRGS)
Ludmila Brandão (UFMT)
Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos)
Nadja Maria Acioly-Régnier (Université Claude Bernard Lyon 1)
Vânia Dutra de Azeredo (PUC/Campinas)
Comitê Editorial
Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Sandra Mara Corazza (UFRGS)
Silas Borges Monteiro (UFMT)
projeto gráfico
Leonardo Garbin
editoração
Supernova Editora
foto da capa
Gustavo Alves Paiva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

E96
Caderno de notas 6: Experimentações de escrita,
leitura e imagem na escola./ Organizado por Betina
Schuler, Sônia Regina da Luz Matos e Sandra Mara
Corazza. Porto Alegre-RS: UFRGS; Doisa, 2014.
178p.

ISBN: 978-85-66308-04-4

1. Educação. 2. Escrita. 3. Leitura. 4. Imagem.


I. Schuler, Betina. II. Matos, Sônia Regina da Luz.
III. Corazza, Sandra Mara. IV. Título.
CDU 37

Bibliotecário: Douglas Rios (CRB – 1/1610)


Betina Schuler
Sônia Regina da Luz Matos
Sandra Mara Corazza
orgs.

2014
Sumário

APRESENTAÇÃO 9
Nadja Maria Acioly-Régnier

PREFÁCIO 15
Eduardo Pellejero

RINCÃO, UMA ESCOLA QUE TENTA,


INVENTA E EXPERIMENTA 23
Dóris Helena de Souza e Rosana Castilhos Fernandes

DIDÁTICA DA TRADUÇÃO 47
Sandra Mara Corazza

POR ENTRE ESCRITAS, LEITURAS E


CADEIRAS: O PROCEDIMENTO
GENEALÓGICO E O CUIDADO DE SI 69
Betina Schuler

IMAGENS DE ESCRILEITURAS 129


Sônia Regina da Luz Matos

POSFÁCIOS
ATELIERS DE FOTOGRAFIA 147
Antônio Henriqson

NÃO SEM ALVOROÇO 157


Betina Schuler

EXÍLIO DO ESPÍRITO 165


Sônia Regina da Luz Matos
Apresentação

Je n’arrive plus à penser à quelque chose


que je n’aie déjà pensé ... pour bien faire, il
faudrait que je dépense tout ce que j›ai pensé,
pour le repenser différemment ...
Raymond Devos (2007, p. 221)

Apresentar este livro não é tarefa fácil, pois


ele intriga, instiga, faz pensar, sentir, emocionar.
Nele, se fala de escrita, de leitura, de imagem; nele,
se fala do contexto escolar. Mas de que maneira se
fala? Este é o ponto-chave: o ponto do meu encontro
com o grupo liderado pela professora pesquisa-
dora Sandra Corazza, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Foi um encontro marcado por
surpresas suscitadas por um modo diferente do
fazer na academia; um encontro intercultural, de
respeito mútuo e de início de trocas e mobilidades
acadêmicas. Mas quão difícil e prazeroso tem sido
esse exercício! Enquanto professora-pesquisadora
franco-brasileira, a questão da tradução faz parte
do meu desafio quotidiano. E este livro, tanto
pela distância da cultura acadêmica quanto por
minha condição de biculturalidade, impôs-me a

9
todo o tempo a seguinte questão: como eu diria
isso na língua francesa? Trata-se de tradução.
Mas no sentido mais complexo, dado por Sandra
Corazza neste livro: “a tradução é um ato político,
que desfuncionaliza línguas instrumentais e apro-
xima distâncias, num processo de transformação
cultural”.
Mas o que é este livro? Este livro resulta de
um projeto de pesquisa intitulado “Escrileituras:
um modo de ler-escrever em meio à vida”, com
financiamento da CAPES/INEP, Edital 038/2010,
o qual aconteceu entre os anos de 2011 à 2014.
Tal projeto vem sendo desenvolvido em diferentes
Universidades a este projeto vinculado, tais como
UFRGS, UFPEL, UNIOESTE, UFMT, UERGS.
Este livro, especificamente, está vinculado à
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ao
subprojeto “A escrita, o cuidado de si e a estética
da existência: uma experimentação genealógica
no Ensino Fundamental”, desenvolvido pelas
professoras Betina Schuler e Sônia Regina da Luz
Matos na Escola Municipal de Ensino Fundamental
Rincão, Porto Alegre/RS. Este subprojeto vem
sendo desenvolvido no sentido de pensar a escrita
e a leitura como uma possibilidade do cuidado de
si, a partir de autores como Nietzsche e Foucault,
por meio de experimentações em ateliês com turmas
do 1º ano do Ensino Fundamental, bem como
com os anos finais do Ensino Fundamental. Este
livro, especialmente, traz as análises e resultados a
partir de um atelier desenvolvido no ano de 2012,

10
com alunos dos anos finais do Ensino Fundamental,
intitulado “Escrileituras e a estética da existência:
nunca é tarde para ocupar-se consigo mesmo”. A
partir disso, as diferentes pesquisadoras envolvidas
neste projeto e subprojeto de pesquisa trazem
aqui suas análises e contribuições para o campo da
educação, problematizando outras possibilidades de
pesquisa em se tratando dos conceitos de escrita e
leitura.
Nesse ponto, vejo de forma mais clara o motivo
da presença contínua, durante toda a leitura, de
dois autores que aprecio imensamente. O primeiro,
Raymond Devos, pela forma de brincar com as
palavras e de nos conduzir a outras lógicas, a outras
regras, a outros mundos. Isso justifica a epígrafe
em língua francesa, que arrisco aqui em tradução
livre: “não consigo mais pensar outra coisa a qual já
não tenha pensado ... para fazê-lo corretamente, seria
necessário despensar tudo o que já pensei para pensá-
lo diferentemente”. Ideia corroborada por Betina
Schuler, no capítulo “Por entre escritas, leituras e
cadeiras: o procedimento genealógico e o cuidado
de si”, quando diz: “... com este diagnóstico do
presente e a fim de forçar o pensamento a pensar
outras coisas, produziu-se este atelier como possi-
bilidades de vivermos e pensarmos tais práticas,
problematizando a valoração dos valores e os mo-
dos de subjetivação que nos atravessam em suas
possibilidades de cuidado, no atravessamento das
filosofias de Nietzsche (2006) e Foucault (2011) e
da literatura de Kafka (2009)”.

11
Do segundo autor, Jerome Bruner, notada-
mente estiveram presentes as ideias contidas nas
obras Pourquoi nous racontons-nous des histoires?
(Por que contamos histórias?), de 2002, e, de no-
vembro de 2013, Fazendo histórias: o direito, a
literatura e a vida. Este livro é um livro de histórias.
Como dizem as autoras Doris Helena de Souza e
Rosana Castilhos Fernandes, no capítulo “Rincão,
uma escola que tenta, inventa e experimenta”, “ao
final do ano letivo de 2010, já havíamos acumulado
algumas histórias para contar”.
Raymond Devos observa que seu livro Les
40èmes délirantes é uma narrativa de uma viagem
no imaginário. Quer dizer que não diz respeito às
leis do real; o espírito segue seu caminho, a esmo,
sem carta, nem bússola. E isso não impede nem os
sentimentos, nem os dramas, nem o riso, tampouco
a seriedade do trabalho acadêmico. Sônia Matos,
enfatizando a imagem como potência do pensar,
observa que «a imagem dispara as expressões das
ideias de afecção, indicando o estado de relação
do nosso corpo». Ilustrando essa ideia, é trazida a
fala de um dos participantes dos ateliers a partir da
imagem da potência da preguiça. Ele nos apresenta
a seguinte questão: “essa preguiça de agir, que vocês
dizem, é meu modo de pensar antes de decidir”.
Não será contada aqui toda a historia do livro,
mas como afirma Bruner (2006, p. 122), toda
história começa pela presunção da existência do
ordinário e do convencional em um mundo; depois,
ela requer que esse estado ordinário e esperado seja

12
rompido, surgindo a ação e os esforços feitos para se
voltar ao estado canônico das coisas. Enfim, há um
final: feliz ou não.
Como pesquisadora, venho acompanhando o
trabalho do Observatório da Educação (OBEDUC/
UFRGS) junto ao Projeto Escrileituras: um modo de
ler-escrever em meio à vida, que articula a pesquisa
acadêmica na escola junto à formação inicial e
continuada de professores. Este livro é uma das
derivações dessa articulação.
O que se passa na construção deste livro?
Experimentações de Escrita, Leitura e Imagem na
Escola? Ele é uma parte daquilo que excedeu da
relação entre os alunos, a escola e os professores-
pesquisadores envolvidos. Também digo que ele
é uma desdobra do Projeto A escrita, o cuidado
de si e a estética da existência: uma experimentação
genealógica no Ensino Fundamental; que pesquisou a
escrita e a leitura na escola como possíveis técnicas
de subjetivação e como táticas de exercitar o cuidado
de si.
Efetivamente, o que mais excedeu dessa in-
vestigação acontece no livro por meio de dois
movimentos. O primeiro corresponde aos artigos
dos professores-pesquisadores e suas problemáticas
profissionais expressadas sob a perspectiva da criação
pedagógica. Um dos artigos traz as conversações
sobre a didática e a criação, a partir da perspectiva do
pensamento da diferença em educação, apostando na
Didática-Artista por meio do conceito de tradução.
Outro artigo traz um processo de historicização da

13
constituição para as experimentações curriculares
na escola em que o projeto foi desenvolvido. Em
outro texto, ainda, tem-se o projeto de pesquisa a
partir do qual este livro foi organizado, tomando a
escrita e a leitura como técnicas possíveis do cuidado
de si por meio da experimentação de ateliers com o
procedimento genealógico da dissolução com alunos
dos anos finais do ensino fundamental na referida
escola. Outro artigo traz também o referido projeto
de pesquisa partindo da lidação com tais ateliers na
escola, para pensar o conceito de imagem como uma
ideia de afecção da potência de pensar.
Entre os artigos produzidos pelas pesquisadoras,
encontram-se os textos e as imagens que alunos
e alunas produziram nos ateliers dessa pesquisa,
denominados de O homem forte; Jejum de obrigações;
Lukas com K; Um rebanho; Eu poderia simplesmente
entrar, mas não; Diante do Sutiã; Menina sem
vergonha; Cadeira e Silêncio; Lasciva.
A partir disso, lanço o convite para a leitura e
a lidação com esse material para além da função de
explicação e comunicação, mas apostando na leitura
como certa experiência de si.

Nadja Maria Acioly-Régnier

14
Prefácio

Em 1936, Walter Benjamim afirmava que


a primeira tarefa da arte e da crítica consistia em
ensinar os consumidores a serem produtores; a
mudança que identificara no regime de produção
e circulação da arte permitia, pela primeira vez
na história do homem, dar lugar a um vigoroso
processo de refundição, que não passaria apenas
pelas distinções convencionais entre os gêneros,
entre escritor e poeta, entre pesquisador e divul-
gador, mas submeteria também a revisão a própria
distinção entre autor e leitor, entre pintor e es-
pectador, entre músico e ouvinte. Trinta anos mais
tarde, Roland Barthes imaginava uma espécie de
utopia menor, na qual os textos escritos com prazer
circulariam fora de qualquer instância mercantil,
sem necessidade de grande difusão, em pequenos
grupos, entre amizades, constituindo, nesse sentido,
uma verdadeira circulação do desejo de escrever e do
prazer de ler, subvertendo o nefasto divórcio entre
leitura e escritura. Ainda mais perto de nós, Jacques
Rancière dirá que uma comunidade emancipada
é uma comunidade de narradores e tradutores, e
que o trabalho poético de tradução é o princípio
da emancipação, na medida em que a emancipação

15
passa pelo apagamento da fronteira que separa
aqueles que atuam e aqueles que olham, aqueles que
criam e aqueles que contemplam.
Sobre o horizonte aberto por uma série de
questões fundamentais levantadas por Sandra
Corazza, este livro coloca à prova os princípios
dessa utopia estética no espaço, ao mesmo
tempo codificado e rarefeito, da escola. Jogo sem
regras proposto por um coletivo de professoras
pesquisadoras que, na sua abertura essencial, tem
por objeto apenas solicitar a colaboração ativa
dos alunos, exigindo que exerçam o poder de
associar e dissociar que lhes é próprio, em ordem a
desenvolver as suas competências críticas e criativas,
isto é, a sua liberdade. Desafio, também, aceito
por um grupo de alunos que, dando provas da
sua capacidade para ligar o que sabem com o que
não sabem, fizeram as suas próprias experiências,
contaram as suas próprias histórias e traduziram
tudo isso para o uso dos outros, aventurando-se
destemidamente na selva das coisas e dos signos.
O resultado é uma série de variações que dá
conta da tentativa de articular o caráter pedagógico
da crítica com o seu fim emancipatório, numa
confrontação direta com as formas contemporâneas
de tutelagem e iliteracia, de alienação e embotamento
das nossas competências para ver e apreciar, para ler
e interpretar, para experimentar e traduzir o que
vemos, lemos e interpretamos. Doris Helena de
Souza e Rosana Castilhos Fernandes travaram esse
combate agenciando o tempo e o espaço escolar de

16
forma plural e fluida e, no final de 2010, tinham
histórias para contar e pensar; Betina Schuler travou
esse combate utilizando a escrita e a leitura como
técnicas do cuidado de si e como testemunhas da
emergência de estilos de vida e modos diferentes
de relação na escola; Sônia Regina da Luz Matos
travou esse combate colocando em causa os efeitos
alienantes do juízo moral, e hoje quiçá não tenha
cadeira onde se sentar, mas tem uma experiência
para partilhar conosco.
Airton da Silva, Carlos Rafael, Gustavo
Alves Paiva, Jade Bacelar Bitencourt, Jacqueline
Herrmann, Jennifer dos Reis Sobrinho, Larissa
Apratto Pedroso, Lucas Duarte e William Duarte
Boardman também travaram esse combate. Sem
reservas, colocaram à prova os seus conceitos e
preconceitos, abrindo-se à multiplicidade dos seus
sentidos e à imprevisibilidade das suas pulsões, sem
ideias preconcebidas de um saber, uma verdade ou
uma razão a conquistar. Abraçaram a faca de dois
gumes do pensamento (de um lado a crítica, de
outro, a criação) e se deram, sem pretensões, ao
livre jogo das suas faculdades. Aceitaram que a arte
é, de pleno direito, uma engrenagem (a) mais na
articulação (sempre inconclusa) do comum – lado
a lado com os equipamentos do saber e do poder,
com as configurações da subjetividade e com as
canalizações do desejo que dão consistência a uma
sociedade – e valeram-se dela para dar forma ao
mundo e sentido às suas experiências. Os relatos e
as imagens que nos oferecem remetem, certamente,

17
a devires e processos que nenhuma representação
pode totalizar, mas, em si mesmos, não é impossível
que deparem ao leitor algumas surpresas.
De todos os erros nos quais pode recair o
pensamento, o maior e mais perigoso é acreditar
nas teorias já formuladas, nas formas consagradas,
nos caminhos trilhados. A escola comporta sempre
o risco de fazer desse erro o princípio da educação.
Mas quem sabe a educação possa ser outra coisa,
elusiva e precária, tateante, nas margens e nos
interstícios da escola que habitamos e vivemos, que
questionamos e fazemos.
As experimentações que perpassam este livro
não deixam de lembrar-nos que sempre é menos
interessante deter-se nos ganhos, nas conquistas,
que escapar delas, procurar novos retos e levar
com alegria a convicção de que, mesmo que nunca
cheguemos a nada, valem a pena as encruzilhadas
desse caminho para o nada que nos propõem as
aventuras da nossa emancipação.

Eduardo Pellejero

18
Foto: Airton da Silva
Estudante da escola e participante do atelier
Escrileituras e a estética da existência: nunca é
tarde para ocupar-se consigo mesmo.

O homem forte
Airton da Silva

U m homem tinha um trabalho muito pesado para


uma mulher, porque a mulher é sensível, organizada
e fraca para um trabalho. Pensando nisso, o homem
é forte, porque ele faz academia a cada três vezes na
semana. Um dia na semana ele não foi, porque ficou
fraco com o amor dele que foi embora para bem
longe.
Desde então, ficou triste com isso, sozinho, pensando
se encontraria um amor tão certo como esse que
perdeu. Então esse homem forte e amoroso ficou fraco,
sensível, largou a academia.
Começou a recomeçar a vida no quarto, limpando e
organizando todo santo dia para todas as mulheres que
entrassem lá, para que vissem um homem só, sem amor
para dar ao outro.
Passaram-se anos e anos e ali ele foi ficando forte
novamente por amor, por trabalho pesado. No próximo
ano ele começou a ver palavras sensíveis em todas as
ruas que ele passava. Então foi procurar seu amor e
o achou, passados mais dois anos. Rápido, então, ele
voltou como era, só que mais forte ainda, forte de amor
e de trabalho. Esse homem virou um homem mais
amoroso do que antes. Então ele está apaixonado por
tudo. O amor dá mais força do que a academia. O amor
pode ser uma força, uma fraqueza. O amor pode ser
uma fraqueza quando se olha um para o outro e não se
vê nada.
Doris Helena de Souza
Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.
Especialista, Mestre e Doutora em Educação pela PUC/RS.
Diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Rincão
de 2009 a 2013.

Rosana Castilhos Fernandes


Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.
Especialista e Mestre em Educação pela PUC/RS. Vice-
Diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Rincão
de 2009 a 2013.
Rincão, uma Escola que tenta,
inventa e experimenta
Doris Helena de Souza
Rosana Castilhos Fernandes

F
alar da escola RINCÃO envolve situar rapi-
damente em que paisagem ela se encontra:
ela fica no número 347 de uma rua chamada
Luiz Otávio, no Rincão, bairro Belém Velho, numa
bela cidade chamada Porto Alegre, Estado do Rio
Grande do Sul, Brasil – dizem se tratar da cidade que
tem o por do sol mais lindo do mundo. O Rincão
é um lugar de paisagens múltiplas, composições de
um mosaico rico em elementos naturais, muitos
dos quais, preservados em recantos quase intocados
pelo homem, que contrastam com elementos
surgidos nas linhas traçadas pela mão humana:
caminhos percorridos desde a ocupação do bairro,
que produziu seu prestígio histórico desde o século
XVIII, passando por importantes acontecimentos
políticos e culturais em seu cotidiano. Paisagem
permanentemente modificada que, pelo passar do
tempo, vagarosamente foi se expandindo rumo ao
sul da cidade e, consequentemente, repovoando a
região com loteamentos e ocupações singulares, de
onde egressam os alunos da escola.

23
A necessidade de atender uma demanda da
comunidade do Rincão surgiu por volta de 1998,
momento em que parte dos moradores já havia
levantado dificuldades e necessidades existentes
no bairro. Entre as necessidades estava a educa-
ção – pauta reincidente nas conversações e nos
debates, por vezes calorosos, realizados entre os
moradores da região. Desse modo, desde a im-
plantação do Orçamento Participativo1 em Porto
Alegre, a construção de uma escola de ensino
fundamental nessa região passou a entrar e sair
das demandas prioritárias por diversas vezes.
Trata-se de uma comunidade que se manteve
unida e convicta em torno de uma prioridade
comum: a educação. E após muita luta, muitas
reuniões e vários entraves entre o poder público
municipal e as lideranças comunitárias do bairro,
em 2005 teve início o primeiro movimento efe-
tivo para o início da construção de uma escola.
Tal movimento foi disparado pela necessidade de
desapropriação da área onde hoje se encontra a
Escola Municipal de Ensino Fundamental Rincão
(doravante, EMEF Rincão); isso levou algum
tempo devido aos prazos legais para o desembaraço
do processo de compra e regularização do terreno,
à demarcação da área e à elaboração do projeto

1
O Orçamento Participativo (OP) foi implantado em 1989 pelo governo da cidade
que se caracteriza por três grandes momentos de participação das comunidades:
reuniões preparatórias, rodada única de assembléias regionais e temáticas e a
assembléia municipal; é um processo dinâmico que se adequa periodicamente
as necessidades locais, buscando sempre um formato facilitador, ampliador e
aprimorador do debate entre o Governo Municipal e a População.

24
arquitetônico. Outros impasses surgiram ao longo
desse tempo de mais de uma década, entre eles a
necessidade de definir o tamanho da escola, o
número de alunos a serem atendidos e se a obra
poderia ou não iniciar ainda no período em que
essas negociações ocorriam.
Finalmente, houve um consenso entre comu-
nidade e poder público municipal e a obra de
construção teve início, ficando definido que esta
aconteceria em duas etapas. A primeira, para aten-
der uma demanda em torno de 600 alunos, e a
segunda, para atender mais 600 alunos, o que
totalizaria 1200 atendimentos demandados pela
comunidade.
Em 2006 as obras da primeira etapa tiveram
início, ficando estabelecido que a segunda etapa
ocorreria somente após o início do atendimento
dos primeiros alunos. No ano seguinte, em 2007,
as obras tiveram continuidade e foram concluídas.
A escola foi entregue à comunidade no dia 23 de
dezembro de 2008, dia em que assumiu a primeira
gestão indicada2 pela Secretaria Municipal de
Educação (SMED). A abertura da escola ocorreu
antes mesmo de receber todos os equipamentos e
mobiliários, mas mesmo assim, nos meses de janeiro
e fevereiro, ocorreram as inscrições e matrículas dos
primeiros alunos, para em março do mesmo ano
iniciarem as atividades letivas. O primeiro grupo
de professores e funcionários chegou ao longo dos

2
Cabe destacar que toda escola nova da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre
tem a primeira Gestão indicada pela secretária de educação do município.

25
dois primeiros meses e a comunidade foi recebida
com expectativa e entusiasmo por gestão, equipe
pedagógica, professores e funcionários que, assim
como os pais, estavam ansiosos pelo início dos
trabalhos.
Como já foi mencionado, a primeira gestão
indicada para assumir os trabalhos na escola
trouxe consigo uma orientação filosófica ancorada
em quatro vetores de ação assumidos pela SMED
no período 2005/2008 que inspiravam-se nos
pressupostos da Filosofia da Diferença e que
falam do exercício da diferença; da produção de
singularidades; da desnaturalização de padrões e
da desconstrução do racismo de estado. Um tra-
balho ancorado não na busca por generalidades,
totalidades ou universalidades, mas no exercício
permanente do pensamento na prática cotidiana
da escola, pois não se pretende mudar a consciência
das pessoas, mas problematizar os modos como se
produzem os regimes de verdade, seus efeitos de
poder e modos de subjetivação. A proposta é a
construção de regras próprias, pois se trata de
uma outra escola, de uma escola oriunda da luta
de uma comunidade, de uma escola carregada de
singularidades e que está de algum modo colada às
expectativas e à história de luta desta comunidade.
Portanto, essa proposta pedagógica inspirada em
quatro vetores de ação que não pretende ser mais
uma verdade a ser seguida, mas uma proposta
imbricada em múltiplos jogos de verdade e em
inúmeras possibilidades de ser de diferentes modos.

