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“Briga no chiqueiro gospel”: o discurso carnavalizado

como base para a construção da identidade cristã-


evangélica [neo]pentecostal, no blog Genizah.

Francisco Geilson Rocha da Silva*

* Doutorando do Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada


(PosLa) da Universidade Estadual do Ceará – UECE, orientando do Prof.
Dr. João Batista Costa Gonçalves.
Considerações iniciais
 Entender a sociedade via fenômeno religioso tem sido
uma tônica nas Ciências Sociais.
 Esse trabalho alinha-se à Linguística Aplicada (LA),
“uma ciência social” preocupada com questões que
envolvem “problemas de uso da linguagem
enfrentados pelos participantes do discurso no
contexto social” (MOITA LOPES, 1996, p. 20).
 Alguns trabalhos sinalizam o crescente interesse tanto
da Linguística como da LA pelo fenômeno/discurso
religioso (CROZARA, 2007; OLIVEIRA, 2012;
ASSUNÇÃO, 2012; SILVA, 2018).
Esses trabalhos, quando emparelhados à LA,
têm como uma de suas principais preocupações
a análise de como o discurso religioso, valendo-
se de estruturas linguísticas e de aspectos da
cena enunciativa, atua sobre o mundo e sobre as
pessoas, estabelecendo e sustentando relações
de dominação (THOMPSON, 2011).
Dentre as inúmeras ocorrências unidas ao
discurso religioso está a construção de
identidades sociais.
Objetivo central do trabalho
Reivindicando a tese de que identidades são
elaboradas historicamente num ininterrupto
“jogo” discursivo e de relação com a
alteridade (CASTELLS, 1999; BAUMAN,
2005; HALL, 2006; BAKHTIN, 2011), é
nossa preocupação central saber de que
maneira a cosmovisão carnavalesca, flagrada
no texto em análise, colabora na produção
do que aqui estamos chamando de
identidade [neo]pentecostal.
O blog Genizah
 Esse blog é uma esfera de produção discursiva digital
autodenominada cristã e “apologética”, cuja principal
característica é a utilização de uma linguagem verbo-
visual carnavalizada, investida de humor e de
excentricidades incomuns dentro do universo religioso
cristão.
 Ele se apresenta aparentemente ávido pelo ideal
apologético tradicional (oficial), conservador, de
manutenção da “sã doutrina”, de proteção do
“cristianismo bíblico” e da “ética protestante”, mas
numa linguagem carregada de elementos satíricos,
cômicos, não-oficiais que desestabilizam a ordem
discursiva convencional da religião cristã.
O peleguismo patético da Missão Integral
A proposta desse blog é o de uma
apologética “sem Apolo”, “dionisíaca”,
festiva, alegre e desordenada. Do mesmo
modo como Nietzsche (2001) pensou numa
“gaia/alegre ciência”, o gesto carnavalesco
do blog do Genizah nos faz pensar numa
“gaia teologia/apologética”, uma
“dionisética”, ao invés de uma
“apologética”.
A “tranlinguística” bakhtiniana: uma
perspectiva teórico-metodológica

 Busca-se compreender não apenas textos e


sentidos, mas sujeitos em ação no mundo;
 Sujeitos e sentidos são vistos como
constitutivamente dialógicos;
 Ao invés de “objetos de pesquisa”, analisa-
se textos que materializam discursos,
enunciados concretos que expressam o
posicionamento de alguém e com o qual o/a
pesquisador interage.
A CARNAVALIZAÇÃO
 Noção que se originou do estudo feito por Bakhtin do
carnaval medieval, festividade na qual era ofertado às
pessoas uma visão de mundo não oficial, “um segundo
mundo e uma segunda vida” (BAKHTIN, 1987, p. 5), uma
vida às avessas.
 Para o filósofo russo, o carnaval, posteriormente, viria a se
firmar como uma linguagem e uma “cosmovisão”
denominada de carnavalização.
 A carnavalização: elementos do carnaval influenciando a
literatura e a vida; o mundo visto numa ótica carnavalesca –
cosmovisão carnavalesca; mais do que um conceito, “uma
categoria analisável nos textos (DISCINI, 2010, p. 72).
Categorias de análise – cosmovisão
carnavalesca em ação
 Livre contato familiar – a quebra de distanciamentos
(sociais, econômicos, religiosos, políticos etc.) entre os
homens
 A excentricidade – predominância de uma linguagem
“[...] inoportuna do ponto de vista da lógica do
cotidiano não carnavalesco” (BAKHTIN, 2015, p. 140).
A profanação – “sacrilégios carnavalescos”,
“indecências carnavalescas”, “paródias carnavalescas” e
seu papel crítico frente o universo religioso.
 As mésalliances – manifesta-se por meio de uma
linguagem em que elementos tidos por convenção como
antagônicos e excludentes são aproximados.
Vestígios do cômico no discurso cristão

