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CURRÍCULO-DANÇANTE: POSSIBILIDADES DA EXPRESSÃO NO CURRÍCULO


ESCOLAR

Carla Char – mestranda em Educação


Faculdade de Educação/UFMG

INTRODUÇÃO

O que pode a dança no currículo de uma escola que se abre para experimentações
com essa arte? Essa pergunta também pode ser feita do seguinte modo: o que pode um
currículo-dançante? Isso porque a pesquisa que subsidia este trabalho teve como objetivo
cartografar as sensações decorrentes de experimentações com dança em um currículo de uma
escola pública da educação básica. A dança foi experimentada no currículo em diferentes
horários, de diferentes modos, em tempos cedidos por várias disciplinas e professoras/es a fim
de mapear o que se pode aprender com essa arte na escola. A metodologia adotada foi a
cartografia, denominada nessa pesquisa, de dançarilhar. Acompanhamos quatro turmas do 8º
ano e seis turmas do 9º ano do ensino fundamental, semanalmente, por um semestre do ano
letivo.

Partimos da hipótese de que seria possível criar um currículo-dançante, um currículo


em que corpo e pensamento podem se movimentar e possibilitar o aprender com as sensações
do corpo que dança. Consideramos que esse currículo com a dança, por ser arte, cria afectos e
perceptos1, um bloco de sensações. Consideramos ainda que, na dança, a sensação é dançante
e traz mudança a um currículo. A partir da pergunta “o que pode um corpo? De que afectos
ele é capaz?”2 (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 49), entendemos que o corpo pode ser
afectado de diferentes modos. Nesse sentido, essa pesquisa buscou disparar no currículo
encontros com os signos da dança.

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Afectos e perceptos são as sensações que devém e transbordam da arte. Afecto pode ser entendido como a
capacidade de afetar e ser afetado. Nesse sentido, não se trata de um sentimento de “afeto”, bem como os
“perceptos” não se tratam de percepções, pois “são independentes do estado daqueles que os experimentam, os
afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam aqueles que são atravessados por eles” (DELEUZE;
GUATTARI, 2016, p. 194). Pode-se compreender afectos e perceptos como devires e sensibibidades, um abrir-
se para as sensações.
2
Deleuze e Parnet fazem essa pergunta a partir de uma afirmação e problematização de Spinoza (2017) quanto
ao fato de não se saber o que pode o corpo.
2

A busca por um currículo-dançante é entendida, neste artigo, como uma maneira de,
ao estarmos atentas/os às sensações, ao que movimenta o desejo dos/as estudantes em
aprender, encontrarmos um currículo “como espaço de possibilidades e como território onde
as forças podem ‘deformar’ as formas de um currículo, instaurando o movimento que é
fundamental para o aprender” (PARAÍSO, 2013, P. 50).
Compreendemos com Paraíso (2013) que há um “currículo-forma” nas escolas,
endurecido ao que faz movimentar a vida que pulsa nos corpos de estudantes. Isso porque
esse currículo-forma “opera com a imitação, a ilustração e a representação” (PARAÍSO, 2013,
P. 50), pois, segundo a autora, tem como objetivo formatar, identificar, homogeneizar,
seguindo uma lógica de desempenho. “O problema é que tudo isso paralisa o movimento, o
ziguezaguear, o fluxo da vida” (PARAÍSO, 2013, p. 50). O currículo-dançante experimentado
mostrou-se um “currículo-força”, capaz de deformar as formas e mobilizar as forças.
(PARAÍSO, 2013), capaz de vencer o tédio e o desânimo pelo excesso de ensino em um
currículo que não deixa espaço para o aprender e para viver a diferença. Segundo Paraíso
(2013), quando um currículo “se formata demais, espalha tristeza, desânimo ou indiferença” e
quando isso acontece “o aprender se distancia” (PARAÍSO, 2013, p. 196). “É necessário algo
movido pela diferença, que tudo metamorfoseia, para levar vida a um currículo. É necessário
que algo aconteça” (PARAÍSO, 2013, p. 196).
Poder viver a diferença e dançá-la em um currículo possibilitou que estudantes
vivenciassem “suas próprias experiências” (PARAÍSO, 2013, p. 51). Essas experiências
podem ser entendidas como uma possibilidade para expressar a diferença. “A diferença
deleuziana é uma diferença sem outro; é a diferença em si” (PARAÍSO, 2010, p. 602). A
diferença é o que cada ser humano é e esse ser está em constante transformação. É a partir de
pensar o aprender que promove e reconhece a diferença de cada um/uma, que se buscou
experimentar a dança em um currículo. Uma força que pôde movimentar uma cultura escolar
dura, cheia de rotinas, que pouco opera com as culturas de jovens que frequentam a escola.
Desse modo, argumentamos que um currículo-dançante pode proporcionar
experiências artísticas aos/às estudantes ao entrar em contato com as forças da dança e com as
culturas dos/as jovens aumentando a potência de agir dos corpos ao expressarem a diferença.
Nas partes que se seguem apresentamos primeiramente alguns conceitos que fundamentaram
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essas experimentações. Em seguida tratamos brevemente sobre as experimentações. Por fim,