26
Assim, a semana inicial do mês de março de
2009 foi planejada para o atendimento dos alunos
mesmo sem classes e cadeiras, mobília e utensílios
para o refeitório. Não havia microfone nem caixa
de som, mas havia muita energia, dedicação e
competência dos professores que iniciavam suas
atividades numa nova comunidade escolar. Todos
estavam com muitas expectativas diante da nova
escola. Foi um ano de descobertas: descoberta do
bairro, da comunidade, das primeiras explorações,
de conversações com os moradores da região,
questionamentos com os alunos, contatos com os
equipamentos e as instituições do bairro, enfim, um
trabalho que esteve pautado num projeto geral de
escola nomeado “Origem da Vida”, pois a vontade
era mesmo saber como esse bairro havia surgido,
como tinha sido sua ocupação, quem eram seus
moradores, uma vontade enorme em saber um pouco
de tudo. Foram muitos os momentos de encontros
com a comunidade escolar em que se conversava e
propunha trabalhos pedagógicos, idas a campo para
um estudo da realidade, no sentido de conhecer
demandas e mostrar as diferentes dinâmicas de
funcionamento de uma escola municipal. Várias
atividades de sala de aula foram desenvolvidas com
a participação,de alguns pais, a fim de enriquecer
os dados que estavam sendo compilados através da
pesquisa já referida, colaborando para a constru-
ção do planejamento diário e de todo o processo
de construção do Projeto Político Pedagógico.
A vontade de conhecer e explorar esse lugar foi a

27
temática do primeiro encontro de formação entre
os professores, cuja proposta foi realizar um dos
percursos dos Caminhos Rurais (roteiro turístico
por parte da zona sul de Porto Alegre). O trajeto
partiu da escola até o Sítio Encantado, o Sítio do
Mato e o Orquidário do Rincão, onde foi possível
observar aspectos naturais relevantes da paisagem, a
baixa densidade demográfica que circunda a escola
e a precariedade de serviços públicos disponíveis
à comunidade, tais como transporte, iluminação,
comunicação, saneamento básico e lazer. Também
foi possível perceber dificuldades em relação aos
serviços privados, como a falta de mercados, far-
mácias e opções de entretenimento. O passeio
incluiu uma visitação ao Santuário Mãe de Deus,
de onde foi possível desfrutar uma vista total da
cidade, e seguiu até o “centrinho” de Belém Velho,
com visita à Igreja Nossa Senhora de Belém, ao
cemitério, à praça e suas figueiras centenárias e
ao casario preservado. Muitos foram os registros
desses momentos através de fotos e anotações,
que culminaram com a montagem de um mural.
Assim se deu o primeiro movimento investigativo
na EMEF Rincão, que foi um disparador na
compreensão da região, das pessoas, de suas fra-
gilidades e das muitas possibilidades e potências.
O ano de 2009 foi marcado pelo surto nacional
do vírus H1N1, o que levou o poder público da
cidade de Porto Alegre a suspender as aulas por um
tempo longo. Juntou-se a esta situação a saída de
alguns professores que haviam iniciado os trabalhos

28
e participado efetivamente do planejamento da
escola. Ao mesmo tempo, houve a chegada de
professores contratados em situação emergencial,
que estavam assumindo por um período curto
as turmas que haviam ficado sem professores no
segundo semestre. Foram vários os fatores que
interferiram na continuidade dos trabalhos e no
planejamento coletivo nesse primeiro ano, que se
estendeu até janeiro do ano seguinte (2010), mas ao
mesmo tempo, tudo isso mobilizou e impulsionou
a reorganização do grupo. Nesse período, foi
feito um seminário desencadeador que disparou
o planejamento da primeira semana de março de
2010.
Este ano letivo iniciou com a proposta de
uma organização diferenciada desde a primeira
semana de aula, com o objetivo de aprofundar
conhecimentos a respeito da comunidade nos mais
variados aspectos. O trabalho centrou-se em quatro
“ideias-força”3 que serviram como seus disparadores:
EU, objetivando tecer um perfil de quem eram os
alunos da escola; LOCAL, objetivando desenhar o
local de inserção da escola para melhor conhecê-
lo, destacando potencialidades e fragilidades;
VIDA, objetivando tecer uma relação entre a
percepção dos alunos a respeito de si e dos outros
e como se relacionam com esse mundo e com a
vida; ATITUDE, objetivando tecer princípios
orientadores das ações de alunos e professores da

3
Ideias força que buscaram potencializar e integralizar objetivos, atividades e ações de
um planejamento coletivo.

29
escola. O trabalho com a ideia-força LOCAL foi
importante para o conhecimento da comunidade
e para a proposta e a realização de atividades que
contemplassem os interesses e a realidade das
pessoas da região, considerando os saberes locais.
Nesse sentido, as atividades foram pensadas a
partir do mapeamento do bairro, de onde os
alunos marcavam seus locais de moradia, do
trajeto de deslocamento para a escola, dos pontos
de referência da comunidade, dos nomes das ruas
e da localização da escola. Elas foram importantes
para conhecer de onde vinham os alunos, como
vinham para a escola e quanto tempo levavam para
chegar. A partir daí, a ideia foi trabalhar com as
percepções dos alunos quanto às potencialidades
e fragilidades da comunidade. Em relação às
potencialidades, surgiram a valorização das escolas
da região, a importância das áreas verdes e de
preservação existentes, o posto de saúde, locais de
descanso e de caminhadas e os supermercados.
Houve destaque também para a cancha de futebol
e as creches existentes no bairro. Como fragilidades,
foram destacadas a falta de asfalto em algumas ruas,
a falta de ônibus, a necessidade de fazer baldeação
entre diferentes linhas, a falta de áreas de lazer
e a distância do centro da cidade. Esse momento
foi importante e potente, pois possibilitou uma
conversação entre os alunos a respeito do projeto
da escola em múltiplos sentidos. O primeiro deles
foi os alunos darem-se conta de que a proposta
ecoava algumas de suas vozes e da importância de

30
eles se enxergarem ali; outro, foi a possibilidade de
conversação a respeito da valoração dos valores que
circulava na escola, buscando problematizar uma
lógica da universalização, já que ao mesmo tempo
que universaliza, gera alegria e afirma a vida.
Desse modo, os vetores de ação assumidos pela
escola foram se atravessando e provocando diferentes
debates e conversações. Iniciava-se um desafio de
construir um projeto capaz de inventar múltiplos
modos de habitar a escola em seus diferentes tempos
e espaços, na intenção de provocar e questionar
verdades e modelos estabelecidos a priori, não para
negá-los nem substituí-los, mas para problematizá-
los, mesmo que provisoriamente, para perceber
múltiplas possibilidades em cada um e em todos
que compõem o conjunto da escola.
Cabe destacar que a EMEF Rincão pertence à
rede pública municipal de Porto Alegre, portanto,
segue um modo de organização curricular que se
estrutura em três ciclos com três anos cada um,
totalizando nove anos de Ensino Fundamental.
Tendo em vista alguns dados levantados na pesquisa
socioantropológica realizada em 2009 e repetida em
2010, foi decidido pelo grupo de professores que
na EMEF Rincão não tomaríamos como referência
para organizar cada ciclo apenas a caracterização dos
ciclos referida no Caderno Número 94 – cujo texto
parece servir para todas as crianças e adolescentes da
rede municipal de ensino de Porto Alegre –, tendo

4
Caderno Pedagógico número 9 foi o registro de uma proposta de Organização
Curricular das escolas por Ciclos de Formação – 1996.

31
em vista que as referidas pesquisas apresentaram
uma multiplicidade de vidas, desejos, vontades,
caminhadas e aprendizagens.
Iniciava-se, assim, uma problematização em
relação à organização das turmas nucleares montadas
exclusivamente em função da idade dos alunos. E a
partir de várias escutas e múltiplas vozes o grupo,
estava apresentava-se o primeiro desafio: assumir um
movimento de misturar alunos de diferentes turmas
nucleares num momento específico da semana para
trabalhar juntos num outro modo de agrupamento
e também de planejamento. O objetivo inicial
era inventar encontros entre alunos de diferentes
idades, com diferentes vontades, mas interesses
comuns, com professores diferentes, com livros,
sites, trabalhos, blogs que pudessem potencializar a
vida e promover a alegria de viver. Mas como em
qualquer escola, na EMEF Rincão também houve
dificuldades iniciais de diferentes ordens, desde a
falta de crença de alguns professores na possibilidade
de experimentar outros modos de viver seus tempos
e espaços, até a necessidade de adaptar os espaços
físicos disponíveis para um trabalho diferente.
Era uma possibilidade de pensar os alunos da
escola como responsabilidade e compromisso de
todos os professores e funcionários, e não apenas
dos professores-referência das turmas nucleares,
no sentido do fortalecimento dos laços éticos em
todos os anos-ciclo, entre alunos, entre alunos e
professores e entre os diferentes profissionais que
atuam na escola na perspectiva de romper com

32
lógicas identitárias, igualitárias e totalitárias. A
força está na crença de que há múltiplos modos
de ser criança e adolescente, de viver as diferentes
idades em diferentes encontros e em questionar
permanentemente quais culturas infantis e ado-
lescentes circulam na EMEF Rincão e como elas
mexem no modo de ser dos adultos e professores.
Foi necessário o desenho de algumas linhas,
não no sentido de definição de fronteiras, mas
de possibilidades de fazer de outros modos, de
organizar os tempos e os espaços de outras maneiras,
misturando alunos e professores, experimentando
diferentes agrupamentos para além das idades e
níveis de conhecimento, enfim, uma das principais
linhas foi a assunção, em 2010, da experimentação
de um Projeto nomeado MIX, por sugestão de uma
das professoras5 do grupo.
O MIX deu nome a uma experiência que
foi assumida no ano de 2010 pelos professores
do I ciclo e parte do II ciclo com o propósito de
experimentar diferentes modos de organizar os
espaços e os tempos da escola, com a ideia de
oportunizar reagrupamentos livres dos alunos
num determinado dia da semana, de acordo com
o interesse deles pelas atividades propostas; ativi-
dades que logo se transformaram em oficinas
de criação de alunos e professores. A intenção
dos reagrupamentos é fugir de uma lógica gessa-
da em turmas nucleares cujo critério de agru-

5
Professora de Arte Educação, Beatriz Guntzel Heller, integrante do primeiro grupo
docente que chegou à escola em 2009.

33
pamento dos alunos se fixa exclusivamente na
observância criteriosa de idade e escolaridade.
Muitos foram os desafios, pois se trata de
organizar um currículo e toda uma dinâmica de
conversação com pais, alunos, funcionários e
professores quanto à possibilidade de experi-
mentarmos outros modos de ser e viver a escola,
E por tratar-se de uma instituição de ensino, tem-
se que estar permanentemente atento a variadas
questões burocráticas, como registro de encontros,
planejamento, lista de presença dos alunos, carga
horária e outras questões do cotidiano de qualquer
escola que integra uma rede pública de ensino.
Ao final do ano letivo de 2010 já havíamos
acumulado algumas histórias para contar, avaliar,
pensar, propor. Também havia uma vontade
enorme de seguir em frente, não mais com algumas
turmas, mas como um modo de organização
curricular do conjunto da escola. A partir de
2011 esse modo de organização foi assumido por
todas as turmas da escola como uma possibilidade
de potencializar a autonomia, a criatividade e a
participação dos alunos. Os disparadores para
organizar os planejamentos do MIX passam por
Educação Ambiental, Protagonismo Juvenil, Me-
mória, Criação, entre outros, no sentido de arti-
cular ações e colocar em conversação saberes
específicos das diferentes áreas do conhecimento.
A função dos professores é dar suporte teórico,
metodológico e prático aos alunos nos dias em
que estão organizados em suas turmas nucleares

34
para que as atividades do dia do MIX não sejam
desvinculadas do planejamento do todo da escola,
pois mais do que uma experimentação pontual
de um dia específico da semana, o MIX propõe
incorporar-se ao projeto político pedagógico da
escola, ou seja, ser assumido por todos como um
modo de organização curricular da EMEF Rincão.
Cada MIX tem por desafio envolver professores
e alunos em temáticas vinculadas ao planejamento
coletivo e geral da escola, podendo envolver um ou
mais professores. A dinâmica de planejamento do
MIX tem a mesma lógica do planejamento dos ciclos
e anos-ciclos, ou seja, uma periodicidade trimestral.
O registro das atividades também é semanal, com
lista de presença dos alunos e com uma proposta
clara de avaliação, pois tudo isso é levado em conta
no momento dos conselhos de classe. O tempo de
permanência dos alunos em cada MIX é de três
meses, com um critério inicial de que permaneça no
mesmo durante esse tempo.
Esse modo de agrupamento dos alunos nos
MIX ocorre todas as quintas-feiras do ano letivo,
dia em que acontece o encontro pedagógico semanal
dos professores da escola e os alunos saem na metade
do turno, ou seja, pela manhã saem às 10h e à tarde,
às 15h45.
A organização do planejamento geral da escola
se dá a partir do trabalho desencadeador que
acontece a cada início de ano letivo e que envolve
uma pesquisa na comunidade e junto aos alunos.
Nessa pesquisa, são levantadas questões geradoras

35
capazes de fomentar a feitura do planejamento
geral da escola e dos ciclos e anos-ciclos a cada tri-
mestre. Nesse momento, emergem as curiosidades
e desejos dos alunos que são conversadas com os
professores e, posteriormente transformadas em pro-
postas também dos MIX a serem apresentadas aos
alunos para que eles escolham o de sua preferência.
Todos os professores da escola se envolvem, até
mesmo alguns que não atuam diretamente em sala
de aula, como, por exemplo, o professor responsável
pelo apoio pedagógico, o orientador educacional,
o professor da sala de integração e recursos6,
um membro da gestão e todos aqueles que têm
disponibilidade e vontade. Após a apresentação de
cada MIX ao conjunto de alunos de todas as turmas
nucleares, são abertas inscrições com número
limitado de vagas e os alunos se inscrevem junto
ao SOP7. Esse é um momento tenso, pois nem
sempre todos os alunos conseguem participar do
MIX de sua primeira opção devido ao número
limitado das vagas, mas também é um primeiro
movimento de conversação a respeito de conceitos
e concepções, no sentido de exercitar possíveis
negociações, possibilidades e alternativas, para
trabalhar a tolerância, a frustração e para expe-
rimentar a relação entre as forças ativas e reativas,
no sentido de buscar sempre a afirmação da VIDA.
6
SIR – Sala de Integração e Recursos que são espaços específicos que algumas escolas
da RME/POA têm com o objetivo de atender os alunos de inclusão.
7
SOP – Serviço de Orientação Pedagógica da escola composto por Supervisão
Educacional, Orientação Escolar e a Coordenação Cultural. É um serviço que
coordena atividades e planejamentos pedagógicos da escola.

36
Entre as oficinas desenvolvidas nos MIX
tivemos o Mosaico, Arte e Paisagem cuja proposta
foi construir um atelier com a participação de
professores e alunos para desenvolver as técnicas
do mosaico em diferentes espaços da escola; o
MIX Mitos e Crenças, que na primeira edição
trabalhou temas filosóficos e éticos nas religiões e
culturas de interesse dos alunos, colocando em
conversação os costumes naturalizados; na segunda
edição discutiu aspectos comuns e diferentes entre
as religiões; na terceira edição focou na origem e
na história do fenômeno social “lendas urbanas”
a partir do livro Lendas urbanas, de Ana Cláudia
Ramos, e da investigação do papel da internet como
divulgadora dessas histórias. O MIX Filoescrituras
com Kafka teve três edições no atravessamento
da filosofia da diferença e a literatura de Kafka
na problematização da valoração dos valores e
a estética da existência na criação de diferentes
procedimentos de escrita e leitura com alunos do
terceiro ciclo e com uma turma do primeiro ano
do ensino fundamental. O MIX Sabores do Rincão
teve várias edições e abordou a problematização
do consumo de alimentos com vistas a buscar
permanentemente um corpo saudável, tratou a
respeito da fome, das estimativas de consumo e
resto, reaproveitamento e plantio na horta da escola
e incluiu nas conversações como a alimentação nas
diferentes culturas, alimentação equilibrada, a arte
de cozinhar pelas tradições familiares e desenvolveu
atividades no refeitório da escola culminando com

37
a produção de um livro de receitas. Outro MIX foi
o Cultura e Identidade, que propôs conversações
e investigações sobre a questão do que nos faz
brasileiros, gaúchos, porto-alegrenses e moradores
do Rincão através de uma reflexão sobre as múltiplas
culturas, expressões e identidades culturais, sobre
cidadania e sobre pertencimento. O MIX Bonecos
se propôs a investigar sobre as diferentes regiões
do país e do mundo inspirando a confecção de
bonecos de diferentes culturas, utilizando técnicas
diversas, tais como fantoches, mamulengos, títeres,
entre outros. Esse MIX transversalizou ações
com o MIX Fotonovelas e contribuiu com os
bonecos construídos para que fossem fotografados
e utilizados nas histórias das fotonovelas criadas
pelos alunos. Outro MIX foi o Brincadeira é Coisa
Séria que, inspirado na ecoalfabetização, resgatou a
origem das brincadeiras populares, com a proposta
de reutilização dos materiais recicláveis e cuidados
com o meio ambiente. A ideia foi resgatar o brincar
como processo de aprendizagem. Tivemos ainda o
MIX Customização, cuja proposta foi transformar
roupas, guardanapos, toalhas e tecidos em geral
utilizando diferentes técnicas, como apliques de
retalhos, bordados e miçangas. No MIX Internetês e
as influências do nosso idioma, foi proposto analisar
a linguagem do internetês como uma linguagem
que tem o propósito de simplificar e agilizar a forma
de comunicação entre as pessoas, principalmente
aquelas que usam a internet, já que o problema
está em saber o momento em que se deve utilizar

38
ou não tal forma de comunicação. O MIX Pes-
quisando eu também aprendo propôs despertar
o espírito investigativo no aluno fazendo com
que ele desenvolva suas potencialidades através da
pesquisa, a fim de ampliar sua autonomia. O MIX
A invenção de mundo com uma turma do primeiro
ano do Ensino Fundamental, a partir do conceito
de escrileitura, pesquisou o conceito de força na
ciência, na filosofia da diferença e na literatura de
Manoel de Barros, tomando a escrita e a leitura
como estratégias de criação de outras possibilidades
de pensamento, vida e escrita. O MIX Escrileituras e
a estética da existência: nunca é tarde para ocupar-se
consigo mesmo operou por meio do procedimento
genealógico da dissolução, na problematização da
valoração dos valores no presente e dos modos de
subjetivação, no cruzamento do conceito filosófico
do cuidado de si e a literatura de Kafka, na produção
de minicontos e fotografias com alunos do terceiro
ciclo.
Muitos outros MIX foram planejados e desen-
volvidos desde que a escola decidiu se organizar
de outro modo num determinado dia da semana.
Ainda há um desejo forte, intenso e pulsante em
muitos professores, alunos, pais e funcionários de
que algum dia a escola toda possa funcionar assim
durante todos os dias, com alunos que se miXturam
em idades diferentes, ensinando-se e aprendendo-se
uns com os outros.
No decorrer dos acontecimentos dos projetos,
observamos o quanto a criatividade e a potencia-

39
lidade de professores e alunos vão aflorando. Tra-
balhos inéditos de poesias, costuras, mosaico, mitos,
música e muitas atividades voltadas à arte, à ciência,
à cultura e também, porque não dizer, ao lazer e aos
projetos de sustentabilidade, educação ambiental,
customização, criação e fabulação. Atividades tão
envolventes a ponto de percebermos a diminuição
do desinteresse dos alunos pela escola ou mesmo
de desmotivação pelas aprendizagens, o que sem-
pre provocou saídas constantes das salas de aula.
Observamos, também, a integração de alunos
de inclusão aos diferentes projetos ampliando suas
capacidades de aprender com o inusitado do teatro,
da música, da dança, da modelagem, da pintura, da
lida com as plantas, com a terra, na contribuição
com ideias e sugestões, ou seja, se sentindo e sendo
realmente sujeitos protagonistas nas diferentes
ações. É uma resposta para o diferente, um devir,
possibilidade, transmutação e credibilidade em si
e no outro como referência para sua criação e seus
saberes.

Referências
ROCHA, Silvio. Org. Cadernos Pedagógicos 9 – Ciclos de
Formação: Proposta Político Pedagógica da Escola Cidadã.
Secretaria Municipal de Educação. Porto Alegre, Dezembro,
1996

40
Foto: Jade Bacelar Bitencourt
Estudante da escola e participante do atelier
Escrileituras e a estética da existência: nunca é
tarde para ocupar-se consigo mesmo.

Um rebanho
Jade Bacelar Bitencourt

E m um lindo dia de primavera, em uma linda casa, uma


jovem mulher, mãe de duas filhas, dona de casa e
uma excelente esposa, se cansa.
Tendo que limpar a casa, cuidar dos filhos e cozinhar
para seu marido, começa a nascer dentro dela um
grande cansaço. Ela fica presa na responsabilidade de
ser sempre cuidadosa com tudo. A bela mulher está
cansada de limpar e cozinhar.
Esta noite seu marido chega exausto do trabalho, suas
filhas já estão dormindo como de costume. Ele chega
a sentar-se na cozinha, mas repara algo diferente, o
jantar não está pronto. Ele chama sua bela esposa e lhe
pergunta:
– Por que o jantar não está pronto?
– Por que tinha outras coisas para fazer.
– Pode, por favor, pegar a panela e preparar a janta para
mim?
– Tem uma coisa mais divertida para fazer com a panela.
Ela pega a panela cheia de água morna e coloca seus
delicados pés dentro dela. Seu marido, chocado, acha
que ela está louca.
– Você está louca?
– Louca? Eu? Mas por quê?
– Onde já se viu colocar os pés dentro da panela.
– Eu não tenho sempre que lhe agradar. Sou sua esposa,
sua companheira, não sua empregada.
– Eu chego do trabalho cansado, esperando que a janta
esteja pronta e encontro minha esposa com os pés na
panela? Estou com fome, quero comida!
– Se está com tanta fome, prepare seu próprio jantar.
Porque eu também estou cansada de ser empregada.
Boa noite.
Ela sobe e vai dormir. Seu marido continua sentado na
cozinha, mas ainda assim não cozinhou. Sua esposa vai
até lá e lhe diz:
– Levanta dessa cadeira!
– Pronto, levantei. Satisfeita?
– Agora da cadeira que está colada em você!
– Você realmente pirou, não é? Não tem nenhuma
cadeira colada em mim.
– A cadeira do machismo!
– Do que você está falando?
– Estamos sentados em cadeiras morais.
– E o que podemos fazer contra isso?
– Podemos levantar delas, fazendo coisas diferentes e
agindo de formas diferentes.
– Mas vão achar que somos loucos por agir de forma
diferente dos outros.
– E daí? O que importa? Ninguém tem nada a ver com a
nossa vida.
– Não! Você está realmente louca, não é?
– Não, eu não estou louca. Você que não consegue
entender uma coisa tão simples. Tente entender, por
favor.
– Não quero entender nada. Imagine o que os nossos
vizinhos vão falar a nosso respeito. Nossos filhos serão
caçoados na escola por terem os pais diferentes dos
outros.
– Mas isso não importa.
– Como não importa? – Pergunta o homem já impa-
ciente.
– Nossa felicidade não importa para você? – E o marido
grita:
– A minha felicidade está no que os outros pensam
sobre mim e minha família!
– Você está louco com essa ideia de rebanho! Todos
juntos, fazendo as mesma coisas. Ótimo, meu marido
se transformou em um boi de rebanho, e está tentando
me transformar em uma vaca para que se junte a ele!
– Ora, cale a boca e vá se deitar! Nossa conversa hoje
acaba por aqui.
– Mas...
– Vá e não discuta comigo!
– Posso até obedecer hoje, mas você não vai conseguir
mudar o meu jeito de pensar.
A mulher foi se deitar, mas como havia dito, não
mudou o seu pensamento.
O tempo passou e a mulher continuou a obedecer ao
seu marido, que havia se transformado em um boi de
rebanho. A mulher encarnava a responsabilidade como
uma força, mas sabia que era sua maior fraqueza.
Sandra Mara Corazza
Doutora em Educação. Coordenadora Geral do Projeto
Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida.
Pesquisadora de Produtividade do CNPq.
UFRGS/CNPq/CAPES-INEP/FAPERGS. Curso de Extensão
“Escrileituras: conversação, experimentação e criação”.
Escola Municipal de Ensino Fundamental Rincão, Belém
Velho, POA, RS.
Didática da tradução
Sandra Mara Corazza

C
omo, na área da Educação, pensar em ter-
mos dos processos de criação dos domínios
de cada um? Como definir cada domínio
por sua respectiva atividade criadora? Nesse enfoque
criacionista, o que a Pedagogia, o Currículo e a
Didática criam? Quais as especificidades dos seus
atos de criação em processo? O que acontece quando
temos uma ideia em Currículo, em Pedagogia, em
Didática? O Currículo e a Didática ser engendrados
pela criação pedagógica? No caso deste texto: em
que consistem os meandros e os limites de criação
da Didática? O que é criar didáticas? Como se dão
as ações de ver, falar, escrever, interpretar e traduzir
de maneira didática? Como ocorrem a produção de
informes e a irrupção de novidades didáticas? Para
criar em Didática, em que medida necessitamos de
outros processos, como os literários, cinematográficos,
musicais, plásticos, científicos, filosóficos? Quais as
diferenças entre esses processos e os didáticos? Como
desenvolver didáticas, a partir de um objeto, tema
musical, fórmula matemática, passo de dança, fato po-
licial, ritmo, melodia, pintura, filme, ensaio, romance?