 Estudiosos do riso afirmam ser inegável a presença do


elemento cômico na Bíblia: “é claro que há riso na
Bíblia!” (MINOIS, 2003, p. 79 – grifo do autor):
 O riso foi, inicialmente, censurado pelos principais
representantes do cristianismo.
 Depois, foi tratado como arma a serviço do bem,
usado contra os “hereges” - “riso lícito” (MINOIS,
2003).
 Bakhtin aponta a existência de uma licença por parte
de teólogos e clérigos na produção de paródias dos
ritos e de toda a doutrina oficial da igreja, ambos
“descritos do ponto de vista cômico” (2010, p. 12).
Eramos de Roterdã e a sua obra Elogio da
loucura;
Martinho Lutero – seu espírito cômico do
pode ser observado especialmente nas
missivas que escrevia;
G.K. Chesterton – Ortodoxia;
C.S. Lewis – Cartas de um diabo a seu
aprendiz
[neo]pentecostal: encontros e
desencontros conceituais.
 As igrejas [neo]pentecostais são maioria, entre os
evangélicos, segundo dados do Censo/2010.
 Há diferentes propostas de classificação para
descrever o Movimento Pentecostal.
 Opto, nesse trabalho, falar de [neo]pentecostal,
como reconhecimento do caráter multifacetado do
movimento e pela própria natureza do nosso corpus,
no qual verificamos nas representações que lá se
constroem a não separação entre “pentecostalismo”
e “neopentecostalismo”, prevalecendo uma
hibridização das feições de ambos.
A ambiguidade instaurada na forma
“[neo]pentecostal”, anotada no presente
trabalho, advém do reconhecimento do
caráter multifacetado do movimento e pela
própria natureza do nosso corpus, no qual
verificamos não haver, nas representações
que lá se constroem, uma separação entre
“pentecostalismo” e “neopentecostalismo”,
prevalecendo uma hibridização das feições
de ambos.
Quais foram nossos procedimentos de
análise?
1. Levantamento das informações mais importantes trazidas no
enunciado, com um foco no aspecto linguístico, dando destaque ao
“vocabulário da praça pública” (BAKHTIN, 2010) em ação no texto;
2. Análise do título e das relações de sentido estabelecidas com o
enunciado como um todo;
3. Verificação das relações dialógicas e da posição axiológica do autor
diante vozes que comparecem tanto no título como no texto, de uma
maneira geral;
4. Descrição da forma como como os personagens, convocados no
enunciado, são visualmente carnavalizados e a influência que esse
processo tem na construção da identidade [neo]pentecostal;
5. Com base nas categorias da cosmovisão carnavalesca, análise da
relação entre as valorações que emanam da linguagem cômica
articulada verbo-visualmente no blog e a identidade [neo]pentecostal,
tecida no texto.
Uma síntese da análise
O processo discursivo-argumentativo do texto se desenrola
como um comentário crítico carnavalizado de um
polêmico episódio envolvendo os líderes Agenor Duque e
Ana Paula Valadão, disseminado nas redes sociais.
 A base da polêmica foi uma colocação feita no palco de
um evento organizado em 2016, pela Igreja Apostólica
Plenitude do Trono de Deus, liderada pelo “apóstolo”, no
qual supostamente a “pastora” pôs em descrédito uma das
principais marcas dos cultos das igrejas de Agenor, a saber,
o uso de objetos (como a “toalhinha” do evento) como
elemento simbólico e ponto de contato entre o fiel e a
“bênção” de Deus.
Em resposta à presumida crítica e como
forma de esvaziar a credibilidade da líder do