trazemos alguns relatos de estudantes a fim de argumentarmos o que pode um currículo-
dançante.

ENTRANDO EM CONTATO COM AS FORÇAS DA DANÇA

A Dança3 como área do conhecimento conseguiu um espaço nos currículos oficiais e,


de modo geral, aparece nos currículos nas danças fugidias de estudantes (CAMPOS, 2018).
Na escola em que essa pesquisa foi realizada a dança é uma linguagem da Educação Física e
está presente apenas no que SANTOMÉ (1995) chama por “currículo turístico”. Ou seja,
aparece em algumas festas de datas comemorativas. Na disciplina de Artes a dança se faz
presente quando o/a professor/a é licenciado em Dança. No caso da escola pesquisada, a
formação da docente da disciplina de Artes é em Artes Visuais e, portanto, a dança não é
contemplada. Uma das estudantes que participou da pesquisa confirmou isso, em tom de
reivindicação por uma mudança no currículo. Ela disse: “[Na disciplina de Artes] só tem a
arte normal de desenho. Esse ano o professor até tentou fazer outra… um tipo de arte, teatro.
Só que nunca teve esse negócio de música, dança... a dança que a gente tem é na Educação
Física e é uma vez no ano só que a gente tem” (Trecho do Diário de Campo).
Entendemos que a dança, na escola pesquisada, está presente de maneira tímida no
currículo formal e de maneira marginal no currículo em ação4. Pode-se dizer que na escola a
dança aparece, ainda, de modo subserviente e assim deixa de ser arte e torna-se instrumento
pedagógico. De acordo com Bresler (2004), “as disciplinas escolares, (...), têm como alvo a
mente e a cognição, ignorando o corpo na melhor das hipóteses e subjugando-o na pior das
hipóteses” (BRESLER, 2004, p. 27)5. Entendemos que ainda que a dança possa fazer parte do