47
De onde surgem as formas didáticas? A Di-
dática carrega um capital prévio de formas, tal
como sugerido pela ideia de estrutura? Ou a forma
didática é sempre inédita, enquanto um fenômeno
de auto-organização da matéria (Focillon, 2001)?
A Didática abala qualquer estrutura ou forma
preestabelecida, segundo sua mobilidade vai se
processando; a qual inclui até mesmo o ponto
de vista criador? Os planos, esboços e esquemas,
definidos didaticamente, devem ser esquecidos em
algum momento para que sucedam rasuras, silên-
cios, grau zero? Como a criação didática atribui
valor e sentido a elementos de perceptos e afectos,
fabulados pela Arte; das funções, produzidas pela
Ciência; e dos conceitos, criados pela Filosofia
(Deleuze e Guattari, 1992)? Como a Didática
opera com esses elementos para torná-los didáticos?
De que maneira os didatas contemporâneos,
criadores de didáticas (ANPED, 2012; ENDIPE,
2012), processam esses elementos e os integram
ao mundo educacional? Ao educar, cada um de
nós cria didáticas? Quais? Como? Quando? Onde?
Por quê?
Tomando tais questões como desafios, este
texto localiza a Didática como resultante dos atos
de criação pedagógica e, ao mesmo tempo, como
o meio por que a própria Pedagogia funciona ao
atualizar-se em Currículo: “a didática, o que se
cria em Pedagogia, é um modo, um processo de
atualização de uma ideia de natureza pedagógica,
que se expressa em currículos”. Oliveira (2012,

48
p. 27) pensa a Didática como inseparável de
variadas traduções e definições comunicáveis; em-
bora provisórias e sujeitas a contínuas reformu-
lações. Considera os percursos realizados na
história da Didática (Candau, 1984; Pimenta,
1991; Libâneo, 2012) como índices de processos
singularmente criadores de conhecimento, registro,
memória, tratamento metodológico, relacional e
dialógico. Encontra alegria no babelismo didático
de diferença e abertura, passagens e transposições,
pluralidade e multiplicidade de influências, textos
e autores. Configura a Didática como um território
transdisciplinar, translinguístico, transemiótico,
transliterário, transartístico, transcultural e trans-
pensamental, que nasce e vive em diversas obras
de diferentes línguas (Barthes, 2006).
Oliveira concebe esse território didático in-
dissociável de uma ética, de uma política e de
uma prática tradutórias, que realizam artistagens
(Corazza, 2006; 2011; 2012a), desde os seguintes
apoios teóricos: a) filosofia da diferença, atinente
à criação e ao pensar (Deleuze, 2003; Deleuze
e Guattari, 1992); b) teorias da tradução literária
no Brasil, que a tratam como processo criador, ao
lado de Haroldo de Campos (1972; 1976) e Au-
gusto de Campos (1978; 1986); c) obra de Paul
Valéry (1997; 1998; 2003) relativa a exercícios do
informe e do método de criação; d) formulações
didáticas contemporâneas, especialmente de Selma
Pimenta (2011) e Vera Candau (2012), dentre
outras.

49
DidáticArtista

É em transcursos e circuitos de tradução que


a Didática-Artista (pronuncia-se didaticartista)
movimenta os seus processos de pesquisa, criação e
inovação. Acolhe e honra os elementos científicos,
filosóficos e artísticos – extraídos de obras já
realizadas, que diversos autores criaram, em outros
planos, tempos, espaços – como as suas efetivas
condições de possibilidade, necessárias para a
própria execução, e, ao mesmo tempo, como o
privilegiado campo de experimentação, necessário
para as próprias criações. Com esses elementos,
constitui um campo artistador de variações
múltiplas e disjunções inclusivas; que compõe
linhas de vida e devires reais, pontos de vista ativos e
desterritorializações afirmativas.
A principal matéria da DidáticArtista é a
vida per se, promovida por encontros com formas
de conteúdo e de expressão do mundo histórico,
filosófico, geográfico, científico, artístico e
linguístico. Ao mesmo tempo em que se apropria
dessas formas, desafia as línguas que as produziram,
liberando-as dos meios que as articularam. Conserva,
no entanto, traços dos elementos originais,
transformando-os e agenciando-os de maneiras
inusitadas. O seu realismo não se reduz, assim,
à mimese do real; uma vez que busca, aí, o outro
misterioso da realidade, que possibilita a existência
didática criadora. Contrária ao idealismo e ao
racionalismo, suscetíveis a imagens de pensamento

50
e a problemáticas culturais, a Didática agita-se num
misto de empirismo transcendental (Deleuze,
1988), que valoriza a multiplicidade.

Processo de tradução
Considerando que “a vida deve ser traduzida,
como processo de criação” (Villani, 1999, p. 71),
a tradução percorre a DidáticArtista como um
dispositivo que a desencadeia e uma prática que
a desdobra. Sua natureza didática passa a ser
constituída pela tradução de perceptos, afectos,
funções e conceitos; vertendo-os das línguas em
que foram criados e expressando-os na cultura,
no meio e na língua da Didática. Nesse processo
tradutório, distingue entre descoberta e invenção;
já que a descoberta “incide sobre o que já existe,
atualmente ou virtualmente; portanto, cedo ou
tarde ela seguramente vem”; enquanto “a invenção
dá o ser ao que não era, podendo nunca ter vindo”
(Deleuze, 1999, p. 9).
A Didática funciona, preferencialmente, sobre
o plano empírico-transcendental de uma tradução-
invenção, que liga o tempo ordinário e a produção
de novos elementos artísticos, científicos e filo-
sóficos; não segue “linha reta, nem nas coisas,
nem na linguagem”, mas assume “desvios femini-
nos, animais, moleculares” (Deleuze, 1997, p. 12;
Deleuze e Guattari, 1977). A tradução didática
é, assim, uma espécie de “des-tradução”; que não
age como “teoria da cópia ou do reflexo salivar”,

51
e sim como “produção da di-ferença no mesmo”
(Campos, 2008, p. 208) ou uma “operação contra a
corrente” que, mais do que transferir elementos para
a língua didática, toma os originais distantes “como
ponto de chegada” em direção ao qual expande a
própria língua (Mandelbaum, 2005, p. 198).
Nas relações educacionais, curriculares e
pedagógicas, com os mundos da Arte, da Filosofia e
da Ciência, essa tradução introduz novos modelos,
ideias, gostos, vocabulários, sintaxes, estilos. Sendo
mimética e não mimética a um só tempo, funciona
como a força motriz das mudanças, assegurando uma
“sobrevida” dos elementos originais, como “estágio
do seu perviver”; para que vivam “mais tempo e
também de modo diverso”. Capaz de anamorfoses,
quando reescreve e repensa os originais, torna-se
capaz “de ser ela mesma e um outro” (Paz, 1981,
p. 11).
Acontece que, para a Didática da Tradução,
todas as línguas são diferenciais. E pela via do
trânsito entre o original e sua tradução, requer
diálogos entre elas, sob a condição de que cada
língua aceite tornar-se dupla de si mesma. A
tradução é, dessa maneira, um ato político, que
desfuncionaliza línguas instrumentais e aproxima
distâncias, num processo de transformação cultural.
Em seus atos de traduzir, opera como meio que
desestabiliza o próprio status quo da linguagem
educacional. Revela-se como dissidente das línguas
legitimadas, transtornando suas palavras originais,
para lhes devolver “o sentimento do diferente, o

52
poder de conceber o ‘outro’”, numa reconfiguração
de si própria. Vertendo, refratando, mesclando e
reescrevendo saberes, desejos, sujeitos, valores,
pla-nos de pensamento e culturas, enceta ações
recíprocas entre as línguas traduzidas; desapropria
pertencimentos, liberando “referências a sangue,
solo ou história coletiva”; alimenta-se de diferentes
línguas, sem sofrer “de otite” (Matos, 2005, p. 144;
p. 139; p. 132).
A tradução didática é, então, “transcriação e
transculturação”; já que textos e séries culturais
“se transtextualizam no imbricar-se subitâneo
de tempos e espaços” diversos: “transcodagem.
Tropismo. Tradução” (Campos, 1976, p. 10-11).
Consiste numa questão de forma, mas também
de alma, na ressonância do poema de Augusto de
Campos (1986, 2ª orelha):

re-criar é a meta/ de um tipo especial/de tradução:/


a tradução-arte// mas para chegar à/re-criação/ é
preciso identificar-se/ profundamente/ com o
texto original/ e ao mesmo tempo/ não barateá-
lo/ enfrentar todas as suas/ dificuldades/ tentar
reconstituir/ a criação/ a partir de cada palavra/
som por som/ tom por tom/ é uma questão de
forma/ mas também/ é uma questão de alma.

Dobra transcriadora
Como prática teórica transcriadora, à Didática
importa não reconstituir a informação semântica
ou formal de um elemento original, mas recons-

53
tituir os movimentos de sua língua e sistema de
signos. Portanto, pode ocupar-se de linguagem
verbal e não verbal; elementos de estrutura e visuais;
homologias fônicas e sintáticas; espacialização e
imagética visual; filmes e cartazes publicitários;
combinações sonoras e coreografias logopaicas;
assonâncias, rimas, aliterações, métrica, ritmo,
melodias, canções; fórmulas e equações matemá-
ticas; etc. Essas traduções não são funcionais,
automáticas, etimológicas, estruturalistas, herme-
nêuticas, celebrações epifanísticas, sobretraduções,
semidecalques, superafetações; também não soam
como extravagâncias; não traduzem palavra por
palavra, linha por linha; não transmitem mensagens;
não contém purismos acadêmicos; não explicam
os textos pelo contexto histórico, econômico,
social, ideológico ou político.

Didata-tradutor
O Professor não se obriga a transmitir o
conteúdo literal ou verdadeiro dos elementos
originais científicos, filosóficos, artísticos; não faz
cópia, dublagem ou fingimento; não é um bufão,
escravo ou ladrão dos autores e das obras que traduz;
não busca a autenticidade textual; não preserva
a essência dos originais; não é um conselheiro,
que goza de intimidade com as obras; não trata
o original como sagrado; não remove a tampa de
um poço escuro; não é filtro do autor ou chave do
texto; não é fotógrafo, taxidermista ou anatomista;

54
não é filólogo, erudito ou paleólogo; não é o
traduttore-traditore (tradutor-traidor) do trocadilho
italiano, nem o sourcier-sorcier (descobridor de fontes
e mágico) dos franceses; não é um autor-camaleão
ou um “trad-revisor”; não tira a casca que reveste
“a fruta original”, nem ergue um “manto real de
amplas dobras”; não faz “treinamento na selva”, nem
protagoniza uma “ressurreição” (Milton, 1998,
p. 2-6; Santaella, 2005, p. 227).
Suas traduções, também, não têm o escopo
de servir como simples auxiliares à leitura dos ori-
ginais. Ao contrário, esse Didata-Tradutor é um
escrileitor (escritor-e-leitor), que transcria e trans-
cultura os elementos científicos, filosóficos e ar-
tísticos, reconhecendo a sua própria produção,
em meio a um “universalismo polimorfo e cos-
mopolita”, de tipo novo: “transverso a governos,
economias e mercados”; e que “instala em nós a
diferença como condição de nosso estar com os
outros” (Mandelbaum, 2005, p. 199; Matos,
2005, p. 134). Sem medo do novo ou medo do
antigo, defende “até a morte o novo por causa do
antigo e até a vida o antigo por causa do novo”, uma
vez que “o antigo que foi novo é tão novo como
o mais novo”; cabendo-lhe discernir entre eles
(Campos, 1978, p. 7).
Não se contentando com repetições empo-
brecedoras, o Professor procede a uma re-doação
da forma, ao empregar recepções disseminadas dos
originais, que prefiguram aquelas do “espectador de
cinema, enquanto examinador distraído” (Oseki-

55
Dépré, 2005, p. 214). Reconhecendo-se como
datado e situado em sua contemporaneidade e
necessitando tomar decisões criadoras, que confi-
ram algum sentido aos originais da Arte, da Ciência
e da Filosofia, trata-os como diferentes de tudo
aquilo que ele mesmo poderia produzir em cada
uma dessas áreas. E quando não consegue efetuar
uma tradução que produza a diferença, presume ter-
lhe faltado a imaginação necessária: “se o tradutor
não traz o seu próprio ser, seu relacionamento
com sua sociedade”, o resultado da tradução será
“artificial, frágil e flácido” (Milton, 1998, p. 101).

Procedimentos didáticos
Nas ações de traduzir didaticamente, cada
elemento original é concebido e tratado como algo
já criado, mas “visto por alguém que só pode enfocá-
lo pela ótica do tempo presente” (Campos, 1972,
p. 112). Logo, os procedimentos tradutórios não
compreendem ou referem-se a sistemas prontos de
interpretação; mas desenvolvem experiências que
têm relação com modos de desterritorialização do
existente. Por isso, pretendem que os elementos
didáticos, emersos dos originais, valham em lugar
dos mesmos, para fazer com que a Didática funcione
criadoramente.
Por conseguinte, o Professor é um agente de
fluxos da invenção, reproduzindo “o original com
sua marca distintiva” (Milton, 1998, p. 221).
Assim, suas traduções transgridem as circunscrições

56
sígnicas; rompem a relação aparente entre forma
e conteúdo; recusam-se a ficar atreladas à “tirania
de um logos pré-ordenado”. Subversoras por exce-
lência, propõem-se, no limite, a ser operações
radicais de transcriação; visando converter, “por
um átimo que seja, o original na tradução de sua
tradução” (Santaella, 2005, p. 228).
Entretanto, mesmo que um elemento tradu-
zido traga sempre algo de novo ao mundo, “por
força, há de se manifestar através das ideias já
prontas que encontra à sua frente e arrasta em seu
movimento” (Bergson, 2006, p. 129). Ou seja, o
Didata traduz ideias prontas; porém, o faz “sob o
signo da invenção”, que rasura a origem e oblitera
a sua originalidade, visto que a tradução está, para
ele, desde o início, disposta “como espécie da cate-
goria criação” (Campos, 1972, p. 111).

Elementos isomórficos
Em cada Didata-Tradutor, habita, por conse-
guinte, um Autor; constituído por lances inventivos,
visto que traça “uma espécie de língua estrangeira,
que não é uma outra língua, nem um dialeto regio-
nal redescoberto, mas um devir-outro da língua”.
Tumultuando a linguagem da Educação, escava
uma outra língua nas línguas originais; fazendo
com que estas sofram, por sua vez, reviravoltas, que
as levam “a um limite, a um fora ou um avesso que
consiste em Visões e Audições que já não perten-
cem a língua alguma” (Deleuze, 1997, p. 15-16).

57
Os procedimentos tradutórios implicam mais
do que transportar ou transladar os sentidos de
uma língua para outra; visto que o elemento a ser
vertido é recriado de acordo com um “estoque de
formas”, referente ao domínio das possibilidades
de agenciamento “da língua para a qual o texto é
traduzido” (Campos, 1972, p. 110). Rompendo
com o traçado reto da tradição, a Didática apropria-
se dos elementos originais da Arte, da Filosofia e da
Ciência, tornando-os seus; e, neles, fazendo ecoar
a própria voz do Didata de modo a não conseguir
mais separá-la das vozes precursoras. Assim, para
que a língua-meta capture forças, repertórios,
perspectivas e sentidos das línguas originais, a
maior responsabilidade do Professor é agir como
um atualizado e competente escrileitor daqueles
elementos que são transcriados. A sua língua
materna será, a partir de então, a didática, usada
para liberar as línguas precedentes.
A fim de realizar essa apropriação criadora, o
Professor necessita apresentar: “nível curricular”, para
selecionar os mais importantes elementos filosóficos,
artísticos e científicos do seu tempo e seu espaço;
“irreverência temática” para privilegiar elementos,
obras e autores emergentes, marginalizados ou
anômalos, que introduzem novos e heterodoxos
temas, questões e problemas; manejo da linguagem
educacional, como instrumento de experimen-
tação dos variados elementos das línguas; além de
trabalhos “de estruturação e de ajuste”, feitos em
termos de artesanato (Milton, 1998, p. 209-210).

58
É preciso que o DidatArtista mantenha uma
relação de isomorfia (paramorfia, do sufixo grego
pará, “ao lado de”, como em paródia, “canto
paralelo”) entre os elementos originais e as tra-
duções. Para que, operatoriamente, as traduções
didáticas consistam em “criação paralela, autô-
noma, porém recíproca” (Campos, 1992, p. 35),
que evita “o problema das equivalências sem cair
na ideia de tradução-cópia do original” (Oseki-
Dépré, 2005, p. 214).

Trabalho crítico e técnico


O Professor domina a tradução quando co-
loca o “seu próprio ser dentro dela”. Para tal,
permite que uma tradução seja mais subjetiva “do
que imitação e mais visceral do que paráfrase”,
escolhendo reproduzir o significado do original
e ficar abaixo do nível estético do restante; ou,
então, garantir um equivalente próximo. Uma das
normas básicas da tradução didática fica sendo
“verter, não inverter” (Campos, 1986, p. 17). Além
disso, importa também não se entregar a traduções
facilitadas (“pseudotraduções”), feitas com termos
preestabelecidos, que não possibilitam contato
com outros modos de pensamento e estilos de
escrever e ler. Ainda, não fingir que os elementos
de partida são escritos na mesma língua de chegada;
pois essa condição transmite uma “ilusão do natural”
e a impressão que as línguas são transparentes
(Milton, 1998, p. 167).

59
Sendo crítica e técnica, a tradução é uma “for-
ma privilegiada de leitura” (Campos, 1972, p. 115),
resultante de “uma leitura afiada, detalhada, quase
musical” (Mandelbaum, 2005, p. 198). Leitura
que compreende não a simples descodificação
do elemento original, mas o mapeamento das
condições em que foi criado, em termos do espaço-
tempo que ocupa na língua e na cultura de origem,
na literatura da área, no conjunto da obra do autor.
Na continuidade, o movimento é o do trabalho
transcriador, por meio do qual os elementos didá-
ticos são transvertidos.

Estratégia de renovação
Através da DidáticArtista da Tradução, o
velho é tornado novo, seguindo a máxima de Ezra
Pound (2006): make it new – isto é, renovar,
vitalizar, dar nova vida àquilo que passou. Ao
traduzir os elementos filosóficos, científicos ou
artísticos, a Didática reconfigura-os inventiva-
mente, num palimpsesto que ultrapassa qualquer
limite disciplinar; inclusive os seus próprios. Em
suas operações programáticas, lida com a tra-
dução, tanto no aspecto micro, de procedimentos
transcriadores; quanto no aspecto macro, sistêmico,
de seleção dos elementos a serem traduzidos.
Guiada pelo valor da interlocução crítica com o
alheio a si, anima-se na confluência isomórfica entre
esses elementos e aqueles transcriados, tornados
didáticos.

60
Na produção de traduções, o Didata considera
“boas” aquelas que funcionam; isto é, aquelas
que atribuem vita nuova aos originais e passam a
sensação de que eles ainda vivem. Por outro lado,
considera traduções didáticas “ruins” aquelas que
matam a vitalidade para pensar, ler e escrever o
elemento traduzido, tornando-o desqualificado,
fácil, trivial ou comum. O erro elementar do
Professor é conservar o estado da própria linguagem
educacional sem deixá-la ser afetada por outras
línguas; e a sua maior covardia (diante da aparente
impossibilidade de traduzir) é desistir de realizar
as traduções antes mesmo de começá-las ou de
terminá-las.
Em Didática, uma tradução será honesta-
mente exitosa se assumir a função de um verdadeiro
elemento científico, filosófico ou artístico, e não
apenas como uma tradução, que queda em lugar
desses elementos. Assim, em vez de mera repre-
sentante ou substituta dos perceptos, afectos, con-
ceitos e funções, a tradução será eficaz se, após
minuciosamente trabalhada, tornar-se autônoma
como uma obra de Arte, de Filosofia ou de Ciência. Isso
acontecerá, se guardar, com os elementos de partida,
relações de reimaginação, para além do literalismo
rudimentar e da banalidade explicativa. Então, as
traduções do Professor-Artista poderão, por vezes,
tornar-se mais importantes do que os originais; desde
que a língua didática mostre-se digna de repercutir os
seus impactos, enquanto estratégia de renovação dos
sistemas educacionais e culturais contemporâneos.

61
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64
Foto: Carlos R. B.
Estudante da escola e participante do atelier
Escrileituras e a estética da existência: nunca é
tarde para ocupar-se consigo mesmo.

Jejum de obrigações
Carlos R. B.

A primavera – época de estocar alimentos para a chega-


da do inverno. Logo de cara a formiga sai com seu
exército, todo seu formigueiro mobilizado na busca
de alimentos. Um tempo depois, chega a cigarra,
calmamente vai, junta poucos grãos e já dá seu trabalho
por encerrado. As formigas, vendo isso, riem entre si,
dizendo:
– “Trabalho não é seu forte”.
A cigarra reponde:
– “Essa preguiça de agir, que vocês dizem, é meu modo
de pensar antes de decidir”.
Contestando de novo, as formigas dizem:
– “Força para ser preguiçoso não lhe falta”.
A cigarra rebate:
– “Por ser assim, não me afogo em coisas inúteis”.
Chegada a noite, as formigas socam no formigueiro
seus mantimentos. Já a cigarra cantarola feliz a sua
preguiça.
Mais um dia de trabalho, e mais gozações em cima da
cigarra, cansada de resistir contras as coisas que tentam
lhe colocar goela abaixo sem ela querer.
Quando chega o inverno, as formigas se veem
em uma enrascada: seu formigueiro está lotado
de coisas. Sem ter como se mexerem, as formigas
morrem afogadas pelas chuvas da estação. Já a
cigarra, em sua toca, cantarola por estar viva, sem
ter exagero em alimentos e sem estar cansada.
Tinham tentando socar-lhe coisas goela abaixo. Fez
jejum de obrigações. Era o que tinha alimentado naquele
inverno.
Betina Schuler
Professora do Centro de Ciências Humanas da Educação
e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade de Caxias do Sul. Doutora em Educação e
Pós-Doutorada em Educação e em Ciências Humanas.
Por entre escritas, leituras
e cadeiras: o procedimento
genealógico e o cuidado de si
Betina Schuler

1 Uma abertura

E
ste artigo toma a escrita e a leitura como
técnicas possíveis do cuidado de si na escola.
Para tanto, parte da experimentação do
atelier Escrileituras e a estética da existência: nunca
é tarde para ocupar-se consigo mesmo, realizado na
Escola Municipal de Ensino Fundamental Rincão8,
Porto Alegre (RS), no ano de 2012, com alunos
dos anos finais do ensino fundamental. Esse atelier
deu-se por meio do projeto Escrileituras: um modo
de ler-escrever em meio à vida, Edital 038/2010,
CAPES/INEP, vinculado ao Observatório de Edu-
cação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), especialmente a partir do subpro-
jeto de pesquisa A escrita, o cuidado de si e a estética
da existência: uma experimentação genealógica no
8
Atelier trabalhado com os alunos na escola pela autora no período em que atuava
como professora na EMEF Rincão.