grupo de louvor Diante do Trono, o
“apóstolo”, numa ocasião posterior,
relembrou uma situação na qual Ana Paula,
anos antes, num congresso em Anápolis-Go,
reivindicando a “unção dos seres viventes”,
rugiu e caminhou como se fosse um “leão”
sobre o palco.
O texto se constrói na atmosfera do “livre
contato familiar”, repleta de elementos
carnavalizadores, rica de imagens e signos
que suscitam o riso, o deboche.
Temos a presença do elemento grotesco, a
descrição da pastora Ana P. Valadão, “de
quatro”, numa clara ênfase no baixo-
corporal, manifestados como uma forma
degradante e de rebaixamento (BAKHTIN,
2010).
A visualidade apresenta-nos os protagonistas da “briga”, grotescamente
hipertrofiada em seus adereços;
 A “túnica sacerdotal” mesclada a um tipo de coroa bufão no “apóstolo”,
o traje infantil de “leãozinho” da cantora, em evidente relação dialógica
com uma antiga propaganda de leite chamada “Mamíferos
PARMALAT”, na qual crianças estão vestidas com roupas de diversos
animais, incluindo o “leãozinho”, mobilizam-se conjuntamente ao
elemento verbal para subverter comicamente essas lideranças,
produzindo a “alegre relatividade” da posição hierárquica por eles
ocupadas no universo religioso cristão.
 Essa imagem de Agenor não foi originalmente construída no blog, mas
extraída de uma das reuniões da Igreja Apostólica Plenitude do Trono, na
qual o “apóstolo” se apresentou vestido com pano de saco, uma coroa
multicolorida e um tênis Nike. No enunciado em análise a imagem é
axiologicamente carnavalizada na qual o formato “marca d’água” projeta
o líder translúcido, quase “descorporificado” (não se veem mãos e pés).
 Os dois personagens correspondem, dentro do
[neo]pentecostalismo, a signos representativos de carisma, poder,
autoridade, estabilidade e respeito, bem como de conservação dos
valores e tradições desse filão religioso, estabelecendo-se como
“embaixadores” da oficialidade.
 O enunciado, porém, constrói-se impregnado de uma “linguagem
inconveniente”, “excêntrica” e profanadora.
 Expressões como “fuzarca”, “bosta”, “bordel religioso”, “lugar
fedorento”, “patético líder gospel”, “Chacrinha gospel”,
“picareta”, “bom sacana”, “meliante”, “pilantra”, “pornô
mexicano”, “rastejar sensual” regurgitam de elementos não-
oficiais e degradantes, mobilizadas para se referir a esses líderes e
ao seu universo religioso, como forma de destroná-los
carnavalescamente e, ao mesmo tempo, subverter a imagem do
universo [neo]pentecostal, renovando-os através do esvaziamento
da credibilidade de ambos (deles e do movimento).
Conclusão
 Da reunião desses elementos carnavalescos, somados aos
posicionamentos axiológicos que se articulam verbo-
visualmente no enunciado, vemos emergir, para além da
“intenção apologética” séria e oficial do blog Genizah,
representações discursivamente tecidas do que vem a ser a
forma de cristianismo [neo]pentecostal, a saber, uma
religiosidade bélica, manipuladora de “verdades”,
espetaculosa, autoritária e agente de “absurduários”.
Um tipo de cristianismo “digno” das “excentricidades”,
das “obscenidades” e das ambivalentes “grosserias”
mobilizadas no enunciado, que deve ser renovado e
enfrentado por meio de uma linguagem contaminada pelo
riso.
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Grato pela atenção!

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