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Utilizamos o termo Dança quando se tratar da área de conhecimento e dança quando se tratar de linguagem, das
experimentações e de forma de expressão.
4
A partir dos estudos pós-críticos, currículo pode ser entendido como um artefato cultural e abrange diversas
dimensões no campo de currículo (PARAÍSO, 2004; PARAÍSO; SANTOS, 1996). Nesse sentido, o currículo
formal é o que contempla planejamentos e conteúdo a serem trabalhados na escola e o currículo em ação é o que
contempla as ações/aprendizagens dos/as estudantes na escola (PARAÍSO, 1996). Pode-se dizer que é o
currículo que escapa às normas e segue o fluxo da vida.
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Tradução livre. Texto original: “School disciplines, (…), target the mind and cognition, ignoring the body at
best and subduing it at worst” (BRESLER, 2004, p. 127).
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currículo formal, quando ganha o status de disciplina, pode sucumbir a servir mente e
cognição, deixando de lado o que é próprio da arte e do corpo: o expressivo.
Para Bresler (2004), “um corpo em movimento na escola é tipicamente considerado
como disruptivo”6 (BRESLER, 2004, p. 127), pois na escola é aceitável apenas uma
movimentação restritiva. Diante disso, compreendemos que há uma outra dança na escola,
que se dá o tempo todo. “Sob uma certa coreografia, os alunos levantam as mãos, vão até o
quadro, ajudam o professor a distribuir materiais, afiam lápis, vão ao banheiro” 7 (BRESLER,
2004, p. 127). A essa movimentação dos corpos na escola a autora chama de “coreografia
instrumental”, é o que André Lepecki chama, na cidade, de “coreopolícia”8. Desse modo,
compreendemos, que há, na escola, uma dança restritiva, instrumental, que serve a um
determinado fim e que, como linguagem de uma disciplina, pode ignorar ou subjugar o
corpo9. Compreendemos também que há uma distinção entre a dança na escola e a dança fora
da escola, pois “[e]ssa coreografia instrumental está em marcante contraste com o papel do
corpo nos mundos artísticos da dança e do teatro. Lá, o corpo é cultivado em direção a
movimentos altamente sofisticados para fins expressivos”10 (BRESLER, 2004, p. 127).
Essas distinções nos mobilizaram a experimentar a dança, no currículo investigado,
como se faz no mundo artístico. Uma dança sem compromisso com nenhuma disciplina
escolar, não como estratégia pedagógica ou conteúdo de uma disciplina, mas como uma
experiência político-estética, uma força atravessando o currículo, tal qual uma flecha que
cruza o alvo e o fura, quebra, rompe, estraga, arranha, provoca mudanças, mas acerta alvos,
encontra corpos. Uma dança capaz de proporcionar uma experiência sensível possibilitando
diferentes maneiras de expressão. Experiência é aqui entendida como “o que nos passa, o que
nos acontece, o que nos toca” (BONDÍA, 2002, p. 21) e é sensível pelo fato de considerar as
diversas sensações do corpo. Uma maneira de pensar o currículo “a partir do par

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Tradução livre. Texto original: “A moving body in school is typically regarded as disruptive” (BRESLER,
2004, p. 127).
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Tradução livre. Texto original: “Under a certain choreography pupil raise their hands, walk to the board, help
the teacher distribute materials, sharpen pencils, go to the bathroom” (BRESLER, 2004, p. 127).
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Lepecki (2012) cunha esse termo ao tratar da coreografia dos corpos nas ruas, mas neste artigo “roubamos” esse
termo para compreendermos a coreografia que acontece nas escolas, com movimentos “policiados” o tempo
todo. Movimentos permitidos e proibidos.
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Ressaltamos que não se trata de uma generalização, mas de uma compreensão a partir de referenciais como os
que são aqui apresentados e do que encontramos no campo pesquisado.
10
Tradução livre. Texto original: “Such instrumental choreography is in marked contrast to the role of the body
in the art worlds of dance and drama” (BRESLER, 2004, p. 127).
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experiência/sentido” (BONDÍA, 2002, p. 20). Assim, “pensar não é somente ‘raciocinar’ ou


‘calcular’ ou ‘argumentar’, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar
sentido ao que somos e ao que nos acontece” (BONDÍA, 2002, p. 21).
Podemos dizer que o contato com as forças da dança pode criar pensamento, pois
pode provocar uma outra maneira de pensar, já que “dançar é pensar” (GIL, 2002, p. 219). É
pensar com o corpo, na imanência da vida. Para que esse contato fosse possível, o currículo-
dançante transgrediu a “grade curricular”, subverteu os planos de aula das professoras e o
projeto da supervisora, atravessou fronteiras entre disciplinas, bagunçou a sala de aula,
arrastou carteiras, levou estudantes e professoras para fora da sala de aula, ligou o som,
provocou movimentos estranhos, dançou, riu, brincou, saltou, lançou-se ao chão, rodopiou,
suou, provocou sensações diversas, confrontou a timidez e a fixidez, flexibilizou e multiplicou
conteúdos de disciplinas, alargou fronteiras, cheirou, sentiu fome, sede, despertou desejos e
inquietações. Este currículo é, portanto, um provocador inquieto e provoca sorrisos e a
possibilidade de “tomar um ar”, como repetiu inúmeras vezes a professora de Português que
se abriu para as experimentações. “Um pouco de possível”, como diz Deleuze (2013, p. 175).