69
Ensino Fundamental. Do mesmo modo, é vinculado
à pesquisa A escrita, a leitura e o cuidado de si:
experimentações genealógicas no Ensino Fundamental,
desenvolvida no PPGEDU da Universidade de
Caxias do Sul, na linha de pesquisa de História e
Filosofia da Educação.
A escrita e a leitura na escola na contem-
poraneidade vêm sendo tomadas como mera ques-
tão técnica de decifração e registro de códigos,
como duplicação de verdades estabelecidas nos
livros didáticos, por professores e autores, como
autodecrifração e classificação em relação a si mesmo
e aos demais. Práticas de escrita e leitura tomadas
pela perspectiva da representação, a qual coloca em
movimento a gramática da escola ocidental moderna,
por meio de uma moral prescritiva e de discursos
psi e cognitivistas. Assim, vêm sendo operadas
pelos instrumentos disciplinares na aferição dos
resultados de alunos e professores, bem como em
práticas biopolíticas nas avaliações nacionais. Com
isso, não se nega as práticas de avaliação e medição
da escrita e da leitura tão fortemente operadas no
presente, mas busca-se tomar a escrita e a leitura
na escola a partir de outra ordem, como técnicas
possíveis de subjetivação, como táticas possíveis de
exercitar o cuidado de si.
A partir de tais sintomas do nosso presente, o
que se busca não é a denúncia de tal diagnóstico,
e sim pensar as práticas de escrita e leitura na
escola com outros aportes. Para tanto, a partir da
inspiração genealógica em Nietzsche (2006) e

70
Foucault (2002a; 2003b; 2011), atravesso neste
artigo as práticas de leitura e escrita na escola
com o conceito de cuidado de si e as práticas de
subjetivação, a partir das teorizações de Foucault.
Trata-se de certa apropriação desses conceitos para
fazer outras coisas com isso, ou seja, tomar um uso,
tal como um ferramental conceitual, para pensar as
práticas de escrita e leitura na escola contemporânea
em suas possibilidades éticas. Trata-se de operar com
o conceito do cuidado de si genealogicamente a fim
de movimentar as discussões teóricas sobre escrita
e leitura, atravessando o campo da educação com a
literatura e a filosofia da diferença para criar outras
possibilidades de pensamento.
Com este diagnóstico do presente e a fim
de forçar o pensamento a pensar outras coisas,
produziu-se esse atelier como possibilidades de
vivermos e pensarmos tais práticas, problematizando
a valoração dos valores e os modos de subjetivação
que nos atravessam em suas possibilidades de
cuidado, no atravessamento das filosofias de
Nietzsche (2006) e Foucault (2011) e da literatura
de Kafka (2009).
Todavia, as produções dos alunos não são aqui
tomadas como “dados coletados para análise”, mas
como parte constituinte da pesquisa em questão, a
fim de produzir possibilidades de experimentação
da escrita e da leitura em detrimento das normas
formais, das médias e dos cálculos, tomando a
vida como matéria principal em arranjos outros
entre obras, autores, valores, modos de existência,

71
abrindo outras composições para o pensamento
(Corazza, 2011). É com esses atravessamentos que
se pensa a escrita e a leitura como estratégias de vida
e pensamento na criação de outras possibilidades de
existência, para além da lógica platônica-cristã que
opera com uma verdade original e com a divisão de
modelos e cópias.
Por isso a necessidade de marcar em que
condições de possibilidades são operadas a leitura e
a escrita na escola, problematizar de que modos as
práticas de leitura e escrita podem ser atravessadas
pela perspectiva do cuidado de si na filosofia e na
literatura da diferença, tomando de empréstimo
procedimentos operados pelos autores trabalhados
nos ateliers na escola. O que interessa são os efeitos
de tais experimentações nesse pensar contra o
presente, questionando o valor de verdade que nos
marca. Trata-se, pois, de invenção de possibilidades
de respiro a uma moral de rebanho que nos engole
com o entupimento curricular, com a escrita como
duplicação da leitura e do pensamento tratado
como explicação, tendo como princípio o sujeito
cognoscente. Trata-se aqui de uma escrita não das
substâncias, mas das forças, da valoração dos valores,
sua sintomatologização, e da invenção de frestas.

2 A gramática escolar moderna e as


possibilidades de escapes
A genealogia nos possibilita fazer outras
perguntas sobre o que se passa na escola, pois não

72
trata dos conceitos como universais, uma vez que
problematiza a verdade como um valor que esqueceu
que o é. Ao invés de perguntar o que é aprender, o
que é ler ou escrever, pergunta: quais as condições
possíveis para pensar e fazer outras perguntas
que não sejam eminentemente parte do discurso
metafísico da linguagem? Em que condições de
possibilidade existe a escola contemporânea? Em
que condições de possibilidade são consideradas a
leitura e a escrita na escola? Quem, como e quando
se lê e se escreve na escola? Quem quer a leitura e
a escrita na escola? Que vontade de verdade tem a
sociedade disciplinar e de controle sobre o ler e o
escrever? Quais as possibilidades de tomar a escrita
e a leitura como técnicas possíveis do cuidado
de si em brechas? De que modos a filosofia e a
literatura da diferença podem provocar a criação
de procedimentos e estratégias específicas para
outra relação com a escrita, a leitura e os modos de
existência na escola?
Podemos falar de uma gramática escolar
contemporânea atravessada pelo disciplinamento
dos saberes, dos corpos, dos tempos e dos espaços,
marcada pelo higienismo e pelas práticas de
normalização. Foucault trouxe a escola nessa
articulação de um poder disciplinar e biopolítico no
controle de indivíduos e das populações (Foucault,
2002a; 2002b). Hoje, falamos de sintomas de
uma sociedade de controle, em que o panóptico
está generalizado, tal como um rastelo digital e
eficiente (Deleuze, 2008). Práticas fundamentadas

73
em uma lógica da representação que colocam a
escrita e leitura na escola para serem operadas como
uma questão de habilidade técnica, um modo de
decifração de um código, de reproduzir um conteúdo
dado a priori, para confirmar um conhecimento já
estabelecido, transcrever uma realidade, tal como
uma coincidência com um real dado em si mesmo,
como um modo de registrar uma memória, como
uma maneira de autodecifração, de confissão para
a classificação.
Dessa maquinaria, que tão bem articula poder e
saber na produção de modos de subjetivação, temos
a invenção de um modelo de humano tomado como
medida de si mesmo, e a escola como tendo a função
de realizar tal produção. Essa invenção do sujeito
moderno ganha, pois, fixidez como natural e passa
a reger a vida na escola e a dos indivíduos que ali
circulam. Temos aí, na esteira da lógica pastoral e
governamental, uma gramática escolar na produção
de eus, cobrados de estarem ligados a si mesmos em
sua suposta interioridade. Trata-se de seres viventes
tomados como objetos para diversas ciências,
amarrados a tecnologias políticas, tecnologias de
poder, as quais passam pela maquinaria de escrita.
A escola moderna passou por toda uma
organização disciplinar, racionalização e controle
da instrução através da elaboração de métodos de
ensino inspirados em uma psicologia na esteira
de um poder pastoral. Essa cultura cientificista,
a qual se delineia bem no século XIX, opera com
a escola nessa formação de indivíduos a partir de

74
uma razão iluminada, de um sujeito fundante que
habitaria em cada um de nós. A pedagogia assume-
se como a ciência que estuda as crianças e mede a
sua inteligência. Inventa-se o conceito de aprendiz
no século XIX como o “eu em desenvolvimento”,
passível de mensuração. E toda essa maquinaria
passa pelas práticas de escrita e leitura na escola, as
quais produzem os objetos de que falam (Foucault,
2002b).
Todavia, não se trata de denunciar o que não
está certo com a escola, mas analisar essas relações
como questões de saber, poder e subjetivação. Trata-
se de uma tentativa de experimentar essa relação
para além da listagem de conteúdos que deve ser
“repassada” aos alunos, para além de uma escrita
regida pela vontade de verdade, numa tentativa
de escape dessa escrita socrática que escreve para
confirmar o que já se sabe, para confirmar uma
verdade: a do mestre, do autor, do texto da revelação
ou até mesmo a vontade de salvação.
Essa outra relação aqui proposta poderia operar
com o conhecimento como ficção, podendo, a partir
disso, perguntar pelas condições de possibilidade de
tais práticas de leitura e escrita na escola e não outras
em seu lugar, pelas temáticas e por que não outras.
Perguntar por que esses valores e não outros. E
valores para quem? Trata-se, assim, de criar brechas
de escape, ao estilo kafkiano, de práticas de leitura
e escrita que buscam um eu validando a si mesmo,
uma unidade, uma totalidade para perguntar pelo
campo das experiências possíveis no presente.

75
Assim, Corazza (2011) traz as Oficinas de
Transcriação como possibilidade de criação para
além das normas formais, em que a matéria principal
seja a vida. Uma resistência pela multiplicidade
contra a mesmidade, extraindo das coisas forças
para fazer outras coisas com elas. Remetem-se tais
oficinas a uma arte menor inspirada em Kafka, nesse
afastamento da axiomática dominante, amputando
os elementos de uma língua maior, para além
da pretensão de escrever sobre a realidade. Uma
minoração da língua (Deleuze e Guattari, 2002).
A partir disso, retoma-se Foucault (2004; 2011)
no estudo do que este chamou a idade de ouro do
cuidado de si e, especificamente, do que foi buscar
em Sêneca sobre uma outra relação possível com
a escrita. O interesse era o da constituição de um
corpo pela escrita e pela leitura. Por isso, trata-se
de exercício, de pensamento e ética de vida, que
pode nos equipar para inventarmos outros modos
de existência. Trata-se, pois, de uma escrita e de
uma leitura emergindo da necessidade, assim como
os modos de existência. A partir disso, coloca-se a
questão: é possível educar-se para isso, para ficarmos
vigilantes com nossos modos de vida na criação
de outras possibilidades por meio de tais práticas
de leitura e escrita, aqui pensando na escola no
presente?

2.1 Subjetivação, escrita e o cuidado de si


A partir de tal discussão, busca-se no ferra-
mental foucaultiano conceitos tomados para co-

76
locar essa problemática em movimento. Foucault
(2002c) opera com a dissolução do sujeito e,
consequentemente, com um desapossamento
do autor dono da verdade. Não se trata mais do
eu cartesiano, mas justamente da dissolução do
sujeito que fala, uma vez que se trata apenas de
uma questão gramatical que entende o pensamento
tendo sua origem em um self (Foucault, 2002b;
2009). Foucault analisa a invenção do homem, do
sujeito do conhecimento nas ciências humanas,
como aquelas com a função de definir e hierarquizar
a normalidade e a anormalidade do humano em
dispositivos de segurança e, também, pela filosofia
moderna.
Na esteira dessa discussão Foucault (2002c;
2009) problematiza os conceitos de autor e obra,
sustentados pelo surgimento do homem na história,
trazendo que quando a literatura rompe com tais
categorias totalizadoras, ligadas a uma concepção
humanista de arte, rompe com a lógica em que
o sujeito está no centro do pensamento. Assim, a
linguagem pode retornar a si mesma, em que se
supre o autor em favor da escritura, rompendo
com a lógica da representação; o que abre para
a possibilidade de lidação com a linguagem na
multiplicação dos sentidos. A literatura possibilita,
pois, uma relação que ultrapassa os binarismos
interior e exterior, sujeito e objeto, eu e o mundo.
Daí a importância da problematização genealógica
que pergunta quais as condições de possibilidades
para o que podemos ver e dizer no presente, em se

77
tratando da relação entre as práticas de subjetivação,
a escrita e a leitura. Daí a possibilidade dessa
experimentação entre filosofia e literatura, o que
nos abre para a pergunta: de que modos isso abre
para uma relação outra com o pensamento, que se
dirige não a um sujeito cognoscente e a estruturas
mentais de raciocínio? Quais modos de subjetivação
estão nos atravessando? Quais técnicas específicas
produzem o que vemos e falamos (Foucault,
2009)?
Para isso, busca-se em Foucault (2007; 2011) as
práticas de subjetivação e o conceito de cuidado de
si na antiguidade grega e romana e o deslocamento
ocorrido do cuidado para o conhecimento de si,
ainda com os atravessamentos platônicos para a
lógica pastoral cristã e a perspectiva racionalista
cartesiana. Foucault (2011) realiza tal conversação a
partir de três movimentos. O primeiro, denominado
de socrático-platônico, traz o conceito tal como
emerge na filosofia, na tradição socrático-platônica,
trazendo o preceito délfico “conhece-te a ti mesmo”.
Assim, o cuidado de si encontra sua forma no
conhecimento de si e subordinado ao mesmo. Nessa
perspectiva, estabelece-se toda uma relação entre a
ética e a política, uma vez que para bem governar a
cidade é preciso saber cuidar de si. Através da figura
de Alcibíades em conversação com Sócrates, Platão
(2011) traz o cuidado de si ligado a uma insuficiente
pedagogia e a uma necessidade de certo trabalho
sobre si mesmo, tendo como fim último o governo
da cidade.

78
Foucault traz uma potencialização dessa prática
no que ele chamou de um segundo movimento, o
momento helenístico-romano, principalmente nos
dois primeiros séculos da nossa era. Isso porque, após
Platão, e em outra perspectiva, o cuidado de si irá
remeter a uma atitude geral, um modo de pensar e
conduzir-se, um exercitar-se. Mais do que se ocupar
com a cidade, ocupar-se consigo é a finalidade em si
mesma. Essa perspectiva traz uma série de exercícios
de olhar para si, estar atento a si, recolher-se em
si, práticas que transbordam uma mera atividade
de conhecimento para toda uma prática de si, as
quais muitas vezes envolviam a escrita e a leitura em
notas, correspondências na problematização de si e
do mundo.
Nessa perspectiva do cuidado de si, não se
trata de preparação para uma dada profissão, para o
governo da cidade, mas de instruir-se como uma arte
de guerra, uma armadura, sendo que o fim último
é a própria vida como realização. Essas práticas não
recorrem a uma suposta natureza humana dada a
priori, mas são construídas em exercícios diários. O
corpo reemerge, pois, como objeto de preocupação,
não protelando a vida para um depois ou para um
além. Desse modo, essas práticas de si assumem como
que uma fórmula geral da arte de viver, exigindo
uma relação com o mestre diferente daquela da
lógica socrático-platônica, pois não se trata de uma
relação com o saber que irá suprir uma ignorância,
mas para constituir um corpo, e é exatamente aí
que entra o outro. Não se trata mais de um mestre

79
da memória, que transmite o que o outro não sabe
ou que mostra a verdade da realidade, mas opera
como um mediador na relação do indivíduo consigo
mesmo. Assim, trata-se não de explicação, mas de
um conduzir-se para fora de si, tendo muito mais
sentido o conceito de desaprendizagem, em uma
perspectiva estoica (Foucault, 2011). Não se trata
de um acumular de certezas, de um conhecimento
que reporte a si mesmo, mas armar-se no diagnóstico
do presente que transforme a si mesmo. Trata-se de
transformar a verdade em ethos, e não de o sujeito
tornar-se um objeto de conhecimento para um
discurso verdadeiro. Nessa perspectiva, o sujeito só
existe enquanto um si, enquanto ação, exercício,
sem origem ou fundamento primeiro.
Essas práticas davam-se se por meio de uma
potencialização da vida social, por meio de grupos
filosóficos, relações de amizade, relações familiares,
conselheiros privados, grupos doutrinais, em que o
objetivo era o de alcançar um determinado modo
de existência, o qual deveria fugir ao máximo da
escravidão, dos outros ou de si mesmo (levando-se
em consideração que esta prática foi operada por
homens considerados “livres” naquele período). O
que não significa uma vontade de autodecifração ou
alcançar outro mundo, mas movimentar-se neste
mundo, criando estratégias para potencialização
da vida (Foucault, 2011). É com esse conceito de
cuidado de si que se busca operar neste artigo na
problematização das práticas de escrita e leitura na
escola.

80
Todavia, esse conceito vai sofrendo um
desprestígio moral em um terceiro movimento
que Foucault (2011) denominou de momento
cartesiano, quando se inicia toda uma argumentação
de que a perspectiva do cuidado de si levaria à
impossibilidade de uma moral coletiva e civil,
substituída por uma conduta individual e egoísta.
Esse momento não começa com Descartes, mas
Foucault marca o momento cartesiano como o
desaparecimento filosófico do conceito, em que há
um investimento na filosofia como conhecimento
representativo em oposição à filosofia como
pensamento e ética de vida. Esse desprestígio vem
com a potencialização do cristianismo e a lógica de
salvar a alma em uma vida que não seria esta. Lógica
esta representacional vinda na esteira do platonismo
e que invade o funcionamento da ciência, a partir
de uma vontade de verdade, a qual irá operar com
o sujeito como um self, o qual podemos acessar por
meio de alguns métodos de decifração, tais como a
escrita.
Assim, as práticas de si são atravessadas pelas
instituições disciplinares que se constituem na
modernidade, operando a partir da lógica do cogito
cartesiano e do sujeito transcendental kantiano.
Práticas disciplinares e biopolíticas que invadem a
escrita escolar nessa necessidade de conhecer melhor
o indivíduo e a população para melhor regulá-los.
Algumas técnicas são tomadas de empréstimo da
antiguidade, investidas por uma lógica pastoral e
por uma lógica disciplinar, tal como o exame, agora

81
operado em uma lógica confessional, técnica essa que
marca fortemente nossa relação com a escrita, com
o texto, tal como uma revelação, o qual permite que
tenhamos acesso a uma verdade que estaria dada na
estrutura interior do self. Desse modo, deixamos de
ser um corpo no qual se inscreve os acontecimentos e
somos entendidos como uma entidade fixa, unitária,
essencial, como que preexistindo a sua constituição
pela linguagem. Entretanto, não se trata de uma
lógica de substituição cronológica de pensamentos,
de épocas históricas com pensamento total que vão
se sobrepondo, mas de diferentes forças que foram
se operando na constituição de tais práticas.
A partir dessa discussão que Foucault (2002a,
2002b, 2011) realiza por meio do conceito do
cuidado de si e a dissolução do sujeito, mostrando-o
como uma ficção e não sendo idêntico a si mesmo,
busca-se a potência de tal ferramental conceitual
para pensar as práticas de escritura e leitura na escola
contemporânea. Neste domínio, que é das práticas
e das técnicas e não das essências, como uma
escolha metodológica, busca-se na filosofia estoica,
conceitos operados que possam provocar a criação
de algumas outras possibilidades de lidação com esse
campo, em uma relação mais ética com os modos de
viver. A existência, pois, operada em exercícios de
escrita e leitura.
Desse modo, busca-se, especificamente, alguns
conceitos tomados de Sêneca para atravessar o
cuidado de si com as práticas de escrita e leitura,
uma vez que trazia a prática de si implicada com a

82
escrita, associando-a à leitura, na constituição de um
corpo. Fazia questão de destacar que não se tratava
de tomar a escrita como retratos reconhecíveis,
repertórios mortos de elementos, identitariamente,
no reconhecimento de si, pois é preciso criar-se no
que se escreve (Foucault, 2004). Por isso, trata-
se de exercício, e não de método em um sentido
cartesiano. Para além de uma relação com a escrita e
a leitura como conhecimento representativo, ligado
a um sujeito do conhecimento, busca-se a criação de
uma relação com a escrita e a leitura como exercício
de pensamento e de ética de vida, equipando-nos
para inventarmos outros modos de existência.
Foucault (2007) retoma em Sêneca (2011a; 2011b;
2012a; 2012b; 2012c) o cuidado de si como um
exercício permanente para toda a vida, um estar face
a face consigo mesmo.
Todavia, não se trata de escrever como du-
plicação da leitura, mas de recolher a leitura e
recolher-se nela, sendo a escrita esse movimento de
dispersão e afastamento, de dissolução, tomando o
presente e as práticas de subjetivação como objeto
de problematização. Assim, pensando a escola
no presente, não se trataria da análise sintática,
de descobrir o que mesmo o autor queria dizer,
dividir os alunos em níveis, dessa lógica utilitária
e totalizadora escolar, mas de multiplicação de
sentidos, de forças múltiplas na construção de um
ethos. Sêneca (2011a) percebe a leitura como um
não contentamento consigo mesmo, relacionando-a
à digestão – do que mais tarde Nietzsche também

83
falará. Além disso, fala da relação com autores de
paixão, mas não como um retrato, como um mo-
delo, mas como um encontro com todas essas
vozes que constituem o outro. E mais, o filósofo
lembra que trata-se não de inspiração, mas de
trabalho sobre a escrita. Como dizia Kafka, luta
com e por cada palavra, frase. Toma-se a língua
como um espaço possível de criação e, assim, a
filosofia e a literatura da diferença poderiam pro-
vocar outras produções. Todavia, não se trata de
escapar de qualquer coisa. Trata-se de um modo de
resistência à mesmidade. Sêneca já alertava sobre os
perigos da “maioria”, de se viver como um morto.
E o que permite a avaliação da “utilidade” ou
não disso tudo não é propriamente o seu conteúdo,
mas seus efeitos de vida, por isso trata-se de regras
facultativas, e não de uma moral generalizadora
do “tu deves”. A moral prescritiva é totalizadora,
generalizadora, opera com forças reativas e saberes
codificados, julga as pessoas a partir de valores
superiores. Por isso, Nietzsche (2006) traz a moral
como sendo contingente, mas que esquece sua
condição de invenção e se imobiliza. Por isso, a ética
não é contra a moral, mas para além dela na criação
de regras facultativas, na invenção de uma arte de
viver, tomando a perspectiva do cuidado de si para
além desse moral de rebanho (Foucault, 2011;
Nietzsche, 2006).
Assim, a proposta é pensar em possibilidades
de criação de práticas de escrita e leitura na escola,
procedimentadas pela perspectiva do cuidado de

84
si, no atravessamento da filosofia e da literatura
da diferença. O que não significa um retorno à
identidade, uma substância, um eu, um suporte de
memória, narrativas de revelação ou de confissão,
lógica tão predominantemente escolar, nem mesmo
buscar o sentido primeiro via leitura e escrita.
Trata-se de reunir o que se ouve, se vê, se sente,
se escreve, se lê para a constituição de si, em uma
ética orientada para o cuidado de si. Trata-se da
elaboração de práticas de escrita e leitura para que
sejam utilizadas quando necessárias, criadas na
urgência em meio à vida, como corte do clichê, da
permanência (Foucault, 2004).
Como nos alerta Foucault, trata-se de uma
lidação não como um deciframento de si por si,
mas como uma possibilidade de alargamento
da envergadura de si. Isso nos leva a um com-
prometimento com a própria vida, princípio
do cuidado de si, em que a vida não pode ser
submetida à divisão do verdadeiro e do falso. Por
isso a necessidade de tomar a escrita e a leitura como
técnicas possíveis do cuidado de si, como brechas
de respiro, e não finais felizes, totalidades ou o fim
da história. Trata-se de exercícios descontínuos,
que necessitam ser inventados para vivermos a
escrita como experiência, em um cuidado ao que
se passa e ao que se passa no pensamento nessa
relação de si para consigo, que passa pela relação
com o outro. Não se trata de descobrir a verdade
sobre si mesmo, mas inventar-se em práticas de
si numa luta contra a sujeição e a normalização

85
social. A escrita e a leitura como exercício possível
de pensamento e ética de vida como uma obra de
arte.

