Ensino da lingua materna: principios orientadores
Maria Isabel H. Dalla Zen
Antes de abordar as questées sobre o ensino de lingua ma-
terna, quero apontar alguns principios orientadores de trabalho
que sustentam as reflexGes sobre esse ensino propriamente cito.
Ei-los, aqui, entre outros que poderiam ser elencados: {- a acao
pedagdgica néo se acomoda; ao contrario, incomoda-se; 2- a
revisdo das agGes deve ser permanente, com base em estudos
recentes; 3- a pratica deve ser refietida suficientemente, para que
nao se adote o paradigma substituidor de tudo nas salas de aula;
4- o bom senso e a disposicao para as novidades do conheci-
mento geram atitucles pedagégicas competentes.
Jogador de futebol e poeta
O quarto era o préprio campo de futebol. A mae em repou-
so, por motivo de satide, acompanhava o jogo. Na mesa de ca-
beceira, varios livros; entre eles, alguns de literatura infantil. Du-
rante a “partida”, o menino surpreendeu a mde lendo, estudan-
do... Instantaneamente ele interrompe o jogo e pede para que
leia uma historia. Final da leitura, 0 jogo e o estudo recomecam.
A cena anterior se repete. Outra historia, e mais outra; dessa vez,
" Professora do Departamento de Ensino e Curriculo da Faculdade de Educacdo da
UFRGS0 livro de poesias. Comentarios... E o menino diz: “assina, ai,
mae, no teu livro, a poesia que eu vou fazer”. E abre, poetica-
mente, seu repertério:
“Quando aparece o arco-iris, € aniversério do céu”
“A lua dorme de dia e acorda de noite”
“A estrela € o brinco da lua; e se cair, eu vou usar”
Que linguagem € essa que consegue afetar de maneira tao
sutil as vias da imaginagao? Que escuta € essa que permite libe-
Tar frases poéticas tao doces? Que escola € essa que com 0 pas-
sar do tempo faz secar tamanha fonte de palavras tao harmonio-
samente combinadas?
Nao gostaria de dizer ao menino que esse ato de criacao de
frases poéticas tem seus dias contados, que o futuro de jogador
de futebol, quem sabe, promete muito mais. Também nao quero
uma escola que fecha as portas para os sonhos, que nado busca
alternativas e que, por isso, debita na conta da sociedade todos
os seus males. Ao contrario, sou do time que acredita no projeto
de uma escola possivel e feliz. que vai se superando num con-
junto de lutas politicas maior.
Leitura, producao de texto e gramatica: praticas interligadas
O peso da historia das vivéncias escolares anteriores influen-
ciam, sobremaneira, a selecao e a abordagem dos contetidos de
ensino. Por esse motivo, a presenca de certos fantasmas perma-
nece constante — “Se eu nao trabalhar os contetidos classicos de
cada série, como vai ser se forem transferidos de escola?” “Preci-
so preparar os alunos para o vestibular!” “Eles sabem Portugués,
nao tém um erro de ortografial”
Ndo podemos, entretanto, ceder a pressdo dos fantasmas. E
preciso rever posi¢Ges, revisar roteiros. Entéo, o que significa
mesmo ensinar a lingua que ja sabemos (falamos desde que nas-
cemos a lingua que aprendemos na escola)? Ensinar a lingua ou
ensinar 0 que se diz sobre ela (regras, nomenclaturas...)?
Inscrevo-me na op¢ao de ensinar a lingua. Vejo a linguagem
como uma forma de produ¢ao (constante) de sentidos. Dai, ensi-
nar a lingua é promover situacdes que permitam a reflexdo sobre
a linguagem nos seus diferentes contextos de uso. Isto é, ler e
discutir, produzir textos e analisar a trama discursiva dos materi-
ais lidos e elaborados. Dentro desta visao, esse percurso deve sedesenvolver a partir de projetos didaticos concretos que propici-
em a utilizagdo real da linguagem.
Para a implementacdo desses projetos € preciso direcionar o
ensino de maneira diferente, revendo a abordagem da triade_lei-
tura, produgao de texto e gramatica. Para mudar essa aborda-
gem, € necessario enxerga-las como _praticas interligadas. Incor-
porar essa concep¢ao, pressupde estudo, discussdo, disposi¢ao e
abertura para que se possa seguir uma nova rota de trabalho.
Nesse sentido, eliminar alguns mofos contribuiria muito para a
adocao de uma pedagogia viva do ensino de lingua materna.
E quais seriam esses mofos? Fis alguns exemplos agrupados:
1. ler apenas para encontrar as respostas completas nos tex-
tos: ler para ver o que o texto diz, sem decifrar o nao dito das
entrelinhas; ler para fazer provas; ler sempre os mesmos tipos de
textos, quando as tipologias sao tao variacas e seu uso tao inten-
so na vida: ler em siléncio absoluto para nao atrapalhar o compa-
nheiro, quando a fala e a escuta do outro geram a negociagéio
dos sentidos; ler no canto da leitura e na biblioteca para “preen-
cher o tempo”, ou como castigo;
2. produzir textos somente para a professora ler e corrigir:
produzir textos artificiais. sem a presenca de interlocutores reais:
produzir sempre os mesmos tipos de textos; produzir textos sem
um trabalho prévio de leitura e discussao sobre 0 assunto
3. privilegiar a maior parte do tempo para o “ensi-
no/aprendizagem” da gramatica normativa; propor exercicios
mecanicos, fora de contexto; repetir contetidlos, ao longo das
séries, apenas trocando a nomencliatura, numa tentativa de sim-
plificar a metalinguagem para “melhor compreensao” dos con-
ceitos - exemplo: nas séries iniciais, verbo é acao e adjetivo é
qualidade; considerar apenas uma variedade lingiistica, em de-
trimento das diferentes variedades existentes.
Eliminados os mofos, qual seria uma contraproposta? Seria a
implementacao efetiva de atividades de leitura e escrita - em
qualquer série, em qualquer grau de ensino. Ler, interpretar e
produzir diferentes tipos de textos, constantemente. Mas, é pre-
ciso que os sujeitos trabalhem, de fato, com a multiplicidade de
linguagens, para que possam utilizar essa variedade em seus
textos, em fun¢ao de diferentes propdsitos.