EXPERIMENTANDO O CURRÍCULO-DANÇANTE

Experimentar a dança em um currículo foi uma possibilidade para ver se essa arte,
entendida como força, poderia injetar vida em um lugar em que prevalece a forma,
sensibilizando corpos e apontar para um aprender com a diferença por meio dos signos da
arte, pois, segundo Deleuze (1987), o aprender se dá somente pela decifração de signos e o
“mundo da Arte é o último mundo dos signos”, a arte integra todos os signos sensíveis, além
de que “todos os aprendizados, pelas mais diversas vias, são aprendizados inconscientes da
própria arte” (DELEUZE, 1987, p. 14). A arte é também compreendida como uma maneira
singular de expressão.
A dança abordada nas experimentações foi a que se conhece popularmente como
dança contemporânea, aqui entendida como danças contemporâneas (MURTA, 2014) por
contemplar diferentes modos de dançar. Trata-se de “uma trama complexa de ideias
(pensar/fazer), que convivem e que podem ser absolutamente contraditórias ou perfeitamente
complementares” (MURTA, 2014, p. 78). Para Vianna (2018), o que há de contemporâneo na
6

dança “é dar espaço para as individualidades” (VIANNA, 2018, p. 78). É o que


compreendermos por dar espaço para a diferença, para as singularidades de cada corpo, numa
compreensão de que todos/as podem dançar sem a necessidade de ter um determinado padrão
de corpo ou executar determinados passos.
Importante destacar que, quando se introduz a noção de diferença na educação, em
uma pedagogia, “tudo se transforma, tudo se torna mais rico” (GIL, 2002, p. 216). Isso porque
o que é comum nesses âmbitos é a transmissão de conteúdos, o que “implica o contrário de
uma diferença, implica uma homogeneização, uma conservação, de tal maneira que o que se
transmite continue intacto” (GIL, 2002, p. 216). A diferença implica em multiplicidade,
heterogeneidade, transformação do que se ensina, no ato diferencial de aprender. A diferença
foi considerada em cada experimentação, o que pode ser também considerar as culturas
juvenis dentro da escola, “as identidades culturais que não são fixas” (HALL, 2019, p. 52)
As técnicas de dança contemporânea utilizadas foram: Improvisação, Contato
Improvisação, Composição Coreográfica e Videodança11. Também foram incorporadas as
danças das culturas juvenis, que os/as estudantes dançam pelos corredores da escola, quando
encontram uma brecha para isso. Tratam-se da Trap Dance12 e do Funk, danças entendidas
como contemporâneas pois estão sendo produzidas e dançadas na atualidade. Assim, neste
artigo chamamos apenas de dança, num entendimento de que é um todo aberto que se agencia
a diferentes maneiras de dançar e se transforma a cada agenciamento. Nessa dança são
consideradas percepções contemporâneas em dança ao considerar também as danças que são
criadas na contemporaneidade.
Mas como propor uma dança que seja força no sentido que temos discutido neste
artigo? Mesmo porque a arte pode sucumbir à forma e o fez historicamente. A arte viveu e
ainda vive, a depender de como é abordada, “o império da forma” (VIANNA, 2018, p. 78),