3 Diagnóstico do presente e a invenção


de outras possibilidades na escola
Como outra possibilidade de pensar as prá-
ticas de leitura e escrita na escola, produziu-se
no ano de 2012 um atelier com alunos dos anos
finais do Ensino Fundamental em uma escola
pública, localizada na cidade de Porto Alegre, RS,
por meio da qual atravessou-se o estudo do conceito
de cuidado de si de Foucault com a literatura de
Kafka, na problematização dos sintomas do pre-
sente e da constituição de cadeiras morais que nos
fixam a identidades. Para tanto, organiza-se esta
seção a partir da: dissolução tomada de empréstimo
da genealogia para movimentar os ateliers; a in-
venção do procedimento de dissolução nos ateliers;
a produções dos alunos e outras lidações com esses
materiais na dissolução das cadeiras morais.

3.1 Dissolução genealógica tomada


para procedimentar os ateliers
A partir do diagnóstico da escrita e da leitura
na escola invadidas pela representação, pela lógica
cognitivista, em práticas disciplinares e biopolí-
ticas, produzindo os objetos de que fala em
conexão com os eixos de poder, saber e formas
de subjetivação, busca-se pensar outras possibili-

86
dades de lidação ao meio dessas práticas que
obedecem a determinados tipos de racionalidade e
que produzem determinadas formas de existência.
Nesse sentido, uma pesquisa genealógica pode
abrir outras possibilidades ético-políticas para criar
outras lidações com tais práticas, e aqui recorre-
se ao ferramental da genealogia nietzschiana e
foucaultiana a fim de pensar a procedimentali-
zação dos ateliers, buscando tomar de empréstimo
alguns modos de operar, por meio do conceito de
dissolução genealógica. E, especificamente, três
dissoluções: da realidade, da identidade e da ver-
dade.
A dissolução da realidade rompe com a
perspectiva de que há um mundo lá fora a ser
representado pela linguagem e um sujeito, tal
como uma interioridade, que o representaria. As
palavras produzem as coisas das quais falam, por
isso somos seres de linguagem, e não que têm uma
linguagem (Foucault, 2002b). Assim, não se trata
de condições de validade a serem investigadas, mas
de possibilidade, pois rompe-se com uma lógica
de correspondência e coincidência com o real da
representação. A dissolução da realidade como uma
entidade metafísica pode funcionar na luta contra
a moral de rebanho que diminui a vida em nome
de valores superiores (Nietzsche, 2006). Significa
que os universais deixam de ser os explicadores do
mundo e entende-se que são eles que precisam ser
explicados, em sua formulação e seu funcionamento
(Foucault, 2003a; 2003b).

87
A dissolução da identidade traz que o que
temos são efeitos de subjetivação, uma posição no
discurso, lugares que ocupamos e vivemos, haven-
do apenas a exterioridade e o acidente (Foucault,
2002a; 2002b; 2003b). Por isso Foucault opera com
o conceito de modos de subjetivação, uma vez que
rompe com a noção de um sujeito identitário, fixado,
essencializado, original, soberano, intencional,
interior, que poderíamos encontrar em todos. O
que teríamos seriam modos de subjetivação e sua
constituição em relações de poder, saber e o si. Trata-
se de relações de força com outras forças, rompendo
com a lógica platônico-cristã de modelos e cópias,
uma vez que não há um referente a que pudéssemos
nos submeter; esse referente não passa de uma ficção.
Por isso, subjetivação na obra de Foucault é usada
tanto para falar dos processos de subjetivação nas
práticas divisoras, operada como sujeição, quanto
em relação às práticas de si e as possibilidades éticas
(Idem, 2002a; 200b; 2011). Rompe-se, pois, com
a ideia de que o ser humano seja a base da história
e da cultura, regido por experiências biográficas e
leis gerais do desenvolvimento, identidades que
guardam segredos a serem desvelados, os quais
deveríamos descobrir e preencher, mas sim uma
invenção discursiva que foi inventada. Não se
trata de uma mudança de ideia das pessoas, de
relações opressoras do Estado ou de uma entidade
psicológica que muda com as épocas históricas
(Rose, 1996). Trata-se de uma análise das relações
de força, tomando as práticas pelas quais as pessoas

88
são compreendidas e pelas quais se age sobre elas,
ou seja, a questão genealógica “como nos tornamos
o que somos?”. Por isso, Nietzsche (2006) nos diz
para ficarmos atentos às forças e sobre o que e como
agem, o que produzem, que modos de vida colocam
em funcionamento.
A dissolução da verdade, por meio de Nietzsche
(2006), problematiza a valoração dos valores,
negando o valor “em si” dos valores, operando com
a verdade como uma ficção. Problematiza essa moral
metafísica que se pretende para todos no julgamento
das condutas humanas, nos levando a perguntar
pela condição de invenção dos valores em questão,
apostando na multiplicidade ao contrário da busca
da unidade pela representação. Problematiza a
moral de rebanho platônico-cristã, a qual divide o
mundo em modelos e cópias, funcionando por meio
das forças reativas do ressentimento, da culpa e do
ideal ascético. Assim, mais do que buscar a verdade
do valor, trata-se aqui de buscar a verdade como
mais um valor produzido contingentemente, o que
não significa operar sem nenhum valor, mas mostrar
como foram produzidos e qual sua força em nossa
contemporaneidade para, quem sabe, inventarmos
outras relações com os mesmos. Não se trata de
distinguir o verdadeiro do falso, mas de investigar
como certas questões estão sendo colocadas como
regimes de verdade, quais suas regras para distinguir
o verdadeiro do falso, analisando-os em seus efei-
tos específicos de poder e subjetivação (Foucault,
2003a). Problematiza-se essa lógica platônico-cristã

89
de um mundo racional que pode refutar o erro,
opor-se à aparência, em busca da essência (Idem,
2003b). O que nos leva a entender o poder
como relações microfísicas de forças, e não como
propriedade ou substância, sendo a verdade não
o outro do poder, mas seu principal efeito (Idem,
2002a; 2003a). Não se trata de uma razão
transcendental que, por meio de um sujeito fun-
dante, por meio de bons métodos, descobriria a
verdade. O sujeito do conhecimento aqui, pois,
é sacrificializado (Idem, 2003b; 2011).
A partir de tais dissoluções, podemos examinar
como a relação conosco mesmos por meio da es-
crita e da leitura na escola vem sendo ordenada
pela lógica da normalização, encerrando-nos em
nós mesmos em categorias de: inteligentes, esfor-
çados, bons ou maus, normais e incluídos, entre
tantas outras em que o primado da patologia se faz
forte. Assim, a escrita e a leitura, tais como técnicas
de si, produzem determinadas relações que se assu-
me consigo mesmo, as quais são atravessadas por
saberes, enunciados científicos, legislações, instru-
mentos, pessoas, organizações espaço-temporais, sis-
temas de julgamento, valores morais (Rose, 1996).
Podemos perceber a escrita e a leitura na escola
funcionando não como uma técnica de si, mas como
uma técnica de um eu a ser desvelado, tal como
a relação pastoral de aconselhamento espiritual e
confissão, fortemente capturada pelos discursos psi,
por meio de relações disciplinares que as utilizam
em termos de autodeciframento e autorregulação.

90
Além disso, tais técnicas são atravessadas por
relações biopolíticas que inscrevem as práticas
de leitura e escrita na escola em estatísticas do
progresso cognitivo dos alunos, sob o olhar atento
de experts da alma humana e do desenvolvimento
da nação. Práticas que tomam a escrita e a leitura
como decifração de códigos, reprodução de verdades
estabelecidas a priori, registro uma memória,
transcrição da realidade, para confirmar o que já
se sabe, para se confirmar a verdade da escola, do
professor, dos autores, dos livros didáticos, das
provas nacionais. Tais práticas fixam o sujeito a si
mesmo, a uma identidade como autodecrifração,
por meio das quais se classifica o aluno em relação
aos demais e em relação a si mesmo, as quais
podem ser lidas como sistemas de submissão no
jogo das forças. Esses são os estados de forças em
circulação e desse modo vêm marcando os corpos
na contemporaneidade (Foucault, 2003b).
Segundo Ó (2003, p. 24), “[...] a subjetividade foi
discursivamente pensada como uma força calculável
e se tornou visível, no teatro histórico, através de
uma situação de escrita”. O aluno, portanto, preso
à escrita, tal como uma prova documental da sua
identidade. Por isso, o conceito de técnica se faz
importante aqui, pois Foucault tratou a escrita
na possibilidade de uma técnica de si, uma vez
que a experiência que temos de nós mesmos na
constituição de um determinado tipo de pessoa é
efeito de tecnologias que tomam o humano como
objeto de produção.

91
Daí o desejo de usar a genealogia para contribuir
com as discussões já feitas que buscam desmontar
essa maquinaria de escrita e leitura que está posta
e seus modos de submissão, na criação de outras
possibilidades. Qual a possibilidade de emergência
de outras forças? A emergência é um espaço que
se coloca nesse jogo de forças, um afrontamento
(Foucault, 2003b). E essas outras forças operam
com outros procedimentos, constituem outros pro-
cedimentos. “As diferentes emergências que se
pode demarcar não são figuras sucessivas de uma
mesma significação; são efeitos de substituição,
reposição e deslocamento, conquistas disfarçadas,
inversões sistemáticas” (Ibidem, p. 26).
A partir disso, a produção de tais ateliers na
escola se movimenta nesse apoderar-se de um
sistema de regras, que não tem em si mesmo uma
significação essencial, para buscar impor-lhe outras
direções, outras forças, talvez menos reativas, e não
operando com esse sujeito intoxicado de si mesmo
(Foucault, 2003b; Nietzsche, 2006). Por isso,
trata-se de vocabulários tomados contra a língua
maior, essa dos tribunais pedagógicos, assumindo
a invenção do saber perspectivado. Daí é que se
toma a genealogia para operar com as práticas de
escrita e leitura como uma possibilidade de técnica
de si, orientada para o cuidado de si. Operar com
os ateliers de escrita e leitura constituiu-se como
uma tentativa de escapar dessa lógica identitária e
moralizadora que invade a escola. Uma tentativa de
tomar a escrita e a leitura para além de uma lógica

92
do conhecimento racional de si mesmo, de uma
lógica tribunalesca, buscando apostar na escrita e na
leitura como técnica possível do cuidado de si. Isso
não significa ser contra a moral, mas para além dela,
para além de um código generalizado de obrigações
e interdições, dessa forma do “eu” por meio da
qual somos convocados a nos relacionar conosco
mesmos.
Em tais ateliers os alunos, por meio de suas
leituras e escritas, realizaram uma sintomática do
nosso tempo na investigação da valoração dos
valores e dos modos por meio dos quais estamos
aprendendo uma determinada relação conosco
mesmo. Tratou-se da criação de estratégias em outra
lidação com a escrita e a leitura na composição com
os autores operados nesta pesquisa no campo da
educação atravessado pela filosofia e pela literatu-
ra da diferença, sem pretensão de neutralidade,
mas uma escolha interessada dessas expressões.
Um movimento mais fabulatório com as escritas
filosóficas e literárias, assumindo aqui a fantasia
do recorte.

3.2 O procedimento de dissolução


descrito em estratégias nos ateliers
Partiu-se de tais precauções metodológicas a
partir da genealogia para produzir um atelier com
esses alunos a partir da dissolução, tomada aqui
como procedimento. Atelier em que se pro-
blematizou as cadeiras morais que ocupamos em
suas possibilidades de cuidado, por meio de prá-

93
ticas de escrita, leitura e produção de fotografias,
no atravessamento das filosofias de Nietzsche
e Foucault e a literatura de Kafka. Esse atelier
contou com nove alunos dos anos finais do Ensino
Fundamental, tendo a duração de 18 encontros,
com 2 horas de duração cada. Por uma opção de
recorte, serão operadas aqui somente as produções
dos textos escritos dos alunos e não das fotografias.
Já explicitados os conceitos operados na filo-
sofia, talvez seja necessário apenas uma breve fala
sobre o porquê de Kafka nessa lidação. Por que Kafka
(Deleuze e Guattari, 2002) desmonta algumas
máquinas burocráticas, inventando alguns escapes
na linguagem e na vida; porque ele problematiza
os processos de normalização e prefere o que é
menor. Por que os personagens kafkianos quebram
com uma lógica de interioridade, com a divisão
entre razão e loucura, entre verdadeiro e falso com
seu inseto alimentado de violino, com seu macaco
inventor de escapes, do artista que ensina o jejum
como uma arte, com o animal da toca deixando por
perto sempre uma saída. Kafka usa a escrita como
uma máquina, não para representar algo, não para
fugir do mundo, mas para fazer escapar e alargar a
própria possibilidade de pensamento e existência.
Assim, o que nos interessou em Kafka foi buscar
entender como funciona sua máquina literária,
interessando-nos seus procedimentos.
O atelier foi iniciado com os alunos também
a partir de algumas precauções metodológicas: não
se tratava de buscar o conteúdo certo, ajustado

94
na melhor forma de expressão; não se tratava de
autobiografia, terapia, interioridade, culpa e vere-
dictos duais. Tratava-se de operar com o conhe-
cimento como ficção. Tratava-se de escrever porque
havia uma necessidade, uma urgência de vida, e
não uma verdade a ser defendida. Tratava-se de se
utilizar de tais práticas como uma possibilidade de
um diagnóstico dos valores valorados no presente
e de como estamos nos constituindo nessas forças.
Tratava-se de estar consigo mesmo e, ao mesmo
tempo, distanciar-se de si. Tratava-se de operar
outro uso da linguagem.
Assim, os ateliers partiram de duas questões
principais: quais são os valores valorados no presente
e como estamos nos constituindo por meio de tais
jogos de forças. A partir dessas questões principais,
outras perguntas acompanharam o processo: como
lidar com práticas de escrita e leitura quando
modos de existência inspiram maneiras de pensar
e, ao mesmo tempo, a lidação com tais práticas
possibilitam outros modos de pensar que produzem
outras relações consigo mesmo? Como criar uma
relação com a escrita e a leitura para além de um
conhecimento representativo, mas operando com
tais práticas como exercícios de vida e pensamento?
A moral prescritiva nos pergunta “quem é você?”. Os
exercícios éticos perguntam, em uma perspectiva do
cuidado de si, “o que você está fazendo da sua vida?”
(Gros, 2008). Daí a necessidade do procedimento
de dissolução ser detalhado em seu funcionamento
a partir das estratégias inventadas nos ateliers.

95
Operacionalização I do procedimento: as forças
e as convocações identitárias
Pergunta-se pelos sintomas do presente e como
isso vem nos convocando a assumirmos determi-
nadas relações conosco mesmos e com os alunos.
• Experimentação com limalhas de ferro e as
forças magnéticas: as forças como relações
em movimento e não como substâncias, bus-
cando a conversação sobre a dissolução do
sujeito.
• Lidação com os conceitos do atelier (cuidado
de si, subjetivação, escrita e leitura) por meio
de fragmentos de Michel Foucault, Nietzsche,
Sêneca, Epicuro, Clarice Lispector, Kafka,
Manoel de Barros, Rilke, Florbela Espanca,
Emily Dickinson, entre outros.
• Por meio dessas leituras, construiu-se relações
entre tais fragmentos com a problematização
de algumas convocações identitárias a que
a moral de rebanho nos convoca, por meio
da escrita individual de aforismos e posterior
leitura coletiva no grande grupo.

Operacionalização II do procedimento: a escrita,


a leitura, o cuidado de si e as cadeiras morais
• Estudo de um quadro-resumo9 trazendo
cinco filósofos que tematizaram de alguma
forma o cuidado de si e seus deslocamentos:

9
SCHULER, Betina. Quadro-resumo de alguns filósofos do cuidado de si. 2012.

96
• Platão, Epicuro, Sêneca, Nietzsche e Foucault
(local e data de nascimento e de morte,
algumas obras, alguns conceitos importantes,
como lidaram com o conceito do cuidado de
si e como atravessaram isso com as práticas de
leitura e escrita).
• Retomada dos aforismos produzidos anterior-
mente, no atravessamento do conceito
de cuidado de si em Michel Foucault e a
dissolução da realidade, identidade e verdade.
• A partir de escritas individuais e leituras
coletivas, os alunos inventaram o conceito
de cadeira moral, criando essa imagem de um
lugar em que sentamos, que ocupamos, que
esquecemos que ocupamos (bem ao modo
de Nietzsche) e a cadeira torna-se nossa
pele, a ponto de não conseguirmos mais
levantar. Juntamente com a criação de tal
conceito, surge a necessidade de dissolução
das cadeiras morais que os alunos apontavam
desde o início em seus modos de existência
por meio da escrita dos aforismos que
partiu dos fragmentos filosóficos e literários
(preguiça, feminino, bem, silêncio, alunos
ruins, responsabilidade, entre outras). O
objetivo aqui era o de descrever quais valores
estão sendo valorados, como podemos
problematizar a valoração de tais valores e
como estamos nos constituindo por meio de
tais forças, na produção de poemas, aforismos,

97
leituras coletivas e individuais, conversações,
marcando algumas cadeiras morais que ocu-
pamos. Na problematização de tais cadei-
ras morais e a valoração desses valores,
produziu-se anotações com fragmentos lite-
rários e filosóficos, leituras coletivas e o de-
lineamento das cadeiras morais que cada
aluno iria assumir para dissolver ao longo
do atelier.

Operacionalização III do procedimento: a sinto-


matologização do presente
• Estudo do conceito de cuidado de si em
Michel Foucault.
• Diagnóstico dos sintomas do nosso tempo e
a relação com as cadeiras morais apontadas
em escritas, leituras e conversações: trabalho
com os filmes Nós que aqui estamos por vós
esperamos10 e Koyaanisqatsi11, notícias da
mídia, rodas de conversa do bairro e as
anotações dos sintomas do nosso tempo no
atravessamento com o conceito de cuidado
de si.
• A partir do objetivo de descrever os va-
lores valorados nesses espaços e sua pro-
blematização em relação à cadeira moral
levantada desde o início do atelier, cada aluno

10
Filme brasileiro dirigido por Marcelo Masagão.
11
Filme documentário dirigido por Godfrey Reggio.

98
• buscava dissolver tal cadeira em suas escritas
de poemas, aforismos, textos narrativos e
anotações.
• Os textos eram em alguns momentos lidos,
qualificados no grande grupo e, a partir da
conversação e contribuição dos colegas e da
professora, reescritos. Em outros momentos,
os textos eram trocados apenas entre duplas
ou somente com a professora.
• Recolhimento de todo o material produzido
no atelier (aforismos, textos narrativos, poe-
mas, anotações, fragmentos, etc.) e produção
de um texto reunindo a conversação sobre as
cadeiras morais e as possibilidades do cuidado
de si por cada aluno.

Operacionalização IV do procedimento: reco-


lher a leitura e recolher-se nela
• Leitura ruminada por todo o grupo dos tex-
tos dos colegas.
• Leitura e conversação no grande grupo a
partir do texto Escrileituras e a estética da
existência: nunca é tarde para ocupar-se consigo
mesmo, produzido pela professora12.
• No atravessamento com o conceito de cui-
dado de si, atravessou-se a literatura de Kafka
como possibilidade de criação de brechas

12
SCHULER, Betina. Escrileituras e a estética da existência: nunca é tarde para
ocupar-se consigo mesmo. 2012.

99
• às cadeiras morais na lidação com filmes,
fotografias, desenhos e textos seus: a arte
menor e a escrita em sua relação com a
urgência de vida, no diagnóstico dos sintomas
do nosso tempo e os modos de existência.
• Criação de aforismos a partir dos textos
literários de Kafka trabalhados, retomando as
cadeiras morais valoradas em conversação e o
cuidado de si.

Operacionalização V do procedimento: diante


de Kafka
• Os alunos deste atelier já haviam participado
de outros ateliers na escola no estudo de
obras de Kafka (A metamorfose, O artista da
fome, Um relatório para a academia, entre
outros) no período em que fui professora
na EMEF Rincão. É necessário descrever
que no momento de realização desse atelier,
viveu-se na escola um período tenso que
alavancou a escolta permanente da Guarda
Municipal por algum tempo. Essa situação
colocou os alunos em estado permanente de
suspeita, necessidade de inspeção e prestação
de contas de si mesmo. Tal acontecimento
foi problematizado e atravessado nas cadeiras
morais que estavam sendo dissolvidas nas
práticas de escrita e leitura.
• A partir desses eventos ocorridos na escola,
escolheu-se o texto Diante da Lei, de Kafka

100
(2009), trabalhado por várias semanas
com leituras individuais e coletivas. Com
ele, tentávamos entender o procedimento
operado por Kafka nesse texto específico, em
que busca problematizar a transcendência da
lei. Deleuze e Guattari (2002), lendo Kafka,
afirmam que de acordo com a sua produção
a lei só pode ser enunciada em forma de
sentença, a qual é conhecida como castigo.
Daí a necessidade de problematização desse
vivido como sentença e dessa escrita-sentença.
• A partir do estudo do texto citado de Kafka e
na conversação sobre seus procedimentos, no
entrecruzamento com a sintomatologização
do presente e o conceito de cuidado de si,
as cadeiras morais que os alunos levantaram
no início do atelier viraram superfície de
escrita. Cada aluno, a partir da cadeira moral
que vinha problematizando, produziu um
miniconto em forma de parábola, seguindo
a forma de Diante da Lei de Kafka (2009),
na qual problematizou e dissolveu sua cadeira
moral tal como um sintoma do presente,
através de sua produção escrita. Por meio de
procedimentos de leitura e escrita, os alunos
buscaram desmontar a microfísica da cadeira
moral que tomaram individualmente para
problematizar nos minicontos, tais como:
a preguiça como uma potência; o silêncio
como uma arte; o “não” como um modo

101
de não permitir que outras pessoas e você
mesmo roubem o seu tempo; o feminino e a
responsabilidade como uma força ressentida;
os alunos e a necessidade de escapar à dua-
lidade dos portões binários de bem e mal; o
aprisionamento dentro de si e a obrigação de
ser feliz o tempo todo, entre outras.

Operacionalização VI do procedimento:
a dissolução da realidade, da identidade e
da verdade
• As metamorfoses, as artes, os jejuns e as
saídas kafkianas invadem os minicontos dos
alunos. Lidação com várias obras de Kafka na
potencialização dos textos por cada aluno e
várias reescritas da primeira versão a partir da
conversação de todo o grupo na qualificação
coletiva dos textos durante semanas. Os
alunos recorreram igualmente aos textos uti-
lizados nos ateliers e a outras obras específicas
de Kafka, bem como a outros autores.
• Conversações sobre os conceitos de cadeira
moral e cuidado de si.
• Outra estratégia para a operacionalização
do procedimento de dissolução que aqui
será apenas citada e não desenvolvida foram
as fotografias. A partir dos efeitos que as
fotografias que apareceram nos filmes que
assistimos e discutimos provocaram, traçou-
se uma conversação sobre a fotografia para

102
além da explicação e da representação como
outro modo de expressão na problematização
das cadeiras morais e na criação de brechas
éticas. E a fotografia é operada aqui como
arte, e não como recurso. Cada aluno, assim,
buscou desmontar a cadeira moral dissolvida
nos minicontos também por meio de foto-
grafia, em que cada um buscou construir
efeitos que gostaria de produzir. A partir
disso, fizemos pesquisas diversas na internet
sobre fotografia. Além disso, realizamos
três oficinas com fotógrafo profissional, nas
quais estudou-se sobre a fotografia não como
representação, mas certa produção e subversão
do dogmatismo. Do mesmo modo, nessas
oficinas estudamos sobre a história da arte e
os estilos de fotografia, especificamente a arte-
fotografia. E, finalmente, foram estudadas
também as questões técnicas da fotografia
e a revisão de tais conceitos na fotografia
digital, bem como a criação de efeitos es-
pecíficos: cor, composição, perspectiva, for-
ma, padrão, textura, volume, foco de inte-
resse, luz e sombra. Cada aluno e aluna
elaborou sua fotografia, trouxe os materiais
para sua montagem, produziu a fotografia,
sob supervisão do fotógrafo profissional,
utilizando câmera não profissional. Após esse
processo, realizou-se intervenção digital em
cima da fotografia num editor de imagem
pelo fotógrafo profissional e pelos alunos,

103
retomando os efeitos que cada um buscava
em sua problematização. Assim, foram rea-
lizadas 8 fotografias no espaço da escola e 9
minicontos.
• A partir de tais estudos, e objetivando a
dissolução da cadeira moral, retomou-se
os textos produzidos, os quais provocaram
diferentes composições na elaboração das
fotografias, as quais constituíram-se não
como uma ilustração dos textos, mas como
outro modo de expressão, um outro modo
de dissolução das cadeiras morais.