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A grafia “videodança” foi adotada neste artigo por compreendermos a inseparabilidade que há entre essas duas
formas de arte: vídeo e dança, pois somente por meio dessa composição que se tem esse tipo de linguagem. E
também por concordar com a grafia utilizada por Leonel Brum (2012), uma das maiores referências em
videodança no Brasil. Contudo, não desconsideramos a existência de outras grafias que são adotadas por
diferentes grupos, profissionais e estudiosos da área, como “vídeo-dança” ou “vídeo dança”, sendo também
aceita por expressões como “dança para a tela” ou “dança para o vídeo” (BRUM, 2012, p. 1).
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De origem na cultura Hip Hop, tornou-se um gênero próprio. Trap Dance é a dança que se faz ao som do
ritmo trap e o conjunto de passos leva o nome de Lit Dance (BRAZ, 2019). Desses passos, os que mais
apareceram foram: Dab Dance, Backpack Kid Dance, ShootChallenge e Roy Purdy Dance. São passos e danças
criados por jovens e que têm ganhado repercussão pelo mundo via redes sociais e estão presentes na escola.
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mas diversos artistas e a dança contemporânea têm se inclinado a uma busca pelo que
chamamos de força, uma dança como expressão da vida, como um modo de viver (VIANNA,
2018; GARAUDY, 1980). Uma técnica pode se tornar forma quando ela é o fim e não apenas
um meio para se expressar. A “dança não significa reproduzir apenas formas. A forma pura é
fria, estática, repetitiva. Dançar é muito mais aventurar-se na grande viagem do movimento
que é a vida. Nesse sentido, a forma pode comparar-se à morte e o movimento à vida”
(VIANNA, 2018, p. 112). A força é movimento, “é instância mobilizadora de encontros
potentes que permitem encontrar a diferença de cada um” (PARAÍSO, 2013, p. 192).
A partir de Vianna (2018) entendemos que a dança pode ser força quando o ser
dançante pode expressar a diferença que é. Pode ser força quando se “ganha um corpo” e
quando não se dança mais, antes, torna-se dança, entra-se num devir-dançante, um vira ser
que é movimento, criação e transformação e, por meio dela, expressa-se integralmente. “O
que confere autenticidade e expressão a um dado movimento coreográfico é precisamente o
poder que ela tem de traduzir certas emoções, sentimentos ou sensações” (VIANNA, 2018, p.
113). Por isso as técnicas utilizadas nas experimentações foram um meio para sensibilizar e
trazer à tona toda uma percepção corporal. A necessidade de “dar um corpo” aos/às
participantes da pesquisa vem do entendimento de que “[e]m nossa civilização, caracterizada
pelo estresse, o indivíduo tende a manter com o próprio corpo uma relação cada dia pior”
(VIANNA, 2018, p. 107).
Vivemos em uma sociedade que fragmenta a vida e nos torna carentes de
complementariedade entre nossa capacidade de pensar e sentir, de exprimirmos tudo o que
somos. A escola privilegia essa fragmentação. Nela – e na sociedade de modo geral - o corpo
deixa de ser o que somos, para ser o que temos e só nos damos conta dele quando não
aguentamos mais, quando o tédio, o desânimo ou a dor aparecem de modo contundente. Nesse
sentido, “dar/devolver um corpo” é sensibilizar de tal modo que se passa a ter consciência do
que se é, e assim, poder se expressar. Esse “devolver” possibilita o “ser um corpo”, pois à
medida que nos conscientizamos do corpo que somos, passamos a sentir a vida que passa em
nós. É aí que nos tornamos corpo, é aí que nos tornamos dança. Segundo Vianna (2018),
expressar-se corporalmente é refletir tudo o que somos: o que sentimos, o que pensamos.
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A dança, quando força, portanto, quando expressiva, deixa de ser ginástica para ser
expressão da vida. Para tanto, deve-se dar espaço para esse corpo. E foi o que procuramos
fazer nessas experimentações. Retirar os corpos de um lugar de confinamento (sala de aula),
ou ainda transformar esse lugar em um espaço aberto para o movimento. O trabalho com a
Improvisação (que á a criação instantânea do movimento, numa integração corpo-
pensamento), o Contato Improvisação (cujo movimento se cria a partir do contato com outro
corpo), a Composição Coreográfica (feita num processo de criação coletiva) e as experiências
com a produção de Videodanças (produção e criação coletiva de uma dança que se dá na
simbiose dança-tecnologias digitais), permitiram que estudantes pudessem ser sensibilizados
de modo a se expressarem num currículo que é forma e, portanto, sufocado pela rotina e pelo
excesso de ensino.