Operacionalização VII do procedimento: como


nos tornamos o que somos?
• Conversação sobre os textos e produção da
versão final dos mesmos por cada aluno e
aluna. Conversação sobre a relação entre
o texto e a fotografia: não ilustração ou re-
presentação, mas composição, uma passa-
gem, modos de problematização e dissolução
da realidade, da identidade e da verdade
na dissolução de cada cadeira moral e a
possibilidade do cuidado de si.
• Organização da instalação e performance
realizada na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Cada aluno marcou algumas
frases de seu texto e as numerou. Após, os
alunos ensaiaram uma fala performática, em
que cada um lia a primeira frase de seu texto,

104
depois o colega lia a primeira também de seu
texto até que todos tivessem lido as primeiras
frases marcadas. Depois iniciavam a leitura
da segunda frase, até que todos os alunos
e alunas tivessem lido a segunda, e assim
por diante. Desse modo, produziu-se um
outro texto coletivo funcionando por meio
desses fragmentos. O texto Diante da Lei de
Kafka também participou dessa bricolagem.
Tal performance foi operada ao meio das
fotografias. Após, houve uma conversação
entre os alunos e os pesquisadores do Projeto
Escrileituras sobre a feitura de tal atelier em
seus procedimentos e efeitos.
• Do mesmo modo, foi organizada uma ex-
posição na EMEF Rincão das fotografias e
textos para a comunidade escolar em dezem-
bro de 2012.
O procedimento da dissolução, pois, foi
entendido como táticas, aqui operado em estratégias
didáticas que buscaram inventar outras conexões
entre o vivido e a escrita e a leitura para além de
um protocolo estabelecido. Para Foucault (1999),
o procedimento trata de uma certa intervenção
direta sobre a materialidade da linguagem, na
multiplicação dos sentidos. Trata-se, pois, de um uso
da linguagem, tal como uma máquina fabulatória,
servindo-se dela para produzir outras possibilidades.
Aqui, então, buscou-se transformar a dissolução
nesse procedimento para certa maquinação com a

105
linguagem, na desmontagem das cadeiras morais
que ocupamos, na criação de brechas mais éticas na
lidação consigo e com o mundo.

3.3 Uma dissolução das cadeiras morais


Nesse jogo das cadeiras morais, a necessidade foi
dissolvê-las por meio de práticas de escrita e leitura,
as quais são aqui trazidas a partir da produção dos
alunos. A cadeira moral funciona em certa valoração
dos valores, a qual opera na lógica divisora de bem
e mal. Daí a necessidade de problematizar essa
moralidade específica da conservação que rebaixa
a vida, produzindo outras possibilidades de vida e
pensamento.
Poderiam ser trazidos todos os minicontos
produzidos por cada aluno e aluna com os títulos:
Diante do sutiã, Um rebanho, Cadeira e silêncio,
Lukas com K, Menina sem vergonha e O homem forte.
Mas o objetivo aqui não é a extensão, mas trazer
alguns fragmentos dessa experimentação que torna
possíveis, sempre em brechas, outras relações com a
escrita, o pensamento, com a vida, consigo mesmo,
com os demais, através de práticas de escrita e leitura,
procedimentadas por meio da filosofia e da litera-
tura da diferença, na perspectiva do cuidado de si.
Não se trata de copiar o modo de vida antigo
ou elegê-lo como melhor, mas tomar o conceito
de cuidado de si na lidação com o pensamento e
a nossa vida no presente, resistindo a esse modelo
de humanidade a partir do qual a escola funciona.
Resiste-se a esse modo normativo de lidar com a

106
escrita e a leitura na escola, utilizando-as como
técnicas possíveis de problematização dos sintomas
no nosso presente, de problematização da relação
que assumimos conosco mesmos. Também não se
trata de aplicação didática do conceito discutido por
Foucault, mas de uma tentativa de operar por meio
desse conceito na produção de práticas de escrita
e leitura que impactem os modos de existência.
Tratou-se de tomar esses instrumentais conceituais
para problematizarmos o que estamos nos tornando
no presente por meio do procedimento da dissolução
e, segundo os alunos, a dissolução de nossas cadeiras
morais. A seguir, trago fragmentos da produção de
alguns alunos, a partir de um modo de operação na
fronteira entre a genealogia e a literatura.
Uma primeira cadeira moral aqui a ser descrita,
foi a da preguiça. Um dos alunos problematizou
a preguiça como uma potência, marcando a ne-
cessidade de jejum. Realizou tal dissolução do
valor de preguiça, buscando em uma literatura
clássica infantil, a qual discute a preguiça no
jogo da moral prescritiva (fábula da A Cigarra e a
Formiga, atribuída a Esopo e reelaborada por La
Fontaine). Tomou de empréstimo a forma e os
códigos de tal escrita, mas subvertendo o jogo moral
e desconstruindo o valor da preguiça na escrita do
miniconto com o título de Jejum de Obrigações.
Em tal escrita, o aluno defendeu um modo de
pensamento, dizendo que “tinham tentando socar
coisas goela abaixo. Fez jejum de obrigações. Era
o que tinha alimentado naquele inverno”.

107
Uma segunda cadeira moral problematizada
foi a identidade da felicidade, buscando justamente
escapar de um modo de existência entupido que
convoca a ser feliz o tempo inteiro. O aluno realiza
tal dissolução buscando em A Metamorfose, de Kafka,
a organização espacial enclausurante do quarto
habitado pelo inseto. Toma tal clausura como um
modo de escrita, na criação de uma escrita sufocante
na dissolução dessa suposta identidade que nos
habita e aprisiona. Por meio do miniconto com o
título de Lasciva, traz que “já estava exausto daquelas
coisas eufóricas e coloridas, ele queria algo menos
entupido, diferente do que estava acostumado. As
enormes paredes que o cercavam lhe deixavam mais
cansado ainda [...]. Seu único medo era novamente
ficar preso em outras obrigações e escolhas que
faziam sua personalidade, da mesma forma que os
anos naquelas paredes que o prendiam”.
Uma terceira cadeira moral a ser aqui
problematizada foi a de mau aluno. A tentativa
foi a de escapar a um pensamento dual, que julga
os alunos em termos de bem e mal, ficando para
além dessa divisão. Para tanto, a aluna utilizou-se
da figura dos portões do Diante da lei, de Kafka,
como uma espacialidade que estabelece o dentro e
o fora da moral. A partir disso, problematizou esse
pensamento dual a partir da opção de não entrar em
nenhum portão, em não entrar nessa espacialidade
dual de pensamento. A partir do miniconto Eu
poderia simplesmente entrar, mas não, traz que “ao
fim de tudo, o garoto, que era inteligente, tentou

108
criar uma solução boa e criativa. Acabou que ele
não entrou em nenhum dos portões, simplesmente
os fechou”. E depois, continua: “eu poderia sim-
plesmente entrar, mas não! Seria um final feliz
e, além do mais, eu entraria na cadeira moral dos
nerds, mas meu único desejo é fugir dessas cadeiras
morais! Não gostei dessa história de um caminho
bom e um caminho ruim”.
A partir da descrição de tais fragmentos, não se
trata de analisar o que mesmo os alunos quiseram
dizer, qual o sentido último que alcançam. Esses
trechos são trazidos para falar da dissolução das
cadeiras morais a que se propuseram, em uma
relação mais ética consigo. Escritas que não
trataram de confirmar a coincidência com um real
ou um segredo interno a ser desvelado, mas de
problematizar os valores em sua valoração usual para
além do reconhecimento. Para tanto, realizaram
um exercício de estar consigo e, ao mesmo tempo,
de afastamento de si na dissolução das cadeiras
que se confundem com nossas peles. Escritas que
operam com outros sentidos, com o conceito de
cuidado e procedimentos inspirados na literatura de
Kafka e no encontro que se deu entre a filosofia e
a literatura. Mas essa inspiração não significa uma
abstração, e sim trabalho sobre a linguagem para
fazê-la escapar das palavras de ordem. Dessa lidação,
outras possibilidades são criadas, como que uma
escrita-equipagem na luta contra a sujeição. Assim,
as três cadeiras morais aqui dissolvidas (a preguiça,
a felicidade e o mau aluno) partem de um não que

109
torna-se um sim a si mesmo. Um não a qualquer
alimento e a necessidade de jejum. Um não a um
entupimento que fixa a identidade da felicidade.
Um não para a entrada nos portões duais de bem e
mal. Esses “nãos” à moral prescritiva são como que
um sim a si mesmo. Aqui não significa dizer que tais
escritas não estejam atravessadas também pela moral
de rebanho, pois não se trata de dualidades, mas de
outras forças que entraram para compor tais práticas
de escrita e leitura.
A primeira cadeira aqui tomada é a preguiça,
valor que na sociedade disciplinar assume caráter de
negligência e inutilidade, o qual deve ser corrigido;
que na filosofia kantiana assume lugar de fraqueza
que nos impede de alcançarmos certa autonomia;
que na sociedade contemporânea de produção é
assumida como um impecílio para certo sucesso
e consumo. No miniconto Jejum de Obrigações, é,
pois, valorada de outros modos. Valorada tal como
uma potência, que aumenta a vida, que afirma a
diferença nesse cansaço de correr. Dissolução dessa
convocação moral jogando a preguiça em um outro
jogo de forças: o da arte do jejum kafkiano. A
preguiça do jogo capitalístico de se manter ocupado
e produtivo é, assim, invadida e metamorfoseada.
Daí uma escrita que não quis duplicar, decifrar ou
explicar, mas aproveitou os códigos de certa escrita
de rebanho para jogar um outro jogo mais ativo. A
preguiça aqui dissolvida nos remete à ruminação,
da qual nos falava Nietzsche (2009), algo a ver com
lentidão, dilaceração e abertura. Uma mastigação

110
que se dá por repetidas vezes, processo em que o
ruminante toma os alimentos com a ajuda da
língua como se fosse uma foice, que dilacera,
corta, rasga. E o alimento retorna à boca para ser
ruminado e encontra várias línguas. Para além dos
livros pregadores, um apropriar-se das leituras e suas
forças, transformando-as em um em princípio de
ação. Assim, deixa-se de operar com a preguiça da
sociedade normalizadora para assumir a preguiça
como força ativa no exercício de constituir-se em
certa atenção consigo mesmo, que requer tempo,
que requer uma parada na corrida contemporânea.
O tipo de cuidado aqui? Uma tentativa de escapar
de certo modo de escravidão que a preguiça tomada
pelo ressentimento produz. O exercício da preguiça-
potência na atenção consigo mesmo.
Outra dissolução realizada foi a felicidade
tal como esse valor é tomado pelo ressentimento,
entupido pela lógica do paraíso que nunca chega,
de um ideal, como se fosse da ordem do “direito”
nessa regulação em que a vida é tomada como
objeto político. Um sufocamento por felicidade e
a necessidade de dissolução para não ser enclausu-
rado em si mesmo. Nietzsche (2006) falava dessa
felicidade do ressentimento e de viver em refúgio,
em paz e segurança, tal como o quarto aqui des-
crito. Tal clausura é mostrada tanto na discussão
realizada no miniconto como pela forma enclau-
surante em que é escrita, arrastando o sentido nessa
composição. Aqui a tomada de empréstimo da
organização espacial do quarto foi transformada

111
em modo de escrita para falar do claustro em
si mesmo. Uma invenção em meio à vida e não
sobre ela. No texto Lasciva, uma dissolução, talvez,
para viver a felicidade como ação e como afirmação
de si mesmo, vivendo com franqueza a relação
consigo.
Outra dissolução ainda foi do binarismo de bem
e mal em se tratando do lugar de aluno que se ocupa
na escola e que foi dissolvido em uma “não entrada”.
O portão de Kafka é transformado nos portões da
moral escolar moderna em uma espacialidade binária
do dentro e do fora, sendo o escape, justamente, a
não entrada, a opção por operar para além desse
dualismo, a opção pela não fixidez identitária. Não
se trata de coincidência, mas de técnicas de poder
que foram feitas para ele, o aluno, esse lugar no
discurso. E essa espacialidade somente confirma esse
lugar do “dentro”. A construção desses portões e essa
não entrada nos leva a perguntar: quem pode dizer
quem ocupa qual lugar nessa geografia do poder
na escola? A que esses lugares remetem? Como são
valorados? Como ocupar esse lugar de aluno para
além desses portões? Uma luta contra a clausura em
si mesmo, contra a sujeição, contra o rebanho que
entra já identificado nos portões. Uma luta contra
essa moral de rebanho da qual falou Nietzsche
(2006), essa moral dos escravos, essa moral que pede
aos homens que neguem a si mesmos em nome de
valores superiores, essa moral do ressentimento e da
culpa, essa moral que requer um mundo oposto e
exterior, para funcionar como reação.

112
Três escritas, pois, que aqui operaram com o
procedimento da dissolução, sempre em brechas,
operando a escrita e a leitura como experiência
possível para se pensar e viver outras coisas. Uma
tentativa não de aplicabilidade dos conceitos
filosóficos, mas de operação com os mesmos, no
entrecruzamento de procedimentos literários, na
busca por criar práticas de escrita e leitura não
na constituição de uma identidade, mas na
constituição de si, em exercícios de si mesmos
na urgência da vida. Trata-se da constituição de
um corpo, encarnando-se nisso, transformando-
as em estratégias de lidação com a vida. Possíveis
deslocamentos que impactam os modos de exis-
tência. Escritas que escapam da necessidade de
comprovação do verdadeiro e do falso para viver essa
dissolução como uma equipagem para a vida, com
outras forças e procedimentos. Uma urgência que
necessita da preguiça como uma arte, um cansaço
de felicidade inclusiva e de se negar a participar do
jogo dual escolar em experimentações por meio das
quais buscaram viver, em frestas, uma outra relação
consigo mesmos, com os valores valorados pela
moral de rebanho, por meio de práticas de escrita
e leitura que buscam justamente problematizar tais
questões, na constituição de outras possibilidades.
E essa necessidade de dissolução foi expe-
rimentada em uma lidação com a escrita e com
a leitura que não buscou uma relação de corres-
pondência e reflexo da realidade, como se hou-
vesse um sentido no mundo em si mesmo ou

113
no interior do sujeito a ser decifrado e representado
pela escrita, como forma de acesso à verdade.
Não buscou uma consciência, corresponder a
estruturas mentais de raciocínio ou a níveis gerais
do desenvolvimento humano, mas a determinados
exercícios na constituição de modos de existência,
aqui marcados pelo procedimento da dissolução
entre a filosofia e a literatura. Assim, o mundo é
desnaturalizado, aquilo que somos é transformado
em problema, o sujeito é dissolvido e a verdade,
tomada como uma ficção que esqueceu sua condição
de invenção.
Essa composição leva a pensar não em uma
leitura e uma escrita que criticam, denunciam,
buscam salvar, que aprovam ou reprovam, que
julgam o que já foi pensado e escrito, que resolvem
problemas, que operam cognitivamente. Como
escrever com a vida para além de escrever sobre
ela? Como problematizar o senso comum, o bom-
senso, a moral de rebanho, os clichês, as opiniões
e falações e o próprio pensamento? Como esvaziar
tantos códigos, normalizações e já-ditos, quando
entendemos que “escrever é criar, [...] fazer nascer
o que ainda não existe, ao invés de representar o
que já está dado e admitido?” (Corazza, 2006,
p. 30).
Desse modo, a fim de retomar a conversação
aqui produzida, apresento um quadro que traz um
desenho do processo desenvolvido pelos alunos na
dissolução das três cadeiras morais aqui tomadas
apenas como uma possibilidade.

114
Miniconto Cadeira Moral Problematização Procedimento específico de cada aluno

Jejum de Preguiça A preguiça como Tomou da literatura clássica infantil que discute
Obrigações potência e a este tema a partir de uma perspectiva da moral
necessidade de prescritiva, buscou a forma e os códigos para
jejum. subvertê-los e problematizá-los na perspectiva
do cuidado de si e da arte do jejum de Kafka.
Lasciva Identidade da Escapar a uma Buscou na obra A Metamorfose, de Kafka, a
Felicidade identidade constituição espacial enclausurante do quarto
enclausurante que habitado pelo inseto para transformá-la em
convoca a ser feliz estilo de escrita, produzindo uma escrita
o tempo todo. sufocante para falar da clausura em si.
Eu poderia Dualidade de Não entrar no Usou a figura do portão do miniconto de
simplesmente bom e mau pensamento dual Kafka, Diante da Lei, como uma espacialidade
entrar, mas não aluno que julga os alunos que divide quem está dentro e fora da moral,
em termos de bem quem pertence ao bem e ao mal, optando por
e mal. não entrar em nenhum portão.

115
4 Ainda alguns arremates entre escrita, o
cuidado e o procedimento da dissolução

Este artigo traz um recorte de uma pesquisa,


a qual buscou tomar a escrita e a leitura como
táticas possíveis de subjetivação na perspectiva do
cuidado de si, no atravessamento da filosofia e da
literatura da diferença em experimentações com
alunos do Ensino Fundamental em uma escola
pública. Não se tratou de um novo projeto de
libertação ou de um entendimento romântico
de tais produções vistas como totalidades, mas de
operar em brechas na criação de uma outra relação
com o pensamento, com a escrita e com a vida.
Trata-se de uma encarnação nessas práticas de
escrita e leitura na escola no diagnóstico do presente
e da relação consigo mesmo. E isso funcionando por
meio, junto, por cima, sobre práticas disciplinares e
de controle que a todo momento capturam e fazem
enfrentamentos com essas forças. Por isso, não se
trata de fazer completamente outra coisa na escola,
mas apenas operar com a genealogia no desmonte
dessa maquinaria de escrita e leitura e seus modos
de sujeição, no jogo mesmo de suas forças, na
criação de pequenos afrontamentos, pequenos des-
locamentos, que preferem um pensamento não
embrutecido pela explicação.
E quando se fala da filosofia e da literatura
da diferença nessa experimentação, trata-se de
certa filosofia e certa literatura que não operam
com um sujeito fundante, por essências, com uma

116
verdade originária e com o saber como decifração.
Não se trata de uma filosofia e uma literatura da
comunicação que relatam a realidade, que realizam
a denúncia social, que funcionam como uma
totalidade por oposições binárias, que operam
com a linguagem como transcrição do real e com
o pensamento como reconhecimento. Trata-se
de uma filosofia que opera com os conceitos não
como universais, quebrando com a lógica pla-
tônico-cristã de modelos e cópias, operando com
os conceitos porque há uma necessidade, uma
urgência, e não como contemplação e abstração.
Trata-se de uma disposição de ver de outra maneira,
de um deslocamento da lógica metafísica. Trata-
se de operar com os conceitos encarnando-os e
fazendo-os corpo, uma vez que não são entendidos
como verdades absolutas, mas como estratégias
de pensamento para lidar com a vida. Por isso a
necessidade da sintomatologização do presente,
buscando as condições de possibilidade, mais do
que de validade. Trata-se de uma literatura que não
busca remeter a uma memória, mas desmanchar
a naturalização das práticas da língua, dissolver
o sujeito e produzir arranjos outros. Por isso o
desentupidor é aqui instrumento necessário nesse
jejuar que não busca uma renúncia de si, mas sim
a afirmação da diferença.
E diferença entendida não como diversidade
ou variação humana, pois a diferença rompe com
a identidade, com esse centro fixo ao redor do qual
tudo devesse girar, com a narração do outro tendo

117
como referência ainda um modelo identitário. A
diferença, assim, não seria o outro da identidade,
refém da expressividade do mesmo, não passaria
pelo negativo e pela contradição, pois rompe com
a necessidade dessa relação de modelo e cópia
instaurada pelo platonismo e pelo cristianismo,
uma vez que se trabalha sem recorrer a modelos
referenciais. Não temos uma definição originária a
qual permitiria essa divisão entre modelo e cópia.
A invenção do modelo permite a repetição e,
nessa lógica, somos sempre submetidos a esse jogo
da semelhança, em que o múltiplo é submetido à
unidade de um modelo. Isso significa subverter as
cópias, os modelos; subverter essa diferença que
é ainda submetida ao mesmo e ao uno, a um fun-
damento, exposta como um negativo (Deleuze,
2006).
A partir disso, pois, toma-se as cadeiras
morais como tipos possíveis de escrita, aqui não
se tratando de gêneros textuais, mas de forças
que podem provocar alguns alargamentos nessa
afirmação da diferença. Tipos que não funcionam
como modelos, mas pelo funcionamento das forças,
segundo Nietzsche (2006). Das forças reativas que
invadem a escrita escolar muito já se falou. Por isso
a opção aqui pela tentativa de criação de um tipo
de escrita mais genealógica, mais ativa. Uma escrita
ao modo da preguiça como potência, cansada de
formas que fixam o sentido, que impõem um léxico
e que se fecha em uma sintaxe. Uma escrita que
necessita de certo jejum, pois já está muito cheia

118
(Corazza, 2012). Cheia de sujeitos normalizados,
esforçados, com problemas de aprendizagem. Cheia
de conteúdos, listas fechadas por anos e níveis
cognitivos, de datas comemorativas. Cheia de
servir para classificação, aprovação ou reprovação,
medição de inteligência. Cheia de funcionar disci-
plinarmente como confissão, biopoliticamente como
comprovação estatística do estudo dos alunos e do
trabalho do professor. Cheia dos valores de rebanho
que impõem quem pode escrever, como e onde na
escola. A escrita como força ativa que pede passagem
para certo jejum, para continuar respirando,
vivendo, pensando (Kafka, 2011a). Como levar a
escrita até o limite, tal como a arte do jejum, sempre
implicando modos de existência? Trata-se de uma
tentativa de resistência à la Foucault na luta contra
o sujeitamento, interrogando as relações de poder e
saber. Trata-se do escape a um eu gordo, inchado,
preferindo os exercícios de si (Foucault, 2011).
Mas não se busca uma espetacularização disso (basta
no contemporâneo da espetacularização de tudo).
A arte do jejum é peculiar, microfísica, funciona
no detalhe e em frestas. Não busca uma nova
revolução, um salvacionismo, uma terapêutica, uma
Disney escrita, uma solução final ou um vale-tudo,
porque é de outra ordem. Trata-se de uma precisão,
de uma necessidade, de uma urgência de jejum na
escrita escolar. Não se trata de negar a estocagem
feita até aqui pela tradição escolar. Trata-se apenas
de não se sufocar nela. Professor Kafka (2011a,
p. 56) aponta: “tente explicar a alguém a arte do

119
jejum! Não se pode explicá-la para quem não a
sente”. Por isso a necessidade de uma escrita e de
uma leitura que perguntam pelo valor dos valores
e suas circunstâncias de emergência. Uma escrita
genealógica que não quer reagir, revelar, mas criar
escapes para essa escrita intoxicada e cansada
do modo da tradição escolar, seja ela tecnicista,
crítica ou qualquer outra coisa. Nietzsche (2006)
falava já da leitura como uma arte. Para isso, o
necessário procedimento da ruminação, que nos
pede para não tomarmos as palavras pelo instinto de
rebanho. Exigir da escrita que funcione como um
cravar de dentes na pele, na existência do homem,
arrancando-o da mesmidade. Uma escrita sem alma,
sem eternidade, sem maioria (o grande medo de
Sêneca), que prefere as saídas às liberdades (Kafka,
2011b). É claro que teremos na escola uma escrita
que calcula, conscientiza, memoriza, fixa, castiga,
codifica, revela, normaliza, moraliza, contempla,
culpabiliza, generaliza, classifica, adapta, socializa,
civiliza, confessa, explica, disciplina e que olha o
humano como falha, vinculada à necessidade de
correção. Estamos falando da escola, uma instituição
no entremeio do pastoreio e da governamentalidade.
A tentativa foi apenas escapar, temporariamente,
por frestas, por entre a filosofia e a literatura da
diferença, por meio do procedimento da dissolução,
em que a escrita pudesse operar como cuidado,
implicando estilos de vida e outros modos de relação
com o pensamento e a existência. Uma microfísica
tentativa de escape.

120
Referências
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122
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123
Foto: Gustavo Alves Paiva
Estudante da escola e participante
do atelier Escrileituras e a estética
da existência: nunca é tarde para
ocupar-se consigo mesmo.

Lukas com K
Gustavo Alves Paiva

E m um dia, em Torres, um novo cidadão chegou à


cidade. Os moradores ficaram espantados com a
beleza e os enormes braços fortes dele. Logo, o xerife
chegou e disse:
– Qual é o seu nome?
E o cidadão respondeu:
– Lukas, com K.
De pronto, o xerife queria fazer uma festa come-
morando a chegada de Lukas. Na festa, ele ficava agra-
dando a todo mundo, porque atrás de uma beleza
esbelta, ele tinha uma fraqueza. Ele tinha medo do não.
Queria ficar agradando todo mundo para ser bom. Logo
depois, um garoto chegou nele e disse:
– Você não se cansa de ser bom? Seja você mesmo,
ignore eles.
Ele pensou sobre isso e experimentou o não. No
começo foi muito difícil, mas ele se acostumou com
isso. Descobriu que foi bom para ele mesmo.
Sônia Regina da Luz Matos
Professora da Universidade de Caxias do Sul. Doutora em
Educação em regime de cotutela entre Université Lyon 2 –
França e Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil.
Imagens de escrileituras13
Sônia Regina da Luz Matos

O
texto apresenta um tipo de experimentação
didática sobre o efeito que o juízo moral
produz na nossa sociedade disciplinar e
de controle. Essa experimentação se deu por meio
dos ateliers do Observatório da Educação UFRGS/
FACED, que ocorreram junto aos alunos e alunas
do Ensino Fundamental de uma escola pública. O
contorno desse trabalho ganha força de pensamento
que quer-criação, quando a imagem da cadeira
moral é inventada pelos estudantes e com ela passa-
se a problematização de como podemos expressar as
imagens da cadeira moral como potência do pensar.
Essas questões foram desencadeadas, nos ateliers por
meio de montagens de fotos e de textos escritos.
Com isso, o conceito de imagem foi tomado como
uma ideia de afecção da potência de pensar. Esse
tipo de afecção é parte do querer-artista ou, melhor
dizendo, do querer-falsário ou, ainda, do querer-
pensamento. O procedimento da imagem da foto e
da escrita é parte do território da descrição falsária da
13
Texto produzido no Seminário avançado: AICE (Autor-Infantil-Currículo-
Educador) no cinema: signos do movimento e imagem-tempo (2012-2).

129
cadeira moral. Este procedimento também criou as
condições de possibilidade de querer outra imagem,
nada moral, na execução dos ateliers em educação.

1 Invenção da cadeira moral


O Projeto de Pesquisa: A escrita, o cuidado
de si e a estética da existência: uma experimentação
genealógica no Ensino Fundamental (Suchler e
Matos, 2012/1) fez parte da investigação que
foi operacionalizada nos ateliers realizados na Es-
cola Municipal de Ensino Fundamental Rincão,
localizada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no
ano de 2012, com alunos do Ensino Fundamental.
Esse Projeto encontra-se vinculado ao Projeto
Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida
(Corazza, 2010), está integrado às políticas públicas
de fomento de pesquisas no âmbito nacional e é
parte do Programa do Observatório da Educação14
(OBEDUC/UFRGS/FACED), junto ao Programa
de Pós-Graduação em Educação da UFRGS.
A execução desse Projeto acorreu por meio de
experimentações didáticas com o foco na produção
de expressões de escrileituras nos ateliers. As es-
crileituras são tomadas como formas de afecções
nas expressões de “escrita-pela-leitura e leitura-pela-
escrita” (Dalarosa, 2011, p. 15). Assim, o jogo
político que cerca as escrileituras força encon-
tros, isto é, uma intensidade que produz diferentes

14
Edital 038/2010, CAPES/INEP.

130
tipos de corpos/expressões. As conexões entre as
experimentações didáticas e as expressões de escri-
leituras foram produzindo “vários sentidos, imagens,
dialetos, fantasias” (Dalarosa, 2011a, p. 43) no
espaço dos ateliers.
As imagens das cadeiras morais são produções
de imagens de escrileituras. A cadeira moral foi uma
ideia desenvolvida durante o Projeto, e a partir dela
se desenrolou a elaboração de fotos e textos escritos
produzidos pelos alunos e alunas participantes dos
ateliers.
O desafio desse tipo de experimentação se
estabeleceu diante da problematização didática que
atravessa o envolvimento com a pesquisa e in-
vestigação na execução dos ateliers. Problematização
que dispara a questão: como produzir imagens
de escrileituras da cadeira moral inventada pelos
participantes do atelier?

2 Experimentação da crítica genealógica


A ideia de cadeira moral foi concebida durante
os encontros dos alunos e alunas envolvidos nos
ateliers. A cadeira moral é tratada como parte
do jogo de valoração dos valores. Sendo parte do
julgamento de valor legitimado pelas diferentes
forças que nominam e determinam a vontade de
verdade do bem e do mal, ou seja, da moral. Com
isso, entramos num jogo de afecção com o filósofo
Nietzsche, quando este diz que “os juízos de valor
moral são condenações. São promoções que condenam

131
o bem e o mal” (2008, p.31). A moral, da cadeira
moral, dá um sentido de viver atrelado à valoração
do bem e do mal e faz com que essas categorias, ao
serem colocadas em xeque, produzam a possibilidade
de uma afirmação da vida. Esse filósofo afirma
que, ao tomarmos o valor das nossas valorações,
podemos questionar as forças da vontade de verdade
impostas nelas. Nos ateliers, disparamos a afirmação
da vida quando procuramos os questionamentos
da pergunta “mas o que querem os procuradores da
verdade?” (Corazza, 2010/1; 2010a, p. 12). E a
partir dela, seguem outras inquietações, tais como:

1. Quem quer...? (Quem é aquele que quer...?


O que quer aquele que diz...? Quais são as
forças que dominam aquele que quer isso?
Qual a vontade que possui aquele que quer
isso? Quem, então, se exprime e, ao mesmo
tempo, se oculta naquele que quer isso? Qual o
seu tipo, isto é: à vontade, a força, o lugar e a
ocasião em que ele quer...? Quem ou de qual
ponto de vista quer isso? Então, esta vontade
de poder (este “quem”?) supõe o quê? Logo,
qual a imagem do pensamento pressuposta
por esse tipo – que não é um indivíduo, mas
aquele que quer a vontade de...? O que
quer aquele (tipo) que diz, pensa, sente ou
experimenta isso? (Indicar o elemento dominante
em cada série.) Aquele que não poderia dizer
pensar sentir ou experimentar isso, se não tivesse
tal vontade, tais forças, tal maneira de ser?

132
2. Quando quer...? (Em que condições? Em que
caso(s)?).
3. Onde quer...? (Lugares? Circunstâncias? Pontos
de vista?).
4. Como quer...? (Por quais operações? Por quais
configurações de forças?).
5. Quanto quer...? (Intensidade das forças que
querem isso? Extensão da vontade que quer
isso?).

No território dos ateliers, esses questionamentos


são a matéria da experimentação da crítica genealógica
que produziu condições de possibilidades para
deslocar as vontades de verdades de algumas das
temáticas produzidas pela ideia da cadeira da moral,
que são parte das formações da sociedade disciplinar
e de controle. As temáticas demarcadas como
cadeiras morais dos participantes do atelier foram
sexualidade, gênero, disciplinamento, entre outras.
A experimentação da crítica genealógica dis-
parou articulações das cadeiras morais como ima-
gem. Com isso, a ideia-afecção é tomada como
imagem que expressa o efeito das afecções, imagem
passa a ser tomada aqui como potência de pensar e
afirmar a vida.

3 Imagem como potência de pensar


Durante as sessões dos ateliers, tomamos a ima-
gem fotográfica e a escrita como expressões da

133
produção de pensar os valores das cadeiras morais.
Com a imagem fotográfica, captura-se e se trans-
porta as relações entre a mão, a luz e o olho. Sendo
que fotografia foi problematizada como uma
imagem que não carrega a correspondência entre o
conceito da cadeira moral e sua figuração.
Ao investirmos na produção de imagens
fotográficas e suas relações de luz capturadas pela
câmera de fotografia, tomamos na imagem da foto
o procedimento de descrições falsárias (Deleuze,
2005). Com esse tipo de descrição, efetuou-se,
primeiramente, na construção da montagem da ideia
das cadeiras morais, em forma de imagem escrita e,
depois, a imagem foi exposta na relação montagem
da ideia e luz/câmera/ação. Com o procedimento
de descrição falsária foi possível operacionalizar o
querer-criação dos tipos de cadeiras morais.
A descrição falsária é implicada num processo
de falsificação da ideia da cadeira moral, que se torna
movimentos em falso. Esse processo de produção
fotográfica possibilita fazer da imagem parte de um
pensamento falsário. Somente o falsário da moral
poderia criar o conceito da cadeira moral. Assim, o
falsário não moralista privilegia na sua mostragem
da foto o pensamento do querer-artista, que faz
dos movimentos da potência do falso a potência de
pensar.
O querer-falsário passa a ser participante dos
ateliers, fazendo movimentos fenânbulos com a ideia
de imagem, pois quem se equilibra se movimenta.
Entre movimentos equilibrantes, o querer vive a

134
imagem-pensamento-falsificador [noo-signos-falso]
e o que interessa para este é o que força o pensar por
imagem [noologistas] ou por produção de criação
do pensamento.
A imagem dispara as expressões das ideias de
afecção, indicando o estado de relação do nosso
corpo. As ideias afectadas que produzimos nas
fotografias são signos, são imagens que indicam
impressões de nossas afecções. “L’image est l’idée
de l’affection”15 (Deleuze, 1968, p. 132), que cria
marca, que deixa vestígio, que faz impressão física
da folha que escreve, que faz efeito dos corpos
sobre as partes fluídas do nosso corpo e do corpo-
foto. Assim, segue o funcionamento dos ateliers,
desde a montagem da imagem até a lente que vai
capturar as relações de luz ao operar com a câmera.
A montagem do conceito das cadeiras morais
são efeitos das expressões das afecções que criam
sentidos imagéticos. Encontramos nas produções
dos participantes dos ateliers várias produções da
ideia-afecção-imagética de imagem operacionalizada
pela fotografia e pelo texto.
A fotografia da imagem do esquecimento foi
destacada com a seguinte fala: “talvez seja algo que
inventamos, esquecemos que inventamos e esquecemos
que esquecemos e fica assim nessa cadeira moral”. Com
a imagem da potência da preguiça, o autor nos traz
a seguinte questão: “essa preguiça de agir, que vocês
dizem, é meu modo de pensar antes de decidir”. Já na

15
“A imagem é a ideia de afecção” (tradução da autora).

135
imagem com o título de jejuadora, a autora afirma
que a imagem moral “fez jejum de obrigações”; e a
fotografia da imagem do silêncio carrega a fala do
autor quando ele diz: “não ficar tagarelando todo o
tempo. Ficar no canto pode ser bom, porque tu não
apareces toda hora”16.
Essas são as ideias das imagens-expressões
que vivem no limite das afecções que se efetuam
no campo das imagens que percebemos e, ao
percebermos, sempre percebemos a parcialidade
da coisa, percebemos somente o que nos interessa
perceber, devido a nossas exigências políticas e de
um determinado tipo de existência (Corazza,
2012/2). Com isso, se dá um limite de pensar a
própria vontade criadora por imagens.
Por dentro desse movimento-limite, faz-se
outro movimento no ato de fotografar e fazer as
montagens escritas e gráficas das imagens, que é
parte da necessidade da potência falsante. O falsante
afirma seu querer-artista na arte da falsificação
(Vasconcellos, 2007, p. 142), isto é, um tipo de
simulacro expresso nas imagens-fotos-escritas das
cadeiras morais.

4 O falsário e a potência do falso


Deleuze (2005), no estudo sobre o cinema,
afirma a existência de um cinema de falsários. E dá

16
Todos os excertos foram retirados dos textos produzidos pelos alunos e alunas
que participaram dos ateliers (SCHULER e MATOS, 2013/1) no Projeto do
Observatório da Educação CAPES/INEP/UFRGS/FACED na escola Rincão.

136
tratamento na imagem por meio de dos dois regimes
de imagens que expõem dois procedimentos de
descrições, um procede no modelo do cinema
narrativo clássico, a narratividade da veracidade, isto
é, a descrição orgânica e a descrição falsária.
No mundo orgânico, a descrição da imagem
do real é a narração verídica, ela parte da aparição
das causas e dos encadeamentos motores, sendo que
a irrealidade, o sonho, a lembrança, se opõem ao
real. A imagem-sonho e a imagem-real se atualizam
na consciência, sendo assim, a imagem verídica
atualizalizada na consciência inspira o verdadeiro
ao imaginário que impõe até mesmo a vontade de
verdade do real, do verdadeiro ou da moral.
A crise da noção de verdade é destacada no
estudo sobre o cinema, quando o filósofo denúncia
o império das narrativas verídicas, a vontade de
fixar a verdade na tela e com ela “o pensamento de
Nietzsche: o elogio ao falso” (Vasconcellos, 2007,
p. 150) encontra as forças para afirmar a potência
do falso, do falsário. Essas forças ocorrem quando se
cria condições de possibilidades para que o pensar
fique sob o poder de violentar a imagem moral do
pensamento.
Essa violência é uma das condições de possibi-
lidade afectadas pelo intervalo entre o real e o ima-
ginário; o mundo imagético. Nesse intervalo, a narra-
ção deixa de ser verídica, deixa de aspirar à verdade
para se fazer falsificante. A potência do falso destrona
a forma do verdadeiro, o juízo de valor do homem
moral [verídico] e do homem que quer a verdade.

137
Quem são os falsários das imagens das ca-
deiras morais? Eles se tornaram um bando. Tor-
naram-se, mesmo que eventualmente, corpos-
imagens que aumentam sua potência de vida pelo
que pensam ver, pelo que criam de imagens. Eles
atuam em um só tempo na zona de indiscernibi-
lidade de real e imaginário, suscitam diferenças inex-
plicáveis produzidas pelo falso. Suas emergências
são não ser reduzido a um copiador nem a um
mentiroso, pois o falso não é uma cópia.17 Ele é um
o próprio ponto de singularidade do movimento do
querer-artista.
Afectado pelas forças do falsário, a imagem
circunda no mundo do simulacro. Na imagem sem
semelhança. O simulacro não é a cópia degradada
como caracteriza o pensamento platônico. Ao
assumir o simulacro como imagem sem semelhança
abole-se a questão de modelo e cópia. Com isso, o
simulacro não pode entrar nas forças da imagem
moral do pensamento, pois ele “é o sistema em
que o diferente se relaciona com o diferente pela
própria diferença.” (Deleuze e Guattari, 1996,
p. 16). A diferença não pode ser reduzida somente
à identidade e à relação de similitude da ideia de
cadeira.
A zona imagética é parte do jogo das infinitas
possibilidades do querer-artista diante dos enqua-
dramentos que disparam pensamentos. A ideia

17
Todo Platonismo é dominado pela ideia de uma distinção a ser feita entre a coisa
mesma e os simulacros. Subverter o platonismo significa reusar o primado de um
original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. O simulacro não é a cópia.

138
de enquadrar é destacada no sentido da atuação
quando eles enquadram a cena para apreender a
sensação da cena; também, é a ação de selecionar
determinada pela porção do cenário para expressar
a cena fotográfica e escrita. O enquadramento pode
ser fixo e móvel, mesmo assim, todo enquadra-
mento é movimento, seja ele travelling (sensação
de velocidade), dolly (sensação de velocidade
vertical), aproximação e afastamento. Então, todo
plano das cadeiras morais, necessariamente fazem
capturas de tipos de enquadramentos morais.
Os enquadramentos e suas montagens ima-
géticas são as imagens das cadeiras morais expe-
rimentadas nos ateliers, que são parte da potência
do falso que ganha território como escrileituras
ou potência de pensar.
É no território das escrileituras que o pensar
toma a sua tarefa radical, pois a expressão “fabula”18
(Deleuze, 2005) o conhecimento19 do querer-
artista. A função fabuladora não é privilégio dos
gênios ou artistas, ela pode se atualizar liberando
vida lá onde ela é prisioneira da vontade de verdade.
A função fabuladora ou falsária dispara forças de
expressões do querer pensar por imagens.

18
Fabulação se opõe a ficção. A fabulação dá ao falso a potencia de criação. A fabulação
é o devir do personagem que se Poe a ficcionar. A fabulação fabrica a ficção como
potencia do falso não como modelo. (DELEUZE, 2005).
19
“A maior fabulação é aquela do conhecimento.” (NIETZSCHE, 2008, p. 290),
fragmento 555.

139
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Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes). Rio
de Janeiro: Contraponto, 2008.
SCHULER, Betina; MATOS, Sônia Regina da Luz. Projeto de
Pesquisa A escrita, o cuidado de si e a estética da existência: uma
experimentação genealógica no Ensino Fundamental. Observatório
da Educação. Edital 038/2010. Fomento a estudos e pesquisa
em educação – CAPES/INEP. Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFRGS. 2012/1.
______. Relatório do Projeto de Pesquisa. A escrita, o cuidado de si
e a estética da existência: uma experimentação genealógica no Ensino
Fundamental. Observatório da Educação. Edital 038/2010.
Fomento a estudos e pesquisa em educação – CAPES/INEP.
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. 2013/1.
VASCONCELLOS, Jorge. Arte e falsificação: cinema e potências
do falso em Gilles Deleuze. In: LINS, Daniel. (Org.). Nietzsche/
Deleuze: Arte resistência. Simpósio Internacional de Filosofia.
2004. Rio de Janeiro: Forence Universitária; Fortaleza, CE:
Fundação de Cultura, Esporte e Turismo, 2007, p. 141-152.

141
Posfácios
Foto: Jennifer dos Reis Sobrinho
Estudante da escola e participante
do atelier Escrileituras e a estética
da existência: nunca é tarde para
ocupar-se consigo mesmo.

Diante do sutiã
Jennifer dos Reis Sobrinho

U m dia, uma mulher chamada Susi chegou em sua casa.


Em mais um dia difícil e cansativo de trabalho, vai se
deitar. De tão cansada que estava, não arrumou a casa, não
fez nada, só queria uma coisa: sua cama. Caiu na cama e
desmaiou de sono. De repente, toca o telefone. Era seu
patrão lhe pedindo para voltar e fazer hora extra. Susi diz:
– Acabei de chegar em casa, estou cansada. Não posso,
senhor.
E ele diz:
– Você é paga para trabalhar, não para dizer “não posso,
senhor”. Eu mando, venha já para cá, agora!
E sem poder falar nada, Susi vai para seu emprego,
pensando em pagar suas contas, comprar suas coisas, mas
não em seu bem-estar.
Já era tarde quando Susi chegou novamente em casa e
murmurou sozinha, dizendo:
– Não é fácil ser eu e ainda mais com um chefe
como esse.
Deita-se e vai dormir. No outro dia, em mais um longo
dia de trabalho, ela acaba de chegar no serviço e seu chefe
já começa a lhe cobrar trabalhos, documentos, serviços,
etc. Ela tem a mesma rotina todos os dias. Isso ficou muito
chato e exaustivo. Ela pensa em se demitir, porque já não
aguenta mais essa vida tão chata, cansativa, e também quer
achar um emprego em que não tenha um chefe tão chato
e machista.
Ela vai até a sala de seu chefe e fala que quer demissão.
Ele diz que ela pode achar um emprego melhor, mas não
vai ser a mesma coisa.
Susi fica um mês procurando emprego e acha. Ela
se inscreve e começa a trabalhar e vê que é muito mais
puxado, o patrão é bonzinho, mas o salario é muito baixo.
De repente ela encontra seu ex-chefe, e ele lhe pergunta:
– Como está o novo emprego?
Ela fala que não é a mesma coisa. Diz também que está
com suas contas atrasadas. Então ele fala:
– Se fosse homem seria diferente, mas você é mulher.
Quer o emprego de volta? E Susi responde:
– Sim! Mas ela continuava sendo tratada do mesmo
jeito. Com o machismo do chefe e sua vida exaustiva
Antônio Henriqson
Fotógrafo que realizou três oficinas de fotografias com os
alunos da EMEF Rincão. Antônio Henriqson é editor gráfico e
fotógrafo há mais de trinta anos.
Ateliers de fotografia
Antônio Henriqson

Q
uando recebi o convite da professora
Betina e da professora Sônia para fazermos
um atelier de fotografia com seus alunos,
pensei que elas estavam propondo algo impossível
para mim. Afinal, não fazia a menor ideia do que seria
realmente relevante para os adolescentes de hoje.
Lembrei dos professores que foram determinantes
na minha vida, aqueles que me deram instrumentos
para buscar conhecimento e inventar como me
expressar. O meu ofício. E esses professores foram
justamente os que me acompanharam dos 11 aos 14
anos, quando me foram reveladas as artes gráficas e
a fotografia.
No dia em que encontrei os alunos pela primeira
vez, de pronto e com empolgação, me falaram sobre
as suas aulas de filosofia e, entusiasmado, entendi
que não seria tão difícil operar com as técnicas
que conheço, pois eles estavam interessados em
“problematizar suas cadeiras morais” também na
fotografia. E esse passou a ser o nosso desafio.
Conversamos sobre a fotografia como esse es-
crever ou desenhar com luz e sobre a imagem ser

147
construída principalmente com toda a nossa ca-
pacidade de imaginação. A imaginação, que é mãe
de todas as ações. Trabalhamos algumas técnicas
básicas da fotografia: quantidade de luz que
deixamos entrar pela lente, tempo que expomos essa
luz sobre a superfície sensível, enquadramento da
cena, a regra dos terços, que nos indica os principais
pontos de interesse do fotograma. Além disso, lhes
apresentei a Galeria Delta da Pintura Universal,
um antigo livro que me acompanha há cerca de 40
anos e resume, em cerca de trezentas imagens muito
bem impressas, desde as pinturas rupestres até os
modernistas e contemporâneos. Também levei para
nossas oficinas livros de ícones da fotografia, como
Cartier-Bresson, considerado por muitos como
o pai do fotojornalismo; Robert Capa, fotógrafo
de guerra; Sebastião Salgado, documentarista,
além de coletâneas de fotógrafos de arte de várias
nacionalidades e escolas.
Assim, trabalhadas com eles as diferentes com-
posições das imagens, primeiro na pintura e, depois,
na fotografia propriamente dita, partimos para
a execução, entendendo que a fotografia não é só
apertar um botão. A foto precisa ser fabricada. Ela
não está à vista de todos, esperando para ser “tirada”
e pronto. Ela será o que o operador do processo
imaginou e tentou conquistar como efeito. É uma
experiência pessoal. Para tanto, fomos percebendo
que fotografar é, além de observar uma cena ou
objeto, estar atento às linhas, às texturas e, prin-
cipalmente, à luz. O fotógrafo também tem de

148
criar uma coreografia para cada ação em busca
da criação da imagem. Perceber o movimento,
posicionar-se como o partner da bailarina luz no
balé do enquadramento para encontrar a angulação
e a perspectiva necessárias. Fotografia também é
transpiração.
Depois dessa captura fomos ao tratamento da
imagem. Os alunos experimentaram as ferramentas
digitais para aprimorar o fotograma saído da câmera.
Trabalharam com os efeitos de mais ou menos
claridade, contraste, saturação das cores, testaram
a dramaticidade do preto e branco, modificaram
cores, eliminaram ou acrescentaram detalhes, enfim,
passearam pelas possibilidades da técnica fotográ-
fica enquanto cada um construía a fotografia para
dissolver a sua “cadeira moral”. E eu, junto daque-
les entusiastas, fui encontrando e dissolvendo as
minhas.