DAS POSSIBILIDADES DE UM CURRÍCULO-DANÇANTE

Alguns relatos a partir de entrevistas coletivas nos permitiram enxergar algumas


pistas sobre o que pode um currículo-dançante. E algumas pistas que destacamos dizem
respeito à importância de, na escola, serem oferecidas oportunidades para os/as alunos/as se
expressarem. Essa expressão se dá pelo corpo transformando a vivência na escola em uma
experiência artística, capaz de dar sentido à vida e de aprender com a diferença.

Isso se mostrou relevante para nós porque no decorrer da pesquisa nos deparamos
com expressões de afectos tristes nos/as estudantes, o que entendemos que diminui a potência
de agir (SPINOZA, 2017). Nos deparamos com manifestações de ódio, rancor, tédio, apatia,
desespero, ansiedade e vontade de morrer. Surtos de ansiedade que levaram uma adolescente a
chorar desesperadamente por várias vezes, a ponto de vomitar em sala de aula. Cruzamos com
adolescentes em prantos pelos corredores da escola. Adolescentes tomando medicações fortes
para controlar a ansiedade. Declarações de vontade de matar a colega, de odiar a escola
porque “não aprendem nada que se relaciona com a vida”, como disse um dos estudantes após
uma experimentação com dança e poesia. Nos deparamos com uma adolescente que levou um
facão na escola para tentar se matar no banheiro, mas foi impedida por colegas. Esses são
encontros tristes que diminuem a potência de viver (SPINOZA, 2017). Essas pistas nos
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fizeram entender que há uma necessidade dos/as estudantes vivenciarem a escola e o currículo
de maneira expressiva, e isso traz alegria e vontade de viver, pois pode tornar a vida na escola
mais significativa.
Quando em entrevista13 perguntamos aos/às estudantes sobre as sensações que
tiveram com as experimentações, tivemos algumas respostas que nos surpreenderam, a saber:
“[a dança] é a forma mais bonita de você expressar seus sentimentos”; “você pode liberar seus
sentimentos, uma forma da gente se expressar e jogar nosso sentimento através daquilo”;
“você começa a se expressar e você começa a fazer alguma coisa no seu tempo livre que deixa
você mais calma, mais animada”. Esses relatos nos deram pistas quanto à importância de
poder se expressar: a dança pode produzir alegria e a aumentar a potência de agir (SPINOZA,
2017; DELEUZE, 2002). Uma outra estudante disse: “a dança, além de ser uma forma muito
bonita, é uma maneira muito boa pra se expressar (...). Até mesmo quem tem depressão ou
algo do tipo, pode se expressar com a dança e tentar diminuir as mágoas”. A partir desses
relatos entendemos que a dança possibilita uma ação do corpo que integra especialmente os
sentimentos, uma das dimensões do que a pessoa é. Desse modo, percebe-se que até quando
se expressa um afecto triste, isso potencializa o agir, pois transforma angústia e dor em alívio
e traz alegria por poder dizer de sua história, como vemos nos seguintes relatos: “eu gosto de
dança, porque além de se mexer, você expressa todas as coisas que você passou na sua vida,
uma história, tudo pela dança”; “ah, eu coloquei todos os meus sentimentos. Quando eu estava
com raiva, fazia um sentimento, quando estava feliz, também, aí eu fazia muito melhor a
dança”.

Compreendemos que o currículo-dançante aumentou a potência de agir dos/as


estudantes ao mudar a rotina: “foi uma coisa nova, porque a gente só ficava o dia inteiro
trancado na sala e ao mesmo tempo foi muito importante pra gente movimentar o corpo e
aprender coisa nova de uma maneira diferente”; “foi muito bom, porque tirou a gente da
rotina de ficar dentro da sala e foi uma forma da gente se sentir livre através da dança”. Essa
mudança potencializou os/as estudantes, pois trouxe alegria, o que nos leva a compreender
que um currículo pode ser um lugar de alegria, de bons afectos. “Ah foi muito bom a gente

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Entrevista coletiva. [06. dez. 2018]. Entrevistadora: Carla Char. Escola Sagração da Primavera (nome fictício).
Contagem, 2018. 9 arquivos mp3 (1h 35 min.).
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dançar, se divertir um pouco e ter um pouco de felicidade!”. Esse “pouco de felicidade” pode
ser entendido como “um pouco de possível”, de alegria, que é o que aumenta a potência de
agir dos corpos.
Ademais, estudantes demonstraram que se expressar no currículo fez dessa
experiência, uma experiência artística, pois, segundo disse uma das alunas, “não importa o
que você fizer, se não tiver seus sentimentos, suas emoções, o que você sentiu na hora, não é
arte”. Um outro aluno disse, “sem inspirar as outras pessoas, sem mostrar os seus
sentimentos”, não é arte. “Quando não tem sentimento, não é arte”. Esses/as estudantes nos
mostram que uma prática artística, sem sentimento, perde a dimensão de arte e pode se tornar
uma ginástica, no caso da dança, como diz Vianna (2018). Nesse sentido, torna-se forma. Mas
quando se dança e se expressa integralmente, essa dança torna-se força e ganha a dimensão de
arte.
Pudemos compreender com todas as sensações que os/as alunos/as tiveram ao se
expressarem pela dança, que puderam aprender com a diferença em si. “Foi um período de
aceitação, descoberta e aprendizado pra mim”. Um outro estudante disse: “Acho que a gente
aprendeu, também, naquelas aulas que você ensinava a gente a mexer o nosso corpo e tal, a
gente aprendeu a controlar nosso corpo e a entrar em harmonia com o nosso corpo”. Essa
“harmonia” falada pelo estudante pode ser entendida como uma consciência sobre o corpo
que somos, com todas as suas possibilidades de vida e expressão. “Sim, porque expressa
liberdade, paixão… sei lá! Você sente uma coisa diferente, sabe? Eu me sinto muito eu
mesma, eu me sinto viva!”. Aprender com as forças da dança é, pois, se sentir vivo/a. Em um
currículo permeado por afectos tristes, o currículo-dançante mostrou-se possibilidade de vida,
como disse uma outra estudante: “dança é vida!”. E isso se deu porque tiveram a oportunidade
de se expressarem, pois, conforme disseram: “a gente aprendeu, também, a expressar. A gente
sabia que dava para expressar, mas a gente não sabia como fazer isso. E a gente soube
expressar nossos sentimentos através daquela dança”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que expusemos acima evidenciamos que o currículo-dançante aumentou a


potência de agir dos/as estudantes, especialmente por terem a oportunidade de expressarem a
11

diferença que são. Evidenciamos que esses/as estudantes têm necessidade de aprender de
outros modos e têm, especialmente, desejo de se expressarem.

Diante da maneira como o conhecimento é ensinado na escola, a sensação é,


frequentemente, de sufoco pela rotina exaustiva. Contudo, mostramos que por meio de um
currículo-dançante, estudantes puderam aprender de outro modo, com o corpo, com tudo o
que são, com alegria, considerando a arte nesse processo. Nesse sentido, a alegria pode ser
entendida como “um bom critério para selecionarmos atividades e saberes nas escolas, um
bom indicador para avaliarmos nossas práticas e os efeitos do que ensinamos sobre nossos
alunos/as” (PARAÍSO, 2013, p. 204). Compreendemos que o contato com as forças da dança,
e a possibilidade de expressão no currículo escolar pode produzir alegria, bons afectos que
potencializa os corpos dos estudantes, num aprender para viverem a diferença no currículo,
tornando-o vivo por dançar a vida.

REFERÊNCIAS

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