149
Foto:William Duarte Boardman
Estudante da escola e participante
do atelier Escrileituras e a estética
da existência: nunca é tarde para
ocupar-se consigo mesmo.

Lasciva
William Duarte Boardman

U m quarto, nem pequeno nem grande, estando


cheio de brinquedos e coisas coloridas, desenhos,
formas geométricas e roupas de verão e primavera. O
garoto que ali se distraía, divertindo-se com as inúmeras
coisas dentro daquele quarto, se intrigava com uma
vassoura no canto da porta. Um cabo velho, cerdas
gastas, faltando e parcialmente faltando.
Tempos vinham e iam e ele, mesmo tendo infinida-
des de coisas coloridas e divertidas, era distraído
pela vassoura sem cor e sem vida. Um objeto sem
movimento e atração que produzia receio e calafrios só
de se aproximar.
Mantinha-se sempre tão afastado e preocupado
com a existência daquela vassoura que nem sequer
transmitia som para que ele a notasse. Porém, a
vassoura tomava tanto a sua atenção que ele não
notava a existência de uma porta ao lado. Uma gran-
de porta alta e aparentemente grossa, com apenas
um detalhe: uma mísera janela ao alto que dava
acesso e vista para o outro lado, superior e inacessí-
vel.
Pensava em seu jeito de ser e agir, nas inúmeras coisas
que o cercavam e que já não lhe satisfaziam mais como
satisfaziam antes. O tempo havia passado, sua forma de
agir e pensar tinha mudado. Porém, a vassoura ao lado
da porta o assustava a ponto de não lhe deixar passar dali.
Sentia-se encanecido e sem vontade de permanecer
ali, não lhe restavam mais forças para continuar a andar
de um lado para o outro daquele quarto. Arrastava-se
para apanhar os objetos que queria e a vassoura sempre
ali, um objeto tão seco e sem vida. Tudo parecia mantê-
lo naquela personalidade lasciva, tudo o impossibilitava
de passar pela porta.
Alguns eram os objetos à frente da porta, prendendo-a
de ser aberta. Sua força, já praticamente esgotada, não
lhe ajudava a remover os objetos que o vetavam de
passar. Gritos de pavor não passavam pela boca, tudo
já o sufocava. Arrastando-se próximo à porta, ele tenta
afastar os objetos que o prendiam para longe da mesma.
Cansa a ponto de desmaiar, cai deitado no chão, agora
já um homem. Ao acordar, olha para o teto, vira-se de
barriga para baixo para novamente tentar remover todos
os itens da frente da porta, juntava poucos e sua força já
esgotada não o ajudava mais.
Pegou um objeto semelhante a uma bolinha de tênis,
jogou-o para o lado, acertando a vassoura que caiu a sua
frente. Seus olhos agora arregalados juntaram-se com
sua alma que acabara de gelar. Faltavam exatamente
dois objetos a serem retirados da sua frente: uma grande
sacola de roupas coloridas e a temida vassoura. Ele não
tinha mais forças. Agarrou a vassoura, com muito medo
do que poderia acontecer com o objeto que tanto o
assustou, e empurrou a sacola. Já estava muito velho e
quase surdo, empurrou a sacola com seu resto de força
e desespero.
Já estava exausto daquelas coisas eufóricas e coloridas,
ele queria algo menos entupido, diferente do que estava
acostumado. As enormes paredes que o cercavam o
deixavam mais cansado ainda. Faltavam apenas alguns
centímetros para que agora o velho removesse a sacola
da frente da porta, para que a mesma pudesse ser aberta.
Ele estava próximo a conhecer coisas novas, que iriam
lhe favorecer mais do que os antigos objetos que anos
foi obrigado a lhe satisfazer. Então era o fim, ou melhor,
um novo começo, novas ideias, novas escolhas.
Nada iria impedi-lo de passar pela porta e conhecer
o outro lado. Seu único medo era novamente ficar
preso em outras obrigações e escolhas que faziam
sua personalidade, da mesma forma de anos naquelas
paredes que o prendiam.
A porta se abriu e rastejando ele foi sem olhar para
trás, sem hesitar e rapidamente chega ao outro lado.
Seus joelhos doíam um pouco, acompanhado das dores
nas costas e braços. Era um pouco escuro, porém, ele
quase identifica algo ali.
A porta que acabara de passar se fecha em um estalar
de dedos, provocando um som tão alto e, ao mesmo
tempo, tão baixo, porém, chamando a atenção dele.
Rapidamente se vira para trás e não avista mais a porta,
apenas um paredão alto e velho de tijolos maciços. A
luz atrás do homem se acende e ele volta a ser novo de
novo.
Olhando para um quarto lotado de coisas velhas e
empoeiradas, quer entrar: roupeiros, vassouras, cadeiras
e mesas. Porém, algo lhe chama a atenção. Era uma
pequena e frágil bolinha de tênis ao lado de uma imensa
porta de madeira velha e ressecada.
Betina Schuler
Professora do Centro de Ciências Humanas da Educação
e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade de Caxias do Sul. Doutora em Educação e
Pós-Doutorada em Educação e em Ciências Humanas.
Não sem alvoroço...20
Betina Schuler

U
m grupelho sem sala nas quintas-feiras
pela manhã. A quem importava a sala? Im-
portava a luz, as chegadas, os fragmentos, as
invenções, as banquetas, a problematização genea-
lógica das cadeiras morais. Ah!, e as ferramentas
para essa problematização. Vários outros entraram
conosco por meio de armários, cadeiras, cartazes,
computadores, filmes, textos, pincéis, limalhas
de ferro, leituras ruminadas: entraram Foucault,
trazendo debaixo do braço o lembrete do cuidado
de si, roubado para pensar o presente. Mas não
veio sozinho. Veio com Epicuro e as linhas de
não compor com o que faz mal, com Sêneca, que
quer a constituição de um corpo pela escrita e
pela leitura, e com Nietzsche nos lembrando do
esquecimento, da dignidade na lidação com o pen-
samento, ruminado no afastamento de si.
Kafka nos pega sempre desprevenidos. Aí está
sua potência. Prefere as saídas e as esburaca na
linguagem, porque tem fome de alargamento. Nós
20
Texto apresentado junto à instalação e performance realizada na UFRGS com os
alunos no dia 11/12/2012.

157
que aqui estamos por vós esperamos. Preferimos
não esperar. Preferimos as linguiças sem fila.
Koyaanisqatsi contra a humilhação da linguagem.
Muitas versões de um texto que não é o mesmo. Ou
pelo menos que não quer ser. Sintomas do presente:
responsabilidade com seus relógios, panelas e
rebanhos; diante do sutiã com documentos e
serviços; a não entrada em nenhum portão; o jejum
de obrigações que alimenta como desentupidor;
monstros, cadeiras, tvs, cadeados e a arte do silêncio;
pracinhas, escadas e o cuidado com o quarto da
personalidade lasciva; a invenção dos quinze anos, a
vergonha e o feminino; amor, martelos, quartos, ruas
e força; a preferência pelo não como um cuidado
de si. Brechas de respiro na relação com a escrita, a
leitura e a fotografia. Um equipar-se. A invenção de
uma estilística. Um atelier de desaprendizagem com
filosofia, história, literatura, fotografia. Não se tratou
de escrever ou fotografar sobre a vida, mas com
ela, por meio dela, por ela. Diferentes suportes na
problematização e na dissolução da identidade para
fazer passagens, fabricar outras imagens, multiplicá-
las, deformá-las. Invenções perspectivadas com o
cuidado de si, na tentativa de escapar em brechas
da escravidão, seja dos outros, seja de nós mesmos,
dessa forma do “nós” colada tal como uma cadeira.
Problematização do senso-comum, do bom senso,
da boa vontade, do rebanho, dos entupimentos,
das tagarelices, das opiniões da maioria, dessa
relação conosco mesmos sempre em dívida em que
nos encontramos. Escape à sujeição. Jejum para

158
continuar respirando. Trabalho sobre si mesmo.
Estoicamente, construir um corpo por meio dessas
diferentes expressões-composições produzidas.
A vida, o instante, o movimento não é matéria
capturável para aqui ser escrita. Por que aconteceu
no instante de múltiplos movimentos, forças e
tempos. Apenas podemos dignamente nos deixar
afetar por isso. Fazer disso modos de existência para
além das muitas capturas no presente. Encarnação
dos conceitos, frases, fragmentos, imagens, bus-
cando não viver como um morto. Criar-se nos
textos, falas, leituras, fotografias. Recolher-se em
tais movimentos, não para reconhecer-se, decifrar-
se ou identificar-se, mas para dissolver-se, em que
o único compromisso assumido é com a vida, que
não pode ser submetida à lógica, ao verdadeiro e ao
falso, à moral. O que estou fazendo de mim mesmo?
Como seria possível construir em brechas algumas
micropossibilidades de uma arte de viver? A força
não está mais no grau de verdade, mas na lidação
com forças afirmativas de vida. Um cuidado com o
que se passa e com que passa no pensamento. Mas
a arte de viver não pode ser explicada. É de outra
ordem. Daí a filosofia, a literatura, a fotografia como
exercício de pensamento e vida.
Preferimos não nos confessar, não nos revelar.
Preferimos o não. A indignidade de falar pelos
outros. No MIX “Escrileitura e a estética da exis-
tência: nunca é tarde para ocupar-se consigo
mesmo” mexemos com fragmentos literários, filmes,
textos filosóficos, contos kafkianos e fotografias.

159
Para criar, para fazer passagem, para correr imagens,
sentidos, cores, coisas. Fazer existir. Quando
percebemos, estávamos diante da lei, com um sutiã
pink pendurado na parede de tijolo à vista. E na
semana em que a polícia tomou conta da escola,
junto com a paranoia e as generalizações, pegamos
o martelo para empurrar e alargar outras linhas.
Retira-se a comida da panela e coloca-se os pés. A
coragem de resistir ao identitário, mexendo com
as palavras como se a criação fosse o único modo.
E nada de romantismos ou final feliz, até porque
as forças do estado, das chamadas, dos horários,
dos objetivos, das explicações não desaparecem.
Mas estamos buscando aprender outros modos
de nos relacionarmos conosco mesmos e com os
demais por meio dessas forças e de outras tantas
que circulam na escola, na escrita, na leitura. Não
se tratam de descobertas, mas de exercícios. De
luta com e por cada frase, cada detalhe na criação
de outras possibilidades de existência. E não se
cabe mais em si. Que bom, porque continuamos
sem sala. Quem se importa? Era só mesmo uma
precaução metodológica: ter uma sala com uma
porta. Justamente para deixar aberta. Deixar uma
saída sempre por perto. Para aprender a sair. E não
sem alvoroço...

160
Foto: Lucas Duarte
Estudante da escola e participante do atelier
Escrileituras e a estética da existência: nunca é
tarde para ocupar-se consigo mesmo.

Cadeira e silêncio
Lucas Duarte

U m dia, um monstro chegou na sua caverna e


encontrou seu amigo. Mas quando ele falou com o
monstro, notou que ele não respondeu e ficou pensando
por que ele não falou.
Todavia, o monstro viu que seu amigo estava fazendo
sinais, então ele descobriu que seu amigo estava mudo.
Ele pensou que seu amigo estava mudo, não poderia
falar.
Por isso todo mundo coloca a cadeira moral da
identidade e a gente está colado nela. Quando queremos
sair, todos acham que estamos loucos. Por isso eu
pergunto: como saímos da cadeira moral se estamos
colados nela?
Como nos mudarmos se a gente fica colado num
canto, sem revolta, sempre em silêncio? Algumas
vezes, podemos mudar o jeito e sair dessa cadeira, ter
liberdade de agir do jeito que a gente quer, sem cadeira
de identidade que todos colam na gente.
Todavia, o silêncio pode ser uma arte que alguns
partilham. Será que todos têm um tempo que ficam em
silêncio?
O silêncio. Não ficar tagarelando todo o tempo. Ficar
no canto pode ser bom, porque tu não apareces toda
hora.
Sônia Regina da Luz Matos
Professora da Universidade de Caxias do Sul. Doutora em
Educação em regime de cotutela entre Université Lyon 2 –
França e Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil.
Exílio do espírito21
Sônia Regina da Luz Matos

PERSONAGENS
Molière
Um Deles:
Lucas
Gustavo
Carlos
Airton
William
Uma Delas:
Jennifer
Jade
Jacqueline
Larissa

ÉPOCA
Século da véspera do fim do mundo

21
Texto apresentado junto à instalação e performance realizada no curso de extensão
da UFRGS com os alunos no dia 11/12/2012.

165
ATO I
CENA I
Molière
Estamos aqui sós e podemos falar do assunto.
O objetivo de vocês me dá medo.
Um Deles
Depende de qual ângulo colocas o ato temerário.
Molière (diz sorrindo ironicamente)
O espírito!
Outro Deles
O espírito de Um rebanho.
Um Deles
O homem forte sempre é parte do rebanho.
Molière
Desculpe, vem-me à boca, por mais que eu
evite. Mas a verdade é que ninguém se habitua
fora do rebanho. Veja, mesmo nos textos que
escrevem... Diante do sutiã; Jejum de obrigações;
Menina sem vergonha; Lukas com K; Cadeira e
silêncio; Lasciva...
Uma Delas
Fique tranquilo, que isso será motivo de atrito
entre nós; tomarei cuidado para que isso fique
nessa sala.

CENA II
Molière
Bonitos cumprimentos a um porte como eu!
(Por três vezes ele diz – diante do portal)

166
Uma Delas
Eu poderia simplesmente entrar, mas não.
Molière
Mas que vejo eu? Duvido que, juntos, vossos
versos, palavras, cartas, texto entrem na ciência,
porque ela vive de uma ignorância dita honesta
e recatada.
Outro Deles
Como vê... Não nos resta cerimônia, que a
história fique entre nós!
Molière
Impossível. Esse é um caso que será resolvido
pela onipotência de quem quer sempre ter uma
barba.
Todos
Que azar o nosso. Por que é que fomos bater no
humano com tanta violência?

Uma delas, Jacqueline H.22


Eu poderia simplesmente entrar, mas não
Digo: Tem uma gentinha ali que é diferente. São
do mal? Não. São fora da lei? Não. São apenas
bagunceiros! Esses aí são os alunos da C12 em
mais uma confusão.
Esses bagunceiros foram para o lugar das
oportunidades, onde há dois grandes portões
que levam a caminhos distintos. Ao parar na
frente dos portões, um aluno chega perto do
vigia e pergunta:

22
Estudante da escola e participante do atelier Escrileituras e a estética da existência:
nunca é tarde para ocupar-se consigo mesmo.

167
– Aonde levam esses caminhos?
O vigia dá um sorriso bobo e diz:
– Um caminho é chato, entediante, porém,
leva ao próximo ano escolar e o outro é
divertido, agitado, animado e cheio de
confusões, porém, leva ao nada.
Todos queriam ir pelo caminho que leva ao nada.
Mas um aluno, cansado dessa irritante cadeira
moral da bagunça se opõe:
– Não! Nego-me a ir por esse caminho. Posso,
vigia?
O vigia fecha a cara e diz:
– Pode! Mas não sei se deve. Este caminho é
apenas para quem é digno.
O garoto fica nervoso e diz:
– Por que só os dignos podem ir por esse
caminho?
O vigia se senta numa pedra, abaixa a cabeça e
diz:
– Não sei, talvez seja algo que inventamos,
esquecemos que inventamos e esquecemos
que esquecemos e ficamos assim, nessa
cadeira moral ridícula.
O garoto fica mais nervoso e diz:
– Se é assim, vou por esse caminho e deixarei
essa cadeira moral da bagunça.
Esquecendo do cuidado de si, um outro garoto
chega e diz:
– Você não vai por aí, você vai junto com a
gente, você não deve largar da nossa cadeira
moral.
– Por que não posso ir por aqui?

168
– Por que é estranho.
– Viu, passei tanto tempo nessa cadeira moral
que esqueci de cuidar de mim. Agora vou me
dedicar a mim e não deixarei ninguém roubar
de mim quem eu sou. O garoto vira para os
colegas, trabalhando o pensamento sobre si
mesmo, e diz:
– Aprendemos uma determinada relação co-
nosco mesmos e com os outros e esquece-
mos de cuidar de nós. Não sei vocês, mas
agora vou cuidar de mim. Adeus, velha
cadeira moral.
O silêncio tomou conta do local. O garoto se vira,
abre o portão e diz:
– O que quer que seja, responda com grande
alma. Tens algum conselho para me dar antes
que eu siga por esse caminho?
– Bom, lembre-se disso: não temos uma
interioridade, um sujeito que nos habita, não
nascemos de um jeito pronto. Somos
produções, invenções.
Ao fim de tudo, o garoto, que era inteligente,
tentou criar uma solução boa e criativa. Acabou
que ele não entrou em nenhum dos portões,
simplesmente os fechou.
O vigia, curioso, pergunta:
– Ei, você não vai entrar nesses portões?
O garoto senta ao lado do vigia e diz:
– Eu poderia simplesmente entrar, mas não!
Seria um final feliz e, além do mais, eu
entraria na cadeira moral dos nerds, mas
meu único desejo é fugir dessas cadeiras

169
morais! Não gostei dessa história de um
caminho bom e um caminho ruim.
O vigia sorriu, o garoto se levantou e saiu por aí.
O vigia, intrigado, o chama e pergunta:
– Por que não convence seus amigos a ir junto?
E o garoto diz:
– Mas isso não seria um cuidado de si. Ao dizer
isso, simplesmente foi embora.

170
Foto: Larissa A. P.
Estudante da escola e participante do atelier
Escrileituras e a estética da existência: nunca é tarde
para ocupar-se consigo mesmo.

Menina sem vergonha


Larissa A. P.

A s pessoas... Não. Algumas pessoas dizem que a mulher


tem que ser do jeito que os homens mandam que
deve ser. Tem que limpar a casa, dar o agrado ao marido e
cuidar de seus filhos...
Mas nem sempre as mulheres aceitam as coisas. Não
devem fazer o que as pessoas pedem para ser, mas,
dependendo do caso, se é para melhor ou para o pior.
Por que nós mulheres não podemos ter liberdade? Nós,
mulheres ou meninas, não podemos sair à noite, ficar
perto de guris, que já é motivo de menina sem vergonha
ou porque é feio para menina. Se for para o menino, pode
tudo, desde sair, ir para a rua, para as pessoas é normal.
Entretanto, não é sempre que o guri e o menino podem
sair. Se você pensar, somos nós que fazemos a cadeira
moral. Até porque a TV diz o que está certo e o que está
errado. Também o colégio que vai repassando para nós.
Mudar essa moral é cada um fazer o que acha melhor
para si. Mas não adianta só falar que devemos mudar a
cadeira moral se todo mundo continua fazendo igual. Por
que só falamos e não fazemos?
As pessoas não têm que ser do jeito das outras, cada um
tem que cuidar de si. Para depois pensar na cadeira moral
de outra pessoa.
Todavia, ninguém vai mudar a cabeça das pessoas.
Depende de mudar a cadeira moral. Porque você aprende
algumas coisas com gente estranha e, com isso, vamos
dizer, vai se compartilhando para outras pessoas...
E que inspiração você já teve? E o que inspira mais pelos
outros? E que outros preconceitos irão vir?
BETINA SCHULER
Pós-Doutorada em Educação pelo Instituto de Educação
da Universidade de Lisboa, Portugal. Pós-Doutorada em
Ciências Humanas pela Griffith University, Austrália.
Doutora e Mestre em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Graduada em Pedagogia pela Universidade de Santa Cruz
do Sul (UNISC). Atualmente é Professora do Centro de
Ciências Humanas e Educação e do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade de Caxias do
Sul (UCS). Pesquisadora do Observatório de Educação
da Universidade de Caxias do Sul na linha de pesquisa
Educação na Diferença, do Observatório de Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bem
como do Grupo de Pesquisa “Cultura, Subjetividade e
Políticas de Formação” (PUCRS). Atua principalmente
nos temas: estudos foucaultianos em educação; currículo
escolar, didática, práticas de escrita e leitura e formação
de professores.

SÔNIA REGINA DA LUZ MATOS


Doutora em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) em cotutela na Université
Lumière Lyon 2, no Laboratoire Santé, Individu, Société.
Professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS),
Participa das Mobilidades Universitárias entre UCS
e Univiersité Lumière Lyon 2 (Institut des Pratiques
dÈducation et de Formation - ISPEF); UCS e Institut
Universitaire de Formation des Maître (IUFM), ambos
em Lyon – França. Graduada em Pedagogia, Séries
Iniciais e Matérias Pedagógicas (PUCRS), Especialista
em Supervisão Escolar (PUCRS). Mestra em Educação
(PUCRS). Participou do Intercâmbio Interinstitucional
na Universidade Complutence, Madrid – Espanha. Atu-
almente faz parte do Observatório de Educação da
Universidade de Caxias do Sul. Escreveu seu último livro
sobre alfabetização e escrituras, atua na área de currículo,
didática e alfabetismos.

SANDRA MARA CORAZZA


Licenciada em Filosofia, mestra e doutora em Educação.
Professora Associada IV da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Faculdade de Educação, Departamento
de Ensino e Currículo. Pesquisadora de Produtividade do
CNPq, nível 1D. Coordenadora Geral do Observatório
da Educação, CAPES-INEP, Projeto “Escrileituras: um
modo de ler-escrever em meio à vida”. Experimentadora
de Filosofia, Educação, Escrileitura, Currículos Nômades,
Devir-Infantil. Integra a Associação Montenegrina de
Escritores (AMES). É bolsista de Pós-Doutorado Sênior
do CNPq, na Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo/USP.
Essa coleção bibliográfica publica os textos produzidos pelos pesquisadores
do Projeto, ao longo de seus cinco anos de vigência.

• Caderno de Notas 1 – Projeto, Notas & Ressonâncias, organizado pela


professora Ester Maria Dreher Heuser, do Núcleo UNIOESTE, é
composto por textos extraídos e trabalhados no I Seminário Integrador
Escrileituras realizado na UFRGS, em abril 2011.
• Caderno de Notas 2 – Rastros de Escrileituras, organizado pelo professor
Silas Borges Monteiro, do Núcleo UFMT, resulta dos trabalhos
desenvolvidos durante o I Colóquio Nacional: Pensamento da Diferença
e Educação, realizado em Canela, RS, em novembro 2011.
• Caderno de Notas 3 – Didaticário de Criação: Aula Cheia, escrito pela
professora Sandra Mara Corazza, coordenadora do Projeto Escrileituras,
volta-se para a (de)formação de professores e estudantes de Graduação
e Pós-Graduação.
• Caderno de Notas 4 – Pedagogia da Tradução: entre Bio-Oficinas de
Filosofia, resulta da Dissertação de Mestrado da bolsista e pesquisadora
do Projeto, Patrícia Cardinale Dalarosa, e trata a tradução como potência
criativa em oficinas de Filosofia.
• Caderno de Notas 5 – Oficinas de Escrileituras: arte, educação, filosofia.
Organizado pela professora Carla Gonçalves Rodrigues, coordenadora
do núcleo UFPel, apresenta as oficinas propostas pelos pesquisadores e
bolsistas do Projeto Escrileituras no ano de 2011.

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